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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA MÍDIA

LADY DAYANA SILVA DE OLIVEIRA

CÂMERA NA MÃO! PROTAGONISMO DE MULHERES NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Natal/RN 2021

LADY DAYANA SILVA DE OLIVEIRA

CÂMERA NA MÃO! PROTAGONISMO DE MULHERES NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para obtenção do título de Doutora em Estudos da Mídia.

Linha de Pesquisa: Produção de Sentido.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena Braga e Vaz da Costa.

Natal/RN 2021

LADY DAYANA SILVA DE OLIVEIRA

CÂMERA NA MÃO! PROTAGONISMO DE MULHERES NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para obtenção do título de Doutora em Estudos da Mídia.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena Braga e Vaz da Costa.

Apresentada em: 02 de junho de 2021.

Banca Examinadora

______Profa. Dra. Maria Helena Braga e Vaz da Costa Presidente – Universidade Federal do Rio Grande do Norte ______Profa. Dra. Iara Aparecida Beleli Avaliadora Externa – Universidade Estadual de Campinas ______Profa. Dra. Maria Érica de Oliveira Lima Avaliadora Externa – Universidade Federal do Ceará ______Profa. Dra. Daiany Ferreira Dantas Avaliadora Externa – Universidade Estadual do Rio Grande do Norte ______Profa. Dra. Maria Angela Pavan Avaliadora Interna – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Natal/RN 2021

AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos a todas e a todos que me ajudaram ao longo da jornada desta pesquisa. Começo agradecendo a Deus por sempre me conceder força e resiliência para continuar, principalmente nos momentos difíceis em que pensei em desistir. À minha amada mãe Maria Rosângela (in memorian) e à minha avó Maria José que sempre me incentivaram a prosseguir com os meus estudos, acreditando no êxito da minha carreira profissional. A saudade que sinto da minha mãe por vezes também me deu forças para concluir esta etapa da minha vida. Agradeço à minha família, ao meu companheiro Gustavo Fortes que do seu jeito colaborou para que eu pudesse desenvolver a pesquisa e escrever esta tese. Ressalto que foi ao seu modo porque em alguns momentos foi um difícil processo a compreensão por ele sobre a grande carga que foi desenvolver esta pesquisa de doutorado, ao final ele entendeu a importância para minha trajetória e sei que essa é também uma realidade para muitas mulheres, aspecto que precisamos falar e combater. Agradeço imensamente à minha filha amada Lilian Fortes que com seus 10 anos de idade me ajudou na transcrição das entrevistas e sempre compreensiva colaborou para que eu pudesse me dedicar à tese. O carinho que recebi dela e do meu filho Benjamin Fortes durante o processo final da escrita da tese foi uma dádiva que contribuiu para que eu conseguisse seguir em frente. Um agradecimento especial à minha querida sogra e mãe Lore Fortes que sempre me apoiou, me deu conselhos, esteve do meu lado quando a carga pesou muito e pensei que não ia suportar. Com sua sabedoria e sábias palavras ela me animava a continuar, procurando mostrar o quanto eu já tinha percorrido e o quão estava perto de finalizar. Sou muito grata à minha orientadora profa. Dra. Maria Helena Braga e Vaz da Costa pela sua compreensão e orientação atenta e comprometida. Com seu olhar e experiência ela me fez pensar e repensar muitas questões e juntas partilhamos de momentos de aprendizado sobre esse árduo tema que é a dificuldade que as mulheres enfrentam na área do cinema. Agradeço às minhas irmãs e ao meu irmão pelo carinho e força nos momentos que precisei. Um agradecimento especial à minha mana Joyce Oliveira que, sempre querida, me ouviu quando precisei, compreendendo as dificuldades do que é realizar uma pesquisa científica no Brasil, já que em seu mestrado também enfrentou diversos percalços. Gratidão aos meus amigos que torceram por minha realização acreditando que eu chegaria até o final de forma plena. Agradeço especialmente à minha querida amiga Maria

Pinheiro que desde que nos conhecemos tem sido uma amiga-irmã e grande incentivadora, uma pessoa por quem tenho muito carinho e também torço pelo seu êxito na conclusão de seu mestrado. Agradeço também aos(às) colegas do PPgEM pela ajuda e incentivo. Foram bons momentos compartilhados no período das disciplinas e fica um sentimento de partilha por saber que cada um de nós enfrentamos as dificuldades, as ansiedades, os medos e sempre tínhamos o apoio um do outro para conseguir forçar para continuar. Agradeço principalmente ao Ben-Hur Bernard e a Dahiana Araújo, sempre queridos quando precisei tirar alguma dúvida ou de alguma ajuda nesse processo. Agradeço também às professoras e professores que se dedicaram em suas leituras nas bancas de seminários e exame de qualificação, cujas observações e contribuições foram primordiais para o resultado desta pesquisa. Por fim, agradeço às cineastas Adriana Vasconcelos, Cristiane Oliveira, Glenda Nicácio, Laís Bodanzky, Jorane Castro, Roberta Marques, Sandra Kogut e María Novaro que colaboraram nesta pesquisa, participaram das entrevistas e de forma muito solícita compartilharam do seu tempo e de suas ideias sobre o cinema realizado por mulheres no cinema nacional. A contribuição de cada uma foi extremamente importante para a efetiva realização desta pesquisa e certamente para o cinema nacional.

RESUMO

Esta tese apresenta uma análise de seis filmes brasileiros e contemporâneos, dirigidos por cineastas mulheres, com o objetivo de investigar e compreender como se dá a produção de sentido no contexto da construção do protagonismo de mulheres no trabalho de produção cinematográfica e nas formas de representação da mulher em suas narrativas. As cineastas e os filmes investigados e analisados nesta tese são: Adriana Vasconcelos (DF) e o filme Mãe (2018); Cristiane Oliveira (RS) e o filme Mulher do Pai (2016); Glenda Nicácio (BA) e o filme Até o fim (2020); Laís Bodanzky (SP) e o filme Como Nossos Pais (2017); Jorane Castro (PA) e o filme Para Ter Onde Ir (2018); e Roberta Marques (CE) e o filme Rânia (2012). A investigação foi norteada pelas seguintes indagações: Como são trabalhadas as noções do protagonismo de mulheres nessas obras cinematográficas dirigidas por mulheres no contexto do cinema brasileiro contemporâneo? Como tem se desenvolvido a trajetória das cineastas pesquisadas no que toca a realização de seus filmes? Como estas cineastas encaram as barreiras impostas ao seu trabalho e o desejo por produzir uma obra que sobreviva ao tempo? À luz de diferentes conceitos no âmbito da Teoria do Cinema e dos Estudos de Gênero buscamos compreender quais aspectos e impasses contribuem para a desigualdade de gênero na indústria do cinema brasileiro. As implicações do poder nas relações sociais na sociedade capitalista e os conceitos evidenciados nos estudos de Saffioti (1987), J. Butler (2003), Foucault (1988) e Bourdieu (1998) são relacionados na análise, com enfoque para as questões que transitam pela produção cinematográfica e as formas de enfrentamento ao machismo e à discriminação de gênero relacionadas ao trabalho das cineastas objeto desta tese. Por meio da análise e interpretação dos filmes, especificamente de longa-metragem de ficção protagonizados por mulheres na última década (2010-2020), e das entrevistas com as cineastas, a tese expõe questões emergentes sobre a realização de filmes por mulheres no contexto contemporâneo. A pesquisa resultou na confirmação da hipótese sobre as vertentes que contribuem para a desigualdade de gênero no cinema e dificultam uma maior produção de filmes dirigidos por cineastas mulheres. Por conseguinte, os resultados validaram a tese de que as cineastas brasileiras produzem um cinema contemporâneo marcado pela valorização do protagonismo de mulheres, com a prevalência de temas e abordagens políticas diretas e indiretas, destacando-se dessa atuação, escolhas afirmativas (temáticas, linguagem e narrativa) que evidenciam o combate ao sexismo e também ao racismo presentes no cinema brasileiro. Palavras-chave: Mulheres Cineastas; Cinema Brasileiro Contemporâneo; Igualdade de Gênero; Protagonismo.

ABSTRACT

This research analyzes six contemporary Brazilian cinema films made by Brazilian filmmakers in order to understand the production of meaning in the construction of protagonism in the forms of representation of women in the narrative in works directed by women. The women filmmakers and films chosen for analysis here are: Laís Bodanzky (SP) and the film Como Nossos Pais (2017); Jorane Castro (PA) and the film Para Ter Onde Ir (2018); Roberta Marques (CE) and the film Rânia (2012), Cristiane Oliveira (RS) and the film Mulher do Pai (2016); and Adriana Vasconcelos (DF) and the film Mãe (2018). For this investigation, we ask the following questions: How does identity is built in these films directed by women within the context of the contemporary Brazilian cinema? How has the trajectory of the researched filmmakers developed when it comes to making their films? How do these women filmmakers see the troubles and obstacles imposed on their work and their desire for producing a work that survives time? Within the framework of Cinema Theory and Gender Studies this work aims to comprehend the aspects and impasses that contribute to gender inequality in the Brazilian film industry. The implications of power in social relations at a capitalist society and the concepts developed in the studies of Saffioti (1987), J. Butler (2003), Foucault (1988) and Bourdieu (1998) are related applied for the film analysis, focusing on the questions about the cinema made by women and the ways to confront chauvinism and gender discrimination. Through the analysis and interpretation of films, specifically fiction feature films carried out by women in the last decade (2010-2020), and through interviews with filmmakers, the thesis exposes emerging questions about the film making by women in the contemporary context. The research resulted in the confirmation of the hypothesis about the aspects that contribute to gender inequality in cinema and impede a greater number of productions directed by female filmmakers. Consequently, the results validated the thesis that Brazilian filmmakers produce contemporary cinema marked by the valorization of women´s protagonism, with the preponderance of direct and indirect political themes and approaches, standing out from this is the affirmative action (thematic, language and narrative) that show the fight against sexism and also racism present in Brazilian cinema. Keywords: Women Filmmakers; Contemporary Brazilian Cinema; Gender Equality; Protagonism.

LISTA DE SIGLAS

AI – 5 Ato Institucional número 5 ANCINE Agência Nacional do Cinema APCA Associação Paulista de Críticos de Arte CIMA Associação de Mulheres Cineastas e Mídia Audiovisual CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil COVID Corona Virus Disease CPB Certificado de Produto Brasileiro CPC Centro de Produção e Comunicação ECA Escola de Comunicações e Artes da USP EMBRAFILME Empresa Brasileira de Filmes S.A. FISTEL Fundo de Fiscalização das Telecomunicações FNC Fundo Nacional de Cultura FSA Fundo Setorial do Audiovisual GEDIC Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica GEIC Grupo de Estudos da Indústria Cinematográfica GEICINE Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica GEMAA Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INC Instituto Nacional de Cinema INCE Instituto Nacional de Cinema Educativo OCA Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual ONU Organização das Nações Unidas PIB Produto Interno Bruto PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios SBT Sistema Brasileiro de Televisão UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro UFF Certificado de Produto Brasileiro UnB Universidade de Brasília UNE União Nacional dos Estudantes USP Universidade de São Paulo

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Tira “A Regra”...... 50 Figura 2: Capa do filme Rânia ...... 104 Figura 3: Cineasta Roberta Marques ...... 104 Figura 4: Cartaz do filme Como nossos pais ...... 106 Figura 5: Cineasta Laís Bodanzky e parte da equipe do filme ...... 106 Figura 6: Capa do filme Mulher do Pai ...... 109 Figura 7: Cineasta Cristiane Oliveira no Set de filmagem (à esquerda) ...... 109 Figura 8: Cartaz do filme Mãe ...... 110 Figura 9: Cineasta Adriana Vasconcelos no Festival de Brasília (ao centro) ...... 111 Figura 10: Cartaz do filme Para ter onde ir ...... 113 Figura 11: Cineasta Jorane Castro e atrizes (sentada à direita) ...... 113 Figura 12: Cartaz do filme Até o fim ...... 116 Figura 13: Cineasta Glenda Nicácio e equipe do filme Ilha no Festival de Brasília ...... 117 Figura 14: Rânia e as amigas da escola ...... 121 Figura 15: Rânia e a mãe ...... 122 Figura 16: Pai de Rânia ...... 123 Figura 17: Zizi dançando ...... 125 Figura 18: Avó Olga ...... 126 Figura 19: Nalu e a amiga Eliza ...... 127 Figura 20: Rosário e Nalu na estação ...... 127 Figura 21: Sequência inicial do filme Mulher do pai ...... 129 Figura 22: Imagens aéreas de Fortaleza ...... 130 Figura 23: Rânia e Zizi na praia ...... 130 Figura 24: Paisagens do filme Mulher do pai ...... 131 Figura 25: Ruben ouve Nalu ao telefone ...... 132 Figura 26: Nalu descreve uma cena de ação ...... 134 Figura 27: Rubem, Rosário e Nalu ...... 135 Figura 28: Nalu vai embora de casa ...... 136 Figura 29: Rânia e Stela conversam e dançam ...... 136 Figura 30: Rânia e Stela conversam na praia ...... 137 Figura 31: Zizi e Dedé ...... 138 Figura 32: Rânia e Zizi em fotos 3x4 ...... 139

Figura 33: Rânia e o pai ...... 139 Figura 34: Rânia e Zizi na praia à noite ...... 140 Figura 35: Nalu retorna à casa do pai ...... 140 Figura 36: Sequência final do filme Mulher do pai ...... 141 Figura 37: Sequência final do filme Rânia ...... 142 Figura 38: Sônia levada presa ...... 145 Figura 39: Cena do abuso sexual sofrido por Júlia ...... 147 Figura 40: Livro Casa de bonecas ...... 147 Figura 41: Leite derramando, Rosa preocupada e o leite derramado no fogão ...... 148 Figura 42: Clarice e Rosa ...... 150 Figura 43: Almoço em família ...... 151 Figura 44: Rosa, a mãe e o irmão ...... 152 Figura 45: Imagens do plano-sequência inicial do filme Mãe ...... 154 Figura 46: Sônia abraça Júlia e Camila ...... 156 Figura 47: Abraço de Sônia e Gislene ...... 157 Figura 48: Rosa e o pai ...... 158 Figura 49: Caru e as crianças ...... 159 Figura 50: Sequência de cenas Rosa e Dado no banheiro ...... 160 Figura 51: Rosa conhecendo o pai ...... 161 Figura 52: Rosa e Pedro na praia ...... 162 Figura 53: Chegada de Sônia ...... 163 Figura 54: Sônia e Madalena brigam ...... 164 Figura 55: Júlia e Sônia discutem ...... 165 Figura 56: Sequência final – Rosa e Dado conversam ...... 167 Figura 57: Sequência final – Sônia vai embora ...... 168 Figura 58: Geralda procura algo ...... 170 Figura 59: Geralda recebe a notícia do pai ...... 171 Figura 60: Rose e Geralda ...... 173 Figura 61: Rose conta sobre sua fuga ...... 173 Figura 62: História de terror ...... 174 Figura 63: Chegada da personagem Bel ...... 176 Figura 64: Bel conta sobre o Oscar ...... 176 Figura 65: Geralda e as irmãs ...... 177 Figura 66: Geralda confronta Vilmar ...... 177

Figura 67: Vilmar conta sobre suas dores ...... 179 Figura 68: Rose e Bel conversam e choram ...... 180 Figura 69: Geralda e Rose no balanço ...... 181 Figura 70: Sequência final do filme Até o fim ...... 183 Figura 71: Buscas no filme Para ter onde ir ...... 185 Figura 72: Melina ...... 186 Figura 73: Keithylennye e Dj Pancadinha ...... 187 Figura 74: Sequência inicial do filme Para ter onde ir ...... 188 Figura 75: Keithy e a filha ...... 189 Figura 76: Protagonistas do filme Para ter onde ir ...... 190 Figura 77: Eva caminha nas Dunas ...... 191

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: Tendências históricas do desequilíbrio de gênero na indústria cinematográfica dos EUA ...... 26 Gráfico 2: Direção por gênero - Ano 2016 ...... 41 Gráfico 3: Percentual de Gênero por Funções - Ano 2017 ...... 42 Gráfico 4: Percentual de Gênero por Funções - Ano 2018 ...... 42

LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Filmes escolhidos e sinopses ...... 91

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 14 CAPÍTULO 1 - CINEMA REALIZADO POR MULHERES: CONCEITO E ATITUDE POLÍTICA ...... 24 1.1 As estatísticas sobre as cineastas no cinema brasileiro ...... 39 1.2 Cinema brasileiro e feminismo ...... 44 CAPÍTULO 2 - MULHERES EM BUSCA DE UM LUGAR NA INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA ...... 53 2.1 As mulheres e as dificuldades da realização cinematográfica no Brasil ...... 61 2.2 Cineastas do cinema brasileiro contemporâneo...... 80 CAPÍTULO 3 - ETAPAS DA PESQUISA: O PERCURSO METODOLÓGICO ...... 90 3.1 Primeira etapa: A pesquisa exploratória ...... 94 3.2 Segunda etapa: Realização das entrevistas ...... 97 3.3 Terceira etapa: Análise e interpretação das entrevistas e filmes ...... 98 CAPÍTULO 4 - SOBRE TRAJETÓRIAS E OBRAS: PROTAGONISMO E BUSCAS AFIRMATIVAS DE CINEASTAS BRASILEIRAS ...... 101 4.1 Conflitos e afetos na adolescência em Rânia e Mulher do Pai ...... 118 4.2 Camadas de sentido, afeto e questionamentos nos filmes Como Nossos pais e Mãe...... 144 4.3 Histórias e protagonismo de mulheres negras em Até o fim ...... 169 4.4 A narrativa por meio da constante busca em Para ter onde ir ...... 184 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 193 REFERÊNCIAS ...... 204 FILMOGRAFIA CITADA ...... 216 FILMOGRAFIA ANALISADA ...... 226 APÊNDICE A — ENTREVISTA COM A CINEASTA MARÍA NOVARO ...... 227 APÊNDICE B — ENTREVISTA COM A CINEASTA LAIS BODANZKY ...... 233 APÊNDICE C — ENTREVISTA COM A CINEASTA SANDRA KOGUT ...... 236 APÊNDICE D — ENTREVISTA COM A CINEASTA JORANE CASTRO ...... 238 APÊNDICE E – ENTREVISTA COM A CINEASTA CRISTIANE OLIVEIRA ...... 251 APÊNDICE F – ENTREVISTA COM A CINEASTA ADRIANA VASCONCELOS (DF) 263 APÊNDICE G – ENTREVISTA COM A CINEASTA ROBERTA MARQUES (CE) ...... 279 APÊNDICE H – ENTREVISTA COM A CINEASTA GLENDA NICÁCIO (BA) ...... 290 14

INTRODUÇÃO

A proposta desta pesquisa nasceu da reflexão sobre o desequilíbrio na participação das mulheres no contexto da indústria cinematográfica, tanto atrás como à frente das câmeras, com enfoque nas profissionais que atuam na função da direção. A presença das mulheres na direção cinematográfica configura uma mudança cultural e afirmativa, isso fica evidente a partir do momento em que as mulheres buscam formas de ocupar mais funções nessa indústria, tanto as técnicas como as artísticas. O “engendramento” das mulheres – recorremos a esse termo utilizado por Lauretis (1987) – como femininas a partir de percepções e hábitos incutidos na sociedade nos leva ao questionamento sobre a forma como essas profissionais são vistas em suas atuações e posicionamentos a partir de suas obras. Barret (1985, p. 74) afirma que “a ideologia do gênero teve um papel importante na construção histórica da divisão capitalista do trabalho e da reprodução do poder do trabalho”. Consideramos esse entendimento como um alerta sobre o que historicamente foi posto às mulheres como espaço idealizado e espaço possível na divisão sexual de trabalho. Essa proposição feita nos anos 1980 deixa clara a oposição em relação às diferenças sexuais fortemente colocadas em relação às funções antagonizadas entre homens e mulheres e por muito tempo aceitas pela sociedade como corretas ou adequadas dentro de um contexto machista. É preciso lembrar o fato de que houve uma época em que a função de diretora de cinema1 foi mais acessível às mulheres. Antes de 1920 a atividade de direção de cinema não era majoritariamente ocupada por homens no cinema de Hollywood, na fase mais experimental do cinema as mulheres assumiram funções de importância na produção. Esse aspecto é destacado pelas cineastas Clara Kuperberg e Julia Kuperberg no documentário E a Mulher Criou Hollywood (2016). Influenciadas pelo fato de o cinema ser uma indústria em ascensão, mas ainda considerado um campo de trabalho sem muita importância na sociedade, diferente do status que tem atualmente, as mulheres e judeus executavam trabalhos de produções de filmes nos estúdios de Hollywood por não terem acesso a empregos mais lucrativos. A questão evidenciada nesta pesquisa, no entanto, não pretende apenas repetir a narrativa de uma crítica simplista ao sexismo e ao machismo existentes na indústria do cinema em geral, mas sim focalizar e analisar o que está inserido nesta problemática, através de uma análise das obras e trajetórias de cineastas atuantes neste campo, tratando em específico do cinema brasileiro. Lembro aqui também uma

1 Nesta pesquisa abordamos a função de diretora de cinema e cineasta como termos sinônimos, por entendermos que ambos se referem a(o) profissional que na indústria do cinema tem a finalidade de decidir sobre as escolhas criativas do filme. 15 passagem da série documental Women Make Film (2018) de Mark Cousins, na qual se destaca que grandes filmes foram realizados por mulheres e muitos desses filmes não são lembrados. Nesta perspectiva destacamos outras questões, como por exemplo, quantas cineastas no panorama do cinema brasileiro já se sentiram silenciadas? Como tem se desenvolvido a trajetória das cineastas pesquisadas no que toca à realização de seus filmes? Como estas cineastas encaram as barreiras impostas ao seu trabalho e o desejo por produzir uma obra que sobreviva ao tempo? Estas questões nos moveram na pesquisa e nos permitem compreender a dimensão da problemática que analisamos, percebemos também que são perguntas compartilhadas pelas cineastas que consideramos para o desenvolvimento desta investigação. Cada vez mais a desigualdade de gênero na indústria do cinema tem nos inquietado e incentivado a pensar com atenção sobre a urgência de entender e investigar as questões que se relacionam a este tema, que ganha também grande discussão pelas diferentes instâncias da sociedade e pela opinião pública. Nesta pesquisa voltamos o olhar para a produção de sentido e do protagonismo no cinema realizado por mulheres, com ênfase na linguagem fílmica da produção contemporânea de cineastas brasileiras. Em outras palavras, analisamos a forma que as cineastas brasileiras, atuantes na produção contemporânea, constroem suas protagonistas à frente da direção de filmes de ficção e como enfrentam os desafios impostos pelas diferenças de gênero dentro da indústria do cinema. Os objetivos da pesquisa contemplaram a busca por: entender a produção de sentido e do protagonismo no cinema realizado por cineastas brasileiras; analisar 6 filmes de cineastas brasileiras, atuantes na produção contemporânea, com ênfase na construção das protagonistas e linguagem cinematográfica e analisar as formas de enfrentamento ao machismo e sexismo por cineastas brasileiras, a partir de suas falas e filmes. Esta busca se inseriu em um contexto marcado por reivindicações de diferentes categorias profissionais (atrizes, diretoras, roteiristas e produtoras) contra as desigualdades de posições na indústria do cinema. Ao analisar obras de cineastas brasileiras e também suas trajetórias enveredamos por um caminho que nos levou também a compreender de que forma elas resistem e participam com suas produções no campo cinematográfico. As cineastas e os filmes escolhidos para a análise foram: Adriana Vasconcelos (DF) e o filme Mãe (2018); Cristiane Oliveira (RS) e o filme Mulher do Pai (2016); Glenda Nicácio (BA) e o filme Até o fim (2020); Laís Bodanzky (SP) e o filme Como Nossos Pais (2017); Jorane Castro (PA) e o filme Para Ter Onde Ir (2018); e Roberta Marques (CE) e o filme Rânia (2012). O primeiro recorte para a escolha do corpus foi o gênero ficcional de longa-metragem nas produções analisadas, por entendermos que este já representa um desafio no sentido de 16 apresentar uma maior complexidade no processo de realização, principalmente em relação aos fatores orçamento e equipe. Embora haja projetos de longa-metragem de ficção realizados com baixo orçamento, este tipo de produção, em sua maioria, necessita de um orçamento de grande porte e dependendo da complexidade da produção, também envolve um grande número de profissionais na equipe. O segundo recorte que fizemos na materialidade da análise foi a inserção de filmes realizados por cineastas das cinco regiões do Brasil, consideramos um filme e uma cineasta de cada região, dentre as que se destacam por suas obras e trajetórias na realização de filmes do cinema contemporâneo. A exceção foi para a região Nordeste que incluímos duas diretoras: Roberta Marques e Glenda Nicácio, que é natural de Minas Gerais, mas sua atuação se dá no Recôncavo Baiano. Com esses recortes não queremos excluir ou diminuir o trabalho de outras profissionais reconhecidas nessa indústria, porém o argumento principal para essas escolhas se dá pela viabilidade da investigação, e por considerarmos que com essa amostra é possível analisar o que nos propomos com esta pesquisa, contando com a visão de seis cineastas que vivenciam na prática os aspectos que analisamos. Como terceiro recorte, consideramos na pesquisa diretoras que têm incluído em suas obras protagonistas mulheres. Delimitamos com esse quadro as bases para a escolha das cineastas e os filmes que foram analisados, entendendo que essa amostra se adequa a uma perspectiva de análise fílmica que não tem a intenção de abarcar todas as profissionais e, principalmente, por entender que não é necessário inserir um grande número de cineastas para tecer uma análise sobre os aspectos elencados nesta pesquisa no que diz respeito à desigualdade de gênero na indústria do cinema brasileiro e seus impactos. Entre as hipóteses desta pesquisa partimos da afirmação de que existe na indústria do cinema diferentes vertentes para uma desigualdade de gênero que contribuem para que a presença da mulher, especificamente na função de diretora de cinema, apareça em menor escala em comparação à presença masculina, e no tocante à carreira na indústria cinematográfica, geralmente marcada por enfrentamentos e busca por igualdade de salários e espaços. Essas diferentes vertentes incluem fatores tais como: a dificuldade das profissionais em ocupar posições de liderança no segmento em que ainda prevalece a maioria de profissionais do sexo masculino em função do sexismo projetado pelos profissionais no campo de atuação do cinema; a falta de uma política de incentivo estatal por meio de editais voltados às profissionais mulheres; e ainda, os aspectos relacionados ao que pode-se tratar como um boicote dentro do próprio setor pelos realizadores que já atuam há mais tempo no segmento e impõem barreiras à entrada de novos e novas realizadoras no setor. Para dissertar sobre a tese que defendemos nesta pesquisa é preciso lembrar dos temas 17 e abordagens os quais nos deparamos ao fazer um levantamento sobre as mais diversas obras realizadas por cineastas brasileiras na contemporaneidade, percebemos uma empatia sobre os temas que ambientam as questões relevantes para a mulher no tocante à liberdade, empoderamento feminino, sexualidade, família, relacionamento amoroso, política, entre outros temas que transitam entre os gêneros: drama, documentário e comédia. Com estas afirmações não limitamos o panorama da produção de filmes por cineastas mulheres a este universo de temáticas, buscamos compreender sobre qual produção estamos nos referindo. Para ilustrar nosso olhar sobre estas características citamos, de forma breve nesta introdução, as obras de cineastas como Tata Amaral, Sandra Werneck, Anna Muylaert e Petra Costa, esta última teve seu longa-metragem Democracia em Vertigem (2019) indicado ao Oscar de melhor documentário. A tese defendida nesta pesquisa é a de que as cineastas brasileiras produzem um cinema contemporâneo marcado pelo protagonismo de personagens mulheres, demarcando suas identidades e subjetividades e incluindo temas e abordagens políticas diretas e indiretas. Isso se dá porque o desenvolvimento do protagonismo de mulheres nas narrativas é uma das principais formas de mudar a percepção sobre a visibilidade das mulheres e suas questões, levar essas questões para o cinema gera visibilidade e discussão. Desta forma, cada cineasta que decide colocar no centro da narrativa uma ou mais mulheres contribui para que mais histórias de mulheres tenham destaque, e nesse processo inclui-se também a visibilidade do ponto de vista da representação. Quando a cineasta Anna Muylaert lança o filme Que horas ela volta (2017) que tem como protagonista uma empregada doméstica do Nordeste, que precisa deixar a filha com a avó para trabalhar como babá para uma família de classe média em São Paulo, percebemos na temática principal o destaque para a desigualdade social e os desafios da maternidade, estampados na narrativa, que faz o espectador refletir sobre a realidade de milhares de mulheres em situação análoga. Essa abordagem reflete o que consideramos uma abordagem política indireta porque está colocada de uma forma crível e sob um olhar artístico que se reflete nas escolhas de linguagem da cineasta. Sandra Werneck segue nesta direção com o filme Meninas (2006) quando focaliza a realidade de três adolescentes grávidas e suas dificuldades vivenciadas na realidade de comunidades carentes. A diretora documenta o dia a dia das jovens em uma fase em que deveriam estar estudando ou fazendo as descobertas da adolescência, mas estão prestes a cuidar de uma criança e cumprir as responsabilidades que estão inseridas neste processo. Seguindo com os exemplos, Tata Amaral nos coloca frente a um drama social da mulher que vivencia o 18 trauma do sequestro, feminicídio e quase morte. Em Um Céu de Estrelas (1996) ela proporciona a angústia no espectador ao acompanhar cada desdobramento da vida da protagonista sendo despedaçado. E encerrando os exemplos, percebemos nas obras da documentarista Petra Costa a abordagem política através de suas personagens, como no documentário de longa-metragem Democracia em Vertigem (2019) que focaliza o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousself em 2016, mostrando em primeira pessoa suas impressões e também os diferentes ângulos colocados na narrativa documental. Esses exemplos são uma pequena mostra de como alguns filmes que abordam conflitos da realidade de mulheres, sob a direção de mulheres, configuram narrativas com impacto no campo do cinema brasileiro, de tal forma que se tornaram referências no panorama da produção nacional. A metodologia empreendida nesta tese tomou por base a análise fílmica aliada à análise das entrevistas em profundidade realizadas com as cineastas que compõem o corpus. São investigadas as estratégias de linguagem utilizadas pelas cineastas e que recursos estão inseridos na narrativa. O estilo, as escolhas ligadas à temática dos filmes e aos personagens são elementos constitutivos da análise, na perspectiva de perceber quais fatores influenciam o processo de trabalho de cada cineasta e como revelam também aspectos sobre suas identidades através da representação fílmica. Entendemos ainda como urgente, uma análise das dificuldades deste grupo emergente, o das cineastas brasileiras, em uma indústria ancorada no setor de comunicação e entretenimento, com ampla influência na sociedade e que segue padrões e convenções de produção e distribuição que acabam por excluir uma parcela de cineastas, roteiristas, produtores e produtoras. No primeiro capítulo nos voltamos para as ideias e conceitos que cercam o cinema realizado por mulheres e percebemos que há uma variação de termos para o referenciamento das práticas cinematográficas realizadas por mulheres. E essa variação ocorre de acordo com as teóricas que os utilizam, como por exemplo: Women's Film utilizado por Walsh (1984), Women's Cinema, utilizado por A. Butler (2002) e Women´s Pictures, utilizado por Kuhn (1982). Estas proposições de tratamento deste conceito denunciam a dificuldade de nomear em função das divergências sobre o que seria exatamente esse tipo de cinema. Nos debruçamos sobre os aspectos que permeiam este conceito, analisado por teóricas do campo dos estudos da mulher no cinema no contexto do Brasil, como por exemplo, Holanda e Tedesco (2017), Veiga (2017) e Gubernikoff (2016). Outros tópicos que elencamos são os estudos sobre as mulheres, os estudos de gênero, o papel da mulher na sociedade e os aspectos de representação e busca de espaços na realização cinematográfica de cineastas brasileiras. Nessa perspectiva, as ideias da teoria sociológica e 19 histórica são relacionadas para entender os processos de modernização e industrialização da sociedade como fatores de mudança, que contribuíram para o aumento da presença da mulher na força de trabalho, escolarização e capacitação, como defende Rago (1998), que destaca que o processo de modernização permitiu também às mulheres o questionamento sobre o papel da sexualidade em suas relações. Ao defender essa análise dos aspectos do cinema realizado por mulheres consideramos a contribuição de Gubernikoff (2016) por enfatizar que uma tomada de consciência sobre a representação da mulher no fazer cinematográfico de uma parcela de mulheres tem a finalidade clara de contestar os estereótipos incrustados na sociedade, por séculos, sobre a figura da mulher. “Esse tipo de cinema de mulher, feito por mulheres, visa romper com o processo de identificação aos estereótipos da prostituta ou da virgem, da vítima ou da neurótica” (GUBERNIKOFF, 2016, p. 95). Para ela, essa tomada de consciência feminina está se processando lentamente acontece ao mesmo tempo em que “propõe uma nova abordagem, tanto da teoria quanto da crítica cinematográfica”. Essa visão sobre a tomada de consciência das cineastas que parece à primeira vista muito óbvia, não chega a ser tão óbvia assim, aspecto que ficou evidente durante as entrevistas realizadas com as cineastas durante a pesquisa, nas quais quando questionadas sobre o que elas entendem sobre o conceito “cinema de mulheres”, uma série de dúvidas, contestações e diferentes impressões vieram à tona. Lembramos ainda no primeiro capítulo que, nos estudos sobre a representação da mulher no cinema dentro de uma perspectiva crítica de gênero, as análises tendem a apresentar um caráter de busca pela presença do feminino em cena, discutindo sobre quais espaços a mulher ocupa na narrativa, no roteiro ou quais estereótipos são recorrentes nessas representações. Nesta pesquisa a reflexão sobre os papéis que as mulheres desempenham nos filmes também é considerada por acreditarmos que o texto fílmico revela as escolhas da direção, as personagens, principalmente as protagonistas, podem ser consideradas elementos de um olhar poético e também político. A problemática que impõe barreiras à participação de mulheres nos espaços de decisão político-administrativo; as políticas públicas de fomento para o cinema e o audiovisual nacional e ainda as estratégias de resistência utilizadas pelas cineastas nesse contexto de industrialização do cinema são os tópicos desenvolvidos no segundo capítulo. Procuramos entender como a indústria do cinema brasileiro foi sendo configurada e os percalços da descontinuidade de políticas públicas, além dos impasses de uma competição desleal com as empresas internacionais que dominam o mercado e tornam os processos de produção e distribuição de filmes ainda mais complexos. Analisamos em um breve panorama a atuação da Embrafilme, 20 entre os anos 1969 e final dos anos 1980, e o poder concedido sempre a gestores. Não houve surpresa quando nos deparamos com a constatação de que nenhuma mulher ocupou o cargo de direção da empresa enquanto funcionou (BAHIA, 2012). Nos debruçamos também sobre as diretoras pioneiras que enfrentaram as dificuldades do mercado para construir suas obras e também sobre as que se mantêm no período atual, contudo nosso levantamento não se constituiu em um mapeamento minucioso. Como forma de elencar os principais períodos da história do cinema brasileiro dividimos em três momentos para facilitar a organização das ideias, considerando as pioneiras - nas décadas de 1930-1950 até o Cinema Novo; o período do Cinema da Retomada, e o momento atual de produção, da Pós-Retomada. No terceiro capítulo apresentamos os detalhes da metodologia utilizada na pesquisa. Com ênfase na análise fílmica, o percurso metodológico de desenvolvimento desta tese está delineado em tópicos, com o detalhamento das três fases da pesquisa: a primeira etapa reuniu a pesquisa exploratória, pesquisa bibliográfica e a construção do estado da arte da pesquisa. Nesta fase foi realizada também um levantamento sobre o panorama do cinema e das cineastas e foi preciso ainda nesta fase definir o corpus de análise e as cineastas que seriam entrevistadas. As escolhas foram permeadas pelos seguintes critérios: 1. Cineastas que realizem filmes de ficção; 2. Cineastas que trabalhem em suas obras histórias de protagonistas mulheres; e 3. Uma cineasta de cada região do país, de forma a tornar a amostra diversa. A segunda etapa reuniu a fase de realização das entrevistas, que ocorreram de forma presencial e também por meio de videoconferências. A terceira etapa detalha a realização das análises sobre cada obra, incluindo a transcrição e a análise das entrevistas, fase extremamente importante para o resultado da pesquisa. O processo metodológico adotado na pesquisa resultou em um material de mais de seis horas de entrevistas gravadas, que foram transcritas em mais de 80 páginas. São relatos que evidenciam as dificuldades de produção de cada uma delas em suas trajetórias e esforços na realização cinematográfica no contexto brasileiro. É interessante perceber, ao final da pesquisa, que o método da entrevista em profundidade contribuiu deveras para o resultado final da análise. As opiniões e depoimentos revelados durante o processo de realização das entrevistas com as cineastas foi primordial para entender suas propostas, seus anseios e os aspectos que as referenciam em suas produções. O material que resultou destas entrevistas, que segue na íntegra nos apêndices desta tese, nos mostra um grande compartilhamento de ideias sobre o cinema realizado por mulheres no Brasil e mais ainda, uma sensibilidade destas cineastas sobre o reconhecimento de uma realidade incrustada na sociedade e na indústria criativa sobre os processos de invisibilidade da produção 21 de mulheres no campo artístico, e especificamente no campo do cinema. No último capítulo, dedicado às análises das obras, reunimos as inferências sobre o processo de direção dos filmes e principalmente sobre as narrativas e suas protagonistas. Elencamos categorias de sentido para nortear a análise da narrativa e sequências das obras, importantes também para a interpretação das escolhas de linguagem utilizadas por cada cineasta, são elas: 1. Enredo; 2. Personagens e Protagonistas; 3. Sequência inicial do filme; 4. Pontos de viradas; e 5. Sequência final do filme. São aspectos que consideramos pontos-chaves para entender a construção narrativa e também o estilo de cada cineasta. Com estas definições de realização da análise, empreendemos a tarefa de assistir aos filmes inúmeras vezes para a realização da observação atenta e interpretação dos aspectos inseridos em cada uma das categorias elencadas para cada filme. Esse exercício de ver e rever resultou no encadeamento de uma série de observações sobre o texto fílmico que teve como base os estudos realizados na fase da investigação dos conceitos teóricos. Com esta estruturação e referências construímos uma base para a investigação de como se deu a participação das mulheres na função de diretoras e a busca por um lugar na indústria cinematográfica brasileira. Ao final desta pesquisa, no ano de 2021, notamos uma forte presença de produções de cineastas mulheres em espaços de exibições on-line, situação que foi impulsionada pela pandemia da Covid-19, que interrompeu temporariamente as exibições de forma presencial nos cinemas, como também o processo de produção de conteúdos audiovisuais e outros segmentos da cultura, contribuindo para uma crise no setor. Outro aspecto que notamos é a mudança na presença de mulheres na premiação mais famosa da indústria americana de cinema, o Oscar. Pela primeira vez em 93 anos, duas mulheres estiveram entre os cinco concorrentes ao troféu na categoria de melhor direção: , diretora de Bela Vingança (2020) e Chloé Zhao, diretora de Nomadland (2020). A cineasta chinesa Chloé Zhao ganhou o prêmio e se tornou a segunda mulher a ganhar a estatueta na categoria melhor direção. A primeira mulher a ganhar o Oscar nessa categoria foi Cathryn Bigelow com o filme Guerra ao Terror, em 2010. Além disso, é preciso enfatizar que Chloé Zhao é a primeira mulher asiática a conseguir o prêmio de melhor direção, o que também é considerado um fato importante, pois há na indústria americana de cinema uma série de barreiras que ainda precisam ser superadas em relação aos profissionais estrangeiros. O filme dirigido por Zhao, Nomadland, ganhou o prêmio de melhor filme na competição que foi a mais diversa da história do Oscar, com profissionais de diferentes etnias sendo reconhecidos. Essa mudança de postura em relação à diversidade tem sido cada vez mais cobrada pela sociedade e pelos profissionais da área. 22

E para dar outro exemplo de reconhecimento da força das narrativas dirigidas por mulheres, lembramos da animação de curta-duração Carne (2019), dirigida pela cineasta brasileira Camila Kater. O filme ganhou mais de 70 prêmios2 e chegou a ser qualificado à indicação para a lista do Oscar 2021, apesar de não ter sido escolhido é um exemplo da qualidade das produções atuais. Carne destaca depoimentos de 5 mulheres a partir da metáfora que relaciona o estado de cozimento da carne com o corpo da mulher (Crua, Mal Passada, Ao Ponto, Passada e Bem Passada). O documentário discute, em 12 minutos, a dominância masculina através da exposição dos inúmeros tipos de violências contra as mulheres, e enfatiza também as formas de resistência que essas mulheres encontram para libertar seus corpos dos padrões de beleza e comportamento impostos pela sociedade. A materialidade da investigação desta tese nos permitiu entender os caminhos que as cineastas Adriana Vasconcelos, Cristiane Oliveira, Glenda Nicácio, Laís Bodanzky, Jorane Castro e Roberta Marques têm percorrido para conseguir que seus filmes sejam exibidos nas telas dos circuitos comerciais, nos festivais, nas plataformas de streaming, e mais que isso, para dar sua contribuição ao desenvolvimento de narrativas que se baseiam em processos de produção ancorados em temáticas e abordagens criativas, e principalmente permeadas por processos criativos que levam em consideração olhares das equipes formadas por mulheres. Por fim, recorro às ideias da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, sobre a necessidade de conhecermos as diversas histórias e combatermos os estereótipos. Em suas palavras: "a história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas é que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história." (ADICHIE, 2009, p.14). A pluralidade de histórias que as cineastas mulheres propiciam com suas produções contribuem para que não haja uma história única também na produção de cinema, inclusive sobre o viés da representatividade e os estereótipos já moldados na sociedade, como por exemplo, a imagem do diretor de cinema como o homem branco, sentado em sua cadeira com seu megafone dando suas ordens. É preciso superar esta imagem e incluir os diversos perfis, já que existem cineastas mulheres, trans, lésbicas, entre outros perfis, que podem atuar na direção de filmes e não se sentirem representadas pelo referido estereótipo. Sendo assim, podemos concluir que a força das produções digiridas por mulheres tem ganhado espaço no cinema global e contribui para incentivar mais mulheres a participarem do processo de produção cinematográfica. A realização de filmes por mulheres caminha por uma trilha fecunda que pode fomentar o desenvolvimento de produções com histórias

2 Disponível em: https://jcce.com.br/curta-metragem-brasileiro-carne-conquista-70-premios-e-esta-qualificado- para-o-oscar-2021/ Acesso em: 15 jan. 2021. 23 protagonizadas por mulheres, contudo, para que esse processo seja potencializado é preciso um efetivo incentivo em diferentes frentes, tais quais: Formação, com qualificação profissional especializada; Fomento à produção, com mais editais, recursos e oportunidades voltadas às mulheres; Fomento à distribuição/exibição, com mais obras sendo exibidas no circuito comercial; e por fim, Representatividade em espaços de decisão, com mais mulheres participando em espaços de decisão, em fóruns, em cargos de direção de instituições públicas e privadas no segmento cinematográfico, em festivais e bancas de curadoria, entre outros espaços. O protagonismo de mulheres em suas diversas formas é urgente. 24

CAPÍTULO 1 CINEMA REALIZADO POR MULHERES: CONCEITO E ATITUDE POLÍTICA

“A mulher não pode ter medo de contar suas histórias, dirigir dá muito medo, porque dirigir é você ter uma opinião, você ter um discurso, defender uma ideia, e nós fomos todas educadas a não ter opinião, não defender ideias.” Laís Bodanzky, 2017.

A desigualdade de posições na indústria do cinema e os entraves à participação feminina na direção de filmes no Brasil e no mundo tem sido alvo de questionamentos, pesquisas e campanhas que buscam mudar essa realidade. No contexto do século XXI ainda é um fato as mulheres receberem salários menores que homens ocupando as mesmas funções3. A produção de cineastas mulheres na cena cinematográfica contemporânea constituiu o foco da investigação realizada nesta pesquisa de doutorado, na busca de entender aspectos relacionados à identidade, resistência e protagonismo das mulheres no mercado da produção cinematográfica nacional. As desigualdades de salários, de oportunidades e de posições na indústria do cinema são fruto de uma série de aspectos histórico-político-sociais aos quais a mulher foi submetida ao longo dos séculos e que atualmente, mais precisamente com o advento da industrialização, avanço da tecnologia e podemos dizer também de uma maior autonomia das mulheres nas relações sociais, tem ganhado mais destaque no tecido social de reivindicações. Para desenvolver melhor esse pensamento e perpassar a uma análise mais relacionada ao objeto de pesquisa desta tese, o cinema realizado por mulheres na indústria do cinema brasileiro, é preciso dimensionar o nosso objeto e entender o que está inserido nesta problemática. Uma das hipóteses é que persistem nesta indústria diferentes vertentes para a desigualdade de gênero que contribuem para que a presença da mulher, especificamente na função de cineasta, apresente menores estatísticas em comparação à produção de cineastas homens. O desequilíbrio na participação das mulheres no contexto da produção cinematográfica brasileira relaciona-se com uma série de aspectos que tratamos como complicadores, e destacamos aqui antes de relacionar os autores e conceitos que consideramos nesta pesquisa, cabe enfatizar que relacionamos ideias de teóricas e teóricos das áreas do Cinema, Sociologia e dos Estudos de Gênero. A série de aspectos a qual nos referimos inclui as dificuldades de produção pela própria natureza da atividade de realizar filmes, principalmente no gênero

3 De acordo com o levantamento Diferença do rendimento do trabalho de mulheres e homens nos grupos ocupacionais - PNAD Contínua 2018, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, as mulheres representavam 45,3% da força de trabalho e ganhavam 79.5% do total do salário pago ao homem. 25 ficcional; questões relacionadas às políticas estatais de incentivo no Brasil e suas falhas ou descontinuidades; as práticas de machismo e assédio que silenciam e atuam na exclusão de uma parcela de mulheres neste campo; o preconceito e desconhecimento sobre o trabalho das profissionais que precisam colocar à prova seu potencial criativo para conseguir galgar sua trajetória; e a ausência das mulheres nos espaços de decisão. Estes são os principais entraves que relacionamos ao que as cineastas enfrentam no tocante à realização de filmes no cinema brasileiro, e se projetamos esses problemas para a realidade de diversos países, nos deparamos com aspectos similares, já que este é um dilema enfrentado por profissionais das mais diversas nacionalidades. Um exemplo claro é a indústria do cinema norte-americano e os movimentos de luta contra o assédio realizado às mulheres como o #MeToo, iniciado em 2017. O movimento reuniu relatos sobre milhões de abusos e discriminações, pois mulheres de todo o planeta falaram sobre as experiências machistas e violentas que passaram. Um dos casos que ganhou destaque foi o do assédio vivenciado por estrelas de Hollywood, vítimas do produtor Harvey Weinstein, que foi condenado a 23 anos de prisão por estupro (BRITO, 2020). Outro exemplo são os dados estatísticos do estudo “Padrões de longo prazo de desequilíbrio de gênero em uma indústria sem diferenças de habilidade ou nível de interesse”4, publicado pela revista Plos One em 2020 que evidencia em números a predominância do sexo masculino na indústria cinematográfica ao longo das décadas, revelando também que mesmo durante a chamada Era de Ouro do Cinema, entre os anos 1927 e 1945, a representação feminina em Hollywood era inferior se comparada a presença dos homens, em termos de papéis desempenhados (AMARAL, L. et al., 2020). No gráfico abaixo5, do referido estudo, temos uma série de dados que colocam em evidência as tendências históricas do desequilíbrio de gênero na indústria cinematográfica dos EUA, os autores do estudo elencam os seguintes dados: (a) Linha do tempo dos eventos do século XX relevantes para a evolução da indústria cinematográfica dos EUA. (b) Número de filmes produzidos nos EUA considerados no estudo lançado anualmente. (c) Concentração da produção da indústria pela empresa produtora/estúdio, medida pelo índice Herfindhal- Hirschman. Valores maiores indicam que uma grande fração dos filmes é produzida por um pequeno número de estúdios. (d) Dependência temporal da porcentagem de mulheres de acordo

4 Título original do estudo: “Long-term patterns of gender imbalance in an industry without ability or level of interest differences”. 5 Mais detalhes sobre os dados do gráfico podem ser obtidos no seguinte endereço eletrônico: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0229662.g001 26 com a função de filmagem. De acordo com o estudo, a linha sólida verde oliva no painel superior mostra a participação feminina na força de trabalho dos EUA, a fim de fornecer uma comparação para a economia geral. As linhas sólidas indicam valores médios e as bandas coloridas mostram intervalos de confiança de 95%. As linhas vermelhas pontilhadas mostram o maior valor de representação feminina alcançado antes de 1940, e as linhas vermelhas tracejadas mostram o menor valor alcançado após 1930, se diferente de zero. Para todas as funções de produção de filmes, há um padrão semelhante em “forma de U” com um máximo inicial alcançado antes de 1922, um mínimo alcançado em meados da década de 1940 e um aumento depois.

Gráfico 1 - Tendências históricas do desequilíbrio de gênero na indústria cinematográfica dos EUA

Fonte: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0229662.g001

Esses exemplos incidem na dimensão que tratamos aqui através dos estudos de gênero e também do poder e suas associações às desigualdades no mundo do trabalho, neste caso específico, relacionadas ao contexto do cinema. As informações do gráfico 1 ajudam a entender as tendências históricas que influenciam o desequilíbrio de gênero na indústria de cinema norte- americana. Neste capítulo, a principal perspectiva é de refletir sobre os conceitos dos estudos de gênero com enfoque sobre as mulheres e seu papel na sociedade, destacando as relações com a realização cinematográfica de cineastas brasileiras. Nesse sentido buscamos relacionar também a influência do pensamento feminista nessa produção, especificamente no que se refere à 27 parcela de filmes dirigidos por mulheres, considerando as configurações do que algumas teóricas vão intitular como “cinema de mulheres”, “cinema feminino” ou “cinema realizado por mulheres”. É importante destacar que o termo cinema de mulheres, já defendido por diversas pesquisadoras da área do cinema, tais quais Gubernikoff (2016), Holanda e Tedesco (2017), Veiga (2017), Kaplan (1995), Johnston (1973), entre outras, requer atenção nesta pesquisa para a compreensão sobre as questões relacionadas aos estudos de gênero e suas imbricações no campo do cinema. Neste ponto identificamos as questões que consideramos mais importantes no que se refere aos estudos de gênero e suas relações com os aspectos que tensionam o campo do cinema, tais como os aspectos que contribuem para a construção das identidades de gênero e as formas de representação dessas identidades nas representações fílmicas. Vamos começar questionando o que incide nessa problemática que podemos considerar em termos genealógicos? Ou seja, como começou e o que contribui para a manutenção da desigualdade de gênero? Não podemos ignorar nesta problemática dois fatores primordiais que atuam para essa manutenção: o fator histórico-sociológico da dominação masculina e a consequente inferiorização da mulher através de um processo de naturalização que os faz serem aceitos e reproduzidos pelos atores sociais. Na perspectiva da teoria crítica feminista do cinema, Johnston (1973) apresenta em seu ensaio “Women's Cinema as Counter-Cinema” uma discussão importante para o desenvolvimento da teoria do cinema feminista. Tratando de temas como por exemplo, a representação estereotipada da mulher e o mito da mulher no cinema, ela contribui para a discussão sobre como a figura da mulher permaneceu sem alterações ao longo do desenvolvimento das primeiras décadas do cinema, enquanto no caso dos homens sofreu uma rápida diferenciação. Para Johnston (1973, p. 25), “os mitos como forma de narrativa ou discurso, representam o principal meio pelo qual as mulheres têm sido utilizadas no cinema: o mito transmite e transforma a ideologia do sexismo e a torna invisível - quando se torna visível, evapora-se - e torna-se, portanto, natural”6. A naturalização desse processo sociocultural de discriminação sobre a mulher está diretamente relacionada à uma profusão de estratégias que contribuem para legitimar a superioridade masculina, e entre essas estratégias está a ideologia da "inferioridade" da mulher, defendida por Saffioti (1989), que faz a própria mulher aceitar a ideia de uma subordinação mesmo em situações em que ela está claramente em posição de superioridade em relação ao

6 Tradução nossa. Texto original: “Miths then, as a form of speech or discurse represents the major means in wich women have been used un the cinema: myth transmit and transforms the ideology of sexism and renders it invisible - when it is made visible it evaporates - and therefore natural”. 28 homem, mas se assume como inferior, como por exemplo, para não contradizer uma ideia já aceita. Para Bourdieu (1998) que também investigou o aspecto da naturalização de uma visão androcêntrica pela sociedade, o conceito de violência simbólica é central para entender a genealogia da dominação masculina. Ele trata das formas de dominação em um viés simbólico, naturalmente aceito pela sociedade e assim reproduzido nas relações sociais, como ele assinala

A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres [...]; ou, no interior desta, entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos. (BOURDIEU, 1998, p. 18).

É uma proposição sobre o que incide na ideologia da inferiorização da mulher na sociedade que se relaciona com a discussão sobre a posição da mulher e os conceitos relativos ao “cinema realizado por mulheres” e que requer uma análise sobre o que está vinculado a esse processo. É importante elencarmos também o conceito de gênero e sua influência nas definições e atitudes políticas demarcadas entre o Cinema e os Estudos de Gênero. As discussões e reflexões sobre as relações de gênero na sociedade contemporânea ganham força com o crescente questionamento sobre a posição das mulheres e outros grupos historicamente marginalizados pela sociedade por questões de sexualidade, como as lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros e afins na sociedade moderna. Entendido inicialmente como construção social e cultural das diferenças sexuais, o gênero foi sendo aceito como uma categoria de estudo solta, inacabada, segundo o olhar de Rago, pioneira nos Estudos de Gênero no Brasil. Segundo Rago (1998) o que antes era colocado no centro da discussão como história das mulheres foi repentinamente mudando para a categoria gênero, entre as décadas de 1980 e 1990. Mas isso se deveu muito à entrada das mulheres no ambiente acadêmico.

Desde os anos setenta, as mulheres entravam maciçamente nas universidades e passavam a reivindicar seu lugar na História. Juntamente com elas, emergiam seus temas e problematizações, seu universo, suas inquietações, suas lógicas diferenciadas, seus olhares desconhecidos. Progressivamente, a cultura feminina ganhou visibilidade, tanto pela simples presença das mulheres nos corredores e nas salas de aula, como pela produção acadêmica que vinha à tona. (RAGO, 1998, p. 91). 29

A modernização e industrialização da sociedade contribuiu para o aumento da presença da mulher na força de trabalho, escolarização e capacitação, o que ocasionou também uma conscientização das mulheres sobre um horizonte diferente das atividades domésticas e maternais. E mais além, permitiu que as mulheres questionassem o papel da sexualidade em suas relações, de forma progressiva, porém em um processo bastante lento, que inclusive se mantém nos dias atuais. A sexualidade por sua vez está no cerne da questão da utilização do termo gênero. Esse é um aspecto apontado por Scott (1990, p.75) sobre a utilização do termo gênero. “Com a proliferação dos estudos do sexo e da sexualidade, o gênero se tornou uma palavra particularmente útil, porque ele oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens”. Scott (1990, p.72) atenta também para o uso da palavra gênero como indicador de uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. O que para Lauretis (1987) buscando explicar o fenômeno da utilização do conceito de gênero nos estudos sobre a mulher, no contexto dos anos 1960 e 1970, indica uma limitação do pensamento feminista pelo fato do conceito de gênero ser postulado como diferença sexual e seus conceitos derivados - a cultura da mulher, a maternidade, a escrita feminina, a feminilidade, etc. Nas palavras de Lauretis

A primeira limitação do conceito de diferença sexual é que ele confina o pensamento crítico feminista ao arcabouço conceitual de uma oposição universal do sexo (a mulher como diferença do homem, com ambos universalizados: ou a mulher como diferença pura e simples e, portanto, igualmente universalizada), o que torna muito difícil senão impossível articular as diferenças entre mulheres e Mulher, isto é, as diferenças entre as mulheres, ou talvez mais exatamente, as diferenças nas mulheres. (LAURETIS, 1987, p. 207).

Essa perspectiva do olhar de Lauretis sobre o gênero nos faz pensar sobre a contestação das definições do feminino pela sociedade, principalmente no que diz respeito aos significados e ressignificados das posições do feminino na esfera cultural. Temos uma referência clara nesse processo que é a naturalização de uma inferiorização do feminino em relação ao masculino. Saffioti (1987) trata de situações e aspectos da discriminação sobre as mulheres e o negro na sociedade, traçando suas ideias sobre o poder, as formas de discriminação, a castração tanto da mulher como do homem, e como o sistema capitalista se beneficia destas diferenças e do processo de inferiorização da mulher na sociedade. Ela enfatiza que

A sociedade investe muito na naturalização deste processo. Isto é, tenta fazer crer que a atribuição do espaço doméstico à mulher decorre de sua capacidade de ser mãe. De acordo com este pensamento, é natural que a mulher se dedique aos afazeres 30

domésticos, aí compreendida a socialização dos filhos, como é natural sua capacidade de conceber e dar à luz. (SAFFIOTI, 1987, p. 9).

Essa naturalização é fruto de um processo sociocultural de discriminação sobre a mulher e tem a ideologia da "inferioridade" da mulher como principal estratégia que contribui para legitimar a superioridade masculina. "A força desta ideologia da "inferioridade" da mulher é tão grande que até as mulheres que trabalham na enxada, apresentando maior produtividade que os homens, admitem sua ‘fraqueza’” (SAFFIOTI, 1987, p. 9). Isso fica claro nas situações em que a mulher está claramente em posição de superioridade em relação ao homem, mas se assume como inferior para não contradizer uma ideia já aceita. O outro fator que também contribui para a manutenção da desigualdade de gênero é a influência exercida pelo sistema capitalista, que age delimitando as posições e o poder relacionado às identidades de gênero e sexualidade. Recorremos às ideias de Foucault em suas análises sobre o biopoder e a tecnologia do sexo, como fatores que se relacionam nas redes de poder na sociedade capitalista. Pensando através de um eixo histórico-político, a visão foucaultiana do poder através da sua relação com a sexualidade é importante para percebermos nesta pesquisa a incidência do que entendemos como um poder que contribuiu para a invisibilização das mulheres em diferentes períodos históricos do desenvolvimento da sociedade. Foucault (1988) coloca em primeiro plano a importância do discurso como forma de controlar a sexualidade, defendendo que o sistema capitalista contribuiu para tornar o sexo um assunto de confissão em vista do domínio das sexualidades. O autor traça uma análise detalhada sobre como os discursos e também os silêncios podem ser ao mesmo tempo instrumento e efeito de poder.

O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também, afrouxam seus laços e dão margem às tolerâncias mais ou menos obscuras. (FOUCAULT, 1988, p. 96).

Relacionamos a noção foucaultiana do biopoder com a forma como as mulheres foram deslocadas do campo de produção dos bastidores do cinema, à medida em que este se desenvolvia como indústria, e passaram ao posto de estrelas que deveriam esbanjar glamour, colocadas em um lugar em que as outras mulheres as invejariam e seriam objeto de desejo dos homens. A função de musa de cinema, que até hoje é valorizada, principalmente, por setores mais conservadores e machistas da sociedade, tem sido contestado pelas próprias atrizes, que almejam ver o seu trabalho valorizado em detrimento de suas qualidades estéticas. 31

O feminismo exerce a função de principal movimento contestatório dessa inferioridade da mulher e atua na busca de defesa dos direitos da mulher, destacando a igualdade de oportunidades como premissa básica. Ao tratar dessas formulações sobre a mulher é importante nos indagarmos de qual mulher referimo-nos. De que forma podemos entender experiências tão distintas no conceito mulher? Concordamos com J. Butler (2003, p. 18) quando ela afirma que “é muito pequena a concordância quanto ao que constitui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres”. Não existe um tipo de mulher, ou seja, a mulher ideal, idealizada, que se mede pelos contornos do corpo ou pela conduta moral, esta não existe de forma alguma, o que existem são convenções moralistas impostas à sociedade sobre um padrão de comportamento para as mulheres. J. Butler (2003) critica a visão foucaultiana sobre o poder e o gênero ao apontar uma falha em sua investigação genealógica, indicando que existe uma espécie de confusão sobre as origens do conceito de gênero e do feminino. Para ela

A crítica genealógica recusa-se a buscar as origens do gênero, a verdade íntima do desejo feminino, uma identidade sexual genuína ou autêntica que a repressão impede de ver; em vez disso, ela investiga as apostas políticas, designando como origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos. (BUTLER, J., 2003, p. 9).

Percebemos também que esse processo está ligado diretamente à sexualidade e identificamos uma dificuldade de entendimento das questões identitárias de gênero. Ao nosso ver o que também contribui para isso é um certa ambivalência existente nas teorias de gênero, que contribui para a complexidade de entendimento sobre o que está inserido na discussão sobre os conceitos. Ao apontar as limitações do conceito de diferença sexual Lauretis (1987) defende uma definição do conceito de gênero que não seja tão “presa” à diferença sexual, ou melhor, que esteja incluído na diferença sexual como um efeito de linguagem ou como puro imaginário.

Tal dificuldade, ou seja, imbricação de gênero e diferença(s) sexual(ais) precisa ser desfeita e desconstruída. Para isso, pode-se começar a pensar o gênero a partir de uma visão teórica foucaultiana, que vê a sexualidade como uma “tecnologia sexual”; desta forma, propor-se-ia que também o gênero, como representação e como auto- representação, é produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana. (LAURETIS, 1987, p. 208).

Rago (1998, p. 98) também reflete esta ideia ao defender que “a superação da lógica binária contida na proposta da análise relacional do gênero, é fundamental para que se construa um novo olhar aberto às diferenças”. A ambivalência do conceito de gênero que falamos 32 também está nas investigações de Piscitelli (2002), que chama a atenção para os percursos da teoria feminista e sua relação com o conceito de gênero, percebendo uma dificuldade iminente nas diferentes visões do ponto de vista do ativismo e da perspectiva teórico-academicista. Para a autora

O conceito de gênero começou a ser desenvolvido como uma alternativa ao patriarcado. Ele foi produto porém da mesma inquietação feminista em relação às causas da opressão da mulher. A elaboração desse conceito está associada à percepção de associar essa preocupação política a uma melhor compreensão da maneira como o gênero opera em todas as sociedades, o que exige pensar de maneira mais complexa o poder. Vemos, assim, que as perspectivas feministas que iniciaram o trabalho com gênero mantêm um interesse fundamental na situação da mulher, embora não limitem suas análises aos estudos das mulheres. (PISCITELLI, 2002, p. 11).

A visão de uma mulher reconfigurada, colocada por Piscitelli (2002) mostra um dos tensionamentos do movimento feminista e suas diferentes perspectivas teóricas, principalmente as que não consideram o gênero como categoria a ser analisada. Ao nosso olhar uma das problemáticas que dificulta a análise das questões de gênero inseridas nos debates da teoria feminista é o tensionamento sobre os termos sexo, gênero e seus determinantes. Na visão compartilhada por J. Butler (2003) sobre a noção da mulher como sujeito do feminismo a autora chama a atenção para o tensionamento da teoria feminista e suas diferentes formas de concepção da mulher e do conceito de gênero. Para ela, “a crítica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação”. (BUTLER, J., 2003, p.19). Nesta perspectiva, percebemos a dialética permeada no conflito de visões sobre a noção de mulher em relação à identidade de gênero, e principalmente, sobre a ideia de unidade ou traços comuns que seriam compartilhados entre as mulheres e que as uniriam frente ao patriarcado. Por entender e defender uma liberdade de gênero, J. Butler considera como equivocada a noção binária de masculino/feminino que exclui outras identidades, como também é equivocado reconhecer a “especificidade” do feminino descontextualizada de aspectos como raça, classe, etnia e outros eixos de relação de poder. Neste sentido ela preconiza

É minha sugestão que as supostas universalidade e unidade do sujeito do feminismo são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em que funcionam. Com efeito, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses domínios de exclusão revelam as consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção é elaborada com propósitos emancipatórios. (BUTLER, J., 2003, p. 22). 33

Entender os processos de subjugação da mulher dentro das relações de poder e sob o viés capitalista é um ponto importante desta pesquisa pelo fato de considerar a interligação dos fatores sociais envolvidos nesta dinâmica. A crítica ao feminismo e uma visão unificada da noção de mulher vem ao encontro de uma reflexão sobre qual mulher se considera nesta análise. Nos indagamos sobre a noção de mulher por entendermos, como J. Butler (2003), que a identidade tem uma construção variável e as diferentes noções da mulher precisam ser consideradas dentro da perspectiva feminista, que inclusive precisa ser atualizada, como lembra a autora: “Parece necessário repensar radicalmente as construções ontológicas de identidade na prática política feminista, de modo a formular uma política representacional capaz de renovar o feminismo em outros termos” (BUTLER, J., 2003, p. 22-23). Se nos voltarmos à essência do movimento feminista podemos perceber que até mesmo nas definições defendidas pelo movimento há divergências de como lidar com os diversos perfis de mulheres, principalmente porque não se trata de um conceito unificado. Ainda assim, como defende J. Butler (2003, p. 21) “Embora afirmar a existência de um patriarcado universal não tenha mais a credibilidade ostentada no passado, a noção de uma concepção genericamente compartilhada das “mulheres”, corolário dessa perspectiva, tem se mostrado muito mais difícil de superar”. Uma inferência que podemos fazer sobre esse aspecto é o reconhecimento das mulheres como sujeitos de uma diversidade e que uma parte dessas mulheres cada vez mais percebe suas potencialidades na sociedade e também questiona as categorias nas quais foram sendo enquadradas dentro da dinâmica social, ou seja, com a reprodução de estereótipos de mulheres como delicadas, emotivas, histéricas, submissas, bandidas, mulher-macho, entre outras denominações que acabam sendo reproduzidas de forma automática, embora tenha crescido o movimento de contestação sobre esses enquadramentos das mulheres na sociedade contemporânea. Relacionando a questão ao aspecto da construção autoral que se desencadeia, por exemplo, na efetivação de uma obra cinematográfica, literária, ou de outra linguagem artística, a identidade é um dos aspectos que vai incidir sobre a teia de direcionamentos e decisões necessárias ao processo de realização artística. Nos interessamos nessa investigação pelos fatores que incidem na identidade cultural das cineastas e de que forma essa identidade se relaciona com os resultados de suas obras. Hall (2005) identifica uma crise de identidade na sociedade moderna que contribui para uma fragmentação do indivíduo, composto por várias identidades. Para ele a identidade “é definida historicamente e não biologicamente”, assim assinala que 34

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. (HALL, 2005, p. 13).

Considerando a perspectiva de Hall, entendemos que essa identidade transitória influencia diretamente no processo de construção de narrativas para o texto fílmico, além de constituir uma característica importante do grupo em análise, já que alguns fatores inseridos na construção de uma história/narrativa e representações são mediadas pela identidade do sujeito autor, ou seja, não podem ser desconsiderados nesse processo os aspectos (culturais, de memória, e de identificações pessoais) que influenciam a identidade de uma cineasta, bem como da sua equipe, que incidem diretamente no resultado do filme que o espectador verá projetado na tela do cinema. A identidade demarcada do ponto de vista da mulher, estigmatizada por processos socioculturais e simbólicos, revela tais estigmas diante do processo de construção de uma obra fílmica. Entendemos que esse processo é também demarcado por outros fatores que perpassam pela sexualidade e as instâncias de poder encadeados nas relações sociais. Procuramos refletir com essa contextualização conceitual e, principalmente, enfatizar que neste recorte da investigação proposta nesta pesquisa, precisamos entender inicialmente que existe uma série de conceitos e um processo discursivo que se desencadeia na sociedade a partir de contestações sobre o papel da mulher, e que também se revela na indústria do cinema, na política, nas múltiplas expressões da arte, enfim, no mundo social. Gubernikoff (2016) defende que o cinema de mulher tem uma finalidade clara de contestar os estereótipos incrustados na sociedade, por séculos, sobre a figura da mulher.

Esse tipo de cinema de mulher, feito por mulheres, visa romper com o processo de identificação aos estereótipos da prostituta ou da virgem, da vítima ou da neurótica, e está processando lentamente uma tomada de consciência feminina, ao mesmo tempo em que propõe uma nova abordagem, tanto da teoria quanto da crítica cinematográfica. (GUBERNIKOFF, 2016, p. 95).

Embora essa ideia não seja tão clara entre as próprias cineastas, Holanda e Tedesco (2017, p. 45) destacam que quando elas falam de cinema de mulheres “se trata de um amplo espectro de possibilidades de expressões, que há diferenças entre as mulheres, mas entende que estão reunidas sob experiências, até certo ponto, comuns”. Em sua pesquisa sobre o cinema brasileiro (moderno) de autoria feminina, Holanda e Tedesco (2017, p. 45) observam o caráter 35 político que está inserido no cinema feito por diretoras mulheres, para elas “a reivindicação de maior visibilidade dos filmes feitos por mulheres é, acima de tudo, política”. Essa é uma característica que também defendemos na pesquisa. Entendemos que as escolhas de destacar no enredo temáticas direcionadas a dilemas que atingem especificamente as mulheres e problemas sociais enfrentados pela sociedade em geral com enfoque na ótica feminina, podem determinar esse caráter político. Mais que isso a forma como se dá esse destaque, de forma crível e na busca de uma inclusão dessa pauta pela sociedade fazem dessas escolhas um ato político. Kamita (2017, p. 1395) destaca o fato de que muitas cineastas encaminham seus trabalhos “construindo novas imagens da mulher e da feminilidade, em contraposição aos discursos hegemônicos”. Para ela essa postura ultrapassa os sets de filmagem chegando aos setores filosóficos, antropológicos, econômicos. Muito embora, ela reconheça que haja ainda uma recusa em relação aos filmes nos quais a representação da mulher dista de moldes tradicionais.

Muitos filmes reproduzem uma ideologia que autoriza um discurso oficial como sendo o masculino enquanto ignora ou desautoriza manifestações insurgentes. Assim, a representação da mulher quando está de acordo com o discurso oficial de dado momento histórico é amplamente divulgada, já a representação que não se insere nos moldes tradicionais ou na ótica de uma cineasta com posicionamento crítico não terá a mesma visibilidade. (KAMITA, 2017, p. 1394).

Para Kaplan, em entrevista a Lopes (2002), apesar de haver uma pequena mudança, a hierarquia de discursos nos filmes comerciais continua, “o que faz (pelo menos até recentemente) com que o discurso do homem seja mais valorizado do que o feminino. Isto está mudando agora, particularmente, por causa do progresso dentro da cultura que os estudos da mulher estão realizando”. Um exemplo claro deste processo de mudança são os filmes em que a perspectiva da mulher é tratada em primeiro plano, o que não é característica apenas de filmes dirigidos por mulheres. Os filmes Que horas ela volta (2015) da cineasta Anna Muylaert e Roma (2018), de Alfonso Cuarón ilustram esse aspecto. Ambos tratam do cotidiano de uma empregada doméstica que enfrenta dilemas no ambiente de trabalho e vida pessoal. Roma, que é escrito, produzido, fotografado, dirigido e montado por Cuarón, conta a história de Cleo, uma jovem que trabalha como babá e doméstica de uma família de classe média do México. Inspirado na infância de Cuarón, o filme faz um relato emotivo sobre as realidades, alegrias, tristezas e do cotidiano oculto por trás da vida doméstica, enfatizando as desigualdades sociais e raciais que são frequentes nos países da América Latina. A narrativa retrata os acontecimentos que abalam 36 a vida do núcleo familiar, desde a gravidez de Cleo à separação de seus patrões. Além de ser um filme que fugiu do padrão das narrativas já dirigidas por Cuarón, como por exemplo, Gravidade (2013), Filhos da Esperança (2006), Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004) e A Princesinha (1995), Roma chamou a atenção do público por apostar em uma protagonista que não tinha experiência com atuação, e que foi indicada ao Oscar de melhor atriz, mas não chegou a ganhar o prêmio. O filme Que horas ela volta trata dos conflitos entre a empregada doméstica Val e seus patrões de classe alta, criticando claramente as desigualdades da sociedade brasileira. O filme aborda inúmeras situações que acometem a mulher, pobre, oriunda da região Nordeste do Brasil, que teve poucas oportunidades de estudo e emprego e por isso acaba deixando a filha com a família para tentar um emprego na região Sudeste. A abordagem política do filme recai sobre situações que ocorrem diariamente na relação patroa-empregada, que denunciam o preconceito sobre a figura da empregada doméstica e também a quebra de paradigmas quando mostra uma possível ascensão a partir da aprovação da filha da empregada em um vestibular concorrido. Ao identificar no filme essa abordagem podemos inferir que de toda forma Muyllaert contribui para uma afirmação do discurso feminista indiretamente destacando a questão de que a mulher deve buscar seu espaço na sociedade, denunciando também a dificuldade que é para a mulher trabalhar e manter/educar um filho ao mesmo tempo, questão também central do filme. Um olhar comparativo sobre os dois filmes permite perceber que se trata da mesma temática e uma similaridade na sensibilidade empregada nas estratégias da narrativa. A empregada doméstica está no centro dos dois roteiros, porém a perspectiva dos cineastas é diferente, os dois são de países diferentes, realidades cinematográficas também distintas embora haja similaridades socioculturais entre o México e o Brasil, principalmente nos fatores subdesenvolvimento social e desigualdade social, e os dois filmes tratam do tema com ênfase no fator humanidade, com um olhar social, mostrando o lado das protagonistas que vivenciam histórias e conflitos cotidianos, tornando a narrativa também uma reflexão sobre as relações humanas. Voltando à discussão sobre o termo “cinema de mulheres”, considerando também as críticas ao termo, lembramos as proposições de Zecchi (2013) ao indicar as limitações dos termos “cinema feminista”, “cinema feminino” e “cinema de mulheres”, configurando uma crise de nomear, que segue sendo uma das preocupações centrais na teoria fílmica feminista. Para Zecchi, o termo cinema feminista define melhor a orientação ideológica da diretora, ou diretor, do filme, já que o feminismo é uma atitude política. 37

É um termo limitado e ambíguo, porque nem todo o cinema dirigido por mulheres é necessariamente feminista, nem todo o cinema feminista é dirigido por mulheres, mais ainda, um filme pode ser feminista apesar das intenções de sua diretora ou diretor, como nos adverte Annette Kuhn (1982), ou vice-versa. (ZECCHI, 2013, p. 11).

Seguindo na sua definição ela adverte que o segundo termo: “cinema feminino” indica melhor as características instituídas pelo patriarcalismo como sendo da mulher na divisão dos papéis de gênero, ou seja, a mulher sensível, sentimental, emotiva, que aludem ambiguamente ao filme e ao público, não necessariamente ao sexo de quem dirige o filme. E a terceira definição, “cinema de mulheres”, nas palavras da autora

[...] se limita a descrever ambiguamente um corpus que se identifica ou pelo gênero sexual (biológico) de suas autoras, sem problematizar a questão da autoria no cinema (Mayne, 2008; Martin, 2008), ou pelo seu público: o melodrama, por exemplo, tem sido definido como um gênero de mulheres, já que por norma se concebe como um produto de consumo para espectadoras. (ZECCHI, 2013, p. 12).

Diante desta crise, a autora prefere utilizar o termo “gynocine”, que para ela é um termo mais amplo, flexível e inclusivo que os três termos anteriormente definidos, segundo sua explicação

Se nem todo cinema dirigido por mulheres é feminista, todos os filmes dirigidos por mulheres pertencem ao gynocine, porque todas as mulheres - incluindo as que se demarcam explicitamente feministas e/ou as que têm adentrado no mundo da direção em condições aparentemente mais favoráveis - pertencem a um sistema social marcado por relações de gênero (um “sex-gender system” para usar a expressão de Rubim, 1975) do qual não se pode prescindir. (ZECCHI, 2013, p. 13).

Lauretis e Mayorga (1992) em seu artigo intitulado “Repensando o cinema de mulheres”, se perguntam: “Existe uma estética feminina?”, e lembram a questão feita por Silvia Bovenschen em 1976, da qual recebem uma resposta dúbia: sim e não. Refletindo sobre essa contradição, as autoras criticam essa indefinição, defendendo que ao perguntar se existe uma estética feminina ou uma linguagem específica do cinema de mulheres, “significa como adverte Audre Lorde, legitimar as agendas ocultas de uma cultura que devemos mudar”. Os termos que se referem às práticas cinematográficas realizadas por mulheres variam de acordo com as teóricas que os utilizam. Tomamos como exemplo os diferentes usos pelas teóricas Walsh (1984) que utiliza o termo Women's Film; A. Butler (2002) que prefere utilizar o termo Women's Cinema; e Kuhn (1982) que utiliza Women´s Pictures. Estas diferentes proposições de tratamento deste termo, que também é um conceito, denunciam a dificuldade de unificar um 38 entendimento sobre o que significa o cinema realizado por mulheres, em função das divergências sobre o que seria exatamente esse tipo de cinema. Walsh (1984) traça a evolução e o desenvolvimento do Women's Film de Hollywood, descrevendo a história social das mulheres americanas na década de 1940. Sua pesquisa é importante porque ela analisa os padrões narrativos dominantes nos filmes populares femininos da década: o drama materno, a comédia de carreira e os filmes de suspeita e desconfiança. Categorizando e investigando esses gêneros ela buscava descobrir aspectos da consciência feminina americana no contexto da década de 1940. A. Butler (2002) destaca que o termo Women's cinema, ou em sua tradução, o cinema feminino

[...] é uma construção crítica, teórica e institucional complexa, incorporada ao público, cineastas, jornalistas, curadores e acadêmicos e mantida apenas por seu interesse contínuo: um conceito híbrido, resultante de inúmeras práticas e discursos sobrepostos e sujeitos a uma variedade desconcertante de definições. (BUTLER, A., 2002, p.2).

A cineasta París (2013) ao destacar a frequente crítica ao trabalho de cineastas espanholas também critica o uso de considerar os filmes feitos por mulheres como um gênero em si mesmo “cinema de mulheres ou cinema feminino”. Tal consideração traz implicações tais quais: a) Considerar como um cinema menor que precisa adjetivar para que tenha algum interesse; b) Julga-as como um coletivo, com o que se evita ter que considerar as cineastas como criadoras; c) Limita a audiência, ao dar a entender que os espectadores aos quais os filmes se dirigem são exclusivamente mulheres; d) Que as cineastas não sabem tratar os personagens masculinos; e por último e) Que são películas “ideológicas” marcadas por boas intenções, mas que não tem essa capacidade de transgressão e inovação na forma e nos conteúdos que têm os filmes deles. Zecchi (2013, p.16) apesar de criticar os usos dos termos, concorda que “é necessário marcar genericamente o cinema (tanto feminino como o cinema masculino): sexuá-lo e nomeá- lo”. Como afirma a autora

Enquanto as mulheres seguirem sem ser definidas a causa de uma língua sexista (reflexo de uma sociedade e de práticas sexistas) que usa a forma masculina de maneira universalizante; enquanto somos “homens” na história da humanidade (que é a ainda a história do homem); enquanto seguem fazendo festivais de cinema sem mulheres, seguem dando cursos de cinema sem mulheres, seguem escrevendo histórias do cinema sem mulheres; enquanto o cinema é, por defeito, masculino, é necessário marcar genericamente o cinema. (ZECCHI, 2013, p.16).

Com essa afirmação percebemos a importância e necessidade de nomear, seja qual for 39 o termo que escolhemos utilizarmos, porém com a definição de um termo que seja aceito de forma plena, pois como defende a própria Zecchi (2013, p.17) “a operação de nomear é necessária tanto para o feminismo como para o cinema, já que sem nomes corremos o risco de perder significados e deixar de existir”. Podemos dizer que o reconhecimento das cineastas passa pela busca de uma forma adequada de explicitar o que estamos nos referindo quando tratamos do cinema realizado por mulheres. A ambiguidade no entendimento do termo não só no campo acadêmico como na própria indústria, interfere diretamente na forma como é interpretada a produção e atuação das cineastas. Quando levantamos esse aspecto consideramos que essa diferenciação muitas vezes é feita simplesmente para diminuir, como se a realização de filmes por mulheres fosse menor, ou precisasse de uma etiqueta para ser aceita, quando o que ocorre é que esse movimento de reconhecimento e busca por uma demarcação pelas mulheres existe porque o número majoritário de homens na direção implica uma diferenciação na prática, como forma de sinalizar que existe uma produção realizada por mulheres, que muitos filmes são caracterizados por um olhar diferenciado, seja na temática ou na linguagem, mas sobretudo que o cinema, enquanto mídia e indústria, deve ser visto como o mesmo meio para ambos os sexos, e até acrescentamos mais, para todas as identidades de gênero.

1.1 As estatísticas sobre as cineastas no cinema brasileiro

Muito tem se questionado sobre as funções que a mulher tem ocupado na indústria do cinema, principalmente no que se refere ao quantitativo de mulheres atuantes e reconhecidas atrás e à frente das câmeras. É importante lembrar que as ações de desenvolvimento da indústria do cinema está diretamente relacionada ao incremento de políticas públicas de incentivo ao setor. No panorama corrente, os atores desta indústria vivenciam uma gama de ações de desmonte na área da cultura pelo governo federal na gestão do presidente Jair Bolsonaro iniciada no ano de 2019. Essas ações começaram com a extinção do Ministério da Cultura no ano de 2019 e a modificação de sua estrutura de gestão, que passou a ser uma Secretaria Especial de Cultura, vinculada primeiramente ao Ministério da Cidadania e depois ao Ministério do Turismo. Com essa mudança a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) e outros órgãos que atuam na área das artes, cultura e patrimônio, antes vinculados ao Ministério da Cultura passaram a ser vinculados à pasta do turismo, com assessoramento e a supervisão da Secretaria Especial de Cultura. Essa mudança, as críticas à produção nacional de cinema e a falta de ações efetivas 40 pela secretaria configuram o momento de crise pelo qual passa o segmento do cinema e audiovisual no Brasil. A crise no setor tende a ficar ainda mais complicada em decorrência dos impactos do isolamento social causados pela COVID-19, que afetou diretamente a cadeia do Cinema e Audiovisual. Um dado importante de ser lembrado aqui também é que de acordo com dados do informe da Agência Nacional do Cinema7, o Produto Interno Bruto (PIB) da indústria do cinema brasileiro em 2019 atingiu 7,3 trilhões, um número que representa o potencial e importância do setor para a economia do país. Considerando esse contexto de crise no cinema brasileiro, percebemos nos realizadores uma busca para resistir e realizar seus projetos. Pensando em termos de realização de filmes por mulheres precisamos nos voltar para as estatísticas sobre a participação delas nessa indústria, que apesar das dificuldades têm apresentado uma pequena variação positiva, ainda que denunciem claramente uma enorme disparidade quando comparadas às estatísticas sobre as obras dirigidas ou roteirizadas por homens. Apesar de contar com uma vasta lista de realizadoras, roteiristas, produtoras, atrizes, diretoras de arte, e outras tantas funções, se observarmos os dados sobre o mercado audiovisual e o perfil desse mercado nos últimos dez anos constatamos que a evolução da atuação das mulheres no cinema brasileiro está longe do ideal. Os resultados do estudo sobre o perfil do cinema brasileiro, realizado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas (GEMAA)8, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) mostram que nas últimas duas décadas (1995-2014), o cinema nacional foi majoritariamente realizado por homens brancos. As mulheres negras, por sua vez, sequer estão presentes nas posições de roteiro e direção e são o grupo mais sub-representado nos elencos. O estudo foi feito a partir dos dados disponibilizados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA-ANCINE), com a análise de elencos, roteiristas e diretores/as dos 10 filmes de maior público de cada ano, totalizando um corpus de 219 tramas. Os dados deste estudo mostram uma realidade a ser combatida nesta indústria e podem auxiliar em relação à conscientização sobre a importância de se reconhecer o papel das mulheres na produção cinematográfica. Nesse processo fazemos alguns questionamentos com o objetivo de buscar entender o que contribui para essa realidade: Quais são as principais barreiras que as

7 AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA. Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual. Mercado Audiovisual Brasileiro. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2021. 8 CANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto; FERES JÚNIOR, João (org.). “A Cara do Cinema Nacional”: gênero e raça nos filmes nacionais de maior público (1995-2014). [S.l.]: GEMAA, 2016. p. 1-20. (Textos para discussão, n.13). Disponível em: http://gemaa.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2018/03/TpD13.pdf. Acesso em: 10 jan. 2017. 41 mulheres que atuam no cinema enfrentam? Há avanços nessa busca por equidade? e ainda: O que fazer para mudar essa realidade? Essas são perguntas-chave que devem ser feitas para contribuir para a reflexão sobre os desafios e a resistência do cinema realizado por mulheres. Dentro de uma perspectiva que busca entender a evolução da equidade de gênero na indústria do cinema brasileiro partimos de dados estatísticos oficiais e de pesquisas com base em informações coletadas sobre a produção cinematográfica contemporânea no Brasil. Os dados oficiais da Ancine revelam uma realidade marcada por desigualdades. O estudo Diversidade de Gênero e Raça nos Longas-metragens Brasileiros Lançados em Salas de Exibição 2016, publicado em 2018, ressalta a necessidade de "avaliar o cenário de desigualdades na indústria cinematográfica, fundamentar políticas que busquem equilibrar essas assimetrias e acompanhar a evolução dessas ações" (AGÊNCIA NACIONAL DE CINEMA, 2018). O levantamento destaca que os filmes de longa-metragem lançados em 2016 foram dirigidos, em sua grande maioria, por pessoas brancas, alcançando 97,2% do total. As mulheres comandaram 19,7% dos filmes e os homens negros apenas 2,1%.

Gráfico 2: Direção por gênero - Ano 2016

80 75,4 60 40 19,7 20 0 2,1 0 Mulheres Homens Mulheres Homens negras negros brancas brancos

Fonte: Elaboração da autora com dados da Ancine. Estudo Diversidade de Gênero e Raça nos Longas- metragens Brasileiros Lançados em Salas de Exibição 2016, publicado em 2018.

Um dado que denuncia a desigualdade de raça mostra que não houve nenhuma mulher negra ocupando a direção no ano de 2016. Apesar de não ser o foco desta pesquisa a desigualdade de raça, percebemos neste dado um alerta sobre como o espaço da produção de cinema ainda continua majoritariamente formado por homens brancos. No quesito cor/raça, pessoas brancas estiveram no comando de 97,9% das obras de ficção e de 95,5% das obras do tipo documentário. Apesar da notável disparidade de gênero já diagnosticada por estudos anteriores, os números verificados na pesquisa revelam uma carência muito acentuada quando se trata de pessoas negras na direção dos filmes. Na análise de gênero por tipo de obra, verificou-se que as mulheres têm presença maior no comando dos documentários. Elas assinaram 29,5% destes filmes, enquanto nas obras de 42 ficção, representam apenas 15,5% do total. Só houve uma obra do tipo animação entre os 142 lançamentos e esta foi dirigida por um homem. Em 2019, a continuação dos dados foi divulgada no estudo intitulado “Participação Feminina na Produção Audiovisual Brasileira 2018” e reuniu informações dos anos de 2017 e 2018. No geral, o levantamento mostra que a participação feminina na direção, no roteiro e na direção de fotografia apresentou um aumento de dois pontos percentuais em 2018 em relação ao ano de 2017. Neste panorama percebemos um pequeno aumento na quantidade de mulheres na direção de filmes, em 2018 foram 2.636 títulos, deste total, 20% foram dirigidos por mulheres. No comparativo com 2017 quando 18%, dos 2.749 títulos, tiveram mulheres à frente da direção, observamos um aumento de 2 pontos percentuais, como pode ser verificado nos Gráficos 3 e 4.

Gráfico 3: Percentual de Gênero por Funções - Ano 2017

38% 57% 5% Direção de Arte 86% 10%4% Direção de Fotografia 45% 40% 15% Produção Executiva 63% 23% 14% Roteiro 74% 18% 8% Direção

10% 100%

Masculino Feminino Misto

Fonte: Elaboração da autora com dados da Ancine. Participação Feminina na Produção Audiovisual Brasileira 2018, divulgado em 20199.

Gráfico 4: Percentual de Gênero por Funções - Ano 2018

37% 57% 6% Direção de Arte 83% 12%5% Direção de Fotografia 41% 42% 17% Produção Executiva 60% 25% 15% Roteiro 72% 20% 8% Direção

10% 100%

Masculino Feminino Misto

Fonte: Elaboração da autora com dados da Ancine. Participação Feminina na Produção Audiovisual Brasileira 2018, divulgado em 201910.

9 Publicado no Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – OCA em 13/06/2019. Disponível em: . Acesso em: 17 jan. 2020. 10 Idem. 43

Convém lembrar que os dados que constituem o Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro, bem como os referidos estudos específicos, não contemplam o universo completo da produção brasileira de cinema, pois consideram apenas os dados oficiais da própria agência no que concerne às produções cadastradas através do Certificado de Produto Brasileiro (CPB). O CPB é o resultado do registro de obra audiovisual não publicitária brasileira na Ancine, e é obrigatório para toda obra audiovisual (com exceção das obras publicitárias brasileiras) que vise à exportação ou comunicação pública. Desta forma, o estudo deixa de fora as produções independentes que não fazem parte deste cadastro e integram uma pequena parte da exibição, como, por exemplo, as obras experimentais e obras que não são financiadas via edital. Assim, os números podem ser maiores em relação à produção em geral, principalmente se levarmos em consideração os documentários, que ocupam uma restrita parcela do circuito de exibição comercial. Analisando os dados de outras funções, percebemos um aumento percentual na produção executiva, que aumentou de 40%, em 2017, para 41% em 2018. Já no que diz respeito à direção de arte e apenas nesta função, a presença feminina permaneceu no percentual de 57%, nos anos de 2017 e 2018, ultrapassando a presença masculina nesta função que correspondeu a 37%, em 2018, e 38% em 2017. Observar os dados desses levantamentos por si só representa um dos elementos da busca pela equidade de gênero no cinema. Consideramos importante que a Agência que regulamenta a indústria do cinema, ou pelo menos a parte comercial, já que não considera o cinema independente em seus dados, começa a ter entre seus estudos uma preocupação com as questões de gênero. Porém, de fato o que contribui para uma evolução na presença e atuação de mulheres no cinema são as políticas de incentivo e a maior presença de mulheres nos lugares de decisão, nos comitês, nas comissões de avaliações, nos júris, ou seja, se houver um levantamento de quantas mulheres estão nos espaços de decisão os números serão idênticos aos apresentados nestes anuários. Essa é também uma questão que tem sido denunciada pelas mulheres nas cinematografias de outros países. Em entrevista realizada com a cineasta María Novaro, do México, essa foi uma das causas que ela apontou como dificuldade para uma maior presença das mulheres à frente das funções de direção no cinema.

Falta que estejamos em lugares de decisão. Nos lugares em que se aprovam financiamentos também. Porque às vezes eu estou onde os homens estão, tomando decisões para os projetos que vamos apoiar e sinto que faz falta ouvir mais vozes de mulheres porque vemos outros aspectos que eles não estão vendo. E acredito que precisamos estar nos lugares de decisões. Eu agora, um pouco pela idade, tenho um certo prestígio no México, então eles me convidam, em alguns espaços é muito bom, 44

mas creio que sou a única. Acredito que uma coisa que está acontecendo no México, é que as mulheres também estão chegando e ocupando os espaços de cargos técnicos, há fotógrafas magníficas muitas, mas há muito mais diretoras que técnicas de som e acredito que são coisas que também vão nos fortalecer estar em todos os espaços. (NOVARO, 2017).

A evolução da presença das mulheres no cinema tem relação direta com esse questionamento. No cinema mundial as mulheres levantam suas vozes para denunciar a falta de paridade nas funções desempenhadas na indústria, não somente em relação à quantidade de mulheres à frente da direção de filmes, mas também sobre as grandes diferenças de valores dos cachês pagos para atores e atrizes, fato denunciado, principalmente, no cinema de Hollywood. A partir do momento em que as mulheres começam a perceber que devem ocupar esses espaços, escrever mais projetos audiovisuais e principalmente denunciar as disparidades, aumenta o movimento de busca para conhecer o que se produz, e do outro lado, pode-se incentivar o aumento de políticas de financiamento voltadas para as mulheres, resultando em mais oportunidades.

1.2 Cinema brasileiro e feminismo

A questão da representação da mulher é central para o feminismo desde os primórdios do movimento, seja em relação à representação na política, na luta pelo direito ao voto, ou quando se discute sobre qual formato de representação é ideal. No cinema, o movimento não é diferente, as discussões em torno da representação das imagens da mulher é alvo de muitas investigações. Nos estudos sobre a representação da mulher no cinema que partem de uma perspectiva crítica de gênero, as análises apresentam frequentemente um caráter de busca por uma hermenêutica do feminino em cena, discutindo sobre quais espaços a mulher ocupa na narrativa, no roteiro ou quais estereótipos são recorrentes nessas representações. Esses olhares contribuem para a reflexão sobre os papéis recorrentes que as mulheres desempenham na indústria cinematográfica. Sobretudo o cinema clássico é marcado pela exploração da imagem da mulher do ponto de vista machista, e esta constatação faz parte de muitos estudos da teoria feminista do cinema. Entendemos que este é um paradigma que ainda coexiste em determinados gêneros, mas que tem sido questionado pelas próprias profissionais do cinema. Cada vez mais, temos registros de protestos contra essas representações e as desigualdades do mercado. Um exemplo é o da atriz Patricia Arquette, ganhadora do prêmio de melhor atriz coadjuvante do Oscar 2015, que usou 45 o discurso de agradecimento para pedir igualdade de gênero. “Essa é a hora de ter salários e direitos igualitários para todas as mulheres dos Estados Unidos”11. Nesta investigação nosso interesse segue outra perspectiva. Procuramos analisar aqui produções que vão na contramão destas representações. Nos debruçamos sobre a teoria do feminismo e suas vinculações com o cinema, mais especificamente sobre o cinema brasileiro contemporâneo. Nas muitas definições do movimento feminista lembramos as palavras de Gargallo (2006, tradução nossa), para quem o feminismo “é uma corrente política da modernidade que tem cruzado a história contemporânea desde a Revolução Francesa até os nossos dias, e ainda têm antecedentes que podem ser rastreados nos escritos da Idade Média e no Renascimento”12. Com sua característica de ser plural (STAM, 2003), a teoria feminista é marcada por ondas de ativismo, a primeira com a luta pelo sufrágio universal, a segunda com os movimentos políticos liberacionistas, a partir dos anos 1960. Outros teóricos reconhecem uma terceira onda, que representa o movimento na contemporaneidade, é o caso de Perrot (2008, p.158), que destaca a sucessão de ondas pelas quais o feminismo age, primeiro com a luta pela igualdade dos sexos, no século XIX, depois com a luta pela liberação das mulheres, mais especificamente após 1970, quando “as mulheres redescobrem seu corpo, seu sexo, o prazer, a amizade e o amor entre as mulheres, a fraternidade, a homossexualidade”. Nesta segunda onda, as reivindicações eram pautadas por direitos diversos, como o direito ao saber, não somente à educação, mas à instrução; o direito ao trabalho, a obtenção dos direitos civis e os direitos políticos. Como se percebe, inúmeras batalhas foram travadas contra o Estado e às convenções sociais, que viam no projeto feminista uma ameaça à ordem e à moral. Para completar, em uma terceira onda, o feminismo contemporâneo luta pela reivindicação e conquista dos direitos do corpo. A teoria feminista do cinema se guia pelas primeiras expressões de teóricas que criticavam a atuação do patriarcado sobre as mulheres, retirando suas liberdades e moldando suas formas de agir e se portar na sociedade. De acordo com Stam (2003) textos “protofeministas” como A room of one´s own, de Virgínia Wolf, e O segundo sexo, de Simone de Beauvoir” foram tomados como base para a formulação do feminismo cinematográfico. Além destas autoras mais conhecidas, outras teóricas foram responsáveis pela disseminação das bases do pensamento feminista no século XX, deixando sua marca como questionadoras do

11 Disponível em: Acesso em: 14 abr. 2020. 12 Texto original: “El feminismo es una corriente política de la modernidad que ha cruzado la historia contemporánea desde la Revolución Francesa hasta nuestros días, aunque tiene antecedentes que pueden rastrearse en los escritos de la Edad Media y el Renacimiento”. 46 comportamento e políticas vigentes sobre a mulher. Nomes como Friedan (1963), com o seu The feminine mystique, Chodorow (1978), Lorde (1984), Millet (1970) e Irigaray (1993, 2017) são algumas das importantes referências que podemos destacar nessas primeiras discussões. Stam (2003) situa as primeiras manifestações da onda feminista nos estudos de cinema no surgimento dos festivais de cinema de mulheres, em 1972, em Nova York e Edimburgo. Nessas discussões feministas sobre a representação cinematográfica, a Teoria Feminista do Cinema busca denunciar e conscientizar sobre a utilização da imagem da mulher como sumariamente negativa, em que os papéis representados pelas mulheres eram em sua maioria carregados de estereótipos e também sexualizados de forma exagerada, ou por outro lado, castradores. O movimento feminista busca visibilidade e reconhecimento desde o começo de suas ações, com os movimentos de mulheres em diferentes eixos, político e cidadão, e no contexto da contemporaneidade busca mais espaço no cinema. Atribuímos esse fato a uma nova configuração do papel da mulher, muito embora neste contexto atual a participação das mulheres na sociedade, na ocupação de cargos públicos na política, no mercado de trabalho, na indústria do entretenimento entre outros espaços, é ainda considerada desigual se comparada a dos homens. É importante lembrarmos a conjuntura em que o feminismo teve forte desenvolvimento, durante a tumultuada década de 1960, na qual foram provocados muitos desafios à organização social do mundo pós-guerra e às ideias que a sustentavam. Nas palavras de Gargallo (2006) “o movimento feminista ressurgiu com um novo impulso definindo-se como um movimento de liberação das mulheres, hasteando a bandeira de luta pelo direito de as mulheres serem elas mesmas”. Mesmo com o grande avanço da emancipação feminina, nos anos de 1960, as mulheres do cinema ainda ficavam restritas a representações baseadas em estereótipos, escondendo-se atrás de um romantismo exagerado e sem nenhuma indicação sobre o modo real de vida delas.

Simplesmente ignorava-se o feminismo no cinema. Quando se permitia a uma mulher atuar num papel central, como em Looking for Mr. Goodbar (1977), sua ideologia era truncada, já que toda a mulher que ousasse se emancipar, no final acabava mal. As atrizes e suas personagens, sempre trabalhando com arquétipos de vamps ou mães, sempre são vítimas de si mesmas ou de contingências externas. (GUBERNIKOFF, 2016, p.69).

Veiga (2017), em sua investigação sobre o “Cinema de Mulheres” no cinema brasileiro dos anos 1970 e 1980, aponta que é a partir dos anos 1970 que algumas cineastas como Tereza Trautman e Ana Carolina Teixeira Soares, atuantes mesmo sob a ditadura militar no Brasil, 47 passam a colocar em evidência as mulheres na tentativa de questionar os padrões vigentes na sociedade, que enalteciam a fragilidade e submissão da mulher. Segundo a autora,

Foi principalmente nessa década que o cinema foi apropriado com vigor por um discurso crítico que denunciava a situação desprivilegiada das mulheres nos filmes e na sociedade, encontrando eco em diversas partes do mundo, tanto na teoria quanto na prática fílmica. A influência do debate feminista esteve presente nesse corpus de pesquisa ao mesmo tempo em que a repressão militar buscava estabelecer normas de conduta para as mulheres na sociedade brasileira. (VEIGA, 2017, p.77).

Um dos exemplos que Veiga estuda na obra de Tereza Trautman é o filme Os homens que eu tive (1973), realizado durante a ditadura militar. Trautman incluiu em seus filmes temas como a liberdade e sexualidade da mulher. Feito em 1973, o filme de Trautman discorre sobre as escolhas sexuais de Pity, uma mulher bem resolvida, e o amor que a personagem tinha por dois homens. No filme, que inclui cenas de nudez, a protagonista tem relações amorosas com dois homens por escolha própria. A cineasta teve sua atuação profissional e pessoal interferida pela censura, fazendo com que o filme saísse de exibição após seu primeiro mês de estreia. A justificativa para a censura era de que o filme desrespeitava a mulher brasileira de família, enaltecendo um modelo de mulher considerada transgressora e de mal exemplo. Outra cineasta estudada por Veiga é Ana Carolina Teixeira Soares, que dirigiu Das Tripas Coração (1982). A pesquisadora destaca que eram necessárias estratégias para que o filme fosse exibido burlando a censura de forma que a mensagem estética fosse enaltecida. Ana Carolina contou com um elenco que seguia a carreira artística na televisão, como acontece hoje com a , que aposta no elenco de seu star system, e foi mais além apostando também em uma estratégia narrativa

Para garantir a exibição do filme fez de sua estratégia algo singelo, talvez até para os censores: alocou a diegese em um sonho, pleno de excesso e alegorias. Como resultado vemos um filme vibrante, um diálogo intenso com a psicanálise, na exploração do onírico - marca de sua trilogia em torno do tema “condição feminina”. (VEIGA, 2017, p. 80).

Esses exemplos mostram que apesar de pouco expressiva em relação a dados numéricos, há uma resistência de diretoras em diferentes períodos e ciclos de produção do cinema brasileiro, com abordagem de temáticas que enfatizam o empoderamento feminino ou na representação das mulheres sob uma ótica que dista do padrão geralmente visto no cinema comercial. Podemos lembrar aqui também o pioneirismo de Carla Camurati ao dirigir o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), a obra é considerada um marco na retomada do 48 cinema brasileiro (mesmo que não apresente características de um filme feminista em sua narrativa, o pioneirismo da cineasta exemplifica o aspecto da resistência). “Produção artesanal, Carlota foi rodado com poucos recursos e distribuído pela própria diretora, a atriz Carla Camurati, que fazia sua estreia na direção de longas-metragens, já com experiência em curtas” (ORICCHIO, 2008, p.141). No cinema contemporâneo mundial alguns exemplos podem ilustrar o quadro que se forma a partir dos anos 1990, tanto do cinema independente como do comercial, com filmes que imprimem traços feministas à representação e imagens femininas contestadoras, como Thelma & Louise (1991), de Ridley Scott, Tomates Verdes Fritos (1991), de John Avnet (Fried Green Tomatoes), Conduzindo Miss Daisy (1989), de Bruce Beresford (Driving Miss Daisy), The Governess (1998), de Sandra Goldbacher, Orlando, a Mulher Imortal (1992) e The Tango Lesson (1997), ambos de Sally Potter. No campo de estudo do feminismo no cinema muitas pesquisas têm sido empreendidas e ainda revelam uma necessidade de maiores reflexões sobre as recentes produções, os desafios e até sobre um novo olhar e forma de produção que não tenha somente como base as cinematografias clássicas e contemporâneas, mas que proponha um novo paradigma. Com relação ao olhar contemporâneo sobre a atuação das mulheres no cinema, principalmente atrás das câmeras, Gubernikoff destaca a intenção de uma produção cinematográfica marcada pela direção feminina.

A atuação de mulheres no cinema não chega a construir uma nova linguagem, mas desperta a atenção para novas ideologias inerentes à imagem. O que se propõe é um cinema de vanguarda, mas que não rompa com o processo de identificação que o cinema tradicional oferece. E, através de um produto artístico, dar oportunidade à manifestação de certas qualidades e inquietações femininas, até então despercebidas pela sociedade. (GUBERNIKOFF, 2016, p.36).

Seguindo uma necessidade emancipatória das mulheres, o movimento feminista na América Latina desenvolveu sua luta pela afirmação da diferença das mulheres em relação aos homens, buscando inicialmente os direitos ao voto. A trajetória do feminismo em países como Brasil, México, Venezuela, Chile, Equador e Colômbia também foi marcada por diversas reivindicações das mulheres a favor dos direitos civis e políticos da mulher. Os anos 1970 foram determinantes para a afirmação da mulher como cidadã, batendo de frente com o patriarcalismo e a superioridade masculina, apesar do movimento feminista mexicano ter suas primeiras marcas com a organização de mulheres desde o final do século XIX. No México, os dois primeiros congressos feministas foram realizados em janeiro e novembro de 1916, em Mérida, 49

Yucatán, através de demandas liberalistas de igualdade para todos os seres humanos (GARGALLO, 2006, p.13). Em seu livro Breve História do Feminismo no Brasil, Telles (1993) faz um histórico detalhado sobre as etapas em cada fase da história do Brasil e mostra como o movimento avançou em determinados períodos e recuou em outros, como foi o caso dos períodos de ditaduras, quando o movimento feminino perdeu muita força. Desde a década de 1960, o movimento lutou por questões em que havia necessidade de mudança e atualmente a luta permanece por questões como a proteção à mulher contra a violência doméstica, o acesso à saúde preventiva, a equiparação salarial, entre tantos outros problemas que a mulher enfrenta. Lau (2002) aponta uma variedade de grupos e coletivos de mulheres do movimento feminista mexicano, que atuavam em diferentes meios. Na área do cinema, entre o final dos anos 1970 até 1984, foi fundado por grupo de mulheres cineastas intimamente ligado ao feminismo, o Colectivo Cine Mujer, que levou para a tela questões como o trabalho doméstico, o estupro, o aborto e prostituição. No Brasil da década de 1960, cineclubes, revistas especializadas, festivais de amadores e os primeiros cursos de cinema na UFF, UnB e USP estimularam a produção de curtas metragens e possibilitaram a estreia de algumas diretoras. A década de 1970 é onde se registram mais filmes dirigidos por mulheres, provavelmente em consequência da decisão da ONU de promover a Conferência do Ano Internacional da Mulher, realizada no México em 1975. Remetendo aos argumentos de Foster (2006) sobre a configuração e princípios fundamentais de um projeto feminista no cinema, devemos perceber o filme como uma produção cultural que coloca em primeiro plano a história ou histórias de vida de mulheres. Outro aspecto é que para ser feminista, a história não precisa ser, necessariamente, contada por uma mulher. Mas para serem consideradas como produções feministas, é preciso que haja mulheres envolvidas em todos os níveis, no projeto de produção, na direção, no roteiro e, acima de tudo, no elenco, inclusive pode haver homens envolvidos, até mesmo desempenhando papéis importantes, mas a equipe de produção tem que ser, prioritariamente, de mulheres.

O cinema feminista, como todo cinema subalterno – assim como toda produção subalterna – tem que romper com as convenções narrativas do discurso masculinista. Contar as histórias de outra maneira, resistir abertamente às expectativas da novela comercial, procurar o “outro lado” do tecido narrativo, fazer tropos pouco imagináveis das fórmulas milenares, não contar o que se espera contar e contar o que se espera não contar, escandalizar, perturbar, incomodar, descentralizar e inverter esquemas, são todos recursos na dinâmica discursiva de um ponto de vista feminista. Isso e muito mais. (FOSTER, 2006, p.3). 50

Em sua análise sobre a representação da mulher no cinema, Foster remete às obras das diretoras María Novaro e María Luisa Bemberg para indicar a independência traçada na postura da mulher feminista do cinema ou da mulher do cinema feminista.

A presença da mulher no cinema latino-americano corresponde a uma mulher que não é de ninguém, que tem superado, de diferentes graus e formas, a dependência numa indústria que tem sido, também em sua curta história, inapelavelmente masculina e masculinista. (FOSTER, 2006, p.2).

Outra forma de verificar a atuação de mulheres no cinema é o chamado teste de Bechdel13. O teste surgiu há 30 anos, em uma tira da cartunista Alison Bechdel, para ironizar como Hollywood sub-representa as mulheres. Inspirada nas ideias de Virgina Woolf, Bechdel (1985) escreveu a tira chamada “A regra”, retratada na Figura 1, na história em quadrinhos Dykes to Watch Out For. Na tira uma personagem feminina sem nome diz só assistir a um filme se ele cumprir os seguintes requisitos: (1) ter pelo menos duas mulheres; (2) elas devem conversar uma com a outra; e (3) sobre alguma coisa que não seja um homem.

Figura 1 - Tira “A Regra”

Fonte: Revista Moviement (2016).

O Teste de Bechdel também conhecido como a Regra de Bechdel ou a Lei de Bechdel, foi adotado por muitos países e organizações, e até teve algumas alterações em suas regras, como por exemplo a condição de que a conversa entre as mulheres tenha pelo menos 60 segundos e que as duas tenham nomes. Muitos blockbusters são reprovados no teste, que representa uma forma de combater a exclusão das mulheres na cena cinematográfica.

13 SARKEESIAN, Anita. The Bechdel Test for Women in Movies. Feminist Frequency. [S.l.], 07 dez. 2009. Disponível em: https://feministfrequency.com/video/the-bechdel-test-for-women-in-movies/. Acesso em: 13 jun. 2020.

51

A produção de diretoras no cinema brasileiro mesmo ainda pouco expressiva, tem alcançado frutos e repercussão internacional. Destacamos nesse cenário cineastas jovens e também mais experientes como, por exemplo, Anna Muylaert, Tatá Amaral, Laís Bodanzky, Lúcia Murat. No próximo capítulo traçamos um panorama com nomes importantes de cineastas que contribuem para o desenvolvimento da indústria cinematográfica no país. Encontramos nas obras destas cineastas uma abordagem em sintonia com as discussões atuais, seja sobre as questões sociais, seja sobre os conflitos que envolvem o universo da mulher, seu cotidiano, seus desafios, e também a partir de olhares de mulheres, que estará ou não declaradamente comprometido politicamente com diretrizes do movimento feminista, embora possa gerar engajamento, ou interesse, com as causas defendidas pelo movimento indiretamente. Como lembra Gubernikoff (2016) essas diretoras buscam uma produção comprometida com a imagem da mulher ao dar visibilidade às temáticas pouco discutidas pela opinião pública.

O cinema de mulheres deve liberar visualmente a imagem da mulher e propor temas muitas vezes combatidos pela opinião pública, como a questão do aborto, da violência contra a mulher, dos conflitos e tensões sociais expressos através da família ou do trabalho e dos desencontros amorosos – temas esses não facilmente justificáveis em uma sociedade onde predomina a hipocrisia. (GUBERNIKOFF, 2016, p. 36).

Além disso, a linguagem que se propõe no cinema produzido por mulheres é uma característica que demonstra uma marcação de estilo e identidade. Como defende Milán (1999) há uma tendência que reconhece nos filmes feitos por mulheres uma variedade de estilos que se formam, sem propor uma ruptura completa com os procedimentos do cinema clássico e que se concentra no momento da recepção e na capacidade do público para interpretar o texto de diferentes formas, consideradas substanciais no desenvolvimento de estratégias de filmes feministas14. Importante lembrar a constatação da cineasta Glenda Nicácio (2021) sobre o fato de que um filme quando é desenvolvido por uma mulher ou representado por uma personagem mulher ele tem nuances e características que são próprias e não podem ser ignoradas ou simplesmente adaptadas:

Não basta ter uma diretora mulher, se você tem uma equipe majoritariamente masculina, enfim, acho que são várias engrenagens, não é mudar essa chavinha assim,

14 Texto original: “Otra tendencia reconoce dentro del cine hecho por mujeres una diversidad de estilos y acentos que van conformando, sin proponerse una ruptura total con los procedimientos del cine clásico, la realización de un cine que hace funcionar de manera distinta la representación. Esta tendencia se enfoca en el momento de la recepción y la capacidad de la audiencia para dar diversas lecturas del texto, considerado como algo sustancial en la elaboración de las estrategias cinematográficas feministas”. 52

não é só mudar o personagem, ah era um homem e virou uma mulher, acho interessante a gente pensar naquele filme No coração do mundo, da filmes de plástico, que tem a Grace Passô, e a autoria é dos meninos, mas eles falam que quando eles escreveram o roteiro a personagem era um homem e por algum motivo eles tiveram que mudar, acharam melhor alterar e transformaram a personagem numa mulher, e aí eles falaram que quando houve essa alteração, eu já ouvi eles falando essa história, e o interessante é que com essa alteração um tanto da história teve que ser alterada porque não era só mudar o nome da personagem e mudar o artigo, né? (NICÁCIO, 2021).

No cinema brasileiro poucas cineastas têm sido reconhecidas atualmente pelo seu estilo e narrativas dentro de uma perspectiva feminista, não somente pelo fato de estar à frente de uma produção ou centralizar a temática em questões tratadas pelo movimento de mulheres. No próximo capítulo elencamos as dificuldades da realização cinematográfica no Brasil, no contexto contemporâneo, em relação às políticas públicas de incentivo, com enfoque na realização pelas mulheres. 53

CAPÍTULO 2 MULHERES EM BUSCA DE UM LUGAR NA INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA

Para desenvolver esta pesquisa fomos provocadas pelo questionamento quantitativo de quantas mulheres participaram do processo de organização e desenvolvimento de políticas de fomento para o cinema brasileiro, e qualitativamente falando, de que forma contribuíram para esse processo, porém não foi sem surpresa que percebemos uma grande lacuna neste sentido, ao consultar a bibliografia disponível sobre este processo foram poucos os registros sobre a participação de mulheres nos espaços de decisão político-administrativa, como por exemplo, no que concerne aos primeiros passos do desenvolvimento da intervenção estatal de apoio ao desenvolvimento do cinema como indústria. Nos cabe indagar e refletir sobre onde estavam as mulheres e que funções ocupavam durante este desenvolvimento? E ainda: por que o destaque e a quantidade de registros dessa produção é sobressaltada pelas figuras masculinas? Entendemos que as políticas públicas de fomento para o cinema e audiovisual nacional continuam em busca de um efetivo desenvolvimento, principalmente pelo fato de haver ainda muitos grupos interessados em continuar com o espaço privilegiado, como por exemplo, as grandes produtoras e distribuidoras majors15, e por outro lado, não haver interesse suficiente dos representantes políticos de regulamentar e incentivar uma maior diversidade de produção no setor. Neste tópico nos valemos das contribuições de autores como Simis (2008); Ortiz e Autran (2018); Amancio (2018); Gatti (2008); Bahia (2012) e Johnson (2008) sobre a estruturação da economia e política do setor cinematográfico. Para falar sobre como os esforços de organização das políticas de fomento começaram precisamos retornar aos anos 1950, quando da criação de órgãos importantes para o início de medidas que viriam a impulsionar a produção de cinema nas décadas seguintes: a Comissão Federal de Cinema, em 1956, o Grupo de Estudos da Indústria Cinematográfica (Geic), criado em 1958 e o Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (Geicine), em 1961, (ORTIZ; AUTRAN, 2018). Estes órgãos foram de suma importância, pois iniciaram o movimento de reconhecimento pelo Estado da necessidade de medidas contundentes em relação ao incentivo estatal à produção e distribuição, que era reivindicado nos congressos de cinema, realizados na década de 1950, com o intuito de entender a problemática do cinema como indústria. No começo não houve muita efetividade nas medidas, como lembram Ortiz e Autran (2018)

15 Na cadeia produtiva do cinema, as majors são companhias de distribuição internacional, que englobam a maior parte dos produtos audiovisuais, como por exemplo: Columbia Pictures, Warner, Fox, Paramount, Universal, Disney. Estas empresas controlam o mercado de distribuição de conteúdo audiovisual no mundo, marcando presença nos diversos países, como no Brasil, mantendo sua hegemonia no mercado. 54

Os primeiros resultados não são muito significativos, mas duas medidas devem ser assinaladas: a que faz avançar a obrigatoriedade de exibição do filme brasileiro, que passa do frágil mecanismo de um produto nacional para oito estrangeiros a um sistema de número fixo de dias por ano, primeiramente determinado como 42 pelo Geic e depois 56 pelo Geicine; a segunda, mais importante, era uma inclusão do cinema na Lei de Remessa de Lucros, de 1962. Essa medida, modificada posteriormente, constituiu grande parte da receita da Embrafilme, tendo sua fonte no imposto de renda da exibição de filmes estrangeiros. (ORTIZ; AUTRAN, 2018, p. 211)

Ainda segundo Ortiz e Autran (2018, p. 211), o surgimento do Instituto Nacional de Cinema (INC) foi o que representou um passo determinante rumo à estruturação da economia cinematográfica no país. “O surgimento em novembro de 1966, do INC, concretizava aspiração antiga dos meios cinematográficos, presente nas discussões desde o início da década de 1950”. Como podemos notar a presença do estado na determinação de medidas demonstra o quanto o setor necessitava de uma intervenção mais efetiva do Estado, como leis e órgãos governamentais que angariaram as bases para uma política de incentivo cultural com enfoque no cinema. Bahia (2012) reforça essa questão ao destacar a importância da criação de várias instituições na área cultural como forma de desenvolver uma gestão cultural desenvolvimentista

O Estado reconheceu que a cultura e a comunicação envolviam relações de poder. Assim, percebeu também a importância de atuar junto às esferas culturais e comunicacionais. Pela primeira vez, estabeleceu uma política cultural nacional. O surgimento da Embrafilme (1969), assim como o do Ministério de Telecomunicações (1967), da Telebras (1972), da Funarte (1975) e da Radiobras (1976), inseriu-se nesse contexto de criação de instituições culturais para a gestão de uma política para a cultura que estava em consonância com o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. (BAHIA, 2012, p. 48).

Vale destacar que esse período é marcado pelas agitações políticas em meio à repressão da ditadura militar que se iniciava e a orientação político-ideológica dos cargos de direção desses órgãos, primeiramente no INC e depois na Embrafilme, foi um dos aspectos que dificultou o desenvolvimento de medidas que fossem pensadas para o setor como um todo e não privilegiando grupos específicos. O Instituto Nacional de Cinema foi criado em 1966 por decreto executivo do Governo Castello Branco. Johnson (2008) destaca que três grandes programas de apoio foram administrados pelo instituto

Um programa de subsídios de renda adicional aos filmes nacionais exibidos; um programa de prêmios adicionais em dinheiro para filmes de qualidade, selecionados por um júri de críticos e profissionais da indústria cinematográfica; e um programa de financiamento de filmes no qual o INC administrava as co-produções de distribuidores estrangeiros e produtores locais, usando fundos retidos do imposto de renda do distribuidor. (JOHNSON, 2008, p. 105). 55

Porém o programa de coprodução terminou em 1969 culminando com a criação da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A), que tinha como objetivo principal promover a distribuição de filmes brasileiros nos mercados estrangeiros, mas atuou principalmente no incentivo à produção com a implementação de um programa de empréstimos a juros baixos que financiou diversos filmes. Com a ação da Embrafilme o que se viu foi um crescimento da presença estatal na produção cinematográfica, muito embora podemos avaliar que esse processo não foi tão rápido e sofreu muitas influências ideológicas. Gatti (2008) assinala que a trajetória da Embrafilme pode ser dividida por fases que revelam o perfil e influência das pessoas que estiveram à frente da direção geral ao longo da história da empresa. Ele destaca também o quanto ela estava sujeita às mudanças econômicas do país e aos interesses políticos

A Embrafilme estava sujeita às intempéries econômicas, o que aconteceria com qualquer outra empresa no mercado, e, também, às articulações e interesses políticos oriundos de setores da corporação do cinema nacional. Afinal, pelas dimensões que a empresa alcançaria, a mesma se tornou alvo da cobiça de vários grupos ou correntes de pensamento, fator que desestabilizava com frequência o desenrolar normal da sua atividade fim, marcando-a por uma trajetória irregular num mercado controlado por interesses alheios ao cinema local. (GATTI, 2008, p. 11).

Mesmo com a grande influência política que a Embrafilme sofreu, o órgão foi responsável pela guinada do cinema nacional a partir do incentivo estatal de produção e também à distribuição, o que fica evidente quando se analisa as estatísticas, como lembra Bahia (2012)

As estatísticas da Embrafilme são bastante reveladoras no que diz respeito à política de produção: entre os anos de 1978 e 1984, o cinema brasileiro teve participação de cerca de 30% do total de mercado. Esse resultado foi fruto de uma política centralizadora que combinava formas de financiamento variadas para a produção e a aproximação com o circuito exibidor, através da política de distribuição. (BAHIA, 2012, p. 51).

Os recursos da empresa eram advindos da própria economia do cinema: remessa de lucros das distribuidoras estrangeiras instaladas no país, percentual sobre a venda do ingresso padronizado e sobre cópias de filmes, taxa paga para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional. Mas podemos dizer que o principal legado da Embrafilme está na valorização da qualidade do cinema nacional, e a postura dos cineastas que tinham que lidar com o dilema cultura x mercado, resultou em obras que “combinavam o cultural e o comercial” como ressalta Johnson (2008, p. 111) ao destacar obras de diretores como Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Arnaldo Jabor, Leon Hirszman, Geraldo Sarno, Tizuka Yamasaki e Hector Babenco. 56

No levantamento de filmes realizado por Bilharinho (1997) em publicação sobre os 100 anos do cinema brasileiro, o autor detalha uma lista de filmes em que predomina os nomes de cineastas homens e em praticamente nenhum momento da obra é destacado o fato de em 100 anos de cinema não haver uma produção quantitativa notável de mulheres no cinema brasileiro. Se levarmos em conta o período do levantamento feito por Bilharinho, em 1997, podemos perceber que é um período em que a produção do cinema brasileiro estava sendo retomada aos poucos após a extinção da Embrafilme que teria papel decisivo no fomento ao cinema dos anos 1960-1980. Mas o que questionamos é a ausência de realizadoras no período anterior e devemos perceber que uma das causas para essa pequena participação está na exclusão das mulheres na função de direção de cinema, pois o levantamento lista os nomes dos realizadores de cada década. Mostra a cada período como o cinema foi sendo realizado por uma maioria de homens brancos, da elite brasileira, que buscavam se capacitar para a função, e que tinham na mulher a figura da eterna assistente de direção, figurinista, ou da musa que poderia ocupar a função de estrela no filme. É importante destacarmos esse aspecto porque é justamente com esse tipo de publicação que temos uma espécie de confirmação do quanto as mulheres foram sendo silenciadas ao longo da história. As publicações e enumerações realizadas por pesquisadores que se dedicavam à função de críticos de cinema ou realizadores cinematográficos não questionavam (e podemos dizer que ainda não questionam) a ausência de mulheres na direção de cinema. Esse questionamento vai ser mais contundente com a crítica de mulheres a partir do momento em que elas começam a buscar seus espaços na cena cinematográfica. A Embrafilme teve seu auge nos anos 1970 e começo dos anos 1980, depois desse período a empresa entrou em crise financeira e foi acusada de ser um órgão inoperante que beneficiava poucos, sendo extremamente criticada e questionada a participação do Estado na área do cinema. “No contexto interno, a crise se relacionou com a imposição da televisão como o grande veículo de comunicação nacional”. (BAHIA, 2012, p. 56). Pode-se analisar nesse breve panorama sobre a atuação da Embrafilme o poder concedido sempre a gestores, nenhuma mulher ocupou o cargo de direção da empresa, e cada gestão teve sua característica, na gestão de Roberto Farias (1974-1979) houve uma política mais agressiva com relação ao mercado, o que segundo Bahia (2012), “conferiu a esse período o momento de ouro da Embrafilme”. Após a ascensão e queda da Embrafilme, a indústria cinematográfica brasileira passou por momentos de estagnação, reformulação, retomada e atualmente continua no desafio de manter-se atuante. A criação da Ancine, a implementação de políticas públicas de fomento ao cinema através das leis de incentivo e o implemento do Fundo Setorial do Audiovisual contribuíram 57 para mudanças importantes neste panorama, desencadeados pela cobrança do setor do Cinema e Audiovisual. Essas mudanças tiveram início com a implementação da Lei nº 7.505 de 1986, batizada de Lei Sarney, que estabelecia uma isenção de até 10% do Imposto de Renda devido pelas empresas, com a exigência de que tais recursos fossem investidos em produções artísticas brasileiras. Essa lei criou as bases para uma parceria entre o poder público e o setor privado com o objetivo de dinamizar a produção cultural. Revogada pelo presidente Fernando Collor de Mello, a Lei Sarney representou um marco nas relações entre o Estado e o setor cultural, que enfrentou, principalmente durante o período ditatorial, uma ausência de políticas culturais e grande censura à produção artística e intelectual. Em 1991 foi sancionada a lei nº 8.313, mais conhecida como a Lei Rouanet, que ainda está em vigor, já tendo passado por algumas atualizações. Desde que foi criada a lei enfrenta críticas pela sociedade. Do ponto de vista ideológico, existe um movimento de desvalorização da lei por uma parcela da população, principalmente de orientação política de extrema direita e também por parte da mídia ao veicular matérias insinuando o mal uso do erário público por empresas privadas. Neste movimento, podemos perceber que há grupos que não entendem o funcionamento da lei; que acreditam que a lei privilegia artistas com muitos recursos; além dos que apresentam total descrédito sobre a importância da Lei Rouanet para a sociedade e acreditam que a extinção da lei seria melhor para a economia do país. Em 1993 entrou em vigor a Lei do Audiovisual, lei nº 8.685, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, voltada para a área de cinema e vídeo. Tanto a Lei Rouanet quanto a Lei do Audiovisual são leis que foram implementadas em um nova forma de fomento centrado na articulação com a iniciativa privada via renúncia fiscal. Para Simis (1992, p. 3) essa mudança embora significasse por um lado o encolhimento do Estado, de outro lado, havia a oportunidade do exercício democrático com o apoio do Congresso Nacional na defesa dos interesses do cinema nacional. “Os agentes interessados em reorganizar o mercado cinematográfico conseguiram recentemente, depois de uma longa articulação junto aos Poderes Executivo e Legislativo, aprovar dois projetos de lei”. A Lei do Audiovisual permite a dedução de até 3% do imposto de renda devido para pessoas jurídicas e abrindo a possibilidade de associação com as distribuidoras de filmes também por meio do abatimento do imposto sobre a remessa de lucro ao exterior, quando começou a vigorar, a lei ancorava a quase totalidade da produção cinematográfica no país. O prazo de atuação da lei foi atualizado até o ano de 2024 pela Lei nº 14.044, de 2020. De acordo com o artigo 1º da lei: 58

Até o exercício fiscal de 2024, inclusive, os contribuintes poderão deduzir do imposto de renda devido as quantias investidas na produção de obras audiovisuais brasileiras de produção independente, mediante a aquisição de quotas representativas dos direitos de comercialização das referidas obras, desde que esses investimentos sejam realizados no mercado de capitais, em ativos previstos em lei e autorizados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e os projetos de produção tenham sido previamente aprovados pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). (BRASIL, 1993).

A importância da Lei do Audiovisual no fomento ao cinema se mantém no período atual, porém é alvo também de críticas pela classe de produtores e realizadores de cinema, que percebem as lacunas das políticas públicas no segmento do cinema. Somente a implementação da lei não foi suficiente para estruturar uma indústria, pelo fato de ter sido estimulado apenas um braço da cadeia, a produção. Ou seja, houve um aumento do número de filmes lançados, mas a dinâmica do setor não foi atendida integralmente, pois não foi incluída a distribuição e a exibição, estas ficaram concentradas nas mãos de agentes estrangeiros, gerenciados por políticas privadas. No período compreendido principalmente durante a década de 1990 é inegável o incremento da produção do cinema brasileiro, mas no que se refere à produção de mulheres realizadoras a situação ainda não apresentava números satisfatórios em relação à equidade de gênero. Tomando como exemplo a publicação da pesquisa de Nagib (2002, p. 14), que completa 20 anos em 2022, a autora destacava que “a participação feminina explodiu na primeira década” e ainda assim o número de cineastas (20%) que ela inclui no estudo é igual ao que se apresenta no cinema contemporâneo16. Ainda assim, ela percebe: “a elevação do número de mulheres cineastas e a diversificação geográfica e etária dos diretores permitem hoje ao nosso cinema oferecer uma imagem mais acurada do país”. Nagib (2002) elenca uma série de queixas dos realizadores sobre as políticas de fomento ao cinema neste período dos anos 1990, principalmente em relação à Lei do Audiovisual, que ocasionou um aumento no número de produções, mas não resolveu outros problemas do setor

A maioria dos cineastas ouvidos concorda que a Lei do Audiovisual e as demais leis de incentivo fiscal foram saudáveis num momento crítico, em que a produção de filmes precisava de um tratamento emergencial. Mas é também opinião geral que a recuperação da produção não foi sustentada por sistemas eficazes de distribuição, divulgação e exibição, o que inviabilizou o estabelecimento efetivo de uma indústria cinematográfica no país. (NAGIB, 2002, p. 18).

16 Conforme apresentamos no capítulo 1, o dado mais recente é de 2018, sobre a produção de mulheres realizadoras, e mostra que 20% dos filmes foram dirigidos por mulheres neste ano. De acordo com o estudo "Participação Feminina na Produção Audiovisual Brasileira 2018", divulgado pela Ancine em 2019. 59

Entre as críticas à lei estavam as exigências das empresas que muitas vezes deixavam de financiar por não querer vincular sua marca à temática do filme, principalmente se fossem temas relacionados à violência ou sexo. Nas palavras de Silvio Back em entrevista a Nagib: “O cinema da retomada é um cinema anódino. Simplesmente porque a grande maioria dos patrocinadores “vigia” os roteiros, impõe cortes, veladamente provoca a autocensura nos diretores-produtores, incentiva o cinema de emoções baratas (...).” (Back apud Nagib, 2002, p. 86). Estevinho (2009) lembra o declínio da captação de recursos para a produção cinematográfica no final da década de 1990 quando a legislação começa a apresentar sinais de desgaste

Conectado ao mundo da economia real por meio dos mecanismos legais, o cinema brasileiro também oscilava de acordo com os humores do mercado. Filmes inacabados, lacunas na operacionalização da lei que incluíam prestação de contas questionadas juridicamente também dificultaram o trabalho dos cineastas. (ESTEVINHO, 2009, p. 127).

Autran destaca que houve uma movimentação do setor, que estava insatisfeito e começou a se mobilizar realizando o III Congresso Brasileiro de Cinema em Porto Alegre em junho de 2000, unindo representantes da atividade cinematográfica. Na ocasião foram discutidos os problemas da política vigente e a necessidade de alternativas para reestruturação do cinema brasileiro.

Toda esta movimentação resultou em 2000 na criação pelo presidente Fernando Henrique Cardoso do GEDIC (Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica), o qual era integrado pelos ministros Pedro Malan (Fazenda), Francisco Weffort (Cultura) e Pedro Parente (Casa Civil), bem como por pessoas ligadas ao cinema e à televisão, tais como Gustavo Dahl e Evandro Carlos de Andrade. (AUTRAN, 2009, p. 3).

Em 2001, a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) foi criada através da Medida Provisória 2.228-1, de 6 de setembro de 2001, resultado das ações do Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (GEDIC) e o Estado passou a ter uma agência reguladora com atribuições direcionadas ao fomento, à regulação e à fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil. A Ancine tem atuação diferente da extinta Embrafilme, com um contexto de criação ligado à globalização neoliberal e limitação nas medidas de intervenção, atuando especificamente na regulação do mercado. Bahia (2012) destaca esse caráter da agência, ao indicar o propósito de criação do órgão no sentido de estruturar a indústria do cinema brasileiro de forma mais econômica: 60

O compromisso seria com o desenvolvimento da indústria cinematográfica no Brasil, tendo por objetivo a autossustentabilidade da atividade. Um projeto que rompia com as antigas amarras do filme de autor e propunha uma política direcionada para a consolidação do cinema brasileiro no contexto da internacionalização da economia e da cultura. A agência é responsável, portanto, pelo ensaio da estrutura industrial do cinema nacional, regulando, fiscalizando e controlando a atividade e o mercado. (BAHIA, 2012, p. 110).

Além da criação da agência foi implementado o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA)17 em 2006, fundo destinado ao desenvolvimento articulado de toda a cadeia produtiva da atividade audiovisual no Brasil. Criado pela Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006, e regulamentado pelo Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007, o FSA é uma categoria de programação específica do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Os recursos que compõem o FSA são oriundos do Orçamento da União e provêm de diversas fontes, principalmente da arrecadação da CONDECINE – Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, e de receitas de concessões e permissões, principalmente o FISTEL – Fundo de Fiscalização das Telecomunicações. A Condecine tem como fato gerador a veiculação, produção, licenciamento e distribuição de obras audiovisuais com finalidade comercial e, a partir de 2011 com a Lei 12.485, passou a ser devida pelos prestadores de serviços que se utilizem de meios que possam distribuir conteúdos audiovisuais, tais como as empresas de telecomunicações e operadoras de televisão por assinatura. Passados quase 20 anos de criação da Ancine, a agência tem enfrentado nos últimos anos uma crise relacionada à gestão e repasse de recursos às produtoras com projetos aprovados. Desde 2019, com a gestão do governo do presidente Jair Bolsonaro, a situação tem se agravado. Neste mesmo ano o Tribuinal de Contas da União (TCU) questionou a metodologia da prestação de contas dos projetos adotada pela Ancine e os recursos foram bloqueados pela agência18 até que fossem adotadas as readequações. Outro fator que também contribuiu para o agravamento da crise do setor foi a pandemia da Covid-19, que paralisou a produção e exibição audiovisual em escala global. Após muita cobrança e quase 6 meses do agravamento da pandemia no Brasil, algumas medidas emergenciais de amparo ao setor audiovisual foram aprovadas pelo Comitê Gestor do

17 Informações disponíveis no site do FSA: . Acesso em: 25 ago. 2020. 18 Informações publicadas na matéria: . Acesso em: 20 fev. 2021. 61

FSA em junho de 202019, as decisões acertadas foram as seguintes: a criação de um Programa de Apoio Especial ao Pequeno Exibidor; uma linha de crédito emergencial para o setor audiovisual; a suspensão temporária de pagamentos da linha de crédito do Programa Cinema Perto de Você; e a suspensão dos prazos para cumprimento de obrigações impostas pelo fundo setorial durante os efeitos diretos da Covid-19. No próximo tópico voltamo-nos para as trajetórias de cineastas que buscaram e continuam buscando romper as barreiras que dificultam o desenvolvimento de suas carreiras no setor cinematográfico. Consideramos as cineastas pioneiras, que travaram luta contra os costumes da sociedade machista e suas convenções, até chegar às cineastas contemporâneas que continuam a enfrentar resistência dentro do mercado e da cadeia produtiva do cinema.

2.1 As mulheres e as dificuldades da realização cinematográfica no Brasil

Na plateia de uma mesa redonda20 sobre o cinema realizado por mulheres no Ceará, a afirmação da cineasta cearense Jane Malaquias chamou a atenção dos presentes. Ela afirmou: “desisti do cinema, não quero mais ser cineasta”. A dureza e a burocracia do processo político para conseguir financiamento a fez desistir. “Desisti de ser cineasta, não de ser artista”, fez questão de frisar. Aquele depoimento levou-me a perguntar quantas mulheres cineastas, atrizes, produtoras já desistiram pelas mesmas razões? Quais seguiram mesmo sabendo das dificuldades da área? Naquela discussão um sentimento de empatia vigorou a cada depoimento sobre as formas como cada uma delas buscava se manter na área. E como não poderia ser diferente a questão das dificuldades de ser cineasta mulher no Brasil veio à tona a partir de uma pergunta da plateia, uma jovem fez exatamente essa pergunta: “Quais de vocês já se pegou se perguntando: o que eu estou fazendo aqui?” e as respostas foram diversas como eram as mulheres que estavam compondo a mesa. A resposta da cineasta Luciana Vieira seguiu na direção do otimismo, ao defender que ainda é possível empreender projetos audiovisuais de forma coletiva e mesmo com momentos de dificuldade o trabalho é muito recompensador, falou de seu último trabalho em que toda a equipe era formada por mulheres e foram poucos dias de

19 Informações publicadas no site da Ancine: . Acesso em: 20 jan. 2021. 20 A mesa redonda foi realizada por ocasião do lançamento do livro “Mulheres atrás das câmeras - As cineastas brasileiras de 1930 a 2018”, com a participação das realizadoras cearenses Jane Malaquias, Josy Macedo, Kamilla Medeiros (também associada da Aceccine), Luciana Vieira, Noá Bonoba e as pesquisadoras Emilly Guilherme e Lílian do Rosário, mediada pela jornalista Camila Vieira, uma das organizadoras da obra. 62 filmagem, muito trabalho, desavenças entre a equipe e mesmo assim, ao final do dia, o resultado era o que mais importava. Este relato sobre o debate é importante por enfatizar a emergência de mais debates e discussões, e sobretudo a necessidade de uma mudança nos mecanismos do governo que podem ser aprimorados para o estímulo à produção, que no atual momento se mostra estacionado em relação ao incentivo estatal, mais um capítulo na história do cinema brasileiro relacionada às barreiras postas ao desenvolvimento da economia cinematográfica. Desde o início a produção de cinema no Brasil é marcada por movimentos cíclicos, com momentos de euforia, como na fase da industrialização no período compreendido entre 1930 e 1950, e situações de grande crise em que quase não se produziu cinema no país pela falta de incentivo estatal, como com o fechamento da Embrafilme. Neste capítulo tratamos do contexto de produção cinematográfica no Brasil com ênfase na cena contemporânea, porém vamos nortear como esse processo foi iniciado e que influências sofreu para apresentar o patamar atual. Bahia (2012, p. 29) destaca que “os vários ciclos da cinematografia brasileira deslizaram entre o cinema-arte e o cinema-indústria e estiveram em relação conflitante com o cinema estrangeiro”. Buscamos um debruçamento mais aprofundado no que concerne à produção de autoria feminina, ou seja, como as mulheres participaram desse processo? Não convém aqui categorizações ou comparações, nosso intuito é tão somente entender a participação das mulheres nos diferentes ciclos de produção da indústria do cinema brasileiro. Sabemos, com base no que se tem registrado sobre os diferentes ciclos de produção do cinema brasileiro, que as mulheres foram costurando sua participação nesses ciclos de forma acanhada até a década de 1970, quando temos um aumento considerável na produção e direção e depois, na pós- retomada, é que o crescimento da presença da mulher em funções de direção pode ser visualizado com mais otimismo. Este levantamento se propõe a não somente listar nomes de cineastas e suas obras, mas sim identificar como tem se desenvolvido a produção das cineastas no cinema brasileiro ao longo dos anos. Não será possível aqui abarcar toda a produção de forma minuciosa, o que representa uma árdua tarefa, que, precisamos destacar, tem sido alvo de pesquisadoras da área do cinema e também outras áreas, algumas das quais mencionarei aqui, principalmente, Karla Holanda, Luciana Araújo, Neusa Barbosa, Marina Tedesco e Ana Maria Veiga. Para melhor entendimento, este levantamento será dividido em três períodos: das pioneiras - nas décadas de 1930-1950 até o Cinema Novo; no período do cinema da Retomada, período relevante da nossa cinematografia, e Pós-Retomada, produção do período atual, que é o foco desta pesquisa. 63

Nos primórdios do cinema no Brasil, entre os anos 1895-1935, o campo do cinema no Brasil tinha uma configuração marcada por três aspectos: primeiro pelo desafio de entender o cinema como um novo meio de entretenimento burguês que vai competir pelo público do teatro; segundo pelas dificuldades de projeção, já que o cinema demanda uma tecnologia e um custo maior de equipamentos e de pessoal, e terceiro, aspectos dos desafios de produção, que irão esbarrar em dificuldades relacionadas à técnica, equipamentos e pessoal, mas também em relação à aceitação do público por um cinema nacional. Precisamos lembrar que no início da trajetória do cinema brasileiro, às mulheres não era permitido ocupar funções diversificadas e o que dificulta também são as poucas referências sobre a presença das mulheres neste período inicial. A função de atriz era a mais comum e mais valorizada em detrimento das funções de diretora e roteirista. Por isso temos uma restrita presença da mulher atrás das câmeras nas primeiras décadas do cinema nacional, dadas também às dificuldades técnicas da época. Em estudo sobre as realizadoras do cinema silencioso, Araújo (2017), ressalta essa dificuldade de registro da atuação de mulheres que não fosse na função de atriz, ela destaca que

Na imprensa brasileira da época, são raras as referências a mulheres atuantes em outra função técnico-científica que não a de atriz. Junte-se a isso, de forma geral, as informações muitas vezes esparsas, quando não desencontradas, em relação aos créditos dos filmes, e chegamos ao que se tem hoje: um panorama extremamente lacunar das profissionais femininas em atuação no cinema brasileiro - com exceção das atrizes. Para reverter esse panorama, são fundamentais pesquisas mais sistemáticas não só para garimpar novas informações como também para reconfigurar dados já disponíveis. (ARAÚJO, 2017, p. 17).

De acordo com levantamentos históricos21 sobre a presença da mulher no cinema brasileiro, as primeiras realizações das mulheres como diretoras no Brasil datam de 1930 quando Cléo de Verberena produz e dirige o filme O mistério do dominó preto, que foi lançado em 1931. Com esse filme ela marca seu nome na história do cinema brasileiro ao ser considerada a primeira mulher brasileira a dirigir um filme. O mistério do dominó preto é um filme mudo, escrito, dirigido e estrelado por Cléo de Verberena e seu marido César Melani, que tinha como nome artístico Laes Mac Reni. Cléo de Verberena também é um nome artístico, seu nome de registro é Jacira Martins Silveira. O mistério do dominó preto é o único filme que ela dirige, mas ela tinha planos de seguir com a

21 Para este levantamento as informações foram pesquisadas nas bases de dados do site www.mulheresdocinemabrasileiro.com.br, consultamos também a Enciclopédia do Cinema Brasileiro (2004); Pequeno dicionário das cineastas brasileiras (2019), organizado por Luiza Lusvarghi e Camila Vieira da Silva, além de artigos de pesquisas sobre as pioneiras do cinema tais como os estudos de Araújo (2019) e Barbosa (2019). 64 carreira de diretora, segundo Araújo (2017) Cléo de Verberena chegou a anunciar o seu segundo projeto, o filme Canção do destino, em 1931, porém a direção foi repassada para Plínio de Castro Ferraz, que não conseguiu concluir o filme.

A ela é creditado o argumento do filme Casa de Caboclo (1931), de Augusto de Campos, inspirado na canção homônima de Hekel Tavares e Luiz Peixoto. A presença de Cléo foi também anunciada no elenco de Onde a terra acaba (1933), uma produção de Carmen Santos, quando o projeto do filme passou das mãos de Mário Peixoto para Octavio Gabus Mendes. Mas na verdade, Cléo nunca mais voltou ao cinema. (ARAÚJO, 2017, p. 19).

A dificuldade de produção e exibição de um filme neste primeiro período do cinema é explicada pelo fato de ser ainda incipiente a área de produção de cinema, ainda em formação no país. Barbosa (2019) destaca as dificuldades da época tanto de produção como de exibição.

Pouco se sabe sobre a exibição desta obra inaugural do cinema de mulheres (O mistério do dominó preto) e sobre seus resultados de público. A própria descontinuidade da iniciativa por parte de Cléo de Verberena e seu estúdio leva a crer que os produtores, que importaram equipamentos caríssimos, tiveram prejuízo e se desestimularam. (BARBOSA, 2019, p. 19).

Os cineastas que se arriscaram na área tiveram que aprender a lidar com as novas possibilidades de produção e investir com recursos próprios já que não havia incentivos do setor público. Para enveredar por este campo Cléo de Verberena e o marido fundaram o estúdio Épica Films, em São Paulo, que teve pouca atuação, sendo fechado após o falecimento de Melani, em 1934. Podemos dizer que no período conhecido como do Cinema Silencioso a preocupação maior era com a exibição, de filmes vindos da Europa e dos Estados Unidos. Buscava-se uma profissionalização do campo, em relação aos equipamentos do parque exibidor que ainda era restrito aos teatros e só foi se modificando com a chegada do som ao cinema. O advento do cinema sonoro tem seu registro a partir de 1927, com o filme “O cantor de Jazz” (The Jazz Singer) de Alan Crosland. O filme foi o primeiro a ter passagens faladas e cantadas e a usar um sistema sonoro eficaz, conhecido como Vitaphone, lançado um ano antes, em 1926, pela Warner Bros. A partir de 1930, a indústria do cinema americano já tinha consolidada a atuação dos grandes estúdios e consagrou astros e estrelas em Hollywood. Mas no Brasil o idioma era um ponto negativo, além dos equipamentos de som, que tornaram o filme falado um produto mais caro, pelo fato de ter que importar equipamentos de reprodução do som, e no caso do cinema importado, a maioria dos filmes exibidos era do cinema hollywoodiano, ainda tinha a 65 dublagem e sincronização do som. Vieira (2018) ressalta essa dificuldade na fase de transição do cinema mudo para o cinema falado

Com a chegada do som, a produção foi reduzida, e não aumentada, como pensavam os mais otimistas. Aumentados foram apenas os custos, não só de produção de novos filmes, mas principalmente, de adaptação técnica das salas de exibição, fortalecendo ainda mais a dependência tecnológica em relação aos Estados Unidos e provocando o fechamento de muitos cinemas ligados a exibidores de menor porte. (VIEIRA, 2018, p. 346).

Esses fatores acabaram por incentivar o que podemos chamar de um ensaio para o começo de uma indústria cinematográfica no Brasil. Ou seja, a vontade de produzir um cinema nacional só vai surgir no Brasil quando o cinema americano começa a apresentar alguns empecilhos e já há uma pequena estrutura de produção que busca se firmar. Porém os moldes de produção eram baseados fortemente no modelo norte-americano. A influência de Hollywood foi sentida pelas empresas produtoras e incentivada através da mídia especializada da época, principalmente as revistas e o rádio. A valorização do star system, que se baseava no modelo norte-americano, ligava as produções do cinema à divulgação das estrelas nas revistas especializadas como a Cinearte, seguindo um viés que alimentava o culto ao cinema clássico e de forte influência estrangeira, embora divulgasse a produção nacional, buscava influenciar o público sobre o modelo ideal de cinema, como destaca Vieira (2018, p. 349): “A revista (Cinearte) faz apologia do cinema clássico da continuidade, da fluência e clareza narrativas, apoiado em duas estruturas fortes do cinema hegemônico, o estrelismo (star system) e o cinema de estúdio”. Importante destacar que nesse período de transição do cinema silencioso para o sonoro, a produção de filmes no Brasil é bastante artesanal, sem intervenção do Estado, o que só vai ocorrer a partir da década de 1930 com o Governo Vargas e a valorização de um cinema educativo. Foi neste ano que foi fundada a Cinédia, importante produtora de filmes da época que apostou no modelo do cinema de estúdio para se firmar no mercado daquela época. Neste período podemos ver como principais gêneros a comédia musical e o drama, em que a presença da mulher era forte na função de atriz, com destaque para as estrelas do rádio que tinham seu espaço garantido nas comédias musicais. Em relação à direção podemos citar as cineastas Gilda de Abreu e Carmen Santos, que se destacaram nesse período com a produção de filmes de sua autoria e fazendo parceria com outros cineastas. De acordo com o Pequeno dicionário das cineastas brasileiras (2019) Carmen Santos, imigrante portuguesa radicada no Brasil teve seu primeiro trabalho como diretora no filme Onde 66 a Terra Acaba, projeto realizado em parceria com Mário Peixoto, que foi finalizado apenas em 1933 e estreou sem grande sucesso. Carmen iniciou a carreira como atriz, aos quinze anos, foi protagonista do filme Urutau (1919), de William Jansen, que nunca foi lançado. Em seguida ela atuou nos filmes A Carne (1924), de Júlio Ribeiro e Mademoiselle Cinema (1925), de Benjamim Costallat, ambos nunca foram lançados. Estes dois filmes tinham forte apelo erótico em suas narrativas. Carmen atuou também em Sangue Mineiro (1929), de Humberto Mauro, e Limite (1931), de Mário Peixoto. É importante ressaltar que ela também foi uma das responsáveis pela fundação da Brasil Vox Filmes, que depois se tornaria Brasil Vita Filmes, empresa que produziu inúmeros filmes do cinema silencioso no país. Convém destacar aqui que neste período as empresas de produção sustentavam-se sobre um modo de produção frágil. A Cinédia era então a maior companhia realizadora do país, tendo sido fundada em 15 de março de 1930 funcionou até 1951, produzindo principalmente comédias musicais populares, consideradas as precursoras das chanchadas, e os grandes espetáculos de estúdio. Foram produzidos nesse período mais de 700 filmes com destaque para o sucesso do filme O Ébrio, de Gilda de Abreu, lançado em 1946, que ficou por mais de 35 anos em cartaz pelo país, alcançando um público de mais de 8 milhões de espectadores. A cineasta Gilda de Abreu22, que assumiu as funções de diretora, roteirista, cantora, atriz e escritora é outro nome que se destaca neste período, no que se refere ao protagonismo de mulheres, de desenvolvimento de uma indústria do cinema, embora constatarmos nesse processo um caminho ainda muito incipiente. Gilda nasceu na França, filha de médico diplomata e de cantora lírica, chegou ao Rio de Janeiro com quatro anos de idade. Gilda formou- se no Instituto Nacional de Música e seguiu carreira como cantora, apresentando-se em festas e eventos beneficentes, além de participar com frequência de óperas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ela dividiu o palco pela primeira vez com o tenor Vicente Celestino (1894-1968) em 1933, com quem se casou e formou uma parceria também na vida profissional. Gilda ganhou fama a partir deste trabalho e foi convidada por Adhemar Gonzaga (1901-1978), proprietário da Cinédia, para protagonizar o filme Bonequinha de Seda (1936), dirigido por Oduvaldo Vianna (1892-1972). Além do pioneirismo na direção de cinema, Gilda se destacou por ter dirigido O Ébrio, produção que durante muitos anos permaneceu como a maior bilheteria de

22 ABREU, Gilda de. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. ISBN: 978-85-7979-060-7. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa274980/gilda-de- abreu. Acesso em: 23 jan. 2020. 67 nossas telas e um dos fenômenos populares do cinema brasileiro. A identificação do público com o filme foi forte pelo gênero dramático e a interpretação de Vicente Celestino. Gilda de Abreu dirigiu também o filme Um Pinguinho de Gente (1949), ainda na Cinédia. A produção deste filme foi problemática, com atraso nas filmagens, e após todo o processo de finalização, a estreia do filme só ocorreu mais de dois anos após a produção. Estreou em 4 de outubro de 1949 e as filmagens começaram em 1947. Coração Materno (1951) foi outra tentativa de Gilda na direção e filmes. O filme baseia-se numa canção famosa de Celestino e tinha ele próprio como astro. Porém a receita dessa vez não dá certo e o filme é um fracasso de público. Levando em conta a chegada das chanchadas da Atlântida, podemos dizer que a fórmula baseada no drama, empregada por Gilda em O Ébrio, já não era mais tão aceito pelo público, que começava a ter mais opções de gêneros cinematográficos na produção nacional. A atuação destas cineastas pioneiras é marcada pelas dificuldades de manterem-se na função de direção de forma mais autônoma, sem que a figura do marido estivesse presente, em forma de parceria, note-se que Cléo de Verberena apesar de assinar a direção do filme O mistério do dominó preto, tem no marido César Melani, além do protagonista masculino um parceiro de produção. Gilda de Abreu também apesar de sua carreira como cantora e atriz, tem no marido um parceiro que será também o protagonista da sua principal obra, que é inclusive inspirada em uma canção dele. Voltando à questão do incentivo do governo para a indústria, lembramos que durante o governo Vargas foram implementadas uma série de medidas que representaram um incremento na produção de filmes, mas o enfoque principal era no cinema educativo, com realização de curtas metragens. Vieira (2018, p. 361) destaca que “a concretização mais imediata da preocupação de Getúlio Vargas com os fins educacionais do cinema, foi a criação, em 13 de janeiro de 1937, do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE)”. O instituto tinha como função principal produzir e distribuir filmes educativos em instituições educacionais e filmotecas, que foram criadas a partir do incentivo do Ince. Simis (2008, p. 35) lembra que “até 1941, já haviam sido editados cerca de 200 filmes que foram distribuídos não apenas em escolas, mas também em centros operários, agremiações esportivas e sociedades culturais”. Mas a iniciativa do INCE não foi satisfatória para a indústria como se esperava, pois, com seu enfoque na função educacional do cinema, não houve um estímulo maior ao cinema como indústria cultural e as medidas que foram implementadas pelo Estado visavam proteger o cinema educativo. Algumas dessas medidas de protecionismo são listadas por Johnson (2008; p.104; 1987, p. 185). O autor faz uma evolução das cotas de exibição que foram sendo 68 sugeridas, sendo que nem todas foram implementadas

A evolução da cota de exibição foi a seguinte: 1932: um curta para cada programa de filmes estrangeiros; 1959: 42 dias por ano; 1963: 56 dias por ano; 1969: 63 dias por ano; 1970: 77 dias por ano (provisório); 1970: 112 dias por ano (não implementado); 1970: 98 dias por ano (não implementado); 1971: 84 dias por ano (não implementado); 1975: 112 dias por ano; 1978: 133 dias por ano; 1980: 140 dias por ano. (JOHNSON, 2008; p.104; 1987, p. 185).

A intervenção do Estado para o estabelecimento de uma indústria de cinema que foi feita neste período, principalmente, com uma série de leis para garantir cotas de exibição dos filmes brasileiros nas salas de exibição, e também a valorização dos filmes educativos, significou um pequeno incentivo à produção, mas em termos de políticas públicas de incentivo à produção, o maior impacto se deu somente em 1969 com as ações da Embrafilme. Bahia (2012) destaca que a construção de uma indústria cinematográfica, com foco no cinema nacional, foi posta em tentativa somente nos anos 1940, influenciada pelas realidades interna e externa:

Nessa época, os grandes estúdios se consolidaram pelo investimento do capital privado, desvinculado do Estado, e objetivaram a construção de uma indústria e de um mercado de cinema no Brasil. Pensou-se, nesse momento, que o desenvolvimento de uma indústria cinematográfica nacional e a consequente afirmação de um mercado nacional poderiam se estabelecer independentemente das políticas estatais. (BAHIA, 2012, p. 17).

Criada em 1941, a Atlântida produzia exclusivamente chanchadas e musicais, com enfoque em filmes populares, que tinham um custo de produção baixo e se adequavam ao mercado. Já a Vera Cruz surge em 1949 com uma outra forma de produção, se contrapondo ao modelo de cinema popular. A produtora buscou se aproximar do estilo clássico de Hollywood com uma preocupação com a qualidade técnica e estética “e se baseou nos moldes italianos de produção e industrialização, importando inclusive mão de obra técnica da Itália” (BAHIA, 2012, p. 34). Um outro aspecto que devemos destacar aqui é a dificuldade que as mulheres enfrentaram no reconhecimento de suas funções nos créditos dos filmes, ou seja, muitas vezes elas desenvolviam várias funções, mas não eram creditadas e isso acaba dificultando o mapeamento de mulheres em funções técnicas do cinema, contribuindo para invisibilizar ainda mais as mulheres neste campo. Lembro aqui as considerações de Schvarzman (2017) sobre essa invisibilidade nas fichas técnicas e letreiros dos filmes

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Quais profissionais deveriam ou poderiam receber créditos pelo resultado de um filme? Seria digno para as mulheres terem seus nomes nos letreiros de um filme - de um filme que se fazia no Brasil? Essa é uma questão social e cultural relevante, uma vez que, em muitas situações e épocas diferentes, esposas, filhas, netas e cunhadas participaram da produção de filmes, como aconteceu com Rosina Cianelli, cunhada de Paulo Benedetti, e mesmo com a esposa dele: poucas vezes foram creditadas nos filmes feitos em Barbacena nos anos 1910 - e são apenas um exemplo. (SCHVARZMAN, 2017, p. 33)

Essa reflexão nos faz pensar o quanto as mulheres tiveram de enfrentar para participar do cinema como meio artístico, sobretudo porque no início havia (e podemos dizer que ainda hoje prevalece) o preconceito sobre o meio artístico cinematográfico, que era tido como impróprio para as mulheres de família, seguindo um viés moralista característico da época. Nos anos 1960 e 1970, a produção de cinema no Brasil tem no movimento do Cinema Novo, a inauguração de uma série de mudanças na linguagem e na forma de abordagem dos temas, que tem no neorrealismo italiano uma inspiração dessa experimentação de linguagem. O Cinema Novo é considerado um dos movimentos mais importantes na história do cinema brasileiro, pois marcou a produção de cinema com sua ênfase nas questões sociais para contestar a situação política do país. O manifesto assinado por Glauber Rocha, sobre a estética da fome, contesta o modelo de produção dos estúdios e estimula os realizadores a fazer o cinema com mais realismo, com enfoque nas questões sociais nacionais, e uma série de temas que antes não se via nos filmes começam a ser destacados, entre eles o cangaço e a seca do Nordeste. Vale destacar que neste período do Cinema Novo a produção das mulheres também se configura com uma restrita participação, não há uma produção significativa encabeçada por mulheres à frente das câmeras que tenha relação direta com o movimento, não fosse pelo trabalho de Helena Solberg, que é considerada a única cineasta que dirigiu filmes no Cinema Novo. Não significa dizer que só ela dirigiu filmes neste período, mas a produção que tem características do que o movimento representava e buscava só conseguimos perceber na obra dela. No mesmo período de tempo temos o cinema marginal que tem na cineasta Helena Ignez a representante deste período com uma grande participação como atriz e também diretora. Em entrevista,23a cineasta Helena Ignez inclusive caracteriza o Cinema Novo como um movimento em que houve machismo por parte de seus realizadores. Ela critica o fato de que as mulheres eram vistas como musas e nada mais, as mulheres eram silenciadas e isso era colocado de forma sutil porque ao mesmo tempo se engrandecia as mulheres na representação dos papéis de musas.

23 IGNEZ, Helena. "É péssimo ser musa" - Entrevista com Helena Ignez. [Entrevista cedida a] Domingos de Lima e Laura Capelhuchnik. Nexo Jornal, [S.l.], 16 out. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zwB2aGuZTts. Acesso em: 04 fev. 2020. 70

O Cinema Novo não foi urbano, foi muito voltado pro sertão, pra aqueles personagens olvidados do sertão, mas era um cinema acadêmico, em que a mulher era vista através do olhar masculino sempre, com carinho e etc., mas como uma musa. Ele gostava da mulher silenciosa, era esse o grande charme, e o Cinema Marginal, que eu não chamaria de marginal, mas esse cinema, por exemplo que foi o cinema da Bel-Air, de Júlio e de Rogério, já tinha uma outra visão feminina. Talvez por mim mesma porque eu já era uma integrante muito ativa e lá no cinema novo eu fui musa, e até hoje numa palestra no Rio, eu fui falar que o Cinema Novo era machista e foi desagradável, porque tava lá o Cacá Diegues, que é uma pessoa que eu tenho ótimo relacionamento, gosto dele, mas ele disse não isso, é mentira (risos), então, como é que ele vai saber disso. (IGNEZ, 2018).

Com essa observação Helena Ignez expressa a opinião de uma realizadora sobre o que se pode observar nos filmes, basta citar os maiores sucessos do Cinema Novo, como por exemplo, Rio, 40 Graus (1955) e Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, O Desafio (1964), de Paulo César Saraceni, Deus e o Diabo na Terra do Céu (1964), de Glauber Rocha, e Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra, sendo estes três considerados uma trilogia clássica do movimento que tem a aridez do sertão como ponto em comum. Em todos esses filmes, a figura da mulher é secundária, não há preocupação com protagonismo feminino e não é de se estranhar, pois todos os filmes são dirigidos por homens, e não se tem preocupação alguma com representatividade de gênero, paridade, igualdade, a preocupação era em filmar a realidade do Brasil e exibir na tela do cinema batendo de frente com os modelos vigentes de produção, que tinham influência estrangeira. Helena Solberg24 marca o início de sua trajetória com o curta-metragem A Entrevista (1966). Ao longo de 19 minutos o filme reúne respostas de mulheres sobre diversos assuntos relacionados aos conflitos femininos enquanto focaliza uma noiva se preparando para a cerimônia de casamento. Entre os assuntos ela também aborda de forma rápida o contexto sociopolítico do país, que atravessava os primeiros anos da ditadura militar. Neste curta metragem, que é um dos mais conhecidos de sua obra, percebemos uma das preocupações da diretora com o feminismo, que começava a ganhar visibilidade naquele período. Na obra de Solberg podemos perceber uma variedade de temas e uma abordagem criativa, com o cuidado de abranger os diversos temas, e é no documentário que sua obra se sustenta. Em 1971 sua inquietação e o período ditatorial a levam a sair do Brasil e passar uma temporada nos Estados Unidos, onde produziu diversos filmes, entre eles a trilogia: A Nova Mulher (1975), Simplesmente Jenny (1978) e o longa A Dupla Jornada (que abriu a Primeira Conferência Internacional da Mulher, em 1975).

24 SOLBERG, Helena. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. ISBN: 978-85-7979-060-7. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa14046/helena- solberg. Acesso em: 03 fev. 2020. 71

Sobre o Cinema Novo, Helena Solberg fala em entrevista25 concedida ao Canal Agenda, que o grupo de cineastas que encabeçou o movimento não tinha noção na época do que era o Cinema Novo, do que representava. Sobre os filmes produzidos naquele período, ela ressalta:

O nosso olhar era um olhar de querer examinar a realidade, examinar a realidade que nos cercava. Havia um cinema anterior que era da nossa geração, que era por exemplo o da Vera Cruz, que era um cinema que tinha ainda um aspecto, um olhar europeu, e o Cinema Novo acho que vai pras ruas também, porque nós começamos a assistir os filmes italianos, o neorrealismo italiano, e tudo isso teve uma ideia de uma câmera mais leve na rua, de usar atores populares, pessoas que não eram profissionais, tudo isso eu acho que marcou esse cinema. (SOLBERG, 2015).

Quando voltou ao Brasil, Solberg produziu o filme Carmen Miranda: Bananas is My Business (1995). Em 2005, lançou o longa ficcional Vida de Menina (2005), inspirado nos diários de Helena Morley. Em 2009, a cineasta recebeu o prêmio de melhor direção no Festival Internacional do Rio por Palavra (En)cantada, o documentário mais assistido nos cinemas brasileiros naquele ano. Em 2013, lançou o longa documental A Alma da Gente e em 2014 ela foi homenageada no Festival É Tudo Verdade. Ainda nos anos 1960, podemos destacar a obra da cineasta Helena Ignez26. Dentro do movimento que ficou conhecido como Cinema Marginal, a cineasta atuou de forma mais intensa como atriz e só depois se dedicou também à direção, mas sem deixar a função de atuar. É grande a lista de filmes em que participou com a direção de Rogério Sganzerla e de Júlio Bressane na produtora Bel’Air. Helena Ignez foi casada por 35 anos com o diretor Sganzerla e contribuiu em sucessos como A Grande Feira (1961), Assalto ao Trem Pagador (1962) e O Padre e a Moça (1966). Como cineasta, ela dirigiu o curta A Miss e o Dinossauro (2005) e os longas Canção de Baal (2006), Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2010), Feio, Eu? (2013) e Ralé (2016). No período referente aos anos 1970-1980 a obra de algumas cineastas demonstra uma resistência expressiva que contribuiu para a história do cinema brasileiro realizado por mulheres. Desta lista destacamos as cineastas Ana Carolina, Tereza Trautman, Lúcia Murat, Suzana Amaral, Tizuka Yamasaki e Adélia Sampaio, única cineasta negra a dirigir um filme de longa-metragem neste período. Estas cineastas têm como marca do seu trabalho a resistência

25 SOLBERG, Helena. Entrevista com Helena Solberg [AGENDA]. [Entrevista concedida a] Agenda. Revista Agenda, [S.l.], 21 maio 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ERBRW6sKRwU. Acesso em: 04 fev. 2020. 26 IGNEZ, Helena. Pequeno Dicionário das Cineastas Brasileiras (1930-2018). In: LUSVARGHI, L.; SILVA, C. V. (org.). FUSER, M. C.; FILGUEIRAS, R. (ed.). Mulheres atrás das câmeras: As cineastas de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019b. 72 justamente no período ditatorial que imperava no país e cerceava a produção de cinema. Ana Carolina iniciou sua carreira com curtas-metragens e em 1974 realizou o documentário Getúlio Vargas, seu primeiro longa. Porém é com a trilogia Mar de Rosas (1977), Das Tripas Coração (1982) e Sonho de Valsa (1987) que a cineasta destacou sua discussão sobre a mulher e a família na sociedade, questionando também o regime militar. O filme Mar de Rosas centra sua narrativa em um casal em crise e sua filha adolescente. Durante uma viagem Sérgio, interpretado por Hugo Carvana e a esposa Felicidade, interpretada por Norma Bengell, discutem o tempo todo e ao chegar em um hotel a discussão entre o casal resulta na esposa agredindo o marido com uma navalha. Ao acreditar que Sérgio está morto, Felicidade foge com Betinha, interpretada pela atriz Cristina Pereira, e o filme segue no estilo road movie com uma mistura de violência e situações absurdas. Logo no início do filme chama a atenção a insistência da esposa em pedir ao marido que a escute, que possam conversar sobre o casamento. Ela reclama que ele sempre a interrompe e ele segue sem querer conversar. Um diálogo que pode ser protagonizado por muitos casais na atualidade. Neste ponto nada de surreal no filme, porém os diálogos mostram uma narrativa que destaca indignação com a condição da mulher pela personagem Felicidade, que tem no seu nome uma antítese clara da personagem, e pela jovem Betinha.

A histeria das personagens é um caminho político e estético em Ana Carolina, e Mar de Rosas é um road movie, ou melhor, se vale desse formato, que serve de instrumento perfeito para essa execução que ocorre de forma não planejada pelos personagens - começa a se articular com o atropelamento da personagem principal, Felicidade. (LUSVARGHI; SILVA, 2019, p. 117).

As escolhas de Ana Carolina na direção demonstram uma estética surrealista em um roteiro recheado de situações inesperadas, que surpreendem o espectador e fazem da personagem Betinha a protagonista da história, ao revelar um perfil subversivo, inquieto com a condição feminina. Como bem analisa Lusvarghi e Silva (2019) “Felicidade, na medida em que a viagem absolutamente trivial se transforma numa aventura, vai perdendo o seu lugar para a filha, que parece estar ali para contestar e reivindicar o lugar da mãe”. Na trilogia, Ana Carolina imprime suas reivindicações sobre a condição feminina, mas se podemos definir um ponto em comum nas três obras é um certo descontrole e uma busca de liberdade pelas mulheres presentes nas três narrativas. São filmes em que as mulheres são protagonistas, mas o que tem destaque central é a histeria delas. Nas três narrativas as personagens são figuras perturbadas, conflituosas, questionadoras, o que representava, para a época em que foram lançados, uma forma de contestação das convenções sociais que sempre 73 colocaram a mulher em uma posição relacionada à ordem, no sentido de que a mulher deveria ter um comportamento sério, recatado. Essa ordem é quebrada pela ótica da cineasta, quando por exemplo em Das tripas coração, as jovens alunas e as professoras da escola aparecem com diálogos sobre sexo. Do começo ao fim do filme o ambiente é extremamente movimentado com as mulheres em primeiro plano e o interventor sendo ridicularizado pelas jovens. Já em Sonho de Valsa, a personagem Tereza, interpretada por Lopes, é a protagonista de uma vida ao lado do pai e do irmão enquanto espera o amor da sua vida, uma espécie de príncipe encantado que aparece em seus sonhos. As reflexões e provocações sobre a mulher se ampliaram com Amélia (2000) e Gregório de Mattos (2003). Sua produção mais recente foi o longa A Primeira Missa ou Tristes Tropeços, Enganos e Urucum (2014), com Fernanda Montenegro, um filme que dá continuidade aos debates da diretora sobre os rumos e a história do Brasil. Ao analisar a obra de Ana Carolina percebemos a crítica aos padrões da sociedade através de uma narrativa que privilegia o destaque às mulheres, e de uma forma autoral explora os conflitos femininos em uma vertente que sobressalta aspectos do surrealismo. Seguindo pela trajetória do cinema produzido nos anos 1970 e 1980, Os homens que eu tive (1973) de Tereza Trautman é a obra que vai revelar o cinema contestador que a cineasta desenvolveu. Se destacando por uma carreira eclética, Trautman ressalta nesta obra, a liberdade sexual dos personagens e pelo contexto da época, o filme acabou sendo censurado por sete anos. Tereza Trautman27 nasceu em São Paulo, em 11 de fevereiro de 1951, e seu interesse pelo cinema começou cedo, já no final dos anos 1960, ela participa da Reunião do Produtores Independentes, cineastas com realizações na Boca do Lixo, dentre eles, João Silvério Trevisan, João Batista de Andrade, Luis Sérgio Person e Carlos Reichenbach. Dirigiu o episódio A Curtição, do longa Fantasticon, os deuses do sexo28, sobre um segmento da geração pós-68 que procura escapar da repressão por meio das drogas. A partir dos anos 1970, seu interesse pelo cinema a faz atuar em várias funções, como atriz, roteirista, diretora, montadora e produtora. Em 1973 realiza seu primeiro longa-metragem, Os homens que eu tive. Leila Diniz seria a protagonista do filme, mas com a tragédia de sua morte no avião que explodiu vindo da Índia, o papel foi protagonizado por Darlene Glória, que também fazia muito sucesso no cinema brasileiro daquela época. Em 1977 dirigiu o curta- metragem O caso ruschi, documentário que recebe o Prêmio Especial do Júri no XI Festival

27 Cf. https://www.mulheresdocinemabrasileiro.com.br/site/mulheres/visualiza/459/Teresa-Trautman/4 28 Cf. TERESA Trautman. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 20 de Abr. 2020. 74 derasília, em 1978. Depois de 15 anos, volta a dirigir um longa-metragem, o delicado Sonhos de menina moça (1987), no qual assina também a produção e o roteiro do filme. Cada cineasta destacada aqui tem uma identidade que é ressaltada por vezes em seus filmes, na escolha de temas, na forma de filmar, dirigir, se colocar à frente de questões, sejam elas políticas ou não, pois a direção de uma obra exige esse posicionamento, até mesmo quando não se quer vincular a um posicionamento claro, a cineasta está nas entrelinhas informando o que tensiona. Na década de 1980 algumas dessas cineastas escolheram se posicionar de forma clara sobre as questões da época, uma delas é a cineasta Lúcia Murat. A cineasta Lúcia Murat apresenta em sua obra um olhar sensível para a abordagem de temas políticos e sociais e tem uma biografia29 marcada por muitas lutas. Iniciou sua militância política na universidade e foi uma das estudantes presas no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP). Entrou na clandestinidade, foi presa e intensamente torturada, com pau de arara, eletrochoques e espancamentos. Lúcia Murat ficou presa até 1974 e na década de 1980 passou a se dedicar ao cinema. Alguns dos seus filmes abordam a temática da ditadura militar, como (1989) e A memória que me contam (2013). Em seu recente trabalho, o documentário Em três atos (2015), Murat aborda temas como a velhice, a morte, as etapas de vida, divididos em três atos, com uma linguagem audiovisual que liga depoimentos, dança contemporânea e palavras, intercaladas por textos de Simone de Beauvoir. O ciclo da vida é a linha que liga as questões abordadas no filme e Murat imprime sua marca na utilização de uma linguagem que explora diferentes possibilidades, buscando também inspirações em outras manifestações artísticas, como a dança, o teatro e a literatura. Em três Atos pode ser visto como um filme ensaio, com depoimentos encenados com base na obra da escritora Simone de Beauvoir, principalmente os livros A Velhice e Uma Morte Muito Doce. As atrizes Andréa Beltrão e Nathalia Timberg interpretam as duas fases da vida escritora, como alter egos de Beauvoir nas fases da vida em que escreveu os livros que serviram como referência para o longa. A narrativa fílmica, dividida em três atos: O corpo, A morte e a A despedida, é entremeada pela performance da bailarina Angel Vianna, de 85 anos, e Maria Alice Poppe, que foi sua aluna, aqui destacamos a interpretação sensível e forte das duas atrizes. O corpo é o

29 Cf. MEMÓRIAS DA DITADURA. Lúcia Murat. Disponível em: http://memoriasdaditadura.org.br/biografias- da-resistencia/lucia-murat/. Acesso em: 01 jun. 2017.

75 ponto de partida do filme. Murat constrói assim uma narrativa repleta de subjetividades e memórias. As duas bailarinas dançam e se expressam na coreografia o desejo pela arte, a vontade de continuar dançando, principalmente em Angel Vianna para quem o palco vai se distanciando com o passar dos anos ao perceber pelo próprio corpo que os movimentos já não são os mesmos, e mesmo assim não se deve parar porque o amor pela arte é mais forte. Em um exercício de sensibilidade, Murat representa questões existencialistas presentes no pensamento de Beauvoir, através não só de suas palavras, mas também de uma interpretação intensa que contribui para uma inquietação do espectador. E a linguagem mais uma vez vai ser utilizada como ferramenta ao utilizar os relatos como se se confessasse com o espectador, olhando para a câmera e fazendo-o cúmplice de suas angústias. A intertextualidade na obra é um aspecto que torna o filme relevante e atual. O lirismo presente nas apresentações das bailarinas, os conflitos relatados nos depoimentos narrados e os contrastes que se evidenciam em cada ato levam o espectador a todo tempo se perguntar o que virá em seguida, e, o que exatamente Murat quer provocar? As escolhas sensíveis da direção apontam o olhar comprometido de Lúcia Murat na busca por uma linguagem e estilo que a aproximam de um discurso feminista, de uma tentativa de evidenciar os conflitos que cercam o universo feminino e que também são universais, sobretudo em relação à morte e a velhice. Podemos interpretar nessas escolhas, além da aproximação com um olhar feminista identitário, uma vontade afirmativa de mostrar que é possível realizar obras com um caráter mais intimista e também universal. A presença de alter egos nas personagens femininas e uma auto-reflexividade em suas obras pode ser apontada como uma constante nas narrativas. Em Que Bom Te Ver Viva (1989), que reúne uma série de relatos de mulheres que foram torturadas durante a ditadura militar. Há um monólogo interpretado por Irene Ravache, que representa a própria Lúcia Murat e sua experiência na ditadura. No documentário, que mescla depoimentos e a dramatização personificada da cineasta faz uso da enunciação (METZ, 1991), principalmente com o recurso de dirigir-se ao espectador, olhando para a câmera falando ao espectador. Esse aspecto nos remete ao aspecto político de um olhar feminista no filme. Trata-se de abordar a perspectiva feminina sobre a tortura, as violências sexuais e psicológicas, e também o desabafo de alguém que passou por essa realidade e transporta-a para a tela do cinema. Em outra passagem do filme esse aspecto fica evidente, quando a personagem de Irene Ravache se questiona sobre a forma como ainda é marcada pelos fatos do passado de forma negativa. Na matéria jornalística que a remete à experiência da ditadura ela é identificada como a terrorista e o torturador é creditado como médico. Em outra passagem ela critica o fato de ser 76 vista como mártir por ter sofrido tortura sexual e isso fica claro na sua fala: "Ninguém quer trepar com Mártir, com Ave Maria, quem quer trepar com Joana D'arc?". Nesse ponto também visualizamos a questão da sexualidade abordada de um ponto de vista feminino em uma situação específica, mas que podemos analisar também como a vontade de questionar as noções patriarcais e mesmo os tabus que são criados pela sociedade relativos ao sexo. Outro ponto chave que aparece nos depoimentos é a maternidade e uma espécie de renascimento após a experiência da tortura. Cada mulher entrevistada no documentário defende sua ideia de fortalecimento mesmo quando acha que vai ser destruída; como no depoimento de Jessie Jane: "eles querem acabar comigo, porém nasce mais um", como diz Jessie Jane. Em outra passagem do filme há a semelhança no discurso das mulheres em afirmar que a memória deve ser preservada. A própria cineasta comunga dessa noção de relembrar na representação para não reviver na realidade. A memória que ressaltam é a de luta por uma sociedade melhor, de sacrifícios que deixaram marcas, mas que a vida continua. Destacamos aqui também a obra da cineasta Suzana Amaral. Com seu jeito objetivo de ser Suzana estreia na direção de longa-metragem com o sucesso de A Hora da Estrela (1985), adaptado da obra homônima de Clarice Lispector. A paulista que nasceu em 1930, tem nas adaptações literárias sua marca. Sua carreira no cinema começou no final da década de 1960, quando decidiu cursar cinema na Escola de Comunicações e Artes da USP, e depois fez uma pós-graduação em Nova Iorque. Por ter começado sua carreira quando já tinha nove filhos, Suzana ficou conhecida como a dona de casa que virou cineasta, porém ela recusa essa representação, pelo fato de achar pejorativo e diminuir o esforço que ela teve ao se tornar cineasta, em entrevista30 para a repórter Fernanda Azevedo, do Jornal da Gazeta, em 2015, ela fala sobre essa recusa:

É porque eu sou mais velha e tive uma porção de filhos, as pessoas associavam, achavam que eu tava posta em sossego na minha cozinha e de repente tive uma ideia brilhante e fiz o filme. Não é bem assim, eu quando fiz A Hora da Estrela eu já tinha 4 anos de ECA mais 4 anos de universidade nos EUA e eu já entrei sabendo o que eu queria. (AMARAL, S. 2015).

Suzana ficou muito conhecida com o filme A Hora da Estrela, mas antes ela já tinha filmado documentários de curta-metragem para o programa Câmera Aberta da TV Cultura e em 1979, foi premiada em Brasília com o curta Minha Vida, Nossa Luta (1979). Mas é em 1985

30 AMARAL, Suzana. Suzana Amaral, 83, prepara quarto longa-metragem. [Entrevista concedida a] Fernanda Azevedo. Jornal da Gazeta, [S.l.], 28 ago. 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cKbpeQmOsyI. Acesso em: 04 fev. 2020.

77 que ela alcança o sucesso quando lança A Hora da Estrela, seu filme mais conhecido que ganhou muitos prêmios, entre eles o de melhor filme pelo Festival de Berlim e melhor atriz para a protagonista Marcélia Cartaxo. Suzana também dirigiu a minissérie Procura-se (1992) e os longas Uma Vida em Segredo (2001) e Hotel Atlântico (2009). A cineasta, em suas entrevistas, sempre ressaltava a dificuldade que é fazer um filme no Brasil, a necessidade de muitos recursos financeiros e a burocracia. Para ela, não fosse essa dificuldade poderia ter feito muito mais filmes. "Eu poderia fazer um filme por ano, projetos não me faltam, o que falta agora é saco que eu não tenho, ficar esperando, esperando por um bonde que não vem e é um trem fantasma". (Suzana Amaral, 2017 - Entrevista no programa Arte do Artista, na TV Cultura). Suzana Amaral faleceu no dia 25 de junho de 2020, deixando uma obra que marca a história do cinema brasileiro como exemplo de profissional que buscou se capacitar mesmo com uma série de situações que poderiam servir de justificativas para não adentrar no campo do cinema ou em outra área. A cineasta Adélia Sampaio é uma das poucas cineastas negras a ter seu trabalho reconhecido na história do cinema brasileiro, que inclusive teve esse reconhecimento tardio. Adélia foi a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, com Amor Maldito (1984). Além do pioneirismo em relação à raça, a cineasta tratou de uma temática muito invisibilizada no cinema: o lesbianismo, principalmente no período em que o filme foi lançado. O filme Amor Maldito trata justamente do amor entre duas mulheres, uma temática polêmica para a época em que foi lançado. Adélia também produziu e roteirizou o filme, baseado em uma história real, que deixou a diretora indignada pela forma como o caso estava sendo tratado pela justiça e pela mídia. Adélia teve acesso aos autos do processo e escreveu um argumento para o filme. Apesar de ser uma ficção, a história do filme segue o que ocorreu na vida real. A trama de Amor Maldito se passa em torno de Fernanda, mulher assumidamente lésbica, acusada da morte de sua companheira Sueli. A narrativa é guiada pelo julgamento do crime, focalizando além das personagens, as figuras da acusação, da família da Sueli e da sociedade que acompanhava de perto o julgamento. Adélia lança um olhar humanista à história, que tem como alvo a forma como Fernanda está sendo julgada e ao mesmo tempo a relação entre as duas mulheres. Ao longo da narrativa vão sendo expostos também outros temas além do preconceito contra a homossexualidade, como a violência contra a mulher, através do pai pastor evangélico que abusava da filha; a violência do Estado contra a ré, considerada culpada antes do julgamento e o questionamento sobre os valores da família, ao mostrar a hipocrisia em torno da família de Sueli. Apesar de abordar o lesbianismo como temática central do filme é importante perceber como Adélia optou mostrar a relação entre o casal, utilizando recursos 78 como os flashbacks para as cenas em que as duas mulheres trocam carinho e de uma forma que não é erotizada, mas sim com um apelo amoroso. Em entrevista concedida ao Podcast Feito por elas, em 201731, Adélia relembra um momento em que o filme foi exibido em uma universidade do interior de Minas Gerais, em sessão aberta ao público, e uma das pessoas que assistiu ao filme foi até à cineasta e falou que negou-se a dar aula de piano a uma menina que era lésbica, e depois que assistiu ao filme gostaria de encontrar a menina para dar aula a ela. Ou seja, o filme toca na humanidade do espectador à medida que mostra o pré-julgamento e as mazelas do preconceito. Adélia contou ainda que enfrentou uma grande dificuldade para fazer o filme pois a Embrafilme negou o financiamento por causa da temática, nas palavras dela: “Recebemos uma carta dizendo que os órgãos governamentais jamais dariam um financiamento a uma relação entre duas mulheres, por mais que eu tentasse argumentar que não era o foco do filme, não adiantou”. A dificuldade de realizar o filme a fez buscar alternativas e uma delas foi propor ao elenco e equipe técnica uma produção cooperativa, já que ela teve que produzir o filme com poucos recursos. O filme tem dois momentos, o lançamento em 1984, quando teve que ser distribuído como filme pornográfico, que foi outra estratégia que a diretora utilizou para que o filme fosse exibido. E o momento atual em que o filme é reconhecido como um filme importante para o cinema de temática homossexual e dirigido pela primeira cineasta negra do cinema brasileiro. Adélia Sampaio começou a trabalhar como telefonista, em 1967, na Difilm, que distribuía filmes de realizadores do Cinema Novo, como Luiz Carlos Barreto e Joaquim Pedro de Andrade. Começou a produzir filmes com a irmã, que era casada com o cineasta William Cobett. Ainda nos anos 1970, Adélia Sampaio trabalhou na produção dos filmes O segredo da rosa, dirigido por Vanja Orico, em 1974; Ele, ela, quem? (1977), de Luiz de Barros, e O seminarista, de Geraldo Santos Pereira, também em 1977. Na década de 1980, Adélia Sampaio dá um salto em sua carreira. Produziu também o filme Parceiros da aventura (1980), de José Medeiros, e Um menino... uma mulher (1980), de Roberto Mauro. Os curtas dirigidos por Adélia Sampaio nos anos 1970 e 1980 são Denúncia vazia, Agora um deus dança em mim, Adulto não brinca, e Na poeira das ruas. Após a produção do seu primeiro longa Amor maldito, Adélia Sampaio dirige em 1987, o documentário Fugindo do passado: um drink para tetéia e história banal, sobre memórias da ditadura. Em 2004, co- dirige, com Paulo Markum, para a televisão, AI-5 – o dia que não existiu.

31 Cf. https://feitoporelas.com.br/drops-fpe-02-adelia-sampaio/ 79

Outro nome de grande impacto, principalmente no cinema comercial dos anos 1980 e 1990, é o de Tizuka Yamasaki32. Filha de pais japoneses, Tizuka nasceu na cidade de Porto Alegre, em 12 de maio de 1949. Mudou-se com a família para Atibaia, interior de São Paulo, onde viveu até os 15 anos de idade. Depois foi morar na capital para estudar, inicialmente cursou Arquitetura na Universidade de Brasília e depois decidiu estudar cinema no Instituto de Arte e Comunicação Social na Universidade Federal Fluminense (UFF), realizando alguns curtas-metragens nesse período. De acordo com o perfil publicado no site Mulher no Cinema33, o cineasta Nelson Pereira dos Santos, foi um dos seus professores e teve grande influência em suas ideias. Tizuka trabalhou com ele também como assistente em algumas obras. Ela atuou como continuísta e fotógrafa de cena do filme O Amuleto de Ogum (1974). Em 1978, Tizuka abriu a produtora CPC, em sociedade com os cineastas Lael Rodrigues e Carlos Alberto Luiz. Em 1980 a cineasta filmou o seu primeiro longa-metragem: Gaijin - Caminhos da liberdade, que se volta para a história de sua própria família, de imigrantes japoneses, destacando as dificuldades que enfrentaram ao vir para o Brasil no começo do século. O filme teve um grande sucesso e ganhou vários prêmios. De acordo com a Cinemateca Brasileira34 foram conquistados os seguintes prêmios: Melhor filme no Festival de Gramado, incluindo neste mesmo festival os prêmios de melhor trilha sonora, melhor cenografia; melhor ator coadjuvante para José Dumont e melhor roteiro para Jorge Duran e Tizuka Yamasaki. Ganhou também o Prêmio Especial de Direção no Prêmio Air France de Cinema. Margarida de Prata da CNBB, 1980 - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Rio de Janeiro, RJ. Melhor cenografia para Yurika Yamasaki, pela APCA, 1981 - Associação Paulista de Críticos de Arte, SP. Troféu Curumim pelo Clube de Cinema de Marília. Grande Prêmio Coral e Melhor Filme de Ficção no Festival de Havana. Prêmio George Sadoul no Festival de Paris. Menção honrosa na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes. Menção honrosa no Film-Expo-Filmex, de Los Angeles - EUA e Melhor filme (escolha do público) no Festival de Bruxelas, em 1981. Em 2005, lançou Gaijin – Ama-me Como Sou, retomando os temas de seu primeiro longa. Para Suzuki (2019, p. 303) “esses dois filmes foram muito importantes no âmbito da imigração no país. Até então, nenhum outro filme havia abordado o assunto, sobretudo tratando das colônias japonesas no Brasil”. Em 1983, Tizuka realiza o filme Parahyba, Mulher Macho

32 TIZUKA Yamasaki. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 09 de abr. 2020. Verbete da Enciclopédia. 33 Cf. https://www.mulheresdocinemabrasileiro.com.br/site/mulheres/visualiza/461/Tizuka%20Yamasaki 34 Informações disponíveis em: CINEMATECA BRASILEIRA. http://bases.cinemateca.gov.br/cgi- bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=ID=021 213&format=detailed.pft#1. Acesso em: 10 de abr. 2020. 80 e em 1988, filma outra obra com viés histórico: Patriamada. A partir da década de 1990, Tizuka direciona sua produção para o público infantil, com grandes sucessos de bilheteria, como (1990) e O Noviço Rebelde (1997), Fica Comigo (1998), Xuxa Requebra (1999), Xuxa Popstar (2000), Xuxa e o Mistério de Feiurinha (2009). Esses últimos apresentam um declínio de bilheteria que reflete um desgaste no formato e “o cansaço do público com produções repetitivas” (SUZUKI, 2019, p. 297). Em 2010 ela filma Amazônia Caruana e Aparecida - O Milagre. Tizuka Yamasaki tem também grande atuação em televisão, como diretora e roteirista, dirigiu obras como O Pagador de Promessas, minissérie da TV Globo; Kananga do Japão, novela da TV Manchete; Amazônia e Madona do Cedro, minissérie da TV Globo e em 2004: Metamorphoses, da Rede Record. A trajetória dessas diretoras assinala o que percebemos como um esforço em manter a presença da mulher na tela e também por trás das câmeras, em um movimento que não é exatamente político por si só, mas que se encaminha de acordo com a trama de encadeamentos de produção na cena cinematográfica nacional, quebrando barreiras ao encarar projetos de baixos orçamentos, se associar com roteiristas já conhecidos, enfim, buscar alternativas para realizar e lançar o filme. No próximo tópico nosso enfoque é nas realizadoras que têm atuado a partir dos anos 1990 e contribuído para que o cinema brasileiro de autoria feminina seja reconhecido na cena contemporânea como uma produção de qualidade, com prêmios e continuidade de projetos.

2.2 Cineastas do cinema brasileiro contemporâneo

Pensando em termos de evolução da presença das mulheres no cinema brasileiro, os anos 1990 representam o período em que há um aumento exponencial de mulheres atuando no cenário audiovisual do país e grande parte destas cineastas continuam produzindo nos dias atuais e contribuindo para diminuir as desigualdades nos números da produção de autoria feminina no cinema brasileiro. É neste período que se convencionou chamar de Retomada do cinema brasileiro, que as políticas de incentivo à produção começam aos poucos a serem retomadas, após o desmonte do governo Collor à cultura e em especial à produção do cinema nacional com o fechamento da Embrafilme. Embora haja divergências sobre o que representou a Retomada, esse é o termo mais utilizado para tratar desse período, que tem início em 1993 após o fechamento da Embrafilme e a realização do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro. Como lembra Nagib (2012, p. 13): “Em três seleções promovidas entre 1993 e 1994, o Prêmio Resgate contemplou um total de 90 81 projetos (25 de curta, nove de média e 56 de longa metragem) que foram finalizados numa rápida sequência”. Com a Lei do Audiovisual, criada em 1993, a produção tem mais um incentivo para o aumento da produção. Nagib (2012) aponta o ano de 1998 como ápice e também final da Retomada, quando a Lei do Audiovisual começa a dar sinais de desgaste e a própria economia do país enfrenta dificuldades, deixando o incentivo à produção cinematográfica em segundo plano. Neste tópico nos voltamos para a produção das cineastas do cinema brasileiro contemporâneo. Muitas dessas cineastas começaram ou intensificaram sua atuação nos anos 1990 e seguem em suas funções de realizadoras de cinema, atuando na valorização do cinema realizado por mulheres e enfrentando as barreiras impostas pela indústria e pela própria condição de serem mulheres. Essa dificuldade é lembrada pela cineasta Laís Bodanzky durante entrevista que ela nos concedeu e falou sobre o preconceito por ser mulher, na época em que finalizou o filme Bicho de sete cabeças.

Quando eu fiz o filme Bicho de sete cabeças eu finalizei ele na Itália, foi uma coprodução com a Itália, e eu lembro sim da dificuldade que foi finalizar o filme lá, montar o filme lá e eu não conseguia entender porque era tão difícil, e depois que o tempo passou foi que eu fui entender que a dificuldade, na verdade estava ali: a Itália é um país muito machista, tão machista quanto ou mais que o Brasil, e eu era ali uma diretora, uma mulher, e ainda por cima, uma diretora estreante, que também há um preconceito por ser estreante. E eu era ali uma diretora que vinha do Brasil, que era considerado naquela época um país de terceiro mundo. Então eu tinha esses três pesos nas minhas costas, e era muito difícil, eu sentia pelo olhar, pela falta de interesse, pelo desprezo, que parecia que meu filme não era importante. (BODANZKY, 2018).

A cineasta lembra dessa dificuldade e também do quanto esse aspecto contribuiu para que ela própria diminuísse a importância do filme antes da estreia, chegando ao ponto de até mesmo desacreditar do resultado, ela conta que ficou pensando em como poderia contar para a equipe que todo o trabalho com o filme parecia ter sido equivocado

Quando eu voltei pro Brasil com o filme todo pronto, montado, eu pensei assim: tenho certeza que o filme é um equívoco. Morrendo de vergonha de mostrar pra equipe, pro elenco, quase que pedindo desculpas por eles terem feito um filme que deu errado. E quando teve a primeira sessão do filme, no Festival do Rio, em que o filme foi ovacionado, eu tomei um susto porque eu não sabia o filme que eu tinha feito, de tão desprezada que eu fui durante todo esse processo da pós-produção, finalização e montagem. (BODANZKY, 2018).

Esse depoimento é emblemático porque mostra a percepção de uma cineasta que sofre o preconceito de uma forma muito recorrente contra as mulheres, na atitude de desvalorizar suas produções ao ponto de fazer a própria mulher desacreditar de sua obra. Como ela diz 82

“parecia que meu filme não era importante”, e após o resultado ela tem a confirmação do valor do seu trabalho e de todo esforço envolvido. É uma situação que ocorre com outras mulheres, continua ocorrendo não somente na área do cinema, contudo precisa ser problematizada. Algumas das realizadoras que analisamos aqui se destacaram no período da Retomada e continuam atuantes no cinema brasileiro contemporâneo. Para traçar esse panorama consideramos dados oficiais e uma pesquisa documental, utilizando entrevistas e informações de bancos de dados sobre a biografia e filmografia destas cineastas na perspectiva de compor um quadro sobre a atual situação que configura a participação de cineastas mulheres no cinema brasileiro contemporâneo. Destacamos nesse levantamento com informações mais detalhadas as cineastas Carla Camurati, Tata Amaral, Anna Muylaert, Laís Bodanzky, Sandra Werneck, Petra Costa e Sandra Kogut. Porém essa lista se torna bem mais extensa se considerarmos o número de cineastas atuantes atualmente no cinema comercial e no cinema independente e as diferentes regiões do país. Se incluirmos ainda as documentaristas e diretoras de curta metragem e do gênero animação também esse número aumenta expressivamente e requer um levantamento que seria mais adequado a uma pesquisa exploratória, com uma equipe mais ampla para dar conta do desafio. Desta forma, por questões de abrangência desta pesquisa, optamos por utilizar, neste breve levantamento, um critério de escolha que segue o crivo do alcance de suas ações para o desenvolvimento do cinema brasileiro. Elencamos aqui algumas das cineastas que realizaram pelo menos dois filmes de longa-metragem (ficção ou documental) e apresentam em sua obra um engajamento com a ampliação das vozes de protagonismo das mulheres através do cinema. Começaremos a lista pela cineasta Carla Camurati35, que se tornou diretora, produtora e roteirista após uma bem sucedida carreira de atriz no teatro e na televisão, exemplo desse sucesso é o prêmio de melhor atriz no Festival de Gramado com o filme Eternamente Pagu (1988), dirigido pela também atriz e cineasta Normal Bengel. Camurati começou a dirigir com o curta A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal (1987) e em seguida realizou o curta Bastidores (1991). Além da função de direção ela atuava em novelas da Rede Globo, SBT e na extinta TV Manchete. O sucesso do longa-metragem Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), que é considerado um marco da Retomada do cinema nacional, mostra o seu potencial

35 Informações sobre a biografia da cineasta foram pesquisadas no site Mulheres do Cinema Brasileiro. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2020. E na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. Disponível em: CARLA Camurati. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 18 de fev. 2020. 83 na área do cinema, o filme atingiu mais de 1,2 milhão36 de espectadores devido a uma iniciativa de distribuição independente da própria diretora, que captou os recursos diretamente com patrocinadores, já que naquele momento o setor passava por um momento de crise ocasionada em parte pelo fechamento da Embrafilme. Ao falar sobre o filme, Augusto (2019, p. 132) destaca:

A película lançada em janeiro de 1995 despertou o interesse dos brasileiros pela sua própria história e, ainda, à frente do seu tempo para o país (Teste de Bechdel), levou à grande tela corajosa novidade ao apresentar uma protagonista feminina, uma polêmica mulher que faz parte da história nacional: Carlota Joaquina, princesa do Brazil.

Em 1997, Carla Camurati dirigiu, escreveu e distribuiu o longa La Serva Padrona, primeiro filme-ópera do Brasil. Em 2001, realizou Copacabana, ano em que ampliou sua atuação como produtora e distribuidora com a criação da empresa Copacabana Filmes. Seu quarto filme, a comédia Irma Vap – O Retorno, estreou em 2006. Muito atuante na área do cinema, além de trabalhar na produção de projetos em sua produtora, ela também atua na exibição. Em 2018 coordenou o Fici - Festival Internacional de Cinema Infantil. Nessa perspectiva ela defende a obrigatoriedade do ensino de cinema para crianças. Carla Camurati está finalizando seu novo projeto “História do tempo presente”, um documentário que se volta para a temática da redemocratização do país. Segundo a cineasta, em entrevista concedida ao Jornal O Globo37, em 2018, o documentário busca uma abordagem neutra: "nossa redemocratização é por si só um folhetim inacreditável, confuso e intenso, com impeachments e trocas de moedas, e quero apontar para uma direção que não seja os extremos". Nesta entrevista ela também defendeu a importância de incentivar o cinema desde criança, na escola, dando a ênfase que se dá a essa linguagem em outros países desenvolvidos:

Tem gente que pensa no audiovisual como ferramenta, mas é uma linguagem. Deveria ser ensinado desde o começo, assim como leitura e escrita. Esqueça o cinema e pense o seguinte: a maior parte da comunicação do mundo é, hoje, feita por meio do audiovisual, em celulares, tablets e computadores. Se não desenvolvermos em nossos filhos o olhar e a aptidão para essa área, seremos analfabetos, incapacitados de nos expressar. Teremos um novo apartheid. (CAMURATI, 2018).

36 AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA. Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual. Listagem de Filmes Brasileiros com mais de 500.000 Espectadores 1970 a 2018. Brasília, 03 jul. 2019. Disponível em: . Acesso em: 23 jul. 2019. 37 CAMURATI, Carla. ‘Nossa redemocratização é um folhetim inacreditável', diz Carla Camurati, que dirige filme sobre o Brasil de 1989 pra cá. [Entrevista cedida a] Fábio Ristow. O Globo. [S.l.], 26 set. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/nossa-redemocratizacao-um-folhetim-inacreditavel-diz-carla-camurati- que-dirige-filme-sobre-brasil-de-1989-pra-ca-23185148. Acesso em: 10 jan. 2020. 84

Um outro projeto que ela pretende desenvolver e cita na reportagem é uma plataforma de conteúdo feminino chamado Mulheres Mix. "Será pensada e produzida por e para mulheres a partir de 40 anos. O objetivo é consolidar o saber feminino”. Outra cineasta que é considerada uma das mais importantes realizadoras do cinema nacional é Tata Amaral38. Ela frequentou as aulas de cinema na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). No fim dos anos 1970, integrou o grupo político de esquerda Libelu (Liberdade e Luta) e acompanhou os movimentos de greves da época, como as do ABC paulista e da ECA. Tata Amaral participou do movimento conhecido como a Primavera do Curta Brasileiro, entre as décadas de 1980 e 1990, com a direção de vários curtas-metragens, que concorreram em festivais nacionais e internacionais. O primeiro longa-metragem dirigido pela cineasta foi Um Céu de Estrelas (1996), premiado nos festivais de Brasília, Boston, Trieste, Créteil e Havana. O filme conta a história de uma jovem cabeleireira impedida pelo ex-noivo desempregado de viajar para receber um prêmio. Em 2006, Tata Amaral criou a Tangerina Entretenimento e realizou o filme Antônia, que deu origem a uma série produzida pela Rede Globo e indicada ao Emmy. Em 2011, com o filme Hoje, a diretora leva seu interesse pela memória para as telas do cinema. Em 2016, a série Trago Comigo foi adaptada para o cinema. O longa narra a angústia de um diretor de teatro atormentado pela falta de lembranças a respeito de uma relação amorosa interrompida pela violência da ditadura. A cineasta Anna Muylaert39, que também assume a função de roteirista e diretora de programas de televisão, nasceu em São Paulo, capital, em 1964. Ela estudou cinema na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e no início da sua carreira, na década de 1980, além de realizar curtas-metragens publicava textos críticos de cinema em revistas e jornais. Em 1988, Anna Muylaert escreveu o roteiro e dirigiu o curta-metragem Rock Paulista. Participou do grupo de criação de programas infantis na TV Cultura, como Mundo da Lua e Castelo Rá-Tim-Bum. Com o curta A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti (1996), ela se destacou e ganhou o prêmio de melhor curta no XIII Rio Cine Festival. Entre os longas que dirigiu, estão Durval Discos (2002), que ganhou os prêmios de melhor filme e melhor diretor no Festival de Gramado, É Proibido Fumar (2009) e Chamada

38 Informações sobre a biografia da cineasta foram pesquisadas no site Mulheres do Cinema Brasileiro. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2020. E na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2020. 39 MUYLAERT, Anna. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. ISBN: 978-85-7979-060-7. Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2020. 85 a Cobrar (2012). Um de seus trabalhos que teve grande visibilidade foi o filme Que Horas Ela Volta?, protagonizado por Regina Casé, que critica as desigualdades sociais do país. O longa foi premiado no Festival de Sundance e no Festival de Berlim. A cineasta Anna Muylaert busca focalizar conflitos e uma abordagem da vida privada dos personagens, este aspecto pode ser visto em Durval Discos e também no filme Que Horas Ela Volta?, neste último ela faz uma abordagem sociopolítica, destacando questões de desigualdade de classes, focando no cotidiano de uma família de classe média e sua empregada Val. O choque de culturas se dá com a chegada de Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, que viaja para São Paulo para concorrer em um vestibular para o curso de Arquitetura. No filme, Anna trata desses conflitos pela perspectiva da porta da cozinha, visão que Val sempre teve dos patrões. Jéssica busca ultrapassar essa barreira e ocupa outros espaços da casa, como o quarto de hóspedes, a piscina, através dessa ocupação que incomoda a patroa, é ressaltada a metáfora da ocupação de outros espaços sociais que ainda continuam dificultados para as classes menos favorecidas. O filme tenta mostrar que essas barreiras aos poucos ao sendo quebradas. O tema da maternidade também foi evidenciado em outro projeto, em 2016, Anna dirigiu o longa-metragem Mãe Só Há Uma. A paulista Laís Bodanzky40 estreou na direção em 1995, com o curta Cartão Vermelho, selecionado para o New York Film Festival. Filha do cineasta Jorge Bodanzky, seu primeiro longa, Bicho de Sete Cabeças (2001), que conquistou vários prêmios e teve como protagonista o ator Rodrigo Santoro. Na sua trajetória na função de diretora estão ainda os longas de ficção: Chega de Saudade (2008), As Melhores Coisas do Mundo (2010), os documentários Cine Mambembe – O Cinema Descobre o Brasil (1999), A Guerra dos Paulistas (2003) e Mulheres Olímpicas (2013). Seu último filme, seu longa-metragem Como Nossos Pais (2017), estreou no Panorama Especial do Festival de Berlim e foi indicado ao prêmio Teddy. Desde o seu primeiro curta, as mulheres estão no centro de algumas histórias dirigidas pela cineasta. Não que ela só utilize temáticas deste universo, mas podemos observar uma sensibilidade na abordagem de temas e conflitos do universo das mulheres. No filme Chega de Saudade (2008) esse aspecto está presente nas personagens mulheres. O filme se passa num salão de baile, tendo uma única unidade de tempo e espaço. Conta a história de um grupo de meia-idade, que se reúne semanalmente num clube de dança no bairro paulistano da Lapa.

40 BODANZKY, Laís. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. ISBN: 978-85-7979-060-7. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa14017/lais- bodanzky. Acesso em: 14 jun. 2020. 86

Segundo informações da produtora Buriti Filmes, empresa gerenciada por Laís, o filme Chega de Saudade alcançou cerca de 200 mil espectadores nos cinemas de todo o país e recebeu 21 prêmios - doze internacionais e nove nacionais. Teve uma carreira internacional de sucesso, sendo exibido na América Latina pela HBO e assistido por 300 mil pessoas, na França e na Alemanha, por meio do canal Arté. O longa também foi distribuído na Inglaterra, pela Matchbox Films, e vendido para diversos países - entre eles, a Romênia. Em Como Nossos Pais, lançado em 2017, a personagem de Rosa, interpretada pela atriz Maria Ribeiro, questiona o papel da mulher moderna e seus conflitos nas funções de mãe, esposa e trabalhadora, vivenciando a pressão das imposições sociais e familiares. Laís Bodanzky esteve à frente da gestão da SPcine, na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, até o início de 2021, quando passou o cargo para a cineasta Viviane Ferreira. O órgão é responsável pelo fomento ao audiovisual paulistano. A diretora Sandra Werneck41 também compõe o quadro de cineastas que contribuem para a presença de mulheres no cinema dos anos 1990 e 2000. A carreira da cineasta carioca se iniciou com pequenos trabalhos como diretora de fotografia, passando então a dirigir documentários de curta e média-metragem. Seu primeiro longa de ficção como diretora, Pequeno Dicionário Amoroso (1996), foi premiado no Festival de Brasília e exibido internacionalmente. O filme seguinte da cineasta, Amores Possíveis (2001), participou dos festivais de Sundance e de Miami, nos Estados Unidos. Seu grande sucesso foi o longa- metragem Cazuza – O Tempo Não Pára (2004), filme de maior audiência nas bilheterias do país daquele ano. Com o documentário Meninas42, lançado em 2005, Sandra lança seu olhar para a realidade de jovens grávidas precocemente. O filme toma quatro casos e os acompanha, da gravidez ao parto. São quatro moradoras de áreas populares do Rio: Evelin (13 anos), Edilene (14), Luana e Joice (15). A narrativa documental nos leva à realidade dessas jovens fazendo questionar os motivos pelos quais a gravidez na adolescência acontece na vida dessas garotas, mostrando o quanto essa situação muda profundamente suas vidas.

41 MULHERES DO CINEMA BRASILEIRO. Sandra Werneck. Disponível em: http://www.mulheresdocinemabrasileiro.com.br/site/mulheres/visualiza/456/Sandra%20Werneck. Acesso em: 12 mar. 2020. 42 ESTADÃO. Estreia Meninas, documentário de Sandra Werneck. [S.l.], 05 maio 2006. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,estreia-meninas-documentario-de-sandra- werneck,20060505p2110. Acesso em: 15 mar. 2020. 87

A cineasta Sandra Kogut43 também é incluída nesta lista de cineastas que iniciaram seu trabalho em uma realidade ainda mais difícil para as mulheres na indústria do cinema brasileiro e que continua atuante nos dias atuais. Ela iniciou sua formação acadêmica em 1981, no curso de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que não chegou a concluir e decidiu cursar Comunicação Social. Em sua carreira estão experiências com intervenções artísticas, vídeo-performances e videoclipes nos anos 1980, quando a linguagem do vídeo ganhava destaque. Em 1988 ela realizou o projeto Vídeo Cabine Número 1, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, com exibição e gravação de vídeos em espaços públicos. Em 1989, foi convidada para fazer uma residência artística no Centre International de Création Vidéo Pierre Schaeffer, na França, e inicia as gravações de Parabolic People. Lançado em 1991, o projeto rendeu-lhe reconhecimento internacional e recebe prêmios, como o Locarno New Images Festival, na Suíça, e exibições no National Gallery of Art, em Washington. Em 1995, dirigiu o programa Brasil Legal, apresentado por Regina Casé. Para Kogut (2020a) “a presença feminina aumentou muito, e em áreas diferentes da produção audiovisual. Isso faz uma diferença grande. Antigamente você não via mulheres (ou via raramente) em certas áreas. Na direção mesmo era bem mais raro”. Em 2001, Sandra Kogut lançou seu primeiro longa-metragem, o documentário Um Passaporte Húngaro, seguido por Mutum (2007), seu primeiro filme em 35 mm, e Campo Grande (2015). Em entrevista, concedida a autora em 2020, relatou que na produção do filme Mutum ela ficou sensibilizada com a empatia das mulheres para viabilizar a realização do filme:

O Mutum eu fiz todo amamentando um bebezinho, viajando por lugares sem água, sem eletricidade, no sertão. Um ano e meio de preparação. Aí aconteceu uma coisa incrível. Eu estava procurando crianças pro filme. Era uma extra-terrestre, chegando da cidade grande, do Rio. Mas aí as mães me viam com meu bebê e logo se criava uma espécie de cumplicidade, de empatia. E assim muitas concordaram em me deixar levar seus filhos para fazer oficinas em outras cidades, confiaram em mim. A solidariedade entre mulheres no interior me impressionou muito, é gigante. (KOGUT, 2020a).

Seu filme mais recente, Três Verões, que é protagonizado pela atriz Regina Casé, foi exibido em festivais em 2020, mas não chegou a ser lançado nacionalmente nos cinemas por causa da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). O filme retrata o reflexo da operação

43 KOGUT, Sandra. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. ISBN: 978-85-7979-060-7. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa15675/sandra- kogut. Acesso em: 14 Jun. 2020b.

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Lava-Jato no cotidiano de empregados de uma família rica que atuam em uma casa de praia, em um condomínio de luxo no Rio de Janeiro. O diferencial do filme está na linha temporal escolhida para contar a história, que se passa em três anos, mas focalizando o verão e as festas de final de ano. A comédia é centrada na ótica dos empregados. Madá, interpretada pela atriz Regina Casé, é a empregada responsável por toda a administração doméstica. Eles vivenciam a decadência da família, sentindo as consequências do atraso de salários e outros problemas. A busca de um jeito de não deixar a situação ficar ainda mais complicada, ela vai utilizando o famoso jeitinho brasileiro, e contribui para as situações cômicas do filme. A cineasta Petra Costa se destaca neste levantamento pelo seu estilo de direção e escolha de linguagem, além de sua contribuição para o reconhecimento da qualidade do cinema documental brasileiro. A diretora concorreu ao Oscar 201944 na categoria melhor documentário, com o filme Democracia em Vertigem, sobre a crise político-econômica no Brasil e o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Ana Petra Costa nasceu em Belo Horizonte em 1983 e, quando ainda era um bebê, a família dela se mudou para São Paulo. Cursou antropologia na Universidade Columbia, em Nova York, e em seguida ingressou em um mestrado em Comunidade e Desenvolvimento na Escola de Economia de Londres. Quando retornou ao Brasil, ela começou a se dedicar à realização de cinema. Em 2009, produziu e dirigiu o curta-metragem Olhos de Ressaca, sobre amor e envelhecimento, contado sob a perspectiva de seus avós. Ganhou destaque no cinema nacional com o primeiro longa, Elena (2012), sobre sua irmã Elena, 13 anos mais velha que Petra, que se suicidou quando ela tinha sete anos. O filme recebeu vários prêmios e foi o documentário mais assistido no Brasil em 2013. Em 2015, a cineasta lançou Olmo e A Gaivota, uma investigação de uma vida real em estrutura ficcional feita em parceria com a dinamarquesa Lea Glob. Esse breve levantamento sobre a trajetória de algumas cineastas, que contribuem para a afirmação e importância da mulher em buscar o seu espaço no mercado do cinema e audiovisual brasileiro, afere uma parte da produção do cinema brasileiro. Esse levantamento, contudo, não consegue abarcar todas as cineastas do universo do cinema contemporâneo, pois esse número cresce a cada dia, inclusive tem aumentado o número de profissionais que têm ocupado os cargos técnicos, como diretoras de fotografia, iluminadoras e eletricistas, por exemplo. Um

44 Cf. MARASCIULO, Marília. Quem é Petra Costa, cineasta brasileira indicada ao Oscar. Galileu. [S.l.], 04 fev. 2020. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2020.

89 outro fator que mostra a presença da mulher em espaços que sempre lhes foram negados. Todavia não podemos deixar de mencionar aqui as cineastas que têm realizado filmes importantes e também se destacado na cena contemporânea do cinema brasileiro, como por exemplo, Renata Pinheiro, do cinema pernambucano; Viviane Ferreira, segunda cineasta negra à dirigir um longa-metragem no Brasil, o filme O dia de Jerusa; Dácia Ibiapina, uma das principais documentaristas de Brasília, que lançou seu primeiro longa Entorno da Beleza em 2012; Marília Rocha, que dirigiu os longas-metragens: Aboio (2005), Acácio (2008), A Falta que me faz (2009) e a Cidade onde envelheço (2016). No próximo tópico detalhamos a metodologia utilizada na análise das narrativas do corpus desta pesquisa, a identificação de categorias e a sistematização da forma como foi realizada a análise fílmica. 90

CAPÍTULO 3 ETAPAS DA PESQUISA: O PERCURSO METODOLÓGICO

As escolhas metodológicas desta pesquisa têm como base a análise fílmica e a realização de entrevistas em profundidade. A análise foi realizada sobre as obras de seis cineastas com um recorte temporal que contempla filmes produzidos e realizados a partir de 2012, são elas: Glenda Nicácio (BA) e o filme Até o fim (2020), Adriana Vasconcelos (DF) e o filme Mãe (2018); Jorane Castro (PA) e o filme Para Ter Onde Ir (2018); Laís Bodanzky (SP) e o filme Como Nossos Pais (2017); Cristiane Oliveira (RS) e o filme Mulher do Pai (2016); e Roberta Marques (CE) e o filme Rânia (2012). A análise fílmica foi escolhida como método de interpretação dos filmes por entendermos a importância de inferências precisas sobre os elementos que constituem o filme, especificamente relacionadas às características da linguagem cinematográfica, às escolhas estéticas e narrativas, às representações e às falas dos personagens que compõem as tramas. Entendendo o filme como um meio de expressão, analisamos o espaço fílmico de forma substancial verificando o uso e as escolhas narrativas de cada cineasta. Desta forma buscamos entender o modo como cada uma delas concebe o seu trabalho de cineasta e produz significados a partir de suas obras. Na pesquisa nos detemos aos critérios do olhar da direção sobre o protagonismo de mulheres por acreditarmos ser este um momento importante para enveredar por esta dimensão, tanto imagética como sociológica, percebendo nesta proposta um ineditismo no estudo relacionando às regiões elencadas e sobre a temática escolhida. Nos guiamos por algumas indagações a respeito da atuação da mulher e seus papéis na sociedade, sobre o que permeia as escolhas das cineastas na perspectiva de suas reflexões sobre a identidade de gênero, e principalmente, sobre a construção da representação das protagonistas dos filmes. Ancorada na busca de uma análise consistente sobre as narrativas, percebemos as ideias de Vanoye e Goliot-Leté (1994, p. 15) como importantes para o exercício da sistemática do analista no momento da interpretação dos elementos e dispositivos que constituem o objeto- filme. Para eles “analisar um filme ou um fragmento é, antes de mais nada, no sentido científico do termo, assim como se analisa, por exemplo, a composição química da água, decompô-lo em seus elementos constitutivos”. Desta forma a preocupação metodológica com a análise desenvolvida nesta tese provocou um movimento de desconstrução e reconstrução de ideias e elementos em cada filme para construir uma linha de análise adequada ao corpus, considerando que são ao todo seis filmes analisados, mas que cita outras obras além do seu corpus, resultando 91 em uma lista de filmes considerável. Na tabela abaixo listamos os filmes analisados e suas sinopses, organizados por ordem cronológica por ano de lançamento:

Tabela 1. Filmes escolhidos e sinopses

Filme: Até o fim Direção: Glenda Nicácio e Ary Rosa Ano de lançamento: 2020 Sinopse: Geralda trabalha num quiosque à beira-mar no Recôncavo da Bahia. Certo dia, é informada de que seu pai está internado no hospital e que pode morrer a qualquer momento. Esse doloroso compasso de espera força uma interação entre ela e as três irmãs. As quatro não se viam desde a morte da mãe, há 15 anos. Fonte: Ficha técnica do filme. Disponível em: https://filmow.com/ate-o-fim- t291472/ficha-tecnica/

Filme: Mãe Direção: Adriana Vasconcelos Ano de lançamento: 2018 Sinopse: Madalena (Sura Berditchevsky) é a primeira de quatro gerações de mulheres que lutam com suas diferenças e ainda estão presas a eventos e tragédias entrelaçadas. As quatro mulheres foram ligadas pelo sangue, mas distanciadas pelo destino após a maternidade começar a fazer parte de suas respectivas existências. Fonte: Ficha técnica do filme. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-279268/

Filme: Para Ter Onde Ir Direção: Jorane Castro Ano de lançamento: 2018 Sinopse: Três mulheres com diferentes visões sobre a vida e o amor seguem juntas em uma única viagem, partindo de um cenário urbano para outro onde a natureza bruta prevalece. Eva Maués, mulher madura e pragmática mas ao mesmo tempo cheia de incertezas, Melina Ribeiro, uma mulher livre que busca encontrar de seu grande amor, e Keithylennye, uma jovem guerreira suburbana, que por circunstâncias da vida, teve que abrir mão de fazer o que mais gosta, ser dançarina de tecnobrega, são as protagonistas desse road movie amazônico. Fonte: Ficha técnica do filme. Disponível em: https://filmow.com/para-ter-onde-ir- t218233/ficha-tecnica/

Filme: Como Nossos Pais Direção: Laís Bodanzky Ano de lançamento: 2017 Sinopse: Rosa é uma mulher que quer ser perfeita em todas suas obrigações: como profissional, mãe, filha, esposa e amante. Quanto mais tenta acertar, mais tem a sensação de estar errando. Filha de intelectuais dos anos 70 e mãe 92

de duas meninas pré-adolescentes, ela se vê pressionada pelas duas gerações que exigem que ela seja engajada, moderna e onipresente, uma super-mulher sem falhas nem vontades próprias. Até que em um almoço de domingo, recebe uma notícia bombástica de sua mãe. A partir desse episódio, Rosa inicia uma redescoberta de si mesma. Fonte: Ficha técnica do filme. Disponível em: http://www.buritifilmes.com.br/filmes.php?cat=filme&mostra_filme=24

Filme: Mulher do Pai Direção: Cristiane Oliveira Ano de lançamento: 2016 Sinopse: Em uma pequena comunidade próxima à fronteira do Brasil com o Uruguai, uma relação entre pai e filha se transforma. Ele é Ruben, um homem de 40 anos que ficou cego ainda jovem. Ela é Nalu, uma adolescente de 16 anos que está se tornando mulher. Eles precisarão aprender a se tratar como pai e filha depois da morte de Olga, mãe de Ruben, mulher forte e superprotetora que os criou quase como irmãos. O afeto que surge entre ambos entra em conflito quando Rosario, uma atraente uruguaia, ganha espaço em suas vidas. Fonte: Ficha técnica do filme. Disponível em: https://abcine.org.br/site/mulher-do- pai/

Filme: Rânia Direção: Roberta Marques Ano de lançamento: 2013 Rânia é uma adolescente humilde de Fortaleza, que trabalha num Sinopse: quiosque de praia enquanto sonha em ser bailarina. Quando sua amiga lhe arranja um bico como dançarina numa boate, ela conhece uma famosa coreógrafa que pode tornar seu sonho realidade. Ficha técnica do filme. Disponível em: https://filmow.com/rania- Fonte: t58688/ficha-tecnica/ Fonte: Fichas técnicas dos filmes

As narrativas analisadas, embora tematizem realidades diferentes, se vinculam pelos dilemas que, por sua vez, apresentam diversos aspectos, relacionados, principalmente, às relações familiares e aos conflitos que permeiam a vida da mulher, focalizados na representação das protagonistas dos filmes. É importante pontuar que consideramos na escolha do corpus de análise as realizadoras que atuam na produção cinematográfica com viés mercadológico, demarcado por grandes estruturas de orçamento, produção e distribuição, mas também que atuam no campo da produção independente. Os filmes escolhidos constituem narrativas realizadas em um contexto contemporâneo de transformações no cinema brasileiro, que influenciam e estão presentes nos processos de realização das obras. Como apontam Vanoye e Goliot-Leté (1994, p. 56), “reflexo ou recusa, o 93 filme constitui um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do mundo que lhe é contemporâneo. Estrutura a representação da sociedade em espetáculo, em drama (no sentido geral do termo), e é essa estruturação que é objeto dos cuidados do analista”. A análise sócio- histórica dos filmes constituiu uma importante etapa da pesquisa à medida que proporcionou um olhar atento ao contexto no qual os filmes foram construídos. A observação e anotação detalhada sobre os temas que abordam e também sobre o percurso de suas realizadoras nessas produções nos mostrou o desafio que representam projetos com esta configuração. O corpus da pesquisa incluiu cineastas que se propõem a produzir filmes que incluem temáticas centradas, direta e/ou indiretamente, na condição da mulher e seus conflitos. Na análise da produção dessas cineastas consideramos o contexto de produção das cinco regiões brasileiras e as falas das diretoras elencadas na investigação como fontes primárias, no intuito de entender seus processos criativos e as dificuldades enfrentadas no processo de realização. A análise desenvolvida nesta tese é significativa para o entendimento da produção cinematográfica contemporânea e relevante principalmente por reunir uma base analítica heterogênea, o que contribui para o campo da pesquisa cinematográfica no que se refere às diferentes realidades socioculturais do Brasil. A tese analisa também como se dá a forma de produção das cineastas, a partir da realização de entrevistas focadas em questões de produção, estilo e estética cinematográficas. A escolha da entrevista qualitativa para a pesquisa social, que de acordo com Bauer e Gaskell (2012, p. 64) “fornece os dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação”, contribui para uma análise mais elucidativa ao incluir as falas e opiniões das entrevistadas. Aliada à análise fílmica realizamos ainda uma análise da carreira das cineastas para entender sua trajetória e as práticas sociais vinculadas ao trabalho que realizam no campo do cinema e o que concebem como estratégias na busca de igualdade de gênero no cinema. Um ponto importante a ressaltar é que esta investigação não se configura como uma cartografia do fazer cinematográfico de mulheres, pois entendemos que esta é uma outra forma de abordagem da temática. Contudo, nosso objetivo principal com esta pesquisa é entender a produção de sentido nas obras das cineastas do cinema brasileiro contemporâneo, tendo como base uma amostra que considera as cinco regiões do país e se volta para cineastas que têm em comum o olhar centrado no protagonismo de mulheres. A pesquisa nos impôs desafios importantes, principalmente o de analisar os aspectos da significação do papel da mulher a partir do texto fílmico e entender o encadeamento dos elementos estéticos vinculados à representação. A metodologia buscou um aprofundamento do 94 olhar sobre o objeto pesquisado e assim desenvolvemos esta pesquisa aliando a entrevista em profundidade à análise fílmica. A seguir detalhamos a sistematização de cada etapa da pesquisa.

3.1 Primeira etapa: A pesquisa exploratória

A primeira etapa da pesquisa consistiu em reunir o material de análise a partir da investigação sobre o panorama das realizadoras do cinema brasileiro dentro do recorte temporal definido, contemplando filmes lançados a partir de 2010. Nesta fase inicial nos deparamos com uma série de descobertas sobre as produções das mulheres que fazem parte deste panorama. Um aspecto que chamou atenção foram os dados da indústria do cinema brasileiro relacionados à realização de filmes por mulheres, principalmente no que diz respeito à função de direção, pois na de responsável pela produção os números são mais animadores. Começamos destacando esse aspecto, pois foi a partir da surpresa com os dados resultante do estudo sobre o perfil do cinema brasileiro, realizado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas (GEMAA)45, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em 2016, que nos sentimos motivadas em realizar essa pesquisa. O referido estudo destacou que nas últimas duas décadas (1995-2014), o cinema nacional foi realizado majoritariamente por homens brancos. No período mencionado, as mulheres negras não estão presentes nas posições de roteirista ou diretora, constituindo, assim, o grupo mais sub-representado em equipes de produção cinematográfica. Outros dados e detalhes das estatísticas sobre a realização de filmes por mulheres estão reunidos no Capítulo 1. A partir destes dados buscamos informações adicionais para subsidiar a compreensão do nosso campo de análise e os desdobramentos da temática que estávamos investigando. Neste ponto o estado da arte foi primordial para conhecer as pesquisas já realizadas sobre o tema, seus resultados e também a lacuna existente no que toca a publicações sobre as questões que priorizamos, isto é, o protagonismo de mulheres no cinema contemporâneo. Muitos estudos voltavam-se para o período inicial do cinema, com viés mais histórico, ou sobre a representação da mulher nos filmes nas diferentes fases de desenvolvimento e movimentos do cinema nacional como, por exemplo, os movimentos do Cinema Novo e do Cinema da Retomada. Em

45 CANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto; FERES JÚNIOR, João (org.). “A Cara do Cinema Nacional”: gênero e raça nos filmes nacionais de maior público (1995-2014). [S.l.]: GEMAA, 2016. p. 1-20. (Textos para discussão, n.13). Disponível em: http://gemaa.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2018/03/TpD13.pdf. Acesso em: 10 jan. 2017. 95 relação ao cinema realizado por mulheres, nos deparamos também com uma grande parte das pesquisas realizadas com análises de documentários, já os filmes de ficção, por terem um processo de produção mais complexo, acabam por apresentar números mais restritos, daí a dificuldade de reunir um corpus de análise. No início desta pesquisa o objeto de estudo passou por algumas mudanças o que provocou a vontade de entender o que contribuía para a manutenção da desigualdade de gênero no contexto cinematográfico acabou por indicar alguns direcionamentos na definição do objeto e da tese que defendemos. Uma dessas situações adveio da polêmica, na época do lançamento do filme Que horas ela volta dirigido pela cineasta Anna Muylaert em 2015, quando os cineastas pernambucanos Lírio Ferreira e Cláudio Assis46 causaram indignação durante um debate após a exibição do filme na sala de exibição do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco no Recife. Os dois cineastas interromperam Anna Muylaert diversas vezes e em um determinado momento Cláudio Assis chamou de "gorda" a atriz Regina Casé, protagonista do longa. Muylaert declarou em entrevista47, que o fato serviu para abrir uma discussão maior sobre machismo e preconceito. "Eles estavam bastante alcoolizados. Agiram de maneira infantil e boba, numa atitude de egolatria comum aos homens. Quando viram uma mulher em evidência, precisaram atrapalhar o momento", falou. A Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) emitiu uma nota pedindo desculpas, através do Facebook e do Twitter, aos frequentadores incomodados com o ocorrido no debate, e decidiu punir os dois cineastas os proibindo de participar de qualquer evento e/ou edital promovido pela Fundaj durante um ano. Esse episódio serviu também para evidenciar o machismo existente dentro da indústria e o quanto as mulheres, e parte da sociedade, não estão mais dispostas a tolerar tamanho desrespeito. Outro aspecto importante a ser destacado é que, no momento de reflexão sobre as escolhas de pesquisa para a tese, a produção do cinema brasileiro ganhava novos impulsos como por exemplo, o lançamento do Edital Carmen Santos de Cinema de Mulheres 2013 que apoiava financeiramente a realização de projetos de curta e média-metragem. A chamada pública teve um total de 417 propostas cadastradas e superou as expectativas da Secretaria do Audiovisual (SAv), do extinto Ministério da Cultura (MinC). Esse contexto impulsionou a produção de

46 Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2020. 47 Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2020.

96 filmes por realizadoras e nos fez perceber a importância de pesquisar mais profundamente o processo de valorização da produção de mulheres no cinema brasileiro, porém, olhando atentamente para os processos de opressão, invisibilização, machismo e as dificuldades que as mulheres enfrentam, considerando também o que as estimula a continuar e se destacar na função de diretoras. Nessa primeira fase então, foi necessário fazer um levantamento da participação das mulheres em outros períodos do cinema brasileiro, o que possibilitou perceber que, por exemplo, durante o período do Cinema Novo a presença das mulheres como diretoras foi escassa. Apesar de ter sua importância para o desenvolvimento e reconhecimento da produção cinematográfica nacional, cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Cacá Diegues que participaram do Cinema Novo e até incluíram mulheres nas suas produções, mas abriram espaço para elas na direção, a participação ficou mais restrita nos filmes como atrizes representando personagens femininos. Esse é mais um dos fatos que elencamos ao longo da pesquisa bibliográfica e que contribuiu para estruturar a tese. Foi preciso também, nesta fase inicial da pesquisa, definir o corpus de análise e as cineastas que deveríamos entrevistar com a escolha do método da entrevista em profundidade. As escolhas foram permeadas pelos seguintes critérios: 1. Cineastas que realizam filmes de ficção; 2. Cineastas que priorizam em suas obras narrativas protagonizadas por mulheres; 3. Uma cineasta de cada região do país, de forma a tornar a amostra diversa. Assistimos aos filmes necessários para conhecer a obra das cineastas de interesse e iniciamos os contatos com as primeiras cineastas. Neste percurso de definições e ações metodológicas algumas mudanças na vida pessoal alteraram o cronograma da pesquisa, a começar pela minha mudança para Fortaleza para assumir um cargo público na Universidade Federal do Ceará. Com isso uma série de adaptações à vida profissional foram somadas ao desenvolvimento da pesquisa. Essa mudança inclusive influenciou a minha descoberta sobre a obra da cineasta cearense Roberta Marques, que faz parte do corpus desta tese, pelo fato de além de atender os critérios de escolha acima citados, a minha mudança para Fortaleza provocou o interesse pelo audiovisual cearense. No percurso da pesquisa uma outra mudança na minha vida pessoal também impactou as etapas da pesquisa: o nascimento do meu segundo filho, Benjamin, no último ano do doutorado, o que impôs mais um desafio à jornada como pesquisadora, já que a chegada de uma criança altera toda a rotina de trabalho. Com tudo isso, foi necessário dar uma pausa na pesquisa de campo e as entrevistas foram adiadas. No início de 2020, foi possível retornar mais 97 intensivamente às leituras e principalmente, à escrita da tese, rumo à qualificação e depois à defesa. Um outro fato, que impactou o mundo, tornou mais complicada a finalização da tese: a pandemia do novo coronavírus (COVID-19) que nos colocou em isolamento social. Contudo, foi possível finalizar as entrevistas com as cineastas que se colocaram mais disponíveis para conceder entrevistas de maneira remota através de videoconferência. No tópico a seguir detalhamos a fase das entrevistas.

3.2 Segunda etapa: Realização das entrevistas

No tocante às entrevistas, as cineastas responderam a questionamentos em entrevistas semiestruturadas em profundidade, nas quais foi solicitado que falassem sobre suas experiências e colocassem suas percepções sobre os temas abordados. As primeiras entrevistas com as cineastas María Novaro e Laís Bodanzky foram realizadas presencialmente e outras foram feitas através de plataforma de videoconferência ou áudio, primeiro pela dificuldade de deslocamento para outros estados em função de agendas das cineastas e depois em função do isolamento social decorrente da situação ocasionada pela pandemia da COVID-19. A primeira cineasta entrevistada foi a mexicana María Novaro, em julho de 2017, durante o Festival de Cinema Latino Americano em São Paulo, aproveitando a ocasião em que ela esteve no Brasil para lançar o filme Tesoros (2017). Na entrevista falamos sobre o contexto da realização de cinema e os desafios enfrentados pelas cineastas mexicanas. É importante destacar que esta entrevista foi realizada no início da pesquisa quando a temática ainda contemplava a produção de mulheres do cinema latino-americano, então foi com o intuito de aproveitar o momento em que ocorria um festival com diversas obras do cinema latino- americano e a presença de cineastas de outros países que fomos em busca de uma entrevista presencial, uma viagem que, aliás, foi de muito aprendizado. A segunda entrevista, que também foi realizada de forma presencial, foi com a cineasta Laís Bodanzky, e ocorreu durante o Festival de Cinema Cine Sol realizado em Natal-RN em novembro de 2017. Na oportunidade a cineasta exibiu seu filme Como Nossos Pais (2017), que estava sendo lançado nacionalmente, e participou de um debate sobre a participação das realizadoras no cinema brasileiro. Em 2018 e 2019 houve uma grande dificuldade de realizar as entrevistas presencialmente por motivos pessoais de mudanças profissionais e com a gravidez, então nos 98 propusemos viabilizar a realização por meio de videoconferências. Um detalhe importante desta fase foi a forma como conseguimos entrar em contato com as cineastas. Os contatos foram em sua maioria iniciados pelas redes sociais das cineastas e depois continuados por e-mail. Em 2020 foram realizadas as entrevistas com as seguintes cineastas: Sandra Kogut, Roberta Marques, Jorane Castro, Glenda Nicácio e Cristiane Oliveira. Todas as entrevistas foram realizadas à distância. No caso da cineasta Sandra Kogut, tive a oportunidade de conversar com ela pessoalmente durante uma pré-estreia do filme Três Verões (2020) em Fortaleza, porém não consegui realizar uma entrevista em profundidade na ocasião e conversamos posteriormente quando ela respondeu algumas questões por e-mail, em função da agenda lotada porque ela estava no exterior lançando o referido filme. Também é importante destacar que houve uma situação em que fizemos o convite e a cineasta não pode participar. Foi o caso da diretora Viviane Ferreira, que não pode participar das entrevistas por falta de disponibilidade em sua agenda, mesmo com a possibilidade de ser realizada por videoconferência não foi possível conciliar os compromissos da função de cineasta como à frente da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), além da participação em festivais. Um aspecto que mostra também um expoente sobre a produção do cinema por realizadoras e realizadores negros, que tem na figura de Viviane um exemplo de profissional que tem contribuído para a profissionalização do Audiovisual Negro. As respostas coletadas nas entrevistas resultaram em um material com mais de cinco horas para transcrição e organização. Foi um processo árduo que levou semanas e foi realizado com o uso da ferramenta de digitação por voz pelo grande volume do conteúdo gerado. Essa etapa foi de extrema importância, pois nos permitiu ouvir mais de uma vez as respostas às perguntas, refletir e perceber as opiniões e percepções de cada cineasta. No tópico a seguir detalhamos a terceira e última fase do processo de investigação: o formato e a construção das análises. As transcrições do conteúdo integral das entrevistas realizadas por videoconferência estão nos apêndices desta tese.

3.3 Terceira etapa: Análise e interpretação das entrevistas e filmes

A análise dos filmes, objeto de interesse desta tese, buscou aliar a interpretação das narrativas com as respostas das cineastas nas entrevistas. Para a etapa de análise, além de todo o percurso teórico que embasou o olhar sobre as temáticas analisadas e também norteou as escolhas, fez-se necessário pensar uma sistemática analítica que considerasse os diversos 99 aspectos da análise, principalmente a produção de sentido das representações nos filmes analisados. Para isso foram consideradas camadas de sentido aliando as mensagens que cada filme evidencia, a forma escolhida pelas cineastas para evidenciar essas mensagens e as opiniões e percepções colocadas durante as entrevistas. A etapa das análises fílmicas representou um período de 8 meses desde a pré- qualificação, quando foi possível reunir todo o material colhido na pesquisa de campo (filmes, entrevistas e transcrições das entrevistas). A partir desse material, definimos categorias de análise que resultaram na identificação de elementos comuns entre os filmes como por exemplo, a temática. Nos filmes Como nossos pais e Mãe, a temática da família e a figura da mãe em primeiro plano, nos fizeram perceber algumas similaridades que poderiam ser analisadas nas referidas narrativas e os filmes foram colocados em um mesmo subcapítulo. Da mesma forma aconteceu com os filmes Mulher do pai e Rânia, em que a temática da adolescência predomina nas duas narrativas, e têm como protagonistas jovens se tornando mulheres e enfrentando os desafios na busca dos seus lugares no mundo. As outras narrativas, dos filmes Até o fim e Para ter onde ir, optamos por analisar cada filme de forma separada já que não foram identificadas similaridades tão claras nas duas narrativas que possuem enredos diversos, sendo mais pertinente a análise de cada filme em subcapítulos independentes. Considerando as diversas camadas de sentido nos filmes, definimos 5 categorias para nortear a análise da narrativa e as sequências dos filmes: 1. Enredo; 2. Personagens e Protagonistas; 3. Sequência de abertura do filme; 4. Pontos de viradas; 5. Sequência final do filme. Munidas destas categorias de análise, seguimos com o processo de análise dos filmes o que exigiu que assistíssemos a estes, inúmeras vezes, realizando uma observação atenta e interpretando os aspectos relacionados às categorias elencadas acima. Para ter acesso aos filmes, em alguns casos, foi necessário entrar em contato com as cineastas, pois nem todos os filmes estavam disponíveis via serviço de streaming. Os filmes Como nossos pais e Para ter onde ir estavam disponíveis nas plataformas e Amazon Prime Vídeo, respectivamente. Já os filmes Rânia e Mãe, foram disponibilizados pelas cineastas através de links para a plataforma Vimeo e os filmes Até o fim e Mulher do pai, estavam disponíveis on-line no período em que foi feita a análise. O próximo passo foi de identificação das sequências e cenas para destaque na análise e inserção no texto da tese, constituindo a materialidade do objeto de pesquisa e da análise e facilitando o entendimento pelo leitor. Foram realizadas as capturas das imagens no momento da reprodução dos filmes no computador e depois foram selecionadas as imagens para inserção no texto. Esse processo permitiu uma observação detalhada dos elementos de cada sequência 100 o que contribuiu para a percepção das referências e ligações temáticas entre os filmes, aspectos preciosos para a identificação da produção de sentido em cada narrativa. Posteriormente interpretamos as gradações de sentido em cada narrativa fílmica através de uma análise sobre a configuração e escolhas referentes à linguagem cinematográfica por cada cineasta. A escolha pela análise de sequências-chave e categorias semânticas foi motivada pelo tamanho do corpus, sendo seis obras escolhidas, a opção de uma análise minuciosa de planos além de uma tarefa demorada, não adicionaria nenhum benefício à análise do sentido dos filmes, suficiente para a interpretação adequada e pertinente aos objetivos da pesquisa. Os resultados dessa análise interpretativa dos filmes estão reunidos no próximo capítulo. 101

CAPÍTULO 4 SOBRE TRAJETÓRIAS E OBRAS: PROTAGONISMO E BUSCAS AFIRMATIVAS DE CINEASTAS BRASILEIRAS

“Para as mulheres que querem dirigir, diria: dirijam. Se querem escrever, escrevam. Se querem produzir, produzam. Nunca deixem alguém dizer que você não pode, não tem competência, não vai dar conta do recado. Acho que se aprendermos que a gente pode, se tivermos isso no coração e na alma, como necessidade vital, não tem erro, vai dar certo”. Jorane Castro, 2018.

Nesta parte da tese nos voltamos para as trajetórias de vida e carreira profissional das cineastas que analisamos: Adriana Vasconcelos, Cristiane Oliveira, Glenda Nicácio, Jorane Castro, Laís Bodanzky e Roberta Marques. Conhecer suas vivências e olhares sobre as realidades que representam em seus filmes foi primordial para a análise de suas obras. Os trabalhos dessas mulheres representam também suas identidades, moldadas a partir do olhar da professora universitária, da artista, da autora e da cidadã política. Consideramos que esses trabalhos demarcam e afirmam o protagonismo do olhar dessas mulheres cineastas sobre questões que se vinculam à condição da mulher na sociedade brasileira. Etimologicamente, a palavra protagonismo vem de protagonista, que significa “o ator principal”. No teatro grego, Aristóteles (2008) se refere a Téspis de Icária, que é citado como a primeira pessoa a aparecer em um palco como ator, desempenhando um personagem em peça teatral, como também o responsável por introduzir o conceito de protagonista e da técnica deste de contracenar com o coro. O protagonista tem sua importância na história, ao significar a pessoa em torno da qual se constrói todo o enredo, seja no teatro, no cinema, na literatura ou outra linguagem que envolva personagens em uma obra. Mas o termo protagonista também carrega em seu significado figurado “Qualidade da pessoa que se destaca em qualquer situação, acontecimento, exercendo o papel mais importante dentre os demais”48, ou seja, devemos lembrar que dentro da configuração social, existem também os atores que se destacam em seus papéis sociais e o protagonismo de cada ator social, nos grupos aos quais pertence, contribui diretamente para a construção de sua trajetória. Nesse sentido, especificamente tratamos aqui do protagonismo dessas mulheres, em suas buscas profissionais e artísticas através da realização cinematográfica. Além de acompanhar suas produções, nós as ouvimos através de entrevistas e buscamos com a pesquisa e levantamento de dados em suas biografias, contribuir e enriquecer a análise

48 Dicionário Online de Português. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2021. 102 desenvolvida sobre cada filme. Cada impressão, cada gesto, cada ideia compartilhada nas entrevistas nos ajudou a entender o mosaico que se formou ao final da coleta de dados. As entrevistas resultaram em momentos de integração entre esta pesquisadora e as entrevistadas de forma que as perguntas e respostas se debruçaram não somente sobre a obra específica, mas também sobre convicções, ideias, sentimentos, desejos e, principalmente, sobre a questão central desta tese: Que dificuldades as mulheres ainda enfrentam na construção de suas obras na área do cinema no Brasil? Este questionamento norteador nos fez refletir sobre os desafios que essas e outras cineastas enfrentam em seus projetos e nos permitiu uma visão analítica sobre as dificuldades apontadas, o que antes tratávamos como hipóteses da pesquisa, constatamos pela ótica de quem vivencia ou presencia no dia a dia suas atividades profissionais. Antes de falar sobre a trajetória de cada uma dessas profissionais, começamos traçando algumas características comuns que percebemos ao longo da pesquisa e que entendemos necessário detalhar. De forma análoga faremos o mesmo com os filmes. Entre as seis cineastas escolhidas nesta pesquisa, além do fato de serem mulheres e atuarem no cinema brasileiro, destacamos outros aspectos em comum sobre seus trabalhos e visões de mundo, que nos foram sendo revelados ao longo do processo de investigação, e principalmente após as entrevistas. Esses aspectos são: a vontade de incluir outras mulheres no contexto do trabalho cinematográfico; o olhar politizado sobre as questões contemporâneas relacionadas às questões raciais, de classe e à posição da mulher na sociedade e no campo artístico-autoral; as temáticas abordadas nos filmes e a preocupação com a linguagem cinematográfica. As vozes de cada uma delas são destacadas ao longo deste capítulo como forma de entrecruzar nosso olhar com suas percepções e respostas, construindo uma trama de ideias e reflexões que resulta em uma teia analítica, em que cada fio nos revela olhares sobre os aspectos evidenciados na pesquisa. A metáfora do ato de tecer as ideias foi escolhida para a construção deste capítulo da tese pelo nosso entendimento de que há nesta pesquisa uma diversidade de elementos a serem analisados, depoimentos, imagens, conceitos e concepções de cada cineasta, que precisamos entender. Cabe destacar também a vivência desta pesquisadora com as áreas da Cultura e da Arte em sua função atual como produtora cultural na Universidade Federal do Ceará, como docente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte em anos anteriores, e ainda sua atuação no Coletivo Caminhos Comunicação & Cultura, onde realizou projetos de produção cultural e audiovisual. São percursos importantes e decisivos para compreender o protagonismo 103 na vida profissional e acadêmica. Começamos, pois, detalhando o que se configuram ações de protagonismo e buscas afirmativas no trabalho de cada uma das cineastas. A cineasta Roberta Marques49 nasceu em Maranguape, no Ceará. Cursou Letras na Universidade Federal do Ceará (UFC) e na Universidade Estadual do Ceará (UECE), e cursou também psicologia na UNIFOR (1984-86). Fez um curso de fotografia na Société Française de Photographie (1987) em Paris e estudou língua francesa na Sorbonne (1991). Graduou-se em Audiovisual na Gerrit Rietveld Academie (1997) e concluiu o mestrado em Artes Performáticas na DAS Theater (2005), ambas em Amsterdam. Sua trajetória profissional começou na fotografia still, e depois ela percorreu os caminhos da fotografia em movimento, com experiência em vídeo, super-8 e 16mm, realizando curtas, documentários e vídeos-dança. A cineasta destaca que teve que trilhar uma caminhada multidisciplinar para conseguir desenvolver seus projetos:

Eu sou roteirista, diretora, produtora também, eu acho que quando a gente é mulher no audiovisual, uma das formas de você, quando é autora, você só vai pra frente se você se autoproduz, eu acho que isso está mudando um pouco, mas eu acho que na minha geração eu acho que essa era a única forma mesmo[...] eu acho que a voz de mulheres no audiovisual ela já é abafada na criação, então assim, eu sou autora roteirista e virei produtora, por necessidade de levar meus projetos pra frente, fui montadora em algum momento, fui editora também, fui fotógrafa também tanto still quanto vídeo, teve um curta eu filmei em 16mm e filmei eu mesma numa Bolex e montei na moviola, cortando negativo, então assim, eu tenho essa trajetória aí e depois eu trabalhei um pouco também já na época, depois no digital eu fiz edição no digital e fotografia digital, mas isso eu deixei para os experts e tentei me especializar, me aperfeiçoar em escrever e em dirigir. (MARQUES, 2020)

Em 2002, Marques ingressou na Escuela Internacional de Cine y Televisión em Cuba para se aperfeiçoar na prática da escrita de roteiro. Ela é fundadora e diretora da LATITUDE, produtora de audiovisual fundada em 2001, com sede em Fortaleza. Rânia, seu primeiro longa ficção, estreou no Festival do Rio 2011, onde ganhou o prêmio de Melhor Filme na seção Novos Rumos. Teve sua estreia internacional no Festival de Roterdã 2012, ganhando também prêmios de Melhor Filme no FEMINA e, no Cine Ceará, Prêmio BNB e Melhor Atriz para Graziela Felix. Para Marques, a inserção de mulheres em seus projetos antes era inconsciente, mas tornou-se uma ação afirmativa consciente que busca contribuir para o aumento de mulheres no cinema:

Eu acho que essa questão das mulheres no audiovisual têm dois campos que na verdade é um só, do mercado, da indústria, e a gente pode falar também da voz, o que

49 Para as informações sobre a formação da cineasta utilizamos como fonte, além da entrevista concedida à autora desta tese, o portfólio disponibilizado no Mapa Cultural do Ceará. Disponível em: . Acesso em: 16 jan. 2021. 104

as mulheres têm a dizer, como as mulheres vêem o mundo, como elas traduzem isso. Quando a gente fala de equipe, eu acho que junta essas duas coisas porque obviamente que quando a gente forma uma equipe, eu hoje em dia tenho uma consciência, antes eu fazia isso de uma forma inconsciente, mas agora ela é consciente e é atitude realmente de afirmação, de contratar equipe que seja maioria de mulheres, eu acho que isso é o mínimo que a gente pode fazer. (MARQUES, 2020)

Analisando essa atitude percebemos nos filmes da cineasta o destaque para o protagonismo de mulheres com nuances de um olhar político que se une à valorização do campo artístico, ou seja, a mulher que pode e busca um fazer artístico. Marques percebe também essa característica como um elemento identitário em sua produção:

Eu reconheço com escolhas que eu faço, sempre existem coisas que são um denominador comum, que eu acho, que eu trabalho sempre com histórias onde as mulheres são protagonistas, são histórias de personagens femininas, é... Essas personagens na maioria das vezes elas têm a arte ou alguma atividade intelectual que elas usam como ferramenta de transformar o mundo e se transformar também, e eu acho que tem uma coisa que é mais abstrata, que eu chamo de corpo-movimento e música, como se fosse uma coisa não racional, é mais sensorial, e eu procuro trazer isso para as narrativas, pra contar essas histórias que na maioria das vezes se tornam histórias meio sociais, políticas, mas sempre voltadas muito pro humano, parte do interior pro universal e volta pro pessoal, eu acho que de uma forma geral é isso que me ensina e é isso que eu vejo se eu volto para trás, eu penso que tem esses elementos em todos, em quase todos os meus trabalhos. (MARQUES, 2020)

Nosso filme-objeto de análise da cineasta Roberta Marques é o longa Rânia, que conta a história de uma jovem que sonha em ser dançarina profissional, mas enfrenta obstáculos tais como: a necessidade de trabalhar fora para ajudar no sustento da família, a falta de apoio dos pais e as incertezas da fase da adolescência.

Figura 2: Capa do filme Rânia Figura 3: Cineasta Roberta Marques

Fonte das imagens: https://mapacultural.fortaleza.ce.gov.br/agente/11610/ 105

Com esse filme, Marques faz sua estreia na realização de longa-metragem de ficção e apresenta uma narrativa que traz, de um lado o conflito da jovem, com escolhas e questões de quem está se tornando uma mulher, e por outro lado sua relação com o lugar em que vive. Essa e as outras narrativas serão mais detalhadas no próximo tópico, mas é importante já destacarmos aqui que é a partir deste filme que a cineasta inicia o que ela defende como importante para a inserção de mais mulheres nas produções de cinema. Antes de realizar o filme Rânia Marques dirigiu o documentário Deixa Ir (2005) que focaliza no sonho de dançar e nos desafios da imigração com base na experiência de duas jovens cearenses. O docudrama conta a história de Clarice, 21, e Rosana, 22, ambas de Fortaleza, que apostaram no sonho de dançar e foram morar na Holanda para estudar em uma escola de dança de Amsterdam. Porém as dificuldades financeiras são um obstáculo para alcançar o sonho das duas jovens que confiam na força dos seus sonhos e buscam alternativas para continuar o curso. Ao longo do documentário são evidenciadas as rotinas das jovens em suas aulas, ensaios, bem como as relações com as outras dançarinas de outros países, o contato e apoio da família e as dificuldades na manutenção do curso, que tem um custo alto. Esse filme traz significados relacionados à força da mulher, principalmente à força das duas personagens em continuar na busca do sonho, esse aspecto tem um destaque no filme, que focaliza também os desafios, crises e as conquistas que se refletem ao final com a realização do espetáculo em Fortaleza. Essa força e persistência está presente também na obra da cineasta Laís Bodanzky que, em entrevista concedida para esta pesquisa, ressaltou sua preocupação na inclusão de mulheres em seus projetos cinematográficos, embora reconheça ser uma preocupação recente. Quando questionada sobre a preocupação em inserir mulheres nas equipes de seus projetos cinematográficos ela respondeu:

Olha eu tenho, mas nunca foi uma preocupação tão enfática, admito, é importante e corajoso, e o que acontece numa produção grande de longa-metragem, um diretor ele escolhe os chefes de equipes, mas a equipe de cada setor quem escolhe é o chefe de equipe, essa é uma hierarquia que é da indústria, então você pode até propor, comentar, mas você tem que respeitar o trabalho de cada um, então eu nos meus longas, eu fiz quatro longas, as funções artísticas, que são o diretor de arte, de fotografia e a direção geral, em todos os meus filmes eu trabalhei com homens, e agora no Como nossos pais eu trabalhei com uma diretora de arte mulher, e eu queria, então ali foi um início de uma postura consciente, não é simples, não é fácil porque quando você também está fazendo uma obra, eu sempre digo, quem manda é a obra, se eu tô fazendo um trabalho eu não tô brincando, então pra mim é muito importante o resultado, claro que o processo é muito importante, mas o resultado pra mim é fundamental, então de fato eu quero os melhores, e os melhores não necessariamente são os mais reconhecidos, mas é o que daquela pessoa me interessa para aquele projeto, então eu preciso ter esse série de informações daquela pessoa, elas precisam assegurar: “ok, isso eu banco”. (BODANZKY, 2018) 106

Bodanzky concedeu a entrevista durante o lançamento do filme Como nossos pais e para ela foi esse filme que a concedeu a oportunidade de escolher a equipe de mulheres que trabalharam no filme de forma mais afirmativa, “no filme Como nossos pais eu fiz isso de forma muito consciente, sem dúvida nenhuma, ao mesmo tempo esse discurso está em mim” (Bodanzky, 2018).

Figura 4: Cartaz do filme Como nossos pais

Fonte: http://www.buritifilmes.com.br/filmes.php?cat=filme&mostra_filme=24

Figura 5: Cineasta Laís Bodanzky e parte da equipe do filme

Fonte: https://glamurama.uol.com.br/lais-bodanzky-que-ganhou-6-kikitos-em-gramado-fala-ao-glamurama- sobre-seu-cinema/

A cineasta lembrou do curta Cartão vermelho (1994), filme que traz uma protagonista jovem no papel da menina que queria ser jogadora de futebol em sua fase de descobertas da 107 adolescência, para Bodanzky já nesta produção há uma vontade de contar histórias que focalizem a mulher e suas questões:

Antes do filme Bicho de sete cabeças eu fiz um curta metragem chamado Cartão vermelho que de uma certa forma o tema da mulher já estava ali, eu até outro dia revi e falei: nossa que curioso, por que que eu quis contar essa história? Espontaneamente, não eu quero falar no filme sobre mulher porque eu sou mulher, não, simplesmente eu li um conto da Jane Malaquias e gostei, por que será que eu gostei? Talvez eu tenha gostado porque eu sou uma mulher e quem escreveu foi uma mulher e ninguém falou tem que ser uma mulher, aconteceu espontaneamente, eu li o conto, gostei, pedi pra adaptar, fiz, e o texto falava sobre uma questão do início da sexualidade de uma adolescente, talvez um homem lesse esse mesmo conto e não significasse nada, pra mim significou tanto que eu quis contar essa história. (BODANZKY, 2018)

Reflexão semelhante é feita pela cineasta Cristiane Oliveira quando fala sobre a formação das equipes em seus projetos. Ela destaca que embora tenha essa preocupação o aspecto da competência pesa na escolha e além disso, existem ainda os acordos de produção que muitas vezes determinam as escolhas. Porém, o protagonismo de mulheres acontece de forma natural em seus trabalhos.

Olha num primeiro momento, o que eu trabalhei até aqui, tem protagonismo feminino, e tem muitas personagens mulheres em volta também, acaba acontecendo naturalmente de eu me interessar pelo universo criativo de outras mulheres para construir essas histórias junto comigo, entende? Então não é uma coisa de rechaçar o outro gênero de forma nenhuma, tipo não vou ter um homem de forma nenhuma nessa posição porque eu acho que homem não é capaz de falar sobre isso, não, eu acho que o homem é capaz de fazer, de tratar personagens femininas com competência, mas naturalmente eu me interesso pelo imaginário de outras mulheres para estarem nesse processo junto comigo. (OLIVEIRA, 2020b)

Cristiane Oliveira nasceu em Porto Alegre (RS), graduou-se em Comunicação Social, e pelo seu interesse pelas artes visuais buscou se especializar nas áreas de fotografia e animação. Ela iniciou suas produções na área do Audiovisual em um estágio na Zeppelin Filmes, uma produtora de audiovisual e cinema de Porto Alegre. Seus primeiros trabalhos realizados na direção de cinema foram os curtas Messalina (2004) e Hóspedes (2008). Ela atuou como assistente de direção em diversos formatos (longas, curtas, séries, documentários), entre eles, os longas Nove Crônicas para um Coração aos Berros (2012) e Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa (2013), de Gustavo Galvão, dos quais também foi corroterista e produtora associada. Ela conta que sua entrada para a área de cinema representou um desafio e acabou acontecendo de forma inusitada, através de um convite para um trabalho sem remuneração em dinheiro: 108

Eu tive a oportunidade de entrar pro cinema através de um episódio curioso: um cineasta de Porto Alegre chamado Gilson Vargas, ele era muito amigo do dono do Animaholics, que era o Rodrigo Washington, e era casado com uma pessoa chamada Cristiane também, e um dia o Gilson Vargas ligou pra produtora querendo falar com o Rodrigo e eu sabia quem era o Gilson Vargas, mas ele não sabia quem eu era, então eu comecei a conversar com ele[...] Perguntei o que ele queria e ele falou, e ele queria conversar com o Rodrigo sobre uns efeitos para um curta-metragem que ele ia fazer e eu disse: bom se for sobre isso pode ser comigo porque enquanto o Rodrigo está viajando eu estou no lugar dele[...] Aí ele falou: - Ah, eu achei que era a Cris mulher do Rodrigo, vamos conversar. Ele me ofereceu o trabalho, que era de criar vagalumes num curta rodado em 35mm, mas isso naquela época não era tão simples assim, um efeito desse, não tinha essa tecnologia de ter esse efeito em alta resolução do computador facilmente e ser exibido em alta resolução, na época as exibições eram em película, então como é que foi feito? Eu criei as máscaras digitalmente e isso foi transferido para o negativo numa truca ótica, na truca a gente foi imprimindo quadro a quadro num laboratório de SP. E o fato é que ele não tinha como me pagar e me ofereceu em troca um curso de roteiro que ele estava dando e eu aceitei, né? E a gente realizou os efeitos, deu tudo certo, e durante o curso eu escrevi o roteiro do meu curta Messalina, ele gostou do texto, quis produzir e ganhou o edital local de Porto Alegre para produção. (OLIVEIRA, 2020b).

Ela atuou na produção dos filmes Ainda Orangotangos (2007) de Gustavo Spolidoro, e Cão Sem Dono (2007) de Beto Brant e Renato Ciasca, vivências que foram importantes para o começo de sua carreira na direção de cinema. Ao lembrar da sua primeira experiência na direção, ela percebeu também como foi contagiante:

Então eu trabalhava sozinha com a minha câmera ou atrás do computador, de repente me vi tendo que dirigir uma equipe e tudo isso e aquela pressão de ter a câmera rodando, e é muito caro, né? filmar uma ficção, então foi uma super experiência que no primeiro momento foi um soco no estômago, eu achei que nunca mais ia fazer aquilo, mas em seguida, na primeira oportunidade que eu tive, eu já estava no set de novo. (OLIVEIRA, 2020b).

Em 2012 Cristiane Oliveira realizou seu primeiro longa-metragem Mulher do Pai (2012), filme-objeto de análise desta tese, quando teve a oportunidade de colocar em prática seu aprendizado com os curtas realizados e outros trabalhos de produção. 109

Figura 6: Capa do filme Mulher do Pai

Fonte: https://vertentesdocinema.com/critica-mulher-do-pai/

Figura 7: Cineasta Cristiane Oliveira no Set de filmagem (à esquerda)

Fonte: http://revistadecinema.com.br/2015/08/cristiane-oliveira-estreia-na-direcao-de-longa/

É interessante perceber nesses depoimentos que as cineastas foram também percebendo, ao longo da entrevista, suas posturas em relação à posição da mulher e o quanto muitas vezes as próprias mulheres têm dificuldade para entender o seu potencial, sua força e os obstáculos que lhes são impostos. Sobre este aspecto a cineasta Adriana Vasconcelos também destaca em sua fala o desafio que para ela é protagonizar a função de diretora de cinema:

É uma arte muito cara, então o medo de se colocar esse poder na mão de uma mulher é muito grande… então assim você tem que lidar com isso… Se você é uma mulher talvez mais moldável, então talvez seja mais fácil, mais dirigível, mas uma pessoa que de repente quer exercer sua função com toda a necessidade de que ela precisa, com a capacidade e o envolvimento que precisa, sabe? Aí é meio assustador, aí eu acho que tudo é muito difícil, mas eu acho que isso pesa ainda, incrivelmente. (VASCONCELOS, 2020) 110

A cineasta Adriana Vasconcelos50 é formada em Comunicação Social, com habilitação em Cinema pela Universidade de Brasília (UnB), onde também fez o Mestrado em Arte. O início da sua trajetória no campo do cinema foi através da universidade, quando cursava cinema, começou a produzir, e conheceu pessoas que faziam cinema.

Eu não venho de família de artistas, não venho de família que tem nenhuma entrada nesse mundo, então assim, quando eu conheci o cinema foi dentro da universidade e aí eu me apaixonei, pedi mudança de curso e me formei em cinema. E fui estudar lá dentro, era muito apaixonada mesmo, assistia às vezes assim, na época eu pegava o carro e saia da universidade e assistia dois filmes seguidos, teve época da minha vida que eu, assim, todos os dias eu assistia um filme[..]. (VASCONCELOS, 2020)

Sua produção desde o primeiro filme é marcada pela presença de protagonistas mulheres. Seu primeiro curta, Só Sofia, foi realizado em 2004. Em 2010, ela lançou o segundo curta, Senhoras, e em 2014, lançou o curta Fragmentos. Quatro anos depois, a cineasta conseguiu finalizar o seu primeiro longa, o filme Mãe, que foi lançado em 2018. O roteiro deste longa tem ligação com as histórias abordadas nos curtas anteriores, Só Sofia e Fragmentos, como uma trilogia que enfoca relações familiares conturbadas e conflituosas, através do gênero drama, que centralizam a narrativa no protagonismo das mulheres representadas no enredo.

Figura 8: Cartaz do filme Mãe

Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-279268/

50 Para as informações sobre a formação acadêmica e produção artística utilizamos como fonte, além da entrevista concedida à autora desta tese, o currículo lattes da cineasta. Disponível em: . Acesso em: 16 jan. 2021. 111

Figura 9: Cineasta Adriana Vasconcelos no Festival de Brasília (ao centro)

Fonte: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/11/26/52º-festival-de-cinema-de-brasilia- equipe-do-filme-escola-sem-sentido-protesta-com-bocas-vendadas.ghtml

Sobre a inclusão das mulheres em seus projetos, é interessante perceber na percepção de Vasconcelos um olhar que considera essa inclusão com amplitude, isto é, ela entende que não somente as mulheres precisam ser incluídas, mas a diversidade, de corpos, de idades, de experiências, também deve ser considerada:

É importante a inclusão da mulher como eu te falei, mas eu quero trabalhar com homens também e eu quero trabalhar com mulheres de todas as idades, sabe? Eu não quero ter que de repente falar assim: Ah! Eu sou essa pessoa tal só para poder agradar um grupinho, eu acho que o Brasil é um país que tá muito, o mundo tá muito polarizado, o Brasil está extremado, e aí acaba prejudicando as pessoas, e a gente quando abre o espaço a gente tem que abrir a visão, e abrir a visão é abrir para todos os lados. (VASCONCELOS, 2020)

Podemos dizer que essa visão da diversidade a ser incluída não só na área do cinema, mas nas diversas áreas artísticas e profissionais, esteve em plena discussão na agenda pública, movida pelas iniciativas de movimentos representativos que ganham voz junto à sociedade civil e chegou a ser incentivada pelo governo federal, principalmente entre o período de 2004 a 2012. A cineasta Jorane Castro, em sua visão de docente, coloca esse aspecto ao tratar sobre a inclusão das mulheres em seus projetos, ela se refere ao movimento que foi iniciado pelo governo Lula, na gestão do ministro Gilberto Gil, quando houve um impulsionamento nas ações de incentivo à produção cultural no país e a área do cinema foi beneficiada pela promoção e distribuição de recursos pelos diversos estados, alterando a forma que acontecia antes na qual o direcionamento de recursos era quase exclusivamente para o eixo Sul-Sudeste: 112

É nesse momento que está se discutindo a inclusão dos pretos, a inclusão das mulheres, dos indígenas, de todas essas outras camadas sociais, grupos sociais que não são representados pelo cinema brasileiro. Hoje existe um esforço para isso, eu faço parte de grupos de liderança feminina que discutem isso, tem vários grupos que a gente discute também a questão da inclusão, ou seja é uma coisa muito mais democrática e paralelamente a isso a gente vê que o cinema brasileiro melhorou, ele se diversificou, e começou a virar nacional ou seja não é só mais Rio e São Paulo que filmam, não só com homens brancos e ricos que filmam, agora se filma em todos os lugares. (CASTRO, 2020)

A cineasta Jorane Castro51, natural de Belém (PA), é formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e possui graduação em Estudos Cinematográficos e Audiovisual pela Université de Paris 8. Em 1996 ela concluiu o mestrado em Sociologia na Université Paris Diderot – Paris 7 e aprimorou seus estudos, nas áreas de Direção de Elenco e Roteiro Avançado, na Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de Los Baños, em Cuba, em 2004. Atualmente ela faz doutorado em Cinema na Universidade de Coimbra. Desde 2009, Jorane Castro é professora do Bacharelado em Cinema e Audiovisual, do Instituto de Ciências das Artes da UFPA, inclusive tendo contribuído para a implantação do curso e a elaboração de sua Proposta de Projeto Pedagógico. Além de sua atuação na área docente, Jorane Castro exerce as funções de produtora, roteirista e diretora. Realizou mais de 20 filmes, entre documentários e ficções, filmados na Amazônia Brasileira, no Marrocos, no Mali, na Ilha da Reunião, Moroni, na Ilha de Mayotte (Continente Africano), e na Europa (França e Espanha). Filha de um professor de filosofia, que sempre a incentivou a apreciar as expressões artísticas, Jorane teve experiências importantes relacionadas às artes visuais e fotografia, principalmente pelo fato de ter morado sete anos na Europa, durante a infância, e ter tido oportunidade de visitar importantes museus, conhecer obras de artes, bem como uma série de aspectos que contribuíram para a sua formação e consciência artísticas. Ela destaca, em entrevista concedida ao programa de TV Coxia, que desde criança recebeu muito incentivo dos pais para participar de atividades no campo das artes. “Quando eu voltei pra Belém com catorze anos eu já tinha tido acesso aos grandes museus, que são referência para a nossa cultura, não que seja melhor que os daqui, mas que são referência” (CASTRO, 2016). Em sua produção de curta-metragem destacam-se: Mulheres choradeiras (2000), Invisíveis Prazeres Cotidianos (2004) e Ribeirinhos do Asfalto (2011). Castro fez sua estreia na

51 Para as informações sobre a formação acadêmica e produção artística utilizamos como fonte, além de entrevistas concedidas pela cineasta, o seu currículo lattes. Disponível em: . Acesso em: 05 jan. 2021. 113 realização de longa-metragem de ficção com o filme Para Ter Onde Ir, em 2018, que analisamos nesta pesquisa.

Figura 10: Cartaz do filme Para ter onde ir

Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-245726/

Figura 11: Cineasta Jorane Castro e atrizes (sentada à direita)

Fonte: https://www.cinematorio.com.br/2018/05/entrevista-jorane-castro-diretora-de-para-ter-onde-ir- cinematorio-café-expresso/

A diretora escolheu o gênero road movie para contar a história de três mulheres que pegam a estrada partilhando experiências. Um aspecto que nos lembra que apesar de o cinema brasileiro ter exemplos de sucessos do gênero, como por exemplo, Bye Bye Brasil (1979), Central do Brasil (1998), O Céu de Suely (2006) e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), há ainda poucos exemplos de road movies dirigidos por diretoras, quando se trata de 114 filmes de longa-metragem. Uma das explicações está relacionada ao custo de produção de um filme deste tipo, que exige deslocamentos, muitas vezes a locação de equipamentos e materiais que precisam ser utilizados nos sets de filmagens que aumentam consideravelmente os custos de produção. Castro fala em entrevista sobre essa escolha:

Achava, na minha ingenuidade, que road movie era algo fácil de fazer. Pura ilusão, porque assim como as atrizes estão na estrada, você também precisa transportar a equipe inteira [risos] Tinha vontade [de trabalhar neste gênero] porque sempre gostei muito de viajar e percorro a estrada do filme desde criança. É um lugar tradicional de Belém, o nosso balneário, uma estrada que conheço bem e da qual gosto muito. Então há uma referência afetiva e a questão de pensar no lugar da mulher, da cumplicidade feminina, da maternidade. (CASTRO, 2018)

Um outro ponto que é importante ressaltar nesse aspecto da inclusão das mulheres no cinema é a necessidade de inclusão de representantes também de outros grupos, como por exemplo do movimento LGBTQIA+, indígenas, das mulheres negras no contexto cinematográfico, que avaliamos estar passando por uma fase de aumento no número de produções, embora seja a passos lentos. Mesmo que os incentivos, como por exemplo editais públicos que tinham como foco esses grupos, tenham sido desativados, destacam-se os festivais realizados especificamente com foco nesses grupos de forma afirmativa, abrindo espaço para a exibição, como por exemplo: o FIM – Festival Internacional de Mulheres no Cinema52, que teve sua 2ª edição realizada de 10 a 17 de novembro de 2020; o Cabíria Festival – Mulheres e Audiovisual53, que também realizou sua 2ª edição em 2020, de 18 a 29 de novembro, com uma programação em formato online, em atenção às restrições sanitárias do COVID-19; e o Cine Kurumin – Festival de Cinema Indígena54 - realizado desde 2011, só para citar alguns dos eventos que vêm sendo realizados no país. Convém lembrar que os direitos das minorias às formas de produção e criação, bem como ao acesso democrático às formas de produção, têm sido ignorados há muitos séculos, e como reflexo dessa ausência de incentivo temos a lacuna da diversidade nas produções artísticas em um país marcado por sua pluralidade. Neste ponto a questão racial e o protagonismo das mulheres negras são outro aspecto destacado pela cineasta Jorane Castro. Ela lembra o episódio que ocorreu em função de uma produção de uma série ficcional sobre a vida da vereadora Marielle Franco, morta a tiros em 2018 com o motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro.

52 Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2021. 53 Disponível em: < https://www.cabiria.com.br/festival>. Acesso em: 25 jan. 2021. 54 Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2021. 115

A série dirigida por José Padilha e Antonia Pelegrino, inicialmente não contava com profissionais negros na equipe, somente após muitas críticas houve uma inclusão:

Por exemplo, no caso polêmico de um filme sobre a Marielle, fizeram o filme sobre a Marielle, mas as pessoas que iam decidir eram todos brancos, classe média, média alta, e que não tinham uma vivência da Marielle, até o Padilha estava envolvido no projeto, teve uma polêmica a respeito disso, então a Marielle uma mulher negra, lésbica, militante, de esquerda, feminista, maravilhosa, linda e do outro lado você tinha, aí quem vai contar essa história? Aí pediram para incluir dentro dessa história profissionais negros, mas para contar a narrativa, para escrever o roteiro, para dirigir… Eu acho que é importante a questão do lugar de fala, principalmente hoje no Brasil, porque o Brasil é um país extremamente machista, é um país que mata muitas mulheres, extremamente racista, a gente sabe disso. (CASTRO, 2020)

Sobre o cinema realizado por mulheres negras no Brasil, Castro coloca sua visão sobre o que entende como um movimento em ascensão, fruto do trabalho dos movimentos de grupos e minorias:

Por conta disso, desse momento que a gente tá vivendo já têm os movimentos, tem o movimento do pessoal do audiovisual negro, tem o movimento de mulheres no audiovisual super forte também, tem um movimento de mulheres indígenas realizadoras e eu acho que isso é importante que exista, é importante que essa discussão seja levada à pauta, a questão é: como a gente vai fazer isso? Ou seja, como a gente pensa essa pauta, isso é importante. (CASTRO, 2020)

A cineasta Glenda Nicácio, diretora de longas premiados no cinema brasileiro contemporâneo, é um dos exemplos na lista de profissionais negras que vêm ganhando visibilidade pela sensibilidade com que realiza suas produções. Sua parceria com o cineasta Ary Rosa resultou nos longas Café com Canela (2017), Ilha (2018) e Até o fim (2020). A estreia dos dois primeiros filmes se deu no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, e representou uma quebra de paradigmas pelo fato de terem ganhado os prêmios de público e roteiro. Foram os primeiros filmes de longa-metragem dirigidos por uma cineasta negra que concorreram na competição principal. Graduada em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Glenda Nicácio é a segunda cineasta negra a dirigir um filme de longa-metragem de ficção no Brasil, a primeira foi Adélia Prado nos aos 1980. Sobre esse aspecto ela lamenta e chama a atenção para o outro lado, enquanto espectadoras, as mulheres negras ainda têm poucas referências de representatividade no cinema:

Isso é um dado horrível, que machuca mesmo de você parar para pensar assim nas nossas trajetórias enquanto realizadoras, mas enquanto espectadoras também, que cresceram querendo ser vistas, consumindo um tanto de coisa que nunca falava de si, 116

de mim. Fico contente de poder cada vez mais poder participar de festivais, sessões de cinema, cineclubes onde eu encontro espectadoras negras, realizadoras, produtoras negras defendendo seus projetos. (NICÁCIO, 2020a)

Nicácio e Rosa estrearam na direção de longa-metragem com o filme Café com canela, uma narrativa que focaliza a amizade de duas mulheres negras, Violeta (Aline Brunne) e Margarida (Valdinéia Soriano), e suas atitudes diante da dor da perda. Não só as protagonistas, mas os outros personagens também enfrentam situações de sofrimento diante da morte e se ajudam. A jovem Violeta é alegre, tem uma família feliz apesar das dificuldades, e certo dia se depara com Margarida, uma mulher depressiva que são sai da sua casa por causa da perda do filho pequeno. A narrativa se passa na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, com um elenco formado em sua maioria por atrizes e atores negros. É um filme experimental, com diversas nuances e camadas em que prevalece o afeto como fio principal da narrativa. Os cineastas também aproveitam para inserir o recurso da metalinguagem no filme na passagem em que Margarida explica para Violeta como é a sensação de ir ao cinema. É um filme que coloca o protagonismo das duas mulheres no centro do filme com uma preocupação estética, política e acima de tudo afetiva. As duas são protagonistas e têm seus espaços de representação garantidos no filme, cada uma com sua forma de atrair e cativar a atenção do espectador.

Figura 12: Cartaz do filme Para ter onde ir

Fonte: https://filmow.com/ate-o-fim-t291472/

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Figura 13: Cineasta Glenda Nicácio e equipe do filme Ilha no Festival de Brasília

Fonte: http://revistadecinema.com.br/2018/09/fest-brasilia-%E2%80%93-duas-ilhas-baianas-na-origem-de- dois-concorrentes/

Sobre a participação feminina em suas obras, Glenda Nicácio percebe nessa inclusão de mulheres uma forma natural do seu estilo de direção, não somente uma questão afirmativa de necessidade. Para ela a competência dessas profissionais e também o vínculo que ela mantém com a equipe contribuem para a definição das suas escolhas:

Eu não diria que eu coloco as mulheres enquanto pensando em afirmação, eu coloco elas porque elas têm que estar no filme, assim, porque elas são as pessoas ideais, as pessoas certas para estarem no filme, tem muito mais a ver com isso do que especificamente já sendo uma estratégia de afirmação, claro que é uma estratégia, é um discurso que eu quero e que eu defendo, que eu cobro e que eu questiono com o cinema, mas não é pela afirmação que elas estão presentes, elas estão porque elas são companheiras de trajetória, porque eu admiro o trabalho delas, porque elas dialogam com o filme que está sendo proposto, né? Então nesse sentido, isso, o discurso ele é a reverberação de uma outra coisa que acontece. E acho que me tendo na direção, enquanto mulher, enquanto uma mulher negra na direção, acho que isso faz com que as coisas tenham um outro modo de acontecer, o modo de produção é alterado quando eu enquanto mulher negra estou na direção. (NICÁCIO, 2020)

As obras da cineasta apresentam um novo olhar sobre temáticas que propiciam a representatividade do povo negro através de uma sensibilidade no olhar cinematográfico que rompe com a representação estereotipada e estigmatizada presente no cinema brasileiro desde o princípio, em que eram poucas as oportunidades para papéis de protagonismo para profissionais negros, principalmente mulheres. Glenda Nicácio é natural de Minas Gerais, mas sua formação e atuação em cinema deu-se na região do Recôncavo Baiano, onde mantém uma relação de valorização da comunidade que, aliás, é destacada nos filmes. No próximo tópico nos debruçamos sobre cada filme analisado no corpus desta pesquisa, considerando parte dos diálogos pertinentes às camadas de sentidos analisadas, fragmentos e sequências dos filmes, relacionando-as com as falas das diretoras, em um processo 118 de tessitura sobre os diversos gradientes de sentido identificados na interpretação analítica das narrativas.

4.1 Conflitos e afetos na adolescência em Rânia e Mulher do Pai

A fase da adolescência traz em si uma série de aspectos que a fazem ser uma das temáticas bastante abordada pelo cinema em diversos gêneros. Ser aceito pelo grupo, lidar com as descobertas e mudanças no corpo, descobrir e explorar a sexualidade, de certa forma encarar os prós e contras de crescer, são aspectos praticamente universais na vida de qualquer adolescente. No cinema nacional filmes como Sonhos Roubados (2009), dirigido por Sandra Werneck, Antes Que o Mundo Acabe (2009), dirigido por Ana Luiza Azevedo; As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodanzky; Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), de Daniel Ribeiro; Confissões de Adolescente - O Filme (2013), de Cris D'amato e Daniel Filho, que fez muito sucesso na TV, nos anos 1990; e Desenrola (2011), de Rosane Svartman; são apenas alguns exemplos que trazem no centro da trama um mergulho no universo de adolescentes e abordam temas como bullying, preconceito, homossexualidade, além das experiências muitas vezes conturbadas de quem está passando por uma das fases mais complicadas da vida de um ser humano. Neste tópico, voltamos a análise para duas obras de realidades totalmente diferentes, mas que apresentam algumas similaridades, a começar pela temática principal. Os filmes Rânia e Mulher do pai, têm, no centro de suas tramas, adolescentes que enfrentam conflitos com suas famílias e experimentam os desafios da adolescência. Os contextos das histórias em cada filme são diferentes, mas observamos nas linhas temáticas um viés universal. Ao longo deste tópico identificamos de forma analítica os aspectos relacionados à representação das protagonistas na narrativa. Nos interessou perceber de que forma a direção destaca suas ações e comportamentos através das escolhas de linguagem que analisamos como gradientes de sentido, através do detalhamento das seguintes categorias de análise: 1. Enredo; 2. Personagens e Protagonistas; 3. Sequência inicial do filme; 4. Pontos de viradas; e 5. Sequência final do filme. Nos dois filmes destaca-se também a formação das equipes de produção com predominância de mulheres nas funções artísticas e técnicas. Os olhares e escolhas dessas mulheres se refletem no resultado das obras a partir de uma preocupação com viés tanto na linguagem como no conteúdo. Além disso, as produções são guiadas por diretoras que atuam em contextos de produção em regiões diferentes do país e as obras representam suas estreias no 119 formato de longa-metragem de ficção, são aspectos que também devem ser considerados nesta análise, já que a primeira obra de um autor ou autora é marcada por um processo de descobertas e experimentações. Em Rânia e Mulher do Pai há também uma dinâmica de produção marcada por um longo processo preparatório, passando por consultorias que culminaram na adequação de fatores desde a fase de pré-produção até a montagem do filme. Para a cineasta Cristiane Oliveira (2020), esse processo de maturação do projeto do filme foi essencial para o resultado, "foram muitos anos de troca, e a cada chefe de equipe que entrando eu ia mudando o roteiro e a gente conversava, então eu tenho um processo bem colaborativo assim de ouvir (...)". O projeto do filme Mulher do Pai foi selecionado para o Productiors Clube, um workshop que acontece no Festival dos Três Continentes, na cidade de Nantes, na França. Oliveira destaca que durante a consultoria no workshop houve uma série de questionamentos sobre a forma de abordagem das questões tratadas no filme, que a fizeram pensar sobre os diferentes olhares e diferentes culturas sobre a relação de paternidade/adolescência/amadurecimento, questões presentes no filme:

Nesse workshop eu passei por uma situação super engraçada assim, porque a gente tinha consultorias individuais e também com o grupo de selecionados e entre as pessoas do grupo tinha dois participantes da África do Sul e eles me perguntaram, num momento mais individual assim, me perguntaram: como é que tu vai filmar isso? Aí eu pensei: como assim, por quê? né? E eles falaram: Não, porque essa relação de pai e filha é meio tenso assim, lá de onde a gente vem têm muitos casos de abuso, né? De pai com filho, então é um tema muito espinhoso, tem cenas que tu descreve no roteiro que não seriam possíveis lá. Mas qual cena? como assim, né? E como eu fiz consultoria com franceses, com produtores franceses, eu ouvi assim: bota mais sexo, acho que o filme tem que ter mais sexo (risos...). (OLIVEIRA, 2020b)

A cineasta Roberta Marques também destaca a dificuldade no desenvolvimento de um roteiro e as etapas que antecedem a produção, com a percepção de que consultorias e olhares diversos sobre esse processo contribuem para o aprimoramento da obra e também da equipe envolvida na direção do projeto audiovisual. Em entrevista concedida ao Programa TV Cine Dragão exibido na TV Ceará, canal aberto, em 2016, dentro de uma série de debates sobre o cinema cearense55 ela lembra:

O (filme) Rânia foi um grande exercício de escrever, o roteiro escrevi com a Luana Marques e o Filipe Bragança, que teve uma participação no primeiro argumento, que são dois roteiristas que não vêm de escolas muito rigorosas em termos de narração clássica, mas mesmo assim eu sempre quis contar essa história, eu quero criar essas tensões, eu quero a história clássica começo meio e fim. O Rânia acabou que ele foi reescrito na montagem, porque a gente acabou que não conseguiu filmar tudo para

55 A entrevista está disponível no canal do YouTube da emissora TV Ceará, dividida em duas partes: https://www.youtube.com/watch?v=ERS3LEqtIiU 120

contar o que estava lá no papel, a gente não tinha dinheiro para isso e hoje em dia é um filme que quando eu vejo, eu vejo que é um filme que se conta de uma forma muito específica, da forma dele, ainda não é uma coisa clássica, alguém pode olhar e falar assim: esse roteiro ele tem buracos, enfim, mas eu não vejo dessa forma, eu acho que é o jeito dele de ser contado, e agora escrevendo um novo roteiro eu fiz o Binger, que é um laboratório de roteiro em Amsterdam e com meu novo longa, e aí sim era uma pancada de ter gente lendo e relendo, dizendo isso aqui não está direito, e aí você bater cabeça mesmo e ver como é difícil escrever um roteiro bom, sabe? É muito complicado e muito difícil. (MARQUES, 2016)

Esses depoimentos configuram além de aspectos da vivência de cada diretora em seu processo de produção, também explicita as barreiras que estão inseridas no processo de realização de um filme, que não são diferentes para diretores do sexo masculino, não cabe essa lógica de diferença, mas destacam-se aqui aspectos relacionados a forma como essas diretoras processam essas barreiras e consideram a diversidade de olhares no processo de construção coletiva com suas equipes, sem com isso diminuírem suas funções na criação artística.

Enredos

O filme Mulher do Pai, dirigido e roteirizado pela cineasta Cristiane Oliveira é uma obra que se ancora em duas linhas temáticas com diferentes gradientes ao longo do enredo: a fase da adolescência e as relações familiares. As problemáticas principais desenvolvidas no filme envolvem os conflitos da adolescência da personagem Nalu, interpretada pela atriz Maria Galant, protagonista do filme. Nesses conflitos se inserem as descobertas do corpo, o primeiro beijo, as relações afetivas e a própria convivência familiar, que é permeada por um contexto marcado pela ausência da mãe e do pai. A mãe morreu após dar à luz a Nalu, já o pai Ruben, que é interpretado pelo ator Marat Descartes, apesar de morar com ela, não tem uma proximidade comum de pai e filha, parecem mais dois irmãos que não se entendem. Eles assemelham-se a desconhecidos dividindo uma moradia e espaços de lacunas na relação pai- filha. Ruben ficou cego após uma doença e sua relação complicada com a filha, causada também pela morte da mãe de Nalu, é evidenciada após a morte da mãe de Ruben, a avó Olga. Eles vivem em uma vila no interior do Rio Grande do Sul, perto da fronteira entre o Brasil e o Uruguai. O filme Rânia tem uma narrativa que proporciona um passeio pela Fortaleza litorânea e também pela área periférica. Nos transportamos no filme para o universo da jovem Rânia e sua amiga Zizi. As duas jovens lutam para mudar seus destinos, e nesta aventura nos deparamos com algo que todo adolescente uma hora vai perceber: as imposições e medos da família sobre suas escolhas. Rânia mostra isso de forma a envolver o espectador a tornar a jovem protagonista 121 da história, uma amiga próxima. A amizade é uma constante no filme e contribui para mostrar o quanto nesta fase da adolescência as amigas são importantes para o crescimento pessoal. A empatia e o apoio aparecem na figura da melhor amiga, principalmente com o afastamento dos pais. Na figura 14, Rânia aparece com as amigas na escola, depois na praia, como uma jovem comum que aproveita a vida nessa fase morando em uma cidade com praias urbanas.

Figura 14: Rânia e as amigas da escola

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

Mas a relação de Rânia com os pais não é comum e faz com que ela busque por sua própria iniciativa uma mudança de perspectiva para sua vida, motivada pela dança. As imagens da mãe costureira, sempre na máquina de costura, com muito trabalho e esperando a ajuda da filha apresentam uma barreira para o sonho de Rânia de dançar profissionalmente. Para ir às aulas é preciso convencer a mãe de que não pode chegar atrasada e de que a dança é importante para ela. Mas não é só isso, nas cenas em que Rânia pede a mãe para ir a aula de balé, existe uma denúncia sobre a realidade das jovens meninas que nem sempre conseguem participar de alguma atividade artística, abrindo mão de seus sonhos, muitas vezes porque precisam ajudar nos afazeres domésticos ou cuidar de algum(a) irmão(ã).

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Figura 15: Rânia e a mãe

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

Rânia é filha de pais separados e o filme mostra a relação de distância com o pai, como por exemplo, na ausência dele em momentos importantes como a apresentação de dança da filha na escola. Na cena em que a jovem conversa com ele (figura 16), percebemos a barreira entre os dois, a forma de tratamento do pai, diferente da cena em que Rânia está com a mãe. O diálogo dos dois também reflete essa distância. Logo após a sequência que mostra a apresentação de Rânia na escola, a cena começa com um plano aberto do mar com muitos barcos com o movimento de panorâmica que passa para a imagem de pescadores organizando uma embarcação para entrar no mar. Em primeiro plano, a câmera focaliza na sequência o pai de Rânia costurando uma rede de pesca e em seguida a imagem mostra um plano aberto de uma jangada sendo colocada no mar por um grupo de pescadores. A sequência continua com o pai e a filha conversando enquanto ele se mantém costurando a rede:

Pai: Do jeito que tu está assim brilhosa deve ter sido bonito. Rânia: Foi lindo. A dança foi ótima, o professor até me elogiou. O colégio está todo enfeitado, tinha um monte de gente. 123

Pai: Teus irmãos tavam lá? Rânia: Só Davi. Pai: E ele como é que está? Está dando muito trabalho? Você tá cuidando direito desse menino, Rânia? Rânia: Ah pai, ele já é grande. Já basta o Massa ficar lá enchendo meu saco para cuidar dele e da mãe. Pai: Mas esse teu irmão aí, filha, só abre a boca para falar. Não confio nele cuidando da casa, sabe? Rânia: Para de implicar pai. Cada um é mais orgulhoso que o outro. A mãe confia nele, a gente se dá bem lá em casa. Sabe o que eu penso? Um dia eu vou ver vocês indo juntos para o mar. É sério. E o teu barco? Pai: Está com casco quebrado, não tive condições de mandar consertar ainda não. (Trecho extraído do filme Rânia)

A cena toda se passa sem que haja uma interação mais próxima ou manifestação de carinho por parte do pai. O plano que finaliza a sequência mostra em plano aberto uma jangada voltando do mar no final da tarde.

Figura 16: Pai de Rânia

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

Um aspecto a ser destacado nas escolhas de roteiro e direção é a forma como as mulheres são representadas de forma crível em toda a narrativa. Inclusive nas primeiras sequências do filme, predominam as cenas em que as mulheres estão em evidência, principalmente na 124 presença forte de Zizi, na relação de Rânia com a mãe e com a professora de dança que adora nadar no mar. A cineasta Roberta Marques ao falar sobre esse aspecto da presença de mulheres dentro e fora da narrativa chama atenção para as barreiras que enfrentou ao realizar o filme, em entrevista ela lembrou de uma crítica quando o filme foi lançado que remete ao fato de haver poucos homens no filme:

O filme Rânia, quando estreou, teve um crítico de São Paulo que ele falou assim: o filme Rânia é muito… Não lembro exatamente o termo que ele usou, mas disse assim: “mas falta alguma coisa”, e o falta alguma coisa é porque faltava homem (...) E era um filme, na época você imagina em 2013, era um filme fotografado por mulher, produtora executiva mulher, produtora de finalização, diretora, roteirista, um filme com três protagonistas mulheres, num momento em que a gente nem falava sobre cinema, quer dizer, não como agora, assim, e isso eu lembro que era uma coisa aqui, o filme tem o seu peso, é um filme que ele pesa, mas passou desapercebido por um monte de lugares, por quê? Porque era um filme de mulher, sobre mulheres, então acho que esse é o exemplo mais significativo, e essa crítica no jornal, ficou muito clara para mim. (MARQUES, 2020)

Com esta percepção a diretora põe em discussão também o aspecto da crítica sobre as produções de mulheres. É um outro segmento que precisa ser investigado, que também pode- se considerar com uma crescente presença de profissionais mulheres, mas que ainda mantem um número desigual em relação ao gênero. Notamos nesse sentido a necessidade de pontuar este aspecto, embora seja uma dimensão não seja o foco desta pesquisa, pelo fato de que a crítica empreendida aos filmes de realizadoras é na maioria das vezes feita por homens (heteros, brancos e da classe média) que nem sempre considera os contextos de produção, a empatia sobre temáticas relacionadas com questões feministas e/ou relacionadas às minorias, além das mudanças de postura na sociedade sobre o protagonismo de mulheres, há que se considerar que o cinema e as diversas linguagens artísticas têm sido influenciadas pela diversidade de agentes.

Personagens e Protagonistas

Nos dois filmes os personagens são focalizados nas pessoas da família e amigos e as protagonistas das tramas são mulheres jovens. No filme Rânia, a protagonista e sua melhor amiga Zizi são centrais da narrativa marcada pelos altos e baixos da adolescência. Elas estão sempre juntas, dançam, vão à praia, com o avanço da narrativa, começam a trabalhar juntas, vivenciam medos e angústias. Liziane, ou Zizi, é a amiga que veio de outro estado, foi para o exterior se prostituir, passou por inúmeras dificuldades e voltou pra Fortaleza. A imagem da personagem Zizi é a da jovem sem reservas e extrovertida, ela namora Dedé, um homem 125 machista que deseja morar com Zizi e que ela tenha uma vida compartilhada com ele de forma que ele seja seu provedor, fato que não agrada Zizi. A personagem Zizi também é protagonista da história, representa no filme a parcela de jovens que fogem da dura realidade de cidades sem oportunidades e vão buscar na prostituição uma saída para melhorar de vida. Zizi é sonhadora, sai de Poranga, interior do Piauí e chega em Fortaleza, onde se depara com a prostituição e vai mais distante ao se aventurar no exterior onde enfrenta os males da imigração e vai parar na rua. A narrativa apresenta esse aspecto da vida de muitas mulheres a partir da vida de Zizi, de imagens da vida noturna da capital cearense e da dança em uma boate, que também será um atrativo para a jovem Rânia. Aspecto evidenciado em outras obras do cinema brasileiro produzido no Nordeste, como (2007, Cláudio Assis) e o Céu de Suely (2006, Karim Aïnouz) ambas dirigidas por cineastas homens, a exploração sexual nessas obras é o tema, mas cada narrativa trata a temática de forma peculiar e impactante. Em Rânia, a dança é o elemento pelo qual esse aspecto será evidenciado. A vida noturna de Zizi, o palco na boate e sua vida complicada com seu relacionamento com Dedé são elementos que potencializam a personagem.

Figura 17: Zizi dançando

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

A trama coloca em segundo plano a personagem mãe de Rânia, que é costureira, e os personagens masculinos: o pai, que é pescador, os irmãos de Rânia e o dono da boate em que ela dança, o Belga. Os pais não se interessam muito pelos sonhos de Rânia, suas preocupações são mais pragmáticas, cuidar dos filhos e fazer suas costuras, no caso da mãe, e no caso do pai, continuar sua vida de pescador ao lado dos filhos. Os irmãos da jovem aparecem em papeis secundários na história, o irmão mais velho Massa, tem seu sonho realizado de ir embora em um cruzeiro, já o irmão mais novo é a figura de uma criança sem responsabilidades que causa muitas preocupações aos pais. Esse é o universo da família de Rânia, uma família da periferia de Fortaleza que sobrevive de trabalhos 126 mal remunerados, que torna a vida da jovem Rânia mais difícil e obriga o irmão mais velho a trabalhar para ajudar no sustento da casa, tarefa que será também atribuído a Rânia. Todavia, a relação familiar de Rânia embora também não seja compreendida pelos pais em alguns momentos, difere da outra protagonista aqui analisada, a jovem Nalu, justamente pela relação com a família. Em Mulher do pai os personagens centrais da história são Nalu, o pai Ruben, a avó Olga, a amiga Eliza, o namorado Juan e a professora Rosário. Nas poucas cenas em que aparece, a avó Olga demonstra o cuidado pelo filho e apreensão pelo comportamento da neta. Ela prepara a comida, lava a roupa, cuida da casa e da tecelagem e não está bem. Na única cena em que aparece mais próxima de Nalu, ilustrada na figura 18, a avó está escovando os cabelos da neta, mas elas nem conversam. É uma relação entre avó e neta que também tem um distanciamento.

Figura 18: Avó Olga

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

Do ponto de vista do pai, há também descobertas que vão sendo descortinadas ao longo da narrativa, quando ele percebe que a filha, aos 16 anos, já é uma mulher, uma perturbadora sensação vai aos poucos contribuindo para que ele se aproxime da filha. Sobre essas descobertas estão o afeto, a proximidade da jovem e a preocupação com seus relacionamentos. A presença da amiga Eliza na vida de Nalu transporta para o filme uma atmosfera de empatia e afeto entre as duas amigas. O cuidado e a preocupação com Nalu é demonstrada através de atitudes de Eliza como, por exemplo, incentivá-la a ir para a capital continuar os estudos e satisfazer o desejo de ir embora da vila. Ao mesmo tempo, Nalu tem medo de ir embora e não se adaptar. Ela demonstra não ter muitas expectativas pelo futuro.

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Figura 19: Nalu e a amiga Eliza

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

A personagem Nalu representa a figura da jovem que está em busca de sua identidade e se depara com as adversidades que vão moldando sua vida e a colocando de frente com os desafios. Para a cineasta Cristiane Oliveira, a personagem Nalu segue uma estrutura circular que a coloca no centro da narrativa e constrói o ritmo do filme:

É uma jornada rumo à construção da própria identidade, não é um arco definido para resgatar um soldado ou para desenterrar a arca do tesouro, mas é um arco dramático que se montando aos poucos com a relação da Nalu com o pai, com a professora, com a amiga e com o uruguaio e cada situação nova vai impactando na relação de vida dela mesma nesse movimento de transformação que ela vive, sem um norte claro. (OLIVEIRA, 2020b)

A personagem Rosário representa uma forma de apoio a Nalu em forma de uma amizade com uma mulher mais experiente que pode lhe dar os conselhos que não pode pedir ao pai. Rosário é uma professora de artes sensível e interessada em ajudar também pelo fato de perceber o distanciamento entre pai e filha se torna uma amiga presente na vida dos dois e mais frequentemente com as aulas que passa a ministrar para Ruben.

Figura 20: Rosário e Nalu na estação

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

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O ritmo da relação das duas personagens na trama segue uma perspectiva que imprime uma tonalidade realista que começa com a aproximação na escola, quando a professora oferece ajuda a jovem Nalu, se desenvolve para uma amizade em que a jovem aproveita para conversar sobre assuntos de relacionamento e evolui para uma situação de ciúmes com relação ao pai. Essa evolução se expressa nas escolhas de linguagem, planos e enquadramentos escolhidos pela direção para evidenciar a relação das duas, como por exemplo, na figura 20, em que Nalu e Rosário estão sentadas na estação e Rosário aproveita para fazer um desenho da jovem. Como lembra Stam (2003, p. 103) Truffaut considerava que o novo cinema se assemelharia a quem o realizasse, não tanto pelo conteúdo autobiográfico, mas pelo estilo que impregna o filme com a personalidade de seu diretor. Essa noção do estilo do autor como eminente no filme, se mostra contestada atualmente pelo fato de o cinema se configurar uma arte coletiva. É com olhares múltiplos que a cineasta Cristiane Oliveira constrói sua obra, ela percebe em seus projetos na prática o quanto apesar de haver um direcionamento para o roteiro e a direção, no momento da produção, no set de gravação, na direção de atores e atrizes ou no processo de montagem, algumas sugestões podem ser acolhidas pela direção como forma de tornar o filme viável, e considerando também o resultado artístico daquela sugestão. Ela lembra de uma situação que ocorreu na gravação do seu primeiro curta-metragem, o filme Messalina, em que o diretor de fotografia fez uma proposição criativa para uma das cenas que mostrava o que a personagem principal havia comprado no sex shop, porém ela não quis a princípio aceitar porque era diferente do roteiro e levaria mais tempo, mas percebeu que poderia ter um resultado mais criativo, então aceitou:

Ele tinha montado um trilho no alto da cama como uma traquitana que segurava a câmera virada pra baixo, num contra-plongé que ia mostrando o que tinha em cima da cama. Eu pensei em voz alta junto das diretoras de arte, mas porque não faz a correção com um movimento de pan simples com a câmera no tripé? Aí a dupla de diretoras de arte que eu tinha, as experientes Gilka Vargas e Inara Noemi, me falaram: deixa, esse é o plano do fotógrafo, vai ficar bonito. E eu acho que valeu a pena mesmo esperar. A partir daí eu comecei a pensar em explorar mais o momento da decupagem dos planos como um momento propício para a criação colaborativa de forma mais ampla sobre a linguagem com nossos parceiros de criação no filme. (OLIVEIRA, 2020a).

Situações deste tipo são importantes de serem destacadas pelo fato de que existe também o perfil do diretor ou diretora que não aceita interferências em seu processo de direção e mantem cada profissional em sua função sem que haja uma interação aberta, esse perfil é mais comum em grandes produções e mesmo nestas isso não é uma regra. Nos filmes analisados nesta tese, percebemos essa característica comum entre as diretoras, o processo de escuta e colaboração é 129 mais fluído e elas tendem a incluir na equipe profissionais que já trabalharam em produções anteriores quando é possível, construindo além da produção criativa, laços afetuosos.

Sequências iniciais

O início do filme Mulher do Pai é ambientado no espaço que os três (avó-pai-filha) utilizam para produzir fio de lã de forma artesanal. Nesta cena inicial somos inseridos na rotina daquela família que tem suas relações enroladas como num novelo de lã e que ao longo do filme vão sendo configuradas, principalmente após o episódio da morte da avó. E já no começo do filme entra em cena um elemento muito presente no filme: o telefone, que chama Nalu para encontrar sua melhor amiga Eliza e a faz perder o interesse pelo trabalho de tecer fios de lã com o pai e a avó.

Figura 21: Sequência inicial do filme Mulher do pai

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

Em Rânia, o início do filme mostra imagens aéreas que apresentam uma cidade repleta de prédios, mas também o mar, que está presente em diversos momentos do filme, entrelaçado 130 na vida de Rânia a partir de sua vivência com o pai pescador. A relação da jovem com o mar, com a dança e com a personagem Zizi é um elemento no filme que perpassa todo o desenvolvimento da narrativa. Figura 22: Imagens aéreas de Fortaleza

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

Na sequência inicial, em que Rânia e Zizi estão próximas ao mar e dançam e conversam, vai sendo apresentada essa relação de amizade e irmandade entre as duas, de forma a percebermos uma valorização sobre a amizade que vai ser destacada no filme a partir daquele momento. Figura 23: Rânia e Zizi na praia

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

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O cenário e os espaços onde a trama do filme Rânia ocorre proporcionam uma atmosfera marcada por uma estética urbana e ao mesmo tempo com uma leveza de cidade praiana que Fortaleza tem, mas sem esquecer da característica da metrópole. É um cenário em que a praia está presente, a cena noturna também e os lugares em que as jovens frequentam da escola a comunidade periférica são ambientados para trazer o cotidiano das personagens para a narrativa. É um espaço totalmente diferente do lugar em que se passa a outra narrativa, uma região de fronteira, em que as vivências e convivências de uma vila são uma ambientação comum no filme, que transporta o espectador para a fronteira do Brasil com o Uruguai e para o contexto da vida no campo. Percebemos nesta análise um olhar sobre as comunidades que vivem em locais de fronteira, que também ganha seu ângulo de abordagem pela cineasta Cristiane Oliveira. Esse local onde as culturas de dois países se encontram, embora isso não seja tão evidenciado no filme, contribui para uma curiosidade na personagem central, que ainda busca seu lugar no mundo diante de suas incertezas. Uma outra questão ainda ligada ao lugar, é a convivência na Vila, que é também um fator de influência para que as relações sejam diferentes e mais próximas, como por exemplo no apoio da comunidade em relação aos seus moradores, o convívio dos vizinhos que são amigos e ao mesmo tempo que todos se conhecem, evidenciam também preocupações comuns. O lugar que os personagens ocupam na narrativa também é um gradiente a ser considerado. O próprio título do filme, Mulher do Pai, carrega uma significação relacionada à responsabilidade que é dada a jovem Nalu quando da morte da sua avó. A partir desse episódio, a narrativa vai mostrando o lugar que ela precisa ocupar na família, cuidando do pai cego, e diante da comunidade, mesmo que temporariamente.

Figura 24: Paisagens do filme Mulher do pai

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

A paisagem fala também no filme, a passagem após a morte da avó é seguida de um plano aberto que mostra um campo com gado pastando e uma imagem de uma porta aberta da 132 casa da família que mostra o horizonte final de um caminho em uma paisagem verde como se o caminho fosse agora percorrido pela jovem Nalu e o pai.

Pontos de virada

Em Mulher do pai os pontos de virada da história estão atrelados a mudança da personagem Nalu, sobre o que ela valoriza no início do filme e vai tomando outras direções à medida que a trama avança. O primeiro ponto de virada é a morte da avó que altera toda sua rotina e a coloca como mulher da casa, responsável pelas tarefas domésticas e cuidado do pai; a segunda mudança é a aproximação com a personagem Rosário que é colocada como uma amiga, mas também tem uma relação de mãe pela forma como se preocupa com o futuro de Nalu e de seu pai.

Figura 25: Ruben ouve Nalu ao telefone

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

Um terceiro ponto de virada é o final do relacionamento de Nalu com Juan, de forma inesperada, ele vai embora sem se despedir e mais uma mudança altera a representação da protagonista na trama, Nalu apercebe-se abandonada e demonstra sua tristeza. A experiência 133 afetiva de Nalu e Juan é conduzida na narrativa a partir da curiosidade e interesse de Nalu pelo Uruguai. É após o relacionamento de Nalu com o jovem uruguaio que Ruben começa a descobrir que a filha já não é mais uma criança e está se envolvendo sexualmente com um homem. Ele fica muito perturbado e inclusive começa a escutar as conversas da filha ao telefone. A escolha da diretora Cristiane Oliveira em falar sobre questões de sexualidade no filme demonstra uma sensibilidade sobre o olhar para questões tão cruciais como a descoberta do sexo pela jovem e a descoberta do pai sobre as primeiras experiências sexuais da filha. O que é visto pela sociedade como tabu é abordado na narrativa sob um viés livre de preconceitos. Para a cineasta a escolha por essa abordagem tem um sentido de conscientização através da palavra falada:

(...) essa coisa da adolescente que fala sobre as experiências sexuais dela para a amiga e pai ouve, estava desde a primeira versão, então isso é uma escolha que é consciente e mostra a importância da fala como um primeiro veículo para a conscientização, então a palavra ela nos faz pensar sobre esses processos e estimulam a consciência sobre essas vivências e tu vai conseguindo nomear sentimentos, nomear sensações, para uma afirmação de quem se é dentro desse novo momento de vida. Então isso é diferente de mostrar uma relação sexual, de uma forma sutil ou na penumbra, não, eu não vejo ela, eu ouço ela falar sobre o que está acontecendo, né? Eu acho que isso também é uma forma de estimular essa visão de que é importante se falar sobre isso até para a questão da igualdade de gênero porque enquanto a sexualidade for um tabu, corpos vão continuar sendo objetificados, a gente vai continuar sendo objetificada sexualmente e sem isso não é possível a igualdade de gênero(...). (OLIVEIRA, 2020b)

Outro ponto de virada é a aproximação da filha pelo pai e sua percepção de ciúmes por Rosário, Nalu se sente traída pelo fato de sua amiga se relacionar com seu pai no momento em que ela começa a ter um convívio mais afetuoso, que nunca tinha vivenciado com Ruben. A figura 26 ilustra momentos em que filha e pai estão próximos, a filha ajuda o pai descrevendo uma cena de ação que se passa em um filme do qual ele apenas ouvia os diálogos e de repente começa a imaginar as imagens a partir da audiodescrição. Os dois se divertem com essa situação e vai se costurando uma aproximação na relação pai-filha. Além disso, ao espectador são mostradas situações em que as dificuldades de uma pessoa com deficiência, neste caso uma pessoa cega, são colocadas em destaque de forma a conscientizar o público sobre a colaboração necessária nas relações de convivência e superação de barreiras. Nesta sequência da descrição Nalu se mostra reticente no começo, mas depois gosta da atividade de audiodescrição sobre a cena e percebemos ali uma mudança no seu semblante, ela busca se esforçar para fazer uma descrição fiel e Ruben demonstra entender a 134 descrição e valoriza o esforço. Os dois estão ali entregues aquele momento de partilha de um momento comum na vida de uma adolescente e seu pai, mas no caso dos dois é a primeira vez que experienciam compartilhar um filme. A cena contribui para o ritmo do filme em direção ao estreitamento da relação dos dois.

Figura 26: Nalu descreve uma cena de ação

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

Ainda sobre esse aspecto da acessibilidade presente no filme, percebemos nas escolhas da linguagem como por exemplo, em relação à iluminação (luz/escuro) são colocados no enredo como aspectos para chamar a atenção sobre o cotidiano de uma pessoa cega que se focaliza no personagem do pai. Como na cena em que Nalu volta para casa e Ruben está no escuro ouvindo rádio. Na sequência se desenvolve o diálogo:

Ruben: Tu lavou as roupas hoje? Nalu: Lavei. Ruben: Tu tem que me avisar quando lavar esbarrei nelas no varal, deve ter sujado. Nalu: Tu vê se lembra de acender a luz quando dá umas 6 horas, para eu não ter que chegar no escuro. Ruben: E onde é que tu tava até essa hora? Nalu: Estudando na Elisa. 135

Ruben: Sei... Tu não me enrola como enrolava a mãe, vai ter que me dizer para onde vai e que horas volta. Nalu: Eu nunca tive que te avisar nada. Ruben: Pois agora tu vai ter que me avisar. (Trecho extraído do filme Mulher do Pai)

Esse diálogo reforça o quanto a relação dos dois era de distanciamento e começa a sofrer o impacto da ausência da matriarca avó Olga. Em outra cena Antônio, amigo de Rubem, aparece na casa para saber o que está acontecendo. Ele está preocupado porque Rubem não abre a janela do quarto e alerta Nalu que agora ela deve cuidar do pai que é cego. Mais uma vez ela é lembrada do espaço que deve ocupar na casa e na vida do pai. Na Figura 27, as imagens ilustram parte de uma cena que evidencia a mudança de olhar da filha sobre o pai com ciúmes de Rosário e Ruben. Nalu é surpreendida com a presença de Rosário em sua casa com seu pai. A aproximação da uruguaia começa a perturbar Nalu quando ela percebe que pode se aproximar do pai que ficou por tanto tempo ausente.

Figura 27: Rubem, Rosário e Nalu

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

De acordo com a diretora Cristiane Oliveira (2020), o fator do ciúme está atrelado ao sentimento de ausência que Nalu vivencia. Recorrendo à psicologia, ela destaca a fase comum do namoro do pai ou da mãe, pela qual muitos filhos passam, mas que a jovem não vivencia:

(...) Então ela não viveu isso porque esse pai não quis ter essa filha, eles foram criados quase como irmãos, porque quando ele perdeu a visão ele teve relação com a menina que era ajudante da mãe, engravidou ela e ela faleceu no parto, então esse homem começa a aprender a ser cego junto com esse crescimento do bebê, que é a filha dele. Então isso que ela não viveu no passado, está guardado, recupera agora de alguma forma com essa proximidade forçada que existe entre eles, então no momento de estabelecimento de papéis. Quem é o outro? Como se descolar do outro e construir essa relação? Então tem essa ambiguidade dessa relação que vem acontecer só tardiamente pra ela, na adolescência, e também tem a nova mulher do pai, né? Essa mulher que chega e cria essa confusão, esse conflito na cabeça da protagonista, que era amiga dela né, então isso é confuso para ela, então filme ele traz as ambiguidades de querer trazer todas as possibilidades. (OLIVEIRA, 2020b). 136

Essa mudança é impactante na trama e vai ocorrer já nos atos finais, resultando na ida de Nalu para a casa da amiga Eliza. Ela abandona o pai, mas não se sente confortável em deixá- lo para trás e ir em busca de outros horizontes na capital com a amiga.

Figura 28: Nalu vai embora de casa

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

Na outra narrativa, o protagonismo de Rânia passa por alguns pontos de virada na história que vão contribuindo para a mudança de perfil da jovem. Ela começa o filme como uma menina sonhadora, que ama ver as luzinhas que anunciam a chegada do início da noite, vai crescendo com a responsabilidade de trabalhar em uma barraca de praia e depois já apresenta outro perfil quando começar a dançar e se prostituir na boate do Belga. A relação de Rânia com Stela, a professora de dança, é ressaltada no filme com um olhar de afeto por parte de ambas, quando começam a se conhecer e ensaiar juntas. Há uma relação de troca de aprendizados, em que a jovem se esforça para mostrar o seu melhor e a professora se empenha em ensiná-la, ao passo que também aprende com sua determinação. As cenas em que elas estão dançando (figura 29) mostram a entrega de ambas ao processo artístico, mas também uma cumplicidade que contribui para que elas se conheçam e se ajudem, principalmente no objetivo em comum que é a dança.

Figura 29: Rânia e Stela conversam e dançam

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

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Em uma outra sequência, é mostrado o desespero da jovem ao não conseguir a autorização dos pais para viajar e ela recorre a uma documentação falsa na esperança de conseguir realizar o sonho de dançar em Nova Iorque, porém não contava com a recusa de Stela em aceitar essa fraude. No diálogo (figura 30), a jovem diz que não é mais Rânia, se referindo à mudança do nome utilizado no passaporte falso, e a mensagem reforça toda sua mudança na jornada que percorreu até aquele momento no filme.

Figura 30: Rânia e Stela conversam na praia

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

A opressão contra a mulher é apresentada no filme através da personagem Zizi e seu relacionamento com Dedé. Os dois compartilham uma relação amorosa que enfrenta um dilema diante das escolhas de Zizi, ela quer permanecer com sua vida independente, trabalhando na noite, enquanto ele busca o relacionamento convencional, em que ele é o mantenedor que cuida da mulher. A violência aparece quando Dedé percebe que Zizi não vai mudar, não somente para sua casa, mas não pretende mudar sua vida para ficar com ele. A emancipação de Zizi é uma barreira para sua felicidade junto a Dedé, mas significa seu passaporte para uma vida sem cobranças, da qual ela sempre fugiu. Desde o início da narrativa o perfil de Zizi é traçado como uma mulher sem medos, travessa, como Rânia a chama: “louca”, no sentido de se aventurar na vida na busca de suas metas. Mas ao mesmo tempo apresenta suas fragilidades, como na cena em que conta para Rânia que está grávida e se vê numa situação que não esperava e não sabe o que fazer. 138

Figura 31: Zizi e Dedé

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

Em um dos momentos do filme que a emoção equilibra a cena em um ritmo mais lento, a câmera focaliza as jovens, através de um plano médio, Rânia e Zizi aparecem em um fundo branco de uma fotografia 3x4, cada uma de uma vez, e revelam o que uma ensinou a outra, através do seguinte texto:

Zizi: Não aprendi a dançar com ela, mas aprendi a nadar. Em Poranga não tem praia, ali sim é o fim do mundo! O morro pra mim foi ficar mais perto do céu. A Rânia é uma anjinha dessas diabinhas, com parte das asas cortadas... Teve um dia que a gente saiu dizendo que ia construir um trampolim no morro dando pro mar. Dessas venturas só saio viva por causa dela, que me ensinou a nadar.

Rânia: No último aniversário dela, perguntei o que ela queria, ela disse: 10 tapiocas com leite moça, eu disse que ela morreria de cárie, ela disse que não se morre assim tão fácil, eu disse que ela morreria fácil... de amor, porque ela é que nem uma borboleta gigante e colorida com asas muito finas. Agora que eu te ensinei a nadar me ensina a voar. (Trechos extraídos do filme Rânia)

Nessas frases ensaiadas que traduzem um pouco das características de cada personagem, a narrativa segue a linha de projetar imagens de um futuro para as jovens, que não é posto claramente no filme, deixando para o espectador a interpretação sobre o que aquelas fotografias representam na vida das personagens. As duas jovens mulheres estão diferentes na aparência, Rânia mudou o seu cabelo e Zizi parece mais séria, o que denota também uma mudança de personalidade naquela fotografia que será utilizada em um documento.

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Figura 32: Rânia e Zizi em fotos 3x4

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

A negativa dos pais sobre a viagem de Rânia representa outro ponto de virada no filme. A jovem busca o apoio da família, mas esbarra na incompreensão sobre o seu desejo de conhecer outros horizontes. Na fala do pai, fica clara a inflexão sobre o que para ele é uma forma diferente de querer viver a vida, atitude que ele não vislumbra pra já ter uma visão passiva da vida, lhe basta a rotina de pescar, cuidar do trabalho e ter os filhos por perto. É uma forma de aceitar a vida já colocada pelas escolhas da família que a jovem não concorda e vai questionar. Figura 33: Rânia e o pai

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

Para Rânia essa incompreensão dos pais não faz sentido, sendo aquela a oportunidade de mudar sua perspectiva de vida. Ela não aceita esse fato e o seu desnorteamento contribui para que a jovem busque mais uma vez o apoio da amiga Zizi. As duas passam por momentos semelhantes sobre a indecisão do que fazer da vida, ante os desafios que enfrentam. O olhar da direção vai mostrar nessa cena um momento de euforia da juventude, em que os elementos mar, bebida e amizade se misturam para que as personagens estravazem suas dores.

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Figura 34: Rânia e Zizi na praia à noite

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

Sequências finais

A sequência final do filme Mulher do pai é longa e inicia com o retorno de Nalu à casa do pai. Logo na chegada ela encontra Ruben e Rosário prestes a tomar um café e no momento que Rosário percebe a chegada de Nalu ela retorna à cozinha e pega mais uma xícara para a jovem, assinala aí uma atitude de trégua e a inclusão de Nalu no momento de união, que é aceita pela menina. As duas seguem para a parte externa onde Ruben está sentado e percebe a chegada da filha.

Figura 35: Nalu retorna à casa do pai

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016.

As imagens que encerram o filme, mostram Nalu seguindo sozinha, ela vai surgindo no quadro pequena, no canto esquerdo de uma estrada de terra que antes percorria de bicicleta e agora segue caminhando, a câmera vai mostrando-a crescendo no quadro, cada vez maior. Em plano geral de pessoas ela vai se aproximando e seguindo na sua caminhada até desaparecer do 141 quadro. Essa sequência (figura 36) produz interpretações sobre seu destino diante daquele caminho. Ela segue persistente em uma estrada longa, como uma metáfora que evidencia a longa viagem da vida adulta que ela está apenas iniciando e tem muito a descobrir. As imagens finais das personagens Rânia e Nalu trazem uma similaridade na forma como as diretoras escolhem finalizar as narrativas. As jovens são distanciadas do quadro em um movimento que as torna pequenas diante desse mundo, diante dos dilemas que enfrentam sobre as mudanças e seus embates.

Figura 36: Sequência final do filme Mulher do pai

Fonte: Filme Mulher do Pai, direção de Cristiane Oliveira, 2016. 142

Na sequência final de Rânia, que dura quase três minutos, o plano inicia com imagens do pai reestabelecendo seu barco, e indo para o mar com o filho mais novo, e na sequência a câmera focaliza Rânia na areia observando o barco ir embora. A imagem mostra a jovem cada vez mais distante e sua frase final demarca suas convicções sobre o futuro:

Salgada e seca minha vida, como a desse mar, manso e agitado, que me comeu o peito, me engoliu a alma e eletrificou as juntas das pernas. Como uns tremeliques no corpo e disse para eu ser feliz perto ou longe dele. Feliz, Assim. Como eu acho que vou ser. (Trecho extraído do filme Rânia).

Figura 37: Sequência final do filme Rânia

Fonte: Filme Rânia, direção de Roberta Marques, 2013.

A sequência é em plano aberto e a câmera faz movimentos como se estivesse em um barco no mar, onde as ondas fazem a câmera balançar, então o espectador observa Rânia se afastando da perspectiva do barco e ela continua ali, olhando fixamente, contemplando o mar até aparecerem outras embarcações que a fazem desaparecer da cena. A trilha sonora que abre o filme retorna, finalizando o filme. A música “Troubled Waters”, que pode ser traduzida como “águas perturbadas” se relaciona com o estado de espírito da personagem Rânia. É um final que deixa em aberto o que a personagem pode vivenciar sobre o seu sonho de dançar profissionalmente e viajar com a companhia de dança, já que as 143 imagens aéreas que iniciam o filme podem ser relacionadas pela música a este momento final, fazendo com que o espectador se pergunte sobre as chances de ela viajar, ou não, e possa imaginar possibilidades futuras para a personagem.

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4.2 Camadas de sentido, afeto e questionamentos nos filmes Como Nossos pais e Mãe

A figura materna é uma personagem recorrente no cinema, presente nos gêneros do terror ao drama, passando pela comédia. Mas a diversidade de representações sobre a realidade da maternidade só recentemente tem sido destacada nas telas. A personagem da mãe sofrida, guerreira, heroína, que faz tudo pelos filhos já foi representada em diversas obras, de forma extremamente dramática em filmes clássicos como por exemplo, Alma em suplício (1945), de Michael Curtiz, A escolha de Sofia (1982), de Alan J. Pakula, interpretado por Meryl Streep. A figura materna é explorada sob a perspectiva dramática também nos filmes Tudo sobre minha mãe (1999) e Volver (2006), de Pedro Almodóvar. Uma visão mais realista vem sendo colocada em filmes contemporâneos como Lady Bird: A Hora de Voar (2017), sucesso do cinema americano, dirigido pela premiada . Do cinema brasileiro contemporâneo, obras também premiadas como o filme Que horas ela volta? (2015), dirigido por Anna Muylaert, já citado nesta tese, com uma mãe como protagonista, e filmes mais recentes Como Nossos Pais (2017) e Mãe (2019), objetos de estudo desta pesquisa, trazem um olhar mais pragmático sobre os problemas enfrentados pelas mães na relação com os filhos e a família. O filme Como Nossos Pais é uma história ficcional, baseada em fatos da vida cotidiana de uma família de classe média, focalizando a relação em crise de Rosa, interpretada pela atriz Maria Ribeiro, e Dado, interpretado pelo ator Paulo Vilhena. Lançado no festival de Gramado, o filme teve destaque na premiação com o reconhecimento para as atuações de Maria Ribeiro e Clarisse Abujamra, com a melhor atuação de atriz coadjuvante. Como Nossos Pais conta a história de Rosa, uma mulher que abdicou do sonho de ser dramaturga após o nascimento das duas filhas, enquanto o marido seguiu com sua carreira de antropólogo. O filme reflete sobre o papel da mulher na contemporaneidade. A partir de uma revelação feita pela mãe sobre sua verdadeira paternidade, a protagonista começa a questionar suas escolhas, seu casamento, sua vida profissional e a maternidade. A maternidade é a temática central do filme Mãe, dirigido pela cineasta brasiliense Adriana Vasconcelos. É o primeiro longa-metragem que ela dirige após a realização de alguns curtas de sua autoria e atuação em projetos de outros diretores. O filme foi finalizado em 2019, e a estreia prevista para 2020 foi prejudicada pela pandemia da Covid-19. Na trama, Madalena, Sônia e Júlia, são três mães diferentes, atravessadas por uma tragédia ocorrida no passado que muda a vida delas e as distancia, causando conflitos difíceis de lidar. Utilizamos nesta análise recortes de sequências e também diálogos da narrativa com o intuito de entender de que forma 145 se dá a representação das protagonistas, considerando aspectos como os desafios da busca por espaço e reconhecimento da mulher na sociedade contemporânea, além dos conflitos familiares que permeiam a vida das mulheres.

Enredos

O filme Mãe explora no gênero drama, o universo da maternidade por um viés trágico marcado pelo estupro da jovem Júlia, pelo próprio pai, que impacta a vida das protagonistas da história. Sônia é mãe de Júlia e está presa pelo assassinato do companheiro que abusava sexualmente de Júlia. Por sua vez, Júlia foi engravidada através do estupro e deu à luz a Camila. Madalena é a matriarca da família e criou Júlia e Camila após Sônia ser presa. O filme se passa nesse contexto de uma dura realidade que assola muitas famílias, quando o estuprador é uma pessoa muito próxima e mesmo assim os parentes não conseguem evitar a tragédia. Sobre este aspecto é importante destacar dados estatísticos que mostram a realidade brasileira quando se trata de violência contra a mulher especificamente em relação ao abuso sexual. Dados da edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 apontam que em 2019 a cada 8 minutos foi registrado um crime de estupro no Brasil. O número de boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável registrados em delegacias de polícia no ano de 2019 foi de 66.123. Dentre os casos registrados, a maior parte das vítimas é do sexo feminino, 85,7%, e um outro dado que chama a atenção é que em 84,1% dos casos, o criminoso era conhecido da vítima: familiares ou pessoas de confiança.

Figura 38: Sônia levada presa

Fonte: Filme Mãe, direção de Adriana Vasconcelos, 2018.

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A figura 38 é parte da primeira sequência de imagens do filme: Sônia sendo levada no carro da polícia para uma penitenciária feminina. É uma cena inicial que anuncia que o filme tematiza uma história sofrida. Sônia é uma mulher com um olhar austero, sempre de cabeça baixa ela segue na narrativa em distanciamento e constante embate com a mãe Madalena. A escolha da cineasta Adriana Vasconcelos é por um enredo de ritmo tenso, ela ressaltou sobre a escolha do título do filme que havia outra ideia, antes o título era 3/4, porém foi alterado para Mãe por causa da predominância da temática, ela explicou a relação com a abordagem da maternidade que prevaleceu no filme:

3/4 porque era como um retrato em 3/4, aquele retrato que a gente não tem em Photoshop, ou seja, era a realidade mesmo, maternidade real, e tinha uma alusão também aos personagens, porque eram três mães em uma família de quatro mulheres, e assim, eu queria falar de maternidade porque era um momento da minha vida que eu estava assim: eu quero ou não quero ter filhos, sabe? E aí surgiu a ideia de tratar no filme de uma família em que as três mulheres do filme eram mães e que cada uma lidava com a maternidade de uma forma diferente. E aí surgiu a ideia do enredo que é trágico porque eu queria, assim, eu parti do princípio de que nem toda mulher deve ser mãe e muitas que são não deveriam ter sido porque são péssimas mães, isso é uma observação minha, porque eu acho realmente que tem muita gente que é péssima mãe, entendeu? (VASCONCELOS, 2020).

A visão de Vasconcelos sobre a maternidade é colocada no filme através do perfil das personagens e da trama, que focaliza uma quebra de padrão na representação da mãe gentil e amável. É possível perceber também nos outros projetos realizados pela cineasta sua opção por histórias mais dramáticas em que as protagonistas são mulheres e vivenciam tragédias. A relação mãe-filha no filme Mãe é rodeada por uma gama de críticas e cicatrizes do passado que vão surgir com a volta de Sônia da cadeia para passar as festas de final de ano com a família. Madalena não consegue segurar sua revolta pela situação da filha que a colocou na condição de ter que cuidar da neta. É uma constante o olhar de reprovação sobre a filha, em todas as cenas ela provoca a filha e torna a relação difícil para todos. Madalena é uma mãe que não perdoou a filha pelo que ocorreu, mas que teve a compaixão pela neta e cuidou dela com carinho. As cenas em que Júlia sofre o estupro aparecem no filme como lembranças que atormentam Sônia, o recurso utilizado para mostrar o sofrimento de Júlia e a atitude da mãe para proteger a filha funcionam como elemento dramático na narrativa, causando uma sensação de desconforto em ver a menina sendo abusada, embora não seja mostrado nitidamente, sendo utilizados movimentos de câmera bruscos e baixa iluminação, e ao mesmo tempo há uma sensação de querer ver a reação da mãe. É uma cena tensa, mas muito rápida, que tem a função 147 de causar no espectador essa tensão e a explicação para o clima que é estabelecido naquela família, principalmente entre Sônia e Madalena.

Figura 39: Cena do abuso sexual sofrido por Júlia

Fonte: Filme Mãe, direção de Adriana Vasconcelos, 2018.

Na narrativa de Como nossos pais o enredo coloca em cena a discussão sobre o modelo de relacionamento entre casais, fazendo a crítica sobre a monogamia e as relações baseadas no tradicionalismo do casamento, em que o homem é o soberano, que deve ser servido e que pode inclusive trair a mulher, enquanto à mulher é relegada a função de aceitar a traição e entender, perdoar. A maternidade também é questionada pela ótica da dificuldade de ser mãe, das funções cumulativas que a mulher desempenha no casamento e a falta de colaboração do companheiro. A todo momento o filme revela algum aspecto que se relaciona à crítica à sociedade machista e podem ser encontradas referências feministas claras no filme, a começar pela inspiração da história do filme pela cineasta Laís Bodanzky. A peça Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, escrita em 1897, que é também a inspiração da peça que a protagonista do filme escreve, é considerada feminista por muitos pela forma como a personagem principal vê sua posição inferior na sociedade, revolta-se e deixa marido e filhos, enfim lida de forma mais autônoma com a relação com o marido e com a vida.

Figura 40: Livro Casa de bonecas

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

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Podemos elencar também outras referências intertextuais no filme que se ligam diretamente a um discurso feminista, por exemplo uma outra cena em que é possível ver o livro O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir, em meio a uma pilha de livros que a personagem Rosa está lendo. Ao longo da narrativa há uma série de elementos que se ligam para se confrontar com a visão paternalista de que a mulher deve ser a mãe de família, encarregada de todas as funções domésticas, podemos lembrar, por exemplo, as cenas em que a pressão que a personagem Rosa é submetida é colocada em evidência. A fotografia ressalta através da linguagem imagética, uma panela de pressão em primeiro plano (figura 41), uma das crianças pedindo ajuda para fazer a tarefa de casa, um leite que ferve a ponto de derramar no fogão, enquanto o pai ignora o fato de que também tem a responsabilidade sobre as tarefas relacionadas à família, as crianças e à casa. Para Bodanzky (2020) essa preocupação com um olhar mais político em seus filmes é algo recente: “Eu não tinha essa consciência do meu olhar político nem da importância dele, agora eu tenho mais e acho que eu posso ter muito mais, eu estou também no processo”.

Figura 41: Leite derramando, Rosa preocupada e o leite derramado no fogão

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017. 149

O título do filme Como Nossos Pais é inspirado na canção do poeta, cantor e compositor Belchior, lançada em 1976, que traz em sua letra o conflito geracional que se vivia naquele momento no país. A interpretação da canção destaca o aspecto de que embora pensassem de forma diferente, a geração mais jovem ainda vivia segundo a mesma moral conservadora da geração anterior. Bodanzky ao explicar a escolha do nome do filme, que já nasce com esse título, destaca essa ideia central do conflito de gerações, porém com a ressignificação da discussão ao enfatizar o conflito na relação entre as mulheres:

Em Como Nossos Pais claro, eu vou falar sobre gerações e aí esse é o recorte do filme, minha protagonista ela tem os seus pais, ela tem o seu pai e sua mãe vivos, e ela já tem filhos, então ela tá nesse momento sanduíche da vida, então a gente já tá muito acostumado a falar dos atritos de gerações quando a gente fala com os gêneros cruzados, mas a gente nunca fala sobre a relação entre as mulheres, entre mãe e filha, esse é um tema... engraçado, acho que pela opressão de gênero, as mulheres nunca falaram muito sobre elas mesmas, e nem da maneira como nós mulheres nos relacionamos entre nós e o filme ele fala do conflito de gerações, mas principalmente entre mulheres, e o filme tenta falar sobre isso, esse é um dos plots centrais, da solidariedade, a partir do momento que você para pra conversar e põe o dedo na ferida, você cria uma ambiente de solidariedade entre mulheres, aí tem a troca e aí é que tem o aprendizado. (BODANZKY, 2017)

A relação mãe e filha tem destaque no filme, compondo uma linha narrativa que mostra a fragilidade e a força dessas relações na vida cotidiana, contribuindo para que o filme tenha também uma perspectiva universal. As crises, as críticas, os medos, as frustrações, entre outros sentimentos que são vivenciados pelas personagens revelam uma série de significados sobre as relações entre as mulheres, principalmente no contexto familiar. Os significados estão relacionados à forma como as mulheres lidam com os problemas e as expectativas criadas ao longo da vida. Clarice e Rosa (figura 42) exemplificam uma parte das mulheres, dentro de um círculo privilegiado, de mulheres brancas, cisgênero, de classe média, com um padrão de vida confortável.

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Figura 42: Clarice e Rosa

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

Os problemas que são colocados no filme, revelam esses aspectos da identidade dessas duas personas. Um exemplo é o fato de Rosa perder o emprego e essa mudança não alterar muito seu estilo de vida, situação só possível em camadas mais privilegiadas da sociedade. Pensando no aspecto da representação no filme, o próprio elenco deixa lacunas em relação à representatividade, principalmente do ponto de vista racial. O filme traz um universo de pessoas brancas e são poucos os atores negros que aparecem na narrativa. Os poucos que aparecem estão ocupando funções que são comumente reservadas a elas, como por exemplo, a recepcionista que recebe os projetos na cena em que Rosa inscreve sua peça para concorrer em um concurso de roteiros de dramaturgia. Essa é uma observação que precisa ser colocada pelo fato de que esses padrões devem ser questionados e combatidos. Não se trata de uma questão de cotas para atores e atrizes, ou personagens negros, trata-se de pensar em narrativas nas quais sejam observados os aspectos da população brasileira e sua diversidade.

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Sequencias iniciais

Já a partir da primeira sequência de cenas o filme Como nossos pais encadeia questionamentos. A narrativa inicia com um almoço em família na casa da matriarca da personagem principal, Rosa. É possível perceber já nesta primeira sequência o desagrado da protagonista com a forma como o marido é tratado por sua mãe, que faz o almoço especial para recebê-lo de volta de uma viagem e fez questão de enfatizar a importância do trabalho do genro, fato que incomoda Rosa, como pode ser observado na figura 43.

Figura 43: Almoço em família

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

Rosa questiona desde o início as funções da esposa e do marido. O filme evidencia a visão tradicionalista da sociedade através das palavras de reconhecimento da personagem Clarice, mãe de Rosa, sobre a importância da carreira do genro em comparação à da filha. Essa posição tradicionalista se expressa na fala da mãe ao repreender a filha: "Eu não acredito que você está pedindo ao seu marido para abandonar tudo que ele faz para dar banho nas suas filhas". Na mesma reunião familiar acontece a revelação de que não é filha do pai que a criou, 152

Rosa então fica surpresa e indignada pelo fato de ter sido enganada pela mãe por não ter contado antes um fato tão importante sobre sua vida e quando decide contar, faz de uma forma tão brusca.

Figura 44: Rosa, a mãe e o irmão

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

Na figura 44 temos uma sequência de três imagens que sintetizam essa cena, um elemento de conflito que será um elemento de reflexão e mudança de postura para a protagonista do filme. A revelação também traz uma camada de significado, pois ocorre no momento em que a filha elogiava o pai, por ser menos duro com ela em comparação com a forma de tratamento que recebeu da mãe:

Rosa: Meninas, quando o papai acabar de lavar a louça a gente vai, tá? Então já é pra ir recolhendo as coisas. Filha: Ah não mãe. Eu não quero ir pra casa, eu quero ficar na vovó. Filha: É, mãe! Rosa: Eu não tô perguntando a opinião de vocês. Eu tô simplesmente afirmando que a gente vai daqui a pouco. Clarice: Deixa elas ficarem mais um pouquinho. É cedo ainda. Rosa: Não, mãe. O domingo também é meu. Elas tomaram chuva. Clarice: Pô, mas você é dura com elas, não? 153

Rosa: Por que será, né? Eu devo ter alguma memória de alguém que foi muito duro comigo. Com certeza não foi meu pai porque ele sempre foi um doce. Clarice: O Homero? Você está falando do Homero? Que imagem você tem do seu pai? Como a memória trai. O Homero sempre foi um pai ausente, nunca me ajudou em nada. Rosa: Mãe, deixa eu te falar uma coisa. Se o meu pai te deixou, eu não tenho nada a ver com isso. Clarice: Não. Você vai me ouvir. O teu pai não me deixou. Eu dei um basta naquele folgado que vivia às minhas custas. Rosa: Posso te falar uma coisa? Você está perdendo seu tempo. Você não vai desfazer a imagem que eu tenho do meu pai. Clarice: Você foi concebida na minha viagem à Cuba e o Homero não estava lá. (Rosa fica paralisada, totalmente surpresa com a revelação). Clarice: Então... Rosa: O que é? Clarice: Um congresso de sociologia e educação. Rosa: Você bebeu, né? Você só pode estar louca. Clarice: Eu tive um caso rápido. Havana, um congresso, foi lá. Rosa: Você está dizendo... Clarice: Foi lá que... O Homero não sabe nada disso. Nada. Nem foi, né? Ele era um sociólogo, brasileiro, militava na educação, como eu. Mas eu não tenho notícia dele, não tenho contato, não tenho absolutamente nada. (Indignada, Rosa sai da cozinha). Filho: Você escondeu isso da gente esse tempo todo? - Clarice levanta e sai da cena, mas logo retorna e fala pro filho: - Você é filho do Homero.

Essa sequência de cerca de 2 minutos reúne um momento de tensão do filme que será significativo para o comportamento da protagonista do filme em suas relações com os outros personagens. A revelação na frente do irmão e do marido que estão na cozinha, também os deixa surpresos e o que chama a atenção nessa sequência é a forma como a revelação é feita, inclusive a personagem Rosa ressalta a frieza como a mãe conta sobre o pai enquanto conversa com o irmão após o ocorrido. O início do filme Mãe é um plano-sequência (figura 45) que mostra a entrada de Sônia na cadeia e também é uma apresentação dos créditos iniciais do filme. A câmera lenta acompanha a mulher e a carcereira até a cela, em um ritmo vagaroso em que é mostrado o espaço que Sônia habitará a partir daquele momento. Ao chegar na frente da porta da cela, o movimento de retirar as algemas é anda mais demorado, e ao final ela entra na cela, a câmera acompanha seu olhar, triste e assustado, levantando o rosto para a janela na porta da cela, como se ela quisesse ver alguma saída para aquela situação. É uma abertura que apresenta a angústia da personagem e das mulheres que ficam encarceradas por um crime que tiveram que cometer.

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Figura 45: Imagens do plano-sequência inicial do filme Mãe

Fonte: Filme Mãe, direção de Adriana Vasconcelos, 2018.

Na sequência desta cena, aparece o título do filme, as letras que formam a palavra Mãe aparecem marcadas em uma parede e a imagem corta para a imagem de Júlia sentada em uma calçada na rua em que mora. Ela se levanta ao ser chamada pela avó e sua barriga aparece. Neste quadro inicial estão colocadas as questões principais do filme, os crimes, a punição e as consequências. As escolhas da direção em relação à representação das mulheres no início do filme conectam o espectador com duas realidades: a da mãe presa e da filha também tolhida de sua juventude a partir da grande responsabilidade de cuidar de uma criança. Porém, a narrativa não focaliza a fase das dificuldades de criação do bebê. O filme segue após 12 anos da tragédia, com a menina Camila já adolescente, o retorno de Sônia e a difícil reação de Madalena. A representação das três mães no filme expõe as relações de conflito e austeridade naquela família e apresenta pistas de que se alguma proximidade existiu em algum momento da vida delas, não será possível resgatar após a série de traumas vivenciados por todas elas.

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Personagens e Protagonistas

Nos dois filmes as personagens mulheres são evidenciadas e os homens estão em segundo plano. Com essa observação não diminuímos os papeis masculinos nos filmes, mas devemos observar a forma de representação das mulheres na narrativas, e nos dois exemplos os homens tem personalidades mais dóceis como é o caso de Homero, pai de criação de Rosa, e também o irmão dela, que tem um comportamento mais tranquilo. E também é o caso do personagem Bento, namorado de Madalena. A personagem Madalena é uma avó-mãe de personalidade forte, ela não dispensa suas saídas noturnas para os bailes, ao passo que critica a filha Sônia pelo fato de não ter conseguido ser uma boa mãe para Júlia. Ao longo do filme ela dá pistas de que o comportamento de Sônia na juventude contribui para sua desaprovação. Sobre os personagens, Vasconcelos lembra aspectos que estão atrelados ao perfil criado na representação dessas mulheres:

Eu montei um personagem que é uma mulher que é uma péssima mãe, a Madalena, que você vê que ela foi uma péssima mãe, mas no entanto, assim é um personagem que eu gosto muito porque ela é uma excelente avó e ela é a mãe da neta, tudo que ela não foi para filha ela foi para neta, ela exerceu a maternidade com a neta, outra que é o personagem da Sônia, ela queria ser mãe, mas ela não conseguiu, e aí não só não conseguiu pela tragédia que acontece na vida dela, mas porque ela deixou, de certa forma, porque eu acho que assim, essas coisas no meu filme eu falo do incesto, eu falo do abuso, né? Então, eu falo de temas fortes, e assim eu não acho que uma mulher deixa isso acontecer, ela tem dificuldade… ela não quer ver, tá na frente dela, mas é tão doido que ela não quer ver, e aí a coisa acontece, a criança não tem a quem recorrer, e então assim, tinha uma parcela de culpa da mãe que não quer ver. (VASCONCELOS, 2020).

O filme Mãe entrelaça as histórias das três protagonistas mostrando também suas identidades, como por exemplo, a personalidade atenciosa de Júlia com a filha e com a mãe, apesar de todas as adversidades. Na sequência de imagens reproduzida na figura 46, o afeto de Júlia com a mãe deixa clara a relação de distanciamento das duas. Elas se abraçam ao se encontrarem, mas não tem muito o conversar:

Sônia: Júlia! Júlia: Mãe! Sônia: Oi Júlia. Júlia: Quanto tempo... - Elas se abraçam e a câmera focaliza o rosto de Júlia sem saber o que fazer e abraçando a mãe mais apertado e fechando os olhos. Até Camila entrar em cena. Camila: Achei mãe. Júlia: Filha, essa é sua avó. Dá um beijinho nela. Camila abraça Sônia rapidamente sem muita proximidade. - A câmera focaliza Madalena em plano médio, observando o encontro. Sônia: Nas fotos ela parecia menor... - A câmera mostra as três. 156

Júlia: É, eu não tenho mandado fotos ultimamente. Desculpa. - Sônia fica em silêncio, sem saber o que falar. Júlia: Senta. Senta um pouco mãe. - Madalena sai da sala. Júlia: Você tá bem? Sônia: Tá tudo bem. - Elas ficam em silêncio, sem saber o que conversar... (Trecho extraído do filme Mãe)

Figura 46: Sônia abraça Júlia e Camila

Fonte: Filme Mãe, direção de Adriana Vasconcelos, 2018.

Além da ausência da mãe com relação à filha por estar na cadeia e não acompanhar seu crescimento, há também a ausência da filha que não visita a mãe na cadeia, ou não envia cartas, desta forma são colocadas as situações de afastamento que torna o abraço tão frio. Ainda sobre os personagens, Vasconcelos conta sobre a perspectiva realista na criação dos perfis, principalmente as mulheres.

Eu quis criar personagens reais nesse filme e mulheres reais muitas vezes quando briga com outra você xinga, muitas vezes você agride e assim por uma coisa cultural 157

que tem que ser diminuída e até se acabar, mas que acontece muitas vezes você ver uma mulher agredindo a outra e fala assim a você não conseguiu segurar seu homem, lembra que tem uma frase que ela fala assim? Então é um comentário machista, é uma mulher agredindo a outra por causa de um homem, mas isso é a realidade, então eu não criei personagens que não fossem reais. (VASCONCELOS, 2020).

Uma personagem que se destaca no filme é a amiga Gislene. O apoio dado por ela a Sônia representa a empatia existente entre as mulheres e a relação de amizade que supera preconceitos. Na figura 47, o abraço das duas amigas é apertado e reflete a emoção do reencontro entre as duas mulheres.

Figura 47: Abraço de Sônia e Gislene

Fonte: Filme Mãe, direção de Adriana Vasconcelos, 2018.

Gislene aparece no filme como a amiga que vai amparar Sônia nos momentos em que ela mais precisa, mesmo assim surge o pedido de desculpas pelo fato de não ter ido visitá-la na cadeia com mais frequência, nem ter enviados mais cartas. É uma outra realidade que o filme expõe: o abandono das mulheres na cadeia. Em Como nossos pais, as mulheres, centrais na narrativa, também estão em conflito e reivindicam seus espaços. A personagem Clarice, mãe de Rosa, é uma mulher forte que ao longo da narrativa repete o seu não-medo da morte ao lutar contra um câncer. Podemos observar que a escolha narrativa é por não explorar uma evolução da doença de forma dramática, Clarisse ao contrário, sofre mais com a falta de um cigarro do que um sintoma da doença a qual está acometida. Do início ao fim do filme Rosa e a mãe mantêm uma relação de implicância e críticas que mostram também esse lado de uma relação mãe e filha permeada por cobranças de ambos os lados. Esse é justamente um dos elementos norteadores do filme em relação à temática central que destaca o conflito de gerações. 158

A narrativa mostra também a fragilidade do pai Homero, admirado por Rosa. Ele é representado no filme como uma pessoa sensível e que ao mesmo tempo não tem muitas responsabilidades, atitude que vem à tona com a reclamação da esposa atual sobre a falta de pagamento da escola da jovem Caru, meia-irmã de Rosa.

Figura 48: Rosa e o pai

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

Outra personagem mulher que se destaca na narrativa pelo seu olhar diverso é a jovem Caru, que tem uma vida completamente diferente da irmã. Ela é lésbica, não concorda com o modelo tradicionalista de família e não entende as atitudes de Rosa. Em uma passagem do filme, sua posição feminista é exposta ao se indignar com a história contada por Rosa às duas filhas antes de dormir:

Rosa: Então o senhor Deus disse à mulher: - multiplicarei grandemente a tua dor, com dor darás à luz filhos, e o teu desejo será para o teu marido e ele te dominará. Caru: Que horror Rosa, que livro é esse que você tá lendo? Rosa: É a bíblia que tava aqui na gaveta do hotel. Caru: Que absurdo, que história errada, eu não vou escutar isso… e então ela sai. (Diálogo extraído do filme Como Nossos Pais).

Na sequência da contação de história por Rosa às filhas, temos de um lado a repetição de uma história contada por gerações e aceita pela influência religiosa, da criação da mulher pela costela do homem e daí sua submissão, e de outro lado a contestação dessa versão pela indignação da jovem Caru, que nem conhece a história e já a considera um erro.

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Figura 49: Caru e as crianças

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

Podemos analisar na referida cena a significação de como uma parte das mulheres, influenciada por sua educação, repetem simplesmente sem refletir sobre, não só histórias, mas atitudes machistas que contribuem para a submissão e desvalorização de seus feitos. A indignação de Caru é também das jovens contemporâneas que não suportam entre outras coisas, a objetificação dos corpos e as cantadas de homens desrespeitosos, a figura 49 ilustra a passagem a qual nos referimos quando Caru, ao ouvir a história, interrompe a irmã para questioná-la.

Pontos de virada

Podemos detectar nas duas narrativas que os pontos de viradas no enredo estão relacionados aos embates entre as personagens principais e seus traumas. Por exemplo, no caso da personagem Rosa e sua mãe, o filme já começa com uma reviravolta com a revelação de que o pai biológico é um desconhecido, a partir daí a história vai traçando situações que fazem da protagonista uma mulher à frente de dilemas, busca seu sonho ou continua no emprego que lhe garante um bom salário? Questiona o papel do marido na participação nas tarefas domésticas ou continua fazendo a maior parte das tarefas? As representações no filme são construídas consoante a questões como essas, que são identificadas pelas mulheres em seu cotidiano. Em uma passagem da narrativa podemos analisar uma crítica sobre a relação entre casais ressaltando a forma como a condição da mulher é desigual e privilegia os homens. Nas palavras da personagem Rosa: “Eu não quero mais fingir que sou uma mulher que dá conta de tudo, eu não dou conta de tudo. Eu abri mão da minha vontade de escrever, de escrever uma peça, de ser dramaturga, entendeu? E eu fico escrevendo folder de cerâmica de banheiro." A conversa se passa no banheiro da casa, depois de um dia complicado em que ela perde o emprego. O tom 160 da conversa mostra o desabafo da mulher, ao perceber o peso das escolhas e a comparação com o estilo de vida do marido, sua profissão e liberdade. Esse é um segundo ponto de virada do filme, quando ela tem a oportunidade de terminar sua peça e inscrever em um concurso, acaba perdendo o emprego por se atrapalhar com os arquivos.

Figura 50: Sequência de cenas Rosa e Dado no banheiro

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

Nesta cena, ilustrada com alguns recortes na figura 50, o casal coloca em evidência um discurso muito caro ao feminismo sobre os espaços que a mulher não ocupa, ou não consegue ocupar, de um lado pela opressão de gênero que se coloca nos baixos salários e menores oportunidades se comparada à quantidade de oportunidades voltadas ao homem. E por outro lado, as funções que são delegadas à mulher como se o homem não pudesse colaborar e participar do processo, seja na criação dos filhos, tarefas domésticas ou em outras situações em que deve haver uma parceria. 161

Há na narrativa o momento que é focalizado o esforço do casal na recuperação do casamento em crise. Eles recorrem à terapia de casal e esta cena chama a atenção para a forma como o sexo é posto na relação de formas distintas para cada lado, ou seja, para o homem tem que existir o sexo de qualquer forma, mesmo que a mulher não esteja com tesão para a relação seguir e para a mulher, o sexo está relacionado à saúde da relação, deve ser estimulado fora da cama, nos pequenos atos, nas demonstrações de carinho e de parceria. A transcrição do diálogo abaixo está na sequência em que o casal recorre à terapia para melhorar o casamento:

Rosa: - Quer dizer que o que faz o casamento ser legal ou não é o sexo? O casal está se dando super mal, brigando o dia todo, mas se chega de noite e transa tá tudo bem? Agora se o mesmo casal brigando o dia todo não transa aí tem que separar, quer dizer a questão não é o casamento, é só o sexo. Dado: Sim eu acho o sexo importante, aliás eu acho que sem o sexo não existe o casamento. Rosa: - Mas você já parou pra pensar o que faz uma mulher querer fazer sexo? Dado: - Tesão. Rosa: - E o que faz uma mulher ter tesão? O cara ser parceiro, o cara ser legal, entendeu? para eu ter tesão em você de noite, você tem que ter sido legal o dia inteiro comigo. (Diálogo extraído do filme Como Nossos Pais).

A descoberta de como foi concebida, fora do casamento com um colega de faculdade da mãe e que depois se tornou um ministro de estado, é um elemento de conflito no filme que coloca a questão da identidade no centro da narrativa. Rosa precisa saber quem é o seu pai biológico e se eles têm algo em comum. A sequência ilustrada na figura 51 mostra algumas cenas desta passagem do filme. A frustração de Rosa ao conhecer o pai e toda sua frieza ao pedir a ela que mantenha a distância enquanto ele está no cargo de ministro é mais um olhar sobre como os homens reagem de forma menos empática nas relações familiares em comparação às mulheres.

Figura 51: Rosa conhecendo o pai

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

As relações afetivas permeiam o filme Como nossos pais e um outro ponto de virada que entra em cena no filme é a presença de um outro homem na vida de Rosa. Deslumbrada pelo exemplo do homem cordial, gentil, atencioso, que o personagem Pedro, interpretado pelo 162 ator Felipe Rocha. O pai do Gustavo, como ela o chama, é um exemplo de pai também, e ela se envolve a ponto de pensar que pode começar uma nova relação com ele. A figura 52 mostra a sequência em que eles viajam a trabalho e surge um clima de encontro de casal, aproximando- os e deixando a relação de amizade confusa, para Rosa principalmente.

Figura 52: Rosa e Pedro na praia

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

Os pontos de virada convergem para os conflitos também no filme Mãe, principalmente com os embates entre Madalena e Sônia. A forma de reprovação como ela trata a filha desde o momento que ela volta da prisão é colocado em dois momentos como pontos de virada no filme. Nos dois momentos Sônia é criticada pela mãe, não aguenta e vai embora. Na cena em que Sônia entra em casa e Madalena a recepciona já fica posta a situação entre as duas, e Sônia que é uma das protagonistas da história se coloca na defensiva enquanto Madalena não tolera o retorno da filha e faz de tudo para tornar o clima pesado. 163

Figura 53: Chegada de Sônia

Fonte: Filme Mãe, direção de Adriana Vasconcelos, 2018.

Na figura 54, o recorte de imagens mostra o desentendimento entre Sônia e Madalena em um momento do filme em que Sônia começa a se ambientar com a neta e a filha, situação que não agrada Madalena. Na sequência em questão, Sônia volta de uma saída noturna para encontrar uma amiga em um bar e encontra Madalena e o companheiro Bento na sala. O diálogo das duas mostra que Madalena provoca Sônia que ainda pede para não ser provocada. A representação da personagem Sônia é colocada a todo tempo no filme como uma mulher que teve uma vida conturbada no passado e nunca teve o apoio da mãe, nesse diálogo fica exposta essa relação entre as duas:

Madalena: Já conhece a minha filha, né? A presidiária. Sônia: Não me provoca que hoje eu não vou aguentar desaforo seu. Madalena: Não foge não que hoje você vai escutar tudo que eu tenho pra te falar. Sônia: O que é que você quer falar? O quê? Sua bêbada. Madalena: Eu tô bêbada de ter que olhar pra tua cara. Sônia: E você acha que eu gosto de olhar pra tua cara? Você acha? Madalena: Ingrata. Arruinou com a minha vida. Arruinou com a sua vida. Arruinou com a vida de todo mundo dessa casa. Sônia: Me diz o que eu arruinei na sua vida. Merda de mãe! Merda de Mãe! 164

Madalena: Porcaria. Porcaria! Um traste igual o teu pai. Sônia: O meu pai não te aguentou. O meu pai foi embora. Madalena: E devia ter levado você junto. Sônia: Sabe qual é o teu problema? Você não é mulher nem pra segurar o teu homem. - Madalena dá um tapa na cara de Sônia e Júlia chega nesse momento. Madalena continua muito descontrolada xingando a filha, chamando-a de vagabunda e sem- vergonha. (Diálogo extraído do filme Mãe).

Figura 54: Sônia e Madalena brigam

Fonte: Filme Mãe, direção de Adriana Vasconcelos, 2018.

A forma como Sônia reage na noite de Natal ao receber o presente da neta Camila é um outro ponto de virada que mostra a mudança de atitude de Júlia em relação a mãe. Ela não admite a rejeição de Sônia a neta e enfrenta a mãe de forma dramática apontando as dificuldades de manter a filha que não podem ser ignoradas pela mãe, tampouco ser tratada da forma como ela reage com um gesto de carinho. O que Júlia não entende é o sentimento de Sônia sobre todo o sofrimento que passou e causou. As lembranças do momento do estupro sofrido pela filha são colocados nesta sequência e causam em Sônia essa repulsa a Camila.

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Figura 55: Júlia e Sônia discutem

Fonte: Filme Mãe, direção de Adriana Vasconcelos, 2018.

A briga ocorre após Sônia ter bebido bastante vinho. Ela está envolta em suas memórias sobre a noite em que Júlia é violentada. A sequência mostra Camila oferecendo um presente para a avó e ela recusa saindo da sala de forma brusca. Madalena fica indignada com essa reação e começa a xingar Sônia, enquanto Júlia a segue a mãe e fala:

Júlia: Mãe, espera que eu quero falar com você. Olha pra mim, olha pra mim. Quem você pensa que é? Hein? Quem você pensa que é? Por que você fez isso com a minha filha? Por que você fez isso com a minha filha? Você tem nojo dela? Você tem nojo dela? Você sabe tudo que eu passei. Tudo que eu passo todo dia pra dar uma vida normal pra essa menina. Pra dar pra ela uma vida segura. Uma coisa que eu nunca tive. Porque você tá cagando pra mim, mas a minha filha você não vai magoar. A minha filha você não vai atingir porque ela tem uma mãe. A minha filha tem uma mãe! - Sônia ouve o desabado de Júlia calada. (Trecho extraído do filme Mãe)

É uma relação delicada, colocada na narrativa sob uma perspectiva que projeta no espectador uma reflexão também sobre as dores e traumas vivenciados por uma família após o 166 trauma do estupro. Júlia afirma enfaticamente a relação de cuidado que ela tem com a filha, reforçando o quanto a ausência da mãe a afetou, contudo a fez projetar na filha um sentimento de proteção. Outro ponto de virada do filme é a morte de Madalena em um baile, fazendo o que mais gostava: dançar. A cena é uma sequência que causa angústia sobre a forma como ela vai sentindo o mal-estar, mas continua bebendo e segue para o salão. Ela é teimosa e não quer ceder nem para a morte. As cenas em que ela falece mesclam o desespero do companheiro Bento e sua imagem deitada no chão iluminada com luzes coloridas de festa.

Sequencias finais

A sequência final do filme Como nossos pais traz de volta a discussão sobre a relação do casal, o desgaste do casamento e o fato de não haver um equilíbrio entre o que os dois sentem e compartilham. A cena, que tem algumas imagens ilustrada na figura 56, mostra o casal em momento de diálogo. Rosa admite que começou a gostar de outro homem e pede para que a relação dos dois mude, pois pode ocorrer novamente. Eles conversam enquanto Dado faz uma massagem no pé dela:

Rosa: Dado, tá ruim. Dado: Mas você pediu pra eu fazer. Quer mais leve? Rosa: Eu tô falando do nosso casamento. Dado: Como assim Rosa? A gente transou como dois adolescentes há dois dias atrás. Como é que tá ruim? Pra mim foi ótimo. Você não achou? É isso? Rosa: A gente não combinou que ia falar sempre a verdade um pro outro? Dado: Sim, e daí? Rosa: Você tá tendo um caso com aquela antropóloga? Dado: Hã? Rosa por favor. Eu já falei pra você, eu não tô tendo um caso com ninguém. Muito menos com ela, não tem nada.Vamo lá, já que é pra falar a verdade, você quer me falar alguma coisa? Rosa: Eu me apaixonei por outro cara. Dado: Ah, porra. Rosa: Pois é, só que já passou. Dado, já passou. Mas eu sinto que se a gente não mudar, do jeito que a gente está se relacionando, vai acontecer de novo, a qualquer momento. Dado: Eu amo você! Rosa: Se você fosse franco comigo, se você jogasse limpo comigo, até esse ciúme eu ia conseguir controlar. Dado: Você tá me propondo o quê? Um relacionamento aberto? Rosa: Não. Eu não tô te propondo um relacionamento aberto. Estou te propondo que a gente fale a verdade um para o outro. Eu tinha que te contar. Eu não tava mais aguentando. Eu não aguento mais mentira na minha vida. Nenhuma. Eu quero de outro jeito. Dado: Eu não menti pra você. Rosa: Eu não acredito em você, Dado. Não acredito. Dado: E por quê? Rosa: É um pouco de intuição. Intuição, sabe? Intuição.

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A sequência final continua com a imagem de Rosa cuidando das plantas da casa da mãe com as filhas e levando-as na escola de bicicleta. É um final coerente com o filme que retoma a discussão inicial sobre os problemas de relacionamento do casal e coloca a dificuldade de chegar a uma relação perfeita. O que Rosa cobra o tempo todo é a sinceridade dos dois sobre a forma como se entregam e dividem a vida. O final aponta para uma perspectiva de mudança de posição de Rosa ao atender a um dos pedidos das filhas em ir de bicicleta para a escola.

Figura 56: Sequência final – Rosa e Dado conversam

Fonte: Filme Como Nossos Pais, direção de Laís Bodanzky, 2017.

Em Mãe, a sequência final é uma atitude da protagonista de ir em busca de completar sua jornada fora da cadeia. Ela pede perdão a filha e segue seu caminho por uma estrada escura, essa escolha dá pistas de que as coisas não serão tão amenas para ela, o caminho é longo e escuro, mas ela segue ao som da canção It's a Long Way, de Caetano Veloso, título que significa exatamente “É um longo caminho”. E na música essa frase é repetida inúmeras vezes. Antes de começar a caminhar Sônia acende um cigarro, respira fundo e segue seu caminho, a câmera a mostra cada vez mais distante, os carros passando, a vida continuando e ela sumindo na escuridão. Esse é um recurso da direção que, inclusive, é visto em outras narrativas analisadas 168 nesta tese, colocando a metáfora do longo caminho que as mulheres percorrem em suas vidas, e em determinadas fases esse caminho além de longo é cercado de incertezas.

Figura 57: Sequência final – Sônia vai embora

Fonte: Filme Mãe, direção de Adriana Vasconcelos, 2018.

Outra interpretação que fazemos sobre o filme e a representação da personagem Sônia é a dificuldade de oportunidades para a mulher e suas chances, como se as mulheres não pudessem errar. A cineasta Adriana Vasconcelos fala sobre as barreiras que enfrenta na função de diretora de cinema, ela lembra do quanto a mulher é desafiada nesta função e em muitos casos é julgada como se não pudesse cometer erros:

Se a mulher errar parece que ela perdeu a última chance que ela tinha. Tudo é mais difícil, tudo é mais complicado, e às vezes você quer ter uma relação assim mais leve e quando você ver você está sendo obrigada a ter uma relação mais enfática, mais dura, mais combativa, sabe? E você não quer isso, mas você pensa assim ou eu faço isso ou eu não termino o filme, entendeu? Eu já tive trabalho assim que não foi filme, outros trabalhos, e uma vez eu dirigi oito homens, eram equipe eu e oito homens, e assim eu era a diretora e tava meio coordenando a produção porque foi um trabalho que a gente viajou, e foi muito bom porque eram homens que aceitavam aquilo, mas 169

assim já peguei aqui com homens e com mulheres que não aceitavam, que não aceitava uma direção feminina, é complicado eu acho que a maior dificuldade ainda é você ter os mesmos direitos, inclusive os direitos de errar, errar e recomeçar e ter nova oportunidade, que isso é bem mais fácil para o homem do que para mulher. (VASCONCELOS, 2020).

A forma como Sônia é retratada no filme, sozinha e sempre cabisbaixa, sempre criticada pela mãe, também denuncia a forma como algumas mulheres são tolhidas em suas vidas, pessoais e profissionais, às vezes até por uma gravidez indesejada, que vai resultar em uma vida de sofrimentos para ambos os lados.

4.3 Histórias e protagonismo de mulheres negras em Até o fim

O filme Até o Fim dirigido pela cineasta Glenda Nicácio e o cineasta Ary Rosa tem no centro de sua narrativa quatro mulheres discutindo questões íntimas e familiares enquanto esperam notícias do pai doente. O roteiro é de Ary Rosa, que tem uma parceria com a cineasta e dirigem juntos também os filmes Café com Canela (2018) e Ilha (2018). Lançado em 2020, Até o fim teve sua pré-estreia mundial na Mostra de Tiradentes no mês de janeiro, quando foi aplaudido de pé. O filme foi realizado com a bilheteria do filme Café com Canela, priorizando ao máximo as possibilidades de baixo orçamento. Para contar a história de Geralda, Rose, Bel e Vilmar, quatro irmãs que não sei viam há 15 anos, Nicácio e Rosa exploram recursos dramáticos e escolhas cinematográficas que colocam o protagonismo das mulheres negras em destaque. O filme aborda também a realidade de uma mulher trans, a personagem Vilmar, que tem uma história de sofrimentos ocasionados pelo preconceito, a começar pela forma como vem ao mundo, concebida através de um incesto. O estupro de Geralda pelo pai é outro tema delicado abordado no filme. Assim como as obras anteriores dirigidas pela cineasta Glenda Nicácio, como Café com Canela, por exemplo, as personagens mulheres tem sua força evidenciada e são marcadas por um afeto que toca o espectador com protagonistas mulheres que se ajudam. No filme, Margarida perde o filho e entra em um estado de profunda tristeza que a faz perder a vontade de viver, ela apenas sobrevive em uma casa deteriorada como a sua vida. Em um determinado dia, ela encontra Violeta, que foi sua aluna e será dela a missão de fazer Margarida retomar a vida e sair daquela situação. Na trama do filme Café com Canela há espaço para a exaltação do local onde o filme se passa, a cidade de Cachoeira no Recôncavo Baiano, fator também presente em Até o fim, e as histórias de cada personagem. Esses aspectos refletem na representação das mulheres protagonistas das histórias, contribuindo para a forma como a narrativa trata questões 170 atuais, tais como a depressão, a luta das mulheres negras por espaço, a sororidade entre as mulheres e temas delicados como a morte e o estupro. No filme Até o fim a história se passa ao longo de uma única noite, em um único local, que é explorado em poucos espaços e que prende a atenção do espectador pelo encadeamento da narrativa, mesclando drama, emoção e algumas pitadas de humor em alguns momentos, relacionados principalmente ao hábito de fumar das personagens e ao desespero por um cigarro. O bar à beira da praia é o cenário para a história que começa com uma procura encadeada pela personagem Geralda, interpretada pela atriz Wal Diaz.

Sequência inicial

O início do filme é um plano aberto que mostra a busca incessante da personagem Geralda em um depósito, um local amontoado de coisas e de lembranças, que prende a atenção do espectador (figura 58). Na sequência que dura 2 minutos e 22 segundos ela acaba encontrando algo: um rato morto embaixo das prateleiras, que dá uma pista sutil sobre o que vem em seguida na história. Essa procura inicial será resgatada em outros momentos no filme, como um recurso da montagem que liga os pontos deixados nesse início vago do filme. Não sabemos o que Geralda procura, mas a insistência da personagem instiga a curiosidade do espectador. É uma escolha que contribui para o enredo do filme e torna a montagem mais dinâmica, já que o filme se passa em um mesmo espaço.

Figura 58: Geralda procura algo

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

Na sequência, Geralda recebe o telefonema sobre o estado de saúde do pai (figura 59). É importante destacar que nesta sequência a iluminação e as cores no filme são utilizados como elementos que contribuem para gerar uma atmosfera mais pesada ao filme. A cena é composta 171 por sombras e uma luz avermelhada acompanha Geralda ao atender o telefone. O plano inicia com ela cozinhando uma moqueca, intercalada com imagens do preparo do prato, da cena em que ela procura algo no depósito e termina com Geralda cortando acidentalmente seu dedo com a faca que cortava uma carne. Na sequência, o telefone toca, tudo se passa rapidamente e vai ligando as cenas até a personagem atender o telefone e saber notícia sobre o estado de saúde do pai, que a faz ficar desnorteada e buscar refúgio olhando o mar. A imagem do mar aberto sendo contemplado por Geralda mostra também o vínculo com o local, o litoral baiano, que tem espaço na narrativa.

Figura 59: Geralda recebe a notícia do pai

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

Como recurso narrativo, o filme segue um ritmo de suspense, com um ar sombrio no início que vai sendo intercalado com situações cômicas e emotivas. A história é apresentada 172 através dos reencontros das irmãs, suas lembranças e conflitos. Uma perspectiva que observamos na narrativa é a predominância da fala, o filme é composto por muitos diálogos. Há poucos espaços em que o silêncio, enquanto elemento de linguagem, é utilizado na narrativa. Como coloca Ribeiro (2017, p. 43) “Falar, muitas vezes, implica em receber castigos e receber represálias, justamente por isso, muitas vezes prefere-se concordar com o discurso hegemônico como modo de sobrevivência? E, se falamos, podemos falar sobre tudo? Ou somente sobre o que nos é permitido falar?” Nicácio rompe com essa ideia e incorpora ao filme discursos considerados importantes para a negritude e também para a comunidade LGBTQIA+ que ressaltam posições políticas. Um exemplo dessa presença da fala está contida na construção da personagem Vilmar, que traz em suas falas uma potência nos discursos de uma pessoa trans na defesa de sua identidade de gênero.

Personagens e Protagonistas

O filme tem um roteiro centrado nas quatro mulheres negras, fortes, que compõem uma narrativa que prende a atenção do espectador e desde os primeiros diálogos a personagem Geralda está no centro da história, que é protagonizada também pelas irmãs: Rose (Arlete Dias), Bel (Maíra Azevedo) e Vilmar (Jenny Muller), mulher trans e lésbica que traz em sua história uma trajetória de enfrentamento ao preconceito por não se reconhecer no corpo masculino e sempre ter se considerado uma mulher. Ao longo do filme elas discutem sobre conflitos que permeiam sua relação de irmãs: frustrações, culpa, amores, dificuldades que a mulher negra enfrenta na sociedade brasileira, mágoas, além de segredos do passado que vão sendo revelados. Rose, que é uma cabeleireira vaidosa, vai ao longo do filme contando sua história e as dificuldades que enfrentou. Ela fuma, mas esqueceu sua carteira de cigarros e essa característica é bem explorada no roteiro, pois de forma cômica o vício pelo cigarro aparece em diversos momentos do filme mostrando o quanto elas sentem falta de um trago. Na figura 60, que mostra a chegada da personagem Rose, o reencontro das irmãs é marcado pelas críticas de Geralda sobre a ausência de Rose. As cenas da chegada de Rose também apresentam a personalidade da personagem, uma mulher observadora, sensível e esperta que também julga as pessoas ao seu redor, e está na defensiva em relação às críticas da irmã.

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Figura 60: Rose e Geralda

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

Em uma das sequências do filme, Rose narra em detalhes e de forma poética a saída repentina da cidade onde nasceu. A fuga é para a cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, onde sua vida se transformou. Na sequência abaixo (figura 61) é possível perceber Rose em seu momento de rememoração sobre os fatos que a fizeram ir embora de sua casa em busca do seu verdadeiro lugar. Essa sequência também traz elementos que aludem ao local como personagem do filme, enquanto conta sua partida, Rose canta uma música que ressalta o rio Paraguaçu, que tem grande importância para o estado da Bahia.

Figura 61: Rose conta sobre sua fuga

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020. 174

Em suas lembranças, o mar também está presente e ela conta como saiu à noite para contemplar o mar e avistou uma luz e uma mulher que a faz despertar para uma mudança, um trecho de sua fala é reproduzido abaixo:

Fiquei olhando para o infinito escuro, eu vi uma luz, no meio do mar e uma voz. Que voz! Que doçura! Uma mulher, negra como eu, com um lindo vestido azul e uma coroa, veio andando em minha direção, meu coração não acelerou, ao contrário: parou. Ela veio até mim e me entregou um espelho. Eu olhei no refletor de gente e não me via… eu via rio, eu via rio, naquele momento eu entendi que meu lugar não era aqui... (Trecho reproduzido do filme Até o fim).

Em outra sequência do filme, as irmãs mostram um pouco de suas personalidades no desenvolvimento da cena em que falta luz e Rose pede que Geralda conte uma história de terror. Ao passo que Bel quase chora de medo do escuro e não quer ouvir a história. A sequência evidencia um talento de Geralda para contar histórias de horror e uma fragilidade de Bel, que apesar de se valorizar em relação a sua carreira, também tem seus medos. Rose, ao contrário, não sente medo e se empolga inclusive pedindo outra história quando Geralda termina de contar a primeira história de horror. A expressão de cada uma delas nas imagens abaixo (figura 62) demonstra suas sensações no momento da narração da história, atenuadas pelo clima de mistério e a penumbra causada por uma falta da energia elétrica.

Figura 62: História de terror

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

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As personagens Vilmar e Bel representam as figuras de mulheres bem resolvidas que enfrentam a sociedade para permanecerem nos espaços que conseguiram se firmar. Vilmar é publicitária e Bel é uma produtora de cinema famosa em Salvador. São profissões que requerem reconhecimento e ainda são espaços pouco ocupados por mulheres negras. O filme Até o fim ressalta essas conquistas através dos diálogos das irmãs, que se valorizam. A questão da representatividade está presente em toda a obra da cineasta Glenda Nicácio, não só pelo fato de trabalhar com um elenco eminentemente formado por pessoas negras, mas também por incluir temáticas que estão presentes no universo da negritude, como as religiões afro, os espaços e podemos dizer também que nos seus filmes a noção de lugar de fala, na perspectiva defendida por Djamila Ribeiro (2017) também é ressaltada:

Numa sociedade como a brasileira, de herança escravocrata, pessoas negras vão experienciar racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão, do lugar que restringe oportunidades por conta desse sistema de opressão. Pessoas brancas vão experienciar do lugar de quem se beneficia dessa opressão. Logo, ambos os grupos podem e devem discutir essas questões, mas falarão de lugares distintos. (RIBEIRO, 2017, p.47)

No filme, a personagem Bel, ao representar uma produtora de sucesso e enfrentar o racismo dentro da indústria do cinema, traz em si uma referência a carreira da própria Glenda. Ela coloca em foco a discussão através do discurso afirmativo da personagem Bel.

Pontos de Virada

A chegada da personagem Bel (figura 63) dá um outro ritmo ao filme, a jovem que sai do interior e se torna uma produtora de cinema importante e reconhecida é um aspecto destacado no filme que contribui para o destaque do protagonismo de mulheres pretas na sociedade. O filme traz em seu enredo essa preocupação em colocar histórias de mulheres, profissionais negras, bem sucedidas no centro da representação. Como uma forma de afirmação sobre as possibilidades que são negadas, mas também são conquistadas em meio a muitas dificuldades, como ressalta a personagem Bel. Ao justificar sua ausência ela coloca as dificuldades para chegar ao posto que alcançou na vida profissional:

… eu sei que estou em dívida com você e com painho, só que a vida me conduziu pra isso, você não tem noção do que é ser quem você é num mundo que diz que você não é, você não tem noção do que é a vida de uma mulher preta nesse universo do cinema… (Trecho reproduzido do filme Até o fim). 176

A fala de Bel sintetiza o desafio das mulheres negras na indústria do cinema em uma metalinguagem que está presente desde o início do filme, quando por exemplo, aparece uma equipe de profissionais que trabalham em um filme e vão provar a moqueca feita por Geralda.

Figura 63: Chegada da personagem Bel

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

O discurso da personagem Bel aparece também nas sequências em que ela ressalta o fato de ter ganhado um prêmio Oscar de melhor produção e demonstra muito orgulho de si mesma, de seus feitos, mas também indignação pelo fato da irmã Rose se interessar mais em saber sobre sua separação, pois o reconhecimento da família é muito importante para ela.

Figura 64: Bel conta sobre o Oscar

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

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Um outro ponto de virada do filme é a chegada da personagem Vilmar, que altera o comportamento de Geralda a partir do momento que ela descobre que Vilmar também irá para o enterro do pai. Essa descoberta a faz querer ficar mais arrumada para receber a irmã que na verdade é sua filha. Nesse ponto do filme também são colocadas questões sobre a sexualidade da mulher e sobre o que a sociedade cobra da mulher em relação à vaidade e aparência. Geralda fica chateada ao saber que a própria mãe suspeitava que ela poderia ser lésbica por não ser tão vaidosa. Essa discussão entre as irmãs mostra o quanto o preconceito contra a mulher lésbica se manifesta e é muitas vezes aceito de forma natural.

Figura 65: Geralda e as irmãs

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

E essa temática será novamente realçada no filme com a chegada da personagem Vilmar, que surpreende Geralda e Rose com sua nova identidade de gênero ao se apresentar como mulher trans e lésbica. Geralda não aceita a mudança de Vilmar, pois esperava encontrar seu filho que não via há mais de 15 anos. É um grande impacto que ela demora para entender. Na figura 66 está ilustrado o momento em que Geralda julga Vilmar por sua aparência, por preconceito e por não entender sua mudança.

Figura 66: Geralda confronta Vilmar

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020. 178

Ao contrário, as irmãs Rose e Bel acolhem Vilmar e tentam fazer Geralda entender toda a situação que lhe está sendo apresentada, porém ela não cede e é preciso Vilmar se impor, explicar que sempre foi uma mulher em um corpo de homem, até ameaçar ir embora para que Geralda comece a perceber que deve ter empatia com a filha seja qual for sua identidade de gênero. Um trecho do diálogo das duas é reproduzido abaixo:

Geralda: São 15 anos e você me aparece assim. Vilmar: Assim como? Não entendi o que você quer dizer, Geralda? - O diálogo é intercalado pela cena de Bel e Geralda conversando na praia. Bel tenta convencer Geralda de aceitar a mudança de gênero da filha. Quando retornam ao local que Vilmar e Rose estão, Vilmar fala para Geralda: Vilmar: Geralda eu já sofri muito nessa vida. Ainda sofro. Entendo seu espanto, mas não posso aceitar. Sempre que alguém é agressivo comigo como você foi, é minha obrigação ser agressiva também para eu não perder os poucos espaços que eu tenho nesse mundo, em que querem criar a ideia de que eu sou um perigo, quando na verdade eu estou em perigo. Eu sei que você está sofrendo, mas não se esqueça que eu sofro mais. Se quiser a gente pode ter uma conversa franca. Eu sei que estou há mais de 15 anos fora e muita coisa mudou, eu não tenho medo das suas dúvidas, mas eu não vou aceitar agressão de qualquer tipo. Se me atacar, eu vou atacar de volta. (Trecho extraído do filme Até o fim).

Nessa fala de Vilmar está expresso o aspecto da violência vivido por pessoas trans ao se depararem com um pensamento tradicionalista e preconceituoso, que está inserido na própria família. Na cena, o impacto de Geralda com a constatação de que o filho que esperava não existe mais se revela na agressividade com que ela trata Vilmar, um aspecto que torna o filme crível pelo fato da personagem Geralda ser educada com uma visão tradicionalista sobre a sexualidade de homens e mulheres. Além disso, é explorada nessa situação a decepção de uma mãe que aguarda por 15 anos reencontrar o filho. A narrativa aborda de forma muito constante a temática dos encontros e desencontros, que deixam feridas na família.

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Figura 67: Vilmar conta sobre suas dores

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

Uma das cenas mais emotivas do filme é o momento em que Rose e Bel conversam sobre o estupro que Geralda sofreu, praticado pelo próprio pai delas. Um fato que muda a vida de Rose também, pois a motiva a ir embora de casa ao presenciar o ocorrido, não entender e julgar a irmã como culpada, inclusive pela morte da mãe. Essa cena mostra enfaticamente uma questão que está inserida neste problema da prática do estupro de crianças e jovens pelos parentes mais próximos, uma realidade na vida de muitas vítimas. É uma cena forte, emociona o espectador não só por mostrar o choro e arrependimento de Rose, mas pela forma como as personagens se colocam e a constatação de Rose de que poderia ter feito algo para ajudar e não fez nada.

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Figura 68: Rose e Bel conversam e choram

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

O abraço de Rose em Geralda, em outra sequência, demonstra todo o arrependimento da irmã sobre a situação e a forma como a tratou durante todo o tempo. É um momento de troca de afetos e cumplicidade sobre processos dolorosos que as duas passaram: o estupro sofrido por Geralda e os abortos que Rose sofreu. As duas aparecem em outra sequência sentadas em balanços, Rose fala sobre cada um dos filhos que perdeu, seus nomes e que profissionais eles se tornariam quando crescessem.

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Figura 69: Geralda e Rose no balanço

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

Nesta cena, é explorada a indignação de Rose sobre o fato de não ter percebido antes ou não ter admitido antes essa possibilidade de o pai ter culpa a faz exemplificar o que ocorre com outras mulheres que escolhem muitas vezes a omissão e não denunciam, por medo ou falta de iniciativa, o diálogo das duas personagens reproduzido abaixo localiza a indignação de Rose e a atitude de Geralda que perdoa o pai e assume todo o cuidado com a família na ausência das irmãs:

- Geralda: Eu perdoei painho. - Rose: Foi só aquela vez? - Geralda: Foi. No outro dia ele sumiu, levou quase um mês. Quando voltou fez aquela palhaçada com os santos de mamãe. Ele já era outro quando assimilei tudo, já não tinha mais espaço pra ódio nem rancor. Não satisfeito, o filho da puta depois de anos com remorso, foi lá contar que Vilmar era filho dele. Foi o fim. Aquela mulher forte, altiva, foi encolhendo, encolhendo, encolhendo, até desaparecer da cama, mamãe morreu de tristeza generalizada Rose. 182

- Rose: Meu Deus, eu nunca enxerguei? Eu acho que eu nunca quis… eu sempre te culpei, e cada filho que eu perdia, eu sentia ainda mais raiva de você, que além de desgraçada, ainda tinha tido a felicidade de ser mãe. - Geralda: Eu nunca fui mãe Rose, quando eu pude ser, já não tinha mais filho. - Rose: Filha. - Geralda: É, filha. (Diálogo reproduzido do filme Até o fim).

Sequência final

A sequência final do filme é um momento em que as irmãs percebem a importância de estarem vivas a apesar de todos os problemas ainda têm muito o que viver. Elas relembram o passado e cantam juntas ao som do acordeom tocado por Geralda. As músicas são um elemento também explorado no filme com a sensibilidade de expressar força, como por exemplo, quando Vilmar fala sobre a origem de seu orixá, e também emoção quando Rose canta enquanto conta sobre sua chegada ao rio Paraguaçu. A escolhas de linguagem cinematográfica no filme denotam a limitação do espaço em que o filme é rodado como por exemplo, em relação aos planos escolhidos e os movimentos de câmera. O fato de a história ser ambientada em um único local e em uma só noite contribui para um ritmo monótono em alguns momentos da narrativa, que busca equilíbrio na diversidade de movimentos de câmera e movimentação das personagens, em parte ponderado também pela força e ritmo dos diálogos. Até o fim aborda uma história que atravessa um caminho de lembranças permeado por uma grande sensibilidade que provoca emoções ao espectador através da abordagem de problemáticas opressivas, que foram tratadas de uma forma sensível e humana, como enfatiza Nicácio, ao lembrar de como as personagens também contribuíram para o desenvolvimento da narrativa:

Foi muito interessante a cada leitura, elas propunham várias alterações, Jenny que fazia o Vilmar especificamente foi a personagem que mais propôs alterações, por exemplo: “Ah eu acho que eu não falaria isso”, “acho que é por esse caminho”... e isso foi de frases complexas até frases de piada, então isso foi um processo que com certeza fez com que o filme tivesse aquela fluidez, de cumplicidade mesmo, que as personagens têm, estando segurando em torno de uma mesa filme todo né? Olhar para esses lugares mais dolorosos, digamos assim, da narrativa, né? E ao mesmo tempo pensar como contar essas histórias de violência sem que fosse violento, né? sem que expusesse, sem que fosse violento pro espectador é espectadora também, e sem que fosse agressivo pra gente também porque eu acho que tem coisa que você filma que você fala: “Nossa, nem eu tô dando conta disso”, eu acho que a gente não foge da violência assim, dos temas, do conflito, confronto, mas a gente sempre partia dessa perspectiva de vamos falar disso, mas como é que a gente fala sobre isso de uma forma cuidadosa, né? (Nicácio, 2021).

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Figura 70: Sequência final do filme Até o fim

Fonte: Filme Até o fim, direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020.

Essa escolha de encerrar o filme com o elemento música, com as irmãs cantando e Geruza tocando seu acordeom, demonstra esse cuidado, em apresentar uma atmosfera de superação, é ressaltada pela diretora:

Eu acho que o filme tem muito esse lugar de passar por essas questões para reviver, para viver para além delas e não é para reviver, mas para seguir, passar por isso, porque a gente precisa olhar para isso para seguir a nossa vida, para superar, para continuar, não tem como continuar sem olhar para isso, então eu acho que a gente meio que propõe isso para o espectador: “Não é a sua dor que a gente quer, a gente quer seguir, a gente vai terminar brindando, né? A gente vai terminar cantando, então, confia”. (Nicácio, 2021).

Os temas que são evidenciados no filme como a força e a potência da mulher, a transexualidade e homossexualidade; o comportamento machista que está relacionado ao pai e também os traumas de infância ocasionados por esse comportamento, proporcionam uma série de reflexões a partir das histórias das protagonistas. O filme apresenta um perfil de apelo 184 popular ao apostar em um roteiro que equilibra temas considerados delicados com situações que envolvem de forma crível o diálogo das personagens, tornando o enredo envolvente e apesar de em alguns momentos apresentarem frases prontas, não há qualquer prejuízo ao encadeamento da história.

4.4 A narrativa por meio da constante busca em Para ter onde ir

O que as mulheres buscam em suas vidas? Até que ponto se permitem iniciar essa busca? Quais aventuras podem vivenciar sem serem julgadas? Essas são algumas questões suscitadas no filme Para ter onde ir, dirigido pela cineasta Jorane Castro. O filme é contemplativo, tem espaço para as três personagens e personifica cada uma delas em um aspecto da vida das mulheres. Carreira, sexualidade e família são os temas principais colocados de forma indireta vinculados aos perfis de Eva, Melina e Keithylennye. A busca é uma constante no filme e a narrativa mostra as três mulheres em uma situação de conflito entre si, não há uma empatia forte, principalmente entre Eva e Melina, as duas criticam seus modos de ser. Melina questiona a experiência de Eva em relação ao amor quando esta a critica sobre só se preocupar em falar de homem. A descrição de passagens do filme mostra nesta análise quais recursos são utilizados pela cineasta Jorane Castro para construir a narrativa. É possível perceber uma referência nas escolhas cinematográficas que remetem ao estilo do cineasta iraniano Abbas Kiarostami, principalmente pelas sequências de carro, na estrada, e também como a cineasta escolhe trabalhar o tempo da narrativa. Não há uma linearidade, o fluxo das histórias de cada uma das personagens segue independente, com uma ampla valorização da paisagem, a começar pela sequência que abre o filme. A cineasta Jorane Castro (2020) destacou durante a entrevista realizada para esta pesquisa sua preocupação com a linguagem cinematográfica em seus projetos, a experiência com a fotografia a faz pensar esteticamente os planos, enquadramentos e movimentos de câmera: “Eu tenho um apreço muito grande por causa desse meu histórico, de ter sido fotógrafa, de ter participado de exposições, de encontros de fotógrafos, eu acho que eu tenho um apuro estético muito grande, uma preocupação com a fotografia, preocupação com o olhar”. Essa preocupação está presente em todos os seus projetos, de curtas e longas-metragens. A proposta do filme como um road movie faz a cineasta utilizar durante muitas sequências o recurso do movimento na estrada e também em cenas no mar, as protagonistas estão e seguem em uma busca, seja pelo filho, pela vida, pelo amor.

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Figura 71: Buscas no filme Para ter onde ir

Fonte: Filme Para ter onde ir, direção de Jorane Castro, 2018.

Mas o filme não fica somente na contemplação da natureza, o ritmo é alterado quando focaliza a festa de aparelhagem eletrônica, que destaca a personagem Keithylennye e seu talento para a música do estilo tecnobrega. No seu tempo, o filme nos transporta para a viagem das três mulheres e suas buscas. Desde o princípio, sobressai a escolha de Jorane Castro por uma poética das imagens da natureza em sintonia com os perfis femininos das personagens. Ela utiliza uma câmera mais introspectiva, que aproxima o espectador, mas que também o distancia.

Personagens e Protagonistas

Na trama, a protagonista Eva, interpretada pela atriz Lorena Lobato, é uma mulher madura que procura pelo filho Jonas com quem não mantém um bom relacionamento, mas esse fato só se revela no final do filme. Jonas não quer falar com a mãe por algum fato que não fica claro na narrativa, contudo, Eva busca, sem sucesso, fazer as pazes com o filho. Sempre apressada ela destoa um pouco do ritmo mais lento do filme, como por exemplo, na sequência inicial que mostra a sua chegada ao trabalho após um percurso de barco no rio. Ela segue em direção ao Porto, num percurso que inclui uma chuva fina que molha o rosto dela e revela a paisagem de palafitas que contrastam com os prédios ao fundo. O filme nos apresenta também Melina, que busca a liberdade e um amor. Parte de Eva o convite para que elas viagem juntas percorrendo paisagens paraenses, mas a narrativa não fornece pistas sobre que tipo de ligação elas têm. 186

A terceira protagonista da história é Keithylennye, ou Keithy, como também é chamada no filme pelas amigas, uma jovem mãe que cuida da filha sozinha após o companheiro ir embora em busca da realização de viver de música, na função de DJ. Esse também era o sonho dela, de ser artista, cantar e dançar em festas de aparelhagem, comuns no estado do Pará. As três mulheres seguem em uma viagem que no início do filme não fica muito claro o motivo. A escolha da diretora Jorane Castro por histórias de mulheres é um dos seus interesses, como ela afirma:

Tem coisas que são certas no meu trabalho, uma delas é quando eu faço ficção, protagonistas geralmente são mulheres, as histórias geralmente são levadas, encaminhadas, com narrativas puxadas por mulheres, porque eu acho que eu tenho empatia muito grande com o personagem feminino é onde eu me sinto mais confortável também, para falar, onde a gente pode passar um pensamento mais nosso. (CASTRO, 2020)

No início do filme, Melina pergunta a Eva, onde estão indo, e fica a pergunta também para o espectador, onde elas pretendem ir? Ela insiste como se estivesse preocupada, e é a vez de Eva perguntar se Melina está com medo. Ao longo da jornada algumas situações vão mostrar a personalidade de cada uma das protagonistas e seus conflitos internos e externalizados. Melina tem um ideal de encontrar um grande amor e demonstra por suas atitudes que essa é sua maior preocupação no momento. Ela está também interessada em conhecer uma ilha que só aparece uma vez no ano naquela região. Esse interesse pela ilha aparece em alguns momentos do filme quando ela pede a Eva para que as leve até esse lugar e também segue perguntando a pescadores na praia. Figura 72: Melina

Fonte: Filme Para ter onde ir, direção de Jorane Castro, 2018.

Keithy é a personagem que tem sua história um pouco mais revelada, ela lamenta ter abandonado a carreira de cantora e dançarina de tecnobrega e isso fica evidente no filme quando ela reencontra o ex-companheiro em uma festa. Um momento importante o filme é justamente 187 essa afirmação quando ela sobe ao palco de um baile em que o ex-companheiro está fazendo o som como DJ e mostra todo seu potencial diante da plateia. O lado da mãe fala mais alto quando surge o convite para retomar a carreira e os palcos com o ex-companheiro, ela recusa e deixa clara a decisão de não abandonar a filha.

Figura 73: Keithylennye e Dj Pancadinha

Fonte: Filme Para ter onde ir, direção de Jorane Castro, 2018.

Essa sequência é importante no filme e mostra a força da personagem Keithy, que resiste apesar de amar os palcos. Keithy é a representação da mãe que está diante de um dilema, se dedicar ao cuidado da filha ou seguir uma carreira profissional na área do entretenimento, como cantora e dançarina. A gravidez não planejada vem atrapalhar seus planos profissionais, mas não interrompem a carreira do companheiro, é uma das camadas do filme essa diferença de gênero que fica evidente na relação de Keithy e o DJ Pancadinha.

Sequência inicial

O início do filme apresenta o fio da narrativa: paisagens naturais do Pará, viagens e conflitos entre três mulheres. Em uma sequência longa, de mais de 2 minutos, a mais experiente delas navega em um pequeno barco a caminho do trabalho, a personagem Eva, séria e de comportamento formal, representa a mulher que tem uma vida mais estável, trabalha no Porto e aparenta ser mais focada na vida profissional. Já no início do filme percebemos o aspecto do protagonismo da mulher em evidência no filme quando focaliza Eva passando ordens para uma 188 equipe masculina em uma cena rápida que mostra a seriedade de Eva e o respeito por sua atuação profissional.

Figura 74: Sequência inicial do filme Para ter onde ir

Fonte: Filme Para ter onde ir, direção de Jorane Castro, 2018.

A paisagem ribeirinha, que contrasta com os prédios ao fundo também ganha destaque logo no início do filme. As palafitas lembram o modo de vida da população mais carente do Pará que convive com a rotina de ausências, de políticas públicas, de saneamento, de segurança, e nesse contexto surge Keithy dando banho na filha, mostrando outra ausência: a do pai que não participa da criação da filha. Ainda nessa sequência inicial, um plano-sequência acompanha Keithy levando a filha até a casa da avó, e o resultado desse recurso é um passeio por essas habitações em que é explorado o som ambiente em background.

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Figura 75: Keithy e a filha

Fonte: Filme Para ter onde ir, direção de Jorane Castro, 2018.

As imagens da periferia de Belém remetem ao cotidiano das pessoas que convivem num contexto carente, de moradia improvisada construída sobre a água, e que na narrativa remetem a um olhar poético, como por exemplo, quando um papagaio aparece bebendo a água de uma torneira, e ao fundo é possível ouvir ao fundo vozes de pessoas conversando, enquanto um cachorro dorme sobre o chão de madeira. É um outro ritmo que transporta o espectador para aquele ambiente habitado por muitas famílias e ignorado por muitas pessoas que não conhecem a realidade da região Norte do país.

Pontos de Virada

Para ter onde ir não é um filme de grandes reviravoltas no enredo, é uma história conduzida mais pelo fluxo da busca em apresentar as personalidades das personagens. Contudo, é possível identificar alguns pontos de virada, o primeiro é o problema no carro que as faz atrasar a viagem, Eva tem pressa, mas no meio da viagem não pode controlar o tempo. É uma oportunidade de pensar sobre suas vidas naquele povoado desconhecido. A figura 76 mostra 190 um fragmento da cena em que as três aguardam ajuda para resolver o problema, cada uma do seu jeito.

Figura 76: Protagonistas do filme Para ter onde ir

Fonte: Filme Para ter onde ir, direção de Jorane Castro, 2018.

Quando elas finalmente chegam à praia, no encontro de Melina com um homem que mora na praia e constrói uma espécie de barraca com estacas de madeira, ela se aproxima e começa a conversar com ele, em um diálogo de poucas palavras que mostra seu interesse em saber quem é aquele homem de hábitos diferentes. A cena parece solta na narrativa e termina de forma inesperada com um corte para a festa eletrônica, mas há um sentido na narrativa à medida que Melina terá um novo encontro e dessa vez os dois partem para uma relação sexual. Essa perspectiva do encontro reflete na representação da jovem Melina a característica da atração pelos riscos causados pela busca amorosa enfrentada pela personagem. Um outro encontro na narrativa também representa um ponto de virada, quando Keithy encontra o pai da sua filha um dia após a festa eletrônica em que os dois dançam juntos. Eles conversam sobre as dificuldades de criar a filha em meio a essa vida de shows e ela descarta a possibilidade de deixar a filha sendo criada pela avó. Essa passagem representa uma virada de página para Keithy que opta pela dedicação à filha diante do sonho de ser cantora. O encontro de Eva com o filho Jonas ao final do final, após uma procura sem sucesso no entorno da praia, representa um enfrentamento entre mãe e filho por razões do passado, que não são dadas ao espectador, mas que explicam em parte o olhar intrigante de Eva. Sua pressa em chegar, conseguir encontrar o filho e pedir perdão pelo que fez.

Sequência final

Quando Eva finalmente reencontra seu filho Jonas o encontro não sai como esperado, em uma cena tensa a mãe pede perdão ao filho, mas não há desculpas, e ela sai sem rumo, mais 191 uma vez o filme a mostra séria e preocupada. Caminhando por entre uma paisagem de dunas, numa caminhada longa, que parece não terminar, ela segue até encontrar as amigas.

Figura 77: Eva caminha nas Dunas

Fonte: Filme Para ter onde ir, direção de Jorane Castro, 2018.

O filme tem uma narrativa que pode ser considerada lenta e cansativa em alguns momentos. A cena final é um banho para lavar a alma, o filme termina com imagens de Eva mergulhando no mar e com um semblante de paz. Uma cena que mostra e não mostra, pois o espectador se pergunta sobre as outras mulheres. A proposta de Castro não pretende dar respostas, o espectador é convidado a fazer suas inferências sobre a narrativa, como ela afirma:

Tem uma outra questão que eu acho que é importante, que é você colocar o espectador do filme dentro da narrativa, então essas histórias, as novas interpretações que vêm do filme, vão vir de cada um, o espectador constrói a narrativa junto, ou seja, eu permito, eu acho que isso também é uma marca minha, eu permito que na ficção o espectador traga pra dentro da história a sua participação, as suas referências, e Para ter onde ir é um filme mais aberto (...) É um desafio de linguagem, mas que é justamente isso: pensar o cinema, como é que a gente vai contar essa história, trazendo elementos cinematográficos, então eu acho que se fosse definir eu tenho sempre essa preocupação, o que a gente vai fazer com essa linguagem? com essa fotografia? com esses personagens? É sempre pensar o todo e ao mesmo tempo e também pensar numa coisa que eu acho fascinante que é a linguagem cinematográfica. (CASTRO, 2020)

Em diversos momentos, a narrativa causa uma sensação de estagnação, permeada pela incerteza das personagens e longos planos que condizem com as escolhas estéticas, porém percebemos um esforço para manter uma intrigante narrativa. Entre as três mulheres é Eva que 192 inicia e termina o filme, que apesar de ser a mais velha entre elas e ter uma posição profissional estável, é também a que parece mais perdida em suas escolhas de vida. 193

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso desta pesquisa coincidiu com um período de efervescência na discussão sobre a presença da mulher na indústria do cinema em nível mundial, quando falamos da presença incluímos tanto o aspecto da representação, ou seja das atrizes e suas personagens, e também das profissionais atuantes nas funções técnicas e artísticas à frente de projetos cinematográficos. A discussão a qual nos referimos tem sido empreendida por diferentes aspectos ligados à desigualdade de gênero na indústria cinematográfica: a disparidade nos salários, as questões de assédio sexual e moral, principalmente, e as dificuldades de ascensão das mulheres na função de diretoras de cinema. Para entender melhor as nuances desses aspectos partimos da perspectiva de refletir sobre os estudos de gênero com enfoque nas mulheres e seu papel na sociedade, considerando também a influência do pensamento feminista na realização cinematográfica de cineastas brasileiras. Com isso, seguimos uma base teórica sobre as lacunas e dificuldades da mulher na sociedade, na indústria cultural, e em específico no campo da sétima arte, inserindo nesta investigação contribuições dos estudos de gênero, do feminismo e dos estudos de cinema, especificamente no campo da linguagem. Nos valemos também de estudos, pesquisas e conteúdos audiovisuais que apresentam dados sobre a história e a industrialização do cinema, com a finalidade de contextualizarmos a temporalidade dos processos de produção, com enfoque no cinema brasileiro, para entender o que está inserido na dinâmica da realização cinematográfica e que contribui para a invisibilidade das mulheres neste campo. A partir desses estudos alguns aspectos nos chamaram a atenção com relação às questões de gênero e o desenvolvimento da indústria do cinema, como por exemplo, o fato de as mulheres terem ocupado funções de direção e de montagem no início do cinema em Hollywood, principalmente no período anterior a 1920, aspecto destacado pelas cineastas Clara Kuperberg e Julia Kuperberg no documentário E a Mulher Criou Hollywood (2016). Posteriormente com o incremento do cinema como indústria, a direção de cinema foi sendo ocupada majoritariamente por homens e as mulheres foram sendo relegadas a uma realidade desigual de oportunidades. Outro fato também relacionado às questões de gênero é o papel da educação no aumento da conscientização das mulheres para as oportunidades e crescimento pessoal através dos estudos. Segundo Rago (1998) a entrada das mulheres no ambiente acadêmico contribuiu para que as mulheres questionassem seus espaços na sociedade. A década de 1990 é marcada pelos processos de modernização e impulsionamento de tecnologias na sociedade, e pela chamada 194

“terceira onda do feminismo”, fatores que estimularam as mulheres a pensarem em horizontes diferentes dos papéis submissos e passivos relacionados à vida doméstica. Neste período, a indústria do cinema brasileiro, que enfrentava uma grande crise agravada pelo fechamento da Embrafilme pelo ex-presidente Fernando Collor, tem na cineasta Carla Camurati, um expoente da retomada do cinema nacional, em meados dos anos de 1990, com o lançamento do filme Carlota Joaquina: Princesa do Brazil, que obteve sucesso de público. Nesse sentido, uma das inferências que fazemos é que apesar das dificuldades, há um empenho das mulheres no sentido de despertar para uma consciência do seu potencial criativo e suas potencialidades nas áreas públicas, políticas e artísticas, considerando um movimento contestatório e de busca por espaços. Especificamente no cinema, esse empenho resultou em muitas obras e na participações em projetos que contribuíram para o que tem sido analisado como “cinema de mulheres”. Voltamos também o nosso olhar nesta tese para o termo “cinema de mulheres”, estudado por pesquisadoras da área do cinema, tais quais Kaplan (1995), Gubernikoff (2016), Holanda e Tedesco (2017), Veiga (2017), autoras que empreenderam uma série de estudos sobre as especificidades e os empecilhos colocados à produção de cinema por mulheres. Os trabalhos destas pesquisadoras abriram horizontes para esta e outras pesquisas acadêmicas, fornecendo bases para a construção de análises e olhares sobre os filmes e sobre a representação da mulher no cinema. Gubernikoff (2016, p. 95) defende que o cinema de mulher tem uma finalidade clara de contestar os estereótipos incrustados na sociedade, por séculos, sobre a figura da mulher. “Esse tipo de cinema de mulher, feito por mulheres, visa romper com o processo de identificação aos estereótipos da prostituta ou da virgem, da vítima ou da neurótica, e está processando lentamente uma tomada de consciência feminina”. O reconhecimento das produções das mulheres com um caráter mais político e voltado ao protagonismo feminino foi investigado nesta tese a partir das obras que são analisadas, todas sob a direção de mulheres e com mulheres protagonistas, que colocam em foco temáticas importantes do ponto de vista das mulheres, em discussão na opinião pública, que também problematizam questões relacionadas ao universo da mulher e suas relações sociais e políticas. Essa é também uma ideia compartilhada por Holanda e Tedesco (2017, p. 45) quando observam o caráter político inserido nos filmes de realizadoras, para elas “a reivindicação de maior visibilidade dos filmes feitos por mulheres é, acima de tudo, política”. Entendemos que as escolhas de destacar no enredo temáticas direcionadas a dilemas que atingem especificamente as mulheres e problemas sociais enfrentados pela sociedade em geral com enfoque nas perspectivas de mulheres, podem determinar esse caráter político. Mais que isso, a forma como 195 se dá esse destaque, de forma crível e na busca de uma inclusão dessa pauta pela sociedade, faz dessas escolhas um ato político. Outra dificuldade analisada nesta tese foram as formas da invisibilidade as quais a mulher foi submetida na produção de cinema desde o início da produção cinematográfica no Brasil, como por exemplo, o fato de as mulheres executarem funções técnicas na fase inicial do cinema, mas não serem creditadas. Schvarzman (2017, p.33) lembra que “esposas, filhas, netas e cunhadas participaram da produção de filmes, como aconteceu com Rosina Cianelli, cunhada de Paulo Benedetti (...): poucas vezes foram creditadas nos filmes feitos em Barbacena nos anos 1910”. Um fator que acaba por dificultar o mapeamento de mulheres em funções técnicas do cinema. A forma como as mulheres foram sendo tratadas no espaço da realização de cinema, relegadas à categoria de musas na representação de filmes, revela o aspecto do silenciamento das vozes das mulheres autoras. Por que a maioria dos filmes do Cinema Novo, por exemplo, são dirigidos por cineastas homens? Nos fizemos este questionamento durante a pesquisa. E é importante destacar que algumas atrizes que participaram do movimento como Helena Ignez, apresentam uma visão mais crítica sobre o Cinema Novo, percebendo atitudes machistas por parte de seus realizadores. Uma das interpretações que se faz é de que esse silenciamento foi feito de forma sutil, engrandecendo as mulheres na representação dos papéis de musas, porém com pouco ou nenhum espaço para suas produções como autoras, roteiristas e seus olhares criativos na realização. Essa inferência se relaciona com outra barreira na ocupação de mais espaços pelas mulheres no cinema: a invisibilidade causada pela ausência nos espaços de decisão, na participação em bancas de editais de seleção, nas associações representativas de classe, em instituições do Estado, entre outras organizações. Aqui é importante frisar que há um movimento de resistência em que existem alguns exemplos de mulheres ocupando cargos estratégicos, porém são ainda muito restritos. Podemos citar a produtora audiovisual Débora Ivanov, que dirigiu a Ancine, de outubro de 2015 a junho de 2017; a cineasta Laís Bodanzky, que ocupou a presidência da SPCine, por dois anos (2019-2021) e passou o cargo para a cineasta Viviane Ferreira, que é uma mulher negra e ocupava a presidência da APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro). Outro exemplo é a cineasta Sabrina Fidalgo, que atuou como presidente do júri do 48º Festival de Gramado. Esses são alguns exemplos da presença de mulheres em cargos de direção e em júris de festivais, cujo trabalho é reconhecido. Entendemos esses exemplos como um pequeno avanço, principalmente se considerarmos que, por exemplo, no período entre os anos 1969 e final dos anos 1980, em que a Embrafilme era a 196 empresa responsável pela gestão das políticas públicas de fomento ao cinema, nenhuma mulher ocupou o cargo de direção da empresa (BAHIA, 2012). Um levantamento de quantas mulheres ocupam cargos em espaços de decisão não constituiu o objetivo desta pesquisa, e se mostra necessário para entender o panorama desta ocupação e contribuir para um efetivo aumento da ocupação de funções de liderança e gestão por mulheres, sejam elas negras, brancas, trans, lésbicas, entre outras categorias de gêneros. A pesquisa também nos permitiu analisar alguns aspectos da presença das mulheres no desenvolvimento do cinema brasileiro, e essa análise mostrou os principais impasses para a mulher na indústria criativa, especificamente a relacionada ao cinema. No início da industrialização no Brasil, quando a produção do cinema nacional começou a ser feita nos estúdios e também fomentada pelo Estado, nas décadas de 1930 a 1940, a participação das mulheres foi marcada pela atuação na representação de papeis em filmes dirigidos por diretores, sendo poucas as mulheres que atuaram no comando da direção cinematográfica neste período. Posteriormente, nas décadas de 1950 a 1970, no período em que surge o movimento do Cinema Novo, a produção das mulheres também mantém uma restrita participação, a exceção é a produção de Helena Solberg, considerada a única cineasta a dirigir filmes no Cinema Novo. No curta metragem Entrevista (1966), um dos mais conhecidos de sua obra, ela destaca uma abordagem clara do movimento feminista, ao reunir respostas de mulheres sobre diversos assuntos relacionados aos conflitos femininos enquanto focaliza uma noiva se preparando para a cerimônia de casamento. Embora seja uma das poucas diretoras a ter uma obra neste período, é importante lembrar que ela não se manteve no Brasil, pois saiu do país no período da ditadura, foi morar nos Estados Unidos, e foi lá que produziu diversos filmes, entre eles a trilogia: A Nova Mulher (1975), Simplesmente Jenny (1978) e A Dupla Jornada. No período referente aos anos 1970-1980, apesar das dificuldades, são registradas obras de algumas cineastas que refletem sobre os processos de resistência em suas realizações, como por exemplo as obras das cineastas Ana Carolina, Tereza Trautman, Lúcia Murat, Suzana Amaral e Adélia Sampaio, única cineasta negra a dirigir um filme de longa-metragem neste período. E este é um aspecto que precisa ser destacado pelo fato de sua obra ter sido invisibilizada por muito tempo. Adélia foi a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, o filme Amor Maldito (1984), que trata justamente do amor entre duas mulheres, temática muito polêmica para a época em que foi lançado. A cineasta enfrentou a censura e buscou alternativas para exibir o filme, inclusive teve que distribuir o filme como gênero pornográfico, mesmo não sendo esse o gênero da narrativa. Tratar de uma temática muito invisibilizada no cinema: o lesbianismo, principalmente no período em que o filme foi lançado, 197 faz perceber a vontade da cineasta de dar visibilidade à relação das duas mulheres na narrativa, embora esse não fosse o mote principal da história, que tratava de um caso de injustiça, e torna o filme uma importante obra do cinema nacional de temática homossexual, dirigido pela primeira cineasta negra do cinema brasileiro. A trajetória das referidas diretoras assinala o que percebemos como um esforço em manter a presença da mulher na tela e também por trás das câmeras, em um movimento que não é exatamente político por si só, mas que se encaminha de acordo com a trama de encadeamentos de produção na cena cinematográfica nacional, quebrando barreiras ao encarar projetos de baixos orçamentos, se associar com roteiristas já conhecidos, trabalhar em projetos colaborativos, enfim, buscar alternativas para realizar e lançar o filme. Ressaltamos também a produção de cineastas que contribuem para a presença de mulheres no cinema contemporâneo, como por exemplo, a cineasta Petra Costa, que se destacou ao concorrer ao Oscar 2019 na categoria melhor documentário, com o filme Democracia em Vertigem, sobre a crise político- econômica no Brasil e o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Seu estilo de direção e escolhas de linguagem contribuem para o reconhecimento da qualidade do cinema documental brasileiro. Neste movimento de entender a produção sob o olhar de mulheres nos foram sendo apresentadas inúmeras obras dirigidas por cineastas do cinema contemporâneo e do cinema independente, da produção de cinema indígena, da cena audiovisual regional, que têm feito florescer inúmeras produções de curta-metragem principalmente, e também de longa- metragem. E uma das descobertas deste processo foi a produção de diretoras negras, que têm sido reconhecidas por suas obras. Cineastas como Viviane Ferreira, Glenda Nicácio, Sabrina Fidalgo, Renata Martins e Camila de Moraes são alguns nomes que tem mostrado o potencial do cinema negro de direção feminina. Também percebemos com essa pesquisa que as obras dessas mulheres são carregadas de afetos, valorização da cultura e identidade negra e presença de atores e atrizes negros. São escolhas conscientes de busca por visibilidade e reconhecimento que demarcam as produções, e que buscam uma plateia de espectadores de todas as etnias e raças. São filmes que exploram o universo da cultura negra, mas também se voltam para um olhar universal apresentando qualidade no desenvolvimento da narrativa, do roteiro e da representação da equipe formada por uma maioria de profissionais negras/os e que tem à frente da direção mulheres negras. De outro viés, temos também uma lista de cineastas no panorama atual de produção, contemplando o período da pós-retomada até os anos atuais, que tem tornado a produção mais perene, com filmes que nem sempre conseguem entrar no circuito comercial de exibição, mas 198 que colocam em destaque uma série de questões que permeiam a vivência das mulheres, são temas como o abuso sexual, a maternidade, os relacionamentos amorosos e conflituosos, a violência doméstica, o feminismo, o aborto, a busca da independência da mulher, entre outros temas, que dependendo da forma como são abordados são considerados complicados sob a perspectiva do roteiro de cinema. Percebemos nesta referida produção, o esforço de discutir tais temas, e uma busca por formas criativas de tratar essas temáticas consideradas mais árduos pela sociedade, também vistos como dilemas para diretores e diretoras de cinema, pelo impacto que causam na recepção da mensagem fílmica. Se firmar como protagonistas da direção atrás das câmeras no cinema exige que as escolhas sejam impactantes, e desta forma, a simbologia e as escolhas de linguagem podem ressaltar a força da mulher no filme ou de outro lado, diminuir seu protagonismo. Sem perder de vista a questão central desta tese: Como se dá a produção de sentido na construção do protagonismo assinalado nas formas de representação da mulher na narrativa em obras dirigidas por mulheres? Empreendemos uma análise fílmica encadeada com uma série de entrevistas em profundidade que resultou na análise das seguintes obras: Até o fim (2020 - Glenda Nicácio e Ary Rosa); Mãe (2018 - Adriana Vasconcelos); Para Ter Onde Ir (2018 - Jorane Castro); Como Nossos Pais (2017 - Laís Bodanzky); Mulher do Pai (2016 - Cristiane Oliveira); e Rânia (2012 - Roberta Marques). A análise fílmica foi realizada através da interpretação dos filmes considerando a importância de inferências sobre as escolhas da narrativa pelas cineastas e suas equipes, especificamente relacionadas às escolhas de linguagem, às escolhas estéticas e narrativas, às representações e às falas dos personagens que compõem as tramas. Na escolha do corpus de análise consideramos o contexto de produção das cinco regiões brasileiras, as falas e opiniões das diretoras elencadas na investigação como fontes primárias, no intuito de entender seus processos criativos e as dificuldades enfrentadas no processo de realização. Considerando as diversas camadas de sentido nos filmes, definimos 5 categorias para nortear a análise da narrativa e as sequências dos filmes: 1. Enredo; 2. Personagens e Protagonistas; 3. Sequência de abertura do filme; 4. Pontos de viradas; 5. Sequência final do filme. As entrevistas foram de suma importância para a análise desenvolvida nesta tese, sendo significativas para o entendimento da produção cinematográfica contemporânea, pois cada impressão, cada gesto, cada ideia compartilhada nas entrevistas nos ajudou a entender o mosaico que se formou ao final da coleta de dados. Entre as seis cineastas escolhidas nesta pesquisa, além do fato de serem mulheres e atuarem no cinema brasileiro, outros aspectos em comum sobre seus trabalhos e visões de 199 mundo nos foram sendo revelados ao longo do processo de investigação e durante as entrevistas, tais como: a vontade de incluir outras mulheres em suas equipes de realização cinematográfica; a abordagem politizada sobre questões contemporâneas relacionadas à raça, classe e à posição da mulher na sociedade e no campo artístico-autoral; além das temáticas abordadas nos filmes e a preocupação com a linguagem cinematográfica. A análise de cada obra resultou em uma série de inferências sobre as escolhas de cada cineasta e as categorias de análise, em que focalizamos os(as) personagens e protagonistas, o enredo, as sequências iniciais, os pontos de viradas em cada narrativa e as sequências finais de cada filme. Neste percurso analítico foi possível perceber as diversas nuances inseridas em cada narrativa com um enfoque na abordagem das temáticas e no protagonismo das mulheres que participaram, tanto no contexto da representação fílmica como na direção cinematográfica. As principais inferências sobre a análise dos filmes que destacamos nestas considerações finais são relacionadas às escolhas da narrativa e da linguagem cinematográfica adotadas pelas cineastas, em uma pequena amostra da produção contemporânea de direção feminina, em que a mulher ocupa lugar central, mas não como musa ou mulher fatal. As protagonistas são todas mulheres com perfis realistas, que carregam traços de personalidades críveis e que vivenciam situações tangíveis, colocadas em primeiro plano na narrativa. Uma característica em comum nas obras analisadas é que todas tratam de dramas familiares. Com isso não podemos generalizar que na produção contemporânea sob direção de mulheres não há espaço para a fantasia, para o realismo fantástico, a comédia, o terror ou outros gêneros cinematográficos, pois nossas inferências estão baseadas no corpus da pesquisa, que abrange o gênero dramático especificamente. Percebemos que a diversidade de gêneros nos filmes dirigidos por mulheres é uma temática que pode ser investigada mais a fundo, podendo ser objeto de uma outra pesquisa também importante para entender no panorama de realização do cinema realizado por mulheres a sua abrangência de gêneros cinematográficos. Nos filmes Rânia e Mulher do pai além do gênero dramático, os filmes têm em comum a temática. São duas obras de realidades totalmente diferentes, a primeira se passa no Nordeste, em Fortaleza, capital do Ceará, e a segunda é ambientada em uma pequena comunidade do interior do Rio Grande do Sul, já na fronteira com o Uruguai, porém elas apresentam algumas similaridades no desenvolvimento da narrativa e das protagonistas. Os filmes Rânia e Mulher do pai têm, no centro de suas tramas, adolescentes que enfrentam conflitos com suas famílias e experimentam os desafios da adolescência, com uma linha temática de viés universal, mas em cada trama as abordagens são direcionadas para histórias carregadas de regionalismo e especificidades. Nosso intuito não foi de comparar essas duas obras, mas foi necessário analisar 200 esses dois filmes em um mesmo capítulo com o objetivo de encadear melhor as ideias e inferências sobre cada categoria de análise. Nos dois filmes destaca-se a predominância de mulheres nas equipes de produção, desempenhando funções artísticas e técnicas. Os olhares e escolhas dessas mulheres se refletem no resultado das obras a partir de uma preocupação com viés tanto na linguagem como no conteúdo. O filme Mulher do Pai, da cineasta Cristiane Oliveira, resultou de um longo processo de consultorias e amadurecimento de ideias. O processo de maturação de acordo com a cineasta foi essencial para o resultado, "foram muitos anos de troca, e a cada chefe de equipe que ia entrando eu ia mudando o roteiro e a gente conversava, então eu tenho um processo bem colaborativo assim de ouvir (...)" (OLIVEIRA, 2020). A cineasta Roberta Marques, referindo-se à realização do filme Rânia, também lembrou das dificuldades no desenvolvimento de um roteiro e as etapas que antecedem a produção, com a percepção de que consultorias e olhares diversos sobre esse processo contribuem para o aprimoramento da obra e também da equipe envolvida na direção do projeto audiovisual. E essas vivências de cada diretora em seu processo de produção, explicitam as barreiras inseridas no processo de realização de um filme, que não são diferentes para diretores do sexo masculino, não cabe essa lógica de diferença, porém cabe destacar os aspectos relacionados à forma como essas diretoras processam essas barreiras e consideram a diversidade de olhares no processo de construção coletiva com suas equipes, sem com isso diminuírem suas funções na criação artística. Um aspecto a ser destacado nas escolhas de roteiro e direção do filme Rânia é a forma como as protagonistas são representadas de forma verossímil na narrativa. Uma observação feita pela cineasta Roberta Marques (2020), ao falar sobre a presença de mulheres dentro e fora da narrativa, chama atenção para as barreiras que ela enfrentou ao realizar o filme, em entrevista ela lembrou de uma crítica quando o filme foi lançado, que remete ao fato de haver poucos homens na narrativa: “O filme Rânia, quando estreou, teve um crítico de São Paulo que ele falou assim: o filme Rânia é muito… Não lembro exatamente o termo que ele usou, mas disse assim: “mas falta alguma coisa”, e o falta alguma coisa é porque faltava homem (...)”. Com esta percepção, Marques põe em evidência o aspecto da crítica sobre as produções de mulheres. É um outro segmento que precisa ser investigado. Notamos nesse sentido a necessidade de pontuar este aspecto, embora não seja o foco desta pesquisa, pelo fato de que a crítica empreendida aos filmes de realizadoras é na maioria das vezes feita por homens (heteros, brancos e da classe média) que nem sempre considera os contextos de produção, a empatia sobre temáticas relacionadas com questões feministas e/ou relacionadas às minorias. Além das 201 mudanças de postura na sociedade sobre o protagonismo de mulheres, há que se considerar que o cinema e as diversas linguagens artísticas têm sido influenciadas pela diversidade de agentes. Outra inferência que fazemos sobre os seis filmes analisados é a presença de mais de uma protagonista mulher, por exemplo, no filme Rânia, a personagem Zizi tem uma presença forte na história, sendo também protagonista e denunciando a figura da jovem que sai do interior e se prostitui em busca de uma vida melhor na metrópole. No filme Mulher do Pai, a personagem Rosario, professora da jovem Nalu também ganha protagonismo na narrativa. Já no filme Como Nossos Pais, temos a personagem principal Rosa, mas a mãe dela Clarice e a jovem Caru, irmã de Rosa, também desempenham papeis de destaque na narrativa. Nos filmes Para ter onde ir e Mãe temos três protagonistas, e no filme Até o fim são quatro mulheres em destaque em cada narrativa, dividindo o protagonismo. É uma característica que percebemos como um fator adotado pelas cineastas, que reconhece que a presença de mulheres na história pode ser compartilhada também nos papeis principais. A temática da opressão de gênero também está presente nas obras, principalmente no filme Até o fim, em que a personagem Vilmar sente o preconceito da mãe e do pai por sua identidade de gênero, e no filme Rânia, através da personagem Zizi e seu relacionamento com Dedé, em que ela quer permanecer com sua vida independente, trabalhando na noite como dançarina, enquanto Dedé busca um relacionamento convencional, no qual ele é o mantenedor que cuida da mulher, mas a mantém sob seu controle. Aspectos da linguagem como por exemplo, as escolhas de iluminação (luz/escuro), planos e movimentos de câmera são colocados nos enredos como forma de chamar a atenção sobre a posição das mulheres nas narrativas, como exemplo, podemos citar as sequencias finais dos filmes Mulher do Pai e Rânia, em que as imagens finais das personagens Rânia e Nalu trazem uma similaridade na forma como as diretoras escolhem finalizar as narrativas. As jovens são distanciadas do quadro em um movimento que as torna pequenas diante desse mundo, diante dos dilemas que enfrentam na fase da adolescência, sobre as mudanças e seus embates. As escolhas de fotografia no filme Como Nossos Pais também ressaltam as pressões que a mulher enfrenta no cotidiano do cuidado da família, como por exemplo, na cena em que vemos uma panela de pressão em primeiro plano, uma das crianças pedindo ajuda para fazer a tarefa de casa, um leite que ferve ao ponto de derramar no fogão, enquanto o pai ignora o fato de que também tem a responsabilidade sobre as tarefas relacionadas à família, as crianças e à casa. Para Bodanzky (2020) essa preocupação com um olhar mais político em seus filmes é algo recente: “Eu não tinha essa consciência do meu olhar político nem da importância dele, agora eu tenho mais e acho que eu posso ter muito mais, eu estou também no processo”. O filme 202 reflete sobre o papel da mulher na contemporaneidade, e é a partir de uma revelação feita pela mãe sobre sua verdadeira paternidade que a protagonista começa a questionar suas escolhas, seu casamento, sua vida profissional e a maternidade, que também é questionada pela ótica da dificuldade de ser mãe, das funções cumulativas que a mulher desempenha no casamento e a falta de colaboração do companheiro. Outro aspecto que observamos no filme Como Nossos Pais está relacionado ao aspecto da representação no filme, o próprio elenco deixa lacunas em relação à representatividade, principalmente do ponto de vista racial. O filme traz um universo de pessoas brancas e restrita participação de atores negros na narrativa. Os poucos que aparecem estão ocupando funções que são comumente reservadas a elas, como por exemplo, a recepcionista que recebe os projetos em uma cena em que Rosa inscreve a peça de teatro em um concurso de roteiros de dramaturgia. Um outro exemplo é o fato de Rosa perder o emprego e essa mudança não alterar muito seu estilo de vida, situação só possível em camadas mais privilegiadas da sociedade. Essa é uma inferência que precisa ser colocada pelo fato de haver uma emergência na discussão e questionamento desses padrões, no intuito de advertir que é possível desenvolver narrativas em que sejam observados os aspectos da população brasileira e sua diversidade. No filme Mãe, a cineasta brasiliense Adriana Vasconcelos explora no gênero drama, o universo da maternidade por um viés trágico marcado pelo estupro da jovem Júlia, pelo próprio pai, que impacta a vida das protagonistas da história. Essa temática do incesto e estupro também está presente no filme Até o fim, dirigido pela cineasta Glenda Nicácio, com um enredo encadeado através dos reencontros de quatro irmãs, suas lembranças e conflitos. São quatro mulheres negras que compõem a narrativa e desde os primeiros diálogos a personagem Geralda está no centro da história, ela é estuprada pelo pai e é engravidada, mas ao descobrir o ocorrido, a mãe dela cria o neto como se fosse irmão de Geralda e ela, além do trauma gerado pelo estupro, não pode exerce a maternidade. Os dois filmes abordam a dura realidade que assola muitas famílias, quando o estuprador é uma pessoa muito próxima e mesmo assim os parentes não conseguem evitar a tragédia. Ao destacar essa realidade nos filmes Vasconcelos e Nicácio trazem à discussão a violência de gênero na sua forma mais cruel da violação do corpo da mulher, e a consequência mais impactante que altera toda sua vida, uma gravidez indesejada ou precoce. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, em 2019 a cada 8 minutos foi registrado um crime de estupro no Brasil. Dentre os casos de estupro e estupro de vulnerável registrados, a maior parte das vítimas era do sexo feminino, 85,7%, e um outro dado que chama a atenção é que em 84,1% dos casos, o criminoso era conhecido da vítima: familiares ou pessoas de 203 confiança. Esses dados estatísticos que mostram a realidade brasileira no tocante à violência contra a mulher, respaldam a preocupação das artistas em abordar esse problema, nas diversas formas e linguagens artísticas, e podemos dizer que no cinema nacional essa abordagem tem sido crescente nas obras de autoria feminina. Além de temas mais árduos como o assédio sexual e os conflitos familiares, o cinema realizado por mulheres também trilha pelos caminhos do gênero road movie. No filme Para ter onde ir, da cineasta Jorane Castro, temos uma narrativa contemplativa em que os dilemas femininos são abordados de forma autêntica a partir do encontro de três mulheres. Carreira, sexualidade e família são os temas principais colocados de forma indireta vinculados aos perfis de Eva, Melina e Keithylennye. A análise das camadas de significados do filme mostrou na nossa análise uma preocupação da cineasta Jorane Castro na construção da direção do filme. As escolhas de referências, do encadeamento do tempo da narrativa, o fluxo das histórias de cada uma das personagens segue independente, com uma ampla valorização da paisagem e aspectos regionais que são destacados no filme. Sobressai a escolha de Jorane Castro por uma poética das imagens da natureza em sintonia com os perfis femininos das personagens. Ela utiliza uma câmera mais introspectiva, que aproxima o espectador, mas que também o distancia. É uma forma de se colocar também no filme, trazer sua marca, a partir de uma afirmação da cultura regional, que não é o principal elemento, mas se faz presente no filme, uma afirmação do comportamento distinto de cada mulher e suas atitudes diante do desconhecido, e uma afirmação também sobre o fazer cinematográfico, considerando que as escolhas de locações de filmagens, espaço-tempo, personagens e demais aspectos que formam a narrativa são minuciosamente pensados com um olhar cinematográfico. A análise das obras e também das trajetórias dessas cineastas nos mostrou aspectos sobre o trabalho da direção cinematográfica sob a perspectiva feminina e sobre as dificuldades encontradas no contexto da realização cinematográfica no Brasil. Nesta tese nos voltamos especificamente para a compreensão da produção de sentido e protagonismo no cinema realizado por mulheres, com ênfase na linguagem fílmica da produção contemporânea de cineastas brasileiras e concluímos que existe um movimento crescente de fortalecimento deste grupo, formado por cineastas brasileiras, atuantes na produção contemporânea, que têm destacado histórias de mulheres com protagonistas bem construídas e com enfoque na visibilidade de temáticas que fazem parte da realidade das mulheres, e que também se voltam para um público universal.

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FILMOGRAFIA CITADA

A ALMA da Gente. Direção: Helena Solberg. Produção: David Meyer. Brasil, 2013. Documentário, (80min), son., color.

A CIDADE onde envelheço. Direção: Marília Rocha. Brasil e Portugual, 2016. (99min), son., color.

A DUPLA Jornada. Direção: Helena Solberg. Estados Unidos, 1975. Documentário, (54min), son., color. Título original: The Double Day.

A ESCOLHA de Sofia. Direção: Alan J. Pakula. Produção: Keith Barish, Alan J. Pakula. Reino Unido / EUA, 1982. (150 min), son., P&B. Título original: Sophie's Choice

A FALTA que me faz. Direção: Marília Rocha. Brasil, 2009. (85min), son., color.

A GRANDE Feira. Direção: Roberto Pires. Produção: Iglu Filmes; Rex Schindler; Braga Neto. Produção executiva: Glauber Rocha. Brasil, 1961. (94min), son., P&B.

A HORA da Estrela. Direção: Suzana Amaral. Produção: Raíz Produções Cinematográficas. Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A., Brasil, 1985. (96min), son., color.

A MEMÓRIA que me contam. Direção: Lúcia Murat. Produção: Taiga Filmes. Imovision Brasil, 2013. (95min), son., color., documentário.

A MISS e o Dinossauro - Os Bastidores da Belair. Direção: Helena Ignez. Brasil, 2005. (17 min), son., P&B, documentário.

A MULHER Fatal Encontra o Homem Ideal. Direção: Carla Camurati. Produção: Maria Ionescu; Orion Cinema e Vídeo; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A. Brasil, 1987. (12 min), son., color.

A NOVA Mulher. Direção: Helena Solberg. Estados Unidos, 1974, (40 min), son., P&B. Título original: The Emerging Woman.

A ORIGEM dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti. Direção: Anna Muylaert. Produção: Alexandre Alencar; Ana Rosa Alvarez; Erica Ferreira da Costa. Brasil, 1996. (15 min), son., color.

A PRIMEIRA Missa ou Tristes Tropeços, Enganos e Urucum. Direção: Ana Carolina. Pandora Filmes Brasil, 2014. (90 min), son., color.

A PRINCESINHA. Direção: Alfonso Cuarón. Produção: Alan C. Blomquist; Dalisa Cohen; Amy Ephron; Mark Johnson. EUA: Baltimore Pictures, 1995. (97 min.), son., color. Título original: A Little Princess.

À PROCURA de Mr. Goodbar. Direção: Richard Brooks. Estados Unidos, 1977 (135 min.), son., color. Título original: Looking for Mr. Goodbar.

ABOIO. Direção: Marília Rocha. Produção: Helvécio Marins Jr, Marília Rocha. Brasil: Teia, 2005. Digital e Super-8, (73 min), son., color. 217

ACÁCIO. Direção: Marília Rocha. Brasil, Portugal, Angola, 2008. (88 min), son., color.

ADULTO não brinca. Direção: Adélia Sampaio. Produção: Maria Claudia Ferreira; A. F. Sampaio Produções Artísticas. Brasil, 1980. (8 min), son., color.

AGORA um deus dança em mim. Direção: Adélia Sampaio. Produção: Maria Claudia; Eliana Cobbett; Desenfilmes Ltda.; William Cobbett Produções. Brasil, 1981. (7 min), son., color.

AI-5 – O DIA que não existiu. Direção: Adélia Sampaio; Paulo Markun. Produção: Fundação Mario Covas; TV Cultura - Fundação Padre Anchieta. Brasil, 2001. (56 min), son., color. Documentário para TV.

AINDA Orangotangos. Direção: Gustavo Spolidoro. Produção: Cristiane Oliveira, Fabiano de Souza, Gilson Vargas, Gustavo Spolidoro, Milton do Prado. Brasil, 2007. (81 min), son., color.

ALMA em suplício. Direção: Michael Curtiz. Produção: Jerry Wald. EUA: Warner Bros, 1945. (102 min), son., P&B. Título original. Mildred Pierce.

AMAZÔNIA Caruana. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Scena Filmes. Brasil, 2010. (78 min), son., color.

AMÉLIA. Direção: Ana Carolina. Produção: TV Cultura. Rio Filme, Brasil, 2000. (130 min), son., color.

AMOR Maldito. Direção: Adélia Sampaio. Produção: João Elias; Adélia Sampaio; A. F. Sampaio Produções Artísticas; Gaivota Filmes; Portal Filmes Brasil, 1984. (80 min), son., color.

AMORES Possíveis. Direção: Sandra Werneck. Produção: René Bittencourt; Sandra Werneck. Brasil, 2001. (90 min), son., color.

ANTES Que o Mundo Acabe. Direção: Ana Luiza Azevedo. Produção: Nora Goulart e Luciana Tomasi. Brasil, 2009. (97 min), son., color.

APARECIDA - O Milagre. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Gláucia Camargos, Paulo Thiago. Brasil, 2010. (87 min), son., color.

AS MELHORES Coisas do Mundo. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Caio Gullane, Fabiano Gullane, Debora Ivanov e Gabriel Lacerda. Warner Bros. Pictures: Brasil, 2010. (105 min), son., color.

ASSALTO ao Trem Pagador. Direção: Roberto Farias. Produção: Herbert Richers e Jarbas Barbosa. Brasil, 1962. (102 min), son., P&B.

BAIXIO das bestas. Direção: Cláudio Assis. Produção: Cláudio Assis e Júlia Moraes. Brasil, 2007. (80 min), son., color.

BELA Vingança. Direção: Emerald Fennell. Produção: Ben Browning; Emerald Fennell; Margot Robbie. EUA, 2020. (114 min), son., color. Título original: Promising Young Woman. 218

BICHO de Sete Cabeças. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Sara Silveira, Caio Gullane, Fabiano Gullane, Luiz Bolognesi, Marco Müller. Brasil, 2000. (84 min), son., color.

BONEQUINHA de Seda. Direção: Oduvaldo Vianna. Produção: Cinédia; Oduvaldo Vianna; Oscar Jordão; Adhemar Gonzaga. Brasil: D.B.F. - Distribuidora de Filmes Brasileiros, 1936. (115 min.), son., P&B.

BYE BYE Brasil. Direção: Cacá Diegues. Produção: Luiz Carlos Barreto; Lucy Barreto. Brasil: Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A., 1979. (101 min), son., color. CAFÉ com canela. Direção: Ary Rosa e Glenda Nicácio. Produção: Ary Rosa, Glenda Nicácio e Ohana Sousa. Brasil: Rosza Filmes Produções, 2017. (102 min.), son., color.

CAMPO Grande. Direção: Sandra Kogut. Produção: Flávio Ramos Tambellini, Laurent Lavolé. Brasil/França, 2015. (109 min), son., color.

CANÇÃO de Baal. Direção: Helena Ignez; Michele Matalon. Produção: Sinai Sganzerla, Ana Oliveira, Patrícia Godoy. Brasil, 2006. (77 min), son., color, digital.

CÃO Sem Dono. Direção: Beto Brant e Renato Ciasca. Produção: Bianca Villar; Renato Ciasca. Brasil: Drama Filmes, 2007. (82 min), son., color.

CARLOTA Joaquina, Princesa do Brazil. Direção: Carla Camurati. Produção: Carla Camurati; Bianca de Felippes; Marcelo Torres. Brasil: Quanta Central de Produções, 1995. (100 min.), son., color.

CARMEN Miranda: Bananas is My Business. Direção: Helena Solberg. Produção: David Meyer e Helena Solberg. Brasil, 1995. (92 min), son., color.

CARNE. Direção: Camila Kater. Produção: Doctela & Abano Produccións. Freak. Brasil/Espanha, 2019. (12 min), son., color.

CARTÃO vermelho. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Caio Gullane; José Alberto de Souza; Fabiano Gullane; Cristiana Abi Jaudi; Tatiana Villela. Brasil, 1994. (14 min), son., color.

CAZUZA – O Tempo Não Para. Direção: Sandra Werneck. Produção: Daniel Filho. Columbia a Sony Pictures Entertainment Company; Lereby Produções; Globo Filmes; Cineluz Produções; Columbia Tristar Film.. Brasil, 2004. (90 min), son., color.

CENTRAL do Brasil. Direção: Walter Salles. Produção: Walter Salles; Donald Ranvaud; Robert Redford; Martine De Clermont-Tonnerre; Arthur Cohn. Brasil: Sony Pictures Classics, 1998. (110 min), son., color.

CHAMADA a Cobrar. Direção: Anna Muylaert. Produção: Anna Muylaert; Caio Gullane. Brasil, 2012. (72 min), son., color.

CHEGA de Saudade. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Caio Gullane, Fabiano Gullane, Débora Ivanov, Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi. Brasil, 2008. (95 min), son., color.

CINE Mambembe – O Cinema Descobre o Brasil. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Laís Bodanzky; Buriti Filmes. Brasil, 1999. (56 min), son., color. 219

CONDUZINDO Miss Daisy. Direção: Bruce Beresford. Produção: Richard D. Zanuck; Lili Fini Zanuck. EUA: The Zanuck Company, 1989. (100 min.), son., color. Título original: Driving Miss Daisy.

CONFISSÕES de Adolescente - O Filme. Direção: Cris D'amato e Daniel Ribeiro. Produção: Lereby Produções. Brasil, 2013. (96 min), son., color.

CORAÇÃO Materno. Direção: Gilda de Abreu. Produção: Afonso Campiglia; Manoel Rocha; Filmoteca Cultural Ltda; Pró Arte Filmes. U.C.B. União Cinematográfica Brasileira S.A. Brasil, 1951. (103min32seg), son. P&B. DAS Tripas Coração. Direção: Ana Carolina Teixeira Soares. Produção: Ueze Zahran; Jacques Eluf; Aníbal Massaini. Brasil: Crystal Cinematográfica; Embrafilme S.A., 1982. (100 min.), son., color.

DEIXA Ir. Direção: Roberta Marques. Produção: Lºatitude e DA Visuals. Brasil, 2007-2015. DV e HD (41 min), son., color.

DEMOCRACIA em Vertigem. Direção: Petra Costa. Produção: Joanna Natasegara; Shane Boris; Tiago Pavan. Brasil: Busca Vida filmes, 2019. (121 min.), son., color.

DENÚNCIA vazia. Direção: Adélia Sampaio. Produção: Adélia Sampaio; Eliana Cobbett, A. F. Sampaio Produções Artísticas. U.C.B. Brasil, 1979. (8 min), son., color.

DESENROLA. Direção: Rosane Svartman. Produção: Raccord Produções. Brasil, 2011. (88 min), son., color.

DEUS e o Diabo na Terra do Céu. Direção: Glauber Rocha. Produção: Jarbas Barbosa; Luiz Augusto Mendes; Glauber Rocha; Luiz Paulino dos Santos. Brasil, 1964. (120min), son. P&B.

DURVAL Discos. Direção: Anna Muylaert. Produção: Maria Ionescu; Sara Silveira. Brasil, 2002. (96 min), son., color.

E A MULHER Criou Hollywood. Direção: Clara Kuperberg; Julia Kuperberg. Produção: Clara Kuperberg; Julia Kuperberg. França: Wichita Films & Ocs, 2016. (52 min.), son., P&B/color. Título original: Et La femme créa Hollywood.

É PROIBIDO Fumar. Direção: Anna Muylaert. Produção: Anna Muylaert; Maria Ionescu; Sara Silveira. Brasil, 2009. (86 min), son., color.

ELE, ELA, quem?. Direção: Luiz de Barros. Produção: Adélia Sampaio. Brasil, 1977. (80 min), son., color.

ELENA. Direção: Petra Costa. Produção: Busca Vida Filmes. Brasil, 2012. (82 min), son., color., documentário.

EM TRÊS Atos. Direção: Lúcia Murat. Produção: Lucia Murat; Milena Poylo; Gilles Sacuto; Celine Loiseau. Brasil: Taiga Filmes e Vídeo; TS Produções, 2015. (76 min.), son., color.

ENTORNO da Beleza. Direção: Dácia Ibiapina. Produção: Dácia Ibiapina; Studio treze. Brasil, 2012. (71 min), son., color. 220

ETERNAMENTE Pagu. Direção: Carla Camurati. Produção: Flai Cinematográfica Ltda.; Sky Light Cinema; Maksoud Plaza; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A. Brasil, 1988. (100 min), son., color.

FANTASTICON, os deuses do sexo. Direção: J. Marreco; Tereza Trautman. Brasil, 1971. (89 min), son., P&B.

FEIO, Eu? Direção: Helena Ignez. Brasil, 2013. (70 min), son., color, documentário.

FICA Comigo. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Heraldo Born. Brasil, 1998. (80 min), son., color.

FILHOS da Esperança. Direção: Alfonso Cuarón. Produção: Marc Abraham; Eric Newman; Hilary Shor; Iain Smith; Tony Smith. EUA; Reino Unido: Strike Entertainment; Relativity Media; Hit and Run Productions, 2006. (110 min.), son., color. Título original: Children of Men.

FRAGMENTOS. Direção: Adriana Vasconcelos. Produção: Adriana Vasconcelos. Brasil, 2014. (21 min), son., color.

FUGINDO do passado: um drink para tetéia e história banal. Direção: Adélia Sampaio. Produção: Maria Claudia Ferreira; Adnor Pitanga; Adélia Sampaio; Gaivota Filmes; Beyla Genauer Produções Artísticas. Brasil, 1987. (80 min), son., P&B/color., documentário.

GAIJIN – Ama-me Como Sou. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Viviane Caetano de Faria; Ana Claudia Reis Leite. Brasil, 2005. (130 min), son., color.

GAIJIN - Caminhos da liberdade. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Carlos Alberto Diniz; CPC - Centro de Produção e Comunicação Ltda. Brasil, 1980. (105 min), son., color.

GRAVIDADE. Direção: Alfonso Cuarón. Produção: Alfonso Cuarón; David Heyman. EUA; Reino Unido: Heyday Films, 2013. (90 min.), son., color. Título original: Gravity.

GREGÓRIO de Mattos. Direção: Ana Carolina. Produção: Crystal Cinematográfica; Patrícia Jansen; Jean Robert; Alcemar Vieira. Brasil, 2003. (70 min), son., color.

GUERRA ao Terror. Direção: . Produção: Kathryn Bigelow; Mark Boal; Nicolas Chartier; Greg Shapiro. Imagem Filmes: EUA, 2008. (131 min.) son., color. Título original: .

GUERRA dos Paulistas. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi; Buriti Filmes. TV Cultura: Brasil, 2003. (55 min), son., color., documentário.

HARRY Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Direção: Alfonso Cuarón. Produção: David Heyman; Chris Columbus; Mark Radcliffe. EUA; Reino Unido: Heyday Films; 1492 Pictures, 2004. (142 min.), son., color. Título original: Harry Potter and the Prisoner of Azkaban.

HOJE Eu Quero Voltar Sozinho. Direção: Daniel Ribeiro. Produção: Daniel Ribeiro, Diana Almeida. Brasil, 2014. (96 min), son., color.

HÓSPEDES. Direção: Cristiane Oliveira. Produção: Clube Silêncio e Okna Produções. Brasil, 2008. (15 min), son., color. 221

HOTEL Atlântico. Direção: Suzana Amaral. Brasil, 2009. (110 min), son., color.

ILHA. Direção: Glenda Nicácio e Ary Rosa. Produção: Ary Rosa. Rosza Filmes Produções. Brasil, 2018. (96 min), son., color.

INVISÍVEIS Prazeres Cotidianos. Direção: Jorane Castro. Produção: Zienhe Castro. Cabocla Produções. Brasil, 2004. (26 min), son., color.

IRMA Vap – O Retorno. Direção: Carla Camurati. Produção: Bianca Costa; Carla Camurati; Fernando Libonati; Marco Nanini. Brasil, 2006. (70 min), son., color.

LA SERVA Padrona. Direção: Carla Camurati. Produção: Bianca de Felippes; Tatiana Rubim; Carla Camurati.. Brasil, 1997. (65 min), son., color.

LADY Bird: A Hora de Voar. Direção: Greta Gerwig. Produção: Eli Bush; Scott Rudin. Estados Unidos: Universal Pictures, 2017. (94 min), son., color.

LIMITE. Direção e produção: Mário Peixoto. Brasil: Vitaphone, 1931. (120min.), sil. P&B.

LUA de Cristal. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Diler Trindade; Flávio Chaves. Brasil,1990. (90 min), son., color.

LUZ nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha. Direção: Helena Ignez, Ícaro Martins. Brasil, 2010. (83 min), son., color.

MAR de Rosas. Direção: Ana Carolina. Produção: Mário Volcoff. Embrafilme - Empresa brasileira de Filmes S.A.; Crystal Cinematográfica Ltda. Brasil, 1977. (90 min), son., color.

MENINAS. Direção: Sandra Werneck. Produção: Sandra Werneck. Brasil, 2005. (91 min), son., color., documentário.

MESSALINA. Direção: Cristiane Oliveira. Produção: Clube Silêncio. Brasil, 2004. (14 min), son., color.

MINHA Vida, Nossa Luta. Direção: Suzana Amaral. Produção: Fundação Padre Anchieta / TV Cultura. Brasil, 1979. (32 min), son., color., documentário.

MULHERES choradeiras. Direção: Jorane Castro. Produção: Moana Mendes, Sérgio Pretto. Cabocla Filmes. Brasil, 2000. (15 min), son., color.

MULHERES Olímpicas. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi; Buriti Filmes; ESPN. Brasil, 2013. (52 min), son., color., documentário.

MUTUM. Direção: Sandra Kogut. Produção: Laurent Lavolé; Isabelle Pragier; Flávio R. Tambellini; Silvia Costa. Gloria Films; Tambellini Filmes. Brasil, 2007. (95 min), son., color.

NA POEIRA das ruas. Direção: Adélia Sampaio. Produção: Maria Claudia Ferreira; A. F. Sampaio Produções Artísticas. Brasil, 1982. (6 min), son., color.

NOMADLAND. Direção: Chloé Zhao. Produção: Chloé Zhao; Frances McDormand; Mollye Asher. EUA, 2020. (108 min), son., color. 222

NOVE Crônicas para um Coração aos Berros. Direção: Gustavo Galvão. Produção: Cristiane Oliveira; 400 Filmes, LudoFilmes e Effects Filmes. Brasil, 2012. HD/35mm, (93 min), son., color.

O AMULETO de Ogum. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Produção: Nelson Pereira dos Santos; Carlos Alberto Diniz; Regina Filmes Ltda.; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A. Brasil, 1974. (112 min), son., color.

O CANTOR de Jazz (The Jazz Singer). Direção: Alan Crosland. Estados Unidos: Warner Bros, 1927, son. Título original: The Jazz Singer.

O CASO ruschi. Direção: Tereza Trautman. Produção: Thor Filmes; Herbert Bijunio. Brasil, 1977. (23 min), son., color., documentário.

O CÉU de Suely. Direção: Karim Aïnouz. Produção: Mauricio Andrade Ramos; Walter Salles; João Vieira Jr.; Luís Galvão Teles. Brasil, 2006. (88 min), son., color.

O DESAFIO. Direção: Paulo César Saraceni. Produção: Mario Fiorani; Produções Cinematográficas Imago Ltda.; Mapa Filmes. Brasil, 1964. (100min), son. P&B.

O ÉBRIO. Direção: Gilda de Abreu. Produção: Adhemar Gonzaga. Brasil,: Cinédia, 1946. (131 min.), son., P&B.

O MISTÉRIO do dominó preto. Direção: Cléo de Verberena. Produção: Laes MacReni. Épica Filmes, Brasil, 1930, sil., P&B.

O NOVIÇO Rebelde. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Renato Tilhe. Brasil, 1997. (90 min), son., color.

O PADRE e a Moça. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Produção: Joaquim Pedro de Andrade; Luiz Carlos Barreto. Brasil, 1966. (90 min), son., P&B.

O SEGREDO da rosa. Direção: Vanja Orico. Produção: Adélia Sampaio; Vanja Orico; Produções Artísticas T. A. Ltda; A. Sampaio Produções Artísticas; Filmes São José. Brasil, 1974. (80 min), son., color.

O SEMINARISTA. Direção: Geraldo Santos Pereira. Produção: Adélia Sampaio; Cesar Mêmolo Jr.; Lynxfilm S.A.; Vila Rica Cinematográfica Ltda; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A. Brasil, 1977. (93 min), son., color.

OLHOS de Ressaca. Direção: Petra Costa. Produção: Petra Costa. Brasil, 2009. (20 min), son., color.

OLMO e a Gaivota. Direção: Petra Costa. Produção: Charlotte Pedersen; Luís Urbano; Tiago Pavan. Brasil, Dinamarca e Portugal, 2015. (82 min), son., color.

ONDE a terra acaba. Direção: Carmen Santos. Produção: Carmen Santos; Mário Peixoto. Brasil, 1933, sil., ficção. Filme inacabado.

ORLANDO, a Mulher Imortal. Direção: Sally Potter. Produção: Christopher Sheppard; Jean Gontier. França; Itália; Rússia; Holanda; Reino Unido: Adventure Pictures, 1992. (94 min.), son., color. Título original: Orlando. 223

OS FUZIS. Direção: Ruy Guerra. Produção: Copacabana Filmes; Jarbas Barbosa; Raimundo Higino; J. P. de Carvalho. Brasil: Produções Cinematográficas Herbert Richers S.A.; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A, 1964. (80min), son. P&B. OS HOMENS Que Eu Tive. Direção: Tereza Trautman. Produção: Carlos Frederico; Rene Boechat; Celio de Barros. Brasil: Thor Filmes; Herbert Richers S.A., 1973. (85 min.), son., color.

PALAVRA (En)cantada. Direção: Helena Solberg. Produção: David Meyer. Brasil, 2009. Documentário, cor, 86 min, HD.

PARAHYBA, Mulher Macho. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Carlos Alberto Diniz; Luiz Carlos Lacerda; Ruth Figueiredo Albuquerque. CPC - Centro de Produção e Comunicação Ltda; Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A.; Sky Light Cinema. Brasil, 1983. (88 min), son., color.

PARCEIROS da aventura. Direção: José Medeiros. Produção: Adélia Sampaio; José Medeiros; Eliane Cobbett; A. F. Sampaio Produções Artísticas Ltda. Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A. Brasil, 1980. (91 min), son., color.

PATRIAMADA. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Carlos Alberto Diniz; Lael Alves Rodrigues; CPC - Centro de Produção e Comunicação Ltda. Brasil, 1988. (103 min), son., color.

PEQUENO Dicionário Amoroso. Direção: Sandra Werneck. Produção: Bruno Wainer; Marc Beauchamps; Sandra Werneck. Cineluz Produções Cinematográficas Brasil, 1996. (95 min), son., color.

PROCURA-SE. Direção: Suzana Amaral. Brasil, 1992. son., color. Minissérie para TV.

QUE BOM Te Ver Viva. Direção: Lúcia Murat. Produção: Kátia Cop; Maria Helena Nascimento; Lúcia Murat. Brasil: Fundação do Cinema Brasileiro; Taiga Produções; Embrafilme, 1989. (100 min.), son., color.

RALÉ. Direção: Helena Ignez. Produção: Helena Ignez; Mercúrio Produções Ltda; Canal Brasil S.A. Produção executiva: Sinai Sganzerla. Pandora Filmes,. Brasil, 2016. (73 min), son., color.

RIBEIRINHOS do Asfalto. Direção: Jorane Castro. Produção: Luis Laguna, Danielle Santos. Brasil, 2011. (26 min), son., color.

RIO, 40 Graus. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Produção: Nelson Pereira dos Santos, Mário Barroso, Ciro Freire Cúri, Pedro Kosinski, Mario Barros, Louis-Henri Guitton. Brasil, 1955. (100min), son. P&B.

ROMA. Direção: Alfonso Cuarón. Produção: Alfonso Cuarón; Gabriela Rodriguez; Nicolas Celis. México; EUA: Esperanto Filmoj, 2018. (135 min.), son., P&B.

SANGUE Mineiro. Direção: Humberto Mauro. Distribuição: Programa Urânia (São Paulo e Sul do Brasil). Brasil, 1929, sil., ficção. P&B. 224

SENHORAS. Direção: Adriana Vasconcelos. Produção: Adriana Vasconcelos, Rojer Madruga. Thor Filmes. Brasil, 2010. (10 min), son., color.

SIMPLESMENTE Jenny. Direção: Helena Solberg. Produção: International Women’s Film Project: Brasil, 1978. Documentário, (32min), son., color.

SÓ SOFIA. Direção: Adriana Vasconcelos. Produção: Thor Filmes. Brasil, 2004. (8 min), son., color.

SONHO de Valsa. Direção: Ana Carolina. Produção: Crystal Cinematográfica; Ponto Filmes; Marçal Souza; Ueze Zahran; Tereza Brandão. Produção executiva: Carlos Alberto Diniz. Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A. Brasil, 1987. (96 min), son., color.

SONHOS de menina moça. Direção: Tereza Trautman. Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A. Brasil, 1988. (94 min), son., color.

SONHOS Roubados. Direção: Sandra Werneck. Produção: Fernando Zagallo; Sandra Werneck; Cineluz. Europa Filmes: Brasil, 2009. (90 min), son., color.

TESOROS. Direção: María Novaro. Produção: María Novaro, Pamela Guinea. México: Cine Ermitaño, Foprocine-México & Ajenjo Cine, 2017. (96 min), son., color.

THE GOVERNESS. Direção: Sandra Goldbacher. Produção: Sarah Curtis; Sally Hibbin. Reino Unido: Arts Council of England; British Broadcasting Corporation (BBC); British Screen Productions; Pandora Cinema; Parallax Pictures, 1998. (114 min.), son., color.

THE TANGO Lesson. Direção: Sally Potter. Produção: Christopher Sheppard; Oscar Kramer. Argentina; França; Alemanha; Holanda; Reino Unido: Adventure Pictures, 1997. (102 min.), son., P&B.

THELMA & Louise. Direção: Ridley Scott. Produção: Ridley Scott; Mimi Polk Gitlin; ; Dean O'Brien. EUA: Percy Main Productions; Metro-Goldwyn-Mayer, 1991. (129 min.), son., color.

TOMATES Verdes Fritos. Direção: John Avnet. Produção: John Avnet; Jordan Kerner; Norman Lear; Andrew Meyer; Anne Marie Gillen; Tom Taylo. EUA: Act III Communications; Avnet/Kerner Productions; Electric Shadow Productions, 1991. (136 min.), son., color. Título original: Fried Green Tomatoes.

TRÊS Verões. Direção: Sandra Kogut. Produção: Marcello Ludwig Maia; Laurent Lavolé. Brasil: República Pureza Filmes, 2020. (94 min.), son., color.

TUDO sobre minha mãe. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Agustín Almodóvar. Espanha, 1999. (101 min), son., P&B/color. Título Original: Todo Sobre Mi Madre.

UM CÉU de Estrelas. Direção: Tata Amaral. Produção: João Cláudio di Sena; Tata Amaral. Brasil, 1996. (80 min), son., color.

UM DIA com Jerusa. Direção: Viviane Ferreira. Produção: Bruna dos Anjos; Viviane Ferreira. Brasil: Odun filmes, 2020. (94 min), son., color. 225

UM MENINO... uma mulher. Direção: Roberto Mauro. Produção: Adélia Sampaio; Jece Valadão; Magnus Filmes. Brasil, 1980. Son., color.

UM PASSAPORTE Húngaro. Direção: Sandra Kogut. Produção: Marcelo Maia; Michel David; Pierre Bongiovanni. Zeugma Films; República Pureza Filmes; Arte France; Hunnia Film Studio; Cobra Filmes; RTBF - Bruxelles; CIVC Pierre Schaeffer.. Brasil, ano. (71 min), son., color., documentário.

UM PINGUINHO de Gente. Direção: Gilda de Abreu. Produção: Adhemar Gonzaga. Brasil, 1949. (105min), son., P&B.

UMA DOSE Violenta de Qualquer Coisa. Direção: Gustavo Galvão. Produção: Cristiane Oliveira; 400 Filmes. Brasil: Okna Produções, 2013. (96 min), son., color.

UMA VIDA em Segredo. Direção: Suzana Amaral. Brasil, 2001. (95 min), son., color.

VIAJO Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. Direção: Karim Aïnouz e Marcelo Gomes. Produção: João Vieira Jr e Daniela Capelato. Brasil, 2009. (71 min), son., color.

VIDA de Menina. Direção: Helena Solberg. Produção: David Meyer. Brasil, 2005. Ficção, (101min), son., color.

VIDAS Secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Produção: Luiz Carlos Barreto, Danilo Trelles, Herbert Richers. Brasil, 1963. (115min), son. P&B.

VOLVER. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Canal+ España; El Deseo S.A.; TVE. Sony Pictures Classics. Espanha, 2006. (121 min), son., color.

WOMEN Make Film. Direção: Mark Cousins. Produção: Tilda Swinton. Inglaterra: Hopscotch Films, 2018. Série documental em 40 capítulos (840min), son., P&B/color.

XUXA em o Mistério de Feiurinha. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Mônica Muniz; Luiz Claúdio Lopes Moreira; Xuxa Meneghel. Brasil, 2009. (91 min), son., color.

XUXA Popstar. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Diler Trindade. Brasil, 2000. (70 min), son., color.

XUXA Requebra. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção: Diler Trindade. Brasil, 1999. (82 min), son., color.

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FILMOGRAFIA ANALISADA

ATÉ o Fim. Direção e produção: Ary Rosa e Glenda Nicácio. Brasil: Rosza Filmes Produções, 2020. (93 min.), son., color.

COMO Nossos Pais. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Caio Gullane; Fabiano Gullane; Debora Ivanov; Laís Bodanzky; Luiz Bolognesi. Brasil: Gullane Filmes; Buriti Filmes; Globo Filmes, 2017. (102 min.), son., color.

MÃE. Direção: Adriana Vasconcelos. Produção: Sérgio Lacerda; Adriana Vasconcelos. . Brasil: Agridoce Filmes, 2018. (82min.), son., color.

MULHER do Pai. Direção: Cristiane Oliveira. Produção: Aletéia Selonk; Cristiane Oliveira; Diego Fernández. Brasil: Okna Produções, 2016. (94 min.), son., color.

PARA Ter Onde Ir. Direção: Jorane Castro. Produção: Jorane Castro; Ofir Figueiredo; João Vieira Jr; Chico Ribeiro; Nara Aragão. Brasil: Cabocla Filmes; REC Produtores Associados, 2018. (100 min.), son., color.

RÂNIA. Direção: Roberta Marques. Produção: Alessandra Castañeda. Brasil: Acrobates Film; Latitude Sul, 2012. (85 min.), son., color.

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APÊNDICE A — ENTREVISTA COM A CINEASTA MARÍA NOVARO

Realizada em agosto de 2017 durante o 12º Festival de Cinema Latino Americano em São Paulo.

O que a influenciou a começar, a querer ser cineasta?

María Novaro: Não havia nos anos 70 mulheres dirigindo cinema no México, tinha “um par” (algumas), mas neste momento não havia. E eu comecei a trabalhar em um coletivo feminista no fim dos anos 1970 fazendo documentários feministas, políticos de esquerda. E trabalhando com elas no coletivo, aprendi a usar a câmera, a gravar som, editar, com as ferramentas da época, usando negativo de 16mm, câmeras de 16mm, fazer som com um gravador e editando em uma moviola vertical, assim como na pré-história. Com essa experiência, trabalhei com elas dois anos, nesse grupo, me apaixonei pelo cinema, me apaixonei pela câmera. Eu era socióloga, tinha estudado sociologia na universidade. Estava trabalhando com elas um pouco como produtoras de temas para os documentários, mas me apaixonei pela câmera e decidi estudar cinema. Eu já tinha dois filhos. Era jovem, mas já tinha dois filhos, era complicado começar uma nova carreira e com as crianças, mas eu fiz afortunadamente, entrei na escola de cinema na universidade, estudei cinco anos na escola de cinema, e terminei a escola com uma terceira filha. E eu falo porque de uma maneira absolutamente natural eu sempre assumi que eu como mulher fazia cinema como mulher e vivendo minha vida que eu tinha decidido como mulher, que nesse caso era ser mãe, mãe de três filhos sem combinar, e acredito que desde o meu primeiro trabalho na própria escola e depois meu primeiro trabalho profissional, o filme Lola, são filmes inequivocamente femininos, ninguém poderia pensar que quem os fez não foi uma mulher. E toda minha vida toda minha carreira tem sido assim, creio que nos meus filmes nota- se claramente que são feitos por uma mulher, o que me dá muito orgulho e sempre eu quis fazer. Às vezes nos anos 80 e 90 não era fácil não, falar como uma mulher, receber as críticas de que não era importante o que contavas, de que não estava contando nada. Se tiveres oportunidade veja o filme Lola, que é sobre uma mulher com sua filha, o que mais escutei em meu país, no México, foi que esse filme não contava nada. Assim me diziam “não contas nada”, e eu me defendia, dizia “é uma mulher que tinha uma filha e era assim”, isso para muitos era não contar nada.

Para o público em geral?

María Novaro: Não, para os homens que faziam cinema. O público me aceitou bem, sobretudo o público feminino obviamente, mas para o estabilishment cinematográfico, para os fotógrafos, os produtores e funcionários do instituto de cinema, e para todas as pessoas que tomavam as decisões sobre os filmes, eu não estava contando nada. E minha personalidade é que se me tratam assim sempre eu cresço, me faço mais forte, eu gosto de mostrar que estão equivocados. E no que isso funcionou? funcionou na oposição ao meu olhar feminino, que me disseram que não era interessante para seguir utilizando-a nos filmes.

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Então isso te influenciou nas suas escolhas desde Lola até aqui ou há mudanças?

María Novaro: Há mudanças sim, mudanças em minha vida, por exemplo uma mudança evidente agora é esse filme (Tesoros) é claro que é um filme diferente, porque sou avó e como mulher me assumo como avó de três netos, e como avó fiz o filme para eles e para outras crianças que eu não poderia ter feito se não fosse avó. Como mãe não era tão sensível ao tema, estava em outras coisas, como mãe e jovem, e agora como avó me dei conta que nada na vida é mais importante que as crianças e meu filme reflete isso. E creio que cada filme que eu fiz reflete alguma coisa de minhas próprias vivências como mulher ou da etapa da vida na qual estava quando fiz o filme. Então são todos filmes muito pessoais. Nunca peguei um filme por encargo, por obrigação, de um roteiro de outra pessoa, já me propuseram, mas nunca quis, são filmes muito pessoais, não que sejam de minha pessoa, mas eu que os escrevo, os primeiros escrevi com minha irmã, três filmes com ela, depois deixamos de trabalhar juntas e eu sempre tenho escrito só, todos são meus próprios roteiros.

Como você vê a posição da mulher na indústria cultural? De uma maneira geral e no México?

María Novaro: No México por minha geração, estou com 67 anos e comecei a fazer filmes no final dos anos 70, e eu vi uma mudança enorme, éramos poucas mulheres fazendo cinema quando comecei e era muito difícil abrirem-te caminho como mulher pra fazer cinema e isso mudou radicalmente no México e os números são muitos altos para mulheres diretoras, creio que mais em documentários do que em ficções. (A entrevista foi interrompida para ela falar com um outro jornalista que tinha combinado antes).

Falávamos do espaço da mulher na indústria cultural e mesmo com as mudanças na sociedade percebemos que ainda há muitas dificuldades no fazer cinema. Houve algum projeto em que você sofreu preconceito por ser mulher, e foi mais difícil fazer o filme?

María Novaro: Sim, quando começou meu trabalho profissional na escola e quando fiz filmes no coletivo Cine Mulher, que eram documentários, ou quando filmes fiz dentro da escola eu não percebia a grande pressão por ser mulher. Na escola éramos um grupo de mulheres jovens estudantes, que brincávamos um pouco, e os outros nos conheciam como as “ninfas de celuloide”, por sermos mulheres, e tinha um pouco disso de achar que éramos só meninas fazendo cinema, mas não, era mais que isso, não era um jogo. Quando comecei a trabalhar profissionalmente, aí sim vivi restrições sérias pelo fato de ser mulher. Algumas restrições vinham do próprio sindicato do cinema que funcionava no México. O sindicato, que era a forma de fazer os filmes no México, não permitia mulheres nos postos de trabalho dos filmes, se permitiam mulheres dirigindo os filmes, mas não permitiam fotógrafas, não podia haver uma mulher produtora, não permitia uma mulher cuidando do som, mas eu estava acostumada a trabalhar com uma equipe de mulheres e homens e as regras do próprio sindicato não autorizavam, queriam me obrigar a trabalhar com fotógrafos e outras funções executadas por homens, então eram totalmente tangíveis as dificuldades que eu tinha como mulher. Quando 229 decidi não trabalhar com o sindicato por não seguir essas regras, recebi boicotes por parte do sindicato, e quando fiz meu segundo filme, muito conhecido, Danzón, o laboratório onde revelava o negativo de 35mm, uma semana de trabalho inteira, a arruinaram, no lugar de água para limpar o negativo colocaram areia, e destruíram o negativo de uma semana de trabalho, então a guerra era real, não era figurada, era real, pelo fato de que eu queria trabalhar com uma equipe de mais mulheres e o sindicato não permitia, me permitia trabalhar, mas não com minha equipe, então isso era muito tangível. Vivi também situações de preconceito como te referias, e menosprezavam o que eu queria contar, e diziam: “isso não é nada”, “isso não vai interessar a ninguém”, “essa história não está bem contada”, porque lhe desconcertava a outra maneira de contar uma história, e eu acredito que nós mulheres podemos escolher como contar uma história, como um homem ou como convencionalmente se narram as histórias, ou podemos escolher, inventar outra forma de narrar, e eu sempre escolhi inventar uma outra maneira de narrar. E ao inventar também há resistências, que são mais sutis, menos evidentes, mas estão aí, e creio que as novas gerações têm mudado muitíssimo, de homens eu me refiro, os últimos filmes que fiz, Tesoros e Las buenas hierbas, todo meu grupo foi muito jovem, basicamente de estudantes, sou professora da escola de cinema há muitos anos e trabalho com ex-alunos meus, na CCC, e formei uma equipe de homens e mulheres, mas os homens são outros homens, não tem nenhum preconceito pelo fato de eu querer contar as coisas como uma mulher, e por exemplo neste último filme não julgavam quando eu dizia que queria fazer esse filme por ser avó, não me desvalorizavam por isso, eles se divertiam com isso, e claro também me queriam bem. Então sinto muita diferença nos últimos anos trabalhando no México, do que senti em todos os primeiros anos de carreira, enorme diferença.

Em relação à linguagem, há também um interesse da pesquisa sobre as escolhas, em seus filmes a maioria são personagens mulheres. Gostaria de saber como é sua preocupação com a representação dos seus personagens mulheres, como você faz suas escolhas de linguagem também?

María Novaro: Nunca pensei como mera primeira pergunta que mulher vai estar na estória, que personagem feminino vai estar na minha história, nunca foi essa minha preocupação. Sempre em meu pensamento foi que a história eu vou contar da maneira muito pontual e de qual México eu quero falar. O México é como Brasil muito diverso e sempre sinto que há o México em cada película e depois vem o assunto, a história de quem habita esse mundo e de quem faz essa história e de maneira absolutamente natural são mulheres, porque assim sai, não quero entender nem posso entender porque para mim é óbvio que ao pensar em que quem vive as histórias eu conto como uma mulher. Quando se desenvolveram meus primeiros filmes, diziam por que são sempre mulheres? Por que sempre os personagens masculinos são secundários, escreviam muitas coisas deste tipo antes, e eu dizia por que se em todas as películas que eu vi os personagens secundários eram mulheres e os homens nunca eram secundários, então por que não? Comecei a tomar um olhar de uma forma mais consciente e dizer claro que eu quero que as protagonistas das minhas histórias sejam mulheres, mas não foi a primeira decisão, foi simplesmente a forma natural como eu podia contar porque eu conhecia as mulheres, porque me identificava com as histórias que poderia contar. Não foram minhas histórias foram de mulheres diferentes, mas com elas eu pude me conectar, porque em minha vida sempre nessas 230 histórias sempre há crianças na minha vida sempre teve as crianças meus filhos, fui mãe jovem. E sempre teve as crianças no meio da produção e sempre as crianças fazem parte de viver meu feminino, e isto se reflete nos meus filmes. Veja por exemplo no filme Sin dejar huela em que o produtor me pediu que não fossem duas mulheres e sim um casal os protagonistas e me neguei. Me neguei porque essa história de uma mulher e um homem viajando eu já vi, já tinha visto e justamente o que eu queria contar era a história de uma mulher viajando com outra mulher, que são amigas, que não são amigas, depois voltam a ser amigas de novo, isso era o que eu queria contar. Ele não entendia, me dizia que tinha que ser mais universal a história, tinha que ser um homem e uma mulher, isso ficou foi muito discutido pensei na minha vida que não é mais universal um homem e uma mulher até porque existem muitos filmes assim, vai ser mais universal se eu digo o que realmente é a minha própria maneira de ver a história que é a de uma mulher, isso é o que mais falta ao mundo, essa outra maneira de contar as histórias, isso nos faz mais ricos a todos, então se passou de uma forma muito natural e depois ficou claro que é uma decisão também tomada. Bom, outra coisa sobre isso é que em películas como Lola algumas amigas feministas me criticavam, me diziam que Lola não era suficientemente forte, que Lola personagem é uma mãe com debilidades, não era um personagem exemplar. E também comecei a pensar que eu não quero mulheres irreais ou heroicas, então nesse momento eu pensei que eu não quero propor mulheres espetaculares, mulheres especialmente fortes e sim contar histórias de mulheres que são donas de suas vidas, sim quero contar sobre mulheres que são donas de suas vidas porque me interessa falar que somos donas de nossas vidas, nunca tive interesse de falar de mulheres que não controlam sua vida em algum sentido, isso é real também para muitas mulheres. Falo de mulheres que não são super-heróis, não tinha pensado muito sobre isso, mas agora me dei conta que tenho feito e pensado assim.

E a questão do sexo? A questão sexual como é tratada em seus filmes?

María Novaro: Tenho tratado com delicadeza e está ali como um elemento porque faz parte da vida, mas quem sabe tenho tratado da forma como penso que é uma forma mais privada. E nunca tenho enfatizado mais e nunca tenho filmado de forma explícita em uma cena de um casal na cama, mas nunca eu nunca tratei de uma forma mais aprofundada, de fato é um tema que eu tenho vontade de tratar um dia, o filme mais do mundo da sexualidade feminina mais a fundo, então o sexo sempre aparece nos meus filmes, mas nunca é o assunto principal.

O afeto é mais recorrente...

María Novaro: Sim, e claro a sexualidade se inclui, está ali, faz parte da vida dessa mulher, mas nunca entrei nesse tema como tema principal do filme ainda não fiz.

No filme As boas ervas você trata de uma história pessoal com a sua mãe o que fez você contar essa história?

María Novaro: A história que eu escrevi é uma história contemporânea, portanto uma história, não é minha com minha mãe porque minha história com a minha mãe foi nos anos 70 e depois minha mãe morreu. Ela morreu quando eu era jovem eu tinha 24 anos, foi um evento muito 231 duro e traumático na minha vida. E acharam que o filme não se passa nos anos 70 e se parece mais comigo do que com a minha mãe. E a filha é mais com as minhas filhas é outra a geração, mas no fundo é uma história entre mãe e filhos diante de uma doença grave. Eu acredito que um evento, uma situação tão traumática que vivi com a minha mãe em algum momento tinha que aparecer na minha vida ou em meus filmes. A sensação que eu tive foi de que estava fazendo filme 30 anos depois do que eu tinha vivenciado porque não podia fazer antes, mas quem sabe eu faço cinema para poder fazer esse filme, para poder contar essa história, o que passou comigo essencialmente. E me fez muito bem fazer o filme e poder aceitá-lo. Fez também muito bem a minha família poder falar com os meus irmãos. Foi um mal que tive que me curou, não é isso que tirou o peso. E acho que é um filme bonito que também ajuda e serve para pessoas que passam a mesma dor.

Como é o seu processo criativo, como você escreve e desenvolve seus projetos?

María Novaro: Sim, há uma constante como um método que criei, que eu não sabia que era um método, mas por exemplo as pessoas me perguntam por que sempre há viagens nos meus filmes. E eu sempre viajo para escrever. E sempre descubro lugares e faço histórias para lugares para uma atmosfera para um lugar para uma maneira de viver. Então eu viajo, eu nunca escrevo fechada no quarto na frente da tela de um computador, se for assim eu não tenho ideias, minhas ideias vêm tomando notas conversando com as pessoas, ouvindo elas falarem, conhecendo outros lugares viajando, como sempre me movo nessa vida e para fazer Danzón, um filme sobre dançarinos, eu ia aos bailes três dias por semana e frequentava os bailes, falava com as pessoas, gravava vídeos, fiz amigos e escutava suas maneiras de viver a vida. E tomava muitas notas, aí depois me sento para escrever já quando sinto que tenho tudo. Então quando depois no processo de filmagem eu já tenho anotações personagens secundários, então isso ajuda. Isso ajuda a escolher os personagens principais porque não é só uma história que você vê, tenho imagens o tempo todo, material que facilita. No filme Tesoros também há muito dessas vivências então as minhas películas acabam tendo também um pouco de um aspecto documental, embora sejam ficcionais, então leva mais tempo e as últimas películas eu escrevi, produzi e editei. Eu gosto de cada vez mais fazer um pouco de tudo, que me ajuda. Meu trabalho criativo também leva pelo menos cinco anos cada filme que eu faço.

E ainda é muito difícil fazer filme no México?

María Novaro: Agora nem tanto, agora temos financiamentos e esses financiamentos que podemos buscar funciona muito bem, é mais difícil exibir o cinema mexicano no México do que fazer, fazê-las e financiá-las não é tão difícil. Continua caro, mesmo quando é um processo mais simples, mas há muitas maneiras de fazer.

No Brasil há um financiamento para mulheres, no México também há?

María Novaro: Não há no México, e acho uma ótima ideia, e já quero saber mais sobre esse edital para levar essa ideia para o México, porque eu tenho uma militância e busco melhorias 232 para nossa produção.

Em sua opinião o que falta para as mulheres ocuparem os espaços na indústria do cinema ou em outros lugares?

María Novaro: Falta que estejamos em lugares de decisão, nos lugares em que se aprovam financiamentos também porque às vezes estou eu onde os homens estão tomando decisões, para os projetos que vamos apoiar, e sinto que faz falta ouvir mais vozes de mulheres porque vemos outros aspectos que eles não estão vendo. E acredito que precisamos estar nos lugares de decisões ao vivo, Agora um pouco pela idade porque tenho um certo prestígio no México, então eles me convidam em alguns espaços é muito bom, mas creio que sou a única, se não há outra mulher que está tomando decisões. Acredito que é uma coisa que está acontecendo no México, tem alguém que as mulheres também estão chegando a culpando os espaços de cargos técnicos, há fotógrafas magníficas muitos, mas há muito mais diretoras que técnicas de som e acredito que são coisas que também vão nos fortalecer, estar em todos os espaços porque há áreas em que parecia que nunca, era o último reduto dos homens e a mulher nunca irá ocupar, por exemplo, a fotografia, a direção de fotografia, mas agora já é muito grande número de fotógrafas extraordinárias que estão atuando no México. E são chamadas, são disputadas pelos projetos no México tem fotógrafo que é muito bom, agora está em Hollywood, ganhou cinco oscars, e acredito que as mulheres também podem ser reconhecidas desta forma. Mas está acontecendo já há muitos a área técnica mesmo já está mudando. Mas também precisamos ocupar os lugares de decisão.

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APÊNDICE B — ENTREVISTA COM A CINEASTA LAIS BODANZKY

Realizada em setembro de 2018 durante o Festival Cine Sol em Natal – RN. Gravada em áudio.

Na sua trajetória você passou por alguma situação de preconceito por ser mulher durante algum projeto seu?

Laís Bodanzky: Eu tive sim, quando eu fiz o filme Bicho de sete cabeças eu finalizei ele na Itália, foi uma coprodução com a Itália, e eu lembro sim da dificuldade que foi finalizar o filme lá, montar o filme lá, e eu não conseguia entender porque era tão difícil, e depois que o tempo passou foi que eu fui entender que a dificuldade, na verdade estava ali. A Itália é um país muito machista, tão machista quanto, ou mais que o Brasil, e eu era ali uma diretora, uma mulher, e ainda por cima, uma diretora estreante, que também há um preconceito por ser estreante. E eu era ali uma diretora que vinha do Brasil, que era considerado naquela época uma país de terceiro mundo. Então eu tinha esses três pesos nas minhas costas, e era muito difícil, eu sentia pelo olhar, pela falta de interesse, pelo desprezo, que parecia que meu filme não era importante. Quando eu voltei pro Brasil com o filme todo pronto, montado, eu pensei assim: tenho certeza que esse filme é um equívoco. Morrendo de vergonha de mostrar pra equipe, pro elenco, quase que pedindo desculpas por eles terem feito um filme que deu errado. E quando teve a primeira sessão do filme, no Festival do Rio, em que o filme foi ovacionado, eu tomei um susto porque eu não sabia o filme que eu tinha feito, de tão desprezada que eu fui durante todo esse processo da pós-produção, finalização e montagem, mas o que eu quero dizer é que não tinha ninguém que chegava e dizia que o filme era ruim, não tinha uma coisa verbalizada, não tinha uma briga, não era explícita, era o ambiente, a tal da opressão invisível… Eu vivi outras situações em outros filmes também, na área da fotografia, engraçado que eu não posso falar: “ah isso é uma opressão de gênero”, mas o fato de eu ser mulher e aqueles fotógrafos homens, não tem como hoje eu olhando pra trás, acho que tem a ver sim com uma questão de gênero, assim, meu trabalho com o filme As melhores coisas do mundo, com o fotógrafo foi muito complexo, difícil, eu não me sentia respeitada enquanto diretora, dava muito mais trabalho, aí alguém da equipe veio me falar: “Laís é engraçado que quando o Luiz vem”, o Luiz Bolognesi roteirista do filme e marido na época, agora a gente separou, “a gente observa que quando o Luiz está no set de filmagens ele muda o jeito de falar com você”. Então eles falaram: “Luiz vem mais vezes pro set de filmagem”, que horror né? Então eu preciso ter uma figura masculina perto de mim pra me fazer respeitar, então eu me lembro que eu sofri muito, foi muito difícil, era uma filmagem, que eu filmava com vontade de chorar, e sem motivo real, então eu acho que vivi outras situações parecidas também, não que eu não tenha vivido coisas parecidas também com mulheres, tá? Também vivi, mas eu também percebo que a própria mulher não respeita outra num espaço de liderança, porque uma mulher que ocupa um espaço de liderança, diferente do homem quando ocupa um espaço de liderança, ele se torna uma pessoa atraente, ele se torna aquele que todos querem, todas querem, desejam, porque ele é um vencedor, uma mulher que ocupa um espaço de liderança é como se ela fosse uma anomalia, está no lugar errado, tem uma coisa que a gente nem consegue classificar. O que é uma mulher num espaço de liderança? respeita ou não respeita? ela é bonita ou não bonita? a gente não tem nem no nosso imaginário 234 quem é essa mulher, então pra você ocupar esse espaço muitas vezes você não sabe nem como se comportar, que tom de voz usar porque parece que você tá sempre errada, ou você é dura demais ou você é mole demais, você quer agradar o outro e esquece de se agradar, sendo que na área de criação o mais importante é sua visão, você ter a paz de espírito e a coragem de colocar sua opinião, então você ainda por cima ter que ficar administrando todos esses egos e todas essas opressões invisíveis que às vezes você nem sente. Você vai fazer uma reunião e a pessoa não olha na sua cara. Eu já fui em reunião com distribuidor de comédia, como eu trabalho muito com o Luiz, eu vou em reunião com o Luiz, mas ele é o roteirista eu sou a diretora, eu tô na reunião, mas a pessoa olha para ele e não olha pra mim, então não é que não me respeitam, mas o olhar diz muito, diz assim eu te respeito eu te admiro, te escuto, te compreendo, estou atento ao que você quer dizer, isso pra mim é importante, a pessoa não olhar pra você é de um desprezo tal, tipo você não quero nem ouvir, não quero nem saber, então você começa a fazer o que, você começa a ficar envergonhada, a se encolher, ou você quer pegar a palavra e não consegue porque não tem o olhar, ou então você está no meio do discurso e você faz assim: (gesticula respirando fundo) respira pra continuar a frase e a pessoa pega sua frase e continua, e o pouco espaço que você tem você perde, então assim eu já vivi isso muitas vezes, sendo que naquele momento eu era a pessoa que estava ocupando esse cargo da liderança, então é muito difícil.

Como se fosse um silenciamento da mulher nesse embate com o outro lado, com a maioria, outra questão que se coloca é a questão da equipe, o teórico David Foster fala que para um filme ser feminista ele precisa ter uma história protagonizada por mulheres, mas também ser produzido por uma equipe de mulheres, então eu gostaria de saber se você já despertou para isso, se tem essa preocupação de inserir na equipe mulheres em outras funções, na parte técnica?

Laís Bodanzky: Olha eu tenho, mas nunca foi uma preocupação tão enfática, admito, é importante e corajoso, e o que acontece numa produção grande de longa-metragem, um diretor ele escolhe os chefes de equipes, mas a equipe de cada setor quem escolhe é o chefe de equipe, essa é uma hierarquia que é da indústria, então você pode até propor, comentar, mas você tem que respeitar o trabalho de cada um, então eu nos meus longas, eu fiz quatro longas, as funções artísticas, que são o diretor de arte, de fotografia e a direção geral em todos os meus filmes eu trabalhei com homens, e agora no Como nossos pais eu trabalhei com uma diretora de arte mulher, e eu queria, então ali foi um início de uma postura consciente, não é simples, não é fácil porque quando você também está fazendo uma obra, eu sempre digo, quem manda é a obra, se eu tô fazendo um trabalho eu não tô brincando, então pra mim é muito importante o resultado, claro que o processo é muito importante, mas o resultado pra mim é fundamental, então de fato eu quero os melhores, e os melhores não necessariamente são os mais reconhecidos, mas é o que daquela pessoa me interessa pra aquele projeto, então eu preciso ter esse série de informações daquela pessoa, elas precisam assegurar: “ok, isso eu banco”. Então agora a Rita Faustino como diretora de arte em Como nossos pais, eu falei “aqui eu banco”, tinha que ser ela. Um trabalho maravilhoso que ela fez. Então eu acho que tem que ter esse mix. O discurso pelo discurso a gente também pode jogar o nosso discurso pelo ralo, então tem que ter o olhar, tem que misturar o olhar artístico com o olhar político. Eu não tinha essa consciência 235 do meu olhar político nem da importância dele, agora eu tenho mais e acho que eu posso ter muito mais, eu estou também no processo.

Você considera uma estratégia essa inclusão de histórias sobre a mulher, que fogem ao padrão do que geralmente ganha visibilidade no cinema, e inclusão de mulheres também na equipe atrás das câmeras?

Laís Bodanzky: No filme Como nossos pais eu fiz isso de forma muito consciente, sem dúvida nenhuma, ao mesmo tempo esse discurso está em mim, se eu for ver antes do filme Bicho de sete cabeças eu fiz um curta-metragem chamado Cartão vermelho que de uma certa forma o tema da mulher já estava ali, eu até outro dia revi e falei: nossa que curioso, por que que eu quis contar essa história? Espontaneamente, não eu quero falar no filme sobre mulher porque eu sou mulher, não, simplesmente eu li um conto da Jane Malaquias e gostei, por que será que eu gostei? Talvez eu tenha gostado porque eu sou uma mulher e quem escreveu foi uma mulher e ninguém falou tem que ser uma mulher, aconteceu espontaneamente, eu li o conto, gostei, pedi pra adaptar, fiz, e o texto falava sobre uma questão do início da sexualidade de uma adolescente, talvez um homem lesse esse mesmo conto e não significasse nada, pra mim significou tanto que eu quis contar essa história.

Para você qual é o maior desafio para a mulher dentro da indústria do cinema, principalmente do ponto de vista da função da direção?

Laís Bodanzky: Eu sinto assim que a mulher não pode ter medo de contar suas histórias, dirigir dá muito medo, porque dirigir é você ter uma opinião, você ter um discurso, defender uma ideia, e nós fomos todas educadas a não ter opinião, não defender ideias, aceitar o que foi dito com sendo a verdade, então eu acho que a grande sacada nesse momento é mais mulheres não terem medo desse desafio e se sentirem capazes de acreditar que a história que ela tem pra contar é importante porque o próprio Como nossos pais, no início parecia que eu estava fazendo uma história muito boba, muito banal, que pertencia a uma revista de mulher, de qualidade inferior, e não, hoje eu vejo assim: que bom que eu tive essa coragem de trazer esse tema pra esse espaço tão importante, tão glamouroso da tela, e uma temática que parecia menor, ela não é menor, ela é o que todas as mulheres estão precisando falar e debater. Então essa coragem de respeitar essa sensibilidade, essa coragem de dizer esse tema me diz respeito, para mim é importante, faz você acreditar que para outras pessoas também é precisa ir lá e ter coragem de falar.

E você tem se interessado por outras obras de mulheres?

Laís Bodanzky: Sim, tenho me interessado sim, mas também por histórias escritas por homens, mas com um olhar mais atento, um olhar crítico para as personagens femininas, no próximo projeto eu tenho um protagonista homem e eu tô assim com o selo do Teste de Bechdel, eu botei no mural e eu olho pra ele todo dia… risadas… Então cuidado Laís porque não é porque eu vou fazer um filme com um protagonista homem que eu não vou respeitar as personagens femininas, então é esse estado de alerta que eu me proponho agora, mas eu ainda preciso colocar o selo no mural e ficar olhando pra ele todo dia e me lembrando: “Laís presta atenção, Laís 236 cuidado, não está no meu automático ainda”.

APÊNDICE C — ENTREVISTA COM A CINEASTA SANDRA KOGUT

Realizada em janeiro de 2020 durante a pré-estreia do filme Três Verões no cinema do Dragão do Mar, em Fortaleza.

Você produz/realiza projetos desde a década de 1980, você vê alguma evolução na produção do cinema realizado por mulheres no Brasil? Você acompanha essa produção?

Sandra Kogut: Sim, sim, a presença feminina aumentou muito, e em áreas diferentes da produção audiovisual. Isso faz uma diferença grande. Antigamente você não via mulheres (ou via raramente) em certas áreas. Na direção mesmo era bem mais raro. Está um pouco mais equilibrado, as pessoas estão mais conscientes. Ainda resta trabalho pela frente, claro. Mas isso criou um clima mais sadio, e muito mais prazeroso. O trabalho ficou mais rico. As relações também. Eu sempre tive um set calmo, silencioso, e lembro como as pessoas achavam isso curioso, diferente. Associavam isso à uma qualidade feminina. E isso nem sempre era elogio (!) Eu já passei por tantas situações relacionadas a isso. De todo o tipo, boas e ruins. O Mutum eu fiz todo amamentando um bebezinho, viajando por lugares sem água, sem eletricidade, no sertão. Um ano e meio de preparação. Aí aconteceu uma coisa incrível. Eu estava procurando crianças pro filme. Era uma extra-terrestre, chegando da cidade grande, do Rio. Mas aí as mães me viam com meu bebê e logo se criava uma espécie de cumplicidade, de empatia. E assim muitas concordaram em me deixar levar seus filhos para fazer oficinas em outras cidades, confiaram em mim. A solidariedade entre mulheres no interior me impressionou muito, é gigante.

Para você qual a maior dificuldade para que as mulheres ocupem cargos de direção e espaços de decisão (comissões de júri, por exemplo) no cinema brasileiro?

Sandra Kogut: Porque tradicionalmente as mulheres não estavam nestes lugares, então é um processo chegar lá. Mas deveria ser uma consequência natural da maior presença das mulheres em todas as áreas do audiovisual. Comissões, grupos, colegiados - sem diversidade eles se tornam inviáveis. E não apenas diversidade de gênero – mas também de raça, de experiências, de geografia… Sempre que um grupo é muito homogêneo eu acho que cria uma situação opressiva.

Você tem a preocupação de inserir mulheres em funções técnicas nos seus projetos?

Sandra Kogut: Tenho. Mas não apenas por serem mulheres. Claro que antes de mais nada é importante uma cumplicidade artística, um desejo comum, visão de mundo compartilhada. Naturalmente tenho isso com mulheres e homens. Existe também a sensibilidade, às vezes mais feminina e outras mais masculina, que tanto homens quanto mulheres tem. No final é um mosaico de sensibilidades, e a feminina acaba ganhando. Porque se eu parar para pensar, mesmo alguns dos meus grandes colaboradores homens tem uma sensibilidade muito feminina.

A sua produção mais recente, o filme "Três verões" trata de questões políticas, o jeitinho 237 brasileiro, poderíamos dizer que um diferente olhar da casa grande e senzala, da perspectiva dos empregados, você diria que é um filme político?

Sandra Kogut: Sim, claro. É um retrato do Brasil no momento imediatamente antes de 2018, da ascensão da extrema direita ao poder. Quando você vê o filme percebe que os sinais do que vinha pela frente estão todos lá, mas ninguém está enxergando. E que sinais são esses? De uma sociedade onde os valores são os valores materiais, onde todo mundo só fala em dinheiro, pobres e ricos, seja por desespero seja por ganância. Uma sociedade onde todos compraram o pesadelo neoliberal, onde é cada um por si, onde todo mundo quer ser patrão e tudo tem que virar um negócio, uma mercadoria. Um retrato do Brasil.

Como você imprime sua identidade nos filmes que realiza?

Sandra Kogut: Os filmes que eu faço são o meu lugar no mundo. O lugar de onde eu olho, as coisas que vejo. Eles são a minha própria identidade. É por isso que eu faço os filmes, é a minha maneira de estar no mundo.

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APÊNDICE D — ENTREVISTA COM A CINEASTA JORANE CASTRO

A entrevista foi realizada em 26 de junho de 2020, através de videoconferência pelo Google Meet. Eu me apresentei brevemente e pedi para que ela se apresentasse também antes de iniciar as perguntas.

Jorane Castro: Eu sou professora da Universidade Federal do Pará, sou concursada também, e leciono no curso de Cinema e Audiovisual, por que que eu digo isso? Porque eu acho importante que a gente converse sobre isso hoje, porque eu acho importante que a gente traga uma discussão sobre uma prática de cinema, uma prática criativa. É uma questão muito interessante que quando a gente ensina os alunos a fazer filmes, porque eu ministrei muito direção e roteiro, a questão é essa: se a gente está ministrando um conteúdo que é para a prática dentro de uma academia, dentro de um pensamento acadêmico, ou seja pensamento de produção, de pensamento, e sempre me preocupa porque o que acontece muitas vezes é que a gente quer avaliar a produção artística como se fosse acadêmica e a produção artística é um outro olhar, um outro pensamento, uma outra lógica. Isso por exemplo, é um questionamento que eu me coloco por que como é que você avalia um projeto? Um projeto de pensamento, um roteiro, você não vai avaliar um roteiro como se fosse um projeto acadêmico, uma dissertação, você tem que analisar pelos critérios artísticos, então você vai ter que pensar uma outra lógica de pensamento. Esse curso que eu faço parte ele é dentro do Instituto de Ciências das Artes, a gente não está em Comunicação, então a gente tem música, dança, teatro, artes visuais e multimídia, então nós estamos juntos com pessoas que pensam a arte, e uma das discussões com os meus colegas é sempre essa: como é que a gente vai avaliar uma questão, e eu tô começando por isso, mas eu vou chegar lá onde a gente vai chegar, eu fico pensando isso, qual é essa lógica para a gente pensar que os conteúdos que é que você tá fazendo, pensar esses conteúdos de uma forma analítica, mas também pensar na construção artística e eu acho que a gente tem esse desafio ainda pra vencer na academia, e eu tô fazendo doutorado, eu tô também doutoranda como você, de um programa em Coimbra, na Universidade de Coimbra, eu tô fazendo esse programa e eu faço justamente uma análise sobre a minha produção audiovisual, então eu vou pegar meu projeto e fazer uma análise dele, para você saber, eu tenho também uma formação na academia, sou professora há 10 anos e ajudei a criar o curso, ajudei a criar o projeto pedagógico do curso e tudo mais, então eu estou muito envolvida também com essa questão acadêmica e eu gosto muito, acho muito importante por ser ensino público.

E eu achei interessante você destacar isso porque isso está no cerne da questão de você pensar na formação, de você ir pensando nos profissionais que vão estar no mercado futuramente...

Jorane Castro: Exato, isso, eu acho que no começo eu ficava em dúvida, mas hoje eu tenho certeza que a minha contribuição pode ser maior se eu tiver justamente essa produção, se eu tiver uma ideia de como funciona o projeto, como funciona o mercado, quem são os atores do mercado, como é que se desenha, eu não sou só da teoria, eu também da prática e eu acho importante a gente ter os dois porque um fortalece o outro.

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E como é que você consegue?

Jorane Castro: Então, eu não tenho uma produção muito extensa, eu não produzo um filme por ano, eu produzo um filme a cada 2 anos. Eu vou com mais calma, e também tem uma questão que os meus filmes eu trabalho como se fosse um objeto único, eu faço um cinema que eu diria artesanal, como se fosse um vestido de noiva, ou seja, você faz uma coisa como se fosse uma coisa única e você se dedica a todos os detalhes. Então até hoje, nos filmes foi assim que eu fiz, por isso que demora, minha produção não é tão… Porque tem gente que produz direto, eu produzo com uma questão mais lenta. Mas eu vou te falar um pouco da minha trajetória: eu sou nascida e criada em Belém, sou de família daqui, gosto de ser daqui, eu tenho muita... você deve entender isso, a gente passa melhor pelos lugares, se sente mais à vontade, né? Quando a gente tá no nosso lugar, então, eu estudei cinema, sou formada em cinema, fiz mestrado em cinema, mas eu fiz na França, na Universidade de Paris 8, depois então eu fazia ao mesmo tempo que eu fazia a faculdade, era uma faculdade prática, tanto que o resultado do curso era um filme, um filme com um memorial, eu fiz uma defesa, eu tive que fazer o filme e explicar qual era a maneira de pensar o filme e tudo mais, então eu tive essa formação prática e anteriormente aqui em Belém, porque quando eu saí daqui eu fui fotógrafa, eu trabalhei como fotógrafa desde muito jovem, assim, com 15 anos que eu entrei no grupo de fotografia, que se chama Fotoativa, inclusive a gente tem uma relação muito grande com o pessoal de Fortaleza, hoje eu não sou fotógrafa, mas os fotógrafos, como o Tiago Santana, o Celso Oliveira, o José Albano, são fotógrafos que tem até uma galeria que é um dos museus da Fotografia aí em Fortaleza, tem uma produção fotográfica muito importante, e a gente tem tido um diálogo. Então eu viajei no país, eu tinha 15 ou 16 anos e eles me criaram, então eu fiz fotografia e isso me deu uma formação um pouco técnica, e um pouco de olhar, eu formei meu olhar fotográfico ali. Eu tenho uma ideia do olhar fotográfico em função disso. Então quando eu vou filmar isso me serviu, pra saber qual é a lente, por mais que eu não seja uma boa fotógrafa porque eu não gosto dessa parte técnica, mas eu formei meu olhar, digamos assim. Quando eu vou para Paris para fazer essa faculdade, aí eu faço o meu primeiro filme e depois eu faço mestrado, aí eu começo a ter uma produção regular de cinema, aí depois disso eu não parei mais. Eu fiz o meu primeiro curta que chama Mulheres choradeiras, de 2001, e é um curta que deu muita sorte, foi meu primeiro filme que já foi selecionado para o Festival de Cannes. Aí eu me empolguei, né? O primeiro curta e já selecionado para o Festival de Cannes... Aí você acha tudo né, mas a estrada é longa. Aí quando eu terminei o meu mestrado, eu fiz esse filme, e eu voltei pra Belém, e eu tinha ganho o Itaú Cultural para fazer um filme aqui, era o Rumos. Aí eu vim fazer o filme aqui e acabei ficando, então entre o curta e esse outro filme, que se chama Invisíveis prazeres cotidianos, eu vou te passar os links, esse daí eu fui pra Cuba. Aí eu passei um tempo estudando fazendo aqueles cursos temporários na escola de Cuba, o que também me ajudou muito. Para te dizer o que eu penso assim, eu acho que é possível buscar formação em qualquer momento da sua trajetória, então eu já tinha feito um filme, mas eu achei que eu tinha pecado algumas coisas então eu fui estudar direção de atores e roteiro, aí depois eu voltei para o Brasil para fazer esse filme, então eu fiquei um tempo fora de Belém. A partir daí minha produção ficou regular. A partir daí, eu só trabalhei com cinema, de 2001 para cá eu só trabalho com cinema e tenho a sorte de realizar todos os meus projetos. Sempre ganhei edital seja ele Petrobras, seja Itaú, seja Minc, eu sempre consegui me manter em função disso. 240

Todos os projetos você conseguiu finalizar?

Jorane Castro: Não, sempre tem projeto que a gente não consegue finalizar, por exemplo, você tem cinco projetos você consegue financiar um, mas eu sempre tinha vários projetos e o lance é não desistir, né? Esse projeto Para ter onde ir eu comecei a fazer em 2008 o roteiro. Aí fui aprimorando até chegar o que é, então só para te dizer que eu tenho uma formação, eu acho que é importante a gente ter essa formação. E por mais que você não goste dos professores no curso, que a gente gosta muito de criticar, mas quando se coloca no lugar do professor é diferente, né? Quando você se dedica durante 3 ou 4 anos em um tema não tem como você não sair mais fortalecida porque você vai estudar, você vai escrever, vai se dedicar, você vai refletir, então sempre eu estou buscando isso, hoje já é mais difícil porque os cursos que se apresentam nem todos me interessam, meu sonho hoje é fazer a oficina do Herzog, o Werner Herzog, ele faz de vez em quando um curso, uma vez por ano, em uma cidade, no Brasil ou na Alemanha, mas é o único que eu penso em fazer e terminar meu doutorado, claro, mas sempre a gente tem que pensar no que a gente pode fazer mais. Então minha formação é essa, então eu tô sempre entre academia, o pensamento, a formação e do outro lado da minha trajetória como cineasta, como autora, pra que você entenda de onde eu vim. Eu tenho feito filmes regularmente, mas eu não faço todo ano, eu faço de dois em dois anos, de três em três anos, minha trajetória é lenta, porque geralmente eu faço as coisas com muito tempo.

Com relação ao seu olhar, mais especificamente na sua obra, como é que você imprime sua marca, ou seja, como a gente percebe a Jorane nos seus filmes? Você poderia falar sobre a identidade nos seus filmes.

Jorane Castro: Eu não consigo identificar de fato, assim, eu não penso: ah, eu vou fazer isso porque é assim que eu costumo fazer. Mas tem coisas que são certas no meu trabalho, uma delas é quando eu faço ficção, protagonistas geralmente são mulheres, as histórias geralmente são levadas, encaminhadas, com narrativas puxadas por mulheres, porque eu acho que eu tenho empatia muito grande com personagem feminino é onde eu me sinto mais confortável também, para falar, onde a gente pode passar um pensamento mais nosso, e eu acho que a maneira de filmar na fotografia, eu sempre tenho um apreço muito grande por causa desse meu histórico, de ter sido fotografia, de ter participado de exposições, de encontros de fotógrafos, eu acho que eu tenho um apuro estético muito grande, uma preocupação com a fotografia, preocupação com o olhar. Então eu faço longos planos sequência, eu sei disso, por exemplo, se a gente for pegar tem filmes meus que se apresentam, por exemplo Ribeirinhos do Asfalto, é um filme que tem uma sequência inicial de quase 2 minutos, que é a apresentação do universo dos personagens e do conflito, então por exemplo, nesse filme tem no primeiro plano a apresentação do conflito, dos personagens e do ambiente, está tudo presente ali, é a história de uma mãe que vai levar a filha pra cidade ela mora na ilha, para estudar, a filha vai estudar, então a gente vê o lugar, aí depois mostra a casa, vai passando, entra pela casa, mostra a casa onde a família vive e chega na cozinha onde o pai e mãe estão conversando. Aí a mãe fala, ela tá cortando o cabelo do pai e fala, eu vou levar ela amanhã pra cidade, ela vai comigo, ela vai estudar, aí ele diz eu não vou te ajudar, tu não vais ganhar dinheiro, eu não te dou meu dinheiro, então tem todo um conflito 241 ali. A gente já vê que a mãe canta para filha e o pai não concorda, e a partir daí narrativamente vai se desenrolando esse conflito com todas as questões que vão sendo apresentadas. Até o final que a mãe entrega a filha para uma pessoa de confiança dela para criar e é isso, uma prima, entendeu? E é uma história muito comum em Belém. E é uma história que abre para outras questões: pra questão da sexualidade, do incesto, será que o pai estava de olho na menina, enfim, tem uma série de questões que eu não pensava nelas, mas quando eu apresentava o filme, elas vinham. Mas por que isso, como é que vai ser a vida da mãe agora? Será que o pai vai brigar com a mãe? Será que a filha vai seguir o projeto dela de estudar ou vai ficar namorando com alguém, ou engravidar? Porque acontece muito das meninas que são da ilha e vem pra cidade, acabam engravidando e voltando pra ilha com o neném. A ilha que que eu falo é que assim, aqui em Belém na frente da cidade tem muitas ilhas, são 39 ilhas, a gente tem o continente e a ilha, então esse filme por exemplo eu acho que ele apresenta isso, apresenta uma preocupação com a fotografia, apresenta personagens femininos, e também tem uma outra questão que eu acho que é importante é que é você colocar o espectador do filme dentro da narrativa, então essas histórias, as novas interpretações que vêm do filme, vão vir de cada um, o espectador constrói a narrativa junto, ou seja, eu permito, eu acho que isso também é uma marca minha, eu permito que na ficção o espectador traga pra dentro da história a sua participação, as suas referências. Por isso que Para ter onde ir é um filme mais aberto, mais aberto ainda do que esse, esse é um filme esquematizado, ribeirinhos do asfalto. É um desafio de linguagem, mas que é justamente isso: pensar o cinema, como é que a gente vai contar essa história, trazendo elementos cinematográficos, então eu acho que se fosse definir eu tenho sempre essa preocupação, o que a gente vai fazer com essa linguagem? com essa fotografia? com esses personagens? É sempre pensar o todo e ao mesmo tempo e também pensar numa coisa que eu acho fascinante que a linguagem cinematográfica.

A gente estava falando do filme Para ter onde ir… Eu percebo no filme, que é um enredo que mostra muitas buscas, com personagens fortes, que vai mostrar vários conflitos… Primeiro gostaria que você falasse como você chegou a esse enredo, e sobre a produção, se você tem essa preocupação de inserir mulheres na equipe não somente como protagonistas, mas também nas funções técnicas, não só nesse mas também em outros filmes seus?

Jorane Castro: Sim, a minha preocupação principal é confiança e parceria, isso para mim é o mais importante, a gente ter confiança na pessoa que tá trabalhando com a gente e ter também a possibilidade de parceria ou seja, assim de você construir uma forma de trabalho juntos, por exemplo, o técnico de som com quem eu trabalho desde o primeiro curta que é As mulheres choradeiras, inclusive ele é de Fortaleza, é o Márcio Campos, não sei se você conhece, ele tá morando em Fortaleza agora, tava morando no Rio, mas agora tá morando aí, ele é daí também ele por exemplo ele e eu a gente trabalha há 20 anos, e eu não quero abrir mão de trabalhar com Márcio porque eu tenho parceria com ele porque a gente se entende, porque ele já sabe como eu vou montar o filme, ele já sabe o que que eu vou usar. Ele é meu parceiro criativo, isso tem que haver. Então por exemplo, eu não vou quero abrir mão, do Márcio. Não, mas aí quando a gente agora tava preparando o filme, agora em maio, mas com a pandemia tivemos que suspender tudo, mas a gente tava preocupado em que as pessoas que fossem trabalhar com ele 242 fossem meninas para formar uma nova geração. E aí já começou a trabalhar, ele vem filmar muito me Belém, e ele já começou a trabalhar em Belém com duas garotas, inclusive foi indicação minha, ele pediu uma indicação minha e ele conseguiu trabalhar com essas meninas como assistentes, e essa assistente dele já está fazendo filmes pelo Brasil. Ela já está fazendo por exemplo, ela estava em Fortaleza filmando com fulano, ela tá no Rio filmando com fulano, mas não só como microfonista só, mas como técnica em alguns projetos. E também tem o meu lado professora, ou seja eu sei que é importante, eu já fui estudante de cinema. Eu já batalhei pelo meu espaço eu sei de tudo isso, mas existem duas vertentes: que é a confiança e a parceria, por exemplo não me vejo colocando uma pessoa que eu não acho que vou construir essa parceria só porque é mulher eu não vou eu não vou eu não posso, eu acho que é importante por exemplo, geralmente produtoras executivas produtoras, já trabalhei com fotógrafas. Meu primeiro curta fotografado por uma mulher que é a Jane Malaquias, que é de Fortaleza. Você pode ver o filme, é super bem fotografado, é linda a luz dela, é assim uma luz mágica, então assim eu não tenho problemas assim em trabalhar com mulheres, eu gosto, mas o que me guia é a parceria criativa, então por exemplo, se eu tiver uma pessoa como o Márcio câmara que eu te falei que eu tô trabalhando, que eu trabalho com ele há muitos anos, fizemos vários filmes juntos, então eu fico pensando vou criar uma nova relação se eu já tenho uma relação que está funcionando? eu sou muito fiel as pessoas com quem eu trabalho então geralmente eu posso dizer que a primeira pessoa que eu vou procurar é a pessoa com quem eu me entendo, mas a pessoa pode dizer aí eu não tô a fim, eu tô ocupada, eu não posso, agora não dá… Por exemplo agora com essa equipe que a gente estava fazendo esse filme, a quantidade de homens e mulheres que estavam nesse filme era 50/50, mas por exemplo, uma grande parceira Minha disse eu não vou poder fazer esse filme então eu fui coloquei um assistente dela que é homem, mas isso é uma preocupação minha, até porque eu quando eu comecei né, então eu sei como é que é você começar e como é que é para você ganhar a confiança das pessoas quando você começa a fazer cinema. Não é fácil, então a minha ideia é ter mulheres no set, a gente tem muita mulher, agora a relação, eu acho que as relações profissionais no set de produção estão mudando porque durante muito tempo e eu acho que ainda é muito machista, a gente tem que pensar que durante, ou melhor até o começo do século 21 a maioria das pessoas que faziam cinema eram homens, diretores homens, da elite, brancos, ricos, se a gente for pegar sim classe média, média- alta, era um exercício da elite, aí você vê que tem alguns mulheres que foram exceção por exemplo, a Suzana Amaral, a Tizuka Yamazaki, a Ana Carolina, mas sempre assim, não é uma coisa normal, a exceção, não é regra, tem até um filme que eu observei isso, é um filme que fez muito sucesso, e eu saí enfurecida do filme, é o filme Cinema Novo, do Eryk Rocha, não sei se você viu esse filme, então, esse filme ele é muito interessante porque ele fala do momento mais brilhante do cinema brasileiro que foi o Cinema Novo, aí você vê todos os caras, Nelson Pereira, Joaquim Pedro de Andrade, todos eles, o Glauber Rocha, o Cacá Diegues todos eles incríveis, nenhuma mulher, as mulheres são um adereço que estão sentadas do lado deles, e ficam ali sendo bonitas, a função delas é serem bonitas, aí eu saí revoltada do filme, porque todo mundo achando que era maravilhoso e eu saí ofendidíssima, porque nenhuma mulher não tinha voz nos espaços de discussão, não tinha mulher fisicamente, por exemplo, tinha oito pessoas conversando não tinha nenhuma mulher e só tinha homens falando, tinha homens bonitos engravatados bem vestidos tipo assim aquela coisa do sedutor, bonitos, incríveis, geniais, mas você não via o espaço da mulher como debatedora, e aí você vai ver uma só mulher 243 que fala que é uma venezuelana eu acho que ela é venezuelana que tava no evento e eles filmaram ela falando uma roda de conversa com eles, mas foi só, nenhuma outra mulher fala ou seja, nenhuma brasileira fala, então esse filme eu acho que talvez seja legal você vê, ele é interessante por isso, já que você tá analisando a questão do feminino esse filme ele dá muitos elementos para isso.

Agora isso é um reflexo do período, né? que eu lembre só tem desse período a Helena Ignez...

Jorane Castro: Claro, é um reflexo do período… Mas a Helena Ignez ela veio fazer cinema agora, mas primeiro ela se casou com o Glauber, e depois ela se casou com o Sganzerla, então ela era atriz e a esposa. Depois foi que ela começou a ser a realizadora que ela é, assim como a outra companheira do Glauber que é a Paula Gaitán, são duas companheiras do Glauber que vieram fazer cinema depois. Enfim, e que fazem filmes experimentais muito interessantes. A gente vem de uma história dessa, então quando a gente começa a filmar, então até final dos anos 80 o desenho era esse, com a virada do século é que vão vir as políticas inclusivas, que vão passar pelo Doc TV, que vão passar por todas as ações do governo Gil, que eram fantásticas, que eles faziam realmente para pulverizar os recursos em todos os estados do país. E aí que começou também como ação do governo federal entre as faculdades também de cinema em todos os estados, como por exemplo, a faculdade de Cachoeira no Recôncavo Baiano onde já saíram vários realizadores de cinema, ou seja, houve um projeto de pensar o Brasil de uma outra forma e é nesse momento que está se discutindo a inclusão dos pretos, a inclusão das mulheres, dos indígenas, de todas essas outras camadas sociais, grupos sociais que não são representados pelo cinema brasileiro. Hoje existe um esforço para isso, eu faço parte de grupos de liderança feminina que discutem isso, tem vários grupos que a gente discute também a questão da inclusão, ou seja é uma coisa muito mais democrática e paralelamente a isso a gente vê que o cinema brasileiro melhorou, ele se diversificou, e começou a virar nacional, ou seja, não é só mais Rio e São Paulo que filmam, não é só com homens brancos e ricos que filmam, agora se filma em todos os lugares, até me mandaram hoje o Pacarrete, não é do Rio Grande do Norte?

Não ele é daqui do Ceará. Ele foi filmado numa cidade chamada Russas, interior do Ceará com a Marcela Cartaxo.

Jorane Castro: O Pacarrete, por exemplo, justamente são os mesmos técnicos, o fotógrafo e o técnico de som do Para ter onde ir que fizeram, e a montadora também, eu até brinquei com ele, falei assim, vem cá vocês querem roubar minha ideia de equipe? risos… então assim eu acho que existe hoje um cinema brasileiro plural, e esse plural inclui também olhar feminino, que não era incluído antes, como eu falei tinha mulheres que faziam filmes? tinha, mas eram assim os bichos estranhos, né? que não eram integradas a realidade ao mercado, eram desbravadoras talvez, visionárias, e todas elas têm uma obra interessante, a Tizuka por exemplo, fez dois filmes muito bons, que é Gaijin, por exemplo, depois a obra dela se torna mais comercial, Ana Carolina sempre teve um olhar muito pessoal, e a Suzana Amaral que eu citei também tem um trabalho incrível, então eu acho que teve uma virada aí no começo do 244 século e foi também a partir dessas linhas de financiamento, a partir desse momento propício para o cinema brasileiro que eu consegui construir uma carreira, muito trabalho, muita dedicação, mas eu consegui em função disso, dessas novas políticas desse novo momento, que talvez eu não tivesse tido antes.

Falando em dificuldades qual é a maior dificuldade que você enfrenta? Se você pudesse eleger, qual seria a principal dificuldade?

Jorane Castro: Assim, a gente enfrenta várias dificuldades, vamos separar então em duas dificuldades, fazer um filme já é muito complicado, fazer um filme em si já é muito complicado, só o processo né, fazer o roteiro, pensar filmagem, fazer a filmagem já é um processo muito difícil fazer tudo isso e ainda tem uma outra questão: a questão do financiamento. Então tudo isso envolve uma complexidade, mesmo agora por outro lado, quando a gente faz como mulher claro que é mais difícil porque você tem que mostrar que você é capaz, então tem essa dificuldade sim, por isso também que é importante, por isso que eu mantenho uma equipe que já me conhece porque sabe que eu sou capaz, então é uma espécie de zona de conforto também, porque aí a dificuldade vai ser, por exemplo, eu filmo na Amazônia então aqui as distâncias são enormes, tudo aqui é mais caro, se eu tiver que trazer uma equipe as passagens vão ser mais caras, para alugar o equipamento, tudo vai ser mais caro. Então eu sempre tento colocar profissionais paraenses, coisa que para mim é importante. No filme Para ter onde ir nós éramos 90 pessoas no set, 6 pessoas não eram daqui, o resto da equipe toda era daqui, para mim é importante essa relação muito clara, muito verdadeira, com quem faz o filme. Muita gente veio trabalhar comigo porque eu tenho uma trajetória que é assim um pouco regular, então assim, muita gente trabalha comigo em uma função, em outro filme pode assumir outra função, técnico que vira diretor de arte, então acho que tem isso da dificuldade de você saber que tem, que se você confia em alguém que não está qualificado, como já aconteceu muitas vezes, muita gente começou uma carreira, por exemplo, num projeto meu. A gente não tinha uma pessoa para fazer e a gente dizia tu vais fazer porque tu tem essa competência de fazer e a gente vai te ajudar a te formar, então tem pessoas que depois se estabeleceram nessa função por conta de filmagens minhas, porque por exemplo, quando é curta a gente não tem muito tempo, não tem muita grana, então a gente vai vendo que dá para fazer, mas funciona, quando tu diz para pessoa: eu confio em ti tu vais conseguir, a pessoa vai e faz, então tem também esse meu lado talvez professora que entra também na história de querer integrar. Eu não vou colocar em risco um projeto, eu não vou pegar mais as pessoas que nunca fizeram nada, mas se eu vejo que a pessoa tem um perfil e que é só uma orientação que precisa, aí esse é o trabalho que eu tenho feito desde o primeiro curta, isso é muito real, muita gente começou em filmes meus. O que eu puder ajudar nisso, claro que eu vou sempre fazer. Então a minha preocupação é que as pessoas continuem trabalhando, que esse mercado fica aquecido, e que essas pessoas continuem fazendo filmes todo dia, que seja profissão delas como é em vários outros lugares do Brasil como em Pernambuco, Ceará, em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, enfim. Então é importante que a gente mantenha a atividade audiovisual para que as pessoas continuem trabalhando. Então é importante que as pessoas tenham formação e continuem trabalhando, que tenha edital, isso é importante, ter trabalho para todo mundo.

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A gente percebe que você tem essa preocupação de dar oportunidades a quem está começando, ou trabalhar com a mesma equipe...

Jorane Castro: É eu faço isso, posso te dizer que, esse último projeto que a gente tava fazendo, aí tinham duas equipes de maquinário que a gente podia contratar aí, um cara que trabalhou comigo desde sempre, trabalhou no curta e ganhou pouco no curta, que aceitou minhas condições no curta e agora que eu tenho mais recursos eu vou chamar outro que eu nunca vi na vida? Não. Eu prefiro pegar alguém que está comigo desde o começo, é assim que eu faço, como eu te falei, o meu técnico de som é desde o primeiro curta, e eu ligo para ele e digo: eu não vou filmar esse filme sem você, dá teu jeito, eu não vou filmar esse filme sem a tua presença, então eu sou assim, não sei se todo mundo é, mas mais uma vez, eu não faço cinema comercial, eu penso mais como artista, penso mais como criação artística, eu não penso como produto, eu penso no cinema, na linguagem do cinema, a montadora que eu fiz esse filme Para ter onde ir, que é a Joana Folier, também a gente trabalhou durante horas e horas discutindo, conversando sobre o filme, sobre linguagem cinematográfica, referência de cinema todas essas coisas, então isso é importante falar isso é importante fazer, então assim, se eu puder trabalhar com a Joana eu não vou deixar de ir trabalhar com ela, eu tenho essas questões comigo, mas são questões éticas pessoais, eu não sei se todo mundo obedece essa ética, né? Eu sei que, por exemplo, o Beto Martins, que foi fotógrafo no meu primeiro longa, eu quero trabalhar de novo com ele. E esse meu novo projeto ele está de novo.

Sobre esse tema da minha pesquisa, como você vê esse termo: o cinema realizado por mulheres? Que tem sido usado e também tem sido criticado…

Jorane Castro: Olha, o primeiro prêmio do meu primeiro curta foi no festival de mulheres, na França, o festival de filmes de Cretéia, um festival que tem uma grande tradição, é muito comum para mim eu penso que tem essa questão do olhar das mulheres, e também não tem como eu pensar que eu sou contra... acho que existe um cinema que é importante, outra sensibilidade, eu não acho que você olha para um filme e diz a esse filme é feito por uma mulher, porque existe também a questão de que tem homens também não sensíveis, que podem usar o elemento feminino de uma forma muito forte assim como tem mulheres que vão trabalhar com elemento masculino, como linguagem também, existe também essa possibilidade, eu acho que é a maneira como se lida com o feminino, talvez um olhar mais sensível, mais delicado, mais observador, por exemplo, um dos meus filmes favoritos, não diria que é o favorito porque tem muito filme bacana feito no mundo, mas um filme que eu gosto muito é O piano da , é um filme muito feminino, é um filme que fala de uma alma de uma mulher que se comunica pela música e que a alma dela toca a pessoa, que é a pessoa mais bruta que ela conheceu. E é um lugar de violência, né? O marido corta o dedo dela, violência extrema, o homem que corta o dedo de uma mulher, de sua esposa porque traiu, né? Ou seja, tem uma sensibilidade ali que é incrível. E pegaria também outro filme chamado Los silêncios, da Beatriz Seigner, que também é um filme maravilhosamente sensível, porque são grandes artistas, e também elas têm um olhar que vai pensar por dentro da emoção, eu acho que isso tem a ver com o cinema feminino, que não dá para saber, olha aqui nesse ponto é feminino nesse ponto não é feminino, por que tem por exemplo, um outro filme que eu amo que é o filme Iracema, 246 uma transamazônica, do Bodanzky, que é um filme feito em 1975, e é a história de uma mulher na Amazônia, uma prostituta de 15 anos que anda com um caminhoneiro, e esse filme é um dos melhores filmes feitos sobre a Amazônia por pessoas que não são da Amazônia, e é um filme de homens feito sobre uma mulher, e eu acho que esse filme tem um olhar muito humanista, muito humano sobre a condição dessa menina, dessa mulher.

Um outro filme é o do Karim, né? A vida invisível…. Jorane Castro: Exato, é verdade. Mas há essas questões, o Karim fez um filme que toca as almas das mulheres, ele consegue trazer esse elemento como linguagem, então eu acho que isso é uma coisa interessante, e o Karim é um cara que pensa na linguagem, ele pensa cinema ele pensa na história que vai contar, pensa nos personagens, mas ele tá o tempo todo colocando uma proposta cinematográfica a cada filme que ele faz, então isso acho que tem muito a ver com os filmes que ele faz, eu acho que ele se aproximou da alma da mulher, ele buscou isso.

Só pra ressaltar que quando algumas teóricas, como por exemplo a Karla Holanda defende o cinema realizado por mulher como uma busca afirmativa, não que ela vá escrever roteiros e filmar somente sobre as mulheres, não quer dizer isso, mas no sentido de que mulher precisa estar atuando ativamente e principalmente, quando a temática é essa, é falar sobre os conflitos da mulher, e ninguém melhor do que a mulher pra sentir e passar essa sensibilidade, que não quer dizer que um homem também não possa ter essa sensibilidade, mas aí, o que eu acho interessante desse conceito, é que quando a gente colocar essa questão de que a mulher precisa buscar o seu espaço, a gente está falando de uma questão afirmativa… que pode ser aplicada também para outros campos, como por exemplo, com relação à questão racial, como as mulheres negras também, se a gente for analisar, não é foco da minha pesquisa porque eu nem daria conta, mas quantas mulheres negras a gente tem fazendo cinema? a gente conta nos dedos… está aumentando, mas ainda contamos nos dedos…

Jorane Castro: Sim e pra isso tem vários grupos de ação na sociedade civil que estão funcionando hoje. Por exemplo, tem uma associação chamada Apan, Associação de profissionais negros do audiovisual, estão colocando essas questões por exemplo, no caso polêmico de um filme sobre a Mariele, fizeram filme sobre a Mariele, mas as pessoas que iam decidir eram todos brancos, classe média, média alta, e que não tinham uma vivência da Mariele, até o Padilha está envolvido no projeto, teve uma polêmica a respeito disso então a Mariele uma mulher negra, lésbica, militante, de esquerda, feminista, maravilhosa, linda e do outro lado você tinha, aí quem vai contar essa história? Aí pediram para incluir dentro dessa história profissionais negros, mas para contar a narrativa, para escrever o roteiro, para dirigir… Eu acho que é importante a questão do lugar de fala principalmente hoje no Brasil porque o Brasil é um país extremamente machista, é um país que mata muitas mulheres, extremamente racista, a gente sabe disso. Então por conta disso, desse momento que a gente tá vivendo já têm os movimentos, tem o movimento do pessoal do audiovisual negro, tem o movimento de mulheres no audiovisual super forte também, tem um movimento de mulheres indígenas realizadoras e eu acho que isso é importante que exista, é importante que essa discussão seja levada à pauta, a questão é: como a gente vai fazer isso? Ou seja, como a gente pensa essa pauta, 247 isso é importante. E a outra questão é que eu acho que é importante que o cinema seja o reflexo da sociedade que a gente vive. Então por isso que é importante incluir, é importante que você ter uma garota negra que saiba que existem cineastas negras, e se a gente for pegar a perspectiva, por exemplo, têm mais mulheres que são produtoras executivas, têm menos mulheres que são diretoras de fotografia, por exemplo, têm mais mulheres que são montadoras, têm menos mulheres que são diretoras de cena, então assim essas situações elas são bem complexas e eu acho que é importante pensar nisso… (pensa um pouco… e continua…) e eu acho que é importante incluir porque ela é o reflexo da sociedade brasileira, a sociedade brasileira é preta, ela foi construída em cima do genocídio indígena, tem uma parte da sociedade brasileira que não aceita que a mulher pense, aja, seja independente, seja livre no seu pensamento, existe ainda isso, é muito machista, a gente sente isso, não é um fenômeno brasileiro, é um fenômeno mundial, é tanto que o produtor, tenta lembrar… eu não vou lembrar o nome dele, mas teve aquele produtor hollywoodiano que foi denunciado e punido, então assim, é importante ele ser preso, é importante que isso seja dito.

Inclusive gerou um movimento - eu complemento…

Jorane Castro: Sim, eu acho que é importante que isso seja colocado, é importante, por exemplo: a gente não vê protagonistas negras, a gente não vê protagonistas indígenas num filme, mas não é de nicho, não acho que deve ser o filme porque ela é negra e porque eu tenho que incluir, não, tem que ser orgânico o processo, ou seja, é uma mulher que tem aquela vida, que quer contar aquela história e que tem conhecimentos, e talvez eu que sou da classe média, que sou formada, que tenho mestrado, não tenho experiência de chegar em casa e não ter água encanada, eu sempre tive água encanada na minha casa, então será que a minha experiência vale tanto pra contar essas histórias? Não sei. Eu espero ter sensibilidade para me debruçar nelas e poder sentir, mas a vivência eu não tenho, mas aí chega uma outra questão que eu me coloco… que é a questão cinematográfica… Eu tenho apreço pela linguagem, pela história pela maneira de contar, pelo viver cinema, que é o que fazia a Suzana Amaral, por exemplo, o que é o que faz o Karim, eu acho assim, essa questão da linguagem ela também tem que estar presente, eu acho assim, tem que ter histórias contadas por negras, e por indígenas, por mulheres e por trans, mas que sejam de qualidade, mas essa qualidade só vai ser adquirida quando tiver possibilidade de filmar, quando a pessoa começa a filmar, filmar e filmar, ela vai aprender, muita gente não sabia, eu sei que por exemplo, o filme Para ter onde ir foi uma prova de fogo, eu estava muito insegura, era meu primeiro longa, primeiro longa feito no Pará, em toda a história do cinema paraense, feito por uma paraense, assim, teve um cara que fez em 1970 e pouco, mas ele era paulista, e agora eu fiz um filme. Bom, era muito peso em cima de mim, era muita responsabilidade, assumir a produção, assumir a narrativa, assumir o elenco, assumir tudo, a montagem, então eu fiquei muito insegura, eu sei que eu errei algumas coisas porque eu estava insegura, estava frágil, muito fragilizada, eu tava fragilizada. Hoje por exemplo, quando eu for fazer o meu próximo filme, tá mais tranquilo, então tem que fazer essa passagem, as pessoas têm que passar pela formação, pelo entendimento, para entender o que estão fazendo, então quando agora por exemplo, fizeram um filme chamado Café com canela, você viu esse filme? procure esse filme, então, Café com canela é um menino e uma menina que fazem, os dois são egressos da Universidade do Recôncavo Baiano, são formados em cinema, ela é negra, ele não 248

é, e a protagonista deles é negra, então, esse filme ele tem o lugar dele pela qualidade narrativa e pela história que ele conta, entendeu? Então acho que é isso que na prática, quanto mais prática houver, melhores histórias serão, como por exemplo, os irmãos Carvalho, que são dois realizadores, dois irmãos que são do Rio de Janeiro, eles fizeram o filme, então, eu não vou lembrar o nome agora (ela fica tentando lembrar o nome do filme…) Mas ganhou Brasília, o filme é muito bom, eles fizeram no morro, no morro que eles moram, acho que é o Morro do Salgueiro, eles fizeram lá e o filme é incrível porque ele tem uma linguagem cinematográfica que ele é completamente... reverte a situação, ele não é uma história dentro do que a linguagem é… como que a gente fala? (pensativa…) a linguagem do cinema tradicional, ele perverte essa lógica, no bom sentido ele transgride a linguagem, a linguagem dele, os elementos dele a referência dele são completamente diferentes e o filme fica uma coisa incrível, porque ele é forte é um curta-metragem é muito legal. (Ela fala bastante empolgada deste filme...) Então eu acho assim que se for pensar, essas histórias elas são importantes de serem contadas porque são pessoas que têm legitimidade, é importante que eles têm legitimidade, mas eles trazem o elemento cinematográfico porque senão o que a gente estaria fazendo? por isso que eu acho que é importante o que a gente está fazendo, é assistencialismo e não é assistencialismo, tem que ter força cinematográfica, e a gente já viu que tem. As mulheres filmando têm força cinematográfica, os negros filmando, os indígenas filmando todas as pessoas tem que trazer isso, ou seja, são os dois lados, e é assim que o Brasil tem que ser, tem que filmar em todos os cantos, as histórias de Roraima eu quero ver no cinema, assim como as estrelas do Rio Grande do Sul que seja importante que elas sejam contadas para que a gente tenha ideia desse Brasil plural que a gente vive, e tem que ter vários atores, atores sociais, várias pessoas tomando a frente essas narrativas, sejam negros, indígenas, brancas, e que sejam de todas as classes sociais.

E como é que você está vendo esse momento atual? Nessa conjuntura em relação ao cinema, nossa cultura em relação às linguagens em geral estão sendo muito afetadas, né?

Jorane Castro: Sim, eu acho assim, eu acho que a cultura brasileira é muito forte, nossa música nossa cultura popular do Nordeste, por exemplo, a cultura popular da Amazônia, a cultura cinematográfica, as artes, nós temos uma potência cultural, que é crítica, o que é cultura? Cultura é uma reflexão crítica sobre a sua realidade, até um cordel, o cara que escreve um cordel ele tá sendo crítico sobre a sua realidade, sua história… o repentista da feira ele pode ser crítico sobre a sua realidade, ele pode tirar uma brincadeira sobre um político, sobre um caso e tudo mais, então o que que é cultura? a cultura é o lugar da nossa representação e também da nossa formação, é o lugar da crítica, do pensamento da liberdade, então o governo autoritário não sabe lidar com isso, a gente vê que há uma dinâmica de sucateamento da cultura, como por exemplo, coloca Regina Duarte, tira Regina Duarte, coloca fulano de tal, tira fulano de tal, coloca o nazista coloca o fascista, entendeu? Coloca pessoas que não tem nada a ver, e aí puxa, sai da Cidadania, coloca no Turismo, isso tudo é uma estratégia muito bem arquitetada para enfraquecer a cultura brasileira, mas a cultura é mais forte, eu vejo assim, olha só, porque se a gente fosse de um país que não tivesse uma produção cultural potente eles nem iam se importar, os governos autoritários não se importam, mas não, nós temos uma cultura muito potente, a cultura brasileira é extremamente forte, então não tem como a gente pensar: Ah não vai rolar, não tem como, é a mesma coisa com a educação, são as duas frentes que você vai 249 criar um pensamento crítico da sociedade, eles não conseguem entender e o que muitos brasileiros infelizmente não conseguem entender é que o fato de você ser crítico não quer dizer que você é de esquerda ou é de direita, você é crítico porque você tem a sua opinião e você confronta sua opinião à realidade, é só isso e as pessoas não têm capacidade de entender isso então eu posso ser de esquerda e criticar o governo de esquerda, eu acho que é até o meu direito como cidadão, né? Eu posso ser de direita e criticar o governo de direita, é meu dever como cidadã, eu acho que a cultura do Brasil ela vai sobreviver a isso, esse governo vai passar, a cultura vai sobreviver mais forte, mas o que a gente vê é que existe uma força na nossa história artístico-cultural, como é que você consegue explicar um cara como Luiz Gonzaga, que sai lá do Pageú e vai mudar a história desse país, ele é patrimônio, como e que ele fez isso? Qualquer lugar do Brasil que você for que começar a tocar Asa Branca você vai saber de quem é, Luiz Gonzaga, ou seja, olha só a potência da cultura do Brasil, Gilberto Gil, Chico Buarque, tudo isso eles querem aniquilar, mas eles não vão conseguir, porque isso vai se recriar, ao meu ver, mas o projeto é acabar com a Cultura, Educação e com a Ciência, que é onde se produz o avanço e o conhecimento, então num estado autoritário e num governo autoritário você não quer se confrontar com a discordância, a crítica, o debate você não tem debate, você só tem uma visão. Então eu acho que é o pior momento que eu conheci da nossa história para a Cultura, mas é um projeto, e esse projeto a gente tem que vencer, tanto na educação tanto na ciência como na cultura, porque são as vocações principais do Brasil, eu acho que é por aí, nossa vocação, vocação que a gente tem, o melhor da gente exatamente isso.

Para gente finalizar, gostaria de te perguntar se você já passou por alguma situação de machismo? E como você acha que pode ser combatido, principalmente em relação ao cinema. (Ela demorou um pouco pra responder…)

Jorane Castro: É, não, eu tô pensando aqui, porque existe sim machismo, existe a questão de que você se coloca em dúvida sobre sua capacidade, existe essa possibilidade das pessoas acharem que você não é capaz e você acreditar no que elas estão achando, isso é uma coisa muito velada do machismo, mas ela é muito forte, muito verdadeira, e a outra coisa que é que eu acho que é muito incrível, eu não sei porque eu acho que eu convivi com machismo e eu fiz como muitas brasileiras fazem, eu não registrei como machismo, porque muita brasileira faz isso né? muita brasileira vai na rua e alguém fala: “olha a gostosa, não sei o quê…”, isso é comum no Brasil, não é comum em outros países, mas no Brasil isso é super normal, enfim, então acho que assim teve oportunidade que eu tive que fazer de conta que eu não estava vendo para poder seguir em frente, entendeu? Mas assim, isso nunca... por exemplo, se eu sofro machismo de alguém eu tento não colocar mais na próxima equipe, eu tento não trabalhar com essa pessoa, entendeu? então eu vou criando maneiras de me livrar, mas geralmente existe sim, mas eu por exemplo, como eu te falei eu faço só os meus projetos, então como eu faço sozinha meus projetos, então mal ou bem eu que dirijo o set, então é mais difícil se eu tivesse uma situação de uma outra função… as pessoas ficam mais fragilizados, por exemplo, maquiadora, assistente de câmera, talvez elas se fragilizem mais, então eu sinto que acaba que eu sou a liderança do set, e talvez isso seja uma maneira de me defender do machismo, né? Assim, inconscientemente, então eu vou fazer só os meus filmes porque nos meus filmes mando eu e 250 vai ser do meu jeito, e se tiver alguma ameaça eu vou me defender, eu tô falando agora nunca tinha pensado nisso, mas é uma maneira também de estar protegida.

Ela para um pouco para pensar e segue com indicações de filmes…

Jorane Castro: Eu queria também te aconselhar um outro filme que é um filme sobre mulheres de Hollywood… Esse filme passou na mostra de São Paulo no festival de Rio, nos dois. É um documentário? pergunto… Sim, ele fala sobre as primeiras mulheres do cinema… Eu já vi, eu respondo ao lembrar… Ele mostra justamente quando a mulher saiu do lugar, quando começa a ser rentável no cinema, a mulher sai do lugar do dinheiro, e vai para o outro lugar, ou ela é estrela ou ela é montadora, e eles dizem assim ah você faz costura, então você vai ser uma boa montadora, porque você sabe costurar, entendeu? Então assim esse filme eu acho que ele faz um paralelo muito interessante com o filme do Eryk Rocha, que é em outro momento, em outro lugar, mas ele faz um paralelo interessante porque se você souber que a primeira mulher, primeira distribuidora de cinema do mundo foi uma mulher, primeira diretora que recebeu bastante dinheiro foi uma mulher, primeira dona de um estúdio cinematográfico foi uma mulher, a francesa Alice Gui Blaché, então assim esse filme conta isso, pode te ajudar a ilustrar também essa história que tu estás contando.

Agradeço a entrevista e ela se coloca bastante disponível para o caso de precisar de mais informações.

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APÊNDICE E - ENTREVISTA COM A CINEASTA CRISTIANE OLIVEIRA

A entrevista foi realizada em 16 de julho de 2020 pelo Google Meet. Eu me apresentei e pedi para ela se apresentar também antes de iniciar as perguntas.

Cristiane Oliveira: Eu nasci em Porto Alegre, onde, desde pequena eu me envolvi com artes visuais, então quando eu fui pra universidade, eu escolhi o curso de comunicação social, e ali eu comecei a desenvolver especializações, assim, na área de fotografia e animação, comecei a fazer um curso profissionalizante em paralelo de fotografia e depois consegui, com essas fotografias, eu consegui estágio numa produtora de audiovisual e cinema, a Zeppelin Filmes, e lá na Zeppelin eu comecei a animar minhas fotos, nas horas vagas eu comecei a aprender os softwares de animação e aí isso me deu uma chance de trabalhar na área de pós-produção dentro da Zeppelin onde eu consegui fazer outros trabalhos, e me aventurei até no 3D, fazendo uma maquete eletrônica pro documentário da Liliana Sulzbach, reconstruí todas as missões jesuíticas em 3D, assim, nem imaginava onde eu tava me metendo, né, mas consegui finalizar e fiz outras vinhetas que me geraram um portfólio e fez com que eu conseguisse entrar numa produtora de animação depois, que era a Animaholics o dono da Animaholics foi pros EUA, ele reabriu a Animaholics lá depois de um tempo, e eu, tive a oportunidade de ir pra entrar pro cinema através de um episódio curioso que foi o seguinte: um cineasta de Porto Alegre chamado Gilson Vargas, ele era muito amigo do dono do Animaholics, que era o Rodrigo Washington, e era casado com uma pessoa chamada Cristiane também, e um dia Gilson Vargas ligou pra produtora querendo falar com o Rodrigo e eu sabia quem era o Gilson Vargas, mas ele não sabia quem eu era então eu comecei a conversar com ele, e aí bom o Rodrigo não tá ele tá viajando, mas eu perguntei o que ele queria e ele falou e ele queria conversar com o Rodrigo sobre uns efeitos para um curta metragem que ele ia fazer e eu disse: bom se for sobre isso pode ser comigo porque enquanto o Rodrigo está viajando eu estou no lugar dele. Ele disse: “Opa pera aí qual é a Cris que está falando”, aí eu me apresentei, aí ele falou: “Ah eu achei que era a Cris mulher do Rodrigo, vamos conversar” e aí ele, ele me ofereceu esse trabalho que era de criar vagalumes num curta que era rodado em 35mm, mas isso naquela época isso não era tão simples assim, um efeito desse, não tinha essa tecnologia de ter esse efeito em alta resolução do computador facilmente e ser exibido em alta resolução, na época as exibições eram em película, então como é que foi feito? Eu criei as máscaras digitalmente e isso foi transferido pro negativo numa truca ótica, na truca a gente foi imprimindo quadro a quadro num laboratório aqui de SP esses vagalumes. E o fato é que ele não tinha como me pagar e aí ele me ofereceu em troca um curso de roteiro que ele tava dando e eu aceitei o desafio e a gente realizou os efeitos, deu tudo certo, e durante o curso ele me ofereceu, durante o curso eu escrevi o roteiro do meu curta, que foi o curta Messalina, ele me ofereceu produzir esse curta, ele gostou do texto, quis produzir e ganhou o edital local de Porto Alegre pra produção. Então eu trabalhava sozinha com a minha câmera ou atrás do computador, de repente me vi tendo que dirigir uma equipe e tudo isso e aquela pressão descer a câmera rodando, e é muito caro né filmar uma ficção, então foi uma super experiência que no primeiro momento foi um soco no estômago, eu achei que nunca mais ia fazer aquilo, mas em seguida na primeira oportunidade que eu tive eu já tava no set de novo (risos), eu comecei a fazer assistência de direção, fui convidada para ser assistente de direção em curta, 252 em longa e série, e depois fui convidada para ser a coordenadora da produtora que produziu o meu curta, a gente se uniu a outros cineastas, que foi o Gustavo Spolidoro, Fabiano de Souza e o Milton de Prado, eles formaram a Clube Silêncio, e nesse período eu comecei a coordenar a produtora e a gente produziu dois longas, o Ainda Orangotangos, do Gustavo Spolidoro, e o Cão sem Dono, do Beto Brant e Renato Ciasca, além de curtas e outros filmes para TV, e o meu segundo curta. Meu segundo curta foi feito em parceria com a Okna Produções, quando eu saí da Clube Silêncio, alguns meses depois a Clube Silêncio fechou, cada um abriu a sua produtora, na verdade cada um não, o Fabiano se juntou com o Milton, eles abriram junto a Rais, o Gilson abriu a Pata Negra, o Gustavo continuou com a empresa dele e aí essa parceria que a gente fez com a Okna, Okna Produções da Leteia Selonk, foi muito produtiva porque ela veio a ser a produtora do meu primeiro longa. Eu tinha já uma ideia na cabeça e quando surgiu um edital de desenvolvimento de roteiro eu me inscrevi, muito estimulada pelo meu parceiro de realização e de vida, que é o Gustavo Galvão. Ele disse: tira esse roteiro da gaveta, vamos trabalhar e eu me animei assim, e a gente ganhou, então eu e ele graças a esse valor do prêmio a gente fez uma pesquisa de um ano e um mês por toda a fronteira, do Brasil com Argentina e do Brasil com o Uruguai, não, na verdade toda a fronteira com o Rio Grande do Sul, desde Brasil- Argentina lá em cima, até Brasil-Uruguai de ponta a ponta do Rio Grande do Sul. O Gustavo fez todo esse mapeamento de todas as cidades vizinhas de um lado e de outro da fronteira e isso com o mapa mesmo, a gente foi marcando tudo, isso em 2010, e foi incrível essa pesquisa. E aí já posso falar do filme Mulher do Pai....

Sim, vamos pegar já esse gancho de como foi fazer o filme…

Cristiane Oliveira: Nesse processo a gente descobriu esse local né? A Vila de São Sebastião, essa Vila fica no distrito de Dom Pedrito, porém é distante da cidade de Dom Pedrito, então é uma cidade que fica no meio assim, entre Bagé, Lavras do Sul e Dom Pedrito, e a gente enfrentou diversas situações por ela estar nesse local assim intermediário, por exemplo, pela vila passa uma estrada que para conseguir consertar a estrada a gente teve que dialogar com todas as prefeituras envolvidas naquela região, não era só falar com o prefeito, a gente tinha que falar com todos os que estavam envolvidos porque ia interferir nas jurisdições de todas essas regiões, de todas as formas, do lado da casa da Nalu é uma cidade e do outro lado da casa já é outra cidade, sabe? então é uma região de Fronteira muito fluida, as fronteiras abertas do Brasil, e nessa região teve muita troca, tem hoje e sempre teve muita troca com uruguaios, então esse roteiro e esse projeto que a gente desenvolveu acabou sendo selecionado do Productiors Clube, que é um workshop que acontece no Festival dos Três Continentes, na cidade de Nantes, na França, e eles têm esse olhar assim para selecionar pessoas, projetos do Hemisfério Sul e é uma semana de consultoria com diversas áreas e vários consultores e vale dizer também que no primeiro edital que a gente ganhou, esse de desenvolvimento, a gente teve a consultoria de um franco-argentino que é o Miguel Machaut, e foi muito importante para mim ter a consultoria com ele porque ao final do workshop, que ele dava para todos os selecionados, ele podia escolher um projeto para dar consultoria individual, todos os projetos tinham consultoria individual né, cada um com uma pessoa do mercado, e ele escolheu o meu projeto, então eu pude seguir né? com essa lapidação que ele me ajudou a fazer, porque nesse primeiro filme, eu já tô desenvolvendo outro agora que o processo está sendo bem diferente, mas nesse 253 primeiro filme meu processo foi descrever tudo assim, na primeira levada era romance quase, era muita coisa que eu tinha que contar sobre esses personagens, e o trabalho dele foi muito bom assim em termos de ir lapidando. Aí depois a gente entrou no workshop do festival francês, então só para dizer também que o filme Mulher do Pai desde o começo ele foi marcado assim relações internacionais e os embates e choques que acontecem nessas confluências de culturas, né? É um roteiro que já surge sobre isso por se passar em uma região de fronteiras, por tratar de uma cultura que é misturada assim, e no processo de feitura dele ele passa por isso também por causa dessas oportunidades internacionais, então só para você ter uma ideia não sei se tu já ouviu essa história que eu conto bastante, mas enfim, nesse workshop eu passei por uma situação super engraçada assim, porque a gente tinha consultorias individuais e também com o grupo de selecionados e entre as pessoas do grupo tinha dois participantes da África do Sul e eles me perguntaram, num momento mais individual assim, me perguntaram: como é que tu vai filmar isso? Aí eu pensei: como assim, por quê? né? E eles falaram: Não porque essa relação de pai e filha é meio tenso assim, lá de onde a gente vem têm muitos casos de abuso, né? De pai com filho então é um tema muito espinhoso assim, tem cenas que tu descreve no roteiro que não seriam possíveis lá. Mas qual cena? como assim, né? E como eu fiz consultoria com franceses, com produtores franceses eu ouvi assim: bota mais sexo, acho que o filme tem que ter mais sexo (risos...) Então eu fiquei nesse processo e a gente entrou no Talent Project Market, de Berlim, a Aletéia foi selecionada como produtora e poderia levar um projeto para receber consultoria e lá também a gente recebeu consultoria de pessoas de outras culturas né, teve um cineasta israelense que trouxe assim toda uma visão mais nativa assim, que algumas coisas foram interessantes, mas outras não batiam assim, com o que eu imaginava. Então acho que foi um processo de desenvolvimento de roteiro que foi marcado por isso de ouvir como ele bate em outras culturas e o que eu como autora queria segurar como essência no meio de tudo isso, sabe?

E foi quanto tempo esse período de amadurecimento, de consultorias?

Cristiane Oliveira: O primeiro edital de desenvolvimento que ele ganhou foi em 2009 e a gente veio a filmar só em 2015, então foram muitos anos de troca, e a cada chefe de equipe que entrando eu ia dando roteiro e a gente conversava, então eu tenho um processo bem colaborativo assim de ouvir, quando eu comecei a trabalhar com os uruguaios também foi muito bacana, a visão de cinema que eles têm, de um tema mais mínimo assim, veio super ao encontro do que eu queria para o filme, momentos dramáticos durante a história vieram de provocações do diretor de arte uruguaio Gonzalo Delgado, que fez o filme Uísque, ele iria fazer direção de arte total do filme e ele acabou participando só da concepção e na hora de filmar ele passou o bastão para Adriana Borba uma diretora de arte da UDE, por questões pessoais ele não pode acompanhar o set, mas até o primeiro dia de filmagem ele acompanhou, foi as visitas de locação participou de toda a concepção, ele é roteirista também, então eu tive essa sorte. Ele tem um filme bárbaro assim, eu gosto muito, que é com Federico Veiroj, que se chama A vida útil.

Eu ouvi falar desse filme, porque quando eu tava pesquisando, bem no começo, para minha pesquisa de doutorado na verdade eu queria me volta pro cinema latino- 254 americano, só que aí depois eu caí na real, né? Mas aproveitando aqui já que te interrompi, gostaria que você falasse como foi esse processo da escolha da equipe, você como diretora, teve algum momento de embate, que você sentiu alguma diferença ou alguma discriminação, por ser mulher...

Cristiane Oliveira: Olha, o filme foi gestado junto com a produção, e é uma produção composta por mulheres, Aletéia Selonk, produtora, Graziella Ferst, produtora executiva, a Gina O´Donnell como diretora de produção, e o Gustavo produtor associado e meu parceiro de roteiro, mas o fato de ter essas mulheres na frente da linha de produção marca diversas coisas no processo, então por exemplo a Gina, como diretora de produção ela foi para a cidade morar lá muito tempo antes do resto da equipe chegar, então a gente já tem uma mulher nesse papel de linha de frente, que estabelece as relações com os cabeças da cidade, estabelece essa troca, estabelece uma relação de respeito, lidera uma equipe nesse local onde... Vale lembrar que esse local é muito marcado pela cultura da pecuária, que é uma cultura essencialmente masculina, então a gente vê que muitas propriedades não contratam mulheres sequer como cozinheiras, contratam homens que trabalham como peões e ainda cozinham, entendeu? então muitas mulheres acabam ficando nesse lugar da esposa, da mãe de família e de quem cuida da casa e de quem vai trabalhar, e isso naturalmente afeta diversas relações assim, então a fonte de recursos é pelo o homem, as atividades das mulheres acabam sendo limitadas por essa condição social, porém a produção do filme mulher do pai chega na vila no momento que a internet chegou lá também, então quando eu conheci a vila eles não tinham internet, e um pouco antes da gente filmar, por um abaixo-assinado de professoras da cidade em torno da escola da vila eles conseguiram que a Vivo colocasse uma antena lá, então isso começa a alterar essas relações um pouco, eu acho que eu já pude, porque durante a produção eu já fiz entrevistas assim com as pessoas do local, então nas conversas eu senti como isso estava afetando as relações na vida delas, muitas mulheres que tinham que ficar em casa elas já estavam aproveitando para fazer cursos à distância, então nessas regiões mais remotas elas acabam se beneficiando né, da tecnologia, e essas relações elas começam a mudar, porém, ainda é uma cultura muito masculina, então poder ter essa equipe com mulheres em papéis-chave eu acho que foi bem significativo assim, por exemplo, detalhes assim, o único bar da cidade, ele era frequentado majoritariamente por homens, então mulheres até iam lá durante o dia fazer compras, tinha tipo uma pequena mercearia assim para venda de produtos em geral, mas o ato de sair à noite, jogar uma sinuca, beber uma cerveja, isso quem fazia eram os homens entendeu? então de repente chega essa equipe lá, cheia de mulher e vai para esse bar, bebe junto com outras pessoas e ouvir música alta junto com eles lá e dança com eles lá ao ar livre, então só essa imagem transformadora, eu acho, e acho que vale dizer que a gente chega também uma relação de respeito assim porque por estar assim distante das outras cidades, cria assim uma situação de fragilidade social porque é uma vila de uns 200 habitantes e não tem farmácia, não tem hospital, tem só um posto de saúde com poucos recursos e então as possibilidades são mais restritas assim, né? tipo isso, é só um bar, uma lanchonete na cidade, as oportunidades de lazer então nem se fala né? para a população jovem por exemplo, então a produção teve uma postura de contrapartidas assim, a gente fez uma oficina para os jovens da escola, sobre audiovisual, a estrada de chão ela ficava intransitável quando chovia, é um terreno que vira lama, os carros atolavam, então imagina uma pessoa ficar doente ou um acidente grave num dia de 255 chuva, é bem complicado assim, a gente viveu assim durante o set, acho que além do fato de a gente consertar a estrada, a gente dormiu, a gente se hospedou na casa de algumas pessoas, e a produção teve essa contrapartida de buscar melhorias nas casas das pessoas, mesma casa que a locação da casa da Malu a gente construiu aquele galpão, o Galpão ficou, a gente não construiu um galpão cenográfico, a gente quis fazer um galpão que pudesse ser utilizado depois, a gente contratou várias pessoas da comunidade, mulheres da comunidade que nunca tinham tido trabalho remunerado, mulheres maduras e tiveram ali a primeira oportunidade de trabalho remunerado, sabe? então nessas funções como assistente de set, como cozinheira, arrumadeira, lavadeira, atriz, a gente teve bastante gente como figuração e consultorias também, então por exemplo, o Marat Descartes, que é o ator, ele teve um período de convivência assim na casa de um cego da Vila, numa condição muito semelhante a do personagem do filme, artesãos locais que fazem aquele trabalho de tear e de produção do fio de lã, eles ensinaram os atores a trabalhar e se tu procurar na internet tem até umas pílulas como os depoimentos deles, até um policial que ajudou a gente a fechar as ruas, fala foi transformador, para ele a vida é uma antes e outra depois do filme…

Você falando assim a gente percebe como o local, a comunidade foram significativos para o filme, foram incorporados, né?

Cristiane Oliveira: Sim, alterou o roteiro, eu posso te contar coisas que mudaram por causa dessa relação, assim, mas só finalizando essa coisa com a produção, acho que essa escolha de pessoas que queiram projeto e que estão ali dispostas a ajudar de uma forma tranquila para o trabalho em equipe fez com que eu não tivesse nenhum problema, não sentisse nenhum problema por ser mulher, porque essas mulheres elas já estavam antes, antes de eu chegar elas já estavam na linha de frente, preparando o terreno de uma forma muito carinhosa, muito respeitosa, junto à comunidade e dentro da equipe também assim, nunca tive problema, só que tudo isso também, vale dizer, tem a ver com o trabalho de preparação eu gosto de fazer com antecedência, então por exemplo, essa cidadezinha era distante 6 horas da capital, então era uma viagem até lá, mesmo assim a gente investiu em levar a fotógrafa com a gente para lá para ver as locações, aí depois num segundo momento a gente foi com ela, com a diretora de produção e o diretor de arte, o Gonzalo, para definir detalhes da filmagem e quando a gente foi para filmar a gente ficou alguns dias dentro da casa, eu, a diretora de arte, a diretora de foto, a atriz principal assistente de direção decupando juntas assim, sabe? Vendo como ia ser apropriada aquele espaço, experimentando, fazendo suposições, experimentando movimentações dentro da casa, vendo como a gente ia utilizar da melhor forma aquele espaço, até para não ficar monótono, porque muitas do filme se passa dentro da casa, né? Então a gente buscou diferentes formas de filmar porque essa casa para gente era um personagem também, né? ela tem muita história impregnada, então esse trabalho também é de construção, lenta, envolvendo as pessoas nesse trabalho de criação, eu acho que favorece para que o set e não tenha nenhum solavanco, né?

Voltando ao roteiro aqui, esse foi o teu primeiro longa, e você falou que já está produzindo outro projeto, e você já tem uma obra que você vem construindo, você tem uma preocupação com relação a identidade nesses filmes? Já pensou nesse viés da identidade? 256

Cristiane Oliveira: Eu acho que a questão da identidade ela permeia tudo assim, pra quem é mulher e vive essa trajetória de se afirmar dentro da sociedade que é muito marcada ainda pelo machismo e por líderes masculinos, inclusive a trajetória do herói ela já foi revista até por uma teórica que fala que a trajetória da mulher ela não é de ir arrumar um objetivo apenas né, aí depois eu olhei para o mulher do pai e pensei, o filme mulher do pai é um pouco isso porque a personagem ela tem círculos narrativos, e círculos que estão ao redor desse eixo principal que é a construção da identidade dela de alguma forma, né? Então ela tem a relação com a amiga, a relação com o uruguaio, a relação com a professora, a relação com o pai, e todos eles são arcos que estão em volta desse arco principal que não é um arco com um objetivo determinado, é algo que ela vai descobrindo no processo e é o que que ela vai fazer da vida dela, mas nesse processo tem diversos micro conflitos dessa relação com o pai, com outra mulher nessa casa, nessa relação com outro homem, né? de uma menina que não consegue ver o futuro para ela distante de uma figura masculina forte, então quando amiga convida ela para ir para a capital, ela não acha que é possível, mas é só passar um uruguaio que ela diz: ah com ele eu iria embora, então tem essa dificuldade da mulher de se ver, de se superar, de uma forma individual né, de uma forma não individualista mas individual no sentido de se aproveitar da interdependência com outras pessoas para crescer juntos, para vamos juntos rumo a um outro passo, a outro nível, né? Então mesmo a relação com a Sexualidade né que é um dos temas do filme, que no momento que eu opto por colocar uma adolescente falando, e isso é uma coisa que tá desde o início do roteiro. O roteiro mudou muito como te falei desde a relação com a vila, a relação com essas consultorias, a gente pode até falar sobre isso depois como a realidade foi alterando o roteiro, mas essa coisa da adolescente que fala sobre as experiências sexuais dela para a amiga e pai ouve, estava desde a primeira versão, então isso é uma escolha que é consciente e mostra a importância da fala como um primeiro veículo para a conscientização, então a palavra ela nos faz pensar sobre esses processos e estimulam a consciência sobre essas vivências e tu vai conseguindo nomear sentimentos, nomear sensações, para uma afirmação de quem se é dentro desse novo momento de vida. Então isso é diferente de mostrar uma relação sexual, de uma forma sutil ou na penumbra, não, eu não a vejo, eu a ouço falar sobre o que está acontecendo, né? Eu acho que isso também é uma forma de estimular essa visão de que é importante se falar sobre isso até para a questão da igualdade de gênero porque enquanto a sexualidade for um tabu, corpos vão continuar sendo objetificados, a gente vai continuar sendo objetificada sexualmente e sem isso não é possível a igualdade de gênero, a gente não consegue naturalizar né o corpo do outro e esse acolhimento com o afeto sobre o corpo do outro, a gente não consegue reconhecer a diversidade, acolher a diversidade eu acho que essa discussão da sexualidade acaba muito relacionada com a igualdade de gênero e acho que a protagonista de alguma forma ela também se coloca num lugar que quebra um pouco alguns estereótipos no momento que ela se permite observar o pai, então ela não assume o estereótipo da cuidadora, esse é um lugar comum, antigo, muito comum, para mulher que assume esse lugar de cuidadora simplesmente na sociedade, ela não, ela quer uma troca com esse corpo, ela quer um carinho, ela quer um retorno, ela quer sentir que ela tem um pai né, e ela observa isso, essa pessoa que tá ali com interesse, né? Muitas pessoas até ficam tensas com a forma como isso é colocado no filme, um crítico chegou a perguntar se eu tinha filmado a relação entre eles e tinha cortado na montagem, e eu disse não, isso nunca teve no roteiro do filme, nunca, isso tá já na cabeça, mas eu entendo essa tensão que ele provoca, porque na verdade, ele fala da construção de afetos 257 né? E quando a gente vive numa sociedade que é muito tolhida pessoalmente, qualquer toque gera esse desconforto né, então eu acho que é esse ponto assim, o ponto do desconforto, que me interessa, falar dessas situações às vezes espinhosas, mas com a beleza da sensação de estar compartilhando a intimidade de alguém.

O filme tem uma poética que permeia toda a narrativa e eu acho que inclusive, a começar pelo nome, pelo título que você escolhe, Mulher do pai, como é que você chegou nesse título? Porque acho que até gera esse tipo de pensamento quando você evidencia o termo mulher com a relação do pai, quando você assiste o trailer por exemplo você já fica esperando que vai acontecer daquela relação, né?

Cristiane Oliveira: O título estimula essa ambiguidade porque na verdade são várias mulheres do pai, a gente tem primeiro a mãe né que tem, a mãe dele que tá no início do filme, que exerce esse lugar da cuidadora, da administradora da casa; a filha que acaba tomando esse lugar, a filha também se quiser ir para uma análise mais psicanalista, de querer ser a única mulher na vida do pai, com esse ciúme que é natural uma certa fase da vida, então ela não viveu essa relação nos primeiros anos de vida, é comum nos primeiros anos de vida a mulher sentir que é a única mulher na vida do pai né? Então até existe esse termo psicologia que é a fase de namoro com o pai, ou a fase do namoro com a mãe, então ela não viveu isso porque esse pai não quis ter essa filha, eles foram criados quase como irmãos, porque quando ele perdeu a visão ele teve relação com essa menina que era ajudante da mãe, engravidou ela e ela faleceu no parto, então esse homem começa a aprender a ser cego junto com esse crescimento do bebê que a filha dele, então isso que ela não viveu no passado, está guardado, recupera agora de alguma forma com essa proximidade forçada que existe entre eles, então no momento de estabelecimento de papéis. Quem é o outro? Como se descolar do outro e construir essa relação? Então tem essa ambiguidade dessa relação que vem acontecer só tardiamente pra ela, na adolescência, e também tem a nova mulher do pai né? Essa mulher que chega e cria essa confusão, esse conflito na cabeça da protagonista, que era amiga dela né, então isso é confuso para ela, então filme ele traz as ambiguidade de querer trazer todas as possibilidades.

(A entrevista foi interrompida rapidamente para a Cristine falar com uma pessoa a respeito de uma questão com a Ancine).

Retomando aqui, você falou antes dessa sua escolha consciente sobre a equipe, também a questão da sexualidade, eu gostaria de saber em relação, se você tem essa preocupação de inserir mulheres de forma afirmativa? Se isso seria um propósito seu também?

Cristiane Oliveira: Olha num primeiro momento, o que eu trabalhei até aqui, tem protagonismo feminino, e tem muitas personagens mulheres em volta também, acaba acontecendo naturalmente de eu me interessar pelo universo criativo de outras mulheres para construir essas histórias junto comigo, entende? então não é uma coisa de rechaçar o outro gênero de forma nenhuma, tipo não vou ter um homem de forma nenhuma nessa posição porque eu acho que homem não é capaz de falar sobre isso, não, eu acho que o homem é capaz de fazer, de tratar personagens femininas com competência, mas naturalmente eu me interesso pelo 258 imaginário de outras mulheres para estarem nesse processo junto comigo, é meio que o ovo ou a galinha, será que o que elas produziram, elas produziram por serem mulheres, entende? ou é o fato do objeto ser mulher que transforma a ação delas, não sei, eu acho que eu acabo achando nessas artistas mulheres uma ressonância de trabalhar em conjunto, por exemplo no Mulher do Pai a gente tinha o Gonzalo Delgado que seria o diretor de arte, e isso eu também é definido pelas relações de produção que se estabelecem, por exemplo, uma coprodução internacional ela precisa ter dois cabeças de equipe, do outro país, dentre os cabeças de equipe de possíveis a gente achou um trabalho do Gonzalo algo que nos interessava, dentre o universo de fotógrafos que trabalham no Brasil eu achei no trabalho da Heloísa Passos algo que me interessava para esse filme, então eu acho que independente do gênero, os talentos podem se conectar com temáticas de gênero, né? então eu achei em artistas de gêneros diversos o que eu precisava para esse filme, acabou que o Gonzalo teve que sair e a gente teve então mulher na fotografia, mulher na produção, mulher na direção e mulher na direção de arte também. então assim, acho que como afirmação toda atitude ela é importante, mas no processo da mulher do pai foi algo assim, que se deu de uma forma natural e não uma preocupação num primeiro momento, de afirmação.

A gente vê isso em outros filmes, por exemplo eu estou pesquisando a obra de outras mulheres, de outra cineastas e a gente percebe que por vezes é consciente, porque decidem dar visibilidade a história de mulheres e também dar oportunidade a mulher em questões técnicas, e em outros casos não, por exemplo, entrevistei a Laís Bodanzky e ela falou que nos primeiros projetos dela não ela não tinha preocupação, nem passava pela cabeça, e aí No último projeto dela isso já mudou, ela já fala de uma protagonista mulher, que questiona o papel da mulher, e começou a ter uma outra visão mais afirmativa mesmo…

Cristiane Oliveira: E eu te digo que me identifico com o que a Laís falou porque se no meu primeiro longa eu sempre fui moldada por acordos de coprodução que exigiam determinadas composições no segundo longa que eu tô finalizando agora eu já tive uma liberdade de ter escolhas mais conscientes e a gente trabalhou no sentido de ter uma equipe bem equilibrada assim.

Isso é uma coisa que eu to percebendo nas entrevistas, por exemplo, a Roberta, ela trabalhou com o primeiro longa dela que foi o Rânia, que é uma protagonista mulher e ela está agora finalizando agora uma série que é sobre meninas, que também tem essa mesma preocupação, não só a protagonista, mas inserir mulheres também na equipe. Aí eu queria aproveitar para saber te perguntar sobre a tua opinião em relação a isso cinema realizado por mulheres? Algumas teóricas defendem que existe um cinema de mulheres e para você, como cineasta, como vê esse termo cinema de mulheres?

Cristiane Oliveira: Eu acho que ele se refere a um efeito natural de um processo histórico de mulheres que eram muito colocados num determinado lugar então por exemplo, a mulher que é colocada nesse lugar da casa, para cuidadora, ou que não tem oportunidade no mercado de trabalho é natural que o universo dela gire muito muito em torno desse universo interno, e essas lutas, esses preconceitos, essas dificuldades que se enfrenta por questão de gênero isso 259 deixa marcas, deixa marcas no sentido de questões profundas assim, que fazem com que muitas vezes a gente na escrita ache uma voz pra trazer essas questões à tona. Acho que como temática isso impacta né? e ao mesmo tempo que eu acredito que as pessoas podem fazer qualquer tipo de cinema independente de sua identidade de gênero, para a gente não ficar só olhando mulher porque existe muito mais no meio disso, acho que já está num momento da gente se questionar o quanto a gente integra outras identidades de gênero no nosso trabalho, essa é a próxima questão.

Você falou que não passou por nenhum momento de discriminação situação de preconceito na filmagem do projeto mulher do pai mas teve algum outro momento que você sofreu algum tipo de preconceito passou por alguma situação pelo fato de ser mulher e estar na função de diretora ou líder?

Cristiane Oliveira: Eu acho que (pensativa ela buscou na memória...) Eu tive oportunidade de estar em sets em várias funções, então eu acho que eu vou falar diretora, mas eu já fui assistente de direção, produtora, então eu acho que o machismo ele se expressa muitas vezes de forma não direta, ele se expressa nas relações em atitudes que foram naturalizadas, então se eu nunca tive, eu nunca percebi algo direto, nomeado desta forma, coisas que eu sofri, talvez tenham de fundo essa causa, né? como por exemplo, situações em que a técnica parece que é um talento masculino, o expertise técnico assim, como se a mulher não conseguisse chegar lá também, né? Então eu já vi situações assim de pessoas super competentes que não são indicadas por seus colegas homens para trabalhos, parece que existe uma coisa ali da confiabilidade que para determinadas posições da área técnica que parece que o homem vai executar melhor, sendo que não, sendo que a gente sabe que independe do gênero, independe que qualquer pessoa execute qualquer coisa, depende de preparação só que essa preparação em geral depende de espaço, então essas ações afirmativas são importantes aí, assim, quando ela permite o espaço que as pessoas tenham formação, e outra coisa que atrapalha essa visão antiquada do sexo frágil, como se a mulher não aguentasse estar nessa posição de comando, de pressão, de decisão, de horas de trabalho a fio, sendo que é um conceito ultrapassado, não cabe mais, não cabe, então se a gente extrapolar outros problemas do fato de ser mulher, a gente pode citar várias outras coisas, mesmo a aparência, né? O vestuário, coisas que parecem que justificam posturas de fundo machista, assim, como tu é aceita ou não num determinado grupo, por causa da aparência, sendo que o homem pode estar lá com qualquer aparência ele é aceito num ambiente, já a mulher é mais valorizada que ela está num outro registro mais arrumado, ou às vezes esse outro registro mais arrumado pode soar um convite, né? Aqueles que são mais abusadores, né de romper um limite do respeito ao outro, essa culpabilidade do sujeito que na verdade é vítima, a gente quer condenar independente de qualquer coisa, e a maternidade, a maternidade é algo que a gente sente assim como as pessoas são afetadas por isso, a falta de apoio para a maternidade em diversos aspectos e poderia ser resolvido pra que isso não seja empecilho à mulher no mercado. Acho que têm várias soluções para tudo isso, mas são várias, são várias coisas que a gente percebe, a gente sente mesmo que nunca eu tenha sofrido uma agressão direta a mim, essas coisas que são naturalizadas elas estão aí, a gente sente.

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Isso a gente pode lembrar da ideologia da inferioridade… Uma outra pergunta que eu queria fazer é sobre o que você vê como o maior desafio? Pra você qual o maior problema que as cineastas enfrentam ao fazer seus filmes na indústria do cinema brasileira, que apresenta anda estatísticas tão baixas?

Cristiane Oliveira: Olha eu vou aqui de novo olhar pra mulher fora da caixinha do gênero dela, tá? Eu acho que a gente está em um momento de enfrentamento de diversas violências, violências externas que se colocam ao nosso trabalho, violências externas mil, mas falando especificamente do nosso trabalho, a gente vê uma criminalização da atividade artística, a gente sofre uma desvalorização da atividade artística, não só em termos de política, mas também de mercado, que violência não só nas faltas identitárias, mas também as construções de políticas para que a gente supere essas violências, então enfrentar uma violência é algo violento por si só, e acho que as novas gerações ela já surgem no momento de transformação mais acentuada, com relação à formação política, mas a mulher historicamente ela é educada para não incomodar, ela é educada para agradar, então a gente também trata de ser a conciliadora, então a mulher tem esse papel de conciliadora ao invés do papel da luta, né? Então a luta ela é vista como algo negativo, tipo “ai pense positivo, tenha paciência, te higieniza mentalmente, não, eu vou encontrar minha luz se eu ver resultado, então assim ir para a prática, ir para luta prática de pautas que são importantes pra que as coisa evoluam assim... Então esse lugar da luta, ele não é um lugar do vitimismo, é um lugar do conquistador, esse lugar do conquistador é que a mulher está ocupando que precisa ocupar cada vez mais, para que essas dificuldades de gênero também diminuam, então eu acho que tem uma carga ainda dentro dessa noção que não permite a raiva, sabe? E a raiva ela surge nesse enfrentamento, de injustiça, ela tem que ser vista como uma força transformadora, ela não pode ser algo para nos adoecer, claro, ela é uma força motriz que nos leva pra ação, que nos leva a resultados e ação, gera resultados e é isso que a gente busca, né? isso tem que ser valorizado. Eu acho que esse é um desafio da mulher de conseguir seguir trabalhando pela ampliação desses horizontes, da acessibilidade de todos que estão ao nosso redor, não falar só para os nossos pares, de falar para todos os envolvidos, é um trabalho de base, de conversa sobre direitos humanos, direitos da mulher, de conversa sobre direitos adquiridos, direitos que a gente perdeu e que a gente tá perdendo a cada dia, então tudo isso fragiliza as minorias sociais e daí surgem coisas mais sutis como o não reconhecimento das atividades, o trabalho, o valor econômico, o valor por si só como arte, então no momento que a gente enfrenta a precarização da ferramenta de fomento no nosso país, a gente entra no momento em que tentar mostrar os números que representam essa indústria, mostrar o número da empregabilidade, os números de bilheteria, vamos falar também do valor por si só que essa atividade tem, precisa ter educação para esse olhar da importância da cultura é o desafio que a gente tem. E não entrar nessa lógica, que às vezes é muito masculina, de chegar em resultado, em méritos, mas de olhar para uma lógica mais fluida assim, de valores mais humanos. Então eu acho que a mulher tem muito a colaborar nesse sentido, de tentar recuperar nas pessoas o valor da cultura como valor humano, necessário para que a gente exista de forma mais plena. E eu acho que uma luta que é da mulher, mas que deveria ser de todos, é o apoio à maternidade porque é claro que a mulher pode dividir os encargos com o pai, mas a gente tem um sistema de existência e paternidade que já traz uma discriminação de gênero, ele tem muito menos tempo de licença, então naturalmente a mulher 261 acaba desenvolvendo esse tempo, eles não podem compartilhar, alguns países hoje em dia já podem, as pessoas já podem compartilhar esse tempo de licença, estimulando a igualdade entre o homem e a mulher, isso propicia uma conexão diferente com filho né, pro pai ter essa possibilidade de estabelecer essa conexão que é tão importante, e isso gera reflexos no desenvolvimento da criança. Pensando também nas pessoas de média e baixa renda em geral, como é que uma mulher jovem entra no mercado se ela tem que cuidar do filho, ela deixa com alguém? Será que esse alguém é de confiança? Será que ela tem esse alguém? Então ter um apoio já é uma ajuda, então essa política de renda básica, que hoje é o bolsa família, deveria ser ampliado, a gente vê como isso impacta positivamente em outros países para que as pessoas se desenvolvam, assim como eu acho que deveria investir mais nas creches públicas porque com isso as mulheres poderiam entrar mais no mercado de trabalho. Além disso, eu acho que a nossa luta pela inclusão das mulheres, ela é fortalecida por outras frentes de luta pela inclusão, a gente tem que se solidarizar e fazer o que a gente puder para qualquer movimento que enfrente abusos de poder, eu acho que a gente tem que se unir contra qualquer forma de violência, qualquer abuso de poder, a vida das mulheres importa, mas também a vida dos indígenas importa, dos negros importa, então quanto mais gente conseguir ter uma vida plena, se elas conseguem achar seus trabalhos, espaço de expressão, todo mundo junto, e se elas não conseguem, que vida é essa? Se outros têm a sua vida censurada, a minha também pode ser, se outros têm a sua possibilidade de expressão tolhida, a minha também vai ser. Então acho que a gente tem que ter esse olhar de lutar pelos direitos de toda forma de existência, apesar de ser mulher.

E você vê que a questão é muito mais complexa, eu te perguntei o que que você acha que é o maior desafio, mas eu acho que é até difícil a gente pensar um só, são várias questões, né? Cristiane Oliveira: São várias questões que afetam o ser mulher…

E aí, a gente já está caminhando pro final, achei interessante que você falou que a gente Está passando por um período assim que a cultura está sendo atacada, sendo desvalorizada e o cinema a gente tá vendo agora até a questão da Cinemateca totalmente abandonada pelo governo, e isso causa uma certa frustração, imagina para quem tá principalmente atuando na indústria, na produção, isso gera uma certa indignação, E aí eu te pergunto diante disso tudo o que te move a continuar fazendo seus projetos?

Cristiane Oliveira: Eu acho que não tem saída, acho que a vontade de aprofundar os questionamentos, a vontade de transformar isso em imagem e som e que dialogar com os outros através disso é algo que brota assim, (risos…) Enquanto a gente tiver né, desconfortos, enquanto tiver esses sentimentos que ainda não sei lidar que me movem a querer investigar mais a respeito isso me move a seguir fazendo cinema, seguir querendo dialogar.

Atualmente você atua especificamente na produção né, realizando, dirigindo, fazendo projetos ou você também tem outra ocupação, outras atividades criativas? você dá aula?

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Cristiane Oliveira: Eu tô envolvida de ponta a ponta no processo de realização não só dos meus filmes, mas de outros autores também, então eu atuo no desenvolvimento de roteiros, mas também como assistente de direção, também como produtora em alguns projetos e na hora da distribuição eu acabo me envolvendo também, não sei ser aquela diretora, ou aquela produtora que simplesmente entrega para uma distribuidora fazer, eu estou lá sempre junto propondo eventos, propondo ações formativas, debates, propondo formas de levar o filme pro público e atuando na produção desses espaços de troca, que eu acho que a distribuição é o momento de não só da bilheteria, ele é o momento da troca, então eu fico produzindo muito esses espaços de troca sempre que eu posso.

Como é que você vê o segmento aí no Rio Grande do Sul Você acha que tem mais mulheres profissionais no mercado de cinema produzindo, dirigindo, atuando?

Cristiane Oliveira: Eu acho que o Rio Grande do Sul é um estado que sofre da falta de oportunidades de financiamento, a gente não tem uma política regular de financiamento de longas-metragens, por exemplo, o edital da Prefeitura, que financiou o meu primeiro curta, o Proarte chamava, não existe mais, inclusive tem longas que surgiram de um curta, financiados pelo Proarte, e isso super impacta assim, então existe todo um cinema do Rio Grande do Sul que não vem à tona, projetos de pessoas que eu sei que estão tentando levantar e não conseguem, e acho que as políticas que se criaram nos últimos anos até 2016, de cotas regionais, super colaboraram para que as possibilidades de financiamento fossem mais equilibradas no Brasil, então isso colabora um pouco para regiões como o Rio Grande do Sul, mas não é suficiente né, tem muita gente no Brasil todo querendo produzir, então acaba sendo um limitador e precisa ter as iniciativas locais de produção. Então eu acho que é um estado que nos últimos anos sofre muito com isso.

Cristiane que te agradeço pela entrevista e antes de encerrar eu gostaria de saber se há algo que você gostaria de falar e eu não te perguntei.

Cristiane Oliveira: Eu agradeço por essa oportunidade, eu acho que é super válido a gente seguir investigando o que é ser mulher e acho que essa denominação, eu torço que ela se amplie cada vez mais.

Agradeço mais uma vez e falo que quando estiver com a tese concluída vou encaminhar para ela...

Cristiane Oliveira: Legal, e quando eu vier meu próximo filme por aí eu te mando notícias também. ele se chama A primeira morte de Joana, ele está sendo produzido graças ao primeiro fundo Avon para diretoras mulheres que a gente ganhou. Já estamos finalizando, foi esse que eu te falei que teve uma equipe mais equilibrada, ele já foi rodado e está na fase de finalização. e esse não é só sobre uma mulher e sim uma família de mulheres, então a gente vai poder conversar ainda mais… (risos...)

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APÊNDICE F - ENTREVISTA COM A CINEASTA ADRIANA VASCONCELOS (DF)

A entrevista foi realizada no dia 21 de agosto de 2020 através do Google Meet com uma duração de 1:54 ao todo. Eu me apresentei e pedi para ela se apresentar também antes de iniciar as perguntas. Falei da minha formação e da minha mudança para Fortaleza e ela lembrou que já esteve em Canoa Quebrada para participar de um festival de curtas- metragens e comentou o quanto acha a cultura do Ceará rica. Também comentou rapidamente sobre as viagens que teve que fazer para realizar entrevistas durante o mestrado que ela fez e como foi trabalhoso, mas também muito proveitoso o processo, inclusive pelo fato de ter entrevistado o ator Rodrigo Santoro, destacando com um sorriso no rosto.

Eu queria que você falasse como começou sua carreira, seu interesse pelo cinema…

Adriana Vasconcelos: O meu histórico? Para ingressar no cinema? Quando entrei na faculdade eu também pensava em fazer jornalismo, até jornalismo político eu tinha muita vontade de fazer, nada a ver com cinema, mas assim, eu sempre fui apaixonada por cinema, sempre fui apaixonada por… tinha aqueles desejos, ai quero ser atriz também, e aí, até sou atriz profissional, tirei registro e tudo depois, mas acabou que o por detrás das câmeras vem sobressaindo, já há algum tempo, mais de uma década, aí eu entrei na universidade, mas eu não entrei pra jornalismo, na Universidade de Brasília, mas na mudança de curso, eu já tinha feito algumas matérias de cinema e eu vi que eu já tava completamente apaixonada pelo cinema, aí eu conheci cinema mesmo pra se fazer dentro da universidade, eu falo assim que eu sou, embora tivesse apaixonada pra mim era um mundo totalmente à parte, né? eu não venho de família de artistas, não venho de família que tem nenhuma entrada nesse mundo, então assim, quando eu conheci o cinema foi dentro da universidade e aí eu me apaixonei, pedi mudança de curso pra cinema e me formei em cinema. E fui estudar lá dentro, era muito apaixonada mesmo, assistia às vezes assim, na época eu pegava o carro e saia da universidade e assistia dois filmes seguidos, teve época da minha vida que eu assim todos os dias eu assistia um filme, pelo menos, todos os dias, e assistia no cinema mesmo, pelo menos umas quatro vezes pelo menos durante a semana eu ia, eu me lembro da primeira vez que eu fui sozinha no cinema, um dia eu tava em casa e, ainda não fazia cinema, e nunca tinha ido ao cinema assim sozinha, né? Aí eu falei, ah eu vou no cinema, mas eu pensei ah eu não vou chamar ninguém, amigo, namorado, não vou chamar ninguém, aí eu peguei o carro e fui, nossa foi uma experiência libertadora, eu tinha 18? 19, 19 anos, recém completados 19 anos (risos…) então assim eu entrei, eu realmente sou uma cria do cinema na universidade, foi lá na universidade que eu aprendi, foi lá que eu comecei a fazer, foi lá que eu conheci pessoas que faziam cinema, Eu acho que quando entrei na universidade eu nem parava para pensar como se fazia cinema, assim que tinha alguém por detrás sabe? Eu ouvia falar de um cineasta ou de outro, mas eram um mundo tão longe do meu, tão longe da minha realidade, Não conheci ninguém, então quando eu entrei que eu conheci o metiê, esse fazer, aí eu me apaixonei por fazer.

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E a tua produção? Depois que você entrou no curso? Como foi?

Adriana Vasconcelos: Pois é, aí eu entrei numa época muito complicada, que foi uma época que a universidade tinha pouquíssimos recursos, era o cinema em película ainda, então era muito caro, então não tinha experiência a gente fazia o curso cinema, mas não tinha, não fazia filme, quando a gente fazia algum trabalho era em vídeo, tanto é que o meu trabalho final de graduação eu fiz em vídeo porque não tinha dinheiro para pagar um filme em película e a universidade não tinha como me disponibilizar isso, e aí foi assim muito difícil porque assim, uma coisa é você está na universidade fazendo de graça o filme, outra coisa é quando você entra no mercado, e o mercado que tava indo assim muito pequeno, aí depois o Collor tinha destruído com tudo do cinema, (ela sorri e compara) mais ou menos o que Bolsonaro está fazendo agora, né? E aí eu peguei e falei assim: e agora? eu sou formada em cinema, mas eu não tenho como sobreviver disso. Aí na época acabei ficando meio mal e acabei entrando em outro curso, veio o desejo de ser atriz que já tinha lá atrás, aí eu prestei vestibular e fui fazer pra artes cênicas, na UnB também, e passei. Mesmo estando há 4 ou 5 anos sem ver aquelas matérias todas eu acabei passando, e aí eu falei ah! vou fazer, e comecei a fazer e emendei um curso no outro e adorava, eu era bem, tinha uma boa receptividade e tudo, mas assim tinha uma insatisfação, eu não tinha, por que são Mundos… apesar de ser arte, teatro e cinema é diferente, como televisão é diferente, entendeu? você acaba assim, tinha umas viagens, que eu teria de entrar no mundo do teatro e eu na minha cabeça tava muito fechada no mudo do cinema, foi bom, mas aquilo não tava me satisfazendo, aí eu peguei e tranquei a faculdade fui viajar, vendi meu carro, fui passar um tempo nos Estados Unidos, uns meses em Nova York, aí lá eu assisti bastante palestras, faculdades como aluno especial, convidada, sem nenhum vínculo, e aí eu ia em tudo, acho que foi meu primeiro contato com um grande festival de cinema foi lá, (ela tenta lembrar em detalhes desse fato) foi o New York Film Festival, e fui e via tudo, todos os cineastas assim, pessoas famosas, mas aí voltei pro Brasil em seguida, aí eu falei ah isso que eu quero, Aí voltei do Brasil numa época que eu cheguei logo em seguida estavam fazendo uns cursos, inclusive com a Dácia, que você falou, com a Suzana Amaral que faleceu a pouco tempo, e aí eu fiz o curso com a Suzana, nossa, a Suzana foi uma ótima professora, assim a gente teve uma relação muito forte durante o curso, porque era sempre eu que dava carona para ela, levava no hotel então a gente conversava, ela me ensinava, me falava muita coisa, foi muito legal, e aí eu fiz o curso e trabalhei em alguns filmes de pessoas do curso, depois fiquei um tempo trabalhando assim em alguns filmes, mas assim nunca dava para mim sobreviver, se fosse pagar aluguel, pagar essas coisas, aí nisso resolvi eu falei a cara eu vou para São Paulo, uma amiga minha Mudou para São Paulo e falou assim: estou indo para São Paulo vamos dividir apartamento vem para cá, eu fui chegando lá, eu falei ah eu vou fazer um curso de interpretação, aí eu entrei na Fátima Toledo, que ela tem um estúdio, você conhece a Fátima Toledo, né? que é preparadora de atores, hoje em dia talvez tenha outras, mas na época era a mais famosa do Brasil, ela fez do Fernando Meirelles, aquele do Zé Pequeno, Cidade de Deus, então ela é muito conhecida, aí eu já sabia dela né por ela ser uma preparadora de atores que estava muito em evidência, aí eu falei ah vou fazer o curso dela, porque ainda tinha aquela coisa de eu não já que não estou conseguindo trabalhar como cineasta, quem sabe como atriz, né? E aí fui foi muito bom, tanto para mim como diretora como para esse lado, aí fiquei um tempo em São Paulo, depois resolvi para o Rio, fiquei um tempo no Rio, fiz alguns trabalhos assim, como 265 freelancer, como dirigir algum trabalho pro canal Brasil, eu me lembro que eu dirigi retratos brasileiros pro canal Brasil, fiz alguns freelas, fiz outros cursos com outros profissionais, E nesse meio tempo ficava indo e voltando para Brasília, nisso acabou que um projeto meu acabou ganhando um edital aqui, aí o dinheiro não dava, não era todo o dinheiro que a gente tinha pedido, que eu ganhei e ia fazer com a produtora de uma amigo na época, Em película então assim não dava para pagar uma produtora, alguém para poder produzir e eu vir só dirigir, né? e eu tava naquele dilema de viver de freelancer, e não sei o que… aí eu falei vou ter que voltar, mas fiquei muito na dúvida porque foi até um momento assim, eu cheguei aqui e acabei de receber uma mensagem da globo para fazer um papel em uma novela, uma cena só, mas se eu tivesse lá talvez a coisa vingasse...mas aí o cara do casting falou ah mas você já voltou pra Brasília, e tudo isso... Aí quando eu voltei para Brasília eu fui ficando ficando, fazer o filme, depois pós-produção que uma coisa vai levando a outra, eu fui também mexendo com política cinematográfica, entrando na associação, duas vezes eu fui da diretoria da ABCV, hoje em dia eu faço parte da ABCV e da ABPA e do Cora, que é um coletivo de mulheres que a gente fez, até a gente quem criou Cora a gente meio que, ele se dispersou assim dentro do que a gente queria e a gente acabou voltando ao que era na origem, que era eu, Cibele Amaral que até está com um filme agora, que está em Gramado, e a gente montou o Cora Origens, que a gente falou, não esse a gente não vai deixar se desvirtuar, aí eu acabei ficando e fiz o meu primeiro curta, aí fiz o segundo curta, e eu ganhei meu primeiro troféu Candango, que foi esse que me fez voltar para Brasília, que nós rodamos em 16mm, Só Sofia, um filme em preto e branco, é um filme baseado uma poesia da poetisa Florbela Espanca, poetisa portuguesa, depois eu posso te passar meu currículo pra você, e aí depois que terminou o Só Sofia eu tive a ideia de fazer o Senhoras, que foi um filme que foi muito, viajou por vários lugares, e esse que foi pra Canoa Quebrada, que viajou pra vários festivais e fora do Brasil, passou em Cuba, festival de Havana, passou por Los Angeles, chegou a passar até no Timor Leste, passou em vários festivais, e assim eu ganhei melhor prêmio por ele e tudo, então foi um filme que eu tenho muito carinho e eu acho que foi... o primeiro foi o que realmente me fez querer seguir a direção e o Senhoras foi o que me fez sentir que eu tava no lugar certo, me fez sentir senhora de mim naquele momento e depois, aí quando terminou o Senhoras eu falei: Porque assim como eu não venho de família de artistas e como não sou rica, eu não tinha como bancar meu longa, e assim teve uma época que os editais do Minc, quando existia o Minc, os editais de BO, porque o caminho pra quem não tem é esse, não tem outro, aqui no Brasil não, até gostaria que tivesse, mas não tem, porque não tem apoio, as grandes empresas não bancam, ainda mais um trabalho que tem um viés artístico, tudo é arte, né? Mas artístico no sentido de ser um experimento, menos direcionado para o comercial. Aí tinha uma coisa nos editais que era assim: você tinha que ter três curtas pra concorrer a um longa, então assim eu até brinco que eu sou de uma geração que você precisava ter três curtas em película pra poder concorrer ao direito de fazer um longa, aí acabou que eu entrei num edital, ganhei melhor, melhor… aí eu tive uma ideia, só que a minha ideia não cabia no curta, do filme Mãe, né? Era um longa, aí eu entrei no edital de desenvolvimento de roteiros do Minc, inclusive eu fui a primeira pessoa do Centro-Oeste a ganhar para roteiristas estreantes, então eu fiz o roteiro, depois eu fiz o desenvolvimento de projetos, e fui trabalhando em algumas outras coisas, aí quando eu ganhei já não tinha mais essa exigência, porque não era mais filme em película, aí eu entrei no edital aqui de Brasília com a produtora de um amigo e aí a gente ganhou pra fazer o Mãe, que na verdade ele se chamava 3/4, porque ele começou assim: Maternidade, 266 depois 3/4 e depois virou Mãe, que eu até hoje eu me arrependo desse título, se eu fosse voltar atrás eu daria outro título pro filme, eu acho que eu na época eu tava muito na coisa do 3/4 na cabeça, então eu, e o filme ele é muito mãe, muito maternal, tanto é que se repete em muitos momentos do filme essa palavra, aí eu deixei, mas eu acho que hoje, eu daria um outro título, não sei.

E por que 3/4?

Adriana Vasconcelos: Porque era maternidade em 3/4 , 3/4 porque era como um retrato em 3/4, aquele retrato que a gente não tem Photoshop, ou seja, era a realidade mesmo, maternidade real, e tinha uma alusão também aos personagens, porque eram três mães em uma família de quatro mulheres, e assim, eu queria falar de maternidade porque era um momento da minha vida que eu tava assim: eu quero ou não quero ter filhos, sabe? E aí surgiu a ideia de tratar no filme de uma família em que as três mulheres do filme eram mães e que cada uma lidava com a maternidade de uma forma diferente, e aí teve, surgiu a ideia do enredo que é trágico porque eu queria, assim eu parti do princípio de que nem toda mulher deve ser mãe e muitas que são não deveriam ter sido porque são péssimas mães, isso é uma observação minha, porque eu acho realmente que tem muita gente que é péssima mãe, entendeu? e que assumiu a maternidade mais como uma obrigação social, tipo assim para cumprir uma obrigação social, que muitas vezes não é nem uma função que tem a ver com ela, entendeu? Então eu vi amigas chegarem aos 30 e poucos anos e se casarem com o primeiro cara que aparecia só para ter um filho, sabe? Aquele desespero, ai que eu tenho que ter filho, aí casa com um cara que você diz assim: cara essa menina nem olharia para esse cara há 10 anos atrás, mas agora tá casando com ele, ou então meninas que saiam da universidade já casava, e ah porque tinha de casar, porque tinha de ter filho, tá entendendo? E depois chegava aos 40 e falava: gente isso não é nada do que eu queria. Então eu acho que a mulher tem direito de escolher se ela quer ser mãe ela não quer ser mãe, e por observação eu já tinha visto muito isso, tem muita mulher que na minha opinião é péssima mãe. Eu quis retratar isso no filme então eu montei, um personagem que é uma mulher que é uma péssima mãe, a Madalena, que você vê que ela foi uma péssima mãe, mas no entanto, assim é um personagem que eu gosto muito porque ela é uma excelente avó e ela é a mãe da neta, tudo que ela não foi para filha ela foi para neta, ela exerceu a maternidade com a neta, outra que é o personagem da Sônia, ela queria ser mãe, mas ela não conseguiu, e aí não só não conseguiu pela tragédia que ela que acontece na vida dela, mas porque ela deixou de certa forma, porque eu acho que assim, essas coisas no meu filme eu falo do incesto, eu falo do abuso, né? então, eu falo de temas fortes, e assim eu não acho que uma mulher deixa isso acontecer, ela tem dificuldade… (ela pensa um pouco pra dizer as palavras certas pra expressar o que ela defende...) Ela não quer ver, tá na frente dela, mas é tão doido que ela não quer ver, e aí a coisa acontece, a criança não tem a quem recorrer, e então assim, tinha uma parcela de culpa da mãe que não quer ver, entendeu? então assim, não dá para ser... pra isentar a mãe, a gente isenta a criança, mas não a mãe, não dá pra isentar a mãe, sabe? porque é muito difícil, a não ser que tenha sido uma única vez, é muito difícil uma mulher não ter visto, a mulher volta muitas vezes por não ver, quando é no caso de agora que aconteceu recentemente com esse caso da criança, também não tem nem mãe, ela tem só avó, (ela se refere ao caso da menina de 10 aos que foi abusada pelo tio e foi engravidada e o aborto gerou polêmica entre grupos 267 religiosos que queriam impedir o aborto...) a vó é mais difícil, agora a mãe, que é mais nova, que tudo, e dentro da mesma casa, não é uma pessoa que apareceu um dia só, sabe? Uma pessoa que tá lá presente o tempo todo, então assim, você vê isso, então, eu acho que ela quis ser uma excelente mãe, mas ela não conseguiu, não teve talvez o distanciamento de afastar o cara, para proteger a filha, né? E tanto é que muita gente assiste esse filme e fala assim porque que ela, ela pede perdão para filha, ela não tem culpa… cada um tem sua maneira de ver, na minha opinião ela tem uma parcela de culpa, não do crime, mas de não ter protegido a filha, , não entendi proteger a filha tem que enxergar bem proteger, é complicado, mas é uma missão eu acho que é uma missão muito difícil, (percebo que ela tem uma nítida preocupação sobre esse tema da maternidade durante a entrevista…) E é uma missão que você tem que ter vários olhos para todos os lados - principalmente mãe de menina… eu complemento – (ela prossegue...) mas até mãe de menino porque você vê tantos abusos de meninos também. Então eu acho que você tem que ter essa cumplicidade, não sei se é porque eu tive e tenho uma mãe que sempre foi tão cuidadosa, meu pai também maravilhoso, mas minha mãe foi sempre tão cuidadosa, eles separaram há alguns anos, há dez anos, mas como pais os dois sempre foram maravilhosos, então assim que acho que é uma tarefa muito difícil, sabe? E muito nobre, então eu acho que as pessoas têm que pensar muito antes de aceitá-la (nesse momento ela ri…) e de escolhê-la. Voltando ao filme… e tem a outra que é uma mãe que é a Júlia, que é uma mãe que tinha tudo pra ser uma péssima mãe, mas tem a maternidade dentro dela, e eu até ambientei esse filme numa classe social mais baixa porque senão não justificaria a Júlia ter esse filho, ela, teria tirado o filho, né? teriam tirado, mas assim não a classe mais baixa já tem, você não viu essa situação que teve recentemente no Brasil, é muito difícil né? quando vê já deixa a pessoa tendo filho, só que no caso dela ela se tornou uma mãe, tudo aquilo que ela gostaria que a mãe dela fosse para ela, então eu quis escolher tipos diferentes de mães para exemplificar a maternidade.

Certo, eu ia te fazer essa pergunta de como surgiu a ideia do filme, e você foi me falando…

Adriana Vasconcelos: E paralelamente a isso, e nesse processo, quando eu tava fazendo esse filme, de produção de conseguir apoio, isso tudo… Eu ganhei um edital para fazer um outro filme que se chama Fragmentos, que também viajou bastante, foi pra França, até me deu melhor roteiro no festival da França, Estados Unidos e tudo, e é um filme que acabou que ele na verdade, ele é o passado da Sônia e da Madalena, explica um pouco da relação delas, só que acabou que virou uma outra história, mas tanto é que o personagem da Sônia é a menininha que é protagonista do filme, mostra a separação dos pais, e como que ela se dava mal com a mãe desde o início, porque uma pessoa me perguntou assim, roteiro perguntou, ah mas eu tô querendo entender mais essa relação porque que é tão difícil essa relação da Madalena com a Sônia, ai eu falei assim: olha eu não quero fazer flashback, eu acho que não precisa explicar muito isso, eu acho que em pequenos detalhes já dá para ver que foi uma relação conflituosa, em pequenos comentários que a mãe fala assim, ah ela era barraqueira, ela sempre deu trabalho, ou então quando a Sônia fala assim: “até parece que eu não tive a quem puxar”, e fala isso bêbada, acho que não precisa explicar tudo, o público não é burro, né? Você não precisa mastigar as coisas, botar um flashback, mostrar as duas brigando, acho que não tem essa necessidade, talvez para algumas pessoas tenham, mas para mim não, eu optei por não dizer muita coisa e deixar que as pessoas interpretassem. 268

E foi quanto tempo de produção do filme?

Adriana Vasconcelos: Nossa foi muito demorado, porque eu tive a ideia, aí ganhei o edital de desenvolvimento, aí fui desenvolver, em paralelo a isso fui trabalhar, olha foram uns quatro anos até eu rodar, só que o dinheiro para finalizar eu não tinha, isso foi uma coisa que eu aprendi: nunca fazer um filme sem ter todo o dinheiro porque isso foi o grande aprendizado desse filme, ou um deles, porque a gente sempre aprende, né? Só fazer o filme com o dinheiro do início, meio e fim, e eu não tinha o dinheiro para finalizar então eu entrei num edital de finalização e ganhei, só que o dinheiro demorou um ano e tanto para entrar na minha conta, aí quando eu fui terminar o filme foi em 2018, eu rodei em 2015 aí entrei no edital em 2016 e conseguiu finalizar em 2018, (ela diz isso com muita indignação…) foi muito complicado, foi meio traumático até (diz isso e sorri).

Eu até comentei com você no e-mail que até fiquei um pouco impactada com o filme. Eu acho que você consegue trabalhar muito bem o gênero drama, né? A gente prende a atenção querendo saber o que vai acontecer… Eu até percebi uma coisa, já assisti outros filmes da pesquisa com meu marido e percebi que nesse filme Mãe, ele assistiu até o final comigo e nos outros filmes não, ele sempre saia um pouco, e não queria assistir...

Adriana Vasconcelos: Uma das coisas que me deixou muito feliz com esse filme, ele não passou em vários lugares, né? E agora com esse ano perdido, está sendo um ano perdido, né? Foi a reação da plateia, por exemplo, quando ele passou no Festival de Brasília, que eu até ganhei melhor direção na mostra Brasília, que eu inscrevi ele e ele não tava completamente acabado, e ele não entrou em 2018, aí eu não escrevi ele na mostra Brasília, como ele não tava totalmente finalizado aí, eu nem queria escrever ele na mostra principal, mas aí o meu amigo que é coprodutor e outro amigo e todo mundo ficou na minha cabeça, eu fui, devia ter ido pela minha intuição que talvez ele tivesse entrado pela mostra principal, mas como ele não entrou eu inscrevi no outro ano a versão finalizada, aí ele entrou na mostra Brasília e eu ganhei melhor direção e foi uma coisa que me deixou muito feliz, estava concorrendo com o André de Oliveira, o cineasta Gustavo Galvão, pessoas assim que eu admiro o trabalho, e aí ele passou e eu falei assim: “Gente, esse povo não vai gostar desse filme”, é sempre um medo, né? que você tem, porque é um filho, né? E você não sabe como é que as pessoas vão reagir, e tava aquela sala lotada do cinema Brasília que é enorme, todo mundo ficou calado o filme inteiro, e é um filme eu tento por, eu cortei muita coisa dele, que eu filmei e depois eu cortei porque eu pensei isso não dá, que eu queria dar um ritmo, uma tensão, um ritmo fosse tenso o filme inteiro, acho que eu consegui nisso, e aí tinham algumas cenas que tiravam essa tensão, então eu fui cortando na montagem, e aí eu falei eu quero ver como o público reage, e o público também entrou na tensão, e aquilo foi muito legal de ver, e depois eu levei o filme pro Nordeste, e na mesma semana ele foi exibido no Piauí, no Encontro Nacional de cinema e vídeo, que é um festival bem conhecido, mas é um outro público, é um público menor, muito jovem. Em Brasília tem também um público muito jovem, mas é um público já mais experiente, de vários festivais, e aí eu falei cara esse público vai odiar esse filme, porque os outros filmes eram assim, ah esqueci o nome do filme, mas o filme anterior tinha sido um filme que acabado de ganhar Gramado, que tem a Marcélia Cartaxo, que faz uma bailarina… Ah eu sei que é daqui do Ceará.. 269 exatamente, um era aquele, outro era do Sul que era um do Zeca Brito com a Cléo Pires, era a história que tinha Brizola, e os outros eram documentários, as 3 ficções eram essas, eu pensei o povo não vai gostar, sabe? viu a Cléo Pires lá no filme de época, viu a Marcélia Cartaxo, É o Pacarrete, né? lembro… ela confirma, é o Pacarrete, que tem um drama, mas que tem uma leveza também, né? Aí pensei esse povo vai odiar meu filme, e aí eu fiquei impressionada, porque o pessoal não saía, e um amigo que tava sentado bem atrás, ele falou para mim: “Adriana eu observei que no filme inteiro só duas pessoas saíram e depois voltaram pro filme, devem ter ido no banheiro e voltaram”. E até me contaram que foi tanto em Brasília como no Piauí que o filme teve boas, eu senti que foi bem recebido pelo público, boa votação do público, não ganhou, que eu não esperava que ia ganhar, seria até uma surpresa, mas teve uma boa votação então isso foi muito interessante, porque um filme que você fica pensando como que o público vai receber esse filme, e são públicos distintos, né? de repente aceitam bem, né?

Uma pergunta importante que preciso fazer é se você tem a preocupação, como é o teu olhar sobre a inserção de mulheres na produção? tanto como protagonistas como na equipe por trás das câmeras…

Adriana Vasconcelos: Olha, eu tenho essa preocupação sim, e eu tenho até um amigo que trabalhou no filme e ele brinca assim: que filme da Adriana, homem entra por cota (risos) o que não é verdade, porque tem uma equipe bem masculina, a princípio, seria uma diretora de fotografia que trabalhou no meu curta, mas a gente se desentendeu um pouco e eu achei que no longa que seria um trabalho mais demorado não seria interessante, não seria legal pra gente, porque você tem que ter muita afinidade com um diretor de fotografia, e acabou que entrou um diretor que eu nunca tinha trabalhado antes, você sempre tem umas briguinhas com o diretor de fotografia, mas a gente foi muito bem e um completou o olhar do outro, um entendeu o outro, e eu acho que teve uma boa relação ele era muito amigo do meu coprodutor, e foi uma boa indicação, é... (ela fica pensativa...) tem um coprodutor o Ricardo Movitis, e ele é um artista multifacetado, ele produz música, produz vídeo, faz quadros lindos, ele é diretor de arte, então ele coassinou a direção de arte nesse filme, ele coassinou a direção musical com o Bruno Wambier, que é do Natiruts, que fizeram um trabalho bem legal assim, mas assim, do meu lado, eu fazia questão que quem tivesse era a Marcela Tão, que formou comigo, a gente se formou juntas, e ela só não esteve comigo nos trabalhos que ela não podia, no primeiro curta ela não podia porque ela não estava nem no Brasil, no segundo eu não me lembro se ela teve, já no outro ela esteve, então assim ela é minha continuísta e ela não assina a assistência de direção, mas ela tava lá comigo e com o assistente o tempo todo, a figurinista, a Nadine, é uma pessoa que eu já tinha trabalhado em outro filme de um amigo e eu chamei ela para trabalhar nesse, é… deixa eu ver agora… (ela fica pensativa...) ia ter uma diretora de fotografia, mas acabou que não teve e maquiadora, eu sempre tinha trabalhado com maquiador homem e nesse eu chamei uma maquiadora mulher que fez um trabalho muito legal, inclusive naquela coisa de trabalhar também com os efeitos, de sangue, isso e aquilo no filme e as protagonistas, porque o elenco você vê assim que são três protagonistas, tem a protagonista principal que é a Sônia, mas as outras duas são coprotagonistas também, que formam a família, tem as outras mulheres lá, Carmem Manfredini, não sei se você viu que faz a Gislene, amiga da Sônia, a Carmem ela é irmã do Renato Russo e é a estreia dela como atriz, a Carmem é minha amiga há 30 anos, a 270 gente se conhece há muito tempo, e eu criei o personagem para a Carmem, o personagem da Gislene, a Carmem nunca tinha atuado, assim, já tinha feito uma outra coisinha, mas nunca tinha atuado em um filme, só que ela canta, né? aí eu precisava de um atriz que cantasse ou uma cantora que atuasse. (Nesse momento da entrevista minha filha aparece e a Adriana pergunta se é a minha filha, eu começo a sorrir com a situação e apresento a minha filha para ela…) Aí você vê que são coadjuvantes os homens do filme, né? São todos coadjuvantes, e assim eu tenho sim essa preocupação, eu acho que até gostaria de trazer mais mulheres, mas também acho que não pode ser, por exemplo, eu tenho pessoas que eu conheço, agora algumas mulheres, que pensam assim: ah eu só posso trabalhar com mulher. Eu também não tenho essa mentalidade, eu não sou dessa geração feminista, minha geração feminista é outra (risos) porque assim eu tenho até uma amiga que eu conheci há pouco tempo, ficamos muito amigas, e ela brincando que ela não entende, e ela é também cineasta, e tava numa reunião com várias mulheres e disse que uma falou assim, ah eu agora consegui o que eu sempre sonhei: eu agora só trabalho com mulheres, e você Fabi? E a Fabi respondeu eu não eu trabalho com homens e com mulheres, eu não quero trabalhar só com mulheres não… risos… e eu brinquei com a Fabi que achava que a gente era da geração passada porque essa geração nova só quer trabalhar com mulher e na verdade a gente quer trabalhar com homem e com mulher, com gente competente, mas eu quero abrir espaço para mulher entendeu? E quero abrir espaço para mulheres de todas as idades porque assim uma coisa que me angustiam pouco é que talvez com essa nova geração feminista, tão forte que tá surgindo, que tem vários méritos, mas tem uma coisa, se a pessoa é mais velha e defende uma bandeira muito sua bandeira, que bom ela tá no nosso grupinho, mas se ela é mais velha e só faz o trabalho dela, ela é meio excluída. Então até que ponto o empoderamento atinge todo mundo? Se não atingir todo mundo então não é o empoderamento feminino, é uma empoderamento classista, no sentido que classifica a pessoa, eu até por coincidência, na semana passada eu li uma entrevista da Fafá de Belém, que é mais velha tudo, mas é uma mulher muito exuberante e de personalidade muito forte, e ela falando que ela foi fazer essas lives e a filha dela que, não sei se a filha empresária dela, sei que ela foi oferecer as lives e ninguém aceitava patrocinar, porque essas lives todas são patrocinados e ninguém queria patrocinar a Fafá, e aí ela falou não, essa entrevista ela tá disponível no O Globo depois você pode ver se você quiser você acha, aí ela falou assim que eu tenho 40 anos de carreira, eu banco, eu não vou ficar mendigando para ninguém fazer o meu show não, eu vou fazer, e aí ela disse que quando anunciou nas redes sociais dela a Live dela sem apoio nenhum, aí disse que ligaram para ela acho que foi a Magazine Luiza, se não me engano, aí disse que um diretor ligou e falou assim, mas como que a gente não está na Live da Fafá de Belém? aí ela pensou agora foi que eu entendi porque não chegou nos diretores, não chegou porque foi o pessoal do marketing que são muito jovens, então eles já cortam a cabeça daquela pessoa, tipo assim: “Ah não, Fafá de Belém é uma velha e desinteressante, né?” Então, ela falou assim que cortaram a cabeça dela antes dela chegar, e ela percebeu que era do pessoal mais novo, que o pessoal mais velho da direção da empresa que se interessaram e telefonaram, mas não permitiram que chegasse até eles, sabe? Então isso me preocupou um pouco, eu não sou graças a Deus, quer dizer ainda não sou tão velha, mas eu também não sou dessa geração de 20 e poucos anos, 30 anos que tá aí, né? então eu me questiono até que ponto assim, é importante a inclusão da mulher como eu te falei, mas eu quero trabalhar com homens também e eu quero trabalhar com mulheres de todas as idades, sabe? Eu não quero ter que de repente falar assim, ah eu sou essa 271 pessoa tal só para poder agradar um grupinho, eu acho que o Brasil é um país que tá muito, o mundo tá muito polarizado, o Brasil está extremado, e aí acaba prejudicando as pessoas, e a gente quando abre o espaço a gente tem que abrir a visão e abrir a visão é abrir para todos os lados porque de repente se pode ter uma pessoa que... eu tava vendo uma live dia desses, de uma mulher que trabalha na produtora, se não me engano do Rodrigo Teixeira, e ela falando que tava vendo um curso, e de repente uma mulher lá que tinha 50 e poucos anos que estava aposentada e resolveu agora ser roteirista, e eu pensei: que legal porque essa pessoa pode agora de repente trazer todo um repertório, uma experiência, uma bagagem que vai estar no trabalho dela, se o outro entra com a jovialidade, o outro tem que entrar também com a experiência, eu acho que tudo isso tem que ser ponderado.

Interrompemos a entrevista para ela pegar água...

A gente tava falando nessa questão das mulheres na produção e agora eu queria tratar de outra questão que é do machismo, como é que você percebe isso dentro do cinema brasileiro e se você passou por alguma situação nesses anos de atuação se teve alguma situação que te marcou que você queira falar...

Adriana Vasconcelos: Eu passei por muitas situações, ao longo, assim até na faculdade, sempre tive ao longo da carreira, até de assédio, de tudo eu passei, então assim não teve, é difícil falar até uma, assim eu não acho que tenha tido uma grave ao ponto de eu falar assim, talvez a situação mais grave que tenha tido é de um diretor que foi bem incisivo no assédio dele, mas eu optei por não trabalhar com ele. Perdi o trabalho, mas assim, isso é uma coisa que a mulher passa, mas assim eu nunca fui, não me forçou, tentou me forçar, mas não chegamos aos finalmentes, né? É complicado você lidar, porque você falou assim essa questão de direção de ficção, eu venho de uma geração que agora hoje em dia tem mais mulheres fazendo ficção, mas antes mulher só fazia documentário, era impressionante a coisa mais rara, tem uma Gilda Abreu e algumas outras cineastas antigas que faziam, uma Ana Carolina, mas eram muito poucas, as mulheres sempre ficam na produção, na assistência de direção e na direção de documentário, eu nem falo mal porque por exemplo, agora eu tô com um projeto de documentário que eu quero fazer e agora com essa pandemia eu acho até melhor fazer documentário do que ficção, porque eu vou lidar com menos pessoas, então assim vai ser mais fácil eu ter uma equipe do que se fosse ficção… o edital que eu ganhei para fazer esse filme Mãe só eu que tinha de mulher. No outro ano depois só uma mulher também ganhou, então sempre você é o bicho estranho e na equipe você tem que ser uma pessoa assim, eu não sou uma pessoa muito calma, tem gente que vai mais com jeitinho, então às vezes me irrita e muitas vezes você tem que gritar, sabe? para ser ouvida, é impressionante, e às vezes você ver comentários assim machistas mesmo, depois você fica sabendo através de amigos de um outra pessoa às vezes até mulheres mesmo que você diz assim gente que coisa machista, então eu sofri em todos os meus trabalhos isso e sofri em meus trabalhos pessoais, deixei de fazer trabalho para não conviver com assédio, muitas vezes não percebi que era sério só fui perceber depois quando era mais novinha só percebi quando tinha o distanciamento para olhar e ainda acho que é difícil e eu acho assim que o machismo está na própria seleção, sabe? Por exemplo eu sei que… Você me disse que gostou desse filme, chegou ao meu ouvido comentários de 272 mulheres que falaram assim: “ah mas o filme Mãe que tem personagens assim tão…” eu não quis criar personagens que levantassem bandeiras, eu quis criar personagens reais nesse filme e mulheres reais muitas vezes quando briga com outra você xinga, muitas vezes você agride e assim por uma coisa cultural que tem que ser diminuída e até se acabar, mas que acontece muitas vezes você ver uma mulher agredindo a outra e fala assim a você não conseguiu segurar seu homem, lembra que tem uma frase que ela fala assim? Então é um comentário machista, é uma mulher agredindo a outra por causa de um homem, mas isso é a realidade, então eu não criei personagens que não fossem reais, mas tem algumas pessoas que acho que não entenderam o filme. Eu não quero falar mal de nenhum trabalho, mas por exemplo, eu assisti um filme, não foi um filme, mas um projeto há pouco tempo que eu falei gente isso é uma fala de lacração atrás de uma outra fala de lacração, sabe? Era uma colagem de falas de lacração, então assim aquilo não eram personagens reais, você pode até achar uma pessoa assim, mas de um modo geral se você for para a periferia você não vai ver esse povo e mesmo em classe média, classe média alta você não vai ver isso, esse pessoal lacrando o tempo todo, com falas feministas tão assertivas. Então eu acho que quando você se propõe a fazer um trabalho eu queria fazer personagens reais, aí de repente você saber essa fala é uma fala machista, mas é uma fala machista que é dita pelas pessoas, e eu não tô defendendo a fala, muito pelo contrário, eu quero que a própria situação, que as pessoas olhem para aquela cena e falem gente que cena patética, é patético falar isso… (Podem até se revoltar com isso, eu completo.) Exato e que elas vejam o quão patético é, mas acho que eu trabalho com essa mentalidade, eu não quero trabalhar com frases lacradoras, eu quero trabalhar com frases realistas e que esse realismo choque. o roteiro desse filme é meu, o argumento é meu, a ideia minha, mas eu chamei um amigo, meu melhor amigo para escrever o roteiro comigo, ele é roteirista e meu melhor amigo, então a gente é muito íntima e eu brincava com ele, tem uma cena que a personagem da Madalena chamava, falava assim sai daqui sua filha da puta, para filha dela, aí a gente fazendo a cena a gente começava a rir, e o meu amigo falava: gente ela é muito patética porque ela não tá vendo que ela tá chamando a si mesma de puta, aí a gente começava a rir porque é patético, e são coisas que estão enraizadas na sociedade, então eu acho que ao mostrar isso torna uma situação dramática e choca, mas você não deixa de ver o ridículo no meio daquele drama, você não deixa de ver o quanto que é machista, o tanto que é mal para mulher, faz mal para cada uma quanto que cada uma se agride, e usando de comentários sobre homens para agredir uma a outra, qual a necessidade disso? Você vê que é só por fraqueza mesmo. Agora por exemplo, uma coisa que eu vi muito legal um debate sobre esse meu filme, teve um homem que virou para mim e falou assim seu filme é tão feminino, forte, com personagens femininas tão fortes e ao mesmo tempo tem um drama que o responsável é um homem, e no entanto você criou um personagem masculino tão delicado, que é o personagem do Bento, e eu falei: nossa que bom que você viu isso, que eu pensei que muita gente não fosse ver, que eu não tô fazendo filme contra homem, eu tô fazendo um filme que tem um drama, uma tragédia que tem um homem, mas nem todos os homens são assim, tem homens que são muito legais, por isso que você pode trabalhar com eles também.

Mas isso tem a ver com aquela visão da dicotomia, que quer dividir, que também está dentro de um olhar muito machista… De achar que a mulher tem que agir de uma forma 273 o homem de outra forma, como se fossem caixinhas, né? que a gente tem que superar e que é muito difícil. Adriana Vasconcelos: Exatamente.

Agora falando dessa questão do feminino, você acha, na sua percepção que existe um cinema de mulheres? Como é que você pensa sobre isso?

Adriana Vasconcelos: Olha, já teve época que eu achei que era um cinema só de mulheres, hoje tem filmes que eu acho assim que poderiam, filmes de homens né, ele é mais feminino do que um outro filme que tenha se dirigido por uma mulher, e tem filmes que são, você pega assim, aquele filme que ganhou o Oscar daquela mulher, Guerra ao terror, é um filme muito masculino se você for ver, não tem uma pegada feminina ali, entendeu? Aí de repente você pega um Céu de Suely, do Karim Aïnouz, nossa é um filme muito feminino. (A vida invisível, completo, esse último filme dele também, complemento…) eu não assisti, eu amo o Karim, mas esse eu ainda não assisti, aliás eu entrevistei ele na minha dissertação do mestrado, mas acabou que eu não consegui assistir esse filme, eu fico adiando e agora não pode ir no cinema, né? Mas qualquer filme dele, é muito delicado, né? Agora, existe um cinema feminino? existe, eu acho que existe, eu acho que não existe uma restrição de que um filme só pode ser dirigido por mulher ou só pode ser dirigido por um homem, não, porque existem diferentes mulheres, existe uma mulher capaz de dirigir Guerra ao Terror, que você vai falar nossa que filme super bem dirigido e não tem nenhum traço de feminino amigo, que você pelo menos vê assim escancarado, e outro filme assim super feminino que você diz assim nossa esse filme foi dirigido por uma mulher e não foi, da mesma forma que uma pessoa heterossexual pode dirigir um filme sobre LGBT ou uma pessoa que que é LGBT e pode dirigir um filme sobre uma pessoa e o relações sexuais, entendeu? Mas que eu acho que tem um olhar feminino e eu acho que é importante ter eu acho, porque se não vai ser assim todos os filmes das mulheres, todos os filmes sejam sobre mulheres outros temas e dirigido sempre por homens? não. Você tem que ter todos os olhares, mesmo para ver que não tem a diferença, diferença não… Mesmo para ver que não tenha uma diferença tão gritante, então assim você tem que ter todas as vertentes, mas eu acho que existe sim um cinema feminina, tem filmes que você sabe, você já diz: “ah esse filme foi feito por uma mulher” e tem alguns filmes que eu não vou citar, até brasileiros, que se tivesse sido dirigido por uma mulher teria sido bem diferente por que o cara quis ser um Karim e não conseguiu (risos…), nem todos conseguem.

Uma outra questão que eu me volto na pesquisa Adriana, é a questão da identidade, Como as cineastas elas trabalham a identidade nas filmes, então pensando na sua obra né Não só no filme mãe, mas na tua produção como um todo, como é que você imprime a sua identidade dos seus filmes?

Adriana Vasconcelos: Uma coisa mais autoral? isso, sua marca….

Adriana Vasconcelos: Eu vou te passar o link dos meus curtas, a minha obra é muito linear, eu tenho até uma amiga que foi até a minha professora do mestrado, Tânia Montoro, que também ela é cineasta, talvez nas suas pesquisas você tenha descoberto ela também, e a Tânia ela fala que, muitas pessoas falam, que todos os meus trabalhos são muitos ligados às mulheres, todos, 274 o personagem principal é mulher, e o meu primeiro curta, Só Sofia, que é bem curtinho mesmo, é uma história de amor multirracial, isso não tem nada a ver de ser multirracial, que nem era multirracial, só falei porque realmente nem era para ser, era uma outra atriz e acabou que eu chamei uma amiga, na última hora precisei chamei uma amiga, que é uma atriz maravilhosa, Nívea Elza, mas ela é protagonista do filme, o curta Senhoras, é uma história de mãe e filha, duas senhoras idosas, o Fragmentos tem o pai, tem a mãe e a protagonista que é uma criança, e o longa Mãe que são as três mães, meu cinema sempre eu coloco uma protagonista mulher, eu gosto de falar, eu gosto que quem fale o meu texto principal seja uma mulher, que a minha criação seja levada por um personagem feminino, tem outros projetos de documentários e de ficção, acaba que todos os que eu crio e quando eu vejo o personagem principal é mulher, naturalmente, até hoje é assim e os que estão na minha mente para fazer são assim, todos são dramas, todos têm morte… (risos…). Eu tenho um amigo que ele fala assim eu só não mato cachorro, aí eu falei Realmente eu não moro cachorro, não tenho capacidade de matar cachorro, eu posso matar todo mundo cachorro eu não consigo, é demais pra mim, (risos…) eu não conseguiria dirigir uma cena que tivesse uma morte de cachorro, é demais para mim, mas todo mundo mas o cachorro sobrevive, risos… então assim, são gramas, são tensos, o primeiro é relacionamento, o segundo é morte, solidão, invisibilidade do idoso que é o senhoras, o terceira é separação, como a criança ver os pais se separando, e agora esse que você assistiu, então todos têm temas pesados, que eu gosto de descortinar, temos assim, eu acho que o cinema tem, eu até tenho alguns roteiros mais leves, mas assim eu acho legal o cinema ser um veículo para você descortinar temas que são meio tabus e você sabe, olhar assim, sem uma visão assim, adocicada das coisas, assim como eu quis criar a maternidade do 3/4, eu não queria uma maternidade adocicada, uma maternidade mostrando que todas as mães são lindas e maravilhosas, que a mulher depois que deu à luz virou Santa, não virou, a realidade está aí para você ver, quantos filhos traumatizados, abandonados, assassinados e por negligência da mãe, muitas vezes também, não tô dizendo que é culpada, mas também. Agora tô falando da mãe, mas é evidente que o pai também tem sua parcela de culpa, tão igual à da mulher, mas o que eu tô te falando é que eu não gosto de, eu não gosto de adocicar temas, eu gosto de tratar os temas como eles são, então a Tânia ela fala isso que meu cinema é muito linear nesse sentido, talvez daqui para frente, talvez o meu próximo filme não seja, não sei, não sei nem quando que eu vou ter condições de fazer outro filme nesse país, risos… Eu nem sei se eu tenho que mudar de profissão ou de país, mas às vezes eu penso assim ai meu Deus fica não fiz fotografia, eu brinco mais ou menos o que eu penso que eu deveria ter feito jornalismo e me especializar em fotografia e enologia, e ia sair fotografando tudo quanto é Vinhedos pelo mundo bebendo vinho, era a vida que eu queria, risos… mas voltando aqui os meus roteiros, eu não consigo não pensar numa temática difícil, não tratar de filmes que são tratados de uma maneira meio obscura, e não ter como protagonista mulheres por exemplo o projeto agora que eu criei, que é de uma série, só tem mulher, mas é o que eu tenho vontade de fazer, então assim talvez por isso o meu próximo projeto vai ser um documentário porque eu posso por todo mundo não tem um protagonista, até porque eu tô trabalhando não é sobre um personagem sobre uma ideia, um assunto, não vou contar a vida de ninguém vou investigar um assunto, então eu gosto de ter o cinema autoral, eu gosto de ver alguém de repente virar para mim, igual assim as pessoas já viram o meu curta e disseram assim eu assisti aquele filme parecia seu filme, parecia que foi feito por você, eu acho eu gosto disso, sabe? Eu acho isso, 275

Mas isso não foi uma coisa assim… Mas também não quero ter esse compromisso para o resto da vida, se ele vier naturalmente que bom, mas por exemplo sempre fui fã do Bergman, você ver um filme do Ingmar Bergman, assim são todos, é uma trajetória absolutamente linear, o Bunel é uma trajetória linear, todos grandes cineastas assim, atualmente o Clean Eastwood, Que eu adoro, sou muito fã dele, então assim você vê que mesmos temas que são diferentes, um drama, uma maneira de olhar que é tão forte, mas aí um dia desses morreu o Alan Parker, que é um cineasta porque os filmes eu sempre adorei, e aí eu fui ver, ele fez o The commitment, fez aquele da meia-noite, fez coração satânico, cara tão diferentes… um dia desses eu tava vendo a entrevista do , aquele cineasta inglês, e ele falando que a gente tem que apoiar, porque é tão difícil fazer isso (cinema) é tão trabalhoso, e você ficar assim só criticando, eu já presenciei vídeos assim de situações até em festival, de alguém ganhar um prêmio e vi um cineasta e falar assim, gritar aí porque não tinha que ter sido ele, cara que coisa feia sabe? O mais que você saiba que que não deveria, Por mais que você saiba que tem uma política por de trás, nessas premiações e até nas seleções, que tudo é muito político, que tudo é muito grupo, é muito quem indica, sabe? Não se fala mal de alguém que está trabalhando, é pretensioso, é feio, e é desonesto com o profissional que pode não ser o melhor mas que teve, é uma área muito difícil. Ainda mais no Brasil, uma indústria que ainda busca se consolidar, e cada hora vem uma porrada …

Adriana Vasconcelos: Não sei se te respondi exatamente, então a minha obra eu acho que tem uma linearidade eu acho que tem uma identidade, uma coisa autoral, não é uma coisa que eu tenho que me apegar, a todos os meus filhos tem que ser assim mas eu também não vou me obrigar a me desapegar, mas é um processo natural.

Na sua visão Adriana sobre as dificuldades como cineasta, eu queria que você falasse um pouquinho o que você acha sobre qual o maior desafio da mulher na indústria do cinema brasileiro, das cineastas?

Adriana Vasconcelos: Olha por incrível que pareça ainda é as pessoas acreditarem que podem delegar essa função, que é tão caro como é fazer cinema, então eu acho que ainda é muito difícil, existe sim um olhar de que em qualquer coisa e no cinema não é diferente, sempre teve mulher desde o início do cinema, mas sempre eles querem delegar pra gente funções, eu não diria menores, porque aí menor parece que eu tô desclassificando, mas com funções de menor valor, entendeu? No sentido de menor valor mesmo, por exemplo, um projeto de mais de dois milhões de reais eu vou depositar isso na mão de uma mulher? Então eu acho que a maior dificuldade ainda é essa. Do governo tem assim, o dito edital, que é tido como se fosse muito certinho, mas são pessoas que estão selecionando, e essas pessoas carregam os preconceitos delas, então assim o edital também é igual aquele cara que não quer dar o dinheiro para aquela empresa, ah quem que é o diretor? É uma mulher? Quem que é essa mulher, sabe? então assim, eu acho que ainda é, a gente ainda grita tem que gritar muito no set, tem que não aceitar o preconceito, sabe? E se precisar falar alto, falar alto mesmo, eu acho que isso sim quando uma mulher tem essa postura ela é meio assim... ela é agressiva enquanto que o homem é forte, ele é sabe ele é assertivo, a mulher é agressiva, sabe? descontrolada, então assim, você, a gente ainda pena disso, inacreditavelmente a gente ainda pena por isso, é uma coisa assim que meio 276 que não dá para acreditar, e é assim. Há pouco tempo atrás já teve situações aí que a gente viu, de de repente é uma diretora falando e os outros, ela é maravilhosa e vão falando na frente dela... Ela é maravilhosa, então deixa ela falar, então deixa ela dirigir, sabe? Ela tem capacidade. Ah ela errou, como todo homem pode errar, sabe? A mulher não merece uma chance, ela merece todas as chances como um homem também merece, o cara de repente erra um filme, mas ele tem vários outros filmes, ele continua tendo o apoio, condições de ter outro trabalho. Se a mulher errar parece que ela perdeu a última chance que ela tinha. Tudo é mais difícil, tudo é mais complicado, e às vezes você quer ter uma relação assim mais leve e quando você ver você tá sendo obrigada a ter uma relação mais enfática, mais dura, mais combativa sabe? E você não quer isso, mas você pensa assim ou eu faço isso ou eu não termino o filme, entendeu? Eu já tive trabalho assim que não foi filme outros trabalhos, e uma vez eu dirigi oito homens, eram na equipe eu e oito homens, e assim eu era a diretora e estava meio coordenando a produção porque foi um trabalho que a gente viajou, e foi muito bom porque eram homens que aceitavam aquilo, mas assim já peguei aqui com homens e com mulheres que não aceitavam uma direção feminina. E aí de repente, é complicado eu acho que a maior dificuldade ainda é você ter os mesmos direitos, inclusive os direitos de errar, errar e recomeçar e ter nova oportunidade, que isso é bem mais fácil para o homem do que para mulher, mulher eu acho que tipo assim errou, a outra chance dela é bem mais difícil de conseguir, nada é impossível, mas eu acho que é mais difícil.

Eu tenho feito essa pergunta várias cineastas e tem sido recorrente não somente essa questão, mas essa questão aparece, de como a função da direção tem uma grande responsabilidade, sendo de muita importância na divisão hierárquica do cinema, e quando ela é assumida por uma mulher parece que o peso aumenta porque parece que é uma visão de que a mulher não tem essa capacidade…

Adriana Vasconcelos: Que ela não vai dar conta, se ela der conta ela é mal, ela não é feminina… (risos…) como se você não pudesse ser feminina e feminista ao mesmo tempo, né? Agora, é uma arte muito cara, então o medo de se colocar esse poder na mão de uma mulher é muito grande… Então assim, você tem que lidar com isso… se você é uma mulher talvez mais moldável, então talvez seja mais fácil, mais dirigível, uma diretora dirigível moldável, mas uma pessoa que de repente quer exercer sua função com toda a necessidade de que ela precisa a capacidade e o envolvimento que precisa sabe? Aí é meio assustador, aí eu acho que tudo é muito difícil, mas eu acho que isso pesa ainda, incrivelmente. E assim, não veio ninguém me dizer assim ah edital as pessoas nem vêem, é igual o júri popular, são pessoas que estão lá com seus preconceitos, que já chegam para julgar com aqueles preconceitos, é a mesma coisa.

Adriana e o que é que te move a continuar fazendo filmes?

Adriana Vasconcelos: Atualmente nada, atualmente não estou tendo, atualmente só estou tendo questionamentos sobre o porquê que eu escolhi essa profissão (risos…), mas assim esse ano de pandemia e tudo eu só tô tendo questionamentos, mas quando você vê de repente surge um projeto tem um projeto que eu tô desenvolvendo para fazer uma série, quero fazer um 277 documentário que eu acho que o momento também é favorável para você trabalhar com a equipe menor porque para você fazer uma ficção agora depois dessa pandemia, até porque eu acho que é a primeira de uma série de pandemias que vem por aí, mas essa minha visão é meio drástica de tudo, eu acho que eu tô assim meio Bill Gates, sabe? Há 3 anos atrás ele falou vai ter uma pandemia vocês não tão olhando… e aí veio a pandemia, ele falou até Trump quando Trump assumiu, que era para ver, eu acho que ele falou até quando teve o ebola, ele, a mulher dele deu uma declaração de que eles fazem reserva de comida em casa, então assim, eu tenho essa visão, isso é uma coisa assim tão clara, né? a gente para assim para pensar, gente, de repente estava todo mundo na mão da China por causa de respiradores, simplesmente porque as pessoas não queriam investir nisso no seu país, e de repente quando precisou ninguém parou para pensar nisso, tava tão claro dessa forma né? Então assim, o que me motiva (nesse momento ela para e pensa um pouco…) É uma paixão, mas no momento eu tô um pouco desapaixonada para não dizer quase que completamente desapaixonada, mas eu sou uma pessoa que eu preciso de paixões. Eu preciso estar apaixonada, por um homem; para eu poder me sentir humana; pela minha profissão; é uma necessidade de falar, de trabalhar, só que eu estou no momento que eu estou muito pessimista com esse mundo, eu não sei se eu quero falar para esse mundo, sabe? Se vale a pena falar para esse mundo, assim, eu gostaria de não estar assim. Eu gostaria de regressar um pouquinho ao meu estado de entusiasmo de falar, mas assim eu cheguei no ponto que não dá para voltar, é a carreira que eu escolhi, então é a carreira que eu sei fazer, que eu gosto de fazer, então assim eu posso fazer outras coisas paralelas, eu posso fazer curso de fotografia me especializar mais, fazer um curso de enologia me especializar mais (risos…) mas eu vou ser sempre uma cineasta, entendeu? Então eu quero, eu ainda quero poder voltar a me empolgar por uma história, a ponto de eu falar assim: eu quero que as pessoas vejam isso, quero falar isso acho importante assim tema ser visto, eu vou te falar uma coisa para finalizar, que é assim esse meu curta Senhoras ele me deu, todos os meus trabalhos me deram, mas esse meu curta Senhoras em especial ele me deu muita satisfação, ele é muito autoral, todos são autorais, mas ele é muito autoral no sentido que foi uma história baseada numa história que eu já tinha ouvido falar, então eu criei a história dessas duas personagens e ele passou em vários lugares do mundo, salas de cinema cheias, lotadas, e assim sempre tive muita receptividade, e uma vez um conhecido me pediu para passar numa mostra, em uma sala minúscula que devia ter, não devia nem ter 10 pessoas naquela sala, a sala já era minúscula e a quantidade de pessoas que ia nessa mostra, era uma mostra semanal, era sempre muito pequena e eu sabia, aí eu falei a gente e ele me pediu para falar, mas era uma pessoa querida e eu falei ah tá certo, eu vou, e eu fui e apresentei o filme e levei e quando eu sair depois quando terminou eu falei um pouquinho e o filme passou eu fui embora e veio uma moça que ela me conhecia, era uma mulher que me conhecia, uma atriz, e assim uma vez eu tinha sido chamado para fazer uma peça e ela também estava nesse mesmo projeto, acabou que eu não pude fazer por conta de outro trabalho, não sei se ela ficou, e assim ela não ia com a minha cara, essa mulher não ia com a minha cara de jeito nenhum, e eu nunca fiz nada para ela não que eu seja a pessoa mais simpática do mundo que eu sei que eu não sou, mas assim eu realmente nunca tinha feito nada para ela, essa mulher não gosta de mim de graça, que eu realmente nunca fui antipática com ela, aí quando eu tava saindo assim do cinema da sala, ela me segurou pelo braço, tava quase chorando e falou assim: eu nunca me emocionei tanto, Você tocou o fundo da minha alma, Ela falou alguma coisa mais ou menos assim, e eu fiquei assim, agradeci e ela falou algumas outras 278 coisas, aí eu voltei para casa e pensei assim engraçado, uma apresentação que eu não queria não tava animada a fazer, só fiz mesmo por uma obrigação de amizade, para uma plateia mínima e de repente eu recebi um dos melhores elogios, esse filme algumas outras pessoas já me falaram dele, que tocaram muito, tipo uma pessoa que viu ele em Portugal, em um festival em Portugal, falou que foi o filme que mais tocou ela no festival, a vida inteira, mas assim a forma com que ela me falou foi tão honesta e rompeu um antipatia que parecia que existia dela comigo que de repente meu trabalho fez com que ela simpatizasse comigo, chegasse até a mim, eu falei gente que coisa que impressionante eu ganhei a noite, eu ganhei o dia, eu ganhei a semana, sabe? porque eu falei assim cara eu acho que isso é legal no meu trabalho, então eu acho que de repente antipatia que ela tinha meu trabalho fez com que ela rompesse aquilo e foi numa não exibição que eu não esperava nada que eu tive uns melhores retornos, embora, como eu te falei, esse projeto particular teve muitos retornos bons, mas esse retorno é uma pessoa que eu sabia que não simpatiza vá comigo foi um retorno especial, então assim talvez valha a pena porque você de certa forma toca a pessoa, por exemplo eu lembro de alguns filmes, que nem são de cineastas famosos e outros que são de cineastas famosos que eu lembro que eu assisti quando eu era criança, e eu lembro como se eu tivesse assistido a um mês atrás, então eu acho que talvez o que me estimule, o que me instiga é talvez fazer uma diferença para alguém né? tocar em um tema que vai mexer, que vai ajudar aquela pessoa compreender um pouco mais a vida dela e eu também colocar para fora alguma angústia que eu tenha através do meu trabalho.

Agradeço a entrevista e ela me pede para que envie um e-mail para lembra-la de encaminhar o link dos curtas e o currículo dela completo.

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APÊNDICE G - ENTREVISTA COM A CINEASTA ROBERTA MARQUES (CE)

Entrevista realizada no dia 04 de junho de 2020 através do Instagram – por meio de uma Live (Transmissão ao vivo).

Roberta Marques: Eu sou cineasta, trabalho com audiovisual há muitos anos, 30 anos mais ou menos. Eu tenho informação em Audiovisual, minha formação não é em cinema clássico, é mais prática, na escola de artes aqui na Holanda, eu tô em Amsterdam no momento, e depois eu fiz um mestrado, também em artes performáticas. Eu realizei documentários, curta metragens, teve um período que eu trabalhei muito com filme de dança, e o Rânia foi meu primeiro longa de ficção, e desde o filme Rânia eu venho focada em escrever roteiros e realizar trabalhos de ficção, longa metragem, e agora estou finalizando uma série da TV. Eu sou roteirista, diretora, produtora também, eu acho que esse é um assunto quando a gente é mulher no audiovisual, uma das formas de você, quando é autora, você só vai pra frente se você se autoproduz, eu acho que isso está mudando um pouco, mas eu acho que na minha geração eu acho que essa era a única forma mesmo, porque eu acho que isso é até um assunto que a gente vai falar mais pra frente, mas uma das questões, eu acho da voz de mulheres no audiovisual ela já é abafada na criação, então assim, eu sou autora roteirista e virei produtora, por necessidade de levar meus projetos pra frente, fui montadora em algum momento, fui editora também, fui fotógrafa também tanto still quanto vídeo, teve um curta eu filmei em 16mm e filmei eu mesma numa Bolex e montei na moviola, cortando negativo, então assim, eu tenho essa trajetória aí e depois eu trabalhei um pouco também já na época, depois no digital eu fiz edição no digital e fotografia digital, mas isso eu deixei para os experts e tentei me especializar, me aperfeiçoar em escrever e em dirigir.

Eu fiquei pensando aqui, você falando, eu assisti ao filme Rânia, eu me apaixonei, tem essa pegada da cidade de Fortaleza, praiana, mas também tem uma história que a gente se envolve, e eu queria saber, minha primeira pergunta é essa: como você se coloca? Como você trabalha a identidade nos seus filmes?

Roberta Marques: Eu acho que isso é uma pergunta muito boa, porque eu acho que a criação vem, no meu caso no início vem dessa questão de identidade mesmo, de uma forma geral, minha identidade é tão fragmentada que eu acho que essa construção parte de uma fragmentação também, mas assim, eu reconheço com escolhas que eu faço, sempre existem coisas que são um denominador comum, que eu acho, que eu trabalho sempre com histórias onde as mulheres são protagonistas, são histórias de personagens femininas... Essas personagens na maioria das vezes elas tem a arte ou alguma atividade intelectual que elas usam como ferramenta de transformar o mundo e se transformar também, e eu acho que tem uma coisa que é mais abstrata, que eu chamo de corpo-movimento e música, como se fosse uma coisa não racional, é mais sensorial, e eu procuro trazer isso para as narrativas, pra contar essas histórias que na maioria das vezes se tornam histórias meio sociais, políticas, mas sempre voltadas muito pro humano, parte do interior pro universal e volta pro pessoal, eu acho que de uma forma geral é isso que me ensina e é isso que eu vejo se eu volto para trás, eu penso que tem esses elementos em todos, em quase todos os meus trabalhos. 280

Você tem essa preocupação de uma postura afirmativa de trazer mulheres como protagonistas, mas em relação à equipe você se preocupa em contratar mulheres, formar equipe eminentemente formada por mulheres? Como é que é esse processo?

Roberta Marques: Olha eu tenho, eu acho que essa questão das mulheres no audiovisual têm dois campos que na verdade é um só, do mercado, da indústria, e a gente pode falar também da voz, o que as mulheres têm a dizer, como as mulheres vêem o mundo, como elas traduzem isso. Quando a gente fala de equipe eu acho que junta essas duas coisas porque obviamente que a gente só vai, quando a gente forma uma equipe, eu hoje em dia tenho uma consciência, antes eu fazia isso de uma forma inconsciente, mas agora ela é consciente e é atitude realmente de afirmação, de contratar equipe que seja maioria de mulheres, eu acho que isso é o mínimo que a gente pode fazer, e não só como um dever, mas eu acho que porque, aliás eu acho que isso acontece, se dá no meu trabalho primeiramente por causa do talento, da qualidade do trabalho, eu acho que isso eu sempre essa visibilidade porque eu sempre acreditei muito no trabalho das mulheres, no talento, no resultado e na qualidade, hoje em dia eu digo que eu faço isso de uma forma mais consciente numa atitude realmente de criar espaços, de criar empregos, de realmente abrir esse mercado para que as mulheres se insiram e conquistem mais espaços, então para mim eu acho que a metade mais um é o mínimo, que eu acho que toda mulher que está como cabeça de uma produção audiovisual, seja como produtora como diretora, ou seja de alguma forma que influencie, a gente pode fazer, sabe? isso, no sentido de equipe, é dar oportunidades a super talentos que não tiveram essa oportunidade ainda.

E é… desculpa te interromper…

Roberta Marques: Então que queria complementar que eu acho que essa parte é um dos campos, da indústria ou do mercado, e o outro campo que eu senti isso na pele, é quando você é criadora das ideias e as suas ideias elas não são escolhidas por uma comissão julgadora, a maioria homens brancos, heterossexuais, então tem todo uma coisa, eu acho que o mundo, a gente vive num mundo basicamente que está pronto do jeito que ele está, e que é dominado por homens brancos heterossexuais, isso não somente no audiovisual, mas em qualquer área que você for, da vida, do mundo contemporâneo, estamos mudando um pouquinho, estamos refletindo sobre tudo isso, mas assim, isso foi sempre assim. Então como é que você envia uma ideia, um roteiro para um edital, onde você está falando de uma personagem mulher, que talvez mulher negra, seja uma mulher lésbica, que não seja uma mulher que vai cair para uma função da sociedade masculina, como é que esses homens que vão estar naquela comissão vão se identificar com essa história para selecionar, então eu acho que durante muitos anos as histórias de mulheres autoras não chegarão a lugar nenhum por conta disso, e a gente quando começa a questionar isso, e a gente tava num processo lá na Ancine, quando a Ancine ainda tava lá de pé, né? A Agência Nacional de cinema, onde essas questões de ter uma comissão que seja feita por Mulheres também, que tenha diversidade de gênero e de raça, a gente estava caminhando para isso, mas a gente tá num momento que a gente foi interrompido e proibiram um monte de coisa, então não vamos nem falar desse momento agora porque senão a gente não sai desse assunto (risos...), mas eu acho que essa questão aí, pra mim ela é a questão da ideia, de como que a 281 gente constrói o mundo em que vivemos, eu acho que o momento em que as mulheres passam a ter mais voz nesse espaço, a gente vai projetando nas telas de cinema e aí eu posso falar de literatura, de pintura, de qualquer coisa, a gente vai tá falando de um mundo onde a gente projeta um olhar que é o olhar da mulher, e de uma forma geral eu diria que esse olhar já é um olhar por si só amoroso, eu acho que a gente pode projetar um mundo mais afetuoso e mais amoroso, e isso passaria a mudar toda uma estrutura que a gente tá acostumada a viver, eu acho que até hoje sobretudo na minha geração, tudo que a gente lia, do colégio, da universidade, filmes, tudo era dirigido por homens, então a gente aprendia com esses homens, contando, ensinando pra gente, a vida, ensinando o mundo, eu acho que dentro desse pensamento existe uma coisa que não só isso, eu tô falando, sei lá, de trinta anos atrás, mas porque isso ainda é assim? Por que que é tão difícil? Não é porque a gente não faz um movimento, não é porque as mulheres não têm talento e capacidade, é porque tem uma força contrária, que é uma força que vem pra silenciar, e essa força, ela tá sempre aí, por isso muitas vezes eu acho que o feminismo, que pode ser considerado em alguns momentos, hoje em dia, como uma atitude agressiva, mas é como o caso agora da opressão aos negros nos Estados Unidos, tem uma hora que a reação ela vem cheia de raiva, então assim eu acho que achar esse lugar, dar voz da autoria é tão importante e ter esse espaço para a voz da autoria é tão importante quanto o lugar no mercado, no mundo de negócios, do cinema, da indústria, enfim, eu acho que as duas coisas estão meio que juntas.

Eu pesquisa nesta área, tenho assistido lives, sobre o cinema que é feito pelas mulheres, e uma constante que eu ouço é justamente isso, sobre os espaços de decisão, que as mulheres precisam ocupar espaços, eu já ouvi depoimentos de cineastas que já tem uma carreira se consolidando, com vários longas e que passaram por situações que fizeram ela refletir sobre o absurdo de passar por aquilo por ser uma mulher. Fazendo o gancho eu gostaria de saber se você já passou por alguma situação de preconceito pelo fato de ser mulher?

Roberta Marques: Olha eu acho que de forma indireta e dissolvida assim com certeza sim, mas eu acho que tem uma coisa que eu acho que eu tenho, assim, um lidar de igual para igual nessas situações que são de defesa também, você vir com essa, mas mesmo quando você vem com uma defesa você vê que existem que isso aqui acontece e de forma muito bem construída, eu vou te dar um exemplo, que é engraçado esse exemplo, é… o filme Rânia, quando estreou, teve um crítico de São Paulo que ele falou assim: o filme Rânia é muito… Não lembro exatamente o termo que ele usou, mas disse assim: “mas falta alguma coisa”, e o falta alguma coisa é porque faltava homem, na verdade assim foi uma piada que ele fez, porque o filme Rânia foi lançado em 2011 em festival e depois ele foi para o lançamento comercial em 2013, e ele teve, ele demorou a sair dos festivais para ir para salas, na verdade não demorou é o tempo, um ano e meio mais ou menos, e era um filme na época você imagina em 2013 a gente estava falando de… era um filme fotografado por mulher, produtora executiva mulher, produtora de finalização, diretora, roteirista, um filme com três protagonistas mulheres, num momento em que a gente nem falava sobre cinema, quer dizer não como agora, assim, e isso eu lembro que era uma coisa aqui, o filme tem o seu peso, é um filme que ele pesa, mas passou desapercebido por um monte de lugares, por quê? Porque era um filme de mulher, sobre mulheres, então acho que esse é o exemplo mais significativo, e essa crítica no jornal, ficou muito claro pra mim, e hoje em dia eu acho que esse mesmo jornal uma crítica seria feita de 282 uma forma diferente, por a gente já estar entendendo esse tipo de manipulação que se fazia ou se faz ainda com o nosso trabalho, então eu falo isso e claro que sim, distribuidores, festivais, isso aí eu acho que sem dúvida isso existe, por isso que ter mulheres nesses espaços e em todos os lugares, que quando o filme sai para exibição também, se torna muito importante. Apesar de que hoje já existem profissionais homens que ligaram nisso e que a princípio, eles, existem alguns deles que estão também tentando abrir mais esse espaço e tentando fazer o mea culpa, mas assim tá longe de ser o que deve ser, né?

Sim, eu tava vendo os dados, que não são tão atuais, mas são o que a gente tem no momento, da Ancine, que mostram que a gente ainda tem uma participação, a presença das mulheres realizadoras, ainda é pouco mais de 10 por cento, isso tem mudado, mas eu acredito que não seja tanto, e a gente fica se perguntando como assim? Porque a gente tem tanta mulher produzindo, tem tanta história para ser contada, por que essas histórias estão sendo ainda silenciadas? Aí eu queria saber sobre a sua percepção em relação ao machismo no cinema brasileiro.

Roberta Marques: Eu vou te falar que eu tive a sorte de nunca precisar ir trabalhar no projeto de outra pessoa que não fosse o meu, então não posso te dizer por experiência própria mas eu já ouvi relatos, né? assim, têm relatos muito tristes em relação a isso, inclusive de hierarquia de poder, como os homens tratam as mulheres nessas produções, e ainda bem que tem falado mais sobre isso, e têm denúncias, e eu que isso é uma coisa que ainda existe, mas os homens precisam ter muita atenção com isso, mas toda a construção dessa cadeia, dentro do cinema sempre foi muito machista, o cinema sempre foi muito machista, isso é um assunto que a gente vê na própria televisão, na própria TV Globo teve também um momento, você falou sobre o assunto, então eu não posso te apontar precisamente fatos dentro do cinema nacional, porque eu nunca estive em uma outra produção que não fosse a minha, nas minhas produções machismo não entra, (ela fala essa frase sorrindo...) então assim, então me interessa a gente como mulher também fazer esse movimento de falar como que a gente quer trabalhar, como que é a dinâmica do nosso trabalho, e aí eu vou te dar um exemplo, que eu acho que é um exemplo que é muito interessante assim, quando as mulheres são chefes nos trabalhos, eu acho que o respeito para com o outro, o cuidado nas relações, eu tô falando pelo que eu percebo pelo que eu vejo, com quem eu trabalho, existe muito essa relação de respeito, de igual para igual, de cuidado, assim, aí eu acho que até os próprios homens que possam estar nessas produções eles devem sentir a diferença do que é ter isso ou ter um patrão machista, machista em todo o seu espectro, da autoridade, do mandar no lugar de pedir, né? Existe uma coisa assim que é bem complicado, né? Mas bom, eu não tenho como te apontar especificamente isso, mas eu acho que tem sido assim e eu espero que isso esteja mudando.

A gente espera né? inclusive fazendo um link com essa situação atual que é uma outra questão, a questão racial, que a gente também precisa falar, estar reforçando, e às vezes as pessoas colocam isso como um clima chato batido, não é batido, é uma questão super atual super importante, e indo para a indústria do audiovisual, eu diria que uma questão ainda mais complicada porque a questão da invisibilidade é muito maior, não que a gente tenha poucas, a gente não tem é visibilidade... 283

Roberta Marques: Sim, e falando os números, né? Eu fui pesquisar e ver os números de novo, e acho que é importante a gente falar isso com todas as letras, né? Com todos os números, porque é absurda a diferença, essa pesquisa, eu até fiz uma pesca aqui, essa pesquisa O estudo diversidade de gênero e raça no audiovisual brasileiro, em 2018, acho que é 2018, 75,4% dos filmes é dirigido por homens brancos, 19,7% por mulheres brancas, 2,1% por homens negros e 0 por cento por mulheres negras. É tipo, absurdo, ali a gente vê que além da falta de igualdade na relação de gênero, a desigualdade em relação a raça é monstruosa. Quando você vai para televisão mais ou menos, não mudam esses números, né? Então assim, isso realmente é muito grave, eu acho que essa questão das minorias, da expressão da minoria, eu acho que é uma coisa que a gente tá muito longe de chegar no lugar onde várias vozes possam ser ouvidas, né? e de fato eu acho que agora a gente está no momento de falar sobre isso de falar sobre as mulheres e falar muito das mulheres negras porque eu acho que são duas minorias, e mulher negra artista sabe? Eu por exemplo, eu tava vendo, gente, filmes de mulheres brasileiras negras que eu vi recentemente, eu tive que pesquisar porque realmente eu acho que a geração mais nova é que está fazendo, que não tem visibilidade ainda, mas elas estão aí, cheias de talento, estão fazendo um monte de coisa e a gente precisa dar oportunidade, isso é assim uma coisa que tem realmente, a gente tem que aumentar a voz dessas mulheres, né? nossas e dessas mulheres e da diversidade de corpos, diversidade de desejos, de gênero, de tudo. Acho que é um trabalho que pode ser conjunto, é um coro que pode se unir, né?

Tem razão, essa temática não é exatamente o que eu pesquiso, Mas claro que a gente tem que analisar todo o contexto, e eu fiquei lembrando inclusive de um levantamento que eu fiz de uma cineasta que eu não conhecia e quando eu fui assistir, A Adélia Sampaio, longa que ela fez, eu fiquei assim achando incrível o filme produzido na década de 80, trazer uma história sobre o amor entre duas mulheres, tem todo um contexto ali, uma situação que a gente não conhece né?

Roberta Marques: E Adélia Sampaio tem uma história também que é muito incrível, que eu acho que é importante a gente falar porque assim, ela era filha de doméstica, né? E aí ela foi trabalhar numa empresa de cinema, não lembro agora exatamente detalhe mas ela foi trabalhar, ser telefonista secretária não lembro agora, e ela depois começou a fazer um monte de coisas, então quando ela lançou o filme dela, foi no final dos anos 70 começo dos anos 80, (anos 80 corrijo), mas ela começa no final dos anos 70, e ela produziu essa obra genial, tem essa mulher isso foi silenciada para gente, agora que a gente está resgatando, mas aí o que é incrível, é tipo assim, a gente agora, eu acho que a identidade da mulher negra como artista, como voz, é assim elas estão aí, e essa história de que as mulheres negras vinham de situações difíceis isso não deve se repetir, as mulheres negras estão de igual para igual com a gente, elas são iguais, ela não elas não tem que estar, não tem essa coisa de olhar que a pessoa vem era filha de doméstica, não é isso, não é mais sobre isso porque elas estão aí e eu acho que no Brasil a gente estava no momento onde essa inclusão que vinha de vários lugares, ela estava acontecendo, e isso foi interrompido, né? tiraram isso da gente, tiraram essas conquistas da gente, né? Isso é muito grave porque a gente não pode dar um passo para trás, não pode voltar, a gente tem que retomar daqui, então eu acho que por isso tem que dar a voz agora, é 284 uma segura a mão da outra mesmo e leva para cima sabe, e não deixa ninguém cair daqui para cima. Então assim eu acho isso muito poderoso como tema também, como exercício diário para a gente fazer, (consciência, eu completo…) Pois é, consciência, é exatamente.

Eu tava pensando aqui enquanto você estava falando, falando de filme e de produção e sobre os projetos futuros, eu sei que você tem uma série em finalização, o que você está produzindo?

Roberta Marques: Então tem um projeto que ele é bem presente assim, é a série pra TV Meninas do Benfica, nesse momento a gente está em produção, finalizando, tá no processo de montagem, passando por uma experiência incrível, louquíssima, que é fazer esse processo, não só começar, mas fazer boa parte dele trabalhando remotamente, então tem sido totalmente novo para mim, esse trabalho a gente tem que falar de algumas pessoas desse trabalho porque é um trabalho que eu sou a diretora geral e sou uma das roteiristas, mas eu trabalho com outra diretora que é a Luciana Vieira, daí de Fortaleza, que é uma parceira incrível, roteirista também da série, e a gente dirige os episódios e dirigimos juntas a série, e a gente tem uma montadora e montador, estamos avançando muito, a gente acredita que no final de julho, a gente já vá lançar os 8 episódios, são 8 episódios de 50 minutos. Meninas do Benfica fala de quatro jovens jornalistas, comunicólogas, que se formam na UFC em 2013 e aquele momento, eu ouvi ontem assim: “quando começou o fim do mundo”, risos… foi muito louco de ouvir isso, mas bom, é naquele período né? que a gente entrou, né? Realmente foi o começo dessa loucura que a gente tá agora no país, talvez no mundo também, e é sobre a trajetória dessa jovens que estão se formando, e que vão ver suas vidas terem uma reviravolta devido a esses acontecimentos nacionais e locais também de Fortaleza. Eu trabalhei com incríveis, incríveis, incríveis atrizes de Fortaleza, jovens que fazem as meninas do Benfica: Amanda Freire, Larissa Góes, Luana Martins e a Ariza Torquato, que junto com a Andréia Pires é uma grande diretora de teatro, faz audiovisual também e é preparadora de elenco, e a gente trabalhou com essas meninas preparando para série, e foi muito intenso esse trabalho com elas. elas realmente carregam a série são 8 episódios de 50 min, é como se fossem 3 metragens, e acho que isso essa série, ela traz um, para mim hoje em dia é… Você viu o Rânia, né? o Rânia pra mim é um projeto de 10 anos atrás, é como se fosse dentro daquilo que eu falei que é o que identifica o meu trabalho, ele traz tudo isso do Rânia, mas num momento diferente, onde também as personagens elas são, Rânia trata de uma adolescente de 15 anos, e aqui é uma outra fase da vida onde também o ser mulher vai levar a uma a transformação e a conquistas, tudo muito ligada essa identidade de ser mulher, e o seu papel na sociedade e a como você transforma a sociedade a partir da sua identidade. Esse projeto é realizado para o Cine Brasil TV que é um canal fechado e a gente tem previsão de estreia até o final desse ano, com essa pandemia a gente não sabe quando é que isso vai acontecer como é que tu vai se dar, mas a gente tem desejo de ir para frente com essa série, foi uma série que eu trabalhei com a equipe, eu trabalhei com o Maurício Macedo que é um parceiro incrível, produtor executivo e com a Isabela Veras que foi também produtora executiva do Rânia e assim falando das mulheres no cinema eu acho que Isabela Veras é uma parceira, uma mulher incrível como, e mãe para levar o projeto de uma produtora executiva de uma forma tão cuidadosa e tão carinhosa, e o Maurício Macedo diria que era outra mãe também, ele é um pai, mas é outra mãe, um cara que veio também, então eu 285 acho que nessa trajetória como autora é muito importante quando você acha esses produtores que você dialoga de uma forma muito honesta e muito direta, e a gente levantou uma equipe em Fortaleza, a maioria das pessoas em Fortaleza que, nossa foi assim incrível, Ohana, eu já tinha feito isso com a equipe do Rânia, equipe 80% de Fortaleza, com algumas pessoas de fora e na série Meninas do Benfica é a mesma coisa. E acho que é importante eu falar da Liles, Liles Soares, que a fotógrafa da série, é uma mulher negra e foi muito incrível trabalhar com ela e trazer esse olhar para série porque ele era questionador o tempo todo, sabe? ele tinha uma coisa que me instigava, me convidava a fazer esse exercício desse olhar ser constante, de não ser, por que como a gente tinha que ter uma muito rápido, não tinha como… mas a gente tinha que questionar às vezes, sobre luz, às vezes sobre enquadramento, sobre composição sabe? então assim a Liles tem uma assinatura muito forte na fotografia da série, eu acho que isso é um presente que a gente teve, uma honra e um presente de ter ela com esse olhar atrás dessa câmera, uma mulher incrível. Enfim eu posso passar o resto da entrevista falando dessa série… e eu tenho mais outros dois projetos que é uma outra série internacional, um projeto que ainda está em desenvolvimento, vai andar um pouco mais devagar e precisa achar o seu lugar em termos de produção porque não é uma série exatamente brasileira, é uma série mais europeia, mas que trata das questões de minoria também, no caso é o Deal Iland… (A gravação parou nesse momento por causa da internet).

Segunda parte

Retomando aqui a gente tava falando sobre os projetos que você está desenvolvendo....

Roberta Marques: Isso e aí tem um longa que chama Lor, e esse é um roteiro que já tá bem avançado e que a gente está nos editais e tentando levantar a grana para ir para produção, e tem um outro longa que é ainda um argumento que ainda está em desenvolvimento, que chama Escambo, e aí esses projetos eles vão mais ou menos andando como a fila anda, os que estão precisando de mais atenção… nesse momento eu tô muito mais absorvida pela série Meninas do Benfica, realmente isso não dá o espaço para as outras coisas, acho que até finalizar a série vai ser isso mesmo, e claro a gente tem desejo de que a série tenha alguma outra temporada, mas isso a gente tá ainda não processo, estamos encaminhando ainda.

Mas já está perto de lançar, né?

Roberta Marques: Isso, a gente deve lançar a série ainda esse ano, mas eu falo em questão de dar continuidade a gente ainda está vendo isso, que é um projeto obviamente que a gente tem, existe potencial para isso, mas a gente tá em construção ainda nesse processo.

Eu queria perguntar sobre esse período que estamos passando, que todo o mundo está enfrentando, com diferenças para alguns, mas eu queria saber como está sendo para você esse processo na questão profissional e pessoal também...

Roberta Marques: Eu acho que de uma forma geral no começo falando já, tirando a preocupação sanitária no mundo e tirando essa parte o problema em si, mas o que fazer com esse tempo em 286 quarentena, no começo eu acho que eu faço parte daquele time que romantizou um pouco isso no caso de pensar: ok, vou ter mais tempo de fazer mais coisas que a gente nunca faz, assim, eu consegui algumas dessas coisas, como eu te falei como eu tô fazendo trabalho remoto de fazer a edição, da série trabalhando remoto a gente entrou num ritmo de trabalho muito puxado, e é muito intenso porque essas reuniões que a gente faz, as vídeo-chamadas com mais uma pessoa elas exigem um tipo de concentração, energia, que é muito diferente se a gente sentasse numa mesa para ter uma reunião sobre o mesmo assunto, então passou muito rapidamente para mim da fase de romantizar esse tempo, de eu ter que fazer o trabalho de pós-produção da série, de fazer a montagem, então no momento eu vivo um pouco com ansiedade de sair do trabalho remoto para ir para o trabalho presencial, que eu acho que vai se dar agora em julho, né? E no mais esse tempo teve uma hora que eu acho que de ser um tempo de relaxar virou um tempo de se estressar por ter muito trabalho para resolver, como eu falei a série são episódios de 50 minutos então é muita dedicação diária a cada episódio, então assim, não existiu exatamente um momento assim: Ah eu vou criar, vou ler mais, vou ver filmes, eu acho que eu tentei um pouco isso, fiz um pouco isso, mas assim todos os dias tem esses compromissos do trabalho com a finalização da série, então nesse sentido a quarentena foi um “vamo pra frente”, e claro a gente não tem como apressar esse processo, mas existe um pouco um ansiedade de trabalhar no presencial. Mas assim em termos de geografia, porque eu tô na Holanda e aí o comentário ele passa ser muito mais que não tem nada a ver com audiovisual, mas como eu vejo a realidade de como esse país passou ou está passando por essa crise de saúde e como o Brasil está passando, eu vejo assim que é uma tragédia que o povo brasileiro não merece, como várias outras politicamente, mas ainda em cima disso ter esse desgoverno tratando isso dessa forma, sabe? E colocando em risco, me causa muita raiva sabe? Eu acho que isso é um sentimento muito ruim que eu fico, por isso que eu falo se eu for pensar sobre isso, me vem um monte de, muita raiva e a sensação de impotência, o que que você pode fazer, né? Então assim eu acompanhei muito politicamente, apesar de estar aqui eu acompanhei e acompanho o dia a dia do Ceará e Fortaleza com as notícias, do Brasil, então assim eu me preocupo, me preocupei muito e me preocupo com a situação aí, e eu acho que quando eu estiver aí a partir de julho eu vou entender com meu corpo presente, por enquanto tem muita ideia que eu faço.

Está sendo uma carga muito pesada que a gente tá enfrentando isso, um pouco da minha visão sobre isso é essa… A gente já está se encaminhando para o final, eu queria que você falasse um pouquinho sobre essa questão profissional, quando voltar à prática, como é que você acha que vai ser esse processo na prática agora pós-pandemia?

Roberta Marques: Olha pelo que eu... algumas conversas que eu tive, ideias que eu troquei com algumas pessoas, vai ser muito complicado e as produções vão ficar mais caras, assim eu tô falando baseado no que a gente tá vendo, de alguns lugares, talvez as grandes Indústrias tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, no Brasil eu não tenho exemplo ainda claro, eu acho que, eu não sei se aí esse desejo da abertura, da gente começar a voltar a trabalhar, aqui a gente imagina aí, por que a gente não sabe ainda sobre a segunda onda que pode vir do covid, mas pensando de uma forma otimista que vamos sair dessa, e começaremos a abrir não precisaremos fechar de novo, o que eu ouvi falar é que por exemplo, vai encarecer as produções audiovisuais porque toda essa estrutura de cuidado no set isso requer dinheiro, porque tudo, desde a 287 máscara, que você vai dar para equipe, álcool em gel, enfim, estou colocando aqui algumas coisas, no set não pode ter mais do que 40 pessoas, enfim, tudo isso vai fazer com que a gente precise de mais dias para filmar, isso significa alugar e ficar mais por mais dias, então tem uma porção de coisas que não é muito legal assim, não é uma previsão muito positiva nesse sentido para o set de filmagem, né? Por outro lado, assim, vai num lado da indústria que eu não sou muito expert, uma parte que eu fujo um pouco, fujo não, eu falo do mercado, mas tem as pessoas que são mais especialistas na área, que é o pessoal da produção, produção executiva, e falam assim ah o vídeo on demand, que é o vídeo que a gente vê em casa, Netflix, Prime, Amazon, tudo isso vai começar a ter um investimento maior nesse tipo de produção porque eles precisam ter muito conteúdo para as pessoas ficarem casa, isso pensando numa previsão muito louca de que essas pandemias vão ficar indo e voltando no nosso mundo daqui para o futuro, eu não sei o que dizer, eu na verdade eu gosto de ir para o cinema, cheio de gente, gosto de teatro cheio de gente também, eu gosto de assistir peça na rua cheia de gente (risos…). Eu gosto de estar em contato, gosto do set de filmagem também, da presença física, então assim eu, a gente quando pensa na cadeia os trabalhos talvez seja o último né, as artes performáticas, as artes, tanto quanto música, concerto, é a última que vai voltar né? Então é muito triste isso, no audiovisual a gente falou assim: “Ok vamos limitar”, mas vai encarecer a produção, por outro lado, né? as atividades de shows, de concertos, de teatro, de cinema, vai ter também uma questão aí quando se fala da economia criativa, vai ser bem complicado assim, quer dizer o mais grave é para o artista mesmo, como a gente tava falando, como é que essas pessoas vão se reinventar, né? Então é preocupante, né? Eu acho que essa ajuda que vai ser votada no senado, já passou na câmara, né? Eu acho que isso é o mínimo para dar uma calma para as pessoas, porque o artista pode falar assim o que eu tenho o mínimo posso respirar, então tá vamos inventar novas formas, porque na criação do artista também tem isso de inventar novas formas, tipo agora as pessoas fazendo todas essas peças online, enfim um jeito que a gente tem que explorar, essa ferramenta da internet da tecnologia, né? Para reinventar e inventar novas disciplinas, novos formatos né, mas assim eu acho que nada se compara quando a gente se junta, e assim tem um isso não tem nada que substitua (faz falta, né? esse calor humano, eu completo…) Nossa, é impressionante, então assim, eu me sinto privilegiada que eu estou podendo trabalhar de casa, eu tô fazendo esse trabalho, finalizando um trabalho que é possível ser feito remoto, sei lá, depois se eu for escrever também, eu sei que muito do meu trabalho como autora ele é feito também em casa, eu trabalho muito de casa também, eu curto muito isso, então assim para mim a quarentena não foi muito diferente de algumas fases da minha vida de quando eu estou criando, entendeu? Claro com a diferença de quando não estava em quarentena podia sair quinta-feira à noite ou sexta-feira à noite e encontrar os amigos para tomar uma cerveja, entendeu? e dançar no sábado (risos….) mas assim, no trabalhar, esse trabalhar de casa, sem introspecção eu tô acostumada a isso, mas tem hora que é preciso sair, né? A gente precisa ir para onde o povo tá, em todos os sentidos, né? então é torcer para que passe e vamos fazer a revolução também, vamos logo derrubar esse presidente que está aí, eu acho que tem que fazer logo eu sei que é tudo complicado agora, tem chamada pra protesto na próxima semana, tem a questão da Covid, vai pra rua não vai pra rua, a prefeita de Amsterdam, coitada, é uma prefeita que é de esquerda, uma mulher incrível, teve uma manifestação aqui em prol de, apoiando a manifestação nos Estados Unidos também antirracista e ela não mandou a polícia e para a rua, ela disse para a polícia deixar as pessoas protestarem, aí os partidos de direita estão querendo derrubar ela dizendo que ela deixou a 288 população em perigo, assim que as pessoas não respeitaram 1,5m de distância, então assim sempre usam algum, e aqui já abriu um pouco mais, não se está mais em quarentena, então é uma atitude política realmente, eles estão usando os protestos, para isso.

Sim, aqui no Brasil nós também estamos passando por um momento muito complicado ainda, ainda não sabemos como tudo isso vai se desenvolver, nós temos que apoiar esse movimento de protestos anti-racistas e outros, mas voltando ao assunto do Audiovisual, gostaria de te fazer uma última pergunta porque eu sei que o seu tempo já está muito tarde aí em Amsterdã, aproveito também já pra agradecer pelo seu tempo. Mas pra finalizar gostaria que você falasse o que te move o que te impulsiona a continuar produzindo como realizadora na área do audiovisual?

Roberta Marques: Essa pergunta é curiosa porque ela me foi feita pela primeira vez eu acho que há muito tempo assim, e depois voltou também, então eu já tenho resposta pronta assim, mas claro que ela é muito simples mas vai para muitos lugares, o que me move para fazer audiovisual é o amor assim é o amor não só pelo audiovisual, o audiovisual é a ferramenta que eu uso para jogar esse amor que tenho pelo mundo, pela vida, pelas pessoas, pelo ser humano, e assim, e isso junto a um sentimento de querer mudar o que não está certo, um sentimento de justiça sabe? Eu acho que isso é inerente a minha pessoa, então, assim, por que que eu escolhi o audiovisual como o veículo, aí eu acho que isso é bem mais complexo, porque você pode escrever ou você pode fazer música, aí eu acho que de fato, fazer audiovisual é uma coisa tão demorada, né? Um processo tão longo, né? É muito difícil fazer audiovisual, requer muita energia sabe? insistência determinação sabe, o que a gente cai muito a gente recebe muito não, a gente... é muito difícil assim, claro que eu tô falando de uma posição de quem não… Mas já tem outras diretoras, diretores roteiristas que já estão no momento que para eles talvez seja assim, né? (estala os dedos pra ilustrar), mas eu acho que mesmo pra quem tem muita capacidade de produção, mesmo assim é um processo que é muito, ele dura muito tempo, então acho que esse durar no tempo, me parece que é como se fosse não se separar da própria vida sabe? a vida e o trabalho é uma coisa só, e aí eu acho que nesse sentido volta para uma coisa que onde a gente, o assunto dessa entrevista que é desde o começo eu sempre quis trabalhar com pessoas com quem eu tenho uma relação pessoal que é positiva, não me interessa trabalhar com ninguém bambambã, incrível, se essa pessoa vai me encher o saco ou se o santo não bate, sabe? porque você leva tanto pra casa, você sai de casa para o trabalho, o trabalho tá em casa, sua casa tá no trabalho, porque é uma parte muito grande da sua vida, então eu acho que isso, essa escolha de quem vai trabalhar com você, sua equipe, aí volta pra essa escolha de uma equipe majoritariamente de mulheres eu acho que é nessa afinidade, nesse afeto que permite com que esses meus trabalhos sejam feitos de uma forma prazerosa, sabe assim? claro que a gente tem perrengue, durante uma produção você tem coisa a resolver, mas eu confesso que tanto no Rânia como na série Meninas do Benfica fluiu muito em termos do dia a dia né, assim a gente criou mais laços de afeto do que outra coisa, outra coisa nem existe, nem tem espaço para se criar discordância, então o que me move é fazer isso eu acho que é o amor que eu tenho pela vida, pelas pessoas, e acho que traduzir, dar esse amor de volta pra vida e para as pessoas, acho que é mais ou menos isso.

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Maravilha, só um último comentário que eu percebi aqui quando você estava falando da sua equipe, o brilho no olho, dá para perceber essa afinidade, e isso é muito importante né? para o desenvolvimento dos trabalhos…

Roberta Marques: Se cria uma família, sabe? Quando você trabalha muito tempo junto com as pessoas, cara tem que se dar bem, eu acho que se não for assim não vale a pena o trabalho, fazer um trabalho que é incrível, mas se ali no dia a dia não tá sendo incrível, eu acho, eu acredito que tem esse lado da performance dentro do trabalho do cinema do audiovisual, é um trabalho feito pra ser apresentado depois né, e a gente finaliza, ele vai para o teatro, quer dizer para sala de cinema, ou para TV e aí o trabalho da gente terminou, mas eu gosto muito da performance quando a gente tá fazendo, porque existe uma performance que está acontecendo ali, e isso é muito rico, e isso engrandece a gente.

Antes de finalizarmos a entrevista, agradeci mais uma vez a Roberta e as pessoas que assistiram a live.

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APÊNDICE H - ENTREVISTA COM A CINEASTA GLENDA NICÁCIO (BA)

A entrevista foi realizada no dia 27 de março de 2021 através do Google Meet e WhatsApp. Ao todo a entrevista teve uma duração de 48 minutos, considerando que as perguntas de 1 a 4 foram enviadas via mensagens de áudio, pois a cineasta estava com a agenda de trabalho muito intensa em 2020.

Para que eu conheça um pouco mais sobre sua trajetória, poderia falar um pouco sobre sua carreira, como começou seu interesse em atuar como cineasta, sua formação? Glenda Nicácio: Então o cinema, ele aconteceu na minha vida muito recente. Eu costumo falar que antes de vir fazer o curso de cinema aqui na UFRB, eu tinha ido pouquíssimas vezes ao cinema, não tinha uma ligação, claro que isso deve ao cinema ser uma arte bastante elitista, né? Na minha formação, de menor, eu passei pelo teatro, então eu tive uma relação com o teatro que era muito grande assim, e aí quando chegou a esse período de finalizar o terceiro ano, eu nem tava me preparando para fazer a universidade, brevemente, assim na sequência, porque, enfim eu venho dessas estrutura também de não ter pessoas que passaram pela universidade, por parte da minha família por exemplo, não era um trajeto óbvio é tão claro assim, então eu estava trabalhando na época e aí eu tinha feito o ENEM, e foi o primeiro ano que o ENEM ingressava em Universidade, é particular ou pública, e aí eu fui fazer, eu fui ver como tinha ido assim, fui fazer minha inscrição, para fazer o teste comigo, assim, para ver como eu tinha me saído, eu tinha tido uma nota interessante no ENEM, e aí quando eu faço essa inscrição no sistema do Sisu, dentre dois cursos eu escolho entre o teatro e cinema, que eram dois lugares que me interessavam, o teatro porque eu já desenvolvia e o cinema por que há inicialmente eu achava que o curso oferecia uma grade de disciplinas com as quais eu queria dialogar. E o cinema é muito amplo, né? Envolve foto, música, atuação, enfim, cinema é isso né? É a sétima arte, né? a reunião de tudo. Então isso foi uma coisa que me atraiu, aí eu chego na universidade em 2010, nessa primeira turma do Sisu, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, que fica aqui em Cachoeira, no interior do Estado, uma universidade que tinha sido aberta recentemente, muito a partir dessa política de descentralização da Educação e da promoção do acesso, e aí eu conheci a linguagem, eu tive aula de linguagem, minhas primeiras aulas foram de linguagem com a professora Angelita Bogado, que hoje é uma querida amiga assim, e tudo se desnuda para mim, sabe? Eu acho que quando eu aprendo a linguagem eu aprendo que o mundo ele tá codificado a partir de perspectivas, a partir de leituras, são construções, são composições, e isso muda tudo na minha cabeça assim, eu acho que isso de alguma forma me faz uma sensação de wow, o mundo é assim, né? Acho que uma coisa que eu já intuía, mas o cinema vem mostrar o quanto tudo é construído, né? Não tem esse lugar dessa verdade pura, né? Mas o quanto tudo é uma série de construções e isso começa a me atrair assim, pensar não só esse lado da criação, mas o lado do político também, da nossa relação com o mundo, enquanto sociedade, então o cinema começa a me despertar aí, muito pela linguagem, né? Essa possibilidade de criar códigos, de trabalhar com signos, com significados, gerar significados, né? Isso com certeza é o que mais me atrai no cinema. 291

Você tem a preocupação de inserir mulheres nas suas equipes de produção como forma de afirmação? Como é o processo de escolha das equipes de mulheres em seus projetos (protagonistas e funções técnicas)? Glenda Nicácio: Eu tenho uma relação com a equipe que é muito… não queria usar a palavra familiar, mas que é muito de vida, muito de vivência, acho que quando a gente faz o Café (com canela) a gente tinha essa perspectiva já, de querer sempre trabalhar com quem a gente já tinha trabalhado antes, já tinha feito curtas por exemplo, a gente tem essa coisa de que às vezes você fica fazendo uma tanto de curta, de graça e tal, trabalhando com equipe sem poder pagar, na universidade, naquela coisa toda que todo mundo já conhece, e aí de repente você tem a oportunidade de fazer um filme com dinheiro, né° com incentivo, aí você escolhe né, tipo um homem branco, do Rio ou do eixo, né? pra fazer a fotografia do seu filme, isso para gente era muito ilógico, assim, o que a gente tem dia também que existe uma forma de filmar que é muito específica também né? Então, nesse sentido eu acho que as minhas equipes são sempre compostas, têm 10 ou 12 pessoas que estão trabalhando comigo desde Café com Canela, tem 12 pessoas que trabalharam em todos os filmes, e acho que isso gera uma intimidade, cumplicidade, uma organização também dentro do set, que é outra, né? Nós temos vários vínculos para além dos filmes e eu acho que isso fica nos filmes também, né? Não é à toa que todo mundo fala que os filmes são impregnados de afeto porque a gente se gosta muito, né? e dentro disso temos a participação feminina. Eu não diria que eu coloco as mulheres enquanto pensando em afirmação, eu coloco elas porque elas têm que estar no filme, porque elas são as pessoas ideais e as pessoas certas para estarem no filme, né? Tem muito mais a ver com isso do que especificamente sendo uma estratégia de afirmação, claro que é uma estratégia, é um discurso que eu quero, né? E que eu defendo, e que eu cobro e que eu questiono, com o cinema assim, né? Mas não é pela afirmação que elas estão presentes assim. Estão presentes porque elas são companheiras assim, de trajetória, porque eu admiro o trabalho delas, porque elas dialogam com o filme está sendo proposto, porque o trabalho delas dialoga, porque elas pessoalmente dialogam com o filme, então nesse sentido é isso. O discurso é a reverberação de uma outra coisa que acontece, né? E eu acho que me tendo na direção e eu enquanto mulher, uma mulher negra na direção, acho que isso faz com que as coisas sejam todas… tenham um outro modo de acontecer, o modo de produção é alterado quando eu enquanto mulher negra estou na direção de um filme. No seu filme mais recente, Até o fim, há um protagonismo de mulheres negras, fortes e com abordagem de questões delicadas. Como foi realizar a produção do longa com baixo orçamento? Poderia falar um pouco sobre as dificuldades e aspectos positivos na produção desse filme? Glenda Nicácio: Acho que o aspecto mais importante, assim, positivo do filme Até o fim é ser um filme que foi realizado com recursos próprios, com os recursos da nossa produtora. A gente tinha acabado de receber a bilheteria do Café com canela que foi um filme que ficou 10 semanas em exibição e a partir de isso a gente entendeu que seria o mais óbvio nesse momento também que é um momento de desgoverno, tinha assim acabado de ter as eleições, enfim, momento enquanto Brasil, a gente tava em um momento de muita fragilidade, né? muita fragilidade enquanto sociedade, muita fragilidade enquanto sujeitos também, enquanto sujeitos 292 negros, negras, enquanto sujeitos lésbicas, enfim, então, isso, fazer o filme a gente entendeu que era importante nesse momento, fazer um filme, seria relevante pra gente, enquanto poder falar um pouco dessa história, desse momento, mas poder falar, mas também poder se aproximar nesse momento, que era de bastante caos, né? E que é ainda, então, era uma forma de fazer a gira continuar girando, de dividir esse dinheiro com a nossa equipe, que vive no interior como nós, que vivendo no interior a gente tem uma série de dificuldades, tudo é mais difícil de certa forma né? Pensando nessa relação com cinema, a gente não tem um mercado já criado, né? A gente tem que ficar pensando e recriando esse mercado o tempo todo. Então a gente entendeu que seria mais justo dividir esse dinheiro com nossa equipe e aí fazendo outro filme né? Claro que é isso, todo mundo ganhando um salário bem pequeno, enfim, mas que era válido, né? fazer filme é uma forma de… depois o filme vai ser vendido, depois ele vai passar em alguma exibição, então, fazer filme também é um investimento, né? você tenta colher depois, então acho que isso é a coisa mais legal do Até o fim, e poder fazer filme com essa equipe, que era uma equipe que já acompanhava a gente desde o Café com canela, poder ter essa liberdade, né? de produção. E outra coisa é ser um filme que dialoga o meio de produção dele dialoga com a rigidez e com tudo que está instalado na gente enquanto sociedade, no sentido econômico mesmo, da cultura, do audiovisual, que está totalmente arruinado nessa fase, e poder propor o filme mesmo assim, a partir de uma rede, e poder pensar: “nossa, esse filme só existe porque existe uma rede criada”, muito específica, por nós, né? E essa coisa de poder também ir moldando a forma de produção do filme a partir da realidade que cerca ele. Tem gente que acha que o formato de produção é uma receita de bolo que a gente simplesmente vai reproduzindo, né? Fazer filme é uma coisa só, e não é, tem um milhão de formas de fazer filme, eu acho que o Até o fim a gente descobriu uma outra forma, né? Essa outra forma que é muito específica da gente, da nossa rede, do cinema que a gente gosta de fazer.

De que forma podemos perceber sua marca/identidade nos filmes que você realiza? Glenda Nicácio: Então essa pergunta sobre a identidade eu acho que ela vai muito sobre a ideia de um cinema autoral e eu desacredito muito disso assim, desacredito muito nesse cinema de direção, né? Porque a direção é só mais uma pessoa da equipe, né? tem essa metáfora né do diretor mudar diretora como um maestro, uma pessoa que rege, eu acho que tem muito a ver com isso, Acho que a coletividade Talvez seja um traço meu, um traço do Ari também, que divide a direção comigo, incentivo à criação, incentivo à invenção, à liberdade de invenção, acho que é muito gostoso compartilhar esses processos de criação, poder apresentar uma proposta de um filme para uma equipe e falar: “olha vamos trabalhar aqui, vamos trabalhar com abandono aqui”... e aí cada equipe, equipe de som, equipe de arte, de foto, ela cria, ela apresenta uma poética para abordar aquilo que a direção está propondo, a gente funciona muito assim, então, tem muita criação o tempo todo, é um jogo, né? você joga bola, e outra pessoa joga a bola para outra, e assim o jogo vai acontecendo, e a coisa vai sendo tecida meio dessa forma, né? Então, eu sempre falo assim que tipo, nossa, se for só o que eu imagino, deve ser um filme muito pouco, muito pobre, né? Porque, imagina, é uma cabeça só pensando e assim você tem várias mãos várias cabeças pensando juntos, então eu acho que esse incentivo à liberdade, à criação, à liberdade estética também, acho que seria mais por aí, sabe? Esse entendimento de que um filme é feito por muitas mãos, depende de muita gente, não é só a cara de uma pessoa, 293 eu vejo o filme e eu sei reconhecer o traço, 1 milhão de traços de cada equipe, eu sei que a câmera tem esse movimento porque é a Poliana Costa que tá filmando nesse momento, eu sei que esse corte está assim porque a Kin de Souza fez o corte em tal cena, então eu gosto disso dá , de poder ver a equipe no filme.

Você vê alguma influência do feminismo no cinema brasileiro? Glenda Nicácio: Eu vejo muito assim, eu acho que esse ponto de partida de querer ter esse lugar, né? da direção feminina nos cargos, né? de departamentos, de artes, de fotografia, de produção, pensando o protagonismo também pensando a questão das personagens, das histórias, que histórias as mulheres contam, quando se tem uma personagem mulher retratada por uma mulher, como se dá isso? isso é mais rico, pode ser um pouco mais rico, e eu acho que isso são coisas que flertam com o feminismo, mas eu não sei assim, que feminismo é esse? eu acho que são feminismos que vem de lugares muito diferentes, não necessariamente um feminismo que venha de uma tradição, dos livros, ou da tradição das décadas de 60 e de 70, eu acho que é um feminismo que está muito no contemporâneo, que está muito no hoje e que vem se atualizando não só com essa bandeira da mulher, mas com todas as outras coisa que perpassam por isso. Então se a gente for pensar no lance do feminismo negro, é uma outra forma de feminismo, o feminismo são muitas coisas e com certeza ele está presente no cinema brasileiro, por vias diversas assim, não é um caminho que está todo mundo indo nele, não. É um mapa, é um lugar onde as mulheres estão ali e estão traçando feminismos que ao meu ver são de alguma forma distintos, é isso, não acho que o feminismo seja uma coisa pura, que existe puramente, unicamente, exclusivamente, ele é perpassado por outras características. E esse feminismo que talvez a gente esteja acompanhando na produção do cinema brasileiro agora, é um feminismo que vem de lugares muito diferentes. E que também traz uma libertação para a própria conjuntura do cinema feito por mulheres, o que que é um filme feito por uma mulher? Não dá mais pra falar que os filmes feitos por mulheres são íntimos, delicados, geralmente se ouve isso, né? E aí você tem uma proporção de produções e de subjetividades tão distintas, né? Que você fala: “Será?”, é esse é o traço? Será que existe um traço, eu não sei se existe um traço, e acho interessante não ter um traço, assim, especificamente, porque acho que é sair um pouco da caixinha, né? Não é querendo dar conta de um discurso, mas é querendo criar, assim, acho que essa relação feminismo-cinema, acho que não é o cinema querendo dar conta de um discurso do feminismo, da literatura, mas é ele tentando, aceitando transformar os caminhos, da produção, da narrativa da dramaturgia, a partir de questões que também são feministas.

Você acha que existe um "Cinema de Mulheres"? Glenda Nicácio: Eu acho difícil falar de um cinema de mulher quando se pensa em estética, e é uma pergunta que algumas vezes eu me faço e não tenho resposta e gosto de não ter resposta, tem coisas que eu penso que bom que eu não tenho resposta porque se eu tivesse resposta seria muito objetivo e muito faço de ser pego, assim, eu desconfio dessas coisa que a gente tem resposta pra tudo (muito pronto… completo) é essa resposta tá aqui muito certinha, tem algum erro, se está todo mundo com essa resposta aí, tão clara na cabeça. E então esse lugar da estética do cinema de mulher eu não consigo responder, e eu coisa que fico pensando que tem, às vezes 294 eu assisto um filme e fico dizendo nossa é uma direção feminina. O que é que me faz falar isso, assim, né? Então isso é uma provocação, que eu não sei, só uma provocação mesmo, que eu não sei responder, mas eu acho que com certeza pra mim tem a ver com esse lugar da produção, da autoria, e a autoria tem muitos lugares, né? É importante porque o cinema não é feito sozinho por mais que tenha uma diretora, não basta ter uma diretora mulher, se você tem uma equipe majoritariamente masculina, enfim, acho que são várias engrenagens, não é mudar essa chavinha assim, não é só mudar o personagem, ah era um homem e virou uma mulher, acho interessante a gente pensar naquele filme No coração do mundo, da filmes de plástico, que tem a Grace Passô, e a autoria é dos meninos, mas eles fala que quando eles escreveram o roteiro a personagem era um homem e por algum motivo eles tiveram que mudar, acharam melhor alterar e transformaram a personagem numa mulher, e aí eles falaram que quando houve essa alteração eu já ouvi eles falando essa história, e o interessante é que com essa alteração um tanto da história teve que ser alterada porque não era só mudar o nome da personagem e mudar o artigo, né? Isso é muito interessante porque não é só mudar o artigo, não é isso que a gente tá falando, não é uma questão só de gênero, é uma questão de estrutura mesmo, são formas de fazer que são diferentes, tem a possibilidade de fazer de formas diferentes, eu pensando enquanto mulher negra e lésbica, eu acho que com certeza eu estou muito atenta pra várias… e pensando que eu tô mais baixa na pirâmide eu acho que eu tenho muita atemção pra muitas coisas e fico tentando também entender isso de uma forma mais objetiva, mas enfim, eu conheço lugares de fragilidade, que talvez um diretor homem não tem que passar, nunca tenha passado, têm questões que me afetam e também por ser afetados por elas, eu acho que eu também estou mais atenta para não reproduzi-las, e tem uma outra coisa que é quando você pensa, eu tô falando da direção especificamente, mas quando você pensa na direção, você quase sempre imagina um homem, ou imaginava, porque agora a gente está conseguindo um pouco tumultuar a isso, né? Mas quase sempre você imaginava isso, né? o diretor. E aí eu acho que quando entra uma mulher, eu acho que algumas engrenagens são diferentes assim, não sei eu acho que eu tenho que descobrir uma outra forma de dirigir porque esse lugar do diretor, do diretor branco, heteronormativo, de uma classe social alta, elitizada, não me cabe, eu não me identifico com ele, e eu não sou essa diretora, nunca vou conseguir ser essa diretora, graças a Deus, porque têm lugares que são muito outros, então eu acho que para para esse lugar de direção, eu tenho que matar esses fenótipos, que estão criados assim, sabe? Em torno dessa figura, dessa função, eu tenho que matar assim, e pra mim,né. e esse meu lugar? Como é comigo assim, ah tipo eu grito no set, não, eu não gosto de gritar no set, que tipo imagina diretora é aquela pessoa que fica mandando... Mas tem uma série de coisas que não passa só pelo gênero, então tem uma série de coisas que são alteradas, a partir desse momento assim, sabe? Como você vê o machismo, e o combate ao machismo, na indústria do cinema brasileiro? Glenda Nicácio: Ah, eu acho que isso ocorre o tempo todo assim, de formas diferentes e de formas cada vez mais sutis também, né? Já passei por algumas situações que não foram tão sutis, mas ao mesmo tempo eu trabalho com equipe, eu faço parte de uma equipe que vem desde o Café com canela, a gente já tem alguns anos aí produzindo juntos, Trabalhando juntos fazendo várias coisas juntos, escrevendo, filmando, e são meus amigos também, né? Então, isso transforma também esse lugar que eu vivo, né? Eu não trabalho com equipe assim desconhecida, do eixo, em grandes projetos, geralmente são projetos meus, projetos nossos aqui 295 da produtora, que são compartilhados, têm processos bem bonitos, que são criados juntos e a gente acredita numa autoria muito coletiva, então acho que isso me protege muito, e acho que eu Trabalho com pessoas, com homens também, que me admiram muito e isso acaba me protegendo também esse ecossistema de produção em que eu estou inserida, aqui no Recôncavo com uma equipe que seja próxima, mas eu acho que uma forma de combate ao machismo é não estar sozinha, né? Eu acho que é isso porque quando você tá no set, sozinha, a possibilidade de você ser hostilizada é muito maior, com certeza, e não só no set, e a gente precisa pensar no machismo não só no set, mas também no circuito dos festivais, o machismo na relação exibição- distribuidora, porque às vezes a gente fica falando no machismo e sempre nessa camada do set, como se o set fosse o lugar onde o machismo impera, Também acho que tem machismo no set, obviamente, mas eu vejo muito machismo depois que o filme continua a vida dele, entendeu? E é isso por isso que eu acho que o importante é não estar sozinha, por isso que é importante que nos filmes de mulheres tenham mulheres porque eu acho que a gente meio que vai cuidando uma da outra, se impor também, sempre é uma energia de se impor, você sempre tem que provar que você sabe, agora um pouco menos, mas eu era mais nova, né? então também tem esse lugar da idade, de às vezes você ser mais nova que a pessoa com quem eu estou trabalhando, e ainda ser mulher, e ainda ser preta, e tem que ter essa disposição para se impor, né? Ou tem que ter essa disposição pra mostrar que você está ali porque esse é o seu cargo, e você faz do seu jeito, acho que é isso também, e também aquele caminho que eu falei a outra pergunta, de você trilhar, tá, mais como eu sendo essa persona, essa pessoa tão diferente dessa persona criada para esse cargo, como é que eu dou conta disso, acho que tem a ver um pouco com isso, as pessoas estão sempre esperando esse lugar desse diretor das antigas, desse imaginário, e de repente vem outra proposta sem grito ou negociando, ou não mandando, enfim, tendo uma outra forma de conciliar a gira ali do set, acho que as pessoas estranham, porque as pessoas te cobram para que você seja aquele estereótipo eu acho que é muito difícil para alguns homens verem isso, né? Não reconhecer essa figura, né? Porque é isso é irreconhecível, a partir do momento que a gente assume a direção, as produções, a gente transforma elas, não tem como continuar com a mesma... e acho que até tem, mas a busca da gente é para que se renove, né? Não tem porque sendo mulher e sendo preta ficar reproduzindo esse lugar. Como você acha que a produção de mulheres negras no cinema brasileiro pode ser alavancada, já que os números oficiais da Ancine, por exemplo, mostram ainda baixas estatísticas dessa produção? Ah eu acho que é tanta coisa não saberia falar assim especificamente porque são muitos lugares precisam ser mudados que muitos lugares que partem na infância mesmo, e é uma questão de estrutura social, acho que o cinema fica só jogando na nossa cara esse lugar na estrutura social que a gente tem, enquanto organização, enquanto coletivo que a gente tem, de gente, de sociedade mesmo, então eu sempre tive dificuldade de pensar numa resposta para isso que seja da ordem do cinema, mas eu acho que é isso, eu acho que esses incentivos, não está sozinha do ser a única né, porque tem sempre isso de que parece que precisa ter uma mulher precisa de ser uma mulher negra, porque parece ter sempre esse lugar de exclusividade que é sempre cruel né? Que às vezes até parece bom, e não, isso é um problema, Um defeito terrível assim que o cinema carrega, da história. 296

Você acha que passa também pela formação? Glenda Nicácio: Acho que sim, acho que passa pela criação, como as mulheres são criadas, o que é oferecido para as mulheres, o que é oferecido enquanto possibilidade sobre o que você pode ser, onde você pode chegar o que você pode fazer, eu acho que têm transformações muito grandes acontecendo assim, eu sou meio pessimista, mas muito otimista, O que é pensando num projeto assim de 10 anos a gente Vai ter transformações importantes que vão surgir que vão ecoar. É porque é um processo longo, né? 10 anos é pouquíssimo tempo embora pareça ser muito para gente que tá esperando, a gente tem necessidade de algumas respostas já, que eram pra ontem respostas urgentes, Porque a gente tá no momento que a gente tá de urgência total né, mas fora isso, 10 anos é um prazo pequeno para você já ter reverberações e eu acho que elas já estão acontecendo, eu acho que elas virão assim. É porque a gente tá num processo de retrocesso que nos deixa muito pessimistas né então a gente tem que procurar um pouco de otimismo… Glenda Nicácio: É isso, a gente deixa de ter acesso, mas não deixa de ter conhecimento, isso é uma coisa que ninguém tira. eu fico Pensando eu estou aqui, eu estou aqui, tudo bem várias coisas podem me atingir, A minha vida não tem sido cuidada, O estado não tem o mínimo cuidado com a minha vida a minha existência, Não tem, nem com a minha nem com os meus, mas eu tô aqui e estar aqui faz com que muita coisa seja pensada, muita coisa seja revolucionada, que a engrenagem gire e com isso não tem retrocesso assim, né? Conhecimento não tem retrocesso, com a vontade, tem a ver com vontade, tem a ver com possibilidade. Eu acho que quando você vislumbra o horizonte é difícil não gostar de olhar, ai você não vê céu, mas depois que você vê o céu você fala gente, é isso que eu quero, e eu gosto de pensar nesse sentido e eu acho que a gente já têm visto algumas coisas, muita coisa que tem nos animado a continuar e a gente não caminha só. O que te move para realizar seus filmes? Glenda Nicácio: Eu acho que é a parceria, acho que eu gosto muito dos processos dos filmes, para mim, meio que eu fico vivendo o universo dos filmes, o período do filme, né? Então, Eu acho muito gostoso porque são várias outras vidas, eu lembro que quando a gente tava fazendo o Café com canela, tinha uma forma de eu olhar para vida que era muito próxima do olhar do filme e que eu me exigia, assim, cotidianamente eu me exigia olhar pra vida aquela forma, né? Uma forma mais doce, não sei, mas tinha outra forma de olhar para a vida. Eu acho que eu sou muito atravessado pelas formas de olhar para vida e eu acho que pelo processo que eu tô vivendo nos filmes, e eu gosto muito disso e fazer junto assim, é um processo de criação coletiva, né? que é a forma que a gente trabalha e isso me move muito assim, pensar que a gente está brincando juntos e que isso vira um tanto de coisas depois, Está comprometido com um tanto de coisa que para gente é muito cara também. Antes de fazer a última pergunta eu gostaria que você falasse um pouco sobre como foi o processo de produção do filme Até o Fim, como foi dirigir esse filme, que você traz diversas questões, sobre a mulher, sobre uma mulher trans, a personagem Vilmar e como você tem colocado essas questões na narrativa… e com você construiu essas personagens que são todas protagonistas né? Como foi esse processo criativo? 297

Glenda Nicácio: Sim, tem um processo de formação de atores, como que chama? É preparação de atores, que a gente fala que é das antigas, porque elas fazem parte da mesma família, tanto a Arlete como a Val quanto a Maíra, só Jenny, que faz o Vilmar, que não fazia parte da família. Então, isso já garantiu para a gente um entrosamento, porque as duas são irmãs e a Maíra é sobrinha, então isso já garantiu um entrosamento de vida assim, né? De cumplicidade, de envolvimento E durante o processo da produção a gente fez encontros que eram realizados sempre na casa da Val e da Arlete e sempre terminava numa quiabada, numa feijoada, numa maniçoba, mas eram encontros que eram para leitura do roteiro e para interação com a câmera porque a gente já sabia que a gente queria essa câmera que era bem, que é bem livre né? Ela vai para cima, ela encosta, ela chega perto, ela sai, enfim, ela coabita, né? Geralmente a gente gosta, usa muito esse lugar da câmera né, dessa câmera que tá solta e que vai nos contar pelo ponto de vista dela a história que a gente tá vendo, assim, então este é um processo muito importante tanto para essa familiaridade com a câmera, para que não soasse estranho, nem fosse agressivo também pra elas, porque é agressiva, né? uma câmera aqui assim no seu ouvido, né? Eu sei que é agressivo, mas os encontros eram para tentar, enfim, fazer com que isso fosse cada vez menos. E ao mesmo tempo para a gente falar sobre o texto porque foi muito interessante a cada leitura, elas propunham várias alterações, Jenny que fazia o Vilmar especificamente foi a personagem que mais propôs alterações, por exemplo: “Ah eu acho que eu não falaria isso”, “acho que é por esse caminho”... e isso foi até de frases complexas até frases de piada, enfim, de momentos de piada, então isso foi um processo que com certeza fez com que o filme tivesse aquela fluidez, de cumplicidade mesmo, que as personagens têm estando segurando em torno de uma mesa filme todo né? Olhar para esses lugares mais dolorosos, digamos assim, da narrativa, né? E ao mesmo tempo pensar como contar essas histórias de violência sem que fosse violento, né? sem que expusesse, sem que fosse violento pro espectador é espectadora também, e sem que fosse agressivo pra gente também porque eu acho que tem coisa que você filma que você fala: “Nossa, nem eu tô dando conta disso”, eu acho que a gente não foge da violência assim, dos temas, do conflito, confronto, mas a gente sempre partia dessa perspectiva de vamos falar disso, mas como é que a gente fala sobre isso de uma forma cuidadosa, né? Que tenha cuidado e que tenha carinho também, né? Com as mulheres, com as mulheres que já tenham passado por isso, né? que vão assistir o filme e vão dizer assim, “nossa, isso já aconteceu na minha família, eu já passei por isso”, como também não transformar isso num trauma, né? Porque eu acho que o filme tem muito esse lugar de passar por essas questões para reviver, para viver para além delas e não para reviver, mas para seguir né passar por isso porque a gente precisa olhar para isso para seguir a nossa vida, para superar para continuar não tem como continuar sem olhar para isso, então eu acho que a gente meio que propõe isso para o espectador: “Não é a sua dor que a gente quer, a gente quer seguir, a gente vai terminar brindando, né? A gente vai terminar cantando, então, confia”. Na sua percepção, qual é o maior desafio para a mulher negra no cinema brasileiro? Glenda Nicácio: Ah eu acho que é chegar, porque não é um espaço que a princípio é feito para nós, e daí a importância de tantas mulheres negras estarem produzindo e tantas mulheres negras estarem repercutindo com o trabalho que fazem porque é isso, não se imagina, o mundo não foi criado para uma mulher negra, não se imagina, eu acho que tem muito, eu ainda venho de uma geração que esse imaginário era muito forte, não só de uma geração mais de uma família, de 298 uma estrutura familiar assim pobre que não tinha esse lugar da faculdade então eu acho que primeiro o se reconhecer, acho que o reconhecimento é a coisa que mais é negada, se reconhecer nos lugares, se reconhecer nas profissões, se reconhecer no mundo, se reconhecer no sonho né? Eu acho que isso é uma coisa que é muito negada e que é fundamental você tem repertório, para poder olhar e falar: “eu posso ser isso, né?” Isso é fundamental. E acho que depois que você entra o desafio é você se manter e ter saúde mental para conseguir dar conta porque é uma Babilônia.