Missão Espiritana

Volume 15 | Number 15 Article 9

3-2009 Libermann e a "Hora da África" Adélio Torres Neiva

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libermann e a hora da

1. A HORA DA AFRICA

A Africa como os outros continentes tinha sido descoberta pelos portugueses, no seculo XVI. Mas enquanto nos outros conti- nentes a descoberta foi de imediato seguida da conquista e explo- ra<;ao do territorio, a Africa continuou durante os seculos XVII e XVIII um continente esquecido. As especiarias da India e o ouro e pedras preciosas do Brasil absorveram os interesses economicos da Europa, deixando a Africa, na periferia da historia. A ocupa^ao portuguesa, excep^ao feita ao Reino de Monomotapa em Mo9am- bique e a algumas regioes do interior de , limitou-se a certos pontos estrategicos do litoral africano. As fortalezas militares eram a expressao deste dormnio muito localizado. Depois, no tempo do comercio dos negreiros, os europeus instalaranvse em pequenos corredores ou colonias de dimensao restrita e local. Foi preciso chegar ao seculo XIX para a hora da Africa soar. "Foi preciso Varios factores se juntaram para despertar a aten^ao do mundo chegar ao se' sobre a Africa: culo XIX para a hora da 1.1. Um primeiro factor foi sem duvida, a febre das explora-Africa soar. 9pes geograficas pelo interior dos continentes, nomeadamente na Varios factores Africa, que nessa altura contagia toda a Europa. Estas viagens fa- se juntaram zem com que a ciencia geografica se torne um dos principais focos para despertar do saber do velho continente. As Sociedades de Geografia que a atengao do entao se criam por toda a parte jogam um papel decisivo na orga- mundo sobre a niza<;ao dos itineraries das explora9oes que se abrem em todas as Africa." direc9oes sobretudo no continente africano. Livingstone, Stanley, Brazza, Hermenegildo Capelo, Serpa Pinto, , Silva , sao apenas alguns nomes dos cientistas que abriram o cami- nho aos missionarios. Livingstone dira mesmo que “o fim da explo- ra9ao geografica nao e senao o, principio da era missionaria”. Livingstone percorre a Africa Central'Austral do Indico ao Pacffico; Stanley, partindo da costa oriental penetra ate ao cora9ao do continente, para depois sair pela costa ocidental, nas bocas do

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Congo, onde o tinha precedido Brazza. Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens fazem o reconhecimento de uma vasta regiao de Angola, ligando o Atlantico ao Indico. As exploragoes africanas foram acompanhadas das campa- nhas da guerra colonial onde pontificaram nomes que deixaram a sua memoria ligadas as terras onde combateram: Artur de Paiva, Paiva Couceiro, Pereira de Ega, Henrique de Carvalho, Lourengo Marques, Antonio Enes, Mousinho de Albuquerque, etc. Depressa, os pafses europeus, a princfpio reticentes, tomaram consciencia do interesse de tais exploragoes e a corrida a Africa comegou: corrida polftica, economica, cientffica, filantropica, hu- manitaria, para a ocupagao do continente africano nao se fez espe- rar. A Africa torna-se a vocagao da Europa. Criam-se os Ministe- rios das Colonias, fundam-se museus ultramarinos de Etnografia, de Botanica e de Antropologia, publicam-se relatorios das viagens e exploragoes, fazem-se convenios, congressos e conferencias. Esta corrida incontrolavel levou a Europa ao Congresso de Berlim, em 1884, em que o continente africano foi dividido e^distribmdo pelas potencias europeias. Foi a partir de entao que a Africa ficou divi- dida numa serie de colonias que nada tinham a ver com a identi- dade etnica ou cultural dos povos que as habitavam. "Esta crescente Esta crescente expansao colonial levara a uma movimenta- expansao colo­ gao missionaria dos povos e a um despertar do nacionalismo mis­ nial levara a sionary. Cada territorio sera missionado pelo pais colonial que o uma movimen- conquistou: os belgas para o Congo Belga, os franceses para o tagao missiona- Congo Frances, os portugueses para as colonias portuguesas, os ale- ria dos povos e maes para os territories alemaes... a um despertar do nacionalismo 1.2. Com a liberdade dos mares, conseguida em 1815, a des- missionary." coberta do ago e da helice e do barco a vapor, o aperfeigoamento dos transportes e da industria marftima e a criagao das grandes companhias de navegagao, abre-se um novo espago para a circula- gao a distancia: a circulagao marftima, e naturalmente, a missao longfnqua ira beneficiar grandemente deste novo espago e deste novo meio de mobilidade que lhe e oferecido. Este e o tempo da ocupagao do caminho marftimo para a Africa.

1.3. Outro fenomeno que marcara profundamente este seculo como sendo o seculo da Africa foi a aboligao da escravatura e a supressao do trafego dos negros.1 O “Codigo dos Negros”, estabelecido por Colbert em 1685, nos seus 60 artigos coloca os escravos na situagao de nao humanos. Paradoxalmente, e-lhes reconhecida uma alma: para a salvar e pre- ciso ensinar-lhes a obediencia e o medo do inferno. Durante muito

1 Koren. LES SPIRITAINS. P. 193 e sts.

76 missao espiritana Adelio Torres N eiva tempo a Igreja preocupou-se mais com humanizar a sua situa9§o do que em a abolir. A venda dos prisioneiros de guerra como escravos em vez de os matar, era considerada, mesmo pela Igreja, uma me- dida justa e humanitaria. Os missionaries aceitavam esta situa9ao. A propria Propaganda Fide em 1647 autorizou os negreiros a ex- portar escravos para as Antilhas em troca da passagem gratuita dos missionaries em viagem para o Congo.2 Conhecemos hoje a rota dos escravos da Africa para as Ame­ "Conhecemos ricas e os numeros de uma das mais tristes historias da humanidade. hoje a rota dos Calcula-se em pelo menos 12 milhoes por ano, o numero de depor- escravos da tados no Senegal, na Costa do Marfim, tambem chamada Costa Africa para as dos Escravos, no Gabao, no Loango, no Zaire, em Angola. 12 por Americas e os cento terao morrido durante a travessia. Durante os tres seculos em numeros de que este comercio esteve mais activo, devem ter sido 60 ou 70 uma das mais milhoes os escravos deportados. Certos portos da costa africana tristes historias ficaram celebres como polos de referenda desse comercio negreiro: da humani­ S. Jorge da Mina, na ilha Goreia; a 3 quilometros de Dakar, ainda dade." hoje existe a “Casa dos Escravos”, que Joao Paulo II apelidou do “santuario da dor africana”; a ilha de Zanzibar em frente a Baga- moio, era um dos principais centros do comercio dos negreiros da Africa Oriental. A aboli9ao do trafego dos escravos foi um processo lento que come90u pelos fins do seculo XVII e levou quase um seculo a im- plementar. As potencias coloniais, depois de muita relutancia, con- seguiram renunciar a este comercio e tomar as medidas necessarias para o suprimir. Nesta luta anti-esclavagista entraram varias for9as politicas, humanitarias e religiosas: os liberais e os filosofos da Enciclopedia saidos da Revolu9ao Francesa, defensores dos direitos do homem; os governos europeus, interessados em defender a sua imagem co­ lonial; as potencias protestantes apostadas em difundir o seu credo religioso e a Santa Se, que, depois de nao poucas hesita9oes, con- denava em 1839 o comercio dos escravos. Na costa ocidental, este comercio continuou a fazer-se clan- destinamente ate aos meados do seculo, mas os navios de guerra perseguiam os negreiros para libertar os escravos. Estes, uma vez libertos, eram colocados em aldeias especiais, sob a tutela dos seus libertadores, e assim nasceram aglomerados cujo nome identifica a sua origem como - Libreville e Freetown. Na Africa ocidental a persegui9ao foi ainda maior: foram necessarias verdadeiras expedi9oes militares para por fim ao trafego dos negros. Tambem aqui com estes escravos libertos se construi- ram as “aldeias da liberdade” de que a missao espiritana do. Baga- moio, perto de Zanzibar, foi o exemplo mais celebre. Nas missoes,

2 Koren H. LES SPIRITAINS. Beauchesne. p.198

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conhecemos as “aldeias da Missao” formadas por escravos libertos e os internatos da missao com um bom numero de crian9as libertas da escravatura. Por sua vez, apos a proclama^ao do edito da emancipa^ao, um certo numero de africanos levados como escravos para o Brasil, optaram por voltar para a sua patria de origem, constituindo, por vezes os primeiros elementos de novas cristandades. Em certos meios dos Estados Unidos, depois da Guerra da Sucessao, resolveu o Governo reconduzir ao pais de origem os ne- gros emancipados, cuja integra^ao parecia dificil e transportaram um certo numero deles para o Cabo das Palmas, onde viriam a formar o pais da Liberia.3

2. L1BERMANN E A HORA DA AFRICA

"Antes de des- E preciso dizer-se que aoprincfpio Libermann nao pensava na cobrir a Africa, Africa. Antes de descobrir a Africa, Libermann pensava sobretudo Libermann pen- nos escravos do Haiti, de Bourbon e da Maurfcia, ilhas crioulas, que sava sobretudo nao faziam parte do continente africano. Os habitantes destas ilhas nos escravos eram os negros com que Libermann sonhava. Os negros nao eram do Haiti, de necessariamente da Africa Negra. Negros eram os mais desprezados Bourbon daquele tempo, sem qualquer conota^ao da pele ou da cor. Serao os e da Maurfcia" abolicionistas que substituirao a palavra “negre” por “noir” precisa- mente por causa da sua conota^ao negativa.4 A Africa so sera des- coberta por Libermann, depois de, por motivos politicos, as portas do Haiti e das outras colonias se terem fechado aos franceses. O problema das colonias francesas era entao objecto de contenda e a solu9ao poderia demorar anos. “Tmhamos entao 7 missionaries em La Neuville para partir, e cinco tinham ja terminado o ano de noviciado e nao se via para onde os enviar. As portas fechavam-se por todos os lados, inclusive as colonias francesas, S. Domimgos e Mauncia. Era uma pro- vagao de Deus para ver se tmhamos confianga na sua Mae”. Foi entao que Mons. Barron, veio pedir auxflio de mission^ rios a Nossa Senhora das Vitorias para a missao das Duas Guines de que acabava de ser nomeado Vigario Apostolico. E foi assim que "Libermann des- Libermann descobriu a missao africana: o pedido de Mons. Barron, cobriu a missao que o P. Desgenettes lhe transmitiu. africana: o pe- dido de Mons. Barron, que o 3 Pierre Pluchon LA ROUTE DES ESCLAVES Hachette P. Desgenettes Edmundo Correia Lopes. A ESCRAVATURA. SUBSIDIOS PARA A SUA HIS- lhe transmitiu." TORIA. Agenda Geral das Colonias Antonio Carreira O TRAFICO PORTUGUGUES DOS ESCRAVOS NA COSTA AFRICANA 4 P. Coulon LIBERMANN Le mot negre dans les dictionnaires encydpopediques frangais du XIX siecle p.580-594 5 ND IV p.22

missao espiritana Adelio Torres N eiva

Penso que a maior intuigao profetica de Libermann foi ter "a maior intui- compreendido que esta “hora da Africa” podia ser a “hora de Deus” gao profetica de para a Africa. Libermann era um observador atento a actualidade Libermann foi de que a Africa se revestia e procura discernir os caminhos da ter compreen- missao deste continente que acordava do seu sono de muitos anos. dido que esta Desde a condenagao da escravatura por Gregorio XVI com a Carta “hora da “In Supremo Apostolatus” (1839) que Libermann mostrava a sua Africa” podia preocupagao a Luquet6, a Le Vavasseur7 e a uns eclesiasticos bel- ser a “hora de gas.8 Citemos alguns exemplos: Deus” para a “Nisto tudo se ve o dedo de Deus que na sua Providencia quer Africa." que esta raga abandonada durante tanto tempo se levante rapidamente do seu estado miseravel em que se encontra ha tanto tempo...Temos, no entanto, de reconhecer que todos estes recursos suscitados para o bem dos negros podem serdhes prejudiciais. Os funcionarios do Governo provem na sua maioria da escoria da Europa e sao inimigos da Igreja. Se chegam a introduzir-se no seio desta, pode ser que contribuam um pouco para aliviar as suas miserias corporais, mas acabarao por levar as suas almas a ruma. ...Se chegarmos tarde demais, estes povos perder- se-ao para o erro e para a depravagao dos costumes”9. “Mas se souber- mos aproveitar, este movimento e um momento favoravel para os servP dores do Evangelho que devem empreender este santo apostolado, mas tambem muito perigoso para a salvagao destes povos”.10 Preocupado pelo vazio de autoridade que a morte de Tisserant tinha causado escreve em 1846 a Mons. Duquet, em Roma: “Vai haver cinquenta e dois navios franceses e ingleses a circular nas costas da Africa e por conseguinte um grande numero de navios de comercio. Ora uma autoridade episcopal far-se-ia respeitar melhor que um simples Prefeito Apostolico para todos estes europeus que se vao apoderar destas costas e ai exercer uma grande influencia”.11 Libermann fazia certamente alusao a convengao concluida em 28 de Maio de 1845 entre a Franga e a Inglaterra para a repres- sao do trafego dos negros, convengao que suscitara longos debates nas duas Camaras. O que preocupava Libermann era este movi- mento conjunto para a Africa que se vinha a processar ja ha alguns anos e do qual a Missao nao deveria deixar-se distanciar. Sabemos que em La Neuville se lia “L'Univers” em que o problema da aboligao da escravatura, debatido no Parlamento Fran­ ces era relatado neste periodico e as questoes mais candentes na- cionais, coloniais e internacionais ali eram debatidas. Dava-se

6 Notes et Documnets Compl. P.70) 7 ND VI p. 421 8 ND VI p. 434 9 Carta a Le Vavassur ND Compl p.40 10 ND VI p. 434 11 ND Compl p. 70

missao espiritana libeimarm e a hora da afriica

tanta importancia a este periodico, que ate Mons. Truffeet, Prefeito Apostolico da Guine se tinha escandalizado com esta leitura em La "Libermann Neuville.12 De resto Libermann estava em contacto com outros estava em con- pioneiros dos problemas africanos: Ana Maria Javouhey, Mons. Lu- tacto com quet, Mons. Truffet, Mons. Barron, etc. outros pioneiros No Comentario a Regra Provisoria que todos os dias fazia em dos problemas La Neuville das 17.45 as 18.15h. Libermann, falando dos fins da Con- africanos: Ana grega^ao, procurava ler a vontade de Deus no momento presente: Maria Javouhey, “Os Negros sao verdadeiramente os homens que vivem na maior Mons. Luquet, miseria, os ultimos e os mais abandonados; estao na humilhagao mais Mons. Truffet, absoluta que se pode imaginar na Humanidade. (...) Ate agora fez-se Mons. Barron, muito pouco por eles; criaram-se algumas missdes que fracassaram. etc." Hoje, que Deus nos chama a missdo dos negros, parece que Ele tudo dispos para facilitar a sua conversao: A religiao ndo so prepara os seus beneficios e as suas gragas de que ela e depositaria para estes pobres povos, como ainda a politica entre nos designios da Divina Providencia para apressar a sua conversao facilitando a sua comunicagao entre nos e eles; todos os olhos estao agora voltados para os Negros; por um lado em vista da aboligao da escravatura; por outro enviam-se mais de 50 barcos para impedir este trafego. Tambem nos nos devemos apressar a socorrer estes povos, pois esta multidao de europeus que e que Ihes le- vara? A corrupgao dos costumes, que ja comegou nestas costas e a he- resia. Apressemo-nos pois, a ndo ficar para tras quando vemos os pro- testantes moverem-se tanto! Se demorarmos demasiado, uma vez que o mal esteja langado, sera dificil curar a ferida”.13 No Memorial de 1846, enviado a Propaganda, Libermann apresenta este fenomeno nos seus aspectos positivos e negativos. “Fomos testemunhas de um movimento espontaneo, surgido em toda a Europa em prol da raga negra, com o fim de ultrapassar semelhante situagao deprimente. Muitas sociedades tanto comerciais como humani- tarias, preocupam-se com isso de maneira activa e os governos mais poderosos da Europa dedicam-se a sua transformagao cultural utilizando "Consideramos para isso recursos consideraveis. Consideramos este movimento univer­ este movimento sal como uma acgao de Deus e admiramos a Providencia divina, que universal como depois de ter deixado estes povos, durante tao longo tempo, nas trevas uma ac§ao de e na desgraga, poe repentinamente em marcha todo um caudal de re­ Deus" cur sos para os fazer sair desta situagao - Ndo dissimulamos que todo este movimento levado a cabo para a sua felicidade se pode tornar de- sastroso para as suas almas. Os funcionarios do Governo, os agentes comerciais e os suportes das sociedades humanitarias, sao quase o rebo- talho das nagdes europeias e inimigos da Igreja, espalham-se entre estes povos e ndo podem senao prejudicar as suas almas, procurando embora

12 P. Coulon. LIBERMANN.Lefervescente annee 1846 et la genese du “Grand Mi- moire de Libermann & la Propagande” p. 401-455 13 Comentario ao artigo V da Regra Provisoria

80 missao espiritana Adelio Torres Neiva aliviar as miserias dos corpos. Este pensamento que poderia desencora- jar-nos, pelo contrario anima-nos a prosseguir esta empresa coda vez com mais fervor. Vemos com admiragao que no meio deste movimento tao perigoso para as almas, a Providencia paternal de Deus quis que a Santa Igreja nele tome parte, que ela tenha feito brilhar entre estas nagoes aluzdafe e a graga da salvagao, enquanto que o mundo procura o seu bem estar material. 4 Depois Libermann demora-se a reflectir sobre a situagao dos negros. Muitos nada veem que se possa esperar dos africanos: Li- bermann lembra as causas da situagao em que eles se encontram, nomeadamente a depravagao dos seus costumes, defende-os e p5e em relevo a sua inteligencia e as suas capacidades se forem devida- mente promovidas. E uma defesa impressionante a de Libermann "E uma defesa em favor dos negros neste Memorial! impressionante A opgao de Libermann pelos negros nao era uma simples ade- a de Libermann sao intelectual a uma causa, mas uma identificagao afectiva com os em favor dos mais abandonados. “O nosso projecto escreve ele, e entregarmo-nos a negros neste Nosso Senhor pela salvagao dos negros”. Aos seus confrades da cornu- Memorial!" nidade de Dakar, Libermann numa das suas mais celebres cartas de rmstica missionaria recomendar-lhes-a que se fagam “negros com os negros. E a teologia de S. Paulo, quando diz que “Cristo se humilhou a si mesmo, tomando a condigao de servo, tornando-se obediente ate a morte e morte da cruz”. Esta carta e toda ela um codigo do corn- portamento dos missionaries para com os africanos. Nele encontra- mos as ideias-fonte da missao espiritana.15 Vale a pena reproduzir aqui o ultimo comentario que esta carta nos confia: “Nao deis ouvidos faceis ao que dizem as pessoais que percorrem "Nao deis ouvi- a costa, quando vos falam das populagoes que visitaram, mesmo se ja dos faceis ao ai estao ha varios anos. Ouvi o que eles dizem, mas sem que isso in- que dizem as fluencie o vosso jui'zo. Estes homens veem as coisas segundo o seu ponto pessoais que per­ de vista, com os seus proprios preconceitos, falsificariam todas as vossas correm a costa, ideias. Ouvi tudo e ficai em paz no vosso interior; examinai as coisas quando vos fa- com o espirito de Jesus Cristo, independentemente de qualquer outra lam das popula­ impressao, de qualquer outra prevengao e cheios, animados da caridade goes que visita­ de Deus e do zelo que o seu Espirito vos da. Estou certo que julgareis ram, mesmo se de outra maneira os nossos pobres negros, diferente de todos estes. ja ai estao ha Sabeis que se tivessemos dado ouvidos ao que unanimemente nos vdrios anos" disseram todos aqueles que nos podiam dar informagoes dos negros e das colonias, o que nos disseram e defenderam os homens, de resto muito bons, nunca tenamos ousado levar a cabo a empresa das missoes de Bourbon e da Mauricia e a verdade e que os nossos caros confrades ai tern feito maravilhas e ensinaram-nos a julgar esses homens de uma maneira diferente daqueles que nos tinham falado antes.

14 ND VIII p. 224 15 Carta de 18 de Novembro de 1847. ND IX p. 324-331

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"Fazei-vos Nao julgueis segundo a primeira impressao; nao julgueis segundo negros com os o que vistes na Europa, segundo o que estais habituados na Europa; negros para os despojai-vos da Europa, dos seus costumes, do seu espirito. Fazei-vos formardes como negros com os negros para os formardes como devem ser, nao a maneira devem ser, nao da Europa, mas deixai-lhes o que lhes e proprio; fazei-vos — para eles, a maneira da como os servos devem ser para os seus mestres e isso para os aperfei- Europa, mas goar, os santificar, levanta-los da baixezq em que se encontram e deles, deixai'lhes pouco a pouco fazer um povo de Deus. E o que S . Paulo chama fazer-se o que lhes e tudo para todos, a fim de a todos ganhar para Jesus Cristo”.16 proprio" Depois da morte de Mons. Truffet, em quem tinha deposb tado tantas esperan^as para a missao dos africanos, Libermann es- "E o que creve a Eliman, o rei de Dakar e a Soleiman, seu sobrinho e a todos S. Paulo chama os chefes do povo, a mais bela carta que algum dia se escreveu fazer-se tudo sobre os africanos: para todos, uPensei que vos seriam agradaveis algumas palavras minhas de a film de a todos consolagao, depois da morte do piedoso bispo Frangois Truffet que o Pai ganhar para dos Cristaos tinha enviado a Dakar pelo afecto que tinha para com os Jesus Cristo." habitantes da Africa e que a Divina Providencia levou tao prematura- mente deste mundo, terra de dor e de lagrimas, para o recompensar da sua piedade e das suas virtudes. A minha alma ficou destrogada pela dor quando soube desta perda nao so porque o bom bispo Bento tinha sido para mim um grande amigo de coragao mas sobretudo porque Voces ja nao tern aquele que amava tao ardentemente os homens negros. Doi-me muito ver essa pena, quisera que pudessem ver esta dor do meu coragao, pois quero que saibais que o meu coragao e vosso, o meu coragao e dos Africanos, todo dos homens negros cujas almas sao boas e os seus coragdes sensi- veis. A mo-os a todos ternamente e seria feliz se Voces me amassem como amavam o bom bispo, meu querido amigo. Muitas vezes quando eu lia nas suas cartas a felicidade que ele tinha conversando com Voces, os seus irmaos, os homens negros, que sao tambem nossos irmaos muito queridos, lembrava-me da alegria e consolagao que sentia o meu coragao oprimido por eu nao poder estar tambem no meio de vos, de tambem eu nao poder sofrer por amor dos homens negros e fazer tudo o que eu pudesse para os fazer coda vez mais felizes. Creiam no que lhes digo, pois estou a dizer a verdade. Sou ser- vidor do Deus verdadeiro e todas as minhas palavras e sentimentos de­ vem ser verdadeiros. Jesus Cristo, Filho de Deus, Deus dos cristaos, Deus de todo o universo, o Salvador bem-amado de todos os homens, e belo, grande, poderoso, amavel, glorioso, misericordioso; esta cheio de amor por todos os homens, ama a todos os homens igualmente, tanto negros como bran- cos; todos sao seus irmaos bem-amados; se sao bons e piedosos, depois desta vida de dor e de pena, hao-de viver sempre com Ele e gozar de

16 P. Coulon o.c p.489'586

missao espiritana : Adelio Torres Neiva

uma felicidade sem medida e sem fim, no seu imenso templo de gloria que e o ceu. Eu sou servo de Jesus e Ele quer que eu ame a todos os homens como Ele os ama. Porem, inspira-me um amor muito mais vivo e mais terno para com os seus queridos irmaos, os homens negros, quero - e Jesus Cristo meu mestre tambem o quer - que em toda a minha vida eu procure proporcionar dar esta felicidade aos homens da Africa, ndo so a felicidade na terra como sobretudo a felicidade sem medida nem fim no templo da gloria de Deus, que e o ceu. Creio com toda a certeza que nao Ihes causo pena falando assim; se tivesse pensado que Ihes causava pena nao Ihes teria falado deste modo! Porem, nao, sei que vos me es- cutais com prazer! Eu sei que nao sdo cristdos, porem sei que o seu coragao e bom e voces gostam de tudo o que e bom: Jesus Cristo e bom, Ele e o mestre dos bons; a sua doutrina e boa, pur a, santa e cheia de consolagao para com os bons. Quando algumas vezes voces vem europeus que sdo maus, nao digam que eles sdo servos, amigos de Jesus. Ndo, eles nao amam a Jesus, porque sdo maus, porque ndo queremfazer o que Jesus Ihes manda, o que Jesus fez. Se fossem bons, Jesus os amaria como ama a todos os homens, pois quer que todos os homens sejam bons e piedosos. O bom e piedoso bispo Truffet morreu; ndo sofram nem pensem que nos ndo queremos mais ir para a Africa. Eu pedirei ao Papa de Roma que mande outro bispo que seja bom e ele o enviara porque ama os africanos. Os homens de Dakar sdo bons, conhecem a Deus e ndo sdo infelizes. Porem, nas imensas terras de Africa, muito longe de Dakar ha homens negros em grande numero. Mil homens negros sdo muitos, dez mil homens negros sdo muitos mais e dez vezes dez mil sdo muitos mais! Pois bem, nas terras da Africa ha muito mais que dez mil vezes mil homens negros. Todos estes homens negros ndo conhecem a Deus, sdo infelizes na terra e seAo-ao depois desta vida, serao sempre infelizes se ndo aprenderam a conhecer a Deus e a serem bons. Estes homens negros tern bom coragao e fazem coisas mas porque ndo conhecem a Deus. Ndo sabem o que e necessario fazer para serem felizes. Nos queremos "os missionarios ensinar-lhes a conhecer a Deus e a Jesus Cristo, o Filho de Deus, amarao ainda queremos ensinar-lhes a ser bons e a ser felizes nesta vida, felizes mais os homens depois da morte do corpo. Enviaremos missionarios para Dakar e os negros e o mis- homens de Dakar amam os missionarios; os missionarios estao atentos sionario nao e veem muito como e bom o homem negro de Dakar. Eles amarao tera medo da ainda mais os homens negros e o missionario ndo tera medo da morte, morte, sofrera sofrerd com alegria por amor ao homem negro que esta longe de Dakar com alegria por e e infeliz. amor ao ho­ Altero-me e sinto-me feliz quando penso assim e pego a Deus mem negro que todo poderoso e todo misericordioso, a Deus que ama todos os homens, esta longe que encha de bengao, de consolagao, de piedade e de santidade o rei de Dakar e e Eliman, o seu sobrinho Sleiman e todos os chefes de Dakar. Pego que infeliz."

missao espiritana ibermann e a hora da africa

conceda a sua salvagao a todos e a todo o povo que Ihes obedece, para que tenham felicidade. Libermann, sacerdote. Feita em Amiens, no ano de Jesus Cristo de 1848, no mes de Janeiro, o primeiro do ano” .17

3. A AFRICA, NA ORIGEM DA VISAO MISSIONARIA DE LIBERMANN

3.1. Causas da decadencia da missao em Africa Desde o seculo XV que a exemplo dos descobridores e negrei- ros portugueses, espanhois, holandeses, italianos e outros, os missio­ naries procuraram levar o Evangelho desde o golfo de Benin ate ao Loango, Angola e Congo. Entre estes pioneiros de uma missao difi- cil, onde foi preciso inventar tudo, podemos citar os Capuchinhos, Dominicanos, Jesmtas, Franciscanos e seculares. Foram mesmo cria- dos varios episcopados, como o da diocese de Cabo Verde (1532), S. Tome (1534) que abrangia uma jurisdifao que cobria quase toda a costa da Africa Ocidental, Angola e Congo. Roma ao mesmo tempo que apoiava os direitos concedidos aos reis de e Espanha, interessava-se pela evangelizaqao destas terras.18 Na costa Oriental ha que registar a presen^a dos Jesmtas desde 1560, seguindo-se depois os Dominicanos e os Agostinhos. Mas desta evangeliza^ao, no seculo XIX pouco restava. A Prefeitura da “Guine Antiga” recebeu numerosos apostolos, princi- palmente capuchinhos espanhois e franceses, mas foi mais de uma vez suprimida e restabelecida por Roma. Os missionaries portugue- ses evangelizaram as ilhas de Cabo Verde e S. Tome mas foi uma evangelizafao que ficou sempre a superffeie dos seus habitantes. O mesmo aconteceu no Golfo da Guine.

Entre as causas desta decadencia, podemos destacar: — Em 1834, a supressao dos Jesmtas e das outras ordens id.il giosas que deu um golpe de morte as missoes de Africa, pois o pessoal missionario era quase exclusivamente portugues. — Outro motivo desta decadencia foi a incapacidade de Por­ tugal de assegurar a evangeliza^ao de territorios imensos que se estendiam do Brasil ao Extremo Oriente, tanto mais que as lutas liberais nao favoreciam a preocupa^ao missionaria do pais. — Da parte dos missionaries concorreu a pouca preparafao para enfrentar as doen^as tropicais, a ignorancia da mentalidade e dos costumes dos povos a evangelizar, a imposifao de uma missao

17 N D X p. 23-26 18 A Brasio, A Primeira embaixada do Congo ao Vaticano in Portugal em Africa 1947 p. 170'176

missao espiritana A delio Torres N eiva europeia que nao penetrava na alma dos nativos, que fazia muitos baptizados e poucos cristaos. - O conceito de missao, como importa9ao da Igreja ociden- "O conceito de tal e dos missionaries estrangeiros nao deixou a missao ganhar ver- missao, como dadeiras raizes nas igrejas locais. Dilatar a fe e o imperio era um importagao da binomio diffcil de equacionar sem confundir. Igreja ocidental - Da parte dos africanos: os nativos tinham a tendencia para e dos missiona­ confundir evangeliza^ao com coloniza^ao portuguesa. As conver- ries estrangeiros soes estavam muitas vezes viciadas. Ser evangelizado e ser coloni- nao deixou a zado era outro binomio de diffcil separa^ao. missao ganhar - Outro motivo foi o declfnio das potencias do Padroado, verdadeiras catolicas, em favor dos potentados protestantes que afectaria as raizes nas missoes catolicas, embora abrisse um novo espa^o para as missoes igrejas locais." protestantes. - Mas a principal causa da decadencia, sobretudo na Africa Ocidental foi a pratica da escravatura. Os escravos antes da partida eram baptizados a maior parte das vezes sem qualquer instru^ao. Depois, a sua deporta^ao tornava inconsequente qualquer estrutura missionaria solida. - O conceito de missao entao vigente era a missao concebida como urgencia da salva^ao das almas. Esta teologia da urgencia da salva^ao das almas implicava a Igreja como unica via de salva^ao; a grande preocupa9ao do missionario era baptizar os infieis para assegurar a sua salva9ao. Esta visao era caracterizada por um grande centrismo e uniformidade: a missao era considerada como um pro- longamento da Igreja ocidental. As novas igrejas que se iam fun- dando eram um prolongamento da Igreja Mae. Os missionaries eram estrangeiros. As poucas tentativas que houve para promover as igrejas locais, como aconteceu no Congo, acabaram por perder a sua consistencia, devido aos portugueses virarem a sua aten9ao para outros continentes, de maior rendimento economico. De tudo sito resultou que nos come90s do seculo XIX, prati- camente so a Prefeitura Apostolica do Senegal fornecia alguns pa­ dres nomeadamente por interferencia de Ana Maria Javouhey. Nas restantes terras, da presen9a da Igreja “so restava a memoria”.19

3.2. A nova visao da missao segundo Libermann Foi nesta Africa que se criou o “Vicariato das Duas Guines” no tempo de Libermann. Este Vicariato tinha as suas origens na Prefeitura da Guine de outros tempos. Em 1782, os Estados Unidos da America proclamaram a independencia. Os ingleses tinham le- vado para Londres um bom numero de escravos negros que tinham chegado as suas costas. Como vagueassem pelas ruas de Londres

19Adelio Torres Neiva, Teologias da Missao in Communio Ano XII -1995 Feu p. 13 e sts.

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sem trabalho, o Governo Ingles encontrou para eles um refugio, na Serra Leoa, que viria a tomar o nome de Freetown. Algum tempo depois, formou'se nos Estados Unidos uma as- socia<;ao de pessoas em ordem a melhorar a condi^ao dos Escravos Negros da America. Procuromse para eles uma colonia no Cabo das Palmas, que viria a tomar o nome de Liberia. Foi para evange- lizar esta gente que foi criado o Vicariato das Duas Guines com Mons. Barron, bispo de Filadelfia a frente. Foi, a seu pedido que Libermann enviou para la os seus pri- meiros missionaries. Sabemos das preocupa^oes de Mons. Bessieux de fundar um seminario indigena, nomeadamente em S. Tome e Principe. Aconteceu porem, que os primeiros missionaries de Li' bermann, todos, a excep^ao de dois, foram vitimas das inclemen- cias do clima a africano. "Libermann teve Libermann teve entao a ideia de, em vez de enviar os mis- entao a ideia sionarios europeus para a Africa, formar padres nativos na Europa. de, em vez de Foi este o tema do memorial enviado a Propaganda em 23 de Ou- enviar os tubro de 1844, intitulado “Projecto para a salvagao dos povos das missionaries costas de Africa”.20 Mas este projecto era complicado e o risco que europeus para os missionaries europeus corriam em Africa era agora o risco dos a Africa, formar estudantes africanos a viver no clima europeu. padres nativos Ora aconteceu que a 23 de Novembro de 1845, Gregorio na Europa." XVI aprovava a instruqao “Neminem Profecto” em que afirmava que toda a expansao milionaria da Igreja se apoiou sempre em duas bases: a instituigao do clero indigena e a funda^ao das igrejas lo' cais. Nesse documento, aproveitando a ocasiao proporcionada pelo Sinodo das Missoes Estrangeiras de Paris, que acabava de se cele' brar em Pondichery, na India em 1844, lembra os principios que devem nortear a aqzao missionaria: entre eles: — Dividir os territorios preparando a institui^ao da hierarquia e estabelecer os bispos onde isso for possivel. — Recrutar e formar o clero indigena e para o conseguir abrir seminarios. — Preparar e conduzir o clero indigena ate ao Episcopado, escolhendo vigarios gerais entre as suas fileiras. — Nunca tratar os padres indigenas como clero auxiliar, mas reservando'lhes as honras e os cargos, como para os europeus, tendo em conta apenas a idade e o merito. — Renunciar a tentafao de utilizar os autoctones apenas como catequistas, apesar da sua grande utilidade, mas orientar para o sacerdocio os jovens idoneos. Este documento e um documento'chave, que sera inumeras vezes recomendado pela Propaganda nas suas instru^oes aos supe- riores de missao.

20 ND V7 p. 181

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Podemos considera-lo como termo de chegada de toda uma longa caminhada que o antecedeu e como ponto de inspiraqao para uma teologia e uma metodologia missionaria que o seguira, nome- adamente a teologia e a metodologia dos grandes fundadores dos institutes missionaries de todo o seculo XIX, especialmente consa^ grado a missao da Africa. Na origem deste documento esta um membro das missoes Estrangeiras de Paris, Mons. Luquet que em 1838 tinha frequem tado o Seminario de S. Sulpicio em Issy, onde conheceu o P. Li' bermann e o seminarista crioulo Le Vavasseur, que nessa altura sonhava com a “Obra dos Negros”, que Libermann viria a agarrar. Daqui, Luquet transitou para o Seminario das missoes Estrangeiras de Paris, nessa altura frequentado tambem por Marillon de Bre- sillac, o futuro fundador das Missoes Africanas de Liao. Luquet preocupava'se com a estagnagao das missoes longin' quas e procurava descobrir as causas deste declinio. Investigando os arquivos das Missoes Estrangeiras descobriu as causas desta crise: a ausencia de um clero nativo. E resolveu escrever as Cartas a Mons. de Langes, em que conta a historia da Sociedade das Missoes Estrangeiras. A tonica constante destas cartas e a insistencia na importancia do clero indigena para a consolidagao das igrejas nos territorios de missao. Esta ideia do clero indigena tinha nascido com a fundagao da Sociedade das Missoes Estrangeiras. Tinha'Se a impressao que o fracasso da missao dos portugueses no Japao, no seculo XVII, foi devida a falta de um clero indigena, descurado por Portugal. Dai que a Propaganda concentrasse todos os seus esforgos "a Propaganda nesta ideiaAorga: urgia criar um clero indigena em todas as cristam concentrasse dades. A sociedade das Missoes Estrangeiras de Paris tinha nascido todos os seus para responder a este desafio. De facto, nos arquivos das Missoes esforgos nesta Estrangeiras, Luquet encontrou um documento da Propaganda cha' ideiaTorga: ur- mado “Instrugao de 10 de Novembro de 1659 para uso dos vigarios gia criar um apostolicos de partida para os reinos Chineses de Tonquim e da Cochin- clero indigena china”. Este documento, mantido secreto nos arquivos da Socie' em todas as dade das Missoes Estrangeiras dizia entre outras coisas, o seguinte: cristandades." “A principal razao que levou a Santa Se a enviar-vos revestidos do Episcopado e para que tomeis em mao, todos os meios e metodos possf- veis, a educagao dos jovens, de modo a torna-los capazes de receber o sacerdocio... Tende sempre presente este objectivo diante dos olhos: le- var ate as Ordens sacras o maior numero posswel de sujeitos e os mais capazes, forma-los e faze-los avangar coda quad a seu tempo. “Nao tomeis iniciativa nenhuma para convencer estas pessoas a mudarem os seus ritos, os seus habitos, os seus costumes, a nao ser que eles sejam claramente contrarios a religiao e a moral. Que coisa mais absurda que transportar para os Chineses a Franga, a Espanha, a Italia ou qualquer outro pais da Europa? Nao introduzais entre eles os nossos poises, mas somente a fe, esta fe que nao afasta os ritos e os usos de

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qualquer povo, posto que nao sejam detestaveis, mas pelo contrario im- porta guar dados e protegedos”. Se quisessemos sintetizar as orientafoes contidas nesta ins- tru<;ao e noutros documentos da epoca, salientariamos: 1. O distanciamento do colonialismo para que os missiona- rios possam exercer uma fun^ao essencialmente espiritual. 2. A absten^ao por parte dos missionarios da politica e do comercio. 3. Uma adequada forma^ao espiritual e cientifica por parte dos missionarios. 4. A forma^ao de um clero nativo. 5. A adaptafao a cultura e aos costumes locais.

Esta instru^ao de 1659, uma verdadeira carta magna das mis^ soes modernas, era um dos textos dos Cadernos dos Decretos que os alunos das Missoes Estrangeiras deviam recopiar a mao. E com todos estes elementos que Luquet, aluno formado nas Missoes Estrangeiras fez um Memorial que apresentou a Propaganda com o tftulo Esclarecimentos sobre o Smodo de Pondichery com o fim de obter a aprova^ao das actas deste Sinodo. Foi a partir deste texto que se elaborou a Instrugao Neminem Profecto de 23 de No- vembro de 1845.21 Foi tambem a partir da leitura destes documentos que um ano mais tarde, Libermann envia a Propaganda em 15 de Agosto de 1884 um novo Memorial intitulado “Memorial sobre as missoes dos negros em geral e sobre a da Guine em particular 22 que viria a ser o grande manual da missao moderna para a Africa. Neste Memorial, Libermann come^a por lembrar que houve regioes na Africa, nomeadamente Angola, que outrora foram flo' rescentes sob o ponto de vista da evangeliza^ao, e hoje quase nada resta dessa evangeliza^ao. Estudando as causas desta situa^ao, con- "Os missionarios clui'Se que ela nao e devida a causas intrfnsecas a popula^ao, mas eram fervorosos ao metodo missionario que foi adoptado. Os missionarios eram fen e fizeram uma vorosos e fizeram uma obra admiravel, mas nao tomaram os meios obra admiravel, para essas igrejas caminharem pelo seu proprio pe, dando a essa mas nao toma- igreja uma forma estavel e canonicamente estabelecida. O mal ram os meios desta evangeliza^ao esteve em nao se ter estabelecido um clero para essas local e uma igreja local estavel. Falta de um clero local e de uma igrejas caminha- formafao adequada”. E necessario, prossegue Libermann, “fazer algo rem pelo seu de verdadeiramente solido, estavel e seguro”. E em rela^ao ao antigo proprio pe"

21 P. Coulon LIBERMANN, Quand un champion terrible entre en lice. Moris. Dm- quet et l 'Instruction Neminem Profecto de 23 Novembre 1845. ND VTII p 219-277. Sobre este tema ver o estudo de Paul Coulon em Libermann, D 'U N PROJECT MISSIONNAIRE A UN E REGLE DE VIE POUR LES MIS- SIONNAIRES.

missao espiritana A delio Torres N eiva metodo, propde a necessidade de formar nao so elites leigas, mas antes de mais nada, um clero “dedicado ao pais, uma ordem hierar- quica indfgena”. “Formar um clero indfgena e a coisa mais importante e mais util e a qual nos aplicaremos com todas as nossa for gas. Nao creio que sem isso, seja posswel, chegar a resultados felizes”. A teologia da salvagao das almas, seguia-se assim a teologia da implantagao da Igreja”. A nova imagem da missao vai ser elaborada a partir de um conjunto de contextos interpretativos, que esta nova situagao veio revelar: - o estado de civilizagao rudimentar do povo africano, posto a claro pelas recentes exploragoes geograficas e cientfficas: - a exploragao colonial em que as potencias europeias impu- nham a sua cultura, a sua polftica e os seus interesses economicos as terras colonizadas; - a situagao do povo ainda sob o domfnio da escravatura ou entao que dela acabava de sair, sem ter encontrado ainda o espago da sua liberdade; - a experiencia mal conseguida de um modelo de missao que no passado, assentou sobre o missionario estrangeiro, insistindo prevalentemente na salvagao das almas, mas descurando a forma- gao do clero nativo e a implantagao de uma igreja local. Vai ser a partir destes contextos, que Libermann, logo se- guido de um conjunto de fundadores profeticos de institutes mis­ sionaries vao procurar uma nova abordagem do anuncio do Evan- gelho na Africa. Destes fundadores lembremos apenas Ana Maria Javouhey, fundadora das Irmas de S. Jose de Cluny e pioneira deste novo modelo de missao; o P. Libermann, o primeiro a apresentar a Propaganda um piano geral para a evangelizagao da Africa de Cabo Verde ate ao rio Orange; Daniel Comboni, um dos maiores apai- xonados pela Africa, a quern consagrou toda a sua vida; Marillon de Bresillac, o fundador das Missoes Africanas de Lyon, que procu- rou langar o clero africano na, missao da Africa, como a Propa­ ganda o havia ja feito para a Asia, com a fundagao da Sociedade "Cada um des­ das Missoes Estrangeiras de Paris; o Cardeal Lavigerie, essa figura tes fundadores de fogo que soube abarcar num so abra^o todo o mundo africano: apresenta evi­ os mu^ulmanos, os animistas e os escravos. dentemente ca- Cada um destes fundadores apresenta evidentemente carac- racterfsticas terfsticas proprias: uns incidem na africanidade, outros no clero proprias: uns indfgena, outros na forma^ao das novas gera^oes africanas. Mas incidem na affi- desta diversidade de leituras e intui^oes emergem algumas constan- canidade, ou­ tes comuns, que constituem as grandes linhas da missao africana, tros no clero neste seculo XIX: indfgena, outros 1. Uma primeira caracterfstica e a referenda de fundo a auto- na formayao ridade pontificia. Os grandes fundadores desta epoca todos se voltam das novas gera- para Roma, tanto para obterem a aprovafao dos seus pianos de goes africanas."

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evangelizagao como para os realizarem. Libermann passara um ano inteiro a espera da primeira aprovagao de Roma. O Papado gozava entao de grande influencia e Roma era um referencial importante para a eficacia das missoes. Gregorio XVI (18314846) que fora antigo Prefeito da Propaganda, iria abrir um ciclo de papas particularmente sensfveis a causa missionaria. Foi ele quern relangou esta causa no seculo XIX, criando em 15 anos mais de 50 circunscrigoes em terras de missao. O seu olhar vol- tou-se especialmente para a Africa, onde criou o bispado de Argel em 1835, o vicariato do Cabo da Boa Esperanga em 1837, a nova Prefeitura da Abissfnia em 1839, o Vicariato das Duas Guines em 1842, o da Africa Central em 1846. Criou o jus comissionis que confiava a cada instituto missio­ nary um determinado territory para evangelizar; acabou com a escravatura e o comercio dos escravos com a bula In supremo e sobretudo publicou a instrugao Neminem Profecto sobre a formagao do clero indfgena, que se distanciava do Padroado e viria a ter um impacto enorme sobre a nova mentalidade missionaria. 2. Uma outra constante e a abordagem programada da missao. Para estes fundadores, a missao nao se improvisa. A acgao colectiva "Quase todos e programada domina sobre a iniciativa pessoal. Quase todos estes estes fundadores fundadores apresentam a Santa Se pianos de longo alcance para a apresentam a evangelizagao da Africa. Eles insistem no risco que e ceder as exi- Santa Se pianos gencias imediatas da pastoral missionaria, esquecendo a visao de de longo alcance conjunto que pede, programagao a longo termo e paciencia. Liber­ para a evangeli- mann diz a Mons. Kobes: “Nao devemos pensar apenas no presente, zagao da mas construir para o futuro. Pode ser que se percam algumas coisas no Africa." imediato, mas salvamos um povo”. “Para ter sucesso nao podemos ir ao acaso, com a ideia geral de converter os infieis. E preciso, desde o prindpio, pensar num resultado mais serio, mais positivo e mais deter­ minado. Para ter um resultado estavel, e preciso que as prioridades vi- sem o futuro”. 3. O protagonismo dos africanos na missao. Este protagonismo nao e apenas geografico ou de quadros mas cultural e teologico. Libermann gritara aos seus primeiros missionaries de Africa: “Des- pojai-vos da Europa, dos seus costumes, do seu espfrito. Fazei-vos ne- gros com os negros, a fim de os formardes como eles devem ser, nao a maneira da Europa, mas deixando-lhes aquilo que Ikes e proprio”. 4. A missao como processo englobante de todos os valores da pessoa. A promogao da pessoa nao esteve ausente na missao do passado. Mas e sabido que o modelo da missao ate entao adoptado privilegiava o anuncio imediato da fe e a urgencia da salvagao das almas. Tinha-se a consciencia de que se estava na undecima hora e que a ultima oportunidade de salvagao tinha chegado. Este mile- narismo escatologico nao deixava grande espago para outras di- mensoes da evangelizagao. No modelo agora adoptado esta-se par-

missao espiritana A delio Torres N eiva ticularmente atento ao crescimento da pessoa em todos os dommios e ao amparo sociologico e cultural de que a fe tern necessidade para se manter viva. Assim o mais urgente nao sera tanto baptizar como promover a pessoa ate a motivar para a conversao. A escola ocupara um lugar central nesta conversao. Liber- "Libermann mann previa internato e escola elementar em cada estagao missio- previa internato naria bem como escolas centrais em todas as missoes importantes. e escola ele- Esta organizagao escolar permitia discernir as elites, donde haviam mentar em cada de sair os catequistas, os professores, os chefes das oficinas e as estagao missio­ futuras vocagoes sacerdotais. Libermann pensa que o futuro das naria bem missoes esta na escola. como escolas 5. A prioridade da formagao do clero indi'gena sera outra questao centrais em to- a ser regulada sem equrvoco. O futuro da missao depende da sua das as missoes capacidade de fundar a igreja local e esta nao se concebe sem a importantes." formagao urgente de um clero indfgena. Perante a hecatombe da Guine, cujo clima em pouco tempo dizimou quase todos os missio­ naries, Libermann mais se convence da urgencia de formar o clero nativo. Em Julho de 1844 escreve a comunidade de Dakar: “Cada vez me convengo mais que e preciso decididamente langar mao de todos os meios possfveis para formar o clero indfgena”. E em 22 de Novem- bro do mesmo mes escreve a Madre Javouhey, acerca do seu “Grande Plano”: Formar um clero indfgena e a coisa mais importante e mais util a qua1 nos aplicaremos com todas as nossas forgas” . 6. Efectivamente, o grande alvo a atingir, na mente de Liber- mann, era “comegar a construgao do ediffcio de uma Igreja canonical mente estabelecida”. Para isso, Libermann pede a Propaganda que “os chefes destas novas igrejas sejam revestidos do Episcopado e o seu poder seja absoluto em tudo o que se refere a sua missao, que so eles governam”. Assim, a passagem de uma visao de missao insistente sobre- tudo na urgencia da salvagao das almas para um conceito de missao onde a implantagao da Igreja toma a prioridade, e bem evidente na evolugao que se nota entre o primeiro Memorial enviado a Propa­ ganda em 1840 e o ultimo em 1846: No primeiro ele advoga: “O nosso projecto e entregarmomos e devotarmomos a Nosso Senhor Jesus Cristo pela salvagao dos pretos, por serem as almas mais miseraveis e mais abandonadas afastadas da salvagao e mais abandonadas na Igreja de Deus”. No ultimo o horizonte que acabamos de recordar e bem "Libermann in­ siste fortemente diferente. 7. Um outro elemento a salientar e que a missao repousa sobre na importancia uma experiencia de fe profunda. Libermann insiste fortemente na da profundi­ importancia da profundidade da fe e da radicalidade evangelica dade da fe e da para a identidade da missao. A espiritualidade dominante e a espi- radicalidade ritualidade sulpiciana onde impera o absoluto de Deus, a sua von- evangelica para tade e o abandono a essa vontade, que Libermann exprime como a identidade da docilidade ao Espfrito Santo. A voca^ao missionaria e concebida missao."

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como uma experiencia de vida apostolica, ou seja, “aquela vida de amor e santidade que o Filho do Homem levou sobre a terra e pela qual se oferece continuamente ao Pai pela salvagao do mundo” (Regra Pro visoria). 8. Uma ultima caracteristica a sublinhar seria a importancia "a ausencia de da vida comunitaria para a missao. Para Libermann a ausencia de vida comunita- vida comunitaria dos seus primeiros missionaries, seria um pecado ria dos seus pri- original que marcaria todo o futuro da missao. E este o tema domi- meiros missio­ nante da Carta que escreveu a Comunidade de Dakar e do Gabao naries, seria um em 18 de Novembro de 1847. Ele passara os ultimos anos da sua pecado original vida a lutar para defender a vida de comunidade.23 que marcaria todo o futuro da missao."

23 Adelio Torres Neiva. O CONCEITO DE MISSAO NO SECULO XIX. SUAS FONTES DE INSPIRAQAO In Igreja e Missao N-171 - Jan-Abril de 1996

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