124/2013 O amálgama da alma de Jorge Mautner

Mazé Leite*

No dia 1º de fevereiro de 2013 estreou nos cinemas o documentário Jorge Mautner – o filho do holocausto, dirigido por Pedro Bial e Heitor D’Alincourt. Uma das primeiras conclusões que se tira quando o filme termina é: este artista tem muita importância dentro da cultura brasileira. Ele próprio, sua vida e sua obra estão permeados por essa marca distintiva do brasileiro que é ao mesmo tempo aquele que trabalha e aquele que canta e dança.

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longa-me- sença, após mais de uma tragem Jorge hora de conversa, com a Mautner – o certeza: a cultura brasileira filho do ho- tem uma riqueza imensa, locausto traz que precisa ser resgatada, imagens ra- espalhada, espalhafatada, ras, não só da vozeada. Jorge Mautner Ovida deste artista, mas faz exatamente isso. de momentos da história Nossa conversa acon- e da arte brasileira, com teceu na cobertura do ho- imagens cedidas pela tel onde ele se hospedou, Cinemateca Brasileira e no bairro de Pinheiros, em pelo Centro de Documen- São Paulo e pude verificar tação da Globo. A pes- de perto que o ser huma- quisa que foi feita para o no Jorge Mautner é, além filme, realizada por Carla de tudo, muito acolhedor. Siqueira, aborda temas Enquanto tomava um ca- desde o nazismo, com ce- fezinho expresso, foi me nas da Segunda Guerra contando que quase não Mundial, passando pelas interferiu na concepção ideias da mitologia do e execução do filme que Kaos de Mautner, até ce- teve cinco anos de rigoro- nas londrinas com Caeta- sa pesquisa e preparação. no, Gil e Jorge ainda bem “No fim, foram quatro jovens. Tudo entremeado dias e quatro noites de in- Brasília - Presidente Lula fala no da Conferência com canções que enfati- tensa filmagem, com tudo Nacional de 2010) zam cada acontecimento já preparado, o cenário de da vida do artista. Valter Pupo, a nossa ban- Ele aparece em algumas cenas fazendo leituras da, com a participação de Nelson Jacobina. Graças de textos, em outras cantando e tocando seu eter- a Deus, deu para ele participar. Ele faleceu no ano no violino ao lado do seu companheiro violonista passado, já estava muito doente.” Jacobina aparece Nelson Jacobina, a quem o filme é dedicado. Foram em muitos momentos do filme. gravadas cerca de 22 músicas, incluindo a Bandeira Logo em seguida, Jorge começa a falar de onde do meu Partido, composta em 1958, além de Vampiro, tudo começou: a vinda de seus pais ao Brasil, fugin- Todo errado, Maracatu Atômico, Sapo do da perseguição nazista, desta- cururu, entre outras. cando a angústia de sua mãe, An- O filme – até mesmo pelo título Ao conhecer na Illich, por ter deixado para trás – tinha tudo para mostrar a tristeza melhor a alma de a filha Susana, que não conseguiu de uma família que precisou fugir acompanhar os pais ao Brasil, fato de seu país com uma mãe grávida Jorge Mautner , de que deixou sua mãe fisicamente pa- de oito meses correndo os perigos quebra, podemos ralisada. Por isso, Jorge foi cuidado de uma longa viagem a um país e educado durante seus primeiros desconhecido. Mas é o contrário verificar mais sete anos de vida por uma babá, Lú- disso. Quando o filme termina, um uma vez a riqueza cia, que era filha de santo. encantamento alegre toma con- – “Durante meus sete primeiros ta de nós, que podemos conhecer cultural brasileira. anos, ia três vezes por semana lá melhor a alma de Jorge Mautner e, Com certeza este para o terreiro, ao lado da igreja da de quebra, verificar mais uma vez Glória. Muitas vezes eu adormecia a riqueza cultural brasileira. Com documentário é uma e acordava na camarinha. Imagina! certeza este documentário é uma grande contribuição Fui recebido assim, no braço do po- grande contribuição para o cinema vo, literalmente!” “Um dia, lembra brasileiro atual. para o cinema Mautner, Lúcia me carregava em Fui conversar com Jorge Maut- brasileiro atual seu colo e me falou: meu filho, seus ner no dia seguinte. Saí de sua pre- pais vieram de um lugar de gente

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muito má, cruel, mas aqui você vai encontrar seus ao lado dele. Mas, veja o patriotismo dele, na década amigos... E eu adormecia e acordava no colo dela, de 1940 preferiu ser deputado pelo Partido Comu- ouvindo o som dos atabaques...”. nista e ficar aqui no Brasil, lutando ao lado de seus Em 1948, seus pais se separam e Anna casa-se companheiros.” Foi Schenberg quem iniciou Jorge com o violinista Henri Müller e se muda para São Mautner nos ideais marxistas e levou-o ao Partido. Paulo, levando o menino consigo. Henri era o pri- – “Era uma época muito rica, muita discussão meiro violinista da Orquestra Sinfônica de São Pau- e muita conversa entre eu, Mário Schenberg, José lo, e foi com ele que Jorge aprendeu a tocar violino Roberto Aguilar, Dulce Maia, irmã do Carlito Maia clássico. Seu padrasto também fazia participações que foi muito torturada depois pela Ditadura Militar. em programas da Rádio Nacional e diversas vezes o Tínhamos um amigo que era do Partido Comunista menino o acompanhou, sendo que nesta época co- de Israel, que só falava em hebraico e alemão, para meçou a conviver com grandes artistas da música quem eu traduzia nossos textos e conversas. Ele lia brasileira, como Aracy de Almeida, Nelson Gonçal- Bertolt Brecht para nós, em alemão. Então era um ves, Jorge Veiga, Tonico e Tinoco, Elizeth Cardoso, tempo muito rico aquele de 1962, quando também , Marlene, Emilinha Borba e muitos lancei meu livro Deus da chuva e da morte, no João Se- outros. bastião Bar, um dos nossos pontos A partir de 1950 ele vai estu- de encontro”. Este bar, que era lo- dar no Colégio Dante Alighieri, A nossa capacidade calizado na Vila Buarque, juntava que abandonou no terceiro cole- de resistência se a intelectualidade paulistana, e gial porque era muito conservador muitos músicos, como Chico Bu- para ele, que foi educado desde criou ao longo de arque de Holanda, fizeram lá as muito cedo lendo Goethe. Hoje, toda a história do suas primeiras apresentações. “To- esta escola de classe média de São do mundo amigo – lembra Mau- Paulo tem uma sala dedicada a Brasil e alcança os tner –, artistas, comunistas, era ele. Em 1956, Mautner começou a tempos ainda mais muita gente. Até Luiz Carlos Pres- escrever seu primeiro livro Deus da tes ia lá.” Chuva e da Morte, que foi publicado longínquos, na opinião Nessa época, artista militante, pela Editora Martins Fontes em de Jorge Mautner, Jorge Mautner já compunha suas 1962, ano em que recebeu o Prê- músicas também para transmitir mio Jabuti por esta obra. que diz: “As culturas as mesmas ideias que ele defen- A partir daí foi descoberto por naturais nossas, dia na literatura. Em 1958 já ha- Vicente Ferreira da Silva “sobre o via composto a música A Bandeira qual Oswald de Andrade dizia que antiquíssimas, são do meu Partido. Também em 1962 era o maior pensador do Brasil”. geniais” escrevia diariamente para uma Ele já havia se aproximado do fí- coluna intitulada “Bilhetes do Ka- sico brasileiro Mário Schenberg os” no suplemento cultural do jor- e começa a publicar na revista nal Última Hora (de Samuel Wei- Diálogo, que unia intelectuais do tipo de Vicente e ner), dirigido por Jorge Cunha Lima. Essa coluna se Dora Ferreira da Silva, Miguel Reale, Guilherme de manteve até o dia 1º de abril de 1964. Almeida, Paulo Bonfim, Câmara Cascudo e outros. Daí ele teve a ideia de criar um partido, que intitulou O Golpe Militar de 1964 de Partido do Kaos. E explica: – “É toda uma mitologia que se entrelaça. O Kaos Jorge Mautner diz que meses antes já se sentia o era uma exaltação total da fundação de Brasília, das cheiro do golpe no ar. “A gente intuía, eu e o Mário ideias de Leonel Brizola, Juscelino Kubistchek, do Schenberg, mas não se podia fazer nada, nem prever Grupo dos Onze, assim como da Revolução Cubana. como seria. A Revolução Cubana já havia tomado os Chegamos a ter três mil adeptos. A gente se reunia corações de todos.” numa garagem na Praça Buenos Aires, no bairro de Após o golpe militar, Jorge Mautner foi preso e Higienópolis, eu, o Aguilar e o Mário Schenberg.” enviado para Barretos, com a desculpa de que era – “Em 1962” – continua – “dissolvi o Partido do para “protegê-lo” de grupos paramilitares, como o Kaos. Nós já éramos militantes do Partido Comu- Comando de Caça aos Comunistas, o CCC. Foi solto nista do Brasil. Mário Schenberg já era um grande sob a condição de se expressar mais “cuidadosamen- cientista, havia trabalhado ao lado de Albert Eins- te” em suas futuras obras, orientação a que ele, é tein e poderia ter continuado sua pesquisa científica claro, não obedeceu.

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Em 1965 publicou dois livros, um deles – O Vigarista Jorge – com prefácio de Mário Schenberg, foi logo apreen- dido pelo Dops, que consi- Prestes Alexandre derava aqueles textos uma provocação e um chamado à resistência contra os militares golpistas. O outro livro, Nar- ciso em Tarde Cinza, encerra a trilogia do Kaos. Jorge Mau- tner também lançou neste mesmo ano um disco com- pacto com as músicas de pro- testo Radioatividade e Não, Não, Não. Esse disco foi incurso na famigerada Lei de Segurança Jorge Mautner concedeu entrevista a Mazé Leite em São Paulo Nacional, em 1966. E Jorge teve que ir embo- ra do Brasil. Fui para os Estados Unidos, onde tra- do Brasil”. Após chegar aqui, se juntou aos músi- balhou de lavador de pratos, ajudante de garçom, e cos brasileiros que faziam shows pelo Brasil adentro, datilógrafo na Unesco. Também fazia bicos, tradu- juntando milhares de pessoas. Jorge Mautner afir- zindo livros brasileiros para o inglês e dava palestras ma que essa participação ativa dos músicos ajudou o sobre estes livros para a Sociedade Interamericana Brasil a se redemocratizar. de Literatura, num casarão que havia sido a sede da – “Mas aconteceu outro fator muito importante e Embaixada Soviética, na Park Avenue. “Em 1967 trágico que foi o assassinato de Vladimir Herzog. O eu fui participar de um simpósio em Caracas, Vene- repúdio foi total, amplificado, e até mesmo por par- zuela, e conheci o escritor norte-americano Robert te de quem apoiava o regime militar e era contra a Lower, com quem passei a trabalhar como secretá- tortura. Em torno da morte de Herzog se criou uma rio literário. Lower tinha sido secretário literário de união nacional, com muitas manifestações contra, Ezra Pound. Ele lia muito Euclides da Cunha, adora- atos públicos com a presença do cardeal Dom Paulo va Os Sertões, queria conhecer os mistérios do Brasil. Evaristo Arns, do rabino Henri Sobel etc.” Também em Caracas eu conheci o filósofo anarquis- – “Quando voltou”, diz Mautner, “e ta Paul Goodman, o grande filósofo dos primeiros viu tudo o que estava acontecendo, começou a can- movimentos pacifistas hippies, que também tinha tar sua música No woman, no cry, que fala dos amigos grande admiração pelo Brasil e me deu as primeiras presos, os amigos que sumiam. Então a redemocrati- lições de ecologia.” Nesse período nos EUA, Jorge zação do Brasil representa o esforço de muita gente, Mautner compôs duas músicas em parceria com a de muitos artistas que com sua música chamavam compositora e pianista de jazz Carla Blay. para a resistência. A filosofia expressa pela música Conheceu sua companheira Ruth Mendes em popular é às vezes igual ou mais profunda do que a 1968, numa vinda ao Brasil para reativar seu visto nos da palavra escrita.” EUA. Com ela, ele tem uma filha, . “Ouço essa mulher cantando blues, e sei que Mautner conta que eles recebiam muitas visitas nos aquele homem negro nos Estados Unidos que escre- vários lugares em que moraram em Nova Iorque. Visi- veu aquele blues já diz tudo o que eu quero dizer e tas de brasileiros, como Roberto Schwartz, que estava ainda melhor”, frase do livro A Náusea de Jean-Paul exilado na França e trazia notícias do Partido Comu- Sartre, lembrada por Caetano Velloso em uma con- nista. Depois Mautner se mudou para Londres, onde versa com Jorge, publicada no livro Jorge Mautner, or- conheceu Gilberto Gil e , que já esta- ganizado por Sérgio Cohn. vam exilados lá. “Meu encontro com Gil e Caetano foi Jorge complementa: “Mas disso já se tem consci- um entrelaçamento imediato de almas”, observa ele. ência desde o poeta Castro Alves e a partir da trans- Voltou ao Brasil em 1972, a pedido de Violeta missão oral dos batuques nas senzalas, nos terreiros Arraes, também exilada em Londres e que “achava de candomblé, nas aldeias indígenas”. A nossa ca- que era hora de voltarmos e ajudar na resistência pacidade de resistência se criou ao longo de toda a à Ditadura Militar e na luta pela redemocratização história do Brasil e alcança os tempos ainda mais lon-

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gínquos, na opinião de Jorge Mautner, que diz: “As Jorge Mautner é comunista-artista ou artista-co- culturas naturais nossas, antiquíssimas, são geniais”. munista, títulos que se fundem e se confundem em sua vida e em seu discurso. Lembrando José Bonifá- A cultura brasileira cio, ressalta que ele foi um dos primeiros brasileiros a valorizar a nossa mistura de sangue, a nossa mestiça- Neste ponto da conversa, perguntei-lhe o que gem como nossa maior riqueza social e cultural, que representou o movimento tropicalista para a nossa cria o amálgama que nos une, todos os brasileiros: cultura mais recente. O Tropicalismo, que é tão bem – “Desde os tempos dos índios tupis, guaranis, os encarnado nas figuras de Caetano Veloso e Gilber- brancos vinham em busca desta terra sem males. A to Gil, teve em Jorge Mautner uma de suas grandes generosidade do nosso povo é nosso maior tesouro, e inspirações. As ideias expostas por ele no Partido do é o que eu pretendo revelar o tempo todo. Esse amál- Kaos foram reconhecidas pelo próprio Caetano como gama é realmente uma elaboração em uma alqui- antecessoras do Tropicalismo. mia superior que está na alma do povo brasileiro – a – “Mas o amálgama vem de mais longe, vem de alma brasileira foi construída assim! Jorge Caldeira José Bonifácio e ” – diz Mautner. (sociólogo) acentua que esta disposição primordial “Partimos de um mesmo berço de ideias, que une a vem dos tupis, guaranis. Diferentemente de todos os visão antropofágica de Oswald de Andrade até a afir- outros povos e culturas, onde o estrangeiro, o desco- mação cultural da negritude brasileira. O Tropicalis- nhecido, o forasteiro, o estranho, o diferente eram mo é uma expressão dessa união que permeia toda para ser no mínimo estraçalhados. Aqui sempre foi nossa visão cultural que vem desde as mais antigas o contrário: os tupis, guaranis já acreditavam que o culturas ancestrais dos nossos índios, pré-taoístas, Mistério os criou para que fossem desvendando os passando pelos nossos poetas românticos como José mistérios do mundo. Então quando viam o estran- de Alencar, por Villa Lobos, por Mário de Andrade, geiro, o diferente, o desconhecido, viam como algo por Getúlio Vargas, pela construção de Brasília, Os- para ser adorado. O estranho, ao invés de ser repe- car Niemeyer, , Juscelino, tudo.” lido, é amado. Até hoje a generosidade do povo bra- Mautner completa dizendo que Mário e Oswald de sileiro com qualquer estrangeiro que chegue aqui é Andrade “descobriram o Brasil em tom de fúria, em de uma disposição total que não existe em nenhum tom de antropofagia, de manifesto, de ataque”, en- outro lugar! Essa generosidade não existe em outro quanto “o Tropicalismo seria a tranquilidade já da cer- lugar! Isso é o máximo!” teza de que nossa riqueza é nossa diversidade cultural.” Lembrou então que Gilberto Gil, quando ainda Quando lhe perguntei como resume a cultura era ministro da Cultura, em uma de suas visitas ofi- brasileira, Jorge Mautner lembrou que ele próprio ciais aos EUA, a certa altura entoou a letra da mú- é fruto de três culturas diferentes: do pai, judeu e sica que fez em parceria com Jorge Mautner, Outros ateu; da mãe, eslava e católica; da babá, negra e filha viram, cujo trecho destaco: de santo do candomblé. E completa: – “Desde o começo o meu amor ao Brasil é o meu “O que Walt Withman viu amor à vida. Assim como meu pai, Paul Mautner, que Maiakovski viu era apaixonado pelo Brasil. A cultura brasileira foi Outros viram também sendo formada por essa mistura entre índios, negros Que a humanidade vem e brancos de todas as cores. O Brasil é uma inspira- Renascer no Brasil! ção! Veja que tudo isso constrói a nossa originalidade, (...) que está sendo vista pelo mundo todo. Nós somos esse Maiakovski ouviu amálgama. Gilberto Freyre, no livro China tropical, disse A sereia do mar que nos séculos XVI e XVII o Brasil era inclusive hindu. Lhe falar de um gentio A meia dúzia de brancos que colonizou nosso país e do- De um povo mais feliz minou o continente logo teve que conviver com milha- Que habita esse lugar!” res de índios, milhares de escravos. O pessoal da casa grande ia assistir aos festejos da senzala. E aprendeu Ele fez uma pausa, que aproveitei para dar mi- com eles. O tempo todo a pulsão verdadeira é essa, a nhas impressões sobre sua música, cujas letras são solidariedade, o mutirão.” Mautner enfatizou também muitas vezes permeadas de referências à nossa cul- a generosidade que faz parte da vida do nosso povo, tura popular, como História do Baião, Bumba-meu-boi de povo hospitaleiro e receptivo aos estrangeiros, desde os Beijing e Maracatu Atômico. Percebe-se nas canções de tempos em que éramos todos índios e chegaram a estas Jorge Mautner uma certa sutileza que até pode cau- terras os primeiros brancos europeus. sar algum estranhamento, como se fosse feita de um

104 Cultura tempero a mais que o faz diferente de Caetano, Gil, . Ele parte de melodias que lembram, Jorge Mautner é por exemplo, as músicas bregas de Amado Batista comunista-artista ou (um exemplo é sua música Todo errado) e terminam com frases longas e melodicamente mais sofisticadas. artista-comunista, Outros exemplo: sua música Perspectiva começa com a títulos que se fundem simplicidade romântica de dizer que “gosto de quem gosta das coisas sem querer prendê-las” e termina e se confundem em conclamando a “alegria lá do futuro”; e Lágrimas ne- sua vida e em seu gras, cujo violino parece que fala e chora numa forma barroca, encerrando com a frase “Belezas são coisas discurso acesas por dentro, tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento. Lágrimas negras caem, saem, doem...” A isso, Jorge Mautner respondeu que sua música Para terminar, Jorge Mautner diz que todos es- é o resultado de tudo o que ele pensa sobre o mundo, ses artistas que ajudaram a dar uma cara nova ao sobre o Brasil, sobre a cultura, o tempo todo. “Todas novo Brasil que foi se constituindo após a década de essas emoções são fundamentais”, diz ele. Desde os 1950, ainda continuam como amantes e militantes sofrimentos do menino de sete anos separado do pai da cultura brasileira. E citou os nomes de Gilberto e da babá para vir morar em São Paulo, onde a chuva Gil, Caetano Velloso, Bethânia, Chico Buarque, Tom fazia os dias ficarem cinzas, e trouxe as primeiras Zé, entre tantos outros que se unem, segundo ele aos angústias a seu coração. Passando pelas conversas tambores do Brasil, porque “aqui cada pessoa são vá- com seus amigos Mário Schenberg e José Roberto rias”. Juntam-se também ao movimento antropofá- Aguilar, onde eles sonhavam juntos, compartilhan- gico de Oswald e Mário de Andrade, à genialidade do os ideais comunistas; até a convivência artística do pintor Cândido Portinari, a Machado de Assis, a e fundamental com seu companheiro Nelson Jacobi- Cruz e Souza, a Graciliano Ramos, , na. Mas também tem o triunfo e o otimismo “dessa Vinícius de Moraes, Carlos Drummond, Tom Jobim, sociedade brasileira maravilhosa, esse otimismo que Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. E aderem à nos faz todo o tempo dar a volta por cima. Existe musicalidade fantástica de Villa Lobos, de Heitor dos algum problema? O brasileiro tira de letra todos os Prazeres, de Dolores Duran “que lia Sartre, Albert sofrimentos. Desde os escravos, cujos senhores até Camus e citava Goethe”... hoje ainda não fizeram o movimento de vir ao en- – “Esta é a nossa cultura brasileira, tudo isso jun- contro. Então minha música e minha literatura re- to. A gente precisa ter muito orgulho dessa história!” fletem isso”. Este trecho abaixo da música Perspectiva de Jor- Ele lembra que no início dos anos 1990, ele e Nel- ge Mautner escolhi como um dos resumos de sua son Jacobina foram convidados a participar de um alma amalgamada de alegria e fé no homem e no show do PCdoB em homenagem aos torturados e futuro: mortos da Guerrilha do Araguaia. “Tocamos a Inter- nacional e depois A Bandeira do meu Partido. Para mim, “Para a rua, tambores e poetas! foi a coisa mais emocionante tocar na presença de Ainda há palavras lindas! tantos companheiros que foram perseguidos no Ara- URSS – União das Repúblicas Socialistas Sovié- guaia, pela ditadura militar. “João Amazonas veio e ticas, me deu um abraço muito forte e me pediu para tocar Ó tu, União Soviética, Cristo entre as nações, de novo, quatro, cinco vezes A Bandeira do meu Parti- para o júbilo, o planeta ainda está imaturo! do. Foi emocionante!” É preciso arrancar alegria lá do futuro! Morrer nesta vida não é difícil E completa, reflexivo: O difícil é a vida e seu ofício O coração tem moradia certa – “O papel do artista é fazer esse amálgama da bem aqui no meio do peito. vida, da vida de quem trabalha, numa linguagem Mas é que comigo a anatomia ficou louca que fala ao coração, compreensível por qualquer ser E sou todo, todo, todo, mas todo... humano. Karl Marx disse ‘A religião é o coração de Coração!” um mundo sem coração’. A arte, para mim, é pa- ra transformar o mundo. Sempre! A cultura é parte * Mazé Leite é artista plástica, ilustradora, bacharel fundamental da vida do ser humano.” em Letras, escritora

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