FLORENTINE GALLWAS Tradução de Saulo Adriano Um novo gênero com elementos tradicionais FLORENTINE GALLWAS é mestre em Musicologia pela Universidade de Hamburgo (Alemanha). Eletrotango nuevo, tango fusion, os quais, apesar de não serem essencialmente inaplicáveis, podem gerar confusão. Alguns são meros termos inespecíficos, que descrevem as influências populares no tango. Outras opções são deixadas em aberto. “Eletrotango” é um termo capaz de definir o estilo de maneira mais precisa. O fenômeno é relativamente recente, e por isso os artistas – que estavam e estão participando do desenvolvimento do ele- trotango, que abraçaram o estilo e estão executando a música no palco – estão cons- truindo a definição mais particularizada. A recepção da mídia fornece informações sobre o consenso geral, sobre quem está ANTES DA DEFINIÇÃO produzindo o eletrotango e como é pro- movido. Os cabeças do movimento, que se estabeleceram na última década, são Gotan Project, Bajofondo (Bajofondo Tango Club), Narcotango e Otros Aires. Outros que é o eletrotango? De onde exemplos são os grupos Debayres, San ele vem? Quem o toca? Por- Telmo Lounge, Tanghetto, Tango Crash, ventura será “eletrotango” o Tangodrims, Ultratango e Zona Tango. termo correto? Antes que se Com o propósito de descrever o estilo, e possa chegar a uma definição com isso esclarecer as diferenças dentro do e às respostas dessas questões de maneira de- fenômeno, o estudo desse campo enfocará talhada, deve-se primeiramente tentar traçar grupos existentes e bem estabelecidos da um esboço preliminar dos fatos, condições e cena do eletrotango. dificuldades. O termo “eletrotango” é usado Como o estilo se desenvolveu há dez geralmente para descrever uma síntese do anos, na virada do milênio, já temos muito tango e da música eletrônica. Apesar de o material a respeito dos intérpretes e pro- montante de literatura de pesquisa sobre dutores e numerosas críticas. Além disso, o tema “tango” ser bem extenso, o gênero podemos encontrar muitas discussões in- específico dessa nova síntese ainda perma- tensas, entusiasmadas e desaprovadoras, nece inexplorado em nível musicológico. relativas ao tema “tango”. Por exemplo, Por isso, parece parcialmente problemático em uma entrevista concedida ao Japan definir ou descrever o estilo. Até o momen- Times em 2003, o músico Philippe Cohen to aparentemente não há um consenso de Solal (apud Hammond, 2003) falou sobre as aceitação geral a respeito de determinada hostilidades por parte de músicos do tango definição ou denominação. Entre outras tradicional em relação ao novo estilo: “É razões, está a aplicação altamente genera- surpreendente, mas nós [do Gotan Project] lizada de elementos eletrônicos a muitos e tivemos bem poucas reações negativas, e variados gêneros, o que pode fazer com que elas eram embasadas em bons argumentos. uma designação se sobreponha a outras. Isso O fundamentalismo, seja de que espécie é agravado pelo fato de as críticas às vezes for, não faz sentido e não deixa o mundo se referirem ao cenário da música e da dança evoluir. Isso também é verdadeiro em re- como uma coisa só, sem qualquer distinção. lação à música: no final, o tradicionalismo Assim, pode ocorrer um encavalamento de mata a música”. termos, tais como neotango (especialmente Algo que dificulta – enquanto se tenta em relação ao cenário da dança), tango chegar a uma definição – é, por exemplo, 130 REVISTA USP, São Paulo, n.91, p. 129-138, setembro/novembro 2011 o fato de que declarações feitas pelos pró- ver no tango nuevo de Astor Piazzolla a prios produtores de eletrotango pareçam origem de todas as revoluções pelas quais contradizer esse rótulo. Por exemplo, o o tango passou nessa área. fundador do grupo Bajofondo, Gustavo Por exemplo, nos meados dos anos Santaolalla (apud Varela, 2008), em um 1970 Piazzolla fundou o octeto Conjunto artigo publicado em 2008 no San Fran- Electronico. Em toda a sua carreira ele cisco Chronicle, diz: “Não gostamos do conduziu dois octetos eletrônicos. Inspira- rótulo ‘tango eletrônico’”. Porém, não é do, entre outros, pela “banda elétrica” de necessário discordar se considerarmos que Chick Corea, ele planejava a formação dos o artista fez essa afirmação em relação a conjuntos, concebidos também para tocar um desenvolvimento artístico duradouro com instrumentos eletrônicos. Seu filho, próprio. O problema aqui é possivelmente Daniel Piazzolla, tocaria os sintetizadores. mais devido à repetição imprecisa e não cuidadosa em críticas subsequentes. Talvez “Todos os músicos, à exceção de Agri, seja essa uma das razões pelas quais vários tinham raízes no jazz. Piazzolla permitiu rótulos (veja acima) possam surgir além de muito mais improvisações neste grupo do “eletrotango”, mas no final das contas com quem em qualquer outro que formou, e às o mesmo sentido. vezes dispensava totalmente as partituras, e Este artigo é uma tentativa de descrever dava uma orientação geral sobre a melodia o fenômeno eletrotango de maneira detalha- com um código de letra. À exceção de ‘Adiós da, retratando exemplos dos processos de Nonino’, o repertório era completamente trabalho, estágios de produção, execuções novo” (Azzi & Collier, 2000, p. 181). e apresentações, com a ajuda de exemplos de vários grupos. Após ilustrar o funciona- A questão então não dizia respeito sim- mento e o caráter, na sequência teremos um plesmente a uma reforma acústica por meio parágrafo curto sobre o uso do eletrotango na de instrumentos eletrônicos: era bem clara a propaganda e na indústria cinematográfica, ideia de atravessar fronteiras e levar o tango uma vez que parece ter se tornado popular a novos campos. Por exemplo, em 1976 bem além das fronteiras da cena do tango. ele compôs “500 Motivaciones” para seu conjunto. “Aquela era minha música. Tinha toque de tango, não de rock” (Piazzolla apud Gorin, 2001, p. 147). Com essa afirmação, TENTANDO CHEGAR A UMA ele enfatizou a associação ao tango. No que se refere ao ponto de vista geral de Piazzolla BREVE DEFINIÇÃO em relação ao free jazz, Johannes Feldmann- -Bürgers (1996, p. 61) salientou (em seu O novo estilo eletrotango surgiu ao final trabalho Tango und Jazz) que Piazzolla dos anos 1990 na Europa e na Argentina, não gostava do uso de sintetizadores ou mais precisamente em Paris e Buenos Ai- computadores. Por fim, ele não considerava res. Como o nome inicialmente faz supor, a simbiose com a eletrônica como sendo o eletrotango consiste de uma mistura de sua música. Essa pode ser uma das razões tango argentino e eletrônica, ou melhor, com pelas quais a colaboração com o Conjunto sons e batidas eletrônicas, e se estabeleceu Electronico foi encerrada. “Esta é a última desde seu advento até o presente como uma vez [1977] que ele tem um ‘grupo elétrico’. forma independente. A questão sobre quem Lamentavelmente, Piazzolla para de fazer teria inventado o eletrotango primeiramente referência ao som internacional de Chick não tem como ser esclarecida de maneira Corea, e, apesar de o Conjunto Electronico definitiva. Ao se contemplar os precursores produzir boa música, ele não a considera ou as primeiras combinações entre o tango o Piazzolla real” (Kuri & Pessinis, 2002). e a eletrônica (ou melhor, instrumentos Em relação ao eletrotango dos dias atuais, eletrônicos em geral), pode-se até mesmo é preciso notar que a combinação feita no REVISTA USP, São Paulo, n.91, p. 129-138, setembro/novembro 2011 131 passado por Piazzolla entre instrumentos que faz uso de influências da região do Rio eletrônicos e tango era vista como uma da Prata (o rio que parcialmente forma a fusão entre o rock e o tango. fronteira entre a Argentina e o Uruguai), e o Na busca por precursores, Hans Peter tango é uma parte dessa mescla, juntamente Salzer (2005) salienta (em seu artigo jor- com a milonga e o candombe, mas também nalístico “Electro-Neo-Fusion-Chill-Oul- temos o que os outros membros da banda -Project-Tango?”) que talvez tenham sido os colocam nessa mistura, acrescentando membros do grupo TangoCrash os primeiros elementos do rock, música eletrônica e a fazer experimentos com eletrotango já em hip-hop” (Santaolalla apud Varela, 2008). 1987. Além disso, acrescenta ele, é possível encontrar uma combinação de eletrônica e Uma ênfase mais forte nos elementos tango até mesmo na interpretação popular tradicionais é encontrada, por exemplo, no feita em 1981 por Grace Jones – uma adap- Otros Aires, grupo fundado em 2003 em tação do “Libertango” de Astor Piazzolla Barcelona. Em sua história, eles descrevem – com o título de “Strange, I’ve Seen that assim o peso de cada influência: “Influencia- Face Before”. Contudo, somente com esses do a princípio pelo estilo conhecido como poucos representantes, uma cena indepen- mestiçagem, este projeto foi feito a partir de dente de eletrotango não teria condições uma mescla de raízes argentinas históricas, de se desenvolver por muito tempo. Por o tango, o velho som dos bairros, Gardel, esse motivo, a cena independente somente as milongas, as orquestras tradicionais desenvolveu-se ao final dos anos 1990. Nes- e vários ritmos eletrônicos”1. Apesar de sa época, foram feitos múltiplos esforços terem existido e ainda existirem diferentes de combinar o tango e elementos como o pontos de vista, isso pode ser atribuído house, techno, trip-hop e/ou o drum&bass. mais à licença artística comum e ao desejo No início, os elementos do tango nessas geral de se distinguir como artista (no que combinações consistiam em sua maioria diz respeito à questão de promover suas de samples de tango, extraídos de material características distintas). O denominador existente com o qual se faziam então novas comum, a despeito dos pontos de vista combinações. Além disso, Garth Cartwright diferentes, permanece o mesmo. (2003) observa a conexão ao dub em seu Depois de usar principalmente samples artigo (publicado pela Rádio BBC 3) sobre de tango nos estágios iniciais de seu desen- o grupo Gotan Project: volvimento, a instrumentação (parcialmente acústica) desempenha hoje um papel central “O Gotan foi pioneiro no modo como na execução dos elementos do tango desde construiu pontes entre o tango e o dub ja- a virada do milênio.