Toda Mulher, No Fundo, É Uma Ganhadeira”: Feminismo, Religiosidade E Resistência Negra No Enredo Da Unidos Do Viradouro No Carnaval De 2020

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Toda Mulher, No Fundo, É Uma Ganhadeira”: Feminismo, Religiosidade E Resistência Negra No Enredo Da Unidos Do Viradouro No Carnaval De 2020 1 “TODA MULHER, NO FUNDO, É UMA GANHADEIRA”: FEMINISMO, RELIGIOSIDADE E RESISTÊNCIA NEGRA NO ENREDO DA UNIDOS DO VIRADOURO NO CARNAVAL DE 2020 YNAYAN LYRA SOUZA Resumo: Este estudo tem por objetivo analisar a narrativa construída pelo desfile campeão do carnaval carioca no ano de 2020, produzido pela escola de samba Unidos do Viradouro, que levou para a avenida um enredo em homenagem a luta e resistência de diferentes gerações de mulheres negras que exerceram o chamado trabalho de “ganho” (seja na situação de escravizadas ou de libertas) e que, na atualidade, têm suas memórias cantadas pelo grupo musical baiano “As Ganhadeiras de Itapuã”. Para isso, selecionamos diferentes fontes que compõem a apresentação feita pela Viradouro: a sinopse do enredo (texto orientador do desfile), a letra do samba-enredo (composição que embalou a apresentação da agremiação), além de fotografias e vídeos (que nos permitem ter acesso aos aspectos plásticos do desfile – fantasias e carros alegóricos). Palavras-chave: As Ganhadeiras de Itapuã; Mulheres negras; Carnaval; Escolas de samba. INTRODUÇÃO A escola de samba Unidos do Viradouro conquistou o título de campeã do carnaval do Rio de Janeiro em 2020. Foi a segunda vez na história que a agremiação, oriunda de Niterói, alcançou o posto mais alto do grupo especial carioca. Após 23 anos (sua última conquista havia sido em 1997), a escola voltou a vencer o concurso ao levar para a avenida o enredo “Viradouro de alma lavada”, que teve como mote homenagear “As Ganhadeiras de Itapuã”, grupo cultural/musical baiano composto por mulheres, em sua maioria, senhoras, moradoras do bairro de Itapuã na cidade de Salvador (além de algumas crianças e músicos instrumentistas que integram a banda). Desenvolvido por dois jovens carnavalescos, Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon, o enredo foi inspirado nas canções do referido grupo cujo nome (As Ganhadeiras de Itapuã) e Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da UNESP, Campus de Assis. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. E-mail: [email protected] 2 todo seu repertório musical remetem as memórias e vivências de gerações de mulheres negras que residiram em tal bairro e que viveram do chamado trabalho de “ganho”. Dessa forma, o desfile da Viradouro buscou não apenas homenagear as integrantes do grupo musical contemporâneo, mas, também, abordou a trajetória e a cultura das antigas “ganhadeiras” – mulheres escravizadas ou libertas que, desde o século XIX, passaram a ocupar lugar de destaque no mercado de trabalho urbano em diferentes locais do país, especialmente, na capital baiana (local enfocado pelo enredo). Alguns aspectos explorados pelo desfile da Unidos do Viradouro remontam ao passado de luta dessas mulheres, ao passo que elas são apresentadas pelos carnavalescos como pioneiras da luta feminista no Brasil e importantes representantes da resistência negra em um país que, durante séculos, teve sua história marcada pela existência de um sistema escravocrata. Isto posto, por meio da investigação de diferentes fontes verbais e visuais que envolveram esse desfile, pretendemos investigar o discurso apresentado pela agremiação e lançar algumas reflexões sobre a narrativa construída pelos carnavalescos e sambistas da escola. Antes de avançarmos na análise das fontes selecionadas, torna-se necessário fazer algumas considerações sobre aspectos que envolvem o nosso objeto de estudo. Primeiro, é preciso dizer que a temática negra apareceu de forma recorrente nos enredos das escolas de samba ao longo da história dos concursos.1 Entre esses enredos, alguns homenagearam figuras femininas como cantoras, personagens históricas, integrantes das escolas de samba, mães de santo etc. (entre elas, podemos citar: Xica da Silva, Tereza de Benguela, Clementina de Jesus e Tia Ciata). Se considerarmos apenas os carnavais do século XXI, encontramos também enredos que trataram de mulheres negras de forma coletiva, a Acadêmicos do Salgueiro, por exemplo, apresentou dois desfiles com essa proposta: “Candances” (2007) e “Senhoras do ventre do mundo” (2018). Considerando que o enredo da Viradouro, que analisaremos neste texto, aborda a realidade de mulheres negras que viveram em diferentes contextos históricos, alguns estudos nos ajudam a pensar em questões próprias a esse segmento feminino. Nesse aspecto, destacam- se trabalhos desenvolvidos por pesquisadoras feministas que refletem sobre a condição da 1 Diferentes trabalhos publicados por estudiosos do carnaval confirmam a presença dos enredos negros em vários períodos e com diferentes abordagens. Sobre o assunto, ver: SIMAS; FABATO, 2015 e FARIA, 2016. 3 mulher negra pelo prisma da interseccionalidade, ou seja, considerando as articulações decorrentes da inseparabilidade estrutural entre racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado. A professora e ativista estadunidense Bell Hooks (2019) é uma das autoras que tem contribuído para essa discussão, inclusive, pensando os limites do próprio movimento feminista de reconhecer e representar as demandas especificas das negras. Ao criticar a visão que supõe a existência de um coletivo “mulheres”, Hooks evidencia relações de opressão e dominação dentro do próprio gênero e mostra que esse discurso homogeneizante acaba por silenciar as mulheres negras. No Brasil, alguns estudos também seguem pela abordagem de intersecção. Bebel Nepomuceno (2012), por exemplo, argumenta que as mulheres negras enfrentaram ao longo do tempo uma série de exclusões e opressões que caracterizam uma sociedade hierarquizada por gênero e raça. Coube a elas utilizar-se dos espaços possíveis para encarar a dura realidade que se impunha, marcada por diferentes privações, preconceitos e violências. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Danubia de Andrade Fernandes, evidencia nas suas reflexões a dupla alteridade da mulher negra: considerada “Hipersexual, masculina, promíscua, dominadora e forte: a mulher negra foi construída ao longo de séculos de opressão racista e machista, potencializando o que havia de pior nas configurações estigmatizastes dos negros e das mulheres” (FERNANDES, 2016; 697). No que concerne a literatura que trata sobre o chamado trabalho de ganho, mais especificamente, o feminino, selecionamos alguns estudos que nos possibilitam compreender um pouco mais das relações escravistas vigentes no Brasil entre os séculos XVIII e XIX e a presença das mulheres negras no seu bojo. Destaco, assim, as reflexões de Maria Odila Dias (1983;1984), Cecília Moraes Soares (1994; 1996), Cláudia Andrade Vieira (2015), Joana de Moraes Monteleone (2018) e Aleida Fontoura Batistoti (2019). Por fim, buscamos também estudos específicos sobre o grupo musical As Ganhadeiras de Itapuã. Apesar de ter sido fundado a pouco tempo, já existem publicações sobre o assunto – produzidas pelas pesquisadoras Harue Tanaka Sorrentino (2012) e Renata Costa Leahy (2018). Inclusive, essas obras foram consultadas pelos carnavalescos da Viradouro para elaborar o enredo de 2020. As reflexões desenvolvidas pelas autoras mencionadas serão articuladas no 4 tópico a seguir, no qual trataremos especificamente das ganhadeiras, tanto as ancestrais (que exerceram o trabalho de ganho) quanto as artistas atuais (que integram o grupo musical). AS GANHADEIRAS, DE ONTEM E DE HOJE O termo “ganhadeira” decorre de um tipo específico de relação escravista que vigorou em cidades brasileiras, sobretudo entre os séculos XVIII e XIX, e que se caracterizava pelo chamado sistema de “ganho”, no qual os negros e negras escravizados exerciam diferentes ocupações urbanas, em atividades de pouco prestigio social, que garantia aos seus proprietários um retorno financeiro, ou seja, eles lucravam com a exploração do trabalho diário exercido pelos cativos (que pagavam aos seus “donos” uma quantia previamente estabelecida). No entanto, cabe ressaltar que nesse sistema havia a possibilidade do escravizado ficar com uma parte do lucro para gastar no seu dia a dia ou até mesmo economizar para comprar a sua alforria (o que não era algo tão simples assim, pois, além de caro, existiam vários entraves) (GORENDER, 1985; MATTOSO, 1978, 1982). Além de ser uma das principais formas de conquista da alforria, o trabalho de ganho possibilitava as mulheres escravizadas uma situação de maior liberdade em relação ao controle dos seus senhores. Muitas delas, ademais, tinham a autorização de residir fora da casa dos senhores e firmavam acordos quanto as quantias a serem repassadas. Apesar das libertas experenciarem uma situação diferente por não responderem diretamente a terceiros, elas cumpriam a mesma função social das cativas, exercendo atividades bem variadas: domésticas, costureiras, lavadeiras, vendedoras de diferentes produtos etc. (SOARES, 1996: 58-59; MONTELEONE, 2018). Essas mulheres negras ocuparam lugar destacado nas atividades de ganho pelas ruas de Salvador, especialmente, no pequeno comércio. Circulavam pela cidade equilibrando na cabeça seus tabuleiros, cestos e gamelas onde carregavam os mais variados produtos – frutas, verduras, peixes, carne seca, quitutes, tecidos etc. Podiam ser encontradas em variados pontos da capital baiana, especialmente, em locais de intensa movimentação comercial (SOARES, 1996; BATISTOTI, 2019). A historiadora Maria Odila Dias (1986), ao tratar das “vendedeiras” em São Paulo, destaca a desenvoltura que essas mulheres tinham para o negócio – reflexo de certa 5 expertise que as africanas trouxeram consigo do seu continente de origem,
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