A. J. Greimas, Um Projeto Teórico Em Construção Anne Hénault * Tradução De Juliana Di Fiori Pondian **
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estudos semióticos www.revistas.usp.br/esse issn 1980-4016 vol. 13, no 2 dezembro de 2017 semestral p.6–12 A. J. Greimas, um projeto teórico em construção Anne Hénault * Tradução de Juliana Di Fiori Pondian ** Resumo: Depois de recuperar as principais etapas pelas quais Greimas atravessou a linguística para fundar, concretamente, a semiótica geral, mostramos como o conceito de imanência define a identidade da semiótica que Greimas convidava a construir e a praticar. O princípio de imanência é o instrumento conceitual que permite atualizar, descrever e hierarquizar os jogos relacionais abstratos que constituem a gramática profunda das línguas e da linguagem. O novo saber que resulta da emergência da semiótica está inteiramente ligado a esse tipo de funcionamento mental cujo saber matemático constitui outro exemplo. Palavras-chave: Imanência, teoria, metalinguagem, prática, gramáticas abstratas A. J. Greimas (1917-1992) foi um homem de força Ele terá sido o fundador de uma corrente de pes- moral excepcional, que soube transmudar, num enga- quisa que não demorou a interessar ao mundo inteiro, jamento científico bastante fecundo, incontáveis pro- depois de ter estado totalmente em evidência em Paris, vações que lhe foram impostas pela História do século entre 1966 e 1980. Foi um pensador que esteve na XX. Sua biografia será publicada em breve1; por isso, moda e, no entanto, desconfiava visceralmente daquilo diremos apenas algumas palavras sobre a vida pes- que estava na moda. Suas leituras não seguiam em soal de Greimas antes de nos concentrarmos em seu nada os modismos e obedeciam apenas a imperati- projeto científico, de pesquisador. vos fundamentais. Essa linha de conduta, bastante A pessoa de Greimas retinha, frequentemente de sistemática e que nunca falhava, terá feito dele um pas- maneira completa e definitiva, os que dele se aproxi- seur, capaz de manter a exigência epistemológica dos mavam. Visionário, porém, perspicaz, ele era mais grandes mestres do passado (os Poincaré, os Cavaillès, dotado do que qualquer um para aquilo que, com os Reichenbach ou Robert Blanché e, antes deles, o Dostoiévski, chamamos “o discernimento das almas”. pensamento racional do período clássico, Descartes, Ele era para o grupo de alunos totalmente engajados Port-Royal, Leibniz, Kant, Nietzsche, Husserl). Ele em seu projeto teórico, ao mesmo tempo, Sócrates seguia meticulosamente as lições dos mestres da epis- em meio a seus discípulos nos jardins da Academia e temologia, aos quais jamais deixava de se referir. Em Albert Einstein, solitário na descoberta da teoria da Greimas, a instalação de novos conceitos semióticos se relatividade: Greimas cultivava o paradoxo e a gozação, fazia, com infinitas precauções, em continuidade com zombava constantemente de si mesmo e tentava nos a grande corrente racionalista que marcou as etapas fazer admitir que ele era apenas um “caipira do Danú- de construção do pensamento científico e os desenvol- bio”, mesmo que já tivesse deixado em Kaunas, Vilnius vimentos da ciência contemporânea. Ele ignorava os e outros lugares da Lituânia, assim como em Grenoble, comprometimentos ideológicos e se mostrava de um onde descobriu a filologia, desde 1935, a lembrança rigor absoluto no plano do saber, sendo ao mesmo de um rapaz elegante, a quem não desagradava passar tempo um verdadeiro humorista: jamais deixava de por dândi. fazer algumas piadas afiadas, sempre que a comédia * Professora emérita da Universidade de Paris IV-Sorbonne, França, e responsável pela coleção “Formes Sémiotiques” da PUF (Les Presses Universitaires de France). Endereço para correspondência: h [email protected] i . ** Pós-doutoranda do Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Endereço para correspondência: h [email protected] i. 1 Sobre os diversos avatares da vida de Greimas, teremos em breve um documento excepcional, com a biografia completa que será lançada por Tom Broden. Ver também Michel Arrivé (2007), capítulo VIII. estudos semióticos, vol. 13, no 2 (edição especial) — dezembro de 2017 humana lhe dava oportunidade. de relações livres de investimentos semânticos e des- Para uma caracterização global de Greimas, pes- providos de termos positivos. Perspectiva vertiginosa quisador, fala-se com frequência de ambição, ousadia, e excitante para o espírito, uma vez que constitui um profundidade, rigor flexível. Acrescentemos o “gosto outro campo do saber e uma maneira radicalmente pelo paradoxo e pelas hipóteses extremas”. O autor nova, literalmente inaudita, de conceber e de exercer de Semântica estrutural (1976 [1966]) ofereceu às ciên- a apreensão e a explicação do sentido, que assim se cias da linguagem uma linha teórica que – porque era desenham. do começo ao fim racional, em conformidade com a O segundo deslumbramento de pura racionalidade ampla visão científica de Saussure e Hjelmslev – daria frequentemente mencionada por Greimas lhe foi ins- objetividade e força demonstrativa à abordagem das pirada pelos Prolegômenos a uma teoria da linguagem significações postas em circulação na vida social. (1975 [1961]), de Hjelmslev. Segundo ele, as visões Greimas só pôde sustentar essa proposta porque de Saussure ficavam explícitas e se tornavam apre- sabia insuflar um tipo de vida concreta a espaços men- ensíveis graças a esse monumento de total abstração tais, tidos como áridos e secos. Sob sua palmatória, o elaborado pelo pesquisador dinamarquês, em diálogo conjunto de noções abstratas e de procedimentos que com seu jovem colega Uldall. Aos olhos de Greimas, os constituem as aquisições e o organon da teoria ganhava Prolegômenos evidenciavam os primeiros esboços dos vida assim como ganham vida conceitos matemáticos espaços mentais que seriam identificados e tratados em debates entre os pesquisadores mais criativos. Daí como planos de imanência para fundar, desenvolver as controvérsias planetárias suscitadas, no passado, e aplicar a teoria das significações. Greimas um dia pelas noções de “quadrado semiótico” ou “percurso me descreveu4 esse texto como um palácio de cristal gerativo” e pela questão da “conversão” entre níveis de de beleza e claridade deslumbrantes, uma vez que co- sentido ou o recente conturbado debate transatlântico meçava a tornar claro e paradoxalmente concreto o sobre o conceito de “Imanência” na linguística e na jogo infinitamente complexo de relações abstratas que semiótica2. subjaz à circulação das significações na e pela vida Eis por que este texto será dedicado essencialmente social. à recuperação das principais etapas que marcaram a Uma terceira leitura quase contemporânea às duas aventura prometeica que foi o encaminhamento teórico precedentes, a do livro Morfologia do conto maravilhoso de Greimas, antes de formular algumas observações (1984 [1928]), de V. Propp, feita em binômio com Ro- acerca do que o conceito fundamental de imanência land Barthes (no ano em que eles se inspiravam um representa hoje para a semiótica. no outro enquanto eram jovens professores de francês em Alexandria, no Egito), não despertou em Greimas um fervor racional do mesmo tipo; por estar em con- 1 Uma aventura prometeica: dar cordância com alguns outros trabalhos dos quais ele tinha conhecimento, o trabalho de Propp contribuiu à semiótica o estatuto de um essencialmente para a prática semiótica, ao começar a projeto do tipo científico isolar constantes figurativas assinalando o nível propri- amente narrativo de uma história. Na verdade, ainda 1.1 Descobrir e refletir sobre os precur- que as análises de Propp continuassem muito depen- sores da racionalidade linguística dentes do nível figurativo dos contos, elas ofereciam, como as de Souriau ou de Tesnière5, o início dos cálcu- Greimas insistiu muitas vezes na inspiração que los narrativos fundados sobre as regularidades quase lhe despertaram Saussure, de um lado, e a escola di- formais que afloravam na superfície dos contos ou da namarquesa (principalmente Hjelmslev e Uldall), de gramática frasal. Essa prática inspirou em Greimas outro: ele sempre se mostrou irrevogavelmente cati- um trabalho de simplificação, reorganização e algebri- vado pelo gesto fundador que singulariza o Curso de zação dos componentes das listas (de personagens e de Saussure, um movimento de abstração até então des- ações/funções) levantadas por Propp. Foi assim que conhecido nas Ciências Humanas3. Pela primeira vez, a sintaxe narrativa não figurativa começou a se dese- um pesquisador ousava pensar que a substância do nhar e a se impor, segundo sua engenharia racional do sentido é menos reconhecível, objetivamente, do que começo ao fim, graças a um esforço de metalinguagem sua forma (seja da expressão ou do conteúdo) e esse desconhecido até então nas ciências humanas. mesmo pesquisador assumia totalmente a ideia de que Desse mesmo movimento, a estrutura em camadas essa forma é, em si mesma, feita apenas de sistemas do relato, como massa folhada (que Lévi-Strauss havia 2 Ver Zinna, Alessandro Zinna; Ruiz Moreno, Luisa (éds.)., 2014 et 2015. 3 Cf. um breve resumo da teoria de Saussure (16 páginas) em Anne Hénault, 2010: “The Saussurean Heritage”. In: Cobley, Paul (éd.). The Routledge Companion to Semiotics. London: Routledge, 2010. 4 Greimas, Entrevista inédita com Anne Hénault. 5 A. J. Greimas. Sémantique structurale (1966), pp.173-182. 7 Anne Hénault proposto como uma das chaves de leitura dos mitos orientação a partir de então capital para a pesquisa transmitidos pela tradição oral), começava a se impor semiótica contemporânea7. ao espírito