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“TODA MULHER, NO FUNDO, É UMA GANHADEIRA”: FEMINISMO, RELIGIOSIDADE E RESISTÊNCIA NEGRA NO ENREDO DA UNIDOS DO VIRADOURO NO CARNAVAL DE 2020

YNAYAN LYRA SOUZA

Resumo: Este estudo tem por objetivo analisar a narrativa construída pelo desfile campeão do carnaval carioca no ano de 2020, produzido pela escola de samba Unidos do Viradouro, que levou para a avenida um enredo em homenagem a luta e resistência de diferentes gerações de mulheres negras que exerceram o chamado trabalho de “ganho” (seja na situação de escravizadas ou de libertas) e que, na atualidade, têm suas memórias cantadas pelo grupo musical baiano “As Ganhadeiras de Itapuã”. Para isso, selecionamos diferentes fontes que compõem a apresentação feita pela Viradouro: a sinopse do enredo (texto orientador do desfile), a letra do samba-enredo (composição que embalou a apresentação da agremiação), além de fotografias e vídeos (que nos permitem ter acesso aos aspectos plásticos do desfile – fantasias e carros alegóricos). Palavras-chave: As Ganhadeiras de Itapuã; Mulheres negras; Carnaval; Escolas de samba.

INTRODUÇÃO

A escola de samba Unidos do Viradouro conquistou o título de campeã do carnaval do em 2020. Foi a segunda vez na história que a agremiação, oriunda de Niterói, alcançou o posto mais alto do grupo especial carioca. Após 23 anos (sua última conquista havia sido em 1997), a escola voltou a vencer o concurso ao levar para a avenida o enredo “Viradouro de alma lavada”, que teve como mote homenagear “As Ganhadeiras de Itapuã”, grupo cultural/musical baiano composto por mulheres, em sua maioria, senhoras, moradoras do bairro de Itapuã na cidade de Salvador (além de algumas crianças e músicos instrumentistas que integram a banda). Desenvolvido por dois jovens carnavalescos, Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon, o enredo foi inspirado nas canções do referido grupo cujo nome (As Ganhadeiras de Itapuã) e

 Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da UNESP, Campus de Assis. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. E-mail: [email protected]

2 todo seu repertório musical remetem as memórias e vivências de gerações de mulheres negras que residiram em tal bairro e que viveram do chamado trabalho de “ganho”. Dessa forma, o desfile da Viradouro buscou não apenas homenagear as integrantes do grupo musical contemporâneo, mas, também, abordou a trajetória e a cultura das antigas “ganhadeiras” – mulheres escravizadas ou libertas que, desde o século XIX, passaram a ocupar lugar de destaque no mercado de trabalho urbano em diferentes locais do país, especialmente, na capital baiana (local enfocado pelo enredo). Alguns aspectos explorados pelo desfile da Unidos do Viradouro remontam ao passado de luta dessas mulheres, ao passo que elas são apresentadas pelos carnavalescos como pioneiras da luta feminista no Brasil e importantes representantes da resistência negra em um país que, durante séculos, teve sua história marcada pela existência de um sistema escravocrata. Isto posto, por meio da investigação de diferentes fontes verbais e visuais que envolveram esse desfile, pretendemos investigar o discurso apresentado pela agremiação e lançar algumas reflexões sobre a narrativa construída pelos carnavalescos e sambistas da escola. Antes de avançarmos na análise das fontes selecionadas, torna-se necessário fazer algumas considerações sobre aspectos que envolvem o nosso objeto de estudo. Primeiro, é preciso dizer que a temática negra apareceu de forma recorrente nos enredos das escolas de samba ao longo da história dos concursos.1 Entre esses enredos, alguns homenagearam figuras femininas como cantoras, personagens históricas, integrantes das escolas de samba, mães de santo etc. (entre elas, podemos citar: Xica da Silva, Tereza de Benguela, Clementina de Jesus e Tia Ciata). Se considerarmos apenas os carnavais do século XXI, encontramos também enredos que trataram de mulheres negras de forma coletiva, a Acadêmicos do Salgueiro, por exemplo, apresentou dois desfiles com essa proposta: “Candances” (2007) e “Senhoras do ventre do mundo” (2018). Considerando que o enredo da Viradouro, que analisaremos neste texto, aborda a realidade de mulheres negras que viveram em diferentes contextos históricos, alguns estudos nos ajudam a pensar em questões próprias a esse segmento feminino. Nesse aspecto, destacam- se trabalhos desenvolvidos por pesquisadoras feministas que refletem sobre a condição da

1 Diferentes trabalhos publicados por estudiosos do carnaval confirmam a presença dos enredos negros em vários períodos e com diferentes abordagens. Sobre o assunto, ver: SIMAS; FABATO, 2015 e FARIA, 2016.

3 mulher negra pelo prisma da interseccionalidade, ou seja, considerando as articulações decorrentes da inseparabilidade estrutural entre racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado. A professora e ativista estadunidense Bell Hooks (2019) é uma das autoras que tem contribuído para essa discussão, inclusive, pensando os limites do próprio movimento feminista de reconhecer e representar as demandas especificas das negras. Ao criticar a visão que supõe a existência de um coletivo “mulheres”, Hooks evidencia relações de opressão e dominação dentro do próprio gênero e mostra que esse discurso homogeneizante acaba por silenciar as mulheres negras. No Brasil, alguns estudos também seguem pela abordagem de intersecção. Bebel Nepomuceno (2012), por exemplo, argumenta que as mulheres negras enfrentaram ao longo do tempo uma série de exclusões e opressões que caracterizam uma sociedade hierarquizada por gênero e raça. Coube a elas utilizar-se dos espaços possíveis para encarar a dura realidade que se impunha, marcada por diferentes privações, preconceitos e violências. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Danubia de Andrade Fernandes, evidencia nas suas reflexões a dupla alteridade da mulher negra: considerada “Hipersexual, masculina, promíscua, dominadora e forte: a mulher negra foi construída ao longo de séculos de opressão racista e machista, potencializando o que havia de pior nas configurações estigmatizastes dos negros e das mulheres” (FERNANDES, 2016; 697). No que concerne a literatura que trata sobre o chamado trabalho de ganho, mais especificamente, o feminino, selecionamos alguns estudos que nos possibilitam compreender um pouco mais das relações escravistas vigentes no Brasil entre os séculos XVIII e XIX e a presença das mulheres negras no seu bojo. Destaco, assim, as reflexões de Maria Odila Dias (1983;1984), Cecília Moraes Soares (1994; 1996), Cláudia Andrade Vieira (2015), Joana de Moraes Monteleone (2018) e Aleida Fontoura Batistoti (2019). Por fim, buscamos também estudos específicos sobre o grupo musical As Ganhadeiras de Itapuã. Apesar de ter sido fundado a pouco tempo, já existem publicações sobre o assunto – produzidas pelas pesquisadoras Harue Tanaka Sorrentino (2012) e Renata Costa Leahy (2018). Inclusive, essas obras foram consultadas pelos carnavalescos da Viradouro para elaborar o enredo de 2020. As reflexões desenvolvidas pelas autoras mencionadas serão articuladas no

4 tópico a seguir, no qual trataremos especificamente das ganhadeiras, tanto as ancestrais (que exerceram o trabalho de ganho) quanto as artistas atuais (que integram o grupo musical).

AS GANHADEIRAS, DE ONTEM E DE HOJE

O termo “ganhadeira” decorre de um tipo específico de relação escravista que vigorou em cidades brasileiras, sobretudo entre os séculos XVIII e XIX, e que se caracterizava pelo chamado sistema de “ganho”, no qual os negros e negras escravizados exerciam diferentes ocupações urbanas, em atividades de pouco prestigio social, que garantia aos seus proprietários um retorno financeiro, ou seja, eles lucravam com a exploração do trabalho diário exercido pelos cativos (que pagavam aos seus “donos” uma quantia previamente estabelecida). No entanto, cabe ressaltar que nesse sistema havia a possibilidade do escravizado ficar com uma parte do lucro para gastar no seu dia a dia ou até mesmo economizar para comprar a sua alforria (o que não era algo tão simples assim, pois, além de caro, existiam vários entraves) (GORENDER, 1985; MATTOSO, 1978, 1982). Além de ser uma das principais formas de conquista da alforria, o trabalho de ganho possibilitava as mulheres escravizadas uma situação de maior liberdade em relação ao controle dos seus senhores. Muitas delas, ademais, tinham a autorização de residir fora da casa dos senhores e firmavam acordos quanto as quantias a serem repassadas. Apesar das libertas experenciarem uma situação diferente por não responderem diretamente a terceiros, elas cumpriam a mesma função social das cativas, exercendo atividades bem variadas: domésticas, costureiras, lavadeiras, vendedoras de diferentes produtos etc. (SOARES, 1996: 58-59; MONTELEONE, 2018). Essas mulheres negras ocuparam lugar destacado nas atividades de ganho pelas ruas de Salvador, especialmente, no pequeno comércio. Circulavam pela cidade equilibrando na cabeça seus tabuleiros, cestos e gamelas onde carregavam os mais variados produtos – frutas, verduras, peixes, carne seca, quitutes, tecidos etc. Podiam ser encontradas em variados pontos da capital baiana, especialmente, em locais de intensa movimentação comercial (SOARES, 1996; BATISTOTI, 2019). A historiadora Maria Odila Dias (1986), ao tratar das “vendedeiras” em São Paulo, destaca a desenvoltura que essas mulheres tinham para o negócio – reflexo de certa

5 expertise que as africanas trouxeram consigo do seu continente de origem, já que em muitas sociedades na África as mulheres eram responsáveis pela circulação de determinados produtos. Segundo Cecília Soares (1996), a astúcia apresentada por essas mulheres que ganhavam suas vidas nas ruas rendeu-lhes certo controle sobre o comércio de mercadorias perecíveis na cidade de Salvador, em alguns casos, podemos dizer até mesmo o monopólio. A partir de diferentes fontes, a autora vai descrevendo os feitos e as agruras diárias enfrentadas pelas negras citadinas – muitas levavam consigo, além das mercadorias, os seus filhos, pois não tinham com quem deixar (os estudos dos registros policiais da época apontam para a existência de muitos acidentes domésticos envolvendo crianças que eram deixadas em casa sozinhas). As autoridades também se preocupavam em regular e controlar as negras de ganho, já que o trânsito e a desenvoltura que possuíam facilitavam a participação delas em redes de atravessamento, contrabandos ou outras práticas ilícitas, além da facilidade que tinham em manter contato com negros aquilombados. Sobre essa questão, João José Reis (2017) salienta as acusações feitas, em 1835, contra ganhadeiras que teriam fornecido alimentos aos rebeldes malês e até mesmo participado diretamente da conspiração. Outro exemplo famoso é o da quitandeira Luiza Mahim que foi acusada de participar de diversas conspirações organizadas por escravos. Já Claudia Vieira (2015), ao analisar relatos de viajantes, mostra como os discursos construídos acerca dessas mulheres eram depreciadores. Dessa forma, a despeito de certa projeção por elas alcançada, as ganhadeiras tiveram de enfrentar uma série de preconceitos e barreiras burocráticas, além da vigilância fiscal e policial. Mesmo após a abolição da escravatura, grande parte das negras permaneceram exercendo trabalhos ligados as atividades de ganho e continuaram sendo chamadas de ganhadeiras por muito tempo. No bairro de Itapuã, cuja comunidade local dependia da pesca, viviam muitas ganhadeiras que ficavam responsáveis por preparar os peixes e outros quitutes para vender pela cidade, outras tantas trabalhavam como lavadeiras nas margens da Lagoa do Abaeté. Enquanto trabalhavam, seja na “mercação” ou na lavagem de roupas, era comum que essas mulheres entoassem algumas canções. O desejo de manter viva a memória das práticas cotidianas que marcaram a vida de diferentes gerações de mulheres que moraram no bairro de Itapuã motivou a criação do grupo cultural “As Ganhadeiras de Itapuã”, em 13 de março de 2004. Tudo começou a partir de

6 conversas mantidas por frequentadores dos terreiros de candomblé de Dona Cabocla e de Dona Mariinha, espaços em que as memórias da antiga Itapuã eram compartilhadas pelas senhoras que se preocupavam com a perda das tradições locais (LEAHY, 2017). Os encontros musicais deram origem ao projeto que se estruturou e se profissionalizou sob a direção musical de Amadeu Alves, que definiu a produção do grupo como “Samba de Mar aberto”. O coro de vozes do grupo é formado, atualmente, por 22 mulheres2, de idades e ocupações distintas. Algumas delas viveram e criaram seus filhos com a renda obtida através do “ganho”, trabalhando como lavadeiras, baianas de acarajé, costureiras etc. Outras, mais jovens, não chegaram a exercer tais ofícios, todavia, tiveram contato com as memórias de suas mães, avós e outras moradoras da região. A presença de diferentes gerações e a possível função pedagógica do referido grupo são aspectos ressaltados pela pesquisadora Harue Tanaka (2012) que, na sua tese de doutorado, buscou analisar o processo educativo existente nas relações estabelecidas entre as suas integrantes. Na Imagem 1, destacada abaixo, vemos três senhoras muito importantes e atuantes no grupo – Dona Mariinha, Dona Eunice e Dona Maria de Xindó –, acompanhadas por uma das jovens integrantes – Vitória.

Imagem 1 – Integrantes do grupo “As Ganhadeiras de Itapuã” (da esquerda para a direita: Mariinha, Vitória, Dona Eunice e Maria de Xindó). Foto: Ernandes Santos.

2 As mulheres que integram o grupo são: Amália Pereira dos Santos; Eunice Jorge dos Santos (Nicinha); Denise Galo; Herondina Reis Soares (Heró); Jaciara dos Santos (Jáci); Maria da Paixão dos Anjos Santos (Maria de Xindó); Maria Jacy dos Santos (Jacy); Maria Hermelina Paranhos Dias (Mariinha); Maria Lúcia Pereira das Virgens (Lucinha); Raimunda da Conceição; Rachel Pereira das Virgens Reis (Cocadinha); Teresa Cristina Silva de Lima (Lica); Verônica Raquel Santana das Virgens; Tereza Conceição Santos; Juliana Ribeiro; Joanice Conceição; Ana Clara (Clarinha); Driele Louise Dias; Evelin dos Santos Dias; Geiza Lima de Souza; Geovana Costa; Vitória Isabele Costa Ramos. Além delas, os músicos instrumentistas que compõe a banda, são: Amadeu Alves (violão); Fabrício Rios (bandolim); Tito Fukunaga (flauta); Diego Santana (violino); Joaquim (baixo); França Cara de Gato (trombone); Neto Moska (percussão); Pablo Maia (percussão); João Victor (percussão); Edvaldo dos Santos (percussão); Barata (percussão). Tais informações foram disponibilizadas no site oficial do grupo. Para mais informações, consultar: . Último acesso: 18/07/2020.

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Fonte: Fotografia publicada pelo site Afreaka3

As Ganhadeiras de Itapuã rapidamente conquistaram o reconhecimento de setores variados da cultura, receberam alguns prêmios importantes como, por exemplo, os de “Melhor grupo” e “Melhor álbum regional”4 na 26ª edição do Prêmio da Música Popular Brasileira. Além do mais, as integrantes foram convidadas a se apresentar na cerimônia de encerramento dos jogos olímpicos que foram realizados na cidade do Rio de Janeiro em 2016, certamente, um momento importante na projeção alcançada pelo grupo. O show registrado em DVD, intitulado “As Ganhadeiras de Itapuã - 15 anos: uma história cantada”, gravado em julho de 2019 e lançado em abril de 2020, nos permite ter acesso as músicas, figurinos e performances de suas integrantes no palco. Usando saias rodadas coloridas, turbantes, colares e elementos cenográficos, mulheres e crianças cantam em coro e, em alguns momentos, em apresentações solo, canções cujas letras falam de uma Itapuã de outrora, revelando aspectos da cultura local e da lida diária decorrente do trabalho de ganho – o que podemos observar em versos como: “As ganhadeiras nascidas na praia de Itapuã/ Vendendo peixinhos baratos, pescados pela manhã/ Quem quer comprar os peixinhos, eu trago aqui pra escolher” ou “Água encanada, não existia/ Os poços é que se viam/ Lata d'água na cabeça/ Mamãe dizia, não esmoreça”. Imagem 2 – As Ganhadeiras de Itapuã em apresentação no Teatro Castro Alves.

3 Disponível em: . Data de acesso: 20/07/2020. 4 O disco que rendeu esse prêmio ao grupo é composto por 13 músicas e contou com participações especiais de Margareth Menezes, Mariene de Castro e Guilherme Arantes.

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Fonte: Fotografia retirada do DVD “As Ganhadeiras de Itapuã - 15 anos: histórias cantadas”.

Na foto acima (Imagem 2) vemos um dos momentos do show no qual as artistas simulam a atividade de “mercação”. Portando trajes e adereços típicos, parte delas formam um meio círculo enquanto outras se apresentam carregando cestos, gamelas e tabuleiros em suas cabeças, neles estão representados os produtos (cenográficos) que eram “vendidos”, tais como: amendoim, peixe, coco e cocada. Dessa forma, as músicas, danças e encenações compõem os elementos simbólicos que nos remete as memórias e a cultura da antiga Itapuã e das ganhadeiras que ali viviam, ressaltando aspectos particulares e definidores de uma identidade que se quer representar e preservar. As Ganhadeiras de Itapuã, como argumenta Renata Costa Leahy (2017), retratam nos palcos memórias de experiências vividas por algumas de suas próprias integrantes e, também, memórias de práticas não vividas diretamente por elas, mas, que foram herdadas a partir dos relatos compartilhados por seus antepassados. Dessa forma, as canções que entoam, as vestimentas que utilizam e as performances que realizam em suas apresentações evidenciam elementos identitários que remontam as antigas ganhadeiras. No entanto, é preciso considerar que o grupo musical promove uma seleção daquilo que constitui a memória coletiva do grupo e coloca certas tradições em movimento, algo próprio da cultura, pois, como afirma Stuart Hall:

A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias […] Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas aquilo que nós fazemos das nossas tradições (Hall, 2009: 43).

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O ENREDO DA VIRADOURO SOBRE AS GANHADEIRAS

Como vimos na introdução, o enredo apresentado pela Unidos do Viradouro parte do repertório musical e das memórias compartilhadas pelas matriarcas do grupo As ganhadeiras de Itapuã na tentativa de reconstruir a trajetória de luta de gerações de mulheres negras, exaltando o esforço que elas desempenharam para garantir a sua subsistência e a de seus familiares. A sinopse é apresentada a partir do ponto de vista de uma ganhadeira, mais especificamente, Maria de Xindó, uma das líderes do grupo e figura determinante na construção do texto. O Enredo é preenchido por uma narrativa afetiva, um vocabulário regional e pela poesia dos cânticos entoados por essas mulheres. Os carnavalescos propõem um “mergulho” nas águas e na história da Lagoa do Abaeté e no Mar de Itapuã, redutos de trabalho e de encontro das ganhadeiras – o primeiro, era o local em que muitas delas lavavam roupas enquanto promoviam suas cantorias, e o segundo, garantia a atividade pesqueira as famílias que ali residiam, cabiam a elas buscar na praia os peixes para serem preparados e vendidos pela cidade (LIESA, 2020). As ganhadeiras são apresentadas pelo enredo da Viradouro quase como um sinônimo de valentia, de bravura; mulheres que, a despeito das barreiras de gênero, classe e cor de pele, criaram mecanismos e se aproveitavam das frestas que encontravam no sistema para lutar pelo sustento e pela liberdade delas mesmas e de seus “camarás” (irmãos de alma). É nesse sentido que os carnavalescos, gozando de certa “licença carnavalesca”, apresentam essas mulheres como pioneiras do feminismo no Brasil, em decorrência de toda luta que elas travaram em busca da liberdade e das conquistas que obtiveram com os seus esforços. Dessa forma, o enredo articulava tradições culturais, ancestralidade negra e projetava numa perspectiva de longa duração toda a batalha travada pelas mulheres negras deste país (LIESA, 2020: 52-54). O samba-enredo da Viradouro (assinado pelos compositores Cláudio Russo, Paulo Cesar Feital, Diego Nicolau, Júlio Alves, Dadinho, Rildo Seixas, Manolo, Anderson Lemos e Carlinhos Fionda), segue na mesma linha da sinopse, como podemos ver nos versos abaixo:

Levanta, preta, que o sol tá na janela/ Leva a gamela pro xaréu do pescador/ A alforria se conquista com o ganho/ E o balaio é do tamanho do suor do seu amor/ Mainha, esses velhos areais/ Onde nossas ancestrais acordavam as manhãs pra luta/ Sentem cheiro de angelim/ E a doçura do quindim/ Da bica de Itapuã/ Camará ganhou a cidade/ O erê herdou liberdade/ Canto das Marias, baixa do dendê/ Chama a freguesia pro batuquejê/ São elas, dos anjos e das marés/ Crioulas do balangandã, ô iaiá/ Ciranda

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de roda, na beira do mar/ Ganhadeira que benze, vai pro terreiro sambar/ Nas escadas da fé:/ É a voz da mulher!/ Xangô ilumina a caminhada,/ A falange está formada, um coral cheio de amor/ Kaô, o axé vem da / Nessa negra cantoria/ Que Maria ensinou/ Ó, Mãe! Ensaboa, Mãe!/ Ensaboa, pra depois quarar/ Ora yê ô Oxum! Seu dourado tem axé/ Faz o seu quilombo no abaeté/ Quem lava a alma dessa gente veste ouro/ É Viradouro! É Viradouro! (LIESA, 2020: 95). É possível dividir a letra deste samba em duas partes. A primeira, de uma forma poética, aborda as vivências das negras de ganho de Itapuã, promovendo uma espécie de “chamado” para o trabalho, visto como o meio de conquista da tão sonhada alforria. Apesar de estar relacionada a situações difíceis do cotidiano, a dura rotina dessas mulheres vai sendo descrita no samba de uma forma leve e que se encaminha para a festa, o “batuquejê”. Já na segunda parte, o samba se volta para As Ganhadeiras de Itapuã e suas canções; as memórias e a manutenção da herança cultural das ancestrais são ressaltadas, assim como, a religiosidade e a união existente entre essas mulheres negras. A letra do samba apresenta uma série de palavras que nos remetem ao universo vocabular das homenageadas. Vemos, assim, várias referências aos tipos e aos instrumentos de trabalho por elas exercidos e utilizados – ou por aqueles que partilham de sua convivência (como os pescadores) –, é o caso de “gamela”, “xaréu”, “balaio”, “quarar”. Há na letra, também, expressões típicas nordestinas, como “mainha”, e referências a indumentária usada pelas mulheres, como “balangandãs”, além de expressões usadas em religiões de matriz africana, a exemplo de “Kaô” e “Ora yê ô”. O samba reverencia orixás; na letra da composição são citados dois: Xangô e Oxum, que não foram escolhidos por acaso – Xângo é considerado o protetor da Unidos do Viradouro e Oxum é tida como a padroeira das Ganhadeiras de Itapuã. Essa religiosidade expressa no samba também é observada nos quesitos plásticos da escola. Logo no primeiro setor do desfile, intitulado “o prelúdio das águas” (em referência a uma das canções do grupo musical homenageado), figuram duas esculturas de orixás femininos: a já mencionada Oxum (orixá das águas doces) e Iemanjá (rainha do mar). Na imagem abaixo, é possível ver o tripé (pede passagem) e o carro abre-alas da Viradouro:

Imagem 1 – Abertura do desfile da Unidos do Viradouro no carnaval 2020

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Fonte: Reprodução/Instagram oficial da Viradouro Na imagem vemos a predominância da cor dourada, cor geralmente utilizada na representação da orixá Oxum – o que também é explorado na letra do samba-enredo, em passagens como “Ora yê ô Oxum seu dourado tem axé” ou ainda “quem lava alma dessa gente veste ouro”. Já a escultura em tons de azul e branco no alto do carro alegórico, segurando os espelhos, representa Iemanjá. Dessa forma, a escola iniciou o seu desfile com elementos importantes da própria geografia do bairro, marcada pelas águas doces (da Lagoa do Abaeté) e salgadas (do Mar de Itapuã) tão presentes no dia a dia das ganhadeiras. Em outras alas, a fé cristã também foi lembrada, com fantasias que remetem aos romeiros, as procissões e as festas destinadas aos santos católicos. Um carro alegórico retratava a principal festa que acontece em Itapuã, a de Nossa Senhora da Conceição (que também sincretiza Oxum) – as ganhadeiras, inclusive, participavam da tradicional lavagem das escadarias da Igreja. O sincretismo, as diferentes manifestações religiosas e a mistura de elementos representativos do cristianismo e do candomblé baiano é algo bem marcante no desfile. Vale ressaltar que as integrantes do grupo não professam todas a mesma fé – grande parte são católicas, outras candomblecistas ou espíritas. Ao longo do desfile vemos ainda muitas alas que remetem as várias atividades de ganho praticadas pelas negras ao longo de séculos, oferecendo uma espécie de tipologia do ganho feminino não apenas na cidade de Salvador, mas, também, em outros locais do Brasil. Temos, assim, alas fantasiadas de Aguadeiras, Baianas quituteiras, Quebradeiras de coco, Destaladeiras de fumo, Farinheiras de Barrocas, entre outras. Ademais, as práticas culturais como o samba de

12 roda, as cirandas, além das vestimentas e das habilidades de fazer e de “mercar” também serviram de mote para a composição visual do desenvolvimento do enredo. O último carro do desfile, que tinha o formato de coroa (símbolo da escola) trazia as integrantes do grupo musical homenageado. Além disso, nesse carro tinha uma grande escultura articulada de Maria de Xindó “lavando roupas”, ladeada por machados de Xangô. Ao longo da avenida uma surpresa era revelada: quando a escultura erguia o tecido que estava em suas mãos uma frase era projetada em LEDs: “Lute, como uma mulher”. Dessa forma, a escola fechava seu desfile coroando as ganhadeiras, ao mesmo tempo em que conectava a luta dessas mulheres com as lutas feministas atuais – como diz a sinopse do enredo: “O Brasil de hoje revela a voz de outras mulheres que, em consonância, ritmam o trabalho e o sustento de suas vidas. Elas são de verdade! Sou um pouco de mim, em uma falange de nós.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo busquei construir algumas reflexões sobre como as ganhadeiras (as ancestrais e as atuais) foram representadas pelo desfile campeão da Unidos do Viradouro no carnaval de 2020. A escolha delas como tema de enredo se deu, justamente, a partir do contato que os carnavalescos tiveram com o álbum “As Ganhadeiras de Itapuã” – aspecto que por si só demostra a importância que o grupo musical possui para a manutenção e divulgação da memória dessas mulheres e de suas práticas culturais. A Unidos do Viradouro apresentou um enredo que ao abordar a história e a cultura de mulheres negras, cativas ou libertas, dialogou diretamente com questões do presente. Vale dizer que os últimos carnavais do Rio de Janeiro foram marcados por escolhas de enredos com propostas de crítica social ou de valorização de pessoas e grupos invisibilizados. As campeãs de 2018 e 2019 (Beija-flor e Mangueira), por exemplo, venceram o carnaval apostando nesse tipo de proposta. Na tentativa de valorizar a bravura e a resistência das mulheres negras brasileiras frente a tudo que tiveram que enfrentar, seja na condição de escravizadas ou não, os carnavalescos construíram uma narrativa no desfile da Viradouro que conectava a história de vida das antigas

13 ganhadeiras com as lutas feministas atuais, projetando as mesmas como pioneiras desse movimento. No entanto, é preciso considerar que essa defesa apresentada pelos carnavalescos tem suas limitações, pois acaba por homogeneizar e desconsiderar processos mais amplos envolvidos na luta feminista, além de não possuir o respaldo da produção historiográfica sobre o tema. Ao longo deste trabalho foi possível perceber, também, como o próprio grupo musical homenageado pela agremiação articulou experiências e memórias no intuito de provocar um reavivamento identitário. Os aspectos que compõem as referências plásticas e musical do desfile da Unidos do Viradouro se baseiam, justamente, nos elementos explorados pelas canções e performances do próprio grupo – o trabalho feminino, a religiosidade, a cultura local etc. Dessa forma, As Ganhadeiras de Itapuã figuram no enredo como mediadoras culturais, guardiãs da memória coletiva de suas ancestrais, vozes importantes da resistência negra e dignas representantes do empoderamento feminino.

FONTES:

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