H O M E N A G E M

Marta Rossetti

Modernismo

REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 123-140 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012 123

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RESUMO

Este texto faz uma leitura da produção artística trazida pelo movimento modernista, seja pelo esgotamento do acadêmico, seja pela transformação cultural brasileira da época, durante o início do século XX e o fi nal da década de 1920. Para tanto, perpassa por questões como: a pesquisa do nacional; o papel da cidade de São Paulo; a formação do modernismo pelas artes plásticas, com destaque para o percurso dos artistas radicados no país, para a infl uência de Paris e para as contribuições do expressionismo, todos for- necendo elementos para a estruturação da linguagem moderna brasileira.

Palavras-chave: procura do nacional, cidade de São Paulo, Semana de Arte Moderna de 1922, Escola de Paris.

ABSTRACT

This text approaches the artistic production brought about by the modernist movement, both from the viewpoint of the exhaustion of academic tradition and the cultural change taking place then in Brazil, from the onset of the 20th century to the late 1920s. To do so, it works on questions such as the research on the national elements, the role of the city of São Paulo, and the formation of the modernism through ne arts. In doing so it gives emphasis to the paths taken by artists based in the country, the in uence from Paris, and the contri- butions from expressionism. All of those elements helped structure the Brazilian modern language.

Keywords: search for the national identity, city of São Paulo, 1922 Modern Art Week, School of Paris.

MARTA ROSSETI1.indd 124 26/07/12 15:13 a época da Primei- que preservava a arte acadêmica, baseada em ra Guerra Mundial, modelos já desgastados, herdados da tradição alguns jovens es- renascentista (composição segundo modelos critores, músicos, conhecidos, uso das regras da perspectiva pintores e escul- exata, das sombras, do claro-escuro, etc.). A tores abandonam tradição passava de professor a aluno, a tal a arte tradicional- ponto que os padrões de representação que se mente praticada porque descobrem que… o seguiam eram considerados “regras imutáveis Brasil entrava no século XX e estava à procu- que regem as artes”, como diziam na época. raN de sua identidade como nação. Vão pensar Esse modo de transmissão do conheci- e produzir dentro desses dois polos. mento artístico era baseado no modelo fran- São integrantes de uma geração nascida cês. Aliás, nessa época o academismo era nos últimos anos do século XIX, que desen- ainda a arte oficial do Brasil e da França, volve seus primeiros livros, músicas, quadros isto é, era a arte ensinada nas escolas oficiais e esculturas do período da guerra. Nos anos e protegida com exposições, prêmios e aqui- 1920, formam um grupo inovador que deixa sições pelos dois governos. obras importantes, uma produção artística Entretanto, havia uma clara diferença que enriquece o patrimônio cultural brasi- entre o panorama da arte francesa e o da leiro. São poucos os que primeiro se atrevem brasileira nas vésperas da Primeira Guerra nos novos caminhos, são a vanguarda que Mundial. Na França, e em outros países eu- constitui o movimento modernista. ropeus, desde o século XIX, ao lado da arte O termo modernismo – que eles mesmos oficial, acadêmica, sucediam-se os movimen- usavam para se classificar – não quis e não tos dissidentes. Grupos com novas propos- quer dizer uma escola com regras e leis rí- tas de representação, recusados pelos júris gidas, mas serve para designar aqueles que, dos salões oficiais, reuniam-se para expor negando os padrões ultrapassados da arte suas obras “heréticas” em sucessivos salões brasileira no início do século, procuram de- de recusados. Esses grupos dissidentes, de senvolver uma linguagem nova para expres- movimento para movimento, destroem a re- sar seu tempo e seu meio. Engloba escritores presentação pictórica tradicional e criam o como Mário de Andrade e Oswald de Andra- que há de novo e vivo na arte desde os im- de, músicos como Villa-Lobos, e artistas plás- pressionistas – com primeira mostra coletiva ticos – estes últimos serão examinados aqui. quarenta anos antes da guerra. Sucedem-se, O movimento modernista é fruto da pró- entre outros, os pós-impressionistas, os sim- pria situação da cultura brasileira da época: bolistas e, já no século XX, os fauvistas, os MARTA ROSSETTI (1941-2007) tanto do cansaço e esgotamento das fórmulas cubistas, os futuristas italianos, os expres- foi historiadora da de arte em uso – esgotamento que propicia o sionistas alemães. É evidente que essas mo- arte, museóloga e professora do Instituto aparecimento do novo – como das transfor- dificações no modo de conceber a arte estão de Estudos Brasileiros mações por que passa o país. O modernismo ligadas às profundas transformações por que (IEB) da USP. é fruto da época, século XX, e do meio bra- passa a sociedade dos séculos XIX e XX. A sileiro, que finalmente se interessa pela arte industrialização, os progressos científicos e Texto originalmente publicado em: Acervo nova e procura a brasilidade. tecnológicos provocam alterações no modo Artístico Cultural dos de vida e no pensamento da época. As má- Palácios do Governo quinas passam a ter peso no cotidiano, inva- do Estado de São Paulo, A ATUALIZAÇÃO São Paulo, 1995, pp. 35-69. FORMAL dido por trens, bondes, automóveis e aviões; pela fotografia, telégrafo, telefone e rádio; O resumo deste texto No início do século XX, o ensino e a pro- pela luz elétrica e pelo cinema. Muitas das foi elaborado por Bianca pagação da pintura e da escultura continua- descobertas científicas têm influência direta Dettino, supervisora da coleção de Artes Visuais vam centrados na Escola Nacional de Belas na evolução da arte moderna – entre elas, a do Instituto de Estudos Artes, no Rio de Janeiro. Era a Academia fotografia, as descobertas sobre a percepção Brasileiros (IEB) da USP.

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das cores e, logo mais, as teorias da relati- Nossa belle époque, nosso século XIX, vidade e as de Freud. Por outro lado, a revi- se prolonga até a Primeira Guerra Mundial. são do medieval e o contato com a arte de É nessa época que surge a inquietação. O outros continentes – a japonesa e, depois, a desenvolvimento das cidades iniciado com africana e a oceânica – fornecem ao europeu a República, as grandes levas migratórias, a exemplos de modos de expressão poderosos industrialização incipiente, os operários, a e diferentes da tradição renascentista. vida urbana modificando a sociedade patriar- No Brasil, não aparecem esses movi- cal; a eletricidade, o bonde, os automóveis, mentos dissidentes, de grupos autônomos o telefone invadindo o cotidiano evidenciam com força para contestar a arte oficial. Aos um novo tempo que acredita no progresso, na salões anuais da Escola Nacional de Belas dinâmica e higiene da “vida moderna”. Al- Artes não se seguiam protestos e exposições guns percebem que, na literatura, na música, paralelas de recusados. Os artistas não eram nas artes plásticas, era necessário procurar numerosos nem sustentados por um grande uma linguagem em consonância com essa público, e se adaptavam bem àquela arte co- idade moderna. A arte precisava traduzir o nhecida. Foram cem anos de arte acadêmica novo tempo, refletir o pensamento e o modo incontestada. É verdade que se verificam tê- de vida do homem do século XX. nues modificações no correr daqueles anos Essas ideias aparecerão claramente, por devido a infiltrações de características já po- exemplo, na Semana de Arte Moderna de pularizadas da arte dos grupos dissidentes 1922, na conferência em que Menotti del europeus, mas sempre muitos anos depois Picchia apresenta os escritores: do aparecimento do movimento inovador e de modo tão superficial que não quebrasse “Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, os padrões tradicionais. Tanto nas academias reivindicações obreiras, idealismos, motores, europeias como na brasileira. chaminés de fábricas, sangue, velocidade, Enquanto na Europa se desenvolvia o sonho, na nossa Arte… Morra a Hélade!… impressionismo, no Brasil – ainda escravo- Fora a mulher­-fetiche… Queremos uma Eva crata – os artistas pintavam grandes batalhas ativa, bela, prática, útil no lar e na rua, dan- e cenas heroicas. No início do século XX, çando o tango e datilografando uma conta enquanto na Europa nasciam o fauvismo, o corrente…”. expressionismo, o cubismo e o futurismo, no Brasil os pintores continuavam a trabalhar Colocando-se contra os modelos acei- com a representação tradicional do espaço, tos e difundidos pelo academismo, o artista o colorido mais fiel ao modelo, fixando suas modernista, ao começar a montar sua lin- paisagens, retratos e cenas – no máximo, guagem, encontra-se sem parâmetros pre- com cores mais claras e pinceladas mais estabelecidos (como acontecera com as su- livres vindas da vulgarização do impres- cessivas levas de novos criadores europeus). sionismo. A transformação de nossas artes A arte moderna irá estimular a criatividade, plásticas vai se dar de forma diferente da pedindo a cada artista maior independência evolução europeia. no desenvolvimento da linguagem pessoal. Lá, cada movimento de secessão contes- Na época da Semana de 1922, essa sensação tava um aspecto da arte tradicional e para ele de liberdade de expressão, de independência propunha novas soluções; foi uma sucessão para pesquisar e criar, também será exalta- de movimentos contestatórios, cada vez mais da, por exemplo, por Mário de Andrade ao radicais, que fixou o novo modo de encarar a examinar as artes plásticas. arte. Aqui, não haverá evolução: a mudança Com esse espírito, os modernistas pro- se fará por saltos que dificultam a penetra- curam se atualizar, estudando as pesquisas ção, a compreensão e a sedimentação da arte europeias. Serão os primeiros a trabalhar moderna. influenciados pela arte europeia não oficial

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MARTA ROSSETI1.indd 126 26/07/12 15:13 e, à margem do oficialismo, introduzirão a obras regionalistas, valorizando os costumes arte moderna no Brasil. Os primeiros artistas locais. Aparecem estudos sobre o folclore. plásticos modernistas procurarão se atualizar Monteiro Lobato é voz poderosa: ridicu- na Alemanha expressionista, na Itália – ainda lariza os francesismos, prega a necessidade bastante acadêmica, mas sede do futurismo de uma arte nacional que retratasse nosso – e na Suíça, onde recebem ecos da movi- meio. Que os artistas pintassem nossas ma- mentação francesa e da alemã. Só depois de tas, e não paisagens europeias, retratassem 1922 procurarão a França moderna – do pós- nossas lendas, e não a mitologia alheia. Essa -guerra, dos prolongamentos do cubismo, do pregação já mostra que não somos feitos à art déco e do surrealismo. Descompromissa- imagem e semelhança do europeu. Mas ain- dos com a cadeia de fatos da evolução da arte da não se contestam os métodos tradicionais moderna europeia, vão sofrer influência de de expressão. A exacerbação nacionalista um ou outro segmento, às vezes misturando­ prossegue no pós-guerra, com os preparati- os e adaptando-os a seu modo. Nossa ab- vos para a comemoração do Centenário da sorção e evolução vai ser… à brasileira. Independência. Os modernistas ampliarão essa pesqui- A PROCURA sa do nacional. Procurando uma arte de DO NACIONAL seu tempo, constroem uma linguagem atu- al. E vivendo seu tempo brasileiro, procu- A arte nova que procuram deveria ex- ram refletir seu meio. Alguns o farão mais pressar o novo tempo e um meio, o brasilei- profundamente, querendo criar uma arte ro. As primeiras experimentações modernas caracteristicamente brasileira. Ostentam a dão-se justamente na época da Primeira face mestiça, principalmente os escritores, Guerra Mundial, quando os sentimentos na- que serão os teóricos do modernismo, criam cionalistas se exacerbam. movimentos e polemizam sobre as caracte- A preocupação com o nacional antecede rísticas de uma arte nacional. o modernismo e tomará novas tonalidades com ele. Se já no Império os românticos can- SÃO PAULO, SEDE taram e pintaram nosso índio idealizado, na DO MODERNISMO República um progressivo “tomar posse do território” conduz a uma consciência maior O modernismo nasce e se desenvolve em de nação. Vários fatos vão nos expondo a São Paulo, por vários fatores. A cidade não nós mesmos, como, no início do século XX, tinha maiores tradições artísticas. Desde o Euclides da Cunha com Os Sertões desven- Império, o Rio de Janeiro, sede da corte e dando a Guerra de Canudos, ou as missões das academias – portanto, sede da arte ofi- de Rondon às regiões longínquas do país, cial –, centrou as atenções. Nas artes plásti- contatando tribos indígenas e colocando sua cas, só a passagem pela Escola Nacional de cultura em evidência. Belas Artes e seus salões anuais consagrava Nas vésperas da guerra, Afonso Arinos um artista; portanto, a capital do país atraía fala sobre as tradições brasileiras. Em 1914, os artistas promissores de todas as regiões. Ricardo Severo prega a reutilização de ele- Ainda na época da guerra, São Paulo nem mentos da arquitetura colonial, iniciando o mesmo possuía uma escola de belas artes. movimento neocolonial na arquitetura. Em Essa cidade, sem maiores tradições artís- 1915, escreve “Em Prol ticas, pequena e pobre durante o Império, co- de uma Pintura Nacional”. Monteiro Loba- meçou a se expandir com rapidez, principal- to marca época ao expor com força o nosso mente com as sucessivas levas de imigrantes, caboclo. A Revista do Brasil, fundada em que logo marcam a vida urbana. Eles estão 1916, propõe desenvolver uma “consciência também na acumulação da riqueza vinda do nacionalista”. Alguns escritores produzem café e no início da industrialização. Tanto os

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imigrantes, que querem conquistar seu lugar O INÍCIO na terra nova, quanto a alta burguesia enri- quecida, educada na cultura europeia, acredi- O primeiro choque: tam no progresso, vendo o crescimento verti- ginoso da cidade que, em fins de 1920, já será chamada por Mário de Andrade a “Pauliceia As manifestações literárias sempre tive- desvairada”. Seu dinamismo exemplifica a ram mais força, entre nós, do que as das artes “vida moderna”, a vida do homem do século plásticas. Entretanto, no período de formação XX. A alta burguesia, em dia com a Europa, é do modernismo, os primeiros sinais inovado- ávida pelas “novidades” que trazem para suas res, que vão acordar e incentivar os escritores, casas em São Paulo – alguns de seus integran- partem de dois artistas plásticos: a pintora tes até apoiarão as “heresias” modernistas. Anita Malfatti e o escultor Victor Brecheret. Mas o curioso é que, na época da Pri- Acontecem em São Paulo e já são fruto de meira Guerra Mundial, São Paulo também imigração. Os dois cresceram em São Paulo é sede da movimentação nacionalista mais e iniciaram seus estudos artísticos na Euro- intensa nas artes – vários dos exemplos cita- pa, nos países ligados às suas origens fami- dos acontecem nela. É na cidade de muitos liares. Seus primeiros contatos com a arte imigrantes que Lobato desenvolve sua prega- moderna deram-se ainda independentes de ção, que Oswald de Andrade pede uma arte uma fermentação maior no meio brasileiro. nacional. Uma cidade em que, às vezes, os Anita Malfatti (1889-1964), paulistana, próprios imigrantes respondem a esses ape- filha de um italiano e uma norte-­americana los nacionalistas… de pai alemão, aprende a pintar na Alema- Será em São Paulo, longe das estrutu- nha, antes da Primeira Guerra Mundial. ras mais sedimentadas do Rio, que o gru- Depois de passar pela tradicional Academia po modernista se concentrará e polemizará Imperial de Belas Artes em Berlim, intuiti- acirradamente sobre a criação de uma arte vamente procura, cada vez mais, tendências nacional. Apesar de pequeno, consegue se ligadas à arte moderna. Estuda as teorias proteger, produzir e divulgar a arte moder- da cor, de tanta influência sobre a arte im- na. É o grupo da cidade que está preocupado pressionista e pós-impressionista; estuda no em inventariar a produção e os modernistas ateliê do exaltado Lovis Corinth. Conhece a que vão surgindo em São Paulo, no Rio de obra dos modernos europeus numa grande Janeiro, em Recife ou ainda – no caso da li- exposição retrospectiva da arte moderna – teratura – em Minas, Rio Grande do Sul e tanto os franceses como a arte de Münch e outros centros do Norte e Nordeste. de todos os jovens alemães que, com suas Entre 1917 e 1921, os modernistas se co- pinturas deformadas, de colorido gritante, nhecem, descobrem novos adeptos, pesqui- estavam consolidando o expressionismo. sam a arte moderna em busca da atualização. São lições liberadoras para a brasileira, Produzem as primeiras obras inovadoras, ou que só conhecia a pintura acadêmica. Nes- com tentativas de inovação. Às vésperas da ses três anos e meio, desenvolve o essencial Semana de 1922, já unidos, relacionados com de sua técnica e produz retratos e paisagens os novos do Rio de Janeiro, polemizam pela que se distanciam da arte passada: abrevia imprensa, atacando os “passadistas” e di- a representação de suas figuras, eliminando, vulgando o “credo novo”. Depois de 1922, o por exemplo, ilusões de profundidade e os movimento atinge seu apogeu: é um período claro-escuros. Mas principalmente libera a de reuniões constantes, de debate e defini- cor da antiga “imitação fiel” do retratado: ções de caminhos já dentro da arte moderna. compõe cabeças com pinceladas aparentes Até 1929, enquanto se sucedem movimentos alternadas de vermelhos, amarelos e verdes, e manifestos, aparece a produção mais carac- fundos com pinceladas violentas e paralelas, terística do movimento modernista. tintas não misturadas previamente na paleta.

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Anita Malfatti, O Farol, 1915

Seu interesse maior, desde o início, é a figura -os com largas áreas de cores vibrantes, se- humana, e suas obras já se aproximam do melhantes aos dos fauves. Sua linguagem expressionismo. Mas ainda não apresentam torna-se ainda mais estruturada e definida deformações acentuadas e são vistas – quan- nos trabalhos que realiza em 1915-16, na In- do as apresenta em São Paulo em sua pri- dependent School of Art de Homer Boss, em meira individual, em 1914 – pelos críticos Nova York, especialmente em seus retratos como “cruas”, as inovações, percebidas como a óleo, às vezes abstratizantes, com o uso de “imperícia técnica”. cores e formas arbitrárias, angulações, defor- Nos Estados Unidos, em 1915-16, aumen- mações, como O Homem Amarelo, O Japo- ta seu grau de liberdade. Em Nova York, nes- nês, A Boba ou A Mulher de Cabelos Verdes. ses anos de guerra, quando artistas europeus É preciso acentuar que Anita Malfatti, aí se refugiam, a influência do cubismo era descobrindo e construindo planos e cores, grande. Anita Malfatti, como outros pintores, monta uma linguagem que lhe é necessária exercita-se na construção do quadro a partir para transmitir seu drama pessoal, identifi- das lições vindas do cubismo, procura nas cando-se com os marginais da vida. O con- figuras e nas paisagens as estruturas geomé- teúdo é mais importante que a forma. Pinta tricas básicas. Constrói o quadro como uma com urgência, direta e rapidamente sobre a entidade autônoma, superfície plana coberta tela, seus seres deformados, deserdados da por combinações de formas e cores. Assim, vida. Torna-se uma expressionista, contem- quebra as últimas amarras acadêmicas. porânea dos jovens expressionistas alemães. Nas férias de verão de 1915, passadas na Essas obras de Anita Malfatti são um Ilha Monhegan, faz paisagens como A Ven- salto muito grande em relação à pintura aca- tania – ainda transição dos estudos alemães dêmica então praticada no Brasil. Causam para os norte-­americanos, com lembranças de escândalo no meio paulistano, quando a ar- Corinth e de Van Gogh –, O Farol, Rochedos, tista as expõe em 1917-18. São especialmente O Barco, entre outras. Seus estudos da forma os retratos deformados, de cores arbitrárias, se aprofundam, e muitas vezes ela já estrutura que chocam o público e que motivam o fa- o espaço por planos superpostos, cobrindo- moso ataque de Monteiro Lobato – que não

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aceita aquele novo tipo de representação. São ainda, quando se examina sua obra, que pro- também os retratos norte-americanos, prin- curou conhecer os grandes escultores, como cipalmente, que mostram a alguns jovens Michelangelo. Admira Rodin e encaminha-se artistas e escritores – como Di Cavalcanti, relativamente para a modernidade, principal- Mário de Andrade e Oswald de Andrade –, mente através do exame da obra de Ivan Mes- pela primeira vez, uma arte realizada segun- trovic, escultor iugoslavo nessa época realizan- do novos critérios, uma linguagem de seu sé- do obra de grande exaltação nacionalista: os culo – linguagem de que eles estão à procura aspectos dramáticos, de força acentuada, seus para construir sua obra. Na época da exposi- cavaleiros heroicos e mesmo as peças mais ção, Oswald de Andrade tenta uma defesa, da espiritualizadas vão cativar nosso escultor. pintora e da arte nova, e Mário de Andrade Esses estudos e conhecimentos de Bre- faz um poema… parnasiano em honra a O cheret evidenciam-se nas poucas peças que Homem Amarelo. Mário escreverá depois trouxe, ao voltar a São Paulo em 1919, assim que: “Aqueles quadros foram a revelação, e como nas que executa nesse ano, em que ilhados na enchente de escândalo que tomara trabalha solitário. Obras como Ídolo, Eva a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de ou Cabeça de Cristo, de postura inovado- êxtase diante de quadros que se chamavam ra para nosso meio, e Vitória, exemplo de O Homem Amarelo, A Mulher de Cabelos suas acentuações das proporções humanas e Verdes”. Essa polêmica em torno da segunda da musculatura tensa e exaltada para maior individual de Anita Malfatti marca o início sensação de força. Ainda em grande parte do movimento modernista. preso à representação tradicional da figura, Mas o grupo modernista ainda levará três Brecheret, abstraindo detalhes supérfluos, anos para se formar como tal e começar uma concentrando força e dramatização por al- produção mais atualizada. E Anita Malfatti guns exageros e acentuação de formas, como permanece isolada com suas obras incom- a musculatura em destaque, torna suas escul- preensíveis; recua em suas conquistas, reali- turas, expostas a contrastes de luz e sombra, zando uma arte mais próxima da tradicional. uma novidade, um avanço sobre a escultura Em 1921-22, reagindo às concessões, desen- brasileira da época, então amaneirada, per- volverá trabalhos contidos, mais sintéticos dendo-se em detalhes e alegorias literárias. – alguns com intenção nacionalista, como Assim suas obras irão causar grande im- Moemas, que expõe na Semana de 1922. Ali- pressão nos modernistas, que descobrem o ás, na Semana, terá a maior representação escultor nos primeiros dias de 1920 e logo o individual, voltando a mostrar os trabalhos exaltam em numerosos artigos pelos jornais. que causaram a polêmica de 1917-18 e que Aliás, o momento de sua descoberta não permanecerão como sua maior contribuição podia ser mais propício para os modernistas para o modernismo. nesse pós-guerra de preparativos para a co- memoração do Centenário da Independência O segundo choque: Brecheret do Brasil, em que se projetava a construção de vários monumentos exaltando feitos e figu- Também se deve à imigração o apareci- ras de nossa história. Brecheret é visto pelos mento do escultor Victor Brecheret (1894- modernistas – e também por Lobato – como 1955), que veio da Itália para São Paulo ain- um novo, do grupo, com capacidade para da criança. Inicia seus estudos na cidade, no vencer concorrentes nacionais e estrangeiros. Liceu de Artes e Ofícios, mas é em Roma, A partir de sua descoberta, Brecheret onde permanece de 1913 até depois da guerra, convive com o grupo modernista que se for- que se desenvolve como escultor. Na capital ma. Por influência de alguns deles, modela a italiana aprende a modelar, trabalhando com maquete de um Monumento às Bandeiras, o escultor Arturo Dazzi; também estuda ana- com suas características de força e monu- tomia, que domina muito bem. Pode-se notar mentalidade, organização concentrada das

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MARTA ROSSETI1.indd 130 26/07/12 15:13 formas, nus potentes, de musculatura drama- mesmo no seguinte, é essencialmente um tizada. Seu gênio marca Oswald de Andrade ilustrador e caricaturista, trabalhando para e Menotti del Picchia, que o transformam em vários periódicos e expondo suas caricaturas personagens de seus romances. E Mário de – a primeira vez, no Salão dos Humoristas no Andrade, cuja revolta com a incompreensão Rio, em 1916, e, depois, na primeira individu- familiar diante da Cabeça de Cristo, que al, já em São Paulo em 1917. Sofre influência comprara, permite a eclosão, finalmente, dos de várias tendências do fim do século XIX, versos de Pauliceia Desvairada, primeiro entre elas da art nouveau. No início dos anos livro realmente moderno da literatura brasi- 1920 começa a pintar, a pastel e a óleo, e leira. E Brecheret faz a Máscara de Menot- seus primeiros trabalhos – que mostra numa ti, Sóror Dolorosa, homônima de versos de individual em São Paulo, em 1921 – tam- Guilherme de Almeida, e ainda outras obras bém estão ligados ao “fim de século”. Usa ligadas aos modernistas, como o mármore cores terrosas, as figuras mais iluminadas Cabeça de Daisy, retrato póstumo de uma destacando-se imprecisamente desses fun- companheira de Oswald de Andrade. dos escuros. São desse tipo as doze peças Na Semana de Arte Moderna, Brecheret – pinturas, desenhos e ilustrações – que apre- apresenta doze peças dessa primeira fase – senta na Semana de Arte Moderna, como A uma, hoje não identificada,O Regresso, possi- Dúvida, A Piedade da Inerte, Coqueteria ou velmente relacionada com a saga bandeirante. Boêmios – até os títulos reveladores de obras Mas, naquele 1922, Brecheret já está em Paris, com pequena atualização, ainda vivendo o onde desenvolverá nova fase em sua escultura. século XIX e, curiosamente, nada a respei- to do tema nacional. Nessa época, 1922-23, O terceiro modernista Di Cavalcanti está procurando seu caminho, histórico informando-se como pode sobre a arte mo- derna. Algumas pinturas que executa antes Diferentemente de Malfatti e Brecheret, de partir para Paris, em 1923, já mostram Di Cavalcanti (1897-1976) não era fruto da um colorido vibrante, cobrindo largas áreas, imigração, não estudaria no exterior nem quebrando amarras com o tradicional. marcaria sua aparição com o impacto dos ou- Outro ilustrador, Ferrignac (1892-1958), tros dois. Sua evolução se dá com os demais dono de um desenho refinado também ligado companheiros e está em todos os aconteci- ao art nouveau, participa da Semana de 1922 mentos dessa fase inicial: é um dos que con- com uma obra, Natureza Dadaísta, cujo tí- vencem Anita Malfatti a expor, está entre os tulo mais que tudo evidencia a vontade de primeiros descobridores de Brecheret, consta inovação dos expositores. que foi o autor da ideia da Semana e, vivendo entre Rio e São Paulo, funciona como ele- Outros artistas da semana mento de ligação do grupo modernista. Seu interesse por uma nova arte vem certa- Na Semana de Arte Moderna apresen- mente da atividade de caricaturista. A carica- tam-se dois estrangeiros chegados havia tura, por sua temática, ligada ao cotidiano que pouco em São Paulo: o pintor John Graz e o comenta ironicamente, aproxima-se mais da escultor Wilhelm Haarberg. vida atual. E, considerada arte menor na hie- Pouco conhecido hoje no Brasil, Haarberg rarquia acadêmica, sem vigilância mais rígida (1891-1986) veio da Alemanha para trabalhar sobre seus padrões estéticos, pode evoluir com em editora paulista como ilustrador. Dedica- maior liberdade. Tem liberdade para compor, -se às artes decorativas e leciona em colégios acentuar e deformar traços, de maneira a pro- alemães da cidade. Também esculpe, prin- vocar o riso, para isso podendo fugir da re- cipalmente em madeira, e são desse tipo as presentação tradicional da figura e do espaço. peças que expõe na Semana. Do pouco que se Di Cavalcanti, durante esse período e conhece, seriam obras de pequena dimensão,

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mas guardando caráter de monumentalidade, mana e várias na individual que realizou em por suas formas concentradas, resumidas ao São Paulo, logo a seguir. Em 1924 partirá de- essencial, dramatizadas, com tendência ex- finitivamente para a Itália, dedicando-se es- pressionista. Descoberto por Mário de Andra- pecialmente à cerâmica até o fim de sua vida. de, Haarberg não é, entretanto, um participan- O outro artista era o único, nesse período, te assíduo das reuniões modernistas; em 1925, que estudara em Paris: o pernambucano Vi- voltará definitivamente para a Alemanha. cente do Rego Monteiro (1899-1970). Partira Por outro lado, o suíço John Graz (1891- em 1911 com sua irmã mais velha, Fédora, 1980) radica-se definitivamente no Brasil, pintora acadêmica, e iniciara seus estudos na relacionando-se, desde sua chegada, com os Academia Julian, de ensino tradicional e mui- modernistas. Formado em Genebra, tendo to procurada pelos acadêmicos brasileiros. estudado na Escola de Belas Artes, já traz Não cremos que, nesse estágio, tenha assi- para São Paulo uma pintura de bom nível, milado a arte da vanguarda; era muito jovem, de uma modernidade contida e sóbria, mos- e o que produz na volta ao Brasil, a partir de trando influência da arte moderna suíça e em 1914, leva a crer que suas primeiras tentati- especial de Hodler. São paisagens e retratos vas em direção à arte moderna deram­se aqui sintetizados nas linhas e cores, construídos mesmo. Seu primeiro interesse maior foi a es- por planos sucessivos e abstração de detalhes cultura e, durante a Primeira Guerra Mundial, supérfluos, que Graz expõe numa individual entre as peças que realiza, está uma maquete já em 1920-21 e também – oito telas – na de Monumento aos Heróis de 1817, que seria Semana de Arte Moderna. erguido no Recife, o que mostra que também Antes de vir para o Brasil, John Graz es- ele sente a voga nacionalista do perío­do. Tan- tudara também artes decorativas, de cartazes to assim que, no imediato pós­-guerra, quando de publicidade a vitrais para igrejas. E será parece crescer seu interesse pela pintura, sua principalmente às artes decorativas que se temática preferida serão as lendas indígenas, dedicará nos anos 1920. Aliás, os três artistas que desenvolve em numerosas aquarelas. Do que se educaram em Genebra na época da ponto de vista formal, apresentam várias pes- Primeira Guerra Mundial, John Graz, Regina quisas ligadas ao fim do século XIX, como Gomide – com quem se casou – e Antônio simbolismo, orientalismo e linha fluente, às Gomide, trabalharão com grande constância vezes lembrando o art nouveau. Em óleos na decoração (integraram-se ainda ao grupo que realiza entre 1920 e 1921, retratando que se formou, em Genebra, dois escritores cabeças de negras e lendas, distribui a cor que também voltam em 1920, Sérgio Milliet com pinceladas impressionistas. Faz ainda e Rubens Borba de Moraes, que tiveram im- retratos mais desenhados que pintados. É portante papel de difusores da arte moderna essa diversidade de tentativas de inovação entre os modernistas paulistas em 1920-21). que Rego Monteiro apresenta na Semana de Dois outros brasileiros participantes da Arte Moderna, incluindo retratos, Lendas Semana de 1922 – com trabalhos vindos Brasileiras e até duas obras simplesmente por intermédio de Ronald de Carvalho, do intituladas Cubismo – hoje não identificadas. Rio – tinham estudado na Europa na ado- Provam simplesmente seu desejo de inova- lescência. Zina Aita (1900-68), mineira de ção e a procura de uma linguagem pessoal família italiana, na Itália durante a Primeira – que finalmente construirá na fase seguinte Guerra Mundial, já mostrava interesse pelas em Paris, para onde partira antes da Semana. artes decorativas. No início dos anos 1920 Assim, a Semana de Arte Moderna apre- desenhava, aquarelava e pintava dentro de senta, do ponto de vista da pintura e da es- uma linguagem pós-impressionista, ora pre- cultura, pesquisas e experiências iniciais de enchendo a tela como um tapete de manchas artistas em busca de uma linguagem atua- coloridas, ora sintetizando a figura em planos lizada – só Anita Malfatti e John Graz já coloridos – expôs oito peças desse tipo na Se- mostram uma linguagem coerente e pessoal.

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MARTA ROSSETI1.indd 132 26/07/12 15:13 Quanto à procura de uma arte nacional, há A influência de Paris poucas peças – nas representações de Anita Malfatti, Brecheret e Rego Monteiro – que Diferentemente do período anterior, evidenciam o interesse por temas brasileiros. agora Paris atrai os inovadores brasileiros – além de continuar a receber os acadêmicos. O APOGEU É lá que a maioria dos artistas plásticos mo- dernistas encontra, nesse período, condições Se as duas marcas iniciais do modernis- de estruturar uma linguagem moderna e pes- mo foram deixadas pelos artistas plásticos, soal, além da possibilidade de viver, expor e são os escritores que, já em 1920-21, desco- discutir sua arte de caráter experimental, em brem os “novos”, reúnem o grupo e divulgam constante evolução. as novas ideias estéticas. Os artistas plásticos O êxodo começa antes da Semana de 22: não foram “teóricos” da arte moderna, não a no fim de 1921 já estão em Paris Brecheret explicaram e muito menos lançaram manifes- e Rego Monteiro, que só retornarão definiti- tos ou criaram movimentos. São os escritores vamente ao Brasil nos anos 1930. Em 1923, que o fazem no correr de todos os anos 1920. chegam Di Cavalcanti, que permanecerá dois São eles, em fevereiro de 1922, os res- anos, e Anita Malfatti, que ficará cinco. No- ponsáveis pelas apresentações dos novos es- vos artistas plásticos que se integram ao mo- critores e dos novos artistas nos três saraus dernismo, depois da Semana de 22, também da Semana de Arte Moderna – um totalmen- lá se encontram: Antônio Gomide, por quase te dominado pela música de Villa-Lobos, o todos os anos 1920, o escultor Celso Antô- grande impacto da Semana –, enquanto no nio, entre 1924 e 1926. Ismael Nery realiza saguão, por toda a semana, os escultores, duas viagens, em 1920 e em 1927. Tarsila do pintores e arquitetos expõem seus trabalhos. Amaral é a única que passa o período num Depois da Semana de 1922, são ainda os vaivém constante entre Paris e São Paulo – escritores que criam as polêmicas já dentro vai ser a que mais de perto acompanha, e da arte moderna, editam sucessivas revistas participa, das discussões teóricas dos escri- difusoras do novo credo, correspondem-se e tores modernistas. estabelecem elos com inovadores de outros Na multiplicidade de manifestações da estados. São eles também que discutem as Escola de Paris, absorvem influências às características de uma arte nacional, a uti- vezes desordenadas, que lhes parecem úteis lização do primitivismo, do popular, como na formação de sua linguagem individual. veículo adequado à construção dessa arte, Alguns se atêm às pesquisas de uma repre- desvinculando-a de amarras de uma cultura sentação realista, mas de desenho e colori- erudita branca e europeia, do colonizador do livres das receitas acadêmicas. Muitos para o colonizado. Pelo meio dos anos 1920 sofrem a influência dominante no período, – o que não faziam anteriormente – darão de experiências formais baseadas na estru- maior atenção à política, e as divisões e po- turação geométrica das obras desenvolvidas lêmicas – pau-brasil x verde-amarelismo e, por vários movimentos continuadores do depois, antropofagia x anta – serão paralelas cubismo, nessa época se popularizando até às definições políticas e ideológicas. nas artes decorativas. Para o fim da década, Os artistas plásticos frequentam os “sa- alguns sofrerão influência do surrealismo. lões”, acompanham as polêmicas, mas em Ao mesmo tempo, a Escola de Paris, com- geral produzem mais isoladamente na defini- posta de várias “colônias” de artistas, aprecia ção de uma linguagem pessoal. Não formam as manifestações de arte característica dos grupos definidos quanto às características de países de seus integrantes. Assim, também sua obra, ou quanto à procura de um tipo pode estimular nossos modernistas, que já específico de arte brasileira. Aliás, muitos haviam vivido a voga nacionalista, a pensar passam grande parte do período em Paris. sobre uma arte nacional. Alguns o fazem de

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maneira mais permanente e consciente; ou- mininas apresentam o “gigantismo” que vira tros, em Paris, preocupam-se sobretudo com em obras de Picasso; e às vezes constrói um a construção da linguagem, detendo-se no clima onírico, de quem conhece as obras de tema nacional de maneira esporádica. De Chirico. No desenho exercita-se ainda, algumas vezes, num traço ingresco, lim- Novas representações po, muito em voga na Paris dos anos 1920, do real mas trabalha com mais constância nos seus traços soltos e sensuais. Na verdade, está Dos modernistas iniciais, Anita Malfatti, se exercitando e definindo sua linguagem, que chega a Paris ainda titubeante, por vir de que se manterá sempre ligada à figuração, uma pintura rápida e emocional, de tendência ao real, mas numa construção distante das expressionista mais preocupada com o conte- regras acadêmicas. Com suas formas male- údo, tem dificuldades em procurar um estudo áveis, cores quentes e grande sensualidade, predominantemente formal. Passa a cuidar enfocando seus bares, mulheres, a Lapa, o de suas composições, testá-las, e produz uma mangue, suas mulatas – nos desenhos e nas pintura aparentada à dos fauves, ainda lem- pinturas –, ao ater-se aos temas do seu coti- brando sua alegria com as cores e sua admi- diano, está sendo naturalmente nacional. No ração por Matisse. Torna-se mais intimista, início dos anos 1930, produzirá obras de de- à maneira de Bonnard. Pinta nus, interiores, núncia social, como os importantes desenhos especialmente nos primeiros anos de Paris. do álbum A Realidade Brasileira. No final, usa um colorido mais contido – in- fluência do ambiente francês da época – em A fase francesa telas às vezes com algo de primitivo, como de Brecheret em Mulher do Pará, um tema nacional mos- trando sua preocupação com a volta ao Brasil. Outro modernista de primeira hora, Bre- Outro modernista de período inicial, Di cheret, abandona sua escultura dramática Cavalcanti, nessa primeira viagem à Europa, para desenvolver uma representação geome- busca conhecer os mestres, modernos e an- trizada e globalizante da figura humana, uma tigos, e pouco produz nesses dois anos. Im- representação inventada e não mais depen- pressiona-se com o Picasso “clássico”: chega dente do modelo. Coloca-se assim na mesma a ter aulas com Léger, mas parece examinar linha de pesquisa formal que caracteriza os também a produção de vários ilustradores e continuadores do cubismo, mesmo que atra- desenhistas franceses, entre eles Dignimont, vés de seus aspectos mais popularizados. Ao que desenha e compõe cenas bastante próxi- chegar a Paris, ainda expõe um Templo de mas do real, de ruas de Paris, o porto, bares Minha Raça, mas, depois, dedica-se à nova e bordéis, mas com traço livre e fluente. Di maneira e a novos temas – em especial, nus Cavalcanti parece continuar a liberar-se de femininos – resolvidos dentro de um desenho ranços acadêmicos pelo desenho. Ao voltar geral circular, ou em curvas e movimentos ao Brasil em 1925, mostrará um desenho pró- aspiralados. Suas superfícies não estão mais ximo ao daqueles franceses, tanto pelo tema carregadas de ressaltos da musculatura, mas quanto pelo tratamento. são lisas e polidas, refletindo a luz que marca Mostra uma absorção superficial de vá- o movimento geral da peça. São obras como rias tendências da Escola de Paris nas obras a Portadora de Perfume, de 1923, ou a Dan- da segunda metade dos anos 1920. Na pintu- çarina, de 1925, que vai expondo nos salões ra, às vezes testa construções mais estrutu- franceses. Mostra também a nova fase numa radas que lembram as de Léger – entre elas, individual em São Paulo em 1926. Depois, seus Sambas, As Moças de Guaratinguetá suas concepções curvilíneas vão apresentan- e a decoração para o Teatro João Caetano do sinais de esgotamento, aparecem formas do Rio. Também algumas de suas figuras fe- mais amaneiradas, tendentes ao decorativis-

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MARTA ROSSETI1.indd 134 26/07/12 15:13 mo. Mas Brecheret também observa a obra de a procura do nacional, como se pode consta- vários escultores que o influenciam – como tar pelas ilustrações que faz para dois livros. Brancusi, com suas formas sucintas e quase No primeiro, Légendes, Croyances et Talis- abstratas, ou escultores da linha cubista, como mans des Indiens de l’Amazonie, publica, Henri Laurens e Jacques Lipchitz. E, como depois de reestudá-los, as ilustrações sobre que revigorando seu modo de representação, as lendas indígenas que já o ocupavam no realiza várias esculturas de formas reduzidas, Brasil em 1920-21. Depois, parece perceber a figura humana facetada, como seus Beijos que os temas eram indígenas, mas seu modo – obras do tipo que mostrará em São Paulo de expressão, europeu. Então realiza como em 1930. Esse desenvolvimento formal de que a experiência inversa no outro livro, Brecheret ficará marcado no Monumento às Quelques Visages de Paris. São ilustrações Bandeiras, que, finalmente, depois de sua vol- curiosas, chapadas, com perspectivas múlti- ta definitiva, poderá executar em São Paulo, plas, ângulos da cidade de Paris como que de 1936 até um ano antes de seu falecimento. vista por um “chefe indígena” (como escla- Outro escultor, hoje pouco citado, mas rece na apresentação da obra), portanto, um que manteve relação com os modernistas, tema francês com um modo de representa- Celso Antônio (1896-1984), estudou com ção nosso. A França também lhe propicia o Bourdelle em Paris. Também procura uma conhecimento de várias civilizações antigas, escultura mais de acordo com seu tempo, que ele pode comparar com a indígena à pro- mas atém-se a uma representação realista da cura de modos de representação comuns, de figura humana, eliminando detalhes e con- formas que fossem constantes. Rego Mon- centrando sua expressão em massas compac- teiro parece querer construir então uma obra tas. Esse mesmo tipo de representação ca- moderna com formas mais permanentes, um racteriza a obra de outra escultora brasileira “moderno-clássico” – preocupação de alguns em Paris, Adriana Janacopulos (1897-1978), grupos da Escola de Paris na época. que manteve poucos contatos com o grupo Observa a arte do período, convive com modernista no Brasil, por ter se educado na escultores, conhece a obra de continuadores Europa e permanecido em Paris até 1932 – a do cubismo e, depois das experiências ini- partir de então se integrará ao meio moderno ciais, em 1922-23, define seu próprio estilo, carioca dos anos 1930. muito individual. É um saudoso da escultura: a representação do espaço, das figuras, por se- A contribuição quência de planos, toma o aspecto de um bai- de Rego Monteiro xo-relevo. Como acontecia com a construção do quadro. Sua cor é muito contida, limitada Boa parte da vanguarda francesa dos anos quase a ocres e terras, e usada em camadas 1920 está prosseguindo as pesquisas iniciadas ralas, colocadas com cuidado para não per- pelo cubismo, de construção da obra a partir mitir que o observador distinga a pincelada, de uma estrutura básica e globalizante. Dão para não deixar visível o gesto do pintor – assim atenção quase que exclusiva a aspectos mostrando assim o controle do intelecto sobre formais. Brecheret, como vimos, desenvolve a emoção. O desenho é dominante: dentro de esse tipo de concepção da obra de arte: suas um jogo básico de linhas, de formas geome- figuras têm que se adaptar à forma geral que trizadas, Rego Monteiro insere o tema que vai ele escolhe para caracterizar a peça. Mais tratar. Todos os elementos se adaptam a esse ainda, alguns pintores brasileiros também se esquema, paisagens, animais, figuras huma- vinculam decididamente a essa concepção: nas, inventadas e não copiadas do modelo. Rego Monteiro, Tarsila e mesmo Gomide. Quanto aos temas, depois das experiên- Rego Monteiro, na busca de um estilo cias pictóricas iniciais, muitas vezes feitas próprio, tem trajetória muito interessante no em retratos, detém-se em nus femininos e período. De início, continua preocupado com principalmente em uma série de quadros re-

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ligiosos, dos mais famosos em toda sua obra, Toulouse trabalhando para o pintor Marcel como Crucifixão, Pietá e Fuga para o Egito. Lenoir em afrescos religiosos. De volta a Pa- Às vezes enfoca um tema social, às vezes um ris – aí, desde 1923, mantém contato com mo- tema nacional, como Atirador de Arco. dernistas –, ao lado de sua atividade decora- Na segunda metade dos anos 1920, nova tiva, devido à qual trabalha muito a aquarela, evolução: em algumas obras, pelo tema e dedica-se também à pintura, realizando dois pelo tratamento, aproxima-se mais dos cubis- tipos básicos de experimentação. É evidente tas e, em outras, com seu modo peculiar, abre que conhece e estuda a produção dos segui- mais as formas. A representação da figura dores de Cézanne e continuadores do cubis- humana aproxima-se mais da representação mo. Realiza uma série de óleos construindo realista, como em Nu e Bola Vermelha. As os elementos, por exemplo, de uma paisagem, figuras ficam mais soltas, colocadas sobre através de superfícies facetadas, mas utilizan- fundos muito claros, como em Tênis. Tam- do pincelada aparente e colorido brilhante – a bém será com formas soltas sobre fundos que não se permitiram os pintores “mais or- quase brancos que realizará algumas obras todoxos” daquele grupo. Assim, as lições do influenciadas pelo surrealismo. cubismo para ele são só no sentido de uma Essa fase de Rego Monteiro, a mais im- estrutura firme e coerente do quadro. Da ex- portante de sua obra, marcará permanente- periência com os afrescos de Marcel Lenoir, mente sua produção, mesmo em épocas em e ainda de seus trabalhos decorativos, desen- que se dedicou preferencialmente a revistas e volve também um tipo de pintura próxima de à poesia. Voltando ao Brasil por volta de 1933, soluções art déco: obras construídas com de- alternará até o fim da vida períodos de resi- senho curvilíneo, onde curvas se entrelaçam, dência em Recife e em Paris, e em sua arte, se contrabalançam, definem cenas e figuras. a dedicação à poesia e à pintura. No fim da Mantém ainda a pincelada aparente, mas seu vida se voltará mais acentuadamente à pintu- colorido – terras e azuis – é mais sucinto que ra, revivendo suas pesquisas dos anos 1920. nas pesquisas anteriores. Nessa experiência realiza várias obras de tema religioso, in- Nas imediações clusive – quando vem ao Brasil, em 1926-27 do art déco – alguns afrescos em residências paulistas. Na vinda ao Brasil, Gomide se interessa Prova de que o cubismo estava atingindo pelo tema nacional e, com angulação lem- amplas camadas de artistas é sua populari- brando suas experiências francesas, pinta zação, nos anos 1920, através das artes deco- algumas cabeças de índios. Voltando definiti- rativas, no estilo conhecido como art déco. vamente a São Paulo em 1929, será absorvido Sua geometrização, as alternâncias de curvas por sua atividade decorativa, mas nas pintu- e retas aliam-se a várias outras influências ras esporádicas que produz vai mostrando in- – como formas encontradas em antigas civi- teresse pelos temas brasileiros – procissões, lizações – caracterizando o estilo decorativo cenas populares. No fim da vida, pintando do período e atingindo até escultores e pin- com mais constância, desenvolverá uma fase tores da época. Em nossos artistas, isso pode importante, retratando danças e ritos afro- ser visto em obras, por exemplo, de Brecheret -brasileiros, de modo espontâneo e sensual, e de Rego Monteiro e, também, com força, abandonando a geometrização dos anos 1920. nas pinturas dos brasileiros que se dedicam Nas inúmeras decorações que executou em por largo período de suas vidas às artes de- São Paulo, o art déco continuou sua marca. corativas – entre eles, Gomide. É curioso que os três representantes tí- Antônio Gomide (1895-1967) estudou picos do art déco no modernismo sejam na Suíça durante a Primeira Guerra Mundial os três artistas que se educaram na Suíça. e, depois de rápida passagem por São Pau- Desde aquela época já realizavam estudos lo, vive os anos 1920 na França. Esteve em de arte decorativa, e é com ela que vão ga-

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MARTA ROSSETI1.indd 136 26/07/12 15:13 nhar a vida em São Paulo. John Graz, que na Semana de 22 apresentou pinturas de boa qualidade, como vimos, a partir de en- tão só pintou esporadicamente, dedicando- -se às decorações de interiores, dos móveis aos painéis e objetos. Mesmo suas pinturas, dos anos 1920 aos 1950, têm esse caráter decorativo, como Pastoral, ligada ao art déco por suas formas, cores e tema – o bu- cólico e o arcaizante, também usados nes- se estilo. Sua esposa, Regina Gomide Graz (1897-1973), dedicou-se especialmente à tapeçaria, executada às vezes a partir de desenhos do irmão ou do marido, às vezes de sua própria criação. Composição com fi- guras é típica, com suas formas geometriza-

das – muitas vezes as usou sem referências Caixa Modernista, Edusp / Editora UFMG / Imprensa Oficial, São Paulo, 2003 figurativas –, construindo um fundo sobre o qual coloca duas figuras curvilíneas, cujas li- nhas se repetem ao redor, como que irradiadas.

Tarsila: pau-Brasil, antropofagia e pintura social (1886-1973) teve for- mação acadêmica, aderindo à arte moderna no pós-Semana de 22. Paulista de família tradicional, foi criada em fazenda e em inter- natos europeus – a influência francesa fazia Trabalhando junto com Anita Malfatti, a Capa do parte de seu cotidiano. Durante a Primeira pintora já mostra um colorido mais liberto Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Guerra Mundial inicia seus estudos artísticos e alegre; retrata os novos amigos Mário de de Oswald em São Paulo, estudando escultura e depois Andrade, Oswald de Andrade, e visitantes, de Andrade, 1924 pintura com Pedro Alexandrino e Elpons. como a poetisa Fernanda de Castro. É essa Desenvolve uma arte acadêmica e não convivência com o grupo modernista que parece prestar maior atenção à vaga nacio- finalmente a convence a procurar a atuali- nalista do período. Em 1921-22 passa um zação quando volta a Paris no final de 1922. ano em Paris, frequentando a Academia Ju- 1923 é ano importantíssimo em sua car- lian – continua com sua pintura tradicional reira, pois nele define sua linguagem. Acom- e, entre outras, executa várias Academias panhada por Oswald de Andrade, mantém de nus femininos. Em São Paulo, durante o contatos com a vanguarda francesa, procu- segundo semestre de 1922, conhece os mo- ra tudo que julga importante em Paris e se dernistas e convive com eles no chamado atualiza com rapidez. Situa-se na linha dos “grupo dos cinco” (Anita, Tarsila e os es- construtores, dos continuadores do cubismo. critores Mário de Andrade, Oswald de An- Estuda com Lhote, com quem se exercita na drade e Menotti del Picchia). Nas reuniões construção de figuras facetadas; estuda com constantes do grupo, os modernistas, entu- Gleizes, nessa época dedicado à pintura abs- siasmados com as novas pesquisas, procuram trata, com quem se exercita em composições convencer Tarsila a aderir à arte moderna. com formas geométricas; e frequenta o ateliê

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de Léger, cuja pintura de formas acilindradas, pintores mais preocupados com seu tempo, mecânicas, vai-lhe fornecer um elemento im- com o maquinismo da era moderna, que se portante para a construção de sua linguagem. reflete no relacionamento de suas formas aci- Pinta várias telas que mostram esses estudos lindradas. Tarsila, ao voltar ao Brasil nos fins – e também obras que já apontam claramen- de 1923, atualizada, também está preocupada te seu caminho, em especial duas telas que com seu tempo: em algumas telas, detém-se a mostram, em Paris, preocupada com uma em símbolos “modernos” da cidade de São arte caracteristicamente nacional: A Negra, Paulo, em automóveis e estradas de ferro – prenúncio da fase antropofágica, e Caipiri- Passagem de Nível, E. F.C. B., A Gare, entre nha, da fase pau-brasil. A pincelada vai-se outros. Mas a viagem a Minas, reforço sobre tornando disfarçada, apagando os gestos do reminiscências infantis no meio rural, direcio- pintor, como no caso de Rego Monteiro. na a pintora com força para os aspectos inte- De volta ao Brasil, no início de 1924, rioranos e tradicionais do Brasil – talvez tam- recebe o escritor Blaise Cendrars; com ele bém por senti-los mais adequados a criar um e alguns modernistas vê o carnaval no Rio. imaginário tipicamente nacional. E acabaram Na Semana Santa vão conhecer as cidades evidenciando realmente a realidade brasileira históricas mineiras; vão, entre outros, Tarsi- dos anos 1920, não tão modernizada quanto la, Oswald de Andrade, Cendrars, Mário de pretendiam, oscilando entre o rural e o urbano. Andrade e D. Olivia Guedes Penteado. A via- Essas obras – que Tarsila mostra em indi- gem a Minas tem grande importância para vidual em Paris em 1926 – pertencem à fase os modernistas, ficando conhecida como a pau-brasil, nome do movimento criado por viagem da “descoberta do Brasil”. O escritor Oswald de Andrade depois da viagem a Mi- estrangeiro, entusiasmado com o que vê, aju- nas. pau-brasil – nosso primeiro produto de da os brasileiros a perceber o característico exportação. Portanto, intenção de criar uma de sua terra. É poderoso estímulo para Tar- arte nacional “exportável”: uma arte carac- sila e para os outros modernistas, no sentido terística que mostrasse ao estrangeiro nossa de ver o país sem se ater ao gosto erudito civilização primitiva, diferente da europeia. tradicional, mas valorizando o primitivo, o Segue-se outra fase também relacionada popular. Tarsila passa a suas telas, a partir com um movimento levado por Oswald de de então – como ela mesma declarará –, co- Andrade: a Antropofagia, com preocupações res que, na infância, havia aprendido serem com o homem primitivo e com as teorias de “mau gosto”, referindo-se a seus rosas e freudianas, paralelas às pesquisas surrealis- azuis, vistos nas decorações populares. Alia tas que então se desenvolviam em Paris. Tar- esse colorido à linguagem formal que desen- sila deixa virem à tona imagens de pesadelos volvera em Paris e pinta, entre 1924 e 1926, infantis, paisagens de sonho. São obras como uma série importante de obras, sintetizando o Abaporu, O Lago, Distância, de 1928, ou e estilizando a vegetação e a paisagem bra- Antropofagia, de 1929 – expõe algumas delas sileira, os costumes populares. Obras como em Paris, em 1928. Continua com sua lingua- Carnaval em Madureira, Morro da Favela, gem característica, a pincelada disfarçada, de anotações do Rio, O Mamoeiro, As Me- mas criando agora figuras de membros agi- ninas, de anotações de Minas. Das crendices gantados, cabeça minúscula, e paisagens to- populares fixa, entre outros,Anjos e Religião talmente irreais, às vezes vazias e solitárias. Brasileira. Não teme o popular e compõe por Tarsila foi a pintora do modernismo que superposição de planos, como os primitivos. mais conscientemente procurou construir Os elementos são geometrizados; a vegeta- uma arte brasileira – obras que só se atreve ção, as pessoas, os animais, acilindrados pelo a expor no Brasil, em individuais no Rio e em uso da cor mais escura nos limites da figura. São Paulo, em 1929, com grande sucesso e… Tarsila admirava as obras de Léger, que escândalo. Irá sentir a mudança que se opera a influenciaram. O curioso é que Léger é dos no Brasil com a Depressão e a Revolução de

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MARTA ROSSETI1.indd 138 26/07/12 15:13 1930. Procurará (uma das primeiras), por vol- pouco depois de sua chegada definitiva ao ta de 1933, realizar uma arte de denúncia so- Brasil. É nessa ocasião que encontra e ini- cial, pintando Operários e 2a Classe. Depois, cia a convivência com o grupo modernista. às vezes, pintará trabalhadores, procissões, O Brasil então modifica sua pintura: nos voltando aos poucos, mais para o fim de sua primeiros anos aqui, sua obra se transforma, vida, a uma temática e modo de expressão apresentando um colorido vibrante e uma reminiscentes de sua fase pau-brasil. temática de encantamento com a nova ter- ra. Curiosamente, o Brasil que o estrangeiro NOVAS CONTRIBUIÇÕES vê apresenta semelhanças com o que Tarsila VINDAS DO constrói. São paisagens e figuras geometri- EXPRESSIONISMO zadas, favelas, mulatos, bananeiras, entre ou- tras. Retrata vários modernistas por volta de Enquanto pintores e escultores se atuali- 1927, quando já procura seu equilíbrio usual, zam em Paris, cresce o número dos moder- mais contido. Retrata o mangue, o marinhei- nistas no Brasil. Em 1923, há uma chegada ro e, depois, ainda com certa paz bucólica, as importante a São Paulo, a de Lasar Segall paisagens de Campos do Jordão. Mas o hor- (1891-1957). Segall estudou na Alemanha: ror da Segunda Guerra Mundial o recondu- passou pela tradicional Academia Imperial zirá a obras altamente dramáticas enfocando de Belas Artes de Berlim, da qual se distan- pogroms, os imigrantes, a guerra – uma re- cia ao se ligar ao grupo do dito impressio- volta frente a velhos dramas da humanidade, nismo alemão. Já nessa época, pré-Primeira que tão bem caracteriza os expressionistas. Guerra Mundial, mostra interesse funda- Como dissemos, Segall era também um mental pelo ser humano. Em Dresden inicia grande gravador já ao chegar a São Paulo, uma maior atualização de sua linguagem, para onde trouxe vários álbuns e gravuras que começa a se aproximar do expressio- avulsas, tanto da fase angular, quanto da nismo. Esse caminho inicial de Segall tem fase ovalada. No Brasil, continua a gravar, semelhanças com o de Anita Malfatti. E o dedicando-se, ainda nos anos 1920, a duas pintor também mostrou as obras dessa fase séries principais: os imigrantes (com fixação no Brasil, em 1913, em duas individuais que no navio que os carrega); e o mangue (a zona antecederam a primeira da brasileira. de prostituição do Rio). De volta a Dresden, Segall firma seu O expressionismo será uma corrente mui- modo de representação, uma pintura dra- to fecunda no Brasil, especialmente na gra- matizada em fortes angulações – como os vura. Oswaldo Goeldi (1895-1961) também expressionistas desenvolviam então, depois sofrerá sua influência. Goeldi foi educado de ver a exposição futurista de 1912 – e na Suíça, de onde voltou em 1919, impres- combinações de cores surdas e contidas. No sionado com a obra de expressionistas como pós-guerra, suas características se alteram, Münch e Alfred Kubin – com quem manterá aproximando-se de nova objetividade ale- correspondência. Vivia no Rio, meio isolado, mã. As formas ovaladas definem os seres dedicando-se a desenhos de caráter expres- humanos de grandes cabeças e olhos que sionista e a ilustrações. Eram desenhos dra- consomem o resto do corpo. Pinta mulhe- matizados por sucessão de traços, como que res, grávidas, velhos judeus e famílias des- escandindo uma figura ou cena. Começa a validas. Mesmo tipo de revolta e denúncia trabalhar na gravura em madeira a partir de da fase anterior, presente não só na pintura, 1924. Desenvolve uma técnica, podemos di- mas em séries marcantes de gravuras – xi- zer, “pelo avesso”: em que os traços definido- los, litos e gravuras em metal. São algumas res, escavados na madeira, constituem as úni- dessas obras, de um pintor de linguagem e cas áreas luminosas da obra. Suas gravuras características consolidadas, que Segall apre- apresentam assim um ar noturno, em que os senta na individual de 1924, em São Paulo, seres e os animais, na vegetação, nas praias

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e na cidade, permanecem solitários. São ca- vismo, do popular e certamente – através de racterísticas constantes em toda a sua obra. reproduções e informações – da obra de Cha- gall, que contribui para seu enfoque surrea- ARTISTAS DO lista. Constrói o espaço à maneira primitiva, FIM DA DÉCADA por sucessão de cenas, com arquiteturas ins- táveis, dimensões arbitrárias, superposição, Como Goeldi, que vivia meio isolado, monstros e figuras voando, libertas da lei mas já era conhecido entre os modernistas da gravidade. São alegres cenas populares, no final dos anos 1920, há mais dois artistas circos, reuniões, ao lado de representações do Rio de Janeiro que se evidenciam nesse às vezes mais inquietantes e insólitas. Suas final de decênio. obras, junto com as de Ismael Nery, causarão Ismael Nery (1900-34) também sofre escândalo no Salão Revolucionário de 1931, influência da Escola de Paris. Iniciou seus no Rio, devido a seu distanciamento da re- estudos na Escola Nacional de Belas Artes presentação tradicional, por seu sensualismo do Rio. Em 1920, em Paris, frequenta a tão exacerbado e pela ligação com o surrealismo. procurada e tradicional Academia Julian, Em São Paulo, há também um artista que mas também – importante para sua defini- se evidencia no final dos anos 1920: Flávio ção – observa a obra dos pintores modernos, de Carvalho (1899-1973). Educado na Euro- entre eles, a dos construtores e continuadores pa, formado engenheiro na Inglaterra, onde do cubismo. De volta ao Rio de Janeiro, testa também estudou pintura, volta a São Paulo vários modos de representação, na aquarela e em 1922, mas, dedicando-se à engenharia, no óleo. Pinta uma série de retratos construí- só em 1927-28 começa uma atuação de van- dos em facetas, quase monocromáticos, para guarda e liga-se ao grupo modernista. Convi- melhor estudar sua estrutura geométrica. Faz ve com Oswald de Andrade, apresenta teses ainda vários autorretratos. antropofágicas em congressos de arquitetura Mas também, por influência do que co- na passagem 1920-30. No Salão Revolucio- nheceu em Paris, desenvolve uma pintura nu- nário de 1931, apresenta obras em todas as ançada de colorido vibrante, sempre centrada seções, arquitetura, pintura, desenho e escul- na figura humana, para a qual parece procu- tura, mostrando uma linguagem altamente rar um tipo-padrão. Em 1927, depois de outra experimental e a intenção provocativa que o estadia em Paris, quando conhece a obra dos irão caracterizar. Realizará sua primeira in- surrealistas, passa a sofrer influências des- dividual em 1934 – época em que monta tam- sa escola e será, entre os modernistas, seu bém o inovador Teatro da Experiência. Sua mais típico representante. Continua a pintar pintura centra-se na figura humana: interes- a figura humana, suas mulheres, ou um ca- sado na psicologia, usa deformações, cores sal, que agora se fundem, exterior e interior, gritantes, postas em pinceladas largas, vio- embaralhando-se visceralmente. Pinta assim lentas e gestuais, para construir uma imagem até sua morte, em 1934, deixando um legado emocional, psicológica do retratado. Interes- importante, uma obra de erotismo contido, sado nas motivações profundas do ser hu- desenho, composição e cores refinados. mano, não se preocupa em desenvolver uma Cícero Dias (1907-2003), mais moço que arte nacional, mas sim uma arte altamente os outros modernistas, foi de Recife para o experimental, de seu tempo. É figura ímpar Rio de Janeiro em 1925, onde estuda na Es- entre os artistas plásticos brasileiros, por cola Nacional de Belas Artes. Não sai do seus aspectos de provocador, criando teorias Brasil nos anos 1920. e polêmicas, e por sua atuação nos mais va- Em 1927-28 suas aquarelas – então seu riados campos das artes plásticas – arquite- meio preferido de expressão – já apresentam tura, pintura, desenho, escultura, teatro e, de- as características que marcam a primeira fase pois, moda e cinema. Será figura de destaque de sua carreira. Sofre influências do primiti- no meio artístico paulistano dos anos 1930.

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