David Creimer Reichhardt

A Multidão Silenciosa: , Assassinado

(São Paulo, 1975). Etnografia de um Evento.

Campinas

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

DAVID CREIMER REICHHARDT

A Multidão Silenciosa: Vladimir Herzog, Assassinado

(São Paulo, 1975). Etnografia de um Evento.

Orientador: Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas para obtenção

do Título de Mestre em Antropologia Social.

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pelo aluno David Creimer Reichhardt e orientada pelo prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz, no dia 29/06/2015.

Campinas

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Resumo O assassinato do jornalista Vladimir Herzog em outubro de 1975 gerou uma onda de protestos e acontecimentos que tornou o caso um símbolo na luta pelo fim da repressão política no Brasil. O cerco dos militares aos jornalistas culminou neste assassinato e ganhou destaque nos jornais. O caso levou milhares de pessoas às ruas, mas em silêncio. Herzog tinha origem judaica, e seu corpo deveria passar pelo complexo ritual judaico de sepultamento. Porém, o suicídio, versão dada pelos militares como causa da morte, é tido como um dos piores crimes no judaísmo e seu sepultamento tem um ritual particular. É objetivo desta pesquisa etnografar os eventos que cercaram estes episódios, buscando se aproximar da influência da política nos rituais religiosos, e do impacto do caso em uma comunidade traumatizada por perseguições. As opiniões sobre a postura do Rabino Henry Sobel, que optou por enfrentar o regime ao seguir o sepultamento judaico “comum”, não eram uníssonas. Para contextualizar este cenário, a pesquisa aborda o destino dos corpos de outros judeus que foram vítimas do regime antes de Herzog. A relação com os outros casos e o cuidado com o corpo humano no ritual judaico abrem caminho para um estudo sobre a tortura e a violência de estado no Brasil.

Palavras-chave: Herzog, Vladimir 1937-1975; Ditadura; Tortura; Judeus; Jornalistas – Brasil; Brasil – Política e governo.

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Abstract The murder of journalist Vladimir Herzog in October 1975 generated a wave of protests and events that made the case a symbol in the fight for an end to political repression in . The siege of the government to the journalists culminated in the murder and was highlighted in the newspapers. The case led thousands of people to the streets, but in silence. Herzog had Jewish origin, and your body should go through the complex Jewish burial. But the suicide version given by the military as a cause of death, is considered one of the worst crimes in Judaism and his burial has a particular ritual. It is the aim of this research make an ethnography of this event, seeking to approach the political influence in religious rituals, and the impact of the case in a community traumatized by persecution. Views on the position of Rabbi Henry Sobel, who chose to confront the regime following the “common” Jewish burial were not in unison. To contextualize this scenario, the research addresses the fate of the bodies of other who were victims of the regime before Herzog. The relationship with other cases and the care of the human body in the Jewish ritual, pave the way for a study on the torture and the state of violence in Brazil.

Key-words: Herzog, Vladimir 1937-1975; Dictatorship; Torture; Jews; Journalists – Brazil; Brazil – Politics and government;

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Sumário

Introdução...... 01 Capítulo 1 – Aproximações 1ª aproximação à missa e o assassinato de Vlado...... 07 Vladimir Herzog e o cerco a imprensa...... 24 2º aproximação à missa...... 36 O Medo e a Coragem I...... 38

Capítulo 2 – As tensões e o Medo

As tensões...... 47

O Medo e a Coragem II...... 54

Chael Charles Schreier (1969)...... 54

Iara Iavelberg (1971)...... 59

Gelson Reicher (1972)...... ……...... …64

Ana Maria Nacinovic (1972)...... 65

Ana Rosa Kucinski (1974)...... 68

Os judeus e o medo...... 71

O voto brasileiro na ONU...... 78

Capítulo 3 - Os Corpos Os corpos e o DOI-CODI...... 85

Conclusão...... 101

Bibliografia...... 119

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Agradecimentos Esta pesquisa é o resultado de um longo caminho iniciado muito antes do Mestrado no qual merecem o meu profundo agradecimento todos que de alguma maneira contribuíram das mais diferentes formas para a realização desta conquista. Agradeço sinceramente a cada um que durante esta jornada colaborou com incentivo, apoio, conselhos, e se dispôs a ouvir repetidamente sobre este trabalho em ambientes que vão de seminários a jantares de família e mesas de bar.

Agradeço ao IFCH, à UNICAMP, e a CAPES, por fornecer todo o apoio necessário ao desenvolvimento desta e de outras pesquisas anteriores.

Agradeço ao meu orientador, Omar R. Thomaz, que desde sempre apostou e incentivou minhas pesquisas sem medir esforços para que elas evoluíssem. O conhecimento acumulado na convivência destes anos certamente vai muito além do que posso expressar neste trabalho.

A minha Mãe, por todo o apoio, pelo suporte, pelos conselhos, por me fazer acreditar que esta conquista era possível desde o dia do vestibular, e por acompanhar um sonho que também é dela.

Ao meu Pai, pelo suporte, pelos conselhos, e pelo esforço para estar o mais próximo possível ignorando a distância física.

Aos meus Avós Rodolfo, Esther, Henrique e Izabel, que participaram de forma ativa e fundamental para esta pesquisa.

A minha namorada Geovana, pelo companheirismo, pela enorme paciência, e pelo incentivo permanente.

Ao meu Irmão Jonathan, por ser uma fonte de inspiração e incentivo.

A todos os colegas de Campinas, da Unicamp à República G8, meu profundo agradecimento por estes anos incríveis.

Aos amigos de São Paulo, que pacientemente toparam discutir inúmeras vezes os assuntos polêmicos desta pesquisa fosse numa mesa de bar ou durante o futebol.

À banca de Qualificação, Bela Feldman e Ronaldo Almeida pelas enormes contribuições.

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À banca de Defesa, Guita e Michel, pela honrosa presença e fundamentais contribuições para esta pesquisa.

Aos colegas do NIEJ (UFRJ) e do “Fórum18”, um agradecimento especial pelo apoio e diálogo durante estes anos.

Aos professores e colegas na Argentina, em especial a Emmanuel Kahan e Laura Schenquer, cujo apoio e contribuições abriram um mundo novo dentro deste trabalho.

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“Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra os outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados” - Vladimir Herzog

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Introdução O maior protesto contra a violência da ditadura militar no Brasil, que vigorou entre os anos de 1964 a 1985, foi realizado sem um único grito ou ato violento sequer. No dia 31 de outubro de 1975, na Catedral da Sé de São Paulo – local que procurava manter-se longe da política e próximo aos direitos humanos – assistiu-se o culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog. A multidão silenciosa ali reunida foi responsável pela mudança progressiva de postura dos militares em relação à repressão política e a prática de tortura no Brasil.

O assassinato cruel de uma figura pública que sempre se opôs à resistência clandestina e violenta chocou o país e uniu diversos setores da sociedade em favor de uma mesma causa: o respeito aos direitos humanos. O descontentamento da sociedade, expresso em meio aos limites de uma ditadura, foi suficiente para uma mudança de postura por parte dos militares em direção à abertura política e teve efeito fundamental na troca, poucos meses depois, daqueles que dirigiam os órgãos efetivamente no comando da repressão no Estado de São Paulo. O jornalista Audálio Dantas, então presidente do sindicato dos jornalistas, foi visitado dias depois por militares que lhe asseguraram que a área em São Paulo estava “pacificada” e que não havia mais com o que se preocupar.

Mesmo com o fim da ditadura militar em 1985, muitos dos crimes cometidos por agentes do Estado durante este período continuam sem uma explicação detalhada ou sem o julgamento dos responsáveis, dentre eles o caso Herzog. A lei de anistia de 1979 no Brasil não apenas promoveu o indulto daqueles crimes definidos como políticos, mas também pretendeu o esquecimento dos crimes de tortura. A fim de trazer uma explicação aos familiares das vítimas e as próprias vítimas da ditadura, a presidenta da República Dilma Rousseff estabeleceu, em 2011, a Comissão Nacional da Verdade para apurar os acontecimentos e tentar encerrar este capítulo da história brasileira, ainda que esta comissão não tenha poderes para julgar os acusados por estes crimes.

Uma série de trabalhos e estudos acerca do caso Herzog já foram publicados. O propósito desta pesquisa é, contudo, dar conta de forma minuciosa de um capítulo pouco debatido sistematicamente acerca deste caso: o envolvimento da comunidade judaica e de costumes a ela associados em todos os atos e narrativas que cercaram a tortura e o assassinato de Herzog. Segundo o Rabino Henry Sobel, Herzog, que era judeu, pouco

1 frequentava as instituições comunitárias e possuía um perfil político mais universalista, como muitos outros membros desta comunidade. Sua pertença à comunidade judaica acabou por envolvê-la num mundo que, enquanto minoria, procurou evitar ao longo dos anos de chumbo: o da política.

Geralmente, atribui-se este relativo isolamento da comunidade judaica com relação aos múltiplos conflitos que acabaram por opor movimentos mais ou menos violentos à ditadura militar a sua própria história peculiar. Parte significativa da comunidade seria formada por famílias de refugiados ou sobreviventes da II Grande Guerra, caso da própria família Herzog. A chegada a um novo país dos remanescentes de uma comunidade historicamente perseguida viria marcada pela tentativa de superar traumas que supunha, em muitos casos, a afirmação de um já histórico distanciamento do mundo da política. Pelo menos enquanto comunidade1.

Se o ponto de partida deste trabalho era, tendo como evento central o assassinato de Vladimir Herzog, desvendar as relações entre distintos setores da comunidade judia paulistana e a política num momento particularmente difícil da história recente do Brasil um tema crescentemente se impôs: o comunicado oficial de que Vladimir teria cometido suicídio.

O judaísmo possui um rito de sepultamento particular, que passa por um processo de lavagem dos corpos antes do enterro, além de conferir um tratamento diferenciado aos mortos em decorrência de suicídio. Estes são enterrados em uma área especial no cemitério judaico. Frente às evidências de que o suicídio não era a causa real da morte de Herzog, seu enterro foi realizado em área nobre do cemitério israelita do Butantã. Isto representou mais do que um protesto, mas a afirmação clara de que os militares haviam passado dos limites, e que suas afirmações em torno de suicídios ou mortos em combate não apenas não convenciam como não podiam mais ser aceitas: tratar- se-iam de assassinatos após horas, dias ou meses de confinamento, tortura e execuções.

1. Ficará claro que não defendemos a existência de uma comunidade judaica em São Paulo ou no Brasil. A noção de “comunidade” é antes uma representação do que a tradução de qualquer sorte de grupo coeso. Entre os judeus de São Paulo encontraremos uma imensa diversidade, construída por referência a relação individual ou familiar com a religião, instituições ou lideranças religiosas; relação com o mundo da política; origem familiar; etc.

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Este ritual, contudo, não foi realizado com a tranquilidade esperada para uma cerimônia de sepultamento. O ritmo da cerimônia foi acelerado pela entidade controladora do cemitério, a Chevra Kadisha2, a ponto de que a mãe do jornalista não chegou a tempo de ver o sepultamento. Ainda que o rabino Sobel – personalidade sobre quem nos deteremos mais adiante – tenha participado da dinâmica que possibilitou a realização do enterro em área nobre, ele não estava em São Paulo no momento, e nenhum outro rabino compareceu para conduzir a cerimônia, o que irritou sobremaneira familiares e amigos que consideraram que o ritual não havia sido completo nem realizado de forma adequada.

A centralidade do Caso Vladimir Herzog não é casual num estudo que pretende compreender pelo menos uma das facetas da ditadura militar no Brasil, qual seja, aquela que diz respeito a atuação de distintos setores da comunidade judaica de São Paulo. O caso abalou toda a estrutura da ditadura, e o estudo etnográfico têm o objetivo de rever de forma detalhada, trinta e oito anos depois, os detalhes deste episódio, referência na história de uma longa transição entre a ditadura militar e a ansiada redemocratização do Brasil. Esta etnografia se debruça sobre um evento específico, o Culto Ecumênico promovido na Catedral da Sé uma semana após o assassinato de Vladimir Herzog, por ser um momento singular de tensão nos diversos atores envolvidos.

Excelentes estudos e investigações acerca do caso já foram realizados por jornalistas e colegas de Vladimir Herzog, como Fernando Pacheco Jordão (2005) e Audálio Dantas (2012). O primeiro trabalho apresenta um estudo extenso sobre a dinâmica dos acontecimentos que precederam e sucederam a morte do jornalista; o segundo, tem como foco a vida do jornalista considerando seu entorno familiar, sua origem e sua vida pessoal, mas destacando a atuação do sindicato dos jornalistas no Caso Herzog entre o período ditatorial e o processo de abertura. Incorporando os dados sistematizados por estes dois trabalhos de caráter jornalístico, a pesquisa ora apresentada tem como propósito a compreensão do Caso Herzog a partir de um ponto de vista específico, recuperando uma coletividade que, de certa forma, foi protagonista ao longo do processo: a perspectiva da comunidade judaica de São Paulo bem como sua atuação.

2. Chevra Kadisha, significa “Santa Irmandade” em Hebraico. É o nome da entidade formada por voluntários, que controla o Cemitério Israelita do Butantã.

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Com o propósito de compreender o impacto do assassinato de Vladimir Herzog junto a distintos setores da comunidade judaica paulistana, demos início a esta pesquisa. Recuperar distintas posições e iniciativas e assim perceber a forma como os judeus de São Paulo percebiam a ditadura militar norteavam nosso esforço em entrevistas e sistematização de fontes escritas dos mais diferentes tipos. Conforme a pesquisa avançava, ficava evidente a dificuldade em entender posições tão antagônicas que vão do silêncio de algumas instituições à vanguarda de outras, associadas à comunidade durante os anos da ditadura bem como na atualidade. A construção das diferentes identidades políticas nos diversos núcleos da comunidade, acompanhada de uma breve descrição do desenvolvimento de suas principais instituições, foram fundamentais para construir o cenário político interno da comunidade no momento em que ela se torna, mais uma vez, sujeito em uma situação de denúncia contra a ditadura, ainda que tivesse um “ótimo comportamento” e reivindicasse uma boa relação frente às autoridades da repressão.3 Para além da pesquisa bibliográfica, pesquisa nos documentos do DOPS disponíveis no acervo do arquivo público do Estado de São Paulo, além de pesquisa de imprensa, foi crucial a pesquisa de campo, com a realização de conversas informais e entrevistas mais ou menos estruturadas com as pessoas que estiveram, direta ou indiretamente, envolvidas com os acontecimentos. Trata-se da etnografia de um evento, que busca compreender qual foi seu impacto não apenas no âmbito político e social brasileiro, mas quais os seus sentidos para os que o viveram com maior proximidade, com destaque para a comunidade judaica de São Paulo, além do sindicato dos jornalistas, da família e dos amigos. Os estudos sobre a relação entre os órgãos de repressão do governo e as comunidades judaicas de São Paulo foram feitos pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro (1988) no que diz respeito ao período da Era Vargas, mas não há nenhum estudo sistemático sobre esta mesma relação durante os anos de chumbo4 no Brasil.

3. O discurso imperante no ambiente da comunidade judaica de São Paulo era o de manter um comportamento “Low Profile”, de forma a evitar “atrair o ódio da ditadura para cima da comunidade”. (Sobel, 29/5/2013)

4. Usaremos esta expressão algumas vezes ao longo do texto para designar o período que vai de 1964 a 1985, anos do regime militar no Brasil.

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Com um Arquivo Público deficiente, e evidentes lacunas bibliográficas, conversas e entrevistas, somadas do apoio dos acervos da imprensa, se tornaram a ferramenta mais importante para a condução do projeto. Algumas importantes entrevistas foram realizadas com pessoas situadas em diferentes contextos sociais da comunidade naquele período, e ficou evidente que estávamos num bom caminho para entender os desafios políticos, bem como as contradições, de diferentes setores de uma comunidade claramente multifacetada. É de interesse deste estudo, a partir da descrição destes fatos, discutir como uma comunidade formada, em grande parte por refugiados e seus descendentes, se inseriu num novo contexto marcadamente autoritário e de exceção. Será objeto de especial atenção suas percepções da violência política e do corpo humano tendo em vista as paradoxais relações entre política e religião numa comunidade historicamente marcada como a dos judeus da diáspora.

O estabelecimento de um diálogo com pesquisadores que se debruçaram sobre o mesmo universo temático na Argentina foi fundamental. Destaque-se que neste país vizinho, pesquisa e política caminham a passos largos e de mãos dadas no sentido de elucidar as complexas relações entre a comunidade judaica argentina e eventos tão marcantes como a violência política e a tortura, os desaparecidos e o exílio, a guerra das Malvinas e tudo o que diga respeito à ditadura militar neste país. Ali, o debate alcança imensa densidade, e foi instalada, em 2012, uma espécie de ‘’comissão da verdade’’ ( Daia, 2009) na AMIA/DAIA5 em Buenos Aires, com o propósito de apurar a atuação6 desta instituição judaica que fazia a intermediação entre parte da comunidade judaica argentina, o governo militar e o Estado de Israel.

Chegaremos, enfim, a uma reflexão acerca das percepções de corpo e da violência de estado em meio ao debate político-religioso que se desenvolveu dentro destas comunidades, possibilitando também uma discussão acerca da violência de Estado no

5. AMIA/DAIA é a entidade que centraliza e representa a maior parte das organizações judaicas argentinas.

6. A instituição é alvo de críticas por parte das famílias que tiveram seus filhos judeus presos e procuraram ajuda.

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Brasil e na Argentina, e como esta foi percebida por uma esfera específica destas sociedades que é a comunidade judaica.

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Capítulo 1: Aproximações

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1ª aproximação à missa e o assassinato de Vlado A manhã de 31 de outubro de 1975 amanheceu nublada em São Paulo. Os jornais destacavam notícias como o “monólogo a dois”, existente entre a ARENA (partido governista) e MDB (frente que reunia a oposição tolerada pela ditadura), cuja temperatura aumentava desde o fim do milagre econômico ocasionado pela crise do petróleo, e os acontecimentos que se precipitavam na Espanha com a morte eminente do ditador, o general Francisco Franco, o que representava a abertura do caminho para a reforma política, que futuramente levaria o país a uma democracia parlamentar. Era notícia o grande acordo de energia nuclear que o Brasil fechava com a Alemanha bem como, no período em que se acusava o fim do milagre econômico, a busca de apoio energético no Oriente Médio.

Os editoriais dos principais jornais traduziam ainda um certo cansaço diante de uma situação política crescentemente intolerável e, sobretudo, o cerco governamental à imprensa, na medida em que não eram poucos os jornalistas detidos no departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, um dos órgãos responsáveis diretamente pela repressão.

Em diversos jornais, chamava atenção a seção de obituário: muitos organismos de imprensa, além da família, e do próprio sindicato dos jornalistas, lotaram esta sessão nos principais jornais de São Paulo com uma única e simples mensagem: o convite para a celebração de um “culto ecumênico em memória de Vladimir Herzog”, diretor jornalístico da TV Cultura assassinado dias antes nos porões do temido Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI, localizado na capital paulista na rua Tutóia, Vila Mariana.

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Figura 1. O Estado de S. Paulo. 31/10/1975:34.

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Fazer uma grande quantidade de pequenos anúncios fúnebres em seu formato mais tradicional foi a maneira encontrada pelo Estadão de realizar uma importante convocatória, dividindo de certa forma a responsabilidade do convite entre os diversos atores. A estratégia do jornal conseguia dar um bom destaque ao culto ecumênico sem transformar o evento em uma provocação política aberta. Caso o ato se transformasse num comício, os militares ameaçavam uma tragédia na Praça da Sé.

Ainda pela manhã, o presidente Ernesto Geisel, que estava em São Paulo, proibiu a menção ao culto em Rádios e TV’s, mas não foi presto o suficiente para censurar os jornais que rodaram na madrugada. O máximo que o Exército conseguiu foi inserir alguns comunicados dias antes, alertando sobre as possíveis consequências no caso do culto se tornar uma manifestação política, evitando, contudo, veicular qualquer tipo de comunicado oficial.

O texto foi distribuído com a exigência de que não houvesse referência à sua origem. Falhou, A Folha de São Paulo publicou a nota com o lembrete de que aquilo era o que “dizem as autoridades”. O Globo identificou-a como considerações dos órgãos de segurança. A TV Globo transmitiu-a a seco. (Gaspari, 2004:194)

“Observadores militares” ouvidos pel’O Estado de S. Paulo avisavam que o governo usaria “todo o rigor contra a desordem”. (Gaspari, 2004:196)

A Folha de São Paulo também deu grande destaque em sua seção de obituários, mas foi nos editoriais que este órgão de imprensa deu grande destaque ao culto que estava para acontecer. Ainda que os artigos não tivessem grandes acusações ou denúncias ao governo, procuravam através da análise política fria demonstrar a delicada situação que envolvia o culto ecumênico. O simples fato destes jornais conseguirem falar sobre o assunto discretamente, já mostrava que o impacto da morte do jornalista Vladimir Herzog fora tão grande dentro das redações que nem a censura conseguira forçar uma repressão eficaz à onda informativa.

O editorial da Folha de S. Paulo tratou diretamente da tensão vivida por todos os que pretendiam participar da cerimônia. A evidência de que, se tudo corresse tranquilamente, o culto poderia abalar moralmente a ditadura e mesmo provocar uma mudança na atuação do regime contrapunha-se o temor diante daqueles interessados em transformar a cerimônia em um protesto facilmente convertido em um banho de sangue.

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O ato que se realizará na catedral de São Paulo, esta tarde, tem um significado político que transcende o aspecto religioso da cerimônia fúnebre, por causa dos interesses envolvidos. É elementar que o Governo, embora monolítico, se divide em esferas de influência, e que entre elas existe emulação para aumentar a cota de participação nas decisões de poder. O mecanismo é o mesmo em Washington, Paris ou Moscou, independendo de crenças e regimes. Dentro desse raciocínio, a morte de Vladimir Herzog foi um acidente político do qual extrairão consequências não apenas as oposições – aqui compreendidos todos os grupos, o legal e os que existem á margem da lei – mas também, e principalmente, os integrantes da estrutura responsável pelo Governo. Se a vítima fosse escolhida a dedo, dificilmente se encontraria alguém capaz de provocar mais embaraços que Vladimir. Judeu, trazendo consigo uma conotação milenar de perseguições; jornalista, o que prometia uma reação dos meios de comunicação; ex-funcionário da BBC, tornando previsível a repercussão internacional, e servidor da administração do Estado, envolvendo seus superiores. Como se isto não bastasse, a ocasião não poderia ser pior, com a presença dos participantes da conferência da Associação Interamericana de Imprensa e alguns milhares de americanos da Asta. As autoridades do II Exército não poderiam ter o mínimo interesse no que ocorreu, e isto vale, num plano maior, para o Governo federal. Por isso a classificação de acidente político, com todas as implicações do conceito, inclusive a de que se assumiu o risco de produzi-lo. O desgaste que a administração Geisel sofreu com o episódio, no Brasil e no exterior, será levado a débito dos órgãos de segurança de São Paulo e, por extensão, aos que advogam medidas radicais no combate aos subversivos. A perda de substância dessa área será compensada, nas engrenagens do poder, por um avanço indiretamente proporcional da linha moderada para a qual não se justificam excessos mesmo na guerra ao comunismo. A manifestação será um campo de prova de importância fundamental para o desdobramento do processo político. Se ocorrer alteração da ordem, ficará evidente que ainda não se pode pensar em abrandamento dos controles, e a posição dos defensores do endurecimento, abalada com o episódio, tenderá a se fortalecer novamente. Se tudo transcorrer normalmente, os moderados terão marcado mais um ponto. Concordando com essas premissas, parece lógica a conclusão de que somente a extrema-direita e os grupos esquerdistas partidários da luta armada teriam interesse no desvirtuamento do ato. Todas as tendências restantes, desde os adeptos do Governo, até os comunistas da linha que objetiva a conquista do poder por vias pacíficas, estarão empenhados em que tudo acabe bem. (Folha de S. Paulo, 31/10/1975:2)

Logo na terceira página da Folha vinha uma curta nota informando sobre o culto que aconteceria às 16:00 horas, seguida de um manifesto do sindicato que informava sobre a situação dos jornalistas presos e incomunicáveis na tutela do DOI-CODI. Vlado já havia sido professor na Escola de Comunicação e Artes da USP, centro universitário que representava fortemente a luta estudantil no país e estava mobilizando os estudantes para o comparecimento em massa ao culto.

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A polícia, por sua parte, havia dado diversos recados públicos e privados ao longo dos dias anteriores procurando intimidar a celebração do culto. “Temiam” que ele se tornasse um protesto violento ou motivo para comício enquanto os organizadores argumentavam que era apenas um culto ecumênico. Ao longo da semana que sucedeu a morte do jornalista, os alertas de que a cerimônia poderia acabar em violência por conta de “aproveitadores” era em si um fator intimidador que foi usado exaustivamente pelos militares como desincentivo ao comparecimento em massa da população.

Entre notas mais ou menos explícitas à imprensa e da imprensa, a semana que antecedeu o culto foi ainda marcada por um sem-fim de rumores e boatos, tanto mais intensos quanto mais próximos ou do regime ditatorial ou de círculos da oposição democrática se encontrava o grupo ou o indivíduo. Não eram poucas as conversas que eram entremeadas pelo “Diz que...”, início de um rumor ou boato que exime aquele que o pronuncia de explicitar a fonte. Podemos dizer que São Paulo foi marcado por boatos e rumores que, de um lado, alertavam para um possível endurecimento do regime após a repressão de que seria objeto o culto previsto na catedral da Sé, de outro afirmavam que o culto em si seria obra de maquinações da extrema esquerda que, diante da violência militar, viria legitimada a luta armada – naquela altura absolutamente enfraquecida ou mesmo inexistente após os anos do General Garrastazu Médici (1969).

Entretanto, duas grandes operações policiais foram montadas para o evento. A primeira, uma operação de bloqueio chamada de “Terço”, organizada pela Coordenação de Informações e Operações (Ciop) sob comando da secretaria de segurança pública. A operação tinha como objetivo intimidar a população e causar um trânsito insuportável através de diversos bloqueios no centro da cidade, realizados por 500 homens da polícia militar. Foram trinta bloqueios (Godoi, 2005), cinco deles nas pontes do Rio Pinheiros e avenidas que ligavam a Cidade Universitária ao centro, que possuía os outros vinte e cinco bloqueios. O secretário se segurança pública Erasmo Dias, citado em artigo de Marcelo Godoi para o Estado de S. Paulo (2005), explicava:

A idéia era esvaziar. Massa é massa: quanto maior, mais difícil de controlar (...) queríamos fechar os caminhos principais para chegar a catedral. Em vez de demorar dez minutos, ia demorar duas horas e muita gente desistiria no caminho.(apud O Estado de S. Paulo, 23/10/2005:A15)

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Às 13:00h, as barreiras foram montadas em pontos estratégicos e a polícia parava os veículos civis simulando uma fiscalização. Examinavam documentos dos motoristas e em pouco tempo promoveram o maior congestionamento que já havia sido registrado na cidade (Dantas, 2012:310).

A operação surtiu certo efeito, o que não impediu que parte da população chegasse a pé. O reverendo Jaime Wright, um dos protagonistas da cerimônia, chegou com enorme dificuldade para o culto, que apesar do atraso, aguardou a sua chegada.

Todas as vias de acesso à avenida Washington Luís, caminho natural para atingir a 23 de maio, na direção do centro, estavam engarrafadas. Angustiado, Wright colocou-se nas mãos de Deus e do motorista do táxi, de quem aceitou a sugestão de tentar chegar à estação de metrô mais próxima, na Vila Mariana. O caminho, por ruas escondidas, parecia não ter fim. Assim como a sua angústia. A celebração da qual deveria participar transcendia o ato religioso, tinha o sentido de um libelo contra a opressão que dominava o país, que torturava e matava. (Dantas, 2012:312)

O pastor Jaime Wright levou quatro horas e meia para chegar à catedral! A cerimônia, contudo, não teve início até sua chegada. O pastor buscava ainda notícias de seu irmão, ex-deputado em Santa Catarina, desaparecido nos porões da ditadura (Jordão, 2005). A busca de quartel em quartel aproximou-o da luta pelos direitos humanos da qual fazia parte o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.

Junto a Dom Paulo e ao rabino Henry Sobel, Jaime Wright participaria do projeto “Brasil: nunca mais”, que reuniu um grupo que, na clandestinidade, dedicou-se a reunir julgamentos e testemunhos oficiais (reconhecidos pelo Superior Tribunal Militar) sobre a prática da tortura no Brasil.

O arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns era referência na defesa dos direitos humanos. O arcebispo foi um dos responsáveis pela criação, em 1972, da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo e recebia, diariamente, familiares e amigos de presos e desaparecidos em busca de informações. Não bastasse os pesadelos dos desaparecimentos, os presos muitas vezes passavam meses incomunicáveis.

No livro do projeto “Brasil: Nunca Mais”, o arcebispo relata alguns exemplos do tipo de pedidos por informações que recebia da população:

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A primeira, ao assentar-se em minha frente, colocou de imediato um anel sobre a mesa, dizendo: É a aliança de meu marido desaparecido há dez dias. Encontrei-a, esta manhã, na soleira da porta. Sr. Padre, que significa essa devolução? É sinal de que está morto ou é um aviso de que continue a procurá- lo? (Arquidiocese de São Paulo, 1985:11)

Simultaneamente, militares desesperados também o procuravam. Na obra, o arcebispo relata momentos em que se surpreendeu não apenas com a tortura, mas com seu efeito nos torturadores.

Instados a abandonar esta terrível ocupação, respondiam: “Não dá. O senhor sabe por quê! (...)” um deles, meses após, me esperava ao final da missa, sozinho, na igreja da Aclimação. Abordou-me, num grito de desespero: “Tem perdão para mim? ” (Arquidiocese de São Paulo, 1985:13).

Dom Paulo acompanhou os acontecimentos do caso Herzog próximo aos familiares e aos jornalistas. Após um turbulento enterro no cemitério do Butantã, a ideia de realizar o culto havia surgido junto com Audálio Dantas, então presidente do sindicato dos jornalistas.

Além do Arcebispo e de Jaime Wright, preparavam-se para subir ao altar da cerimônia dois rabinos e um cantor lírico judaico. O renomado cantor Paul Novak acompanhava os rabinos Henry Sobel e Marcelo Ritner. Os três eram integrantes do corpo religioso da Congregação Israelita Paulista (CIP), importante instituição judaica na cidade de São Paulo. O rabino Sobel chegara à cidade apenas em 1974, após sua formação na escola rabínica norte-americana de Abraham Joshua Heschel, referência importante responsável pela “exportação” de rabinos estadunidenses para a América Latina. Os rabinos originários desta escola apresentavam um judaísmo conservador, mas não ortodoxo, e, especialmente em países afetados por ditaduras militares ou regimes de exceção, revelaram grande empenho na defesa dos direitos humanos. Dentre seus ensinamentos, Heschel dizia aos seus alunos que “ninguém podia assumir o monopólio da verdade, seja política, ideológica ou religiosa. ” (Rosemberg, 2010:22)

Os rabinos Kreiman no chile e Marshall Meyers na Argentina destacaram- se na luta contra a tortura e na busca por mortos e desaparecidos. No Brasil, Sobel, rabino chefe da Chevra Kadisha, instituição responsável pela administração do cemitério israelita do Butantã, autorizou que Vladimir Herzog fosse enterrado em uma área nobre

13 no cemitério israelita, e não naquela reservada aos suicidas. O rito judaico considera a vida o bem mais importante do ser humano e, até recentemente, era costume generalizado reservar uma área do cemitério judeu aos que atentam contra ela. No entanto, a iniciativa de Sobel era mais um sintoma de que a versão oficial do exército segundo a qual Herzog havia cometido suicídio não convencia uma sociedade cada vez mais farta do arbítrio violento promovido pelos militares.

O rabino Sobel havia assumido a responsabilidade religiosa (e consequentemente política) pelo feito. Enterrar Vlado em uma área nobre era uma ação arriscada: desafiava a versão oficial da ditadura e poderia expor uma comunidade traumatizada por perseguições. Sua iniciativa foi ainda objeto de comentários acusatórios sobre sua condição de estrangeiro – “só fez isso por ser norte-americano” - destacando cautela militar em enviar para os seus porões cidadãos de outras nacionalidades.7 O rabino compareceu à missa, o que acabou alavancando sua figura como principal representante dos judeus em São Paulo. Vlado era judeu e sua família refugiada do nazismo.

O último nome que seria protagonista no culto ecumênico, ainda que não fosse um representante religioso, foi o do presidente do sindicato dos jornalistas Audálio Dantas. O sindicato não protestara apenas pela morte de Herzog. A situação geral era tensa, pois sabiam que estavam no meio de uma séria disputa entre MDB e ARENA. Os jornais era um dos principais instrumentos de manipulação e propaganda do regime. No próprio dia 31 de outubro, logo abaixo da informação sobre o culto ecumênico, a Folha de S. Paulo publicou uma nota do sindicato cobrando explicações sobre a situação dos jornalistas que seguiam presos. Após seu encaminhamento ao DOI-CODI, as notícias sobre o preso – o porquê de sua prisão, a possível defesa, suas condições de saúde etc. - cessavam; restava um maior ou menor tempo de angústia dos entes queridos, antes que o preso fosse libertado, a família fosse chamada para recolher o corpo, ou ele fosse dado como desaparecido. A questão da incomunicabilidade, somada às torturas e

7. Trata-se de uma afirmação que deve ser matizada. Se é certo a cautela dos ditadores latino-americanos com relação a cidadãos estrangeiros, anunciando assim temores de possíveis escândalos internacionais, não é menos verdade que estrangeiros e descendentes foram tidos como particularmente suspeitos, dado o próprio caráter nacionalista e mesmo xenófobo destas ditaduras. No Brasil não foi diferente e podemos dizer, sem medo, que um passaporte estrangeiro paradoxalmente protegia e expunha.

14 desaparecimentos, era suficiente para deixar em desespero familiares e amigos de qualquer preso que fosse transferido para as celas do DOI-CODI.

Audálio Dantas enquanto presidente do sindicato esteve à frente da movimentação dos jornalistas acerca do caso. A morte de Herzog supôs um inusitado nível de tensão dentro das redações e fez com que muitos jornalistas se sentissem na obrigação de tentar furar, ainda que de forma discreta, o bloqueio da censura e denunciar as violações sistemáticas de direitos humanos cometidas pelos distintos corpos militares.

Apesar de todas as dificuldades impostas pela “Operação Terço”, oito mil pessoas conseguiram se aproximar da catedral da Sé. Cinco das trinta barreiras se encontravam na marginal Pinheiros com um objetivo importante: barrar a presença maciça de estudantes da USP que há dias convocavam e organizavam a ida ao culto. O sindicato orientava que a população caminhasse para o centro em pequenos grupos, em silêncio, evitando um caráter de protesto explícito e prevenindo, assim, qualquer incidente violento no meio do caminho.

Poucas horas antes do culto, chegou ao sindicato uma notícia tranquilizadora: os estudantes haviam decidido seguir estas orientações e comparecer em massa, mas discretamente.

Essa decisão, tomada depois de duas horas de discussão, incluía algumas regras de segurança: dirigir-se à catedral em grupos de, no máximo, cinco pessoas; não fazer nenhuma manifestação paralela (cartazes, faixas ou passeata); não levar manifestos e abandonar os que na igreja eventualmente fossem distribuídos e não permanecer nas imediações da catedral após o ofício. ” (Sydow e Ferri apud. Dantas, 2014:300).

Desde o sepultamento de Vlado, trinta mil estudantes de diversas universidades entraram em greve. Os líderes estudantis constituíam parte daqueles que se organizavam para mobilizar estudantes e a população em geral para o culto ecumênico. Foram distribuídos panfletos por toda parte com a nota do sindicato que denunciava a tortura e as prisões. A Folha de S. Paulo anunciava que os estudantes “...organizaram-se para comparecer aos teatros da cidade a fim de convidar a classe teatral para o culto. ” (Folha de S. Paulo, 31/10/1975:3)

15

Na saída da Cidade Universitária, o bloqueio policial era ainda mais rigoroso, e além do pedido da documentação pessoal, cada veículo era sujeito a uma minuciosa revista na busca de “material subversivo”. (Dantas, 2012; Godoi, 2014)

No campo político a tensão em torno da morte de Herzog chegava aos altos escalões do governo. As ações do DOI-CODI que resultavam em tragédias como a de Vlado caíam na conta dos mais altos generais, que tentavam se justificar publicamente prometendo instaurar um Inquérito Policial-Militar (IPM) para apurar o ocorrido, com o propósito evidente de responsabilizar os radicais do II Exército, que ameaçavam seu governo com estas ações. A oposição ultra-radical de direita realizada por setores militares era quem bancava politicamente o DOI-CODI e suas operações. Geisel, apesar de ser um presidente do ARENA, entendeu o acontecimento como um ataque a autoridade de seu governo. Um IPM que acusasse os envolvidos não só colocaria em cheque o trabalho do DOI-CODI, como representava, principalmente, uma afronta a estes setores radicais do exército, aumentando a tensão já existente na cúpula civil e militar do regime.

A presença do presidente Geisel em São Paulo, planejada anteriormente, foi, em função do culto ecumênico, estendida por mais um dia, sendo adiado assim seu retorno a Brasília. Com Geisel na cidade, a tensão gerada entre MDB e ARENA deveria ser aliviada pois se supunha uma firme atuação do presidente no sentido de enquadrar a ultradireita. De fato, o presidente aproveitou sua estadia na capital paulista para exigir a instauração do IPM, enfurecendo a ala radical que tanto se orgulhava do trabalho realizado nos porões. A permanência do presidente parecia ser, sobretudo, a afirmação de sua autoridade sobre uma ultradireita crescentemente “rebelde”. Tantos anos de autonomia para o DOI-CODI deu a determinados setores internos ao próprio regime a confiança e a independência de que precisavam para esboçar um golpe dentro do golpe.

A população que enfrentou o medo e as dificuldades para passar pelos bloqueios montados pela operação “Terço”, não estava sozinha nos arredores da catedral. 172 agentes do DOPS chegavam à praça em torno das 13:00 horas para montar a “Operação Gutenberg” que estava sob o comando do tristemente célebre delegado Sérgio Paranhos Fleury, nome conhecido nos porões da ditadura. O jornalista Marcelo Godoi teve acesso aos documentos da operação, até 2005 tidos como perdidos.

16

Eram 13 horas do dia 31 de outubro de 1975 quando os primeiros dos 172 agentes do DOPS chegaram à praça da Sé. Eram 10 homens que fariam a chamada “observação indireta”. No jargão da repressão, aquilo significava usar binóculos, máquinas fotográficas e filmadora para acompanhar a movimentação. Os últimos a aparecer por ali seriam os dois delegados e os dez investigadores que receberam missão de entrar na igreja e se infiltrar na multidão. Eram os “agentes especiais. ” (O Estado de S. Paulo, 23/10/2005: 15)

Estes “agentes especiais” vestiam discretas fitas vermelhas no braço como se em algum momento pudessem ser confundidos com comunistas infiltrados. O registro em filme e fotográfico começou logo cedo, e pretendia identificar principalmente lideranças que estivessem presentes. Estes registros já eram uma prática conhecida do DOPS e comumente presente até em cerimônias de enterro e luto.

A cerimônia marcada para as 16:00 horas interferiu em toda a rotina da cidade. Aos rumores que se multiplicavam some-se os bloqueios constituindo um quadro de tensão crescente entre aqueles que pretendiam chegar à região da Sé. Logo nos primeiros minutos após as 16:00 o pastor Jaime Wright ainda não havia chegado, e um padre veio a público perguntar se os estudantes de biologia da USP que haviam se candidatado para o coral já estavam na Igreja. Ninguém se manifestou, pois eles haviam sido barrados nas barreiras policiais (Jordão, 2005:89). Para alívio dos jornalistas, as assembleias estudantis da noite anterior ao ato definiram que a participação dos estudantes seria maciça, mas silenciosa. Sem faixas, protestos ou provocações, seguiriam a recomendação de Audálio Dantas para seguir em pequenos grupos e em silêncio.

O pastor chegou depois de meia hora de espera e a cerimônia teve, então, início. O silêncio na catedral era total. Entre o altar e a abside, encontrava-se o arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, o arcebispo de Recife e Olinda Dom Helder Câmara, recém- chegado de Londres onde recebera homenagens por sua luta pelos direitos humanos, o pastor Jaime Wright, os rabinos Henri Sobel e Marcelo Ritner, e o cantor lírico judeu Paul Novak, todos acompanhados por mais de duas dezenas de sacerdotes católicos.

Na nave, oito mil pessoas que enfrentaram o medo e as barreiras policiais. Dentre elas, artistas, estudantes, intelectuais, jornalistas, políticos e simplesmente famílias, com suas crianças, que se solidarizaram com o que estava acontecendo. Estava

17 claro que aquela não era a congregação de uma família em particular, tampouco a manifestação política de um grupo específico ou cerimônia de uma religião em detrimento de outra: o culto ecumênico parecia ser potencialmente de todos os que estavam efetivamente fartos do arbítrio, da violência e do medo.

A transcendência do ambiente não evitou, contudo, a clara percepção da existência de infiltrados de organizações como o DOPS e o DOI-CODI ou mesmo de indivíduos ligados a setores da ultradireita, com o propósito claro não só de vigiar, mas de, efetivamente, fichar os presentes como possíveis subversivos.

A decisão dos estudantes da USP de não se manifestar e nem panfletar na cerimônia foi fundamental para a manutenção do caráter ecumênico do ato. Atitudes na direção contrária poderiam ser percebidas como provocações e seriam fatais, pois dariam a escusa esperada por setores ultras dos corpos militares, particularmente do exército, para reagir violentamente. Se era evidente o caráter político daquele encontro, havia que evitar transformá-lo numa manifestação explicitamente política. O silêncio desempenhava um papel central.

Mas não só: diante dos rumores que tomaram conta dos círculos que pretendiam se fazer presentes na semana anterior ao culto, um foi particularmente marcante. Não foram poucos os que se lembram de, ainda crianças, terem acudido à catedral com seus pais e familiares. Ora, por que levar crianças a uma cerimônia que podia devir em violência? “Diz que...” mulheres e crianças foram incentivadas a se fazerem presentes com o propósito de coibir uma possível reação violenta do exército.

Enquanto todos aguardavam silenciosamente o início da cerimônia, um padre orientado por Dom Paulo Evaristo Arns deu alguns avisos à multidão silenciosa, entre elas a que advertia o atraso do reverendo Jaime Wright e aquela que quebrou o silêncio com as palavras: “Nas minhas dores, ó senhor, fica a meu lado. ” (Jordão, 2005:86) e trouxe um comunicado sobre estudantes da USP:

Os estudantes da USP, reunidos em assembleia, resolveram marcar sua presença aqui nesta Casa, mas pediram que se explicasse que não elaboraram nenhum documento para ser distribuído neste dia. Portanto, se algum documento circular na Catedral, ele não será da responsabilidade dos estudantes da USP. (...) (Jordão, 2005: 86)

18

Em seu depoimento ao documentário “Vlado, 30 Anos”8 Dom Paulo lembra o que sentiu:

Quando entrei na Catedral e vi tanta gente, e gente tão comovida, chorando, a frente de uma pessoa querida na cidade, e estimada na cidade, quando vi isso me enchi de esperança em favor do povo brasileiro.

Na sequência, veio a frente D. Paulo Evaristo Arns, acompanhado dos sacerdotes católicos, pastores e rabinos que ocupavam o altar e a abside:

Esta é a casa de Deus e de todos os homens que aceitam o caminho da Justiça e da Verdade. (...) Purifiquemos o nosso coração de todo o ódio. Procuremos ser irmãos que rejeitam toda espécie de terrorismo, venha de onde vier. Observemos um momento de silêncio, para se criar um clima de oração e de solidariedade entre os homens e por aqueles que Deus amou e ama, neste momento de dor. (Jordão, 2005:86)

Depois das palavras do Arcebispo, tomaram a frente os rabinos Henri Sobel e Marcelo Ritner e o cantor lírico Paul Novak. Recitaram juntos a reza El Malerachamim, tradicional reza judaica pela elevação das almas dos falecidos. A escolha deste rito judaico em homenagem a Vladimir Herzog colocava em xeque, mais uma vez, a versão oficial de suicídio. Repetia-se na Catedral da Sé a contestação religiosa que marcara o enterramento judaico, pois o judaísmo tem cerimônias específicas para os suicidas. Assim, cada vez que um rabino rezava pela alma de Herzog tratava-se do reconhecimento religioso de seu assassinato.

Após a reza, o rabino Henry Sobel discursou para a multidão silenciosa com seu forte e carregado sotaque norte-americano:

Sou um rabino. Estou aqui, participando deste culto ecumênico, porque um judeu morreu. Um judeu que fugiu da perseguição nazista. Um judeu que imigrou para o Brasil e aqui se educou, se formou, e se integrou plenamente no mundo da filosofia, das artes, do jornalismo e da televisão. Para Vladimir Herzog, ser judeu significa ser brasileiro. Sou um rabino. Estou aqui porque um judeu morreu. Porém, mais importante ainda, estou aqui nesta catedral porque um homem morreu. E como rabino, não defendo apenas os direitos dos judeus, mas sim os direitos fundamentais de todos os seres humanos, de todos os credos, de todas as raças, vivam eles no Brasil ou em qualquer outro país do mundo. E Vladimir Herzog era um homem: um homem de visão, profundidade e dedicação.

8 Ver em: Andrade, 2005.

19

Conta-se uma história sobre o rabino Elimelech. Quando sentiu que a morte se aproximava, o rabino chamou seus quatro discípulos e lhes pôs a mão na testa, dizendo que a cada um deixaria uma parte de seu ser: a um deu a luz dos seus olhos; a outro, a bondade do seu coração; ao terceiro, a inteligência de sua mente; e ao último, o poder de sua voz. Meus amigos: é porque Vlado colocou suas mãos em todos nós, que podemos ainda – apesar da tristeza, da dor, e da revolta – ter esperanças. Pois ele nos deixou uma luz digna de ser recordada, e uma voz cuja sabedoria nem mesmo a morte pode silenciar. (Sobel, 2014:41)

Com o fim do discurso de Sobel, Paul Novak veio a frente para recitar o Kadish, tradicional reza judaica para os enlutados. A “Oração dos mortos”, como é conhecida, em nenhum momento menciona o falecido. A oração é uma reafirmação do reconhecimento da onipotência de Deus, e, portanto, acima de tudo, um ato de Fé. Este ato de fé de quem reza, acompanhado e repetido pela congregação presente, traz méritos para a alma do falecido. Ao final da oração, Dom Paulo pediu à multidão que com ele repetisse três vezes a palavra Shalom, que significa paz em Hebraico.

A palavra, repetida em coro, foi ouvida em toda a catedral e alcançou as pessoas que ocupavam as escadarias e depois as que se aglomeravam na praça, e que repetiram: Shalom, Shalom, Shalom! (Dantas, 2012:315)

O segundo a se pronunciar, o pastor Jaime Wright, trouxe uma fala “sóbria e quase toda do Livro dos Salmos” (Jordão, 2005:87).

O senhor é meu pastor, e nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto das águas de descanso; Refrigera-me a alma. Guia-me pelas veredas da justiça e por amor do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, por quê tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam. Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários, unges-me a cabeça com óleo; o meu cálice transborda. Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor para todo o sempre. (Salmo 23, Salmos de David)

O reverendo estava acompanhado da multidão que em coro repetia:

E as nossas angústias, Senhor, estão todas na vossa presença.

Em seguida, falou diretamente de Vlado apenas neste único momento (Jordão, 2005:88):

Quando cai a noite, o pastor não vai para casa e jamais abandona suas ovelhas. Quando a noite vem, o perigo é maior. É durante a noite que elas mais precisam dele. Quando as sombras da noite caírem, o bom pastor nos levará para casa.

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E o bom Pastor já investiu demais em cada um de nós, inclusive em Vladimir Herzog, para nos abandonar agora.

Segundo Fernando Pacheco Jordão, neste momento a cerimônia chegava ao seu ponto mais forte. Dom Paulo era o terceiro a falar, e uma vez que estava à frente, decidiu aguardar que a imprensa terminasse seu registro. Pediu-lhes para que apagassem as luzes, e não estourassem mais flashes. O tom de voz se mostrou mais firme e explícito:

Deus é o dono da vida. Ninguém toca impunemente no homem, que nasceu do coração de Deus, para ser fonte de amor em favor dos demais homens. Desde as primeiras páginas da Bíblia Sagrada até a última, Deus faz questão de comunicar constantemente aos homens que é maldito quem mancha suas mãos com sangue de seu irmão. Nem as feras do Apocalipse hão de cantar vitória diante de um Deus que confiou aos homens sua própria obra de amor. A liberdade – repito – a liberdade humana nos foi confiada como tarefa fundamental, para preservarmos, todos juntos, a vida do nosso irmão, pela qual somos responsáveis tanto individual como coletivamente. O Senhor da História não aceita a violência em fase alguma, como solução de conflitos. (...) E no meio do Decálogo aparece a ordem, como imperativo inarredável, princípio universal, indiscutível: Não Matarás. Quem matar, se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus. (...) justiça que possa consubstanciar-se nas leis, mas que tenha sua força no interior de cada homem, disposto a dizer a si mesmo e aos outros: basta! É hora de se unirem os que ainda querem olhar para os olhos do irmão e ainda querem ser dignos da luz que desvenda a falsidade. A esperança reside na solidariedade. Aquela solidariedade que é capaz de sacrificar os egoísmos individuais e grupais no altar de uma Pátria, no altar de um Estado, no altar de uma cidade. Neste momento, o Deus da esperança nos conclama para a solidariedade e para a luta pacífica, mas persistente e corajosa, em favor de uma geração que terá como símbolos os filhos de Vladimir Herzog, sua esposa e sua mãe.” (Dantas, 2012:318; Jordão, 2005:87)

O discurso de D. Paulo Evaristo Arns apontava diretamente na direção do assassinato. A citação do mandamento “Não Matarás” acusava publicamente os militares pelo assassinato de Herzog. Porém, Dom Paulo evocou principalmente a esperança, através de uma luta persistente, mas fundamentalmente pacífica. Ele sabia que se, de alguma forma, seus discursos conduzissem a uma reação violenta, ele estaria fazendo exatamente o jogo que os militares da ultradireita desejavam. Todos sabiam que a ordem dada aos policiais que cercavam não só a catedral, mas todo o centro, era para que atirassem ao primeiro grito.

21

Os fotógrafos, cinegrafistas, cães, peruas da polícia e fuzis que cercavam o templo mostravam a todos que os militares presentes estavam preparados para uma verdadeira guerra ao redor da catedral.

Após a fala de Dom Paulo, veio a vez de Audálio Dantas, representante do sindicato dos jornalistas. O sindicato havia articulado o culto junto das lideranças religiosas, e passava por um momento especialmente tenso. Além da morte de Vlado, aproximadamente outros dez jornalistas seguiam presos. Em seu livro As duas guerras de Vlado (2012), Audálio relata o que sentiu quando se aproximou da multidão, logo após o discurso de Dom Paulo:

De onde me encontrava, no altar, vi a multidão que se comprimia, em silêncio; tentei conter a emoção. Teria, no fim, de falar em nome dos jornalistas. Temi que não conseguisse dizer uma palavra sequer. Ruminei pensamentos; revi, como se fossem cenas embaralhadas de um filme, os dias de angústia vividos desde o início da onda de prisões, até o sábado em que Vlado fora morto, e os dias que se sucederam, desde a denúncia do assassinato até a mobilização dos jornalistas e a resposta da sociedade civil. Esses dias tensos e intensos pareciam uma eternidade. A multidão silenciosa que ocupava a catedral e transbordava para a praça era uma resposta a violência. Era a primeira manifestação de massa desde a imposição do AI-5. Era uma denúncia. Aquela multidão simbolizava, naquele momento, a consciência nacional, que dizia basta à ditadura. Seria esse o discurso, se eu conseguisse arrancar as palavras que estavam presas em minha garganta. Mas o discurso se resumiu, em palavras quebradas pela emoção, a um apelo para que todos deixassem a catedral em silêncio e buscassem, nas ruas, os caminhos da paz. (Dantas, 2012:318)

O Discurso de Audálio dizia: Em nome de Deus homem, nós pedimos paz. Nós desejamos a paz. A paz, que é uma necessidade do Homem. Nós pedimos em nome da consciência do Homem. Neste momento de dor, para todos nós, não só jornalistas, mas todos os nossos irmãos, de todas as crenças religiosas aqui presentes. Eu quero fazer um apelo, uma última homenagem, neste momento de dor para todos nós. Ao nosso irmão morto, ao homem morto, ao deus homem morto, ao deus que está em todos os homens, silêncio. Saiamos daqui deste templo sob o qual se reúnem todas as crenças, saiamos em silêncio, saiamos e aguardemos o caminho da paz.9

Após a fala de Audálio, Dom Paulo finalizou:

Vamos sair em silêncio, em pequenos grupos, de cinco ou dez pessoas que se conheçam. Ninguém grite, ninguém ouça quem queira gritar. (Dantas, 2012:318).

9 Ver em: Andrade, 2005.

22

Com o mesmo silêncio, transcendente de tensão, emoção e respeito, a multidão que se apertava na catedral começou a se retirar. Cada um que saía da catedral tinha para si uma câmera ou filmadora do DOPS apontada para o rosto. Devagar e com calma, todos deixaram o culto sem dar o pretexto tão aguardado pelos militares. Se por um lado a multidão parecia consciente do risco que corria se abria mão do silêncio – era evidente que não seria tolerada nenhuma provocação contra o regime – sua dispersão era marcada pela percepção de que, naquele contexto, o silêncio era sua arma mais eficaz.

O presidente Geisel aguardava em sua sala oficial no aeroporto de Congonhas o fim da cerimônia. Com a notícia de que tudo acabara em paz, embarcou para Brasília tranquilo e “convicto de que havia acabado de vencer uma batalha”. (Dantas, 2012:320). A história contradiz claramente a convicção do general. O culto ecumênico é hoje percebido claramente como o início do fim da triste era dos generais.

* A proposta inicial desta pesquisa era a de enfrentar as relações entre aquelas instituições e pessoas que encarnaram a ditadura militar no Brasil e a comunidade judaica, cujo maior centro neste país era a cidade de São Paulo. A inspiração vinha, certamente, do debate em curso na Argentina, onde não foram poucos os autores que destacaram um caráter eminentemente antissemita da junta militar que governou este país entre 1976 e 1983 (Senkman, 1989; Lotersztajn, 2008) e mesmo iniciativas de caráter claramente antissemita na Guerra das Malvinas (Dobry, 2012).

Na medida em que avançava na pesquisa, entre fontes primárias, secundárias, entrevistas e conversas informais, a inexistência de traços, debates ou iniciativas antissemitas por parte dos militares contrapunha-se ao impacto que determinados eventos teriam tido junto às comunidades judias no Brasil, em função da prisão ou morte de alguns dos seus membros que ou haviam se envolvido com a luta armada contra a ditadura militar, ou passaram a engrossar parte daqueles grupos que faziam críticas à ditadura dentro do que poder-se-ia definir de uma certa legalidade. Neste contexto, a prisão de Vladimir Herzog, seu assassinato, o enterro e o culto ecumênico a ele dedicado ganharam

23 força para compreender, ainda que fragmentariamente, as relações que setores da coletividade judia tinham com a política, com o Estado e com a repressão, mas mesmo uma das facetas da oposição à ditadura e dos meandros que promoveram a democratização no Brasil.

Um grande volume de fatos novos apareceu nos últimos anos, e o debate sobre os anos da ditadura ganhou imenso espaço na cena pública brasileira com as atividades da Comissão Nacional da Verdade10. Para além do material levantado pela CNV, várias comissões locais, regionais, institucionais ou voltadas para grupos específicos foram criadas. Some-se livros publicados, depoimentos, memórias, artigos de imprensa, documentários e chegamos a um panorama inédito no que diz respeito a um adensamento sobre a história da repressão no Brasil. Neste contexto, o caso de Vladimir Herzog ganhou uma centralidade peculiar, quer no que diz respeito a seu impacto junto a sociedade brasileira, quer junto à comunidade judia brasileira, que se via às voltas com suas próprias vítimas.

II

Vladimir Herzog e o cerco a imprensa

A família de Herzog, originária da Croácia, então Reino da Iugoslávia, sobrevive clandestinamente na Itália à catástrofe que se abate sobre boa parte da Europa e muito particularmente sobre os judeus entre 1933, o início da Segunda Grande Guerra e seu fim em 1945. A obra de Audálio Dantas, “As duas guerras de Herzog” (2012), traz detalhes sobre a infância de Vlado antes da viagem para São Paulo em 1946, onde chega como refugiado. Dantas descreve a vida da família Herzog e os tumultuados anos marcados pelo antissemitismo, pela guerra e por fugas e deslocamentos sucessivos que terminam no Brasil.

10. A Comissão Nacional da Verdade foi instituída pela lei nº 12.528 de 2011 e foi oficialmente instalada em maio do ano seguinte. Seu propósito era o de investigar as violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil entre 1946 e 1988. Sua atuação gerou debates, polêmicas e expectativas e em dezembro de 2014 foi entregue um minucioso relatório à Presidente Dilma Roussef. (Comissão Nacional da Verdade, 2014).

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Em 1946, o Brasil era uma promessa de liberdade. Confiantes nessa promessa, Zora e Giga fizeram a sua escolha. A ideia de um pais longínquo, a milhares de quilômetros da Europa destroçada pela guerra confortava-os. No canto do mundo escolhido por uma nova vida, não mais precisariam esconder seus nomes verdadeiros, escritos nos passaportes fornecidos pela Cruz Vermelha. (Dantas, 2012:35)

O estilo de vida escolhido pela família Herzog no Brasil foi o mesmo de muitas outras famílias judias refugiadas de guerra: esquecer os problemas vividos por causa do judaísmo na Europa e construir uma vida que fosse a mais próxima possível da cultura e da população local. Foi esta a opção de inúmeras famílias judias, que viram na integração total à sociedade brasileira um sonho a ser realizado.

Este mesmo perfil será encontrado em todas as vítimas judias que morreram sob custódia da ditadura. Destaque-se que são não apenas os que perderam suas vidas, mas também seus familiares e aqueles que foram torturados; uns e outros são portadores de sequelas permanentes. Muitos faleceram posteriormente por conta destas sequelas, e tornam difícil sua identificação neste momento. Aqueles que morreram na mão dos militares possuem fichas e material organizado em Acervos Públicos e ONG’s como a “Tortura Nunca Mais” por exemplo.

Das vítimas judias em São Paulo, das quais trataremos melhor mais a frente, Chael Charles Schreier, Iara Iavelberg, Gelson Reicher, Ana Maria Nacinovic, Ana Rosa Kucinski e o próprio Vlado Herzog têm origem em famílias refugiadas, que viram integração completa a melhor opção para uma vida em paz no Brasil, o que significou um crescimento mais distante (mas não inexistente) dos centros comunitários judaicos e mais próximo às escolas e ambientes comuns a qualquer jovem paulistano não-judeu da época.

As organizações e partidos de esquerda após o golpe de 1964 procuraram continuar suas atividades com maior ou menor grau de intensidade na clandestinidade, sendo que alguns resistiram mesmo com dezenas de seus militantes sendo sequestrados, torturados e mortos pelo aparelho repressivo. O repúdio à opção armada por parte de algumas organizações como o Partido Comunista Brasileiro, não foi suficiente para livrar seus integrantes das acusações de subversão. Concomitantemente, aqueles que não foram poucos os grupos que, discordando das diretrizes do PCB, se lançaram à luta armada, como por exemplo a ALN liderada por Carlos Marighella.

25

A luta armada no Brasil já estava liquidada após os primeiros anos da década de 1970 (Gaspari, 2012). Com as guerrilhas sob controle e uma população assustada com a repressão, crescia a pressão civil em torno da abertura ‘’lenta e gradual’’ prometida pelo presidente Ernesto Geisel (1974 – 1978), sucessor do mandatário responsável pelo período de maior violência por parte do Estado, Garrastazu Médici (1969 – 1974).

Na verdade, a distensão ’lenta, gradual e segura’ iniciada pelo sucessor de Garrastazu Médici, Ernesto Geisel, logo depois de assumir a presidência da República, fora o caminho encontrado pelos militares, que se viam numa encruzilhada e buscavam uma saída para o regime, que começava a dar sinais de que não poderia ir muito longe mantendo-se a ferro e fogo. A abertura não era, portanto, mera concessão. E foi graças a este processo que os militares conseguiram permanecer no poder durante mais 11 longos anos. (Dantas, 2012:62)

Com a guerra contra as guerrilhas ganha, divergências no próprio campo dos promotores e aliados da ditadura começaram a ganhar espaço.

Um verdadeiro furacão se formava em torno das disputas entre as diferentes linhas do exército. A abertura prometida por Geisel transforma-se numa demanda da oposição tolerada, o MDB, a qual fazia coro o governador de São Paulo Paulo Egydio Martins (1975 - 1979), escolhido a dedo pelo presidente Geisel. Na contramão dos sinais que apontavam uma possível abertura, boa parte das altas hierarquias militares fazia “vista grossa” à tortura, confirmada nos autos (secretos) do Superior Tribunal Militar (Arquidiocese de São Paulo, 1985). Os generais sabiam que a tortura escancarada era um tiro no pé da ditadura. Um regime que defendia a moral e os bons costumes se preocupava em transformar qualquer execução em “um grande tiroteio”, como no caso de Iara Iavelberg e Chael Charles Schreier, ou um “acidente de carro” como no caso de Gelson Reicher, ou mesmo “suicídio”, versão que seria usada pelos militares no caso Herzog.

A preocupação em não oficializar a tortura e a violência do regime militar, ainda que em muitas ocasiões não redundasse na sua negação, dava-se no sentido de prevenir a formação das provas contra as versões criadas pelos médicos legistas, que assinavam laudos de óbito sem sequer olhar os corpos.

Geisel afirmava publicamente ser contra as torturas, o que certamente criava algum receio entre os militares no comando do DOI-CODI. O “porão” acreditava que o seu trabalho era essencial à manutenção da ordem, mas temia ser abandonado por seus

26 superiores em uma abertura “descontrolada”, como será o caso da Argentina alguns anos a frente.

Geisel oscilava entre a determinação de prosseguir com seu projeto de distensão e o que fazer para conter os ‘excessos’ do aparelho de repressão. Em várias oportunidades, ao tomar conhecimento de violências que considerava além da conta no combate à subversão, tomava-se de santa indignação, esbravejava, tinha explosões de ira contra os órgãos de repressão montados com a finalidade de garantir a segurança do regime. Chegou a dizer, ao tomar conhecimento de mais um ‘’excesso’’ do DOI-Codi de São Paulo em 1975: ‘’Tem que acabar esses DOIS, CODIS. São organizações espúrias (...). Se querem continuar, venham sentar aqui. O exército usa farda para um monte de sujeira e é uma instituição de honra? Vão a merda, Frota, generais, coronéis e o diabo. Um bando de covardes. (...). Me derrubem. Tão fácil.” (Gaspari, 2002:72).

Porém, dias depois, Geisel proclamava sua fidelidade à revolução e suas declarações na prática corroboravam as práticas do DOI-Codi. Elas representaram no fim um passo atrás para a distensão política. Um dos principais projetos contra a abertura política planejada por Geisel iria nascer exatamente nos porões do DOI-Codi em São Paulo. O general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército em São Paulo, considerava publicamente a não-existência de condições para a abertura política no Brasil. Em um primeiro momento, a luta contra a subversão havia focado na resistência armada, mas nesta nova fase o inimigo foi o PCB, que defendia uma luta não-violenta, e que estaria supostamente infiltrado junto ao MDB, ameaçando por dentro o “caráter da revolução”.

Os defensores da abertura política, como o próprio governador Paulo Egydio e o Presidente Geisel, acabaram se tornando oposição para a ultradireita que comandava o DOI-CODI. A disputa de Paulo Egydio para livrar das garras do DOI-CODI o arquiteto Eurico Prado Lopes, que também era casado com uma sobrinha do Marechal Ademar Queiroz, que havia sido Ministro da Guerra entre 1966 e 1967, com certeza incomodou o porão. Durante a noite, Paulo Egydio havia acordado o alto escalão do governo em Brasília para intervir na prisão de Eurico, que era um homem de esquerda, mas não representava nenhuma ameaça ao regime, nem possuía atividades ilegais relacionadas a resistência. ‘’A ordem de prisão foi suspensa, mas uma guerra surda, de bastidores, começou entre o governador e o comandante do II Exército. ’’ (Dantas, 2012:73).

27

Em 1969, Vladimir Herzog trabalhava como jornalista e era correspondente da BBC em Londres, para onde se deslocara com seu colega Fernando Pacheco Jordão. Ao fim do contrato de três anos, Vlado ainda escrevia sobre as saudades do país e a vontade de voltar. Com tudo certo para a volta, dias antes do embarque, ficou sabendo da instauração do AI-5. A volta ao Brasil estava organizada junto à TV Cultura com quem possuía um pré-contrato de trabalho, que foi cancelado assim que chegou ao país. A repressão entrava neste momento dentro dos jornais, rádios, e TV’s, e passava a controlar toda a imprensa. Do contrato prometido com a TV Cultura, Vlado foi trabalhar em uma agência de publicidade, mas apenas um ano depois conseguiu emprego junto a revista Visão.

A abertura lenta e gradual viu um primeiro sinal apenas em janeiro de 1975 quando o Estadão, como se recebesse um “presente” pelo seu aniversário de cem anos, viu os censores se afastarem um pouco do jornal. É neste contexto da abertura prometida por Geisel que Paulo Egydio irá nomear Vladimir Herzog como diretor de jornalismo da TV Cultura em 1975, através de seu secretário de cultura José Mindlin. Fernando Pacheco Jordão (2005) afirma que este fato também era entendido como uma “dívida” a ser paga pela TV Cultura a Vlado, que não pôde recusar a oportunidade.

O furacão criado pelo embate entre o MDB e a ARENA começa a crescer e atingir pessoas que até então não eram tidas como ameaças pelo governo. O ex-delegado Cláudio Guerra, que comandava o DOPS do Espírito Santo, confessou a sua participação em ações que ajudariam a “construir o inimigo” que justificaria a existência e a violência do DOI-Codi. Desde o fim das guerrilhas armadas, a partir de 1972, os militares começaram a fabricar atentados que incriminavam a esquerda e produziam a prova de que não havia clima para abertura (Guerra, 2012:151).

Passado o momento do combate às guerrilhas, foi a vez dos políticos de uma esquerda que era contra a luta armada, como o PCB, e posteriormente chegou a vez dos jornalistas.

Se uma das principais características do regime foi a de suportar, e ao mesmo tempo esconder a violência de seus porões, os jornalistas eram os principais interlocutores, deste furacão que se formava. Paulo Egydio havia autorizado Vladimir Herzog para a direção de jornalismo da TV cultura após autorização do SNI. Portanto, na

28 visão do governador ele não representava ameaça, e certamente o encargo de Vlado nesta posição seria um recado à sociedade no sentido da abertura política. Herzog sempre defendeu a luta contra o regime pelos meios legais e era contra as atividades clandestinas.

Ao eleger Herzog para o comando da Cultura, é certo que o desconforto na linha dura se deu imediatamente. Paulo Egydio dava na mão de um jornalista que já estava há tempos inserido na lista de subversivos, o comando de um importante jornal que já havia sido palco de disputa entre Vlado e os militares em períodos anteriores. A filiação de Vlado ao PCB era a desculpa que os radicais do exército precisavam para construir a versão de que na realidade Herzog era um agente da KGB infiltrado no governo.

A preocupação do DOPS sempre foi esconder as provas e denúncias públicas de sua violência. Iniciar a abertura do sistema pela suavização do controle sobre a mídia representava um perigo fatal para estes órgãos. A censura começara justamente após grandes casos de denúncias das torturas, como o caso Chael Charles Schreier (que será detalhado mais à frente) que trouxeram a público o terror dos porões e obrigaram os mais altos escalões a dar as explicações. Esta situação também criou uma pressão interna por mais discrição por parte da polícia neste tipo de execução. A abertura das mídias representava um aumento nesta pressão interna sobre as atividades do DOI-Codi.

Com a dificuldade em censurar os jornais, começou a censura aos jornalistas. A lista de jornalistas a serem interrogados no DOI-Codi incluía o nome de Herzog, que apesar disso mantinha-se tranquilo, uma vez que entendia que não havia nenhuma acusação formal contra sua pessoa. Tranquilizava-o, o fato de ter sido escolhido pelo próprio governador para o cargo.

Apesar da desconfiança de autoridades do DOI-Codi, Paulo Egydio confiou em seu secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia, José Mindlin, que garantiu que Herzog era um profissional competente e sério.

A censura aos poucos começava a aparentemente aliviar a pressão, e no início de outubro de 1975, a TV Cultura leva ao ar um documentário sobre a resistência Vietcongue, o que foi entendido como uma provocação pela ultradireita.

No mesmo dia em que Vlado assumiu o jornalismo da TV Cultura, e antes que tivesse tempo de interferir diretamente na programação, estava no ar, no jornal

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do almoço, um documentário sobre Ho Chi Minh, líder do Vietnã do Norte, produzido pela agência inglesa Visnews. Em meio ao noticiário do dia, o documentário soava estranho, tinha todo jeito de uma peça de contrabando. Convicto disso, Vlado tomou uma decisão rápida, cirúrgica: mandou retirar o documentário da edição da noite. O passo seguinte, depois de ter certeza de que se tratara de uma armadilha preparada por um dos integrantes remanescentes da equipe do ex-diretor Walter Sampaio, foi demitir o editor responsável pela inclusão da reportagem sobre o Vietnã no telejornal (Dantas, 2012:153).

O então deputado da ARENA, José Maria Marin, fez no dia seguinte um discurso inflamado na Assembleia legislativa de São Paulo acusando “os comunistas” de terem tomado conta da TV Cultura, e convocando a polícia a tomar atitudes em relação a isto. No mesmo discurso, o deputado aproveita para tentar aliviar a pressão sobre o DOPS, rasgando elogios ao delegado Sergio Paranhos Fleury. Durante a Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” da Assembleia Legislativa Paulista, o deputado Adriano Diogo, presidente da comissão disponibilizou os áudios dos discursos proferidos na época por Wadi Helú e José Maria Marin, ambos da Arena. O primeiro inicia seu discurso citando uma importante obra da Sabesp que fora inaugurada no interior paulista. A obra era motivo de orgulho para o partido, porém, nenhum veículo da mídia oficial, como a TV Cultura, estava presente para registrar o feito. O deputado WadI Helú dirige seu discurso na Assembleia citando os artigos da “Coluna 1” de Cláudio Marques, onde denunciava a “comunização do canal 2”, com a complacência do secretário de cultura José Mindlin e do governador Paulo Egydio.

(...) Nós da Arena, desta tribuna, queremos externar nosso protesto. Não temos condições de lutarmos por um país democrático, por um regime democrático, quando uma própria instituição governamental fica solapando essa democracia. Não só com a sua ausência deliberada, mas muito mais do que isso, com sua presença “comunizante” no vídeo diariamente. Uma presença que enaltece e procura dar foros de grandiosidade a líderes de esquerda de outros países, que vem desgraçando outros povos. Procurando inculcar no espírito do povo brasileiro, de que este país é só miséria, de que este país é só pobreza. Porque na televisão Cultura canal 2, nós só assistimos jornais mostrando a miséria, mostrando a pobreza, mostrando a desgraça. E num país como o nosso que está em pleno desenvolvimento, num país como o nosso que constitui realmente um oásis no mundo de hoje, são estes elementos pagos pelo governo de São Paulo, na emissora de televisão do governo de São Paulo, que pregam a desagregação da nossa cidade, e do nosso povo. (...) (Assembleia Legislativa de São Paulo, 08/10/1975)

Na sequência, veio o aparte do deputado José Maria Marin:

30

(...) causa uma estranheza muito grande, quando os órgãos de imprensa do nosso estado já de há muito tempo vem levantando este problema, pedindo providências aos órgãos compententes, com o que está acontecendo no canal dois, nós não verificamos pelo menos nenhuma palavra de esclarescimento. Já não se trata de nem divulgar o que é bom, ou deixar de divulgar aquilo que é mau, se trata de uma grande intranquilidade que já está tomando conta de todos em São Paulo. (...) É um assunto comentado hoje, em quase todos os lares de São Paulo. E nesta parte nobre deputado Wadi Eluh, quero chamar atenção do Sr. secretário de cultura do Estado, do Sr. Governador, que venham a público esclarecer definitivamente estas denúncias que estão sendo levantadas pela imprensa de São Paulo, e de forma particular, corajosa inclusive, pelo jornalista Cláudio Marques. (...) Eu quero daqui, fazer um apelo ao Sr. governador: ou o jornalista está errado, ou o jornalista está certo, o que não pode perdurar é esta omissão. (...) É preciso mais do que nunca uma providência afim de que a tranquilidade volte a reinar não só nesta casa, mas principalemente nos lares paulistanos.” (Assembleia Legislativa de São Paulo, 08/10/1975).

Ao fim dos discursos, foi solicitado que uma cópia deles fosse enviada a José Mindlin e a Paulo Egydio. Momentos depois, o deputado presta as “devidas homenagens” ao delegado de polícia Sérgio Paranhos Fleury. José Mindlin havia escolhido e contratado Herzog para a direção jornalística da TV Cultura. Era membro do MDB, ou seja, membro da equipe de Paulo Egydio. Mindlin já era visto pelos radicais como moderado, e indicou o nome de Vlado, que seria de qualquer forma submetido à aprovação do SNI11. Os ataques do Arena, que começam com a sabotagem da equipe do ex-diretor Walter Sampaio, têm continuidade nos discursos de Wadi Helú e José M. Marin. Com apenas alguns dias à frente do jornal na Cultura, Herzog de repente se encontrava no centro da disputa sobre a abertura travada entre MDB e Arena. Parecia que a derrota da Arena no congresso não havia sido bem aceita, e desde de 1974 a tensão entre os dois partidos subia. A sabotagem da equipe de Wagner Sampaio lançou Herzog ao centro do ataque que visava atingir José Mindlin, Paulo Egydio, Geisel e assim todo o governo que caminhava no sentido da abertura política.

A prisão de jornalistas próximos a Herzog já acontecia gradualmente, até que os camburões do DOPS chegaram a porta da fundação Padre Anchieta, sede da TV Cultura. Era tarde da noite, e uma forte mobilização se deu na emissora para evitar que Vlado fosse levado às instalações do DOI-Codi. Antes de chegar aos estúdios, os militares haviam o procurado em sua residência e falado com sua esposa Clarice Herzog, que percebeu a movimentação suspeita em sua casa e conseguiu avisar a direção do canal em

11 Serviço Nacional de Informações

31 tempo hábil. Sob o argumento de que Vladimir Herzog não era um cidadão com motivos para fugir, e de que era extremamente necessária sua presença para o encerramento da edição do jornal, ficou acordado entre os militares e a diretoria que Herzog se apresentaria no dia seguinte àquela delegacia (Dantas, 2012:209).

Herzog se apresentou na manhã seguinte, acompanhado do colega Paulo Pereira Nunes, jornalista que era referência no contato com os militares, mas este foi imediatamente dispensado. Outros jornalistas presos como Rodolpho Konder e Paulo Markun, colegas de Herzog, reconheceram os gritos do jornalista no interrogatório que se alongou durante todo o dia12. Os militares queriam que Vladimir Herzog sustentasse a versão criada de que era membro infiltrado, não apenas do Partido Comunista, mas que era também um espião da KGB. Durante o interrogatório, com a falsa confissão já escrita, Herzog se irritou e picotou em pedaços a declaração mentirosa (Jordão, 2005). Teria sido este o fato que teria irritado os torturadores a ponto de levarem Herzog a óbito no mesmo dia.

A morte de Herzog nos porões do DOI-Codi teve um impacto muito maior que o “comum” para os mortos do porão. Mais do que a morte de mais um guerrilheiro, ela representava um ataque direto da ultradireita às aspirações de abertura que eram representadas na figura de Geisel e Paulo Egydio. A ideia inicial era a de que Herzog entregasse o nome de Paulo Egydio como envolvido na conspiração comunista. Se a mídia era uma ferramenta chave na manutenção ou na abertura do regime, o fato de ser o diretor do principal jornal estatal colocava Herzog como uma peça chave para atingir indiretamente os altos escalões do governo.

O fim da censura e a liberdade de imprensa eram algumas das principais ferramentas por onde se poderia esboçar uma abertura política, consequentemente eram também ferramentas que ameaçavam diretamente a atuação da linha dura dos militares e suas ações que não deviam sair do porão. A “ameaça” não passou despercebida, e logo se chegou aos diretores da TV Cultura, de Herzog, e de sua equipe. Se não podiam mandar os políticos defensores da abertura para o DOI-CODI, mandavam um recado ao prender

12 Ver em: Andrade, 2005.

32 seus jornalistas. O que não se esperava, é que desta vez, a repressão iria perder o controle dessa situação, que se tornará a chave para o desmantelamento do sistema repressivo.

Em um primeiro momento, a notícia da morte de Herzog foi passada pelos militares à direção da TV Cultura, que logo tratou de informar sua esposa Clarice Herzog, sobre o ocorrido.

Manhã de domingo, 26 de outubro: Cinco jornalistas presos – Paulo Markun, George Duque Estrada, Anthony de Christo, Frederico Pessoa da Silva, e Rodolfo Konder – foram chamados, um a um, para uma inusitada reunião. Todos estranharam a maneira com que foram convocados, sem os gritos costumeiros, sem ameaças. Permitiram-lhes que tirassem os capuzes. O que estaria acontecendo para que se alterasse aquele inferno? (Dantas, 2012:229)

Foi neste momento que o aparelho repressivo começa a construir a versão que devia esclarecer publicamente a morte do jornalista. Fora a tese de que havia se suicidado com o cordão do macacão que vestia quando estava preso, o porão tentou armar um esquema onde os outros jornalistas presos fossem responsabilizados publicamente por confessar e entregar as supostas atividades subversivas de Vlado. Com a imprensa manipulada e a fama de delatores, estes jornalistas estariam supostamente marcados pelos grupos de esquerda, o que ameaçava suas vidas pelos dois lados da disputa política no Brasil.

José Mindlin havia chegado aos EUA no sábado, mesmo dia da morte de Vlado. No domingo de manhã recebeu a notícia da morte, mas conseguiu vôo para São Paulo apenas na terça-feira. Ao chegar entregou ao governador uma carta de demissão.

Telefonei ao governador dizendo que eu estava voltando ao Brasil e que precisaria falar com ele logo que chegasse. (...) Fui procurá-lo com uma carta de demissão e ele me disse: Você está liberado porque este é o nosso combinado, mas se você sair você enfraquece a corrente de resistência contra esta ala radical do exército que comanda a repressão. Eles pegaram o Vlado pra pegar você, pegariam você pra me pegar, e me pegariam pra derrubar o presidente.13

O jornalista Mino Carta buscou contato com o presidente Geisel logo no domingo de manhã. Sabia que o presidente vivia isolado na Granja do torto e imaginou que possivelmente não estava sabendo, pois já havia tentado contato no dia anterior,

13 Ver em: Andrade, 2005.

33 pouco depois da prisão do jornalista. Em depoimento ao documentário “Vlado, 30 anos” ele descreve o momento:

Na tarde do domingo eu liguei (...) e disse para ele: General, eu o procurei na manhã de sábado porque o Vladimir Herzog havia sido preso. E agora ele morreu. E Ele começou a gritar: ‘’Mataram! Mataram!” Ele percebeu o que aquilo significava. Como a morte de Herzog significava uma luta pelo poder.14

O corpo de Vladimir Herzog foi entregue a família em caixão lacrado. Jornalistas e família se articularam para fazer a vigília do corpo no Hospital Albert Einstein, até que ele fosse levado seguido por uma multidão até o cemitério israelita do Butantã.

A cerimônia de sepultamento realizada na segunda-feira foi marcada por tensões: os funcionários da Chevra Kadisha se esforçavam para acelerar o sepultamento que não contou com a presença de um só Rabino. Apesar de chefe da área religiosa da Chevra Kadisha, o rabino Sobel estava no Rio de Janeiro no dia do enterro. A falta de um rabino foi noticiada com destaque na imprensa, sob a acusação de que o ritual não havia sido realizado completamente, ou seja, de forma digna. A revolta dos presentes por conta da pressa, e da ausência de um rabino, levou todos, em um movimento não planejado, de volta ao sindicato dos jornalistas.

Os jornalistas sabiam que havia uma reunião da diretoria marcada para as 20 horas, e alguns gritos informais, no meio do enterro, convocaram os jornalistas para se encontrarem às seis da tarde no sindicato. Audálio relata que nunca o sindicato havia estado tão cheio. Após o enterro, e antes da reunião geral, a diretoria do sindicato estava convocada para uma reunião com o II Exército.

Do encontro entre Audálio Dantas, então presidente do sindicato, e o comandante do Estado Maior do II Exército, Ferreira Marques, ficara combinado de que os militares iriam suavizar o “preceito da incomunicabilidade”. Apesar de o exército defender sua necessidade, os dias de visita foram estendidos de um para três, após o sábado próximo (um dia após o culto, que ainda não estava combinado). As visitas, que quando respeitadas aconteciam apenas aos sábados, poderiam acontecer às terças, quartas

14 Ver em: Andrade, 2005.

34 e sábados. Ainda na mesma reunião, informariam que os jornalistas presos seriam logo libertados.

Da assembleia que se tornou a reunião no sindicato, algumas discussões em torno do que fazer com colegas que denunciam outros colegas – em uma alusão clara a Coluna 1 de Cláudio Marques – a mudança imediata do nome do auditório do sindicato para Vladimir Herzog, e a proposta de se realizar uma missa de sétimo dia em homenagem ao colega. A cerimônia, não poderia ser uma missa devido ao fato de Vlado ser judeu, o que transformou o evento em um Culto Ecumênico.

No dia seguinte ao enterro e a reunião, na terça-feira, os jornalistas entraram em contato com Dom Paulo Evaristo Arns, que estava fora da cidade presidindo uma reunião de bispos do Estado em Itací. Dom Paulo relata a ligação de Dantas,

(...) queriam fazer uma homenagem religiosa, se fosse possível, até uma litúrgia compartilhada com os judeus. Se eu estava de acordo que isso fosse na Catedral.15

Os jornais publicavam as notas de repúdio do sindicato dos jornalistas, e o relato do enterro vinha com a consideração da revolta de amigos e familiares que saíram do cemitério israelita do Butantã com a certeza de que o rito judaico não fora feito em sua totalidade. O Rabino Sobel, que chegou a São Paulo após o enterro, viu na Terça-feira o tom dos jornais em relação a cerimônia, e deu entrevista ao jornal Estado de S. Paulo explicando a situação. Sua reportagem seria publicada apenas na Quarta-feira.

As cerimônias fúnebres do enterro de Vladimir Herzog realizaram-se por completo e de acordo com os ritos seguidos pelas correntes liberais da religião judaica, à qual os familiares de Herzog são filiados. Foram cerimônias normais, pois a Chevra Kadisha não encontrou indícios que comprovassem o suicídio do jornalista, o que implicaria a alteração dos procedimentos, inclusive o sepultamento em local diferente. (Sobel. apud, O Estado de S. Paulo, 29/10/1975:15)

15 Ver em: Andrade, 2005.

35

III

2ª aproximação à missa e as suas consequências

Uma manifestação claramente política, mas peculiar: uma multidão silenciosa. O antropólogo Antonius Robben (2008) em seu trabalho sobre violência política e trauma social na Argentina entre os anos 1940 e 1980, destaca o papel das multidões no próprio exercício da política neste país, uma política peculiar que imagina sistematicamente não apenas vencer o adversário mas anulá-lo e, eventualmente, eliminá- lo. As grandes manifestações viriam acompanhadas de barulho, correrias, consignas, brigas, enfrentamentos e mortes. Assim foi aquela que marcou o fim da ditadura militar na Argentina, naquele junho de 1982, quando da traumática derrota da guerra das Malvinas: a mesma multidão que ovacionara os militares quando do início do conflito em abril do mesmo ano e ocupara a Praça Rosada para saudar ruidosamente os generais, reúne-se para, mais uma vez, de forma ruidosa, enfática e mesmo violenta expulsar a Junta Militar que desde 1976 dominava a ferro e fogo o Estado na Argentina. As multidões no contexto argentino constituiriam uma linguagem de definição política e violenta daqueles que seriam os amigos, e que devemos apoiar incondicionalmente, e os que seriam os inimigos, que devemos expulsar, eliminar, calar.

O trabalho da Tambiah (1996) sobre as multidões sul-asiáticas destaca o caráter não menos violento destas grandes aglomerações nesta região do globo. O ataque a minorias étnicas far-se-ia em meio a uma dinâmica crescentemente violenta mas sujeita a uma dinâmica de rumores que desemboca rapidamente no pânico, na histeria e na fuga – e em inúmeras mortes. Aqueles que em sua agressividade anunciavam a vulnerabilidade dos outros revelam rapidamente sua mesma vulnerabilidade no medo que redunda numa súbita exposição à violência e à morte. Vena Daas (1990), na mesma região do globo, nos revela a aliança entre cálculo político e emoção na dinâmica das multidões.

Em ambos os casos, nos distanciamos da multidão silenciosa daquele culto ecumênico em memória de Vladmir Herzog naquele triste dia de 1975. O silêncio e a comunhão, própria das multidões, como lembra Elias Canetti (1995), não distanciou a

36 missa da política: as marchas silenciosas rumo à catedral, o apelo a não violência, a presença de mulheres e crianças, a dor expressa nos rostos daqueles que sem conhecer a Vlado pessoalmente choravam a sua morte constituíram atos plenos de sentido político. E tais atos mostraram-se decisivos para o começo do fim da ditadura militar no Brasil.

Com efeito, o fato do culto ecumênico não ter sido encerrado de forma violenta, para além de evitar prisões e possivelmente mortes, favoreceu enormemente o presidente e todos os que lutavam por um determinado modelo de abertura política. Elio Gaspari em “A ditadura Encurralada” (2004) apresenta um documento do SNI que avalia o desfecho pacífico do culto ecumênico:

Se tranquiliza no que se refere à manutenção da ordem pública, não deixa de causar a apreensão relativamente ao aspecto contestador. Igreja, imprensa e a classe estudantil – só para mencionar as áreas atualmente mais agitadas – comprovaram a possibilidade de se aliarem, sem desordem, numa posição comum de contestação ao governo ou, mais precisamente, aos militares. (...) Vem, então, a triste conclusão, que o analista aponta a contragosto: a opinião pública, na sua maioria, não acreditou na palavra oficial.16 (SNI, 3/11/1975 apud Gaspari, 2004:199)

A linha dura estava desmoralizada. A expectativa de que culto ecumênico terminasse com violência traduzia o desejo (frustrado) de justificar ações como as que culminaram na morte de Herzog. Os editoriais nos jornais do dia seguinte destacavam o fato do ato, maior protesto de massa desde 1968, ter sido encerrado de forma pacífica. Com efeito, seu caráter pacífico, se foi objeto de orgulho para os que preconizavam uma forma de luta contra a repressão e a ditadura, também representou alívio para setores do próprio regime que temiam um golpe da linha dura. O Inquérito Policial Militar tão cobrado por Geisel aconteceria logo após o culto, apesar da interferência da linha dura neste processo.

Os instrumentos legais que sustentavam a censura continuavam valendo, mas aos poucos o episódio na praça da Sé serviu para que o controle sobre os jornais fosse gradualmente suavizado. Se em um primeiro momento, as redações foram claramente ameaçadas sobre a divulgação do culto, no dia seguinte os jornalistas possuíam outra

16 SNI. Apreciação Sumária nº11/Gab/75, carimbada como “secreto”, de 3 de novembro de 1975. AEG/CPDOC.

37 tranquilidade para falar sobre o tema. Alguns jornais chegaram inclusive a inserir o culto no contexto mais amplo da violência e da repressão (Dantas, 2012:323).

“Quem se desse o trabalho de fazer uma comparação entre os jornais que circularam no início de outubro, quando se iniciou a onda de prisões que culminou com o assassinato de Vlado, verificaria que depois do culto ecumênico eles abandonaram o silêncio e foram, aos poucos, assumindo seu papel de veículos de informação.” (Dantas, 2012:232)

A censura já havia sido parcialmente retirada do Estadão, e começava a dar sinais de que não sufocava mais a Folha de S. Paulo. O exército havia dado apenas um recuo, mas não definitivo. A matéria da revista Veja sobre Vlado e o culto ecumênico que estava para sair no fim de semana, apesar de não trazer nenhuma novidade, foi vetada pela censura. A figura do arcebispo Dom Helder Câmara, conhecido como “padre vermelho”, seria a prova para os militares de que o culto não era religioso e sim político.

A repercussão não foi o suficiente para derrubar um dos principais defensores da ultradireita, o ministro do exército Sylvio Frota, como desejavam os aliados de Geisel (Gaspari, 2004:205), mas bastou para preparar o terreno para o futuro remanejamento do Comandante do II Exército, general Ednardo D’Avila Mello.

IV

O Medo e a Coragem I

O clima de tensão e de medo dentro das redações após a morte de Herzog era generalizado. As reuniões no sindicato, vigílias e a presença no enterro e no culto ecumênico deixaram redações inteiras vazias. Aos poucos o sindicato já vinha se tornando outro “centro de informações” sobre presos e desaparecidos, da mesma forma que já o era a Catedral da Sé. As ações do sindicato eram milimetricamente calculadas: cada nota oficial, cada movimento, cada passo era dado sempre com a assinatura de diversos veículos. Cada jornalista intimado ao DOI-Codi era sempre acompanhado de outros diretores e nomes importantes do jornalismo. O medo era tamanho que nenhum jornal

38 seria capaz de levantar sozinho a bandeira desta resistência. Enfrentavam a censura, cuja atuação se havia recuado mas seu retorno pleno continuava sendo uma ameaça permanente. Por outro lado, começava-se a entender as pressões existentes sobre o governo. Ao lado da ameaça existente sobre jornalistas e sobre outros grupos constantemente sob suspeita, como os professores e estudantes universitários, a pressão sobre o governador, grupos políticos vinculados ao regime e mesmo sobre o presidente contribuíam para um clima de constante suspensão. “São Paulo, que naquela época era uma cidade cinza, parecia ainda mais cinza e as nuvens pareciam ainda mais baixas, como que anunciando que algo de mal poderia acontecer a qualquer momento”, falou-me alguém que viveu nestes ambientes naquele período. Logo no domingo pela manhã, enquanto a notícia da morte de Herzog se espalhava, os jornalistas já soltavam uma nota conjunta do sindicato a ser divulgada em diversos veículos de imprensa. A nota contestava a morte de Herzog sem, contudo, questionar abertamente da tese de suicídio, para além de destacar a responsabilidade do Estado sobre seus presos.

O sindicato dos jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo cumpre o doloroso dever de comunicar a prisão e a morte do jornalista Vladimir Herzog (Vlado), ocorrida ontem, sábado, nas dependências do Destacamento de Operações Internas (DOI) do II Exército em São Paulo. (...) Não obstante as informações oficiais fornecidas pelo II Exército, em nota distribuída à imprensa, o Sindicato dos Jornalistas deseja notar que, perante a lei, a autoridade é sempre responsável pela integridade física das pessoas que coloca sob sua guarda. O Sindicato dos Jornalistas, que ainda aguarda esclarecimentos necessários e completos, denuncia e reclama das autoridades um fim a esta situação, em que jornalistas profissionais, no pleno, claro e público exercício de sua profissão, cidadãos com trabalho regular e residência conhecida, permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança, que os levam de suas casas ou de seus locais de trabalho, sempre a pretexto de que irão prestar depoimento, e os mantêm presos, incomunicáveis, sem assistência da família e sem assistência jurídica, por vários dias e até por várias semanas, em flagrante desrespeito à lei. Trata-se de uma situação, pelas peculiaridades, capaz de conduzir a desfechos trágicos, como da morte do jornalista Vladimir Herzog, que se apresentara espontaneamente para um depoimento. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo comunica ainda que o sepultamento do jornalista Vladimir Herzog será realizado segunda-feira, às 10h30, saindo do velório no Hospital Albert Einstein, no Morumbi, para o cemitério Israelita, no KM 15 da rodovia Raposo Tavares. E conclama os jornalistas de todas as redações de jornais, revistas, rádio e televisão, sem exceção, a que compareçam, para prestarmos a última homenagem ao companheiro desaparecido. (Sindicato dos jornalistas, 27/10/1975)

39

Durante o enterro na segunda-feira, um dos presentes soltou um grito em meio ao silêncio convocando os jornalistas a comparecerem ao sindicato às oito horas da noite. Esta reunião não estava programada, o que sim estava agendada era apenas uma reunião da diretoria do sindicato. A presença maciça de jornalistas que nunca haviam pisado dentro do sindicato surpreenderia mais tarde esta diretoria. Enquanto preparavam o conteúdo do que viria a se tornar uma assembleia as oito da noite, pela tarde o sindicato recebeu um chamado do II Exército por telefone. Seus representantes, dentre eles Audálio Dantas e Fernando Pacheco Jordão, estavam convocados urgentemente a comparecer ao quartel para ouvir algumas palavras do exército antes de se reunirem com a massa de jornalistas. Ao chegar a base do II Exército, foram enquadrados com as supostas provas do suicídio de Vlado. As imagens chocaram os jornalistas que, se desde o primeiro momento duvidaram da versão de suicídio, agora tinham certeza do assassinato. Os militares argumentavam com “provas” fotográficas de que Vlado havia se enforcado com o cordão do conhecido macacão verde-oliva utilizado pelos presos no DOI-Codi. O detalhe é de que os jornalistas sabiam através de outros presos de que este famoso macacão não possuía nenhum cordão, o que serviu como prova aos jornalistas de que a versão dos militares não passava de uma cena de crime mal manipulada.

A versão da morte apresentada pelos militares, tinha como propósito fundamental intimidar os profissionais de imprensa e outros setores como aqueles vinculados à igreja, ao mundo das artes ou às universidades. A história impossível que os militares contavam, porém, acabou por fortalecer seus opositores.

Naquela mesma noite, de volta ao sindicato, uma massa de jornalistas se fazia presente formando uma assembleia. Ali, se decidiu seguir com algumas ações que seriam tomadas em conjunto em relação a resistência à repressão. Os jornalistas cobravam garantias do governo quanto à sua integridade física e o pleno direito ao exercício da profissão. Naquele momento, se decidiu também pela organização de um Culto Ecumênico em memória de Herzog. O desespero dentro das redações era tamanho, que se tentava de qualquer maneira furar o bloqueio e aproveitar a brecha dada pelo recuo do regime naqueles tensos dias.

Nos dias que se seguiram, enquanto os jornalistas no sindicato se reuniam para preparar o culto ecumênico que aconteceria no sábado, chegavam relatos dos que

40 eram mais próximos aos militares sobre a preocupação em relação ao evento. Os recados que vinham de rumores, e dos discursos dos deputados; davam conta de que apesar do ocorrido, isto não justificava protestos contra o regime, e nem seria tolerado que os tradicionais grupos de oposição ao regime se apropriassem da bandeira dos jornalistas. Dentre as conquistas dos jornalistas, em algumas semanas a maior parte dos presos no DOI-Codi estaria solta, e parecia que a tortura nos dias que seguiram a morte de Herzog entrara em “recesso”. Apesar disso, percebiam que era apenas um recuo tático. Não faltavam sinais de que a repressão ainda estava em cena.

O Senador Petrônio Portella falava ao congresso clamando de que ainda havia uma guerra em jogo, e que não seria tolerada a apropriação do caso para maiores agitações políticas. Os “observadores militares” dos jornais em Brasília já anunciavam que “o Governo usará todo o rigor contra a desordem” (Jordão, 2005:76).

Um dia antes do culto, chegava o “recado oficial” que os jornalistas de alguma forma já aguardavam. Toda a diretoria executiva do sindicato foi convocada novamente a se apresentar perante o II Exército. Os militares se diziam preocupados com estas assembleias no sindicato que ocorreram nos dias após a morte de Herzog, e que por diversas vezes durante esta semana os jornalistas estiveram no “limite da legalidade”. No fim da conversa, o aviso: “E muito cuidado com esse Culto Ecumênico que os senhores vão fazer amanhã” (Jordão, 2005, p. 76).

Nesta mesma noite, um dia antes do culto ecumênico que marcava 7 dias da morte de Herzog, na volta ao sindicato, a resposta e a posição final de Audálio:

Os jornalistas paulistas passaram uma semana de crise, luto e perplexidade. E no momento em que se reúnem para desabafar a sua mágoa, homenageando a memória do colega morto, estão firmemente dispostos a disponibilizar a sua dor ou explorar o Culto Ecumênico. A memória de Vladimir Herzog não deve ser transformada em álibi de maquinações ou manobras escusas e isso constitui ponto de honra para a classe, que, não só em São Paulo, mas em todo o país, soube superar tamanha e tão trágica perda com serenidade e equilíbrio, mesmo na condição de presa de violentos sentimentos de pesar e intranquilidade. Cada um dos participantes do Culto Ecumênico será um guardião dos desejos de paz e fraternidade, de segurança integral e de respeito à dignidade que todo homem merece. (Jordão, 2005:78)

Não bastasse o medo imposto pelas forças de segurança, havia ainda outra questão que preocupava o sindicato. Apesar dos aparentes avanços que estavam por vir

41 em relação à segurança da categoria, cerca de dez jornalistas seguiam na mão do DOI- CODI. Durante o enterro de Vlado no Butantã, três deles foram obrigados a comparecer ao enterro: Paulo Markun, Rodolpho Konder, e George Duque Estrada. Era uma amostra aos parentes e amigos de que estavam vivos. O fato de serem obrigados a se reapresentar ao DOI-Codi no dia seguinte pela manhã, fazia a diretoria do sindicato de certa forma se sentir responsável pela vida destes jornalistas.

No campo político, Geisel tentava reassumir o controle sobre os radicais e indicava isto com sua visita a São Paulo. Nos jornais sinalizava o excesso, mas indicava que não toleraria manifestações. Tentava colocar panos quentes ao afirmar que excessos como este não voltariam a se repetir.

O presidente Geisel encara a morte do jornalista Vladimir Herzog como “um episódio lamentável”, mas não vai permitir que as repercussões do ato sejam utilizadas para conturbar a ordem e gerar um clima de inquietação em todo o país. A informação foi prestada ontem em São Paulo por uma alta fonte do Governo acrescentando que “o que temos que fazer agora é desarmar os espíritos. ” (...) Aqui, cabe relembrar uma frase do general Golbery: “Segurem os seus radicais, que nós seguramos os nossos. ” (Estado de S. Paulo, 31/10/1975:15)

Ao presidente o culto ecumênico indicava um perigo a sua autoridade. O clima político já era bastante tenso, com a ARENA empenhada em provar que a administração Geisel estava tomada por comunistas. Se o Culto se transformasse em um protesto violento, estaria “provada” a teoria da Arena de que o clima não era para distensão política. Ninguém podia esperar que um evento desta proporção pudesse acabar em paz e silêncio. A única alternativa de Geisel, portanto, era fazer o possível para que ele não acontecesse. Como referência, havia a lembrança do caso do estudante Edson Luís de Lima Souto. Edson morreu assassinado pela repressão policial durante confrontos com estudantes. As missas realizadas no Rio de Janeiro contaram com o comparecimento da massa, mas nem por isso terminaram em segurança. Pelo contrário, as duas missas realizadas nas cidades terminaram com dezenas de feridos.

Geisel sabia que se o ato se realizasse, quem faria o policiamento seria o DOPS, liderado por Sergio Paranhos Fleury, armando a situação perfeita para o golpe Arenista. Se o Culto não acontecesse, somado a um possível remanejamento de Ednardo, a autoridade de Geisel estaria reafirmada perante o exército e a sociedade.

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Segundo Audálio Dantas, o cardeal Arns, ao saber da morte de Vlado, se perguntou: “Não sei se é hora de um protesto mais forte, quem sabe, sair pela rua.” (Dantas, 2012:259)

O cardeal estava em Itací presidindo uma reunião de bispos paulistas que organizavam ações mais sensíveis em relação a defesa dos direitos humanos. Do encontro saiu o artigo: “Não oprimas teu irmão”. O texto fazia menção direta a tortura:

Não é lícito efetuar prisões como frequentemente estão sendo feitas entre nós. Não é lícito utilizar no interrogatório de pessoas suspeitas métodos de tortura física, psíquica ou moral. (Dantas, 2012:291)

Dom Paulo já havia recebido e aceitado o convite sobre a realização do culto que estava para acontecer na Catedral da Sé. Alguns dias depois, já na logística do culto ecumênico a se realizar no sábado, Dom Paulo recebeu a visita de alguns militares.

Eles disseram: você indo lá, [sic] todos que forem mortos, porque tem 500 praças espalhados na Sé, e que com qualquer grito que alguém dê, ou qualquer manifestação que haja, eles tem a obrigação de atirar. E de atirar para matar. (Arns apud Andrade, 2005)

Eram dois secretários de Paulo Egydio que visitaram Dom Paulo:

(...) eram portadores de um apelo do governador para que o cardeal desistisse de celebrar o culto em memória de Herzog. Desfiaram argumentos, sendo o principal o do perigo de um conflito entre a polícia e os participantes da cerimônia. Tudo poderia acontecer na praça da Sé. Um dos visitantes sacou um argumento que imaginava ser definitivo para levar o cardeal a desistir: o morto era um suicida e, além de tudo, não era cristão: - O Senhor não pode rezar a missa, o Herzog era judeu. O cardeal respondeu que representantes de outras igrejas, entre os quais um rabino, estariam com ele na catedral, e a celebração seria ecumênica. Outro dos emissários interveio: - Mas pode haver tiroteio, mortes, e o senhor será o responsável. - Lá estarei para evitar mortes. O pastor não abandona suas ovelhas quando ameaçadas. - Haverá mais de quinhentos policiais na praça, com ordem de atirar ao primeiro grito. O arcebispo manteve-se inabalável, o secretário insistiu: - É um apelo do governador. Não vá, mande outro. - Digam ao governador que o arcebispo estará com aqueles que Deus lhe confiou. Agradeço a visita, mas digam ao governador que o povo se manterá calmo. Tudo mais ocorrerá por conta dele. (Dantas, 2012:305)

43

Os depoimentos de Markun e Konder para o documentário “Vlado, 30 anos” (Andrade, 2005) dão conta de que os militares tentaram justificar a morte de Vlado por seu suposto envolvimento em uma conspiração comunista. Os militares do porão falavam que sabiam de agentes infiltrados, e dentre eles citavam um Padre e inclusive um governador. Evidentemente, em caso de distúrbio, o próprio Dom Paulo, ou Dom Helder Câmara poderiam acabar presos pelo DOI-Codi. E no discurso do porão, uma vez naquele lugar, “poderia ser até o presidente que entra no pau! ”.17 O cardeal estava organizando um culto que podia se tornar um protesto, e já estava cercado por policiais do DOI-Codi; Era a isca perfeita para a construção da teoria Arenista de uma conspiração comunista que se infiltrava na mídia, na Igreja, e no Estado. O último apelo dos emissários do governador, era de que pelo menos enviasse outra pessoa.

Ainda na Quinta-feira, a noite anterior ao culto, dois militares procuraram o Rabino Henry Sobel dentro da Congregação Israelita Paulista (CIP). O culto já era de conhecimento público pois foi divulgado pelos jornais nesta mesma manhã. O rabino os recebeu em sua sala. Um deles era o próprio general Ferreira Marques, que anteriormente havia ameaçado a diretoria executiva do sindicato dos jornalistas.

Dois generais do exército vieram a CIP me buscar para conversar e tentar me convencer que eu não devia participar deste culto ecumênico. O culto havia sido noticiado na quinta-feira, então já era público. Um general,[sic] Marques, mostrou-me fotos, as fotos montadas de Vladimir enforcado. - Aqui Rabino. Aqui dá pra ver a verdade.’ Eu não falei. Eu fiquei quieto. Eu não queria uma confrontação com os militares. Eu olhei, e eu disse que ele foi enterrado na área nobre, porque a santidade da vida tem quer sempre respeitada. E nós acreditamos que Vladimir Herzog, embora não praticante, era um judeu muito valioso. - O seu lugar é aqui. Na sua sinagoga. Não lá. Não na Catedral.’ Eu fiquei quieto.18 Eles saíram. Eu liguei para o embaixador dos Estados Unidos em Brasilia para avisar sobre isso. E pedi a ele, o embaixador, manter contato com minha família em nova York caso alguma coisa acontecesse, Deus me livre. Nós não sabiamos o que esperar. Foi algo muito grave. E eu fui com medo, seria mentiroso de fazer a imagem de corajoso. Não era corajoso, eu só

17 Ver em: Andrade, 2005. Depoimento de Rodolfo Konder. 18 O Rabino Henry Sobel foi homenageado em uma cerimônia no dia 31/10/2013 por conta de sua partida para e encerramento das atividades cotidianas como Rabino em São Paulo. No discurso, fez uma ressalva a este trecho coletado meses antes para esta entrevista; Ao ser questionado pelo General teria dito: “Então vamos fazer um acordo. Você não diz o que um Rabino deve fazer, e eu não lhe digo onde estacionar os seus tanques”.

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cumpri o meu dever. E acredito que era importante para a comunidade judaica eu cumprir o meu dever. (...) (Sobel, 29/05/2013)

Após as ameaças, o rabino Sobel e Jaime Wright se reuniram com Dom Paulo para discutir o culto do dia seguinte:

E decidimos que o culto ecumênico era a nossa manifestação de repulsa, pública. A manifestação de repúdio contra as mentiras do governo militar daquela época. (Sobel, 29/05/2013)

Os estudantes da USP também enfrentaram ameaças constantes. O foco dos militares neste momento era a preocupação do apoio dos jornalistas ao movimento estudantil, que por sua parte, organizou-se para fazer o inverso: apoiar a resistência do sindicato dos jornalistas. Os estudantes escutaram o apelo do sindicato para que tivessem uma presença maciça, porém discreta. A dificuldade em chegar ao Culto foi enorme: a saída da cidade universitária estava bloqueada com revista aos carros que buscavam “material subversivo”, e as pontes de acesso entre a cidade universitária e o centro estavam bloqueadas. Um coral de estudantes da biologia que ajudaria na cerimônia não conseguiu chegar ao evento. Logo no início da cerimônia, os estudantes enviaram aos organizadores do Culto um recado sobre a não distribuição de material por parte dos estudantes. Temiam uma infiltração que poderia se tornar uma emboscada para deflagrar a violência.

A disputa entre a repressão e o movimento estudantil já era antiga, e os estudantes fizeram questão de que o recado fosse lido, já prevendo uma sabotagem por parte da polícia. Seria perfeitamente esperado, que agentes infiltrados como estudantes promovessem a agitação que legitimaria o início do golpe Arenista. A única maneira que restava aos estudantes, de não engatilhar o golpe, era seguir a recomendação do sindicato e comparecer discretamente. Sem panfletos, gritos ou manifestações.

Dentre os rumores da sociedade um pedido comum: para que as famílias levassem as crianças. Este apelo tinha algumas funções: com uma presença maior de crianças, acreditava-se que isso poderia inibir talvez um excesso de violência por parte da polícia. Outro aspecto importante é o fato de mudar o perfil do público presente. Junto dos jornalistas, padres, e estudantes, todos estes já alvos de teorias conspiratórias do Arena, estaria a figura da família. A tradicional família, saindo de um culto, é um alvo

45 diferente do que era esperado pela repressão, e um elemento a mais na tentativa de intimidar a ação policial. Podia-se imaginar que a imagem da agressão a famílias saindo de um culto, seria bem diferente da agressão a estudantes na praça da Sé, já tradicional palco de lutas.

Dom Helder Câmara também foi uma presença marcante e silenciosa na catedral. Sabia-se que sua presença despertava a ira dos militares, e compareceu sem falar uma só palavra.

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Capítulo 2: Tensões e Medo

I

As Tensões

A possibilidade de prisões e sequestros por parte dos órgãos repressivos era particularmente preocupante nos fins de semana. É nele que todos estão de folga e a comunicação e mobilização de amigos e parentes se tornava sempre mais difícil. Os carros do DOPS vieram buscar Vladimir no dia 24 de outubro à noite, uma sexta-feira, em seu local de trabalho. A Direção da Cultura reagiu a ordem dos militares imediatamente, alegando que Vlado era chefe do jornal e não poderia se ausentar sem grande prejuízo ao canal. O repórter Paulo Nunes, que era o contato da Cultura junto aos militares, telefonou ao coronel Paes (Godoi, 2014:464) e informou que Vlado estava trabalhando. O coronel autorizou que ele se apresentasse no dia seguinte às 8 horas, no portão principal do DOI- Codi.

Marquei local e hora no dia seguinte: Apresenta às 8 horas da manhã, no DOI. E ele [Nunes] levou lá. O Herzog chega e qual o procedimento do DOI? Identificação e vai ser interrogado.” (Coronel Paes, apud. Godoi, 2014:465)

Vlado era um jornalista conhecido e possuía endereço fixo, o que facilitava a argumentação dos diretores da Cultura. Ficou combinado que Paulo Nunes dormiria em sua casa para garantir que não fugiria e, na manhã seguinte, Vlado deveria se apresentar ao DOPS.

Ao se apresentar no portão do DOI-Codi, Paulo Nunes foi imediatamente dispensado e Vlado entrou sozinho na “Casa da Vovó”, apelido dado pelos militares que controlavam o DOI-Codi ao centro de tortura. Naquela prisão já haviam outros jornalistas presos, dentre eles os colegas Rodolpho Konder e Paulo Markun. Sob tortura, Markun havia citado alguns nomes de colegas, que certamente viriam a ser chamados. Já era conhecida entre os jornalistas as práticas de constrangimento da polícia. Mesmo quando os militares já sabiam os nomes que queriam, faziam com que os presos “delatassem” seus

47 colegas. Vlado não fugiu. Estava de consciência limpa por ter sua vida pública conhecida, e ter sido indicado pelo Secretário de Cultura. Seu nome havia sido aprovado pelo Serviço Nacional de Inteligência. Sabia que não havia acusação criminosa que coubesse a ele.

Rodolpho Konder e Duque Estrada, colegas de Vlado, reconheceram-no no DOI-Codi. Pela fresta do tradicional capuz preto, olhando para o chão, Rodolfo Konder reconhecia os sapatos que havia comprado com Vlado19. Momentos depois, enquanto estavam sentados no corredor, escutando os gritos da tortura, foram convidados a ver com os próprios olhos o que estava acontecendo e a convencer Herzog de que não adiantava negar nada. Ao sair da sala, continuaram a escutar os gritos, abafados pelo alto volume do rádio na sala. Foram os últimos a vê-lo com vida.

Após os momentos de terror que foram obrigados a testemunhar, já no fim da tarde, veio o silêncio. Os jornalistas que estavam no corredor foram chamados todos ao andar superior. Foram convocados a identificar pessoas em algumas fotos, mas não conheciam ninguém. Perceberam que havia algo estranho no ar, mas só futuramente saberiam que este movimento dentro do porão foi feito para que pudessem sair com o corpo que precisaria obrigatoriamente passar pelo corredor em que estavam. Rodolpho Konder narra em depoimento ao documentário “Vlado, 30 Anos” (Andrade, 2005), como soube da morte de Vlado, no domingo de manhã:

No dia seguinte o comandante do DOI-CODI chamou só os jornalistas pra dizer que ele havia se suicidado. Que era agente da KGB. O Markun protestou, e o general foi pra cima: vocês não sabem de nada! Nós sabemos inclusive que o governo brasileiro está infiltrado de agentes da KGB. (...) Vocês tem que entender que a pessoa entrou aqui, entra no cacete! Pode ser até o presidente da república! Caiu aqui, entra no pau!”. (Konder apud. Andrade, 2005)

Markun dá mais alguns detalhes sobre o discurso que estava sendo construído no porão. E que essa conversa pós-morte do Vlado tinha objetivo de mostrar para nós que o PCB não era dirigido pelos dirigentes que havíamos falado, mas sim por figuras insuspeitas e ilibadas como um general, um cardeal e um governador. Isso foi dito. Segundo que o PCB, que sabíamos que era reformista, que pregava a luta legal, que agia nas fimbrias do jogo democrático, não era a favor da luta armada. E terceiro, que o Vlado era agente da KGB.” (Markun apud. Andrade, Vlado, 30 Anos)

19 Ver em: Andrade, Vlado, 30 Anos.

48

Os agentes do DOI-Codi procuravam, assim, convencer quem fosse preciso de algo que fazia parte de sua autorrepresentação: de que eles eram os heróis da “revolução”, de que faziam o trabalho sujo “necessário” a nação, sem a influência de “infiltrados”, e que tinham uma missão suprema, quase religiosa, de livrar o país do comunismo. Faziam questão de dizer que seriam capazes de torturar até o Presidente se isso fosse preciso.

O corpo de Herzog chegou ao IML no mesmo sábado, em torno das 16 horas. Lá tiveram lugar os trâmites burocráticos necessários para liberação do corpo. Os laudos foram assinados pelo médico legista Harry Shibata, que admitiu ter assinado a documentação sem sequer ver o corpo (Jordão, 2005:137)20.

O Harry Shibata, que era um médico do IML [Instituto médico Legal], ele fez uma coisa assim... ele fez algum trabalho político, usando o termo, em alguns casos em que foi necessário apoio do IML pra você evitar o mal maior.” (Paes, apud. Godoi, 2014:470)

Os laudos atestavam o suicídio do jornalista e o corpo foi entregue no final da tarde ao Hospital Israelita Albert Einstein para que lá fosse realizado velório, seguido de posterior enterro no cemitério do Butantã.

Ao chegar ao Hospital, teve início o ritual judaico com o corpo e os preparativos para o enterro. Os cuidados com o corpo do morto são fundamentais no cerimonial religioso judaico.

O judaísmo acredita que após a morte o corpo não deve ser visto sequer por familiares. Desta forma, todo o cerimonial é executado por uma equipe da Chevra Kadisha, a instituição que cuida do processo ritual e burocrático até o momento do enterro. Alguns dos conceitos religiosos aqui expostos serão analisados pelo ponto de vista da própria Chevra Kadisha, pois temos aqui como objetivo analisar o significado político e social das ações, e não o aprofundamento na discussão de cunho religioso.

O primeiro passo no ritual judaico é a Tahará, que significa purificação e é um ritual de lavagem dos corpos com álcool. “Da mesma forma como um recém-nascido é imediatamente lavado e ingressa no mundo fisicamente limpo e espiritualmente puro,

20 Depoimento de Harry Shibata em audiência na 7ºVara Federal, 27/10/1978.

49 assim também aquele que parte é simbolicamente purificado através do ritual da Tahará (“purificação”)21. Este processo aconteceu ainda no hospital, nos momentos que precedem o início do velório. Da direção da Chevra Kadisha faziam parte os membros da Congregação Israelita Paulista, instituição judaica com origem no judaísmo liberal alemão, responsável pela recepção de um número significativo de judeus alemães refugiados do nazismo.

O corpo de Herzog não representava a primeira vítima judia do regime que chegava ao cemitério do Butantã. Em outras ocasiões, a tendência desta instituição sempre foi a de apoiar as versões da ditadura, apesar de, nestes casos, já ficar evidente o constrangimento tanto para militares como para famílias de vítimas. Havia um fato importante que seria decidido naquele momento do ritual: a versão da causa da morte enviada pelo Exército era a de que Vlado havia se suicidado. No judaísmo o suicídio é visto como um dos piores pecados que se pode cometer por atentar contra a vida, que seria o bem mais valioso entregue a cada ser humano por Deus. Quando se trata de suicídio, o ritual judaico é diferente e bem menos “honroso”. O morto deve ser enterrado em uma área especial do cemitério, de costas para as outras sepulturas. A cerimônia também tem rezas diferentes e mais curtas. O diretor máximo da CIP naquele momento era o Rabino Fritz Pinkuss, que durante estes dias tensos encontrava-se na Alemanha. Como o assunto era delicado e urgente, Erich Lechziner, funcionário da Chevra Kadisha encarregado do cerimonial, telefonou para Henry Sobel, o segundo na hierarquia e chefe do rabinato, para perguntar como proceder. Foi Lechziner que comunicou ao rabino Sobel (como ficou conhecido popularmente em São Paulo) que, diante das marcas corporais, não havia dúvida de que Vlado havia sido torturado. O rabino neste momento tinha que tomar uma decisão delicada entre seguir a política de sua própria sinagoga – acatar a verão oficial – ou absorver a indignação da família e os clamores crescentes de setores da sociedade. Ao rabino Sobel coube, naquele momento, a difícil decisão final sobre a realização do enterro como suicida ou não. A decisão do rabino foi a de ficar ao lado da família e enterrar Herzog em uma área distante da “quadra dos suicidas”. Os rituais judaicos em relação à morte são muitos, e alguns destes costumes começariam a entrar em choque com os interesses políticos envolvidos em todos os lados. Na mesma linha da

21 Ver em: Kadisha, 2014.

50 noção de que o corpo do morto não deve ser visto por ninguém após a morte, nem mesmo por seus familiares, existe o costume de que ele deve ser enterrado sempre “o mais rápido possível”. Adiar um sepultamento é considerado um desrespeito ao falecido, pois, segundo as místicas judaicas,22 a alma “só descansa” quando o corpo é enterrado. Uma exceção se abre nos casos do feriado de Yom Kippur e quando o indivíduo morre em um Shabat, o dia santo judaico que começa na sexta-feira ao pôr do sol, e vai até o pôr do sol de sábado. Não é objetivo aqui, de forma alguma, justificar determinadas ações ou comportamentos da equipe da Chevra Kadisha e do Hospital Albert Einstein através destes preceitos. O fato é de que estas entidades se valeram (inclusive no caso Iavelberg) dos argumentos religiosos para justificar o que faziam. Se cumpriam por ordem religiosa, ou por interesses políticos, não é o objetivo final desta discussão. O ponto é, que de alguma forma, boa parte dos costumes judaicos iria contra os interesses imediatos da família e dos jornalistas em um caso tão sensível à política nacional. A autorização para a realização do enterro de Herzog como “não-suicida”, ou seja, com todas as devidas homenagens e rituais, não foi questionada por ninguém da Chevra Kadisha, lembrou Sobel em entrevista, que destacou que no meio judaico não eram poucos os que se somavam à indignação crescente diante do assassinato evidente de Herzog. O caixão fora encaminhado no final da tarde de domingo para o velório no hospital, onde começaram a chegar amigos, familiares e apoiadores da luta que se iniciava. Uma nota divulgada pelo sindicato aos jornais convocava os jornalistas a prestar o apoio a família naquele momento. A presença em massa tinha também outros objetivos. Como era previsível, o velório não teria a tranquilidade esperada para este tipo de cerimônia. A família e os jornalistas haviam decidido manter o corpo acima da terra pelo maior período de tempo possível, como um atestado das atrocidades da ditadura. As autoridades, desta vez de ambos os lados do governo, desde o DOI-Codi ao MDB, a ninguém interessava que aquele momento de velório e sepultamento se alongasse. A “prova da tortura” exposta a todos, era um problema para ambas as linhas. A disputa entre os dois partidos era sobre o fato de Herzog ser ou não um agente da KGB infiltrado no governo, mas a transformação de seu velório em um ato político interessava somente à sociedade, com

22 Ver em: Luto no judaísmo, 2014.

51 exceção das organizações judaicas que foram “involuntariamente” envolvidas nestes acontecimentos.

A família exigia uma nova autópsia e a cerimônia de sepultamento estava marcada para a manhã seguinte, na segunda-feira. Para realizar o novo exame era preciso encontrar três médicos que se dispusessem a fazê-lo, o que não foi possível encontrar no hospital. Clarice Herzog, sua esposa, ameaçou levar o corpo para casa, mas foi coagida por membros da Chevra Kadisha. Em seu depoimento ao IPM, instaurado após a morte de Herzog, ela testemunha a ameaça de que fora objeto por um agente da Chevra Kadisha, que apresentava carteira do DOPS (Erich Lechziner) (Jordão, 2005). A intimidação teria freado o ímpeto por uma nova autopsia.

Seguindo a linha judaica de que o corpo morto não deve ser visto por ninguém se segue o velório de caixão fechado, ao contrário do que acontece no velório tradicional cristão, onde o caixão só é velado fechado em casos extremos. Considerando que o senso comum brasileiro não conhece os detalhes dos rituais judaicos de velório e sepultamento, esta cena remeteria não ao rito judaico, mas à prova dos abusos cometidos pelos militares. Os agentes da repressão eram vistos dentro e fora do Hospital, de forma ostensiva, e à paisana. A ameaça e o clima de medo eram constantes e se encontram no relato de qualquer pessoa que acompanhou estes acontecimentos. O DOPS, o hospital, a Chevra Kadisha, e o próprio Geisel (a quem interessava neutralizar a situação o mais rápido possível), estavam “protegidos” por um preceito religioso e somavam forças, ainda que o movimento não fosse exatamente articulado entre estes personagens, por um interesse em comum: que o enterro fosse acelerado. O corpo chegara ao Hospital no fim da tarde, e seria enterrado já no dia seguinte. Os jornalistas haviam convocado toda a categoria a prestar as últimas homenagens no velório e no enterro.

O clima de medo exigia uma mobilização de toda a imprensa. Temiam que durante a noite, funcionários do DOPS ou da Chevra Kadisha “sequestrassem” o corpo para acelerar o enterro. Temiam também pela família, pois sabiam que era prática comum punir os familiares próximos aos presos do DOPS, como havia acontecido dias antes com Paulo Markun, que fora preso junto com sua mulher, mesmo sendo de conhecimento geral de que ela não sabia de nada. Prenderam-na por pressão e constrangimento a Paulo Markun. Na manhã de segunda-feira, centenas de carros levaram uma multidão para

52 acompanhar o morto até o cemitério. Se o argumento para acelerar o enterro tinha uma justificativa religiosa, não poderiam sugerir com base na religião um “isolamento” da viagem do corpo até o cemitério. É uma Mitsvá, ou seja, uma “ação nobre” no judaísmo, o acompanhamento do morto do velório ao cemitério. E ainda que de forma involuntária, coletivamente, os jornalistas cumpriam este preceito, e não havia motivo religioso que argumentasse contra a caravana. Alguns fatores do ritual judaico certamente se somaram para formar ao fim do enterro a percepção de que ele não havia sido efetuado com a devida “dignidade”. A prática do enterro judaico prevê que os presentes acompanhem o corpo até o local de sepultura, vagarosamente, e realizando algumas pausas no meio do caminho, que simbolizam a “relutância” dos presentes em enterrar o morto. Neste caso, os relatos do enterro narram justamente o contrário. Enquanto família e sindicato se mobilizavam para realizar tudo com a devida calma, e aguardar a chegada do maior número possível de pessoas, os funcionários responsáveis pelo andamento da cerimônia pensavam o contrário. O clima de tensão ultrapassava a fronteira dos problemas políticos e avançava sobre esfera religiosa. A pressa em “se livrar daquele corpo incômodo” (Dantas, 2012:243) se traduziu nas palavras dos homens da Chevra Kadisha ao momento que o corpo atravessou o portão: “-Depressa, depressa, vamos logo!” diziam os funcionários. (Dantas, 2012:245)

Levando em conta o velório e sepultamento tradicionais no Brasil, outro fato possivelmente chamou a atenção dos presentes. A ausência de flores e homenagens, e um caixão simples, é outra cena típica judaica que destoa do costume nacional. No ritual judaico costuma-se utilizar um caixão em madeira, e é preferível que se minimize a madeira e as mortalhas, para que o falecido fique o mais próximo possível do solo.23 Hoje em dia, por exemplo, alguns caixões são feitos em papelão. Estas ações que simplificam as honras aos mortos, trazem o significado de que todos são iguais, e se fossem permitidas honrarias aos mortos, apenas os mais abastados teriam esta oportunidade.

O ritual segue, e contou com a participação do cantor lírico da CIP Paul Novak. O cantor participou da cerimônia realizando um rito que é em sua essência simples. São recitados alguns Salmos, seguidos de uma fala que traga as qualidades e bons exemplos da pessoa falecida, seguida de mais uma reza pela “elevação” da Alma do

23 Ver em: Luto no judaísmo, 2014.

53 morto. O ritual é simples e pode ser realizado por membros da família, ou até por um Chazan (nome dado à função religiosa do cantor lírico). O rabino Sobel estava no Rio de Janeiro no momento do enterro, e só conseguiu bilhete de volta a São Paulo para a Terça- feira. Nenhum outro rabino se dispôs a acompanhar a cerimônia, porém, isto não infringiu nenhuma regra ritual. Somando os fatos da simplicidade do enterro judaico, da pressa, e da ausência de um rabino (no ritual cristão a presença do padre é obrigatória), um sentimento geral de insatisfação tomou os presentes já indignados.

Durante a cerimônia, ouviram-se alguns gritos questionando até quando todos suportariam aquela violência, bem como outros convocaram todos à reunião do sindicato que aconteceria a noite. Os jornais publicariam no dia seguinte o não cumprimento de uma cerimônia digna, que foi logo em seguida, na terça-feira, justificada no Estadão pelo rabino Henri Sobel quando chegou a São Paulo. Antes de ir aos jornais, Sobel se reuniu com a família para explicar que tudo havia corrido de acordo com a tradição judaica.

As tensões envolvidas nessa decisão do rabino eram diversas e complexas, e para entendê-las é necessário retomar o que aconteceu nos casos anteriores que envolveram a morte de judeus nas mãos do DOPS em São Paulo, e que foram sepultados no cemitério israelita do Butantã.

II

O Medo e a coragem II

Chael Charles Schreier (1969)

Não é objetivo desta pesquisa detalhar exaustivamente cada caso que será apresentado, mas sim analisar os principais acontecimentos em um contexto geral. A melhor descrição sobre a história de Chael Charles Schreier, está apresentada no trabalho de Elio Gaspari,

54

“A ditadura escancarada’’ (2002). Chael era estudante de medicina, e largou o curso para ingressar na luta armada e compor o grupo de resistência chamado VAR-PALMARES24.

Era um homem gordo e corpulento, com 120 quilos, vistoso demais para circular pelas ruas sabendo que a polícia o procurava. Vivia trancado. Às nove horas da noite da sexta-feira, 21 de novembro de 1969, estava num aparelho da rua Aquidabã, 1053, no bairro do Lins de Vasconcelos, no Rio. Na casa de dois andares, sala, e três quartos, fazia alguns meses morava o casal Mauro Cabral e Maria Carolina Montenegro (e Chael, que chegara no chão de um carro). Pagavam quatrocentos cruzeiros de aluguel e fingiam viver a rotina dos casais jovens do bairro, mas alguma coisa neles chamava atenção. Alugaram a casa, oferecendo um depósito de três meses (preferência genérica das pessoas que não conseguem fiador e específica dos locatários de aparelhos, dos contraventores e dos caloteiros). Na época, a VAR tinha grandes planos; o maior deles era o seqüestro do ministro da Fazenda, Delfim Netto. No aparelho havia uma submetralhadora, uma espingarda, diversas pistolas e 3 mil cartuchos.

A casa estava sendo observada. Àquela hora onze policiais do DOPS a rodeavam. Mauro foi logo capturado, mas Chael e a jovem enfrentaram a polícia à bala e bombas feitas com canos de ferro recheados de pregos. Quando o aparelho estava tomado de gás lacrimogêneo, renderam-se e saíram da casa com os braços para cima. Mauro não teve tempo de abrir a tampa de caneta onde guardava uma cápsula de veneno. Chegaram ao DOPS com as roupas em frangalhos e algumas escoriações. (...) “Despiram-nos, e a primeira sessão de tortura foi coletiva”. Chael foi obrigado a beijar o corpo de Maria Auxiliadora. Espinosa teve a cabeça empurrada entre os seus seios. Levaram os dois rapazes para outra sala. Francisca foi deitada no chão molhado, e assim aplicaram-lhe os primeiros choques elétricos. Tinha começado aquilo que anos depois ela relembraria como os “intermináveis dias de Sodoma”. Recebia golpes de palmatória nos seios, e uma pancada abriu-lhe um ferimento na cabeça. Espinosa tomou choques com fios ligados à corrente elétrica de uma tomada de parede, amarraram-lhe a genitália numa corda e fizeram- no correr pela sala. A pancadaria cessou no fim da madrugada, quando Chael parou de gritar. Lauria mandou que Maria Auxiliadora vestisse sua roupa e acompanhou-a a enfermaria, onde lhe deram um ponto no ferimento da cabeça. O soldado que tomava conta de Espinosa disse-lhe: “Mataram seu amigo”. (Gaspari, 2002:169)

A prática de declarar os assassinatos nos porões como suicídio se tornou uma rotina comum dentro do DOI-CODI, e era o plano para o corpo de Chael. Porém neste caso o plano não saiu como o esperado. A hipótese de enterrar Chael como suicida esbarrou primeiro no fato de que a prisão dele e dos seus companheiros não foi algo discreto e chamou a atenção da mídia e dos vizinhos que sabiam que três pessoas haviam sido presas, e que apenas duas saíram com vida das instalações policiais. Em segundo

24 VAR-PALMARES é o grupo que surgiu da união da Vanguarda Armada Revolucionária, movimento de Carlos Lamarca, e do movimento COLINA (Comando de Libertação Nacional).

55 lugar, o laudo médico do CIE25 constatava que Chael dera entrada no Hospital já morto, e com marcas de tortura e espancamento que seriam impossíveis de terem sido realizadas por ele mesmo. Em terceiro lugar, o ritual judaico de sepultamento terminou por abrir o caminho para que a revista Veja escancarasse a tortura no país. O caixão de Chael chegou lacrado no cemitério Israelita do Butantã, e fora arrombado pelos funcionários do cemitério para a realização do ritual de lavagem do corpo. Parentes próximos acompanharam a cerimônia, e puderam constatar as marcas de tortura, porém, desta vez a dor de seus familiares ganhou uma reportagem importante na revista Veja. Na semana anterior, a mesma revista havia publicado uma entrevista de Médici dizendo que não aceitava a prática da tortura como ferramenta para repressão (Veja,1969,65:18-42). A matéria publicada na semana seguinte pela revista apresentou o atestado de óbito de Chael, junto do testemunho do irmão que esteve presente durante o processo de lavagem do corpo. Ao ver as marcas de tortura testemunhou à revista: “Ele apanhou como um cachorro”. (Veja,1969,66:20-25)

A ousadia da revista não passaria impune, e a partir deste momento, cada edição passou a ser analisada pelo DOPS que endureceu a censura.

O ritual judaico de sepultamento parece ter pego os militares de surpresa. A lavagem do corpo podia produzir a prova material da tortura no país. A direção do cemitério e as lideranças de instituições judaicas em São Paulo acabaram abrindo involuntariamente a brecha para uma denúncia gravíssima contra o regime. De repente, o Cemitério Israelita se tornou palco de toda uma denúncia contra a prática da tortura. Ao realizar todo o ritual de lavagem do corpo, o cemitério abraçou uma briga da qual a comunidade judaica havia evitado durante tantos anos: manter-se longe dos comunistas, e dos problemas com o governo. Além de uma posição política esta postura era justificada com o discurso da necessidade de proteção da polícia por conta do terrorismo internacional, e para evitar qualquer tipo de perseguição por parte do governo a esta minoria.

25 Centro de Informações do Exército

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Figura 2. Veja,1969, Ed. 65. Capa.

Figura 3. Veja,1969,65:18-42

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Figura 4. Veja,1969,66. Capa.

Figura 5. Veja,1969,66:20-25.

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Enquanto os movimentos de resistência ao regime militar se organizavam na clandestinidade, o exército se preparava para uma grande ofensiva, que tinha como principal meta liquidar as principais organizações subversivas. Esta ofensiva, descrita em detalhes por Elio Gaspari, tem início em julho de 1969. “Uma semana após a aula de tortura na 1ª Companhia da PE, ele anunciava: Passamos à ofensiva”. (GASPARI, 2002:162)

É nesta ofensiva que o aparelho de Chael é invadido pela Polícia, e onde começa a maior operação do exército contra as guerrilhas de esquerda. Os números de denúncias de tortura explodiram em 1969, e ao final de junho de 1970 (Gaspari, 2002:162), todas as organizações que algum dia chegaram a ter mais de cem militantes estavam destruídas. A unificação de esforços colaborou para o trabalho dos militares radicais, mas foi o porão que lhes garantiu o sucesso. A prática da tortura já era de conhecimento de todos os envolvidos na resistência política, apesar de não ser algo oficializado pelo governo, e por isto o caso Chael tornou-se um escândalo quando foram divulgadas as provas das condições em que foi assassinado.

A presença massiva da polícia durante a realização do enterro foi outro fato bastante destacado pela Veja e pelas testemunhas do sepultamento. Policiais à paisana estiveram na cerimônia para buscar e reconhecer possíveis elementos subversivos que viessem prestar as últimas homenagens. Diversos amigos de Chael que estiveram presentes foram intimados a depor nas semanas seguintes ao sepultamento.

Se o ritual judaico de sepultamento abriu a brecha para uma grande denúncia de violação de direitos humanos por parte da polícia, alguns cuidados foram tomados para que esta situação não se repetisse em casos futuros envolvendo judeus.

Iara Iavelberg (1971)

A segunda vítima judia da repressão, assassinada durante esta mesma ofensiva, era a namorada do Capitão Carlos Lamarca, um dos nomes mais procurados pelo DOPS. Iara Iavelberg, era psicóloga e aderiu à luta armada. Ingressou na resistência

59 através do movimento estudantil, e posteriormente entrou para a militância no MR-826 onde conheceu Lamarca.

Iara Iavelberg também tinha origem em uma família judia, e o mesmo cenário que causou a polêmica durante o sepultamento de Chael parecia estar se formando. Mais uma vez, o discurso policial acrescentava um elemento que poderia somar na polêmica do enterro judaico, e o “suicídio” de mais uma guerrilheira estava armado. O aparelho onde Iara residia em Salvador foi estourado pela polícia de maneira extremamente indiscreta: bombas, tiros, e fumaça, mais uma vez chamavam a atenção da vizinhança e da imprensa. Iara teria invadido um apartamento vizinho tentando se proteger quando foi assassinada pela Polícia. Vizinhos testemunharam os gritos de rendição de Iara, e confirmavam que mesmo assim escutaram o tiro que ceifou sua vida. A versão da polícia era a de que Iara havia se suicidado com um tiro no peito, quando se defrontou com a prisão iminente. Apesar da já tradicional versão de suicídio da Polícia, mais uma vez esta versão estava para ser traída por seus próprios médicos legistas. O atestado de óbito, que pode ser encontrado no Arquivo Público de São Paulo, expressa a dúvida transcrita de próprio punho pelo médico legista, em relação a esta versão policial. No campo “causa de morte” do atestado de Óbito, além da análise técnica que descreveu os motivos do óbito, o médico legista registra: “Morte Violenta. Suicídio?”.

26 Movimento Revolucionário 8 de outubro.

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Figura 6. Atestado de Óbito de Iara Iavelberg. Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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Se a polêmica com o caso de Chael incomodou os militares, um ano depois eles pareciam mais preparados para lidar com esta situação: apesar do barulho da invasão ao aparelho, as revistas e os jornais já se encontravam sob forte censura, e, portanto, proibidos de divulgar e questionar assuntos delicados ao exército.

Chegada a hora do sepultamento judaico, uma dinâmica diferente tomou conta do enterro. Além da já tradicional presença da polícia (ostensiva e à paisana) durante a cerimônia, constatada aqui por informes encontrados nos arquivos do DOPS do Acervo Público de São Paulo, o enterro foi uma “verdadeira operação de guerra’’ (Folha de S.Paulo, 23/09/2003:A8) Não foi permitido que o caixão lacrado fosse aberto para a realização do rito de lavagem do corpo, e fizeram com que o corpo, “suicidado”, fosse enterrado na área destinada aos suicidas, uma quadra especial dentro do cemitério judaico.

Em caso de suicídio, o ritual de sepultamento é diferente, e o corpo não passa pela lavagem ritual. Desta forma, a presença ostensiva da polícia pressionou o encaminhamento religioso necessário à preservação de sua versão oficial. Iara Iavelberg foi sepultada na quadra dos suicidas, mesmo sob os protestos de sua família que não aceitou nem a versão oficial, nem a postura da Chevra Kadisha. Porém, sem forças para lutar naquele momento, a família não conseguiu se mover contra esta entidade. Sua mãe estava abalada demais para tomar qualquer atitude contra o cemitério, e seus irmãos estavam exilados por motivos políticos.

A posição da Chevra Kadisha é um ponto a ser desenvolvido neste momento. Anos após o fim do regime militar, a família Iavelberg tentou iniciar um processo para que o corpo de Iara pudesse ser transferido para uma área nobre do cemitério, de forma a dar um ponto final honroso para a família neste caso. A negociação direta com a instituição não avançou. A Chevra Kadisha se recusou a realizar o traslado do corpo para uma área nobre do cemitério. O desejo de exumação exigido pela família não tinha a intenção de fazer a perícia ou produzir algum tipo de protesto contra os militares, mas apenas de encerrar na esfera religiosa este capítulo doloroso para a família. A posição contrária da Chevra Kadisha levou o caso à justiça comum.

Este processo não foi simples, e muito menos comum. Foi o primeiro caso em que a justiça brasileira se deparou com uma ação envolvendo vítimas do regime, que não pediam nenhum tipo de indenização financeira, mas apenas o traslado de um corpo

62 de um lado a outro do cemitério, além da realização dos rituais devidos a um judeu assassinado. A defesa da Chevra Kadisha alegava que o Estado estava entrando em sua jurisdição, o que é inconstitucional. Porém, a justiça entendeu que não intervia, uma vez que era um pedido da família, e o corpo só seria trasladado caso ficasse comprovada a hipótese do assassinato. Foi necessário, portanto, que além da exumação, fosse realizada uma perícia para constatar as causas da morte.

A perícia indicou que o projétil que atingiu o peito de Iara Iavelberg não tem as características de um tiro que pudesse ser efetuado por ela mesma, e a família, por fim, conseguiu realizar o devido enterro apenas no ano de 2002. Cabe acrescentar que durante o ritual de exumação, a Chevra Kadisha mentiu na justiça, alegando feriado religioso judaico para interromper a exumação durante seu processo. A família conseguiu às pressas reverter a situação, correndo contra o tempo, pois este intervalo poderia interferir nos resultados da perícia (Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, 04/03/2013).

Fazendo uma análise sobre o comportamento desta instituição durante os casos de judeus “suicidados” pela ditadura, vemos que a posição padrão era a de preservar a versão oficial do exército, e de certa forma, esta posição se estendeu até os dias de hoje. O desfecho do caso é um capítulo dramático, que só foi possível graças a uma decisão final da justiça, e foi denunciado publicamente na Comissão Estadual da Verdade pela própria família e seus advogados.

A princípio, é possível pensar duas hipóteses que indiquem o caminho para se compreender esta posição, que não foi questionada por nenhuma outra organização judaica paulistana, mesmo depois de quinze anos do fim do regime. O processo viu seu desfecho por ordem da justiça apenas em 2002.

A reação do Cemitério contrária às vontades da família em 1971, foi justificada com o discurso de que “era o que podia ser feito”, o que era um discurso baseado no medo e na coerção por parte da polícia política. Estender esta posição de relutância ao pedido da família, mais de quinze anos após o fim do regime, indicaria que o fantasma dos militares ainda não desapareceu, e de certa forma o assunto ainda é um tabu pois o medo segue presente. A outra hipótese possível, portanto, seria considerar que se tratava apenas de uma posição política institucional da Chevra Kadisha, onde optou pelo silêncio.

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As entidades que hoje chamam para si a representatividade da comunidade judaica são as primeiras e as mais fortes vozes a se manifestar em caso de qualquer ocorrência que envolva a comunidade ou a relação do Brasil com Israel, mas manteve neste caso e sobre estes temas o mesmo silêncio apresentado durante todos os anos de chumbo.

Gelson Reicher (1972)

Alguns meses após o enterro de Iara Iavelberg em 20 de agosto de 1971, outro judeu entraria para a lista de vítimas do DOPS. Gelson Reicher, membro da ALN27 conhecido também como Marcos, integrou o grupo de guerrilha tática armada da organização. Seu prontuário encontrado no DOPS menciona uma série de participações em operações da guerrilha como assaltos e panfletagens. Gelson era estudante de medicina, além de professor em curso pré-vestibular. Gelson participava também de pesquisas científicas e teatro universitário.

A ficha policial de Gelson encontrada no acervo do DOPS (Arquivo Público do Estado de S. Paulo) diz que ele abandonou o curso de medicina em 1970, e logo chegou a ocupar o “Comando Regional de São Paulo” da ALN, organização à qual pertencia também um dos principais procurados pelo DOPS, Carlos Marighella.

Aos 23 anos, Gelson foi fuzilado em janeiro de 1972 por membros da Equipe- B do DOI-Codi junto ao companheiro Alex de Paula Xavier Pereira (Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, 2014:177). Apesar do apelido de Marcos dentro da organização, seus documentos estavam em nome de “Emiliano Sessa”. A versão oficial da polícia é a de que os dois militantes foram mortos em decorrência de uma violenta troca de tiros que aconteceu na Av. República do Líbano, as 23:30, após um acidente com o carro que levava os dois, um fato que segundo testemunhas nunca ocorreu.

Apesar de tratar-se no caso de mais uma vítima com origem judia, a dinâmica de seu enterro foi diferente das encontradas nos últimos dois casos. Os documentos referentes a Gelson Reicher encontrados no DOPS indicam que a polícia conhecia muito

27 Aliança Libertadora Nacional

64 bem suas atividades, além de seu apelido dentro da ALN e do nome civil utilizado, “Emiliano Sessa”. Seu rosto era conhecido dos cartazes espalhados com fotos de procurados pela polícia. Depois do tiroteio ocorrido, os corpos dos dois militantes foram levados para o IML onde foram analisados por um antigo amigo da família de Gelson Reicher, o médico legista também judeu Isaac Abramovitch.

As imagens da autópsia mostram que o rosto de Gelson estava intacto, além de o corpo estar acompanhado pelo nome verdadeiro manuscrito, e que, portanto, seria facilmente reconhecido por qualquer um que soubesse quem era. O médico, por sua vez, realizou a autópsia do cadáver sob o nome de “Emiliano Sessa”, e junto ao cadáver de Alex os dois corpos foram enviados à vala clandestina do cemitério Dom Bosco no bairro de Perus, local que se tornou comum para o “desaparecimento” de pessoas que incomodavam o regime. A vala clandestina foi uma solução que o DOI-Codi encontrou para estes incômodos cadáveres, frutos de práticas oficialmente proibidas, mas que encontraram espaço para se desenvolver no porão do regime. Quando foi intimado a depor na CPI que investigou a vala clandestina do cemitério do Perus, o médico “alega não ter reconhecido o rosto do autopsiado”. A CPI do cemitério do Perus foi realizada em 1992 pela prefeitura de Luíza Erundina, mesmo ano da descoberta da vala comum. Dias depois do enterro, segundo o pai de Gelson Reicher foi o próprio Isaac Abramovitch quem avisou os familiares sobre o paradeiro do corpo, que foi exumado e enterrado no cemitério Israelita do Butantã. (Comissão especial sobre mortos e desaparecidos políticos, 2015)

Ana Maria Nacinovic (1972)

Seguindo uma ordem cronológica, pouco tempo depois o DOPS fez mais uma vítima de origem judia. Ana Maria Nacinovic também integrava a ALN, e foi assassinada junto com outros três companheiros, Iuri Xavier Pereira (irmão de Alex Xavier Pereira, assassinado com Gelson Reicher), Marcos Nonato da Fonseca, e Antônio Carlos Bicalho Lana, após serem surpreendidos em uma emboscada armada pela equipe do DOPS. Os três foram reconhecidos pelo dono de um restaurante, que rapidamente avisou a polícia após identificar os clientes em um dos cartazes distribuídos com rostos de militantes.

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Os quatro foram alvos de rajadas de metralhadoras a plena luz do dia, em frente a população, enquanto saíam do restaurante. Alguns dos documentos de Ana Maria Nacinovic foram encontrados junto à documentação de outros militantes que depois de mortos tiveram como destino a vala clandestina do cemitério de Perus. Contrariando a versão oficial, a Comissão Nacional da Verdade (2014) apurou que os corpos destes militantes não foram encaminhados diretamente ao IML mas sim à sede do DOI-CODI. Exames realizados após a exumação dos corpos indicaram sinais de violência que não estavam descritos nos laudos oficiais. Os quatro pertenciam a mesma organização armada, a ALN, e os laudos necroscópicos estão assinados novamente por Isaac Abramovitch, que também integrava a equipe do médico legista Harry Shibata, nome conhecido nas fraudes destes laudos.

Suicídios, tiroteios, e atropelamentos, frequentemente encobriam as marcas da tortura. Estas necropsias eram realizadas durante a madrugada no IML onde poucos estariam presentes. Isaac Abramovitch foi preso em 2008, quando a Polícia de São Paulo desmontou sua clínica de aborto que funcionava em Pinheiros. Apesar de alegar inocência durante a CPI do cemitério Dom Bosco em 1992, o médico assinava o atestado de “Alexandre Vannucchi Leme, no qual afirma que o estudante teria se atirado sobre um automóvel. Presos políticos e policiais confirmam que Alexandre foi torturado’’ (O Estado de S. Paulo, 20/3/2008:50).

*

Vale destacar que a ideologia socialista defendia uma vida distante da religião. É absolutamente compreensível, partindo apenas deste princípio, que estes jovens militantes mantivessem distância de qualquer organização dentro da comunidade judaica. Se o centro político da comunidade perambulava entre a religião e o sionismo, o desinteresse mútuo torna-se algo esperado. Portanto, nenhum tipo de manifestação – fora o mais absoluto silêncio - foi ouvida dos representantes de instituições judaicas frente a estes casos. Se os casos de Chael Charles Schreier e de Iara Iavelberg caíram como uma bomba nas mãos da Chevra Kadisha, nestes outros casos, as lideranças judaicas puderam apenas manter-se em silêncio. Estes jovens eram comunistas na visão destas instituições, e bandidos na visão do governo. Para alguns setores judaicos, nada mais seriam do que

66 militantes de esquerda que nasceram por acaso em uma família judia. É provável que para muitos destes jovens, a pergunta sobre sua religião não tivesse como resposta o judaísmo, porém, suas famílias naturalmente reivindicavam esta questão no momento da morte de seus filhos.

A reivindicação destes corpos para cumprimento dos rituais judaicos colocava sempre a Chevra Kadisha como cúmplice do regime ou como opositora: o ritual de lavagem dos corpos constataria em muitos casos as marcas de tortura, que eram sempre escondidas pelos relatórios dos médicos legistas do DOPS e pelos caixões lacrados. Apesar de o número total de vítimas judias assassinadas dentro dos porões da ditadura até este momento não ser tão grande, as situações que envolveram Chael Charles Schreier e Iara Iavelberg fizeram barulho suficiente tanto para a comunidade, que certamente se viu potencialmente refém de uma situação que esteve evitando, como para a polícia, que se preocupava em não produzir provas da tortura.

Os últimos dois casos, Gelson Reicher e Ana Maria Nacinovic passaram distantes desta polêmica no momento em que seus corpos foram enviados para a vala clandestina do Perus. O corpo de Gelson Reicher chegou dias depois ao Butantã após a exumação no Perus, mas por ter morrido “em tiroteio” não causou problemas religiosos em torno do suicídio.

O problema dos corpos assassinados nas dependências da polícia parecia ser uma questão incerta, e as estratégias seguiam mudando. Em um primeiro momento, a prática de inventar um acidente, tiroteio ou suicídio, enviando um caixão lacrado às famílias, era cada vez mais problemática, principalmente após casos “mal-sucedidos” como de Chael Charles Schreier. As causas de morte das versões apresentadas pela polícia, muitas vezes encontravam testemunhas que desmentiam alguma informação na mídia, ou dentro até mesmo da estrutura militar. Eventualmente, setores militares procuravam não se responsabilizar pela sujeira do DOI-Codi. Este tipo de violência começava, portanto, a ficar cada vez mais sensível à sociedade brasileira como um todo, aumentando a importância de manter estas práticas clandestinas “em baixo do tapete”.

A preocupação da polícia com o destino dos corpos torturados ajuda a explicar o motivo de não encontrarmos mais exemplos até este momento, desta delicada situação em que teria se envolvido a comunidade judaica paulistana, através da Chevra

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Kadisha, cada vez que um militante chegasse assassinado pela polícia e declarado como suicida.

Quando este ritual de lacrar o caixão e forjar o laudo necroscópico se mostrou arriscado, o DOI-Codi paulistano adotou uma nova tática: criar uma vala clandestina no cemitério Dom Bosco, e enterrar os militantes (junto de seus documentos falsos) como indigentes. Elio Gaspari (2002) relata que em meados de 1972, as principais grandes organizações clandestinas de resistência ao regime estavam esfaceladas pela perseguição do DOI-Codi. A esta altura, a tortura havia vencido o terror.

Nem por isso a luta terminou por completo, mas certamente perdeu muita força e os corpos destes presos tinham destinos cada vez mais violentos. Outra vítima de origem judia, que não era paulistana, mas também foi capturada pela equipe de Sergio Paranhos Fleury, delegado torturador do DOI-Codi em São Paulo, foi Pauline Reichstul. Pauline foi torturada até a morte junto com alguns companheiros, quando foram surpreendidos pelo episódio que ficou conhecido como “Massacre da Chácara São Bento”. O corpo de Pauline foi enterrado com identidade desconhecida e trasladado anos depois para São Paulo. Mesmo nos casos em que os corpos destes militantes são enterrados no cemitério Israelita, isto acontece após a versão de morte destes militantes como Pauline ou Gelson já estar afirmada publicamente culpando os indivíduos por sua resistência. A possibilidade de um enterro judaico completo já fica difícil quando o traslado do corpo é feito apenas muito tempo depois. A esta altura, já se tratam de traslados de ossadas, e não de funerais.

Ana Rosa Kucinski (1974)

Mais uma vítima com origem judia é Ana Rosa Kucinski, que também teve seu rosto espalhado pelos diversos cartazes com fotos de indivíduos procurados pela repressão. Ana Rosa saiu para se encontrar no centro da cidade com seu marido Wilson Silva, e esta foi a última vez em que foram vistos. A única informação dela que consta nos arquivos do DOPS diz respeito à data de sua prisão.

Uma nova explicação sobre seu destino veio à tona em 2012. O ex-delegado do DOPS do Espírito Santo, Cláudio Guerra, era um dos principais nomes no que se refere

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à repressão política. Passados mais de vinte anos da ditadura, o delegado hoje se dedica a religião evangélica e fez a seguinte declaração para um documentário publicado pela Globo News (2012): “Não tenho medo da Justiça, tenho medo apenas de Deus”. A frase é utilizada para justificar o lançamento de seu livro “Memórias de uma Guerra Suja” (2012) que acabara de lançar, e onde relata alguns casos de desaparecimentos dos quais participou, e cita dentre eles o de Ana Rosa Kucinski.

O uso deste livro como fonte de referência interessa apenas na medida em que dá alguma pista sobre casos que até então não possuíam nenhuma explicação. As versões relatadas pelo ex-delegado no livro são objetos de discussão sobre os nomes envolvidos nos assassinatos. Cláudio Guerra afirma que apenas cuidou de desaparecer com corpos, e não de matar e torturá-los – contradizendo versões de militantes. Nesta publicação o autor confirma a preocupação, e a frequente mudança “tática” da polícia em relação aos corpos:

Em determinado momento da guerra contra os adversários do regime passamos a discutir o que fazer com os corpos dos eliminados na luta clandestina. Estávamos no final de 1973. Precisávamos ter um plano. Embora a imprensa estivesse sob censura, havia resistência interna e no exterior contra os atos clandestinos, a tortura, e as mortes. Tínhamos problemas com pressões políticas fortes. A primeira tentativa foi a de um intercâmbio de cadáveres. A equipe do Rio passou a despachar os corpos para São Paulo e vice-versa. Mas isso não foi o suficiente para manter a discrição dos corpos. (Guerra, 2012:50)

Cláudio Guerra desenvolveu uma boa relação com usineiros e fazendeiros do interior do Rio de Janeiro, em decorrência de um acordo de fornecimento de armas que estes fazendeiros necessitavam para se defender dos ataques na guerra do campo.

Eu me lembro muito bem de um casal, Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva, por conta de um incidente no caminho entre a rua Barão de Mesquita e a usina. Eu e o sargento Levy, do DOI, fomos levar seus corpos. Os dois estavam completamente nus. A mulher apresentava muitas marcas de mordidas pelo corpo, talvez por ter sido violentada sexualmente. O jovem não tinha as unhas da mão direita. Tudo levava a crer que tinham sido torturados. Não havia perfuração de bala neles. Quem morre de tiro não sofre. Morte por tortura é muito mais desumano. Eu não prestava muita atenção nos detalhes dos cadáveres que transportava. Até porque eles nos eram entregues dentro de um saco. O

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problema é que, quando estávamos indo do Rio em direção a Campos, já quase chegando lá, bem naquela reta da estrada, o Chevette em que viajávamos pegou fogo. Os corpos do casal não tinham sido afetados pelo incêndio do carro. O que fizemos? Simplesmente saímos do veículo. (...) Enquanto esperávamos, passou uma viatura policial. O sargento Levy se apresentou como militar, explicamos que o carro seria rebocado, que já havíamos pedido socorro, e nos liberaram. Logo depois chegaram João Lysandro, filho de Heli, Vavá e Zé Crente, funcionários da usina, que rebocaram os carros. (Guerra, 2012:56)

A usina mencionada no caso teria seu forno utilizado pelos policiais para incinerar cerca de dez corpos, cada caso descrito neste livro, e entre eles o de Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva em abril de 1974.

Para a comunidade judaica paulistana a repressão política no Brasil era um problema, não por algum tipo específico de perseguição aos cidadãos judeus, mas devido ao impasse que o enterro de um comunista “suicidado” poderia potencialmente provocar. A lavagem dos corpos e o local de enterro dentro do cemitério seria sempre uma pedra no sapato dos militares que se esforçavam em não oficializar a tortura como prática.

A tortura não era absolutamente negada, mas era classificada pelas autoridades como algo ilegal e que “devia ser investigado”. Mesmo com as denúncias acatadas pelo Superior Tribunal Militar, expostas publicamente em 1985 no material disponibilizado pelo projeto Brasil Nunca Mais, os responsáveis por estes crimes nunca foram punidos.

Toda vez que um militante de origem judaica fosse assassinado, uma delicada operação teria que ser levada em conta para encobrir a tortura, que já era objeto de pressão da sociedade, como confirmou Cláudio Guerra em seu livro. A morte do jornalista Vladimir Herzog teve uma dinâmica diferente dos assassinatos políticos que ocorreram até aquele momento, e consequentemente deflagrou uma das maiores crises na repressão política da ditadura militar, facilitando, ainda que de forma “lenta, gradual e segura”, a abertura política brasileira.

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III

Os Judeus e o medo

A tragédia envolvendo a delegação Israelense e o grupo terrorista setembro negro nas olimpíadas de Munique em 1972, não se encerrou na vila olímpica. O Mossad, serviço secreto israelense, deflagrou uma operação secreta para prender os líderes da organização que estavam espalhados em vários países. Com uma parte deles presa, e a outra assassinada, o setembro negro se moveu de modo a libertar seus presos, e pôs em alerta as polícias e comunidades judaicas ao redor do mundo.

Documentos relativos ao acompanhamento desta movimentação foram encontrados durante a pesquisa nos arquivos do DOPS. Os atentados de Munique são um marco na internacionalização do conflito Israel-Palestina. Pouquíssimos casos envolvendo ataques às instituições judaicas de São Paulo foram encontrados no Acervo público de São Paulo, que traz documentos envolvendo ataques de outra natureza: um deles sobre a prisão de dois menores, desvinculados de qualquer organização, foram presos enquanto pichavam suásticas no muro do clube judaico “A Hebraica”; outro caso diz respeito à depredação de túmulos do cemitério Israelita do Butantã, onde não foram encontrados suspeitos. Nada indica que este tipo de ação tenha sido realizada por grupos de extrema-direita, ou mesmo por terroristas internacionais, uma vez que se tratam de casos menores, e uma pesquisa mais profunda no acervo permitiu a visualização de que a polícia estava infiltrada e conhecia as atividades dos grupos ultradireitistas da cidade.

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Figura 7. Lista de terroristas vigiados pelo DOPS. Acervo Público do Estado de SP. 1/8/1973..

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Um comunicado com destino ao diretor do DOPS, e datado de 30/10/72, afirma28:

Comandos Palestinos pensam em sequestrar um embaixador da Alemanha Ocidental em qualquer país Latino Americano para trocar por guerrilheiros sobreviventes de Munique. Em agosto último nove Árabes chegaram em Bogotá dia vinte e três vias aérea procedentes de Beirute. Sem Autorização para permanecer, três regressaram e seis prosseguiram para Quito, e não para a Venezuela por irregularidades dos documentos. Alguns diziam ser turistas e tentavam visitar a família na Venezuela. Possuíam idades entre dezenove e vinte e cinco anos. Alguns conduziam na bagagem uniformes militares. Tinham pouco dinheiro. (...)’’ (DOPS, 1972)

A situação das entidades judaicas em São Paulo evoluía, até que a sede da CENTRA (Uma associação de comunidades e organizações israelitas da América Latina) se instalou na cidade. A conexão entre as diversas entidades não era apenas uma simples relação, mas é comum encontrar indivíduos que integram as diretorias de múltiplas instituições, o que favorece uma atuação em bloco por parte das organizações que se filiaram em torno desta entidade representativa. Wolfgang S. Siebner, por exemplo, era o Diretor de Relações Públicas da CIP, Diretor da Federação Israelita Paulista e membro do Executivo da Confederação Israelita do Brasil.

Começa a ficar mais nítido a partir deste momento, compreender alguns dos motivos que levavam estas instituições a responder seus problemas em bloco, e a se comunicar de forma unificada com as autoridades. Um comunicado ao delegado do DOPS assinado pelo Sr. Wolfgang com o intuito de apresentar a instituição, que mudava sua sede de Montevideo para São Paulo, informava as ameaças que ele e sua mulher receberam por telefone.

Ontem à noite, por volta das 20:00, pelo fone 815324, da residência do Presidente da CENTRA, a Senhora do mesmo recebeu a ameaça de que dentro de 30 minutos seria jogada uma bomba em sua residência. A ameaça foi externada por uma voz masculina, desconhecida, sem sotaque e aparentemente culta. De nossa parte, não sabemos a que atribuir este incidente. ’’(DOPS, 1973)

28 O trecho está editado, tendo sido retiradas as abreviações e siglas do original para facilitar a compreensão.

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Figura 8. Informe sobre a ameaça de sequestro de embaixador Alemão na AL para trocar por sobreviventes do setembro negro. 1972. Acervo Público do Estado de SP.

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Figura 10. Comunicado da CENTRA ao DOPS. Arquivo Público do Estado de S.Paulo

Figura 9. Comunicado da CENTRA ao DOPS. Arquivo Público do Estado de S.Paulo, 02/03/1973.

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Pelo modo como descreve e relata esta ameaça, este diretor afirma não saber do que se trata este incidente. É de se considerar que se estivesse desconfiado de terrorismo árabe, teria provavelmente mencionado o fato, além de que as organizações judaicas possuem contato constante com Israel, que monitora as atividades destes grupos terroristas através de seu serviço secreto, e possui, portanto, um rápido canal de comunicação com as principais organizações judaicas no mundo.

Bombas e atentados sem aparente explicação, mas principalmente sem investigação, se tornaram realidade no Brasil a partir do fim de 1972. Segundo Elio Gaspari, nesta época, as principais organizações de esquerda já estavam destruídas pela ofensiva do DOPS que começou no fim de 1969, e que se estendeu até meados de 1971. Uma confissão efetuada por Cláudio Guerra em seu livro é importante neste momento: o autor confirma sua participação em muitos destes ataques, como no conhecido caso da ‘’bomba do Rio Centro’’ realizado no Rio de Janeiro. Segundo o ex-delegado, com o fim das principais organizações clandestinas no país, uma forte pressão se esboçou no sentido da reabertura, e o primeiro passo deste caminho era o desmonte do DOI-Codi. O porão começou a fabricar o terror como forma de legitimar sua existência e seu da violência no Estado de exceção.

As ameaças e atentados tinham um perfil comum: diferentemente dos atentados realizados por grupos de esquerda, onde a polícia, se não encontrava, fabricava um culpado através da tortura, estes atentados permaneciam sem maiores investigações. Dentre o leque de instituições judaicas que recebiam ameaças, estavam residências de personalidades influentes como o Sr. Wolfgang, ou algumas escolas judaicas, como por exemplo, a Escola Renascença, localizada no Bom Retiro.

Outros documentos encontrados no acervo relatam não apenas a ameaça à escola, em meio a uma lista com aproximadamente outras quarenta instituições, como citam ainda um ato organizado pela OAB em São Paulo para exigir explicações sobre os atentados, inclusive acusando o governo de cumplicidade, na medida em que não os investiga.

É em meio a este contexto, que em julho de 1973 o clube “A Hebraica” é alvo de uma bomba instalada na tubulação de gás de seu restaurante. A bomba caseira explodiu, mas não o suficiente para danificar a tubulação. A polícia foi chamada, e o

76 boletim de ocorrência do caso está em meio aos arquivos do DOPS. O único documento relativo a investigação deste caso é o próprio Boletim de Ocorrência.

A bomba já detonada, em seus pedaços, encontrava-se com o Administrador daquele Club. Vistoriamos o local, e percebemos que a mesma havia sido amarrada a tubulação. Anteriormente uma rádio-patrulha, cujo número não conseguimos identificar esteve naquele local; Não tivemos notícia de que o distrito fora cientificado pela mesma. Através de Telex sugerimos ao 15ºDP, que comparecesse ao local, e solicitamos levantamento do mesmo através do Instituto da Polícia Técnica.

O fato em questão foi comunicado a Ciop, ao Sr. Delegado de Ordem Social, ao Gabinete do Senhor Secretário e ao D.O.I., (vide telex em anexo). Segue com o presente a bomba já detonada para posterior envio ao IPT.” (DOPS, 1973).

Pouco foi pesquisado até o momento sobre como se deu esta relação direta entre dirigentes da comunidade e as autoridades de segurança. A comunidade judaica, como minoria, buscava naturalmente uma boa relação com as autoridades de segurança, principalmente em um contexto turbulento de terrorismo internacional ao qual todas as comunidades judaicas eram alvos em potencial. A relação foi respeitosa e era alimentada por um interesse particular no que se refere a sua segurança. Além disso trata-se de uma minoria formada por filhos de refugiados, que viu estruturas comunitárias alinhadas à esquerda serem desmontadas durante a ditadura Vargas.

O problema deste relacionamento acabou por cair nos ombros das famílias que tiveram seus filhos judeus envolvidos na resistência, mesmo que estes optassem por negar a religião. As mentiras fabricadas pelo DOI-Codi começaram a provocar uma tensão nestas famílias, especialmente no exemplo do caso da família Iavelberg, que não pôde realizar a cerimônia judaica de sepultamento como queria. Este tipo de situação delicada envolvendo os sepultamentos judaicos de “suicidados” em São Paulo, não se repetiu mais entre 1972 e outubro de 1975, e só voltou a aparecer com força tanto para a Chevra Kadisha, como para os militares, no momento em que Vladimir Herzog é assassinado nos porões do DOI-Codi.

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IV

1975 e o voto brasileiro na ONU

Com a vitória de Geisel para a Presidência em 1974, veio junto a promessa de uma nova política externa para o país, uma política que levaria mais em conta os fatores pragmáticos do que os políticos.

No dia 26 de outubro de 1975, um dia após a morte de Herzog, os judeus de São Paulo viam duas notícias nos jornais que chamaram a atenção. A primeira delas, sobre a morte de Vladimir Herzog. Quando aparece a figura de um judeu assassinado pelo Estado, sem julgamento, e aparentemente sem motivos, naturalmente se acende um alerta em qualquer comunidade judaica. Outra notícia era motivo de preocupação nestes dias para os judeus: o Brasil confirmava sua intenção de votar a favor da resolução 3379 da Assembleia Geral das Nações Unidas. A resolução concluía que “O Sionismo é uma forma de racismo e discriminação racial” (ONU, 1975).

Seguindo a tendência da maioria das votações que aconteciam na ONU neste período, o voto mundial se dividia entre o alinhamento aos Estados Unidos, ou o Alinhamento a União Soviética. Aos parceiros americanos que não desejavam ser contra a moção, restava o voto de Abstenção, tendência seguida por praticamente toda a América Latina, com exceção do Brasil, México e Guiana. Enquanto isso, no dia 27 de outubro de 1975, Vlado era enterrado no Cemitério Israelita do Butantã. A pressão sobre a Chevra Kadisha tinha nesse ponto mais um elemento; Enquanto o Brasil se movimentava em uma direção que ligava o alerta dos judeus, Vlado estava sendo sepultado em um local “não- suicida” o que contrariava a política tradicional da Chevra Kadisha e da CIP de aceitar a versão militar. Enquanto buscavam acelerar o enterro, a Chevra kadisha tomava esta atitude na ausência de seu principal diretor, Fritz Pinkuss que estava na Alemanha; na ausência do 2º na hierarquia, Henri Sobel, que estava no Rio de Janeiro; Na ausência de um rabino sequer que se dispusesse a responder pela cerimônia; Sob iminente “guinada” brasileira aos interesses árabes; Na presença ostensiva de militares no cemitério; E a

78 presença “viva e morta” da tortura, na figura de Vlado, e na figura dos três jornalistas liberados para assistir à cerimônia.

A intenção do Brasil levou algumas lideranças judaicas a se reunirem imediatamente com o presidente Geisel. Na viagem a Brasília estavam presentes os presidentes da Confederação israelita do Brasil e da Organização Sionista no Brasil (CONIB, 2014:57). Em publicação da CONIB, Henrique Veltman resgata o diálogo que se deu entre estas lideranças e o presidente:

A pesquisadora Maria Celina D’Araujo, na sua entrevista com Ernesto Geisel, anos depois, registrou as memórias do general-presidente sobre esse encontro: “Os principais líderes da comunidade judaica no Brasil me procuraram, encaminhados por Golbery. Vieram com essa história: ‘Nós vivíamos tranquilos, em paz, aqui no Brasil, e agora estamos preocupados com o que vai acontecer conosco.’ Eu lhes respondi: ‘A vida de vocês no Brasil continua a mesma. Não há nenhuma alteração. Vocês vão viver e continuar a fazer os negócios aqui como vêm fazendo. Não há, nem haverá no Brasil, perseguição alguma aos judeus.’ Creio que saíram satisfeitos, pois não voltaram mais, nem nenhum deles se queixou”. (CONIB, 2014:58)

Após a reunião Geisel mandou que se recolhesse nas bancas e livrarias exemplares do livro “Os protocolos dos sábios de Sião”. Era evidente que o voto do Brasil era uma manobra oportunista, para contornar os efeitos da crise do choque do petróleo no final de 1973. O governo manobrava em direção a obter vantagens junto aos países árabes que controlavam o preço e a produção do petróleo através da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). O movimento do governo, apesar de condenado por boa parte da imprensa, fazia sentido dentro da política externa de pragmatismo de Geisel. O presidente acenava que nada tinham com o que se preocupar as lideranças judaicas. A decisão de recolher os “Protocolos dos sábios de Sião” das bancas e livrarias era uma clara indicação de que aquele governo não tinha problemas com os judeus, mas que não apoiaria Israel se isso não fosse interessante à política brasileira. Em outras palavras, demonstrava uma concepção cara aos judeus, de que apesar de discordar de Israel, isto não significaria nenhum tipo de perseguição aos judeus. Mesmo assim, inconformados, setores judaicos em São Paulo se mobilizaram para organizar um comício expondo sua insatisfação com o voto brasileiro.

O próprio Geisel, muitos anos depois, fez uma declaração nos livros do jornalista Elio Gaspari e dos pesquisadores Maria Celina D’Araújo e Celso

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Castro: ‘Estou convencido até hoje de que o sionismo é racista’. Ainda nos arquivos do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, reproduzidas nos livros de Gaspari e Maria Celina, as explicações de Geisel, anos depois: ‘Não aceitei uma forma evasiva que a diplomacia usa. O Itamaraty, quando estava convicto do voto que devia proferir, mas sentia que com ele iria desagradar os Estados Unidos ou a outro país importante, adotava a política de abstenção, se abstinha de votar. Não aceitei isso, dizendo que era uma covardia. Se o Brasil tem uma opinião, ele tem que defender o seu ponto de vista e votar de acordo com a sua convicção. Estou convencido até hoje de que o sionismo é racista. Não sou inimigo dos judeus, até por que em matéria religiosa sou muito tolerante. Mas como é que se qualifica o judeu? Quando que o indivíduo é judeu? Quando a mãe é judia. O judaísmo se transmite pela mãe. O que é isso, não é racismo? Não é uma raça que assim se perpetua? Por que eu não posso declarar isso ao mundo? O que isso tem de mau? Contudo, nosso voto provocou uma celeuma danada”. (CONIB, 2014:60)

A posição de Geisel nesta fala de suas memórias deixa muito claro duas mensagens sobre o episódio: Geisel, de fato não via problema na condenação do Sionismo como racismo; segundo, é improvável que as concepções de Geisel sobre os judeus tiveram peso na decisão brasileira, quando havia o bloco Árabe do outro lado da balança oferecendo petróleo. Apoiar o bloco Árabe era o objetivo, mesmo que isso lhe custasse as críticas americanas. Na sua concepção, a única coisa que mudou entre as antigas abstenções, e o voto a favor, foi a “coragem” do Itamaraty de expor uma opinião e sair de cima do muro.

Não importa quais desculpas o governo desse para os representantes das organizações judaicas, o posicionamento seria sempre visto com cautela. As resoluções da ONU contra Israel são muitas vezes interpretadas como manobras políticas do mundo Árabe, que compra apoio em troca de Petróleo. Por mais que Geisel dissesse que o voto era pragmático, e que os judeus nada tinham com o que se preocupar, o Brasil integrava a lista dos votos a favor da resolução junto com todo o mundo Árabe, e ficava como um dos três únicos países na América Latina a se posicionar desta maneira.

No dia 26 de outubro, dia que se noticiou a morte de Herzog, o Brasil reiterava sua intenção de votar a favor da resolução. No dia 27, o enterro de Vlado em local “não-suicida”, poderia se tornar um atestado religioso sobre as mentiras da ditadura, postura que a Chevra Kadisha e a CIP evitaram durante décadas. Após um breve recuo da linha dura, a volta das ameaças. Alguns dias depois o rabino

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Sobel fora intimidado dentro da CIP, com um recado duro do general Ferreira Marques de que não deveria comparecer ao culto ecumênico, mas no dia 31, Sobel compareceu. Apenas 10 dias depois, em 10 de novembro o Brasil finalmente vota a favor da resolução. Ainda que o governo Geisel não estivesse usando o voto como fator intimidador sobre a comunidade, não havia por parte dos judeus como esconder esta percepção.

No dia 29 de novembro, algumas lideranças judaicas se mobilizavam para realizar um grande comício no auditório do Anhembi. Anúncios publicados no Estado de S. Paulo por Adolpho Bloch, figura importante na representação de interesses de alguns setores judaicos, convidavam para o encontro que na teoria deveria ser “A noite da gratidão”, em menção ao voto de Osvaldo Aranha na partilha da ONU em 1974.

Com o nome de ‘A noite de gratidão’, dava para ocultar, à primeira vista, a real finalidade desse comício. Para as autoridades, especialmente ao governador Paulo Egydio Martins, e ao prefeito Olavo Setúbal, dissemos que seria uma grande sessão de recordação e reconhecimento ao chanceler Aranha. Segredo de polichinelo. Estavam, ambos, razoavelmente cientes do que tramávamos”. (CONIB, 2014:59)

O relato dá conta de como o evento era visto, pelo prefeito e pelo governador, que autorizaram o uso de um local público para a manifestação do comício. O protesto, nada tinha a ver também com fatores políticos, que levassem a uma crítica ferrenha do governador Geisel. Criticavam a postura do Itamaraty. Se o governo de Paulo Egydio, da mesma bancada de Geisel, autorizou a realização do comício, é porque entendia que aquilo não ameaçava nem a imagem, nem os interesses do governo, e servia para tranquilizar as organizações judaicas quanto ao seu direito de expressão. O pragmatismo oficial do governo não estava pensando em intimidar a comunidade judaica local, nem de assumir uma posição forte contra Israel. Dias antes do voto, o chanceler israelense veio ao Estadão mostrar seu descontentamento com a posição brasileira, porém, frisar de que o voto em nada alteraria as relações entre os dois países. O governo votou no dia 10 de novembro, e já no dia 13 obteve a resposta imediata do mundo árabe: reunido em São Paulo, o “II Congresso Pan-americano Árabe”, se decidia favorável a criação do banco de

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Desenvolvimento Árabe pan-americano, que visava financiar projetos de cooperação econômica nos países em desenvolvimento do continente (Folha de S. Paulo, 13/10/1975: capa).

Independentemente dos pensamentos de cada militar na hierarquia do governo, o momento vivido pelos judeus em São Paulo sob o governo do ARENA não indicou nenhum movimento oficial que de fato atentasse contra a segurança desta minoria no Brasil. A postura do governo e do SNI era tão tranquila em relação aos judeus que a morte de Herzog gerou desconfiança sobre o próprio DOI-CODI. Audálio Dantas (2012) destaca um informe enviado pelo DOI-CODI ao SNI com sua própria avaliação sobre este mal-estar:

Reiteradas vezes, oficiais do DOI/II são interpelados por companheiros de farda, sobre a presença de judeus em organizações comunistas. Argumentam que o judeu, mundialmente conhecido como elemento voltado exclusivamente para as finanças, em busca de lucro ávido e incessante, seria a última pessoa a esposar a ideologia marxista – propugnadora da socialização dos bens de capitais e do lucro (Teoria da mais-valia).

Assim ocorreu quando do recente suicídio do jornalista judeu Wladirmir Herzog, em que foi colocado [sic] em dúvida a afirmação dos órgãos de informações a [sic] sua condição de militante atuante do Partido Comunista Brasileiro.

Esta visão estereotipada, decorrente de uma total falta de conhecimento, gera um clima de desconfiança dentro das FFAA, já que parece que elementos da sociedade judaica são presos e taxados [sic] de comunistas, por um desconhecimento dos órgãos de informação sobre as raízes históricas e sociológicas do judaísmo.

Acontece que os meios de comunicações do Ocidente estão nas mãos das organizações judaicas, interferindo em todas as comunidades e no processo cultural de cada país, mesmo sendo uma minoria racial à parte.

Ao serem hostilizados, se autoafirmam como “uma raça privilegiada por jeová, cujo destino é a liderança do mundo. ” (...) O que deve ficar claro e ao mesmo tempo ser motivo de preocupação é que o judeu comunista existe, encontrando- se infiltrado e agindo em todos os setores da sociedade brasileira”. (Dantas, 2012:330)

O DOI-Codi, por sua parte, deixa claro que sua percepção em relação ao judeu é diferente daquela adotada pelo governo Geisel e pelo SNI. Um ponto a se destacar nos dois recortes é a percepção de como o DOI-Codi levanta uma discussão dentro do exército sobre a concepção de judeu, e sua participação na política; tanto a percepção do SNI como a do DOI-Codi, estão carregadas de estereótipos e

82 preconceitos, discordam apenas em um ponto específico: a existência e a periculosidade da figura do “comunista-judeu”. Esta figura na prática estava muito distante das representações judaicas naquele momento, pois as organizações judaicas de esquerda já haviam sido fortemente atingidas durante a era Vargas. (Carneiro, 2001).

Geisel aparentemente em nada pressionava os judeus. Se pressionou por conta da intimidação na realização do Culto Ecumênico, o fez por um interesse muito maior que era o de recuperar sua autoridade frente a sociedade e ao próprio exército. O voto na resolução da ONU que gerava tensão entre muitos judeus tinha um caráter abertamente pragmático, constatado por algumas conquistas junto ao mundo árabe e a aproximação do Brasil com a Europa (neste período o Brasil também desenvolvia seus acordos nucleares com o velho continente).

O governo Geisel, segundo o próprio DOI-Codi, entendia o judeu como um personagem que não ameaçava o poder. O estereótipo do judeu capitalista servia de alguma forma para manter os judeus livres de acusações de comunismo, estereótipo este reforçado pelo “controle dos judeus sobre a mídia no mundo”. Era como se uma concepção sobre o judeu historicamente usada para ações antissemitas (a figura do judeu ávido por lucro, e que, portanto, não se aproximaria do marxismo) os protegesse dentro deste contexto político delicado.

Por outro lado, o estereótipo do judeu adotado pelo DOI-Codi era mais “cauteloso”. Não culpava e nem colocava a “sociedade israelita” sob suspeita como um todo. Mas trazia atenção à figura do “Comunista-judeu”, infiltrado em “todos os setores” da sociedade, e “controlador da mídia”.

Esta definição era perfeita para enquadrar Vladimir Herzog e José Mindlin, dentro da “conspiração comunista” que acontecia nos bastidores do governo. José Mindlin chefiava a Secretaria de Cultura, e Herzog chefiava a TV Estatal, enquanto “um bispo, e até um governador, estariam infiltrados participando da operação” (Dantas, 2012:230). Se o golpe Arenista tivesse êxito, o Brasil não estaria longe de rever uma desculpa histórica golpista já conhecida envolvendo a articulação entre comunistas e judeus, anteriormente chamada de Plano Cohen.

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Embora os judeus no Brasil não tivessem convivido com um comportamento abertamente antissemita, conviveram com concepções antissemitas. Porém, estas concepções, que em tantos lugares justificaram ataques contra os judeus, eram ideias herdadas de outros tempos e inclusive fruto do desconhecimento do brasileiro sobre o judeu. No caso da ditadura brasileira de Geisel, estas concepções não serviriam para justificar nenhuma ação contra instituições judaicas. O judeu teria o direito de ser o que bem-entendesse, desde que não fosse comunista, como qualquer outro brasileiro. Para o DOI-Codi, um judeu não era necessariamente comunista por ser judeu. Mas o comunista-judeu se mostrava um perigo a parte. Este sim, tinha uma chance muito maior de estar ligado a revolução comunista internacional.

Segundo Audálio Dantas, a história da ligação de Vlado com a KGB ia e voltava como uma obsessão nos interrogatórios do DOI-Codi.

Além disso, queriam saber das ligações do governador Paulo Egydio e do secretário de cultura José Mindlin, com o PCB. Um interrogador que se autodenominava capitão Ari tinha um argumento forte para as suspeitas sobre Mindlin:

- Ele fala russo.

o que já tinha sido dito em outros interrogatórios de outros acusados: se não era Mindlin, seria outro agente da KGB infiltrado no governo. O próprio governador, quem sabe?” (Dantas, 2012:276)

O judeu, desvinculado do comunismo, não representava nenhuma ameaça. Quando vinculado ao comunismo, era uma peça de atenção especial. Na prática, os judeus no Brasil deviam ter a mesma preocupação que qualquer outro brasileiro: negar o comunismo. Mas uma vez nas mãos do DOI-Codi, ele tinha uma preocupação extra: não só provar sua distância do comunismo, mas provar sua distância de uma conspiração comunista mundial que lançava os judeus dentro da esfera de controle da mídia, assim como descrito nos “Protocolos dos sábios de Sião”. José Mindlin não era um judeu tradicional, nem era ligado a instituições judaicas. Mas com a morte de Vlado, teve como reação imediata assinar sua carta de demissão. O coronel Maciel, que comandava o DOI-Codi no momento da morte de Herzog, iria se referir ao jornalista na obra “História oral do Exército, 1964, 31 de Março” (2003) como um “judeu, apátrida, que nem brasileiro era” (apud Godoi, 2014:466).

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Capítulo 3: Os Corpos

“O Cadáver expunha a relação farseca do governo, que negava a tortura nos salões e condecorava a ‘tigrada’ no porão.” (Gaspari, 2002:174)

Os corpos e o DOI-CODI

O DOI-Codi que andava sempre preocupado com o destino dos corpos agredidos em seus porões, tinha o costume de acompanhá-los até o momento do enterro, coagindo qualquer forma de manifestação, ou de uma segunda perícia, uma vez que esses corpos eram a prova material das mentiras da ditadura. Por mais que as versões de suicídio, acidentes, e resistências já não convenciam boa parte da sociedade, desta vez no caso Herzog a prova do crime estava nas mãos da família e do sindicato. O fato de que o corpo, com evidentes marcas de tortura, ainda estava nas mãos da família no momento em que o II Exécrito solta a falsa nota “esclarecendo” o suicídio, fez a família e o sindicato perceberem à proporção que o fato poderia tomar.

Somava-se a isto, o fato de que a lavagem ritual dos corpos que é realizada no sepultamento judaico poderia ser uma janela extra para esta constatação, como acabou acontecendo no caso Chael que fez um enorme barulho e apertou de vez o cerco da censura aos jornais em 1969. Porém, desta vez, todas as partes tinham consciência do potencial de denúncia e da repercussão que tinha o ritual de sepultamento judaico com um corpo torturado e suicidado em mãos. A precaução dos militares fortemente planejada e acompanhada durante o caso Iara Iavelberg, não se repetiu com o corpo de Herzog.

A família e o sindicato adotaram uma estratégia ousada: manter o corpo acima do solo pelo maior período de tempo possível, e tentar realizar uma segunda autópsia com médicos da família, ainda que isso implicasse levar o corpo para casa e não realizar o rito judaico de sepultamento. (Dantas, 2012:237)

Com a posição tomada pela família e pelo sindicato dos jornalistas, o objetivo era manter o corpo a mostra pelo maior período de tempo que fosse possível.

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Buscar uma segunda autópsia foi um objetivo que sofreu forte desincentivo por parte da Polícia e da Chevra Kadisha, que procuraram obstruir esta intenção como fosse possível, além das tentativas de acelerar o processo de sepultamento. Semanas depois, durante a instauração do IPM para apurar as causas da morte, Clarice Herzog acusaria Erich Lechziner de intimidação, o mesmo funcionário que segundo Sobel não contestou a decisão de enterrar Herzog em uma área comum. Lechziner, teria apresentado uma carteira do DOPS para intimidar a família. A prática de distribuir carteiras do DOPS a aliados já foi admitida por Cláudio Guerra no momento em que descreve sua parceria com os usineiros do Rio de Janeiro.

Começava neste momento um embate entre duas forças, uma que procurava acelerar e a outra que procurava retardar este processo de sepultamento.

De forma a encontrar alguma referência que colaborasse com reflexão sobre a relação da comunidade judaica com os militares, um bom objeto de comparação encontrado foi a comunidade judaica Argentina.

A ditadura Argentina tem um período de duração bem menor do que a Brasileira, vai de 1976 a 1983, e tem um número de mortos estimado em torno de 10.000 pessoas, sendo que em torno de 2.500 delas são judias. O maior problema encontrado na detenção de judeus comunistas na Argentina foi o comprovado tratamento “especial” que estes presos recebiam por sua condição de judeu. Esta atenção especial está comprovada em centenas de depoimentos prestados à CONADEP, a “Comissão da Verdade Argentina”, que, diferentemente da brasileira, ocorreu na sequência da queda do regime, ainda em 1985.

As agressões aos presos judeus na Argentina, não se limitavam à discriminação verbal, mas há relatos sobre imagens de Hitler nas paredes das prisões, e corpos que eram marcados com suásticas. Se a ditadura brasileira pretendia “limpar” o país do comunismo, e incentivar o caráter patriótico com propaganda militar, na Argentina o exército pretendia uma completa reforma cultural. Este objetivo diferenciado é um dos fatores que contribuiu para que o número de pessoas que desapareceram durante os anos da ditadura Argentina seja explosivamente maior (Robben, 2008).

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O tratamento diferenciado aos presos judeus pôde ser comprovado mais uma vez na guerra das Malvinas: antigos oficiais alemães, “importados” de forma clandestina ao final da segunda guerra, não ganharam apenas um novo nome na Argentina, mas chegaram para integrar quadros do exército. Muitos judeus convocados para combater o Reino Unido pelas Malvinas acabaram humilhados por seus próprios comandantes por serem judeus.

Os setores judaicos não alinhados à esquerda viram suas principais instituições crescerem durante o período militar. A separação que se produziu dentro da comunidade judaica entre judeus comunistas, e judeus sionistas aconteceu de forma marcante na Argentina. A comunidade de judeus comunistas argentinos seria destruída de forma brutal nos anos que sucederam o golpe argentino, mas ainda assim não foi liquidada.

A comunidade judaica de Buenos Aires é muito maior que a de São Paulo. Os 2.500 jovens judeus comunistas desaparecidos na Argentina, não foram “o suficiente” para destruir totalmente a esquerda da comunidade, que continua dividida até os dias de hoje. As mães destes desaparecidos cobram explicações da AMIA/DAIA, principal entidade representativa e centralizadora da comunidade, por ignorar os sucessivos pedidos de ajuda dessas famílias vitimadas pelo regime.

Por sua vez, as entidades ligadas a AMIA/DAIA prosperaram no período, enquanto seu diretor mantinha um encontro semanal com um dos três oficiais que compunham o comando do país, o general Videla. Um ponto em comum com a comunidade paulistana, é que motivada pelo perfil e tipo de onda migratória que chega a São Paulo, e com a ascensão do sionismo, os setores judaicos que se alinharam a uma postura não comunista, e com uma bandeira muito mais sionista do que religiosa, também viram suas organizações crescerem bastante neste período.

Estas mães argentinas que buscavam seus filhos e não encontraram apoio dentro da comunidade judaica, foram buscá-lo junto à sociedade civil. As “Mães de Mayo”, e as “Abuelas de Mayo”, possuem diversas mulheres engajadas na cobrança frente ao governo e frente as atitudes das organizações judaicas. De forma a esclarecer o que aconteceu no período, a AMIA/DAIA decidiu realizar uma apuração neutra sobre o ocorrido no período, e instalar uma espécie de comissão da verdade interna. Em 2012, um

87 informe é divulgado prometendo buscar a verdade, contratando profissionais “imparciais” para esta investigação. O Informe diz:

“ Si bien no se planificó la persecución específica a miembros de la comunidad judía por su condición de tales, ha quedado plenamente demostrado que los judíos secuestrados recibían un tratamiento aún más vejatorio y cruel que los demás prisioneros. Los testimonios brindados por ex detenidos-desaparecidos han corroborado este aserto, señalando la exhibición de simbología nazi, la propalación de discursos de Hitler y las arengas e insultos antisemitas durante las sesiones de tortura, asemejándose al horror de la Alemania nazi. (...) Numerosas familias de nuestra comunidad clamaban por ayuda para intentar ubicar a sus seres queridos y la DAIA fue un ámbito obvio adonde recurrir. Lo actuado entonces ha merecido muestras de reconocimiento pero también numerosas críticas, que deben ser comprendidas y respetadas. Han debido transcurrir todos estos años para que la conducción institucional actual haya asumido la responsabilidad de revisar lo actuado entonces, de asumir que, más allá de las buenas intenciones y de acciones que impidieron desapariciones, se registraron variados desaciertos.’’ (AMIA/DAIA, 2009)

A investigação desta relação entre comunidade e governo na Argentina vai mais a fundo, na medida em que se soma o elemento de que Israel alimentou fortemente o rearme argentino que precedeu a guerra das Malvinas. O silêncio frente aos desaparecimentos, e a boa relação com o governo militar, são mais uma vez um cenário que exclui da “comunidade judaica”29 o “judeu-comunista”.

Os números de mortos e desaparecidos na Argentina e no Brasil são distintos: na Argentina foram contabilizados cerca de 10.000 mortos e desaparecidos, enquanto no Brasil, oficialmente este número chega a 434 mortos segundo a Comissão Nacional da Verdade (2014).

O discrepante número de mortos nos dois países, em termos de comparação, levou muitos brasileiros a crer que “a violência no Brasil não foi como a de lá”, criando inclusive a concepção de “ditabranda”. A questão que surgiu durante a pesquisa, na comparação entre a violência nos dois casos, está em torno do tipo de violência empregada, e que tipo de impacto cada uma delas teve sobre sua própria população. O que se propõe neste momento da pesquisa é significar a violência de Estado de cada

29 Considerando aqui como “Comunidade judaica argentina”, um determinado setor de judeus que clama para si o título e a representatividade. Muitas organizações judaicas geralmente não se reconhecem dentro destas organizações que formarão as federações que irão ‘representar’ os interesses judeus perante o governo.

88 regime em torno do impacto que suas práticas repressivas causaram na população em geral, e não apenas nas famílias vitimadas pelo regime.

O ponto de partida para o desenvolvimento desta questão surgiu justamente no momento de buscar comparações entre os casos que envolveram vítimas judias no Brasil e na Argentina acerca do enterro. Constatando que os rituais de sepultamento judaicos eram uma pedra no sapato da ditadura brasileira, surgiu a curiosidade de buscar casos análogos na Argentina, e é neste momento que veio a surpresa. Dentre os aproximadamente 2.500 casos de judeus mortos na Argentina, este tipo de polêmica não mobilizou nem a comunidade judaica, nem os militares: a grande diferença para estas duas comunidades, são justamente os seus corpos. Na Argentina, estes corpos não retornavam para suas famílias. A ditadura não se preocupava em inventar desculpas esfarrapadas para se livrar ou enterrar rapidamente os corpos de seus presos. O exército Argentino desapareceu com os corpos de todos os presos durante os anos do regime. É neste momento que surge uma diferença interessante entre a violência de Estado durante as ditaduras no Brasil e na Argentina: a relação destas ditaduras com o corpo humano.

O modelo do terror Argentino, representado aqui de forma grosseira, amedrontava sua população de forma ostensiva, através das prisões e desaparecimentos de milhares de pessoas. Aqui está um ponto sensível que diferencia a ditadura Argentina da Brasileira: apesar dos milhares de pessoas que desapareceram durante o regime Argentino, a abordagem sobre estes indivíduos estava mais próxima à de uma prisão violenta e arbitrária, do que de um “sequestro em carro com chapa fria” como ocorria frequentemente no Brasil – se distinguem quanto a sua legalidade ainda que seja a lei de um Estado de exceção. Os cidadãos argentinos imaginavam que seus militantes estavam presos (enquanto eram lançados aos “vuelos de la muerte”), mas um “sequestro” como os que aconteciam no Brasil já indicavam a ilegalidade no momento da prisão e uma expectativa de que qualquer coisa podia acontecer ao preso.

O barulho produzido pelas desaparições em massa na Argentina produzia um impacto diferente do impacto que produzia o “show de horrores” do DOI-Codi, que não tinha nenhum pudor em levar suas operações a plena luz do dia, como foi no caso de Ana Maria Nacinovic. O terror dos militares argentinos ocorria mais dentro dos porões, e não tanto no meio das ruas. O principal impacto desta diferença pode ser sentido nas

89 manifestações produzidas pelas principais organizações civis argentinas como as Mães de Maio. Uma vez que todas estas pessoas estavam “presas” durante a vigência do regime, suas famílias costumavam considerar que estes indivíduos estariam vivos, mas presos e incomunicáveis, e que com a queda do regime, deveriam ser todos libertados. A notícia que choca a população Argentina, vem no momento de queda do regime em 1983, quando o exército admite para a sociedade que os indivíduos que estavam classificados como “desaparecidos” poderiam ser considerados mortos.

Até hoje movimentos sociais clamam por informações de seus filhos. Mesmo sabendo que estão mortos, as Mães de Maio marcham toda quinta-feira na Plaza de Mayo em Buenos Aires. Apesar da confissão efetuada pelos militares, nenhuma atitude maior no sentido de buscar informações sobre estas pessoas foi tomada, enquanto estas mães “se recusam a enterrar seus filhos”. Estas mães não estão buscando enterrar seus filhos. Pelo contrário, estão buscando manter viva a sua imagem, e desta forma podem sustentar a resistência, e a demanda pelo esclarecimento destes crimes. Sem um corpo para enterrar, e nenhum tipo de ritual que levasse ao luto, a imagem destes desaparecidos segue viva na sociedade. No caso Argentino, a regra era desfazer-se de todos os corpos de maneira discreta. Os “vuelos de la muerte” atiravam corpos ao mar durante as madrugadas, e desta forma, mantiveram toda a população iludida pensando que seus presos estavam encarcerados, e não mortos.

A estratégia brasileira de terror na população se apresenta de forma bem distinta. Se na Argentina a impressão que se queria dar a população era a de que todos os opositores seriam presos, no Brasil a estratégia seguiu de maneira diferente. Os corpos torturados não seriam em sua maioria desaparecidos, e sim muitos deles devolvidos às suas famílias – vivos ou mortos. A questão aqui, é que o terror sobre a população começa a se diferenciar neste momento: se o exército Argentino aterrorizou sua população com milhares de prisões, o exército brasileiro aterrorizou sua população com milhares de torturados que voltavam para suas casas, somados a operações espalhafatosas em plena rua. Apesar da prática da tortura existir também nos porões da ditadura Argentina, este fato só veio à tona após o fim do regime, enquanto no Brasil eles eram um fato real, estratégico, e vivido no dia a dia do regime. Vivos ou mortos estes corpos voltavam rapidamente para a sociedade sinalizando a tortura, que de certa maneira é sentida como um pesadelo pior que o da própria morte. Muitos dos militantes da resistência carregavam

90 cápsulas de cianeto para o caso de serem pegos; Era preferível a morte que as seções de tortura no DOI-Codi.

Cabe aqui a referência à noção de pessoa utilizada por Marcell Mauss (2011) em “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa”. Levantaremos aqui a necessidade de separar a noção de pessoa, ou de persona – a “máscara’’ social sobre a qual está investida um indivíduo -, da noção que compõe seu corpo físico. A ditadura Argentina, ao não confessar às mortes durante o regime, criou uma situação de prisão no imaginário social Argentino, que deixou milhares de “Personas” vivas no meio de sua sociedade, ao passo que tiravam os corpos de circulação. A busca das famílias continuava, e a impossibilidade da realização de um enterro, que tem como objetivo negar e encerrar a função social desta persona, acaba por impossibilitar seu “fim social”.

A ditadura brasileira, por outro lado, atuou causando um impacto social diferente: ao devolver os corpos torturados e mortos, possibilitavam que a família pudesse dar um fim tanto para o corpo físico, como para o corpo social, através da realização de seu ritual próprio de sepultamento. Apesar do sepultamento realizado pela família, que permitia um “fim social” a este indivíduo, seguia-se um tradicional ritual militar de humilhação do morto. A figura do preso, “suicidado”, “atropelado”, “morto em combate”, era assassinada mais uma vez pelos IPM’s comandados pelo exército. O exército matava seu corpo dentro do porão, e sua persona dentro da burocracia dos IPM’s.

Ao devolver os corpos torturados, mas vivos, operava diferente: devolvia o corpo a sociedade, mas sua “persona” estava geralmente destruída pelos efeitos da tortura. A síntese desta ideia vem das palavras de Rodolpho Konder no documentário “Vlado, 30 anos”30, quando usa poucas palavras para descrever o que passou nas sessões de tortura: “Eles desmontam a gente”.

Dentre os objetivos da tortura, o da destruição da persona era geralmente seu objetivo principal – destruía o indivíduo sem produzir um corpo que era a prova de um crime. A devolução do corpo torturado era a ameaça constante no cotidiano brasileiro. O objetivo de arrancar informações do preso em muitos casos não era a única finalidade

30 Ver em: Andrade, 2005.

91 da tortura. No projeto “Brasil nunca mais”, Dom Paulo relata um dos casos onde os torturados denunciaram a utilização de seus corpos como cobaias para um treinamento.

Seviciados em Salas de Aula, aqueles pobres homens permitiam que os alunos aprendessem as várias modalidades de criar, no preso, suprema contradição entre o corpo e o espírito, atingindo-lhe os pontos vulneráveis. (Arquidiocese de São Paulo, 1985:32).

A tortura fora muito utilizada como recurso para obtenção de informações, mesmo que muitos coronéis soubessem que este não era um meio absolutamente eficaz, uma vez que a mentira também era produzida para que se parassem as sessões, ou se fabricassem falsos testemunhos. Deste simples fato podemos tirar três objetivos diferentes, que eram alcançados com a tortura no Brasil: o primeiro, e mais tradicional, a obtenção de informações; o segundo, a extração, de falsas confissões que embasariam as teorias criadas pelo sistema repressivo; e a terceira era produzir o terror e alastrar o medo dentre a população. O trauma do torturado que volta vivo é sentido imediatamente em todo seu círculo social, e muitas vezes traz sequelas permanentes ao indivíduo. Mesmo vivo, se suas funções sociais não puderem mais se realizar normalmente, o choque impacta todo círculo social da persona independentemente da forma do trauma e/ou da sequela.

A destruição da persona foi o principal meio de espalhar o medo no Brasil, enquanto a Argentina se preocupou em destruir os corpos, e de certa forma poupando as “personas”, ou seja, não deixar a público que seus donos haviam desaparecido, e desta forma causar outro “tipo” de indignação social.

Desta forma, pode-se começar a pensar que a estratégia de terror utilizada pelo estado brasileiro tenha penetrado de uma forma mais violenta na população, que sentiu, portanto, os efeitos da tortura instantaneamente, em contraposição a Argentina, que espalhou o medo através das prisões, mas não da destruição, nem da persona nem do corpo destes militantes em plena luz do dia.

Apesar de uma política clara de disseminação do medo pela tortura, a preocupação dos porões no Brasil era não produzir provas destes atos, e muito menos torna-los de conhecimento público como política de Estado. Quando escapavam de alguma forma da censura, se tornavam “erros” do governo que “deveriam ser reparados”.

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Por isto era tão importante também manter certa autonomia ao DOI-Codi. O medo devia se espalhar na forma de “rumor” e não como artigo de jornal. A “rebeldia” destes militares do porão era sempre a justificativa para algo que incriminasse o governo e houvesse caído em conhecimento público. A edição da revista Veja imediatamente anterior à edição que destacou a tortura da qual sofreu Chael Charles Schreier antes de morrer, trazia na capa que o “Presidente não admitiria torturas”.

A primeira reação pública de Geisel sobre o caso Herzog, foi buscar os responsáveis por este ato através do IPM. Logo da nomeação de Dr. Durval Ayrton Moura de Araújo para presidir o inquérito, oficialmente o governo “combatia a tortura”, e privadamente ameaçava os envolvidos na denúncia - enquanto matava a persona de Vladimir Herzog na versão oficial. A morte do jornalista, tirou seu corpo de circulação, mas faltava ao exército culpar “a persona” de Vlado. Os militares tiraram este corpo da sociedade, sem dar ao menos uma explicação convincente que justificasse sua morte, e tensionou o quanto pode as cerimonias de sepultamento.

Não que a sociedade em outros casos acreditasse nos IPM’s do governo, mas desta vez a dúvida sobre a versão militar estava escancarada com fotos nada convincentes, e a burocracia militar não foi capaz de “matar” a figura de Herzog de imediato. A cerimônia ecumênica era em si o reconhecimento social de que a ditadura mentia. E este é um dos motivos que faz da figura de Herzog um símbolo tão marcante na história da resistência brasileira. Manter a imagem de Herzog presente, é manter uma crítica a violência de Estado no Brasil.

A censura manteve a violência do regime no âmbito do privado, do rumor, e dificilmente era assumida pelos altos escalões do governo, que na medida do possível não negaram sua existência, ainda que taxassem estas práticas como atos isolados, descontrolados e ilegais.

Por este motivo cada corpo torturado que ganhava as capas de jornais era uma forte agressão ao discurso da ditadura. Tanto o caso Chael, como o caso Herzog, foram incômodos aos militares, e a imprensa se mostrou como principal meio para a denúncia destes atos. Os dois casos produziram corpos torturados que ganharam as capas dos jornais, e escancaravam um sistema que só seria efetivo enquanto estivesse preso no “rumor” dos porões e funcionando na base da ameaça e da frequente ausência de provas.

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A burocracia que produzia os IPM’s era um ponto chave para a manutenção da tortura. Se o governo militar não podia assumir diretamente a responsabilidade pelos atos de tortura, assumia a responsabilidade de encobri-los perante a sociedade, e proteger os “homens do porão”. Alguns símbolos do porão contribuem para o entendimento desta proteção: O primeiro ícone ao qual um preso entrava em contato antes da tortura era o conhecido capuz. Sempre ao serem presos, já dentro dos veículos militares, os indivíduos eram frequentemente vestidos com um capuz para que não pudessem ver nem o local, nem as pessoas que estavam a sua volta em determinados momentos da prisão. O contato visual entre torturado e torturador acontecia dentro das prisões, mas os torturadores eram sempre chamados por apelidos: Capitão Ubirajara, Capitão Ramiro, dentre outros, eram nomes comuns escutados em diversas prisões, e dificultavam o reconhecimento do torturador a não ser pela descrição de seu corpo. Os aparelhos de tortura tinham nomes que pouco as descreviam: a cadeira elétrica era chamada de cadeira do dragão; A máquina de choques elétricos era a pimentinha, dentre outros. Os locais exatos onde se produzia a tortura dificilmente seriam reconhecidos pelos presos pois entravam e saíam com o temido capuz, e na maioria das vezes estes locais estavam separados das delegacias.

Logo, ao saírem vivos, estes corpos torturados não saberiam ao menos dizer: quando, onde, nem por quem foram torturados a não ser pelo reconhecimento visual. A tortura os faria no mínimo perder a noção do tempo; os capuzes impossibilitavam a localização; E os apelidos impossibilitavam o reconhecimento jurídico dos acusados e das ferramentas de tortura. Para a burocracia do regime, a tortura era invisível. Cada morte que acontecia dentro do porão, se vinha a público, deveria necessariamente ser considerada um “crime” que acontecera dentro do exército, comumente transformado em suicídio. Publicamente a tortura se tornava assim um crime “comum”, e não uma política de governo.

Haviam regras claras sobre quem devia ser assassinado (Godoi, 2014:279): Os que tinham treinamento no exterior, banidos do Brasil, e dirigentes estavam condenados a morte assim que fossem pegos pelo DOI-Codi. Vlado Herzog não se encaixava em nenhuma destas categorias.

O terror dos porões aparecia, portanto, de várias formas no cotidiano privado da sociedade, mas dificilmente aparecia de forma oficial e institucional, a não ser em

94 casos específicos onde as coisas “não saíam exatamente como o planejado”. Uma delas, a devolução do caixão lacrado, com laudo de necropsia evidentemente adulterado (suicídios, acidentes, tiroteios), era uma forma em si de assustar e pressionar a população. Outra forma eram os milhares de corpos torturados, que voltavam para suas casas e narravam, quando possível, as experiências vividas nos fundos das delegacias. A tortura sabidamente envolveu familiares dos perseguidos, envolvendo mulheres e crianças inocentes. A prática da tortura “sem critério”, era em si um elemento a mais de terror neste mecanismo intimidador. Uma coisa é a população estar ciente da tortura, ainda que não concorde, aos que são vistos como suspeitos. Outra coisa é a tortura de pessoas que nada tem a ver com a “subversão” – o que torna a todos vítimas em potencial. Vlado se apresentou “voluntariamente” ao DOI-Codi, pois sabia que contra ele não cabia nenhuma acusação. O assassinato frio, seguido de humilhação social, de um companheiro de profissão que nada devia, generalizou o pânico em toda a categoria dos jornalistas. Se Herzog foi assassinado, nenhum jornalista estaria totalmente “livre” das garras do porão, a não ser que compactuasse abertamente com o regime. Audálio Dantas afirma ter visto centenas de jornalistas que nunca haviam pisado no sindicato durante os dias que se seguiram ao assassinato.

Havia ainda outro modo de aterrorizar a população civil. Era frequente que o DOI-Codi transformasse suas operações em verdadeiros “shows de horror” no meio da rua. Cada prisão, ou assassinato a ser executado pelo DOPS, era muitas vezes acompanhado de um completo cenário de guerra. Vamos rever rapidamente alguns dos casos já citados nesta pesquisa para efeito de exemplo. Esta é apenas uma amostra, e pode se estender a inúmeros outros casos de vítimas do regime brasileiro.

O desmonte do aparelho de Chael Charles Schreier, já observado a meses pelos serviços de informação, foi acompanhado de “intenso tiroteio”, e chamou a atenção de toda a vizinhança e da mídia. No fim gerou os problemas relativos ao endurecimento da censura. Todos sabiam que três indivíduos saíram presos desta operação, mas apenas dois saíram com vida da delegacia. As torturas no corpo de Chael foram constatadas e denunciadas durante o ritual de lavagem judaico, e ganharam a capa da revista Veja. Os outros dois militantes, fortemente torturados, foram postos em liberdade dias depois, mesmo sendo testemunhas do que acontecera a Chael nos porões. Apesar de serem testemunhas oculares, e de possuírem as marcas em seus corpos como prova, era

95 impossível provar burocraticamente o que havia acontecido. Maria Auxiliadora que fora torturada junto com Chael, acabou se suicidando alguns anos depois.

Carlos Marighella que chegou a ser considerado o inimigo número um da ditadura, foi emboscado na Alameda Casa Branca, rua de bairro nobre em São Paulo, as oito horas da noite. A operação montada para assassiná-lo no meio da rua foi tão grande e descontrolada que além de matar Marighella (que estava sozinho), matou uma investigadora do DOPS e um dos delegados envolvidos na emboscada.

O momento da prisão de Iara Iavelberg também foi um momento conturbado. Com tamanho espetáculo montado a base de bombas e tiros, até hoje a única certeza que se tem, pela perícia do cadáver, é a de que fora assassinada – mas não se tem certeza se foi durante esta operação, ou se ela saiu presa e fora assassinada dentro dos quartéis.

O assassinato de Gelson Reicher e Iuri Xavier da Silva ocorreu em plena Avenida República do Líbano, movimentada Avenida de São Paulo, e também contou com testemunhas oculares que desmentiram a versão da polícia de que o carro dos dois havia sofrido um acidente no local.

O caso que mais chama atenção neste sentido é o caso de Ana Maria Nacinovic, ao ser emboscada com três companheiros na frente de um restaurante localizado na Mooca durante o almoço. A situação é descrita da seguinte forma pela ONG “desaparecidos políticos” (2015):

De imediato, foram fuzilados Iúri e Marcos Nonato. Ana Maria ainda vivia quando um policial, ouvindo seus gritos de protesto e de dor, impotente perante a morte iminente, aproximou-se desferindo-lhe uma rajada de fuzil FAL, à queima-roupa, estraçalhando-lhe o corpo. Ato contínuo, os policiais fizeram uma demonstração de selvageria para a população que se aglomerou em volta daquela já horrenda cena. Dois ou três policiais agarravam o corpo de Ana Maria e o jogavam de um lado para o outro, às vezes lançando-o para o alto e deixando-o cair abruptamente no chão. Descobriram-lhe também o corpo ensagüentado, lançando impropérios e demonstrando o júbilo na covardia de tê-la abatido. Não satisfeitos, desfechavam-lhe ainda coronhadas com seus fuzis. Tal cena repetiu-se com o corpo de Iúri e Marcos Nonato, sendo, entretanto, Ana Maria o alvo preferido.

A violência apresentada neste caso chama atenção pelo o terror instalado no meio da rua. A cena não é apenas uma prisão policial, mas uma execução com uma

96 demonstração pública da crueldade de que eram capazes. Fica nítido que a intenção da polícia com tamanhas demonstrações de violência não era apenas executar um pequeno grupo de militantes, mas ir além e demonstrar o poder policial para acuar a população, estraçalhando os corpos de seus inimigos como exemplo.

As ameaças feitas pelos policiais, na hora do crime, intimidaram os populares. (...) A população, revoltada com tamanha violência e selvageria, esboçou, dias depois, uma reação de protesto, tentando elaborar um abaixo-assinado que seria encaminhado ao Governador do Estado. Mas, devido ao clima de terror existente no País naquela época, somado ao pânico de que aquelas cenas de verdadeiro horror pudessem se repetir com eles, a iniciativa foi posta de lado. (...) Anos depois, em 1992, populares da Mooca que ainda lembravam do trágico episódio, sugeriram seu nome para uma creche municipal. A então prefeita Luiza Erundina aceitou a sugestão popular. ” (Desaparecidos políticos, 2014)

Outro bom exemplo da instalação do terror público é descrito na obra de Audálio Dantas, quando narra um episódio ocorrido na USP durante o primeiro semestre de 1970:

(...) quando mal se começava a discutir a reorganização do centro acadêmico, a ECA foi palco de uma cena de terror: uma perua C-14, das que eram utilizadas pelos agentes da OBAN graças às ‘doações’ de empresários, estacionou em frente ao prédio da faculdade. Dois policiais arrancaram da parte traseira do carro um jovem que mal se sustentava de pé. O rapaz tinha as roupas manchadas de sangue, andava com grande dificuldade e, por isso, era praticamente arrastado pelos policiais, que, sem dizer uma palavra, entraram com ele no prédio, percorreram os corredores do primeiro e do segundo andar e saíram como haviam entrado: sem dizer nada. Aquilo era uma demonstração do que poderia acontecer a quem ousasse contrariar as leis da ditadura. Foi como se dissessem: ‘Vejam o que pode acontecer com vocês. ” (Dantas, 2012:80)

Este último caso onde não sabemos sequer o nome do jovem torturado, somado ao de Ana Maria Nacinovic, são dos melhores exemplos citados até aqui para demonstrar de que forma se dava o terrorismo de Estado no cotidiano da população. O objetivo era demonstrar à sociedade o sofrimento imposto em caso de oposição ao regime. Ainda que as pessoas não fossem sistematicamente presas, eram sistematicamente ameaçadas, aterrorizadas, traumatizadas, como nestes dois últimos casos. Eram ameaças que não produziam nenhum tipo de prova e tornava a população refém do DOI-Codi. Não

97 havia como provar ou enquadrar estes casos dentro da lei. Ainda que houvesse, era de conhecimento público de que as mentiras militares ocultariam o fato de alguma forma.

O caso Herzog tem um grande destaque neste contexto por uma série de razões. O assassinato ocorrido nas dependências do DOI-Codi, além de um recado para Geisel e Paulo Egydio, era também um recado a todos os jornalistas, em um momento em que o porão dava um passo à frente contra o sindicato e não mais apenas contra as redações. Se a tendência na Argentina, seguindo a lógica de sua repressão, seria prender e desaparecer com todos os corpos de jornalistas comunistas, no caso brasileiro a abordagem foi a tortura, seguida de libertação, de uma dezena deles, e a morte escancarada de um dos seus principais nomes - somada ao fato do conhecimento público de sua inocência. A polícia conseguia instalar um clima de verdadeiro terror na sociedade, sem matar uma quantidade tão grande de pessoas como fez a ditadura Argentina.

Dentre os fatos que fizeram a diferença no caso Herzog, e contribuíram para a quebra do paradigma ao qual os militares estavam acostumados entram alguns fatores: o impacto da morte de Herzog foi tão grande, que os militares se sentiram na obrigação de dar explicações, e este é um fato raro na repressão brasileira. As explicações, divulgadas com as imagens do “suicídio”, não convenceram a população, e deram coragem para que o sindicato e a família buscassem estender o período em que o corpo estaria sobre a Terra, fazendo assim que este morto representasse mais uma das provas de tortura que o sistema tanto se empenhava em esconder. O recado que seria dado através do assassinato de Vladimir Herzog “perdeu o controle” no momento em que a Polícia se viu obrigada a prestar maiores esclarecimentos sobre o caso, e seus laudos oficiais não convenciam ninguém.

O temor era tanto dentro das redações, que extrapolou o limite da “sanidade” e levou todos a iniciar as manifestações, que não se deram na forma de um protesto político direto ao governo, mas na forma de preservar a memória de Herzog: o culto ecumênico foi celebrado no sétimo dia da morte, e se prolongou durante os anos posteriores. A imediata mudança do nome do auditório do sindicato para o nome do jornalista era uma maneira de manter sua “persona” presente.

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Figura 11. Herzog na cela do DOI-Codi, "enforcado" com os pés tocando o chão.

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O combate à ditadura começou pela preservação da memória, que oficialmente, não representa cunho político. Os militares, neste caso, haviam destruído um corpo, mas não conseguiram deter a resistência em torno de sua persona, na forma concebida por Marcell Mauss. A preservação da persona de Herzog através da manutenção do corpo sobre o solo pelo maior tempo possível, da exibição da imagem de seu suposto enforcamento que não convencia, e por fim o culto ecumênico, foi em si um golpe suficientemente forte não para derrubar, mas pelo menos para escancarar a tortura no Brasil. O DOI-Codi conseguiu ocultar o criminoso, mas não o crime. A repercussão no governo foi imediata, e Geisel se viu obrigado a agir, ainda que na prática sua resposta não passasse de um processo burocrático do qual já se sabia o final. O IPM, estava instalado para apurar “As consequências do suicídio”, já supondo o suicídio como um fato.

Os protestos das Mães de Maio na Argentina conseguiram atingir o mais alto escalão de sua ditadura sem argumentos políticos, mas apenas sustentando na rua as personas de seus filhos desaparecidos. No Brasil a sustentação desta persona, representada na figura de Vladimir Herzog, foi possível pois seu sepultamento “social” não foi realizado de forma satisfatória nem do ponto de vista civil, nem do religioso que aconteceu no cemitério israelita do Butanã. A cerimônia tensa e efetuada às pressas no cemitério, apesar de completa, não foi entendida como um enterro digno. A persona de Vladimir Herzog seguiu presente, até a cerimônia na praça da Sé, que sim deu um final digno a seu ser social, ou seja, foi sepultado com as honras de uma pessoa importante e valiosa para toda a sociedade, em uma cerimônia que assumiu a acusação do assassinato como a causa da morte. No culto ecumênico, a sociedade velava o jornalista como achava correto (enfrentando os militares como foi possível), e proporcionando o seu “fim social” de uma maneira justa. Não havia justificativa forte dos militares para impedir a realização de um culto ecumênico que vinha desvinculado de qualquer grito político. O culto representava a despedida da persona de Vlado, de uma maneira alternativa e fora de todo o sistema de mentiras, emboscadas e humilhações do governo. O culto fugia da versão oficial civil, e prestava as “devidas” homenagens que “ficaram em falta” no Butantã.

O Culto Ecumênico foi um atestado dos crimes militares que fugiu da esfera de controle burocrático. A coragem de todos os organizadores em realizar o culto mesmo depois das ameaças, superando todo o sistema de intimidação do governo, foi o

100 elemento surpresa deste dia que marcou o início da abertura do regime. O culto provava, de forma similar aos protestos das Mães de Maio na Argentina, a dificuldade que o sistema autoritário tem de entrar em duas esferas específicas: a da família, e a da religião. Apesar do total controle sobre a burocracia e sobre a imprensa, os mecanismos militares de controle mostraram fraqueza quando se tratava de entrar nestas duas esferas. A ditadura Argentina não tinha argumentos para sacrificar e prender Mães que buscavam notícias de seus filhos, mesmo com os ataques e ameaças realizados contra elas. A ditadura brasileira não encontrou sustentação legal, nem social, para brecar um Culto Ecumênico em memória de um jornalista inocente.

Conclusão

Durante o desenvolvimento desta pesquisa etnográfica sobre o evento do Culto Ecumênico em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, foi objetivo descrever as relações sociais que existiam entre os diversos personagens envolvidos neste caso. O culto é lembrado na história brasileira como um divisor de águas na política do regime e o catalisador do longo processo de abertura política que durou até 1985. A semana da morte do jornalista foi nitidamente uma semana atípica, onde a sociedade assistiu tensa e em silêncio o embate entre MDB, ARENA, e os ultraradicais.

O impacto do culto ecumênico foi sentido em diversos setores da sociedade, e por se tratar de um momento de extrema tensão na política nacional levou todos os personagens deste episódio a uma situação onde cada movimento é significativo. O medo e a tensão, são os dois sentimentos que melhor descreveram a sensação destes personagens. A situação era extrema porque obrigava personagens que mantiveram o silêncio durante todos os anos de chumbo a tomar alguma posição. O silêncio em si era objeto de tensão política. O caso Herzog escancarou a tortura de uma maneira em que era impossível manter-se inerte, mas protestando sem quebrar o silêncio.

Durante a semana que vai do dia 25 ao dia 31 de outubro de 1975, a imprensa encontrou um breve recuo na censura e na violência dentro dos porões. O governo ficou dividido em torno do caso, e a possibilidade do conflito após a missa representava vitória

101 de uma ou outra ala do exército. Setores judaicos que tradicionalmente acatavam as versões de morte entregues pela polícia não conseguiam sustentar sua posição de aceitar as versões oficiais por conta da pressão da sociedade. Os jornalistas já em desespero com a morte de um jornalista inocente, enfrentaram o medo e lotaram o sindicato.

O caso Herzog envolve uma amostra de personagens que representam as principais tensões nas relações sociais daquele momento: a sociedade civil, a religião, e o governo militar. A situação era extrema porque abalava relações fundamentais para a coesão social.

Para a pesquisa, o Exército em si tem de ser separado da sociedade civil como um personagem. Neste período, além do monopólio do uso da força, os membros desta sociedade estão envolvidos em sua própria percepção sobre as leis e a religião, de forma diferente do restante da sociedade civil. Os militares não estão subordinados a nenhuma estrutura hierárquica de ordem religiosa e seus membros estão sujeitos a uma lei própria presente nos tribunais e prisões militares. Desta maneira, a população formada por estudantes, políticos, intelectuais, e tantas outras figuras que representam a sociedade civil como um todo, somada da força religiosa (representada de maneira universal), lançou uma legitimidade ao culto ecumênico enquanto representante da vontade da sociedade. Ao atingir com violência as oito mil pessoas que se dirigiram à Catedral da Sé, o movimento do governo claramente atingiria uma enorme quantidade de esferas sociais multiplicando o impacto da ação.

O culto já era o maior protesto de massa no país desde os protestos de 1968. Naquele ano as manifestações estudantis terminavam sempre da mesma maneira, com a dispersão movida pelos cavalos, cães e “brucutus”31. Alguns protestos do período anterior ao AI-5 chamaram atenção especial da ditadura. A morte do estudante Edson, de 17 anos, no restaurante universitário conhecido como Calabouço no Rio de Janeiro levou a uma onda de protestos violentos na cidade que se estenderam até São Paulo onde milhares se reuniram em frente ao Teatro Municipal. Em 28 de Março de 1968 cinquenta mil pessoas acompanharam seu enterro pelas ruas do Rio de Janeiro. A semana entre o dia da morte do estudante, e da Missa de sétimo dia foi marcada pela repressão policial aos protestos

31 Brucutu: Blindado utilizado pela polícia para dispersar manifestações.

102 estudantis. O Brasil, um país católico, buscava impedir que se realizassem as missas de sétimo dia marcadas para acontecer na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro.

Os estudantes apontam desde este momento a possibilidade de um novo golpe. A ação das forças armadas, levando seus tanques para a rua, ao partir para cima da ‘população indefesa’ que participa da missa na Candelária, torna claros, segundo os estudantes, os objetivos defendidos pelo aparato militar, ou seja, os interesses das classes dominantes, bem como o caráter ditatorial do governo. (Valle, 2008)

O céu do Rio de Janeiro era rasgado por vôos rasantes de aviões militares e uma cavalaria que transformou o centro do Rio de Janeiro em guerra. Ao final da missa da tarde, os padres, vestidos de branco, formaram um cordão para proteger a população da violência policial.

Situação similar viveu a cidade de São Paulo dias depois com a morte do estudante José Guimarães. O estudante foi assassinado durante um confronto entre a Filosofia da Usp e estudantes do Mackenzie no episódio que ficou conhecido como “Batalha da Maria Antônia”. Seu corpo seria exibido pela Rua Maria Antônia, e uma passeata violenta seguiu até o Anhangabaú. No dia seguinte havia a expectativa de uma nova passeata para acompanhar o enterro de José Guimarães marcado para as quatro da tarde. A polícia realizou uma manobra estratégica e antecipou o enterro para a uma, além de acompanhar o corpo com 200 guardas civis (Pontes, 1968:16).

Durante os acontecimentos do caso Herzog a tensão envolvia um histórico de repressões violentas às cerimônias religiosas que velavam personagens que manchavam a imagem dos militares. A cerimônia de sétimo dia de Édson Luís, fora brutalmente reprimida na Cinelândia. O enterro de José Guimarães foi antecipado, escoltado, e a manifestação que aconteceu ao final da tarde novamente reprimida.

A tensão dentro dos personagens no caso Herzog passa pela história e pelo medo de o culto acabar engatilhando uma nova onda de violência. Porém, desta vez, já viviam o AI-5 para encarar um novo endurecimento no regime. A similaridade desta movimentação, com as últimas passeatas de 1968 chamava a atenção de todos. Desta vez, com o AI-5 em vigor, não seria demorado e nem difícil aprovar medidas mais duras,

103 justificadas pela similaridade das ocasiões. Era fundamental, portanto, que o ato acabasse em paz.

Os atos que não terminavam em violência eram raríssimos. Como exemplo de destaque é possível relembrar a “Passeata dos cem mil”. A passeata aconteceu no Rio de Janeiro em repúdio à violência policial e se destacou por ter movimentado uma grande quantidade de pessoas e conseguir encerrar o ato pacificamente. A diferença, desta passeata para as outras, era seu público. Diferentemente das passeatas anteriores, geralmente lideradas pelo movimento estudantil, esta passeata tinha como caráter o apelo de trazer toda a sociedade. O modo de fazer isso, era convocando artistas, intelectuais, políticos, e representantes dos mais diversos setores. O efeito desta convocação foi a presença de famílias e crianças, no meio de trabalhadores de variados setores. O movimento estudantil também estava presente, mas neste momento quem lidera esta enorme manifestação é a representação da sociedade. Na passeata se via de mãos dadas num cordão Chico Buarque, Gilberto Gil, , além das representações de diversos sindicatos e movimentos sociais. No meio da multidão havia também os padres, pais e mães, que por fim colocaram com sua figura uma pressão a mais para evitar a violência policial. Atirar em manifestantes que representam, de forma geral, muitos setores da sociedade, representados nas figuras da presença de artistas, intelectuais, e principalmente das famílias seria algo diferente dos tradicionais embates com o movimento estudantil. Mesmo com a presença do movimento estudantil não houve repressão. O exemplo estava dado para que durante a convocação para a missa de sétimo dia de Vladimir Herzog, a população comparecesse em massa, e levassem seus familiares inclusive crianças.

O Culto Ecumênico na praça da Sé tinha nas mãos a receita para ser um ato de massas e pacífico, que ameaçava implodir a moral da ultradireita do regime frente a sociedade. O exemplo das missas de sétimo-dia de Edson Luís e de José Guimarães, foram somados à experiência da Passeata dos cem mil, para produzir um culto ecumênico pacífico. A força do culto, no sentido de representação geral da sociedade, era ainda mais poderosa que as tradicionais missas de sétimo-dia. Com representantes de diversas religiões, e inclusive do sindicato dos jornalistas, o culto representou uma tomada de posição pública geral e contrária a violência do regime. Para isso não foram necessários

104 argumentos ou gritos de ordem política, mas apenas a realização tranquila das cerimônias que procedem a morte do corpo.

Dentro da Catedral, com seus diversos representantes, a figura da sociedade como um todo; Do lado de fora, cercando a multidão estavam os cães, brucutus, fuzis e peruas do DOPS representando o governo.

A conclusão do SNI32, de que a sociedade “não havia acreditado” na versão do Estado, estava nítida no Culto. Dom Helder Câmara foi questionado por Audálio Dantas ao final do Culto sobre o motivo de seu silêncio.

Na sacristia perguntei a Dom Helder Câmara: - O senhor não quis falar? A resposta do arcebispo também estava nas ruas: - Há momentos, meu filho, em que o silêncio diz tudo. Em seguida, ele se voltou para Dom Paulo e disse, em voz baixa: - A ditadura começou a cair hoje.” (Dantas, 2012:319)

O sucesso do culto ecumênico estava na capacidade de marcar o reconhecimento público e universal da não aceitação daquela violência do regime, através da negação das justificativas oficiais para a morte de Herzog. Sem levantar uma faixa sequer, o culto declarava que a sociedade não suportava aquela violência. O silêncio, e a paz do culto, eram necessários para manter a ordem, e preservar o verdadeiro significado contido na simples presença de todas aquelas figuras na catedral, unidas pela mesma mensagem.

As reiteradas ameaças à segurança do culto ecumênico que eram veiculadas na imprensa por nomes como o de Petrônio e do próprio Geisel, elevavam a tensão, mas ajudavam a manter o nome de Vladimir Herzog vivo nos jornais.

A figura de Vlado esteve presente insistentemente na imprensa e na política durante os sete dias entre a morte e o culto. O assunto era comentado por todos os setores, o que dificultava a censura, e sua morte impossibilitava a tortura e a ameaça da pessoa física. A família, que sim poderia ser ameaçada, tinha acompanhamento constante de

32 Ver página 29.

105 amigos. O ritual de “morte da persona” que o DOI-Codi realizava com os corpos não havia funcionado, pois seus laudos foram publicamente rejeitados.

Apesar da morte ter ocorrido no dia 25 de outubro, seguida do enterro logo no dia 27, a reação da sociedade e dos jornais que publicavam seu nome repetidamente mantiveram a persona, a figura social de Herzog, em evidência mesmo sem mencionar o caráter de assassinato. Apenas no dia 31, sete dias depois, o desligamento de sua persona foi socialmente reconhecido. O sepultamento e o luto têm a importância de encerrar a persona social do morto. A posição da sociedade foi justamente a oposta: se não puderam manter o corpo, por cima do solo por mais tempo, como queria o sindicato, mantiveram sua persona. Enterraram o corpo, mas não deixaram que ali se enterrasse a persona. Do enterro, se seguiu uma reunião no sindicato. A pressa das cerimônias de velório e enterro não satisfez o processo de luto o qual necessitava a sociedade para dar fim a sua persona. Era necessária uma nova cerimônia, e a não presença do corpo, colaborou para um ambiente político viável para a realização do culto. O corpo em si era um objeto de extrema tensão, pois era a prova material daqueles crimes.

Era prática do exército, após destruir os corpos dos militantes, destruir e humilhar a persona, como uma forma de impor o medo e justificar sua violência. A forma burocrática desta prática eram os IPM’s militares que nunca davam resultados concretos. Com a morte de Herzog todos sabiam que não seria diferente. No momento em que Geisel nomeou o Dr. Durval Ayrton Moura de Araújo para presidir o IPM sobre a morte de Herzog todos já sabiam qual seria o resultado de um inquérito, que tomava o suicídio como premissa.

A questão da manutenção da persona de Vlado Herzog em evidência entre a morte e o culto, somado às diversas homenagens nas colunas dos jornais e nos discursos públicos, o caso se tornava uma disputa entre o governo e a sociedade, que brigavam para ver se a persona de Herzog sairia martirizada ou humilhada perante a sociedade. O sucesso improvável de um final pacífico ao culto ecumênico evidenciava uma vitória da ala radical neste embate. O silêncio, porém, se mostrou a chave do sucesso nesta disputa. Incapazes de humilhar naquele momento a figura de Herzog, homenageada por um movimento universal – sociedade, religiões, família – o sucesso daquele culto “julgou” a persona de Herzog como uma figura justa, antes que o IPM pudesse humilhá-lo como o

106 faria semanas depois. Apesar do veredicto do IPM, a sociedade já havia entendido e velado o corpo e a persona do jornalista como desejava reconhecer. O polêmico resultado do IPM, tornou-se assim com o passar dos anos apenas mais uma prova de que o governo militar acobertava os crimes de tortura. Sua credibilidade a partir daí só poderia se deteriorar. Apenas em 2011, a família Herzog conseguiu reverter o atestado de óbito da época, e obter um novo atestado que alega os maus tratos sob custódia das forças militares.

Através deste caso fica evidente como a questão entre a morte de pessoas e de personas era um processo cuidadosamente acompanhado pelas polícias políticas. Para “completar sua missão” não bastava acabar com o corpo, mas se mostrava necessário acabar com a persona. Dentre os exemplos mais explícitos desta prática está a condenação no Diário Oficial de Ana Maria Nacinovic quando já estava morta há dois anos. A tensão no caso de Iara Iavelberg se deu no momento em que o exército mata o corpo, e semanas depois faz o enterro na quadra dos suicidas desligando sua persona de forma brutal.

A reflexão com a Argentina se mostra relevante na medida em que por esta análise, se percebe que a tortura como métodos de combate a subversão nos dois países teve objetivos distintos. A ditadura Argentina ao ocultar o fato da eliminação massiva dos corpos de seus inimigos promoveu um processo de eliminação que mantinha todas estas personas vivas na sociedade. No Brasil, a prática massiva da tortura que devolvia os corpos para a sociedade, produzia outro efeito: uma eliminação massiva de personas. Muitos saíram vivos dos porões mas não aguentaram a destruição causada pelos traumas, vindo a cometer suicídios ou tendo problemas permanentes para se reintegrar à sociedade. Mecanismos como o pau-de-arara, a cadeira do dragão, a pimentinha, a geladeira, mutilações e estupros eram constrangimentos que destruíam a persona, antes de destruir fatalmente os corpos. Não havia necessidade estratégica para o regime de eliminar estes corpos sistematicamente quando já matavam a persona. Para os guerrilheiros mais perigosos sim, algumas regras do porão já decretavam a pena de morte imediata.

Um dos constrangimentos citados por Paulo Markun33 foi o de que os torturadores obrigavam colegas a se entregar, mesmo sabendo que a informação não era inédita. Dentro das prisões, era frequente a humilhação na frente de outros presos, amigos

33 Ver em: Andrade, 2005.

107 e parentes (Arquidiocese de São Paulo, 1985). Não bastasse a tortura na frente de parentes inocentes, muitas vezes eram torturados os parentes e amigos. Uma situação desta em que se tortura pessoas inocentes, responsabiliza, pelo menos em nível pessoal, o elemento principal que está sendo torturado. As situações extremas, devolviam muitas pessoas com traumas. No caso das mulheres são muitos os relatos de abortos e sevícias sexuais.

A tortura dentro dos porões era tão extrema que o indivíduo quando chegava rapidamente perdia a noção da realidade e do tempo. Os discursos de quem passou pela tortura dão conta de que sua brutalidade faria facilmente uma pessoa assumir um crime que não havia cometido. No projeto “Brasil nunca Mais”, Dom Paulo relata o desabafo de um juiz que afirma ter recebido duas confissões do mesmo crime por pessoas que nunca haviam se visto. No caso de Chael Charles Schreier, apesar de apenas ele ter morrido dentro do porão, anos depois, Maria Auxiliadora que fora presa e torturada junto com Chael cometeu suicídio.

O “desligamento” da persona social de Herzog tornou-se extremamente lento, na medida em que nem os laudos de Harry Shibata, nem o enterro no cemitério do Butantã deram conta do reconhecimento social da versão militar sobre a morte de Herzog. Uma situação que tradicionalmente se resolvia rápido, transformou-se no acontecimento central da movimentação política.

A situação do enterro, não teve a calma que a cerimônia demanda para encerrar a morte social do indivíduo. Diversos elementos desestabilizaram um momento solene: a presença dos jornalistas torturados, a presença ostensiva e à paisana de policiais, e a pressa dos homens da Chevra Kadisha, deixaram um sentimento de que algo faltou àquela cerimônia. Naquelas condições, não foi possível aos presentes prestar as homenagens como queriam. A cerimônia judaica, não bastou como ritual social que encerra a “função social” do morto. Apesar do enterro do corpo, a “falta de uma cerimônia reconhecida” de sepultamento mantinha a figura de Herzog viva. O enterro religioso e social de Herzog só aconteceria de fato no Culto Ecumênico.

O corpo foi enterrado em uma quadra de “não-suicidas”. A morte biológica é imediata e obriga o corpo a ser enterrado em até três dias. A morte social aconteceu em momentos diferentes. A morte religiosa, fora reconhecida pelas autoridades judaicas, pois o enterro havia sido realizado de acordo com a tradição. O reconhecimento tão necessário

108 ao luto, porém não foi absorvido pelos colegas de sindicato que decidiram pela realização de um culto ecumênico, que de alguma forma daria um novo “enterro” a persona de Herzog, mas desta vez a cerimônia seria liderada e representada por diversos setores da sociedade. O Culto Ecumênico, que somou representações civis, formou uma representação única da sociedade.

Enquanto isso a “morte burocrática civil” viria apenas no resultado do IPM que seria concluído com a tese de suicídio. Apesar do laudo oficial, o culto ecumênico havia exposto publicamente que a sociedade não aceitara aquela versão dos militares, mesmo com a assinatura de seus mecanismos burocráticos tradicionais. A não aceitação destes mecanismos é um dos choques que abalam o governo. As mentiras fabricadas pela burocracia estavam escancaradas e não poderiam mais se repetir, sob risco de expor novamente toda a cúpula do governo.

A prática da tortura matava personas, sem matar os corpos. A circulação destas pessoas torturadas pela sociedade, de pessoas que carregam estas sequelas, faz com que se tornem a imagem viva da tortura de uma forma silenciosa. O exército percebeu que para distribuir o medo, devolver um torturado com suas histórias desumanas para a sociedade, era certamente mais eficaz do que matar o indivíduo e esconder seu corpo. O objetivo era justamente o contrário: não esconder o corpo; o corpo vivo, ciente dos horrores e das ameaças, é uma ameaça que circula cotidianamente pela sociedade. Com esta prática traçada de forma objetiva, quando o DOI-Codi produzia um corpo morto, este sim podia ser incômodo uma vez que sua estrutura visava a sistematização da tortura, mas não do assassinato. Não existia uma estrutura formal e objetiva para a eliminação destes corpos. Por mais que estivessem preparados para lidar com os corpos assassinados nas celas, isto não tinha a mesma organização sistemática e estrutural que tinha a tortura, diferentemente do que se encontra na ditadura Argentina ou até no Nazismo. Tanto na Argentina como no Nazismo temos exemplos de máquinas que perseguiam seus inimigos e já previam a eliminação sistemática dos seus corpos, começando pelas câmaras de gás e fornos crematórios e terminando nos “vuelos de la muerte”.

Para a tortura, existiam regras claras: quem devia morrer, quem devia ser torturado, nomes especiais e apelidos para pessoas e objetos. Máquinas importadas e financiamento privado ajudavam a bancar a estrutura que torturava seus inimigos. Mas

109 não havia nenhuma grande estrutura para dar fim aos seus corpos a não ser acordos informais com diversos setores, renovados de tempos em tempos. O assassinato de lideranças era sim uma prática, mas para isso planejavam cuidadosamente a ação, “fabricando” o morto no próprio lugar do crime na maioria das vezes, como ocorreu com Marighella e com Lamarca.

E desta maneira os corpos que morriam nas seções de tortura se tornavam “incômodos”, e logo se mostraram um calcanhar de Aquiles para os defensores da repressão ultraviolenta. A sociedade sabia do valor do corpo de um mártir sendo carregado durante uma manifestação, como quando aconteceu com estudante Edson Luís, carregado pelas ruas do Rio de Janeiro. A polícia por sua vez, percebeu o efeito de metralhar e humilhar um corpo como o de Ana Maria Nacinovic no meio da rua.

A morte aparece neste estudo como disparador de um fenômeno social que envolve um objeto concreto, o corpo, e sua versão abstrata, social, que é a sua persona. O cadáver é a prova física da morte, e representa a negação da persona (Thomas, 1983). O cerimonial que acompanha o enterro do morto é fundamental para encerrar a presença da persona na sociedade. No caso Herzog podemos ver que o clima de tensão que cercou o velório e o enterro, atrapalharam a realização destes rituais. O ritual de morte social que acompanha o enterro do corpo, apesar de ter acontecido não foi socialmente “reconhecido”, ou não foi “suficiente”. O processo de reconhecimento desta morte social foi separado, e aconteceu lentamente em um processo que teve seu clímax, sete dias depois da morte, no culto ecumênico.

A morte concebida a partir da dualidade do corpo, corpo físico/corpo social, aparece na crença judaico-cristã com a concepção de alma ou espírito, onde se crê ainda na ressureição dos corpos e no julgamento da vida após a morte. Este “caminho trilhado pela alma” acaba por gerar uma noção de continuidade para a persona social. Uma vez dada esta continuidade, se cria o reino da “morte da morte”, onde se dá a permanência no paraíso ou no inferno (Thomas, 1983:260).

Esta concepção sobre o corpo acaba por gerar uma dívida da sociedade para com o morto, no sentido de honrar sua memória para que alcance um “alto lugar no céu”. Desta forma, quando a sociedade se reúne, para rezar pela paz de uma alma, se reúne para honrar esta memória e desta maneira encerrar e “prover” uma morte social digna ao

110 indivíduo, que era justamente o fato social o qual os militares combatiam e controlavam através de sua máquina burocrática.

Y sin embargo, el final de la vida no implica, al menos por um tempo, la supresión total de la persona. Hay reglas jurídicas precisas, como ya hemos señalado, que defienden la memoria del difunto si éste llega a ser difamado: “En nuestros días, se predica el respeto por el cadáver porque respetamos la memoria de los difuntos y hay una incompatibilidad entre una actitud irrespetuosa con respecto al cadáver y un sentimiento real de piedad hacia su memoria. Si honramos a uno, es imposible que desconozcamos la dignidad del otro […] En nuestros días, la piedad consiste más bien en un sentimiento íntimo de respeto hacia la memoria del muerto. El implica normalmente, pero no necesariamente, la inviolabilidad del cadáver. (R. Dierkens apud. Thomas, 1983:264)

Louis Vincent Thomas traz a definição de que a morte social acontece no momento em que o indivíduo deixa de pertencer a um determinado grupo, seja por limite de idade ou perda de funções.

Hay muerte verdadera recién cuando socialmente se le reconoce. Esto ante no sólo al problema de los signos o pruebas de la muerte (…) sino también y sobre todo a la autoridad que está habilitada para autentificarlos en el triple plano de la realidad de la muerte, de la naturaleza exacta de sus causas, y de las circunstancias de lugar, de los medios y maneras como ocurrió (sobre todo en caso de muerte sospechosa, de muerte violenta, de crimen o suicidio). (Thomas, 1983:64)

A morte social aparece como um processo que se dá de forma separada da morte biológica, e pode acontecer muito tempo antes ou depois desta. Os jornalistas não podiam emitir laudos que comprovassem o assassinato do corpo físico, não possuem legitimidade social para isso embora soubessem por testemunhas as condições do interrogatório a que foi submetido Herzog. Não podiam tampouco usar as mídias em que trabalhavam para denunciar abertamente, pois o fantasma da censura seguia presente. A opção foi negar a humilhação da persona que o Exército promoveria como já era de costume, antes das burocracias militares. A disputa se deu na honra ou na desonra de sua memória. E o protesto veio na forma de homenagens simples como por exemplo a troca do nome do auditório do sindicato, ou o lançamento do “Prêmio jornalístico Vladimir Herzog de anistia e direitos humanos”. O reconhecimento social através da esfera religiosa, de maneira honrosa e digna da memória de Herzog, bastou para desarmar os mecanismos burocráticos militares. Não importasse qual o resultado da investigação

111 oficial, sua credibilidade já estava comprometida, e a única saída para a justiça foi reconhecer, ainda que mais de 30 anos depois, a responsabilidade do Estado pela morte do jornalista.

O governo do regime militar conseguiu através de seus mecanismos burocráticos manipular, na maioria dos casos, a morte social das pessoas que matavam. O controle da mídia se mostrou um fator fundamental para a manutenção deste processo, porém havia um lugar onde os mecanismos legais do regime não interviam totalmente que é a esfera religiosa, e privada (representada pela família) da sociedade. O governo podia controlar os tribunais e a imprensa, mas não podia controlar totalmente as estruturas religiosas. O único mecanismo que o regime dispunha para tentar manipular um ou outro comportamento que viesse do campo religioso era a coerção e a intimidação. Não é possível se imaginar uma espécie de “interventor militar” dentro da estrutura da Igreja ou de uma Sinagoga por exemplo. Um “censor” que pudesse por exemplo brecar as prédicas destes líderes religiosos é algo impensável pois o governo, seja ele civil ou militar, não possui legitimidade para interferir no campo religioso. A separação destas esferas civil e religiosa faz com que determinados fatos sociais, como a morte, sejam normalmente reconhecidos socialmente por um “atestado” civil e um atestado religioso, como duas forças isoladas que compõe a totalidade do reconhecimento da morte social. A sucessão tradicional de eventos que montam a morte social civil de um indivíduo tem início no momento em que o Estado emite sua “certidão de óbito” e autoriza a autoridade religiosa preferida a efetuar o enterro. O sepultamento de Herzog na quadra dos “não-suicidas”, e o Culto Ecumênico realizado no simbólico sétimo dia da morte, que contou com 8.000 pessoas, quebrou a “normalidade” do processo de reconhecimento social da morte que costuma acontecer no momento do enterro. Apesar de estas duas esferas reconhecerem a morte, o campo religioso, representado no culto ecumênico, reconhecia a morte social de uma maneira oposta a qual o Estado pretendia reconhecer. A sociedade negava através da religião o reconhecimento civil imputado pelo Estado. A catedral da Sé, literalmente dentro de seu perímetro físico, se apresenta neste contexto como um pequeno refúgio para a democracia. Da porta para fora da Igreja, cães, cavalos e fuzis do exército.

Os cemitérios geralmente são mantidos por algum tipo de instituição religiosa, e por isso, mais uma vez, a burocracia do Estado não tem legitimidade social para intervir. A polícia podia entrar, ameaçar, e acompanhar as cerimônias, mas é

112 impossível que um oficial militar conduza a cerimônia. Deste ponto de vista, a morte, como processo burocrático, era potencialmente uma situação delicada para o Regime, especialmente quando se trata de um enterro judaico de militantes “suicidados” pela ditadura. Em momento algum este problema se mostrou incontornável, como exemplo o enterro de Iara Iavelberg, onde o corpo foi escoltado do velório até a sepultura na quadra dos suicidas. Mas nem por isso deixaria de ser uma situação delicada com potencial de quebrar a legitimidade da burocracia militar, como aconteceria na semana que acompanhou a morte de Herzog. O reconhecimento religioso que se deu com o enterro em área nobre do cemitério, era mais um atestado socialmente reconhecido que contradizia o atestado civil. A sustentação da honra da memória de Vladimir Herzog se mostrou um ato de desobediência civil, e simplesmente lembrar seu nome se tornou negar a legitimidade do regime sem dizer uma palavra de ordem política.

Tendo em mãos o apoio do campo religioso, os jornalistas tinham uma força legítima, ou seja, socialmente reconhecida, para cobrar do governo mais esclarecimentos em torno das circunstâncias em que ocorreu a morte sem parecer uma simples bandeira de oposição política. O não reconhecimento dos mecanismos que mantinham a legitimidade do regime impactou diretamente na prática da tortura. Se os mecanismos que protegiam o porão já não tinham a mesma credibilidade, as consequências da tortura deveriam ser repensadas, e no mesmo momento em que se deu a morte do Herzog, os próprios colegas jornalistas que estavam presos relatam que a tortura teve um recuo breve, mas imediato. Este não reconhecimento foi um duro golpe para os defensores da repressão que perdiam legitimidade dentro do próprio exército. Geisel se sentiu vitorioso com o fato do culto ecumênico não ter se encerrado em violência por que entendia o tamanho da desmoralização que isto representava para os argumentos do porão e sua própria autoridade. Esta sequência de eventos foi sentida, mas não foi o suficiente para a derrubada imediata da linha dura, que só iria acontecer com o caso do operário Manoel Fiel Filho. Pai de duas filhas, o operário fora acusado de estar envolvido com o PCB, e sua morte no dia 17 de janeiro de 1976, apenas alguns meses depois, aconteceu em circunstâncias muito parecidas. Desta vez, o preso havia “se estrangulado” com suas próprias meias. A explosão na mídia de mais um caso quase idêntico ao de Herzog passaria de uma provocação, premeditada ou não, da linha dura ao governo Geisel; ela representava o risco iminente de sabotar de vez a credibilidade do governo. A

113 preocupação com o corpo neste caso, mais uma prova material da tortura, se deu de forma muito mais intensa do que em casos anteriores. Somava-se a este fato a intimidação que sofreu a família do operário que nem conseguiu registrar a queixa por sequestro na delegacia.

O corpo do operário foi entregue à sua mulher na noite de sábado por agentes do II Exército que se faziam passar por funcionários do Instituto Médico Legal. O velório não deveria durar mais de duas horas, e não se poderia avisar ninguém além da família. Durou hora e meia. ” (Gaspari, 2004:214)

Com Fiel Filho, o II Exército não abriu brecha para que o corpo se tornasse assunto na imprensa. Como não conseguiriam mais segurar os jornalistas, trabalharam o quanto puderam para ocultar este corpo, sem gerar necessariamente mais um desaparecido. A condição de devolver o corpo, sem que se avisasse ninguém, nem a própria família, era uma tentativa de decretar a morte social de Fiel Filho sem escancarar mais um abuso do porão.

Os serviços de informação do governo, que prendiam vendedores de bilhetes de loteria em nome da segurança nacional, mantiveram no escuro o presidente da República e o ministro do Exército. O chefe do CIE, general Confúcio, não avisou Frota, porque seus informantes paulistas lhe pediram “boca-de-siri”. O chefe do SNI, general Figueiredo, também recebeu a notícia, mas não a comunicou ao presidente. ” (Gaspari, 2004:215)

Na mesma noite a notícia chegou a Geisel por uma ligação do governador Paulo Egydio, e o presidente, que naquela noite não dormiu (Gaspari, 2004:217), se levantou com a decisão de demitir Ednardo D´Avila Mello. A decisão foi radical, e não deu nem tempo para Ednardo se defender. Geisel entendeu que esta era a única saída possível naquele momento para não deslegitimar o governo. Para conter manifestações semelhantes às do caso Herzog, o governo resolveu manter o silêncio (sem notas oficiais, e o IPM foi encerrado “constatando o suicídio”) e agir rapidamente na demissão da principal figura da violência dos porões em São Paulo. Com a demissão, dava um recado para os comandantes dos outros Estados.

O caso Herzog iniciou um processo de não reconhecimento dos meios violentos pelos quais o governo mantinha seu poder. O culto ecumênico em si foi apenas o início de um movimento de criminalização social da tortura, que se deu da direção da

114 sociedade para o governo. A sociedade se agarrou a estrutura religiosa para reconhecer a morte social de Herzog e deslegitimar os mecanismos legais tradicionais, o que em si significava uma espécie de desobediência civil quando a sociedade honra a memória do jornalista. O culto ecumênico foi apenas o princípio deste processo de criminalização da tortura, que teve seu ápice no caso de Manoel Fiel Filho. No caso do operário, as tentativas do porão de esconder e o “cuidado” com o corpo indicam o nível em que se chegou esta criminalização alguns meses após o culto. O reconhecimento da prática de tortura e assassinatos no DOI-Codi já era reconhecida como um crime, e o simples vazamento da informação de sua morte nas mesmas condições de Herzog foi o suficiente para derrubar Ednardo D´Avila Melo e brecar a tortura no país, pelos menos em seu formato institucionalizado.

O regime havia falhado em humilhar a persona de Vladimir Herzog, o que comprometeu o governo, na medida em que o Culto se tornou o reconhecimento social de que a burocracia mentia. A resistência, portanto, se dá também através da memória. Imortalizar a memória do jornalista com homenagens em nomes de escolas e prêmios, por exemplo, é em si uma forma de resistência pela memória, e é a negação da legitimidade daqueles anos de chumbo. O Estado não teve outra saída a não ser reconhecer, ainda que apenas em setembro de 2012, que Vlado morreu sob "lesões e maus- tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército DOI-Codi".

A tortura foi a prática sobre a qual o governo se apoiou para manter sua legitimidade. Com a instauração do AI-5 e a institucionalização da tortura, ainda que no discurso oficial ela fosse considerada clandestina, o exército demonstrava ao povo duas mensagens através da circulação dos corpos torturados: a primeira, de que ninguém deveria enfrentar o regime sob pena de ser torturado e possivelmente morto; a segunda, de que havia uma guerra em andamento. A tortura como prática “devolveu” o equilíbrio social e a “tranquilidade” que os militares precisavam para se justificar no poder. Após as ofensivas contra os grupos armados de esquerda, já liquidados, o governo vibrava nas páginas dos jornais com as chamadas sobre um milagre econômico e um Brasil tricampeão do mundo de futebol. Com o fim da esquerda armada revolucionária, a tendência a se esperar seria uma redução na tortura, algo que não ocorreu. Pelo contrário, mesmo sem a resistência armada a tortura seguiu cada vez mais forte e institucionalizada. O governo começou a perseguir a esquerda não violenta até que chegou aos jornalistas.

115

Ambos os grupos não representavam nenhuma ameaça de golpe, pois defendiam a abertura do regime pelos mecanismos legais. Este fato indica que a manutenção da tortura era fundamental para manter no cotidiano da sociedade o medo que justificava a intervenção militar e combater inclusive os que defendiam a abertura pelos meios legais. Se não houvesse medo, o Brasil “estaria preparado” para uma abertura democrática. A tortura como prática, portanto, era a afirmação de que o país estava em constante perigo, a principal justificativa para manter a legitimidade dos militares no poder. Ao “deslegitimar” a tortura como prática, a sociedade contesta a legitimidade dos militares ocupando o planalto.

A tortura se apresenta neste estudo como uma prática social que sustenta as relações sociais que mantiveram os militares no poder. A prática da tortura justificava a existência daquela ala radical que operava no DOI-Codi, e além de seu papel de intimidação social tinha uma função política nos embates políticos que haviam no exército. A alteração desta prática acabou por gerar um realinhamento destas relações, alterando o quadro de coesão social segundo a concepção de Max Gluckman:

A estabilidade do sistema provém da coesão social de suas relações econômicas e da força de seu governo. Politicamente, a estabilidade é mantida pela máquina administrativa, a partir da qual alguns conflitos são resolvidos e procedimentos rotineiros asseguram a cooperação fácil, o que é reforçado por outros mecanismos sociais. Os indivíduos usam a contraposição política das autoridades para atingir seus próprios fins. (Gluckman, 2010:312)

A quebra no cotidiano da tortura inevitavelmente sugeria que o ambiente estava mais tranquilo, e que o porão não era mais necessário, opinião contrária ao pensamento da ala ultrarradical. O movimento de Geisel que tirou Ednardo é entendido como o primeiro importante passo para a abertura política que só acontecerá de fato em 1985. O fim da tortura em sua forma institucional alterou as relações sociais no Brasil na medida em que obrigou o governo militar a reinventar esta relação com a sociedade. Com o fim desta prática o governo enfraquecia o órgão de repressão política que era fundamental para legitimar o estado de exceção, e caminhou, com uma distensão “lenta, gradual e segura” rumo a distensão política. Já que não havia mais como inventar inimigos políticos, logo ficou claro para os militares que seria insustentável levar aqueles anos de chumbo por muito mais tempo. Se a abertura fosse imediata e “irrestrita”, ela claramente

116 ameaçaria os militares responsabilizando-os pela violência dos porões. Muitas das vítimas seguem vivas e setores da sociedade imediatamente poderiam se articular para realizar a “caça às bruxas”. Era necessário sim, portanto, conduzir um processo de abertura, porém, com toda a cautela necessária para não manchar a imagem daqueles governantes, pois certamente seriam responsabilizados pelas violações aos direitos humanos.

A saída foi conduzir um processo de Anistia e reabertura, que terminou apenas dez anos após a morte de Herzog, com a convocação de eleições em 1985. Com a mudança na prática que mantinha a coesão social, se dá uma renovação nas relações sociais até que se atinja novamente a coesão e o equilíbrio social. O governo militar conduziu todo este processo de reabertura de forma que garantisse o realinhamento desta coesão, sem que eles fossem responsabilizados pelas violações de direitos humanos cometidas no período. Todo o processo de reabertura política no Brasil, se mostrou, portanto, um processo de realinhamento das relações entre a sociedade e o Estado, conduzido lentamente e de forma orquestrada por uma força dominante. A sociedade em nada participou de fato, o que permitiu que torturadores ficassem impunes neste novo pacto social que foi imposto do Estado para a Sociedade. O caso Herzog foi gatilho de uma percepção dentro do governo de que a reabertura política era a única opção, e uma vez aceita esta concepção, o governo militar levou dez anos para “preparar o terreno” para a redemocratização. Como referência de abertura imediata, os militares brasileiros viram os parceiros argentinos da OBAN serem condenados imediatamente após a instauração da “Comisión Nacional sobre la desaparición de Personas” (CONADEP, 1985) depois de muitas vezes serem delatados por membros das próprias forças armadas.

O conhecimento sobre todos estes receios e embates políticos que ocorriam durante aqueles anos não eram necessariamente o combustível do medo que tomou os jornalistas como categoria profissional. O simples fato de que haviam matado um jornalista sabidamente inocente, era suficiente para espalhar o medo generalizado.

A situação criou um clima onde não era preciso “ser culpado” para ser assassinado, e isto tornou o ambiente insuportável para muitos jornalistas. A tortura como prática desta coesão dependia também da censura aos jornais para atingir o seu objetivo. Quando a tortura atingiu as redações ela explodiu o medo dos jornalistas e quebrou uma

117 das bases de sua sustentação. A quebra deste silêncio, porém, não podia ser explicitada nos jornais, e se deu pelo único refúgio onde a estrutura do Estado não consegue intervir: a estrutura religiosa. O atestado de morte social, que concluía de forma abstrata o assassinato, foi em si um enfrentamento frente ao governo que se dá fora do campo político, onde o governo não tem autoridade para intervir. A tortura e a censura podem ser definidas como duas das principais colunas que sustentaram a coesão social do regime militar brasileiro. O culto ecumênico a Herzog atingiu em cheio estas relações ao chamar a denúncia da tortura, pelos jornais, para dentro do ambiente da Igreja, e usar desta forma a legitimação religiosa para realizar a denúncia. O movimento não bastou para uma ação imediata, mas criminalizou de forma informal e geral a violação de direitos humanos praticada dentro do DOI-Codi. A partir daquele momento, ainda que demorada, a abertura política era a única saída para o realinhamento da coesão social no Brasil.

A tortura como prática indica que o combate à “subversão” no Brasil, diferentemente do que aconteceu em outros países não buscou a eliminação física de seu inimigo, mas uma intimidação social massiva. Ao devolver a pessoa torturada para sua casa, o governo devolve para a sociedade a prova material do que é capaz de fazer para combater seus inimigos, que não encontraram amparo na burocracia para se defender ou buscar seus direitos. A tortura em massa, que vezes resultava em corpos mortos, vezes em corpos vivos, circulava na sociedade espalhando o medo. Com uma grande quantidade de corpos torturados circulando, o impacto social era imediato e cotidiano, e mostra que a repressão política brasileira teve um objetivo particularmente distinto dos sistemas repressivos que assassinaram massivamente seus inimigos. A partir deste ponto, a análise de um “nível de violência de Estado” que leve em conta como fator principal seu aspecto quantitativo acerca de seu número de mortos, nem de longe é suficiente como ferramenta para medir ou comparar a violência de dois regimes. A violência que vêm do Estado para a sociedade pode produzir diferentes tipos de mortes e deflagrar um nível de medo que não está proporcionalmente associado a uma quantidade numérica de vítimas.

O desequilíbrio da coesão social foi causado por um movimento da sociedade que tornou a tortura um fato social inaceitável. O culto ecumênico foi a cerimônia que oficializou este reconhecimento, escancarou novamente a tortura, e tornou o caminho da reabertura política a única opção para o governo militar.

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