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Línguas e Culturas Macro-Jê Saberes entrecruzados Evandro Aparecido Soares da Silva Reitor

Paulo Jorge da Silva Pró-Reitor do Câmpus Universitário do Araguaia

Adam Luiz Claudino de Brito Gerente da Câmara de Extensão

Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque Diretora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais

Tereza Ramos de Carvalho Coordenadora do Curso de Letras

Apoio financeiro CNPq Processo nº 407558/2017-9

Apoio Institucional

Fundação Nacional do Índio – FUNAI

Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – IL/UFMT

Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas – IL/UnB LÍNGUAS E CULTURAS Macro-Jê Saberes entrecruzados

Maxwell Miranda Águeda Aparecida da Cruz Borges Áurea Cavalcante Santana Suseile Andrade Sousa (Organizadores)

Barra do Garças, 2020 Organização Maxwell Miranda Águeda Aparecida da Cruz Borges Áurea Cavalcante Santana Suseile Andrade Sousa

Conselho Editorial Ana Suelly Arruda Câmara Cabral (UnB) Angel Corbera Mori (UNICAMP), Ludoviko Carnasciali dos Santos (UEL) Julio Cezar Melatti (UnB) Maria do Socorro Pimentel da Silva (UFG) Marly Augusta Lopes de Magalhães (UFMT) Mônica Maria dos Santos (UFMT) Mônica Cidele da Cruz (UNEMAT) Tereza Ramos de Carvalho (UFMT) Vanessa Lea (UNICAMP) Wilmar da Rocha D’Angelis (UNICAMP)

Revisão Maxwell Gomes Miranda Eduardo Santos Gonçalves Monteiro Águeda Aparecida da Cruz Borges

Ilustração da Capa Maial Paikan Kayapó

Elaboração de Mapa Itamar Sales

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– L779 Línguas e culturas Macro-Jê / organizadores Maxwell Miranda, Águeda Aparecida da Cruz Borges, Áurea Cavalcante Santana, Suseile Andrade Sousa. -- Barra do Garças, MT: GEDELLI/UFMT, 2020. 444p. : v. 9 ISBN 978-65-00-02975-8. 1. Antropologia. 2. Índios - Línguas. 3. Povos Macro-Jê (Índios da América do Sul) - Línguas. Povos Macro-Jê (Índios da América do Sul) - Culturas. 5. Índios da América do Sul - Brasil. I. Título.

CDD 301 ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Índice para Catálogo Sistemático (CDD) Antropologia = 301 Povos Macro-Jê (Índios da América do Sul) - Línguas - 498.3 Povos Macro-Jê (Índios da América do Sul) - Culturas - 980.1 Índios da América do Sul - Brasil = 980.41 Apresentação

sta obra reúne algumas das contribuições apresentadas durante o IX EEncontro Macro-Jê, o qual foi realizado na Universidade Federal de , Campus Universitário do Araguaia, em Barra do Garças - MT, de 20 a 22 de junho de 2018. Tendo o diálogo interdisciplinar entre ciências afins como uma de suas características singulares, o evento reuniu docentes, pesquisadores, discentes da graduação e pós-graduação, indígenas e não indígenas, para participação, apresentação e divulgação de pesquisas, com vistas a aprofundar e ampliar o conhecimento científico, considerando a relação sujeito/línguas/culturas Macro-Jê, a partir de diversas perspectivas teóricas. Inicialmente, idealizado pelo Prof. Dr. Ludoviko Carnasciali dos Santos (Universidade Estadual de Londrina), os encontros sobre línguas e culturas Macro-Jê expandiram-se e consolidaram-se como um importante espaço de reflexões/discussões tanto teóricas quanto práticas em campos do conhecimento que se dialogam e reafirmam o papel fundamental das ciências na pesquisa, documentação e manutenção da diversidade linguística no Brasil e no mundo. Dentre os agrupamentos linguísticos existentes nas terras baixas da América do Sul, a constituição de uma unidade genética “Macro-Jê” foi concebida por Rodrigues (1999: 165) como uma “hipótese em trabalho”, considerando os esforços precedentes e aqueles que se sucederam nessa direção, já que as informações disponíveis variam em quantidade e qualidade para um empreendimento histórico-comparativo mais abrangente. Mesmo assim, nos últimos anos, o número de pesquisas Línguas e Culturas Macro-Jê sobre línguas Macro-Jê aumentou consideravelmente, sobretudo, em função da expansão e acesso a Programas de Pós-Graduação em Universidades brasileiras, bem como a presença de pesquisadores indígenas nesses programas. Do ponto de vista linguístico, as línguas Macro-Jê exibem fenômenos e padrões gramaticais bastante incomuns, especialmente, no contexto sul-americano, evidenciando sua relevância para a Linguística e, num sentido mais amplo, para a compreensão da própria linguagem humana. Já em uma perspectiva antropológica, os estudos têm destacado e contribuído para a compreensão de sistemas complexos de organização social e outras manifestações culturais a ela associados. Numa visão prática, os conhecimentos produzidos dão suporte para o planejamento e execução de políticas educacionais, como formação de professores/pesquisadores indígenas em cursos de Licenciaturas Interculturais, voltadas para a valorização e manutenção da identidade linguística e cultural desses povos. Seguindo a tradição das edições anteriores, no IX Encontro Macro-Jê, as mulheres cientistas, linguistas e antropólogas, na impossibilidade de fazê-lo a todas pessoalmente, foram homenageadas pelo pioneirismo no investimento à pesquisa científica com esses povos, línguas e culturas, bem como pela formação de novos pesquisadores. Os nomes representativos dessas mulheres estão registrados no texto de homenagem. Ao imprimir neste livro, grande parte dos artigos apresentados/ debatidos durante o evento reiteramos a relevância não apenas científica, mas, também, o compromisso ético, político e social com os povos Macro-Jê e indígenas de um modo geral. Em tempos de constantes

6 Saberes entrecruzados ameaças contra os povos originários, vindas de diferentes agentes e instituições, mais que resistir, é preciso lutar e defender as garantias constitucionais dessas populações. Por isso mesmo, é preciso agradecer as parcerias e tomamos deste espaço de apresentação para fazê-lo, especialmente, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo subsídio financeiro (Processo nº 407558/2017-9), sem o qual provavelmente seria inviável a realização desse evento. Expressamos nossos agradecimentos à Universidade Federal de Mato Grosso e ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL/ UFMT), pelo apoio institucional e financeiro na concessão de diárias e passagens aos convidados; à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Coordenações Regionais de Barra do Garças e Palmas (TO), bem como as Coordenações Técnicas Locais de Canarana, Juína e São Felix do Araguaia (MT), as quais viabilizaram a vinda de representantes indígenas dos povos Boe-, Kĩsêdjê, Rikbaktsá, Karajá, Javaé e Krahô. Contamos, ainda, com o auxílio da Prof.ª Dr.ª Beleni Salete Grando (Faculdade de Educação/UFMT), Coordenadora do Projeto Rede de Saberes Indígenas na Escola UFMT/MEC, pela doação de bolsas. Nossa gratidão à Coordenação do Curso de Letras, na pessoa da Prof.ª Dr.ª Tereza Ramos de Carvalho, e da Prof.ª Me. Mônica Maria dos Santos por estarem conosco nessa empreitada. O IX Encontro Macro-Jê não teria se tornado possível se não fosse a colaboração fundamental e imensurável dos monitores do curso de Letras durante os dias de evento, sob a coordenação do Prof. Victor Santos, a quem estendemos nosso profundo agradecimento.

7 Línguas e Culturas Macro-Jê

Deixemos que o Sumário oriente o leitor e que o mergulho em cada texto possa contribuir para discussões que provoquem debates profícuos em torno do conjunto diverso de objetos de análise e de reflexões teórico/ práticas que ordenaram o IX Macro-Jê e estão materializadas neste livro.

Prof. Dr. Maxwell Gomes Miranda Prof.ª Dr.ª Águeda Aparecida da Cruz Borges

8 Sumário

Introdução Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 15

Homenagem às Mulheres Cientistas Águeda Aparecida da Cruz Borges 29

Antropologia

Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê Julio Cezar Melatti 37

Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre e no valor simbólico do feminino gerados pela aproximação com a sociedade regional no Brasil Central Vanessa Lea | Maial Paiakan Kaiapó 95

Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia karajá e suas transformações Macro-Jê Eduardo S. Nunes 119

Não é bom fazer ituaré com irmão próprio mesmo Maria Elisa Ladeira 139

O tripartido sistema de parentesco Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon 153

Parente de Onça: uma revisão crítica da análise lévi-straussiana sobre termos de parentesco macro-jê e a mitologia do roubo do fogo da onça Guilherme Falleiros 177

Porque o parentesco é sempre triádico Marcela S. Coelho de Souza 193

Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território Lilian Brandt Calçavara 221 Linguística

Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas Maxwell Miranda 243

Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô) Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô 293

Variação diastrática na língua : o verbo ir Damaris Kaninsãnh Felisbino | Marcelo Silveira 311

Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin 329

Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê) Ana Suelly Arruda Câmara Cabral | Eliseu Waduipi Xavante Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda 353

Algumas notas sobre predicados não-verbais em Kỳikatêjê (Jê) Lucivaldo S. Costa | Quélvia S. Tavares | Mirelly Paolla B. Carvalho 393

Notas de Campo

Reflexões sobre escrita etnográfica: um breve relato de reviravoltas do trabalho de campo entre os Krahô Eduardo Santos Gonçalves Monteiro 409

Xerente do Araguaia e a luta pelo “reconhecimento” étnico Lilian Brandt Calçavara 421

Sobre os Autores 433 Distribuição geográfica das línguas e culturas Macro-Jê (Rodrigues 1999)

Mapa elaborado por Itamar Sales (2020) Abreviaturas

1 Primeira Pessoa 1+2 Primeira Pessoa Dual 2 Segunda Pessoa 3 Terceira Pessoa a Agente de verbo transitivo abl Ablativo abs Absolutivo acb Acabado acc Acusativo adm Admirativo alat/allt Alativo all.imp Imperativo Alativo anim Animado ap Antipassivo art Artigo asp Aspecto ass Associativo asv Asseverativo aten Atenuativo aum/aug Aumentativo aux Auxiliar caus Causativo col Coletivizador com/comt Comitativo cond Condicional cond.temp Condicional Temporal corr Correferencial chm Chamativo cnj Conjunção cnt Conectivo ctfg Centrífugo ctg Contíguo ctpt Centrípeto dat Dativo def Definido dem Demonstrativo dem.prox Demonstrativo próximo desd Desiderativo det Determinante detr Detrimentivo (Posposição) dim Diminutivo dir Direcional distr Distributivo ds/sd Sujeito Diferente dual Dual dub Dubtativo enf Enfático epistm Epistêmico (Modalidade) erg Ergativo estat Estativo exist Existencial excl Exclusivo exort Exortativo fem Feminino fin Conjunção de finalidade foc Foco fut Futuro gen Genitivo gr Grupo hort Hortativo hrs Ouvi dizer (Hearsay) hum Humano imp Imperativo (Modo) imperf Imperfectivo inan Inanimado incl Inclusivo ind Indicativo (Modo) indef Indefinido inef Inefectivo iness Inessivo inf Infinitivo intens Intensivo instr Instrumental (Posposição) int Interrogativo irls Irrealis iter Iterativo loc Locativo masc Masculino mov Movimento ms Marca de Sujeito n.ag Nome de Agente nctg Não-Contíguo nmlz Nominalizador nsg Não singular neg Negação nom Nominativo o Paciente de verbo transitivo obl Oblíquo obj Objeto part.pac Particípio Paciente pas/pst Passado pass Passivo pauc Paucal perf Perfectivo perm.imp Imperativo permansivo pl Plural posp Posposição poss Possessivo prob Probabilidade prog Progressivo proh Proibitivo prom Promissivo prt Partícula rcpr Recíproco rdpl Reduplicação real.intr Real Intransitivo reflx Reflexivo rel Prefixo Relacional r1/rel.c Prefixo Relacional de constituência r2/rel.nc Prefixo Relacional de não constituência rls ~ real Realis (Modo) rlz Realizado S Sujeito de verbo intransitivo

SA Sujeito de verbo intransitivo alinhado com o argumento A

SO Sujeito de verbo intransitivo alinhado com o argumento O sg Singular ss/ms Mesmo Sujeito subj Subjuntivo (Modo) suj Sujeito top Tópico traj Trajetória v Verbo Introdução

Maxwell Miranda Universidade Federal de Mato Grosso

Eduardo Santos Gonçalves Monteiro Fundação Nacional do Índio – FUNAI

o longo das duas últimas décadas, temos assistido a um Acrescimento exponencial de estudos desenvolvidos em diferentes áreas do conhecimento e perspectivas teórico-metodológicas acerca da unidade hipotética ‘Macro-Jê’. Esta unidade compreende diversos povos, cuja maioria encontrava-se a leste do Brasil, indo desde o Sertão nordestino até à Mata Atlântica na região sudeste, e diferentes partes do interior. Atualmente, boa parte dos povos Macro-Jê encontra-se na área de transição entre o e Amazônia, Pantanal sul-mato- grossense e nos planaltos da região sul. A colonização do território brasileiro, em diferentes épocas, propósitos e direções, converge, por um lado, para relações entre povos indígenas e frentes de expansão que os viam (e veem) como supostos obstáculos ao dito “desenvolvimento econômico” e a certa “marcha inexorável” da história. Neste processo, as consequentes perdas sofridas por estes povos originários foram e são irreparáveis – entre elas, a devastação de culturas e a morte de diversas línguas indígenas (cf. Rodrigues 1993). Por outro lado, a mobilidade espacial característica de muitos povos macro-jê, aliada à capacidade de ocupar e adaptar-se a diferentes ecossistemas e à comentada “resiliência cultural” Jê, são certamente fatores básicos para entender a sobrevivência e a vivacidade de muitas de suas línguas e culturas nos dias atuais. Do ponto de vista científico, a compreensão dos modos como essas línguas se organizam e funcionam e as dinâmicas em torno das quais os atores sociais interagem em Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro diferentes instâncias da vida social, política e ritual, constituem peças fundamentais para a proposição de políticas alternativas às do Estado brasileiro para o fortalecimento e empoderamento dos povos indígenas, com vistas à garantia de seus direitos constitucionais. No campo das Ciências Humanas e Sociais, desde o século XIX, o interesse pelo estudo das línguas e culturas macro-jê reside nas peculiaridades e particularidades que elas apresentam em comparação com outros agrupamentos linguístico-culturais das terras baixas sul-americanas. Do ponto de vista linguístico, a hipótese de um agrupamento genético Macro-Jê adotada aqui é aquela formulada por Rodrigues (1986, 1999), de acordo com o qual é constituído por 12 famílias linguísticas – Bororo, Guató, Jê, Maxakalí, Karajá, Kamakã, Krenák (Botocudo), Karirí, Ofayé, Purí, Rikbaktsá e Yaathe. Propostas de inclusão de outros membros no tronco Macro-Jê têm sido sugeridas por Adelaar (2008), para a língua (família Chiquitano), e por Ribeiro e der Voort (2010) para as línguas Arikapú e Djeoromitxí (família Jabutí). Rodrigues (2002: 11-12), na ocasião do I Encontro sobre línguas Jê, delimitou o que poderia ser considerado uma agenda de pesquisa para as línguas dessa família, mas perfeitamente aplicável ao tronco Macro-Jê, ao definir como “tarefas básicas imediatas”: (a) comparação lexical dentro de cada grupo e reconstrução das respectivas proto-línguas: (1) setentrional, (2) central, (3) revisão e ampliação de Wiesemann para o meridional; (b) comparação de sub-sistemas gramaticais: marcadores de pessoa, marcadores relacionais, nominatividade x ergatividade, posposições, marcadores evidenciais etc.; (c) revisão da comparação fonológica de Davis com novas línguas, novos detalhes e novos pontos de vista; (d) ampliação da comparação lexical, incluindo os campos semânticos da fauna, flora e da cultura.

Desses tópicos, alguns têm sido com frequência objeto de análise desde a década de 80 a partir de línguas particulares, como por exemplo, o estudo de Urban (1985) sobre a língua Xokleng, ou abrangendo um conjunto mais amplo de línguas, como o trabalho de Wiesemann (1986) envolvendo línguas das famílias Jê, Karajá e Rikbaktsá. Atualmente,

16 Introdução muitas informações sobre essas línguas tornaram-se disponíveis graças ao aumento considerável de pesquisas desenvolvidas no âmbito de Programas de Pós-Graduação em Linguística. Mesmo com o avanço notável no estudo das línguas Macro-Jê, além da revisão e ampliação da comparação fonológica e lexical de Davis (1966, 1968), há muitos pontos que necessitam de um exame mais aprofundado e acrescentados à lista de Rodrigues (2002), com o propósito de oferecer um perfil tipológico mais abrangente dessas línguas, incluindo tópicos como negação, distinções de atos de fala, tempo, aspecto, modo, modalidade, mecanismos de mudança de valência verbal – construções causativas, aplicativas, antipassivas e médias –, estratégias de combinação oracional, via coordenação ou subordinação, entre outros. Esse empreendimento analítico-descritivo pode revelar-nos as afinidades gramaticais decorrentes de herança genética ou induzidas por contato linguístico com povos de outras matrizes linguístico-culturais. Já a partir da perspectiva antropológica, as culturas Macro-Jê têm constantemente desafiado quaisquer tentativas de importação direta de modelos antropológicos trazidos de outros contextos e continentes. Muitos dos traços mais marcantes das sociedades Jê foram ressaltados já nos trabalhos etnográficos pioneiros de Curt Nimuendajú, difundindo- se por meio de antropólogos como Robert Lowie e Claude Lévi-Strauss. Assim, a etnografia Jê insere-se, desde meados da década de 1940, no circuito de uma antropologia comparativa mundial e formula os problemas teóricos que ela suscita (Carneiro da Cunha 1993: 82). A atenção dos especialistas prontamente se voltou à “estrutura social altamente complicada” destes grupos, “comportando vários sistemas de metades que se entrecruzam, dotados de funções específicas, clãs, classes de idade, associações esportivas ou rituais e outras formas de agrupamento” (Lévi-Strauss 2008: 133 [1952]). Ressalte-se aqui o célebre paradoxo Jê, que intrigou gerações de antropólogos pela suposta incoerência entre uma cultura material marcada pela simplicidade e uma organização social extremamente complexa. Tal descompasso constituiu-se a pedra de torque do ambicioso projeto Harvard-Brasil Central, que reuniu uma série de pesquisadores (dentre os quais Julio Cezar Mellati, um dos autores deste livro) na realização de um reestudo e um balanço comparativo das sociedades Jê e Bororo.

17 Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro

O potencial do trabalho comparativo, aliás, é ampliado pelo “ar de família” cultural dos grupos Macro-Jê (cf. Carneiro da Cunha 1993; Lopes da Silva 1986 [1980]), o que torna possível pensá-los como um conjunto de transformações e compará-los de maneira metodologicamente rigorosa. Não se trata, por outro lado, de um debate encerrado: as reflexões a respeito das relações entre os povos Macro- Jê renovam-se constantemente a partir de um diálogo crítico com os esforços comparativos anteriores. Um exemplo disso, contido neste volume, é a revisão teórica proposta por Eduardo Nunes a respeito de certa “atipia” classificatória imputada aos Karajá. As contribuições dos estudos Macro-Jê continuam a mostrar sua relevância em meio à dinâmica intensa de debates, críticas e revisões nos campos e questões centrais da etnologia americanista.

Os textos da obra Os textos que compõem a presente obra são versões ampliadas e revisadas dos trabalhos apresentados na ocasião do IX Encontro Macro- Jê (2018), na Universidade Federal de Mato Grosso, em Barra do Garças, e estão divididos em três partes: Antropologia, Linguística e Notas de Campo. Nesta seção, apresentamos uma síntese dos textos, a fim de oferecer aos leitores e leitoras os temas abordados e suas respectivas contribuições. Julio Cezar Melatti inicia a seção Antropologia com o texto, Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê, no qual o autor procura “semelhanças culturais entre os povos que falam ou falaram línguas do tronco Macro-Jê” e apresenta um panorama dos tópicos mais recorrentes na pesquisa antropológica e etnológica acerca dos povos Macro-Jê desde a década de 70. Ao partir da pergunta, “em que as culturas dos povos Macro-Jê se parecem?” Melatti examina alguns traços socioculturais e sua presença nas diversas sociedades Macro-Jê, como a corrida de toras, variações no formato da aldeia, uso de batoques auriculares e labiais, círculo feminino, esquemas de terminologia de parentesco, casamento e transmissão de nomes pessoais, o dualismo da pessoa bororo, amizade formal, nomes pessoais de prestígio, riqueza simbólica, presença dos mortos. O autor finaliza

18 Introdução seu texto destacando as tradições arqueológicas que são características dos povos Macro-Jê. Em seguida, o texto, Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre e no valor simbólico do feminino gerados pela aproximação com a sociedade regional no Brasil Central, de Vanessa Lea e Maial Paiakan Kayapó, é marcado por “um intercruzamento de perspectivas”, em que de um lado, tem-se a perspectiva de uma antropóloga que, ao longo de quatro décadas, realiza pesquisa junto aos Mẽtyktire, um dos povos Mẽbêngôkre (Kayapó), e de outro, o olhar de uma mulher indígena que estuou na cidade e formou-se em Direito, para defender os direitos de seu povo. As autoras abordam a questão de gênero para o povo Mẽbêngôkre, exemplificando essa situação com o que vem sendo discutido em outros países latino-americanos, como na Guatemala e Bolívia. Embora muitos povos amazônicos valorizem e continuem naturalizando os homens como representantes de suas comunidades, similarmente ao caso da Bolívia, algumas exceções a esse cenário começa a surgir a leste do Xingu, em que mulheres mẽbêngôkre vêm assumindo funções de chefia de aldeias. Nesse sentido, é significativa a afirmação de Maial, de acordo com a qual “[...] o feminismo entra no sentido de dar voz às mulheres, de dar espaço a elas de representação dentro do movimento indígena, mas não no sentido de interferir na cultura. As mulheres não querem realizar as mesmas atividades que os homens, por exemplo, não querem caçar e pescar. Elas têm suas próprias atividades e saberes [...]” (grifos nossos). O texto encerra chamando- nos a atenção para o fato de que “[O]s antropólogos contribuíram para o silenciamento das mulheres Mẽbêngôkre, relegando-as à “periferia” da aldeia”, algo que pode ser estendido a outras sociedades indígenas, em que as mulheres na maioria das vezes ocupam um lugar secundário nas descrições etnográficas, e alerta-nos para o etnocentrismo de demandas de promoção de igualdade de gênero, cujos valores podem ser contraditórios aos dos povos indígenas. Eduardo Soares Nunes, em Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia karajá e suas transformações Macro-Jê, busca problematizar certo “desencaixe tipológico” Karajá (Inỹ), evidenciado pelo silêncio quase absoluto sobre este povo no seio do clássico debate em torno dos modelos teóricos de sociedades multidualistas do Brasil Central. Assim, propõe

19 Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro um “experimento analítico” a partir das possibilidades de transformação disponíveis no caso Karajá, provocando uma reflexão sobre o caráter auto evidente dos planos de aldeia e da própria circularidade das aldeias Jê-Bororo. Estabelecendo um profícuo diálogo entre a etnografia Karajá e panará, argumenta que a disposição espacial da aldeia Karajá é uma variante estrutural cujas possibilidades de transformação evidenciam e, mais ainda, radicalizam um ponto de inversão fundamental em relação à imagem tradicional do dualismo assimétrico Jê: o centro da aldeia, antes de seu o lugar da “cultura”, mostra-se como local por excelência da alteridade. A partir daí, Nunes explora desdobramentos possíveis por meio de seu trabalho etnográfico nas aldeia Karajá, Burudina e Santa Isabel, onde o leitor acompanha a exposição de múltiplas oposições, seja entre cidade e rio/mato, oeste e leste, ou entre homens e mulheres, em paralelo com a demonstração do rendimento heurístico do ex-centrismo Karajá e de sua aproximação analítica com o conjunto Macro-Jê, tomado como amplo grupo de transformações. A contribuição de Maria Elisa Ladeira, intitulada Não é bom fazer ituare com irmão próprio mesmo, recupera parte de sua dissertação publicada em 1982, já considerada um clássico dos estudos Jê, para discutir o tema da nominação entre os , conjunto de povos situados no , Maranhão e Pará que compartilha intimamente traços culturais e linguísticos entre si. Após ressaltar a importância da nominação para o mapeamento e o estabelecimento de relações e de padrões específicos de comportamento entre pessoas dos diversos povos Timbira, a autora argumenta que o processo de transmissão de nomes constitui, de forma articulada e complementar às trocas matrimoniais, o domínio das alianças entre os grupos domésticos e segmentos residenciais no seio destes povos. Assim, a partir da descrição etnográfica da relação de nominação chamada “fazer ituare”, estabelecida desde criança entre dois irmãos de sexo oposto que se comprometem a trocar seus nomes, Ladeira realiza uma revisão crítica da bibliografia disponível sobre o tema entre os povos Timbira, que supunha uma correlação entre nome e residência, em que os possíveis nominadores se encontram em posição genealógica bastante próxima de ego, o que excluía categorias de parentes patrilaterais localizadas em outros segmentos residenciais.

20 Introdução

Nesses modelos, a circulação de nomes masculinos mantinha-se restrita aos seus segmentos de origem, de modo a “compensar” o padrão de residência uxorilocal praticado. Ao contrário, a autora argumenta que a distância genealógica ideal para fazer ituare é maior do que se admitia anteriormente. Esta distância permite que os nomes circulem para fora de seus segmentos residenciais de origem, reforçando laços entre parentes patrilaterais dispersos pelos diferentes segmentos da aldeia e abrindo possibilidades de redefinição do gradiente de “parentes próximos” e “parentes distantes”, fundamental na definição dos casamentos. Evidencia-se, assim, a complementaridade das trocas de nomes e trocas de cônjuges para o estabelecimento e a transformação de alianças constitutivas da socialidade timbira. O tripartido sistema de parentesco Xavante, de Marcos de Miranda Ramires e Boaventura Walua Xanon, tem como ponto central a apresentação de uma “etnografia dos sistemas de parentesco xavante”, resultante de trabalho de campo realizado entre os Xavante (autodenominados A’u w ẽ ) na Terra Indígena Marãiwatsédé, localizada no nordeste do Estado de Mato Grosso. Iniciando seu texto com uma breve revisão bibliográfica acerca de aspectos relevantes dos sistemas de relações xavante que possuem ressonâncias com seu sistema de parentesco, os autores passam a apresentar os resultados da sistematização parcial da terminologia de parentesco a’uwẽ, dispostos visualmente em diagramas. Por meio de um cotejamento pormenorizado dos dados obtidos em campo com um conjunto considerável de obras da bibliografia antropológica disponível a respeito dos Xavante, Ramires e Xanon apontam ajustes, aproximações e contrastes entre estes materiais, sugerindo a existência de uma “tripartição do vocabulário de parentesco a’uwẽ” em consanguíneos paralelos, consanguíneos cruzados (cognatos cruzados) e afins e uma revisão do suposto caráter sociocentrado deste sistema de parentesco. Temos, em seguida, a contribuição de Guilherme Falleiros, entitulada Parente de Onça: uma revisão crítica da análise lévi-straussiana sobre termos de parentesco macro-jê e a mitologia do roubo do fogo da onça. Retornando ao universo das Mitológicas lévi-straussianas, o autor evoca o tema mítico, caro a muitos povos Jê, do roubo do fogo da onça. Ao longo da argumentação apresentada, Falleiros busca introduzir

21 Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro a perspectiva xavante - a’uwẽ no seio do grupo de transformações analisado por Lévi-Strauss em sua obra. Ao fazê-lo, busca revisar criticamente tal análise, apresentando nuances às conclusões lévi- straussianas que apontam para a afinidade potencial (cunhadio) como foco da relação estabelecida entre humanidade e a onça. Ao contrário, a potência concedida à onça, esta inimiga da humanidade, mas detentora de um dos tesouros culturais fundamentais para os homens, pode ser atribuição, sugere o autor, tanto da filiação potencial da relação estabelecida entre humano e onça quanto da condição de avô – posição mais aproximada da potência cósmica original – deste último na relação com o jovem xavante. Em Porque o parentesco é sempre triádico, Marcela Coelho de Souza apresenta uma reflexão crítica sobre pressupostos fundamentais da teorização antropológica clássica a partir do problema dos termos triádicos de parentesco. Seu objetivo é indicar como tal questão “transborda interesses especializados” e impõe um “deslocamento no entendimento convencional na Antropologia, e na forma como as teorias dos parentesco foram construídas e vêm sendo des/re-construídas”. Para tanto, a autora parte do trabalho da antropóloga (e uma das autoras deste livro) Vanessa Lea junto aos Mẽbengôkre, de estudiosos de casos australianos, e os exemplos trazidos a partir de sua própria relação e colaboração com Jamthô Kisêdjê, professor e cursista de licenciatura indígena. Privilegiando uma abordagem pragmática da elocução das relações de parentesco, Coelho de Souza aponta para a produtividade de esquemas pensados para representar as relações triádicas, que reinserem a classificação num contexto interacional específico. A autora ressalta o caráter lógico do fenômeno, argumentando que as relações de parentesco sempre são, logicamente, triádicas, ao contrário da codificação e conceitualização que classifica relações diádicas a partir de regras de equivalência entre posições genealógicas, segundo as escolas e modelos clássicos da Antropologia do parentesco. Na determinação das relações de parentesco, ressalta a autora, seria fundamental considerar a simultaneidade e divergência de perspectivas envolvidas, o que é explicitado pela possibilidade, cara às relações triádicas, da distinção

22 Introdução entre o ponto de referência a partir do qual a relação é calculada no sistema (propositus) e de ego (locutor). Em Ilha do Bananal em chamas: os Karajá e o fogo em seu território, Lilian Brandt Calçavara caracteriza os diversos usos do fogo que ocorrem e que ocorriam anteriormente na Ilha do Bananal (Terra Indígena Parque do Araguaia), bem como os impactos destes na vida dos Karajá. São utilizados como referências mapas, pesquisas sobre o Manejo Integrado do Fogo (MIF), conhecimentos tradicionais indígenas relacionados ao uso do fogo e sobre a antropologia da tecnologia. Durante o processo de pesquisa, a autora também produziu o vídeo “Mifando a Ilha”, com entrevistas de indígenas e especialistas, além de registros do manejo do fogo realizado em 2016. Os textos da seção Linguística contemplam abordagens tanto sincrônicas quanto diacrônicas na descrição e análise de fenômenos gramaticais comuns às línguas Macro-Jê. Maxwell Miranda abre a seção com o texto, Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas, no qual são exploradas as possibilidades e potencialidades a partir do modelo da teoria da Gramaticalização proposto por Heine et al. (1991) e Heine e Kuteva (2002, 2007). É salientado que apesar de haver algumas tentativas de abordar mudança gramatical, tal como foi delimitado por Rodrigues (2002), elas são ainda bastante limitadas para fins de reconstrução interna da família Jê. O texto de Miranda descreve e explica o desenvolvimento histórico de categorias gramaticais, como marcadores de número, aumentativo vs. diminutivo, e posposições ou expressões locativas envolvendo nomes de partes do corpo. Considerando que o perfil morfológico de boa parte das línguas Jê é predominantemente analítico, não é surpreendente que as funções gramaticais coexistam com aqueles usos lexicais, ou que antigas formas gramaticais ainda convivam lado a lado com aquelas mais novas, conforme é previsto na teoria da Gramaticalização. O texto ainda pontua que conceber os fatos a partir dessa teoria, não pressupõe a substituição de métodos clássicos da Linguística Histórica, como Método Comparativo e da Reconstrução Interna, mas antes os complementa. Januacele da Costa e Fábia Fulni-ô, em seu texto, Modo e

23 Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro

Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô), apresentam uma discussão preliminar da modalidade nessa língua. Trata-se da única língua da família de mesma denominação e também a única língua indígena falada no Nordeste, destacando-se, entre as línguas Macro-Jê, por sua excepcional morfologia verbal. A expressão formal de distintos valores modais, em Yaathe, “[...] é quase sempre mista, com uma ou mais de uma ocorrendo na morfologia e uma ou mais de uma se realizando através de partículas ou verbos modais.” As autoras fundamentam a presente análise na perspectiva de Frawley (1992), com dados linguísticos de primeira-mão. É destacado também que um estudo cuidadoso dos usos e das interações do sistema modal com outros sistemas gramaticais é necessário, a fim de contemplar fatores semânticos, além dos significados básicos, pragmáticos e discursivos. Dando continuidade aos textos da seção de Linguística, Damaris Kaninsãnh Felisbino e Marcelo Silveira, em Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir, cujos propósitos são “investigar o uso das variações do verbo tĩg (ir), que ocorrem quando falantes respondem a uma pergunta” e “entender como e por que ocorre essa variação em termos sociolinguísticos.” O estudo baseia-se na Sociolinguística Variacionista e investiga a variação na pronúncia do verbo tĩg ‘ir’, que alterna entre uma forma padrão [tĩŋ] e uma forma não padrão estigmatizada tnhĩg [tʃĩŋ]. Conforme é salientado pelos autores, pretende-se preencher uma lacuna nas pesquisas destinadas à variação linguística em línguas indígenas brasileiras, especialmente em Kaingang, com vistas a contribuir para a elaboração de uma gramática pedagógica dessa língua. O texto de Mário André Coelho da Silva e Andrey Nikulin, Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí, explora a expressão morfológica de três categorias flexionais de verbos nessa língua: indexação dos argumentos de pessoa, modo e contiguidade. Contrariamente a visão difundida de que “[...] diversas línguas Macro- Jê, dentre elas o Maxakalí, contam, no geral, com uma morfologia flexional extremamente simples” (Ribeiro 2006), os autores, contudo, mostram que o verbo nessa língua é mais complexo do que apresentado em descrições anteriores. A complexidade morfológica do verbo em Maxakalí é demonstrada pela intrincada relação entre categorias gramaticais, processos fonológicos, morfofonológicos e constituência

24 Introdução sintática. Os fatos analisados pelos autores lançam novas perspectivas para a compreensão da morfologia verbal da língua Maxakalí. O artigo Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê), de Ana Suelly Arruda Câmara Cabral, Eliseu Waduipi Xavante, Luis Miguel Rojas-Berscia e Maxwell Miranda, trata da expressão de número em predicados verbais nas línguas Xavante e , ambas pertencentes ao sub-ramo Central da família Jê. A partir do trabalho de Cavalcante (1987) sobre o Kaingang falado em São Paulo, os autores discutem as particularidades das línguas Jê Centrais, especialmente o Xavante, no que diz respeito à distinção ternária de número – singular, dual e plural – por meio de partículas especiais que combinam os traços de número/pessoa. Além de nomes e pronomes, esta distinção aplica-se também a raízes verbais alternantes na relação entre o núcleo verbal e seus argumentos, de predicados verbais e nominais. Assim, os autores defendem que o sistema de concordância de línguas Jê Centrais atende ao Princípio de Transparência Semântica (Seuren & Wekker 1986), de acordo com o qual a expressão e marcação de número, por meio de diferentes operadores, aumenta o nível de transparência semântica, evitando ambiguidades tanto da perspectiva do falante quanto do interlocutor. Lucivaldo Silva da Costa, Quélvia Souza Tavares e Mirelly Paolla Borges de Carvalho, em Algumas notas sobre predicados não-verbais em Kỳikatêjê (Jê), examinam predicados não-verbais – nominais, locativos, possessivos e existenciais, com base em critérios semânticos e morfossintáticos. A partir de uma perspectiva tipológica e funcional, os autores argumentam que não há verbos cópula nessa língua e a principal estratégia morfossintática empregada na maior parte dos predicados não-verbais é a justaposição, similarmente ao que é encontrado em outras línguas Jê. Por se tratar de uma variedade Timbira ainda com estudos descritivos, o presente trabalho é uma contribuição às ações de documentação e revitalização da língua falada pelo povo Kỳikatêjê. A seção Notas de Campos é destinada a problematizações levantadas a partir da pesquisa de campo junto a comunidades indígenas e que podem ser tomadas como diretrizes para futuras incursões. O texto Reflexões sobre escrita etnográfica: um breve relato de reviravoltas

25 Maxwell Miranda | Eduardo Santos Gonçalves Monteiro do trabalho de campo entre os Krahô, escrito por Eduardo Monteiro, dedica-se a tratar das relações estabelecidas entre o trabalho de campo e a escrita etnográfica, refletindo sobre a abertura extraordinária para a imprevisibilidade destas relações e algumas de suas implicações no trabalho etnográfico. Para tanto, apresenta um pequeno caso etnográfico ocorrido durante sua pesquisa entre os Krahô (autodenominados mẽhĩ), que acaba se revelando como insight que provoca uma inflexão fundamental tanto para o modo como o autor apreende os aspectos da socialidade mẽhĩ abordados em sua pesquisa quanto para a forma como organiza textualmente este processo compreensivo. Assim, Monteiro aponta como, a partir de uma série de convergências, que envolvem o reencontro com o pequeno trecho de seu caderno de campo e a aproximação com o debate antropológico acerca do conceito de teoria etnográfica, foi possível perceber como uma reflexão sobre o conceito krahô de amijkĩ, cujo campo semântico é constituído por categorias como “festa” e “alegria”, poderia se tornar o eixo estruturante de sua pesquisa. O povo Xerente do Araguaia é formado por descendentes dos Xerente que vieram para a região do Araguaia em busca de melhores condições de vida. No artigo Xerente do Araguaia e a luta pelo ‘reconhecimento’ étnico, Lilian Brandt Calçavara discute a demanda do grupo por um “reconhecimento” do Estado. Esta demanda contradiz a legislação indigenista, que entende que o pertencimento étnico se dá através da autodeclaração e do reconhecimento do grupo. Em busca desse “reconhecimento”, a pesquisadora acompanhou lideranças do povo Xerente do Aarguaia, que residem em Mato Grosso, em uma viagem aos Xerente, em Tocantins. A pesquisa trouxe à tona outra contradição: o que os Xerente entendem como constitutivo do “ser Xerente” é substancialmente diferente da compreensão que os Xerente do Araguaia têm sobre esse pertencimento étnico. Essas diferenças não colocam a identidade indígena dos Xerente do Araguaia em cheque, mas sim a fragilidade do Estado para lidar com a diversidade que constitui os povos indígenas. Os estudos presentes nesta obra é uma pequena fração de um conjunto mais amplo de pesquisas realizadas a partir de e com povos Macro-Jê no campo das Ciências Humanas e Sociais. Em tempos em

26 Introdução que a Ciência é constantemente vilipendiada, suas ações postas em dúvida e os investimentos financeiros cada vez mais escassos, promover e difundir os resultados de tais pesquisas à sociedade, em geral, mais que necessário e urgente, é um ato político contra quaisquer iniciativas que busquem silenciar ou apagar da História o papel de cientistas na formação do pensamento crítico. Assim, esperamos que os leitores e as leitoras possam conhecer e compreender uma parcela da diversidade das culturas e línguas dos povos originários que existe e resiste no Brasil.

Referências Adelaar, Willem F. H. 2008. Relações externas do Macro-Jê: o caso do Chiquitano. In: Stella Telles & Aldir Santos de Paula (Eds.). Topica- lizando Macro-Jê. Recife: NECTAR, pp. 9-28. Carneiro da Cunha, Manuela. 1993. Les études Gê. L’ Ho m m e , vol.33(126- 128), pp.77-93. Cavalcante, Marita Pôrto. 1987. Fonologia e morfologia da língua Kain- gang: o dialeto de São Paulo comparado com o do Paraná. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas. Davis, Irvine. 1966. Comparative Jê phonology. Estudos Linguísticos: Revista Brasileira de Linguística Teórica e Aplicada vol. 1, n. 2, pp. 10-24. _____. 1968. Some Macro-Je Relationships. International Journal of American Linguistics, vol. 34, n. 1, pp. 42-47. Frawley, William. 1992. Linguistic semantics. Hillsdale, New jersey: Lawrence Erlbaum. Lévi-Strauss, Claude. 2008 [1952]. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify. Lopes da Silva, Aracy. 1986 [1980]. Nomes e Amigos: da Prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê. São Paulo: USP-FFLCH, 340pp. Heine, Bernd; Claudi, Ulrike; Hünnemeyer, Friederike. 1991. Grammat- icalization – A conceptual framework. Chicago: The Chicago Uni- versity Press.

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28 Homenagem às Mulheres Cientistas

Águeda Aparecida da Cruz Borges Universidade Federal de Mato Grosso

Aprendeu a ler lendo números. Brincar com números era o que mais a divertia e de noite sonhava com Arquimedes. O pai proibia: – Isso não é coisa de mulher – dizia. Quando a Revolução Francesa fundou a Escola Politécnica, Sophie Germain tinha dezoito anos. Quis entrar. Fecharam as portas na sua cara: – Isso não é coisa de mulher – disseram. Por conta própria, sozinha, estudou, pesquisou, inventou. Enviava seus trabalhos, por correio, ao professor Lagrange. Sophie assinava Monsieur Antoine-August Le Blanc, e as- sim evitava que o exímio mestre respondesse: – Isso não é coisa de mulher. Fazia dez anos que se correspondiam, de matemático a ma- temático, quando o professor soube que ele era ela. A partir de então, Sophie foi a única mulher aceita no mas- culino Olimpo da ciência europeia: nas matemáticas, apro- fundando teoremas, e depois na física, onde revolucionou o estudo das superfícies elásticas. Um século depois, suas contribuições ajudaram a se tornar possível, entre outras coisas, a torre Eiffel. A torre tem gravados os nomes de vários cientistas. Sophie não está lá. Em seu atestado de óbito, de 1831, aparece como dona de casa, e não como cientista: – Isso não é coisa de mulher – disse o funcionário. (Galeano 2008: 191).

Enunciar é, de certo modo, colocar um espaço político em funcionamento. Por exemplo, se enuncio: eu sou mulher, eu sou esposa, eu sou mãe, eu sou professora, eu sou mulher pesquisadora... nesses dizeres me subjetivo. Pensando assim, a posição para falar, agora, com o objetivo de homenagear algumas mulheres (por representação) é por identificação, até porque, ainda que não tenhamos uma convivência, não sejamos parentes, somos mulheres. O certo é que os aspectos que

29 Línguas e Culturas Macro-Jê nos aproximam são muito mais do que os que nos afastam, um deles é a língua. O meu desejo era poder dizer nas línguas todas que estiveram presentes no IX Encontro Macro-Jê, mas a história de aprendizagem das línguas não me permitiu aprendê-las, eu mal sei um pouco sobre elas. No entanto, fico feliz em me inscrever no espaço de múltiplas línguas e saber que nenhuma delas funciona sozinha; somos pessoas atreladas por diversas línguas, embora, principalmente no meio acadêmico, muitos considerem que haja uma língua de ciência, o inglês. Na academia, além da disputa entre sujeitos na corrida pela produtividade, há, também, uma disputa entre línguas. Espaços como o desse Evento servem para fazer ruir essa disputa e, no mínimo, criar aberturas para novos/outros conhecimentos linguísticos, especialmente, no que tange às línguas dos povos originários. Esse começo de conversa me leva ao objetivo deste texto, qual seja o de homenagear mulheres fortes que ocupam um lugar privilegiado nesse espaço de produção científica, pois, assim como nas línguas, historicamente, o lugar de ciência para as mulheres também foi/é lugar de disputa e, apesar de esforços, ainda é relegado à margem ou à ausência ou a afirmações de que, em algum momento, as carreiras da ciência, frisando poucas exceções em áreas, por exemplo, relacionadas ao ‘cuidado’, como é o caso da enfermagem, eram consideradas território de homens e, ao mesmo tempo, a área das ‘letras’ era mais feminino vinculado ao imaginário de sexo frágil, de maternidade, de mulher do lar. Se tomarmos um tempo e lançarmos o olhar para o passado, vamos perceber que esse preconceito não poderia estar mais equivocado, vocês/nós e aqui eu falo de um Nós coletivo, no desejo de juntar a maior quantidade de mulheres que romperam/rompem com esse imaginário, sabemos que não funciona assim. Vejamos o que nos escreve Velho:

Uma vez feita a opção pela carreira científica, a mulher se depara com o conflito da maternidade, da atenção e obrigação com a família vis-a- vis as exigências da vida acadêmica. Algumas sucumbem e optam pela família, outras, pela academia, e um número decide combinar as duas. Sobre essas últimas, não é necessário dizer quanto têm que se desdobrar para dar conta não apenas das tarefas múltiplas, mas também para

30 Saberes entrecruzados

conviver com a consciência duplamente culposa: por não se dedicar mais aos filhos e por não ser tão produtiva quanto se esperaria (ou gostaria). (Velho 2006: xv).

Temos muitos exemplos de mulheres que, ao longo da história, se destacaram nas áreas da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática e eu destaco, das Ciências Humanas e Sociais. Inclusive, na história do patriarcado, há inúmeros casos nos quais os homens se aproveitaram dos conhecimentos das mulheres para brilhar com seus trabalhos. Quero redizer com isso que o lugar da mulher na produção científica é, também, um lugar de lutas e não pode ser desvinculado da luta de gênero, da luta étnica. As mulheres indígenas, especialmente, são lideranças fundamentais na luta dos povos pelo reconhecimento de sua terra, de sua identidade. As diferentes etnias brasileiras estão representadas na atuação e participação política de muitas mulheres indígenas. Como tantas outras, elas também se veem, muitas vezes, divididas entre tantos afazeres e responsabilidades, além de enfrentar como nós a violência de gênero que irrompe sempre que levantam sua voz. Porém, essas mulheres enfrentam questões que dificilmente encontram simpatia da população brasileira e que, geralmente, são ignoradas por mulheres ocidentais. Da mesma maneira que a história formal apaga os feitos de mulheres, no movimento feminista a atuação de mulheres não- ocidentais, também, é desconhecida de grande parte. Portanto, aproveito deste momento de homenagem para sublinhar e apoiar a luta de mulheres indígenas, ressaltando a diversidade étnica. De algum modo, a visibilidade de mulheres indígenas, não apenas no mundo acadêmico, nas nossas pesquisas é possibilitada pelo enfrentamento de mulheres não indígenas, neste caso, eu afirmo, no desenvolvimento de pesquisas, no deslocamento para o convívio em áreas indígenas, reiterando que, também, as mulheres não indígenas são/foram ofuscadas nas suas histórias de mulheres/pesquisadoras. Para representar tais mulheres, na ocasião dessa edição do Encontro Macro-Jê, homenageamos as mulheres cientistas, à título de representação, na impossibilidade de nomear todas as mulheres que

31 Línguas e Culturas Macro-Jê contribuíram e contribuem para o estudo das línguas e culturas dos povos indígenas.

Prof.ª Dr.ª Ana Suelly Arruda Câmara Cabral – Universidade de Brasília Prof.ª Dr.ª Aracy Lopes da Silva (in memoriam) – Universidade de São Paulo Prof.ª Ms. Creuza Prũmkwỳj Krahô – SEDUC/Tocantins Prof.ª Dr.ª Iara Ferraz – Universidade Estácio de Sá Prof.ª Dr.ª Januacele da Costa – Universidade Federal de Alagoas Prof.ª Dr.ª Leopoldina Araújo – Universidade Federal do Pará Prof.ª Dr.ª Lux Boelitz Vidal – Universidade de São Paulo Prof.ª Dr.ª Marcela Coelho de Souza – Universidade de Brasília Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Pimentel – Universidade Federal de Goiás Prof.ª Dr.ª Maria Elisa Ladeira – Universidade de São Paulo Prof.ª Dr.ª Silvia Lucia Bigonjal Braggio – Universidade Federal de Goiás

Quantos outros nomes ecoaram no espaço!!! Todas vocês e as que já se foram e as que estão por vir determinam o quadro de mudanças, pois são muitas as mulheres vinculadas a importantes descobertas científicas; vocês representam parte significativa dentre elas e se me coube elaborar este texto, digo que o fiz com enorme prazer. Infelizmente, a ciência no nosso país está passando por um período turbulento. Depois de anos de austeridade, a pesquisa no Brasil teme que a redução no orçamento federal, atropele de morte a nossa produção científica. A política globalizadora, individualista, os discursos pós- modernos vêm camuflando a realidade racista, classista, patriarcal na qual vivemos, colocando-nos em um marco que minimiza o fator histórico de mais de 500 anos de colonização. Atualmente, o chamado neocolonialismo, as leis migratórias, os centros de internamento para migrantes, o reforço das fronteiras e outros, se inscrevem tão fortemente e produzem diferentes barreiras infranqueáveis, que segregam e que, se não atentarmos, passam despercebidas como se não existissem.

32 Saberes entrecruzados

Penso que precisamos desenvolver estratégias de relação entre as diferenças e para o nosso fortalecimento e inscrição na Ciência que produzimos, embora saibamos que a teoria, por si, não destrói o preconceito, o racismo, o classismo e toda forma de apagamento, de violência, em específico, de mulheres. São necessários atos visíveis, práticos, públicos! Por exemplo, reconhecer que diferenças existem entre nós, entre indígenas e não indígenas. As diferenças não são o que nos separam. O que nos separa é o não reconhecimento delas e, obviamente, as distorções em apagá-las. Que Nós, mulheres, brasileiras indígenas, negras, ribeirinhas, quilombolas, urbanas, trans, cientistas ou não, consigamos nos livrar dos “grampos”1 que nos aprisionam por sermos mulheres e que a ciência seja nossa aliada!

Referências Galeano, Eduardo. 2008. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM. Velho, L. Prefácio. In: Santos, L. W.; Ichikawa, E. Y.; Cargano, D. F. (Org.). Ciência, tecnologia e gênero: desvelando o feminino na construção do conhecimento. Londrina: IAPAR, 2006.

1 Participação da Creuza Prũmkwỳj Krahô no IX Macro-Jê (2018), na Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário do Araguaia, em Barra do Garças.

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Antropologia

Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê1

Julio Cezar Melatti Universidade de Brasília

Introdução Geralmente, se supõe que os povos falantes de línguas de um mesmo tronco resultem de sucessivas divisões de um único povo bem mais antigo com a consequente diversificação de sua língua em várias outras dela derivadas. Essas línguas recentes mantêm muitas semelhanças com aquela língua remota, tanto no vocabulário como em outras características. Tal como acontece com as línguas, o restante da cultura daquele povo antigo pode deixar vestígios, nas culturas dos povos recentes, provenientes das sucessivas cisões. Por isso, os etnólogos sempre esperam que povos falantes de línguas da mesma família e até do mesmo tronco mostrem algumas semelhanças culturais não linguísticas entre si. É possível conjecturar que assim tenha acontecido com as culturas dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê. Por conseguinte, o propósito deste texto é procurar semelhanças culturais entre os povos que falam ou falaram línguas deste tronco. Não vou fazer isso sozinho, nem estou muito preparado para fazê-lo. Mas, ao fazê-lo, é preciso da ajuda de indígenas ou não, falantes ou não dessas línguas. Na figura 1 a seguir apresento as 12 famílias incluídas no tronco Macro-Jê. Algumas dessas famílias só incluem uma língua, uma vez que as informações disponíveis sobre elas não são suficientes para que outras línguas sejam colocadas na mesma família. No entanto podem ter existido e desaparecido sem chegarem a nosso conhecimento. As famílias, portanto, podem conter uma só língua, como uma classe ter um só elemento.

1 Este texto foi redigido como suporte para discussão no IX Encontro Macro-Jê, Uni- versidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Câmpus Universitário do Araguaia, Barra do Garças, MT, em 2018.

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Figura 1. Famílias do tronco Macro-Jê

A Figura 1 acompanha, de modo aproximado, a distribuição geográfica das famílias. No centro e numa célula mais ampla está a família Jê, pois suas línguas, mais numerosas do que as das demais famílias, distribuem-se desde o Maranhão e o Pará até o Rio Grande do Sul. No interior dessa grande célula, está a da família Karajá, cujas línguas se distribuem ao longo do Araguaia, que tem povos Jê ao norte, a leste e a oeste. À esquerda da célula Jê, estão as das famílias Rikbaktsá, Bororo, Guató e Ofayé, pois ficam a oeste dos Jê, as duas primeiras em Mato Grosso e as outras duas em . À direita da célula Jê estão as que lhe ficam a leste: Karirí, da Paraíba ao rio São Francisco; Yaathe (que inclui a língua dos Fulni-ô) em ; Kamakã, no sul da e norte do Espírito Santo; Maxakalí, na fronteira −Espírito Santo; Botocudo, no interior de Minas Gerais; e Purí, na fronteira Minas Gerais−Espírito Santo−Rio de Janeiro. Os povos Jê-falantes são comumente distribuídos em três grupos: os do Norte, os Centrais e os do Sul. Os do Norte falam as seguintes línguas: Timbira, Apinajé, Kayapó, e Panará. Duas dessas línguas são faladas por mais de um povo: a língua Timbira, pelos Canela (Ramkôkamekrá), Apãniekrá, Pykôbjê, Krĩkati, Krẽjê e Kukôjkamekrá do Maranhão, pelos Parkatêjê (Gavião) do Pará e pelos Krahô do Tocantins; a língua dos Suyá também é falada pelos Tapayuna no norte de Mato Grosso. Ainda, quanto aos Jê do Norte, fica-me a dúvida se os Panarás se incluem entre eles, pois Odair Giraldin apresenta fortes argumentos em favor da tese de que eles são os antigos Caiapó do Sul,2

2 Optou-se por manter a grafia da palavra ‘Caiapó do Sul’, já convencionalizada na

38 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê que viveram junto ao rio Paraná e seus formadores, na fronteira São Paulo−Mato Grosso do Sul, no Triângulo Mineiro e no sul de Goiás. Será que sua língua é parecida com as dos Jê do Norte? Ou será que seu território se estendia desde a fronteira Pará−Mato Grosso, onde vivem hoje, até o rio Paraná, tendo daí recuado até se recolherem novamente à extremidade norte? Os Jê Centrais têm uma só língua, o Akwẽ, falada pelos Xavante, de Mato Grosso, Xerente, de Tocantins, porém não mais falada pelos Xakriabá, de Minas Gerais. É assim que parece indicar a tabela da pág. 56 do livro Línguas Brasileiras de Aryon Dall’Igna Rodrigues (1986). Porém, a bibliografia indicada na nota de rodapé nº 3, pp. 50-52, dá a impressão de tomar como distintas as línguas Xavante e Xerente. Quanto aos Jê do Sul, os Kaingang e os Xokleng falam línguas distintas, conforme a referida tabela, mas nada consta dos Xokleng na bibliografia da citada nota de rodapé. Vale notar que Jules Henry (1964), no livro Jungle People, sobre os Xokleng, chama-os todo o tempo de Kaingang. Quanto à família Karajá, a referida tabela nela inclui três línguas: Karajá, Javaé e Xambioá. Todas faladas ao longo do Araguaia. Passando às quatro famílias que ficam a oeste da família Jê, a Rikbaktsá, a Guató e a Ofayé só incluem uma língua cada. A família Bororo abrange duas línguas: Bororo e . Esta última, segundo informe recente, está reduzida a um só falante. Por sua vez, das seis famílias a leste da Jê, duas incluem línguas atualmente faladas: a Yaathe, que contém uma única língua, a dos Fulni-ô; e a Maxakalí, de cujas línguas, Maxakalí, Pataxó e Pataxó Hãhãhãe, somente a primeira continua a ser falada. Da família Karirí, nenhuma língua é mais falada, mas de duas delas há boa documentação, datada da passagem do século XVII para o XVIII: o Kipeá e o Dzubukuá. As línguas da família Kamakã (Kamakã, Mongoió, Kotoxó, Meniên) se falaram até a primeira metade do século XX. As da família Purí (Purí, Coroado, Coropó), até o final do século XIX. Das línguas da família Botocudo (Krenák e Nakrehé), pouca informação se consegue nos dias de hoje dos descendentes daqueles que as falaram.

literatura linguística, histórica e etnológica, para diferenciar esse povo dos atuais gru- pos Kayapó localizados no sul e sudeste do estado do Pará e norte e nordeste de Mato Grosso que se autodenominam mẽbêngôkre.

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1. Reconstituição histórica com ajuda dos estudos linguísticos Greg Urban (1998) inicia sua contribuição ao volume História dos Índios, organizado por Manuela Carneiro da Cunha, com a seguinte pergunta: “O que podemos aprender acerca da história pré- colombiana do Brasil pelo estudo de línguas ameríndias historicamente documentadas?” E ele, então, explica que, no estado atual das pesquisas linguísticas no Brasil, a reconstituição do passado ainda não pode ser realizada de modo satisfatório. Porém, mesmo diante das deficiências ainda existentes, que não vou detalhar aqui, Urban resolve arriscar reconstituir como as línguas indígenas tiveram origem em outras precedentes e vieram a se distribuir geograficamente no Brasil. Começa pelo tronco Macro-Jê (Urban 1998: 90-91) (cf. mapa na p. 88), que é aquele que nos interessa. Diz que a família Jê teria surgido há três mil anos (1000 a.C.) e o tronco Macro-Jê, que a inclui, há cinco ou seis mil (3000- 4000 a.C.). Supõe que os pontos de dispersão das línguas da família Jê estariam entre os rios São Francisco e o Tocantins. E a primeira separação que houve nessa família se deu entre os Jê Meridionais (Kaingang e Xokleng) e o resto. Entre um e dois mil anos atrás (1-1000 a.D.) houve uma segunda cisão, que ocorreu entre os Jê Centrais (Xavante, Xerente, Xakriabá, Akroá) e os Setentrionais (Timbira, Kayapó, Suyá). Refere-se a um estudo de Joan Boswood que sugere ser a língua Rikbaktsá (que mantém com o proto-Jê uma taxa de 38% de cognatos) mais próxima das línguas Jê do que o Karajá ou o Maxakalí. Urban tem dúvidas quanto à inclusão das línguas Bororo, Yaathe (dos Fulni-ô) e Ofayé no tronco Macro-Jê. Admite ainda que, se um estudo mostrasse que as línguas Kamakã, Maxakalí, Botocudo e Purí são remotamente relacionadas entre si, considerando também seu acentuado afastamento da família Jê, o leste do planalto Brasileiro seria um possível lugar de dispersão das línguas do tronco Macro-Jê. Em trabalho anterior, sua tese de doutorado, Greg Urban (1978: 39-40, 277-280) apresenta uma reconstituição hipotética do surgimento das principais divisões da família linguística Jê acompanhada de algumas características socioculturais. A sociedade que deu origem às atuais sociedades Jê teria sofrido uma primeira cisão, originando os Jê Meridionais, de um lado, e os demais Jê de outro. Os Jê Meridionais se separaram em Kaingang e Xokleng; os demais se separaram em Jê Centrais (, ) e Jê Setentrionais (Timbira, Kayapó, Suyá). Grupos de descendência patrilinear existentes na sociedade original teriam se mantido na primeira cisão; mas, na segunda, esses

40 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê grupos teriam se mantido num dos ramos (Kaingang, Jê Centrais), mas não no outro (Xokleng, Jê Setentrionais). Urban observa também que a transmissão de nomes se faz entre adultos e imaturos no caso dos Jê Centrais e do Norte, mas entre mortos e imaturos vivos, no caso dos Jê do sul.

Figura 2. Evolução da estrutura social Jê, segundo Urban (1998)

O esquema acima, com que tento resumir a reconstituição histórica de Urban, é apenas um pequeno galho que brota do tronco Macro-Jê. Considera apenas a família Jê. Faltam os outros galhos, as outras famílias, que brotariam de pontos mais inferiores do tronco. Não sei se os estudos linguísticos já permitem acrescentar mais algum deles no esquema. A pesquisa etnológica não tem como fazer. Aliás, deixando as línguas à parte, os itens culturais podem se deslocar geograficamente de duas maneiras: levados por migrantes que deles se valem ou passados por difusão entre povos vizinhos. Aliás, o mito de Sol e Lua contado pelos Maxakalí, anotado e traduzido pelo linguista Harold Popovich (1971), lembra os mesmos personagens narrados pelos Timbira. Dos seis episódios apresentados por Popovich, quatro versam sobre os mesmos temas do mito Timbira. O mais parecido é o da obtenção do penacho do pica-pau. Os outros – a origem da morte, a do trabalho e a da mulher – nem tanto. A semelhança é mais acentuada nas relações entre os dois personagens: o Sol, mais sabido, e Lua, imitador, canhestro e desastrado. Teriam os Maxakalí e

41 Julio Cezar Melatti os Timbira herdado o mito de ancestrais comuns ou a narrativa lhes foi passada de uma outra fonte por difusão?

2. Alguns períodos críticos do contato interétnico O contato interétnico não é tema deste texto, mas, destacar certos períodos críticos vividos por distintos povos Macro-Jê, talvez nos ajude a entender por que, numa comparação entre suas culturas, algumas nos brindam com dados mais significativos do que outras. No mapa abaixo, destaco oito áreas geográficas que, em diferentes períodos históricos, foram cenário de acontecimentos de caráter interétnico que afetaram, entre outros povos, os Macro-Jê que nelas viviam. Numerei-as em frouxa ordem cronológica e passo a caracterizá- las de modo breve.

2.1 Interior do Nordeste desde os meados do século XVII aos princípios do seguinte Após a retirada dos holandeses, pairavam sobre alguns grupos indígenas acusações de que haviam sido seus aliados e, o que era considerado ainda pior, que adotaram sua religião, o protestantismo, uma heresia aos olhos dos colonizadores católicos portugueses. Além dos missionários encarregados de estabelecer aldeamentos, criadores de gado expandiam seus rebanhos, bandeirantes paulistas apresavam indígenas (um deles, Domingos Jorge Velho, destruidor do quilombo dos Palmares). Havia, também, várias expedições contra aqueles grupos indígenas que resistiam ao avanço dos colonos e que recrutavam combatentes entre os povos já submissos ao controle português. A esse conjunto de conflitos armados tem-se aplicado o nome de Guerra dos Bárbaros, aliás tema de um livro do historiador Pedro Puntoni (2000). Por sua vez, Cristina Pompa, na segunda parte de sua tese de doutorado, focaliza a ação dos missionários e dá atenção aos fragmentos simbólicos das culturas indígenas que as fontes históricas deixam entrever e não mais encontráveis junto aos povos indígenas nordestinos dos dias de hoje. Suponho que seu livro Religião como Tradução (2003), que não li, reproduza, integralmente, a tese (2001), que li. Dois catecismos em língua Kipeá e um em língua Dzubukuá, produzidos por missionários nessa época, constituem a fonte para o conhecimento desses idiomas não mais falados, incluídos na família Karirí. Sua referência bibliográfica

42 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê está no livro Línguas Brasileiras de Aryon Dall’Igna Rodrigues (1986: 50-52, nota 3).

Figura 3. Contato interétnico entre povos Macro-Jê

2.2 Resistência dos indígenas de Mato Grosso ao avanço dos bandeirantes paulistas sobre as áreas auríferas na primeira metade do século XVIII Não sei muito sobre isso. Mas, no que tange aos povos Macro- Jê, dando uma olhada no livro Expansão Geográfica do Brasil Colonial de Basílio de Magalhães (1978: 165-187), podemos ver (p. 183) que o governador de São Paulo, D. Luís de Mascarenhas, sob cuja jurisdição estavam Mato Grosso e Goiás, tinha em mente exterminar os Caiapó do Sul (Panará). Com esse objetivo, conseguiu que o sertanista Antônio Pires de Campos conduzisse 500 Bororo de Cuiabá para atacá-los. Desse modo, o sertanista afastou-os do caminho que conduzia de São Paulo a Goiás e guarneceu suas margens com as aldeias de Rio das Pedras, Santana e Lanhoso, nelas colocando seus auxiliares indígenas. Os guardaram na memória esses confrontos, pois lembro- me de ter lido no livro Os Bororos Orientais, dos padres Colbacchini e Albisetti (1942), que, no início do século XX, eles, ainda, consideravam os “caiamó” como seus inimigos (a conferir).

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2.3 Os aldeamentos da capitania de Goiás na segunda metade do século XVIII Quando a produção aurífera começa a declinar e, sob a legislação assimilacionista portuguesa de iniciativa do Marquês de Pombal, regulamentada pelo Diretório dos Índios (1757), criaram-se vários aldeamentos, não dirigidos por missionários, que os indígenas eram incentivados a povoar, de modo a ficarem mais próximos dos colonizadores e interagirem com eles. Enumero a seguir os aldeamentos. No sul do atual estado do Tocantins ficavam: a) São Francisco Xavier do Duro, para os Xakriabá, b) São José do Duro (ou Formiga), para os Akroá, ambos próximos à atual Dianópolis, e c) Nova Beira, para os Karajá e Javaé, no sudeste da Ilha do Bananal. Relativamente próximos à sede da capitania, a atual cidade de Goiás, estavam: d) Carretão ou Pedro III, próximo à atual Crixás, para os Xavante, e) São José de Mossâmedes, hoje cidade do mesmo nome, para Akroá, Xavante, Karajá, Javaé, Karijó e Naudez, e f) Maria I, para os Caiapó do Sul. No Triângulo Mineiro, que então fazia parte da capitania de Goiás: g) Rio das Pedras, h) Rio das Velhas (ou Santa Ana ou Aldeia dos Índios), atual Indianópolis, para os Xakriabá, e i) Lanhoso, próximo à atual Uberaba. Os seis primeiros aldeamentos foram tema de um livro de Marivone Matos Chaim (1974); os três últimos, do Triângulo Mineiro, ela apenas os enumera (ibid.: 81, nota 30). Aliás esses três últimos, a julgar pelos seus nomes, são as mesmas aldeias criadas pelo sertanista que combateu os Caiapó do Sul com ajuda dos Bororos. Note-se que foi no Triângulo Mineiro que um topógrafo, no início do século XX, anotou uma lista de palavras da língua dos Caiapó do Sul que serviu como um dos principais argumentos para identificá-los com os Panará (Giraldin 1997). Os atuais Tapuio, estudados por Rita Heloisa de Almeida (1985, 2003), são os descendentes dos indígenas moradores do aldeamento do Carretão. Em suma, a maioria dos habitantes indígenas dos aldeamentos da capitania de Goiás eram falantes de línguas do tronco Macro-Jê: Xavante, Xerente, Xakriabá, Akroá, Karajá, Javaé, Caiapó do Sul. Sobre os “Naudez” nada sei dizer.

2.4 Os criadores de gado continuam para oeste, avançando sobre as terras habitadas pelos Timbira de meados do século XVIII a meados do XIX Segundo Curt Nimuendajú (1946: 3), as notícias sobre os Timbira remontam ao século XVIII no Piauí, onde se restringiriam ao baixo Canindé, a seu subafluente Piauí e ao baixo Gurgueia. Teriam

44 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê invadido a Vila da Mocha (atual Oeiras), sede da capitania, em 1728. O número de povos Timbira no sul do Maranhão no início século XIX era significativo. Nimuendajú, com base nos cronistas, dá notícias de pelo menos 15 (1946: 15-36). Um desses cronistas é Francisco de Paula Ribeiro, que, em três memórias, narra de como foram os combates entre povos Timbira e criadores de gado. Português, sargento-mor ou major de tropas regulares que combatiam os Timbira, desaprovava a maneira desleal e perversa com que os criadores de gado lidavam com os índios. No norte do Maranhão, em vez de pecuária, praticava-se a agricultura comercial do arroz e do algodão. Por isso, os Timbira aprisionados eram conduzidos como escravos para lá. Também podiam ser embarcados no rio Tocantins para serem vendidos em Belém. A carta-régia de 5 de setembro de 1811, assinada pelo príncipe regente D. João contra os Karajás, Apinajé , Xerente, Xavante e Canoeiros, do Brasil central, reconhecia que a hostilidade dos índios se devia aos maus-tratos que tinham recebido de alguns comandantes de aldeia, mas agora não havia outra medida a tomar senão intimidá-los ou até destruí-los. Autorizava escravizar os índios aprisionados com armas na mão por 10 anos ou mais, enquanto durasse a sua “atrocidade”. Essa carta foi interpretada como também aplicável aos Timbira, e o comerciante Francisco de Magalhães, fundador de Carolina, na margem do rio Tocantins, aproveitou-se disso para remeter muitos índios escravizados para Belém. O fato é que, após tanta espoliação e abusos, na segunda metade do século XIX e na primeira do seguinte, a população Timbira se estagnou ou diminuiu. Esses povos, também, não continuaram a se multiplicar por cisão de aldeias. Pelo contrário: aqueles que estavam mais dizimados eram absorvidos pelos que gozavam de uma situação melhor. William Crocker conta como em 1900 os Txocamecrá foram recebidos ritualmente para integrarem a aldeia dos Canela (ditos Ramkôkamekrá).

2.5 Frentes de expansão sobre os povos falantes de línguas das famílias Kamacã, Maxakalí, Botocudo e Purí durante o século XIX A região fronteiriça entre os atuais estados de Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro ficou um tanto à margem do interesse dos colonizadores durante os três séculos de domínio lusitano. Com a decadência da extração do ouro em Minas Gerais, essa região, cujas matas serviram como barreira para evitar o desvio do precioso metal da cobrança do quinto e da exportação legal, tornou-se atrativa para a exploração econômica e os povos indígenas que aí viviam tornaram-se um

45 Julio Cezar Melatti obstáculo a ser removido para os empreendedores agrários, pecuaristas, mineradores e mesmo para o pequeno agricultor. A violência que desencaderam contra os índios foi apoiada pela carta-régia do príncipe- regente D. João de 13/05/1808, que declarava guerra ofensiva contra os botocudos de Minas Gerais, até quando pedissem paz “movidos pelo justo terror”. Outra, de 01/04/1809, estabelecia a escravidão por 15 anos a partir do batismo do prisioneiro, ou a partir da idade de 14 anos para os rapazes e de 12 anos para as moças. Um artigo de Maria Hilda Paraíso (1992) detalha toda a campanha contra os botocudos, desde a movimentação de tropas, recrutamento de voluntários, cooptação de indígenas já submetidos, aldeamento de botocudos junto a guarnições policiais, fortemente apoiada pelo governo real, depois imperial, e das províncias, que perdurou pela primeira metade do século XIX. A situação dos Maxakalí, que talvez não tenham sofrido campanha tão dura, mas também passaram por repressão e espoliação dos invasores de suas terras, é tema de um volume que inclui artigos de Marcos Magalhães Rubinger, Maria Stella de Amorim e Sonia de Almeida Marcato (1980). José Otávio Aguiar (2010) aborda a situação dos Purí e Coroados na mesma época. Mas nada encontrei sobre a situação dos povos da família linguística Kamakã.

2.6 Os Jê do Sul frente à imigração europeia e a expansão cafeeira na segunda metade do século XIX e início do seguinte Os Kaingang, então chamados de coroados, e os Xokleng, apelidados de Botocudos, já tinham algum contato com os brancos no período colonial, pois um caminho ligava Viamão (perto da atual Porto Alegre) a Sorocaba, em São Paulo. Burros criados no Rio Grande do Sul eram levados até a feira de Sorocaba e aí vendidos para serem conduzidos às regiões auríferas. No tempo do Segundo Império, houve até missão capuchinha entre os Kaingang do Paraná (Amoroso 1998). Porém, companhias de colonização, ao venderem a imigrantes europeus terras habitadas por índios como se estivessem desocupadas, desencadeiam o conflito entre uns e outros. A situação mais aguda, que se prolonga até a segunda década do século XX, é a dos Xokleng, em Santa Catarina (Santos 1970, 1973). Os bugreiros, homens que, com sua tropa armada, vendiam seus serviços àqueles que desejavam desembaraçar-se da presença dos índios, massacravam-nos. Além disso, em São Paulo, desencadeia-se o conflito com os Kaingang, no começo do século XX, com a construção de ferrovias, estimuladas pela expansão dos cafezais,

46 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê que entram pelas terras indígenas. A gravidade e prolongamento desses conflitos chegam às cidades, onde a opinião pública se divide, uns a favor da extinção dos índios em nome do progresso, outros que propõem uma solução humanitária. A solução virá com a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910.

2.7 Expansão dos Kayapó por sucessivas cisões de suas aldeias, a partir do final do século XIX e prolongando-se pelo seguinte Em sua tese de doutorado, Terence Turner (1966: 48-78) reconstitui a história desse processo, que continuava no tempo de sua pesquisa de campo. Depois dele, Gustaaf Verswijver (1978) continuou a historiá- lo. Sem entrar em detalhes, a partir da margem esquerda do baixo Araguaia, os Kayapó deslocaram-se para oeste, cindindo-se primeiro em dois ramos, os Xikrin e Gorotire, e destes, mais tarde, destacaram-se os Menkragnoti. Imagino que os Timbira podem ter passado por um processo semelhante, multiplicando-se em vários povos no Piauí e no Maranhão em séculos precedentes ao XIX, quando, alcançados pelas fazendas de gado, foram dizimados, enfraqueceram-se e estagnaram-se. Mas os Kayapó ficaram a salvo dos criadores de gado, que encontraram uma barreira no Araguaia, além da qual começava a floresta amazônica, que não podia ser transformada em pastagens com a tecnologia da época.

2.8 Expansão das agropecuárias no norte do estado de Mato Grosso na segunda metade do século XX Nessa região se formam três importantes rios: o Xingu, o Teles Pires e o Juruena. Os dois últimos, por sua vez, formam o Tapajós. Nela as agropecuárias foram precedidas por seringueiros, além de, a leste, pela criação do Parque Nacional (depois, Indígena) do Xingu (PIX) e, a oeste, pelos instaladores da linha telegráfica dirigidos por Rondon e pela missão jesuítica sediada em Utiariti. O avanço das agropecuárias sobre as terras dos indígenas sujeitou-os a violências, desalojamento, contaminação por moléstias, depopulação, de modo que, em alguns casos, achou-se mais fácil transferi-los para o PIX do que lhes garantir a defesa dos territórios originais. Limitando-me aos Jê, um dos povos transferidos foram os Tapayuna, retirados das vizinhanças do alto Juruena e levados a morar junto com os Suyá , que já estavam no Xingu desde longa data (Karl von den Steinen aí os encontrara em 1884), sob

47 Julio Cezar Melatti alegação de que ambos falavam a mesma língua, pois teriam constituído um único povo no passado. Além disso, ambos estavam muito reduzidos em população e a união os ajudaria a se recuperar. Depois de alguns anos de vida em comum, os Tapayuna resolveram ir viver junto aos Mekrangnotire, na Terra Indígena Capoto-Jarina, que fica logo ao norte do PIX, apenas separada pela estrada BR-80. Outro povo Jê transferido para o PIX foram os Panará, retirados de suas terras no rio Peixoto de Azevedo, afluente do Teles Pires, e no alto Iriri, afluente do Xingu. Depois de alguns anos no PIX, os Panará conseguiram recuperar parte das terras de que tinham sido espoliados e para lá voltaram. Na região há ainda os Rikbaktsá, falantes de uma língua do tronco Macro-Jê, do trecho acima e abaixo da confluência do rio Arinos com o Juruena, que, depois de passarem por problemas semelhantes aos sofridos pelos Tapayuna e Panará, conseguiram manter-se no mesmo trecho em três terras indígenas que lhes foram reconhecidas.

3. Corridas de toras Volto, então, a minha pergunta inicial, que é: em que as culturas dos povos Macro-Jê se parecem? Que caminho tomar para esboçar alguma resposta? Resolvi começar por aquilo que é mais visível e palpável. Por que não as corridas de toras? E com a vantagem de Curt Nimuendajú (2001) já ter feito o trabalho para nós. Teria sido desejável que os tradutores (Hans Peter Welper & Elena Welper) de seu texto de 1934 (data constante do final da tradução, p. 182) para o português tivessem escrito uma nota que informasse se o original em alemão foi publicado; e também por que foi necessário traduzi-lo, se Nimuendajú escrevera uma versão em português em 1944, como dão a entender as notas de rodapé da pág. 154. A preocupação de Nimuendajú é combater a ideia muito difundida de que a corrida de toras é um teste para o acesso ao casamento. Ele quer demonstrar que na realidade ela é um esporte e que, também, está relacionada a rituais. Por isso, discorre longamente sobre metades e outros grupos rituais dos Canela (Ramkôkamekrá) e Apinajé, cujos membros participam nas corridas. Mas, o que nos interessa mais de perto aqui é o mapa (2001: 173) em que marca os povos indígenas que fazem ou faziam corridas de toras, seguido de uma tabela em que indica as datas de sua ocorrência. Não entendi bem a distinção entre “observado” e “pesquisado” para essas datas: suponho que o primeiro termo queira dizer que Nimuendajú ou o cronista (naturalista,

48 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê explorador, missionário) consultado assistiu pessoalmente à corrida; o segundo, quando ele foi informado dessa prática. Eu não cuidei dessa diferença; dei mais atenção às datas. No mapa elaborado por Nimuendajú, cada povo praticante dessas corridas é indicado com um número, num total de 19. Os dez primeiros são Timbira. Dentre eles, os Timbira de Araparitiua (nº 1) e os Krepumkatêjê (nº 2) já eram poucos e em situação difícil quando foram visitados pelo próprio Nimuendajú, em 1914-15 e 1929 respectivamente, e suponho não serem mais existentes como grupos organizados. Os Ponrekamekrá (nº 7), observados em 1819 na margem esquerda do rio Tocantins, são aquele povo que teve uma parte atraiçoada e escravizada pelos brancos sediados na recém-criada Carolina (MA) e outra parte juntada aos Mãcrare, formando, conforme Gilberto Azanha (1984), e como já aventava Nimuendajú (1946: 27), os dois subgrupos que integram os Krahô (nº 6), que continuam a fazer as corridas de toras. Os Txokamekrá (nº 10), cujo nome William e Jean Crocker (2009: 27-30) traduzem como “povo raposa”, juntaram-se aos Ramkôkamekrá (nº 9), em 1900, e com estes continuam a realizá-las. Os demais, Pykôbjê (nº 3), Krĩkati (nº 4), Gaviões do Pará (nº 5) e Apãniekrá (nº 8), igualmente as mantêm. Os três seguintes são, como os Timbira, Jê do Norte: Apinajé (nº 11), Kayapó do Norte (nº 12) e Caiapó do Sul (nº 13). A corrida de toras de que se tem notícia entre os Kayapó do Norte ocorreu em 1909, não muito longe da margem esquerda do Araguaia, ou seja, no tempo em que eles iniciavam sua expansão para oeste. Possivelmente ela se conta entre as últimas vezes que a fizeram. Talvez a migração para o interior da floresta tenha dificultado sua prática pelos Kayapó. O mapa indica corridas dos Caiapó do Sul realizadas próximo à cidade de Goiás, informadas em 1812 e 1819; suponho, pois, que ocorressem no aldeamento D. Maria I. Considerando que as pesquisas têm mostrado que os Caiapó do Sul e os Panará são o mesmo povo; que os Panará atualmente, na fronteira Mato-Grosso−Pará, realizam corridas de toras; que o mapa de Nimuendajú mostra maior concentração dessas corridas no norte; podemos supor que os Caiapó do Sul não fizeram sua retirada de sul para norte levando a corrida: eles teriam se expandido a partir do norte, levando esse esporte ritual para o sul; e, quando as condições de existência aí se tornaram impraticáveis, parte deles foi assimilada e parte se retraiu para o norte. Em suma, os Panará nunca teriam deixado completamente o norte.

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Os Xerente e os Xavante são indicados apenas com o nº 14, sobre o curso do rio Tocantins, um pouco ao sul da foz do rio do Sono, seu afluente. As quatro observações de suas corridas se deram no período de 1820 a 1930. Ora, em meados do século XIX, os Xavante já tinham deixado Tocantins, tendo atravessando o rio Araguaia e se instalado em Mato Grosso. Por conseguinte, o ponto indicado no mapa talvez corresponda apenas aos Xerente. Mas o texto de Nimuendajú data de 1934, quando a atração dos Xavante em Mato Grosso ainda não se fizera e não se sabia de suas corridas. Mas os Xavante atuais fazem corrida de toras, tal como os Xerente. Aqui deixamos a família Jê, mas continuamos dentro do tronco Macro-Jê: há quatro registros sobre corridas de toras realizadas pelos Kamakã (nº 15) no período de 1817 a 1833. Os tradutores do artigo alertam, em notas de rodapé das págs. 173 e 174, que Nimuendajú acrescentou a lápis sobre o original mais duas referências. A uma delas, de 1934, referente aos Fulni-ô, de Pernambuco, que falam o Yaathe , língua do tronco Macro-Jê, atribuíram o nº 20. O outro povo numerado pelos tradutores são os índios de Brejo dos Padres (nº 21), Pernambuco, fronteira com Alagoas, junto à margem esquerda do rio São Francisco, cuja prática de corrida foi registrada em 1937. É a terra dos Pankararu, que não falam mais sua língua nativa, que não se tem como classificar. Mas, considerando que no período colonial as margens do São Francisco, desde o ápice setentrional de seu curso até a foz, eram habitadas por falantes de línguas da família Karirí, não teriam os ascendentes dos Pankararu falado uma delas? E, agora, os casos externos ao tronco Macro-Jê. Mantendo-nos no Nordeste, temos os Tarairiú, também chamados Otschukayanas ou Janduís (nº 17), no rio Assu, no Rio Grande do Norte, com quatro indicações de corrida, de 1633 a 1699. Um quadro do pintor holandês Albert Eckhout retrata alguns tarairiú dançando armados de bordunas, lanças e propulsores de dardos, enquanto duas mulheres cochicham. Eu penso ou imagino que já vi uma outra versão dessa cena, possivelmente do mesmo pintor, em que pelo menos dois dançantes têm toras de corrida nos ombros. Ainda no Nordeste, o mapa indica os Paiacus (nº 18), no rio Jaguaribe, no Ceará, com corrida datada de 1699.

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Figura 4. Distribuição das corridas de toras (Nimuendajú 2001 [1934])

Retornando ao Maranhão, temos o caso dos indígenas apelidados de Barbados (nº 16), no baixo curso do rio Itapecuru, datado de 1627. O artigo de Beatriz Perrone-Moisés (1998), incluso no volume História dos Índios, organizado por Manuela Carneiro da Cunha, traz detalhes de uma aquarela que retrata um ataque realizado em 1720 sobre a aldeia grande dos barbados (Perrone-Moisés 1998: 125). A mesma aquarela é reproduzida no interior da capa e da contracapa do mesmo volume. Nela se veem muitas toras nos caminhos radiais e no pátio. Há na internet uma reprodução por inteiro desse desenho.3

3 Conferir: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/rede_memoria/projeto_resgate/

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A província de Itatin, inicialmente, fazia parte do império colonial espanhol, mas hoje está incorporada ao estado brasileiro de Mato Grosso do Sul. A informação sobre índios (nº 19) que nela corriam com toras tem como fonte um missionário que aí atuou de 1649 a 1680. Nimuendajú não vê como atribuir sua prática aos guaranis, a não ser creditando-a à influência dos Caiapó do Sul, que se estendiam até o rio Nhanduny (seria o rio Nhanduí ou Anhanduí, afluente do Pardo, tributário da margem direita do Paraná, conforme o Mapa Etno-histórico do mesmo Curt Nimuendajú (1981)). Em uma nota de rodapé de sua tese, Terence Turner (1966: 206- 208) explica que entre os Kayapó não há corridas de toras. As toras que se fazem presentes em seus ritos são carregadas, sem disputa entre dois times. Em suma, as corridas de toras são praticadas pelos Jê do Norte e Centrais, mas não pelos Jê do Sul. Os Jê do Norte, entretanto, principalmente no cerrado, a leste; na floresta, a oeste, as corridas lhes parecem mais difíceis: os Kayapó não as fazem, embora os Suyá e os Panará as pratiquem. Das outras famílias do tronco Macro-Jê, somente há notícias da corrida referentes aos Kamakã, aos Fulni-ô e aos Pankararu (caso os ascendentes destes últimos tenham falado alguma das línguas da família Karirí). Os primeiros nem mais existem como grupo organizado, e nunca ouvi falar que os Fulni-ô e os Pankararu as realizem na atualidade. Curiosamente, os exemplos mais antigos de corridas de toras são externos aos Macro-Jê: Janduí, Paiacu e Barbados, todos do século XVII.

4. Formato da aldeia As aldeias Macro-Jê não têm todas o mesmo formato. Os Jê do Norte dispõem suas casas nas bordas de um círculo, pelo menos esse é o plano ideal. Os Jê Centrais fazem também assim; mas o círculo é aberto. Dos Jê do Sul, Greg Urban (1978: 248) reconstituiu a planta da aldeia Xokleng, com as casas dispostas em círculo aberto. Quanto aos falantes de línguas de outras famílias do tronco, só os Bororo parecem adotar o círculo, aberto para o oeste, como a dos Xokleng e a dos Xerente (Nimuendajú 1942: 17). Dos demais povos, com exceção dos Karajá, que têm uma forma mais retilínea, ao longo do rio, já não se pode dizer qual era o antigo formato. iconografia_AHU/ahu-ma_846/ahu-ma_846.html. Acesso em agosto de 2017.

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Porém, mesmo entre os falantes de línguas muito próximas, as aldeias não são exatamente iguais. Nas aldeias Timbira, ao interior da circunferência formada pelas casas, se justapõe uma rua também circular. De cada casa parte um caminho radial, cortando uma área coberta de capim e desembocando num pátio central. Devido à regra da uxorilocalidade, as mulheres permanecem na mesma casa (ou casa desta resultante por cisão) ao longo de toda a vida. O homem se transfere para casa da esposa ao se casar. O grupo doméstico que ocupa cada casa é geralmente constituído por um casal mais velho, por suas filhas casadas, por seus genros, pelos filhos solteiros e por seus netos e netas ainda crianças. Quando o casal mais velho morre, geralmente o grupo doméstico tende a se cindir em duas ou mais casas. As mulheres dos casais dirigentes dos novos grupos domésticos são irmãs umas das outras. Suas filhas são primas paralelas, que se chamam de irmãs. Indivíduos nascidos nessas casas vizinhas que têm a mesma origem, ligadas por mulheres classificadas como irmãs, não devem casar-se entre si. Forma- se assim um grupo exogâmico, sem nome, que não é linhagem nem clã, a que eu chamei, no caso dos Krahô, de segmento residencial. Por sua vez, o pátio central é o local das reuniões em que os homens decidem as atividades diárias e discutem outras questões. O pátio, também, é cenário dos cânticos noturnos das mulheres e, junto com o caminho circular e os radiais, da execução dos ritos, inclusive as chegadas das corridas de toras. Nimuendajú (1946) tomou como modelo para a descrição da aldeia, metades, classes de idade, grupos rituais e outras instituições Timbira, a aldeia dos Canela (Ramkôkamekrá), no seu tempo a aldeia do Ponto. Mas, há pequenas diferenças entre os distintos povos Timbira, inclusive aqueles que por decréscimo de população e mudança social já não mantêm a forma da aldeia. Mas sobre isso não posso me alongar. Os Apinajé eram chamados, até recentemente, de Timbira Ocidentais. Porém deixaram de sê-lo uma vez que se passou a considerar sua língua como distinta, embora, acredito, não seja totalmente incompreensível pelos orientais. Distinguem-se destes também no corte de cabelo (completam totalmente o sulco em torno da cabeça), na instituição da amizade formalizada, em alguns ritos, mantendo ligeiras semelhanças com os Kayapó. Porém, na forma da aldeia, assemelham- se aos Timbira (Orientais). O círculo foi abandonado, passou a uma distribuição mais retilínea das casas, mas os Apinajé se lembram da forma original (DaMatta 1976). Os segmentos residenciais se mantêm. Já nas aldeias Kayapó, não existem os caminhos radiais e a rua circular. É como se o pátio Central dos Timbira se estenda até tocar

53 Julio Cezar Melatti as casas que abrigam os grupos domésticos dispostas em círculo. Porém, outros pontos significativos marcam esse grande espaço interior. Em sua tese de doutorado, Terence Turner (1966: 29-30) apresenta um esquema desse espaço. É o esquema ideal, pois as aldeias Gorotire e Kubenkrãnkren, que sediaram sua pesquisa de campo, já estavam construídas segundo um plano retilíneo ao gosto dos agentes indigenistas. No meio do dito grande espaço levantam-se duas casas dos homens, com suas portas voltadas uma para a outra. Dentro dessas casas os homens se acomodam, em espaços diferentes, de acordo com o seu grau de idade: no fundo os rapazinhos ainda não iniciados; envolvem- nos os jovens iniciados, mas ainda sem filhos; estes, por sua vez, são rodeados pelas sociedades masculinas, compostas por homens que já são pais, desde jovens até maduros; num cantinho no fundo da casa ficam os velhos. Entre as portas das duas casas, antes de os homens nelas se acomodarem, os chefes discursam, caminhando e cruzando uma pequena praça cerimonial. O chefe de cada sociedade tem a casa cujo grupo doméstico dirige deslocada no círculo de modo a ficar próxima à sua casa-dos-homens. E o chefe mais influente traz seu grupo doméstico para o extremo oriental ou ocidental correspondente a sua casa-dos- homens. As mulheres se separam em duas sociedades: a júnior e a sênior. Cada mulher escolhe a metade correspondente àquela a que seu marido pertence como membro de uma casa-dos-homens. As mulheres se reúnem, mais ou menos uma vez por semana, principalmente para fazerem pinturas corporais, em frente à casa do grupo doméstico do chefe sênior da casa-dos-homens de sua metade, cuja esposa é a chefe das sociedades de mulheres da mesma metade. Em um ponto próximo ao centro do pátio, as mulheres se reúnem na realização de uma cerimônia feminina anual. Turner, entretanto, notou que, na história recente dos Kayapó, as disputas políticas que levavam à cisão de aldeias acabavam deixando cada qual com apenas uma casa-dos-homens. Esse era o aspecto que estava ganhando foros de normalidade no seu tempo. Aliás, a existência de duas metades nessas aldeias dependia da presença das duas casas dos homens. O esquema de Turner indica ainda uma linha circular de percurso de danças cerimoniais imediatamente interna ao círculo das casas, sendo, também, de uso cotidiano para comunicação entre elas. Ela como que corresponde à rua circular das aldeias Timbira. Tem até a mesma orientação ritual no sentido contrário aos dos ponteiros do relógio. Os Menkragnoti, outro ramo dos Kayapó, seguem o mesmo plano, conforme mostra o livro de Gustaaf Verswijwer (1985: 51-76, 114-

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126). Também constroem apenas uma casa-dos-homens na atualidade, ocupada, tal como acontece entre os Gorotire, por indivíduos dos mesmos graus etários, sendo que os homens, a partir do momento em que se tornam pais, desde jovens até os velhos, integram sociedades de caráter político. A posição e o número de locais de reunião das mulheres diferem do plano das aldeias do ramo Gorotire, pois são externos ao círculo das casas, e Verswijwer não se refere ao da cerimônia anual feminina. A principal diferença entre o plano da aldeia Xikrin e o das aldeias dos ramos Gorotire e Menkragnoti é quanto à posição da casa-dos- homens. Diz-nos Lux Vidal (1977: 63-76) que ela não fica no centro da aldeia. Mas apesar disso as reuniões do conselho nele se realizam à noite, com a presença dos mesmos graus de idade masculinos que ocupam as casas-dos-homens dos outros dois ramos Kayapó, dispostos em círculos concêntricos, ordenados de dentro para fora dos mais jovens para os mais velhos. Também, era no ponto Central da aldeia que outrora os jovens solteiros Xikrin dormiam à noite ao relento (tal como fazem os rapazes Timbira). O centro da aldeia tem o nome de ngobe, o mesmo que recebe a casa-dos-homens dos outros Kayapó. Mas outras ações, que não as reuniões do conselho, têm seu lugar numa edificação que fica fora, a pouca distância e a leste do círculo de casas da aldeia: o atukbe. É aí que dormem os rapazes solteiros, e os homens descansam, conversam, fazem adornos e outros artefatos, pintam-se, emplumam-se, raspam a cabeça, preparando-se para atos rituais. Outrora o atukbe ficava mais longe e era o lugar onde os velhos assavam sob pedras aquecidas bolos recheados com a carne proveniente das caçadas, que nunca entrava crua na aldeia. Ao iniciar os anos 1970, os Suyá compartIlhavam sua aldeia com os Tapayuna. Uns e outros tinham vivido tempos difíceis, que resultaram em severa queda de população. Sob a alegação de que a língua de ambos os povos era a mesma, que eles tinham constituído um povo único no passado e para tirar os Tapayuna da violência e despojamento que sofriam diante do avanço das agropecuárias, os agentes indigenistas os tinham trazido do Oeste para juntá-los aos Suyá, que viviam no Xingu. Foi, juntos, assim que Anthony Seeger os encontrou ao começar seu trabalho de campo. Tomou a ambos como tema de seu estudo, mas sempre com o cuidado de distingui-los, chamando os do Xingu de Suyá Orientais e os Tapayuna de Suyá Ocidentais. Em seu livro, Seeger (1981: 39-40) apresenta esquemas de sua localização, no rio Suiá-Missu, afluente da margem direita do Xingu e da sua aldeia. Suas oito casas estão

55 Julio Cezar Melatti numa disposição circular, envolvendo um pátio no qual há um pequeno quadrado, assinalado com a palavra ngàwe (note-se a semelhança com a ngobe Kayapó), que é a casa-dos-homens, mas a sudeste do centro, bem próximo das casas residenciais. Seeger não diz muito sobre como era utilizada, apenas se refere ao cuidado dos homens manterem as mulheres e crianças afastadas da mesma. No mesmo esquema, Seeger apresenta os nomes de cada casa. As casas ou grupos de casas nomeados são exogâmicos (ibid.: 73), o que é digno de nota, pois os grupos de casas ligadas por laços femininos dos outros Jê do Norte não têm nome. E, também, diz que casas e grupamentos residenciais são importantes na formação de facções políticas (ibid.: 74), o que parece diferente dos Kayapó, por exemplo, cujos conflitos costumam se desencadear entre as sociedades masculinas, dissociadas das casas. Não sei se os estudos linguísticos nos autorizam a incluir os Panarás entre os Jê do Norte, uma vez que os Caiapó do Sul, de quem são os atuais representantes, manifestavam-se nos períodos colonial e imperial numa faixa mais meridional. De qualquer modo, suas aldeias circulares com as casas distribuídas em quatro clãs matrilineares exogâmicos com posições bem determinadas, sua oscilação entre uma ou duas casas-dos- homens no centro, metades cerimoniais, suas corridas de toras (Ewart 2015: 211), fazem-nos bem semelhantes aos setentrionais. É digno de nota que os nomes de suas metades, que podem ser traduzidos, o da oriental por “povo da raiz” e o da ocidental por “povo das folhas”, nomes que são aplicados a dois de seus clãs, com o acréscimo da especificação de que são raiz e folhas são de buriti (Schwartzman 1988: 107-108, 164). Tais nomes evocam uma das várias explicações da forma do céu dadas pelos Krahô, que põe a leste o pé-do-céu e a oeste sua ponta, como se fosse uma grande folha, cujas bordas tocam o norte e o sul (Melatti 1978: 97). No que tange aos Jê Centrais, as casas dispostas em arco aberto dão a forma tradicional às aldeias Xavante e Xerente. Uma das contribuições importantes do artigo de Maybury-Lewis (1979), publicado em Dialectical Societies, foi retificar a descrição defeituosa que Nimuendajú fizera do plano da aldeia Xerente. Maybury-Lewis foi quem primeiro realizou pesquisa etnológica com os Xavante, e também fez trabalho de campo com os Xerente, antes e depois daquela. Afirmara Nimuendajú que os Xerente estavam divididos em metades patrilineares exogâmicas, cada qual constituída por quatro clãs, no que estava correto. Mas atribuiu a cada clã um trecho de arco da aldeia, assegurando a patrilocalidade como sendo a regra. Maybury-Lewis não encontrou as metades em

56 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê vigor, mas sim os clãs. Também descobriu que a a residência pós- marital era uxorilocal. A análise dos dados colhidos com os Xerente e sua experiência com os Xavante foi mostrando a Maybury-Lewis que, tal como os segundos, os primeiros também combinavam clãs e linhagens patrilineares com residência uxorilocal. Entre os Xavante um grupo de irmãos tende a se casar com um grupo de irmãs, e os irmãos classificatórios deles a se casarem com a irmãs classificatórias delas, o que faz com que rapazes de uma mesma linhagem patrilinear ocupem uxorilocalmente um trecho de casas contíguas. Nimuendajú (1942), possivelmente, já não encontrara as aldeias Xerente desenhadas conforme a tradição e talvez se apoiara em poucos ou apenas um interlocutor para reconstituir sua forma e composição e por isso interpretara como patrilocalidade o que era ocupação uxorilocal por uma geração de maridos da mesma linhagem patrilinear. Os Xavante têm três clãs patrilineares e exogâmicos. Os Xavante Orientais admitem que membros de um clã podem realizar casamento com qualquer dos outros dois. Mas os Ocidentais proíbem o casamento entre dois desses clãs, o que os transforma em uma metade exogâmica oposta à outra constituída apenas pelo clã restante. Nem os Xavante e nem os Xerente têm casa-dos-homens, mas perto de suas aldeias, hoje pelo menos as dos Xavante, se ergue a casa dos solteiros, geralmente junto a uma das pontas do arco de casas. Os Jê do Sul, isto é, os Kaingang e os Xokleng, já não moram em aldeias tradicionais. Com base nas informações dos Xokleng, como já disse, Greg Urban (1978: 248) reconstituiu a planta de sua aldeia. Os Kaingang continuam divididos em metades patrilineares, cada qual constituída de duas seções desiguais em prestígio. Em cada metade a seção superior em hierarquia tem o mesmo nome da metade. A exogamia dos clãs é mais estrita nos superiores. Das seções inferiores, uma descenderia de não Kaingang, a outra de cativos. Dos outros Macro-Jê, somente os Bororos, os Rikbaktsá, os Karajá e os Javaé, ainda, dispõem de aldeias edificadas no seu antigo formato. As aldeias Bororo são as que mais se parecem com as dos Jê do Norte, pois suas casas se dispõem em círculo aberto e no centro se ergue a casa-dos-homens. Mais que segmentos residenciais, os trechos de casas contíguas constituem clãs matrilineares, quatro ao norte e quatro ao sul, distribuídos em metades igualmente matrilineares e exogâmicas. Apesar de as aldeias Karajá e Javaé não disporem as casas em círculo fechado ou aberto, como as Jê e Bororo, não deixam de se

57 Julio Cezar Melatti assemelhar com elas em outras características. As casas se dispõem em fila ao longo da margem do rio, com portas e janelas para ele voltadas. Nas aldeias grandes formam-se mais uma ou duas filas atrás da primeira e a esta paralela. Um caminho se estende entre a margem do rio e a primeira fila, outro passa por trás da última fila, além dos que separam uma fila de outra. É nessa faixa de casas que circulam as mulheres. A uma distância de 20 a 100 metros para o interior, junto à floresta ou cerrado, ergue-se uma casa retangular. Ela é fechada por três lados, menos aquele voltado para a vegetação. É a casa dos ijasò que corresponde à casa-dos-homens dos Jê e Bororo. Um pátio margeia essa casa e dele partem vários caminhos na direção das casas que abrigam os grupos domésticos, afastando-se uns dos outros como se fosse um leque. A casa dos ijasò, o seu pátio externo e os caminhos que dele partem constituem domínio masculino, não devendo ser frequentado por mulheres e crianças. As mulheres só pisam neles para dançar como os ijasò (gente que vive abaixo das águas). Os grandes grupos domésticos resultantes da uxorilocalidade fragmentam-se em famílias menores que continuam a viver em casas vizinhas. Elas e outras casas próximas costumam manter um pequeno pátio comum, usado para conversar e desenvolver atividades diversas. Um lugar em que as mulheres podem se manter a salvo das incursões rituais ou depreciativas masculinas. Infelizmente a cópia da tese de doutorado de André Toral (1992: 62-71) disponível na internet, de onde tiro essas informações, não inclui seus mapas e croquis. Os Rikbaktsá têm metades patrilineares exogâmicas, cada qual constituída por um certo número de clãs, embora não haja unamimidade entre os pesquisadores sobre quantos são exatamente. A residência é uxorilocal, mas não constitui uma regra rígida. Suas casas não se dispõem em círculo, mas seus grupos locais, que podem apresentar- se até como uma única maloca, têm casa-dos-homens ou dos solteiros (Pires 2009). Jorge Hernández Díaz (2015: 73-80) reproduz o que dizem pesquisadores mais antigos, como Estêvão Pinto e Max Boudin, a respeito dos cinco clãs Fulni-ô, cujos nomes são traduzidos como Tabaco, Pato, Porco, Periquito e Peixe, informações das quais nada se pode tirar de conclusivo. Parece que da forma tradicional da aldeia não ficou nenhuma lembrança e talvez nada conste sobre ela nos documentos escritos dos séculos passados. Cristina Pompa (2001) lida com estes com desenvoltura, mas talvez não tenha encontrado referências a formas de aldeia no Nordeste no século XVIII, região de que trata do capítulo 6

58 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê ao 9 em sua tese sobre as relações entre missionários e indígenas. Os autores de que se vale podem ser divididos em três grupos: holandeses sobre os indígenas dos rios Jagaribe (CE) e Assu (RN), capuchinhos franceses sobre os indígenas do rio São Francisco e jesuítas sobre os das Jacobinas (que suponho ser a região em torno da atual cidade baiana de Jacobina, no alto Itapicuru). As informações incidem mais sobre as atuações de chefes e xamãs e o rito mais difundido na região era o que se fazia em torno de uma grande cabaça, com vários furos atravessada pela fumaça da lenha verde que sob ela se queimava e que era aspirado pelos presentes, ao mesmo tempo em que bebiam suco de tabaco por uns tubos de barro (Pompa 2001: 380-381). Não sei se era a mesma ou outra cabaça que continha uma imagem de cera preta com ossos e pedras verdes nela inseridas (ibid.: 366). No meu curso de graduação tive um professor de Antropologia, Marcelo Moretzsohn de Andrade, que fora aluno de um dos cursos de especialização ministrados por Darcy Ribeiro. E como parte desse curso fez um período de campo entre os Maxakalí. Contou-nos uma vez que, quando os indígenas limparam o mato que cobria a aldeia, deu para perceber que as casas se dispunham em um arco de círculo. Uma parte significativa da pequena população Ofayé hoje em dia é constituída por pessoas Guaraní além de uns poucos brancos com os quais mantêm alianças matrimoniais. Não há memória da forma tradicional da aldeia. Mas uma foto apresentada na dissertação de Mirtes Cristiane Borgonha (2006: 73) é bastante curiosa, por parecer a reprodução intencional de uma aldeia Timbira, com sua rua circular e caminhos que ligam cada casa ao centro. A praça central, entretanto, parece ocupada por prédios da administração (talvez escola, posto de saúde, posto da Funai). Suponho que os assentamentos Guató sejam aqueles que mais diferem das aldeias dos demais Macro-Jê. Vivendo no Pantanal, instalam-se em pequenas elevações, cujo topo fica fora d’água na estação em que a planície se alaga. Essas elevações são ampliadas e sua altura é aumentada por aterramento. Cada uma tem espaço para uma família nuclear, os poligínica e sua roça. O deslocamento no tempo da cheia é feito de canoa, sobre a qual podem permanecer vários dias. Não sei se já existe uma pesquisa etnológica que descreva como essas famílias se articulam para estabelecer laços matrimoniais e tomar decisões de interesse comum. Jorge Eremites de Oliveira (1996), cuja dissertação é uma avaliação das fontes bibliográficas sobre eles como preparo

59 Julio Cezar Melatti para uma futura pesquisa arqueológica, não parece ter conseguido informações sobre sua organização social. Os centros das aldeias circulares têm sido caracterizados como a área masculina, pública, onde se discute e se tomam as decisões. Na casa- dos-homens Gorotire ou menkragnotíre, no pátio Xikrin, sociedades integradas por homens que nelas ingressaram por escolha individual a partir do momento em que se tornam pais constituem um conselho que dirige a aldeia. Na aldeia Canela, o conselho se reúne no centro do pátio, constituído por homens, que esperaram cerca de 40 anos antes de aí chegar, a partir de seu ingresso numa classe de idade, que ocupa sucessivamente dois pontos nas margens da praça correspondente à metade a que sua classe passou a pertencer desde que foi criada.

5. Batoques O uso de batoques auriculares e labiais ocorre entre os Macro-Jê, mas não é exclusivo e nem todos o fazem. Não sei se existe um trabalho que que exponha sua distribuição, tal como fez Nimuendajú (2001) com as corridas de toras. Alguns etnônimos aplicados a povos Macro- Jê fazem referência a seu uso: Botocudos, para os Krenák e os Xokleng; beiços-de-pau para os Tapayuna; orelhas-de-pau para os Rikbaktsá. Os Timbira os usam nas orelhas. Em 1961, numa aldeia dos Gavião do Pará que visitei, acompanhando como auxiliar a Roberto DaMatta, os homens ainda tinham um furinho debaixo dos lábios, no qual já não punham batoque, porém lembravam dos mais velhos que os tinham bem grandes. O líder Kayapó Raoni aparece na mídia com o seu. Mas esses batoques não são apenas ornatos. Eles têm um significado. No livro,Nature and Society in Central , Anthony Seeger (1981) nos explica que, para os Suyá, pelas orelhas não se ouve simplesmente. Na sua língua, a palavra para “escutar” também significa “compreender” e ainda “saber”. Com as orelhas se “escuta-compreende- sabe” e por isso homens e mulheres as marcam com batoques. Pela boca os homens cantam e fazem seus discursos, de modo que só eles têm batoques labiais. Vale acrescentar que, no tempo de sua pesquisa, os Tapayuna moravam na aldeia dos Suyá, e ele notou que, dentre as mulheres, só as Tapayuna continuavam a usar batoques auriculares. Vale notar ainda que o homem, ao passar para a faixa de idade dos muito velhos, tem apagado o desenho circular da face inferior de seu batoque labial. A partir daí se espera que o velho ou a velha atue como uma

60 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê espécie de palhaço. O palhaço também tem seu lugar entre os Timbira, mas as performances humorísticas entre os Canela (Ramkôkamekrá) ficam por conta daqueles que têm pendores inatos para tanto, enquanto entre os Krahô é um papel associado ao nome pessoal. Em Os Índios e Nós (capítulos 2 e 3), Seeger (1980) volta a tratar dos batoques e dos velhos e velhas. Seeger (1981) captou, também, a importância social de outros sentidos. Surpreende-nos com a descoberta de que os Suyá classificam os animais, os vegetais, os seres humanos, pelo odor. Distinguem os odores em muito fortes, pungentes, brandos, e ainda os podres. Pelos odores os Suyá classificam os animais em comestíveis, não comestíveis ou comestíveis apenas sob certas condições, e assim orientam sua dieta na vida quotidiana e nas situações liminares. Pelos odores distinguem as pessoas segundo sexo, idade e períodos críticos. Para eles, de líderes poderosos e irascíveis emana um forte odor. Entretanto, acho que Seeger não deixou evidente se os Suyá marcam o nariz com algum artefato ou pintura. Já os olhos, que permitem aos xamãs, sempre suspeitos de feitiçaria, verem no escuro e o que acontece em lugares muito distantes, são antissociais e por isso não trazem qualquer marca. Esta digressão feita a partir dos batoques, cujo uso se relaciona a sexo e idade, vem lembrar-me que fico a dever uma comparação entre os graus de idade e as classes de idade na organização social e política dos distintos povos do tronco Macro-Jê.

6. O círculo feminino Em seu livro Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis, Vanessa Lea (2012), com base em pesquisa de campo entre os Kayapó, especialmente os Mẽtyktire, ramo dos Menkragnoti, focaliza o círculo de casas, em vez do pátio central da aldeia, que vinha recebendo mais atenção dos etnólogos. O pátio é uma área mais masculina, onde se desenvolve a vida pública e ritual. O círculo das casas é mais feminino e mais doméstico. Vanessa quis mostrar que há mais a dizer sobre esse círculo, que ela se recusa a chamar de “periferia”. O que alguns antropólogos têm chamado de “segmento residencial”, um grupo exogâmico de casas contíguas no círculo da aldeia, ligadas unilinearmente pelas mulheres nelas nascidas, resultante da operação da uxorilocalidade combinada com o processo de crescimento e cisão do grupo doméstico, Vanessa prefere dar-lhe o

61 Julio Cezar Melatti nome de “Casa”, com inicial maiúscula, inspirada na noção de “maison”, lançada por Lévi-Strauss. A Casa tem um lugar fixo no círculo da aldeia com relação às demais Casas e segundo a rosa-dos-ventos, que se mantém mesmo quando a aldeia muda de lugar. A Casa pode ser o local de origem de pessoas que se envolveram em certos acontecimentos históricos e, até, de personagens míticos. E cada Casa tem direito de propriedade sobre distintos nekretx, bens simbólicos que focalizarei mais adiante. Em A troca de nomes e a troca de cônjuges, Maria Elisa Ladeira (1982) também volta sua atenção especialmente à atuação das mulheres Timbira, tanto as Canela (Ramkôkamekrá), como as Apãniekrá e as Krahô, descobrindo-as como as principais conhecedoras dos nomes pessoais e articuladoras das uniões maritais. Ainda, no que diz respeito aos Timbira, recordando de minha pesquisa com os Krahô, lembro-me do título de wyty, altamente honroso, concedido a uma menininha ou menininho, que fica associado respectivamente aos homens ou às mulheres da aldeia. Na verdade, é uma homenagem feita indiretamente aos pais da criança, que mantém o título até pouco antes da puberdade. A casa do grupo doméstico em que mora a wyty ou o wyty fica aberta a todos durante a realização dos ritos. É como se todos fossem parentes consanguíneos de seus moradores, pois se lhes oferece tabaco, algum alimento, ali podem descansar, conversar, cantar. À porta da casa de wyty terminam as corridas de toras. É possível identificar a casa de wyty pela quantidade de toras de corrida deixadas diante dela. É como se fosse um pátio na margem da aldeia, pois o outro lugar onde terminam as corridas é o pátio central. O respeito por quem foi wyty dura a vida inteira. Nos ritos Ketwajê ou Pempcahàc, acrescentam-se duas moças que são tratadas tal como os iniciandos, participando em tudo com eles. Para outros grupos rituais, em outras cerimônias, também se escolhem moças associadas. São honrarias para sempre lembradas.

Embora não tenham suas casas erigidas em círculo e sim à margem do rio Araguaia, vale lembrar também das mulheres Karajá e Javaé. Pelo menos quatro artigos de Patrícia de Mendonça Rodrigues (1995, 2005, 2006, 2007) sobre os Javaé têm como núcleo comum sua cosmologia, mais especificamente a maneira como consideram a constituição de seus corpos, a distinção entre corpos dos que vivem na terra e os que permaneceram no fundo das águas, e as distinções entre

62 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê os corpos dos homens e das mulheres. Nem todos os seres humanos deixaram as águas para viverem no nível terrestre. Os que lá ficaram são os aruanãs. Seus corpos são contidos; não têm relações sexuais e por isso não emitem esperma, nem sangue menstrual. Como desse modo não perdem energia, não enfraquecem, não envelhecem e nem morrem. Os que vivem sobre o chão, pelo contrário, têm os corpos mais abertos. Os homens javaé, mais próximos do ideal dos aruanãs, é que usam suas máscaras nos períodos de visitas desses seres à aldeia. As mulheres devem ser mantidas afastadas. Elas não apenas são corporalmente mais abertas que os homens, como, também, mais voltadas para o exterior, para a alteridade. A maior continência dos homens não é apenas corporal; eles são mais atentos aos interesses coletivos, enquanto às mulheres é atribuída a propensão a cometer atos antissociais. Atos maléficos das mulheres estão na origem dos seres chamados aõni, com características opostas às dos aruanãs (irasò, na língua Javaé). Essas malevolências das mulheres são explicitadas nos cantos do rito de Aruanã. O modo negativo de considerá-las não faz jus ao papel ativo que têm dentro da casa onde o homem ingressa pelo casamento. O prestígio das mulheres cresce com a idade. Fazem arranjos matrimoniais, contam mitos, conhecem a terminologia de parentesco e dão conselhos aos jovens, enquanto o homem velho é uma figura apagada. Além disso, em contraste com os cânticos masculinos, o choro ritual das mulheres no período de luto, com a explicitação dos nomes dos feiticeiros que teriam causado a morte de seu parente, granjeia-lhes grande respeito e admiração. Lembro-me de uma palestra feita pelo linguista David Fortune, dirigida a uns poucos estagiários, etnólogos e linguistas do Museu Nacional, nos anos 1960, em que ele nos explicou que aquela imagem errônea, divulgada entre leigos, de que mulheres e homens Karajá falavam línguas distintas se devia à existência de três fonemas com uma forma alofônica para homens e outra para mulheres (não conferi se isso está no texto publicado posteriormente com sua esposa (Fortune & Fortune 1975).

7. Esquemas de terminologia de parentesco No sétimo capítulo do volume Dialectical Societies, David Maybury-Lewis (1979: 225-226) usa um esquema de duas seções para comentar a distribuição dos termos de parentesco nas sociedades dos Jê Centrais (Xerente e Xavante). Em um esquema desse tipo, os termos de parentesco são dispostos em duas colunas, uma para “nós” e outra

63 Julio Cezar Melatti para “eles”, em linhas de cima para baixo, desde a segunda geração ascendente até a segunda descendente. As duas colunas principais são divididas em outras duas colunas, de modo a distribuir os termos por sexo. Geralmente os termos que cabem num esquema como esse são aqueles mais englobantes. Tais termos podem ser aplicáveis a mais de uma geração ou abranger ambos os sexos. Por isso suas células ocupam mais de uma linha ou ambas as colunas que distinguem os sexos. Segue o esquema4 que resume a terminologia Xavante.

No alto do esquema a seguir, embuti um outro menor que representa o casamento por troca de irmãs. Parece-me adequado para terminologias de sociedades que se dividem em metades, fazem o casamento de primos cruzados bilaterais ou aceitam a troca de irmãs. Nele inseri a terminologia de parentesco Kaingang apresentada no livro de Juracilda Veiga (2006: 129). Como se costuma neste tipo de esquema dar preferência aos termos mais inclusivos, parece-me que seria aceitável apagar as linhas pontilhadas com que separei certas células e substituir os termos que as preenchem por apenas um deles: ióg, mbâ, kakrõ, nã em G +1 e G +2; iambré em G 0; kóxid ou kaitkõ, krẽ ou iambré em G -1 e G – 2. Quanto aos termos kéinkê, réngrê e nhévy, os três têm de ser mantidos, sem o acréscimo -fi, pois apontam a diferença relativa de idade entre irmãos e irmãs.

4 Os termos indicados seguem aqueles que estão presentes em A sociedade Xavante (Maybury-Lewis 1984: 277), cuja versão para o português foi traduzida por Aracy Lo- pes da Silva.

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8. Casamento e transmissão de nomes pessoais Para os Jê do Norte, Maybury-Lewis (1979: 238) lança mão de um outro esquema, de modo a atender a certas características da terminologia de parentesco, que é afetada pela transmissão de nomes pessoais, como a dos Krahô e Krĩkati, feita por intermédio da patrifiliação ou matrifiliação simbólica, de que são exemplo os Apinajé ; ou sem ligação com tal filiação, que é o caso dos Kayapó. Faço abaixo um arremedo do esquema de Maybury-Lewis.

Engendrei uns termos de parentesco, de modo a fazer uma tradução aproximada dos usados pelos Timbira, geralmente cognáticos dos aplicados pelos outros Jê do Norte, de modo a dar alguma inteligibilidade ao esquema. Nota-se que certos termos se estendem a

65 Julio Cezar Melatti mais de uma geração, o que também pode acontecer no esquema de duas seções acima. Outro detalhe a notar, e mais importante, é que esse esquema tem um centro, ocupado por uma família nuclear. Essa disposição se justifica pelo fato de a família nuclear, ou melhor, o grupo formado pelo genitor, a genitora e os filhos e filhas por eles gerados mantêm como que uma comunicação permanente entre seus corpos, de tal modo que, quando um deles passa por um período de crise, como uma enfermidade, picada de animal peçonhento, ou é muito frágil por sua tenra idade, todos devem se abster de alimentos e atos passíveis de agravar seu estado. Não estão obrigados a esses cuidados aqueles parentes que são referidos pelos mesmos termos aplicados aos membros da família nuclear, mas que não mantêm com Ego esse laço “biológico” mais imediato, como a irmã da mãe (chamada de “mãe”), o irmão do pai (chamado de “pai”), os primos e as primas paralelas (chamados de “irmão” e “irmã”), nem os filhos e filhas do irmão de Ego masculino ou da irmã de Ego feminino, chamados de “filhos” e “filhas”. Mesmo assim, esses parentes designados por termos classificatórios estão também invisivelmente incluídos no retângulo Central do esquema, porque, junto com a família nuclear em destaque, contrastam com os de fora, pois eles não podem transmitir nomes pessoais a Ego (masculino ou feminino) e nem dele recebê-los. Quem dá nomes a Ego são aqueles que designei no esquema como “avô- tio” e “avó-tia”, e Ego só pode transmiti-los aos “nets@s-sobrinh@s”. Junto com seu nome pessoal, aquele que o transmite a Ego também lhe concede a afiliação à sua metade sazonal, seus papéis rituais, seus amigos formais e, se for homem, a afiliação a um “grupo da praça”. Ego também pode referir-se a seus parentes mais distantes pelos mesmos termos que lhes aplica seu nominador. Chamei a atenção para essa distinção entre os parentes consanguíneos, uns ligados pelo corpo e outros ligados pelos ritos, em meu texto Nominadores e genitores (Melatti 1971). Outro detalhe: por que motivo pus pontos de interrogação nas células correspondentes aos primos cruzados? É que entre os Jê do Norte os termos de parentesco que lhes são aplicados variam de um povo para outro e, até mesmo, no seio do mesmo povo. Eu percebi entre os Krahô uma tendência mais acentuada de Ego masculino designar os primos cruzados matrilaterais (da célula da direita do esquema) como “filh@s”, o que leva a irmã dele a chamá-los de “net@s-sobrinh@s”. A razão disso seria a identificação de Ego masculino com seu tio materno, que é o parente que com mais frequência lhe passa o nome pessoal. O mesmo motivo faz com que os primos cruzados patrilaterais (da célula

66 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê da esquerda do esquema) sejam chamados, tanto por Ego masculino como por Ego feminino, de “pai” e de “avó-tia”, uma vez que o pai de Ego (masculino e feminino) é o tio materno desses primos cruzados e pode lhes dar o seu nome pessoal. Com os Kayapó se dá o inverso: Ego feminino chama de filh@s os primos e primas cruzados patrilaterais, e seu irmão consequentemente os chama de “net@s-sobrinh@s”. Isso se explicaria por uma ênfase maior na identificação de Ego feminino com a tia paterna, uma das parentas que lhe pode dar seu nome pessoal. Por sua vez, a prima cruzada matrilateral é chamada de “mãe” tanto por Ego feminino como por Ego masculino porque a própria mãe destes é uma possível transmissora de nome para aquela. E, em consequência, chamam o irmão da mãe de “avô-tio”. Há mais a dizer sobre os primos cruzados, mas antes é preciso considerar outro detalhe do esquema relativo aos Jê do Norte. Comparando-o com o esquema de duas seções, notamos que lhe falta uma banda: a coluna dos afins ou “eles”. Lembro-me de que, nos anos 1960, quando lidava com terminologia dos Krahô, eu sentia imensa dificuldade de achar, ou que os indígenas me indicassem, o ponto em que o esquema indefinidamente prolongável dos termos consanguíneos dava lugar à afinidade. Sabia que tinha de haver uma quebra, mas onde? Certamente me faltou um número maior de genealogias para marcar os casos que me eram relatados em que um homem e uma mulher que se chamavam por termos consanguíneos decidiam que iriam portar-se como parceiros sexuais. Ouvia comentários como: “Fulano está louco! Está virando toda parenta em namorada. Em que casa poderá receber comida?” E assim foi até que Maria Elisa Ladeira (1982) propôs uma solução. Ela fez pesquisa de campo em três sociedades Timbira: Canela (Ramkôkamekrá), Apãniekrá e Krahô. Fez uma imensa genealogia das duas primeiras e na terceira concentrou-se na observação mais intensa dos Mãcrare, um dos povos integrantes dos Krahô. Constatou que são as mulheres quem mais conhece os nomes pessoais, que são elas quem dirige a escolha do nominadores dos recém-nascidos e até de quem ainda não nasceu. E que essa escolha tem a ver com o adiamento ou não da transição de certos parentes para a afinidade. Segundo Ladeira, o sempre lembrado acordo de um homem dar seu nome a um filho de uma irmã e ela passar o seu a uma filha dele geralmente não se faz entre germanos, mas entre irmãos classificatórios, primos paralelos. Os

67 Julio Cezar Melatti paralelos do lado materno moram no mesmo segmento residencial, que é exogâmico. Mas os paralelos do lado paterno são de outro segmento residencial e, por isso, parentes mais afastados, propensos a se tornarem afins. Se for interessante segurá-los como parentes, esses “irmãos” e “irmãs” é que serão convidados para a transmissão cruzada de nomes para os filhos. Quanto aos primos cruzados, os matrilaterais, filhos de homens saídos do mesmo segmento residencial de Ego, ainda são parentes muito próximos. Porém, os cruzados do lado paterno, inclusive os paralelos deles, podem ser cogitados para uma relação de afinidade. Por isso, no lado paterno do esquema terminológico dos Jê do Norte entre as células dos primos cruzados e aquela onde estão (invisíveis) os paralelos, pus uma marca que sugere a irrupção da afinidade. Ladeira ainda comenta que o acordo entre primo e prima paralelos (que se chamam de “irmão” e “irmã”) para concederem seus nomes aos filhos um do outro é mais fácil de acontecer em aldeias mais populosas, como a Canela (Ramkôkamekrá). Em aldeias pequenas, onde a escolha é mais limitada, é mais comum o acordo entre o irmão e irmã verdadeiros. Se bem me lembro, Maria Elisa ainda diz do retorno do nome para a casa de onde saiu, mas eu teria de voltar a sua dissertação para me lembrar dos detalhes. Por falar em primos paralelos patrilaterais, são eles que abrem para seus filhos a possibilidade de casamento entre os Panará, cujos clãs são matrilineares e exogâmicos, numa forma de prescrição matrimonial que não é atendida por muitos deles. Dois irmãos (do mesmo clã A), ao casarem-se com mulheres de clãs distintos (B e C), neles geram filhos que são primas e primos paralelos entre si. Por sua vez, o filho de uma prima de um desses clãs pode e deve se casar com a filha de uma dessas primas do outro. Também o filho de um primo pode fazê-lo. Mas a filha do primo não se casa com filhos dessas primas (Schwartzman 1987: 129-143, 467-477).

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Mas não vou tentar, aqui, procurar semelhanças ou diferenças nas relações entre primos paralelos patrilaterais Panará e entre os Tim- bira. Para começar, Timbira e Panará diferem na transmissão de nomes. Entre os Panará, quem dá nome, masculino ou feminino, é o pai, não o tio materno, que é classificado como “irmão”.

9. O dualismo da pessoa Bororo O contraste entre parentes vinculados pelo corpo (pelas também chamadas relações de substância, como as chamou Roberto DaMatta) e aqueles enlaçados pela transmissão de nomes pessoais, acima comentado no que tange aos Timbira , hipertrofia-se nos Bororo na grande divisão que tudo domina, dos seres, atividades e artefatos associados aos aroe e daqueles associados aos bope. Cada clã ou subclã Bororo tem seus aroe. Os nomes pessoais de seus membros mais que os evocam: são condição para constituí-los como pessoas, vinculando-lhes ao corpo uma dessas entidades. Somente seus membros têm o direito de usar a pele, as penas, os dentes, as unhas, os bicos das espécies animais identificadas a seusaroe (Crocker 1985: 4-5). Mas é um direito exercido indiretamente, uma vez que concedem aos membros da metade oposta o encargo de representá-los. Já os bope se manifestam nos fenômenos naturais, como a chuva, a luz do dia, a escuridão da noite, o trovão, o relâmpago, o calor e o frio. Causam a reprodução, a frutificação, o crescimento, a degenerescência, a morte, enfim associam-se com a transformação orgânica. Têm a ver com a força vital ou raka, que anima cada ser vivo, homem inclusive, veiculada sobretudo pelo sangue, o sêmen e o leite. Relações sexuais, trabalho físico, dança, canto, tudo isso implica em gasto, perda do raka, de modo que, quanto mais velho, menos dessa força dispõe o indivíduo, o que significa também que os primeiros filhos são mais bem providos de raka pelos pais do que os últimos (ibid.: 36-7, 41-3). A operação desses dois princípios complementares implica na atuação de dois tipos de xamãs, o aroe etawa-are e o bari. Os serviços deste último são imprescindíveis para permitir o consumo da carne de animais como a anta, diferentes espécies de veado, ema, seriema, capivara, queixada, caititu, de peixes como o pirarucu, surubim, jaú, e até frutos como a mangaba, pequi, cajá. O bari, possuído por um bope, deve comer porções desses alimentos, de modo a pô-los em disponibilidade para o consumo dos demais moradores da aldeia. Doença e morte são

69 Julio Cezar Melatti atribuídas à ação dos bope e geralmente por causa do consumo indevido de alimentos que não passaram por esse rito, mesmo quando a falta ocorreu muitos anos antes. Cabe ao bari a cura das doenças causadas pelos bope, o que faz por sucção da parte do corpo afetada, dela retirando de um inseto (ibid.: 140-1, 221-5, 226-232). Já o aroe etawa-are atua naquelas caçadas coletivas cujos participantes representam bororos falecidos. Penetra no corpo de uma anta, de um pequeno porco-queixada e dirige os animais na direção dos caçadores, para que os abatam. Também, pode transformar penas de aves aquáticas ou folhas da palmeira caeté em peixes como o dourado, pacu, pintado; transformado num pequeno peixe, conduz os grandes para as redes e armadilhas (ibid.: 298-300). Cabe, também, ao aroe etawa-are curar os males provocados pelo rompimento de certas regras, como manter relações sexuais por ocasião de ritos, sobretudo os relacionados ao ciclo funerário; não ter em disponibilidade os alimentos preparados para os aroe; deixar que alguém os consuma antes deles; displicência no apagamento da decoração usada nos ritos secretos (Crocker 1985: 303-6). Outra atribuição do aroe etawa-are é entoar vários cânticos em complexas cerimônias, entre as quais as fases de abertura e encerramento do ciclo funerário e o rito de iniciação (ibid.: 308). Hoje, talvez devido às mazelas do contato interétnico, como o decréscimo da população, os Bororos não dispõem mais de aroe etawa- are. Não obstante, esse tipo de xamã continua a ser imprescindível na execução de determinados atos rituais. Os Bororos resolvem o problema da seguinte maneira: considerando que o bari, ao morrer, se torna um bope; que o bari, quando vivo, tem espíritos bope que o ajudam, os familiares; que um bari pode ter entre os seus espíritos familiares o bope de um irmão falecido que tinha como seu familiar o bope de um parente mais remoto que havia sido simultaneamente bari e aroe etawa- are; então fazem com que o bari, por intermédio dessa cadeia, assuma algumas das tarefas do aroe etawa-are (ibid.: 235). Por conseguinte, o dualismo permeia os mínimos detalhes da vida bororo. A própria constituição e trajetória da pessoa bororo é marcada por ele. Na cerimônia de concessão do nome pessoal, tirado do repertório da linhagem da mãe, está presente aquela que fez as vezes de parteira, tradicionalmente a mãe ou irmã do pai do pai da criança (hoje mais frequentemente a mãe da mãe), portanto da própria metade da criança, e que teve, por ocasião de seu nascimento, o poder de eliminá-

70 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê la caso tivesse vindo à luz com defeitos físicos, acompanhada de irmão gêmeo ou precedida por sonhos de mau agouro dos pais. Ela entrega a criança ornamentada e emplumada a um tio materno desta, portanto de sua metade. A ornamentação terá sido toda providenciada pelas mulheres do clã paterno, logo da metade oposta, e, no caso de criança do sexo masculino, acrescentada de um instrumento perfurante feito de fêmur de veado pelo próprio pai. Tal instrumento é usado pelo tio materno para furar o lábio inferior do menino, bem como o septo nasal do pai (Crocker 1985: 63-65). Quando chega o tempo de sua iniciação, o jovem ganha um patrono da metade oposta, que o encoraja, sobretudo no momento em que lhe são revelados os segredos relativos ao assustador aije e aos zunidores. Do patrono ele recebe o estojo peniano (um laço de folíolo). Esse patrono costuma ser um filho da irmã do pai e se espera que o jovem em iniciação venha a se casar com a irmã dele. Os dois passam a ter uma relação ritual vitalícia, de modo que o sobrevivente virá a ser o representante do outro, quando morrer, o aroe maiwu (ibid.: 106-7, 114-5, 271). O aroe maiwu ou “nova alma” é sempre um homem, mesmo que represente uma mulher falecida. Ele mata caça que seu pai e mãe rituais, isto é, pai e mãe do morto que representa, distribuem como evidência de que o falecido continua presente na comunidade. Ele tem o encargo de matar um “animal da vingança”, que deve ser um grande felino ou um gavião real, o que possibilitará ao morto (cujo nome estava até então proibido de ser pronunciado) receber um novo nome, alusivo a certas características do animal abatido, que o perpetuará, sendo incluído no acervo de nomes-aroe de seu clã. O representante do morto, também, obtém com esse ato um nome, além de armas decoradas e outros adornos dos parentes do morto. Alguns desses adornos, ele os usará sempre, mostrando que, apesar de quite com seu encargo ritual, sua identificação com o morto não se anula totalmente.

10. Amizade formal O aroe maiwo dos Bororo tem um quê de amigo formal, ainda que eu não saiba se pode ser tomado como tal. Vale compará-lo com os amigos formais dos Jê, de cujos deveres e retribuições faço o resumo abaixo.

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Timbira – Em seu livro sobre os Canela (Ramkôkamekrá), Curt Nimuendajú (1946) apresenta sob o título de amizade formal dois tipos de relação: a de hõpin (ibid.: 100-103) e a de ikwônõ (ibid.: 104). Pesquisadores subsequentes têm reservado o adjetivo “formal” apenas para a primeira. A razão, sem dúvida, é o caráter mais espontâneo da segunda. Ambos os tipos de relação, também, são mantidos por outros povos Timbira. Eu as constatei entre os Krahô. A relação de hõpin (ou seu feminino hõpinxôj, abreviado pinxôj) se transmite com o nome pessoal. Cada nome é ligado a alguns outros, masculinos ou femininos, por essa amizade. Desse modo, cada pessoa ganha vários amigos, tanto masculinos como femininos. Mas um deles o será de modo especial, por assumir suas obrigações de modo pleno. Nimuendajú ainda acrescenta que essa relação pode ser assumida de modo voluntário pela realização de um ou outro de dois ritos simples. Em um deles o pretendente põe um ornamento no pescoço de uma mulher grávida, tornando-se amigo da criança que vier a nascer, qualquer que seja o sexo. Noutro, os dois pretendentes a se tornarem amigos caminham até o centro de uma pequena lagoa rasa e, de costas um para o outro, mergulham e nadam em direções contrárias; ao emergir, encaram um ao outro. Os vários exemplos de como os hõpin se comportam, presenciados por Nimuendajú, mostram que se trata de uma relação evitativa (não pronunciar o nome do outro, passar ao longo quando se cruzam num mesmo caminho, evitarem-se sexualmente e, consequentemente, não casarem um com o outro) e simultaneamente de exagerada solidariedade (aplicar contra si aquilo que tenha molestado o outro). Em situações rituais alegórica ou realmente difíceis, defendem, substituem, carregam o outro. Em um rito de final de luto, entre os Krahô, em que se repetia uma cerimônia na qual a falecida tinha um papel importante, o comportamento de um homem que era seu hõpin e de uma mulher que era provavelmente sua hõpinxôj me sugeriam que eles a estavam substituindo, ou que a estariam ajudando se fosse viva (Melatti 1978: 120). O outro tipo de amizade, ikwônõ, é mais uma relação de companheirismo. Dizem os Krahô que assim se chamam aqueles que nasceram no mesmo dia ou que exerceram juntos certos papeis de caráter ritual ou político. Esse tipo de amizade, também, se estabelece entre mulheres. Nimuendajú (1946) descreve um rito Canela realizado por aqueles que desejam estabelecê-la: é o contrário daquele rito da lagoa, pois aí os pretendentes nadam juntos, lado a lado. Diz também que esses amigos se permitem o acesso de um à esposa do outro. Entre os Krahô

72 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê esse acesso também é possível, a julgar pelo termo de parentesco com que Ego se refere ao ikwônõ do pai e seu recíproco, que correspondem respectivamente a “pai” e “filh@”. Manuela Carneiro da Cunha (1978), em Os Mortos e os Outros, livro resultante de sua pesquisa entre os Krahô, dedica todo o capítulo 5 a uma longa discussão dessas relações de amizade. Além da atuação acima referida, Manuela também considera a participação dos hõpin no final do resguardo do matador e na proteção aos reclusos nos ritos de iniciação, ou seja, de restauração de status e no acesso a um novo. Comenta também as relações prazenteiras com os parentes dos amigos formais, como acontece com os insultos que lhes são bradados nas tardes em que aparece pela primeira vez a Lua em quarto crescente.

Kayapó – Manuela faz referência à tese de Lux Vidal, sobre os Xikrin, ramo dos Kayapó, que depois foi publicada como livro (1977). Entre os Xikrin, os amigos formais se herdam do pai, podendo ser desde vários a nenhum. No primeiro caso é preciso escolher um; no segundo, tratar de estabelecer a relação com alguém. Lux já havia apontado a participação dos amigos (krobdjuo) e amigas formais (kro) nos ritos de passagem, como o acesso a um novo grau de idade motivado pelo nascimento do primeiro filho, com o consequente ingresso no conselho da aldeia. Mas não atuam nos ritos funerários. Diz também que há relações prazenteiras com os afins do amigo formal. E também apresenta casos que ilustram essas relações com os filhos da amiga formal, inclusive a consideração da filha da amiga formal como esposa potencial, o que não quer dizer preferencial (Vidal 1977: 96-102). Tal como acontece com os Xikrin, os amigos formais entre os Menkragnoti, um outro ramo dos Kayapó, também não podem casar entre si. Vanessa Lea (1995), que fez pesquisa com eles, toma como ponto de partida a possibilidade de casamento com a filha da amiga formal, tal como admitido pelos Xikrin, para fazer um exercício de procura de um padrão de casamento. Mas confesso que não sei acompanhar o complexo diagrama e a argumentação da pesquisadora.

Apinajé – Odair Giraldin (2000), em tese sobre os Apinajé orientada por Vanessa Lea, também trabalha com a relação entre amizade formal e casamento. Porém, os Apinajé não transmitem a amizade formal do mesmo modo que os Kayapó e nem tal relação conduz ao casamento pela mesma via. Os Apinajé não fazem a transmissão dos nomes pessoais do

73 Julio Cezar Melatti epônimo para o nominado, como os Timbira ou os Kayapó. Há entre os dois um intermediário, um arranjador de nomes, um pai (pam kaag) ou mãe (nã kaag) classificatórios (como FB e MZ). Os epônimos são, como os Timbira e os Kayapó, aqueles parentes da segunda geração ascendente, avós ou seus paralelos, ou aqueles chamados pelos mesmos termos de parentesco na primeira ascendente (FZ ou MB e seus paralelos). O arranjador de nomes, geralmente do mesmo sexo do nominado (Ego), também lhe passa seus próprios amigos e amigas formais. Eles serão os kràmgêx de Ego. Alguns desses kràmgêx são também arranjadores de nomes de outras pessoas, consideradas seus filhos nominados (no dizer de Giraldin, para distingui-los de filhos biológicos). Ego também chamará a estes de kràmgex. Em favor da clareza, Giraldin qualifica aqueles de seniores e estes de juniores. O termo recíproco para uns e outros será pahkràm. Não pode haver casamento entre amigos formais. Mas é possível o casamento com filhos e filhas biológicos dekràmgêx ou pahkràm e também entre filhos e filhas biológicos deles, de que Odair Giraldin oferece vários exemplos. Para chegar a sua demonstração, Giraldin (2000) teve de fazer um ajuste na descrição de Roberto DaMatta (1976).

Suyá – Anthony Seeger (1981: 142-145) distingue três tipos de amizade entre os Suyá. Uma se denomina ñumbre-krà-chi. É um laço que se estabelece entre indivíduos do sexo masculino por ocasião de uma corrida de toras. Dois homens amigos, formais ou simplesmente espontâneos, aproximam-se conduzindo seus filhos e apresentam um ao outro, dizendo-lhes: “Este é seu ñumbre-krà-chi.” E assim a relação é estabelecida entre cada menino e o amigo do pai e também com os filhos dele. A relação se consolida quando, pela primeira vez os ñumbre-krà-chi pintam um ao outro para a corrida de toras. E ela pode ser herdada de pai para filho. Acontece que, nas vizinhanças da aldeia onde Seeger realizou sua pesquisa, não havia buritis e, por isso, as corridas não se realizavam, não dando a oportunidade à criação de novos laços. Só os mantinham aqueles que puderam herdá-los do pai. Cabe aos ñumbre-krà-chi cortar e pintar a máscara um do outro na cerimônia do camundongo e papeis menores em outras cerimônias. Os Tapayuna nessa época moravam na aldeia Suyá e Seeger os denominou Suyá Ocidentais. Cabia a seus ñumbre-krà-chi servir água um ao outro e também algum papel na introdução de um novo residente na casa-dos-homens. Essas tarefas rituais devem ser realizadas solene e silenciosamente, pois o ñumbre-

74 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê krà-chi sente vergonha diante do outro, não pode dizer seu nome, nem conversar com ele e nem lhe dirigir o olhar. As irmãs e as filhas de um ñumbre-krà-chi são as kràm-ngedi. Elas ajudam a pintar as máscaras e também os cadáveres de seus ñumbre-krà- chi. As relações com as kràm-ngedi são formais, porém menos solenes. Não há muita vergonha nem muitas obrigações entre mulheres que são kràm-ngedi uma da outra, a não ser pintar o corpo da que vier a morrer primeiro. A relação de ñumbre (distinta de ñumbre-krà-chi) se estabelece entre dois (ou mais?) jovens que moram na casa-dos-homens antes do nascimento de seu primeiro filho, que os faz mudarem-se para a casa da esposa. Os ñumbre partilham alimento, cantam juntos e são companheiros de viagem. Podem ser da mesma ou de metades opostas. A relação tem caído em desuso com a descontinuação do período de residência na casa-dos-homens. Mais espontânea ainda é a relação de kràm (nada a ver com kràm- ngedi), que os outros atribuem a dois homens mais ou menos da mesma idade, por verem-nos sempre juntos caçando, cantando, comendo. Eles próprios não se tratam pelo termo kràm.

Xavante – Aracy Lopes da Silva (1986: 203-239) distingue entre os Xavante dois tipos de amizade formal. Ambas têm seu começo durante a reclusão na casa-dos-solteiros. Uma é a relação entre os daminiwainhõ. A reclusão dura cerca de cinco anos. Desde o início, o pai de cada recluso escolhe para seu filho um especial protetor e conselheiro dentre os integrantes da classe etária que lhe está a dois graus de idade acima para ser o seu daminiwainhõ (termo recíproco). Ele assiste o iniciando nas provas e ritos. Entre um e outro a relação é de respeito. Uma vez terminada a reclusão, essa relação se mantém, mas vai se esmaecendo com o tempo, conforme os dois vão passando pelos outros graus de idade e se envolvendo mais nos embates políticos. A outra relação, entre os da’amõ, nasce também na casa-de- solteiros, unindo três de seus moradores, pelo menos um dos quais é afim dos outros dois. É uma relação de companheirismo. Ela também sobrevive ao fim da reclusão. Porém, os assim unidos passam a renovar seus laços com outros membros da sua ou de outras classes de idade. A solidariedade entre os da’amõ serve para aliviar as relações mais difíceis entre os afins e entre as facções.

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11. Nomes pessoais de prestígio Dentre os nomes pessoais, diz Curt Nimuendajú (1956: 21-25) que alguns os Apinajé consideram “nomes grandes”. Assim, qualificam aqueles nomes que reservam a seus portadores o privilégio de atuarem em certos papéis de ritos bem determinados. Alguns desses papéis formam pares, desempenhados por dois indivíduos, cada qual com seu nome, um de cada metade, Kolti e Kolré. Nimuendajú descreve o papel que cabe a cada nome. Também entre os Kayapó existem “nomes grandes”, que devem ser transmitidos em cerimônias especiais, que só podem ser preparadas por pais capazes de arregimentar os esforços de vários parentes. São nomes perigosos, que não podem ser transmitidos a crianças e jovens de saúde frágil ou criancinhas muito novas. Mas devem ser passados antes do jovem ingressar na casa-dos-homens ou da menina completar uns 10 anos de idade. O portador de um desses nomes tem uma dieta especial, que proíbe o consumo de certas espécies, uma evitação que, também, seus pais devem cumprir (Turner 1966: 167-176). A longa cerimônia da concessão do nome Bẽmp acompanhada por esse pesquisador correu paralelamente com um rito de iniciação (ibid.: 178-246). Se a pesquisa de Terence Turner se desenvolveu sobretudo das aldeias Gorotire e Kubenkrankrén, a de Lux Vidal (1977) se realizou com outro ramo dos Kayapó, os Xikrin. Entre estes ela também encontrou a distinção entre nomes grandes e nomes comuns e os cuidados especiais relacionados aos primeiros. Observa ela que, se no passado os Xikrin realizavam uma cerimônia para cada nome grande, tinham optado em tempos mais recentes por realizar uma só para a transmissão de todos esses nomes, por estarem demograficamente reduzidos e incapazes de arcar com tantas obrigações. Essa cerimônia é o Mẽ-rêrêmê, que ela apresenta mais adiante (Vidal 1977: 182-193). Mas tais nomes, também, podem ser atribuídos na Festa do Milho Novo (ibid.: 113-115). Os nomes grandes Kayapó sempre começam por um prefixo. Três iniciam os nomes masculinos: Bep, Totok e Katob. Seis os femininos: Bekwe (ou Bekwoi, feminino de Bep), Nhiok, Ire, Paỹn, Kôkô e Ngrei (Vidal 1977: 108-112). É digno de nota que os nomes comuns das mulheres Xavante também são precedidos por prefixos. Enquanto os homens Xavante recebem seus nomes pela via dos laços de parentesco, as mulheres os ganham numa cerimônia em que os homens, divididos em grupos segundo os graus de idade, escolhem as casadas ainda sem nome e lhes concedem, precedidos dos seguintes radicais: ‘Rẽ (periquito), ‘Ro’ó

76 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê

(macaco), Pê (peixe), Tsiñotse’e (quero-quero) e Wautomo (uma árvore do cerrado) (Lopes da Silva 1986: 121-124). Os Kaingang dividem-se em metades patrilineares e exogâmicas. Cada metade se divide em duas seções, uma delas com o mesmo nome da metade. A metade Kanhru inclui as seções Kanhru e Votor. A metade Kamé, abrange as seções Kamé e Wonhétky. O nome pessoal é dado à criança, poucos dias depois de nascida, a pedido do pai, por uma pessoa mais velha, conhecedora dos costumes antigos. Ela não dá seu próprio nome, mas sim o escolhe no repertório da seção patrilinear da criança. Tal como acontece com os Apinajé e Kayapó, os Kaingang têm nomes bonitos e nomes comuns. Uns poucos pesquisadores procuraram achar a razão dessa distinção, dentre eles a linguista Ursula Wiesemann (1960). No capítulo 7 de seu livro Aspectos Fundamentais da Cultura Kaingang, Juracilda Veiga (2006) procura uma explicação mais plausível. Segundo a pesquisadora, a solução deve estar no mito de origem dos próprios Kaingang, segundo o qual os irmãos Kanhru e Kamé foram criando os nomes pessoais conforme os acontecimentos de que participavam. Argumenta Juracilda que esses nomes criados pelos irmãos míticos é que são os bonitos ou bons. Eles seriam os nomes dos repertórios das seções Kanhru e Kamé. Mas os nomes pessoais das seções Votor e Wonhétky não foram criados por esses personagens míticos. Essas duas seções têm origem externa, seus membros constituem a descendência de gente incorporada aos Kaingang por aliança ou cativeiro. Os nomes pertencentes a essas seções seriam como que ilegítimos, e a pesquisadora se refere a algumas opiniões depreciativas sobre eles, emitidas por interlocutores Kaingang. Por outro lado, os portadores de nomes comuns, feios ou ruins, parecem mais fortes nas lides com os mortos. Por exemplo, os da categoria Péin, tanto da metade Kanhru como da Kamé, são especialistas nos serviços funerários, pois enterram os mortos e cuidam de seus túmulos; outrora os construíam. Os membros da seção Votor são os encarregados de abrir e de fechar o buraco no cemitério pelo qual emergem e depois se retiram os ancestrais e espíritos dos mortos que comparecem ao rito de Kikikoi. De qualquer modo, Juracilda Veiga acha que a questão, ainda, está em aberto.

12. Riqueza simbólica Tratando dos Kayapó, especialmente dos mẽtyktire, explica Vanessa Lea (2012, caps. 8 e 9 e apêndice 7) que os nekretx são bens imateriais, prerrogativas sobre papeis rituais, cânticos, adornos,

77 Julio Cezar Melatti xerimbabos de certas espécies, privilégio de consumir determinadas partes do corpo de alguns animais de caça, e inúmeros outros. Admite- se a concessão do usufruto de alguns deles a membros de outras Casas, mas têm de ser devolvidos. Tal como os nomes pessoais, constituem prerrogativa de cada Casa, um direito que é exercido por um ou alguns de seus membros; são passados de seus detentores mais velhos para os mais jovens. Entretanto, nomes e nekretx não se transmitem juntos. Algumas dessas regalias são gozadas pelos homens, como o consumo da carne de certa parte da anta, que tem seu corpo setorizado, cada qual destinado a uma Casa distinta, como mostra a interessante figura 45 (Lea 2012: 347). Outras são das mulheres, como a criação de xerimbabos, filhotes de animais abatidos na caça, detendo cada Casa a prerrogativa sobre uma ou mais espécies. Assim, filhotes de onça só podem ser criados numa determinada Casa, mas os adornos e as armas feitos de ossos, dentes ou couro de diferentes espécies de onça constituem nekretx de Casas distintas. Até mesmo certos objetos de origem não indígena podem ser nekretx, como o gorro vermelho, que lembra aquele tirado de um morto no primeiro confronto que os Kayapó tiveram com seringueiros, de que é exemplo o que está na cabeça do bebê da foto da capa do livro. Um artigo de Gustaaf Verswijver (1983/1984) antecede Vanessa Lea ao reconhecer que os nomes pessoais e os nekretx pertencem às Casas (Verswijver diz segmentos residenciais) e ainda que, quando transmitidos a pessoas nascidas em outras, devem retornar à Casa de origem na transmissão seguinte. Verswijver reduz o significado do termo nekretx às prerrogativas rituais e aos itens de enfeite pessoal (õ nekrêtx); os direitos a receber partes específicas de certos animais sãoõ mry; e o direito de criar animais específicos é õ krít. Mas os três tipos de direitos pertencem a segmentos residenciais, aos quais devem sempre retornar. Conhecidos há mais tempo entre os pesquisadores que os direitos das Casas Kayapó são os patrimônios dos clãs Bororos em nomes, cantos, danças, ornamentos corporais e representações rituais (Novaes 2006: 295), cujo exercício é concedido aos da metade oposta. Não sei dizer se as espécies animais e vegetais e alguns outros seres e artefatos arrolados no Apêndice 1 (Quadro das espécies clânicas) do livro As Aldeias Bororo, de Renate Viertler (1976) fazem parte desses patrimônios.

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13. Presença dos mortos Manuela Carneiro da Cunha (1978) nos mostrou com sua pesquisa que, para os Krahô, os mortos são os outros. A morte faz uma separação radical entre vivos e mortos, que nem são sepultados pelos seus parentes próximos, mais sim pelos afins. Os mortos procuram os vivos, querem atrair algum parente para lhes fazer companhia e, se este aceitar alimento ou relações sexuais com uma alma de falecido, morrerá. Por isso, é preciso tomar precauções para evitar o encontro com uma delas. Entretanto, em certas ocasiões rituais, a aproximação dos mortos é procurada ou, pelo menos, tolerada. Curt Nimuendajú (1946: 171-179), ao iniciar sua detalhada descrição do rito de Kêtwajê, que os Canela (Ramkôkamekrá) realizam, inicia com a apresentação do mito de sua origem. Dá duas versões, mas com a parte principal comum: um jovem (ou dois) retornando a sua aldeia cujos habitantes tinham sido todos devorados pelo gigantesco gavião (ou retornado à aldeia abandonada devido à ação de uma amazona canibal), surpreende as almas de mortos fazendo um rito. Protegido(s) por um tio falecido (ou avô falecido), afasta-se subindo em uma árvore (foge da tapera e vai procurar o novo local da sua aldeia, de onde sai um homem que vai observar a festa), de onde assiste e aprende o rito. É o Kêtwajê, o primeiro dos ritos de iniciação por que passam os jovens. É um rito longo. Aquele a que Nimuendajú assistiu durou dois meses e meio. Não cabe descrevê-lo aqui. Mas há nele um momento em que se supõe a presença das almas dos mortos. Certos gestos repetem aqueles que o jovem (ou jovens) vira(m) no mito: receber uma comida ilusória apanhada no ar (no mito o avô falecido dá alimento aos jovens, mas ele desaparece antes de ser tocado), ou receber um pedaço de paparuto e não comê-lo, passando-o a um parente. Eu, também, vi a realização de partes do Kêtwajê entre os Krahô, em aldeias distintas (Melatti 1978: 274-302). Um krahô me contou o mito de origem do rito. Mas, me parece que se confundiu com outro mito, pois não ficou claro se os seres que falam aos rapazes que foram encarregados de inspecionar as roças e pernoitaram na aldeia vazia, porque seus moradores estavam em expedição de caça e coleta, eram almas de vegetais ou de humanos falecidos. Nas partes do rito a que assisti não percebi ou ouvi qualquer alusão a almas de mortos. Mas, há um momento, próximo do encerramento, em que os reclusos são levados para fora da aldeia por membros do grupo ritual Tatupeba. Não os acompanhei. Mas soube que os Tatupebas vão levando os

79 Julio Cezar Melatti reclusos para fora sem parar e somente se detêm quando bloqueados pelos amigos formais destes. Então, os reclusos voltam correndo para a aldeia, alguns adultos lhes dão varadas quando passam e duas moças os borrifam com uma infusão de um vegetal que tem o mesmo cheiro da formiga pêphà, se não me engano, a mesma em que o homem que foi levado ao céu, pelos urubus, se transformou para punir aqueles que o tinham abandonado. A ida dos reclusos para fora da aldeia, levados por um grupo com o nome de um tatu conhecido por cavar muito fundo e violar sepulturas, tem uma leve similaridade com uma caminhada ao mundo dos mortos. Continuando com os Krahô, a última refeição do morto, oferecida por seus parentes cerca de uma semana após o funeral, também os põe em proximidade com sua alma. Ela vem comer os alimentos dispostos num jirau fora da casa em que os parentes se mantêm recolhidos. Não vi o rito de Pàrcahàc, o mais frequente entre os Krahô para marcar o final do luto. Mas, a musicóloga Kilza Setti (1994/1995) o viu e anotou sua música. Ela ouviu de Diniz, chefe da aldeia do rio Vermelho, sobre algo que os mortos deixam para os vivos: quando alguém morre, sua alma vai para aldeia dos mortos ou vaga ao léu até que morre outra vez e se transforma num animal de grande ou médio porte. Morrendo outra vez vira um animal menor até que, morrendo outra vez, transforma- se em toco de pau ou cupinzeiro. Quando um incêndio a queima, fica a cantiga (Setti 1994/1995: 194). Infelizmente ela não perguntou mais. Que música? Ela sai do cupinzeiro? Ou é a lembrança dos cânticos que o falecido costumava entoar? No capítulo 9 de Aspectos Fundamentais da Cultura Kaingang, Juracilda Veiga (2006) descreve o rito de Kikikoi, dedicado aos mortos. Apesar de os Kaingang estarem distribuídos por quatro estados brasileiros, somente a comunidade de Xapecó, em Santa Catarina, realizou periodicamente esse rito nas décadas de 1970 a 1990. Para os mortos, a quem é dedicado, o Kikikoi proporciona seu último retorno como pessoa relacionada à comunidade e o momento em que eles devolvem seus nomes pessoais aos vivos, liberando-os da proibição de pronunciá-los e permitindo que venham novamente a ser dados às crianças. Por conseguinte, tal como acontece entre os Timbira, em que há presença, pelo menos sugerida, dos mortos no primeiro dos ritos de iniciação pelo qual passam os jovens, entre os Kaingang eles permitem a aplicação de uma marca importante na primeira etapa do ciclo de vida: o nome pessoal.

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Jules Henry (1964: 181-194) descreve os ritos funerários e de luto dos Xokleng. Antes de sua pesquisa de campo (1932-1934), os Xokleng faziam a cremação dos mortos. Nota-se uma certa ambiguidade na relação dos Xokleng para com os seus mortos, que o próprio Henry reconhece. Junto à pira funerária punham nas mãos do cadáver carne e cera (em lugar de mel), socavam-lhe o peito e, lembrando os sofrimentos por que tinham passado juntos, pediam-lhe que fosse embora, que deixasse os animais de caça, que deixasse os filhos e fosse. Ao pôr fogo na pira, cantavam. Os integrantes do grupo local sentiam-se em perigo com a possibilidade da volta do morto. O homem ou a mulher que enviuvava tinha de se afastar do grupo durante uma temporada, pois trazia nos seus cabelos e unhas vestígios de seu longo e íntimo contato com aquele que morrera (compare-se com a fuga do viúvo para floresta, onde cortava o cabelo e ficava escondido alguns dias, entre os Karirí no Nordeste do século XVII, conforme Pompa (2001: 384)). Entretanto, após o período de luto, em qualquer ocasião em que o falecido ou falecida era lembrado, seu parente, parenta ou cônjuge entoava uma lamentação cantada em que lembrava as atenções, ajudas, alimentos que o morto ou morta lhes tinha dado, e admitia como seria bom tê-lo junto a si. Henry (1964: 188-194) transcreve e traduz algumas dessas lamentações. No rito de Hetohokỹ, realizado tanto pelos Karajá como pelos javaé, a presença dos mortos é maciça, sobretudo nos seus momentos finais. Eles são representados pelos indivíduos do sexo masculino que já passaram pela iniciação, vestidos e adornados livremente, de um modo até desleixado. Os mortos não são, individualmente, identificáveis (sim aqueles que os representam). Distinguem-se por aldeias, ou mais precisamente por cemitérios. Até aqueles de aldeias que já desapareceram comparecem. A aldeia que promove o rito tem os seus mortos. As aldeias convidadas, comparecem com os seus. O momento culminante da participação dos mortos é a disputa em torno do alto mastro que os mortos da aldeia anfitriã se empenham em erguer, enquanto os das aldeias visitantes se esforçam por derrubar. André Toral (1992: 244-253) faz inúmeras referências a esse rito em toda a sua tese, além da seção que lhe dedica especialmente. Por sua vez, Manuel Ferreira Lima Filho (1994) dedica seu livro, Hetohokỹ, especialmente ao estudo desse rito, com base em seu trabalho de campo na aldeia Karajá de Santa Izabel para elaboração de sua dissertação de mestrado. Na ocasião, assistiu ao período de confinamento de dois rapazes em iniciação (Lima Filho 1994: 96-103). Por conseguinte, também entre os Karajá e Javaé, os mortos estão presentes na iniciação dos jovens.

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No artigo Funerais entre os Bororo, Sylvia Caiuby Novaes (2006) descreve-os com clareza e analisa-os de modo a descobrir-lhes o sentido num complexo de cerimônias que pode chegar a três meses de duração. E, assim, aborda toda uma sequência de atividades rituais desde momentos anteriores ao desenlace, prolongando-se pelo sepultamento provisório, a escolha do representante do morto, sua dança, sua recepção pelos homens que agitam os zunidores aije, a exumação, a limpeza dos ossos, sua pintura e emplumação, quando os parentes se lamentam e se escarificam, até a colocação dos ossos num cesto, levado para ser mergulhado numa lagoa. Mas o luto só termina quando o representante do morto, o aroe maiwu, mata um grande felino, cujo sopro vital é recolhido a uma cabacinha feita pelo pai ritual do falecido e que será tocada daí por diante pelo caçador. Este entrega os dentes e garras do animal abatido aos parentes do falecido e o couro a sua mãe ritual. A dança do caçador com esta última encerra o ciclo. O aroe maiwu continuará a tocar a cabacinha, de modo que falecido, como aroe, continue a participar da vida da aldeia. É digno de nota que o momento em que os homens recebem o aroe maiwu fazendo zumbir o aije é, também, a ocasião em que os rapazes em iniciação tomam conhecimento desse segredo masculino, transformando-se em adultos que poderão se casar. Mais um exemplo da conexão entre mortos e rito de passagem entre fases etárias. Harald Schultz (1961/1962), em texto sobre os Umutina, da família linguística Bororo, com base em pesquisa realizada na década de 1940, descreve um longo e complexo ritual dos mortos, para o qual uma casa de máscaras é construída (ibid.: 258-311). É diferente do rito funerário Bororo, apesar de haver entre os dois um certo ar de família. Não há referência, por exemplo, a sepultamento secundário. Mas, há algo que evoca os aroe Bororo, dir-se-ia que de modo até mais concreto: os tuiuius, gaviões, mutuns e araras que se criam junto às casas umutinas são portadores de almas de mortos identificáveis. Uma ave pode até abrigar almas de mais de uma pessoa (ibid.: 296). As almas podem habitar também os corpos de animais não amansados, que vivem no mato: onças, antas, porcos selvagens (ibid.: 220-3). A alma que habita um animal é uma das três que tem uma pessoa; a outra vai para o céu; e sobre o destino da terceira Schultz não obteve informação (ibid.: 223). Schultz não faz qualquer referência à vingança contra um ser sobrenatural responsável pela morte de um humano, como realizam os Bororo contra o bope, mas os couros de onça, ariranha e lontra que

82 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê os umutina usavam às costas, secos e esticados, eram oferecidos aos espíritos, eram portadores de almas (ibid.: 128-9, 224), evocando as partes do animal abatido, não raro a onça, que o representante do morto, Bororo, entrega aos pais deste. Talvez tais representantes correspondam a certas máscaras umutinas (ibid.: 292, 297 e prancha LXXXIII) ou dançarinos (ibid.: 260-1), que, também, se punham no lugar de mortos individualizados.

14. Tradições arqueológicas Procurei saber se as pesquisas arqueológicas já fizeram alguns achados capazes de lançar alguma luz sobre o passado dos Macro-Jê. Consultei então o livro Arqueologia Brasileira de André Prous (1992). Achei algumas referências sobre eles no capítulo 10, que trata das tradições ceramistas do interior. Essas tradições recebem os nomes de Una (variedades A e B), Aratu, Uru e Taquara-Itararé. As três primeiras têm os seus sítios nas partes oriental, nordestina e Central do planalto Brasileiro. A última, na parte meridional. Ao tratar da tradição Una (variedade B), Prous lembra que uma das fases nela incluídas, também chamada Una, foi atribuída aos ascendentes dos purí, e outra, a Mucuri, aos Goitacá, na fronteira entre os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Seus últimos sobreviventes, conhecidos como Purí-Coroado, formaram bandos errantes que abandonaram a cerâmica e teriam feito os últimos sepultamentos encontrados nos abrigos. Alguns se puseram sob a tutela portuguesa após o desaparecimento dos Tupí do litoral, de quem eram inimigos (Prous 1992: 344). Refere-se também aos corpos naturalmente mumificados de uma mulher e duas crianças depositados numa gruta profunda, perto de Ubá (MG), que foram levados para o Museu Nacional (RJ) no século XIX. A mulher estava embrulhada num fardo que possuía alças. Uma das crianças, recém-nascida, tinha as pernas apertadas por tiras de algodão logo abaixo dos joelhos. O achado também incluía duas bolsas e um saco. Estudos mais recentes do achado revelaram que as técnicas de tecelagem são semelhantes às dos atuais Maxakalí e que a datação do material textil o põe entre os anos de 1320 e 1480 A.D. (p. 344-345). A tradição Aratu se estende por uma área muito mais ampla, uma faixa desde o Nordeste até o sudeste de Minas Gerais e daí até o sul de Goiás. No litoral norte da Bahia e também no Recôncavo concentra-se a

83 Julio Cezar Melatti maioria dos seus sítios conhecidos e a datação de 400 A.D. aí obtida ainda é insegura, por ser isolada. Outros resultados de cálculo radiocarbônico feitos no Espírito Santo, Minas Gerais e Goiás, além de documentação histórica, indicam um período do século IX ao XVII de nossa era (Prous 1992: 346). Encontraram-se em sítios da fase Itanhém vestígios de cabanas que formavam alinhamentos ou círculos ao redor de uma praça central, o que lembra as aldeias Jê do Norte, Centrais ou Bororos (ibid.: 346). Em Goiás, em sítios da fase Mossâmedes, desta tradição, também se encontraram vestígios de casas formando um círculo, ou até dois círculos concêntricos, em torno de uma praça. A diminuição de dois círculos para um é atribuída ao decréscimo da população, devido a doenças e outros problemas decorrentes do contato interétnico. Nota-se a intrusão de cerâmica tupi-guarani, proveniente dos vizinhos. E ainda a introdução do antiplástico vegetal (cariapé), vindo de grupos da tradição Uru, também das vizinhanças. As aldeias circulares são atribuídas aos Caiapó do Sul. As datações são do século X ao XII A.D., mas se supõe uma ocupação estável desde o início de nossa era até o século XVII. Entre o material cerâmico e lítico encontraram-se dois machados semilunares (ibid.: 349-350). Eu me pergunto: teriam os arqueólogos encontrado aldeamentos promovidos pelo governo português no século XVIII? Em um sítio arqueológico na fazenda São Geraldo, no município de Ibiá (MG), os pisos das habitações formam um círculo de 200 metros de diâmetro. O círculo não se fecha, dando lugar a uma saída para o rio. Junto a esse caminho há uma habitação menor, uma espécie de ateliê lítico, com polidores. O plano lembra o modelo Xavante (ibid.: 351). Na região de Lagoa Santa (MG), as pinturas rupestres do abrigo de Caetano mostram um machado semilunar (ibid.: 354; 339, fig. 56). Da tradição Aratu no Nordeste, não há muito a dizer quanto a prováveis conexões Macro-Jê, a não ser machados semilunares em Alagoas (Prous 1992: 360-361) e os vestígios de fogueiras em covas rasas cheias de blocos de pedra, o que sugere o uso do forno característico dos Jê (ibid.: 363). Digna de nota, ainda no âmbito da tradição Aratu, é a presença em Minas Gerais de casas subterrâneas, tal como na região Sul. Um exemplo é do município de Nepomuceno. Há outros exemplos no sopé de Arcos e na serra do Cipó. O clima frio e a presença de pinheiros aumentam a semelhança com o Sul (ibid.: 355). Outros exemplos são citados em Rótulo, Santana do Riacho, porém o mais notável é o do sítio Pula Cinco, onde duas casas grandes, com mais de dois metros de profundidade, fazem os extremos de um alinhamento onde há três

84 Aspectos culturais (não linguísticos) dos povos falantes de línguas do tronco Macro-Jê habitações menores. Duas destas são ligadas por um estreito corredor. Uma datação remonta o conjunto ao primeiro milênio a.C., o que o faz mais antigo que as casas-poço da região Sul. Esse tipo de construção chegou até o tempo da colonização portuguesa, pois Soares de Sousa os menciona para os Guaianases, na fronteira São Paulo−Paraná e entre os Tapuias do rio São Francisco, que viviam em “furnas” (ibid.: 356-357). Prous (1992) ainda faz referência ao material reconhecido como da fase Uruaçu, da tradição Uru (do alto Tocantins e bacia do Araguaia), que, segundo os pesquisadores que estudaram o complexo, é o ancestral da cultura Karajá. Porém, não dá maiores explicações (ibid.: 360). Os sítios da Taquara-Itararé (ibid.: 310-333) se distribuem desde o norte do Rio Grande do Sul até o norte do Paraná, nas terras altas irrigadas pelos afluentes da margem esquerda do rio Paraná. Também ocorrem na província de Misiones, na Argentina, onde a mesma tradição é denominada Eldoradense, nome que tem prioridade cronológica. Os sítios não mostram vestígios de aldeias circulares. Revelam assentamentos ao rés do chão e, também, constituídos por casas-poço. Estas consistiam de uma escavação circular, cujo piso podia alcançar até cerca de dois metros abaixo do nível do solo, coberta por um teto cônico sustentado por um poste central. Seus caibros inclinados não se assentavam diretamente sobre o chão externo, mas em estacas verticais, deixando um espaço entre o beiral e o solo, que poderia ficar aberto para ventilação ou, quando necessário, ser fechado. Essas casas se edificavam em grupos, havendo delas versões maiores que podem estar associadas a um período mais recente ou a diferentes funções, como rituais, por exemplo. Também a elas estão associadas plataformas de terra (sobre as quais há vestígio de fogo), galerias subterrâneas e muros. Nelas se encontram evidências do consumo de pinhões, milho e do uso de cabaças. A julgar pelas datas extremas, até agora encontradas, essa tradição floresceu entre 140 (apogeu do Império Romano) e 1790 (tempo da Revolução Francesa) de nossa era. Por conseguinte, o período colonial já ia avançado quando ela desapareceu. Há, pois, uma grande possibilidade de que os homens que mantiveram essa tradição tenham sido ancestrais dos Kaingang e dos Xokleng. Se tal modo de vida vigorou até pouco mais de duzentos anos atrás, pode até acontecer de virem a ser encontrados registros documentais escritos que façam a sua conexão com grupos indígenas do presente. Tratando-se de uma síntese dos resultados do trabalho de distintos arqueólogos que escavam e interpretam o que encontram de vestígios culturais na região Sul, é óbvio que André Prous teve de fazer escolhas entre interpretações divergentes.

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Por exemplo, o arqueólogo Igor Chmys faz outra classificação das tradições do Sul, dentre as quais a chamada Casa de Pedra seria proto- Kaingang e a Itararé, proto-Xokleng (Prous 1992: 330). Os vestígios de casas dispostas em círculo da tradição Aratu podem corresponder a aldeias de Macro-Jê. Machados semilunares e montes de pedras para assar alimentos colocados sob elas também. Vale lembrar que nenhum desses itens constitui uma exclusividade dos Macro-Jê. Entretanto, a atribuição das casas-poço da região Sul aos Kaingang e aos Xokleng tem de ser considerada com mais cautela diante a reconstituição da aldeia circular Xokleng por Greg Urban (1978). As cinco tradições arqueológicas aqui consideradas são cerâmicas. A maioria dos Macro-Jê dos dias de hoje não fazem recipientes de cerâmica. Alguns perderam essa técnica. Outros talvez nunca a tenham desenvolvido. É também algo a pensar.

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Para uma bibliografia mais extensa: http://www.juliomelatti.pro.br/notas/n-bib-macro-je.pdf

94 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre e no valor simbólico do feminino gerados pela aproximação com a sociedade regional no Brasil Central1

Vanessa Lea Universidade Estadual de Campinas

Maial Paiakan Kayapó Ex-Assessoria de Controle Social – Secretaria Especial de Saúde Indígena

Cada família tem seu lugar de casa, né? Na aldeia redon- da, aí a família tem cada lugar de casa. Quem é dona é mulher, né? Mulher que é dona do lugar... Homem, quan- do casa, muda pra outra casa, vai pra casa da esposa, pra casa da sogra, né? Não fica na casa da família, da mãe... Os homens são assim... As mulheres são sempre as donas do lugar, daquele pedaço de terra dentro da aldeia. Elas que dominam, não é o homem. Homem, se tiver proble- ma, é expulso [risos]. Mekarõ, citado por Michelle Mariano (2014: 64)

Introdução No decorrer da pesquisa de campo de Vanessa Lea com o subgrupo Mẽtyktire dos Mẽbêngôkre (melhor conhecidos como Kayapó, ver mapa abaixo), foi necessário comunicar com as mulheres na língua Mẽbêngôkre, a qual é filiada à família linguística Jê, porque elas não

1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada em meados de 2017, na XIa Confe- rência Sesquianual da Sociedade para a Antropologia das Terras Baixas da América do Sul (SALSA), realizada em Lima, na Pontífica Universidad Católica Perú (PUCP). Fez parte do Painel 1: Acción y creatividad política del género en las bajas tierras de Amé- rica del Sur, organizado por Artionka Capiberibe (Universidade Estadual de Campi- nas, SP) e Oiara Bonilla (Universidade Federal Fluminense, RJ).

95 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó falavam português. Evidentemente isso limitou o teor das conversas e os temas abordados. O líder Mẽtyktire, Mekarõ, já afirmou que a vida dos Mẽbêngôkre de hoje em dia é muito diferente do que na época da chegada de Vanessa à aldeia Kretire, em 1978. Uma das transformações diz respeito à atual proliferação de aldeias. Em 1987, os Mẽtyktire estavam reunidos em uma única aldeia e, atualmente, há aproximadamente onze aldeias Mẽtyktire na Terra Indígena (TI) Kapoto/Jarina, incluídas numa lista de 79 aldeias Mẽbêngôkre registradas em 2017, excluindo a subdivisão Xikrin (ISA 2017: 493-494). Em 1978, a totalidade de aldeias Mẽbêngôkre, sem contar com os Xikrin, somou onze ou doze.

Figura 1: Mapa das áreas Mẽbêngôkre (Lea 2012).

96 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre...

A realidade atual torna problemático falar a respeito “dos Mẽbêngôkre”, sendo que cada aldeia tem suas especificidades. Em outubro de 2016, Vanessa conheceu Maial (inicialmente via e-mail e pela internet, depois pessoalmente), uma jovem Mẽbêngôkre que se formou em direito e trabalha na Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), no Ministério de Saúde, em Brasília. Vanessa resolveu empreender um diálogo exclusivamente com Maial como interlocutora, como uma forma de abordar o dilema metodológico de falar a respeito dos Mẽbêngôkre, baseado em perspectivas parciais, provenientes de determinados interlocutores, generalizados a posteriori como dizendo respeito ao povo como um todo. A trajetória de Vanessa e aquela de Maial levou a um intercruzamento de perspectivas. Vanessa, ao mergulhar no mundo Mẽtyktire, em uma convivência de uns dois anos, ao longo de quatro décadas, e Maial, ao resolver estudar direito na cidade, para entender o mundo dos brancos com a finalidade de defender os direitos de seu povo. Um breve relato sobre sua própria trajetória se encontra em anexo.

1. A questão de gênero Nas últimas décadas, a questão de gênero vem ocupando cada vez mais espaço no cenário internacional, mas não foi encontrada nenhuma ressonância disso entre os interlocutores de Vanessa. Em 2015, em uma reunião com participantes do movimento dos jovens Mẽbêngôkre, na cidade de Colíder, Mato Grosso, onde está situada a base administrativa da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Raoni (a associação dos Mẽtyktire), Vanessa indagou a respeito de mulheres interessadas na questão de gênero e se encontrou com duas jovens; apenas uma das quais estava disposta a conversar. Essa jovem fala português fluentemente, porque cresceu na cidade, e comentou que a questão de gênero ainda despertava pouco interesse entre os Mẽtyktire.2 O tema de gênero acaba repercutindo de modo rizomático na vida dos Mẽbêngôkre, chegando de fora e se impondo de uma forma ou de outra. Por exemplo, há indivíduos com parentes consanguíneos no Alto Xingu que já convidaram os Mẽtyktire para participar de reuniões

2 Desde 2015 há um debate na sociedade nacional a respeito da questão de tratar, ou não, de questões de gênero nas escolas. Surgiu até a proposta de excluir as obras de Simone de Beauvoir do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), acusando esta autora de inaugurar o que foi denominada “ideologia de gênero”. A fonte desta infor- mação é um artigo de jornal de Guilherme Mazieiro, de 31/10/15.

97 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó de mulheres, algo que ainda não tinha acontecido na época da última estadia de Vanessa em Mato Grosso, em setembro de 2018. Evans (2010), um linguista, argumenta que inexiste qualquer noção que não possa ser traduzida de uma língua a outra (contrário àquilo conhecido como a hipótese Sapir-Whorf). Partindo desta afirmação, é interessante pensar o caso dos Mẽbêngôkre à luz do discurso de algumas lideranças indígenas latino-americanas fora do Brasil. Bastam apenas dois exemplos, um proveniente de Guatemala e outro de Bolívia (e para mais detalhes ver Grijalva (2007) e Rivera (2014)), para constatar não a intraduzibilidade, mas a total falta de coincidência entre as preocupações de algumas intelectuais mesoamericanas e andinas, e as mulheres Mẽbêngôkre (e outras mulheres da Amazônia). Julieta Paredes (2008), uma mulher Aymara da Bolívia, argumenta pela necessidade de as mulheres indígenas forjarem seu próprio discurso e não se apropriar das categorias usadas pelas feministas ocidentais. No entanto, em comparação com o discurso das mulheres Mẽbêngôkre, o texto de Paredes parece totalmente arraigada em categorias ocidentais, tais como: patriarcal, machismo, inferioridade, subordinação, opressão, heterossexualidade, erotismo, prazer etc. Uma questão notável no texto de Paredes (2008) e de Cumes (2012), uma pesquisadora Maya-Kaqchikel da Guatemala, compartilhada por outras mulheres indígenas latino-americanas, é a afirmação de que o patriarcalismo não é apenas colonial e neoliberal, mas também pré- colonial. Na língua Mẽbêngôkre, inexiste algo que se traduz como “poder” ou “patriarcal”, o que pode parecer óbvio, mas como notou Sherry Ortner (2015), “estudiosas/os mais velhas/os evitam aplicar a noção de patriarcalismo à outras cultura”;3 usar tal termo sem o respaldo de nossas interlocutoras pareceria etnocêntrico. Paredes (2008: 5-6) argumenta que a virada neoliberal estabeleceu ONGs de mulheres brancas que se converteram em tecnocratas de gênero, se autodeclarando representantes das mulheres perante o Estado e a cooperação internacional. Esta autora propõe enfocar o feminismo comunitário em vez de individualista (apanágio do Ocidente), desmistificando a complementaridade homens–mulheres (chacha- warmi). Afirma que esta última noção naturaliza a discriminação. Desde a década de 1980, os etnólogos que investigaram questões de gênero nas terras baixas da América do Sul têm sido consensuais ao frisar tal

3 Texto original: “older scholars now resist applying feminist ideas and the notion of patriarchy to women of other cultures” (Ortner 2015: s/p).

98 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre... complementaridade. Isso não resolve a questão, porque os senhores e os escravos constituem categorias complementares, tais como os donos de capital e os que vendem sua força de trabalho, além do assalariado – provedor do lar e a dona de casa. Paredes (2008: 11) critica a noção de igualdade de gênero, aconselhando a “empezar una nueva forma de criar y socializar a las wawas [crianças] sin generos”, mas ao mesmo tempo afirma que “las personas que formamos parte de los pueblos y comunidades tenemos cuerpos sexuados y no queremos que esto sea pretexto para discriminarnos y oprimirnos” (ibid.). A questão da possibilidade de superar assimetrias de gênero e simultaneamente reconhecer a existência de corpos sexuados ficará em aberto. Ao enfocar a noção de comunidades, de qualquer espécie, a autora argumenta que: “en el imaginario social y politico de la Bolivia de hoy la comunidad significa, los hombres de la comunidad y no las mujeres. Ellos hablan, ellos representan, ellos deciden y ellos proyectan a la comunidad” (Paredes 2008: 10, itálicos no original). Este ponto vale para os Mẽbêngôkre e outros povos amazônicos, mas é algo que, de modo geral, continua sendo naturalizado. Algumas exceções começam a surgir a leste do Xingu: na aldeia de A’ykre, há uma chefe feminina, Ngrekamoro. Há outra na aldeia de Gorotire, e uma terceira é Tuíre, que chefia sua própria aldeia. Tuíre se transformou na figura icônica da contestação indígena ao encostar seu facão no pescoço do Diretor de Planejamento da empresa Eletronorte (José Antonio Muniz Lopes), em 1989, em uma reunião sobre o que veio a ser a hidrelétrica de Belo Monte. Havia outras mulheres brandindo facões, mas foi Tuíre que entrou para a história. Nas décadas de 1970 e 1980, vi algumas mulheres mais velhas admoestando os homens em público, ao lado da casa dos homens; Tuíre apenas fez isso numa idade mais precoce. Maial argumenta que o feminismo entra no sentido de dar voz às mulheres, de dar espaço a elas de representação dentro do movimento indígena, mas não no sentido de interferir na cultura. As mulheres não querem realizar as mesmas atividades que os homens, por exemplo, não querem caçar e pescar. Elas têm suas próprias atividades e saberes, como aquilo que diz respeito às roças e à pintura corporal. Na antropologia, ficou na moda criticar o uso de categorias binárias, algo relegado à era pretérita do estruturalismo.4 Entre os

4 Porém, no mundo contemporâneo onde entrou em cena a questão da transexualida- de, o binarismo do masculino e do feminino se mantem vigente. Isso é exemplificado

99 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó

Mẽbêngôkre o binarismo se estende até as distinções entre a fala masculina e a fala feminina. Por exemplo, a afirmação “sim” é “tam” na fala masculina e uma inspiração vozeada para as mulheres. Uma exclamação que se traduz como “é mesmo” é “beri be” na fala masculina versus “beri tukwa” na fala feminina. E a resposta dada quando alguém se despede é “aimá” na fala feminina e “airã” na fala masculina. Na língua Mẽbêngôkre a categoria “homem” (mẽmy) traduz como “a coletividade” (mẽ) “[com] pênis” (my). A tradução da designação das mulheres mẽnire ainda não foi resolvida satisfatoriamente. A categoria “homem” acopla sexo anatômico e gênero no sentido em que a presença ou ausência de um pênis é tido como índice dos atributos socioculturais a serem desenvolvidas em qualquer indivíduo.5 O paradigma da masculinidade é o guerreiro e caçador, e da feminilidade a criadora e nutridora de crianças; a propagadora das plantas na roça e sua transformação em alimentos via cozimento. Belaunde (2005) critica o que chama de interpretações essencialistas de gênero, frisando a aprendizagem que leva à incorporação de gênero. Por sua parte, os Mẽbêngôkre naturalizam as capacidades dos homens e das mulheres. A vontade da antropóloga de acompanhar uma pescaria e uma caçada foi sempre negada com a alegação de que as mulheres não aguentam passar horas debaixo do sol e jejuns prolongados, algo que tais expedições exigem. E os homens frequentemente afirmavam “Não sou mulher ou criança…!”6 para enfatizar seu distanciamento do sexo pelo caso de um casal transgênero, não indígena, que gerou um bebê em 2016. Quem engravidou foi a mulher transgênero equatoriana, de aparência masculina; a parceira, uma transgênero venezuelana, tem a aparência marcadamente feminina. O caso ga- nhou destaque na mídia por sacudir as concepções de gênero e, no entanto, conserva o estereótipo do masculino e do feminino. Ver link para Crelin (2016). 5 Há um aspecto quimérico no pênis como índice do destino de seu portador. Ou seja, Lacan (1958) distinguiu entre o pênis como órgão anatômico e o falo como símbolo de poder, algo que Freud tendia a confundir. A borduna, a arma por excelência do ho- mem Mẽbêngôkre, é um instrumento fálico e simultaneamente aquilo que lhe outorga seu poder de combate aos inimigos e de defesa de seu povo. É neste sentido restrito e contextual que o masculino engloba o feminino. Os homens não estão compensando o poder de dar à luz (uma hipótese levantada nos primórdios do debate sobre gênero), mas complementando a força uterina e feminina proveniente das matricasas. 6 Djam ibe mẽnire; djam ibe mẽprire got?”; interrogação + 1ª pessoa (i-) locativo (-be em + mulher; interrogação + 1ª pessoa (i-) locativo (-be em + criança + partícula de inversão (got). Ibe poderia também ser descrito como uma forma essiva, traduzível como “eu sou”.

100 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre... oposto. Entre os Mẽbêngôkre, Vanessa nunca encontrou o fenômeno de algum homem que desempenhava as atividades associadas às mulheres e não conheceu ninguém que não havia se casado, mesmo estando sem cônjuge na época da pesquisa.7 Entre os Mẽtyktire, somente as mulheres transportam os alimentos da roça, a lenha da floresta e a água do rio até a aldeia. Antigamente havia mais caça e somente os homens transportam os animais mortos e as pesadas estruturas (que parecem escadas) de jabutis, para serem consumidos nas grandes cerimônias de nominação. Entre seus vizinhos Kayabí (Tupí-Guaraní), os homens ajudam com o transporte dos alimentos da roça, algo que não teve nenhuma repercussão entre os Mẽtyktire. Os Mẽtyktire sempre frisaram a necessidade de as mulheres terem muitos filhos, para aumentar a população na tentativa de se equiparar aos brancos. Em 2011, ao indagar as mulheres sobre a vontade de estudar e trabalhar como professoras, tal como alguns homens estão fazendo, riram da antropóloga constatando, com toda razão, que estão plenamente ocupadas com seus filhos e seus netos, sendo impensável acumular mais tarefas cotidianas.

2. A primeira Conferência Livre de Saúde das Mulheres Indígenas8 Essa conferência, na qual participaram mulheres representando uns 33 povos, foi realizada em Brasília nos dias 23 e 24 de abril de 2017. Foi promovida pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI),9 vinculada ao Ministério da Saúde, e Maial foi uma das organizadoras que decidiram a pauta. Foram feitas 69 propostas,10 incluindo uma

7 Descola (1986: 219) afirma que o homem que não pode contar com uma mulher (mãe, esposa, irmã ou filha) só pode suicidar-se. Este autor nota que (1986: 316) um homem sem esposa não tem autonomia alimentar, contrário a uma mulher que con- segue se sustentar capturando sapos, larvas etc. As mulheres são menos dependentes dos maridos do que vice-versa. 8 Há alguma controvérsia se foi a primeira ou segunda conferência. 9 Foi realizado logo antes do Acampamento Terra Livre, um evento anual que, em 2017, mobilizou umas 3.000 participantes indígenas (e aliados). Para mais informa- ções, ver o link https://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/ 2017/04/24/ acampamento-terra-livre-2017-e-a-maior-mobilizacao-indigena-da-historia-no-bra- sil/. Acesso em 28/6/17. 10 Ver o link http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/maio/02/ Carta-fi- nal-propostas-I-da-Conferencia-Livre.pdf. Acesso em 29/6/17.

101 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó discussão sobre como participar da próxima Conferência Nacional de Saúde da Mulher.11 Segundo Maial, os Conselhos de Saúde Indígena estão organizados junto com os Conselhos Locais de Saúde Indígena (CLSI), Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI) e Fórum de Presidentes dos Condisi (FPCondisi), que representam os povos de uma determinada região e, na esfera nacional, fiscalizam o trabalho dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), que têm 34 representantes. Maial sente que está ajudando as mulheres a encontrarem sua voz em relação às questões de saúde, sendo que até hoje os representantes do CONDISI têm sido majoritariamente homens. Ela nota que as questões de saúde dizem respeito predominantemente às mulheres, porque são elas que administram a saúde dos filhos; avaliam quando é o caso de usar medicamentos do mato, banhos de ervas, por exemplo, ou quando precisam levar os filhos ao médico. Uma das questões levantadas foi a valorização das parteiras e a “humanização”12 dos partos. Maial afirma que o que mais lhe impactou foi a violência, inclusive psicológica, que aflora no decorrer da gravidez, no processo de acompanhamento médico. Algumas mulheres reclamaram que quando a grávida vai ao município para fazer um acompanhamento pré-natal, ela acaba sendo internada, em observação, sendo que os médicos decidem por fazer um parto cesariano sem o consentimento da grávida. São aplicadas injeções e administrados remédios sem a mulher entender sua finalidade e sem seu consentimento. O acompanhamento autorizado pelo médico costuma ser o marido, sendo que muitas mulheres prefeririam sua mãe, avó ou irmã. Nas aldeias Mẽbêngôkre, não é permitida a presença de um homem na casa onde uma mulher está dando à luz. Em alguns hospitais, a equipe médica não deixa a grávida receber alimentos provenientes da aldeia, nem usar medicamentos ou banhos na base de ervas do mato. Os hospitais costumam descartar a placenta e o cordão umbilical, mesmo no caso de povos que têm o costume de enterrá-los ou dar outro tratamento, como lançá-los no

11 A Conferência Nacional de Saúde da Mulher, organizada pelo Conselho Nacional de Saúde, foi realizada em agosto de 2017. Havia 34 vagas para mulheres indígenas assistirem como ouvintes. As delegadas, com direito de voto, precisam ser elegidas no município (as mulheres indígenas competindo com representantes não indígenas), e depois a nível estadual, para somente então serem enviadas à Conferência Nacional como participantes ativas. 12 Para entender a noção de humanização no campo da saúde, ver: https://pensesus. fiocruz.br/humanizacao

102 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre... rio. As mulheres estão exigindo o acompanhamento de tradutoras para consultas médicas, além de para o parto em si. Uma das questões que chamou atenção na carta redigida pelas mulheres que participaram dessa conferência foi a exigência de “[R] ever o protocolo que estabelece a idade mínima para realizar cirurgia de laqueadura no caso das mulheres indígenas, visto que as mesmas têm filho mais cedo do que as mulheres naõ indígenas.”13 Trata-se de uma questão delicada, sendo que é uma medida irreversível. Poderia levar ao arrependimento, por exemplo, no caso de uma mulher cujos filhos morrem na infância, ou que separa, casa novamente e deseja ter filhos com seu novo parceiro. Além disso, facilitaria o abuso do poder dos médicos.14 Já que o aborto é ilegal no Brasil, tais encontros não abordam essa questão. O direito à pluralidade jurídica é ainda um tema incipiente no Brasil (ver Segato 2008). Maial afirmou que as moças não se conformam mais em ter filhos desde muito cedo como faziam suas mães. As mulheres não gostam da pílula, constatando que causa inchaço do corpo, e há baixa aceitação do uso de camisinhas, especialmente por parte dos homens. Nem as mulheres nem os homens Mẽbêngôkre costumam usar bolsas dentro da aldeia, portanto, as pessoas não têm onde levar camisinhas consigo. Além disso, morando em uma casa com diversas outras pessoas, alguém teria dificuldade em pegar uma camisinha sem chamar atenção para este fato pelo resto dos membros da casa, o que seria equivalente a uma declaração não verbal de sua intenção de ter relações sexuais, algo que não se costuma discutir com outras pessoas.15 O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Kayapó, no Pará, visando o empoderamento das mulheres, realiza reuniões nas aldeias com elas, tratando de questões de saúde. São traduzidos materiais sobre

13 A carta está disponível via este link: https://www12.senado.leg.br/ institucional/pro- curadoria/pesquisa/carta-das-mulheres-reunidas-na-1o-conferencia-livre-de-sau- de-das-mulheres-indigenas. Acesso em 6/9/19. 14 No Peru houve esterilizações forçadas de mulheres indígenas no governo de Fu- jimori, na década de 1990. No dia 19/11/2018 o jornal El País publicou o artigo: “A esterilização forçada de mulheres indígenas canadenses: um assunto muito recente”, assinado por Jaime Porras Ferreyra. Veja: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/19/ internacional/1542617481_896389.html. Acesso em 6/9/19. 15 Quando Vanessa esteve em uma aldeia Apinajé, em 2008, uma das enfermeiras re- clamou que era acordada a qualquer hora durante a noite por pessoas solicitado cami- sinhas, o que deve ser a estratégia usada por alguns Apinajé para não chamar atenção em casa para suas intenções.

103 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó a saúde indígena que foram publicados inicialmente em português e que são lidas e discutidas pelas mulheres, sem o constrangimento de ter de abordar tais assuntos na frente dos homens. É uma maneira de promover os conhecimentos das mulheres sobre a prevenção de doenças.

3. Concurso Miss Kayapó Nos últimos anos, deslanchou-se o fenômeno de concursos de beleza para as mulheres indígenas. Maial chamou a atenção para a erotização da mulher indígena brasileira na internet. A respeito disso, vale a pena citar as palavras de Paredes (2008: 12):

[Q]ueremos mirarnos al espejo y amar nuestras formas corporales, nuestros colores de piel y los colores de nuestros cabellos, porque estamos hartas de una estética colonial de lo blanco como bello, cansadas del espectáculo frívolo de cuerpos que se exhiben para el consumo machista, elementos que son parte del culto a la apariencia que el neoliberalismo implanto. Es a partir de nuestros cuerpos sexuados que los varones nos hacen su objeto y los/las oligarcas nos super explotan.

Uma análise do concurso Miss Kayapó foi feita inicialmente pelo antropólogo André Demarchi (2014, 2017). Ele nota (2014: 323) que a ideia de fazer um concurso de beleza Kayapó veio da Secretaria de Educação de São Félix do Xingu e teve início em 2009. Foi incorporado à programação da Festa do Dia do Índio (19 de abril), tornando-se a principal atração turística e incrementa a renda daquela cidade. Ao mencionar críticas provenientes da FUNAI, Demarchi argumenta que “[P]ara compreender esse fenômeno há que se ter uma visão menos moralista e menos externalista [...]. Trata-se, antes, de uma apropriação mebêngôkre do desfile, […] um perspicaz controle dos padrões e imagens de beleza apresentados.” (2014: 323). Este autor recorre à noção de quimera, desenvolvida por Severi (2007), sugerindo que o desfile reúne “elementos que possibilitam julgamentos estéticos baseados em lógicas culturais distintas” (Demarchi 2014: 337), visando à interculturalidade via “um look quimérico que captura olhares diversos por reunir elementos paradoxais” (ibid.). Demarchi cita Guy Debord (2003) para pensar tal espetáculo como: “uma relação social entre pessoas mediadas por imagens” (Debord 2003 apud Demarchi 2014: 338). Chama a atenção que o concurso Mẽbêngôkre é controlado inteiramente por homens, sejam eles brancos ou indígenas, mesmo que

104 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre... quem treinou uma das candidatas descritas por Demarchi (2014) foi uma professora branca. As candidatas têm entre 12 e 18 anos, fazendo parte da categoria mekurerere, das moças sem filhos.16 São ensinadas a andar como fazem modelos brancas na passarela, sorrindo, rebolando e fazendo poses para a plateia. Não sabemos o que as moças acham disso, mas seguramente algumas delas se dispõem a se candidatar, estimuladas pelo prestígio que adquirem ao ser escolhidas para representar uma determinada aldeia. Demarchi (2014) notou que, ao venderem tecidos pintados para o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, o chefe Àkjabôrô, respaldado por outros homens, e discordando da opinião de algumas mulheres mais velhas, decidiu que cada mulher devia receber uma mesma remuneração, independentemente de maestria e destreza, para evitar fofoca e inveja (op. cit. 42-43), algo que contrasta com o ambiente instaurado pelos concursos de beleza. O concurso foi suspenso temporariamente, em 2012, porque foi noticiado que alguns brancos tinham postado fotos e vídeos do concurso em sites pornográficos (ibid.: 312). Em 2010, os jurados eram todos brancos e descartaram uma candidata mais “cheinha” (ibid.: 343), uma observação interessante, sendo que os Mẽbêngôkre costumam valorizar pessoas cheinhas, algo considerado saudável, em contraste com magreza. Os Mẽtyktire se orgulhavam do fato de que Vanessa costumava sair do campo mais gorda do que entrou, o que para eles evidenciava como a vida na aldeia lhe fazia bem. Vários autores já notaram que o auge da beleza, do ponto de vista Mẽbêngôkre - mas não apenas eles - é a adolescência, especialmente para as mulheres, antes de terem seus corpos transformados por gravidezes e amamentações, mas também para os homens, devido à sua robustez, algo que ostentam publicamente nos jogos de futebol, uma de suas atividades prediletas. Em 2011, havia 6 jurados, incluindo 4 mulheres brancas (ibid.: 346), mas a vencedora desagradou muitos Mẽbêngôkre por usar uma franja em vez da tradicional tonsura. Em 2013, o concurso voltou a ser a atração principal da festa do Dia do Índio (ibid.: 353), com um júri composto de cinco caciques de diferentes aldeias mẽbêngôkre. Demarchi (2014) concluiu que isso foi uma estratégia que visa “explicitar aos kuben que patrocinam e participam desse grande ritual, quem comanda o espetáculo” (ibid.: 354).

16 Em 2019, na aldeia de Kôkrajmõrõ, uma das candidatas, que venceu em segundo lugar, tinha apenas oito anos [observação de Vanessa].

105 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó

Esse concurso reduz as mulheres à sua beleza física em conformidade com a estética branca de corpos esguios e sorrisos cativantes. São corpos sem vozes. Lembra o provérbio inglês: as crianças devem ser vistas, mas não ouvidas.17 Demarchi (2014) nota que as moças púberes Mẽbêngôkre costumam ser tímidas; cita Vidal (1990) que menciona seu aspecto coquete, sedutora. Hoje em dia os/as jovens querem eleger seus próprios parceiros sexuais e matrimoniais, portanto, ser considerado atraente é algo que gera capital simbólico, ampliando a margem de escolha dos parceiros. Aquilo que Demarchi (2014) descreveu como timidez corresponde à palavra piaam em mẽbêngôkre. Costuma ser traduzido como “vergonha” ou “respeito” e evoca algo descrito por Geertz (1973: 402) como “medo do palco” (stage fright), no sentido do receio de deixar cair sua máscara, revelando o indivíduo que a ostenta. Em outras palavras, as moças sabem que são sedutoras, mas precisam fingir ignorar isso, algo que compartilham com adolescentes não indígenas. Em 1934, o antropólogo Marcel Mauss publicou um ensaio clássico sobre as técnicas corporais. À luz dessa ótica, é possível contrastar a aprendizagem do como rebolar os quadris do modo considerado sexy, com a ginga tradicional que caracteriza as mulheres mẽbêngôkre, internalizada ao caminhar de ida e de volta da roça, carregando pesados cestos na cabeça. Andam com as pontas dos pés viradas para dentro, algo que ajuda a equilibrar seus cestos, especialmente ao atravessar pinguelas no mato, tais como um mero tronco horizontal. Demarchi (2014) não usa o termo “sexy” no seu texto, mas seria difícil negar que a finalidade da aprendizagem de candidato a Miss visa a outro objetivo. Ver os espectadores fitando as mulheres pelas grades do ginásio onde se realiza o espetáculo, em São Felix do Xingu, evocou para Vanessa os relatos que ouviu dos Apinajé sobre as festas de santos católicos realizadas nas aldeias. São frequentadas por homens brancos, munidos de álcool, que embebedam seus anfitriões para conseguirem ter relações sexuais com jovens Apinajé, contribuindo para o aumento de mães solteiras com bebês mestiços.

4. Educação Escolar O fato de que foi a Secretaria de Educação que iniciou os concursos de beleza feminina é significativo em termos de gênero, sendo que a agência das mulheres se limita aos seus encantos corporais.

17 “Children should be seen but not heard”.

106 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre...

A obrigatoriedade do atendimento escolar, cada vez mais rigorosa, priva as crianças da aprendizagem tradicional, adquirida ao acompanhar a mãe à roça, carregando sua própria cestinha, observando tudo que a mãe faz pela convivência com ela e com outras mulheres, e não sentada passivamente numa escola, ouvindo ensinamentos transmitidos oralmente. É desta forma também que a menina Mẽbêngôkre aprende a arte da pintura corporal, ela mesmo sendo pintada e observando seus irmãos/as sendo pintados. Os brancos tendem a prejulgar a ida das crianças à roça como exploração de trabalho infantil ao invés de educação, e muitos professores brancos tratam os indígenas como vasilhames vazios de conteúdo que pretendem preencher com ensinamentos provenientes do mundo dos brancos.

5. Projetos enfocando as mulheres Japi é uma mulher Mẽtyktire que, por volta de 2013, comentou com Vanessa que os projetos realizados nas comunidades sempre contemplam os homens e que os interlocutores brancos dão toda sua atenção aos homens. Recentemente um grupo de mulheres Xikrin-Mẽbêngôkre desenvolveu um projeto para uma roça coletiva (Mantovanelli 2016; Tselouiko 2018).18 Há anos Vanessa reconhece o potencial da arte da pintura corporal para gerar renda para as mulheres, mas elas centraram sua atenção na fabricação de pulseiras e posteriormente colares e brincos feitos com miçangas (importadas da República Tcheca). Nos anos 1994 e 1995, as mulheres Mẽtyktire produziam pulseiras de miçangas para vender ao Body Shop (uma loja da Inglaterra), mas logo desistiram devido à baixa remuneração. A partir de 2006, as aldeias Kubẽkàkre e Pykany, da subdivisão Mẽkrãgnoti, desenvolveram peças para vender utilizando grafismos transpostos para tecido. Em meados de 2016, Vanessa enviou um projeto para o Museu do Índio no Rio de Janeiro, propondo realizar uma oficina sobre pintura para as mulheres Mẽtyktire, mas acabou não se materializando. No final de 2013, Vanessa teve acesso a uma série de pinturas em tecido no Museu do Índio, proveniente das mulheres da aldeia Mojkàràkô (mencionada na seção sobre o concurso de Miss). No dia 25 de junho de 2017, foi realizado um bazar, em São Paulo, onde foram vendidos tecidos de

18 O website do Instituto Raoni menciona um projeto para uma roça coletiva entre as mulheres Mẽtyktire, mas sem entrar em mais detalhes.

107 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó lona engomada com pinturas feitas pelas mulheres desta mesma aldeia, a maioria deles com a assinatura de quem executou a pintura. Os de tamanho maior foram vendidos por R$ 250,00 e os menores por R$ 200,00; o preço independia da qualidade, sendo que alguns estavam borrados. Houve um segundo bazar do mesmo tipo em 2018.

Figura 2. Pintura Mẽbêngêkre em tecido (Fonte: Lea 2018)

A venda em São Paulo dos tecidos pintados foi uma iniciativa de André Leite (da área de publicidade), que conheceu a comunidade em 2016 e está ajudando a levar internet via satélite para a aldeia, para fomentar as relações com pessoas de fora, visando parcerias econômicas e de intercâmbio. Com a venda de um primeiro lote, conseguiu construir um prédio para abrigar o equipamento e, com o segundo lote, o plano era comprar o equipamento para acessar à internet. André informou à Vanessa que aproximadamente R$ 120,00 ia para a pintora e o resto vai para a Associação da aldeia. Para Vanessa, parecia uma iniciativa interessante que empodera as mulheres, não apenas gerando renda para elas, mas lhes dando a oportunidade de contribuir para o desenvolvimento da infraestrutura da aldeia. Maial discordou, por tratar de trabalhos realizados e negociados por homens. Portanto, essa questão fica em aberto. André frisou que o projeto envolve apenas ele e a comunidade, um empreendimento que impressiona pelo fato de ter passado por cima da burocracia que envolve o relacionamento dos antropólogos com as comunidades indígenas. André notou que poderia ser difícil sustentar uma loja dedicada exclusivamente à venda de tais pinturas. Na cidade do Rio de Janeiro, havia uma loja – Tucum – no

108 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre... bairro de Santa Teresa, que vendia artesanato de diversos povos indígena do Brasil, incluindo pinturas Mẽbêngôkre emolduradas, adquiridas via a Associação Floresta Protegida, no Pará. A loja fechou em maio de 2019, mudando para um espaço bem menor em uma loja no Parque Lage. A indústria da moda tenta explorar esse nicho de arte étnica e tem gerado descontentamento entre os Mẽtyktire que não se beneficiaram das iniciativas gerenciadas pela Associação Kabu (do subgrupo Mẽkrãgnoti Mẽbêngôkre), no Pará, que fez contratos com a empresa de materiais esportivos Adidas e com a marca Farm, uma empresa de moda no Rio de Janeiro, entre outras. Até 2004 os bens mais valiosos vendidos pelos Mẽbêngôkre eram itens de plumária, confeccionados pelos homens. A partir de 2004, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) vetou a venda de todos itens fabricados a partir de matéria- prima proveniente de animais silvestres. Até então, os homens vendiam cocares de penas para ter acesso a bens industrializadas. O cocar krokrokti, fabricado de penas de , chegou a valer o equivalente de uma espingarda. Desde então os homens passaram a fabricar cocares a partir de canudos de plástico, réplicas totalmente desvalorizadas da arte plumária. Uma das consequências não intencionais disso é a ascendência potencial da arte das mulheres. Quando Vanessa iniciou sua pesquisa, a única renda das mulheres era proveniente do engarrafamento de mel, trazidos do mato pelos homens. Uma das vantagens da produção de bijuterias confeccionadas com miçangas, desde meados da década de 1990, é ser uma atividade que pode ser executada em qualquer lugar; não requer um espaço específico, tal como uma oficina.

6. Uma revolução sem alarde Uma visão caricatural considera que as sociedades indígenas estão estacionadas no tempo, mas quem as conhece de perto enxerga, que além de estar se transformando continuamente, têm experimentado uma revolução sem alarde. Lux Vidal (1990), que pesquisou os Xikrin- Mẽbêngôkre, já notou que a aquisição do machado de ferro diminuiu consideravelmente o esforço físico necessário para derrubar árvores para fazer uma roça, uma tarefa masculina.19 E existe um mito sobre a origem da espingarda onde é explicitada a vantagem dela em relação aos

19 Descola (1986: 229) também comentou que machados de aço facilitam a abertura das roças e que o trabalho masculino foi modificado mais que o trabalho feminino.

109 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó arcos e flechas, porque permite abater um animal sem sair do lugar (Lea 1984). Vidal (op. cit.) comentou que o trabalho feminino Mẽbêngôkre não foi modificado pela aquisição de bens industrializados como foi aquele dos homens, embora o uso do facão amenize o trabalho na roça em comparação com o antigo pau de cavar. No campo, chamou a atenção de Vanessa que os homens aderiram à instituição de domingo (o dia marcado de vermelho no calendário - piôk kamrek “folha vermelha”) como um dia em que não trabalham, algo que inexiste para as mulheres, porque todos querem comer no domingo, sendo que é a mulher que cozinha, e as crianças precisam de cuidados neste dia como nos demais. Strathern (1987; 1988) já afirmou que desigualdade é uma preocupação euro-americana e problematizou a noção de dominância masculina. Em vez disso, propõe falar de assimetria de gênero. A incorporação pelos homens de um dia de descanso é um exemplo de assimetria que se insinuou após o contato com os brancos, tal como o ‘chefe do lar’ em um mapa do Atlas Mẽbêngôkre (2007), onde cada casa é designada pelo nome do homem mais velho em vez da mulher, um deslize patriarcal em um desenho feito pelos jovens professores Mẽtyktire.

7. As casas Mẽbêngôkre Antigamente, eram as mulheres que construíam as casas. Mekarõ disse para Vanessa que foi um dos líderes que primeiro veio a copiar o estilo de casa dos seringueiros, de pau a pique com teto de palha. A partir daí foram os homens que passaram a construir as casas. Gradativamente, os homens têm passado menos tempo reunidos na casa dos homens, no centro da aldeia, e mais tempo nas casas das mulheres. Isso nos leva à questão daquilo descrito por Lea (1993) como as Casas ou matricasas Mẽbêngôkre (kikre djam djà; casa + em pé + lugar). Inicialmente Maial usou como tradução o termo “família” ou “linha”. Em 2019, após contato com os Xavante, com seus clãs e linhagens patrilineares, optou pelo termo Casa ou matricasa. Disse que a família de sua mãe é do pàt krĩ djà (tamanduá + sentar + lugar). Vanessa reconheceu de imediato tal Casa porque estava presente em uma das aldeias onde fez pesquisa. O nome se refere às máscaras de tamanduá que pertencem à matricasa em questão. Maial se referiu à família de seu pai como aquela de Bepkororoti, a figura mitológica que foi embora para morar no céu após uma briga e é responsável pelo envio de relâmpagos. Inventou a borduna, a espada e legou a tonsura que caracteriza os Mẽbêngôkre até

110 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre... hoje. Evidentemente, o termo “família” é ambíguo, porque não implica necessariamente algo com uma dimensão temporal que se estende ao tempo mítico. Maial concordou que a noção de “linha” é igualmente vaga. Tais Casas ou “famílias” são unidades exogâmicas, cada qual com seu legado de nomes pessoais e riquezas herdáveis. Lea (2012) optou pelo termo descendência uterina, em vez de matrilinear, devido à dificuldade de encaixar as matricasas nas tipologias antropológicas existentes (para mais detalhes ver Lea (2012)). Evocam várias características associadas por Lévi-Strauss (1984 e passim) com aquilo que esse autor denomina sociedades-de-casas (société à maison), embora ele tivesse em mente sociedades cognáticas, nas quais os parentes maternos e paternos são igualmente importantes da perspectiva de Ego. Em português, se pode falar de pessoas morais (como em francês – personnes morales) ou de grupos corporados (como em inglês – corporate groups). Lea (2012) tentou se desvencilhar das conotações dos grupos corporados ao usar o termo pessoa moral, mas acabou sendo tachada de fortesiana (Demarchi 2014: 95), na contramão do coro exigindo o exorcismo dos modelos africanos, especialmente a noção de grupos de descendência. O problema é que esta posição hegemônica que, desde o fim da década de 1970, enxerga apenas corpos, osine qua non de pessoas, de agência e de subjetividades, relegou à obscuridão os fenômenos sociocêntricos, sejam clãs (também chamados de sibs), metades e seções matrimoniais, encontrados em diversas regiões da Amazônia. A literatura sobre sociedades matrilineares, que evocam as matricasas Mẽbêngôkre, é consensual ao chamar atenção para as pressões sofridas perante sua inserção em formações sociais patriarcais, tais como o império britânico, francês ou alemão (Schneider & Gough 1961). Os homens, ao trabalharem em troca de um salário, começam a priorizar seus filhos acima dos filhos de suas irmãs, os últimos sendo seus herdeiros e beneficiários em um regime matrilinear (ou uterino). Lea (1995) descreveu alhures como os homens circulam entre as mulheres devido à regra de matri-uxorilocalidade e como isso é compensado de certa maneira via a transmissão patrilateral de amizade formal que, em teoria pelo menos, estabelece a troca de mulheres entre patrilinhas de homens. Idealmente eu, enquanto mulher, caso minha filha com um dos meus amigos formais, da idade da minha filha, herdado via meu pai (ver Lea (1995) para mais detalhes).

111 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó

No passado, casamentos eram planejados quando as meninas eram pequenas e às vezes durante a própria gravidez de sua mãe. A família do futuro marido mandava carne de caça para a família da futura esposa e Vanessa ouviu relatos sobre meninas criadas pelos maridos até a puberdade, quando eram iniciadas as relações sexuais com elas. Havia ressentimento e brigas se tais acordos foram rompidos, porque implicavam em investimentos significativos durante anos. Atualmente, está desaparecendo a prática de casamentos arranjados pelas pessoas mais velhas. Os jovens querem eleger seus próprios parceiros, tais como fazem os brancos. O Ocidente trata a questão dos casamentos arranjados como uma prática a ser combatida com veemência. Porém, tinham uma determinada lógica, incluindo a garantia de um compromisso masculino com o provimento de uma casa, uma roça e proteína para uma mulher e seus filhos. Hoje em dia, com a pressão antiaborto, exercida pelo Estado brasileiro, e casamentos provenientes de atração mútua (algo que pode ser fugaz), há um contingente crescente de mães solteiras, consideradas desamparadas. Dependem de seus parentes consanguíneos e afins para sua sustentação e acesso à proteína.

8. Casamentos Interétnicos Recentemente alguns antropólogos escreveram sobre o impacto do casamento de mulheres indígenas com homens brancos, tal como o estudo de Cristiane Lasmar (2005, 2008) sobre a região do Rio Negro. Contudo, faltam pesquisas sobre o impacto de casamentos interétnicos entre os próprios povos indígenas brasileiros.20 Em 1978, na aldeia Kretire dos Mẽtyktire, havia um contingente de Panará distribuído entre várias casas. Os Panará foram removidas à força de suas terras ancestrais durante a ditadura militar e levados ao Parque do Xingu. Moraram em diversos lugares até recuperar uma terra destinada exclusivamente a eles no Pará. Em 1978, havia apenas uma mulher Panará casada com um homem Mẽbêngôkre, morando virilocalmente na casa de uma mulher sem filhas. Desde então, vários outros casamentos se sucederam de indivíduos Mẽtyktire com Panará e com os Tapayuna, outro povo transferido ao Parque do Xingu e que não se adaptou ao convívio com os Kĩsêdjê (Suyá), considerados seus

20 Descola (1986) menciona que havia homens Shuar, professores, se casando como mulheres Achuar e assim conseguindo acesso à terra, algo já escasso no seu próprio território, mas se trata de subgrupos de um povo falando a mesma língua.

112 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre... parentes pelos brancos responsáveis por seu deslocamento de suas próprias terras. Além disso, os Villas Boas (os Diretores do Parque do Xingu) já haviam arranjado um casamento entre um homem Mẽtyktire e uma mulher do Alto Xingu. Quando a FUNAI contratou três homens Mẽtyktire para trabalha- rem no Posto administrativo, ao lado da aldeia, cada um deles levou sua esposa para morar no Posto, um com uma mulher Trumai e outro com uma mulher Tapayuna. O terceiro homem estava casado com uma mulher Metyktire, mas quando perdeu a esposa para um rival, acabou indo morar no Posto de Vigilância na estrada BR-80, onde se casou com uma mulher Yudjá (Juruna). O Posto ao lado da aldeia funcionou como uma espécie de satélite da sociedade branca, onde foram inaugurados novos costumes provenientes da sociedade envolvente. Em uma sociedade onde as mulheres pertencem à matricasa da mãe, ocorre uma ruptura significativa quando os homens se casam com mulheres de outras etnias, porque seus filhos não fazem parte de nenhuma matricasa Mẽbêngôkre. Em 2011, Vanessa observou a continuação dessa tendência, notavelmente entre alguns homens que haviam se tornado professores, sendo que tal arranjo lhes permitiu instalar sua esposa na sua casa materna, os livrando das demandas dos sogros. Um dos pioneiros dessa tendência, que morou de forma neo- local, me falou que isso permitiu separar o que era dele dos pertences dos sogros. Portanto, a residência neolocal e virilocal poderia ser interpretada como uma estratégia masculina para conquistar um grau maior de autonomia pessoal em relação ao tradicional arranjo matri- uxorilocal. Tais esposas são desprovidas do apoio de sua família uterina e, nesse sentido, em evidente desvantagem em relação às esposas Mẽbêngôkre.

Conclusão Os antropólogos contribuíram para o silenciamento das mulheres Mẽbêngôkre, relegando-as à “periferia” da aldeia,21 com os homens

21 Na página sobre os Mẽbêngôkre, no site do Instituto Socioambiental (ISA), se lê o seguinte, de autoria de Verswijver: “No meio da aldeia, há a casa dos homens, onde as associações políticas masculinas se reúnem cotidianamente. Esse centro é um lugar simbólico, origem e coração da organização social e ritual dos Kayapó, célebre por sua complexidade […]. A periferia da aldeia é constituída por casas dispostas em círculo, repartidas de modo regular, nas quais habitam famílias extensas.” Disponível em: ht-

113 Vanessa Lea | Maial Paiakan Kayapó monopolizando seu foco, algo justificado pela localização dongà – a casa dos homens – no centro da aldeia e pelo fato dos rituais serem realizados no pátio central. O centro é o locus da conciliação dos interesses heterogêneos provenientes do círculo da aldeia, caso contrário é a partir do centro que vai se cristalizando uma cisão da aldeia. Em 2015, um dos dirigentes de uma ONG mencionou para Vanessa que os financiadores de projetos no Alto Rio Negro reclamavam da falta de participação das mulheres nas reuniões, sendo que eram os homens indígenas que relutavam em levar as mulheres.22 Os Mẽtyktire ainda não costumam levar as mulheres em reuniões políticas, embora esta situação já esteja mudando com os Mẽbêngôkre a leste do rio Xingu. É um dilema comum devido à contradição entre a intenção das Nações Unidas de promover igualdade de gênero e os valores patriarcais tanto dos brancos quanto dos povos indígenas no Brasil. Ao mesmo tempo há algo de etnocêntrico nessa demanda, levando-nos de volta à questão de que são as mulheres que cuidam das crianças, sendo que nas viagens à cidade para reuniões políticas não há garantias de comida regular e hospedagem compatíveis com as necessidades das crianças.

Agradecimentos Vanessa Lea agradece ao CNPq pela bolsa de produtividade em pesquisa que possibilitou trazer Maial de Brasília para São Paulo para trabalhar junto sobre esse texto, em 2017. Está grata a Daniel Faggiano por ter me apresentado a Maial, a Artionka Capiberibe e Oiara Bonilla pela organização do painel que originou a redação desse texto, a Andrés Salanova pela discussão sobre a par- tícula locativa em Mẽbêngôkre e a Clédson Mendonça Júnior por ter mediado sua ida ao concurso Miss Kayapó, em 2019. Mas principalmente Lea agradece a paciência das mulheres e dos homens Mẽtyktire pela troca de ideias no de- correr da convivência nas suas aldeias.

tps://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Mebêngôkre_(Kayapó). Acesso em 29/8/19. 22 A respeito desta questão, Robin Wright, antropólogo que pesquisa aquela região há muitos anos, apontou para o fato de que a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) teve uma mulher Presidente (Almerinda Ramos, do povo Ta- riana) por quatro anos, a partir de 2012, e que as mulheres daquela região já têm vá- rias associações próprias. Disponível em: http://www.acritica.com/channels/ governo/ news/indigena-mulher-e-eleita-para-dirigir-a-foirn.

114 Indagações a respeito das transformações na vida das mulheres Mẽbêngôkre...

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118 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia Karajá e suas transformações Macro-Jê1

Eduardo S. Nunes Universidade Federal do Oeste do Pará Programa de Antropologia e Arqueologia

Introdução Em um clássico artigo de 1956, Lévi-Strauss inicia seu argumento sobre a relação entre dualismo e triadismo com um exemplo Winnebago retirado da etnografia de Paul Radin. Parte desses indígenas dos Grandes Lagos da América do Norte se lembrava de suas antigas aldeias como sendo circulares com casas repartidas diametralmente em duas metades; outra parte, porém, negava que assim tivesse sido e descrevia as aldeias antigas como estruturadas por um padrão circular concêntrico. Antes de decidir qual das duas versões seria verdadeira, Lévi-Strauss afirma que elas poderiam “corresponder a dois modos de descrever uma organização complexa demais para ser formalizada por meio de um modelo único” (2008: 149). Passando por exemplos da Melanésia e da Indonésia para chegar aos casos centro-brasileiros Bororo e Timbira, o autor mostra que estruturas diametrais e concêntricas coexistem nos planos de aldeias de povos específicos. A continuação do argumento é bem conhecida. Lévi-Strauss projeta as duas figuras dos dualismos diametral e concêntrico sobre uma reta para demonstrar que, enquanto o primeiro replica a dualidade inicial em dois segmentos de reta, sendo “estático”, “incapaz de superar a si mesmo” (ibid.: 167), a figura resultante do segundo é assimétrica, uma reta e um ponto, configurando um sistema de três polos.

1 O presente texto tem sua origem em um trecho de minha tese de doutorado (Nu- nes 2016) que foi adaptado para ser apresentado no IX Encontro Macro-Jê (Barra do Garças, junho de 2018), na mesa redonda “As aldeias macro-jê são “planejadas”? Re- visitando as “sociedades legíveis” e seus diagramas”. Agradeço a Marcela S. Coelho de Souza e Guilherme Falleiros, cujas comunicações tornaram a mesa redonda tão inte- ressante, propiciando um rico diálogo e aprendizado. Agradeço também aos demais presentes na ocasião, em especial Maria Elisa Ladeira que, em comentário a minha comunicação, sugeriu a imagem do cone com a qual encerro o texto.

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O argumento, como dito, é bem conhecido, e não cabe retomá-lo em mais detalhes. O que interessa aqui, especificamente, é que a figura resultante da projeção do dualismo concêntrico sobre uma reta gera os traços elementares do plano de aldeia de um povo centro-brasileiro de língua Macro-Jê que, ao contrário dos Bororo citados por Lévi-Strauss, foi por muito tempo considerado um caso atípico: os Karajá.2 As aldeias desse povo são formadas por uma ou mais fileiras de casas dispostas à beira do rio e por um pátio ritual – onde se encontra uma “casa de aruanã” ou “casa dos homens” – situado na região mediana da fileira de casas, mas um pouco afastado delas em direção ao mato. Cabe notar que a fileira de casas é orientada segundo a polaridade entreibòò (montante) e iraru (jusante) – uma reta e um ponto configurando um sistema de três polos, em suma.3 O caso Karajá poderia ter sido o exemplo cabal para a demonstração de Lévi-Strauss, mas ele não o menciona – embora certamente conhecesse algo sobre o grupo, já que publicou um curto texto sobre suas famosas bonecas de cerâmica ainda no final da década de 1930 (Lévi-Strauss 1937). A curiosa ausência dos Karajá no texto de Lévi-Strauss foi reverberada, de certa forma, pela ausência do grupo nos debates acerca do conjunto Jê-Bororo que teve lugar da década de 1960 em diante. Se os Bororo, ainda que linguisticamente não-Jê, eram uma espécie de protótipo das sociedades multidualistas centro-brasileiras, os Karajá pareciam não se encaixar bem no modelo. Até não muito tempo atrás, os principais esforços analíticos específicos ainda se empenhavam, de algum modo, em dar conta dessa “atipia” localizando os Karajá “entre” dois modelos opostos – entre dois “modelos estruturais”, como faz Pétesch (1993), ou entre duas “matrizes culturais/linguísticas”, como propõe Rodrigues (2008) para o caso Javaé,4 esforços que, a meu ver, acabam por resvalar em um esquema tipológico. O que gostaria de fazer

2 A própria língua Karajá, foi por muito tempo tida como isolada, só foi identificada como pertencente ao tronco Macro-Jê no final da década de 1960 (Davis 1968). 3 Nathalie Pétesch (1993) explora abundantemente essa estrutura dual assimétrica, apontando como ela se aplica a diversas instâncias, desde o plano de aldeia à estrutura tripartite do cosmos. 4 Os Karajá são um dos três grupos que se autoidentificam comoInỹ , ao lado dos Javaé e dos Ixỹbiowa. Grupos irmãos, que falam (variantes de) uma mesma língua e cujos sistemas sociocosmicos estão em clara continuidade uns com os outros, em geral se identificam como três grupos distintos, ainda que, em muitos momentos, evidencian- do diferenças para com outros, se afirmem um mesmo povo.

120 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia Karajá e suas transformações Macro-Jê nesse texto é retomar esse debate em outras bases, sem fazer recurso a “tipos”, mas sim pensando possibilidades de transformação. O fato de que a projeção do esquema do dualismo concêntrico sobre uma reta feita por Lévi-Strauss gera os traços elementares do plano de aldeia Karajá, de que, portanto, suas aldeias lineares são uma transformação possível das aldeias circulares centro-brasileiras, já foi notado por outros autores. Mas seria possível fazer a transformação contrária, da linha-e-ponto Karajá para os círculos concêntricos Jê- Bororo? Gostaria de explorar essa possibilidade, trazendo alguns elementos que apontam para o interesse em pensar um grupo macro-jê de transformações. O resultado desse exercício, acredito, – e cabe notar que se trata de fato de um exercício, de um experimento analítico – é colocar sob suspeita o caráter auto evidente dos planos de aldeia e da própria circularidade das aldeias Jê-Bororo.

1. Dualismo ex-cêntrico A caracterização dos Karajá como estando “entre” modelos estruturais opostos, certamente, é caudatária dos debates das décadas de 1970 e 1980 que, partindo de sínteses regionais, colocou em pauta, justamente, alguns modelos estruturais distintos – Jê, Tupi, Alto Rio Negro, Guianas. Nesse contexto, os contrastantes Jê x Tupí, Brasil Central x Amazônia, foram tomados como exemplificando diferentes estilos de socialidade: socialidades “sem exterior” vs. socialidades voltadas para o exterior, sistemas centrípetos vs. centrífugos, sociedades metafóricas vs. metonímicas, dentre outras formulações (cf. Overing 1981; Viveiros de Castro 1986; Fausto 2001). Mas esses contrastes, como as etnografias vêm mostrando faz algum tempo, são bem menos claros do que se imaginava antes – afinal, pelo menos em alguns casos, só foram postos para serem atravessados. Nos últimos quinze anos, vários trabalhos sobre os grupos Jê têm feito aparecer uma outra imagem, sobretudo no que se refere a seu suposto “fechamento”. “Se as diferenças que outros têm continuamente de ir buscar ‘fora’ nos aparecem entre os Jê como ‘introjetadas’, isso não se deve a serem os Jê mais autossuficientes (e ‘conservadores’) que os outros. Como os demais povos indígenas sul-americanos, eles também estão virando Outros o tempo todo, através de uma contínua diferenciação” (Coelho de Souza et al. 2010: 10-11) (cf. também Coelho de Souza 2002). Nada disso, é claro, abole as diferenças entre os Jê e as

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“sociedades minimalistas” amazônicas; apenas nos obriga a relativizá- las: sobre outros eixos, elas podem ser reencontradas no âmbito dos próprios povos jê, ou tupí, em outras escalas. Tendo tudo isso em mente, o que se segue é apenas um exercício analítico que visa explorar, de maneira especulativa, transformações possíveis entre modelos de aldeias circulares (Jê-Bororo) ou lineares (Inỹ). Farei isso por meio de um diálogo com a etnografia Panará de Elisabeth Ewart (2003, 2013). A autora chama atenção para o fato de que os estudos sobre grupos Jê tenderam a se restringir ao interior do círculo da aldeia, à exclusão, por exemplo, das relações entre seus habitantes e os não indígenas. Como sabemos, o próprio formato circular da aldeia, associado aos pares de metades que o recortam de múltiplas formas, foi um importante elemento para a imagem de fechamento e autocontenção (self-containment) imputada a esses grupos. Ewart aponta, ao contrário, para as limitações de se restringir ao interior do círculo de casas, excluindo o que está além dele. “No que concerne à socialidade Panará, fica claro que o dualismo como um princípio de ordenação do mundo não termina nos limites da aldeia, mas se estende além dele para incluir relações com estrangeiros, como os brancos” (Ewart 2003: 23). Contestando a ideia de que a aldeia é um “mapa para relações sociais”, a autora argumenta que a aldeia é produzida “by the lived actions of the people”, estando, portanto, em constante transformação (ibid.: 262). Um exemplo importante é que, no passado, havia duas casas dos homens no centro da aldeia, ocupadas separadamente pelos membros de cada metade. Já à época de sua pesquisa, havia apenas uma, utilizada por todos os Paraná. Essa casa, porém, era deslocada para o lado sudoeste da praça central, ao passo que a outra metade era ocupada pelo campo de futebol. Uma oposição entre metades, assim teria dado lugar à oposição entre Panará e hipe, os brancos. A etnografia de Ewart traz uma série de contribuições para a reformulação da imagem dos Jê como “fechados sobre si mesmos”. Mas vou me restringir a dois pontos. A descrição da autora apresenta uma inversão dos valores atribuídos ao “centro” e a “periferia” tal como aparecem mais comumente na literatura centro-brasileira. Enquanto os estudiosos do projeto Harvard-Museu Nacional atribuíam, grosso modo, um valor hierarquicamente superior ao centro, como lócus por excelência da “sociedade”, em oposição ao círculo de casas associadas à “natureza” (dentre outros muitos pares de oposição), Ewart argumenta que, entre os Panará, o centro, mais que o exterior da aldeia, é o lugar

122 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia Karajá e suas transformações Macro-Jê da alteridade: “a partir da lógica do layout da aldeia, é possível conceber a alteridade [‘Otherness’] como estando localizada no centro, ou seja, precisamente no lugar onde está a casa dos homens hoje, antes que como sendo considerada apenas como um aspecto do domínio antissocial externo à aldeia” (ibid.: 270). A semelhança com o caso Karajá é notável. Como argumentei em outro lugar, a praça ritual (ijoina), espaço exclusivamente masculino, se opõe ao segmento residencial (ixỹ), espaço marcadamente feminino e lócus por excelência da produção de parentesco. É na praça ritual que têm lugar os dois grandes ciclos rituais coletivos que os Karajá realizam hoje, o Hetohokỹ, o grande ritual de iniciação masculina, e o ciclo de danças de espíritos mascarados chamados de aruanã ou, na língua Karajá, ijasò. Em um caso como em outro, as performances masculinas no centro da praça colocam em cena uma transformação ritual, um devir “bicho” (aõni) – quer se trate dos Aruanãs mascarados, da coletividade anônima dos mortos (woràsỹ) ou de espíritos animais chamados de aõni aõni. Entre os Karajá, em suma, a praça ritual, o “centro” é o lugar reservado aos aõni e à transformação dentro do espaço feito humano (ver Nunes 2016). Mais ainda, Ewart (2003) argumenta que “a aldeia circular [Panará] pode ser lida como baseada em um conceito essencialmente linear” (ibid.: 270). Pois os dois clãs associados ao nascer e ao por do sol, kwakjatantêra e kwasôtantêra, não se opõem no círculo da aldeia, mas sim dispõem-se lado a lado, sendo um associado à base e outra às folhas da palmeira de buriti (ibid.: 264). Uma aldeia circular, mas marcada por um aspecto linear. A autora menciona um artigo de Hans Dietschy (1977), no qual etnólogo suíço sugere que as aldeias lineares Karajá poderiam ser vistas como uma transformação das aldeias circulares dos Jê setentrionais. Ewart (2003), então, recorre à abertura do círculo do dualismo concêntrico e sua projeção sobre uma reta feita por Lévi- Strauss – que, como já notei, gera os traços elementares do plano de uma aldeia inỹ, uma reta e um ponto –, e ressalta as consequências dessa operação à luz de seu material etnográfico:

This […] in turn, has profound effects on the way in which the village centre is conceived, and it is no longer ‘geometrically obvious’ that the centre is of necessity the heart of culture. Indeed, it can be seen to become the very opposite, namely the ‘heart of Otherness’. Equally, it is no longer obvious that what goes on at the centre, men’s debates and ceremonial life, is the culmination of cultured self-identity but may, rather, be seen as the privileged location for encountering and

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appropriating alterity. In turn, a circular formation with the men’s house at the centre is the ideal and logical result of total inclusion of what is conceptualized as totally ‘other’ and beyond or outside ‘self’. Clearly, the dialectical relations between centre and periphery are key elements of Gê social structure, but not to the exclusion of that which lies beyond the periphery (Ewart 2003: 271).

Um anticírculo, poderíamos dizer; um círculo que não circunscreve um espaço interior, mas sim seu próprio exterior, um círculo cujo exterior está no centro e o “centro” está na linha periférica. O caso Karajá é uma radicalização dessa possibilidade. A abertura do círculo, feita por Lévi- Strauss e retomada por diversos autores e autoras, sugere que as aldeias Karajá poderiam ser uma transformação das aldeias circulares Jê. O que acontece, porém, se fizermos o contrário, se transformarmos a praça ritual inỹ em um centro e fecharmos a linha de casas como um círculo a sua volta? Como Dietschy já havia notado, isso pode ser feito, “desde que estejamos de acordo que as casas do círculo assim reconstituído possam se voltar para o exterior, virando as costas ao centro” (1977: 300). Pois as casas em uma aldeia Karajá tem sua porta principal voltada para o rio, e não para a praça – uma dupla transformação, assim, em relação ao desenho das aldeias jê. Ou então, eu acrescentaria, poderia acontecer o inverso. Pois há duas maneiras de fechar o círculo: podemos fechá-lo para a direita, circundando o pátio ritual (a operação de Dietschy – ver Diagrama 01, transformação 1 [t1]), de modo que as casas voltam-se para fora; ou poderíamos fechá-lo para a esquerda, de modo que as casas se voltem para dentro, seguindo o desenho das aldeias circulares jê (ver Diagrama 01, t2), e então, o centro (o pátio ritual) seria deixado do lado de fora! De todo modo, um anticírculo, no qual as casas ou viram as costas para o centro ou, voltando-se para dentro, o arremessam para o lado de fora. Nem concêntrico nem diametral; estaríamos diante de um dualismo “ex-cêntrico”. Os Karajá, assim, talvez possam ser vistos como uma variação do esquema Panará proposto por Ewart: pois nos encontramos diante de uma radicalização da ideia de que o centro é o lugar da alteridade no espaço “aldeão”: ele lhe é exterior. Os Karajá dizem que o ijoina, o pátio ritual, ficafora da aldeia; a aldeia propriamente dita é o ixỹ, o segmento residencial feminino. Seguindo essa pista, poderíamos dizer que o pátio ritual é um duplo da aldeia.

124 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia Karajá e suas transformações Macro-Jê

Diagrama 01

A ideia de uma aldeia circular conceitualmente vazia, com um centro projetado para o exterior, pode parecer estranha, sobretudo no panorama dos Jê Setentrionais. No entanto, foi justamente ali que encontrei um exemplo concreto de uma aldeia “sem centro”. A existência e vitalidade da casa dos homens entre os Kayapó depende do contraste entre diferentes “turmas masculinas”. Em tempos recentes, porém, o tamanho dos assentamentos tem diminuído em função da aceleração da fragmentação das aldeias maiores e da criação de novos sítios. E começa a ocorrer, em função disso, que aldeias recém-fundadas sejam compostas por apenas uma turma masculina, o que faz delas círculos conceitualmente vazios.

As aldeias mẽbêngôkre passaram de uma configuração com duas casas dos homens para uma de casa única. Hoje há diversas aldeias que “não possuem” casa dos homens. Na verdade, elas possuem, localizada no centro da aldeia, mas ele é de certa forma inoperante. Em Rikaro, por exemplo, a casa dos homens foi destruída por ocasião de um temporal, mas não foi uma preocupação reconstruí-la, de modo que outra foi erguida meses depois. Em Tepdjàti, ela só era usada como um espaço onde durante certas noites os chamados “crentes” da aldeia se reuniam para cantar os “hinos” em língua mẽbêngôkre. Nas aldeias maiores, a casa dos homens, afora seu caráter de palco de danças e interação masculina cotidiana, funciona como um espaço para reuniões importantes, especialmente

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para aquelas que envolvem a aldeia como um todo ou que contam com a presença de kubẽ. Nas aldeias menores, recém-criadas, no entanto, o espaço para reuniões é geralmente a frente da casa do único bẽnjadjwỳrỳ [chefe de turma masculina] (Moraes Passos 2018: 134 – grifos meus).

2. De volta ao dualismo diametral Aqui reencontro, também, uma transformação do plano da aldeia Buridina, que não possui pátio ritual nem casa de aruanã. Suas duas fileiras de casas, porém, não se voltam ambas para o rio, mas estão uma de costas para a outra! Buridina está à beira do Araguaia e tem, em termos gerais, a mesma configuração espacial de outras aldeiasinỹ . Até a década de 1960, ela estava ao lado de um pequeno vilarejo, cuja origem remonta ainda no final do século XIX, tendo se originado do presídio de Santa Leopoldina. O que separava a aldeia (à jusante) e o vilarejo (à montante), ambos à beira do rio, era apenas um córrego. Na década de 1970, a cidade de Aruanã (que virou município do estado de Goiás em 1958) iniciou um processo vertiginoso de expansão, em função do aumento do fluxo de turistas cresceu em todas as direções, inclusive para o norte, atravessando o córrego (hoje, já quase seco, corre em uma tubulação sob o asfalto) e “engolindo” a aldeia, que ficou “ilhada”, rodeada pela malha urbana, exceto pelo lado do rio. Paralela ao rio, e imediatamente atrás da aldeia, foi construída uma estrada que, posteriormente, foi asfaltada e se tornou a principal avenida de Aruanã.5 O espaço deixado pela ausência de rituais em Buridina veio a ser ocupado, de algum modo, pelas relações intensas com o mundo dos não indígenas. E, dada a importância dessa oposição inỹ-tori ali, que se constitui, inclusive, como uma divisão interna às pessoas, (ver Nunes (2012, 2014)), eu havia sugerido, em meu primeiro trabalho sobre Buridina, que a avenida (e a cidade, portanto) estava para uma fileira de casas assim como o rio (e o mato da margem mato-grossense) estava para a outra.

À diferença das outras aldeias Karajá e Javaé, as duas fileiras de casas de Buridina têm suas portas frontais orientadas para sentidos opostos: uma das fileiras está virada para o rio, a outra para a principal avenida da cidade (que está, portanto, no lugar do rio para esta fileira de casas) [...]. Quando perguntava para alguns moradores o porque desta diferença, me respondiam que, à época da construção das casas, no ano de 1994, foi uma opção dos moradores da segunda fileira de casas que

5 Sobre a história dessa aldeia, ver Nunes (2009).

126 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia Karajá e suas transformações Macro-Jê

suas portas frontais não ficassem voltadas para o rio. (Nunes 2009: 102 – ver o desenho na mesma página). Mas o que aconteceria se, continuado o experimento, fechássemos também as fileiras de casas de Buridina em um círculo? No exercício acima, tínhamos dois elementos, o arruado de casas e o pátio ritual. Aqui, não há pátio ritual, mas o arruado é duplicado, não meramente como uma continuação (duas ou três fileiras de casas voltadas para o mesmo lado), e sim por meio de uma inversão (as casas de cada fileira se orientam em sentidos inversos); de modo que ‘dois arruados’ são os elementos que temos inicialmente. Quando fechamos o círculo, porém, essa duplicidade some, pois a orientação das casas passa a ser uniforme (todas se voltam para dentro ou para fora – ver infra, Diagrama 02). Reencontramos, então, os mesmos elementos do exercício anterior, um círculo de casas e um exterior/centro. Vejamos. Poderíamos, simplesmente, unir as duas extremidades das duas linhas de casas e abaular a região Central até atingir a circunferência (ver Diagrama 02, a). Teríamos, então, casas voltadas para fora e um centro conceitualmente vazio. A outra possibilidade é que unamos as duas linhas de casas em apenas uma das extremidades e movamos os outros dois extremos em direções opostas até que se encontrem do outro lado, o que geraria um círculo com casas voltadas para dentro (ver infra, Diagrama 02, b). Aqui, porém, uma operação conceitualmente mais complexa é exigida. Pois o movimento das linhas (indicado pelas setas longas na parte superior da figura à esquerda no Diagrama 02, b) “abraçaria” todo o exterior do espaço aldeão, introjetando-o no interior do círculo. E algo interessante acontece, pois esse espaço exterior, como vimos, é bipartido entre cidade, a leste, e rio/mato, a oeste.6 Assim, como em outras aldeias, são sobretudo os homens, em virtude de suas atividades características, voltadas para o “sustento” do grupo doméstico (i.e., a obtenção de comida e de dinheiro, basicamente), que circulam frequentemente nesses dois territórios habitados por seres Outros,7 sendo associados a

6 A oposição leste x oeste, aqui, remete ao eixo biura (nascente) x bàdèbrò (poente), o eixo do sol, que é uma das referências importantes da cosmografia Karajá. 7 A cidade é tori hãwa, “aldeia/território dos brancos”, e a mata alta em frente à aldeia, do outro lado do rio (na Gleba III da TI Karajá de Aruanã, MT), é dita ser hãlòè hãwa ♂, “aldeia/território das onças” (pois esses felinos se fazem sempre presentes, ali). Em outro lugar (Nunes 2013), explorei as relações que os Karajá dessa aldeia travam com as onças e os brancos, relações essas mediadas pelos territórios de cada um desses seres, mostrando que elas são, sob vários aspectos, análogas.

127 Eduardo S. Nunes eles. De modo que o centro seria, possivelmente, um espaço masculino, em oposição ao círculo de casas feminino; ou seja, o que apareceria no centro seria um análogo do pátio ritual. E esse ‘pátio’ seria dividido entre um “lado rio/mato” e um “lado cidade”. A figura resultante, então, é uma aldeia circular estruturada por meio de um dualismo concêntrico (o ‘pátio’ no centro do círculo de casas), mas cujo espaço interior, o centro, é dividido diametralmente entre duas metades. Imaginemos que isso poderia desembocar em uma divisão da coletividade masculina em grupos de praça ou ‘metades cerimoniais’, e nos vemos diante de algo muito semelhante a uma aldeia Jê.

Diagrama 02

Exploremos um pouco além. Pois poderia ser que a introjeção do espaço exterior no interior do círculo repartisse não o centro, mas o próprio círculo de casas em duas metades: a metade dos “brancos” e a metade das “onças”.8 Cada metade, porém, poderia ainda ser dividida

8 A referência às onças não é casual. Pois a mata alta que se estende do outro lado do rio, em território mato-grossense e em grande parte dentro dos limites gleba III da TI Karajá de Aruanã, os Karajá dizem, é “território das onças” (hãlòè hãwa). Há

128 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia Karajá e suas transformações Macro-Jê em dois. A metade das “onças” se repartiria entre o clã das “onças” (ligado ao mato) e o clã das “ariranhas”, que, para os Karajá, está para mundo aquático como a onça está para o mundo do seco. Uma oposição orientada pelo eixo leste-oeste, assim, seria projetada no eixo ibòò-iraru (montante-jusante). E quanto à metade dos “brancos”, uma diferenciação entre as partes “nobre” e “pobre” da cidade poderia ser projetada no círculo de casas. Os Karajá dividem a cidade, grosso modo, em uma parte de baixo, associado ao bairro da “Taboca”, e uma parte de cima, onde está o “Centro”. A “Taboca” é um bairro mais humilde cujos moradores, em sua maioria, descendem dos ribeirinhos da região e são pescadores e “comedores de tartaruga”, como os Karajá. Mas, por serem mais pobres, alguns indígenas os chamam, jocosamente, de “comedores de mandi”, um peixe pequeno, que se pega de vara em qualquer lugar à beira do rio, e, talvez por isso mesmo, um dos espécimes mais desvalorizados. Come-se mandi, quando “não tem peixe”, poderíamos dizer: comer mandi é sinal de escassez absoluta de proteína animal em uma casa. Até ovo frito é melhor! Já o “Centro” é a área nobre da cidade, onde se concentra praticamente todo o comércio (talvez 90%), cujos moradores, em geral, são “comedores de carne de vaca”, o que sinaliza seu maior poder aquisitivo. Além do mais, o centro é o local de concentração dos turistas, vindos de Goiânia, Brasília, alguns de São Paulo, Rio de Janeiro, do sul do país, e, até mesmo, alguns de países estrangeiros. Essa diferença entre “Taboca” e “Centro”, note-se reflete aquela retratada pelo mito dos gêmeos filhos de Ujỹ, o Mucura, umtrickster , (à jusante, iraru) e Ànỹxiwè, um demiurgo ardiloso. A história conta que Ànỹxiwè mandou os dois irmãos embora quando descobriu que um deles não era seu filho. O filho de Mucura foi para rio abaixo, ao passo que o filho do demiurgo foi para rio acima. Teríamos, assim, na metade dos “brancos”, dois clãs, que poderiam ser chamados de “Taboca” e “Centro”, ou iraru mahãdu (“pessoal de baixo” e ibòò mahãdu (“pessoal de cima”)9 ou, porque não, Ujỹ e Ànỹxiwè. Uma aldeia circular, dividida em duas metades diametrais, cada uma delas dividida em dois clãs; e no centro do círculo, sempre alguma onça nessa mata, sempre se as escuta esturrar ali, e há casos inclusive de homens que foram (per)seguidos por um desses felinos. Uma onça parida, certa vez, avançou em um homem, que subiu no alto de um pé de tucum (!) e, cravejado de espinho, ficou lá no topo até o animal desistir e ir embora (ver Nunes 2013). 9 Faço referência, aqui, ao contraste entre aos dois grupos de praça masculinos, que divididem os homens justamente entre iraru mahãdu (“pessoal de baixo” e ibòò mahã- du (“pessoal de cima”) – sobre os grupos de praça inỹ (ver Pétesch 1992; Toral 1992).

129 Eduardo S. Nunes uma ‘praça ritual’. Não é justamente assim que se configuram as aldeias Panará e Bororo (nesse último caso, com oito, e não quatro clãs)? O que faço aqui, certamente, não é mais que um exercício especulativo, mas não é um mero devaneio; pois utilizei apenas termos e relações relevantes na vida atual dos Karajá de Buridina, em uma aldeia linear. Além do mais, esse exercício aponta para a produtividade de se analisar o caso Karajá, aproximando-o do panorama jê-Bororo, como parte de um sistema de transformações macro-jê.10 O caso é Karajá e, porque não, o de outros grupos desse conjunto. O experimento de “fechar o círculo” das aldeias inỹ me parece reforçar, por exemplo, a análise de Ewart (2003, 2013) do caso Panará, assim como suas conclusões sobre o dualismo e sobre o caráter ‘exterior’ do centro. O exercício sugere, também, que não devemos nos limitar a pensar que o plano das aldeias Karajá pode ser obtido ao se abrir o círculo do dualismo concêntrico sobre uma reta, como fez Lévi-Strauss; a ideia de um sistema de transformação implica que o inverso também poderia ser feito, assim como que essas não são as únicas possibilidades. Lévi-Strauss projetou o círculo sobre uma reta. Tenho a impressão de que vários de nós lemos a figura obtida por esse procedimento (uma reta e um ponto) como um limite; que, aberto o círculo, tudo que se poderia fazer era fechá-lo novamente (fechá-lo ‘para cima’, englobando o ponto), reconstituindo o dualismo concêntrico. Como indiquei, porém, o procedimento poderia continuar e o círculo ser fechado ‘para baixo’, dando origem a um dualismo “ex-cêntrico”, um anticírculo, que não engloba seu centro, mas sim o expulsa. O caso Karajá, aliás, coloca isso de maneira aguda devido à ‘segunda transformação’ em relação ao plano comum das aldeias Jê- Bororo, i.e., o fato de que as casas dão as costas para o pátio ritual. E o caso de Buridina, em que as linhas de casas se voltam para direções opostas, coloca a possibilidade de que, fechando círculo, cheguemos a uma divisão diametral, interna a um dualismo concêntrico (a divisão dual do centro) ou mesmo repartindo o próprio círculo das casas em dois segmentos (mais puramente um dualismo diametral). A passagem do concêntrico ao diametral, possibilidade de transformação de um em outro, não é de se surpreender. Se o próprio

10 Os Bororo, assim como os Karajá, falam línguas que não pertencem à família Jê, mas sim a famílias do tronco Macro-Jê que levam seus nomes. Lembremos ainda que, junto a essas três famílias, Jê, Bororo e Karajá, o tronco Macro-Jê abarca ainda outras 12 famílias linguísticas, entre as quais estão grupos como Maxakalí, Krenák, Guató, Chiquitano, Jabutí, Ofayé e Rikbaktsá (ver Ribeiro & Van Der Voort 2010: 546-547).

130 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia Karajá e suas transformações Macro-Jê

Lévi-Strauss opõe as duas estruturas, leituras recentes apontam que a projeção do dualismo diametral sobre uma reta (dois segmentos de reta unidos em um ponto intermediário) implica, do mesmo modo que a operação feita ao dualismo concêntrico, “um potencial triádico implícito” (Lima 2008: 234); e também que o dualismo diametral pode ser visto como uma estrutura assimétrica, em que “a simetria é uma operação segunda, que se aplica a uma desigualdade dada antecipadamente” (ibid.: 236), que “sua operação não é criar uma simetria entre termos tornados assimétricos pela outra [perspectiva], mas criar simetrias entre relações assimétricas.”

3. Mulheres e homens, entre linhas e círculos O caso Panará coloca uma associação entre homens e alteridade (no centro da aldeia) análoga ao que ocorre entre os Inỹ. “From a female perspective and sitting outside her residential house, associated with her own natal clan, men, sitting at the centre in the men’s house are a kind of enemy or other” (Ewart 2003). Pensando a dinâmica especial da aldeia a partir das relações entre os gêneros, é possível fazer um último experimento analítico. O caso em questão agora é o da aldeia Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, a maior aldeia Karajá atual que, assim como Buridina, possui uma história muito particular. Entre os Panará, assim como entre muitos outros grupos jê, a praça Central e a casa dos homens são domínios masculinos, mas não são completamente interditas às mulheres. Já entre os Inỹ, só há uma ocasião em que as mulheres podem avançar sobre a praça (um momento muito pontual que antecede a entrada dos meninos para a reclusão iniciatória), e elas nunca podem entrar na casa dos homens – o que provocaria punições severas. Mas, analisando a planta da aldeia de Santa Isabel, percebi que ela pode ser dividida em duas partes: a parte de baixo, a “aldeia velha”, como os Inỹ dizem, que segue o modelo das aldeias inỹ, e a parte de cima, a “aldeia nova”, que forma uma espécie de aldeia circular, com as casas voltadas para dentro. Essa divisão, cabe notar, não é arbitrária; trata-se de um contraste frequentemente evocado pelos próprios indígenas.11 Até a década de 1990, os Karajá se concentravam

11 Os próprios Karajá de Santa Isabel fazem essa distinção entre “aldeia velha” e “al- deia nova”, que reverbera em outros domínios, como em certas tensões políticas entre famílias. A “aldeia velha” corresponde à aldeia que se formou a partir da reunião de diversos grupos territoriais em torno do Posto Redenção Indígena, fundado ali em

131 Eduardo S. Nunes na parte de baixo da aldeia. Com a desativação do posto da Força Aérea Brasileira (FAB) na primeira metade dessa década, porém, começou um movimento de “descompactação” da aldeia: a fileira de casas à beira do rio cresceu para cima (ibòò) e diversas casas de alvenaria (da FAB, da Fundação Brasil Central, das antigas administrações da Fundação Nacional do Índio e do Parque Nacional do Araguaia) foram ocupadas. Se antes essa era como uma vila não indígena ao lado de Santa Isabel, os Inỹ fizeram dela continuação de sua própria aldeia; ou melhor, fizeram uma segunda aldeia, que tensiona não para a vida ritual, mas para o universo dos não indígenas. No croqui abaixo pode-se ver os planos dessas “duas Santa Isabel”.

Figura 1. Croqui da aldeia Santa Isabel

Vemos que, na parte da direita da planta, as casas se organizam mais ou menos como um quadrilátero (uma variação relativamente comum de aldeias circulares em contextos de intervenção de agentes estrangeiros – existem algumas aldeias mẽbêngôkre assim, por exemplo). A geometria, é claro, não é perfeita – assim como não é aquela da parte da esquerda da imagem –, muito porque várias dessas casas já estavam prontas (é o caso, por exemplo, dos dois pequenos

1927. A “aldeia nova” surgiu da ocupação das antigas instalações de órgãos públicos e outras benfeitorias criadas ao lado da aldeia Karajá a partir de 1940 pelas ações dos presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck. Para um relato mais pausado so- bre a história dessa aldeia, ver Nunes (2016).

132 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia Karajá e suas transformações Macro-Jê aglomerados de casas dentro do quadrilátero). Mas, de todo modo, os Inỹ construíram diversas outras e, olhando para a aldeia hoje, fica claro que o processo acabou por gerar um “centro”, um espaço interno. Se houve alguma intencionalidade nisso, não saberia dizer – se houve algum planejamento, ao que parece, o processo foi guiado por um plano Outro. E essa “praça central” é dividida em duas, cada lado sendo ocupado por construções que envolvem, assim como o ijoina (a praça ritual), atividades eminentemente coletivas: o campo de futebol e a escola. Que essa aldeia seja voltada para o mundo dos brancos, então, me parece claro. Caberia mencionar, ainda, a presença ali da Igreja Adventista do Sétimo dia e o posto de saúde. E, também que, em termos gerais, essa “aldeia de cima” concentra boa parte dos funcionários do sistema de educação, do atendimento primário à saúde indígena e das lideranças de Santa Isabel. Mas, meu ponto principal, mais uma vez, é sobre o centro. Pois ele me parece similar às praças Centrais e casas dos homens das aldeias de vários grupos jê. É um espaço certamente masculino, na medida em que, em geral, apenas os homens circulam por ali. Duas ou três construções abandonadas à beira do campo, por exemplo, são lugares comuns de agremiação masculina diurna e noturna. Mas, ela não é interditada às mulheres. Também, elas jogam futebol, menos que os homens, mas com frequência bastante regular; e a escola é um espaço misto. As mulheres, porém, geralmente só vão ao campo quando vão jogar, e não, por exemplo, para assistir os jogos dos homens, o que elas fazem sentadas da porta de suas casas;12 assim como não costumam ficar andando nos arredores da escola – elas vão para estudar e depois voltam direto para casa. Na parte de baixo, então, temos uma aldeia linear com uma praça interdita às mulheres, e na parte de cima temos uma aldeia “circular” com as casas voltadas para dentro e um centro que, embora masculino, pode ser ocupado pelas mulheres. Toda essa geometria, aqui como no tópico anterior, não é pelo prazer da lógica abstrata, é claro, mas para pensar sobre variações entre tipos de relação. Aqui, me chama atenção o caráter “misto”, por assim dizer, do centro. Pois essa é uma característica frequentemente ressaltada pelos mais velhos sobre os tempos atuais, ou o tempo do “pessoal de hoje” (wijina bòdu mahãdu). Vários homens maduros me

12 Mulheres sentadas na porta de casa assistindo atividades masculinas no centro da aldeia: uma cena familiar, certamente, a quem teve a oportunidade de passar algum tempo em aldeias jê setentrionais.

133 Eduardo S. Nunes disseram que, em sua juventude, “ijadòòma [moças em idade casável] era muito difícil”, pois a única maneira de se vê-las era, dançando com as máscaras de aruanã, espiar por entre as palhas. Naquele tempo, as moças ficavam a maior parte do tempo dentro de casa e só saiam cobertas pelos mantos de algodão rià – só podiam ser vistas, portanto, quando dançavam ornamentadas com os aruanãs. Já hoje, dizem, “está fácil”, porque os weryrybò (rapazes em idade casável) e as ijadòòma convivem “misturados”: elas já não mais se escondem (com mantos de algodão ou dentro de suas casas), e os rapazes as veem jogando futebol, na escola, na cidade. Essa “aldeia de cima”, assim, talvez possa ser entendida como uma (das) maneira(s) que os Inỹ encontraram de experimentar uma certa flexibilização da separação estrita entre homens e mulheres – sobretudo entre rapazes e moças – que a interdição radical da praça ritual às mulheres coloca. Uma possiblidade que evoca as aldeias circulares jê (pelo menos no caso de alguns grupos), onde o pátio é masculino, mas não absolutamente interditado às mulheres, como o é entre os Inỹ. Mas, essa possibilidade remete, principalmente, ao mundo dos não indígenas. Os Inỹ, enfim, me parecem estar experimentando seriamente a possibilidade de se viver “misturados” com os “brancos”, e como eles. E estão fazendo isso, em parte – pois a experiência não se restringe a isso –, de uma maneira inusitada: construindo uma aldeia!13

4. Linhas, círculos e o cone À guisa de conclusão, gostaria de ressaltar algumas das questões que esse experimento analítico que propus aqui levanta. Mais do que a simples possibilidade de derivar o plano de aldeia linear inỹ daqueles circulares de seus vizinhos Jê e Bororo, interessa pensar no conjunto Macro-Jê como um grupo de transformações. Se meu experimento teve algum sucesso, espero que tenha sido o de mostrar como as transformações entre planos de aldeia distintos reverberam as discussões recentes sobre o próprio caráter da circularidade das aldeias Jê, por assim dizer, o questionamento das ideias de “fechamento”, “autossuficiência” e “conservadorismo” tal como apareciam na literatura clássica sobre os

13 Peço perdão à leitora ou ao leitor por ser demasiado suscinto em relação a questões que mereceriam ser bem melhor exploradas. Isso, entretanto, nos levaria muito longe do in- teresse imediato desse texto. Tratei mais pausadamente de algumas das tensões, questões e reflexões dos Karajá sobre o tempo do “pessoal de hoje”, diversas delas envolvendo as relações entre homens e mulheres, em minha tese de doutorado (Nunes 2016).

134 Dualismo ex-cêntrico: sobre o plano de aldeia Karajá e suas transformações Macro-Jê povos centro-brasileiros, em contraste com outros modelos regionais. Hoje, a socialidade das aldeias circulares não parece tão distante daquela das aldeias lineares, como outrora pareceu – muito pelo contrário, eu diria. E isso, como já foi dito, diz muito menos respeito a qualquer consideração sobre os Inỹ, sua sociocosmologia e seu plano da aldeia que à reconsideração do “modelo Jê”. E aqui poderíamos retornar a Lévi-Strauss, uma vez mais. No início desse texto lembrei que, em seu clássico artigo de 1956, o autor se refere ao dualismo diametral e ao dualismo concêntrico, tratando das duas versões da antiga aldeia Winnebago, como “dois modos de descrever uma organização complexa demais para ser formalizada por meio de um modelo único” (Lévi-Strauss 2003 [1956]: 158). Talvez algo do tipo possa ser dito sobre as linhas e círculos dos planos de aldeia macro-jê. Vimos com Ewart (2003) que, no caso Panará, temos uma aldeia circular com um aspecto linear. E o caso Karajá nos apresenta uma aldeia linear cuja dinâmica de relação entre espaço residencial e pátio ritual é em tudo análoga ao que encontramos em aldeias circulares, especialmente as dos Jê Sententrionais – os Panará entre eles. Talvez possamos dizer que a linearidade e a circularidade são ‘dois modos de descrever uma organização complexa demais para ser formalizada’ por meio de uma geometria plana – seriam necessárias três dimensões para descrevê-la. Essa organização complexa seria algo como um cone: visto de cima, seu eixo Central perfeitamente alinhado consigo mesmo, a figura se reduz a um ponto central, seu vértice, e um círculo englobante que é sua base; visto de frente, a base circular, alinhada a si mesma, se revela uma linha para “fora” da qual é projetado um ponto, o vértice do cone. Tal imagem, porém, exige o cuidado de não se resumir a questão ao velho problema da ótica – a diversidade superficial como pontos de vista distintos sobre um mesmo objeto. O que ela sugere, antes, é que aquilo que é salientado nos planos lineares (a projeção do centro para o exterior, o centro como lócus de transformação) está presente também nas aldeias circulares; que os planos circulares de aldeia não são chapados, mas cônicos, que a “conicalidade” é intrínseca ao modelo. Talvez pudéssemos dar ainda um passo além e pensar em estruturas do tipo ampulheta (as hourglass configurationsque Lévi-Strauss usou como imagem para a dupla torção), cones que se projetam invertidos para fora de si mesmos, como uma imagem para as práticas de transformação que têm lugar nos pátios rituais, aliando geometria das linhas e círculos com a questão da perspectiva em uma espécie de ontotopologia. A

135 Eduardo S. Nunes imagem dos buracos de minhoca dos astrônomos, zonas de compressão do espaço-tempo, vêm à mente. Mas aí, já seria me aventurar demais, considerando inclusive, o espaço destinado a este texto.

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138 Não é bom fazer ituaré com irmão próprio mesmo1

Maria Elisa Ladeira Centro de Trabalho Indigenista - CTI

Introdução — Jum mãm japry? (Como é o seu nome?) 1980. Corredores da Funai. Acompanhávamos o chefe krahô, João Canuto Piiken, e sua mulher, Luzia, quando encontramos Moisés Ixenc, homem Apãniekrá. Identificam-se pelo mesmo corte de cabelo. Eu os apresento pelos seus nomes em português. E a pergunta sai da velha Luzia: — Jum mãm japry? (Como é o seu nome?) — Ixénc — Ta nã (Agora sei)

1. Nominação entre os Esta é a pergunta tradicional e obrigatória quando Timbiras desconhecidos se encontram. Bamberger (1974) afirma que, entre os Kayapó, o costume de indagar pelo nome de um visitante não é uma simples formalidade tradicional nem uma questão colocada pela:

[…] curiosidade, porque a descoberta do nome e da identidade social do recém-chegado estabelece seu direito à hospitalidade da aldeia … os visitantes encontram suas posições na nova aldeia através do sistema de nomes pessoais e tornam-se ombikwa (parentes) mesmo quando os laços de parentesco não podem ser diretamente estabelecidos (Bamberger 1974: 364).

1 Este texto é a íntegra do segundo capítulo da minha dissertação de mestrado “A troca de nomes e a troca de cônjuges – uma contribuição ao estudo do parentesco Timbira.” (USP 1982). Apesar de ter passado mais de 30 anos, continua atual e motivando novas e importantes pesquisas.

139 Maria Elisa Ladeira

Como para os Kayapó, também para os Timbira o nome pessoal serve como forma de identificação. O que a velha Luzia procurava, perguntando pelo nome, era a possibilidade de uma relação de parentesco e a definição do comportamento a ser adotado entre ela e Ixénc. Entre os Timbira, tanto quanto para os outros Jê do Norte, o sistema de parentesco serve, também, como um mecanismo para a transmissão dos nomes pessoais: para todos estes povos o nominador de ego masculino é um indivíduo pertencente a categoria quêtti (Im, Pm, PP) e a nominadora de ego feminino, uma mulher pertencente categoria tyire (iP, mm, mP). Os nomes pessoais, tanto masculinos como femininos, formam, entre os Timbira, conjuntos finitos associados às metades cerimoniais atycmããkra ou càamakra. Em qualquer das aldeias Timbira, o portador do nome Pànhi, por exemplo, saberá qual o seu lugar no pátio em qualquer dos cerimoniais, bem como quem serão seus “amigos formais” (hàpin/ pinxwyyi) – que são adquiridos pela nominação – e poderá estabelecer formas de ralacionamento designadas por termos de parentesco. De imediato tratará por quêtti àqueles que, sendo mais velhos do que ele, possuem o mesmo nome que o seu. A partir daí passará a designar os parentes próximos do seu quêtti pelos mesmos termos empregados por esse. O que quer dizer que será chamado de inxu (P, IP) por todos os filhos dos homens, também, portadores do nome Pànhi, cujas mulheres (destes homens) o tratarão por ipjê (marido); será chamado de ituare- me-hum pelas mulheres, cujos filhos tenham o nome de Pànhi e de imbàjê (Ie) pelos pais destes indivíduos. Do mesmo modo, em qualquer das aldeias Timbira, a portadora do nome Tyhàc, pertencendo a metade atycmãakra ou cààmãakra, saberá como se portar em determinadas situações cerimoniais. Reconhecerá, também, de imediato seus “amigos formais”2 e tratará por tyire àquelas mulheres que, sendo mais velhas que ela, possuem o mesmo nome que o seu, estendendo aos parentes próximos das suas tyire os mesmos termos empregados por essas. Assim, será chamada de inxê (m, im) pelos filhos das mulheres também portadoras do nome Tyhàc e de iprõ (esposa) pelos maridos dessas mulheres; será chamada de ituare-me-inxi pelos homens, cujas filhas tenham o mesmo nome que o seu e de toctyyjê (irmã do marido) pelas mães destas mulheres.

2 “Os amigos formais são adquiridos com os nomes: a certos nomes, não a todos, po- dem corresponder um ou mais outros, femininos e masculinos, cujos portadores serão ligados por tal relação” (Carneiro da Cunha 1978: 76).

140 Não é bom fazer ituaré com irmão próprio mesmo

Em cada uma das aldeias Krahô tive que repetir, inúmeras vezes, os nomes que havia recebido, Pykin e Wààpàr, entre os Ramkôkamekrá e Apãniekrá. E de imediato recebia a indicação: “ah, então você chama A de tyire, faz pinxwyyi com com B e hààpin com C”. Pykin e Wààpàr são nomes pertencentes a aglomerados diferentes, de modo que minhas interlocutoras escolhiam um ou outro como referência, dependendo das possiblidades imediatas de relacionamento. A pergunta jum mãm japry (Como é o seu nome?) procura indicações claras sobre as formas de relação social e de comportamento somente possível entre aqueles indivíduos, que por terem o mesmo repertório de nomes, se reconhecem como partes de uma unidade maior, os Timbira.

2. “Fazer ituaré” para os Timbira Para os Timbira ter o mesmo nome significa estabelecer as mesmas relações com o resto da sociedade. Como afirma Melatti (1973: 38), “os Krahô enfatizam a transmissão do nome pessoal como uma maneira de transmitir relações sociais.” Milton Crôcrôc, indígena Krahô, contou- me que ele e Alberto Hapyhi, “por causa do nome são quase irmãos” (Hapyhi e Crôcrôc são nomes de um mesmo aglomerado). O que Milton quis dizer é que ele e Alberto Hapyhi são “quase” que os mesmos perante o resto da sociedade: por terem o mesmo nome, poderão chamar pelo mesmo termo de parentesco a todas as pessoas da aldeia. Neste sentido é que são quase como “irmãos”, iguais, pois somente os irmãos – do mesmo modo como os portadores de um mesmo nome – chamam de iprõ (esposa) ou itõi (irmã) as mesmas mulheres. Assim, a distribuição dos nomes ressalta formas de solidariedade ao aproximar indivíduos de segmentos residenciais diferentes, que se situam nos limites do grupo de “parentes”. Se Milton e Hapyhi são “quase como irmãos”, seus filhos tratar-se-ão como tal (pois, devido ao nome, chamam de inxu (pai) a ambos), podendo estabelecer, os de sexo oposto, a relação de nominação, o fazer “ituaré”. A relação de nominação, ou “fazer ituaré” como falam os indígenas, é uma relação estabelecida, desde criança, entre dois irmãos de sexo oposto que se comprometem a trocar seus nomes: o irmão dará seu nome para o filho da sua irmã, e esta dará seu nome para a filha do seu irmão. O irmão chama essa irmã de ituare-me-inxi, a “mãe do meu ituare” (nominado) e a irmã chama a este irmão de ituare-me-hum, o “pai da minha ituare” (nominada).

141 Maria Elisa Ladeira

Os irmãos que contraem essa relação se comportam de maneira especial, diferente daquela estendida aos outros irmãos. Cabe a ituare- me-inxi fazer os enfeites para seu ituare-me-hum, principalmente nas ocasiões de festa. Constantemente, trocam pequenos presentes e ele sempre visita e leva carne para sua ituare-me-inxi. É comum, principalmente entre os Krahô e os Apãniekrá, se usar como vocativo para um menino o nome da sua ituare-me-inxi e para a menina o nome de seu ituare-me-hum. Tyhàc, mulher Krahô, conversando comigo sobre “quem dá nome a quem”, deu-me o seguinte resumo da relação de ituare:

Mẽhĩ (índio) é assim: todo homem recebe um nome de homem e um nome de mulher. O nome de mulher ele só recebe quando está maiorzinho, quando entende mais as coisas. E todos da casa ficam chamando ele só por este nome, que é para ele saber que, quando ele casar, ele vai dar esse nome para a sua filha.

Em geral as mulheres mais velhas da casa, ou das casas próximas de um mesmo segmento residencial, chamam os meninos da casa pelos nomes das suas ituare-me-inxi acrescidos do sufixo hum (indicativo masculino). Por exemplo, o menino será chamado de Pykinmehum, que significa o ‘pai da Pykin’ (Pykin – nome da irmã com quem é estabelecida a relação de ituaré + mehum – o seu indicativo de masculino). E as meninas pelos nomes dos seus ituaremehum acrescidos do sufixo inxi (indicativo feminino) – por exemplo Panhimeinxi (a mãe do Panhi). Dessa maneira, reforçam para as crianças a relação contraída com um dos seus irmãos do sexo oposto, lembrando-lhes o nome que deverão colocar no primeiro filho que tiverem de sexo oposto ao seu. Após o casamento, o rapaz chamará por esse nome feminino a sua própria mulher acrescido do sufixo inxi, que será Pykinmeinxi, indicando para ela a nominadora e o nome de sua filha, enquanto a mulher chamará seu marido pelo nome masculino com que vinha sendo chamada até então, acrescido do sufixo hum, que será Pànhimehum, indicando ao seu marido o nominador e o nome de seu futuro filho. Este será o tratamento entre marido e mulher até que nasça o primeiro filho, e quando o casal não tiver filhos, este se estenderá para o resto de suas vidas. Antes mesmo do primeiro filho de um casal nascer, já se sabe, portanto, qual será o seu nome. Depois do nascimento do primeiro filho, seu sexo determinará o tratamento futuro do casal, independentemente de outros filhos. Por exemplo, caso a criança seja do

142 Não é bom fazer ituaré com irmão próprio mesmo sexo feminino, seu nome será, como já indicava o tratamento de seus pais, Pykin, e, assim sendo, eles chamar-se-ão de Pykinmeinxi e Pykinmehum. Esta relação entre os Krahô é denominada ipantu e, consequentemente, os irmãos relacionados chamar-se-ão de ipantumeinxi e ipantumehum.

3. Nominação e troca de nomes pessoais A nominação não é, portanto, uma relação que se esgota entre nominador(a) e nominado(a), mas abrange, principalmente os irmãos que “fazem ituare”. Entre os Timbira, como todos os Jê, não se costuma, em caso de doença, mudar o nome das crianças visando afastá-las da influência dos maus espíritos, como ocorre, por exemplo, entre os Bororo (Viertler 1976: 31), mas presenciei um caso de mudança de nome entre os Ramkôkamekrá devido a não observância, por parte do nominador, das regras que regem as relações entre os irmãos que “fazem ituare”. Neusa Irekwyj “fazia ituare” com seu irmão classificatório (filho do irmão do seu pai) e este, apesar de ter nomeado o filho de Neusa, “não fazia bom com ela”. Segundo as queixas de Neusa, ele não lhe trazia carne, não visitava sua casa etc., mas o que determinou o rompimento da relação entre os dois foi o fato de Pàtxen (seu irmão) não ter dado o nome de Neusa para sua filha. Imediatamente, Neusa passa a não mais chamar seu filho, na época com 10 anos, de Pàtxen, chamando-o, a partir de então, pelo nome de seu irmão real. A relação entre nominador e nominado só pode ser desfeita por aqueles que a estabeleceram, ou seja, os “irmãos que fazem it u a r e”. Nessa orientação é que as relações estabelecidas através da nominação não são relações entre “indivíduos” (nominador/ nominado) com implicações restritas à vida cerimonial, em que o que importa é saber como e quando se transmitem os nomes (Lave 1967). Mas a nominação diz respeito, principalmente, ao domínio das alianças entre os grupos domésticos e segmentos residenciais. Melatti (1975: 52) levanta a questão: “Como se faz a escolha do nominador em cada caso particular? Haverá uma lista de precedências entre os possíveis nominadores? Haverá disputa entre eles?” Na realidade, a escolha deste ou daquele nominador (que transmitirá um conjunto de relações sociais) é determinada pelo contexto político das alianças entre os grupos domésticos e segmentos residenciais. E essas alianças são estabelecidas pela troca de cônjuges e pela troca de nomes. Os nomes pessoais entre os Timbira são um conjunto finito dividido em aglomerados de 4 ou 5 nomes cada. Cada indivíduo ao

143 Maria Elisa Ladeira receber seu nome ganha a possibilidade de dispor de todos os outros nomes do aglomerado. Via de regra o indivíduo só recebe nomes que fazem parte de um aglomerado, e quando recebe nomes de nominadores diferentes e, portanto, de aglomerados diferentes,3 na hora de transmissão não atribuirá a um mesmo indivíduo nomes de aglomerados distintos, mas transmite os nomes de cada aglomerado para indivíduos diferentes. Apesar de todos os nomes estarem vinculados a uma das metades cerimoniais (atycmãakra/cààmaakra), eles de fato são “propriedade” de quem os possui. A transmissão dos nomes pessoais ou “quem dá nome a quem” é “assunto de mulher”, o que significa que o processo decisório da escolha de nominadores não se desenrola no pátio. Como entre os Kayapó, no pátio, somente se efetiva ritualmente essa transmissão, torna-se público o nome e o nominador da criança, o que determina a sua metade cerimonial e os seus amigos formais. O “valor” dos nomes pessoais reside, assim, na obrigação da troca: no receber e no doar nomes. E é neste sentido que a nominação faz parte do domínio das alianças entre os grupos domésticos e entre os segmentos residenciais, em que as mulheres adultas, através dos arranjos que estabelecem entre seus filhos de sexo oposto, o “fazer ituare”, procuram garantir parte dos nomes de seus futuros netos, ou de uma maneira mais genérica, nomes para o seu grupo doméstico. A outra parte dos nomes, como já indicamos, somente serão garantidos pelos arranjos matrimoniais de seus filhos. A “política” (entendida no sentido de estratégia) de “não perder nome” é claramente expressa pelos Timbira. Um nome masculino, por exemplo, que não tenha sido doado devido a morte de seu possuidor, será atribuído pelas suas parentas matrilaterais à um menino do mesmo segmento residencial, para que ele continue o processo de transmissão interrompido. A política de “não perder nome” significa a política de não perder a possibilidade de sua transmissão, quer dizer, a possibilidade do estabelecimento de relações com outro grupo doméstico. Vejamos como a transmissão dos nomes pessoais é tratada na literatura sobre os Timbira:

O nome pessoal... está em íntima relação com a regra da residência. O homem, retirando-se da casa materna para residir na da esposa, deixa nela uma imagem sua na pessoa do filho da irmã, a quem transmite preferencialmente seu nome. Além disso, leva para a nova residência

3 Essa situação é indicativa de um decréscimo populacional.

144 Não é bom fazer ituaré com irmão próprio mesmo

a imagem da sua irmã, dando o nome dela à sua filha. Deste modo, a transmissão de nomes é como que uma compensação da regra de residência (Melatti 1973: 39).

Carneiro da Cunha (1977) nos diz que:

[…] no sistema uxorilocal, o casamento absorve os homens sem que se garanta o fechamento do ciclo matrimonial. O único mecanismo que parece compensar a absorção contínua dos homens e permite a permanência de uma sociedade igual a ela mesma, será o processo de transmissão de nomes, que é fundamental para a compreensão do sistema Krahô. A atribuição dos nomes masculinos, que são a pessoa para os Timbira, são transmitidos de tal modo que eles retornam a sua casa ou segmento de origem, compensando assim a circulação dos homens. Os nomes femininos, ao contrário, transmitidos preferencialmente de uma categoria que inclui FZ, circula com homens de casa em casa, compensando a imobilidade feminina no regime uxorilocal (1977: 290).

A correlação apontada por esses autores, entre nomes e residência, pressupõe que, pelo fato de o nominador de ego masculino ser o irmão da sua mãe (pertencente à categoria quêtti), e de ego feminino ser a irmã de seu pai (pertencente a categoria tyire): ▪ os quêtti nominadores seriam os irmãos reais e classificatórios pertencentes ao segmento residencial da mãe de ego. Ou seja, dentre os classificatórios, sua mãe estabeleceria a relação de ituare com seus primos paralelos matrilaterais; ▪ as tyire nominadoras seriam as irmãs reais e classificatórias pertencentes ao segmento de origem do pai de ego. Ou seja, seu pai estabeleceria a relação de ituare, dentre as classificatórias, com suas primas paralelas matrilaterais. Na afirmação de que “a transmissão de nomes é como que uma compensação da regra de residência” (cf. página anterior) ficam excluídos os irmãos classificatórios originários de outros segmentos residenciais, a saber, os primos paralelos patrilaterais. Nunca entendi o porquê deste recorte nas categorias quêtti e tyire no caso da nominação. Desde a primeira vez que visitei os Ramkôkamekrá, em 1974, chamou-me a atenção que as possíveis nominadoras de ego feminino encontravam-se, certamente, entre aquelas que seu pai chamava de itoi (irmã), excluindo, assim, as tyire de ego a quem seu pai chamava de inxê (mãe) e prôpêquêj (sogra), ou seja, a mãe de seu pai e a mãe de sua mãe. Mas dentre estas itoi a menos preferida seria justamente

145 Maria Elisa Ladeira uma das suas irmãs reais, aquelas filhas de uma mesma mãe. Hinpôxen, mulher Ramkôkamekrá, quando lhe perguntei porque seu ituaremehum não era seu próprio irmão real, Pànhi, que residia na mesma casa, a resposta foi: “não é bom fazer ituare com irmão próprio mesmo”. Desse modo, quanto a questão do nome masculino, comecei a questionar se o “bom” (sinônimo de “mais certo”, “correto”) era o nome masculino não sair nunca de seu segmento. Comecei a conhecer e definir quais os critérios e preferências na atualização da regra: o nominador de ego masculino será um indivíduo da categoria quêtti. A resposta de Hinpôxen deu-me a primeira indicação de que a escolha, pelas mulheres, dos nominadores de seus filhos e netos, assim como dos cônjuges destes, fazia parte do domínio das alianças entre os vários grupos domésticos e entre os segmentos residenciais que compõem uma aldeia Timbira. A partir daí comecei a verificar como a nominação e o casamento se relacionavam, “se explicavam um ao outro”. Em 1977, entre os apaniekra, fiz um levantamento sobre “quem era nominador de quem”. De um total de 100 casos de transmissão de nomes masculinos, apenas 33% eram de casos em que a transmissão do nome se efetuou via os quêtti considerados como parentes matrilaterais da mãe do nominado, os nomes permanecendo, portanto, dentro de um mesmo segmento residencial. Os restantes 67% dos casos eram de transmissões efetuadas pelos quêtti considerados como parentes patrilaterais da mãe do nominado, os nomes masculinos circulando, portanto, entre segmentos residenciais diferentes. Os casos levantados mostraram-me as preferências para a transmissão dos nomes: Os exemplos mostram que, sem dúvida, são a “irmã do pai” e o irmão da mãe” os nominadores de ego feminino e masculino. No entanto, o comum é serem irmãos distantes genealógica, substancial e espacialmente: são primos paralelos patrilaterais (nascidos, portanto, em segmentos residenciais diferentes). Outra forma corrente de transmissão de nomes femininos é aquela em que a tyire nominadora é a “irmã do pai que ajuda”. Durante o levantamento da genealogia dos Ramkôkamekrá escutei de um informante a primeira referência a esse respeito. Dizia ele: “antigamente (sinônimo de certo) eram as irmãs dos “homens que ajudavam a mulher a fazer a filha” que davam os nomes, e nunca a irmã do “pai que era marido da mulher”, e não querendo tratar comigo dos casos de relações extraconjugais, ocultou-me, na construção da genealogia, todos os “pais que ajudaram” (inxucaahàc), sob a justificativa de que “hoje os

146 Não é bom fazer ituaré com irmão próprio mesmo cristãos já ensinaram o indígena a ter respeito pela mulher do outro, então tem que ser a irmã do marido próprio que dá o nome”. Apesar dos escrúpulos do informante, esses casos ocorrem com muita frequência. A outra forma de troca de nomes entre irmãos de segmentos de origens diferentes é aquela em que os irmãos que “fazem ituare” são filhos de mesmo pai e mães diferentes. Os nomes femininos são sempre transmitidos entre mulheres de segmentos residenciais diferentes, já que são suas parentas patrilaterais que serão as suas tyire nominadoras. O problema foi a literatura sobre os Timbira pensar os nomes masculinos como pertencentes em estoques a determinados segmentos residenciais transmitindo-se (de quêtti a ituare) dentro de cada segmento. Os nossos dados de campo nos mostraram que as formas mais frequentes na transmissão dos nomes são as que apresentamos: a troca se dando entre primos paralelos patrilaterais, o que quer dizer que, idealmente, e ao contrário da afirmação corrente, o nome masculino não deve, de imediato, permanecer em seu segmento de origem. Através da troca de nomes há o interesse em reforçar os laços de parentesco justamente entre aqueles irmãos que se encontram mais distantes, cuja origem e residência são em segmentos diferentes. As duas formas em que a relação de ituare é estabelecida entre irmãos de um mesmo segmento (os reais e os primos paralelos matrilaterais) são, pelos nossos levantamentos, as menos preferidas. Resta apresentar uma estratégia muito frequente na transmissão dos nomes, ligando segmentos residenciais diferentes, e que nos mostra como a nominação possibilita o estabelecimento de uma nova ordem no sistema de relações e na terminologia. Vejamos os exemplos: 1) Otaviano poderia ter nomeado Juraci (pois é seu quêtti), por isso, seu filho Luis Romhy chama Juraci de pai (inxu), já que esse poderia ter o mesmo nome que seu pai e, portanto, Luis Romhy e Maria Hôprêj passam a se tratar como irmãos (pois ambos chamam o mesmo homem de pai, inxu) e, assim, Romhy nomeou o filho de Maria Hôprêj. 2) Raimundo Cacôxen (1) nomeou Luis Cacôxen (2) (as relações genealógicas entre esses dois indivíduos não estão aqui dadas, mas são parentes patrilaterais). Por isso, Joana Cajari (1), irmã de Raimundo Cacôxen (1), passa a tratar Luis Cacôxen (2) também como irmão (pois ambos têm o mesmo nome) e, assim, nomeia a filha deste seu irmão Luis Cacôxen (2), a Antônia Cajari. Desse modo, Eusébio Hôho (filho de Joana Cajari) passa a chamar Antonia Cajari de mãe (inxê), já que esta teria o mesmo nome que sua mãe e, portanto, Eusébio Hôhot e Eva

147 Maria Elisa Ladeira

Tyhàc (filha de Antônia Cajari) passam a se tratar como irmãos, e assim, Eusébio Hôhot nomeia o filho de sua irmã Eva Tyhàc. Neste caso, vemos como a terminologia de nominação, se sobrepondo a terminologia de parentesco (Lave 1967) possibilita várias combinações as quais serão realizadas segundo os interesses de dada família que continuam (como é o caso acima descrito) ou não a mantê-las. Uma nominação possibilita várias outras nominações. Os filhos de Eusébio Hôhot e os futuros filhos do pequeno Hôhot chamar-se-ão entre si de irmãos, podendo, assim, ocorrer troca de nomes entre eles. Melatti (1973: 33) já havia chamado a atenção para o fato de que “as regras de transmissão dos nomes pessoais influem sobre a terminologia, mesmo quando tal transmissão não se efetua.” Mas esta terminologia só será mantida quando for do interesse das partes envolvidas. Em 1977, ao fazer o levantamento de como eu deveria chamar e ser chamada pelas pessoas da aldeia Apãniekrá, chamou-me a atenção o procedimento (o raciocínio) de uma mulher, Tereza Pêjor, ao construir nossos laços de parentesco. Ela reconheceu-me como irmã classificatória de seu marido e, portanto, nominadora potencial de sua filha já falecida. Tereza não considerou o princípio da idade, já que eu jamais poderia ter sido nominadora de sua filha, que nem cheguei a conhecer, pois deveríamos ter praticamente a mesma idade. A diferença de idade, entre nominador e nominado é, no mínimo, de uma geração. Com esse procedimento ela procurou reforçar nossos laços, na medida em que seus netos Alberto Crôcrôc e José Cahi passam, por instrução sua, a me chamar de inxê (mãe) – já que eu e a mãe deles teríamos ou poderíamos ter tido os mesmos nomes – e eu passo a chamá-los de ikra (filho). Tereza chamava a atenção para minhas obrigações, transformando-me de uma distante irmã classificatória patrilateral de seu marido em uma parente próxima: a “mãe de seus netos”. Parece-me interessante pensar as relações de nominação como uma possibilidade de afirmação dos laços e obrigações entre parentes patrilaterais que, se genealógica e terminologicamente, não distam mais que os parentes matrilaterais, espacialmente residindo em segmentos diferentes e estão socialmente mais distantes. Deste modo, os nomes masculinos, contrariamente ao afirmado por Melatti (1973) e Carneiro da Cunha (1978), não devem permanecer dentro do mesmo segmento residencial. Se os nomes masculinos devessem ser transmitidos entre parentes matrilaterais, dentro, portanto, de um mesmo segmento residencial, por que a nominação teria “nítida influência na orientação da terminologia”? (Melatti 1973: 39) Pois, que adiantaria ao filho do

148 Não é bom fazer ituaré com irmão próprio mesmo irmão da mãe chamar ego masculino de inxu (pai) ou chamar os filhos do filho da irmã do pai de irmãos (já que Fi = Im) se não deveria haver troca de nomes entre eles?4 Se os nomes masculinos devessem ser transmitidos de tal modo que eles retornassem, de imediato, a sua casa, ou segmento de origem (Carneiro da Cunha 1978) eles apareceriam como “propriedades” não das metades cerimoniais, mas sim dos grupos domésticos. Entre os Timbira, os nomes não são obrigatoriamente significativos de prestígio, então porque deveriam ser retidos? As sociedades Timbira têm como condição de existência (isto é, como pressuposto da sua reprodução), a troca de cônjuges e a troca de nomes (a transmissão dos nomes pessoais se dá através da troca entre grupos domésticos de segmentos residenciais diferentes e não diretamente entre nominador/ nominado). A relação entre nomes e residência deve ser buscada no fato das alianças matrimoniais possibilitarem relações de nominação e as relações de nominação regulam as alianças matrimoniais. O casamento indica, de imediato, o caminho dos nomes femininos, já que o homem, ao casar-se “leva para a nova residência a imagem de sua irmã, dando o nome dela para a sua filha” (Melatti 1973: 39) ou ainda “os nomes femininos circulam com os homens de casa em casa, compensando a imobilidade feminina no regime uxorilocal” (Carneiro da Cunha 1978: 290). Mas e os nomes masculinos? Uma mulher ao casar-se ganha um marido e a possibilidade de nomes para as suas filhas, enquanto o homem ganha uma esposa e a possibilidade de nomes para seus filhos (o que define o sistema como bilateral). Os nomes dos filhos de sexo oposto a ego são determinados pelas alianças matrimoniais dos genitores deste ego. Desde criança uma menina já sabe o nome de seu futuro filho (que será o mesmo que o do seu irmão com quem estabeleceu a relação de ituare) e um menino já sabe o nome de sua futura filha (que será o mesmo que o da sua irmã com quem estabeleceu a relação de ituare), nomes estes determinados pelas relações matrimoniais de seus genitores. Mas o menino não sabe qual será o nome de seu filho e a menina não sabe qual será o nome de sua filha, ou seja, os futuros filhos de mesmo sexo de ego ainda não têm nomes, estes somente serão adquiridos quando de seu próprio casamento. Parece-me que a implicação básica deste

4 Chamar seu primo cruzado patrilateral de inxu significa que chamará de irmãos aos filhos deste, podendo haver troca de nomes entre eles.

149 Maria Elisa Ladeira sistema de transmissão de nomes é a possibilidade da troca de nomes e dos casamentos “caminharem juntos”. Esta é a hipótese deste trabalho. Numa sociedade onde todos são parentes (“aqui é assim: os parentes se espalham pela aldeia inteira como rama de batata” - como definiu uma mulher Ramkôkamekrá), o recorte entre “parentes próximos” e “parentes distantes” é crucial para a definição dos casamentos. Os parentes matrilaterais de um dado ego são, devido a regra de residência, claramente reconhecidos: “o segmento residencial, além de ser importante na regulamentação do matrimônio, uma vez que tende a ser exogâmico, constitui o núcleo estável do grupo de parentes de cada indivíduo” (Melatti 1973: 39). Se a residência uxorilocal identifica os parentes matrilaterais, a nominação é o que marca os patrilaterais como “parentes” (isto é, aqueles com os quais não se deve manter relações sexuais). Os laços entre os parentes patrilaterais dispersos pelos diferentes segmentos da aldeia podem ser reforçados pela nominação, que impede que estes se transformem em afins. Quando não ocorre a nominação, o casamento se torna possível: Jàtcahi e Caôkre são primos paralelos patrilaterais e, portanto, irmãos (kjê). Caôkre poderia ter nomeado o filho de sua irmã Jàtcahi, assim como Jàtcahi poderia ter nomeado a filha de seu irmão Caôkre. Mas, não o fizeram, e ao não reforçarem pela nominação os laços de parentesco (irmãos) entre seus filhos, tornaram possível o casamento entre eles. É a transformação de “consanguíneos” distantes em “afins”, quer dizer, é o estabelecimento de uma relação social, em que de fato esta só existia residualmente.

Algumas considerações Em suma, numa aldeia Timbira, as pessoas são reconhecidas como “parentes” quando se originam de um mesmo segmento residencial (o que delimita os matrilaterais) e quando trocam nomes (o que marca os patrilaterais), possibilitando, no segundo caso, alianças entre segmentos diferentes. Quando as alianças não são estabelecidas pela nominação são os laços estabelecidos pelo casamento que unem os segmentos residenciais. A afirmação de Crocker (1976: 256) de que os Bororo “são residencialmente uxorilocais, corporativamente matrilineais e cerimonialmente patrilaterais, porque isto é lógico” parece-me ser verdadeira, também, para os Timbira.

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Referências5 Bamberger, J. 1974. Naming and transmission os status in a Central bra- zilian society”, Ethnology, vol XIII. Carneiro da Cunha, Manuela. 1978. Os mortos e outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahô. São Paulo: HUCITEC. Crocker, W. 1958. Os índios Canela de hoje. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, N.S., Antropologia, nº 2, Belém. Crocker, J.C. 1976. Why are the Bororo Matrilineal? Actes du XLII Con- grès International des Americanistes, Paris, vol. II. Lave, Jean C. 1971. Some suggestions for the interpretation of residence, descent and exogamy among the Eastern Timbira. Prodedings of the 38th Congress of Americanist 3, pp. 341-45. _____. 1967. Social taxonomy among the Krikati (Jê) of Central Brazil. Doctoral Dissertation. Harvard University. Melatti, Júlio C. 1976. Nominadores e genitores. In: Egon Schaden (Org). Leituras de Etnologia Brasileira. São Paulo: Companhia Edi- tora Nacional. _____. 1975. Ritos de uma Tribo Timbira. Fundação Universidade de Brasília, Antropologia. _____. 1973. O sistema de parentesco dos Índios Krahô. Fundação Uni- versidade de Brasília, Série Antropologia 3. Viertler, Renate. 1976. As aldeias Bororo, alguns aspectos de sua organi- zação social. Coleção Museu Paulista, Série de Etnologia, vol.2.

5 Atualmente há um número muito maior e significativo de trabalhos que deveriam ser citados, caso esse artigo fosse revisitado.

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O tripartido sistema de parentesco Xavante1

Marcos de Miranda Ramires Operação Amazônia Nativa (OPAN)

Boaventura Walua Xanon Universidade Federal de Goiás

Introdução O presente artigo tem por objetivos apresentar uma sistematização parcial da terminologia de parentesco registrada na TI Marãiwatsédé e confrontá-la com outros registros etnográficos, a fim de verificar a existência de alguma correspondência entre os parâmetros mobilizados por outros grupos2 Xavante para estruturarem seu sistema de parentesco. As etnografias consultadas para a comparação foram as obras de Maybury-Lewis (1984 [1967]), Giaccaria e Heide (1972) e Lopes da Silva (1986). O trabalho está dividido como segue: Introdução, Os Xavante (Seção 1),3 na qual apresentamos informações gerais sobre os A’u w ẽ ;

1 Este trabalho é fruto de um diálogo entre nós dois que se estende de 2009. Muitas informações aqui contidas foram apresentadas em Ramires (2015). Agradecemos a Operação Amazônia Nativa (OPAN) pelo apoio à pesquisa e a participação no IX En- contro de Línguas e Culturas Macro-Jê. 2 Em Marãiwatsédé ouvimos diversas vezes referência aos grupos de Norõtsu’rã (cuja maioria atualmente divide a TI São Marcos com outros grupos), de Parabubu (pre- dominante na TI Parabubure), de Aröbönipó (TI Pimentel Barbosa), etc.; também se distinguem espontaneamente dos demais coletivos a’uwẽ e casam seus filhos preferen- cialmente com pessoas de mesmo grupo, mesmo que residente em outra TI. Existe uma tendência à composição das aldeias expressarem a pertença a determinado gru- po, pois são formadas quase que exclusivamente por descendentes de coletivos a’uwẽ determinados. 3 O etnônimo “Xavante” é exterior ao povo sobre o qual nos ocupamos e que se cole- tiviza como A’uwẽ Uptabi, termo que pode ser traduzido como “gente de verdade” ou “povo verdadeiro”. No presente texto, usamos tanto Xavante como a’uwẽ para nos re- ferirmos a eles, pois adotaram o primeiro termo para tratar com os não-a’uwẽ (outros

153 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon

O sistema de parentesco e outras formas de classificação social (Seção 2), nas quais preparamos o terreno para a descrição do sistema de parentesco sistematizado por nós e para a comparação com diferentes registros terminológicos. Nela, apresentamos nossos pressupostos e ajustamos alguns conceitos, nossos e nativos; Uma etnografia do sistema de parentesco dos Xavante de Marãiwatsédé (Seção 3), em que apresentamos nossos dados e os comparamos com outros registros; por fim, nas considerações finais, fazemos um breve apanhado dos pontos mais importantes dos argumentos apresentados.

1. Os Xavante Os Xavante habitam o nordeste do Estado de Mato Grosso, em uma região de ecótono que abrange parte da “zona Central do cerrado brasileiro em uma complexa eco-zona que combina cerrado e mata de galeria”, marcada por duas estações bem definidas: a época da seca, de maio a setembro, e a época das chuvas, que abrange os meses de outubro a abril (Graham 2012). Os vários grupos a’uwẽ perfaziam, em 2013, uma população total de 17.388 indivíduos distribuídos 178 aldeias (Silva 2013: 42), aproximadamente, dispersas, por sua vez, em 12 Terras Indígenas descontínuas, em sua maioria, que juntas somam 1.535.282 ha. (Ricardo e Rolla 2014). Nossa pesquisa, foi feita na TI Marãiwatsédé, distante 1.100 km de Cuiabá, aproximadamente, que se estende por 165.241 ha pelos municípios de Alto Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia e São Félix do Araguaia, todos situados no nordeste do Estado de Mato Grosso. Do ponto de vista estritamente linguístico, os A’u w ẽ são classificados como falantes de uma língua pertencente à família Jê. Essa família é composta pelo grupo linguístico Akwẽ, dentre outros, e é filiada ao tronco linguístico Macro-Jê. Assim como ocorre com outros povos de língua Jê, a organização social Xavante é marcada pela existência de

índios e waradzu – não-índios). Sobre a escrita do etnônimo, adotamos a convenção da Associação Brasileira de Antropologia, de 1953, na qual consta que a grafia dos no- mes de povos indígenas, usados como substantivos ou adjetivos, não devem ter flexão de gênero ou de número (Associação Brasileira de Antropologia, [1953] 1976). Para as palavras em língua nativa, utilizamos a grafia formulada pelos missionários salesianos (Lachnitt 2003a; 2003b; 2004), que é de uso corrente em Marãiwatsédé.

154 O tripartido sistema de parentesco Xavante diversos pares de metades correlacionados e pela uxorilocalidade.4 Um par de metades exogâmicas patrilineares regula as trocas matrimoniais em linhas gerais e, em relação com as metades dautsu (metades etárias), com o sistema dahöpirã (sistema de categorias de idade) e com o sistema de parentesco, balizam boa parte da vida social a’uwẽ.

2. O sistema de parentesco5 e outras formas de classificação social A ideia de parentesco é tomada aqui como o conjunto particular de relações que unem os homens entre si mediante laços baseados na consanguinidade e na afinidade enquanto relações socialmente reconhecidas (Héritier 1997: 28 [grifos nossos]). Pressupomos que esta distinção categorial entre parentes interditados ao matrimônio (consanguíneos) e indivíduos casáveis (afins) é “uma das dimensões constitutivas do parentesco humano” (Viveiros de Castro, 2002: 406 [grifos nossos]), “sistema arbitrário de representação” que só existe na consciência dos homens (Lévi-Strauss 2008a: 64 [1945]) e que é instaurado pela proibição do incesto (Lévi-Strauss 2008 [1967]). Sua função primeira é

[…] gerar possibilidades ou impossibilidades de matrimônios, quer diretamente entre pessoas que se tratam por certos termos, quer indiretamente entre as que se tratam por certos termos derivados, de acordo com regras determinadas, dos usados por seus ancestrais (Lévi- Strauss 1969: 127-128 [1965]).

Importante dizer que o sistema de parentesco não se confunde com o que DaMatta (1976: 155) chamou de sistema de relações, ou seja, “o conjunto de termos utilizado pelos membros de uma sociedade para classificar suas relações sociais” que, no caso Xavante, se configuram por meio de parâmetros expressos em sistemas de metades e outros esquemas

4 Regra de residência que determina que, após o casamento, o marido deve morar junto à esposa. 5 Se junta a este fato outros: os grupos políticos ali existentes se assentam largamente sobre relações de parentesco; as relações econômicas dentro de cada unidade socio- lógica e entre estas devem seguir as linhas do parentesco; nos rituais que participei e que observei estas relações também se fazem presentes, ora sendo deliberadamente “apagadas”, ora reforçadas. O parentesco, enfim, não obstante tenha como função pri- meira a geração de possibilidades e impossibilidade matrimoniais (Lévi-Strauss 1969 [1965]), é “multifuncional” nos Xavante.

155 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon classificatórios, dentre os quais o parentesco. Assim, a distinção entre “consanguinidade” e “afinidade” não se confunde com a oposição entre “mesma metade” e “outra metade” no caso Xavante. Embora Maybury- Lewis (1984: 223 [1967]) não afirme diretamente que essas oposições significariam a mesma coisa, pondera que a distinção fundamental do pensamento Xavante (waniwimhã/watsiré’wa) é análoga à oposição entre “parentes” e “afins” descrita por Dumont (1953) para alguns povos do sul da Índia e que, em certos casos, pode ser uma tradução adequada. Em sua descrição dos termos de parentesco Xavante dá a entender que, no limite, um Ego feminino6 poderia classificar seus Ch com termos para afins, caso se casassem com MBCh (Maybury-Lewis 1984: 280-281 [1967]). A bibliografia sobre os Xavante, fruto de mais de 60 anos de pesquisas inauguradas pelo antropólogo britânico David Maybury- Lewis, é de volume considerável. Não chegamos nem perto de esgotá- la, mas as obras escolhidas para a comparação trazem uma quantidade significativa de informações sobre o sistema de parentescoa’uwẽ . Antes de abordar o objeto deste artigo propriamente dito, é importante fazer uma breve introdução a alguns aspectos do sistema de relações Xavante que rebatem de alguma forma no sistema de parentesco, sem a pretensão de esgotar o tema. Comecemos pelo sistema de metades exogâmicas. Em seu clássico “A Sociedade Xavante”, Maybury-Lewis (1984: 120 [1967]) recorreu à distinção analítica entre grupos Xavante “Orientais” e “Ocidentais” com o objetivo de modelar dados divergentes sobre a organização social e a língua a’uwẽ. Os coletivos que se situassem a leste do então povoado de Nova Xavantina seriam “orientais”, os que estavam a oeste da mesma cidade foram classificados como “ocidentais”.

6 Usamos a seguinte notação: Ego designa a posição a partir da qual se traçam as rela- ções; Alter é o indivíduo referido ou chamado por Ego; “pai” F, “mãe” M, “irmão” B, “irmã” Z, “filho”S , “filha”D , “marido” H, “esposa” W, “filhos de ambos os sexos” Ch, “mais velho” e, “mais novo” y, “Ego masculino” ♂, “Ego feminino” ♀, “mesma geração que Ego” G0, “uma geração acima da de Ego” G+1, “uma geração abaixo da de Ego” G–1, “duas gerações acima da de Ego” G+2, “duas gerações abaixo da de Ego” G–2. Para nos referirmos às posições afastadas ou aquelas que representações sejam mais complexas usamos compostos destes símbolos básicos, que se leem da direita para a esquerda, como nos exemplos a seguir: ♂FBS significa “filho do irmão do pai de um homem”, ou seja, “primo paralelo patrilateral de um Ego masculino”; ♀MZS quer dizer “filho da irmã da mãe de uma mulher”, o mesmo que “primo paralelo matrilateral de Ego feminino”. “Gerações mediais” corresponde a G0 mais as gerações adjacentes, G±1, e “gerações distais” indica as gerações alternas, G±2.

156 O tripartido sistema de parentesco Xavante

Ele afirma que o matrimônio entre os Xavante Orientais seria regulado pelos “três patriclãs exógamos [...] Poreya’ono, Ö Wawẽ e Topdató”, e que os Xavante Ocidentais agrupariam os dois últimos clãs (Öwawẽ e Topdató) em uma única metade, pois “ambos trocam mulheres com os Poredza’ono” (Maybury-Lewis 1984: 120 [1967]). Giaccaria e Heide (1972: 103), discordando desta tese, generalizam o modelo dos A’u w ẽ “Ocidentais” para todos os Xavante. Embora Lopes da Silva (1986) problematize o uso de conceitos importados de outras regiões etnográficas (notadamente da África) por parte de Maybury-Lewis, corrobora seu ponto de vista com relação à percepção da organização social Xavante, que seria caracterizada: (1) “por ser um sistema dual que apresenta uma oposição conceitual e social básica entre waniwimhã (‘nós’, ‘os do nosso lado’) e tsiré’wa (‘eles’, ‘os que estão separados de nós’)”; (2) pelo peso atribuído à esta oposição waniwimhã/tsiré’wa,7 que repercutiria de forma determinante na “terminologia de parentesco expressa por Maybury-Lewis através de uma matriz binária construída segundo os critérios de geração, sexo e descendência”; e (3) pela existência de um terceiro clã (ibid.: 62-63 [grifos meus]). Nossos dados de campo, todavia, indicam que em Marãiwatsédé não existe Topdató enquanto clã. Esse fato encontra eco em outras etnografias, como aferimos a partir do que nos informa Falleiros (2012: 239-250), que fez sua pesquisa entre os Xavante de Sangradouro (classificados como orientais por Maybury-Lewis), Tsi’rui’a (2012: 63-68) e Coimbra et al. (2013: 15). Este último esteve, justamente, em Pimentel Barbosa, local onde Maybury-Lewis fez boa parte de sua pesquisa de campo. Tsi’rui’a é enfático ao afirmar que Topdató é uma atribuição ritual, uma pintura facial, que só é utilizada durante o Oi’ó 8 e que não tem qualquer influência sobre as metades matrimoniais. Convém dizer que não percebemos em Marãiwatsédé, assim como Vianna (2001: 103) não percebeu na TI Sangradouro,

7 Contração de watsire’wa, palavra usada por Maybury-Lewis. 8 Ritual caracterizado pela ênfase na oposição entre as metades exogâmicas, quando os símbolos clânicos são inscritos na fonte dos meninos. O símbolo dos Topdató, dife- rentemente, é pintado nas maçãs dos rostos. No Oi’ó os ai’repudu (categoria de idade de meninos entre 8 e 12) são devidamente ornamentados (pintados e com os cabelos amarrados) e separados de acordo com sua origem clânica. Posteriormente são dis- postos em duas linhas paralelas, no centro da aldeia e, de dois em dois, se enfrentam com raízes que dão o nome ao ritual. Golpes fora da região entre o ombro e a cintura (como no rosto, por exemplo) são proibidos.

157 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon

[…] uma importância tão intensa das categorias egocentradas waniwimhã e watsire’wa quanto somos levados a inferir pela leitura de Maybury-Lewis. Tais categorias tampouco ordenariam de modo tão global a aplicação da terminologia de parentesco quanto supôs o autor [grifos do autor].

Diante do que foi exposto, optamos por pressupor em nossa descrição a existência de duas metades nomeadas, Öwawẽ e Po’redza’õno, apenas, visto que as diferenças linguísticas e entre as formas de organizar as metades etárias existentes entre alguns grupos a’uwẽ parecem não interferir de forma distinta no sistema de parentesco, objeto deste exercício. Isto torna desnecessária a diferenciação entre Xavante Ocidentais e Orientais. Outro elemento do sistema de relações Xavante é o Dautsu, ou sistema de metades etárias, que tem um caráter formativo, cerimonial e esportivo. É composto por oito classes de idade divididas equitativamente em duas metades,9 que possuem atribuições rituais específicas e competem durante o Uiwede.10 São elas: Anorowa (esterco), Tsadaro (sol), Ai’rere (pequena palmeira), Hötora (espécie de peixe), Tirowa (carrapato), Ẽtepá (pedra comprida), Abare’u (pé de pequi) e Nodzö’u (pé de milho). As metades são formadas por classes alternadas; assim, toda a classe de idade adjacente a um indivíduo determinado pertence à metade oposta à sua, e toda a classe de idade alternada pertence a sua mesma metade. Para pertencer a uma classe de idade o indivíduo deve residir cinco anos aproximadamente com seu grupo no Hö (casa dos solteiros), antes de ser iniciado. Relacionado ao sistema de metades etárias e ao sistema de parentesco, existe o sistema de categorias de idade, ou Dahöpirã, em língua Xavante, que, a partir de parâmetros relacionados ao desenvolvimento

9 Estas metades, diferentemente das exogâmicas, não têm nomes fixos. Em Marãiwa- tsédé, os Xavante se referem a elas usando os nomes das últimas classes de idade ini- ciadas de cada metade. 10 Consiste numa corrida de 5 km, aproximadamente, em que as duas metades etárias competem passando uma pesada tora de buriti de ombro em ombro entre os com- panheiros de metade. Vence a metade que conseguir levar a tora primeiro ao warã, centro político e ritual da aldeia onde se reúnem os ĩprédu (homens maduros) todos os dias, no alvorecer e no crepúsculo, para discutirem questões de toda a ordem: desde amenidades até assuntos importantes para a vida comunitária, como a programação de rituais ou temas relacionados a política. Adiante abordamos o dahöpirã, ou sistema de categorias de idade, momento em que o sentido de ĩprédu ficará mais claro.

158 O tripartido sistema de parentesco Xavante físico e social do indivíduo, também serve de método de classificação social. Como recurso expositivo, com o objetivo de facilitar o entendimento do leitor e da leitora, usamos a idade aproximada de cada categoria de idade. Assim, os Xavante dispõem das seguintes categorias para classificar homens:aiuté , até 2 anos de idade; watébrémi, de 2 a 8 anos de idade; ai’repudu, de 8 a 12 anos; hö’wa ou wapté, morador da casa dos solteiros, entre 12 e 17 anos; ‘ritéi’wá, recém-iniciado; ĩprédupté, iniciados responsáveis pela formação dos iniciandos da classe de idade alternada inferior; e ĩprédu, homem maduro. As mulheres, também, estão inseridas no sistema de classes de idade e, consequentemente, no sistema de categorias de idade, mas elas não ficam reclusas noHö . Os parâmetros mobilizados para a inserção das mulheres no sistema de categorias de idade são o desenvolvimento físico e a reprodução. Assim, temos: aiuté, até 2 anos de idade; baõno, de 2 a 9 anos de idade, cujos seios não começaram a se desenvolver ainda; adzarudu, de 9 a 12 anos que, embora não esteja casada, está apta para tal; tsoimbá, menina a partir de 12 anos que já passou pelo ritual de casamento, mas que não tem filhos; eĩprédu , mulher casada com filhos. Para facilitar o entendimento da imbricada e dinâmica relação entre Dautsu e Dahöpirã, apresentamos uma sistematização da configuração de cada um e das relações entre ambos verificada emMarãiwatsédé entre 2009 e 2012. A seguir descrevemos as transformações desencadeadas com o Danhõnõ11 realizado em 2012, em Marãiwatsédé, representadas pela tabela 1. Observa-se que com a iniciação dos Nodzö’u, em 2012, esses passaram à categoria ‘ritéi’wá; os Ẽtepá, responsáveis pela iniciação dos Nodzö’u, passaram à categoria ĩprédu; os Abare’u, que ocupavam a posição ‘ritéi’wá, foram promovidos à ĩprédupté e passaram a ser responsáveis pela iniciação dos Anorowa, novos habitantes do Hö. Os Nodzö’u iniciados há mais de 40 anos e, ainda, vivos viram sua classe de idade se renovar e passaram a ser classificados comoNodzö’u brada.12

11 Ritual de iniciação do jovem Xavante. Para uma descrição do ritual ver Silva (2013). 12 Também chamados, em sua forma contraída, de Nodzö’u’rada, que os a’uwẽ tradu- zem como Nodzö’u “velho”.

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Tabela 1 - Configuração das classes de idade em Marãiwatsédé Categorias de Classes de Idade (2009) Classes de Idade (2012) Idade “ABARE’U”12 “ẼTEPÁ” “ABARE’U” “NODZÖ’U” Anorowa Tsadaro Tsadaro Ai’rere Ai’rere Ĩprédu Hötora Hötora Tirowa Tirowa Ẽtepá Ẽtepá Ĩprédupté Abare’u Abare’u ‘Ritéi’wá Nodzö’u Nodzö’u Hö’wa (Wapté) Anorowa

13

Outras instituições Xavante que intervém na classificação do espaço social, mas que não serão tratados aqui, são a nominação, a amizade formal e o que Welch (2014) chamou de “sistema Xavante de grupos de idade espiritual.” Embora as etnografias usadas para o cotejamento tragam informações e dados sobre o sistema de parentesco, os autores que lhe dispensaram alguma atenção menos superficial o fizeram, desconfiamos, por esse aspecto da vida a’uwẽ possibilitar um melhor entendimento de seus respectivos objetos de pesquisa, dado o espaço que o parentesco ocupa na vida social Xavante. Outro ponto que chama a atenção ao ter contato com as obras é a variedade de perspectivas teóricas que orientavam os estudiosos em suas atividades. Esses dois fatores, que possivelmente não são os únicos, nos ajudam a entender as origens das ambiguidades que emergem da comparação dos dados trazidos pela bibliografia etnológica sobre o sistema de parentesco Xavante, desde os clássicos de Maybury-Lewis (1984: 276-304 [1967]), Giaccaria e Heide (1972: 101-106) e Lopes da Silva (1986), até os provenientes de pesquisas relativamente recentes, como a de Vianna (2001: 100-141) e de Falleiros (2012: 87-259). Nesse sentido, Maybury-Lewis (1984: 276 [1967]), mesmo desqualificando

13 Como os Xavante fazem, nomeamos as metades com os nomes das últimas classes de idade iniciadas. Com a iniciação dos Nodzö’u, a metade “Ẽtepá” passou a ser chamada “Nodzö’u.”

160 O tripartido sistema de parentesco Xavante o método utilizado para a classificação dos sistemas de parentesco em macrotipologias, enquadrava a terminologia Xavante no tipo “dakota”, não sem chamar a atenção para semelhanças com os sistemas dravidianos de Dumont (1953). Vianna (2001: 119) entrevia, com Giaccaria e Heide (1972: 105), “um perfil ‘havaiano’”; já Falleiros (2012: 149) sugere “a intrusão de uma inflexão de feição (ou máscara) crow-omaha”. Ramires (2015), com foco justamente no vocabulário de parentesco a’uwẽ, percebeu que o sistema Xavante se aproxima dos casos amazônicos, de tipo dravidiano, mais ou menos como entrevisto por Maybury-Lewis (1984: 279 [1967]).

3. Uma etnografia do sistema de parentesco dos Xavante da TI Marãiwatsédé O estudo dos sistemas de parentesco recobre tradicionalmente os níveis analíticos categorial, jural e comportamental que podem variar independentemente e, por isso, precisam ser examinados e analisados independentemente, segundo Barnard e Good (1984: 9 et seq.). Silva (2014: 2) discorda desse último ponto e propõe um método de abordagem unificado no qual, após uma articulação inicial dos dados etnográficos aos três diferentes níveis analíticos, os mesmos sejam colocados num mesmo plano para serem examinados e analisados em suas relações mútuas. No exercício descrito a seguir abordamos apenas as dimensões categorial e normativa do parentesco a’uwẽ. É por meio do estudo dos vocabulários de parentesco que é possível vislumbrar os arranjos categoriais de um determinado coletivo; por este motivo começamos nossa descrição parcial do sistema de parentesco pela terminologia. As configurações normativas ou atitudinais foram compreendidas a partir do exame das ideias, dos valores e das instituições Xavante relacionadas de alguma forma ao parentesco, tais como a assimetria instaurada pela afinidade e as ideias que giram em torno da partilha de sangue entre siblings e seus filhos, por exemplo, que proscreve o casamento com cognatos cruzados (MBCh e FZCh), não obstante sejam da metade oposta a de Ego. A fim de verificar uma possível generalidade do arranjo observado em Marãiwatsédé, comparamo-no brevemente com diferentes registros da terminologia de parentesco Xavante: a do antropólogo britânico David Maybury-Lewis (1984 [1967]), a dos religiosos salesianos Giaccaria e Heide (1972) e a da antropóloga Lopes da Silva (1986). Os trabalhos de Vianna (2001), Lachnitt (2003), Tsi’rui’a (2012) e Falleiros (2012) também foram

161 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon usados neste exercício, mas de forma menos sistemática, e contribuíram sobremaneira para a discussão. A seguir apresentamos os diagramas e tabelas contendo os termos para Ego de ambos os sexos; posteriormente, descrevemos as oposições e correlações observadas na terminologia e no conjunto de atitudes correspondentes a cada um; por fim comparamos o resultado de nossa sistematização aos dados encontrados em outras etnografias. Para a confecção de todos os diagramas e tabelas que seguem, bem como para a exposição dos dados, adotei os seguintes critérios. A divisão principal é entre Ego do sexo masculino e Ego do sexo feminino. Também, distinguimos termos de referência dos termos vocativos14 e termos para gerações mediais (G0 e G1) dos termos para gerações distais (G2). Essa última diferenciação ocorre devido à neutralização das distinções entre consanguíneos e afins e “mesma metade” e “outra metade” a partir de G2. Antes de apresentar os diagramas, convém fazer alguns comentários sobre sua configuração: (1) seguimos a notação tradicionalmente usada nos estudos de parentesco;15 (2) com o objetivo de otimizar o espaço, usei linhas pontilhadas para indicar relações com parentes situados nas gerações distais, que podem partir, teoricamente, de qualquer indivíduo situado no diagrama em G+1 para outro qualquer em G+2; em G-1 e G-2 ocorre a mesma coisa; (3) para distinguir “irmãos mais velhos” de “irmãos mais novos” usamos o sinal “>”; (4) os números de identificação relacionados a cada termo serão usados durante todo o exercício; (5) distinguimos “termos de referência” de “termos vocativos” grafando estes últimos em negrito e itálico, tanto nos diagramas quanto nas tabelas. Aspas duplas em termos nativos indicam grafias ligeiramente diferentes encontradas em diferentes etnografias. Inicialmente, nos diagramas 1 e 2, respectivamente, apresentamos os termos para Ego masculino e Ego feminino, separadamente. Posteriormente os termos são descritos nas tabelas 2, 3 e 4. Por fim, discorremos sobre os dados apresentados, relacionando-os à outras etnografias do sistema de parentesco Xavante, evidenciando convergências e contradições observadas durante o processo.

14 Também conhecidos como termos de tratamento, são usados para falar com um pa- rente determinado, enquanto os termos de referência são utilizados para designar um parente de quem se fala (Agassian et al. 2003: 49 [1975]). 15 Triângulos representam homens e círculos mulheres, linhas verticais conectando indivíduos indicam relações de filiação, linhas horizontais por cima remetem a laços de germanicidade em comum e linhas horizontais por baixo representam casamentos.

162 O tripartido sistema de parentesco Xavante Diagrama 1: Terminologia para Ego masculino Ego para 1: Terminologia Diagrama

163 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon

Começamos com a descrição do sentido dos termos pelas gerações mediais para, em seguida, tratar dos termos para as gerações distais. Os números de identificação usados nos diagramas estão inseridos na primeira coluna, registro, que é seguida da coluna termo, onde consta o vocabulário de parentesco. As duas últimas colunas, relações e sentido, trazem algumas posições genealógicas cobertas por cada um dos termos e uma tentativa de síntese do sentido dos mesmos, respectivamente. Tabela 2 - Termos para gerações distais

Registro Termo Posições Sentido Qualquer parente, de G+2 e 1 ĩ’rada FF, MF, FM, MM, etc. seguintes. Qualquer parente, de G–2 e 2 ĩnhihudu SCh, DCh, etc. seguintes. Qualquer parente, do 3 bödi SS, DS, etc. sexo masculino, de G–2 e seguintes. Qualquer parente, de 4 oti SD, DD, etc. sexo feminino, de G–2 e seguintes.

Tabela 3 - Termos para gerações mediais (Ego Masculino)

Registro Termo Posições Sentido Consanguíneos, paralelos, 5 ĩmãmã F, FB, MZH, etc. do sexo masculino, de G+1. Consanguíneos, paralelos, 6 ĩnibdati’ö M, MZ, FBW, etc. do sexo feminino, de G+1. Ch, BCh, FBSCh, MBDCh, Consanguíneos, paralelos, 7 ĩ’ra etc. de G–1. Consanguíneos, cruzados, 10 ĩmama wapté MB, FZH, etc. do sexo masculino, de G+1. Consanguíneos, cruzados, 12 ĩtebe FZ, MBW, etc. do sexo feminino, de G+1. ZCh, FBDCh, MZDCh, Consanguineos, cruzados, 13 ĩ’rawapté MBSCh, etc. de G–1. Consanguíneos, cognatos yB, yFBS, yMBS, yWZH, cruzados e paralelos, do 14 ĩno etc. mesmo sexo, de G0, mais novos.

164 O tripartido sistema de parentesco Xavante

Consanguíneos, cognatos eB, eFBS, eMBS, eWZH, cruzados e paralelos, do 15 ĩdub’rada etc. mesmo sexo, de G0, mais velhos. Consanguíneos, cognatos Z, MZD, FBD, MBD, FZD, 16 ĩhidiba cruzados e paralelos, do WHW, etc. sexo oposto, de G0. 17 ĩmro W Esposa. Afins, de sexo oposto, de 18 ĩtsidana WZ, BW, etc. G0. 19 ĩmaprewa WF, WM, etc. Afins, de G+1.

Afins, de mesmo sexo, de ZH, FBDH, MZDH, etc. G0, tomadores de esposas. 20 ĩtsa’õmo Afins, de sexo masculino, DH, BDH, etc. de G–1. Afins, de mesmo sexo, de 21 ĩ’ãre WB, etc. G0, doadores de irmãs. Afins, do sexo feminino, de 23 ĩtsani’wa SW, BSW, etc. G–1. SWF, SWM, DHF, DHM, 24 ĩtsiwatsini Consogros. etc.

Tabela 4 - Termos para gerações mediais (Ego Feminino)

Registro Termo Posições Sentido Consanguíneos, paralelos, 5 ĩmãmã F, FB, MZH, etc. do sexo masculino, de G+1. Consanguíneos, paralelos, 6 ĩnibdati’ö M, MZ, FBW, etc. do sexo feminino, de G+1. Ch, ZCh, FBDCh, Consanguíneos, paralelos, 7 ĩ’ra FZSCh, etc. de G–1. Consanguíneos, cruzados, 10 ĩmama wapté MB, FZH, etc. do sexo masculino, de G+1. Consanguíneos, cognatos B, MZS, FBS, MBS, FZS, 11 ĩhitébré cruzados e paralelos, do sexo HZH, etc. oposto, de G0.

165 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon

Consanguíneos, cruzados, 12 ĩtebe FZ, MBW, etc. do sexo feminino, de G+1. BCh, FBSCh, MZSCh, Consanguíneos, cruzados, 13 ĩ’rawapté FZDCh, etc. de G–1. Consanguíneos, cognatos yZ, yFBD, yFZD, HBW, cruzados e paralelos, do 14 ĩno etc. mesmo sexo, de G0, mais novos. Consanguíneos, cognatos eZ, eFBD, cruzados e paralelos, do 15 ĩdub’rada eFZD, eHBW, etc. mesmo sexo, de G0, mais velhos. 17 ĩmro H Marido. 19 ĩmaprewa HF, HM, etc. Afins, de G+1. Afins, de sexo masculino, de 20 ĩtsa’õmo DH, ZDH, etc. G–1. 22 ĩtsi’daimãma HB, ZH, etc. Afins, de sexo oposto, de G0. Afins, de mesmo sexo, de BW, FBSW, MZSW, etc. G0, tomadoras de maridos. 23 ĩtsani’wa Afins, do sexo feminino, de SW, ZSW, etc. G–1. SWF, SWM, DHF, DHM, 24 ĩtsiwatsini Consogros. etc. Afins, de mesmo sexo, de 25 atebe HZ, etc. G0, doadoras de irmãos.

Começamos pelas gerações distais, pois os termos são comuns a Ego de ambos os sexos. Em G2 temos os recíprocos ĩ’rada↔ĩnhihudu/ bödi ≠ oti. Distingue-se, além da geração, o sexo dos parentes de G–2 com os vocativos bödi (3) e oti (4) ou se pode agrupá-los sob o termo referencial ĩnhihudu (2). Quando necessário, diferencia-se o sexo do parente de G+2, como observou Lopes da Silva (1986: 280), reservando ĩ’rada (1) aibö para Alter do sexo masculino, e ĩ’rada (1) pi’ö, para Alter do sexo feminino. Os termos “ĩnihúdu”, usado por Maybury-Lewis, e “ĩtsihudu”, usado por Giaccaria e Heide, significam “meu neto (a)” (Lachnitt 2003: 41, 59). São sinônimos que vimos serem usados em Marãiwatsédé. Lopes

166 O tripartido sistema de parentesco Xavante Diagrama 2: Terminologia para Ego feminino Ego para 2: Terminologia Diagrama

167 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon da Silva (1986: 278) não apresenta termos para ChCh, mas bödi aparece ali como “termo de parentesco pelo qual são chamados e referidos os meninos pequenos”. Lachnitt (2003: 20, 48) traduz bödi por filho ou neto, e oti como filha ou neta. Maybury-Lewis (1984: 280, 296 [1967]) afirmava que oti seria BD, independente do sexo de Ego, e dá a entender que bödi não seria um termo de parentesco propriamente dito. Em sua sistematização da terminologia Xavante, Giaccaria e Heide (1972: 106) colocam que bödi serviria para tratar com BS, WBS, WZS e oti com BD, WBD e WZD, embora recentemente Pe. Giaccaria16 tenha afirmado que estes vocativos podem não ser termos de parentesco. Esta classificação de filhos e netos juntos, somada à abrangência destes termos e aos indícios de que não seriam sequer termos de parentesco já tinha levado Falleiros (2012: 108 et seq.) a se perguntar se não seriam “esses os termos, portanto, usados para todos aqueles descendentes agnáticos ou cognáticos que não podem ser seus filhos, seja de homem, seja de mulher.” Essa diferenciação entre parentes lineares e colaterais também é feita por meio dos sufixosa’amo e uptabi, que servem para marcar a distância genealógica entre parentes. Uptabi se traduz, segundo o dicionário de Lachnitt (2003: 94), como “verdadeiro” e “muito”. Este qualificativo é usado para diferenciar referencialmente, quando for o caso, parentes reais (uptabi) de classificatórios. Outro vocábulo usado para diferenciar lineares de colaterais, mas de uso menos comum e que aponta para a mesma marcação de distância genealógica, é o adjetivo amo, que significa “outro”17 (Lachinitt 2003: 17). Não enfrentaremos essa questão dos vocativos para G–2 aqui. Para os fins do presente trabalho, o sentido abstraído a partir dos recíprocos ĩ’rada↔ĩnhihudu bastam. Em G±1, entre os parentes consanguíneos de G+1, um Ego qualquer chamará Alter paralelo de ĩmãmã (5) (F, FB, FFBS, MZH, etc.), se de sexo masculino, e de ĩnibdati’ö (6) (M, MZ, MFBD, FBW, etc.), se do sexo feminino, e será classificado reciprocamente como ĩ’ra (7) (Ch, ♂BCh, ♀ZC, HFBSCh, ♂MBDCh, etc.) em G–1. Ainda no campo da consanguinidade, um Ego qualquer designa de ĩmama wapté (10) (MB, MFBS, FZH, etc.), se Alter do sexo masculino, e de ĩtebe (12) (FZ, FFBD, MBW, etc.), se Alter do sexo feminino, os consanguíneos cruzados de G+1; reciprocamente é classificado por ambos de ĩrawapté (13) (♂ZCh, ♀BCh, ♂FBDCh, ♀MZSCh, ♂MZDCh etc.), consanguíneos cruzados de G–1.

16 Comentário pessoal. 17 Ĩ’amo, “meu outro”, é a designação do amigo formal Xavante (cf. Lopes da Silva 1986).

168 O tripartido sistema de parentesco Xavante

No campo da afinidade, um Ego qualquer chamará seu afim de G+1 de ĩmaprewa (19) (WF, WFB, WM, WMZ, HF, HFB, etc.) e será classificado comoĩtsa’õmo (20) (DH, ♂FBSDH, ♀FBDDH, ♂MZSDH, ♀MZDDH, etc.), se do sexo masculino, e de ĩtsani’wa (23) (SW, ♂FBSSW, ♀FBDSW, ♂MZSSW, ♀MZDSW, etc.), se do sexo feminino. Desde uma perspectiva comparada, os recíprocos ĩmãmã/ ĩnibdati’ö↔ĩ’ra apresentam algumas diferenças que parecem ser mais de forma. Segundo Maybury-Lewis (1984: 287-288 [1967]), ĩmãmã (5) designaria pai real (F) e ĩmãmã amo designaria os pais classificatórios (FB, FFBS, etc.), em que “amo” significa “outro”; dentre esses “outros pais” também existiria uma distinção materializada nas atitudes entre os que pertenciam a linhagem de Ego e os que não pertenciam. O termo ĩnibdati’ö (6) seria usado para classificar M que, dentro da categoria das consanguíneas paralelas de G+1, se distinguiria de MZ, esta chamada por inã (Maybury-Lewis 1984: 281 [1967]). Lopes da Silva (1986: 279) afirma que ĩmãmã amõ seria um “pai classificatório: tio paterno (FB, FFBS, etc.)”, diferenciado de ĩmãmã (5) (F); ĩnibdati’ö (7) seria o termo de referência para o vocativo dati’ö,18 empregado por adultos para classificar M, MZ e FBW. Segundo Giaccaria e Heide (1979: 105) ĩmãmã amõ seria dirigido ao MZH e ĩmãmã (5) para F e FB; já dati’ö, vocativo de ĩnibdati’ö (6), designaria M depois que Ego masculino fosse iniciado. Para Ego do sexo feminino a mudança na classificação ocorreria depois de ter o primeiro filho; os salesianos não apresentam termo pelo qual uma mulher chamaria sua M antes da passagem para a vida adulta.19 À primeira vista a única dissonância que emerge da comparação dos termos para consanguíneos de G+1 é a classificação em Giaccaria e Heide (1972: 105-106) de FB junto a F como ĩmãmã (5) em oposição à MZH, referido como ĩmãmã amõ. Observando outros trabalhos, o que chama a atenção é a recorrência da oposição entre lineares e colaterais dentro da distinção paralelos/cruzados, que se materializa na oposição

18 Dentre os vocábulos amé, ‘ramé e ĩna apresentados para M de Ego do sexo masculi- no não iniciado, escolhemos este último por aparecer em outros trabalhos. 19 Outro problema observado nos dados dos salesianos é a ausência de termo para MZ. A classificação de MBW (=FZ) com datiö, somada a duplicata desta relação (Giacca- ria & Heide 1972: 105) e a ausência de MZ (=M) na tábua nos fizeram supor que a segunda vez onde aparece MBW seria efetivamente MZ, pois a partir desse ponto são apresentados todos os parentes a ela relacionados, como MZH, MZS e MZD. Nossa in- tuição foi confirmada por Pe. Giaccaria (c. p.), por isso substituímos “esposa do irmão da mãe” por “irmã da mãe” para datiö e anapté.

169 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon

ĩmãmã/ĩmãmã amõ e em suas respectivas atitudes, bem como na oposição, implícita nos registros, entre ĩnibdati’ö/ĩnawapté. Segundo verificamos em Marãiwatsédé, a distinção terminológica entre lineares e colaterais é neutralizada com a chegada de Ego a maturidade, mas se mantém no campo das atitudes. Essa reclassificação dos consanguíneos paralelos de G±1 explicita a interrelação de três sistemas que coexistem e cuja realização simultânea dificulta a percepção do que é próprio ao sistema em análise, como a distinção entre lineares e colaterais dentro da categoria dos paralelos, por exemplo. Trata-se da intersecção entre o sistema de categorias de idade, chamado dahöpiã em Xavante, o sistema de classes de idade, ou dautsu, e o sistema de parentesco. As categorias de idade marcam a passagem de um Ego qualquer pelas diversas fases da vida Xavante, desde seu nascimento, e interferem nos termos empregados para designar este indivíduo desde pequeno. Com relação a Ego do sexo masculino, este sistema modifica apenas os termos que Ego usa para designar os consanguíneos colaterais de G+1 de ambos os sexos (FB, FFBS, MZ, MMZD, etc.), igualando-os terminologicamente a F e M. Isso só ocorre após a entrada de Ego no Hö, quando o sistema terminológico é inflectido pelosistema de classes de idade. Neste sentido, os termos ĩmãmã a’amo (FB, etc.) e ĩnawapté (MZ, etc.) só deixam de ser utilizados pelos ♂BS e ♀ZS quando estes deixam de ser designados como ai’repudu e passam a habitar a casa dos solteiros, quando tem lugar o termo hö’wa ou wapté. A partir daí passam a empregar o termo ĩmãmã (5) para FB, etc. e datiö para MZ, etc. Já entre as ♂BD e ♀ZD, embora inseridas no sistema de classes de idade, realizam esta substituição a partir do momento que têm o primeiro filho. Com relação ao termo para consanguíneos paralelos de G–1, segundo o confuso quadro de Maybury-Lewis (1984: 280-281 [1967]), ĩ’ra (7) remeteria a qualquer “pessoa da 1ª geração descendente que seja waniwimhã [mesma metade] de Ego.” Desta forma, as posições cobertas por este termo seriam ♂Ch, ♂BCh, ♀BCh, ♀FBSCh, etc. Não consta o termo para ♀Ch e a distinção de metades presente na descrição do sentido do termo por Maybury-Lewis nos leva a concluir que este autor toma o sistema de parentesco Xavante como sendo sociocentrado,20 algo

20 Esta é uma fórmula de intercâmbio matrimonial pensada por Dumont (1975: 100- 101 [1971]), a global, ou sociocentrada, na qual a determinação dos cônjuges acontece por meio da identificação de classes ou grupos, como nos coletivos caracterizados por sistemas dualistas; a outra formula é a local, ou egocentrada, na qual “ as regras se refe- rem a um indivíduo concreto – como no matrimonio de primos cruzados”. A distinção

170 O tripartido sistema de parentesco Xavante diferente do que vimos em Marãiwatsédé e do que está registrado nas etnografias consultadas. Para Giaccaria e Heide (1972: 105-106)ĩ’ra (7) corresponde a Ch, tanto de um homem quanto de uma mulher, mesmo sentido que pudemos apreender de Lopes da Silva (1986: 280) e que observamos em Marãiwatsédé. Ao reduzirmos às suas distinções básicas o sistema de parentesco Xavante tal qual o descreveu Maybury-Lewis (1984 [1967]) chegamos a seguinte formula F+FZ/BCh e MB+M/ZCh. Nela Ego do sexo masculino e Ego do sexo feminino chamam Ch por termos diferentes. Com base em nossos registros e nos encontrados em Giaccaria e Heide (1972) e em Lopes da Silva (1986) chegamos a seguinte formula F+M/Ch e MB+FZ/♀BCh+♂ZCh. De cara, verifica- se a irredutibilidade da terminologia a um esquema sociocêntrico, pois os termos para Ch são os mesmos para Ego de ambos os sexos. Todos os outros registros indicam que a terminologia a’uwẽ é egocentrada, não sociocentrada, porque se estruturar a partir do método das relações, não do método das classes, posto que tanto indivíduos do sexo masculino (de mesma metade que seus filhos), quanto do sexo feminino (de metade distinta da de seus filhos) classificam sua prole da mesma forma, opondo-os terminologicamente aos filhos de irmãos de sexo oposto (♀BCh+♂ZCh), que são classificados de forma distinta. Em G0, classificam consanguíneos de sexo oposto deĩhitébré (11) (♀B, ♀FBS, ♀MZS, ♀MBS, ♀FZS, etc.), se Ego do sexo feminino, e de ĩhidiba (16), se Ego do sexo masculino (♂Z, ♂FBD, ♂MZS, ♂MBD, ♂FZD, etc.), tanto paralelos quanto cruzados próximos, ou seja, cognatos, de 1º grau. Essa “havaianização” também ocorre entre consanguíneos de mesmo sexo, quando um Ego qualquer usará ĩdub’rada (15), se Alter mais velho (♂eB, ♂eFBS, ♂eMZS, ♂eMBS, ♂eFZS, etc.), e ĩno (14) (♂yB, ♂yFBS, ♂yMZS, ♂yMBS, ♂yFZS, etc.), para Alter mais novo. Nos registros consultados para este exercício comparative, os recíprocos ĩhitébré↔ĩhidiba e ĩdub’rada↔ĩno apresentam mínimas divergências com relação à grafia e ao sentido, com exceção de Maybury-Lewis (1984: 280 [1967]; et seq.), aparentemente, para quem estes termos seriam usados para qualquer germano, independente do sexo de Ego e de Alter. Entre siblings de sexo oposto predominam relações horizontais, de proximidade e de solidariedade. As relações entre germanos de mesmo sexo, também, se caracterizam pela proximidade e pela solidariedade, sexual do parente de ligação é um critério fundamental em sistemas egocentrados, en- quanto a pertença a metades e/ou seções se sobrepõe a outros critérios de classificação em sistemas sociocentrados.

171 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon mas são marcadas pela hierarquia entre quem nasceu antes e quem nasceu depois. O casamento entre cognatos cruzados, embora sejam de metades distintas, é proscrito. Ainda, em G0, mas dentro dos marcos da afinidade, uma mulher chama seu afim de sexo oposto e mesma geração de ĩtsidaimama (22) (HB, ♀ZH,) e é chamada por ele de ĩtsidana (18) (WZ, ♂BW). À Alter de mesmo sexo que lhe cedeu uma irmã, um homem chama ĩ’ãre (21) (WB) e é chamado por ele de ĩtsa’õmo (20) (♂ZH, DH). Essa relação assimétrica, entre doadores e tomadores de cônjuges, também se verifica entre as mulheres. Ego feminino chama atebe (25) (HZ) aquela que lhe cedeu um irmão e é classificada por ela como ĩtsani’wa (23) (♀BW, SW). Os autorecíprocos ĩmro (17) (W, H) e ĩtsiwatsini (24) (SWF, DHM, etc.) designam cônjuge e consogro, respectivamente. Os recíprocos para afins de sexo oposto, ĩtsidaimama↔ĩtsidana, constam apenas em nossos registros e em Giaccaria e Heide (1972), embora a liberdade entre os indivíduos implicados nessa relação conste em Lopes da Silva (1984: 212-213) e Maybury-Lewis (1984 [1967]). Dos recíprocos para afins de mesmo sexo, que classificam relações marcadas pela assimetria nas atitudes entre quem cede um irmão ou uma irmã e quem toma um marido, ĩtsani’wa↔atebe, apenas o primeiro termo foi encontrado em Giaccaria e Heide (1972: 106), que é transcrito em sua forma vocativa, tsayhi. O termo atebe (25) consta apenas nos registros de Marãiwatsédé. Com relação aos recíprocos para Ego masculino, ĩ’ãre↔ĩtsa’õmo, o sentido de ĩ’ãre (7) observado em Marãiwatsédé parece encontrar equivalência em todos os registros consultados; já para o termo ĩtsa’õmo (20) ocorre uma divergência entre os dados encontrados em Maybury- Lewis e os demais registros: em Giaccaria e Heide (1972) o sentido de ĩtsa’õmo (20) coincide com o verificado em Marãiwatsédé; em Lopes da Silva (1986: 280) este termo significa “‘cunhado (ZH e DH)”, todavia, sem distinguir o sexo de Ego. O importante aqui é que nestes registros se distingue doadores de tomadores de cônjuges, oposição já percebida também por Maybury-Lewis (1984: 288 [1967]). Para este autor, segundo pudemos depreender,21 ĩtsa’õmo (20) designaria, em G0, ZH,

21 Dizemos depreender porque existem contradições internas ao material apresentado por Maybury-Lewis. O autor afirma existirem “diferenças mínimas na terminologia empregada pelas mulheres”, e que os “princípios que a governam são virtualmente idênticos aos da terminologia masculina”. No quadro específico para Ego feminino, no “Apêndice 2” (1984: 280, nota 4), notamos que existem termos usados exclusivamente

172 O tripartido sistema de parentesco Xavante e, em G–1, DH, ZDH e BDH. Todavia, essas posições significam coisas diferentes para homens e para mulheres, fato que o autor não deixa muito claro em sua apresentação dos dados sobre o parentesco Xavante. Nesse sentido, se nos atermos exclusivamente aos critérios relacionados ao parentesco (geração e sexo), mais o parâmetro “descendência”, seguindo os pressupostos de Maybury-Lewis, um ♂ZDH será um paralelo de mesma metade, ao passo que um ♀BDH será um paralelo de outra metade, ambos classificados como Ch. Acreditamos que essa incongruência se deva aos parâmetros usados pelo autor para descrever o sistema de parentesco em tela. Isso ficará mais claro a seguir, quando discutirmos os termos para G±1. As relações entre afins de mesmo sexo são assimétricas: de direito para quem cede um germano de sexo oposto e de dever para quem toma um cônjuge. Por fim, o autorrecíproco ĩmro (17) foi encontrado em todas as etnografias e não apresenta divergências; já o termoĩtsiwatsini (24), ausente dos registros de Lopes da Silva (1986), designa “qualquer pessoa que seja watsiré’wa de Ego” em Maybury-Lewis (1984: 281 [1967]), sentido genérico demais para possibilitar um entendimento de seu sentido. Em Giaccaria e Heide (1972: 105), embora este termo apareça relacionado apenas a SWF e SWM, também se aplica a DHF e DHM atuais e futuros.

Considerações finais No processo de classificação do universo social Xavante, os cognatos cruzados de G0 (MBCh e FZCh) são terminologicamente assimilados a germanos e, devido aos sistemas de metades exogâmicas, parâmetro para a classificação de parentes distantes, os paralelos distantes seguem sendo identificados dessa forma. Aos cruzados não cognatos (2º grau em diante), não restam quaisquer termos de parentesco que aqueles para afins, pois não existem termos para primos cruzados em nossos registros e em nenhuma etnografia consultada. Assim, ao operar a divisão global entre consanguíneos e afins em G0, e interditar o matrimônio com cognatos cruzados e paralelos, o sistema a’uwẽ orienta a busca de cônjuges para os cruzados não-cognatos, quando procede a um cálculo de cruzamento dravidiano para o cômputo de possíveis consortes. por Ego do sexo masculino, como WZ e WB, por exemplo. Devido a essa imprecisão optamos por seguir os pressupostos do autor e tomamos os termos desse quadro sem distinção de sexo, com exceção daqueles que explicitam essa oposição.

173 Marcos de Miranda Ramires | Boaventura Walua Xanon

Em G±1, também, ocorre esta “interferência entre o diametralismo digital [...] e a estrutura analógico-escalar [...], da oposição próximo/ distante, de disposição concêntrica” (Viveiros de Castro 1993: 165) que permite consanguinizar cruzados, operando a uma tripartição do vocabulário de parentesco a’uwẽ em consanguíneos paralelos, consanguíneos cruzados (cognatos cruzados) e afins. Entre os cruzados de 2º em diante, encontram-se indivíduos ora classificados como afins, ora como consanguíneos, interferindo aí as relações pessoais entre Ego e Alter. Em G±2, o sistema neutraliza totalmente a oposição consanguíneo/afim, diferenciando o sexo de Alter apenas em G–2. Vimos que uma rígida analogia entre as distinções paralelo/cruzado e consanguíneos/afim, bem como a redução global da terminologia a uma oposição dual sociocentrada não se sustenta porque a dinâmica matrimonial Xavante é organizada por uma codificação egocentrada do espaço social.

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176 Parente de Onça: uma revisão crítica da análise lévi-straussiana sobre termos de parentesco Macro-Jê e a mitologia do roubo do fogo da onça

Guilherme Falleiros Centro de Estudos Ameríndios (CEstA - USP)

Introdução O tema do desaninhador de pássaros, coligado ao roubo do fogo da onça e, assim, à demarcação da humanidade, enquanto entidade separada da animalidade pela técnica culinária, foi o assunto fundamental de O Cru e o Cozido, livro primeiro da série das Mitológicas de Claude Lévi- Strauss e um dos pontos-chave da etnologia ameríndia do último quarto de século, pelo menos, especialmente em se tratando das relações entre predação e perspectivismo ameríndio. A diferenciação entre quem se come e com quem se come - e quem jamais se come, como a onça -, discutindo diferenças entre afinização e filiação potenciais, marcou teses sobre o aparentamento ameríndio polarizadas por renomados antropólogos lévi-straussianos brasileiros, como Eduardo Viveiros de Castro (2002) e Carlos Fausto (2008). Recentemente, foi proposta uma visão sobre o tema que coloca essas duas potências de parentesco como eixos complementares (Kelmer 2018). A proposta deste texto é retomar o tema, privilegiando a perspectiva A’uwẽ-Xavante – ausente na referida obra de Lévi-Strauss – que, apenas, reforça a crítica da leitura de Lévi-Strauss dos mitos Jê Centrais e Setentrionais do roubo do fogo da onça. Argumenta-se que, a partir da própria série mitológica apresentada pelo autor, à qual as versões a’uwẽ-xavante se somam, já não faria sentido correlacionar a onça simplesmente à potencial posição de “cunhado” da humanidade.

*

Existem várias versões da história do roubo do fogo da onça e contarei uma que ouvi em campo, acrescentando elementos de outras

177 Guilherme Falleiros versões que julgo importantes. Esta versão me foi contada por Tiuré Tsadzéiró, meu sobrinho1 adotivo (à moda a’uwẽ-Xavante) numa das minhas primeiras estadias na aldeia a’uwẽ-xavante Abelhinha (Terra Indígena de Sangradouro). Esses momentos primeiros da familiarização parecem ser valorizados pelos A’uwẽ-Xavante para a contação de histórias dos primórdios. Voltávamos de bicicleta da aldeia de Sangradouro, num fim de tarde, não demoraria para escurecer e era preciso nos apressarmos porque, segundo Tiuré, havia muitas onças naquelas redondezas. Assim, ele resolveu me contar a história da onça – o que faria em língua portuguesa, apresentando alguns termos em a’uwẽ mreme (“língua de gente”, língua A’uwẽ-Xavante). Dois cunhados – o datsa’omo (ZH, FBDH, MZDH e DH, BDH etc. ou, simplificando, genro e esposo da irmã) e o ai’ãri (WB etc., ou, simplificando, irmão da esposa) foram buscar ovos de arara, ’rada. O ai’repudu (termo etário em referência a meninos que ainda não entraram na Casa dos Adolescentes, onde passarão alguns anos, processo necessário para que os rapazes possam se casar), mais novo que seu itsa’omo, subiu no penhasco onde estava o ninho de arara, mas, em vez de jogar os ovos para seu parceiro, jogou uma pedra branca. O que estava lá em baixo ficou com raiva e foi embora, deixando o outro preso ao retirar um aparato que servia como escada. Chegando em casa, disse que tinha perdido seu cunhado de vista. O ai’repudu ficou muito tempo no penhasco e passou muita fome até que hu (onça) apareceu. Onça tinha forma humana naquela época. Onça o salvou de lá, levou-o pra sua toca, deu-lhe de comer e ele ficou

1 Utilizo o itálico para termos nativos a’uwẽ-xavante bem como para o uso particular que fazem da língua portuguesa. Geralmente os A’uwẽ-Xavante com quem mantive contato mais íntimo (da terra indígena de Sangradouro e da Aldeia Belém na terra indígena de Pimentel Barbosa) usam o termo “sobrinho” da língua portuguesa em referência a um dos casos cobertos pelos termos da’ra (quando em referência a pes- soas masculinas) e aibö, cujos significados englobam - conformeo sistema anglo-sa- xão de notação das posições genealógicas - as posições de S, BS, FBSS, MBDS etc., considerando-se que atua entre eles o “princípio da unidade do grupo de germanos” (Radcliffe-Brown 1952) ainda que afetado por uma lógica de “conjuntos nebulosos” (“fuzzy sets”), nos quais ser membro não é um estado absoluto mas uma questão de grau (Seeger 1989: 191-208) (Falleiros 2012). Deste modo, o termo sobrinho é utilizado em referência a BS, FBSS etc., especialmente em caso de maior proximidade pessoal. Resumidamente, em língua portuguesa, dado o controle de equivocação ora esboçado, o termo faz referência a sobrinho por linha paterna. A linha paterna determina a per- tença a uma das metades exogâmicas a’uwẽ-xavante.

178 Parente de Onça: uma revisão crítica da análise lévi-straussiana sobre termos de parentesco... muito grande e forte. Antes do garoto ir embora de volta à aldeia, onça fez-lhe um cesto cheio de carne, semelhante à adabatsa, disse Tiuré (adabatsa é a “comida da noiva”, cesto grande com carne moqueada que o noivo entrega ao padrinho da futura esposa, o danho’rebdzu’wa, em geral um MB etc., ou, resumindo, “irmão da mãe”, isto é, um não-afim do noivo) para que ele levasse consigo. O heroi tomou o rumo de casa com o cesto carregado e, chegando na beira do rio, encontrou uma de suas irmãs, mas não se apresentou. Imitou o pio de um pássaro, mas não conseguiu chamar a atenção da mesma. Quebrou um graveto e enfim fez com que ela o visse. Chamou-a e lhe disse que tinha muita carne. Sua mãe veio encontrá-lo e todos regressaram ao lar. No caminho, o ai’repudu encontrou-se com a irmã casada e perguntou-lhe pelo marido. Ela respondeu que ele estava em casa. Chegando lá, o heroi arrastou seu cunhado para fora de casa com todas as suas posses, de modo que este passasse muita vergonha. Acontece que a onça era dona do fogo e foi assim que conseguiu assar as carnes de caça que tinha lhe dado, mas lhe disse que não contasse este segredo para ninguém. Mas os A’uwẽ-Xavante descobriram o segredo graças a uma brasa que restara dentro do buraco de um crânio de caça. Ávidos por obterem o fogo, os homens se organizaram em fila para roubá-lo e se transformaram em animais velozes: “eu vou ser o veado” (podzé), “eu vou ser a anta” (uhödö) “eu vou ser a capivara” (ubdö), “eu vou ser a andorinha” (buru’õno). Chegando à toca da onça, o veado tomou a brasa, correu e passou para a anta, que correu e jogou de volta para o veado, que correu outra vez e passou para a capivara, mas a capivara caiu no rio e quase deixou a brasa molhar (nesse momento, Tiuré me disse que A’uwẽ-Xavante não come carne de capivara...), então veio a andorinha e salvou o dia e a brasa, levando-a para a aldeia. Foi assim que os A’uwẽ-Xavante adquiriram o fogo. O jovem narrador acrescentou que “isso tudo é verdade”. “Os católicos dizem que é só imaginação”. Entretanto, “isso é verdade na nossa vida, o que os waradzu [estrangeiro, “branco”, não-indígena] dizem é verdade na vida deles”. Um par de dias depois, eu colheria complementos da história com Marciano Were’é, meu próprio itsa’omo (termo possessivo de primeira pessoa para datsa’omo, marido da “minha” filha, irmã etc.) adotivo. Ele acrescentou que as onças eram um casal de avô e avó (da’rada, FF, MF, FFB, MFB, MF, MM, MMZ etc.) do ai’repudu, mas sem filhos (da’ra, S,

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Z). Na hora em que foi resgatado pelo avô, a avó estava em casa (na toca). Were’é acrescentou também que onça pediu que o menino lhe jogasse três filhotes de arara (que comeu) antes de ajudá-lo a sair da gruta, onde se alojara no penhasco usando um longo pedaço de madeira. Outra pessoa me aconselhou a perguntar mais detalhes para Adão Top’tiro, meu primeiro pai adotivo a’uwẽ-Xavante e homem mais idoso da aldeia: “a gente sempre procura os velhos”. Seguindo este conselho, conversei com Adão, que não acrescentou nada além do que já havia dito para Fernando Vianna (2001: Apêndice), que registrou seu depoimento traduzido por seus filhos, no qual o velho associa o surgimento da corrida de toras ao roubo do fogo da onça. Adão não lhe conta a primeira metade da narrativa – a do desaninhador de pássaros – mas narra o roubo do fogo como uma corrida de revezamento de tora, afirmando que a toca de onça, de onde foi roubado o fogo, ficava no jatobá. O jatobá também faz parte de uma das versões da origem dos primeiros Po’redza’ono e Ö’wawẽ (metades exogâmicas a’uwẽ-xavante): conforme essa história, que ouvi de Paulo César na Aldeia Belém (Pimentel Barbosa), as primeiras mulheres de cada metade teriam sido criadas de paus da árvore “cruzeiro do sul” – ’wamarĩ, o pau pacificador e propiciador de sonhos –, mas esta terceira árvore, um pé de jatobá, estava lá entre elas. Entre os dois troncos de origem das duas metades exogâmicas a’uwẽ-xavante havia, pois, um terceiro tronco, de jatobá. Uma espécie de terceiro incluído que remete ao que Maybury-Lewis (1984 [1967]) chamou de terceiro “clã”, que alguns dizem ter origem estrangeira (Karajá) e outros dizem ser apenas uma linhagem (linha paterna), a misteriosa Topdató (ou Tob’ratató), à qual pertenceria o Ai’utémanhari’wa (palhaço ritual, “fazedor de bebês” ou “aquele que age como bebê”), que é o datede’wa (dono, guardião, oficiante) do antigo ritual de nominação feminina, chamado Abadzi’rãihidiba, o qual teria sido abandonado. Um abandono do qual, contudo, não se pode ter muita certeza. Em Sangradouro, por exemplo, teriam sido praticadas pelo menos alguma das partes do ritual, como a Festa da Onça, segundo me disseram. De todo modo, a versão de Top’tiro trata do surgimento de uma das técnicas do corpo coletivo mais importantes para os A’uwẽ-Xavante (senão para os Jê em geral) – a corrida de toras. Ainda, sua narrativa explicita não só o roubo do fogo: ao cabo, fala de seu estabelecimento no warã e a ritualização de sua distribuição por todas as casas, do que viria o domínio da técnica de sua produção, um saber fazer. “Deixaram [o fogo] no warã e depois fizeram a música para cantar em cada casa.

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Antes disso, não tínhamos fogueira, por isso, ficávamos no escuro e comíamos wedepo’re (orelha-de-pau) e outras raízes que não precisavam assar. Depois de tudo isso, agora temos fogueira em cada casa. E depois, a gente mesmo faz fogueira.” (Vianna 2001, “Apêndice”: 24). A versão do velho Jerônimo, dessa história, contada por Giaccaria e Heide (1975) e analisada por Medeiros (1990) revela outros elementos: a afeição inicial de onça pelo rapaz, que não só lhe dá de comer como lhe dá de beber (o que ele faz praticamente secando um riacho). Tal afeição se opõe às hostis ameaças da esposa de onça, que intentava devorá-lo. Ele se livra de sua atacante introduzindo uma “varinha” em sua boca – a partir do que ela (que era tão onça quanto humana, assim como seu marido, segundo Were’é) se torna padi (tamanduá).2 Segundo esta versão, o garoto acaba sendo convencido pelos adultos a contar-lhes o segredo da carne de queixada assada que trouxera e, tendo o roubo sido bem sucedido, onça (que estava dormindo e só acordaria depois de ter perdido o fogo) declarou guerra ao gênero humano, tornando-se definitivamente um animal feroz. Existem, certamente, outras versões a’uwẽ-xavante deste mito, com detalhes diversos (Sereburã et al. 1998; Fernandes 2005), mas sem muitas discordâncias a respeito do que pretendo argumentar. Alguns pontos chamam atenção a respeito do lugar da proto- onça – que ainda era gente – diante do aparentamento e da humanidade a’uwẽ-Xavante. Primeiro, a associação feita por Tiuré do cesto de carne moqueada (dado pela onça ao ai’repudu) à adabatsa – que não aparece em nenhuma das outras versões. Segundo, o fato do casal onça ser um casal de avós (sem filhos) do ai’repudu, o que indica uma peculiar forma de adoção. E, terceiro, a referência ao jatobá. Também presto atenção ao fato de que a aquisição do fogo pelos A’uwẽ-Xavante não envolve a mera captura, mas um saber fazer que, pelo que tudo indica, a onça não tinha – já que, ao ser roubada, não conseguiu mais reproduzir o fogo, o que está em conformidade com o relato de Top’tiro mencionado

2 Animal que me foi relacionado por algumas falas a’uwẽ-xavante ao excesso de se- xualidade e preguiça e aqui aparece como oriundo de um excesso mal-sucedido de agressividade predatória. Segundo a versão dos narradores de Pimentel Barbosa, o garoto introduziu uma flecha de tucum – feita para ele pelo avô para que atacasse a avó malvada – na boca de sua agressora, flecha que se tornaria a língua do tamanduá comedor de formigas (Sereburã et al. 1998: 56). Convém notar que Lévi-Strauss (2004: 224-226 [1964]) explora a relação entre onça e tamanduá na mitologia sul-americana como uma forma de inversão, o que faz todo o sentido para o caso a’uwẽ-xavante.

181 Guilherme Falleiros por Vianna ou a análise de Medeiros (1990: 148-151), assim como com outras análises do roubo do fogo da onça (cf. Turner 2009, 2017). Por que Tiuré fez a associação entre o cesto de carne levado pelo ai’repudu e a adabatsa? Seria alguma referência ao tamanho do cesto, à quantidade de carne? Seria uma maneira didática de facilitar minha compreensão e visualização? Cestos cheios de carne moqueada, semelhantes ao da adabatsa, são usados também em outras cerimônias a’uwẽ-xavante, como depois das caçadas chamadas de manadö, para presentear com carne os novos oficiantes dos cargosPahöri’wa e Tébe e as famílias destes novos líderes, chefes de grupo. Mas Tiuré não fez referência a isso. A ideia de que o ai’repudu estivesse trazendo uma comida da noiva para a aldeia sem que ele, contudo, se casasse - sendo que nem teria idade para isto -, soa estranha, inclusive porque a primeira pessoa com quem se encontrara ao chegar é sua irmã, a segunda, sua mãe e, a terceira, sua irmã casada com o traidor. Seria isto uma leve sugestão de incesto? Ou, ao contrário, uma sugestão de que o ai’repudu teria se transformado em afim por ter sido adotado pela onça? Um afim impossível, não casável. A questão desta afinidade nãoé tão simples assim, afinal, como se sabe desde as pesquisas de Aracy Lopes da Silva, a comida da noiva é dada, na verdade, para alguém da mesma metade exogâmica do noivo, o danho’rebdzu’wa da noiva (Lopes da Silva 1986 [1980]). E o ai’repudu, apesar do cuidado ao chegar em casa, tentando chamar a atenção de sua irmã sem assustá-la, é reconhecido prontamente por ela, tratando-o imediatamente como irmão. Talvez essa situação indique menos uma relação de afinidade e mais um eixo potencial entre afinidade e consanguinidade, remetendo à cognação. Atente-se para a condição de avô e avó das onças. Ela parece fundamental, se comparada à relação estabelecida entre garoto e onça em outros mitos Jê. Como mencionado, em a’uwẽ mreme, avô e avó são da’rada (‘rada quer dizer “primeiro”, “o que vem antes” termo homônimo ao termo para arara), é um termo de parentesco de ordem cognática, sendo um dos elementos de cognação de uma casa a’uwẽ-xavante constituída pelo casamento entre linhagens de metades exogâmicas diferentes.

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Em O Cru e o Cozido (2004 [1964]), Lévi-Strauss toma o conjunto de mitos Jê do desaninhador de pássaros e do roubo do fogo da onça como um importante grupo de transformação. O campo de estudos que sua obra (e mesmo este curto conjunto de mitos) suscita é muito vasto e desejo aplicar-me aqui a um pequeno aspecto do grupo de transformação em questão: a relação de parentesco entre humanidade e onça. Lévi-Strauss não teve acesso à mitologia A’uwẽ-Xavante na concepção de sua obra, sendo que o mais próximo de que chegou deles foi pelos Xerente. Vale lembrar a perspicaz percepção deste autor (1975 [1958]: 146-147) a respeito dos grupos de praça Xerente como um sistema agâmico de “troca generalizada”, identificando que, conforme o mito, tais grupos de praça teriam sido, no passado, classes de idade ciclicamente organizadas. Ou seja, os grupos de praça Xerente seriam presentificações sincrônicas do que no mito eram relações diacrônicas entre classes de idade: relações que ocorrem de fato entre os A’uwẽ- Xavante (Maybury-Lewis 1984 [1967], Lopes da Silva 1986 [1980]). O que colocaria os A’uwẽ-Xavante como referência pretérita dos Xerente (um dos grupos de praça, inclusive, teria o mesmo nome que uma das classes de idade a’uwẽ-Xavante: Anarowa, fato que era desconhecido pela Antropologia na época do texto de Lévi-Strauss). Mas aqui interessa menos os mitos Xerentes do que todo o conjunto dos mitos Jê Centrais e Setentrionais do roubo do fogo da onça analisado por Lévi-Strauss. Este conjunto inclui seis variações: Kayapó-Gorotire, Kayapó- Kubenkranken, Apinajé , Timbira Oriental, Krahô e Xerente; além de uma comparação com uma narrativa assemelhada, vinda dos Ofayé- Xavante (cuja homonímia em relação aos A’uwẽ-Xavante é marca da história colonial, não havendo qualquer identificação de contato ou mesmo proximidade linguística entre os dois povos, ainda que os Ofayé sejam incluídos no tronco linguístico Macro-Jê). O ponto chave aqui é a relação marcada, em todos os seis mitos (bem menos no Ofayé), entre garoto e onça como uma relação de filiação adotiva, em contraste com a relação de afinidade entre os desaninhadores de araras. Na primeira variação (Kayapó-Gorotire), “M7”,3 os “índios” desaninhadores seriam “cunhados” entre si. Onça, que não tinha “filhos”, resolve adotar o mais jovem, que salvara do ninho das araras.

3 Lévi-Strauss (2004 [1964]) numera os mitos que apresenta por ordem de aparição na obra, para facilitar a referência.

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Tratamento que recebe protesto de sua “esposa”, “que era uma índia” e chamou o menino de “filho alheio” ou “abandonado”. Note-se, também, que o fogo da onça queimava num tronco de jatobá (Lévi-Strauss 2004: 91-92 [1964] – grifo meu). Na segunda variação (Kayapó-Kubenkranken), “M8”, os desaninhadores eram “cunhados” (o mais jovem, que subiu no rochedo, era “irmão da esposa” do outro). Onça, também, adota aquele que resgata do rochedo, o que não recebe aprovação de sua “esposa” (cuja espécie não é apresentada), chamando o menino de “filho de outro” (Lévi-Strauss, 2004: 93 [1964]). Na terceira variação (Apinajé), “M9”, os desaninhadores também são “cunhados” e a onça adota o garoto que salva do ninho das araras, por não ter “filhos”, tornando-se “pai” do menino. Sua “esposa”, contudo, assusta-o “arreganhando os dentes”, como faria a “esposa” da onça na maioria das versões a’uwẽ-xavante. Aqui também a brasa estaria pegando fogo num tronco de jatobá (Lévi-Strauss 2004: 94-95 – [1964] – grifo meu). Na quarta variação (Timbira Oriental), “M10”, os desaninhadores também são “cunhados” humanos e onça se torna “pai adotivo” daquele que salvou. A “esposa” de onça se irrita com o jovem por este fazer barulho ao comer (“porque está grávida”) e, contra sua fúria, o herói a ataca com as armas que recebeu do “pai adotivo”, ferindo-a “na pata” (Lévi-Strauss 2004: 96-97 [1964] – grifo meu). Na quinta variação (Krahô), “M11”, os humanos são “cunhados” e onça adota o mais novo, que foi abandonado no rochedo, como “sobrinho” (Lévi-Strauss 2004 [1964]: 107), sendo que sua “esposa” se diverte assustando o menino e ameaçando comê-lo (Lévi-Strauss 2004: 97 [1964]). Na sexta variação (Xerente) “M12”, os homens também são “cunhados” e a onça resgata o mais novo, que também trata como “filho” adotivo, conforme atesta o autor (Lévi-Strauss 2004 [1964]: 107). A “mulher do jaguar” censura o “marido” por ter trazido o menino, e “assusta-o com seus rugidos” (Lévi-Strauss 2004: 98 [1964] – grifo meu) – seria interessante comparar outros detalhes desta versão Xerente com as versões a’uwẽ-xavante dadas várias semelhanças entre elas, mas não cabe aqui fazê-lo. Enfim, Lévi-Strauss busca uma sétima variação, bastante distinta, para lhe ajudar a demarcar o contraste da relação de parentesco entre os “cunhados” desaninhadores (presentes somente nas outras variações,

184 Parente de Onça: uma revisão crítica da análise lévi-straussiana sobre termos de parentesco... mas de forma bem consistente: o mais velho, que foi embora, sendo o “marido da irmã” e o mais novo o “irmão da esposa”) e onça. No mito Ofayé-Xavante, “M14”, uma mulher humana deseja ser “filha do onça” mas este acaba se tornando seu “marido” (Lévi-Strauss 2004: 108 [1964] – grifos meus). Lévi-Strauss conclui:

O mito ofaié poderia sem dúvida intitular-se “O jaguar entre os homens” e não, como nos mitos Jê, “O homem entre os jaguares”. Apesar dessa inversão, os Ofaié e os Jê são igualmente explícitos [sic]: a mulher do jaguar é humana (cf. M7: “a mulher do jaguar, que era uma índia...”) e, não obstante, os homens tem mais motivos para ter medo dela do que da fera. […] [O]s humanos preferem matá-la a eliminar o jaguar. […] Para que tudo o que o homem atualmente possui (e que o jaguar não possui mais) pudesse lhe vir do jaguar (que o possuía antes, ao passo que o homem não), é preciso, portanto, que surja entre eles o meio de uma relação: esse é o papel da mulher (humana) do jaguar. […] Compreende- se, com efeito, que todos os mitos desse grupo coloquem em cena não um, mas dois pares de cunhados: primeiramente, o desaninhador de pássaros (que é um doador de mulheres) e o marido da irmã ao qual ele nega (intencionalmente ou não) os filhotes [de arara]; em seguida, esse mesmo desaninhador de pássaros (mas agindo como embaixador da espécie humana) e o jaguar a quem os homens deram uma mulher e que, em troca, cede o fogo e o alimento cozido à humanidade (Lévi- Strauss 2004: 109-118 [1964] – parágrafos omitidos, grifos meus).

A conclusão de Lévi-Strauss a respeito da humanidade da “esposa” de onça parece coerente com o papel que o autor supõe na mulher como “meio de uma relação”, e também com a importância que o autor dá à troca em parte de sua obra: a captura do fogo é pensada como troca já que a onça deveria ter recebido uma mulher para que pudesse oferecer “em troca” o fogo e o alimento cozido. Todavia, tal conclusão é no mínimo exagerada se levarmos em conta os dados que o próprio autor apresenta a respeito dos mitos Jê Centrais e Setentrionais. Na primeira variação, “M7”, tal mulher era uma “índia”. Mas nas demais variações (escuso o acréscimo Ofayé) ora sua espécie não aparece marcada (“M8”, que, como o anterior, é Kayapó), ora ela aparece sugerida por suas características cabalmente ferais: em “M9” ela arreganha os dentes; em “M10” ela é ferida na pata; em “M11” ela ameaça comer o “sobrinho”; e em “M12” ela assusta o adotado com rugidos. A maioria dessas versões vai ao encontro, portanto, da idéia a’uwẽ-xavante de que a esposa de onça seria também uma onça (que tentava devorar o neto), ao menos em potência. Ela teria, como o homem onça, características

185 Guilherme Falleiros tanto humanas quanto de animal feroz (no caso dele, a devoração dos filhotes de arara parece uma antecipação de sua ferocidade futura). Mas suas animalizações se tornam fixadas somente a partir do roubo do fogo. Desse modo, a hipótese de que onça seja um cunhado da humanidade nos referidos mitos (exceto o Ofayé) precisa ser por demais nuançada (quiçá abandonada), de modo que a afinidade não seja o (único) foco da relação. Suponho que a tentativa de Lévi-Strauss em ressaltar o elemento de aliança por afinidade e troca na relação entre humanos e onças tenha algum sentido, já que a natureza da esposa de onça é dúbia, se tomarmos o conjunto das variações. Mas esta é só metade do sentido, já que não menos dúbia é a natureza do homem-onça. Não deve ser negligenciado o fato de que a esposa do jaguar também é, senão uma onça, uma fera – indício de sua futura não-humanidade. E, principalmente, não deve ser negligenciado o elemento mais explícito de todas as versões Jê Centrais e Setentrionais apresentadas: o da adoção. Adoção que, contudo, não transforma o herói do mito em fera, pois este faz a coisa certa, retorna aos humanos e lhes revela (ainda que a contra- gosto) seus segredos. Para além (e aquém) da aliança, esses mitos são marcados pelo caráter ambivalente do aparentamento mítico. Perante as variações Jê apresentadas por Lévi-Strauss, as versões a’uwẽ-xavante marcam uma diferença notável, como que ligando as demais versões Jê à versão Ofayé: onça, sem filhos, passa a tratar o jovem como neto - aliás, este passa a tratá-la, imediatamente, como avô: na versão dos velhos de Pimentel Barbosa, ainda em cima do penhasco, o ai’repudu brada pelo auxílio de onça, ao avistá-lo, chamando-a de “meu avô” (Sereburã et al. 1998: 53)4. Retome-se a relação de parentesco entre avós e netos a’uwẽ-xavante: ela engloba tanto membros da mesma metade exogâmica quanto da outra metade. Neste sentido, a relação entre avós e netos é uma relação que mistura agnação e cognação atravessada pela aliança.

4 Ainda que Lévi-Strauss analise outro mito (“M56”) do povo Ofayé em que um preá consegue roubar o fogo da onça chamando-a de “vó” (Lévi-Strauss 2004: 156-159 [1964]), o autor não reforça esse aspecto do parentesco em sua análise. Reconhece, sim, o aspecto adotivo da relação entre humanos e “esposa” da onça nos mitos Jê Cen- trais e Setentrionais, mas para abordar o ataque que o garoto faz à ela como um incesto invertido (Lévi-Strauss 2004: 339 [1964]).

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Por conta disto, gostaria de sugerir que a associação a’uwẽ-xavante de onça ao avô - um avô perdido ao declarar guerra à humanidade – trate exatamente de uma condição de parentesco potencial na qual tanto afinidade quanto filiação sejam importantes. Não se trata somente de afinidade potencial – caso haja alguma sugestão de casamento potencial entre a onça e a humanidade, quiçá por intermédio de seu neto adotivo, que levou adabatsa para a aldeia – mas também de filiação potencial, cognação potencial... Enfim, parentesco potencial com este declarado inimigo da humanidade. Um aparentamento que, se é potencial, o é por ser antepassado, já foi. Se comparada à relação de afinidade efetiva entre os dois cunhados desaninhadores de araras, o aparentamento entre onça e o ai’repudu, cujos traços mais explícitos são a filiação (se o neto puder ser considerado como um filho de segundo grau) e a cognação (característica da relação entre netos e avós) tem resultados fundantes para a gentificação: é a partir desta relação que os A’uwẽ-Xavante se tornaram capazes de produzir o fogo. Certamente, a traição do ai’ãri (marido da irmã - uma relação de afinidade assimétrica)5 é fundamental para que o ai’repudu entre em contato com o jaguar – não menos fundamental que a carne assada dada por este –, dá aos A’uwẽ-Xavante o fogo que passaria a marcar sua condição de humanidade. O lugar da potência concedido à onça pode ser associado à sua condição de avô também num outro sentido. Os velhos a’uwẽ-xavante são aqueles mais próximos da potência cósmica e da paragem mito-original, daquilo que é anterior, primeiro, da’rada. Como me disseram uma vez na Aldeia Belém sobre um velho muito idoso, ele era praticamente um antepassado, alguém das origens. Tratar a onça como avô, portanto, parece ser uma maneira de conceder-lhe um poder que vem com a idade e se concretiza com a morte ou, melhor, a imortalidade (Graham 1990), enfatizando o valor que Laura Graham percebe na ancestralidade para os A’uwẽ-Xavante. A noção de avô a’uwẽ-xavante, em seu sentido cosmopolítico, aponta para uma anterioridade, uma primeiridade presente na palavra da’rada, que marca a noção de origem a’uwẽ-Xavante. Como mistura de parentesco (já que engloba agnação e cognação), tem uma forte carga de diferenciação indiferenciante, como o “contínuo heterogêneo” (Viveiros

5 Afinidade efetiva assimétrica, ao contrário daquela potencial e simétrica (Viveiros de Castro 2002; Fausto 2008; Kelmer 2018).

187 Guilherme Falleiros de Castro 2006: 324) do mito, fonte da potência. Assim, se compreende tanto o poder dos velhos quanto o poder da onça. Uma potência original. Nesse sentido, a relação com a onça se assemelha à relação com os Tsa’re’wa que também têm uma relação de avô e neto com a linha paterna que se tornou Tsa’re’watede’wa, segundo sua mitologia. Considerando- se que avô e origem são noções muito próximas, e se da onça vem a origem do fogo, note-se que dos Tsa’re’wa vem a origem de grande parte das técnicas do corpo rituais capturadas pelos a’uwẽ-Xavante, segundo afirmam. Assim, em campo, querendo saber mais sobre os Tsa’re’wa, ou Wadzapari’wa (como devem ser respeitosamente chamados), indicaram-me perguntar mais sobre isso a Vitório, genro de Adão Top’tiro. Os dois, juntos, rememoraram e me contaram, então, a história dos Wadzapari’wa, com detalhes ausentes tanto das histórias de origem dos Tsa’re’wa quanto daquelas em que se envolveram em guerras com ou contra os A’uwẽ-Xavante (Sereburã et al.1998; Giaccaria & Heide 1975; Fernandes 2005). A diferença principal era aquela que tratava de sua captura pacífica e da transformação de um deles emavô . Foi iniciativa de um dos antepassados de Vitório estabelecer contato pacífico com os Wadzapari’wa, - pois os A’uwẽ-Xavante já haviam guerreado contra eles, como conta Jerônimo (Giaccaria & Heide 1975). O parente de Vitório os contatou e convidou para se apresentarem na aldeia. Os Wadzapari’wa começaram a chegar, então, vindos do mato. Enquanto contava esta história ao lado de Vitório, Top’tiro apontava para as margens da aldeia Abelhinha, opostas ao semicírculo de casas, mostrando de onde eles vinham. Os Wadzapari’wa chegaram pintados e enfeitados, como os A’uwẽ-Xavante, sentando-se no pátio da aldeia em semicírculo oposto ao semicírculo dos homens a’uwẽ-xavante, que se sentavam seguindo a ordem de suas casas, de modo que, congregados, os dois grupos formavam um grande círculo no warã. (Note-se que esta formação se replica em outros momentos rituais a’uwẽ-xavante, como nas danças entre classes de idade patrocinadora e patrocinada: o grupo dos patrocinados formando um arco que se completa em roda com o arco do grupo dos patrocinadores). Então, no momento do encontro circular e pacífico dos Wadzapari’wa com os a’uwẽ, cada homem a’uwẽ se levantou e pegou pelo braço – mrami – um homem wadzapari’wa e o conduziu para sua residência. Pode-se crer, contudo, que estes homens que escolheram cada qual um Wadzapari’wa para levar para suas casas e familiarizarem-se com eles tornavam-se seus donos, datede’wa: há

188 Parente de Onça: uma revisão crítica da análise lévi-straussiana sobre termos de parentesco... um relato de Jerônimo que fala a respeito de um “escravo” tsa’re’wa que ajudou seu dono numa guerra contra os Tsi’retede’wa (Giaccaria & Heide 1975), relato semelhante à continuação da história que Vitório e Adão me contavam. Entretanto, antes que tal guerra despontasse, todos os Wadzapari’wa – menos um – deixaram a aldeia, porque, como não precisavam dormir à noite, tiveram a chance de escapar de seus captores que, cansados, pegavam no sono. Somente um deles escolheu ficar, aquele que se tornaria avô da família de Vitório. Infelizmente, este morreria sem deixar filhos, vítima de um feitiço. Ainda assim, aquela linha paterna passou a ser neta e dona dos Tsa’re’wa: Tsa’re’watede’wa. O que seria uma espécie de “predação familiarizante” - conforme a qual um agente exterior ao parentesco é transformado em “filho adotivo”, isto é, “uma figura do domínio, da relação assimétrica entre o dono-mestre (que pode ser também um pai, um chefe ou mesmo um patrão) e seus filhos-xerimbabos.” (Fausto 2008: 351) – mas trocando o termo “filho” por “avô”. Entretanto, se os Tsa’re’wa são alvo de imitação dos A’uwẽ-Xavante, sobre a onça já desumanizada costuma-se dizer o contrário. Ouvi dos A’uwẽ-Xavante na aldeia Abelhinha que a onça imita os a’uwẽ. Seria ela, assim, capaz de assumir uma perspectiva humana através desta imitação? Argumentei (Falleiros 2012, 2013) que a imitação caracteriza a relação de filiação adotiva entredanhimidzama (“seguidor”, termo que engloba tanto estrangeiros adotados, “cativos”, quanto animais domésticos) e a’uwẽ (gente) e esta relação parece sempre marcada pelo caráter de potencialidade, de devir, que também é uma espécie de retorno à origem. Desse modo, talvez haja um perigoso potencial humano na onça. Porque se onça não tinha sido capaz da reprodutibilidade técnica do fogo, será que imitando os a’uwẽ ela poderia vir a ser? O que não é improvável, mas segue duvidoso. Pois a reprodução do conhecimento do fogo teve como premissa a distribuição deste conhecimento, como visto no relato explicativo do velho Top’tiro. Mas onça não se mostra capaz de dividir seu conhecimento como fez com o ai’repudu, pois não suportou a coletivização de seu segredo:

Você vai levar essa carne assada. Se alguém perguntar, você diz que eu assei na pedra quente. Você não pode contar o meu segredo. Não pode falar que eu tenho o fogo... Se você revelar o meu segredo, eu não vou ter mais dó de ninguém...Vou caçar e comer as pessoas cruas (Sereburã et al. 2008: 57).

189 Guilherme Falleiros

Tornar-se onça é ser contra o coletivo, contra a coletivização, contra a humanidade. Antes de deixar de ser humano, onça era avô. Assim que recusa o bom comportamento da generosidade, a mesma pessoa torna-se inimiga da humanidade. Pois o mito fala do tempo, do que o passado foi e do que ele pode vir a ser - um futuro (do pretérito, de certa forma) quando o humano é a onça do humano. O que remete ao mundo waradzu, onde “o homem é o lobo do homem”, ou mesmo a um futuro onde não nos reste mais nada para queimar depois da última gota de combustível fóssil, como escreveu Max Weber em algum lugar. Enfim, identificar na obra de Claude Lévi-Strauss estas brechas em relação às suas próprias hipóteses não diminui sua importância para o estudo dos mitos, inclusive dos mitos a’uwẽ-xavante. Mas mantém a obra do mestre - cuja pessoa tornou-se imortal, ancestral, personagem mítico da disciplina antropológica - uma obra ainda viva, em constante devir, reveladora de questões atuais para a Antropologia.

Referências Falleiros, Guilherme. 2013. Vir a ser e não ser gente através da partici- pação etnográfica no Brasil Central.Universitas Humanística, n. 75, Bogotá, Pontificia Universidad Javeriana, p. 251-74. _____. 2012. Datsi’a’uwẽdzé – vir a ser e não ser gente no Brasil Central. Tese. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Univer- sidade de São Paulo. Fausto, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana, v. 14, n. 2, pp. 329-366. Fernandes, Estevão. 2005. Entre narrativas, estratégias e performances: incursões Xavantes à Funai. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Giaccaria, Bartolomeu; Heide, Adalberto. 1975. Jerônimo Xavante Con- ta. São Paulo: Editorial Dom Bosco. Graham, Laura. 1990. The always living: Discourse and the male lifecy- cle of the Xavante indians of Central Brazil. Ann Harbor: UMI. Lopes da Silva, Aracy. 1986 [1980]. Nomes e Amigos: da prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê, FFLCH/USP, São Paulo. Kelmer, João. 2018. Para Além do Parentesco: pais protetores e afins

190 Parente de Onça: uma revisão crítica da análise lévi-straussiana sobre termos de parentesco...

predadores na Amazônia indígena. Revista Habitus: Revista da Gra- duação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, pp. 75-92. Lévi-Strauss, Claude. 2004 [1964]. O cru e o cozido, Cosac e Naify, São Paulo. _____. 1975 [1958]. Antropologia Estrutural, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro. Maybury-Lewis, David. 1984 [1967]. A sociedade Xavante. Rio de Janei- ro: Francisco Alves Editora. Medeiros, Sérgio L. 1990. O dono dos sonhos – Um estudo das narrativas do índio Xavante Jerônimo Tsawe. Dissertação de Mestrado. Uni- versidade de São Paulo. Radcliffe-Brown, Alfred.1952. Structure and function in primitive soci- ety - Essays and Addresses. London: Cohen and West. Seeger, Anthony. 1989. Dualism: Fuzzy Thinking or Fuzzy Sets? In: May- bury-Lewis e Almagor (Orgs.). The attraction of opposites thought and society in the dualistic mode. Ann Harbor: The University of Michigan Press. Sereburã et. al. 1998. Wamreme Za’ra - Nossa palavra: mito e história do povo Xavante. São Paulo: Senac. Turner, Terence. 2017. The Fire of The Jaguar. Chicago: Hau Books. _____. 2009. The crisis of late structuralism. Perspectivism and ani- mism: rethinking culture, nature, spirit and bodiliness. Tipiti, n, 7 v. 1, p 3-42. Vianna, Fernando. 2001. A bola, os “brancos” e as toras: futebol para índios Xavantes. Programa de Pós-Graduação em Antropologia So- cial. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. Viveiros de Castro, Eduardo. 2006. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo. Universi- dade de São Paulo, n. 14/15. p. 319-338. _____. 2002. O problema da afinidade na Amazônia. In:A Inconstância da alma selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify.

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Porque o parentesco é sempre triádico

Marcela S. Coelho de Souza Departamento de Antropologia/Universidade de Brasília

Em homenagem a Vanessa Lea

1. Introdução: interdisciplinaridade e contradisciplina1 Tomo como ponto de partida para esta breve contribuição a natureza multidisciplinar da ocasião: não apenas a interface entre Antropologia e Linguística que minha reflexão diretamente evoca, mas a vocação e intenções próprias aos Encontros Macro-Jê, uma oportunidade única para o encontro de antropólogos, linguistas, historiadores, arqueólogos, historiadores, educadores e — sobretudo, como vou enfatizar — acadêmicos e intelectuais indígenas. Antes, pois, de entrar em meu assunto – o parentesco triádico – quero dizer uma ou duas coisas sobre o enquadramento disciplinar de nossos debates, e sobre o que deles escapa. Começando com a interdisciplinaridade. O tema que escolhi — o parentesco, visto a partir do problema dos “termos triádicos”, isto é, de um aspecto da terminologia — situa-se num campo que poderíamos qualificar como imediatamente interdisciplinar. As terminologias de parentesco, afinal, se apresentam aos antropólogos, em primeiro lugar, na forma de conjuntos lexicais (e creio que, para os linguistas que se ocupam de línguas indígenas, pelo menos esses conjuntos lexicais apareçam como marcados por especificidades culturais e sociais evidentes). Do ponto de vista da Antropologia, esses conjuntos são, entretanto, delimitados (na medida em que possam ser delimitados) por critérios extralinguísticos, e tomados como parte de objetos complexos, que costumávamos caracterizar como sistemas, de natureza socio- simbólica e irredutíveis ao plano da língua. O que quero dizer é que,

1 Este artigo é uma versão reelaborada da fala proferida como conferência de abertura do IX Encontro Macro-Jê. Agradeço aos organizadores do Encontro pelo convite; a Vanessa Lea, pela inspiração; a Eduardo Soares Nunes (que também refez meus dia- gramas) e Nicole Soares Pinto pelas leituras atentas e generosas, que permitiram preci- sar pontos importantes; e a Jamthô Kisêdjê, por motivos que ficarão óbvios.

193 Marcela S. Coelho de Souza mesmo enquanto terminologia, antes mesmo que quaisquer relações com sistemas de atitudes ou morfologias de grupo sejam avançadas, os vocabulários de parentesco são para os antropólogos um objeto distinto daquele que se oferece, sob a mesma rubrica, aos linguistas. Suponho que o mesmo seja verdadeiro, visto do outro lado da cerca disciplinar. Isso quereria dizer que tal objeto se encontra entre a Antropologia e a Linguística? Penso que, como acabei de dizer, não se trata tanto disso: antes, os vocabulários do parentesco estariam como que duplicados nos dois campos. Para complicar um pouco mais este quadro, vale lembrar que essas duas disciplinas nunca deixaram de entrelaçar-se e, para além disso, quanto a algumas das heranças que carregamos – a tradição levistraussiana, por exemplo – talvez se pudesse dizer mesmo que essa interlocução seja constitutiva. Meu exemplo não é aleatório: pois se Lévi- Strauss é frequentemente e imprecisamente (Maniglier 2003) tomado como tendo “importado” o método da Linguística Estrutural para a Antropologia, entre os estudiosos do parentesco foi dos que insistiu, e desde muito cedo, na heterogeneidade dos objetos constituídos como nomenclaturas de parentesco por nossas disciplinas.2 Estamos aqui ao mesmo tempo aquém e além, por assim dizer, da interdisciplinaridade: por um lado, o campo de problemas não é exatamente o mesmo; por lado, as fronteiras nem sempre estão onde pensáramos estar… Digo isso para manter uma certa distância de algumas interpretações possíveis das práticas e projetos interdisciplinares. Em primeiro lugar, a imagem de uma colaboração em torno de um determinado problema a solucionar, à qual cada disciplina emprestará sua perspectiva, jogando luz sobre uma parte de um objeto tomado como unitário, de modo que todas juntas possam iluminar o quadro “completo”. Pode parecer uma boa ideia, mas são poucas as vezes que isso acontece assim, já que cada disciplina traz para a conversação não apenas os conhecimentos que acumulou e os métodos próprios que desenvolveu, mas suas próprias perguntas — e as perguntas são o mais das vezes muito diferentes (isso corresponde ao aquém acima evocado). Em segundo lugar, o foco na

2 Quando Claude Lévi-Strauss (1958), formula, diante de uma plateia de linguistas e antropólogos, sua hipótese sobre (como argumentarei adiante) a natureza triádica de todo sistema de parentesco, e propõe fazer atravessar a Antropologia pelo “método” da Linguística Estrutural, isso não significa a adoção do método de uma disciplina por outra, mas a reconfiguração de ambos: o método importado, a disciplina que o impor- ta. Como diz Maniglier, “[…] Lévi-Strauss emprunte à la linguistique en même temps qu’il s’en distingue. Alors que pour cette dernière, la structure est un système de séries d’oppositions, pour Lévi-Strauss elle sera un «groupe de transformations»” (2003).

194 Porque o parentesco é sempre triádico interdisciplinaridade em si como projeto:3 pois essa focalização, que depende da evidenciação das fronteiras disciplinares, exige obscurecer as relações de “colonização” (mútua ou não) eventualmente preexistentes, nos termos das quais os pressupostos e os resultados de uma disciplina, seus meios e seus fins, acabam por ser reconfigurados pela outra para seus próprios fins, em termos de seus próprios meios (Riles 2004). (Isso corresponde ao além a que me referi acima). Não quero sugerir que tal colaboração seja sempre improfícua — pelo contrário, ela me parece mesmo imprescindível, e em particular quanto ao problema que me interessa aqui. Pois é claro que a heterogeneidade das perguntas não impede, por si mesma, a colaboração: como um diálogo em que não se compreende tudo o que o interlocutor “quer dizer”, mas mesmo parcialmente compreendidas suas “respostas” interpelam nossas próprias afirmações (ou, melhor ainda, nossa questão inicial).4 Mal entendidos produtivos, como se diz. Parece-me igualmente claro, no entanto, que para isso, para que a equivocação seja “controlada” (Viveiros de Castro 2004), ao menos duas condições devem ser preenchidas. Em primeiro lugar, o que talvez soe um tanto óbvio, deferência à expertise (ao modo como problemas, métodos e teorias conformam um conhecimento específico): que o objeto seja partilhado, mas não seja o mesmo para as diferentes disciplinas, significa que há nele uma parte necessariamente inacessível a cada uma das abordagens implicadas. Não se trata de um problema de capacitação: você pode até ser suficientemente educado em Antropologia como em Linguística, mas não é possível fundir essas diferentes capacidades, apenas alterná- las.5 Isso significa que não haja campo “comum”?

3 Este foco levanta o problema da antecipação de desenvolvimentos imprevisíveis que nasceriam da prática científica nos protocolos de avaliação e autoavaliação, assim como nos mecanismos de accountability da atividade científica perante a “sociedade”. Transformados em “resultados esperados”, estes desenvolvimentos acabam por subs- tituir os objetivos originais dessa atividade, numa espiral que se expressa, entre outras coisas, na doença produtivista que hoje asfixia a criatividade científica (ver Strathern 2004, 2006) 4 Marisol de la Cadena (2015) distingue, nesse sentido, o que se entende como “pes- quisa colaborativa” e o que ela chama sua co-laboração com os Turpos (pai e filho), da qual emerge seu livro Earth Beings. Ela enfatiza a heterogeneidade de objetivos entre os participantes — não apenas entre ela e os Turpos, mas também o que distinguia a motivação de pai e filho — e mostra como foi esta heterogeneidade (a diferença, e não o consenso) que a impulsionou além dos limites de suas assunções anteriores. 5 Um exemplo recente, no campo específico do parentesco indígena, que me parece re-

195 Marcela S. Coelho de Souza

Para escapar do tudo ou nada que enseja semelhante pergunta, talvez seja útil recorrer à noção de objetos-limite [boundary objecs]: “um objeto-limite sustenta diferentes significados em diferentes mundos sociais, e todavia é imbuído de significado comum suficiente para permitir sua tradução através desses mundos” (McSherry 2001: 69 apud Strathern 2004: 45 — tradução e ênfase minhas). E aqui se revela uma segunda condição, na contramão desta vez de qualquer deferência, pois se trata da proverbial traição que é condição de toda boa tradução: menos do que chegar a um consenso, do que se trata aqui é de criar, de “dar” e de “emprestar”, novos sentidos a nossas palavras. Reciprocamente, mas nem sempre com equivalência, como insiste uma famosa noção da Antropologia… Isso deve ser suficiente no que toca à interdisciplinaridade. A segunda coisa que quero dizer refere-se à transdisciplinaridade, como forma forte das práticas interdisciplinares — a isso quero contrapor o que venho chamando contra-disciplina (Coelho de Souza 2017). O conceito de transdisciplinaridade tem sido avançado no esforço de ir além de uma colaboração em que as disciplinas em si se mantenham intactas, reunidas em torno de um mesmo “objeto” ou “problema” de estudo, mas sem se “embaralharem”, para uma em que os respectivos pressupostos sejam deliberadamente colocados em cheque diante do imperativo de encontrar soluções para “problemas” relevantes para a “sociedade” (Nowotny et al. 2001). Um dos problemas é a maneira como essa internalização da “sociedade” na forma de seus “representantes” institucionais (e poderes econômicos e políticos) – na forma de sistemas de avaliação e de noções de accountability de efeitos muito contraditórios (para dizer o mínimo) — não contempla, o mais das vezes, as relações particulares que em diferentes áreas os cientistas entretêm com sujeitos envolvidos nos problemas que estudam (Strathern 2006). No caso da Antropologia, essas relações vêm sendo renovadas, e profundamente desafiadas, pela recente presença crescente na academia de sujeitos e conhecimentos que não provêm – e nem têm como destino último – o ambiente disciplinar da universidade: os antigos e supostos “objetos” da disciplina. O que chamo de contradisciplina é o efeito reconfigurador sobre as práticas disciplinares do seu atravessamento por esses sujeitos e conhecimentos que sempre estiveram menos “fora” da academia do que velar o interesse dessa colaboração, é o artigo de Lediane Feltze e Denny Moore (2019) sobre as terminologias tupi-mondé. Os autores, uma antropóloga e um linguista, man- tém suas respectivas contribuições claramente demarcadas no texto, ao mesmo tempo em que cada uma delas é claramente informada por sua mútua educação.

196 Porque o parentesco é sempre triádico perversamente (heteronomamente) “incluídos” nela. Seu “acolhimento” enquanto sujeitos (me refiro tanto às pessoas quanto aos saberes) implica a abertura para um futuro incerto, pois nada indica que as reconfigurações em jogo nos exercícios contradisciplinares impliquem uma fusão das perspectivas envolvidas. Minha aposta aqui será de que, se formos capazes, essa corrente contradisciplinar possa nos ajudar a avançar na compreensão de um pequeno (mas espinhoso) problema do parentesco, a saber, a existência de termos que desafiam a lógica desse campo tal constituído na história da Antropologia.

2. Termos triádicos: uma história e duas conversas Vanessa Lea vem um tanto heroicamente sustentando a importância de nos debruçarmos sobre um fenômeno que, quando não ignorado, tende a ser tomado como uma questão técnica do estudo de certos sistemas, de certas línguas, um detalhe de importância local, quase uma curiosidade. No artigo que publicou há alguns anos (Lea 2004) sobre os “termos triádicos”, ela se refere a uma troca nossa sobre o assunto nos idos anos 1990; o presente texto é mais um momento dessa perene, se esparsa, conversação. Mas o que são os tais termos triádicos? O que segue não se pretende uma discussão geral ou o mapeamento da variedade e complexidade do fenômeno: isto está muito além das capacidades de um pesquisador ou pesquisadora individuais. Tampouco trata-se de contribuição etnográfica. Meu objetivo aqui será, a partir de alguns exemplos, indicar o quanto a questão transborda o interesse de especialistas e impõem um pequeno, mas talvez importante, deslocamento no entendimento convencional do parentesco na Antropologia, e na forma como as teorias do parentesco foram construídas e vêm sendo des/re-construídas. Em particular, quero também ressaltar aqui o interesse que podem oferecer intervenções contra-antropológicas, quando chamadas a incidir sobre trocas interdisciplinares. Meus exemplos, para que se saiba do que estou falando, vem de uma conversa com Jamthô Kisêdjê. Jamthô é professor, e cursava, então, a licenciatura indígena. É também um dos filhos do cacique Kuiussi, em cuja família fui recebida: tratamo-nos como irmãos, e isso é relevante para o diálogo em questão. A conversa se deu na aldeia, em janeiro de 2018; visava auxiliá-lo na pesquisa para seu trabalho de conclusão de curso, para o qual ele escolhera o tema “parentesco”. Ele estava

197 Marcela S. Coelho de Souza interessado em familiarizar-se com os instrumentos antropológicos geralmente utilizados para a descrição desses sistemas.6 Não era a primeira vez que conversávamos sobre o assunto; nem a primeira vez que eu verificava o quão contra-intuitivos, e de difícil manipulação, eram para ele os esquemas genealógicos do tipo “triângulos e bolinhas” mais utilizados em nossa disciplina.7 Depois de alguma frustração, vislumbramos certas possibilidades quando testamos esquemas que eu havia formulado para representar, justamente, os termos triádicos. Os exemplos abaixo visavam auxiliar a formulação de perguntas e representação das respostas dos mais velhos sobre o uso correto dos termos de parentesco em geral, bem como a apresentação posterior dos dados assim obtidos para sua pesquisa. Os termos utilizados para as relações diádicas envolvidas estão em itálico, acompanhados das respectivas glosas genealógicas na notação antropológica convencional (kintypes).8 Figura 1. Esquemas desenhados com Jamthô para representação de termos triádicos a) iwa-nã-jê: tua mãe=minha cunhada

6 Palavra que utilizo sem nenhuma presunção de que os sistemas sejam rigorosamente sistemáticos. Como, espero, se verá. 7 Para não falar das convenções notacionais baseadas em kintypes, do tipo F, M, B, MB etc. – e não por se basearem em uma língua estrangeira (cuja ordem de palavras, aliás, é mais próxima do kisêdjê do que a do português, facilitando a leitura): o problema estava na análise genealógica das relações, como procurarei avançar. Cabe admitir que essas convenções são igualmente contraintuitivas para estudantes de Antropologia – atesto isso como professora e um dia aluna; mas as razões me parecem ser inteiramen- te outras. 8 Baseada nas iniciais em inglês, e devendo ser lida segundo a ordem de palavras desta língua: M=mãe, D=filha, Z=irmã, B=irmão, W=esposa, H=esposo.

198 Porque o parentesco é sempre triádico b) iwa-nã: tua mãe=minha irmã [sexo oposto]

c) a-nã: tua mãe=minha irmã [mesmo sexo]9

Todos os três exemplos envolvem um Referente — pessoa sobre a qual se está falando e a quem se refere a relação indicada pelo termo — na posição de “mãe” de um interlocutor, cuja posição em relação ao locutor é também especificada, tratando-se, a saber: a) da sobrinha agnática (BD) da locutora; b) da sobrinha uterina (ZD) do locutor; c)

9 As glosas dos termos seguem a forma proposta por Vanessa Lea, explicada adiante. As relações especificadas são, no que envolvem a mim mesma e minha filha, “adotivas” ou “fictícias”; isso não faz nenhuma diferença nessa conversação, tendo sido utilizadas justamente por tornar as situações facilmente imagináveis para ambos os participan- tes.

199 Marcela S. Coelho de Souza da filha classificatória [ZD] da locutora. O locutor (o Falante) aqui não corresponde ao famoso Ego dos esquemas diádicos, pois a relação de maternidade não se aplica a ele, e sim ao Ouvinte, a quem se dirige a elocução: essa disposição corresponde à situação caracterizada como de “referência indireta” (nesse medida, os três termos podem ser parcialmente glosados como “tua mãe”). Entretanto, a variação entre os casos deve-se ao fato de que a relação entre o Falante e o Referente continua sendo importante para a seleção do termo a ser empregado (na ordem: afinidade; consanguinidade de sexo oposto; consanguinidade de mesmo sexo). Vale notar que, no terceiro caso, o termo é o mesmo que se usa quando não há relação relevante entre o Falante e seja o Referente, seja o interlocutor (Ouvinte); seu emprego em outras circunstâncias pode ocorrer, mas é marcado, conotando uma quebra de etiqueta e, portanto, uma deliberada negação da relação de parentesco e do respectivo respeito e consideração que a relação envolve.10 “Isso sim, esse esquema vai ajudar!”. Alívio de ambas as partes. Diferentemente, pareceu-me, dos diagramas anteriormente apresentados, que codificam termos que classificariam qualquer relação entre duas pessoas a partir de regras de equivalência entre posições genealógicas (por exemplo, dois germanos de mesmo sexo são equivalentes, então os filhos de uma mulher chamarão a irmã dela de “mãe”, etc…), os diagramas concebidos a partir do problema de como representar os termos triádicos, na medida em que reinseriam a classificação num contexto interacional específico, revelaram-se muito mais produtivos. A questão não era de entendimento: a ideia de que os termos de parentesco servem para classificar posições abstratas numa genealogia é plenamente compreensível para Jamthô, mas fica aquém do que o interessa — aquém, eu ousaria dizer, do significado

10 Por outro lado, o uso do termo iwanã numa interação como a do terceiro caso (uma mulher falando da própria irmã com o filho/a desta) é igualmente marcado, mas agora positivamente, tanto servindo para sublinhar afeto e respeito pelo referente, quanto indicando que o locutor é uma pessoa particularmente educada, pela utilização de um registro formal de fala. Note-se que os três casos variam justamente num eixo de formalidade segundo a relação entre locutor e referente é de afinidade, consan- guinidade cruzada (i.e., de sexo oposto), ou consanguinidade de mesmo sexo. Como enfatiza McGregor noutro contexto, estamos diante não de um comportamento gover- nado por regras, mas de uma hierarquia de fatores que orienta as escolhas dos falan- tes: “Speakers do not always make the most natural or expected choice; but whatever choice they make potentially conveys some interactive or discourse meaning” (1996: 225 – ênfase minha).

200 Porque o parentesco é sempre triádico dos termos… O que ele quer saber, e descrever, é como conectar uma relação à outra de formas socialmente adequadas – convencionais, sim, mas também capazes de criar bons sentimentos e atitudes positivas (ou não, se essa for a intenção) nas pessoas. E isso implica trazer à tona o contexto pragmático da elocução. Já volto a essa questão. No artigo acima referido, Vanessa Lea discute os termos triádicos mẽbengôkre, retraça dados paralelos registrados entre outros povos de língua Jê, e mobiliza o que a Antropologia pode aprender sobre o tema com os povos aborígenes australianos, entre os quais muitos sistemas caracterizam-se por uma rica elaboração de termos desse tipo. Os Mẽbengôkre, segundo Lea, não ficam atrás: seus dados contêm 24 termos de parentesco triádicos (além de mais 17 envolvendo relações de amizade formal), dos quais 22 são “sui generis”, isto é, não deriváveis dos termos “básicos” de consanguinidade e afinidade. Os exemplos kisêdjê que escolhi, diferentemente, o são: iwa-na-jê se forma a partir de nã, “mãe”, que prefixado (i-nã, 1p-mãe; a-nã, 2p-mãe, etc) consiste no termo de referência mais comum para a própria mãe, suas irmãs, a prima cruzada matrilateral e outras posições equivalentes. Como o objetivo deste texto não é analisar o sistema kisêdjê (este é um projeto que está sendo desenhado em colaboração com o prof. Jamthô Kisêdjê), opto por este exemplo não tanto por sua transparência linguística, mas porque meu ponto é que a lógica em questão é subjacente às terminologias de parentesco como um todo, e não apenas a este ou aquele subconjunto de termos. O exemplo de partida de Lea é o termo mẽbengôkre aparidjwỳtx, glosado como “tua sobrinha = minha filha”, que ela prefere a expressões como “mulher falando com seu irmão a respeito de sua própria filha” (como as utilizadas por Vidal [1977], para o registro pioneiro do que chamava de “terminologia de referência indireta”). A autora justifica sua opção por glosar o termo com uma equação:

[...] esta série de termos é interpretada como explicitando a relação entre o interlocutor e o referente, e entre o locutor e referente, mas deixa apenas implícita a relação entre locutor e interlocutor. A relação entre locutor e interlocutor deve ser evidente para eles na maioria dos casos, não precisando ser explicitada, e quando não for, seria deduzível, para eles, a partir da relação de cada um deles com o referente (Lea 2004: 31).

Com efeito: o importante é que, se os termos diádicos tomam em conta dois indivíduos (ou posições) e uma relação, os termos triádicos

201 Marcela S. Coelho de Souza envolvem três indivíduos/posições e reconhecem pelo menos duas relações. Reproduzo abaixo o diagrama com que Lea representa seu exemplo (a), seguindo de uma representação esquemática do meu (b): a) diagrama de representação do termo triádico aparidjwỳtx (Mẽbengôkre, Lea 2004:32)

b) diagrama de representação do termo triádico iwanãjê (kisêdjê): tua mãe = minha cunhada (BW)

Figura 2: Diagramas de representação de termos triádicos

Como Lea, opto por colocar o triângulo “de cabeça para baixo”, de modo a trazer a relação entre locutor e interlocutor para o primeiro plano (Lea 2004: 30); no exterior do triângulo, constam os termos reciprocamente utilizados para cada relação (R1, R2 e R3), acompanhados dos kintypes que indicam as posições “genealógicas” (de fato, “adotivas” ou, se preferirem, “fictícias”, já que se trata da minha

202 Porque o parentesco é sempre triádico pessoa) em questão. Me afasto de Lea ao abandonar as convenções do diagrama genealógico, por razões que espero ficar claras, mas derivo de suas setas uma figura orientada à qual voltaremos. A marcação do Ouvinte como propositus será igualmente discutida na próxima seção. Esse fenômeno recebeu outras designações na literatura: McGregor (1996), por exemplo, prefere qualificar esses termos como ternários (em oposição aos binários, que prefiro chamar diádicos);11 fala-se também em termos trirelacionais, triangulares, multirelacionais (para ser mais precisa, essas designações podem referir-se a fenômenos um pouco distintos). Como nota Lea, embora alguns casos tenham sido detalhadamente analisados, o que ela chama de caráter “lógico” do fenômeno, sua “aplicabilidade semântica universal” (Lea 2004: 30), não foi ainda adequadamente abordado, talvez nem percebido – na Austrália ou alhures. A autora chama também atenção para a redução que é muitas vezes feita do fenômeno a uma expressão da evitação entre afins (ibid.: 33), e para a insuficiência dessa estratégia. O desafio que coloca à conceitualização antropológica do parentesco ainda está, como insiste, por ser enfrentado. Como modo de tentar avançar na compreensão desse caráter “lógico”, isto é, das implicações de fundo do fenômeno, vou começar por um aspecto que me parece particularmente importante, salientado já há bastante tempo por Francesca Merlan (1989) a propósito dos casos australianos, no mesmo artigo que deu início a essa minha conversa com Vanessa Lea.

3. O ato de fala e as desventuras da “classificação” Os contextos habituais de elicitação dos vocabulários de parentesco, desde a formulação do célebre (e para alguns infames) “método genealógico” por Rivers (1914) — a saber, a entrevista com um “informante” — guardam algumas diferenças óbvias para com os contextos de uso dos termos em questão. A mais evidente é o fato de que um dos participantes, o antropólogo, ocupa em geral uma posição de exterioridade ao universo “sob investigação”: ele não é parente de ninguém, nem de seu interlocutor, nem das pessoas a quem estão

11 Essa escolha pretende ecoar, criticamente, a caracterização das relações de parentes- co como “diádicas” tal como encontramos na obra, fundante para o campo, de Radcli- ffe-Brown (1950), e responde, portanto, à hipótese deste artigo: de que essas relações são, “logicamente”, triádicas. Ver adiante.

203 Marcela S. Coelho de Souza se referindo. Se levamos em consideração as assunções subjacentes aos sistemas de parentesco “euro-americano” que o antropólogo, tipicamente,12 traz para essa conversação (em particular, o entendimento de que estamos falando de conexões entre indivíduos), fica ainda mais fácil entender a aparente naturalidade da redução da terminologia a um sistema de classificação de relações recíprocas entre dois sujeitos (que tomam nesse contexto um para o outro a posição de objetos). Uma linha entre dois pontos, que pode ser percorrida em ambas as direções, no mais das vezes não equivalentes (neste sentido, assimétricas; quando a direção é irrelevante, temos termos auto-recíprocos).13 A relação é aqui uma maneira de determinar, como elemento de uma classe, a posição de um “Alter” em relação a um “Ego” — nas palavras de Merlan, “it is assumed that their [relationship terms’] primary function is to refer to and differentiate persons as members of kin classes.” (1989: 227). E não importa quantos conectivos estejam inclusos (os “parentes de ligação”), uma outra suposição é de que a posição relativa dos participantes do ato de fala em que se afirma, ou determina, a classificação – como a posição exterior de um antropólogo – é irrelevante.

Figura 3: diagrama de representação dos termos diádicos i-pãma (“pai”) e i-kra (“filho”) (kisêdjê)

Merlan (1989: 227-8) observa que as análises focadas na semântica dos termos, independente de seus contextos de uso, são “centradas no Falante” [speaker-centred]: isto é, tomam como dada a coincidência entre a posição do locutor e a de propositus. Esta última noção é crucial – ela permite o afastamento do Ego que assombra o estudo das terminologias. O propositus é o ponto de referência (ibid.: 227), o indivíduo escolhido como centro a partir do qual a relação é calculada (McGregor 1996:

12 Tenho em mente menos (embora também) o background social e cultural do pes- quisador do que os axiomas que conformaram esse subcampo da disciplina, e que se encontram embutidos em seus métodos (Schneider 1968). 13 Vou ignorar essa alternativa entre simetria e assimetria e representar a relação como uma flecha duplamente orientada. Meu exemplo abaixo é assimétrico, e por isso o ter- mo recíproco que Alter usaria para Ego encontra-se entre colchetes.

204 Porque o parentesco é sempre triádico

217). Nos termos triádicos, que são nosso foco, assim como em outras configurações das quais falaremos brevemente adiante, “esse indivíduo é na maioria dos casos diferente de ego” (i.e., do Falante), e, como diz McGregor, outro estudioso dos casos australianos, “a não ser que os dois sejam distinguidos, é impossível compreender ou caracterizar o significado dos termos diádicos ou poliádicos” (McGregor 1996: 217)14. A diferença entre propositus e Falante — ocultada no caso de sua coincidência em um Ego – é crítica porque a seleção do primeiro é uma decisão do segundo — uma decisão cheia de consequências, por certo. Voltando ao meu esquema (Figura 2b), do ponto de vista semântico, há vários outros termos ou expressões aplicáveis à esposa do irmão: o descritivo “esposa de meu irmão”, ou, utilizando-me do nome dele, “esposa de Penhrêkê”; o vocativo “minha cunhada”; o “tecnônimo” indicativo de respeito “Penhrêkê táteng-nã” (NP-filho15-mãe: “mãe do/a filho/a de Penhrêkê”). A opção por “sua mãe = esposa de meu irmão” responde, para emprestar outra vez palavras de McGregor, “ao papel do propositus na definição da perspectiva: este representa um ponto de vista (secundário), aquele da pessoa com a qual o falante empatiza16, e de cujo ângulo a relação é então vista” (ibid.: 223 — tradução minha). Um ponto

14 O que McGregor chama de termos diádicos — como dito, ele usa binário/terná- rio para a distinção aqui focalizada — são termos que tem como referentes dois in- divíduos, ou mais precisamente, “kin terms which designate pairs of referents in a particular kin relationship to one another, such as a father-son pair” (1996: 216). Em sua nomenclatura, os termos de parentesco que têm como referentes apenas um “in- divíduo”, ou posição, com os quais estamos mais habituados, são ditos monádicos. Há sistemas australianos que dispõem ainda de termos poliádicos, e a combinação disso com o parâmetro do “binarismo/ternarismo” resulta em configurações deslumbrantes, que sem dúvida colocam os pensadores nativos australianos entre os mais sofisticados especialistas da contradisciplina do parentesco. Termos “diádicos” e “polidiádicos” no sentido de McGregor foram já registrados entre povos indígenas no Brasil, mas não conheço descrições e tratamentos mais detalhados do assunto. 15 O termo táteng, káteng, “filho” (em substituição a -kra), ocorre no caso kisêdjê ape- nas como parte de expressões como essa ou em “referência indireta”. Lea (1986: 257) registra os prováveis cognatos mẽbengôkre gátenk/gátenkre como termos triádicos glosados pela equação “teu filho/a = meu tabdwë (isto é, “sobrinho/neto”), e considero provável que as formas kisêdjê possam ser analisadas da mesma maneira. 16 Ou cujo ponto de vista se deve colocar em primeiro plano, por diversos tipos de razão (uma certa teoria da concepção, por exemplo, como me chamou atenção Nicole Soares Pinto, c.p.). Entendo que “empatizar” não implica identificar-se a esse segundo ponto de vista; parece-me que os termos são triádicos justamente na medida em que sustentam a diferença entre o ponto de vista do propositus e do Falante.

205 Marcela S. Coelho de Souza de vista “secundário”, ou seja, o que está em jogo é a simultaneidade de duas perspectivas. Sublinhemos este ponto, para retomá-lo adiante. A implicação geral aqui — derivada da maneira como o método genealógico fundou e continua a fundar os instrumentos descritivos da antropologia do parentesco — é assim formulado por Merlan (1989: 228):

These assumptions, however, fail to provide for the fact that there are two systems that intersect in the usage of any relationship term – the structure of the speech situation (involving minimally the roles speaker- addressee-referent) and the structure of more enduring recognized social (kin) relations (expression of which minimally implicates a referent and a propositus).

Gostaria de tomar essa afirmação por seu avesso: para afirmar, ao contrário, que a “estrutura duradoura” das relações de parentesco é sempre triádica, porque não existe senão como sedimentação (parcial e relativa) de uma sequência de atos — entre eles, os atos de fala aqui focalizados — em que cada um deles ao mesmo tempo reitera os que o antecederam e (potencialmente) inova sobre eles, abrindo outras possibilidades para atos futuros. É por isso que, creio, como já afirmei em outro lugar (Coelho de Souza 2012: 221) toda classificação é uma “reclassificação”, que pode provocar um deslocamento não apenas do objeto classificado, mas da grade classificatória ela mesma. Os modelos derivados pelos antropólogos, assim como aqueles elaborados pelos pensadores nativos, estabilizam temporariamente essa “grade”. Tomá- los como (ontologicamente) anteriores gera, quero sugerir, uma série de problemas descritivos e analíticos artificiais. Os estudos de parentesco ameríndio evidenciaram, já há bastante tempo, a importância de se tomar em consideração a multiplicidade de níveis de classificação, e de subconjuntos terminológicos, para a descrição adequada desses vocabulários. A amplamente reconhecida necessidade de levar em conta a distinção e articulação entre termos vocativos e referenciais é apenas o aspecto mais óbvio dessa complexidade. A racionalização habitual — tomar um desses conjuntos ou níveis (em geral o referencial, oferecido ao antropólogo ou linguista no contexto da elicitação) como básico do ponto de vista semântico, reduzindo os demais a recursos acionados pelas pessoas para “manipular” a estrutura — peca não só por gerar descrições superficiais, mas também por reduzir a criatividade das pessoas (e da linguagem) à manipulação “interessada”

206 Porque o parentesco é sempre triádico dos relacionamentos. Como se houvessem relacionamentos separáveis do interesse que as pessoas têm umas pelas outras. Quero sugerir, como alternativa, o projeto aparentemente quimérico de uma cartografia que procurasse abranger a complexidade dos recursos linguísticos mobilizáveis na criação, sustentação e transformação das relações de parentesco. A tabela abaixo pretende sugerir algumas coordenadas para um tal projeto – que, para não permanecer quimérico, parece-me, reclamaria os vários tipos de co-laboração evocados na introdução deste artigo. Sua compreensão depende da introdução de uma distinção “técnica” adicional: como correlato da cisão de Ego em Falante e propositus, será preciso levar em conta a diferença entre “Alter” e o Referente: nem toda terceira pessoa do ato de fala é o referente do termo de parentesco. Isto é evidente no caso dos termos vocativos, em que o referente por definição é o Ouvinte. Guardo então o termo referente para a contraparte do propositus, e, no contexto da enunciação, fico com o triângulo entre Falante, Ouvinte, e um Terceiro (i.e., a terceira pessoa). A tabela proposta procura demonstrar como a intersecção entre os dois sistemas isolados por Merlan (1989) — a estrutura do ato de fala e a da predicação do parentesco — produz uma paisagem complexa, um campo mais amplo que deve ser levado em conta com um todo em nossas descrições e análises. Nele, diferentes subconjuntos terminológicos seriam distinguidos, segundo a maneira como se intersectam as duas estruturas mencionadas. Tabela 1: Subconjuntos terminológicos a considerar nos estudos dos vocabulários do parentesco

Falante Ouvinte Terceiro Exemplo nome próprio (referência) - - R ngajswantytxi nome próprio (vocativo) - R - ngajswantytxi referência direta i-nã = minha mãe P - R (tb. tirê = mamãe) referência indireta - P R a-nã = tua mãe vocativo P R - tirê = mamãe tecnonímia (referência) Nhyngrêtxi-nã = P, R mãe de N. P, P, R Pentxi táteng-nã = mãe do filho de P.

207 Marcela S. Coelho de Souza

tecnonímia (vocativo) Nhyngrêtxi-nã = R P mãe de N. termos triádicos iwa-nã-jê (tua mãe = minha cunhada, mulher falando) (P) P R iwa-nã (tua mãe = minha irmã, ho- mem falando)

P = propositus; R = referente. Os exemplos kisêdjê são os mais simples que pude se- lecionar, pois sua função aqui é meramente ilustrativa. No caso kisêdjê, os termos vocativos podem em geral ser tb usados em referência.

A tabela acima não pretende ser exaustiva e poderia ser ampliada ou refinada. Por exemplo, a expressão Penhrêkê-táteng-nã, “mãe do filho de Penhrêkê”, não é rigorosamente um tecnônimo, formando-se não a partir do nome de um/a filho/a, mas de um patronímico “filho de NP”, de modo que “inclui” duas relações e dois propositus – uma “tecnonímia” triádica, por assim dizer, que mereceria uma linha separada nessa tabela.17 Minha intenção aqui não é construir um “sistema de sistemas”, mas apontar para o interesse de ir além da distinção convencional entre termos vocativos e referenciais, isto é, além das terminologias mais facilmente elicitadas por meio de entrevistas. Não estou dizendo nada de novo. Há quase trinta anos, David Zeitlyn anunciava: “I differ from my colleagues in believing that the systematicity is best recovered from the study of day-to-day behaviour rather than from decontextualized ‘reference’ which may be elicited by the enquiring anthropologist” (Zeitlyn 1993: 203). O autor desenvolve essa perspectiva em um estudo do parentesco

17 O tecnônimo propriamente dito neste caso, Nhyngrêtxi-nã, é usado pelo marido, e por seus germanos de mesmo sexo, para falar da esposa; no caso das irmãs, como eu, a afinidade de mesmo sexo exige esta outra expressão, indicativa de respeito. Essa é uma pequena amostra de um conjunto muito maior que, no caso Jê, se desdobra a partir da imbricação entre parentesco e onomástica. Em alguns casos, não são os nomes pró- prios, mas os termos de relacionamento onomástico, que estão envolvidos (como num exemplo kisêdjê, i-kra-krãthumu, meu-filho-nominador, i.e., “nominador do meu fi- lho”; há inúmeros paralelos entre outros Jê). Eduardo Nunes (c.p.) me alerta ainda, a partir de sua experiência com os Karajá, para o interesse de expressões como “pai do meu sobrinho” para se referir a um cunhado por exemplo, excluídas das análises por serem consideradas meramente “descritivas”, mas cujo uso é igualmente significativo.

208 Porque o parentesco é sempre triádico mambila (Zeitlyn 2004), nos Camarões, em que as terminologias de parentesco (ele não recusa que estas possam ser “isoladas”, no sentido de identificadas como conjuntos semânticos sistematizáveis) são vistas como parte do campo mais amplo do que chama “dêixis social”: “todas as maneiras linguísticas e não linguísticas de se referir às pessoas” (2004: 6). Isso inclui (além dos termos de parentesco), nomes, apelidos, pronomes e títulos, e expressões descritivas; o foco é no uso, nas escolhas que as pessoas fazem entre essas formas. Como ele diz, “since kinship terms are part of a set of social deictic terms, the use of this set may be of sociological importance. The move from kin term to name to pronoun may be more revealing than the move from one kin term to another” (ibid.:5). Não se trata de opor as escolhas ao sistema, mas de oferecer, em suas palavras, “um tratamento metodologicamente heterodoxo, mas sistemático do sistema de parentesco”. Qualquer que seja nossa posição última sobre o problema filosófico do significado, parece- me que, do ponto de vista antropológico, essa perspectiva pragmática tem a vantagem de evitar a irrelevância a que as análises semânticas destinaram o estudo das terminologias.18 “We must relate a term to the set of people of whom that term may be predicated rather than the other way round” (id:200) — essa interpelação evoca a noção de “parentesco analógico” de Roy Wagner (1977): um modo de análise diacrônica e sequencial que toma as relações de parentesco [relationships] como consequências analógicas de uma diferenciação simbólica deliberada, que “esgota uma série terminológico-relacional por meio do sequenciamento temporal e não da sistematização lógica. Cada diferenciação tem suas consequências e é reestabelecida ou alterada diacronicamente” (Wagner 1977: 626). O foco é distinto: trata-se da análise simbólica de um determinado mundo conceitual, e a separação entre termos e pessoas é rejeitada desde o início. A aproximação que vejo está na recusa de tomar-se a diferenciação genealógica — embutida nas ferramentas convencionais do campo — como um controle invariante contra o qual contrastar classificações culturais e alinhamentos sociológicos (ibid.: 625). As possibilidades que essa recusa abre sugerem soluções metodológicas que podem nos economizar algumas das controvérsias que, merecidamente exauridas,

18 To say that pragmatics encourages us to examine the negotiation of meaning in the course of conversation is not to pretend that there are no stable meanings, but rather that stability is an emergent phenomenon. Stable meanings are the cumulative product of many conversations in the course of which reasonably stable expectations of the world, and its languages, are formed. (Zeitlyn 2004: 5).

209 Marcela S. Coelho de Souza acabaram por levar junto com a proverbial água do banho o interesse antropológico por tópicos que, ao menos na minha experiência, continuam a apaixonar pensadores indígenas — termos de parentesco, por exemplo. Quero terminar com isso, mas antes permitam-me ainda um parêntese sobre as implicações “lógicas”, ou teóricas, dos termos triádicos, para justificar meu título.

3. O caráter lógico dos termos triádicos: dualismo e perspectiva Quero ecoar a insistência de Vanessa Lea sobre a importância geral do fenômeno, ainda que numa direção um pouco diferente, pois me interessam menos implicações matemáticas e lógicas per se do que a maneira como estas se “explicam”, se realizam, socialmente — numa prática de conhecimento que é imediatamente (cosmo)política. O ponto crítico me parece ser aquela distinção entre propositus e Ego: considerar todas as suas implicações, a começar pela necessidade de tomar em conta, para além das terminologias vocativas e referenciais, todo o campo de expressões cujo quadro (parcial) tentei rascunhar acima, nos levaria bem além da redução das terminologias de parentesco a sistemas de classificação de relações diádicas (que seriam complicadas aqui ou ali pelo paradoxal primitivismo barroco de australianos e centro- brasileiros, por exemplo). Recusada essa redução, é preciso reconhecer, os instrumentos convencionais da Antropologia para a elicitação, exposição e análise dos “termos de relação” [relatioship terms] é que se revelam terrivelmente primitivos. A notação genealógica, antes de mais nada, que incorpora necessariamente esse “diadismo”, embutido logicamente tanto nos diagramas “de triângulos e bolinhas” quanto na suposta metalinguagem dos famigerados kintypes.19 A meu ver, não estamos diante meramente de uma simplificação útil, que pudesse ser corrigida pela adição posterior de novas camadas de complexidade. É claro que a simplificação é útil — é mesmo indispensável: sem ela antropólogos socializados no parentesco “euro- americano”, não falantes nativos das línguas em questão, ver-se-iam completamente perdidos e desamparados diante de sistemas heterogêneos e irredutíveis aos seus sistemas maternos. O problema começa quando

19 Suposta porque, como amplamente demonstrado, ancorada numa teoria local, isto é, numa construção cultural do parentesco (cultural porque particular a um conjunto de culturas, mas também porque o parentesco aparece nela como “construção cultural” ou “social” de um “fato natural” (Schneider 1968; Strathern 1992).

210 Porque o parentesco é sempre triádico essas aproximações são tomadas como uma metalinguagem capaz de representar o que haveria de “comum” entre os diferentes “sistemas”. Pois o que se continua recriando com esta simplificação, tomada desta maneira, é um desajuste ou defasagem notáveis entre teoria e método. A imagem do parentesco como um campo de “relações diádicas”, estendendo-se a partir daquelas, imediatas, de filiação, germanidade e conjugalidade que conformam a família “nuclear” cristã (monogâmica, heteronormativa), ditas “de primeira ordem”, corresponde a uma tradição antropológica tão venerável (Radcliffe-Brown 1950) quanto devidamente castigada, a começar por Lévi-Strauss — para quem aliança é inequivocamente uma relação entre duas relações, afinal, e o “átomo de parentesco” uma estrutura nitidamente ternária (Lévi-Strauss 1958). É um pouco curioso que mesmo os que nos consideramos herdeiros deste último tenhamos nos acomodado com métodos tão intimamente ajustados àquela tradição. A crítica da teoria do parentesco como exemplar de uma concepção cultural específica (dita “euroamericana”), que atravessa a Antropologia do último quarto do século XX, acompanha uma reconceitualização de noções e dualidades axiomáticas (como indíviduo/sociedade, natureza/ cultura, sujeito/objeto, e suas respectivas variações) que transborda largamente as fronteiras disciplinares. Com elas, é a própria “humanidade” (o anthropos) que entra em questão. Esses movimentos tectônicos, que vêm alterando irreversivelmente os quadros do pensamento no presente século, não poderiam deixar de incidir sobre a imagem das “relações sociais” e seus “sujeitos” de que se ocupa a Antropologia. Perdoem-me a generalidade dessas assertivas: o que quero focalizar é a aparentemente sutil, mas decisiva, reconceitualização das noções antropológicas de “aliança” e “troca matrimonial”, originalmente dependentes daquelas dualidades, que assistimos na esteira desses movimentos, e que guarda uma relação direta com nosso problema. Refiro-me à conceituação da afinidade como troca de perspectivas (Wagner 1977; Strathern 1988; Viveiros de Castro 2007). Como não cansamos de repetir nos cursos de introdução ao parentesco, o que a célebre teoria levistraussiana da proibição do incesto implica é, senão a anterioridade da afinidade, pelo menos a simetria entre esta e a consanguinidade na fundação do parentesco (Viveiros de Castro 2009); a proibição cria, e não depende, da consanguinidade. As consequências de levar adiante o gesto de Lévi- Strauss são tiradas por Viveiros de Castro (2007: 114-5)

211 Marcela S. Coelho de Souza

Minimamente, isso significa abandonar a descrição do “átomo de parentesco” em termos de uma alternativa exclusiva — esta mulher como sendo ou minha irmã ou minha esposa, este homem como sendo ou meu irmão ou meu cunhado — e reformulá-la em termos de uma disjunção inclusiva ou não-restritiva: “seja… seja…”, “e/ou”. A diferença entre irmã e esposa, irmão e cunhado deve ser tomada como uma diferença interna, “indecomponível e desigual a si mesma”. […] Minha irmã é minha irmã na medida exata e exclusiva em que ela é uma esposa de (ou para) outrem, e vice-versa […] Dois cunhados estão relacionados da mesma maneira que as díades de sexo cruzado que fundam sua relação (irmão/irmã, marido/mulher): não a despeito de sua diferença, mas por causa dela. Um dos cunhados vê a face conjugal de sua irmã no marido desta; o outro, o lado sororal de sua esposa no irmão desta.

O que estou tentando enfatizar é que isso não é verdade apenas desta diferença, mas de todas aquelas de que é feito o parentesco, inclusive as relações que envolvem “identidade”, pois, justamente, não é possível falar em relação ali onde há apenas identidade.20 O que revelam os termos triádicos, como caso particular, e, como condição geral, a separação virtual entre propositus e ego, é essa diferença interna constitutiva do parentesco, tal como se manifesta nas expressões linguísticas que criam e recriam performativamente — por meio da evocação simultânea de perspectivas divergentes — os relacionamentos. Há diagramas – criados por praticantes — que captam essa complexidade com muito mais clareza que nossos instrumentos disciplinares convencionais. Exigem, todavia, do ponto de vista dos antropólogos, um certo esforço de deciframento. Um exemplo é o machado tobwatobwa dos ilhéus de Sabarl, um recife de corais no arquipélago das Luisíadas, analisado nos anos 1980 por Deborah Battaglia (1983). Discutindo as prestações mortuárias segoya entre matriclãs paternos e maternos por ocasião do falecimento de uma pessoa, um de seus interlocutores desenha didaticamente no chão a seguinte forma, dizendo que segoya “são como um tobwatobwa” (as duas outras figuras representam respectivamente o machado e, genealogicamente, as relações em questão):

20 Por exemplo, a consanguinidade de mesmo sexo e mesma geração: seja pela idade relativa, seja por seus casamentos, seja pela dispersão residencial, as pessoas assim conectadas se conectarão diferentemente com “terceiros”, e isso incidirá – permitirá – sua própria “relação”. Para não falar de conexões com o que está além do parentesco e da humanidade, como mostrou Anne-Christine Taylor (2000) para as posições de presa e predador, por exemplo.

212 Porque o parentesco é sempre triádico

Figura 4. Prestações mortuárias segoya e machado tobwatobwa (Battaglia 1983).

A “clareza” a que me referi depende, é certo, da elucidação do simbolismo do machado, impossível de resumir aqui, mas relativamente evidente para os ilhéus de Sabarl. Evoco essa análise por duas razões. Primeiro, porque a complexidade que não posso resumir oferece uma imagem do simbolismo igualmente complexo, e também relativamente evidente (isto é, parcialmente inconsciente), dos “triângulos e bolinhas” do diagrama genealógico. E o que quero sublinhar é justamente essa densidade: os significados que evocamos, que fazemos funcionar, querendo ou não, quando empregamos essa linguagem. É preciso controlar melhor estes equívocos. Segundo, e agora se trata de um desses significados, e certamente de um equívoco, porque a seta que se dobra sobre um ponto de retorno é uma imagem que também se impôs na representação dos termos triádicos (ver Fig. 2, supra). A coincidência é significativa: é nessa análise de Battaglia que Marilyn Strathern se apoia para apresentar um desafio etnográfico (analítico e descritivo) à noções de sujeito que se liga diretamente a nosso problema. Trata-se da distinção (uma distinção que me parece abrir a possibilidade de um compreensão renovada da política, e não apenas da política indígena, cujo desenvolvimento deixo para outra ocasião) que ela discerne nas práticas de conhecimento melanésias entre agente — aquele que age

213 Marcela S. Coelho de Souza tendo um outro em mente — e pessoa — como composição ou lócus de relações, forma de sua objetificação. Este agente é um pivô, e aparece como um transformador, capaz de transformar um tipo de pessoa em outra (Strathern 1988: 272).21 No caso diagramado, o agente é a “criança” que, tendo recebido, em nome de seu matriclã, alimentos e prestações dos parentes paternos durante a vida, opera como pivô sobre o qual, na morte, os objetos de valor recebido retornam ao matriclã do pai. Parece-me evidente a analogia que isso implica com a lógica dos termos triádicos, isto é, com a simultaneidade de perspectivas implicada na cisão entre Falante e propositus. Nas palavras de Strathern (1988: 271):

[…] any one type of relationship is to be contrasted with and thus seen from the viewpoint of another. The same is true for the internal construction of social relations themselves. People’s positioning with respect to one another entails each party perceiving the relationship simultaneously from its own and the other’s point of view. This perception is construed as a specific capacity that the person has within.22

Para me referir à minha cunhada, falando com minha sobrinha, preciso levar em conta — se desejo que minha enunciação confirme as relações particulares que nos unem, e assim minha capacidade de sustentá-las — que aquela que é mãe para ela, para mim é uma muito

21 “[…] this precipitates not a dialectic between ‘self’ and ‘other’ but a self who in act- ing with respect to another alters the relations within which she or he is embedded. Consequently the effects of her or his actions may be seen in the bodies of two other persons. Two relationships are involved, with the agent as pivot; they form, we might say, an analogous pair. This follows from the fact that as a person the agent is always socially distinct from the cause; and in acting for or because of the cause also acts with reference to other causes. The wife who grows food for her husband does so ‘herself’ because she is separated from him by her own ties with her natal kin. Thus she acts with reference to ‘two kinds of’ men-her spouse and her siblings. In short, an agent who acts with one person in mind is also acting with another in mind. One might call the resultant angle of perspective a recursive duality.” (Strathern 1988:274) 22 Este não é o lugar, mas seria possível continuar explorando a maneira como esse “triadismo” conecta-se com o dualismo pelo qual são tão famosas as culturas melané- sias quanto o são dos Jê: “Imagining that the world is divided into ‘two kinds of things, relations, times, or whatever (Strathern 1988: 188), is to imagine the person from two different vantage points. The clan that divides its members into two types of agnates-males and females-is also perceiving itself with respect to what its marriage partners will extract from it. The woman who berates a child for taking sweet potatoes from her growing garden perceives her care of the plants in relation to the claims she must satisfy at a latet point; time is sliced into before and after.”( ibid.: 271)

214 Porque o parentesco é sempre triádico respeitada (isto é, querida) afim. Seria uma afronta ao sentimento que as une não evidenciar, ao mesmo tempo, o meu — bem como a diferença entre eles. Seria desfazer nosso parentesco.

5. Para prosseguir: parentesco em pauta O estudo das terminologias, faz já algum tempo, e por boas razões, perdeu o espaço que tinha na Antropologia do parentesco, dependendo de uma operação que começou parecer demais custosa: a abstração formal de um sistema classificatório que os antropólogos a duras penas tentavam, depois de ter separado, reconectar com a socialidade que anima a vida das pessoas. Hoje, quem fala de parentesco em Antropologia, em geral, logo se apressa a dizer que não se interessa “pelas terminologias”. Aos que não podem se esquivar — tente só orientar-se em uma aldeia indígena sem entender como as pessoas compreendem suas relações de parentesco — resta penar sobre triângulos, bolinhas e kintypes, ou então resignar-se à sensação de estar sempre perdendo algo de importante. O que já sugere que o tema não é assim tão irrelevante para outros que antropólogos agarrados à tradição de sua disciplina. Se eu precisasse ser convencida disso (não era o caso), os Kisêdjê teriam sido, como sempre, implacáveis professores. Em janeiro de 2015, nas folhas de papel sulfite pregadas em um dos postes principais do ngá (casa-dos-homens), em que figurava a programação das festividades de final de ano, um dos pontos de pauta da reunião “das mulheres” (por ser de sua iniciativa; todos participaram dela) me surpreendeu: “parentesco”. O objetivo da reunião era discutir o que algumas lideranças (femininas, sobretudo) reconheciam como uma erosão das distinções apropriadas, de tal maneira que as pessoas já não sabiam se comportar umas em relação às outras, dando inclusive ocasião a casamentos considerados por muitas como impróprios. Minha compreensão do que se diz em reuniões como essas é bastante irregular: posso entender quase tudo que dizem alguns, quase nada que dizem outros; e não é o caso de gravá-las, pois há sempre coisas que são ditas, mas devem ser esquecidas. O que ficou abundantemente claro para mim foi a intensidade das emoções envolvidas. Diante das explicações dos mais velhos — e não de todos, mas daqueles que se consideram saber desses assuntos —, que versavam ao mesmo tempo sobre relações que pareciam esquecidas e sobre as expectativas convencionais envolvidas nesses relacionamentos (“teu ‘avô’ chamava Fulana de ‘irmã’, foi ela quem cuidou da tua mãe, e hoje você não a considera como ‘avó’, não se dirige a ela pelo termo correto

215 Marcela S. Coelho de Souza e nunca lhe dá comida”),23 as pessoas envergonhavam-se, alegravam- se, choravam, abraçavam-se. Certamente foi uma das demonstrações mais eloquentes que eu poderia esperar do “significado dos termos de parentesco”. Depois dessa reunião, na cozinha da casa do cacique Kuiussi, recebemos a visita de um de seus cunhados, Temujsôrô, um ancião (hoje, o único que ainda porta o botoque) reconhecido como dos mais sábios e eruditos entre os Kisêdjê, pois as explicações dadas na reunião não foram suficientes para satisfazer a curiosidade dos adultos e jovens da família. Desde então, isso se repete quase todas as vezes que Temujsôrô visita a aldeia principal (ele mora em uma das aldeias menores, rio abaixo). Mesmo em sua ausência — Kuiussi é igualmente um especialista no assunto —, dentre os temas das conversas na cozinha, o principal espaço de convivência coletiva familiar, o parentesco talvez esteja em terceiro lugar — logo após a música (que como há muito nos diz Anthony Seeger é sem dúvida o centro da vida kisêdjê) e as cada vez mais ameaçadoras investidas dos brancos contra a terra, a saúde, a existência de meus amigos. Em suma, contra seu parentesco. O interesse de Jamthô pelos termos corretos com que chamar as pessoas não é uma idiossincrasia: é parte da luta que esse povo admirável trava por sua vida. E esta é uma lição que devo a um efeito contradisciplinar. Jamthô, que quer fazer uma pós-graduação, não sabe se opta pela Antropologia ou pela Linguística. Qualquer que seja sua escolha, sua ciência indígena implicará a sustentação simultânea dessa dupla divergência de perspectivas. Tomando essa ciência como exemplar, talvez possamos igualmente exercitar a capacidade de perceber o parentesco de mais de um ponto de vista ao mesmo tempo; como se perguntou Nicole Soares Pinto (comunicação pessoal), ao terminar a leitura de uma versão deste texto, qual seria afinal o significado “comum” entre a Antropologia e a Linguística de um objeto-limite que pode ser “melhor” representado não por uma tabela de termos mas, por exemplo, por um machado? Não estou querendo sugerir com isso o abandono dos símbolos disciplinares, seja da Antropologia, seja da Linguística.24 Partindo do problema específico

23 O exemplo é fictício. 24 Pelo contrário, e antes que cheguemos ao final, gostaria de enfatizar o interesse de uma colaboração interdisciplinar entre linguistas e antropólogos, com seus respecti- vos “símbolos”, no sentido de uma comparação global das terminologias jê, que alias- se sobretudo os progressos da linguística histórica e os da etnografia. Um sobrevoo desta última permite constatar como, por exemplo, termos que aparecem em uma

216 Porque o parentesco é sempre triádico colocado pelos termos triádicos, minha intenção foi apenas estimular seu deslocamento, tendo em mente que os equívocos que permitem todas essas comparações e co-laborações dependem (como me chamou a atenção Nicole) das obrigações divergentes, e não-hierarquizáveis, a que respondem todas essas práticas de conhecimento. Algumas, entretanto, “sabem” disso melhor que outras: por isso a interdisciplinaridade precisa da contradisciplina.

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217 Marcela S. Coelho de Souza

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Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território

Lilian Brandt Calçavara Fundação Nacional do Índio – FUNAI

Introdução A Ilha do Bananal é internacionalmente conhecida por ser a maior Ilha fluvial do mundo, tendo 1.916.225 ha. É considerada Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), além de ser uma das zonas úmidas de importância internacional reconhecida pela Convenção de Ramsar e o maior complexo de reservas existente no estado do Tocantins. Com tantos títulos que valorizam seu patrimônio natural, causa estranheza outro título: há anos está entre as áreas que mais queimam no mundo. Na Ilha do Bananal vivem os Karajá e os Javaé, que se autodenominam Inỹ. Além destes dois grupos, os Xambioá também fazem parte do povo Inỹ. Esses grupos somam 6.123 indivíduos, sendo 255 Xambioá, no Pará, 1.542 Javaé, todos vivendo na Ilha do Bananal e 4.326 Karajá, que vivem nos estados de Mato Grosso, Goiás e principalmente na Ilha do Bananal (IBGE 2010). Dentro da Ilha, há três Terras Indígenas (TI): Parque do Araguaia, Inãwébohona e Utaria Wyhyna/Iròdu Iràna, sendo essas duas últimas sobrepostas ao Parque Nacional do Araguaia. A TI Parque do Araguaia, com 1.358.500 ha, é a que concentra a maior parte da população indígena Inỹ. O Parque do Araguaia é historicamente uma das Terras Indígenas que tem o maior número de focos de incêndio no Brasil. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), esta TI foi a primeira colocada em 8 dos últimos 10 anos, sendo que nos outros 2 foi a segunda colocada. Em 2017, por exemplo, o Parque do Araguaia foi a TI que mais teve focos de incêndio no país, com 35.074 focos. A segunda colocada foi a TI Inãwébohona, com 15.761 focos. E a TI Utaria Wyhyna/Iròdu Iràna foi a oitava colocada, com 8.624 focos. Ou seja, a Ilha do Bananal teve 59.459 focos de incêndio no ano de 2017.1

1 Dados extraídos no recorte “Terras Indígenas com mais focos”. Os números incluem focos decorrentes do Manejo Integrado do Fogo realizado.

221 Lilian Brandt Calçavara

Embora faça parte da Amazônia Legal, a Ilha do Bananal está em área de transição entre o Cerrado e a Amazônia. A vegetação predominante remete ao bioma Cerrado, porém com extensas áreas que ficam alagadas durante as chuvas. Por isso, a Ilha é um dos poucos locais na região onde se encontra capim verde mesmo na época da seca, o que a faz ser historicamente uma região cobiçada por criadores de gado. Além de ter grandes áreas planas, o pasto é formado por capins nativos como o jaraguá, canarana e capivara, que resistem à época da seca e garantem alimentação diversificada necessária para a saúde do gado. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) introduziu o gado na Ilha durante a década de 20, e grande parte dos servidores do órgão indigenista se dedicavam ao cuidado com o gado (Rodrigues 2009). A partir da década de 60, com a instalação de fazendas dedicadas à agropecuária nas margens dos rios Araguaia e Javaés, a Ilha passou a receber cada vez mais rebanhos durante a estação da seca. Em 1969, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que havia completado apenas um ano de existência, passou a cobrar dos fazendeiros pelo uso das pastagens (Rodrigues 2009). Segundo os servidores do órgão que atuavam na Ilha neste período, essa atividade se destacava no cenário nacional por estar entre as que mais geravam lucro para a Renda do Patrimônio Indígena. Em 1989, os indígenas denunciaram a invasão de seu território junto à Procuradoria Geral da República e, no ano seguinte, a Funai iniciou um levantamento fundiário e deu início à retirada dos moradores e dos rebanhos da Terra Indígena. A essa altura havia 300.000 cabeças de gado na Ilha do Bananal. A bovinocultura promoveu a formação de vilarejos, chegando à população de 11.000 moradores não indígenas. A desintrusão só foi finalizada em 1997 ibid( .). No entanto, desde a década de 70 um grupo de Javaé já controlava o arrendamento de pasto, o que continuou ocorrendo mesmo com a desintrusão feita pela Funai. Em maio de 2008, depois de quase 20 anos da ação proposta pelo Ministério Público, o poder judiciário ordenou a desocupação da TI Parque do Araguaia (ibid.). De acordo com Rodrigues (2009: 3), “[...] em 2009, pela primeira vez desde a década de 30, toda a Ilha do Bananal esteve livre dos criadores de gado e seus rebanhos.” Mas isso não durou sequer um ano. Ainda em 2009, o Ministério Público Federal do Estado do Tocantins instituiu um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para a bovinocultura. O documento propõe o que vem sendo chamado de “sistema de parceria”, em que os indígenas

222 Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território recebem pelo arrendamento do pasto e formem seus próprios rebanhos no período de 10 anos. Embora a 6ª Câmara tenha suspendido os efeitos do TAC em 2012, os arrendamentos continuam acontecendo. Atualmente são os indígenas, por meio de suas associações, que cobram uma taxa por cabeça de gado, além de terem um pequeno rebanho próprio. O valor recebido é muito abaixo do praticado na região. Os vaqueiros não indígenas moram na Ilha em lugares isolados, ou “retirados”, como se diz na região, por isso são chamados “retireiros”. São os retireiros que durante a estiagem queimam a pastagem para que a rebrota do capim alimente os animais. Assim, agora os capins nativos divibid. espaço com a braquiária e outras espécies invasoras. O trabalho de campo para esta pesquisa foi realizado, principalmente, na aldeia Fontoura. Esta aldeia é tida pelos Karajá e pela sociedade envolvente como uma aldeia “tradicional” ao ser comparada com a aldeia Santa Isabel do Morro, aldeias que estão relativamente próximas – 25 km em linha reta – e possuem aproximadamente a mesma população – cerca de 900 habitantes (SESAI 2016). A escolha desta aldeia se deu justamente pela maior possibilidade de obter dados sobre o fogo feito tradicionalmente pelos Karajá, como o fogo com o objetivo de abertura de área para roça.

1. Fogo no Cerrado Queimar o Cerrado pode não parecer uma boa ideia. Mas foi esse pensamento que no passado nos levou à “política do fogo zero”, fundada na ideologia de que o fogo deveria ser suprimido em ambientes naturais. Durante as últimas décadas do século XX e início do século XXI, as queimadas foram criminalizadas e, consequentemente, quem se utilizava delas. Ocorreram programas destinados aos indígenas sobre os efeitos negativos do fogo no meio ambiente, menosprezando seu conhecimento ancestral. Diversos povos indígenas abandonaram suas práticas de manejo do fogo (Melo & Saito 2011; Falleiro et al. 2016). A redução das queimadas pareceu positiva no início, mas, depois de alguns anos, os incêndios voltaram a ocorrer, muitas vezes com danos maiores. O acúmulo de matéria seca durante os anos de proibição possibilitava incêndios muito mais intensos. A supressão do fogo resulta em incêndios cada vez mais danosos à flora, ao solo e às bacias hidrográficas, gerando um custo econômico cada vez maior com o combate a esses incêndios (Falleiro et al. 2016). Percebeu-se então

223 Lilian Brandt Calçavara que nesses milhares de anos, tanto os indígenas tinham desenvolvido técnicas de manejo de fogo, quanto o Cerrado havia se adaptado. Pesquisadores do mundo inteiro passaram a se dedicar ao tema do fogo e sua importância na manutenção das savanas. No Cerrado, a savana brasileira, não poderia ser diferente. Ficou evidente, afinal, que a prática dos indígenas de manejar o fogo era não só fundamentada, como necessária. O Cerrado não é um sobrevivente do fogo, como muitas vezes se supõe. Algumas das características típicas do Cerrado, como a tortuosidade de algumas espécies, o estímulo ao rebrotamento e a floração da camada herbáceo-subarbustiva foram relacionadas por Melo e Saito (2011) com a ocorrência de queimadas. Hoje se entende que este é um ecossistema pirofítico, em que o fogo é parte integrante e natural (Schmidt et al. 2016). Essa mudança de paradigma veio acompanhada de uma mudança na legislação, tendo como marco o Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012). A partir dele, foi reconhecida legalmente a prática do uso do fogo para manejar áreas em Unidades de Conservação, para prevenção e combate aos incêndios, e para agricultura de subsistência exercida pelas populações tradicionais e indígenas. Os principais órgãos de meio ambiente do Brasil passaram a utilizar o Manejo Integrado do Fogo (MIF) para proteger áreas específicas, realizando queimas prescritas de baixo impacto. O MIF vem sendo aplicado em diversos continentes do mundo. Trata-se basicamente em criar com o uso do fogo um mosaico de paisagens, eliminando o excesso de combustível no período em que o fogo gera baixo impacto na flora, criando áreas de refúgio da fauna e protegendo áreas estratégicas, como florestas, mananciais, aldeias etc. Desde 2007, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA) começou a manejar o fogo em Terras Indígenas, porém, ainda com o intuito de supressão deste elemento. Falleiro et al. (2016) relatam que os Paresi não aceitaram a supressão do fogo, o que levou os técnicos a realizarem o primeiro planejamento em conjunto com os indígenas. O resultado inspirou a criação de uma metodologia para o que vem sendo chamado pelo órgão ambiental de “resgate do conhecimento tradicional.” Por meio de entrevistas e reuniões com anciãos, caciques e pajés são relacionados e caracterizados diferentes usos do fogo, sistematizando, assim, informações como técnica, época, horário, local, entre outros. A metodologia considera os conhecimentos tradicionais,

224 Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território o uso do território, os recursos naturais utilizados pelos indígenas, os períodos em que estão reduzidos os riscos e os danos, entre outros. Até o momento, o Ibama fez este trabalho de resgate junto a três povos: Xerente, Krahô e Javaé. Os trabalhos utilizam o manejo tradicional indígena como parte do processo de planejamento das queimas, tendo tido bons resultados. Embora uma avaliação mais precisa dependa de uma série de fatores, inclusive a realização do manejo ao longo de muitos anos, já é possível perceber a importância do envolvimento dos indígenas para o sucesso do trabalho (Falleiro et al. 2016). Uma experiência, neste sentido, também vem sendo desenvolvida pela Rede Parupa, com o envolvimento de instituições e indígenas da Venezuela, do Brasil e Guiana. De acordo com Bilbao e Mistry (2015):

[...] os ecossistemas estão protegidos dentro das terras indígenas não porque estas estão sendo “manejadas” de uma maneira ativa e direta, mas sim como resultado indireto de uma comunidade saudável dentro de seu ambiente. Em outras palavras, o manejo sustentável do território indígena é resultado de práticas sofisticadas que mantém a integridade ecológica e social, que nós chamamos de “soluções próprias da comunidade (Bilbao e Mistry 2015: 5. Tradução nossa).

As experiências de pesquisa participativa junto a povos indígenas na região de savana do Parque Nacional Canaima (Venezuela) já ocorrem há mais de 10 anos. Os resultados demonstram a importância de proporcionar condições de igualdade entre os atores, utilizando como fundamento o “diálogo de saberes”, a “justiça cognitiva” e a “interculturalidade”. De acordo com os autores, o estudo sobre o comportamento do fogo sugere que o manejo do fogo realizado pelo povo Pemón nas savanas possui uma “lógica ambiental”, devido à redução do material combustível, criando um mosaico com diferentes idades de queimas, que contribuem para a redução de incêndios extensos e intensos (Rodriguez et al. 2016: 109). Em 2013, foi assinado o Acordo de Cooperação Técnica 41, entre o Ibama e a Funai, para a implementação do Programa Brigadas Federais em Terras Indígenas. A consolidação de uma política pública, que tem como executores os próprios indígenas, representa um grande avanço. Considera-se que as brigadas proporcionaram autonomia e protagonismo aos indígenas (Lazzarini et al. 2016). Mas não basta que eles executem e participem de algumas partes do processo, eles precisam ser soberanos nas decisões sobre seu território. Com a atuação

225 Lilian Brandt Calçavara do Estado, corre-se o risco de a comunidade deixar de lado o processo de pensar e praticar o manejo do fogo para apenas o Estado fazê-lo, ainda que os indígenas sejam os executores (a mão-de-obra) da política. Mas até que ponto o governo está disposto a questionar os impactos das políticas e a relatividade dos conceitos “protagonismo”, “autonomia” e “participação”? E até que ponto podemos correr o risco de não ter um Estado atuante, deixando as comunidades muitas vezes reféns de não indígenas, como madeireiros e bovinocultores? Embora tenhamos na história diversos exemplos de ações desastrosas realizadas pelo Estado em terras indígenas, desastres maiores podem acontecer na ausência deste.

2. Ferramenta de fazer fogo Agora sabemos: o fogo foi e, em muitos casos, ainda é uma ferramenta muito utilizada por povos indígenas para manejar seu território. A força que queima não é só de destruição, ela abre lugar para o novo; ela é que traz transformação. Saberes ancestrais se unem ao conhecimento prático e a tecnologia se cria, não à revelia. Silva (2002) afirma que o estudo de um sistema tecnológico deve descrever e analisar as operações envolvidas na transformação da matéria pelos seres humanos. Estas operações possuem etapas com uma determinada sequência e são constituídas por diferentes elementos e ações. “Os elementos são, de um lado, os agentes e a energia que eles utilizam e, de outro, os utensílios e a matéria-prima que será transformada” (Silva 2002: 122). A transformação da matéria ocorre a partir de um agente e de um utensílio que são fundamentados em um conhecimento específico. Sob este ponto de vista, considerando os diversos usos do fogo na Ilha do Bananal, os agentes podem ser os brigadistas, os retireiros e os indígenas, enfim, a pessoa que deseja queimar uma área. A matéria- prima é a vegetação nativa, especialmente o capim seco. O utensílio é o objeto que transporta a chama: o pinga-fogo, o isqueiro e o combustível ou uma chama produzida e espalhada por uma folha de palmeira. A chama, por sua vez, era tradicionalmente produzida pela fricção de duas madeiras, uma em formato de concha e outra em formato de vareta. Pedro Ijatura Karajá2 aprendeu a técnica de produção do fogo com seus antepassados, e relata:

2 Entrevista gravada em 2016, integra o filme Mifando a Ilha.

226 Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território

Antigamente a gente sofrendo muito, caçando,3 procurando a raiz de sarã. Ele gosta de praia, né? Pega fogo é o raiz. Fazer o [inaudível] da baciínha, com um buraco assim, depois fazer o fino, aí ‘trocendo’ assim na mão e aí jogando pó, pó. Aí depois fumaçando, fumaçando e jogando pó, isso que conseguia o fogo.

Werikina Karajá4 também explica o processo de produção de fogo:

Corta um pau seco comprido assim e pega uma embira, no mato mesmo. Aí pega fino assim, igual dedo. E amarra um pau e fica [mostra movimento com as mãos] até o fogo cair. O outro entra, o outro entra, o outro entra, todo mundo fica assim [em círculo], até cair o fogo. Esse eu aprendi a fazer também.

Um dos poucos registros bibliográficos sobre o povo Karajá e sua relação com o fogo sob o viés da tecnologia é o de Pazinatto (1988). O autor afirma que os Karajá produziam fogo a partir da técnica comum a muitos povos, o atrito entre duas madeiras secas, acrescentando, porém, areia ou cera de abelha jataí na cavidade da madeira, o que aumentava o atrito e o calor. São poucos Karajás que dominam a antiga técnica de produzir o fogo, e – óbvio – mesmo os que sabem não a praticam hoje, visto que é incomparavelmente mais prático utilizar um isqueiro. Afinal, toda tecnologia produzida e utilizada está em permanente atualização, sendo mais importante a eficiência, e não a tradição por si só. No entanto, independentemente dos elementos materiais que compõem um sistema tecnológico, a cultura sempre estará presente. A antropologia da tecnologia atua no sentido de compreender o que Silva (2002) chama de “comportamento técnico”. A autora entende a tecnologia como “um fenômeno que se constitui a partir de uma complexa teia de associações entre o mundo material, o social e o universo simbólico dos diferentes grupos humanos”, não se restringindo, portanto, somente às necessidades e matérias disponíveis (ibid.: 125-126). O entendimento do fogo como ferramenta precede, no entanto, de uma ressalva. Ao contrário das outras ferramentas, que operam sob a ação humana, o fogo possui um ritmo que pode fugir ao controle humano, como observa Fagundes (2016: 63):

3 A palavra “caçando” aqui assume o sentido de “procurar”, conforme uso regional. 4 Entrevista gravada em 2016, integra o filme Mifando a Ilha.

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Assim como os seres vivos, o fogo possui uma potência (dynamis) própria que o permite agir. Portanto, enquanto uma ferramenta por si só não faz coisa alguma após o gesto motor ser cessado, já o fogo pode ser manipulado para que ele mesmo siga fazendo.

3. Fogo como ferramenta de manejo Quando a primeira mulher (ou talvez o primeiro homem) manipulou o fogo, e posteriormente, conseguiu criar o fogo, aconteceu uma revolução. Essa descoberta na pré-história transformou para sempre a humanidade. Dali em diante as pessoas puderam se aquecer, iluminar ambientes, afugentar animais, se proteger de inimigos, cozinhar e assar seus alimentos. É possível que eles tenham usado o fogo para muitas outras coisas que jamais poderemos compreender, como passamos tantos anos sem compreender que o fogo era usado para e manejar o ambiente natural. Leonel (2000: 236) afirma que “a tecnologia do uso do fogo para queimadas é paralela à grande habilidade e tecnologia utilizada pelos indígenas nos processos de fazer fogo, seja por fricção ou por percussão, de grande eficácia e capazes de serem improvisados.” O autor aponta que os usos mais comuns do fogo entre os diversos povos indígenas são aqueles com o objetivo de plantar uma roça e aqueles com o objetivo de afastar insetos, cobras e outros animais das proximidades da aldeia. Um estudo realizado com os Kayapó no final da década de 80 pelo etnobotânico Darrel Posey demonstrou que havia nas técnicas indígenas um grande conhecimento acerca da manipulação do fogo. A pesquisa tratou do uso do fogo para o plantio, evidenciando que a queima jamais era aleatória, pois caso o fogo fugisse do controle, os índios destruiriam seu próprio trabalho de roçar e plantar. Os Mundurukú também possuem seus conhecimentos técnicos sobre o fogo. Leonel (2000) afirma que o cuidado deste povo com o fogo é tal que se atribui aos anciãos a decisão de seu uso, respeitando os seus conhecimentos acumulados. Serão eles que dirão a melhor época de queimar, e, para além disso “a sua graduação, a qualidade das cinzas e as técnicas de controle do fogo pelos ventos que contam com uma complexa taxinomia, não apenas para uso agrícola, mas ritual e medicinal” (ibid.: 235). Em trabalho realizado junto a povos indígenas do Cerrado, Falleiro (2011), aponta como principais objetivos dos manejos com fogo

228 Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território relatados pelos indígenas a diminuição do capim seco acumulado ao longo dos anos, a manutenção das fitofisionomias mais abertas, como os campos e , a atração de caça nas áreas de capim rebrotando e aumento da frutificação e o rebrote de algumas plantas. Outro uso do manejo do fogo, este, porém, mais restrito a alguns povos, é o uso do fogo com o objetivo de caçar. Melo (2007) se debruça sobre este tema, abrangendo os povos Krahô e Xavante. De acordo com Melo e Saito (2011), a atividade de caçada com uso do fogo praticada pelos Xavante se assemelha aos padrões de queimas indígenas relatados pela literatura. Os autores destacam que a queima é realizada no início da estação seca, evitando queimadas intensas e de grandes extensões, além de manter áreas protegidas do fogo. Os aspectos se assemelham ao conceito de mosaico de queima que tem sido proposto pela técnica de Manejo Integrado do Fogo.

4. Fogo Karajá: “mifando” a Ilha Na bibliografia sobre o povo Karajá, as menções ao fogo são raras e estão principalmente relacionadas à origem cosmológica do fogo e ao fogo utilizado para a produção de cerâmica, especialmente as bonecas, chamadas ritxoko. Toral (1992) apresenta narrativas que mencionam o fogo, como a de Kanysiwè, considerado herói transformador e criador dos Karajá. Com suas costumeiras artimanhas, Kanysiwè conseguiu o fogo do urubu-rei. Quanto aos usos do fogo no manejo territorial, há apenas uma rápida menção à abertura de uma roça próxima à aldeia Santa Isabel em Lima Filho (1994). Os incêndios são raramente mencionados em pesquisas sobre os Karajá. Há também poucas informações sobre a relação dos Karajá com o meio ambiente, evidenciando uma grande carência de pesquisas sobre gestão territorial dos indígenas na TI Parque do Araguaia. Sendo assim, as informações sobre a relação dos Karajá com o fogo foram obtidas sobretudo em pesquisa de campo, tendo sido realizadas entrevistas individuais (algumas gravadas) e roda de conversa com um grupo. De 2015 a 2018 o Ibama realizou, em parceria com a Funai, o MIF na TI Parque do Araguaia. Cerca de 45.000 ha foram manejados em 2015 e 259.596 ha em 2016. Os resultados foram satisfatórios para o Ibama, embora conflitos devido à criação de gado impediram a queima precoce de uma área mais significativa (Falleiro et al. 2016).

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Durante o MIF, realizado em 2016, gravei entrevistas com representantes das instituições governamentais, instituições parceiras e brigadistas indígenas Xerente, Krahô, Javaé e Karajá. Esses registros, somados às entrevistas já realizadas, compõem o filme “Mifando a Ilha”.5 “Mifando a Ilha” foi exibido na Aldeia Fontoura com o objetivo de mostrar para os indígenas o trabalho desenvolvido pelos brigadistas, introduzir o conceito de MIF e demonstrar que a visão do Estado sobre o uso do fogo está se abrindo ao conhecimento indígena. Em seguida, em roda de conversa, os indígenas elencaram os diversos tipos de uso do fogo que ocorrem na Ilha do Bananal e os caracterizaram. Ao final do trabalho, tínhamos os seguintes tipos de uso do fogo: fogo para provocar a rebrota do capim, fogo para abrir caminho para pescar nos lagos, fogo para afastar insetos e animais, fogo para a abertura de novas áreas de roça, fogo utilizado para a comunicação, fogo para extrair mel e, finalmente, o fogo do MIF. A metodologia da roda de conversa foi inspirada nas pesquisas já mencionadas anteriormente, especialmente as realizadas pelo Ibama. Cada tipo de fogo mencionado deveria ser caracterizado com a resposta das seguintes perguntas: a) Por quê? - Qual o objetivo daquele tipo de fogo; b) Onde? Em qual local, em que tipo de vegetação; c) Quando? Em que período da história, em que período do ano, em que momento do dia e quais os critérios de definição; d) Como? Quais as técnicas utilizadas e o que era levado em consi- deração e; e) Quem? Que grupo de pessoas realiza aquele tipo de fogo.

Para melhor compreender a visão dos Karajá sobre o fogo em seu território, não houve a princípio distinção entre o fogo utilizado pelos indígenas e o fogo utilizado pelos não indígenas dentro da TI, a fim de observar se e como eles fariam essa distinção.

5 O título do filme é inspirado no termo “MIF”, que, em tom de brincadeira, é transfor- mado no verbo “mifar” pelos especialistas no tema. O filme está disponível no YouTu- be: https://www.youtube.com/watch?v=_cq_rEveT2set=169s.

230 Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território

5. O fogo de antigamente Embora na roda de conversa realizada não tenha sido feita uma distinção em relação ao “fogo de antigamente” e o “fogo de hoje”, esta separação marcou a fala dos participantes. Ainda que no início dos diálogos eu tenha contextualizado a importância dos conhecimentos ancestrais no manejo do território, sempre os indígenas se mostravam na defensiva, fazendo uma nítida distinção sobre o fogo feito tradicionalmente e o fogo realizado atualmente, destacando que antes o fogo era “controlado” e “não era de qualquer jeito”. Provavelmente, tal atitude tem origem nos muitos anos que a prática das queimadas era proibida, pensamento que até hoje está presente no senso comum da sociedade envolvente. Os tipos de fogo que foram caracterizados como algo do passado são o fogo para a abertura de novas áreas de roça e o fogo utilizado para a comunicação. Estes tipos de fogo não foram mencionados espontaneamente pelos indígenas entrevistados individualmente, mas quando questionados, eles confirmavam que antigamente se utilizava o fogo para estes fins também. Durante a roda de conversa, os indígenas disseram que hoje não há mais ninguém que faça roça da maneira tradicional. Segundo eles, ninguém se dispõe a buscar novos lugares para a roça e há apenas pequenos plantios nos quintais das casas. A técnica de seus antepassados consistia em derrubar a mata e colocar fogo à tarde, por volta de 15 horas, no momento em que não venta. Eles afirmaram que seus avós sabiam queimar exatamente aonde queriam: limpavam a área ao redor para o fogo não “escapar” e ficavam no local cuidando e controlando o fogo até a finalização da queima. Segundo eles, o fogo deixa a terra “fofa e adubada”, por isso é usado para abertura de roça aonde a mata é fechada. Kabitxana Karajá é considerado um grande conhecedor da roça tradicional. Ele possui a maior roça da aldeia Fontoura,6 sendo que não há muitas roças Karajá, o que se encontra mais são plantios em quintais. Ele explica um pouco do processo: “a roça de Karajá começa mês de maio. Roçando, roçando, aí quando acaba de roçar, aí derruba madeira grande, com o machado. Dois meses para terminar tudo, né,

6 Em 2017, Kabitxana mudou-se para a mais nova aldeia Karajá, a aldeia Werreria, abandonando assim sua roça em Fontoura.

231 Lilian Brandt Calçavara e mês de agosto queima”.7 Wadjuria Karajá também relatou a mesma técnica e complementou: “não é branco que ensinou, eles mesmos que aprenderam a fazer roça de toco”. Esta observação é encontrada também na literatura. Leonel (2000), menciona que quando a época da queima se aproxima, os indígenas definem a área a ser queimada e protegem Ilhas abundantes em plantas úteis. A técnica utilizada consiste em cercar com grama seca, arbustos e com plantas, que conforme o autor, os indígenas acreditam que ‘gostam de fogo’, porque o retêm por mais tempo. Nas palavras do autor:

Durante a queima, os índios permanecem atentos, armados com ramos de palmeiras e de banana brava, todos preparados, como bombeiros, para que o fogo domine apenas o que se planejou, para que a queimada não se descontrole sobre suas reservas, seus locais de descanso, de refúgio e de defesa, suas hortas e jardins, suas ‘Ilhas’, que com tanto cuidado cultivaram ao longo dos anos. O fogo descontrolado e ameaçador é, assim, abafado (Leonel 2000: 235).

Sobre o fogo utilizado para comunicar – o famoso “sinal de fumaça” – não há muitas informações. Mas os Karajás disseram que antigamente seus antepassados usavam o fogo para avisar as esposas que estavam voltando da pesca. Era um fogo utilizado “com sabedoria”, conforme relataram os indígenas, em um local previamente combinado com as esposas.

6. O fogo de hoje Os Karajá apresentaram como principais usos do fogo e que eles produzem atualmente é a intenção de afastar insetos e animais como cobras e onças, de abrir caminho para pescar nos lagos e de extrair mel. A queima para afastar “animais perigosos” é realizada nas proximidades das aldeias durante toda a época da seca. Segundo os indígenas, diversas pessoas iniciam o fogo, até mulheres e crianças. “Hoje é de qualquer jeito, mas antes não era assim”, disseram. Em relação aos grandes incêndios provocados por indígenas na Ilha do Bananal, eles acreditam que a principal causa é o fogo utilizado para facilitar o acesso aos lagos para pesca. O fogo faz uma grande estrada por onde podem transitar carros e motos, chegando em lagos isolados. Segundo os indígenas, este fogo é realizado durante o ano todo,

7 Entrevista gravada em 2016, integra o filme Mifando a Ilha.

232 Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território sempre que as condições ambientais permitem. Eles ainda disseram que são poucos os indígenas que provocam esses incêndios, mas que causam grandes estragos. Novamente, os indígenas destacaram que antigamente isso não ocorria. Eles afirmaram que muitas pessoas acham ruim, mas não podem falar nada, pois isso poderia causar “confusão e briga” nas aldeias. Por fim, foi citado um uso bem pontual do fogo, que é o fogo para retirar mel das colmeias de abelhas. Este fogo, segundo os indígenas, é um fogo que deve produzir muita fumaça para afugentar as abelhas, por isso é feito com galhos verdes. A retirada do mel é feita no período das águas, de outubro a fevereiro. Eles ressaltaram que hoje em dia são poucos indígenas que tiram mel, ainda que o alimento tenha um grande valor na cultura Karajá (há, inclusive, a Festa do Mel, hoje realizada muitas vezes com um “mel” feito de açúcar branco). Sobre o MIF, os indígenas destacaram que as queimas prescritas ocorrem nas estradas e locais onde o mapa de combustível aponta como de alto risco. Os brigadistas são indígenas e acompanham todas as fases do processo. Idealmente deveria ocorrer um acordo entre instituições e comunidade, mas os indígenas que participaram da roda de conversa disseram, no entanto, que não há troca de informações com a comunidade

7. O fogo dos outros Há uma nítida diferença dos tipos de fogo mencionados para o fogo utilizado para a rebrota do capim: quem faz este fogo “são os outros”. O tema pode ser considerado um tabu. Embora seja evidente o conflito que a presença do gado causa na comunidade, os indígenas, de maneira geral, não se sentem confortáveis para falar sobre isso, pois o gado é o responsável pela maior parte da renda da comunidade, administrada pelo cacique. As informações obtidas na roda de conversa foram as de que a queima para a rebrota do capim é realizada na época da seca, de junho a outubro, conforme o ano. Quem faz este tipo de queima na maior parte das vezes são os retireiros tori (não indígenas) que moram na Ilha do Bananal. O maior incômodo é que este fogo é feito sem consultar os indígenas.

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8. O problema do fogo Os Karajá presentes na roda de conversa afirmaram que o fogo atualmente só tem causado danos. Antes era muito comum que eles saíssem nos arredores da aldeia para coletar frutas, mas agora não têm feito isso, pois os incêndios mataram muitas árvores frutíferas. Segundo Cleber Karajá, antes, as frutas do cerrado faziam parte da alimentação diária dos Karajá. Agora, todos se alimentam mais de produtos industrializados, adquiridos nos supermercados da cidade. Por isso, muitos da comunidade não se dão conta da perda das frutas nativas que antes tinham perto das aldeias. De acordo com Melo e Saito (2011), a passagem do fogo se relaciona de diferentes maneiras com a flora do Cerrado. Algumas espécies têm sua floração estimulada, sincronizando a produção de flores e permitindo a polinização cruzada. Espécies que dispersam suas sementes pelo vento são favorecidas com a limpeza do solo e o deslocamento das sementes. Fica evidente, portanto, que não é o fogo que tem prejudicado o extrativismo, mas sim o uso do fogo sem o respeito às técnicas ancestrais. Ocorre hoje um fogo com alta intensidade, realizado com maior frequência do que a capacidade de regeneração do Cerrado, feito à revelia do conhecimento que os mais velhos tinham. Os relatos dos indígenas deixam claro que este fogo, em grande parte, não é feito pelos indígenas, como conta Ituhere Karajá:8

As árvores de flor, candeia e aquela madeira que dá mais flor em setembro, mais boniteza de natureza do rio Araguaia, agora hoje não tem mais não, tá tudo caindo, porque tem muito fogo. É vaqueiro, é eles andando na Ilha. Onde é que você andava lá não tem mais natureza e boniteza, acabou tudo.

Foi ressaltado diversas vezes que os tipos de fogo que causam mais problemas são o fogo para o “gado” e o para “abrir caminho”. Por mais que fosse dito que o interesse naquele momento era sobre os tipos de fogo tradicionalmente realizados pelos Karajá, estes dois tipos de fogo centralizaram as discussões, evidenciando um conflito quanto ao uso do território e a necessidade de se pautar o tema na comunidade. O gado já destruiu muitos plantios, muitos gramados de campos de futebol e já estragou muitas coisas nos quintais. O gado já custou fortunas para o governo, em grandes operações para a retirada de todos

8 Entrevista concedida em 04 de fevereiro de 2016.

234 Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território os animais que não pertenciam aos indígenas e que usufruíam daquele recurso que, em tese, deve ser para uso exclusivo dos indígenas, como rege nossa Constituição. Mas o gado garante um dinheiro que nenhuma outra atividade já praticada na Ilha do Bananal lhes garante. Embora seja questionável a aplicação deste recurso e a transparência de seu uso, não pode ser ignorado que nenhuma instituição e nenhuma outra atividade se mostrou até o momento em iguais condições de custo-benefício para o povo Inỹ. No entanto, os indígenas se mostraram insatisfeitos com o uso inconsequente do fogo para que a rebrota do capim sirva de alimento para o gado. Muitos também disseram abertamente que, se posicionar contra esta ação dos retireiros, os coloca em conflito com as lideranças. Mas é preciso que saibamos diferenciar os tipos de crítica. Criticar o uso do fogo feito pelos criadores de gado não é o mesmo que criticar o uso do território para a criação de gado. A crítica à criação de gado em si é feita, de maneira geral, apenas pelas instituições que atuam na Ilha, mas não corresponde ao desejo da comunidade. Como solução para o problema do fogo, os indígenas sugeriram que o Ibama aplicasse multas aos retireiros que colocam fogo, pois segundo eles, só assim poderia melhorar a situação. Ou seja, não se deseja que o gado seja retirado, mas sim que o fogo seja controlado. Apesar das evidências, nem a Funai e nem o Ibama têm enfrentado a questão do fogo na Ilha do Bananal a partir da criação de gado. No entanto, sendo a situação insustentável ambientalmente e socialmente, não existe outro caminho. O fato de se tratar de uma atividade ilegal e também dos crescentes cortes de recursos destes órgãos, certamente tem impedido um trabalho neste sentido. Em última análise, se gastaria menos recurso agindo estrategicamente com foco na causa do problema. Apesar de continuamente haver ameaças de que o gado deverá ser novamente retirado da Ilha, politicamente, caminha-se no sentido de ou deixar como está, por falta de condições dos órgãos de atuar efetivamente, ou de tal atividade ser legalizada, como pretendem há alguns anos uma grande parte dos deputados. Caso o gado de não indígenas permaneça na Ilha (legalmente ou não), para que o MIF seja efetivo, o planejamento deveria ser feito com a participação dos retireiros e dos indígenas. As sanções devem ser cogitadas, principalmente, por parte da comunidade, que é afinal a instância interessada no arrendamento da terra.

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Em relação ao uso do fogo para abrir estradas, o tabu foi ainda maior por tratar-se de pessoas da comunidade. Foi colocado pelos indígenas que a Brigada Indígena poderia contribuir, dando palestras nas aldeias sobre os danos do fogo, como já ocorreu em anos anteriores. Neste caso, a atuação dos órgãos governamentais é limitada, cabendo fortalecer as decisões comunitárias e a coesão social.

Conclusão Vale para o fogo o ditado que diz “a diferença entre o veneno e o remédio é a dose”. Se o fogo é entendido como essencial para a manutenção das savanas, sabemos também que seu mau uso compromete a biodiversidade e consequentemente, a gestão de um território. O que a fala dos Karajá evidencia é o que somente agora nossa sociedade começa a perceber. Há uma ciência do fogo, baseada na experiência prática, na observação, na classificação e na reflexão. A caracterização dos tipos de fogo mostra que há usos do fogo que são positivos e usos que são considerados negativos. O fogo bom é aquele que estimula a diversidade, que possibilita a fácil regeneração e que é realizado a partir da sabedoria indígena. É o fogo que melhora a terra, estimula a frutificação, facilita o deslocamento no território. É, enfim, o fogo para o manejo do território. O sucesso deste tipo de fogo não é mera casualidade, mas sim resultado do acúmulo de experiências e reflexões, gerando uma tecnologia essencialmente indígena. O fogo ruim é o fogo descontrolado, que não os beneficia diretamente, mas apenas a animais de terceiros; um fogo que assusta ao se aproximar das aldeias, que mata animais selvagens e árvores frutíferas, que os desestimula a andar no território. Os Karajá, enquanto povo, certamente possuem esses conhecimen- tos e noutros tempos manejaram com propriedade a Ilha do Bananal. As circunstâncias atuais do território e as mudanças culturais os afastaram dessas práticas. Resgatar e ressignificar os conhecimentos dos seus ancestrais poderia contribuir significativamente na apropriação de seu território, que hoje se encontra em grande parte sendo utilizado por não indígenas, que não dialogam sobre questões que afetam todos que vivem na Ilha do Bananal, especialmente, sobre o fogo. Este trabalho não seria fácil, devido à ausência de pesquisas que registrem o conhecimento ancestral sobre o manejo do fogo e sobre as

236 Ilha do Bananal em chamas – Os Karajá e o fogo em seu território adaptações que foram feitas a partir da alteração das circunstâncias, como a antropização da região e as mudanças climáticas, que sequer foram abordadas nesta pesquisa, mas que dialogam com o tema. O problema institucional é executar uma política pública que carece de ouvir os indígenas, de modo a garantir de fato a participação, troca de conhecimentos e o respeito à autonomia, reconhecendo que precisa sempre se aprimorar. Uma solução possível seria sistematizar o conhecimento ancestral que ainda pode ser lembrado e possibilitar maior protagonismo indígena na tomada de decisões sobre o fogo no seu território. As instituições do Estado também poderiam ter um importante papel na mediação de conflitos entre os indígenas e os retireiros não indígenas. O fogo que afeta o uso do território pelos Karajá poderia, mediante um dedicado trabalho, se transformar no fogo que favorece a biodiversidade, o trânsito dos indígenas e o uso sustentável do território. Desta maneira, o fogo passaria de vilão a mediador dos conflitos socioambientais na Ilha do Bananal.

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Linguística

Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas1

Maxwell Miranda Universidade Federal de Mato Grosso

Introdução Nos últimos 20 anos, o volume de descrições linguísticas e publicações científicas sobre línguas Macro-Jê, sobretudo aquelas filiadas à família Jê, aumentou consideravelmente, ampliando não só o conhecimento delas em diversos níveis de análise (fonológico, morfológico, sintático), mas também as possibilidades de avançar a compreensão sobre os princípios gramaticais subjacentes à sua organização e funcionamento, tanto do ponto de vista sincrônico quanto diacrônico. Apesar de algumas dessas línguas contar com alguns estudos histórico-comparativos, estes baseiam-se fundamentalmente em comparações lexicais (Davis 1966, 1968; Seki 1989; Rodrigues 1999; Rodrigues & Cabral 2007; inter alia), e certas propriedades gramaticais (Wiesemman 1986; Rodrigues 1992, 2000, 2009; Ribeiro 2002; Cabral et al. 2010). O propósito deste texto é mostrar como os estudos diacrônicos relativos às línguas Jê podem avançar, adotando-se a teoria da gramaticalização, com base no modelo teórico proposto por Heine et al. (1991) e Heine e Kuteva (2002, 2007, 2012). A aplicação desse modelo é ilustrada a partir do desenvolvimento diacrônico de algumas formas gramaticais em línguas da família Jê, como (i) número, (ii) aumentativo vs. diminutivo, e (iii) posposições e expressões posposicionais locativas a partir de nomes de partes do corpo. Ao longo desse estudo, argumentarei que a aparente variação sincrônica encontrada dentro da família Jê, na maior parte dos casos, é o resultado de mudanças diacrônicas graduais, as quais tomaram percursos de gramaticalização ora idênticos ora

1 Este artigo reúne alguns dos resultados obtidos por meio do Projeto de Pesquisa Línguas e Culturas indígenas em Mato Grosso sob a ótica da Linguística Antropológica, credenciado junto à Pró-Reitoria de Pesquisa (PROPEq), da Universidade Federal de Mato Grosso, nº 311/2018.

243 Maxwell Miranda distintos, levando ao desenvolvimento de novas funções gramaticais. Com base na comparação entre as diversas línguas dessa família, há indicações de que algumas dessas propriedades gramaticais tiveram a mesma fonte diacrônica, sendo, portanto, passíveis de ser reconstruídos para estágios históricos mais antigos da família como todo. O presente texto está organizado nas seguintes seções. Na seção 1, parte-se do ponto no qual estudos histórico-comparativos chegaram com respeito especificamente à mudança gramatical, pontuando os principais temas discutidos. Na sequência, seção 2, é explorado o desenvolvimento diacrônico de formas gramaticais cobrindo diferentes domínios da gramática, como marcadores de número (2.1), aumentativo vs. diminutivo (2.2), e posposições e/ou expressões locativas a partir de nomes de partes do corpo (2.3). A seção 3 é voltada para a discussão para onde os estudos diacrônicos podem seguir, em que se demonstra a aplicabilidade da teoria da gramaticalização, baseada no modelo proposto por Heine et al. (1991) e Heine e Kuteva (2002, 2007, 2012), enquanto caminho alternativo, sem desconsiderar métodos tradicionais da Linguística Histórica, como o Método Comparativo e da Reconstrução Interna. O artigo finaliza com uma sistematização dos resultados obtidos, ressaltando não só a aplicabilidade da teoria da gramaticalização, mas também sua contribuição como importante ferramenta para o estudo das mudanças gramaticais como um todo que as pesquisas sobre esse tópico podem se beneficiar.

1. Estudos histórico-comparativos das línguas Jê: aonde chegamos? Rodrigues (2002: 11), em seu artigo, Para o estudo histórico- comparativo das línguas Jê, sugere, dentre diversas tarefas básicas imediatas, a comparação dos seguintes subsistemas gramaticais: “marcadores de pessoa, marcadores relacionais, nominatividade x ergatividade, posposições, marcadores evidenciais, etc.” Desde então, alguns desses tópicos passaram fazer parte da agenda de pesquisa e a contar com análises diacrônicas mais abrangentes, como flexão relacional (Rodrigues 2000, 2009), marcadores pessoais (Cabral et al. 2010) e sistemas de marcação de caso (Cabral e Costa 2004; Castro Alves 2010). A esse conjunto de propriedades gramaticais outros tópicos podem ser acrescidos, como por exemplo, o morfema de posse alienável –õ, que funciona como um classificador possessivo, e apresenta correspondências de forma e função em outras línguas Macro-Jê, como Bóroro –o, Maxakalí –õŋ ~ –jõŋ, e Karirí u– (Rodrigues

244 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

1992, 1999; Ribeiro 2002). Outros aspectos gramaticais, no entanto, ainda carecem de estudos detalhados dado o papel fundamental que exercem na organização gramatical dessas línguas, como é o caso de posposições, que podem marcar tanto argumentos nucleares (S/A/O) de predicados verbais nominalizados e diversos predicados não verbais (identificacionais, possessivos e existenciais), quanto argumentos oblíquos típicos de verbos que exigem um objeto indireto. Os resultados obtidos no âmbito da Linguística Histórica a partir das línguas Jê ainda são bastante limitados, apesar de alguns esforços comparativos ter sido feitos nessa direção, quando são considerados outras propriedades e/ou categorias gramaticais, como número, morfologia derivacional avaliativa (aumentativo vs. diminutivo), nominalização (lexical vs. oracional), classificação nominal, verbos classificatórios, tempo, aspecto, modo, modalidade, evidencialidade, negação, concordância verbal, predicação verbal e não verbal, mudança de valência, combinação de orações independentes, construções comparativas, estratégias de subordinação, estruturas de tópico e foco, entre outras. Ainda que Rodrigues (1999) tenha tratado de alguns desses tópicos previamente, a fim de fornecer um perfil tipológico dos padrões gramaticais mais recorrentes em línguas Macro-Jê, assinalando as afinidades gramaticais entre elas, a maioria deles ainda não foi submetida a um exame mais profundo com vista à reconstrução interna de famílias específicas e, consequentemente, à comparação a nível de agrupamento linguístico mais amplo, fazendo com que o tronco Macro- Jê ainda seja visto como uma “hipótese em trabalho” (Rodrigues 1999: 165). Entre as línguas da família Jê, alguns desses traços tipológicos são mais recorrentes e facilmente reconhecíveis em diferentes línguas que em outras, dada a relativa estabilidade de padrões oracionais nos quais eles ocorrem (Nichols 2003). Desse modo, deve-se considerar que as diferenças internas inerentes à família são o produto de sucessivas mudanças diacrônicas que levaram ao desenvolvimento de novas formas e funções gramaticais, coexistindo ou substituindo aquelas mais antigas, ou ainda que certas formas gramaticais tenham se tornado cada vez mais especializadas, motivadas pelo uso em distintos contextos discursivo-pragmáticos. Ainda que a distribuição das línguas Jê em três ramos principais (Setentrional, Central e Meridional) seja mais de caráter geográfico que propriamente linguístico, os esforços dispendidos, até o momento,

245 Maxwell Miranda têm se concentrado sobretudo naquelas línguas com maior número de propriedades gramaticais compartilhadas, excluindo na mesma medida aqueles membros mais divergentes, com o propósito de viabilizar o empreendimento comparativo. Um caso típico dentro do ramo Setentrionais da família Jê é a língua Panará (Dourado 2001; Bardagil- Mas 2018), a qual apresenta aparentemente diferenças tipológicas notáveis, como ordem de constituintes, padrões de marcação de caso, concordância verbal, serialização verbal etc., em comparação com os demais membros desse ramo, como Apinajé, Kĩsêdjê (Suyá), Mẽbêngôkre (Kayapó), Tapayuna e Timbira. Um efeito negativo disso é que essa língua tem sido excluída com frequência de estudos histórico- comparativos mais abrangentes e, consequentemente, dificultando uma compreensão mais nítida sobre sua posição e relação genética com as outras línguas setentrionais, bem como com aquelas dos ramos Central e Meridional. Na seção a seguir, mostramos o desenvolvimento histórico das formas gramaticais que exprimem (i) número, (ii) aumentativo/ diminutivo, e (iii) posposições e expressões posposicionais locativas a partir de nomes de partes do corpo. Para as formas gramaticais examinadas aqui, é possível recuperar suas respectivas fontes diacrônicas, sendo que a variação sincrônica encontrada com respeito ao comportamento morfossintático delas nas línguas Jê, nada mais é que o reflexo de diferentes estágios de gramaticalização, indo do mais lexical ao mais gramatical.

2. Do léxico à gramática: o desenvolvimento de formas gramaticais em línguas Jê A morfologia da maior parte das línguas Jê caracteriza-se por ser do tipo analítica, apesar de algumas delas ainda exibir propriedades flexionais, como flexão relacional (Rodrigues 1999, 2000). Outras categorias gramaticais, por sua vez, exibem graus variados de integração morfológica e transparência semântica, os quais podem ser vistos dentro de um continuum, indo do mais lexical/independente ao mais gramatical/preso ou dependente. Nesse cenário de variação interlinguística e, aparentemente, enigmático, uma tarefa que se coloca após o estabelecimento de correspondências formais e funcionais é identificar as prováveis fontes diacrônicas a partir das quais tais formas gramaticais desenvolveram e gramaticalizaram em diferentes línguas e, ao mesmo tempo, explicar o processo de gramaticalização, resultando na

246 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas coexistência de novas formas gramaticais com as mais antigas, podendo ou não levar à substituição gradativa destas por aquelas. Para os nossos propósitos, exploramos, nesta seção, a gramatica- lização das seguintes formas gramaticais: número (2.1), aumentativo vs. diminutivo (2.2), posposições e expressões posposicionais locativas a partir de nomes de partes do corpo (2.3).

2.1 Expressão e marcação de número A marcação da categoria número não é obrigatória na maioria das línguas Jê, já que ela pode ser inferida a partir do contexto pragmático ou das propriedades lexicais do verbo.2 Conforme foi ressaltado por Santos (1997), em Kĩsêdjê (Suyá), enunciados como (1) podem ser interpretados tanto no singular quanto no plural.

(1) Kĩsêdjê (Suyá) (Santos 1997: 30) hɛ̃n wa pen kasoso asp 1sg mangaba chupar ‘Eu chupei mangaba.’ / ‘Eu chupei mangabas.’

Distinções relativas à categoria de número, quando marcada, podem ser codificadas secundariamente por pronomes indefinidos, demonstrativos, numerais, quantificadores e coletivizadores. Apesar da considerável variação interlinguística quanto aos dispositivos sintáticos usados para distinguir número, um exame mais cuidadoso acerca do comportamento sincrônico dessa categoria gramatical revelará um antigo padrão morfológico regular, pelo menos nas línguas Jê Setentrionais, coexistindo com novas formas gramaticais, as quais resultaram da gramaticalização de itens lexicais para essa função. A consequência desse processo tem sido a substituição gradativa do padrão antigo e, consequentemente, a perda total dele em algumas línguas, por novas

2 Um traço tipológico inerente às línguas Jê é a supleção verbal, cujas formas distin- tas se opõem para expressar pluracionalidade de ação (única vs. múltipla) (D’Angelis 2004) que, por extensão, pode associar-se também ao número do argumento interno do verbo, como em Krahô, -kura ‘matar.sg’ e -ipej ‘matar.pl’. Além disso, a supleção verbal pode ser determinada por finitude, contrastando formas finitas vs. não finitas (nominalizadas).

247 Maxwell Miranda estratégias, assim como o surgimento de novas distinções de número, como o paucal, em línguas como Mẽbêngôkre e variedades dialetais, Xikrin, Kĩsêdjê (Suyá) e Tapayuna. Nessa seção, tratamos da expressão e marcação de número em nomes, destacando padrões regulares e, na sequência, em 2.2.1, de outras distinções de número presentes nas línguas mencionadas, mas inexistente em outros membros da família. Em línguas Jê, sincronicamente, a categoria número em nomes3 é mar- cada para o plural, enquanto o singular é não marcado. Desse modo, a expressão de plural pode manifestar-se a depender da língua de diferen- tes maneiras, dentre as quais duas estratégias gramaticais se destacam, uma morfológica e outra sintática. A estratégia morfológica emprega o morfema –je, enquanto a estratégia sintática envolve diversas pala- vras plurais (Dryer 1989), como mẽ, nas línguas do ramo Setentrionais, nõrĩ naquelas do ramo central, e ag/óg em línguas do ramo meridio- nal. Ambas estratégias também diferem quanto à ordem/posição que esses morfemas ocupam em relação ao nome ao qual se vinculam, assim como graus variados de complexidade e integração morfológica, escopo semântico e frequência de uso. A marcação da categoria de número por meio do sufixo je- em radicais nominais varia amplamente nas línguas que dispõem dessa estratégia morfológica. Esse morfema apresenta alta frequência de uso em kĩsêdjê (Suyá) e Tapayuna, mas relativamente baixa em Apinajé. A ocorrência desse sufixo pode ser determinada por fatores semânticos, como em Tapayuna, em que é restrito a nomes [+humano], exemplos em (2), mas independe do tipo semântico de nome, como nos exemplos (3) e (4), a partir das línguas kĩsêdjê (Suyá) e Apinajé.

(2) Tapayuna (Camargo 2015: 87) ŋgʌtɨrɛj ‘criança’  ŋgʌtɨrɛj + -je ‘crianças’ wɨrɛj ‘mulher’  wɨrɛj + -je ‘mulheres’ wẽwɨ ‘homem’  wẽwɨ + -je ‘homens’

3 Não consideraremos aqui traços semânticos, como contável vs. massa, humano vs. não humano, animado vs. inanimado etc., que podem eventualmente incidir sobre a marcação de número e empregar diferentes morfemas com base nessas propriedades.

248 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

(3) Kĩsêdjê (Suyá) (Santos 1997: 28-29) ngwəy ‘panela’  ngwə-ye ‘panelas’ kĩ sere ‘aldeia queimada’  kĩsed-ye ‘aldeias queimadas’ hwĩsosokande ‘professor’  hwĩsosokande-ye ‘professores’ ngetũm ‘avô’  ngetũm-ye ‘avôs’

(5) Apinajé (Waller 1976: 3; Koopman 1976: 5) a. ‘ãmri=nhũm ‘tem inh-mã ‘i-xi-jê jarẽ então costumar 1sg-dat 1poss-nome-pl dizer ‘Eles me diziam os nomes (dos animais).’

b. ix-krare nã rop-je tak 1poss-filho tempo cachorro-pl bater.pl ‘Meu filho bateu (repetidas vezes) nos cachorros.’

Já em Krahô (Timbira), a expressão de pluralidade por meio do sufixo je– em radicais nominais não é tão frequente como nas línguas examinadas acima, visto que somente aqueles com o traço semântico [+humano] ainda conservam esse padrão morfológico, como é indicado em (6).

(6) Krahô (Timbira) (Miranda, notas de campo) mẽ=intuw ‘jovem/rapaz’  mẽ=intuwa-je ‘jovens/rapazes’ ket ‘antepassado’  ket-je ‘antepassados’ hũm ‘pai dele’  hũm-je ‘pais dele’

Conforme foi observado por Santos (1997: 31), esse sufixo, em alguns casos, pode fundir-se com o radical nominal, tornando indistinguível a fronteira morfológica, mas conservando o conceito de pluralidade, como no seguinte par de palavras da língua Krahô, kahãj ‘mulher/fêmea’ e pɨje ‘mulheres’.

249 Maxwell Miranda

Apesar do sufixo je- ocorrer com razoável frequência em radicais nominais nessas línguas, ele é empregado regularmente com outras classes lexicais, como pronomes demonstrativos (Santos 1997: 61; Miranda 2014: 111; Camargo 2015: 109), ao passo que em variedades Timbira, como Canela-Ramkôkamekrá e Krahô, esse sufixo também pode se combinar com pronomes interrogativos (Popjes & Popjes 1986; Miranda 2014: 113). Como foi mencionado antes, além da estratégia morfológica, número plural manifesta-se por meio do uso de palavras plurais, as quais são definidas por Dryer (1989: 864) como “[...] um morfema cujo significado e função são similares àqueles de sufixos plurais em outras línguas, mas que é uma palavra separada que funciona como um modificador do nome”. De modo geral, palavras plurais em línguas Jê têm diferentes fontes lexicais, as quais se referem a ‘pessoa’ ou ‘gente’, como mẽ e ag/óg em línguas dos ramos Setentrional e Meridional, respectivamente, e ‘grupo (de pessoas)’ como nõrĩ em Xavante e Xerente. Como é esperado em contextos de gramaticalização, usos lexicais dessas palavras coexistem com a função gramatical em algumas línguas Jê, de acordo com os seguintes exemplos (7) da língua Krahô (Timbira).

(7) Krahô (Timbira) (Miranda, notas de campo) a. ramã mẽ i-poj-Ø já gente rel.nc-chegar-nmlz ‘As pessoas já chegaram.’

b. jõ=ri mã mẽ? int foc gente ‘Onde as pessoas estão?

Em línguas, como Apinajé e Xikrin, observam-se usos mais gramaticalizados da palavra mɛ/mẽ, já que ela indica apenas pluralidade,4 tanto em nomes quanto pronomes (independentes e dependentes), como nos exemplos em (8) e (9).

4 A palavra mẽ é encontrada em lexicalizações, em Apinajé e Xikrin, em que ao se combinar com a palavra indefinida õ/õ, antepondo-se a esta, designa um referente [+humano] indefinido, significando ‘alguém’ (Oliveira 2005: 173; Costa 2015: 86). Em Xikrin, nas situações em que ela designa um conteúdo genérico e referencial, a palavra mẽ vem sempre seguida do quantificadorkw ǝ ‘partitivo’, significando ‘um grupo de gente’, ‘uma parte das pessoas’ (Costa 2015: 62).

250 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

(8) Apinajé (Oliveira 2005: 173, 160) a. mɛ di jaja pl mulher def.art.rdpl ‘as mulheres.’

b. mɛ a-krĩ [pu mɛ] pa krĩ pl 2-sentar.pl hort pl 1.incl sentar.pl ‘Sentem-se, todos vocês, vamos nos sentar e nos reunir.’

c. na pa mɛ ra pĩ kǝ rls 1 pl asp árvore cortar ‘Nós (exclusivo) já derrubamos a árvore.’

(9) Xikrin (Costa 2015: 60-62) a. mẽ ni-ɾɛ na mẽ mrɨ dʒ-ʌɾʌ ɔ dʒa pl fêmea rls pl caça r1-assar.nmlz instr estar.em.pé ‘[...] As mulheres estavam assando a caça.’

b. tãm ʤa gu mẽ əɾə Ø-kaɁõ então irls 1+2 pl dir r1-bater.timbó ‘[...] Então nós vamos para bater timbó.’

c. gwaj mẽ i=ɲõbikwa Ø-mã ku-ŋã 1+2 pl 1=parente r1-dat r2-dar ‘[...] Nós o demos (o colhido) para nossos parentes.’

A língua Panará, por sua vez, apresenta um sistema mais complexo no âmbito da expressão e marcação de número entre as línguas Jê setentrionais. Nessa língua, número plural é codificado pela forma mɛra ~ mera, a qual foi tratada como um sufixo flexional por Dourado (2001: 13),5 ao lado das formas –ra ~ –na dual, as quais se anexam obrigatoriamente a pronomes livres (10a) e opcionalmente a nomes (10b).

5 Conforme descrito por Dourado (2001: 13), a noção de número dos nomes em po- sição argumental é inferida a partir de proclíticos pronominais, prefixos de concor- dância correferentes com eles, ou ainda determinantes (numerais e indefinidos) que coocorrem com eles. Dessa forma, a flexão dos nomes para número cumpre mais a exigências pragmáticas que gramaticais.

251 Maxwell Miranda

(10) Panará (Dourado 2001: 28, 13) a. kamɛrã Ø=kari kyẽ sõ-ri kan ĩkyẽ mã vocês.erg real.tr=2pl.erg 1.dat dar-perf cesta eu abs ‘Vocês me deram uma cesta.’ b. iɔti hẽ Ø=ti =kuri sɔti-mɛra sucuri erg real.tr=3sg.erg =comer-perf bicho-pl ‘A sucuri come bichos.’ Embora a forma mɛra ~ mera difira consideravelmente daquelas encontradas em Apinajé, Kĩsêdjê (Suyá), Krahô (Timbira) e Xikrin, tanto formal quanto distribucionalmente, há pelo menos uma situação que conecta a língua Panará com essas línguas e aponta para a existência de possíveis mudanças diacrônicas que resultaram na neutralização de contrastes semânticos e em um emprego ainda mais gramaticalizado de morfemas de número.6 A flexão de número na classe dos pronomes pessoais contrasta dois padrões morfológicos: pronomes livres plurais são marcados pelo sufixom ɛra ~ mera, ao passo que clíticos pronominais duais se combinam com a forma mẽ e correspondem total ou parcialmente às formas do singular nos casos absolutivo, nominativo, ergativo e dativo,7 de acordo com Tabela 1. Tabela 1. Clíticos pronominais em Panará (Dourado 2001: 44) Absolutivo Ergativo Nominativo Dativo 1ª ra ri ~ re Ø kyẽ Singular 2ª a ~ ha ka ti(a) kã 3ª Ø ti ti mã 1ª ra, pa, mĩ ne ~ re timĩ kyẽ Plural e Paucal 2ª ri(a) kari(a) tiri(a) kã 3ª ra ne ~ re Ø mã 1ª ramẽ rimẽ~ reme mẽ timẽ Dual 2ª amẽ kamẽ timẽ kamẽ 3ª mẽ timẽ timẽ mẽ

6 Em Panará, a palavra pa ‘gente’ corresponde à mẽ em outras línguas Jê setentrionais, podendo referir-se tanto à primeira pessoa plural quanto à terceira pessoa singular ou plural (cf. nota de roda pé 11) (Dourado 2001: 42). 7 Dourado (2001) não segmenta o formativo mẽ das formas duais dos clíticos prono- minais, assim como não menciona de que ele refira à pluralidade.

252 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

Um traço morfossintático pervasivo nas línguas com palavras plurais que corrobora essa hipótese, provém da posição sintática ocupada pela palavra mɛ/mẽ em relação à classe lexical (nomes vs. pronome) com a qual ela se combina. Em Apinajé e Xikrin, pronomes pessoais independentes são seguidos por mɛ/mẽ, como nos exemplos (8c) e (9b), enquanto nomes e pronomes dependentes são antecedidos por ela (8a), (9a) e (9c). Desse modo, do ponto de vista diacrônico, seria viável supor que antes de tais formas pronominais tornar-se clíticos, elas teriam sido pronomes independentes em algum estágio histórico da língua Panará, mantendo a mesma distribuição de mẽ de modo similar às outras línguas Jê setentrionais. Formas que designam número podem também ser usadas em referência à terceira pessoa plural (genérica), dual ou paucal, e aqui há uma nítida oposição entre as línguas que empregam a palavra mɛ/mẽ, como Apinajé, Krahô (Timbira) e Xikrin, e aquelas que têm a forma ar/ay para essa função, como kĩsêdjê (Suyá) e Tapayuna, ou ainda línguas que exibem as duas formas, como Xikrin e Panará. A distinção de número paucal, como argumentarei, em 2.1.1, pode ser considerada uma inovação em um subgrupo de línguas dentro do ramo Setentrional. A gramaticalização envolvendo a palavra ‘pessoa’, ‘gente’ > terceira pessoa plural é bastante comum em diversas línguas (Heine & Kuteva 2002: 237), conforme indicam os seguintes exemplos.

(11) Apinajé (Oliveira 2005: 177) na mɛ atpẽ=mǝ kapẽr ɔ ɲ  rls pl rcpr=dat conversar prt estar.sentado ‘Eles estão conversando um com o outro.’

(12) Krahô (Timbira) (Miranda 2014: 129, 254) a. mẽ=in=kwə-r 3.pl=rel.nc-chorar.pl-nmlz ‘Eles choraram.’

b. pe apu mẽ pĩ Ø-kuprõ? int prog 3.pl lenha rel.c-juntar ‘Eles estão juntando a lenha?’

253 Maxwell Miranda

(13) Xikrin (Costa 2015: 300) mǝkãm mẽ kɛkɛt int pl sorrir ‘Por que eles sorriem?’

As línguas Jê do ramo Meridional, Kaingang e Laklãnõ (xokléng), apresentam um padrão de gramaticalização similar àquele das línguas do ramo Setentrional. Nessas línguas, número plural é marcado nos nomes e pronomes pessoais (independentes e dependentes)8 por meio das formas ag/óg respectivamente. Apesar de não haver menção explícita ao conteúdo lexical dessas palavras (Wiesemann 2011; Gakran 2015), é possível inferir que elas tenham se desenvolvido e gramaticalizado a partir da palavra ‘gente’ O escopo semântico das formas ag/óg difere consideravelmente em ambas as línguas. Em Kaingang, por exemplo, não há restrição semântica quanto ao tipo de nome ao qual a forma ag se prende, como em (14), enquanto a língua Laklãnõ (Xokleng), a marcação de número em nomes baseia-se no traço semântico [±humano], em que a forma óg é usada para referentes [+humano], ao passo que kabág marca referentes [-humano], como nos exemplos em (15).

(14) Kaingang (Domingues 2013: 72) a. pó ag vỹ gĩr kãnignĩ pedra pl ms criança atingir.pl ‘A s pedras atingiram o menino.’

b. kasor vỹ gĩr ag prã cachorro ms criança pl morder ‘O cachorro mordeu os meninos.’

8 Nas línguas Jê Meridionais, a ocorrência da palavra plural ag/óg com outras classes lexicais, como demonstrativos, difere consideravelmente entre si, sendo observada so- mente em Kaingang (Wisemann 2011: 161). No entanto, é importante destacar que os pronomes pessoais de terceira pessoa singular, masculina e feminina, correspondem a pronomes demonstrativos, indicando que aqueles gramaticalizaram-se a partir desses, sendo que este percurso é atestado em várias línguas (Heine & Kuteva 2002: 161).

254 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

(15) Laklãnõ (Xokléng) (Gakran 2015: 106) a. kuzó ‘velho’  kuzó=óg ‘velhos’ kuzó=tõ=tá ‘velha’  kuzó=tõ=tá=óg ‘velhas’ jẽl=tõ=kónhgág ‘menino’  jẽl=tõ=kónhgág=óg ‘meninos’

b. zág ‘pinheiro’  zág kabág ‘muitos pinheiros’ kagklo ‘peixe’  kagklo kabág ‘muitos peixes’ txãggonh ‘passarinho’  txãggõnh kabág ‘muitos passarinhos’

É importante assinalar que, em Kaingang, o uso lexical de ag ainda coexiste com a sua função gramatical, como é mostrado nos exemplos em (16), ao contrário da língua Laklãnõ (xokléng) em que forma óg é usada apenas para indicar número plural (15a).

(16) Kaingang (Wiesemann 2011: 27, 71).9 a. ũn e ag jagypỹ vẽ indef muito gente roçar estat ‘Tem muita gente roçando.’ b. ẽg pénĩn ag e nỹ tĩ 1.pl ao.redor gente muita deitar aux.imperf ‘Vive muito gente ao nosso redor.’

Além de funcionar como uma típica palavra plural, nos termos de Dryer (1989), ag/óg também é usada em referência à terceira pessoa do plural masculina de modo semelhante ao que foi visto nas línguas Jê Setentrionais (Wiesemann 2011: 160; Gakran 2015: 176).

(17) Kaingang (Wiesemann 2011: 43, 45) a. kãmũ ag huri chegar.pl 3pl.masc já ‘Eles já chegaram.’

9 Os dados da língua Kaingang provenientes de Wiesemann (2011) foram reanalisados por mim.

255 Maxwell Miranda

b. fag kékén vẽ 3pl.fem cochichar estat ‘Elas cochicham.’

(18) Laklãnõ (Xokleng) (Gakran 2015: 179) a. jan óg nõdẽ cantar 3pl aux.pl ‘Eles(as) cantam/Eles(as) estão cantando.’

b. óg vũ ti kutxég mũ 3.pl ms 3sg.masc beliscar perf ‘Eles(as) o beliscaram.’ Nesse domínio da gramática, entretanto, as línguas Kaingang e Laklãnõ (Xokleng) exibem diferenças marcantes, decorrentes de prováveis mudanças linguísticas. Primeiramente, o Kaingang apresenta somente um paradigma pessoal, ao contrário do Laklãnõ (xokléng) que distingue dois paradigmas, sendo um constituído por pronomes absolutivos (Série I) e outro por pronomes nominativos (Série II), conforme mostra a Tabela 2. Tabela 2. Pronomes pessoais em Kaingang e Laklãnõ (xokléng)

Kaingang Laklãnõ (Xokléng) Série I Série I Série II 1sg inh enh nũ 2sg ã a mã (ha) ti masc ti ta 3sg fi fem zi zi 1pl ẽg ãg 2pl ãjag mẽ a mã mẽ ag masc 3pl óg fag fem 3corr - ɛ

Mesmo havendo dois paradigmas pessoais, em Laklãnõ (Xokleng), há neutralização de contrastes formais e funcionais, como na primeira e terceira pessoas do plural, e que ainda são mantidos em Kaingang. Outra diferença em relação a esta, é que a somente a primeira dispõe de uma

256 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas terceira pessoa correferencial. Por último, em Kaingang, o pronome de terceira pessoal plural masculina corresponde à própria forma ag, ao passo que sua contraparte feminina é pode ser analisada como uma fusão do pronome de terceira pessoa fi + ag, resultando na forma fag.10 A língua Laklãnõ (Xokleng), por sua vez, não distingue gênero na terceira pessoal do plural, em que a forma óg abrange tanto masculino quanto feminino. As línguas do ramo Central, Xavante e Xerente, exibem diversas estratégias gramaticais para expressar diferentes valores de número,11 como singular, dual e plural, a depender da classe palavra. Nomes e pronomes pessoais marcam o plural por meio da forma nõrĩ, a qual significa ‘grupo (de pessoas)’ (Hall et al. 2004: 74; Cotrim 2016: 135), sendo que seu emprego com radicais nominais é restrito a referentes [+humano].12 Os exemplos em (19) e (20) destacam os usos lexicais e gramaticais da palavra nõrĩ em ambas as línguas.

(19) Xerente (Sousa Filho 2007: 90; Cotrim 2016: 139) a. wa wat akwẽ-nõrĩ kmǝdɨkɨ eu 1pas.perf.real gente-nsg ver ‘Eu vi o povo’ (lit. Eu vi um grupo de gente)

b. pikõi nõrĩ tɛ to nõkkaka mulher pl 3.rls epistm cantar ‘As mulheres estão cantando.’

c. wa nõrĩ kburɛ wa za nõzǝ kmẽ kre 1 pl todos 1 irls milho 3.ass plantar ‘Nós todos vamos plantar o milho.’

10 Como os dados da língua Kaingang sugerem, a palavra ag teria um emprego mais amplo na distinção de número em pronomes pessoais, principalmente se considera- mos hipoteticamente a existência de processos fonológicos, como nasalização, lenição, queda, assimilação e epêntese, os quais teriam atuado a partir da combinação de inh + ag (*inhag > *inhãg > *ijãg > *iãg > *iẽg > ẽg) e ã + ag (> *ã(j)ag) e produzido as formas ẽg e ãjag respectivamente. 11 Essas estratégias envolvem principalmente formas verbais alternantes, a qual é de- terminada pelo número (singular, plural ou dual) do argumento interno do verbo, e enclíticos pronominais que concordam em número e pessoa com o sujeito da oração. 12 Ao contrário do que foi interpretado por Sousa Filho (2007: 90), a forma nõrĩ como pluralizador não se combina com referentes [-humano], conforme sublinhou Arman- do Sõpre, falante nativo da língua.

257 Maxwell Miranda

(20) Xavante (Hall et al. 2004: 74; Oscar Urebete, c.p.) a. aibǝ nõrĩ te aiabarɛ buru u homem grupo 3.imperf ir.pl roça alat ‘O grupo de homens vai à roça.’

b. wa nõrĩ hã wa rom=huri=ni 1sg pl foc 1sg ap=fazer=1.dual/pl ‘Nós dois trabalhamos.’ (lit. Nós dois fizemos algo)

Diferentemente das línguas Jê Setentrionais e Meridionais, em Xerente e Xavante, a palavra nõrĩ não é usada em referência à terceira pessoal plural, já que ambas as línguas contam com pronomes de terceira pessoa específicos, comotahã e õ respectivamente. A terceira pessoa, pelo menos em Xerente, teria se gramaticalizado a partir da combinação do demonstrativo ta ‘aquele’ com a palavra enfática hã (Sousa Filho 2007: 134; Cotrim 2016: 97), enquanto a origem diacrônica da forma õ seja menos evidente em Xavante. Além do desenvolvimento de palavras plurais, um subgrupo de línguas dentro do ramo Setentrional da família Jê – Mẽbêngôkre e variedades dialetais, Xikrin, Kĩsêdjê (Suyá), Panará e Tapayuna – desenvolveu outras distinções de número, como o paucal, que passamos a examinar na subseção 2.3.1.

2.1.1 Outras distinções de número: o paucal O paucal refere-se a um pequeno número de entidades do mundo real distintas entre si (Corbett 2000: 22), diferindo de outros valores de número, como singular, dual e trial, que estabelecem uma quantidade precisa de referentes envolvidos. Conforme foi dito, somente as línguas Mẽbêngôkre (Kayapó), Xikrin, Kĩsêdjê (Suyá), Panará e Tapayuna desenvolveram e gramaticalizaram essa distinção de número. Nessas línguas, o número paucal é marcado exclusivamente na classe dos pronomes pessoais, dos quais é parte integrante total ou parcialmente desse conjunto paradigmático, e é expresso pelas seguintes formas: Xikrin: ari ; Mẽbêngôkre ar; Kĩsêdjê (Suyá), Tapayuna ay/aj respectivamente, e Panará pyɨra, a qual é restrita somente à 3ª pessoa da série independente e demonstrativos, mas regular na série dos clíticos pronominais (cf. Tabela 1). As Tabelas de 3 a 5 mostram a distribuição dos pronomes pessoais, conforme as distinções de número singular,

258 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas paucal e plural em Mẽbêngôkre (Jefferson 2013: 64), Kĩsêdjê (Suyá) (Santos 1997: 45) e Tapayuna (Camargo 2015: 91, 100). Tabela 3. Pronomes pessoais em mẽbêngôkre

Pronomes Independentes Pronomes Dependentes

singular paucal plural singular paucal plural 1 ba bar ba me i ar i me i 2 ga gar ga me a ar a me a 3 Ø ar me Ø ar me 1+2 gu gwaj gu me gu ba gwaj ba me ba

Tabela 4. Pronomes pessoais em kĩsêdjê (Suyá)

Pronomes Independentes Pronomes Dependentes

singular paucal plural singular paucal plural 1 wa way aypa i aʤi- 2 ka kay ayka a aya- 3 Ø ay ~ ayta Ø Ø- 1+2 ku kupa ~ wa kwa wa-

Tabela 5. Pronomes pessoais em Tapayuna

Pronomes Independentes Pronomes Dependentes

singular paucal plural singular plural kowa (1pl.incl) wa (1pl.incl) 1 wa way i- ajwa (1pl.excl) aʤi- (1pl.excl) 2 ka kay ajka a- aja- 3 Ø Ø ku- Ø- 1+2 ko - - -

Do ponto de vista lexical, o mais provável é que essas formas tenham significado orginalmente ‘grupo limitado’ e, portanto, constituído de poucos membros/entidades, em oposição a ‘grupo ilimitado’, conforme foi observado por Jefferson (1989: 21), sobre essa distinção gramatical

259 Maxwell Miranda em mẽbêngôkre, e que é exemplificada em (20) e (21) a partir das línguas Xikrin e Kĩsêdjê (Suyá).

(20) Xikrin13 (Costa 2015: 253, 77) a. aɾi ba ʤa ba aɾi tɔ pauc 1 irls 1 pauc festejar ‘Nós vamos festejar.’

b. aɾi i=ɲ-ĩp j_kot ʤa ba aɾi ŋɾɛ pauc 1=r1-distr irls 1 pauc cantar ‘Cada um de nós vai cantar.’

(21) Kĩsêdjê (Suyá) (Santos 1997: 50) a. way tute pɨ 1.pauc arco pegar ‘Nós pegamos o arco.’

b. wǝtǝ kay s-ĩhwet rɔ ta int 2pauc rel-fazer posp em.pé ‘O que vocês estão fazendo aí?’

Comparando-se os paradigmas pessoais indicados nas Tabelas de 2 a 4, observa-se um continuum com respeito às diferenças formais e funcionais, as quais correspondem a graus variados de complexidade e integração morfológica, bem como a funções gramaticais exercidas pelo número paucal a depender da língua. A variação na expressão morfológica dessa distinção de número pode ser vista como resultado de reduções fonéticas que levaram, a partir da palavra *ari, ou à queda da vogal final /i/, como em Mẽbêngôkre, ou da consoante /r/, com posterior silabificação da vogal /i/, produzindo a aj/aj nas línguas Kĩsêdjê (Suyá) e Tapayuna respectivamente, porém a forma original aɾi foi conservada pela língua Xikrin. Similar à palavra plural mẽ, a forma do paucal ar(i)/ay/aj apresenta o mesmo padrão distribucional, considerando a classe do pronome com a qual se vincula, em que pronomes independentes são seguidos

13 Em Xikrin, uma diferença apontada por Costa (2015: 79-80) é a frequência com a qual a forma aɾi contrai-se com os pronomes pessoais ba e ga, 1ª e 2ª pessoas do sin- gular, resultando nas formas ban e gan, não sendo encontrada em outras variedades dialetais faladas pelos povos Mẽbêngôkre.

260 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas por ela, enquanto pronomes dependentes são antecedidos. Contudo, ao contrário de mẽ, a posição relativa do morfema de número ar(i)/ ay/aj levou consequentemente à integração dessa forma no paradigma pessoal independente, mas não no dependente. Desse modo, o que foi descrito pelas análises anteriores dessas línguas como pronomes pessoais únicos, na realidade, seriam o produto diacrônico da fusão de vogais iguais em fronteira de palavra, como em Mẽbêngôkre, ba/ga + ar > bar/gar (Jefferson 2013: 64), e wa/ka + ay/aj > way/waj e kay/kaj em kĩsêdjê (Suyá) e Tapayuna (Santos 1997: 45; Camargo 2015: 91, 100). Já a forma pronominal gwaj da língua Mẽbêngôkre pode ser interpretada como a combinação de gu + ari, com estágio intermediário em *gwari e subsequente queda da consoante /r/, resultando na forma atual gwaj. Do ponto de vista funcional, as línguas em questão apresentam algumas diferenças quanto às funções gramaticais assumidas pelo número paucal, como consequência dos usos cada vez mais gramaticalizados e generalizados dessa forma, em que a posição relativa dela com respeito ao pronome pessoal levou a criação de contrastes funcionais (paucal vs. plural) em Kĩsêdjê (Suyá) e Tapayuna. Nessas línguas, o paucal e o plural são marcados pela mesma forma nos pronomes independentes de 1ª e 2ª pessoas, diferindo apenas quanto à sua posição. Já na série dos pronomes dependentes, a oposição paucal/plural é neutralizada em todas as pessoas. Embora essas línguas não apresentem um paradigma pessoal dependente regular no número paucal, se comparado àquele da língua Mẽbêngôkre (Tabela 2), é sugestivo que pelo menos a 2ª pessoa plural aya/aja tenha conservado o antigo padrão de marcação, em que ela corresponderia à junção de ay/aj + a. Além de expressar número paucal em Mẽbêngôkre, e com esse valor referir também ao plural em Kĩsêdjê (Suyá) e Tapayuna, a forma ar/ay pode ser encontrada em referência à terceira pessoa plural nos dois primeiros casos, mas ausente no último, tal como ocorre com a palavra plural mẽ em outras línguas Jê setentrionais, ou ainda combinar-se com o pronome de terceira pessoa singular ta, em Kĩsêdjê (Suyá), como nos exemplos (22) e (23).

(22) Mẽbêngôkre (Jefferson 2013: 20) ar a=kôt tẽ 3.pauc 2=com ir ‘Eles (grupo limitado) vão com você’

261 Maxwell Miranda

(23) Kĩsêdjê (Suyá) (Santos 1997: 51) a. ayta ra ku-mba 3pl ms obj-medo ‘Eles o temem.’ b. ta-n ay=s-ɔmũ 3-top pl=rel-ver ‘Ele os vê.’

Essas particularidades funcionais envolvidas na gramaticalização de número paucal a partir do nome *ari ‘grupo limitado’ divide, por um lado, as línguas que empregam esse valor em oposição ao número plural marcado por mẽ, como o Mẽbêngôkre, e por outro, as línguas que teriam expandido e generalizado seu uso para domínios conceituais correlacionados, abarcando a noção de pluralidade, que foi favorecido pela neutralização de oposições semânticas (poucos vs. muitos). O resultado desse processo foi o desenvolvimento de uma nova função para a forma ay/aj em Kĩsêdjê (Suyá) e Tapayuna, tornando-a ainda mais gramaticalizada, em comparação com as demais línguas que dispõem de formas distintas para exprimir ambos valores de número. Nesse cenário de gramaticalização, restaria ainda explicar o surgimento de formas de número em Panará, mesmo que seja em termos hipotéticos. Enquanto o paucal –pyɨra restringe-se somente à terceira pessoa, segundo Dourado (2001: 41), a forma para o dual –ra ~ –na é empregada regularmente no paradigma pronominal em todas as pessoas. A provável origem diacrônica dessa forma estaria no morfema coletivizador –ara ~ –ra, o qual teria significado orginalmente ‘grupo’, passando, em seguida, a expressar coletividade, como em (24). Nesta língua, esse sufixo deriva nomes coletivos [+humano], exceto as palavras kɨpa ‘terra’ e kukrɛ ‘casa’ (Dourado 2001: 15).

(24) Panará (Dourado 2001: 15-16) a. wãtui  wãtu-ara ‘bebê-col’ prĩ  prĩ-ara ‘criança-col’ suãkia  suãkia-ra ‘antepassado-col’ pa  pa-ra ‘gente-col’

b. kɨpa  kɨpa-ra ‘terra-col’ kukrɛ  kukrɛ-ra ‘casa-col’

262 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

A partir desse estágio intermediário, ao invés do número paucal, a língua Panará teria tomado uma direção oposta às outras línguas e gramaticalizado o número dual, tendo como alvo de marcação nomes e pronomes independentes.14 É importante destacar que Bardagil (2018: 104, 113; no prelo) não considera o paucal como um valor de número em Panará ao lado do singular, dual e plural, como o fez Dourado (2001). Do ponto de vista tipológico, conforme é apontado por Corbett (2003: 119), “[A]o contrário de distributivos, contudo, coletivos são compatíveis com duais”, o que de algum modo explica o sincretismo coletivizador > dual em Panará, mas não encontrado em outras línguas. Os fatos descritos nesta seção demonstram a existência de direções alternativas de gramaticalização para morfemas de número, envolvendo as mesmas fontes históricas, cujo uso gradual vai do mais lexical ao mais gramatical, com casos intermediários indicando a coexistência de ambas estratégias gramaticais e diferentes funções gramaticais combinadas com restrições semânticas, como é sistematizado na Tabela 6. Tabela 6. Continuum de gramaticalização da categoria número em línguas Jê Setentrionais

lexical/gramatical –––––––––––––> gramatical Função Gramatical kra mbk apj pan ksd tap 3.pl (Genérica) - - - - mẽ mẽ Plural mɛ - - - Dual - - - mẽ/-ra - - Coletivizador - - - -(a)ra - - 3.pl (Genérica) - - - - ar(i) Paucal - - - ay aj Plural - - - -

Como os dados analisados mostram, antes que tais formas de número tivessem assumido a função ainda mais gramatical de expressar número, em um estágio intermediário, elas teriam servido como dispositivo para referir à terceira pessoa do plural genérica,

14 No que diz respeito à marcação do paucal em clíticos pronominais, observa-se que a maior partes das formas pessoais absolutivas são expressas por meio de ra (Dourado 2001: 44), apontando para uma provável conexão entre tais formas e sua fonte lexical, isto é, o coletivizador –ara.

263 Maxwell Miranda sendo restritas a referentes [+humanos] em virtude de ainda conservar traços semânticos da fonte lexical a partir da qual se desenvolveram. Essa situação explica de algum modo a coexistência de ambas funções gramaticais e graus variados de gramaticalização em boa parte das línguas Jê Setentrionais. No entanto, um caso bastante peculiar nesse cenário de gramaticalização é o da língua Kaingang, cuja forma ag, apesar de ter como fonte lexical a palavra ‘gente’, generalizou-se, via dessemantização, tornando seu conceito original opaco, e passou a abranger referentes [-humano], conforme o exemplo (14a) e (25) abaixo.

(25) Kaingang (Damaris Kanĩsãnh, c.p.) ĩn=ag vỹ vánvár casa=pl ms cair.pl ‘As casas caíram.’

Nas línguas do ramo Central, Xerente a Xavante, a palavra plural nõrĩ também é limitada a referentes [+humano], mas não é empregada em referência à terceira pessoa do plural, já que nelas há formas pronominais próprias para essa função. No entanto, isso não significa que, antes de expressar número plural, a palavranõrĩ não tenha desempenhado uma função gramatical prévia e ainda coexista com ela. De acordo Cotrim (2016: 135), em Xerente, além de indicar pluralidade, ela é empregada como coletivizador de nomes. Esse estágio intermediário anterior à gramaticalização dos diversos valores de número é observado em Panará, como em (24), ainda que o resultado desse processo difira sincronicamente em ambas as línguas. Nesta seção, foi demonstrado que a diversidade de estratégias morfossintáticas e formas para expressar número em línguas Jê são melhor compreendidas a partir de uma perspectiva diacrônica, tomando como ferramenta de investigação a teoria da gramaticalização. Na sequência, examinaremos a morfologia avaliativa para aumentativo e diminutivo, e os diferentes usos e funções assumidos por esse mecanismo derivacional em línguas Jê.

2.2 Morfemas derivacionais para aumentativo e diminutivo Conceitos gramaticais referentes a aumentativo e diminutivo são marcados na maioria das línguas Jê tanto por meio de estratégias

264 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas sintáticas quanto morfológicas, as quais se aplicam na maior parte dos casos a radicais nominais. A ocorrência desses morfemas com radicais verbais, contudo, tem sido reportada para várias línguas da família, como Apinajé (Oliveira 2003, 2005), Xikrin (Costa 2015) e Xerente (Cotrim 2016). Neste contexto, aumentativo e diminutivo atendem mais a funções discursivo-pragmáticas que gramaticais propriamente ditas. Em 2.2.2, argumentarei que as novas funções que eles têm assumido constituem um caso típico de cooptação (Heine et al. 2017), uma vez que tais morfemas sejam o resultado sincrônico de um processo de gramaticalização em grande parte das línguas Jê.

2.2.1 Fontes históricas e gramaticalização de morfemas para aumentativo e diminutivo As categorias gramaticais de aumentativo e diminutivo, em línguas Jê, apresentam uma considerável variação de formas e dispositivos morfossintáticos por meio dos quais elas são codificadas nas respectivas gramáticas. Mesmo nesse cenário de variação, é possível estabelecer correspondências formais e funcionais, as quais sugerem, por um lado, uma origem diacrônica comum para a maioria dos casos, por outro, indicam que as diferenças observadas na expressão formal e status morfológico dessas categorias podem ser visualizadas dentro de um continuum, semelhante ao que foi mostrado na seção 2.1 sobre morfemas de número. Em nomes, aumentativo e diminutivo abrangem diferentes conceitos semânticos e podem ser marcados tanto por meio de palavras independentes quanto por afixos. Ao contrário do que seria esperado, essas formas não se comportam de modo uniforme dentro de um mesmo ramo, e algumas línguas podem ainda apresentar ambas estratégias morfossintáticas. Em um extremo do continuum de integração morfológica, encontram-se línguas que empregam itens lexicais para exprimir noções gramaticais relativas a aumentativo e diminutivo, como as línguas kĩsêdjê (Suyá) (Santos 1997) e Kaingang falado no Paraná (Domingues 2013). Nessas línguas, essas noções manifestam-se por meio de palavras independentes ʧi/mág e sĩrɛ/sĩ, as quais designam ‘grande’ e ‘pequeno’ respectivamente, como ilustram os exemplos (26) e (27).

265 Maxwell Miranda

(26) Kĩsêdjê (Suyá) (Santos 1997: 62, 65) a. a=sĩrɛ 2=pequeno ‘Você é pequeno’

b. ita ra tʃi kumɛni este ms grande muito ‘Este é muito grande’

(27) Kaingang (Domingues 2013: 68) a. kanhgág sĩ vỹ vẽnhkanhrãn índio pequeno ms estudar ‘O indiozinho estuda’

b. hoghog mág vỹ gĩr prã cachorro grande ms criança morder ‘O cachorro grande mordeu a criança’

Em Apinajé, essas formas comportam-se como clíticos de grau (Oliveira 2003, 2005), uma vez que elas conservam algumas propriedades linguísticas de uma palavra autônoma, como acento próprio.

(28) Apinajé (Oliveira 2005:102) a. rɔp=krɔ=rɛ gato=pontilhado=dim ‘onça’

b. tɛp=pɔ=krɔr=ti peixe=largo=pontilhado=aug ‘pacú’ (espécie de peixe.)

Já no outro extremo do continuum, estão as línguas do conjunto dialetal Timbira, do qual o Krahô faz parte, e a língua Xikrin, nas quais ambos morfemas se comportam como sufixos derivacionais, conforme se verifica a partir dos seguintes exemplos em (29) e (30).

266 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

(29) Krahô (Timbira) (Miranda, notas de campo) a. ku=ha pje kakuw-ti tɔ mẽ ikrɛ j-ahe 1dual=exort terra mole-aum instr pl casa rel.c-tapar ‘Nós vamos tapar a casa com terra/barro mole’

b. pje ts-om mã iɁ-rɛrɛk-rɛ terra rel.c-areia dat rel.nc-fofo-dim ‘A areia está fofinha.’ (lit. Existe o fofo para a areia)

(30) Xikrin (Costa 2015: 68) a. mẽ=ni-ɾɛ kapɾĩ-ɾɛ hum=fêmea-aten triste-aten ‘A mulher está tristinha’

b. mẽ=ni-ɾɛ mɛj-ti hum=fêmea-aten bem-intens ‘A mulher está imensamente bem’

Alguns casos intrigantes chamam-nos a atenção quanto ao comportamento sincrônico de certos morfemas em línguas relativamente próximas do ponto de vista genético. Esse é o caso da língua Tapayuna que apresenta afixos para exprimir aumentativo e diminutivo, ao invés de palavras independentes, como seria esperado por ser mais próxima do Kĩsêdjê (Suyá). Além disso, ela difere de outras línguas Jê por dispor aparentemente de dois sufixos para marcar diminutivo, tĩ– e –rɛ, podendo ainda ocorrer a forma –tĩrɛ, sendo o morfema –tĩ mais frequente que os demais, segundo a descrição de Camargo (2015: 79).

(31) Tapayuna (Camargo 2015: 80) a. tara ‘asa’  tara-tĩ ‘asa pequena, asinha’ tara-tĩrɛ ‘asa muito pequena’ b. rɔw ‘onça’  rɔw-tĩ ‘onça pequena, oncinha, gato’ rɔw-tĩrɛ ‘onça muito pequena, gatinho’ c. hrɨ ‘caminho’  hrɨ-tĩ ‘caminho fino, estreito’ hrɨ-tĩrɛ ‘caminho muito estreito’

267 Maxwell Miranda

Com respeito a forma ʧi, apesar de ser descrita pela autora ora como um verbo pertencente à classe dos verbos estativos (ser.grande) (Camargo 2015: 83-84), ora como sufixo aumentativo ibid.( : 69), a sua propriedade morfossintática de ocorrer como modificador nominal e em compostos nominais indica tratar-se de um item lexical que compartilha mais traços linguísticos da classe dos nomes que dos verbos, como em (32).

(32) Tapayuna (Camargo 2015: 83-84) a. hutu-ʧi mosquito-ser.grande ‘mutuca’ b. tawakɲikãj-ʧi orelha-ser.grande ‘telefone público’ (lit. orelha grande)

Casos ‘excepcionais’, como o da língua Tapayuna, são desafiadores na medida que se busca identificar e explicar não só as regularidades gramaticais compartilhadas entre as línguas, mas também as ‘aparentes’ irregularidades. Como alternativa à análise de Camargo (2015), ambos os sufixos para o diminutivo, na realidade, seriam uma única forma, – tĩrɛ, a qual corresponderia à palavra sĩrɛ do Kĩsêdjê (Suyá). Desse modo, a forma mais frequente –tĩ seria a contraparte reduzida do item lexical de outrora *tĩrɛ, em que a queda da sílaba final teria sido favorecida por fatores fonológicos ou prosódicos próprios da língua, como preservação da sílaba acentuada, de forma análoga ao Kaingang (cf. ex. 27a). A forma –tʃi, por sua vez, pode ser interpretada como um nome de qualidade ao invés de verbo estativo, dada a função de modificador que exerce na língua, conforme os exemplos em (32). A língua Xerente apresenta uma situação um tanto inusitada se comparada às demais língua da família, em que aumentativo e diminutivo são marcados por palavra independente e afixo respectivamente. O primeiro é marcado pela palavra –awrɛ ‘grande’,1515 enquanto o último

15 Dada as propriedades morfossintáticas que a forma -awrɛ apresenta, como o fato de fazer parte do conjunto de palavras flexionáveis e ocorrer como núcleo de predicados nominais atributivos, optamos por considerá-la uma palavra independente ao invés de um morfema (Cotrim 2016: 105).

268 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas exprime-se por meio do sufixo re– , como é ilustrado pelos exemplos em (33) e (34).

(33) Xerente (Cotrim 2016: 101, 105) a. ture-re menino-aten ‘menininho’ b. tpe Ø-kra-re peixe rel.c-filho-aten ‘peixe muito pequeno ou filhote de peixe’

(34) kuti z-awrɛ sapo rel.c-grande ‘sapo cururu’ (lit. sapo grande, sapão)

Os dados examinados até agora mostram que as formas usadas para indicar aumentativo e diminutivo são o resultado da gramaticalização de itens lexicais referentes a ‘grande’ e ‘pequeno’, embora o material lexical envolvido e o produto sincrônico nem sempre sejam os mesmos através da família Jê como um todo. Apesar da variação na expressão formal e dos mecanismos morfossintáticos empregados na codificação desses conceitos gramaticais, os dados sugerem que pelo menos as formas do diminutivo tenham uma origem diacrônica comum, dada a correspondência formal e funcional atestada em diversas línguas, e que teria seguido a seguinte cadeia de gramaticalização: tĩrɛ/sĩrɛ > sĩ > -tĩ ~ -rɛ/-re. Esse percurso unidirecional de mudança gramatical reflete diferentes estágios de complexidade e integração morfológica, bem como de transparência semântica, desde o uso desses itens lexicais como uma palavra independente, com uma posição intermediária de clítico e, finalmente, afixo. Além de usos gramaticais, formas do aumentativo e diminutivo têm sido empregadas para fins discursivo-pragmáticos em algumas línguas Jê, como Apinajé (Oliveira 2003, 2005), Xikrin (Costa 2015) e Xerente (Cotrim 2016). No entanto, a possibilidade de tais usos discursivo-pragmáticos de formas gramaticais não implica a anulação ou reversão do processo de gramaticalização, mas constituem o que Heine (2013) e Heine et al. (2017) denominam de cooptação, conforme será tratado na próxima subseção.

269 Maxwell Miranda

2.2.2 Usos estendidos e discursivo-pragmáticos dos morfemas aumentativo e diminutivo Usos estendidos ou mais especializados de morfemas exprimindo aumentativo e diminutivo são atestados em algumas línguas, resultando na expansão para outros domínios conceituais, como categorização nominal, ou na transferência para o domínio da organização discursiva, como a expressão da atitude do falante. Conforme foi apontado por Oliveira (2003: 257), apesar de os morfemas ti e rɛ marcar aumentativo e diminutivo, em Apinajé, “as distinções semânticas que eles expressam podem estender a noções como forma (redondo, gordo, magro), idade (jovem, velho) e graus de semelhança”, em que tais morfemas assumem uma função tipicamente classificatória. Já que dispositivos de categorização nominal atuam com base em certos parâmetros semânticos, como forma, tamanho, consistência etc., essa função classificatória é o resultado da extensão do significado básico (dimensão física/tamanho) para domínios conceituais mais abstratos, baseados nas percepções e experiências sociocognitivas dos falantes sobre as características físicas mais salientes dos referentes nominais categorizados por esses morfemas. Em Apinajé, o uso dos clíticos ti e rɛ distingue pares de nomes da mesma espécie, como krɛ=ti ‘lesma’ e krɛ=rɛ ‘sanguessuga’, akroɁ=ti ‘timbó’ e akroɁ=rɛ ‘tingui’ (Oliveira 2003: 258). Nessa língua, os clíticos ti e rɛ são também usados em contextos discursivo-pragmáticos específicos para exprimir atitudes do falante, com respeito ao conteúdo da proposição, como “repreensão, aprovação, excitação, afetividade e diversão” (Oliveira 2003: 258). Nessa situação, o uso desses clíticos difere daquele puramente gramatical com respeito às suas propriedades morfossintáticas e podem ser vistos como marcadores discursivos (Heine 2013). Do ponto de vista distribucional, como marcadores discursivos, eles ocorrem no final de sentença, sendo que o núcleo verbal permanece na forma finita, o que indica que esses clíticos não fazem parte da estrutura gramatical da sentença. O exemplo (35), fornecido por Oliveira (2003: 258), descreve uma situação em que um pássaro ficou preso dentro de casa e sua tentativa desesperada de escapar, pousando, em seguida, debaixo de uma cadeira. Nesse evento descrito, a atitude de compaixão do falante é reforçada pelo marcador rɛ no final da sentença.

270 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

(35) jari na ča rɛ dem.prox rls estar.em.pé dim ‘Aí ele está [o pássaro bonitinho]’

Já o marcador ti, conforme se pode pressupor, engloba atitudes hostis relativas à perspectiva do falante quanto ao evento descrito, como em (36), extraído de Oliveira (2003: 258)

(36) ne әbri ɲum čɛp wәr tẽ ti әbri Ø-ude cnj então ds hrs allt ir aum então 3-capturar

әbri ɲum čɛ=wɛ tɛ amәra ti então ds hrs pst chorar aum ‘[...] Então eles foram [maldosamente] e os pegaram, depois choraram e uivaram [desesperadamente].’

A combinação dos morfemas para aumentativo e diminutivo como marcadores discursivos vinculados a predicados verbais também tem sido descrita para outras línguas Jê, como Xikrin por Costa (2015) e Xerente por Cotrim (2016). Nessas línguas, contudo, a ocorrência desses morfemas é restrita às situações em que o verbo é nominalizado, conforme os seguintes exemplos abaixo.

(37) Xikrin (Costa 2015: 69) ba Ø-kupõ-j-rɛ anẽ Ø-kupõ-j-rɛ anẽ 1sg r2-matar-nmlz-aten assim r2-matar-nmlz-aten assim nẽ Ø-kãm ms r2-loc ‘...eu o mato (o gavião) assim, mato-o assim e depois...’

(38) Xerente (Cotrim 2016: 103) a. kmẽsi-Ø-re comer-nmlz-aten ‘comer pouco’ b. zekrnẽ-Ø-re beber-nmlz-aten ‘bebericar’

271 Maxwell Miranda

Dada a limitação dos dados, uma caracterização formal e funcional mais ampla acerca de seu real papel na organização do discurso fica comprometida, restando-nos apenas formular hipóteses sobre o desenvolvimento diacrônico desses marcadores nas línguas examinadas acima, bem como seus usos estendidos como dispositivo de categorização nominal e marcadores discursivos. Já que morfemas para aumentativo e diminutivo gramaticalizaram- se a partir de conceitos referentes a ‘grande’ e ‘pequeno’, o mais provável é que eles tenham sido inicialmente restritos à classe dos nomes concretos, exprimindo dimensão física/tamanho. Em seguida, o uso de ambos morfemas teria se estendido para outras subclasses semânticas de nomes, como aqueles que denotam conceitos relativos a atributos/qualidades. É notável que os itens lexicais dessa subclasse não se comportam uniformemente do ponto de vista morfossintático, uma vez nem todos combinam-se com morfemas para aumentativo e diminutivo, podendo variar de língua para língua. Logo, não se descarta a hipótese de que a ocorrência de tais morfemas seja orientada por fatores semânticos, cuja explicitação está fora do escopo deste artigo. Portanto, esse teria sido originalmente o cenário diacrônico nas línguas da família como um todo e, a partir dele, o uso desses morfemas teria se expandido para outros domínios funcionais, como o da categorização nominal em Apinajé. Em relação ao papel que morfemas para aumentativo e diminutivo desempenham como marcadores discursivos, esta função não resulta da gramaticalização, mas é o produto de cooptação, a qual é definida por Heine (2013: 1205) como “[...] uma operação cognitivo-comunicativa por meio da qual unidades de informação tal como orações, sintagmas ou palavras são transferidas do domínio da gramática da sentença para aquele da organização do discurso.” Apesar de não haver menção a morfemas dependentes, como clíticos, deve-se considerar que “a maioria deles são simples palavras funcionais” (Spencer & Luís 2012: 14), bem como é recorrente em diversas línguas o uso de morfemas derivacionais relativos a aumentativo e diminutivo para expressar funções discursivo- pragmáticas, como os casos analisados por Dressler e Barbaresi (1994). A cooptação de palavras funcionais ou clíticos como marcadores discursivos para transmitir atitudes do falante seria válido apenas para a língua Apinajé, visto que eles se comportam como clíticos e, assim, apresentam maior liberdade sintática e o conteúdo informacional que veiculam independe da construção oracional (Heine et al. 2017). Além

272 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas disso, conforme foi descrito por Oliveira (2003), a presença deles em posição final de sentença não desencadeia mudanças morfossintáticas no núcleo verbal, como a nominalização, revelando não se tratar de elementos subordinantes. Já em Xikrin e Xerente, não seria o caso de cooptação, uma vez que morfemas para aumentativo e diminutivo comportam-se como formas presas e se predem a radicais verbais nominalizados de modo similar a outros radicais nominais nessas línguas, em que a presença deles contribui de algum modo com contornos semântico-pragmáticos especiais ainda não esclarecidos. Os fatos explorados nesta seção mostram, por um lado, como morfemas gramaticais surgem e desenvolvem-se diacronicamente, conservando algumas propriedades semânticas de suas respectivas fontes históricas e, por outro, após gramaticalizar-se, podem ser recrutados para exprimir funções discursivas via cooptação. A seção seguinte trata da gramaticalização de posposições e expressões locativas a partir de nomes referentes a partes do corpo em línguas Jê. Ainda que esse processo seja uma tendência recorrente através da família, as fontes conceituais variam amplamente de língua para língua, bem como os resultados obtidos ao longo do processo de gramaticalização.

2.3 Posposições e expressões locativas a partir de nomes de partes do corpo As posposições constituem umas das classes lexicais mais diversificadas nas línguas da família Jê, em que somente para algumas delas é possível estabelecer uma origem histórica comum. No entanto, na maioria das línguas da família, há uma tendência difundida a desenvolver posposições ou expressões posposicionais locativas mediante extensão metafórica de nomes relacionais referentes a partes do corpo, conforme foi descrito para o Panará por Dourado (2001: 37- 38) e Apinajé por Oliveira (2005: 148), e que pode ser ampliado para outras línguas Jê, como Krahô (Miranda 2014), Xikrin (Miranda & Costa 2019), Xerente (Cotrim 2016) e Xavante (Lachnitt 2003, 2004a, 2004b). A gramaticalização de adposições a partir de nomes relacionais ou verbos é tipologicamente bastante comum nas línguas do mundo (DeLancey 1997; Hagège 2010) e, nesta seção, ilustraremos alguns casos em línguas Jê, embora os itens lexicais envolvidos difiram amplamente através delas, bem como o número de ocorrências e o grau de abstração conceitual.

273 Maxwell Miranda

Conforme foi discutido por Heine et al. (1991), o corpo humano é um dos principais domínios metafóricos por meio do qual conceitos locativos são gramaticalizados em diferentes línguas, visto que é “uma ferramenta conveniente de ponto de referência para orientação espacial” (ibid.: 34), e os nomes que designam suas partes “[...] são recrutados como conceitos fonte para a expressão de conceitos gramaticais devido a sua localização relativa” (ibid.). Nesse domínio da gramática, há uma gradação notável nos casos de gramaticalização encontrados que vão desde a lexicalização de expressões locativas a posposições derivadas historicamente de nomes de partes do corpo. Em Krahô (Timbira), expressões locativas são formadas por meio da combinação de nomes de partes do corpo com as posposições locativas nã e ri, como –katut=nã ‘ao redor de’, ‘atrás de’ (> katut ‘costas’) e i-khrã=ri ‘em cima de’, ‘em frente de’ (> –khrã ‘cabeça’) (Miranda 2014: 150).

(39) Krahô (Timbira) (Miranda 2014: 129; notas de campo) a. iɁ-khrã=ri mẽ=a=pra-r rel.nc-em.cima=loc pl=2sg=andar-nmlz ‘Na frente, vocês andaram.’ (Na frente, houve o andar de vocês)

b. ikrɛ Ø-khrã=ri pɐn-ti iɁ-khɐ-r casa rel.c-em.cima=loc arara-aum rel.nc-gritar-nmlz tɔ tsa instr estar.em.pé ‘Em cima da casa, a arara está (em pé) gritando.’

c. nẽ h-ũrkhwa katut=ri iɁ-tәj cnj rel.nc-casa atrás.de=loc rel.nc-poder ampɔ=pɐr nã Ø-tɔ Ø-api pé.de.algo loc rel.nc-instr rel.nc-subir ‘E atrás da casa dele, pode subir com elas (tranças de milho) no pé de algo (árvore).’

Do mesmo modo, pode ser visto em Xikrin, em que tais usos envolvem as expressões posposicionais locativas –ibum=ã ‘atrás de’

274 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

(> –ibum ‘costas’) e –kuka=koj ‘em frente de’ (> –kuka ‘testa’), como em (40).

(40) Xikrin (Miranda & Costa 2019 157-158) a. kikre ɲ-ibum=Ɂã ku-mẽ ɲum casa rel.c-atrás.de=loc rel.nc-jogar.pl sd lado.cima estar.deitado kʌj=rum nõ ‘Atrás da casa, elas (as crianças) jogaram (a bola) e ela ficou (deitada) em cima.’

b. i=Ø-kuka=koj na ga Ø-ɲɨ 1sg=rel.c=em.frente.de=loc rls 2sg rel.c-sentado ‘Tu estás sentado em frente de mim.’

Entre as línguas Jê do ramo Setentrional, a língua Panará apresenta os casos mais gramaticalizados de conceitos locativos a partir de nomes referentes a parte do corpo, em que itens lexicais como sua ‘dente’ e ĩput ‘nuca’ correspondem aos elementos locativos sua ~ asua ‘em frente de’ e puti ~ ĩput ‘atrás’ respectivamente, sem que haja a presença de uma posposição locativa, e que foram descritos como ‘advérbios’ por (Dourado 2001: 38) conforme o exemplo (41).

(41) Panará (Dourado 2001: 38) Sɨkiã yɨ =pɨ=Ø=po ia sua Sɨkiã real.intr =dir=3sg.abs=chegar aqui na.frente ‘Sɨkiã chegou na frente aqui.’

Em Panará, há ainda outras expressões locativas gramaticalizadas, envolvendo nomes referenciais em sua constituição, como a palavra puu ‘roça’, o qual pode se combinar com as posposições tã ‘para’ (alativo) e pej ‘de’ (ablativo), obtendo-se as seguintes formações: puu + tã > puuãtã roça + ala > ‘para longe’, puu + pej > puuãpej roça + abl > ‘de longe’, e puu + ãhã > puuãhã roça + loc ‘longe’ (Dourado 2001: 38). O uso da palavra puu ‘roça’ na formação dessas expressões locativas pode ser explicado por dois motivos. Primeiramente, as roças possuem um valor cultural notável na sociedade Panará não só como meio de produção de

275 Maxwell Miranda alimentos para a subsistência das famílias, mas também como espaço de produção de socialidade (Ewart 2005),16 acarretando, em segundo lugar, o emprego dessa palavra como parâmetro de orientação espacial, já que as roças são cultivadas a uma certa distância da aldeia. As línguas do ramo Central, Xerente e Xavante, exibem casos similares àqueles da língua Panará, em que certos nomes de parte do corpo por si só denotam referência locativa. Nessas línguas, a posposição inessiva pra/para ‘dentro’ é derivada do nome ‘pé’, como em (42) e (43).

(42) Xerente (Cotrim 2016: 153) a. kri Ø-pra wa=t ĩ=nãmr casa rel.c-loc 1sg=rls 1sg=pos.sentado-nlz ‘Estou dentro de casa’ (lit.: Estou com o pé sentado em casa).’ b. pikõ kri Ø-pra mulher casa rel.c-loc ‘A mulher (está) em casa.’ (lit.: mulher com pé na casa)

(43) Xavante (Oscar Urebete, c.p) aibə=nõrĩ te aiɁubumrõ Ɂri Ø-para homem=pl 3sg.imperf reunir casa rel.c-dentro.de ‘Os homens reuniram dentro de casa.’

Além da posposição para, em Xavante, há a posposição -õwa ‘em frente de’, cuja fonte lexical significa ‘barriga’, ‘abdômen’ (Lachnitt 2003b: 89), conforme é observado em (44).

(44) Xavante (Oscar Urebete, c.p.) Ø-õɁwa te ɲamra rel.nc-em.frente.de 3sg.imperf estar.sentado ‘Ele está sentado em frente de algo.’

16 Conforme destaca Ewart (2005: 23), falar sobre a feitura de pessoas é falar sobre as roças, as quais são construídas de forma circular. A disposição dos alimentos cultiva- dos é outra característica marcante, em que certas culturas como a do milho, man- dioca e banana são plantadas nas margens (periferia) da roça ou em linha reta, que se cruzam através do círculo, ao passo que outras culturas, como a da batata-doce e, sobretudo, do amendoim, são sempre plantadas no centro.

276 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

Também se observa em Xavante o emprego de expressões locativas que têm como complemento do sintagma posposicional um nome relativo a parte do corpo. A expressão locativa –aihö=nã significa ‘na beira de’ e é derivada palavra –aihö ‘labio’, como no exemplo (45), em que é apresentado o uso dessa palavra como nome pleno e como parte de expressão locativa.

(45) Xavante (Oscar Urebete, c.p) a. aiɁute s-aihǝ waɁre=di criança rel.nc-lábio ferido-estat ‘A criança está com o lábio ferido.’ b. ĩ=Ɂra te si=Ɂupsõ 1sg-filho 3sg.imperf reflx=banhar pa z-aihǝ=nã riacho rel.c-beira.de=loc ‘Meu filho banha na beira do riacho.’

Além de nomes referentes a partes corpo, algumas posposições locativas em Xerente e Xavante parecem originar-se de nomes independentes, como é o caso da posposição inessiva kre/Ɂre ‘dentro de’ que teria como fonte diacrônica a palavra apkre/abɁre, as quais podem significar tanto o nome ‘buraco’, ‘cova’, ‘cavidade’, quanto o verbo ‘plantar’ ou ‘enterrar’(Cotrim 2016: 76; Lachnitt 2003b: 58; Hall et al. 2004: 214). Os exemplos (46) e (47) ilustram o uso dessa palavra como nome e posposição em ambas as línguas.

(46) Xerente (Cotrim 2016: 259, 308) a. nõkwa nã p apkre sdə ĩ-t kwakre-Ø? quem 3 int buraco fechar 1-rls cavar-nmlz ‘Quem foi que fechou o buraco que eu cavei?’ b. mãr kre bə p we ai wis? que iness 2 int dir 2 chegar ‘Dentro de que você chegou?’

(47) Xavante (Oscar Urebete, c.p.) a. aiɁutɛ ma=te waptã-rã abɁre nã criança 3sg=imperf cair-nmlz buraco loc ‘A criança está caindo no buraco.’

277 Maxwell Miranda

b. wapsã te ti-həiba Ɂri Ɂre cachorro 3sg.imperf 3corr-existir casa loc ‘Existe cachorro dentro de casa.’

Nas línguas do ramo meridional, Kaingang e Laklãnõ (xokléng), a classe das posposições caracteriza-se por ser mais ampla e complexa dentro da família Jê (Wiesemann 2011; Gakran 2015). No entanto, a ocorrência de posposições ou expressões posposicionais locativas derivadas diacronicamente a nomes de partes do corpo é bastante limitada em contraste com as línguas dos ramos Setentrional e Central discutidas acima. Ainda assim é possível encontrar algumas ocorrências como a que é exemplificada em (48b), em que a expressão locativa pãnĩ=ta ‘atrás de’ é o resultado da lexicalização do nome pãnĩ ‘costas’ mais o advérbio tá ‘ l á’.

(48) Kaingang (Wiesemann 2011: 71, 84) a. inh=pãnĩ vỹ kaga nĩ 1sg.poss=costas ms doer estar.sentado.aux ‘Minhas costas estão doendo.’ b. ã=pãnĩ_tá ti nĩ 2sg=atrás_lá 3sg.masc estar.sentado.aux ‘Ele está atrás de você.’ (Wiesemman 2011: 71) Outro caso sugestivo é a expressão locativa krĩgmỹ ‘por cima’ (Wiesemman 2011: 158), cuja formação envolveria o nome krĩg ‘estrela’ e a posposição dativa mỹ, semelhante aos casos com nomes referenciais encontrados em outras línguas, como kre/Ɂre ‘buraco’, em Xerente e Xavante, e puu ‘roça’ em Panará. Os nomes recrutados para expressar conceitos gramaticais relativos à localização espacial, como pode ser notado, abrangem conceitos relativos a diferentes partes do corpo. Apesar de essa ser uma tendência difundida em diversas línguas Jê, contudo, não há indicações sincrônicas da existência de que essas formas e/ou expressões sejam cognatas e compartilhadas por todos ou parte dos membros da família de um modo geral. Nesse sentido, os graus variados de gramaticalização refletem diferentes estágios de abstração conceitual nesse domínio da gramática, indo do mais lexical ao mais gramatical, com situações intermediárias, conforme é indicado na Tabela 7.

278 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

Tabela 7. Gramaticalização de posposições/expressões locativas em línguas Jê

Mais lexical ––––––––––––––––––––––––––––> Mais gramatical xik kra kng xav xer pan

‘testa’ -kuka=koj

‘costas’ -ibum=Ɂã -katut=nã pãnĩ=tá

‘cabeça’ -khrã=ri

‘lábio’ -aihə=nã

‘pé’ -para -pra ‘barriga’, -õɁwa ‘abdômen’ ‘nuca’ put ~ĩput

‘dente’ sua ~ asua

Abreviaturas: kng: Kaingang; kra: Krahô; pan: Panará; xav: Xavante; xer: Xerente; xik: Xikrin.

Nesta seção, mostramos a tendência recorrente entre as línguas da família Jê com respeito ao recrutamento e, consequentemente, a gramaticalização de posposições ou expressões locativas envolvendo diferentes nomes de partes do corpo. Apesar dos casos analisados ser bastante sugestivos sobre esse processo de mudança gramatical, ainda não está claro, por exemplo, que fatores semânticos e pragmáticos exatos determinariam o uso de um ou outro elemento e/ou expressão locativa, já que essas novas formas coexistem com aquelas mais antigas, isto é, com posposições. A próxima seção destina-se a discutir que direções os estudos diacrônicos sobre mudanças gramaticais podem tomar, dado o vasto volume de informações produzido nos últimos anos a respeito das línguas Jê a partir de diferentes perspectivas teóricas.

3. Mudança gramatical em línguas Jê: aonde podemos ir? Ao longo dos últimos anos, informações gramaticais sobre línguas Jê e Macro-Jê têm sido acumuladas, sem que a maior parte delas tenha sido submetida a um exame minucioso tanto para fins comparativos quanto para reconstrução diacrônica, considerando

279 Maxwell Miranda as similaridades tipológicas compartilhadas (Rodrigues 1999: 198). As tentativas existentes até agora têm se concentrado, por um lado, naquelas propriedades gramaticais mais recorrentes através das línguas, negligenciado, por outro, características morfossintáticas fundamentais para a organização gramatical dessas línguas, como predicados verbais e não verbais, distinções de tempo, modo e aspecto, evidencialidade, verbos classificatórios, combinação oracional, estrutura informacional, entre outros. Nesta seção, apresentamos os pressupostos básicos da teoria da gramaticalização, indicando-a como caminho alternativo para onde o estudo das mudanças gramaticais em línguas Jê podem ir por meio de sua aplicação. Diversos modelos teóricos têm sido propostos com o propósito de descrever e explicar as mudanças contínuas e graduais às quais as línguas são suscetíveis ao longo do tempo e do espaço. Dentre eles, a teoria da gramaticalização tornou-se um modelo alternativo para o estudo do surgimento e desenvolvimento diacrônico de formas gramaticais, desde a década de 70, embora o termo gramaticalização tenha sido cunhado no início do século XX por Antoine Meillet (1912) e sua definição ampliada por Kuryłowicz (1965). A teoria da Gramaticalização tal como é proposta por Heine (2003) não é uma teoria da linguagem, nem da mudança linguística, porém tem como objetivo descrever a gramaticalização enquanto processo por meio do qual “[...] formas gramaticais surgem e desenvolvem através do tempo e espaço, e explicar por que elas são estruturadas no modo como estão” (p. 575), sendo, portanto, unidirecional. O princípio da unidirecionalidade refere-se ao fato que formas gramaticais se desenvolvem a partir de formas lexicais e não o inverso, podendo tornar-se ainda mais gramaticais. Além disso, as formas gramaticais desenvolvidas não são independentes das construções às quais elas pertencem, estando o estudo da gramaticalização também interessado em construções ou mesmo segmentos discursivos maiores (Heine & Narrog 2010). Como a própria definição do modelo teórico destaca, mais que descrever o surgimento e desenvolvimento de formas gramaticais, cumpre também explicar o modo pelo qual elas são estruturadas, já que elas não emergem ex nihilo. Nesse sentido, em oposição a outras abordagens linguísticas, a teoria da gramaticalização “[...] tem um fundamento diacrônico, e as hipóteses propostas repousam, primeiramente, sobre as regularidades da mudança linguística e, em

280 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas segundo lugar, sobre as observações comparativas através das línguas” (Heine & Kuteva 2012: 512). A metodologia para o estudo da gramaticalização fundamenta-se em quatro parâmetros básicos e interrelacionados (Heine 2003: 579), os quais se associam a diferentes níveis da estrutura da língua, como (a) semântica, (b) pragmática, (c) morfossintaxe, e (d) fonética. São eles:

i. dessemantização (‘bleaching’, redução semântica): perda em conteúdo semântico; ii. extensão (ou generalização do contexto): uso em novos contextos; iii. decategorização: perda de propriedades morfossintáticas características da fonte lexical, incluindo a perda do status de palavra independente (cliticização, afixação); iv. erosão (ou ‘redução fonética’), isto é, perda de substância fonética.

Conforme explicitado por Heine (ibid.), com exceção da extensão, os três parâmetros caracterizam-se não só por perdas de propriedades, mas também ganhos, já que os itens linguísticos que sofrem gramaticalização adquirem novas propriedades gramaticais mediante o uso em novos contextos linguísticos. As mudanças de status lexical para gramatical (funcional) têm sido descritas e explicadas a partir de um modelo de três estágios, conhecido também como ‘modelo de sobreposição’ (overlap model) (Heine 1993: 48). De acordo com esse modelo, o primeiro estágio é representado pelo recrutamento de uma expressão linguística A para gramaticalização, passando, em seguida, no segundo estágio, a adquirir um segundo padrão de uso, B, tendo como efeito desse momento, o surgimento de ambiguidade, já que ambas as expressões A e B coexistem. No terceiro e último estágio, A é perdido, permanecendo apenas B (Heine 2003: 579, 590). O presente modelo é esquematizado em (49).

(49) A > A, B > B

Esse esquema prevê que o desenvolvimento de formas gramaticais não ocorre diretamente, isto é, do significado fonte (A) para o significado alvo (B), mas implica a existência de um estágio intermediário onde A e B coexistem lado a lado. Em muitos casos, mudanças gramaticais permanecem no segundo estágio, podendo não avançar para o último estágio. Em uma perspectiva similar, Lichtenberk (1991: 39) formulou

281 Maxwell Miranda esse cenário a partir do Princípio de Mudança Gradual em Função (Principle of Gradual Change in Function), de acordo com o qual se um elemento com uma função A adquire uma nova função B, e se subsequentemente o elemento B, que possivelmente ainda mantem a função A, adquire a função C, a mudança de A para B será menor que de A para C. Logo, “[...] pode-se falar de mudança gradual em função apenas onde uma sequência de pelos menos duas mudanças aconteceram. Se houve apenas uma mudança, não existe gradualidade” (Lichtenberk 1991: 40). Uma situação de provável ambiguidade (A, B) pode ser vista em Kĩsêdjê (Suyá) e Tapayuna, nas quais o uso da forma ay em pronomes pessoais abrange tanto o plural quanto o paucal, diferindo apenas com respeito à posição que ocupam. A causa dessa ambiguidade decorreria da ausência da gramaticalização da forma mẽ para plural nessa língua, em oposição ao paucal, como ocorre em mẽbêngôkre e Xikrin, embora essa palavra seja empregada lexicalmente, como em (50).

(50) Kĩsêdjê (Suyá) (Santos 1997: 165, 167) a. mɛ̃ ra nɡrɛre mã pessoal ms cantar fut ‘O pessoal vai dançar.’ b. mɛ̃ sʌ ra mbɛri pessoal doente ms bem ‘O pessoal doente sarou.’

Concebidas as mudanças gramaticais a partir dessa perspectiva, torna-se claro como uma mesma forma gramatical pode expressar conceitos gramaticais distintos em diferentes contextos, como é o caso da forma mẽ (Seção 2.1) que, em algumas línguas Jê, além de seu significado lexical ‘gente’, ‘pessoal’, pode denotar terceira pessoa plural (genérica) e também número plural em nomes e pronomes. O resultado desse processo apresenta-se na forma de uma cadeia de gramaticalização (grammaticalization chain) (Heine 1992, 1993, 2003). Esse termo concebe o processo de modo contínuo e gradual, uma vez que a partir do momento em que itens lexicais são submetidos à gramaticalização podem sofrer sucessivas mudanças funcionais, e os novos usos gramaticais podem compartilhar diversos traços com aqueles anteriores ou mais antigos.

282 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

Os tópicos gramaticais discutidos aqui exemplificam claramente a aplicabilidade da teoria da gramaticalização, visto que contempla tanto a dimensão sincrônica quanto diacrônica do processo de mudança gramatical. Entretanto, os resultados obtidos com a aplicação da teoria da gramaticalização não invalidam aqueles alcançados mediante o emprego de métodos tradicionais da Linguística Histórica, como o Método Comparativo e da Reconstrução Interna, mas podem fortalecer hipóteses sobre a explicação de prováveis fontes diacrônicas e, consequentemente, eventuais direções de mudança linguística. Além disso, a presença e/ou incorporação de formas gramaticais oriundas de línguas não relacionadas geneticamente auxilia-nos a compreender processos de replicação e difusão de padrões gramaticais em situações de contato linguístico, seja com outras línguas existentes em um dado espaço geográfico ou área linguística, seja com a língua falada por grupos sociais majoritários. A partir dos resultados obtidos nesse estudo, torna-se não só possível, mas umas das tarefas mais imediatas que os estudos histórico- comparativos voltados para as mudanças gramaticais avancem seja por meio dos métodos convencionais da Linguística Histórica, seja por modelos teóricos alternativos, como a teoria da gramaticalização. Assim, conforme salientou Lichtenberk (1991: 77), “[G]ramáticas são produtos de suas próprias histórias”, ainda que alguns estudiosos limitem-se a descrevê-las apenas sincronicamente. No entanto, se desejarmos compreender o porquê de certos aspectos do sistema linguístico ser estruturados no modo como eles são, considerações diacrônicas podem ter um papel fundamental (ibid.) nesse empreendimento.

Considerações finais O propósito deste artigo foi mostrar em que medida os estudos histórico-comparativos voltados para a mudança gramatical em línguas Jê podem avançar mediante a aplicação da teoria da gramaticalização proposta por Heine et al. (1991), Heine (2003) e Heine e Kuteva (2002, 2007, 2012). Incialmente, destacou-se que boa parte dos estudos em Linguística Histórica a partir de línguas Jê repousam basicamente em reconstruções fonológicas e lexicais (Davis 1966, 1968; Rodrigues 1999; Seki 1989; inter alia). Embora a inclusão de tópicos gramaticais na agenda de pesquisa tenha sido reclamada por Rodrigues (2002), os resultados obtidos até agora são bastante limitados, para uma abordagem histórico- comparativa mais ampla que contemple vários aspectos da organização gramatical das línguas Jê, como um todo.

283 Maxwell Miranda

Neste artigo, examinei o surgimento e desenvolvimento de algumas formas gramaticais a partir de itens lexicais em línguas da família Jê (Macro-Jê), como morfemas de número (2.1), aumentativo e diminutivo (2.2), e posposições e expressões locativas a partir de nomes referentes a partes do corpo (2.3). Os resultados mostram que essas categorias gramaticais desenvolveram-se ao longo de um processo unidirecional de gramaticalização, indo do mais lexical ao mais gramatical, com diferentes graus de integração e complexidade morfológica, o que explica parcialmente a variabilidade relativa ao status morfológico dessas formas dentro da família, bem como as diferentes direções, levando à emergência de categorias gramaticais ora similares ora distintas, como provável efeito da diversificação interna da família. De acordo com Heine (2003: 578), o modelo teórico baseia- se no pressuposto de que “[...] a motivação principal subjacente à gramaticalização é comunicar com sucesso”. Para atingir essa finalidade, os usuários da língua recorrem a uma estratégia cognitiva fundamental que consiste em usar formas linguísticas denotando significados concretos e facilmente acessíveis para expressar conceitos abstratos. Dito de outra modo, formas gramaticais emergem e desenvolvem diacronicamente a partir de itens lexicais, tornando possível não só identificar as fontes históricas das quais se originaram, mas também reconstruir a cadeia de gramaticalização, pela qual passaram até chegar ao seu estado atual, prevendo a existência de estágios intermediários. Essa afirmação pode ser exemplificada com o desenvolvimento de morfemas de número plural a partir da palavra mẽ, substituindo gradativamente o antigo padrão morfológico marcado pelo sufixo –je. O efeito desse processo foi o desenvolvimento de uma nova função gramatical a partir de outra já existente, como aquela em referência à terceira pessoa plural (genérica), em línguas do ramo Setentrional, exceto Kĩsêdjê (Suyá), Panará e Tapayuna, em que ambas funções coexistem. Esse cenário de variação reflete o Princípio de Mudança Gradual em Função Principle( of Gradual Change in Function) formulado por Lichtenberk (1991: 39). A partir da análise empreendida, sistematizamos os resultados em quatro conjuntos, com base na comparação e no comportamento sincrônico das formas gramaticais examinadas: (i) fonte lexical cognata para o mesmo conceito gramatical: *tĩrɛ ‘pequeno’ > diminutivo (Tapayuna tĩrɛ ~ tĩ; Kĩsêdjê sĩrɛ; Kaingang sĩ; Apinajé rɛ (clítico); Xikrin e Krahô (Timbira) rɛ (sufixo).

284 Gramaticalização em línguas Jê (Macro-Jê): perspectivas sincrônicas e diacrônicas

(ii) fonte lexical cognata para conceito gramatical distinto, mas semanticamente relacionado: *ari ‘grupo’ > coletivizador > 3ª pessoal paucal/plural (genérica) > número dual, paucal/plural (Panará -ara ~ -ra ‘coletivizador’ > -ra ~ -na ‘dual’ (sufixo de número); Mẽbêngokre: ar ‘3ª pessoa paucal (genérica), ar ‘pau- cal’ (marcador de número); Kĩsêdjê: ay ‘3ª pessoa paucal/plural’ > -ay número ‘plural’ (prefixo) ~ ay- número paucal (sufixo); Tapayuna ay número ‘plural’ (prefixo),ay número ‘paucal’ (su- fixo). (iii) fonte lexical não cognata para o mesmo conceito gramatical: *mẽ, *ag/*óg ‘gente’ > ‘3ª pessoa plural (genérica) > ‘plural’ (mar- cador de número); nõrĩ ‘grupo de gente’ > ‘plural (hum)’ (Api- najé mẽ ‘plural’; Krahô mẽ ‘3ª pessoa plural (genérica)’, ‘plural (hum)’; Xikrin mẽ ‘3ª pessoa plural (genérica)’, ‘plural (hum)’; Panará mẽ ‘dual’; Kaingang ag ‘3ª pessoal plural (masc)’, ‘plural’; Laklãnõ (xokléng) óg ‘3ª pessoal plural’, ‘plural (hum)’; Xavante e Xerente nõrĩ ‘plural (hum)’) (iv) fontes lexicais distintas para conceitos gramaticais vincula- dos ao mesmo domínio semântico: nome de partes do corpo > expressão posposicional locativa (Apinajé, Kaingang, Krahô, Xikrin Xerente e Xavante) > posposição (Panará, Xerente e Xa- vante) (cf. Tabela 6). Esses resultados apontam que, para os casos em (i) e (ii) e, parcialmente, em (iii), é possível afirmar com alguma segurança que as formas gramaticalizadas tiveram uma origem comum, indicando o potencial da teoria da gramaticalização para fins de reconstrução diacrônica de estágios históricos antigos e intermediários da família Jê (Heine & Kuteva 2007, 2012). Já a situação em (iv), por se tratar de uma tendência difundida na família, o mais plausível é que essas línguas tenham recorrido à replicação de modelos conceituais envolvendo o recrutamento de nomes de partes do corpo não cognatos para exprimir noções locativas. Uma explicação para essa tendência residiria na forte inclinação dessas línguas a exprimir conceitos gramaticais dependentes do contexto pragmático, combinados com fatores semânticos, como é o caso, por exemplo, de verbos posicionais auxiliares, cuja seleção para exprimir valores aspectuais depende do domínio de visão, experiências sociocognitivas ou participação/presença do falante na situação de fala com respeito à posição que os referentes nominais são categorizados

285 Maxwell Miranda e podem culturalmente ocupar (Cabral et al. 2018; Miranda 2019), de modo análogo ao que Bisang (2009: 34) denominou de complexidade escondida (hidden complexity), a qual deve ser inferida a partir do contexto, em oposição à complexidade aberta (overt complexity), que se manifesta por meio da expressão formal explícita de padrões morfossintáticos. O reflexo da complexidade escondida no sistema gramatical é a possibilidade de itens gramaticalizados desempenhar diferentes funções gramaticais em variados contextos discursivo- pragmáticos, como se observou com a forma mẽ (2.1). Assim, com base no volume considerável de descrições linguísticas que foi produzido nos últimos anos sobre as línguas Jê, constata-se a necessidade de avançar os estudos diacrônicos por meio da exploração e investigação de outros tópicos, para fins comparativos e reconstrutivos. Nesse sentindo, a teoria da gramaticalização constitui um caminho alternativo para ao estudo da mudança gramatical e da mudança linguística, de modo geral, ao lado de métodos tradicionais empregados em Linguística Histórica, permitindo com que antigas hipóteses sejam fortalecidas ou que novas sejam formuladas acerca das relações internas e externas à família Jê, abrangendo, igualmente, outros membros do tronco Macro-Jê.

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292 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô)

Januacele da Costa PPGLL, Universidade Federal de Alagoas

Fábia Fulni-ô Universidade Federal de Alagoas-SERTÃO

Introdução Neste capítulo, apresentamos uma discussão preliminar da modalidade em Yaathe, uma língua indígena brasileira falada pelos índios Fulni-ô, últimos remanescentes dos denominados Tapuias do sertão nordestino que ainda preservam viva e funcional a língua herdada dos seus ancestrais. As descrições e análises aqui propostas foram efetuadas sobre dados de fala espontânea ou semiespontânea, disponíveis em dois bancos de dados da língua. Contamos também com dados elicitados coletados especificamente com o objetivo de testar as hipóteses levantadas para a nossa análise, a qual se baseou nos pressupostos teóricos da semântica cognitiva, principalmente a partir de Frawley (1992). A expressão das distinções modais, nessa língua, é quase sempre mista, com uma ou mais de uma ocorrendo na morfologia e uma ou mais de uma se realizando através de partículas ou verbos modais. O resultado mais expressivo diz respeito ao modo indicativo, em que se pode observar que a força epistêmica é gradiente, apresentando três distinções nos tempos presente e passado e duas distinções no tempo futuro. Correlações com a construção gramatical, bem como com fatores pragmáticos, precisam de estudos aprofundados para que possam ser estabelecidas as bases sobre as quais esse sistema funciona.

1. Modo e modalidade na perspectiva de Frawley (1992) De acordo com Frawley (1992), os falantes frequentemente qualificam suas declarações com relação à credibilidade, confiabilidade e compatibilidade geral com os fatos aceitos. A área da semântica que se ocupa do status factual de declarações é a modalidade. Neste texto,

293 Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô propomo-nos a levantar os significados associados com modalidade e os recursos que a língua Yaathe tem para expressar essas informações modais. Ainda seguindo a proposta de Frawley (1992), descrevemos de modo sucinto o aporte teórico de que lançamos mão para a nossa descrição e análise dos nossos dados da língua Yaathe. No presente texto, consideramos apenas seus pontos focais da teoria de Frawley (1992), o qual se propõe a tratar de três tipos principais de modalidade: (i) negação, (ii) possibilidade e (iii) obrigação. Para sua exposição, ele considera diferentes línguas do mundo. Nesse estudo, vamos tentar fazer o mesmo, apenas enfocando a língua Yaathe, e expandiremos os tipos de modalidades tratados, procurando descrever todas as formas da língua que trataremos como modalidade. Modalidade pode ser definida como “semantic information associated with the speaker’s attitude or opinion about what is said”1 (Palmer (1986) apud Frawley 1992: 385), ou de forma mais ampla como “what the speaker is doing with the whole proposition”,2 de acordo com Bybee (1985 apud Frawley 1992: ibid.). As duas definições são, então, consideradas por Frawley (1992) como convergentes, dado que os autores concordam que “modalidaty concerns entire statements, not just events or entities, and its domain is the whole expression at a truth-functional level.”3 Do ponto de vista gramatical, a modalidade está associada com a sentença e não com os seus constituintes isoladamente, o que a faz diferente de aspecto, por exemplo, que é predizivelmente encontrado em verbos como eventos (Frawley 1992). Esse ponto de vista, que considera a expressão da modalidade como sendo uma atribuição de toda a sentença e não apenas do verbo, permite que alarguemos a descrição de modalidade para encampar outras formas de expressão que não apenas o modo, estritamente falando. Permite também, por outro lado, considerar a construção gramatical como um instrumento que expressa os significados modais, ou seja, a postura atitudinal do falante frente às suas declarações. É preciso, antes de mais nada, esclarecer a distinção entre modalidade e modo. Fazemos isso, aqui, também a partir de Frawley (1992).

1 “informação semântica associada com a atitude ou a opinião do falante sobre o que é dito.” 2 “o que o falante está fazendo com a proposição inteira”. 3 “modalidade diz respeito à declaração inteira, não apenas a eventos ou entidades, e seu domínio é toda a expressão em um nível funcional de verdade”.

294 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô)

Modality is a semantic phenomenon: It is the content of an expression that reflects the speaker’s attitude or state of knowledge about a proposition. Mood is a grammatical phenomenon, usually the inflectional expression of a subset of modal denotations (Palmer, 1986). However, traditional accounts of mood equate it with modality: For example, subjunctive mood, a grammatical device, is often defined as the way a language expresses hypotheticality or uncertainty. But whereas there may be close connections between grammatical forms and semantic content is this regard, mood is a structural property of verbs in certain kinds of clauses (Frawley, 1992: 386).4

Assim, conclui Frawley (1992: 387): “[M]ood is a morphosyntatic device that may overlap with or denote modality, but nonetheless is distinct from modality.”5 Seguindo essa visão, vamos considerar em Yaathe, como modo, não apenas os tradicionais modos indicativo, subjuntivo, imperativo e, às vezes, condicional, mas outros instrumentos, como um condicional temporal, por exemplo, não devido à noção que essa forma denota, mas porque a dependência condicional temporal que ele estabelece entre duas cláusulas é marcada como uma flexão no verbo. Os parâmetros básicos de modalidade são a oposição entre realis e irrealis. Ou seja, a diferença entre mundos reais e mundos não reais. Para se estabelecer um framework explanatório da oposição realis/irealis, tem sido proposto que se observem noções subjacentes à dêixis, uma vez que a assertabilidade de uma proposição requer um julgamento relativo de factualidade por parte do falante e isso, por sua vez, precisa de um ponto de referência, de modo que se possa fazer o julgamento da sentença em relação a esse ponto (Frawley 1992: 387).

4 “A modalidade é um fenômeno semântico: é o conteúdo de uma expressão que reflete a atitude ou o estado do conhecimento do falante sobre uma proposição. Modo é um fenômeno gramatical, geralmente a expressão flexional de um subconjunto de denota- ções modais (Palmer, 1986). No entanto, os relatos tradicionais de modo o associam à modalidade: por exemplo, o modo subjuntivo, um dispositivo gramatical, é frequente- mente definido como a maneira pela qual uma linguagem expressa hipoteticidade ou incerteza. Mas, embora possa haver conexões estreitas entre as formas gramaticais e o conteúdo semântico, modo é uma propriedade estrutural dos verbos em certos tipos de cláusulas”. 5 Modo é um mecanismo morfossintático que pode se sobrepor ou denotar modalida- de, mas, no entanto, é distinto de modalidade.”

295 Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô

Chung e Timberlake (1985 apud Frawley 1992: 387) veem modalidade como “[...] the way a language encodes the comparison of an expressed world with a reference world”.6 O mundo expresso, o estado de coisas na proposição afirmada, é o equivalente modal do ponto dêitico localizado. O mundo de referência, normalmente o mundo real de fala, é a contraparte modal do ponto de referência temporal e espacial, o aqui-e-agora (Frawley 1992).

When the reference world coincides with the expressed world, we get actual modality, or reallis. When de reference world does not coincide with the reference world, we get nonactual modality, or irrealis. This basic dichotomy is a scale, and the two epistemic deictic points diverge; this divergence is translated into possibility, evidence, obligation, commitment, and so on (Frawley 1992: 388).7

É essa escala entre os dois termos da dicotomia, realis/irrealis, que nos interessa, especialmente.

2. Metodologia Os dados que utilizamos aqui são, a princípio, o que chamamos de dados primários, quer dizer, dados oriundos de projetos de documentação linguística. Utilizamos dois projetos: o projeto Documentação da Língua Indígena Brasileira Yaathe (Fulni-ô) (Silva, Costa & Oliveira Jr. 2013) e o projeto Documentação de Narrativas de Anciãos Fulni-ô (Sá 2017). Após a descrição dos dados disponíveis em textos espontâneos de diversos gêneros, conforme informado acima, efetuamos uma coleta de dados do tipo elicitação com dois falantes nativos da língua, um homem e uma mulher, ambos com mais de 30 anos, nascidos e criados na aldeia sem nunca terem se afastado dela para morar ou viver por algum tempo em outra localidade. Ambos são bilíngues e falantes funcionais da língua, com grau primário de instrução formal.8

6 “(...) o modo como uma língua codifica a comparação de um mundo expresso com um mundo de referência”. 7 “Quando o mundo de referência coincide com o mundo expresso, obtemos a moda- lidade real, ou realis. Quando o mundo de referência não coincide com o mundo de referência, obtemos a modalidade não-real, ou irrealis. Essa dicotomia básica é uma escala, e os dois pontos dêiticos epistêmicos divergem; essa divergência é traduzida em possibilidade, evidência, obrigação, compromisso e assim por diante.” 8 Na verdade, um deles cursou até o que corresponde ao atual 6º ano do ensino Funda-

296 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô)

Esses dados elicitados foram registrados na aldeia Fulni-ô entre maio e junho de 2018, em caderno de campo, sem gravação em áudio ou vídeo, a partir de um questionário previamente elaborado durante a análise já efetuada, com o objetivo de confirmar hipóteses levantadas, bem como procurando-se obter dos falantes explicações mais detalhadas sobre o uso dos diferentes instrumentos gramaticais e/ou lexicais que expressam a modalidade.

3. O sistema de modo do Yaathe: descrições prévias O interesse pela língua dos Fulni-ô por parte de estudiosos começou no final do século XIX, quando Branner (1927 [1887])9 registra as primeiras palavras da língua em uma breve passagem pela aldeia. Depois disso, entre o final do século XIX e primeira metade do século XX, alguns outros estudiosos demonstraram interesse pela língua, mas é somente a partir da década de 1950 que estudos sistemáticos começam a ser feitos. Na década de 1960, foram efetuados trabalhos pelos linguistas americanos do SIL, (Meland e Meland 1967, 1968; Meland 1969) que elaboraram descrições da fonologia e da gramática e um vocabulário. Conta-se que eles chegaram a escrever parte da bíblia em Yaathe, mas, por mais que tenhamos buscado, não encontramos sequer vestígios desse trabalho. O Professor Geraldo Lapenda, da UFPE, convidado pelo etnólogo Estêvão Pinto, quando este trabalhava para escrever seu trabalho Etnologia brasileira: Fulni-ô, os últimos Tapuias (Pinto 1956), também escreveu uma gramática da língua (Lapenda 1965). Durante mais de três décadas, Lapenda (1965) era a única referência sobre o Yaathe. Na década de 1990, surgiram diversos trabalhos sobre a língua. Elpídio Barbosa (Barbosa 1991) fez uma dissertação de mestrado sobre a fonologia, na Universidade de Brasília (UnB), sob a orientação do Professor Aryon Dall’Igna Rodrigues; Januacele da Costa (Costa 1993) escreveu sobre a situação linguística e sobre atitudes linguísticas de professores não índios, também na forma de dissertação de mestrado, mental, enquanto o segundo tem apenas instrução primária, com um curso chamado de proformação ofertado pelo MEC para professores indígenas, sendo ele professor de Yaathe na escola da aldeia. 9 Essa é a data da publicação do texto de Branner pela American Association for the Advancement of Science. Sua passagem por Águas Belas aconteceu em 1876, como ele próprio informa (Branner, 1884: 1887).

297 Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô sob a orientação da Professora Adair Palácio, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e em seguida, como tese de Doutorado, elaborou uma descrição da língua (Costa 1999). Nos anos 2000, na Universidade Federal de Alagoas, estudantes de graduação, mestrado e doutorado enfocaram aspectos específicos da língua: Diogo Cabral (Cabral 2009) estudou o acento; Fábia Fulni-ô estudou o sistema fonológico para aplicação na escrita da língua (Silva 2007), a sílaba (Silva 2011) e a organização prosódica (Silva 2016); Mariana Sousa (Sousa, 2017) estudou a duração das vogais; Crislaini Dias (Dias 2017) estudou a nasalidade. Elvis Ferreira de Sá, membro da etnia Fulni-ô, escreveu sua dissertação de mestrado (Sá 2017) sobre narrativas de anciãos como um trabalho de documentação linguística. Descrições do sistema de modo do Yaathe aparecem em Lapenda (1965) e Costa (1999). Lapenda (1965: 67) descreve o sistema de modo da seguinte forma:

Os modos eu os dividi em absolutos e relativos, compreendendo o seguinte: a) Absolutos: indicativo, enfático, imperativo, optativo. b) Relativos: hipotético, causal, final, temporal, supino, gerúndio. Todos eles têm forma especial para indicar a afirmação e a negação: ikhwkwá, bebo, ikhwdotkya, não bebo; inetkaka, quero, inetkadeka, não quero. O indicativo, além disso, possui formas diferentes para a simples declaração (forma fraca): ikhwkwá; bebo; para a interrogação: akhwmã, bebes?; e para a resposta: ikhô, bebo.

É bastante interessante notar as distinções do sistema modal que é feito por esse autor, diferente da que proporemos a seguir apenas em termos de terminologia e da interpretação que procuramos dar às diferentes distinções. Além disso, ele considera como forma do indicativo a forma de interrogação, que aqui iremos tratar como um modo diverso, classificando-o dentro da modalidade epistêmica, parâmetro real. Por sua vez, Costa (1999) faz uma descrição que também é bastante formal e tão sucinta, em relação ao sistema modal da língua, quanto a de Lapenda (1965). A autora aponta apenas modos verbais, como indicativo, subjuntivo, condicional, imperativo, potencial, o que quer dizer que a expressão da modalidade, em um sentido mais amplo, não é tratada neste trabalho. Isso se dá devido à compreensão de modo apenas como a expressão da atitude do falante em relação a sua proposição na morfologia.

298 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô)

Em outros trabalhos sobre a língua, a descrição do sistema de modo tem sido melhor elaborada, mas sempre a partir de Costa (1999). Silva (2016) elabora, por exemplo, a seguinte tabela com relação à morfologia do verbo. Quadro 1 - Sufixos verbais (Silva, 2016).

aro 1Palavra fonológica verbal Sufixos derivacionais Sufixos flexionais Negação - Modo Causativização - Indicativo Desideração - Subjuntivo Deferência Participiais - Locativo -se Forma verbal Raiz Tema - Infinitivo -te atualizada - Temporal -ma Tempo- Presente - Passado - Futuro Modalidade Finalidade

Foram destacados no Quadro 1 apenas os morfemas de modo: indicativo, subjuntivo, formas participiais (que funcionam como adverbiais) (se, te, ma), e o tempo (presente, passado e futuro). O passado remoto é marcado por um sufixo derivacional agregado à raiz. O imperfeito recebe um verbo auxiliar, assim como o condicional. Como se pode ver, o tratamento que temos do sistema de modo e modalidade do Yaathe é apenas descritivo. Falta-nos, portanto, uma discussão que possa esclarecer o funcionamento de tal sistema, o que propomos fazer, de modo ainda bastante preliminar, nas seções seguintes.

4. Modo e modalidade em Yaathe: nova reflexão Nesta seção, apresentamos o sistema modal do Yaathe, incluindo não apenas o que é modo, estritamente falando, mas também a expressão da modalidade através de outros instrumentos gramaticais. Baseamos essa apresentação nas definições de categorias modais brevemente revisadas na seção 1.

299 Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô

4.1 Modalidade epistêmica Consideramos como fazendo parte da modalidade dita epistêmica duas categorias principais, real e irrealis. Essas duas categorias estão subdivididas em diversas subcategorias, a saber: a) real: modos indicativo, promissivo, asseverativo e interrogativo. b) irrealis: modos subjuntivo, condicional e condicional temporal, e duas modalidades expressas por partículas, dubitativo e inefectivo. De modo geral, tem sido considerado modo indicativo pelas descrições prévias da língua Yaathe as formas verbais que são expressas com o morfema –ka–. Esse morfema pode ter, em fala cuidadosa,10 três alomorfes: –ka– ~ –kʲa– ~ –kʷa–, conforme observamos nos exemplos abaixo.

(1) [setuˈtʃʰia ˈtso ˈke jaːˈdedʷa ftʰoˈawa kĩːseˈke i kejiniˈka] se=tutʃia tso ke jaːdedʷa ftʰoa-wa kine-se det=casa como.se loc menino um-dim sentar-loc ke i=kejni-ka loc 1sg.suj=ensinar-ind ‘Naquela como se fosse11 casa, se um menininho sentar, eu ensino.’

(2) [ũːˈnĩma joːˈdotkʲa ˈhle ˈdehe // isakfakdotkʲaˈke ˈhle] ũːnĩma ja=o-dode-ka hle dehe hoje 1pl.suj=ir-neg-ind acb adm i=sakfake-dode-ka-ke hle 1sg=poder-neg-ind-caus acb

10 Dizemos fala “cuidadosa” porque pode acontecer, no discurso fluido e rápido, tal como encontrado em textos espontâneos, o quase apagamento do morfema. Quando isso ocorre, especialmente em final de unidades prosódicas de níveis mais altos, como o sintagma entoacional ou o enunciado fonológico, o morfema é pronunciado como um [k] que se associa à rima da sílaba precedente. 11 É interessante observar que a partícula tso funciona como uma marca de modali- dade sobre um nome, pois expressa a atitude do falante sobre seu enunciado, comu- nicando ao ouvinte que ele está nomeando a entidade como casa, mas, de fato, aquilo não é uma casa real.

300 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô)

[ikiliˈte foːˈtuj] i=kili-te fowa tuj 1sg.suj=subir-inf serra traj ‘Hoje nós não vamos mais porque eu não posso subir a serra.’

(3) [oːˈja ˈfliwa ja keˈtʰmã jaˈkʰkʷa ˈhled] oːja fliwa ja=kethe-ma ja=kʰo-ka hle de água pouco 1pl.suj=achar-cond.temp 1pl.suj=beber-ind acb adm ‘Quando achávamos um pouco de água, nós já bebíamos.’

A declaração não implica certeza absoluta, mas também não indica incerteza ou dúvida e, por isso, escolhemos denominar essa forma de indicativo neutro. Comparando-se (4a) e (4b), podemos observar o uso da forma não marcada {Ø}. Na situação de fala, duas pessoas conversam e, enquanto a primeira emprega o indicativo marcado pelo morfema –ka–, que consideramos a forma neutra, a segunda utiliza a forma não marcada {Ø}.

(4) a. [neˈtʃãːtiˈkĩːkʲaˈhledoːˈke] netʃãti i=kine-ka hle de oːke nesse.instante 1sg.suj=sentar-ind acb adm aqui ‘Agora eu já sento aqui.’

b. [ˈmaj ipʰoːneˈse laˈhele sõːˈdõma] mas i=pʰoːne-Ø-se lahele sõːdoma mas 1sg.suj=levantar-ind.def-pas também cedo ‘Mas eu também acordei cedo.’

A atitude proposicional da falante em (4a), expressa como modo indicativo, ocorre no discurso, em resposta a uma pergunta ou em uma sequência discursiva em que a referência ao evento, de algum modo, já tenha sido feita, quer explícita quer implicitamente, razão pela qual denominamos essa forma de indicativo definido. Nessa sentença, o verbo [kĩːkʲa] “sentar” é introduzido pela primeira falante e, em todas as vezes em que ela refere ao assunto, ela marca o verbo com um sufixo verbal.

301 Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô

Quando a segunda falante toma o turno, o verbo aparece sem marca fonética na posição de modo. Dizemos, então, que já está definido que o seu enunciado é declarativo do mesmo modo que na fala da introdutora do assunto. Assim, chamamos a esse modo de definido. Para essas formas, em que a modalidade é expressa por um morfema afixado à forma verbal, ou seja, trata-se de um instrumento gramatical morfológico, seja esse instrumento o morfema visível – ka–, um outro morfema verbal ou a forma {Ø}, que se constitui como ausência de materialidade fonética, podemos considerar, de acordo com a literatura relacionada, que se trata de um modo. Também está dentro do parâmetro real a expressão que significa que o falante se compromete com o evento enunciado. O promissivo é marcado pelo morfema –ne, que se agrega à raiz verbal, a qual, por sua vez, não possui outra marca de modo.

(5) [isakfakdʒoˈdʷãma ʤoˈdẽne ˈhle] i=sakfake-do-dowa-ma 1sg.suj=poder-neg-part.pac-cond.temp i= o-de-ne hle 1sg.suj=ir-neg-prom acb ‘Quando eu não puder, eu não irei mais.’

(6) [jɛːˈklẽne nedʒoˈke janalˈnĩne] ja=e=kle-ne nedʒoke ja=nalni-ne 1pl.suj=3sg.obj=secar-prom depois 1pl.suj=pintar-prom ‘Nós a secaremos, depois nós pintaremos.’

O promissivo tem sempre valor de futuro, logicamente, e difere de um tempo futuro, que não é promissivo e, por isso, agrega-se a uma forma com marca de indicativo neutro12, com em (7) abaixo, que se distingue de (6), acima, pela diferença das desinências verbais selecionadas pela falante.

12 Essa marca de futuro é o morfema –he que se combina também com a forma de indicativo definido. Pudemos constatar essa ocorrência em conversas fora do contexto de coleta de dados. Não registramos, porém, esses exemplos.

302 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô)

(7) [jɛːˈklekahe nedʒoˈke janalˈnihe] ja=e=kle-ka-he nedʒoke ja=nalni-ka-he 1pl.suj=3sg.obj=secar-ind-fut depois 1pl.suj=pintar-ind-fut ‘Nós a secaremos, depois nós pintaremos.’

Outra expressão da modalidade epistêmica real, que indica que o falante está absolutamente certo da verdade da sua proposição, ocorre mais frequentemente no discurso, com o falante enfatizando sua posição sobre determinado tópico previamente introduzido. O instrumento gramatical utilizado para expressar essa modalidade é o verbo auxiliar do, conforme exemplo (8b), em que ele é a continuidade do turno em (8a). Neste enunciado, a falante narra um acontecimento e reporta a fala de outro participante do evento, agora ausente.

(8) a. [ˈnẽa ifetfeˈka ˈhle de ˈke sakteˈka ˈliɾʊ] nema i=fetfe-ka hle de ke sake então 1sg.suj=perguntar-ind acb adm chm onde te-ka liɾʊ estar-ind liro ‘Então eu já perguntei: ei! cadê Liro?’

b. [ˈnẽmeˈso neˈka ˈhle ˈde ekʰdeˈde ˈdo] nema e=so ne-ka hle de então det=outro dizer-ind acb adm i=ekʰde-de do 1sg.suj=saber-neg asv ‘Aí o outro disse: eu não sei!’

Por ser expresso por um auxiliar, portanto, fora da morfologia verbal e incluso na sintaxe, consideramos que se trata de modalidade, como vimos nos posicionando até agora, mas não modo. Chamamos essa expressão de asseverativo. Diferentes atitudes podem ser expressas nas proposições que se encaixam na modalidade irreal. A primeira expressão aqui posta é um modo não factual usado quando o falante exprime alguma dúvida ou suposição sobre o conteúdo da cláusula em vez de asserção. Trata-se de

303 Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô um modo subjuntivo, uma vez que é expresso pelo morfema –seke, o qual se agrega à forma verbal.

(9) [toːˈna tkãnõːseˈke iːˈʃi ˈke ĩma ˈtʃkʲa] toːna tkano-ne-seke i=ʃi ke coisa dois-existir-subj 1sg.poss=irmão loc i=ma tʃi-ka 1sg.suj=int chegar-ind ‘Se eu tiver duas coisas, eu dou ao meu irmão?’ (lit. Se existirem duas coisas, eu chego no meu irmão?)

Outra expressão de modalidade epistêmica irreal é a que estabelece dependência condicional temporal entre duas cláusulas. Em Yaathe, essa expressão é marcada como flexão no verbo por meio do morfema ma– , que ocorre em posição de modo, como em (10).

(10) [neˈdẽma lahiˈãne ˈftʰõːˈnẽwa jakʰeˈtʰmã jɛːˈtʃõːkʲa ˈhle] nedema lahiane ftʰowa-ne-wa ja=kʰeˈtʰe-ma quando jaca um-fem-dim 1pl.suj=achar-cond.temp ja=e=tʃone-ka hle 1p.suj=trazer-ind acb

[jahiˈawa ˈtole jakɛˈhate] ja=hia-wa tole ja=kɛha-te 1pl.poss=prole-dim com 1pl.suj=comer-inf ‘Quando achávamos uma jaquinha, nós a trazíamos para comermos com nossos filhinhos.’

A modalidade condicional propriamente dita é expressa por uma partícula. Ela modifica o modo indicativo neutro e o modo subjuntivo, bem como a noção de tempo, com uma gama de significados semânticos diferentes, de acordo com a construção gramatical em que ocorre e em consonância com o discurso. Se o auxiliar que expressa a noção de condição associa-se a uma forma verbal no modo indicativo neutro passado, o ponto de referência é o presente (momento da fala) e o mundo expresso (irreal) é o passado, conforme (11a). Se, porém, esse auxiliar ocorre com uma forma de

304 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô) indicativo (neutro ou definido) presente, o tempo de referência ainda é o presente, enquanto que o mundo expresso é presente ou futuro, tendo de considerar para a interpretação do mundo expresso aspectos pragmáticos e discursivos, conforme (11b).

(11) a. [atʰatʃĩneˈkas keˈa tʰaakʰdeweˈte] a=tʰa=tʃine-ka-se keˈa 2sg.suj=3pl.obj=acordar-ind-pas cond tʰa=a=kʰdewe-te 3pl.suj=2sg.obj=ajudar-inf ‘Tu os acordarias para eles te ajudarem.’ (em português local: você tinha acordado eles para eles lhe ajudarem.)

b. [tʰasajkelesˈke tʰɛːˈtʃõːkʲa keˈa] tʰa=sajkele-seke tʰa=e=tʃone-ka keˈa 3pl.suj=conseguir-subj 3pl.suj=3sg.obj=trazer-ind cond ‘Se eles conseguissem, eles trariam.’

Com modo subjuntivo, o ponto de referência é o presente (momento da fala) e o mundo expresso (irreal) pode ser tanto o presente quanto o futuro. Novamente, são as condições do discurso e do conhecimento de mundo do ouvinte que irá garantir a interpretação mais feliz. Em (12), temos um exemplo de proposição em que a falante se refere a um passado irreal, distinto do real, do fato acontecido, para expressar um mundo que é presente, um mundo real, aquele no qual se está passando fome.13 Note-se que o mundo a que se refere a falante não é o ponto de referência, porque esse ponto de referência é o presente, o momento da fala.

13 Há sempre uma interferência de fatores externos à língua que podem modificar a escolha da falante no momento em que ela realiza seu enunciado. Neste caso, a falante utiliza o modo indicativo para falar de um mundo que também é irreal, o mundo onde se estaria passando fome, o que não ocorre devido às coisas que foram feitas no passado. Isso se deve ao fato de essa distinção passado/presente e também da distinção condicional/indicativo já se terem perdido no dialeto do português falado localmente. Ressaltamos que é preciso, porém, que o fenômeno, aqui observado aprioristicamente merece ser estudado.

305 Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô

(12) [ˈnẽm ja nedeˈske keˈa ˈjawka ˈhle dokʰeˈaj kasˈke] nema ja=ne-de-seke kea ja=ho-ka então 1pl.suj=fazer-neg-subj cond 1pl.suj=andar-ind hle dokʰea i kaske acb fome traj de.novo ‘Então, se nós não tivéssemos, nós já estaríamos passando fome de novo. (lit. Então, se nós não fizéssemos, nós já andávamos passando fome de novo.)

O dubitativo indica uma dúvida do falante em relação a sua declaração e é expresso pela partícula kʰiˈwa. É interessante notar que essa partícula tem escopo sobre todo o enunciado.

(13) [iˈfmã waˈti nekaske // nekaˈse kʰiˈwa] i=fmã wati ne-ka-se-ke 1sg=mim.posp enf ser-ind-pas-caus ne-ka-se kʰiwa ser-ind-pas dub ‘Porque para mim mesmo, foi isso. foi isso, eu acho.’

Inefectivo, ilustrado em (14), a seguir, indica que o falante quer significar exatamente o oposto do que foi dito até então na sua fala, ou seja, a partícula lʷa nega ou põe em dúvida o enunciado.

(14) [ˈnek ˈnẽm neˈka ˈlʷa janetkaˈse] nekke nema neka lʷa ja=ne-tka-se por.isso então isso inef 1pl.suj=rdf-desd-pas ‘Por isso, então, era isso que nós queríamos.

A partícula lʷa pode ter escopo sobre todo o enunciado ou apenas sobre um termo do enunciado em particular.

4.2 Modalidade deôntica Na modalidade deôntica, a língua faz uma distinção tríplice: imperativo, exortativo e proibitivo. A proposição imperativa realiza-se como modo, uma vez que o morfema de imperativo é afixado à raiz

306 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô) verbal (ou tema), conforme exemplificamos em (15), da mesma forma que a exortação. O que distingue as duas proposições é o fato de a exortação estar restrita à primeira pessoa do plural, acompanhada da marca de plural/grupo (16), podendo, no entanto, ocorrer sem essa marca formal com determinados verbos (17).

(15) [atʃiˈʃi] (16) [jooʃˈto] (17) [lewneʃˈto] a=tʃi-ʃi ja=o-ʃi-towa lewne-ʃi-towa 2sg.suj=vir-imp 1pl.suj=ir-imp-gr calar-imp-gr ‘Venha!’ ‘Vamos!’ ‘Calemo-nos!’

O proibitivo apresenta a mesma forma de expressão que o imperativo (15) e o exortativo (16), respectivamente. Ele é formado com o morfema de imperativo –ʃi mais o verbo edaˈka ‘deixar’, o qual é especializado para a função de proibição. O morfema de imperativo, então, agrega-se ao auxiliar, enquanto o verbo principal tem a forma do modo indicativo neutro.

(18) [aˈtʃkʲa daˈʃi] a=tʃi-ka da-ʃi 2sg.suj=vir-ind deixar-imp ‘Não venha!’

(19) [joːˈka daʃˈto] ja=o-ka da-ʃi-towa 1pl.suj=ir-ind deixar-imp-gr ‘Não vamos!’

Uma atitude proposicional que, para nós, não se encaixa em nenhuma das modalidades ou parâmetros acima é a interrogação. Em Yaathe, interrogação realiza-se como modo – exceto quando se usa uma palavra interrogativa do tipo-QU, pois se materializa através de um morfema que ocupa a posição do morfema de modo na morfologia verbal. A seguir ilustramos a expressão da interrogação em sentença afirmativa (20).

307 Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô

(20) [eˈhõma saˈkʰte] e=ho-ma sa=kʰo-te 3sg.suj=andar-int reflx=beber-inf ‘Ele anda bebendo?’

A interrogação expressa como modo é um aspecto da língua que necessita ser estudado mais intensamente, devido ao seu comportamento bastante diversificado. Ora o morfema agrega-se à forma verbal, como no exemplo acima, em (20), ora ao clítico pessoal, como em (21).

(21) [amaˈkʰde] a=ma=kʰde 2sg.suj=int=saber ‘Você sabe?’

É possível que as posições ocupadas pelo morfema de interrogação –ma na sentença tenham uma variabilidade bastante ampla, podendo esse morfema ser associado ao tópico interrogado, seja qual for papel gramatical ou semântico ou a função pragmática/discursiva do elemento interrogado.

Conclusões O sistema de modalidade da língua Yaathe corresponde, de modo geral, ao que está descrito na literatura sobre o tema. As duas forças modais – epistemicidade e deonticidade – são codificadas na língua, ora através da expressão de modo, ou seja, morfologicamente, ora através de outros instrumentos gramaticais, como auxiliares e partículas. Dois parâmetros básicos de modalidade – real e irreal – são realizados através dos mesmos tipos de instrumentos. A construção gramatical também tem um papel na expressão dos significados semânticos e pragmáticos, como se pode ver na expressão tripartite de enunciados assertivos, bem como na ocorrência de condicional tanto com o modo indicativo como com o modo subjuntivo. O sistema de modalidade, embora expresso por elementos gramaticais e lexicais, não basta ser descrito do ponto de vista dos significantes. Um estudo cuidadoso dos usos e das interações desse sistema com outros sistemas gramaticais precisa levar em conta fatores

308 Modo e Modalidade em Yaathe (Fulni-Ô) semânticos que vão além dos significados, já que fatores pragmáticos e discursivos devem ser escaneados cuidadosamente, um trabalho que exige a participação de falantes nativos com treinamento em linguística.

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309 Januacele da Costa | Fábia Fulni-ô

Lapenda, Geraldo. 1965. Estrutura da língua Iatê. Recife: UFPE. Meland, Douglas. 1969. Fulni-ô grammar. Arquivo linguístico n. 26. Bra- sília: Summer Institute of Linguistics. Meland, Douglas. Meland, Doris. 1968. Word and morpheme list of the Fulni-ô indian language. Dallas/Texas: Summer Institute of Linguis- tics. _____. 1967. Fulni-ô (Yahthe) phonology statement. Arquivo linguístico n. 25. Brasília: Summer Institute of Linguistics. Palmer, F. R. 1986. Mood and Modality. Cambridge: Cambridge Univer- sity Press. Pinto, Estêvão. 1956. Etnologia brasileira: Fulni-ô, os últimos Tapuias. São Paulo: Nacional. Sá, Elvis Ferreira. 2017. Documentação de Narrativas de Anciãos Fulni-ô. Dissertação de Mestrado. Maceío: PPGLL/UFAL. Silva, Fabia Pereira; Costa, Januacele; Oliveira Jr., Miguel. 2013. Povo Fulni-ô: Documentando sua língua e sua cultura. In: Marília Ferrei- ra (Org.). Tradições orais de línguas indígenas. Campinas/SP: Pontes, Sousa, Mariana Silva. 2017. Análise acústico-experimental da duração de vogais e sua correlação com a proeminência acentual em Yaathe. Dissertação de Mestrado. Maceió: UFAL/PPGLL.

310 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir

Damaris Kaninsãnh Felisbino Colégio Estadual Indígena Benedito Rokag, Universidade Estadual de Londrina

Marcelo Silveira Universidade Estadual de Londrina

Introdução O povo Kaingang é parte representativa dos indígenas (3º povo mais numeroso) que atualmente vivem no Brasil. A língua é falada por aproximadamente 45.620 pessoas, distribuídas em terras indígenas (T.I.) que estão localizadas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo (SIASI/SESAI, 2014 apud PIB, 2018). A T.I. Apucaraninha, onde nossa pesquisa foi realizada, vem crescendo muito; no início de 2018, já eram 1.818 habitantes, dispostos em 430 famílias. Essa T.I. está situada no município de Tamarana-PR. A língua pertence à família Jê, do tronco Macro-Jê. À família Jê pertencem também as línguas Akwẽ, Apinayé, Kayapó, Panará, Suyá, Timbira, Xokleng. Do tronco Macro-Jê fazem parte, além da família Jê, as famílias Boróro, Botocudo, Guató, Kamakã, Karajá, Karirí, Maxakalí, Ofayé, Purí, Rikbaktsá, Yaathe (Rodrigues, 1994: 134). Assim como acontece com todas as línguas, o Kaingang também tem suas variações estabelecidas e continua sofrendo mudanças no decorrer dos anos. Dessa forma, o objetivo primeiro da nossa pesquisa é investigar o uso das variações do verbo tĩg (ir), que ocorrem quando falantes respondem a uma pergunta. O segundo objetivo é entender como e por que ocorre essa variação em termos sociolinguísticos — se é por causa da escolaridade, do sexo ou da faixa etária ou algum outro fator. Diante disso, contamos com a ajuda de Faraco (2002), que explica que norma culta é a norma linguística praticada, entre outros, por grupos sociais que têm relação mais direta com a cultura escrita. Embora

311 Damaris Kaninsãnh Felisbino | Marcelo Silveira a língua Kaingang ainda não tenha uma gramática escrita sistematizada, professores indígenas afirmam que a pronúncia padrão de tĩg é [tĩŋ], para a qual detectamos uma forma não padrão, estigmatizada: tnhĩg cuja pronúncia é [tʃĩŋ]. Há muitos trabalhos que analisam a situação sociolinguística em línguas indígenas no Brasil, mas poucos tratam especificamente do aspecto linguístico. Esse é o resultado também quando se afunila para pesquisas voltadas ao tronco Macro-Jê. Já com relação à família Jê, foram encontrados estudos sobre os Xerente, Apinayé, Suyá, Tapayuna, Krahô, Gavião Kỳikatêjê, Xavante e Kaingang, que é o cerne desta pesquisa. Porém, as informações mais recentemente encontradas sobre o Kaingang dizem que não há dados atuais e nem confiáveis que se relacionam à situação sociolinguística dessa etnia, e o motivo é “que ainda não foi realizado nenhum estudo mais detalhado com dados precisos acerca do grau de vitalidade da língua. O que se tem são apenas dados estimados e, além disso, muito antigos, que já não retratam a realidade atual” (Nascimento et al. 2017: 373). Pesquisamos pelos termos variação diastrática e Macro-Jê, no buscador Google, e, dos 22 resultados não repetidos, nenhum analisou qualquer variação diastrática em línguas Macro-Jê. Quando pesquisamos pelos termos variação diastrática e Kaingang, os resultados relevantes foram de divulgação de parte dessa pesquisa, por um dos autores. Ou seja, não há qualquer estudo sobre variação, principalmente em relação à língua Kaingang, campo, então, aberto à pesquisa e sedento dela. Isso só confirma a necessidade de tratar da questão da variação em Kaingang, que, no caso desta pesquisa, é do verbo tĩg (ir) em análise de língua real, praticada no dia a dia da vida na T.I. Apucaraninha. Este estudo e os próximos visam contribuir para a elaboração de uma gramática pedagógica do Kaingang, para que professores e alunos possam usar em sala de aula. Por outro lado, auxiliará para que comecemos a pensar num retrato fiel da língua Kaingang falada e escrita em nosso país.

2. Variação linguística na língua Kaingang Constatamos que na língua Kaingang há uma relação de concorrência de variantes padrão vs. não padrão, conservadoras vs. inovadoras, de prestígio vs. estigmatizadas (Tarallo 1985: 11-12). Essa foi a base para a realização deste trabalho, visto que constatamos que a

312 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir forma ortográfica do verbo ‘ir’ é , cuja transcrição fonética é [tĩŋ], e também é considerada variedade padrão; a variedade não padrão é tnhĩg ([tʃĩŋ]). Optamos por usar, daqui em diante, a escrita fonética para a fluência na leitura do texto; o dígrafo é representado em Kaingang, entre outras, pela fricativa alveolopalatal desvozeada [ʃ]. Essas variantes, que são frequentes nas comunidades de fala, dizem a mesma coisa e com o mesmo valor de verdade (Tarallo 1985: 8) Embora a língua Kaingang ainda não tenha uma gramática para uso em sala de aula, podemos considerar o verbo tĩg padrão, pois é ensinado na escola pelos professores indígenas que ministram as aulas de língua Kaingang, e que são orientados a falar de “maneira correta” perante os alunos, sendo o uso do tĩg em todas as ocasiões na fala e por todas as pessoas. Ou seja, a língua padrão é definida pelos próprios falantes mais velhos e escolarizados, pois acreditam que a linguagem mais formal é a que deve ser ensinada na sala de aula. Sendo assim, vemos que, em primeiro lugar, os professores Kaingang respeitam a hierarquia tradicional, que é a valorização dos mais velhos da comunidade, e, em segundo, a valorização dos antigos professores formados pela Escola Clara Camarão. Wiesemann (1967, 1972, 1978) estudou a estrutura gramatical da língua Kaingang e implementou sua escrita. Ela fundou a escola Clara Camarão com o objetivo de formar monitores bilíngues, no Posto Indígena Guarita, no Rio Grande do Sul, em 1970. A partir disso, esses monitores passaram a ensinar a escrita do Kaingang nas escolas indígenas. Por essa razão, a escrita e a linguagem falada pelos mais velhos tornam essa escrita a “língua padrão”, ou seja, a norma considerada padrão é construída pelos próprios falantes, dependendo de cada região, mas não deixando (ou tentando não deixar) de lado a escrita implantada por U. Wiesemann. Atualmente, já não são mais esses professores que lecionam, mas seus alunos, mais jovens, o que fez ressaltar as diferenças já existentes entre língua escrita e língua falada, sendo esta o grande veículo linguístico de comunicação usado em situações naturais de interação social, do tipo comunicação face a face. É a língua usada nos lares, “nos botequins, clubes, parques, rodas de amigos; nos corredores e pátios das escolas, longe da tutela dos professores” (Tarallo 1985: 19). Analisar o tipo de correlação entre as variantes linguísticas e as categorias sociais dos grupos sociais em observação é uma das grandes funções da Sociolinguística, o que nos torna partícipes nesse

313 Damaris Kaninsãnh Felisbino | Marcelo Silveira trabalho. Assim, as pesquisas sociolinguísticas estão apontadas para três parâmetros, segundo Calvet (2002: 111): social, geográfico e histórico; em cada um deles há “variações diastráticas (correlatas aos grupos sociais), variações diatópicas (correlatas aos lugares) e variações diacrônicas (correlatas às faixas etárias)”. Outra forma de ver o mesmo assunto é apresentada por Preti (1982: 9): geográficas (à semelhança de Calvet); contextuais (em que entram em cena o assunto, o tipo de ouvinte, o lugar em que o diálogo ocorre e as relações que unem os interlocutores, que são influências alheias ao enunciador); sociológicas (à semelhança das variações diastráticas de Calvet), com o adendo dos itens: localização dentro da mesma região e raça). A variação diastrática corresponde às diferentes formas produzidas por falantes de diferentes classes sociais, incluindo escolaridade, faixa etária, gênero e, a nosso ver, envolve também as questões contextuais, de Preti (1982). Serão ilustradas aqui variações (padrão e não padrão) que se manifestam na fala dos Kaingang com diferentes idades, escolaridades, gêneros, tipo de ouvinte e contexto de produção. A Sociolinguística conta com duas correntes principais, que são a Sociolinguística Variacionista e a Sociolinguística Interacional. A Sociolinguística Variacionista opera com um modelo teórico- metodológico que trabalha com números e tratamentos estatísticos dos dados coletados durante a pesquisa de campo. Esse modelo surgiu com o linguista norte-americano William Labov, em meados da década de 1960. É também conhecida como Teoria da Variação e seu principal objetivo é compreender como as variações ocorrem, explicando-as a partir da análise da linguagem em seu contexto social. A variação são as transformações linguísticas que acontecem na comunidade de fala, porém mantendo-se o sentido. Ilari e Basso (2006: 152) ensinam que “essas expressões são à primeira vista estranhas, mas um pouco de etimologia mostrará ao leitor que elas são, no fundo, bastante transparentes”. Para eles, os tipos de variação linguística são os seguintes: diatópica, diastrática, diacrônica, sincrônica, diafásica e diamésica. Essas variações podem ocorrer em níveis morfológicos, fonológicos ou sintáticos. A variação diatópica é aquela que sofre mudanças em diferentes espaços geográficos, ou seja, diferentes regiões dentro do mesmo país. A variação diastrática ocorre em razão de convivências entre os grupos sociais. A variação diafásica, também denominada de variação estilística, é registrada nos usos diferenciados que o indivíduo faz da

314 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir língua conforme a situação/contexto em que ele se encontra, trata-se, portanto, do monitoramento estilístico, “que vai do grau mínimo ao grau máximo” (Bagno 2007: 45). A variação diamésica se dá no estudo sobre as diferenças entre a realização oral da língua e a escrita. Essas variações podem acontecer num dado momento do tempo, a que damos o nome de variação sincrônica, ou pode mudar de acordo com o tempo, sofrendo mudanças naturalmente, chamada de variação diacrônica. Nossa pesquisa está vinculada às bases teóricas da Sociolinguística Variacionista, especificamente a variação diastrática, pois o que estamos pesquisando é uma variação que pertence a um grupo específico de pessoas, entendendo, também, que a língua pode variar por maior ou menor contato entre diferentes culturas. Uma última contribuição teórica é a de que, “enquanto dialetos regionais são geograficamente baseados, dialetos sociais se originam entre os grupos sociais e dependem de uma variedade de fatores, cujos fatores principais são aparentemente a classe social, a religião e a etnicidade” (Wardhaugh 1992: 46. Tradução dos autores).1

3. Metodologia O corpus deste trabalho foi obtido por meio de documentação indireta, usando a pesquisa bibliográfica via internet; por meio de documentação direta, fazendo pesquisa de campo, usando tanto observações (do tipo sistemático e participante) quanto entrevistas (do tipo despadronizada ou não estruturada, subtipo não dirigida). Realizamos uma pesquisa bibliográfica em obras sobre a sociolinguística, principalmente a concepção de Labov (2008 [1968]) conhecida como Teoria da Variação, mais especificamente sobre a variação na língua portuguesa. Os informantes foram escolhidos tendo em vista os seguintes critérios: a escolaridade (sem escolaridade ou com os ensinos fundamental, médio ou universitário completos ou em andamento; o sexo (homens ou mulheres); a faixa etária (Grupo 1: até 10 anos; Grupo 2: de 11 a 16 anos; Grupo 3: de 17 a 20 anos; Grupo 4: de 21 a 54 anos; Grupo 5, de 55 em diante). Essa divisão da faixa etária foi feita com base no modo como os Kaingang consideram os diferentes momentos

1 Texto original: “Whereas regional dialects are geographically based, social dialects originate among social groups and depend on a variety of factors, the principal ones apparently being social class, religion, and ethnicity”.

315 Damaris Kaninsãnh Felisbino | Marcelo Silveira da vida: o Kaingang é criança dos 0 aos 10 anos; adolescente, dos 11 aos 16 anos; jovem, entre 17 e 20 anos; adulto, de 21 a 54 anos (bem como adolescentes e jovens casados); velho, de 55 anos em diante. O termo velho não soa ofensivo aos Kaingang, que o vê como sinônimo de respeito à vivência, ao conhecimento e à sabedoria. Em estudo sobre “A variável faixa etária em estudos sociolinguísticos”, Araújo (2007) concluiu que a sociolinguística ainda carece de metodologia no estudo desse fator de variação, apesar de todos os trabalhos que ele pesquisou o incluírem. Com relação às técnicas de pesquisa, Marconi e Lakatos (2003) as classificam em documentação indireta e direta, além da observação direta intensiva e extensiva. A documentação indireta, segundo os autores (2003: 174), “[É] a fase da pesquisa realizada com o intuito de recolher informações prévias sobre o campo de interesse”. Neste trabalho fizemos pesquisa em documentação indireta em artigos, monografias, dissertações e teses. A documentação direta refere-se ao “levantamento de dados no próprio local onde os fenômenos ocorrem. Esses dados podem ser obtidos de duas maneiras: através da pesquisa de campo ou da pesquisa de laboratório” (ibid.: 186). Neste trabalho, usamos a pesquisa de campo na T.I. Com relação à observação direta intensiva, há duas técnicas: a observação e a entrevista. Nesta pesquisa, ambas foram utilizadas. No que diz respeito à observação, trabalhou-se com a observação sistemática, que é aquela que se realiza “em condições controladas, para responder a propósitos preestabelecidos”, mas cujas “normas não devem ser padronizadas nem rígidas demais” (Marconi e Lakatos 2003: 193). Conforme esse tipo de observação, o observador sabe o que procura e o que carece de importância em determinada situação, ou seja, no caso desta pesquisa, a busca por enunciações em que o verbo tĩg estivesse presente. Ainda com relação à observação, usamos a do tipo participante, justamente pelo fato de um de nós pesquisadores fazer parte da comunidade indígena, cuja língua está sendo analisada, e isso foi feito individualmente, sempre em ambiente real (ibid.: 194-195). Também fizemos uso da entrevista como método de pesquisa, especificamente a entrevista chamada de despadronizada ou não estruturada (Marconi e Lakatos 2003: 197), que é aquela em que “[O] entrevistador tem liberdade para desenvolver cada situação em qualquer direção que considere adequada. […] Em geral, as perguntas são abertas e podem ser respondidas dentro de uma conversação

316 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir informal”, do subtipo não dirigida, em que “[H]á liberdade total por parte do entrevistado, que poderá expressar suas opiniões e sentimentos” (ibid.: 197). A função do entrevistador, nesse tipo de entrevista, “é de incentivo, levando o informante a falar sobre determinado assunto, sem, entretanto, forçá-lo a responder” (ibid.). Detalhe interessante na metodologia desta pesquisa foi o fato de, durante as entrevistas, notarmos que os informantes ficavam com vergonha para responder certas perguntas, a começar pelo seu nome, pois na cultura Kaingang da T.I. Apucaraninha, não se pergunta o nome das pessoas; ele só é descoberto por intermédio da fala de um terceiro. Outro costume é que não se apresenta uma pessoa para outra. Então, passou-se a não mais perguntar diretamente os nomes dos informantes. Além dessa mudança, as gravações passaram a ser feitas secretamente para que os entrevistados tivessem liberdade para expressar suas ideias, seus sentimentos ou emoções, sem se sentirem intimidados ou pressionados. Por isso, esse tipo de entrevista foi adequado para a realização deste trabalho. Por um de nós, pesquisadores, ser nativo, preocupamo-nos mais em cumprir as regras da tradição Kaingang; no final, entretanto, houve autorização dos entrevistados para o uso dos dados. Houve, ainda, outro tipo de coleta de dados: foram gravadas conversas espontâneas, que estavam acontecendo, sem que os informantes fossem levados a falar o verbo pesquisado, mas que, por ser um verbo muito utilizado, não foi difícil de aparecer e ser registrado. As perguntas foram feitas para alguns entrevistados num ambiente escolar, no local de trabalho da entrevistadora-pesquisadora, no intervalo. Algumas entrevistas foram gravadas num ambiente familiar dos informantes, e gravações também foram feitas em uma igreja.

4. Análise dos dados Alguns dos entrevistados nativos Kaingang não pronunciam a palavra tĩg, mas como tnhĩg. É com base nisso que se entende que as variantes tĩg e tnhĩg ocorrem na situação informal do dia a dia, no cotidiano dos Kaingang do Apucaraninha. A primeira impressão que tivemos é de que tĩg ocorre formalmente em qualquer ocasião (perguntas e respostas), mas informalmente ocorre somente em perguntas, pois, em respostas (orações declarativas com entonação assertiva), espera-se encontrar tnhĩg.

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Nas transcrições a seguir, a entrevistadora será identificada pela letra E, e os informantes, pela letra K seguida de um número sequencial. O itálico, nas transcrições, indica contrações feitas pelos falantes e que serão explicadas em outra oportunidade. O negrito destaca o termo pesquisado, bem como sua tradução, que vem entre parênteses. A primeira gravação foi feita com uma professora de língua Kaingang, K1, 28 anos, cursando o 3º ano do Bacharelado em Artes Visuais. E: K1, ã mỹ Ynae fi ĩn ra tĩg kem? (K1, você vai para a casa da Ynae?)

K1: Ã tĩg? Kỹnh tnhĩg. (Você vai? Então eu vou.)

E: Hỹ? (O quê?)

K1: Ã tĩg? kỹnh tnhĩg gũ henh nhiem. (Você vai? Então eu vou, estou falando.)

Na entrevista com K1, vê-se que a entrevistadora usou tĩg para fazer a pergunta: “ã mỹ Ynae fi ĩn ra tĩg kem?”. K1, por sua vez, usou tĩg na oração interrogativa (com valor de condicional) e tnhĩg na oração assertiva: “Ã tĩg? kỹnh tnhĩg”. A pesquisadora ainda perguntou “O quê?”, para que a resposta dada pela entrevistada pudesse ser confirmada, e se confirmou: “Ã tĩg kỹnh tnhĩg gũ henh nhiem”. A mesma pergunta foi feita para K2, professora, 38 anos, com supletivo completo na TI Apucaraninha e formação no magistério indígena.

E: Ã mỹ tãn ra tĩg kem Ynae fi ĩn ti ra? (Você vai lá na casa da Ynae?)

K2: Vó. Kỹnh hẽ ri ken kỹ tĩg? Ã mỹ jã tĩg kem? (Não. Então, como eu vou? E você vai?)

E: Ha jỹ. (Não sei.)

318 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir

K2: Kỹnh ti mỹ ha ã tóg si gen ra inh mré tĩg ke mũ gé vẽ, (Eu tinha falado para ele: mesmo assim você tem que ir co- migo,)

kỹ isóg tĩg gũ gé sir. (então eu vou também.)

he gé vẽ jỹ (tinha falado)

han inh mỹ há tóg isĩg jãvãnh tĩ. (mas ele falou: eu não quero ir.)

Como a entrevistadora sempre usou tĩg nas perguntas e tnhĩg nas orações assertivas, esse fato não será mais mencionado deste momento em diante. Na conversa com K2, nota-se a presença do verbo tĩg duas vezes em interrogações: “Kỹnh hẽ ri ken kỹ tĩg? Ã mỹ jã tĩg kem?”. Porém, também apareceu duas vezes em assertivas: “Kỹnh ti mỹ ha ã tóg si gen ra inh mré tĩg ke mũ gé vẽ, kỹ isóg tĩg gũ gé sir”. Por ter sido a única informante que enunciou orações interrogativas, esse fato não será analisado, restando, dessa forma, somente a análise do uso do tĩg em orações assertivas. Nas duas primeiras análises, K1, que é universitária não utilizou tĩg, o que pode ser devido ao fato de ser irmã da entrevistadora e conviver bastante com ela. Isso está de acordo com Camacho (1988: 29), que diz: “A linguagem humana varia de acordo com o grau de contato entre os seres que constituem a comunidade universal”. K2, por sua vez, com menos tempo de escolaridade que K1, usou a forma tĩg mesmo em orações em que não se esperava tal uso. Considerando a escolaridade de K2 (propícia para a pronúncia tnhĩg, segundo nossas hipóteses iniciais, e a conversa com a entrevistadora, que é graduada em Letras e especialista em Língua Portuguesa, inferimos que a informante usou a forma de prestígio na conversa com a entrevistadora, mais provavelmente pelo fato de ter tido pouco contato com não indígenas, fato que explicaremos mais à frente, e menos pela escolaridade da entrevistadora. Diante dessas duas primeiras análises, podemos entender que, à primeira vista, a variação diastrática do verbo tĩg não ocorre de acordo com o grau de escolaridade dos informantes, nem pelo tipo de oração em que ele ocorreu.

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Na sequência, a conversa com K3, 25 anos, viveu por quatro anos fora da TI, quando trabalhou como operadora de caixa num mercado em Maringá-PR. E: K3, ã Água Branca ra tĩg kem? Ã sarũ ra tĩg ke mũ vó? (K3, você vai para a Água Branca? Ou você vai para o salão?)

K3: Sarũ rainh tnhĩg. (Vou para o salão.)

A resposta dada para a pergunta foi: “Sarũ rainh tnhĩg”. Assim, verifica-se, mais uma vez, a pronúncia não padrão acontecendo em oração assertiva. O fragmento seguinte transcreve uma conversa que aconteceu na casa de K4, que estudou até o 3º ano do Fundamental 1 e estava com 40 anos. K4: Gabriel, inh my ã vẽ rỹ. Ajag kã tỹ hẽ nỹ mẽg gũ? Henh ga ti mỹ. (Gabriel, eu acho que é você. Quem de vocês está escutando? disse a ele.)

Kyn kurã ven hã mỹ, ã tỹ, ã tỹ nĩ vãnh ra nĩ kỹ mỹgga génh tnhĩg jan kĩ gé jỹ. (Ele acordou bem cedo, ele nunca acorda cedo, e foi pegar manga.)

Mais uma vez nos deparamos com o tnhĩg sendo usado em uma assertiva: “Kyn kurã ven hã mỹ, ã tỹ, ã tỹ nĩ vãnh ra nĩ kỹ mỹgga génh tnhĩg jan kĩ gé jỹ”. K5 tem 17 anos e é estudante do 9º ano do Ensino Fundamental. Para ele, a pergunta foi feita duas vezes, pois não respondeu na primeira vez, possivelmente por não estar prestando atenção ao que a entrevistadora dizia. E: Ã mỹ samano kã Água Branca ra tĩg kem? Ã mỹ mora henh tĩg ke mũ vó? (No sábado você vai para a Água Branca? Ou você vai jogar bola?)

320 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir

K5: Ã mỹ samano kã Água Branca ra tĩg kem? Ã mỹ mora henh tĩg ke mũ vó? (K5, no sábado você vai para a Água Branca? Ou você vai jogar bola?)

K5: Mora he jénh tnhĩg gũ. Han isĩg há tẽ. (Vou jogar bola. Mas eu, eu queria ir.)

E: Ã mỹ mora henh tĩg kem? Mỹ ã mỹ mora he há tĩgtĩ? (Você vai jogar bola? Você gosta de jogar bola?)

K5: Hỹ’ỹ, inh mỹ tóg ke há tĩgtĩ. (Sim, eu gosto.)

E: Ãjag tỹ ne ki ke e nẽ? (Vocês estão em qual jogo?)

K5: Ẽg tỹ campeonato ki ke e vẽ. (Estamos jogando no campeonato.)

E: Hỹ...Kỹ ã mỹ kren ke tũ jẽ? (Então você não pode perder?)

K5: Hỹ... kren ke tũ inh jẽ. (Sim, não posso perder.)

A resposta dada à pergunta foi que ele iria jogar bola, apesar de querer ir à Água Branca: “Mora he jénh tnhĩg gũ. Han isĩg há tẽ”. O diálogo seguinte apresenta a conversa com K6, 17 anos, 1º ano do Ensino Médio: E: K6, ã samano kã hẽ ra tĩg kem? (K6, aonde você vai no sábado?)

K6: Samano kã inh, goj ra inh kanhkã ag mré vim kenh tnhĩg ke mũ. (No sábado eu vou para o rio, pescar com meus irmãos.)

E: Mẽ... hỹ... Ã tỹ ne jé vim kenh tĩg ke nẽ? (É... por que você vai pescar?)

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K6: Inh nỹ fag mỹ, pirã ko sór fag gũ. (É para os meus pais, elas querem comer peixe.)

Nesse diálogo, percebe-se que a resposta dada para a pergunta “aonde você vai no sábado?” (“ã samano kã hẽ ra tĩg kem?) foi: “Samano kã inh, goj ra inh kanhkã ag mré vim kenh tnhĩg ke mũ”. (No sábado eu vou para o rio, pescar com meus irmãos). O verbo tnhĩg novamente ocorreu na oração assertiva, em resposta à pergunta feita com tĩg. A entrevista seguinte foi realizada com K7 (mulher) e K8 (homem), ambos com 20 anos, cursando o 1º ano do Ensino Médio: E: K7, ã samano kã Água Branca ra tĩg kem? Ã mora henh tĩg ke mũ vó? (K7, no sábado você vai para a Água Branca? Ou você vai jogar bola?)

K7: Isĩg há ra ti inh mỹ vẽnh mỹ tĩ...mora he jénh tnhĩg. (Queria ir, mas não vai dar certo...vou jogar bola.)

E: Mẽ... (É...)

E: Jã ã, K8? (E você, K8?)

K8: Ha jỹ, isỹ hara ũn tỹ Tamarỹnỹ ra mũ ve sór vẽ. (Não sei, mas queria ver se alguém vai para Tamarana.)

K8: Isỹ mora he tũ nĩ kỹnh tnhĩg, ag mré, inh név kajãm jé. (Se eu não for jogar, vou com eles pagar minha conta.)

Neste diálogo, “Isĩg há ra ti inh mỹ vẽnh mỹ tĩ... mora he jénh tnhĩg” e “Isỹ mora he tũ nĩ kỹnh tnhĩg, ag mré, inh név kajãm jé” apresentam a forma não padrão do verbo tĩg, realizada em orações declarativas assertivas. Na sequência, apresentamos a conversa com K9, 39 anos, primeira indígena Kaingang a se graduar num curso superior no Paraná, tendo estudado na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG):

322 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir

E: Mari, ã mỹ samano kã Água Branca ra tĩg kem? Ã mỹ mora henh tĩg ke mũ vó campeonato ki? (Mari, no sábado você vai para a Água Branca? Ou você vai jogar bola no campeonato?)

K9: Isĩg há tĩ vẽ, ha isóg mora henh tnhĩg ke mũ. (Queria ir, mas vou jogar bola.)

A resposta dada por K9 foi “Isĩg há tĩ vẽ, ha isóg mora henh tnhĩg ke mũ”, em que fica clara, mais uma vez, a preferência pela forma mais informal do verbo tĩg. Os dados que mostramos a seguir é um diálogo informal entre K10 e K11 nas dependências do templo. K10 tem 65 anos, terminou o Ensino Médio e é professor; Já K11, de 74 anos, não teve acesso aos estudos. K10: Isĩg ke nẽ ha. (Eu já vou.)

K11: Henh, Topẽ mré tĩg nĩ. (Sim, vai com Deus.)

K10: Henh. Ã mỹ ũri tĩg kem? (Sim. Você vai embora hoje?)

K11: Hẽn ri ke mũn inh vaj tĩg. (Talvez eu vou amanhã.)

K10: Mẽ. (É.)

Nessa conversa, eles não pronunciaram tnhĩg como os demais, mas tĩg. Uma hipótese é por estarem em um ambiente formal, dentro do templo; porém, o culto já havia se encerrado. Assim, para testar essa hipótese, a próxima entrevista foi feita com uma Kaingang de 70 anos, e a seguinte, com um de 58, os quatro considerados pertencentes à mesma faixa etária. A informante de 70 anos é K13 e foi entrevistada em ambiente familiar. Ela não teve acesso aos estudos. Durante uma conversa sobre ervas medicinais, um neto dela se aprontava para jogar futebol. Ele

323 Damaris Kaninsãnh Felisbino | Marcelo Silveira terminou de se arrumar, pegou sua bolsa e saiu. Nesse momento, após uma de suas filhas (K12) fazer um comentário, K13 pronunciou o verbo tĩg (quadro 10): K12: Morsa tu kỹ ti tĩ, mẽ mỹ ag Tamãrỹnỹ ra mora henh mũnh ke vẽ. (Ele está usando uma bolsa, parece que eles vão jogar bola em Tamarana.)

K13: Ti tỹ mora henh tĩg vẽ. (Ele está indo jogar bola.)

Na sequência, K12 falou para K13 que ia embora para casa. Então, K14, de 5 anos (filha de K12, neta de K13, trocou umas palavras com sua mãe, conforme mostra o seguinte diálogo. K12: Mũ jé ha! Ã kã jénh vóvó fi mré? (Vamos! Ou você vai ficar com a vóvó?).

K14: Ã mrénh tnhĩg ga. (Eu vou com você.)

A resposta da criança, “Ã mrénh tnhĩg ga”, mostra novamente a ocorrência de tnhĩg. Comparando o que a avó (K13, de 70 anos) e a neta (K14, de 5 anos) disseram, temos, respectivamente, “Ti tỹ mora henh tĩg vẽ” e “Ã mrénh tnhĩg ga”. Analisando K10, K11 e K13, notam-se 3 velhos usando a forma verbal padrão. A variável que parece interferir diretamente no modo de falar é a faixa etária, e não, necessariamente, a escolaridade. O relato a seguir é de um ex-cacique (K15, 58 anos), que conta uma história verídica sobre um indígena que foi preso numa cadeia de não indígena. Nesta gravação o informante não pronunciou tnhĩg, mas tĩg. K15: Hara si Ruvinh Mãnjóka ẽn vẽ rỹ. (Mas era aquele Luis Mandioca.)

Kỹnh ti mỹ: “ã nẽ kuty tá fóg tén jã mẽ?”, (Disse para ele: “você matou um branco ontem à noite?”,)

324 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir

kỹ ti vĩ tũ nĩ jỹ. “Ag mrénh tĩg”, he tavĩn ti jỹ. (ele não falou nada. Ele só falou, “vou com eles”.)

Ĩn ẽn krẽm inh nĩgtĩ...Han kejẽn tỹ tórón, tórón ke gé jỹ, (Morava naquela casa...Ele bateu na porta – toc toc –,)

“ha ver tĩg”, he ag inh mỹ, (“eles disseram: pode ir embora”, ele só falou isso.)

Eis um resumo dos dados da pesquisa. Participaram dela 5 homens (36%) e 9 mulheres (64%). Isso mostra que a escolha dos informantes não foi equilibrada, porém chegamos à conclusão de que não é a variável sexo que determina a realização das variantes do verbo tĩg. Apenas uma criança (7%) participou da pesquisa; nenhum adolescente (0%); 4 jovens (28%); 5 adultos (36%); e 4 velhos (29%). O ideal, considerando-se que são 5 faixas etárias, seria haver 20% de informantes de cada camada. Porém, mais à frente se verá que esse desequilíbrio também não impediu que nossas conclusões fossem tiradas com satisfação. Do total de participantes da pesquisa, 5 (36%) não têm escolaridade alguma ou têm Ensino Fundamental 1 completo; 7 (50%) têm Ensino Fundamental 2 ou Ensino Médio completo; e 2 (14%) têm ensino universitário (completo ou incompleto). Mais uma vez, por nossa conclusão em razão da conclusão a que se chegou não estar relacionada ao grau de escolaridade, o desequilíbrio entre os dados não a mudaria. a conclusão a que a pesquisa chegou. Tnhĩg foi mais pronunciado do que tĩg: sendo 9 vezes (64%) para aquele e 5 vezes (36%) para este. A quantidade de variantes falada pode querer dizer que a pronúncia da variante não padrão (tnhĩg) vem ocorrendo mais na T.I. Apucaraninha, mas a quantidade de dados não é suficiente essa afirmação. Houve uma maior quantidade de homens (60%) usando a forma tĩg, enquanto 80% das mulheres usam a forma tnhĩg. Os números, porém, apesar de estarem em forma de percentagem – não se relacionando, portanto, com a quantidade numérica dos informantes, não são necessariamente reveladores, visto que uma variável importante, a faixa etária, não se faz presente no cruzamento dos dados, o que será visto. As crianças e os jovens não usaram, na pesquisa, a pronúncia formal do verbo ir em Kaingang (tĩg), ou seja, foi 100% de pronúncia

325 Damaris Kaninsãnh Felisbino | Marcelo Silveira tnhĩg. Por ser uma faixa etária intermediária, pode-se afirmar, com certa precisão, que os adolescentes (se houvesse na pesquisa) também teriam o mesmo comportamento linguístico que as faixas etárias anterior e posterior. Já os adultos não são unânimes na pronúncia, pois 20% deles pronunciaram tĩg contra 80% que pronunciaram tnhĩg. Os velhos Kaingang, por sua vez, foram unânimes (100%) na pronúncia da variante padrão tĩg. Quanto à escolaridade, quanto maior o nível de escolaridade, mais a variante tnhĩg é usada, indo de 40% para a escolaridade mais baixa, passando a 71% para a escolaridade média e chegando a 100% na escolaridade mais alta. Isso pode se dever ao grau e ao tempo de contato com não indígenas, cuja língua, portuguesa, pode estar influenciando a ocorrência da oclusiva alveolar desvozeada /t/ em prol da pronúncia de uma africada alveolopalatal desvozeada [tʃ], como acontece nas cidades do entorno do Apucaraninha.

Considerações finais Diante de todos os dados e respectivas análises, concluímos, primeiramente, que a variação do verbo tĩg ocorre na resposta dada a uma pergunta, sendo tĩg a variante de prestígio considerada “padrão”, na língua Kaingang. A variação estigmatizada ocorre na resposta dada a uma pergunta e aparece sob a forma tnhĩg. As pessoas pronunciam tĩg em orações assertivas quando estão em sala de aula (a pedido dos professores), não importando a faixa etária, ou na igreja, pelos velhos, bem como quando fazem uma pergunta. A variação desse verbo ocorre quando a fala é realizada por informantes mais jovens, que têm ou tiveram muito contato com a língua portuguesa, além de ser bem provável resultado de influência da mídia televisiva, que entrou há pouco tempo, com bastante força, na Terra Indígena pesquisada, africando a oclusiva alveolar desvozeada /t/. Por isso, a hipótese, é de que a variante tnhĩg ocorre na resposta dada para a uma pergunta de acordo com a faixa etária dos informantes e com o contato com a língua portuguesa, pois aqueles com mais de 55 anos não o pronunciam em respostas, visto que saem menos da T.I., tendo menos contato com os não indígenas; mesmo que saiam muito, o fator de mudança linguística em crianças, adolescentes e jovens é bem mais alto do que ocorre com adultos e velhos, que tendem a manter a língua com pouca mudança, mesmo com influências externas. Já as crianças, adolescentes os jovens e os adultos pronunciam o tnhĩg, desde

326 Variação diastrática na língua Kaingang: o verbo ir que o contato com a língua portuguesa aconteça ou tenha acontecido o suficiente para a mudança na pronúncia. Vimos, com esta pesquisa, que existem pouquíssimos estudos sobre variação sociolinguística em línguas do tronco Macro-Jê, especialmente aquelas filiadas à família Jê e, consequentemente, no Kaingang. Este estudo trata, de maneira inédita, da variação diastrática do verbo tĩg (ir) na língua Kaingang. Por fim, esperamos que este trabalho possa contribuir para o estudo da língua Kaingang, bem como das demais línguas indígenas espalhadas pelo Brasil, contribuindo para o conhecimento e a divulgação da língua e da cultura Kaingang.

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327 Damaris Kaninsãnh Felisbino | Marcelo Silveira

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328 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

Mário André Coelho da Silva Universidade Federal de Goiás

Andrey Nikulin Universidade de Brasília

Introdução

O Maxakalí (Tikmũũn yĩy’ax) é a única língua sobrevivente1 da família linguística Maxakalí2 (tronco Macro-Jê). É falada atualmente em quatro aldeias — Pradinho, Água Boa, Aldeia Verde e Cachoeirinha — localizadas no Vale do Mucuri no nordeste do estado de Minas Gerais, próximo à divisa com a Bahia, sendo que praticamente todos os aproximadamente 2000 indígenas da etnia têm como primeira língua

1 Há duas outras variedades linguísticas pertencentes à família Maxakalí que são, de certa forma, utilizadas na atualidade. O Pataxó-Hãhãhãe e o Pataxó, apesar de terem sofrido uma interrupção na transmissão de mãe para filho, estão atualmente sendo retomados pelo povo Pataxó sob o nome de Patxôhã; contudo, muitos elementos gra- maticais e lexicais que existiam no Pataxó-Hãhãhãe e no Pataxó antes da perda lin- guística não puderam ser resgatados em razão da escassez dos registros disponíveis, sendo substituídos por elementos de outras origens. Já a língua utilizada nos cantos rituais dos Maxakalí constitui uma modalidade linguística diferenciada daquela usada no dia a dia pela comunidade e, de acordo com nossos colaboradores, é a língua de seus antepassados. De fato, ela provavelmente foi falada como primeira língua de indí- genas no século XIX (cf. Martius 1867), porém hoje não é passada de mãe para filho, sendo aprendida em contextos ritualísticos. Outras línguas da família Maxakalí, como o Malalí e o Koropó, estão atualmente extintas. Da família Maxakalí, hoje, somente os Maxakalí, os Pataxó e os Pataxó-Hãhãhãe ainda existem como etnias organizadas e reconhecidas pelo governo federal brasileiro. 2 A primeira referência histórica aos Maxakalí data de 1734 (Nimuendajú 1958) e os primeiros registros das línguas da família Maxakalí, compostos por listas de palavras, datam da primeira metade do século XIX (Martius 1867). O território tradicional das populações da família Maxakalí englobava ao sul, os vales dos rios Mucuri e Doce, e a oeste, o rio Jequitinhonha, no estado de Minas Gerais; o limite norte era demarcado pela margem sul dos rios de Contas e Pardo, no estado da Bahia.

329 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin o Maxakalí (SIASI 2013). Eles ainda mantêm suas práticas religiosas tradicionais, assim como parte de sua cultura material, apesar da degradação da Mata Atlântica na região onde se localizam atualmente. O presente artigo explora a expressão morfológica de três categorias flexionais de verbos na língua Maxakalí, a saber: indexação dos argumentos de pessoa (seção 3), modo (seção 4) e contiguidade (seção 5). Ribeiro (2006: 424) afirma que diversas línguas Macro-Jê, dentre elas o Maxakalí, contam, no geral, com uma morfologia flexional extremamente simples. Ele diz que “na maioria das línguas [...] a morfologia flexional produtiva é limitada à marcação de pessoa, com os mesmos paradigmas sendo geralmente compartilhados por nomes, verbos e adposições” (tradução nossa).3 Mostraremos, no entanto, que o verbo no Maxakalí é consideravelmente mais complexo do que apresentado em descrições anteriores (cf. Pereira 1992; Campos 2009). Ressaltamos que neste trabalho discutiremos a morfologia flexional apenas, não entrando, portanto, no domínio da morfologia derivacional que poderá ser objeto de pesquisas futuras.

2. Características básicas da língua A língua Maxakalí conta com nove consoantes fonológicas: quatro obstruintes surdas /p, t, c, k/, quatro obstruintes vozeadas (com alofones nasais) /b, d, ɟ, g/4 e uma fricativa glotal /h/ (Silva, em andamento). Os grafemas representam as consoantes do Maxakalí na ortografia utilizada por seus falantes. Em relação às vogais, há cinco orais /i, ɨ, u, ɛ, a/ e cinco nasais /ĩ, ɨ,̃ ũ, ɛ,̃ ã/, escritas respectivamente como . No decorrer do trabalho, utilizaremos a ortografia nos exemplos.

3 No original: “In most languages [...] productive inflectional morphology is limited to person marking, the same paradigms being generally shared by nouns, verbs, and adpo- sitions alike.” 4 Os alofones nasais ocorrem em onset quando precedendo vogais nasais. Em coda há uma neutralização de modo, na qual núcleos orais sempre são seguidos por consoan- tes orais e núcleos nasais sempre por consoantes nasais. A consoante velar /g/ foge à regra, pois é sempre oral em onset independente do valor de nasalidade do núcleo (Gudschinsky, Popovich & Popovich, 1970). Há ainda alguns contextos morfofono- lógicos em que há a ocorrência das demais oclusivas sonoras seguidas de vogal nasal, sugerindo que o Maxakalí possui um contraste emergente, ainda que marginal, entre /b, d, ɟ/ e /m, n, ɲ/. O mesmo também pode ocorrer em empréstimos do português (Wetzels, 2009; Silva, em andamento). Contudo, neste trabalho aderiremos à análise mais tradicional, proposta por Wetzels (2009).

330 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

A ordem canônica de constituintes é AOV/SV (Popovich 1985; Campos 2009). Os verbos da língua se subdividem em duas grandes classes morfossintáticas de acordo com sua origem. Os verbos nativos seguem o padrão ergativo-absolutivo no modo realis: tanto o objeto de verbos transitivos (O) como o único argumento de verbos intransitivos (S) formam um constituinte com o verbo, enquanto o sujeito de verbos transitivos (A) é expresso por um sintagma posposicional encabeçado pela posposição te erg. Em construções imperativas, os verbos da mesma classe ocorrem no modo irrealis e apresentam um alinhamento diferente daquele observado em cláusulas encabeçadas por um verbo no modo realis. Nessas construções, uma parte dos verbos intransitivos se assemelha aos verbos transitivos no que diz respeito à expressão de seus argumentos: o único argumento desses verbos (SO), bem como o objeto de verbos transitivos (O), é expresso normalmente em sua posição canônica (no caso desta classe de verbos intransitivos, a única possibilidade em construções imperativas é o índice de segunda pessoa ã-). Os demais verbos intransitivos não permitem a expressão de seu único argumento (SA) em construções imperativas, propriedade compartilhada com o agente de verbos transitivos (A), indicando que os verbos nativos seguem o padrão ativo-inativo5 na construção imperativa em Maxakalí. Este sistema de intransitividade cindida encontra estreitos paralelos em algumas outras línguas Macro-Jê, sendo que as línguas Jê Setentrionais constituem o caso mais bem conhecido (cf. Oliveira, 2003; Castro Alves, 2010). Em contraste, os verbos emprestados do português e onomatopaicos seguem o padrão nominativo-acusativo independentemente da construção: tanto o agente de verbos transitivos (A) como o único argumento de verbos intransitivos (S) desta classe são expressos por sintagmas posposicionais encabeçadas pela posposição te nom, enquanto o objeto de verbos transitivos emprestados e onomatopaicos (O) é expresso por um sintagma posposicional encabeçado pela posposição hã acc (ou sua forma supletiva de terceira pessoa nõ 3.acc). Os dados utilizados neste trabalho foram coletados na Aldeia Verde (Ladainha/MG) e na Aldeia Pradinho (Bertópolis/MG) durante

5 Advertimos o leitor que a cisão intransitiva em Maxakalí não parece possuir um condicionamento semântico totalmente claro. Portanto, o rótulo “ativo-inativo” diz respeito tão somente à existência de uma cisão intransitiva nesta língua e não deve ser interpretado como uma descrição semântica da mesma.

331 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin três meses do primeiro semestre de 2016 pelo primeiro autor. Os dados constam de diversas gravações de fala espontânea e elicitação de palavras, assim como julgamentos de gramaticalidade por parte dos falantes nativos. Os dados foram coletados com colaboradores dos dois sexos e de diversas faixas etárias, com idades variando entre 13 e 80 anos, à época das gravações.

3. Índices de pessoa Entendemos por índices os marcadores de pessoa que não podem ser classificados como pronomes livres por ocorrerem sempre presos a outro tema, sendo utilizados para codificar os argumentos dos verbos6 (Haspelmath 2013). Em Maxakalí, os argumentos que são codificado por meio de índices de pessoa são esses: objeto de verbos transitivos nativos (nos modos realis e irrealis em todas as construções) (1a, d); único argumento de verbos intransitivos nativos (no modo realis) (1c– d); único argumento de uma subclasse de verbos intransitivos nativos (no modo irrealis em construções imperativas) (1e).

(1) [A erg] O V O V (A não expresso) a. ã te ã-xanãhã d. ũ-xanã 1sg.obl erg 2-chamar.rls 3-chamar.irls ‘eu te chamei’ ‘chame-o!’

S V SO V b. ug=xup e. ã-xup 1sg=estar_pendurado.sg.rls 2-estar_pendurado.sg.irls ‘eu estou pendurado’ ‘esteja pendurado!’

6 É tipologicamente comum que os mesmos marcadores sejam utilizados para codi- ficar argumentos tanto de verbos, como de nomes e adposições (Haspelmath 2013: 213; Siewierska 1998; Bakker 2005). Isto ocorre, como dito acima, em diversas línguas Macro-Jê (Ribeiro 2006). Em Maxakalí, os índices de pessoa que ocorrem em verbos coincidem com a série de marcadores pessoais que codifica o possuidor na construção de posse inalienável (não considerada neste trabalho, cujo foco é a morfologia verbal). Contudo, uma série diferente codifica o complemento de posposições: ã 1sg, yũmũã 1incl, ũgmũã 1excl, xa 2, tu 3. Algumas posposições possuem formas supletivas, tais como ã 1sg.dat, xa 2.dat, tu 3.dat (cf. pu dat); nõ 3.instr/acc.

332 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

S V V (SA não expresso) c. ũ-mãm f. mãhãm 3-estar_sentado.pl.rls estar_sentado.pl.irls ‘eles estão sentados’ ‘sentem-se!’)

Os demais argumentos de verbos nativos e todos os argumentos de verbos emprestados e onomatopaicos podem ser expressos apenas por sintagmas posposicionais encabeçadas pelas posposições te erg/nom (1a, g–h) ou hã acc (1g), fugindo do domínio da morfologia verbal.

[A nom] [O.acc] V [S.nom] V g. ã te xa hã yõna h. ã te pũn 1sg.obl nom 2.obl acc ajudar 1sg.obl nom pular ‘eu te ajudei’ ‘eu pulei’

Na Tabela 1 abaixo reproduzimos os índices de pessoa do Maxakalí. Tabela 1 — Índices de pessoa em Maxakalí7 1sg 1excl 27 3 ũgmũg= alomorfes ũg= (k=, g=, -x=) ã- ũ- (Ø-) (gmũg=, -xmũg=) representação /k=/ /kbk=/ /ã-/ /-/ subjacente Note que suas propriedades morfossintáticas não são homogêneas: como argumentaremos abaixo, ã- 2 e ũ- 3 devem ser descritos como prefixos, enquanto ũg= 1sg e ũgmũg= 1excl possuem um grau mais elevado de mobilidade, podendo ser classificados como clíticos.8 Por

7 O índice ã- é utilizado para marcar prototipicamente a segunda pessoa do singular, mas também é encontrado no plural, principalmente em verbos que possuem formas supletivas para singular e plural. Quando necessária a marcação de plural utiliza-se o associativo com a marca de segunda pessoa: ã-xop ‘vocês’. No decorrer do trabalho glosaremos esse índice como 2 por considerarmos que não é marcado para o traço [número]. 8 Ressaltamos que neste trabalho não usamos o termo “clítico” como um conceito teórico e sim como uma categoria descritiva (no sentido de Haspelmath, 2010). Este termo permite capturar, de forma concisa, algumas propriedades convergentes de cer- tos morfemas Maxakalí: um grau elevado de sua mobilidade em comparação com a maioria dos afixos, bem como o comportamento misto destes em verbos que exigem a marcação de contiguidade (ver seção 3).

333 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin fim, os argumentos internos de incl1 e 2pl são expressos por itens que compartilham seu comportamento morfossintático com os sintagmas nominais do Maxakalí e, portanto, devem ser classificados como nomes e não índices: yũmũg ‘nós.incl’ e ã-xop ‘vocês’.

3.1 Mobilidade dos índices de 1sg e 1excl Os índices de 1sg e 1excl possuem um comportamento diferenciado em relação aos demais marcadores, compartilhando algumas propriedades com sintagmas nominais e outras com os índices prefixais de segunda e terceira pessoas. A evidência principal para esta afirmação provém dos dados que envolvem os chamadosverbos direcionais, isto é, verbos que são lexicalmente especificados para exigir a ocorrência dos proclíticos direcionais mõ= ctpt e nũ= ctfg.9 Diferentemente dos índices ã- 2 e ũ- 3, que obrigatoriamente ocorrem entre o clítico e o verbo (2a–b), os índices ũg= 1sg e ũgmũg= 1excl podem tanto ocorrer na mesma posição (2c), como opcionalmente preceder tal clítico (2d).

(2) a. ã te mõ=ã-put 1sg.obl erg ctfg=2-pegar.anim.sg.rls ‘Eu te toquei.’

b. *ã te ã-mõ=put 1sg.obl erg 2-ctfg=pegar.anim.sg.rls pretendido: ‘Eu te toquei.’

c. xa te mõ=g=put 2.obl erg ctfg=1sg=pegar.anim.sg.rls ‘Você me tocou.’

9 Ainda que tenham sua origem etimológica a partir de verbos de movimento, os pro- clíticos mõ= e nũ= não necessariamente indicam uma leitura de movimento no atual estágio da língua. Há, de fato, casos em que há uma leitura de movimento como em mõ=kunãhã ‘enviar.sg (a partir do falante)’ e nũ=kunãhã ‘enviar.sg (em direção ao falante)’. Contudo, há casos em que a semântica de movimento parece ter se perdi- do, com o proclítico se tornando opaco e lexicalizando junto ao verbo, por exemplo, mõ=hap ‘queimar (transitivo), assar’, o qual não tem uma leitura de movimento envol- vida. A forma sem o proclítico, *hap, no mesmo exemplo, não ocorre na língua.

334 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

d. xa te ũg=mõ=put 2.obl erg 1sg=ctfg=pegar.anim.sg.rls ‘Você me tocou.’

Os clíticos ũg= 1sg e ũgmũg= compartilham esta propriedade com os sintagmas nominais, que apresentam variação análoga referente a seu ordenamento relativo com os proclíticos direcionais na função do argumento interno (2e–f).

e. xa te mõ=Yoãm=put 2.obl erg ctfg=João=pegar.anim.sg ‘Você tocou o João.’

f. xa te Yoãm=mõ=put 2.obl erg João=ctfg=pegar.anim.sg ‘Você tocou o João.’

Na seção 3 discutiremos mais uma propriedade compartilhada pelos índices ũg= 1sg e ũgmũg= com os sintagmas nominais, bem como uma propriedade compartilhada por todos os índices de pessoa (prefixos e clíticos) que os distingue dos sintagmas nominais.

4. Modo O Maxakalí conta com dois modos: realis e irrealis. O primeiro é utilizado em orações independentes (3a) e coordenadas (3c). O modo irrealis, por sua vez, é usado em construções imperativas (3b) e em orações subordinadas de finalidade introduzidas por nũy (mesmo sujeito da oração principal), ũ, xa ou pu (sujeito diferente do da oração principal, de 1, 2 e 3, respectivamente) (3d).10

(3) a. ã te yãy ã-koho 1sg.obl erg reflx ctg-coçar.rls ‘Eu me cocei.’

10 Trabalhos anteriores como os de Pereira (1992), Araújo (2000) e Campos (2009) já apontaram para a diferença na forma de alguns verbos no imperativo, porém como nenhum desses trabalhos lidou com orações subordinadas, nada é dito sobre o uso dessas formas em outros contextos que não o do imperativo.

335 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin

b. yãy ã-ko-x refl ctg-coçar-irls ‘Coce-se!’

c. ã te mĩm paha tu yãy 1sg.obl erg pau pegar.inan.sg.rls e.ms reflx

ã-koho ctg-coçar.rls ‘Eu peguei o pau e me cocei.’

d. ã te mĩm paha nũy yãy 1sg erg pau pegar.inan.sg.rls fin.ms reflx

ã-ko-x ctg-coçar-irls ‘Eu peguei o pau para me coçar.’

Embora a maior parte dos verbos não distinga formalmente entre os modos realis e irrealis, apresentando duas formas idênticas, até o presente encontramos pouco mais de 40 verbos, todos nativos, com uma distinção formal. Esta distinção se dá primeiramente por meio de sufixação, bem como através de aplicação diferenciada de certas regras fonológicas e morfofonológicas. No Quadro 2, detalhamos os sete padrões de sufixação identificados. Quadro 1 — Distinção formal de modo em Maxakalí

Padrão realis irrealis glossa rls /-p/, irls /- / pip /pi-p/ pihi /pi/ ‘estar deitado.sg’

rls /-t/, irls /- ∅/ nũn /dɨ̃-t/ nũ /dɨ̃/ ‘vir’ ∅ kix /ki-k/ ki /ki/ ‘matar.pl’ koxak /kuca-k/ koxak /kuca/ ‘acordar’ kutex /ktɛ-k/ kute /ktɛ/ ‘cantar’ rls /-k/, irls /- / kũyĩy /kɨ̃ɟi-k/̃ kũyĩ/kɨ̃ɟĩ/ ‘dirigir’ ∅ miy /bĩ-k/ mĩ /bĩ/ ‘fazer’ mõg /bũ-k/ mõ /bũ/ ‘ir’

336 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

mõkupix /bũ=kɨpi-k/ mõkupi / ‘ler, contar’ muk /bɨ-k/ bũ=kɨpi/ ‘cozinhar’ pix /pi-k/ mu /bɨ/ ‘lavar’ xex /cɛ-k/ pi /pi/ ‘pôr na horizontal’ xix /ci-k/ xe /cɛ/ ‘deixar, emprestar’ kotxix /kutci-k/ xi /ci/ ‘mastigar’ yĩyxix /ɟikci-k/̃ kotxi /kutci/ ‘rir’ rls /-k/, irls /- / xok /cu-k/ yĩyxi /ɟĩkci/ ‘plantar’ nũxok /d=cu-k/ xo /cu/ ‘derramar’ ∅ tatxok /tatcu-k/ nũxo /d=cu/ ‘banhar-se’ xaxok /cacu-k/ tatxo /tatcu/ ‘descascar’ hãmyãg /hãp-ɟã-k/ xaxo /cacu/ ‘dançar’ kotyãg /kutɟã-k/ hãmyã /hãp-ɟã/ ‘tossir’ yĩyãg /ɟĩɟã-k/ kotyã /kutɟã/ ‘cortar’ yĩyã /ɟĩɟã/ kopuk /kupɨ-k/ kopux /kupɨ-c/ ‘voar.pl’ mõkouk /bũ=kuɨ-k/ mõkoux /bũ=kuɨ- ‘soprar’ mũg /b-k/ -c/ ‘agarrar’ rls /-k/, irls /-c/ xak /ca-k/ mũy /b-c/ ‘pedir’ xupak /cɨ-pa-k/ xax /ca-c/ ‘escutar’ xupax /cɨ-pa-c/ nãhã /dã/ nãhãy /dãc/ ‘cair.sg’ mõnãhã /bũ=dã/ mõnãy /bũ=dã-c/ ‘entrar.sg’ rls /- /, irls /-c/ yãy taha /ɟãc ta/ yãy tax /ɟãc ta-c/ ‘casar-se’ ∅ xukoho /cɨ-ku/ xukox /cɨ-ku-c/ ‘coçar’ yãy hi /ɟãc hi/ yãy hit /ɟãc hi-t/ ‘vagar’ tehe /tɛ/ tehet /tɛ-t/ ‘estar preparado’ xehe /cɛ/ xehet /cɛ-t/ ‘repetir’ rls /- /, irls /-t/ mõxaha /bũ=ca/ mõxãn /bũ=cãt/ ‘sair.pl, chegar.pl’ xupaha /cɨpa/ xumãn /cɨbã-t/ ‘fugir.sg’ (alguns∅ verbos   nasalizam última nũpaha /d pa/ nũmãn /d bã-t/ ‘fugir.pl’ sílaba) mõxupaha /bũ=cɨpa/ mõxumãn / ‘correr.sg’ mõnũpaha /bũ=dɨ̃pa/ bũ=cɨbã-t/ ‘correr.pl’ mõnũmãn /bũ=- dbã-t/ rls /-(t-)a/, potaha /pu-t-a/11 poho /pu/ ‘chorar’ topaha /tup-a/ tohop /tup/ ‘voar.sg’ irls /- / xataha /ca-t-a/ xaha /ca/ ‘gritar’ 11 ∅

11 Etimologicamente, as raízes para ‘chorar’ e ‘gritar’ recebiam um sufixo monoconso-

337 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin

Além dos sufixos que distinguem entre as formasrealis e irrealis, é importante notar que o contraste de modo pode ser adicionalmente reforçado pela aplicação heterogênea de certas regras fonológicas e morfofonológicas. A primeira delas, aparentemente motivada por uma restrição que proíbe palavras fonológicas monomoraicas, faz com que a única vogal das palavras fonológicas subjacentemente monossilábicas se realize na superfície como uma sequência dissilábica (VhV /V/),12 como ilustramos em (4a–b). Entendemos que a noção de palavra fonológica em Maxakalí está estreitamente ligada à constituência sintática, sendo que os argumentos internos integram a mesma palavra fonológica que seus núcleos. Dessa forma, para que a regra possa ser aplicada, é necessário que o tema monossilábico em questão não possua argumentos internos nem seja argumento interno de outro tema. Observe que alguns temas nunca apresentam essa alternância por obrigatoriamente ocorrerem com um argumento interno, o que inclui nomes inalienavelmente possuídos

(4c), verbos nativos intransitivos de argumento SO (4d), transitivos (4e) e posposições (4f).13

nantal *-t em realis: para o Proto-Maxakalí-Krenák, reconstrói-se *put e *cat, respec- tivamente. Na língua dos Cantos Rituais Maxakalí, a ocorrência do sufixo -a em realis é opcional: pot ~ pota ‘chorar’, xat ~ xata ‘gritar’. Na língua Krenák, os cognatos desses verbos são puk ‘chorar’ e kak ‘chamar’, sendo que a consoante -k em coda corresponde a Maxakalí -t (Nikulin e Silva, manuscrito). 12 Ainda que infrequentes, alguns nomes exigem a ocorrência de uma oclusiva glotal no lugar da fricativa: VʔV /V/, como em po’op /pup/ ‘macaco’. A seleção de h ou ʔ em nomes parece ser, a princípio, definida lexicalmente. Salientamos ainda que em verbos a única consoante que ocorre nesse tipo de sequência é a fricativa h. 13 Infelizmente, por motivos de espaço não podemos discutir em detalhe a estrutura argumental dos diferentes temas do Maxakalí no âmbito deste trabalho. Ressaltamos que em Maxakalí o argumento interno: ▪ é obrigatoriamente expresso ora por um sintagma nominal, ora por um índice de pessoa em nomes inalienavelmente possuídos (possuidor), posposições (complemen- to), verbos transitivos nativos (objeto) e verbos intransitivos nativos de argumento SO (único argumento); ▪ é obrigatoriamente expresso no modo realis (único argumento) mas inibido em construções imperativas em verbos intransitivos nativos de argumento SA; ▪ não existe em nomes (exceto os alienavelmente possuídos) nem em verbos empres- tados ou onomatopaicos.

338 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

(4) /V/ → VhV em constituintes subjacentemente monossilábicos a. tihik cf. tik pu /tik/ /tik pɨ/ nome não possuído (não possui argumento homem homem dat interno) ‘homem’ ‘para o homem’ b. mãhãm cf. ã-mãm verbo nativo intransi- /bãp/ /ã-bãp/ tivo de argumento Sa sentar_se.pl.irls 2-sentar_se.pl.rls (possui argumento in- ‘sentem-se’ ‘vocês se sentaram’ terno só em realis)

c. ã-ktok cf. *kutohok /ã-ktuk/ /ktuk/ nome inalienavelmente possuído (exige um 2-filho filho argumento interno) ‘teu filho’ ‘pretendido: filho’ d. ã-hãm cf. *hãhãm verbo nativo intransitivo

/ã-hãp/ /hãp/ de argumento SO (exige um argumento interno 2-trabalhar trabalhar nos dois modos) ‘você trabalhou’, ‘trabalhe!’ ‘trabalhe!’ e. ũ-put cf. *puhut verbo transitivo (exige /ɨ̃-pɨt/ /pɨt/ um argumento interno nos dois modos) 3-pegar.anim.sg pegar.anim.sg ‘pegou-o’ (realis), ‘pretendido: ‘pegue-o!’ (irrealis) pegue!’ f. tik pu cf. *puhu posposição (exige um /tik pɨ/ /pɨ/ argumento interno nos dois modos) homem dat dat ‘para o homem’ ‘pretendido: para ele’

339 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin

Em exemplos como (4b), apesar de as representações subjacentes das formas realis e irrealis serem idênticas, a regra opera no modo irrealis (já que o verbo, por pertencer à subclasse de verbos nativos intransitivos de argumento SA, não possui argumento interno em construções imperativas), mas não se aplica à forma realis, visto que neste caso o argumento interno do verbo é obrigatoriamente expresso, impedindo a formação do ambiente necessário para a aplicação da regra. Isto ocorre também em outros verbos da mesma classe morfossintática: poho /pu/ ‘chore!’, tohop /tup/ ‘voe!’, xaha /ca/ ‘grite!’, nãhãy /dãc/ ‘caia!’, xihip / cip/ ‘esteja!’, pihi /pi/ ‘deite-se!’, tehet /tɛ-t/ ‘esteja preparado!’, yuhum / ɟɨ̃p/ ‘sente-se!’. Portanto, as diferenças na morfossintaxe desses verbos nos modos realis e irrealis afetam a aplicação da regra fonológica acima referida, levando a realizações diferentes na superfície mesmo no caso de verbos que não recebem sufixos explícitos de modo. É importante observar que os proclíticos (tais como ka proh, noi perm.imp, mõy all.imp) fazem parte da mesma palavra fonológica que os verbos hospedeiros. Portanto, embora os verbos de argumento SA não possuam argumentos internos no modo irrealis, a ocorrência de proclíticos inibe a formação das sequências da estrutura VhV (5).

(5) a. poho ka=po /pu/ /ka=pu/ chorar.irls proh=chorar.irls ‘chore!’ ‘não chore!’

b. pihi noi=pi /pi/ /dui=pi/ estar_deitado.sg.irls perm.imp=estar_deitado.sg.irls ‘deite-se!’ ‘fique aí deitado!’

Os verbos mõg ‘ir’, nũn ‘vir’ e kutex ‘cantar’ são exceções: suas formas irrealis (/bũ, d, ktɛ/) nunca são realizadas como *mõhõ, *nũhũ e *kutehe; apenas as formas mõ, nũ e kute são atestadas. A segunda regra é morfofonológica e faz com que a vogal final dos verbos em modo realis se transforme em uma sequência da estrutura VhV (6a–d). O processo é bloqueado pela ocorrência de elementos pospostos, tais como os enclíticos de TAM (6e–f), além de ser inativo no modo irrealis (6g–i).

340 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

(6) a. ã-tihi /ã-ti/ 2-estar_em_pé.pl.rls ‘vocês estão em pé’ b. ũg=po-t-aha /k=pu-t-a/ 1sg=chorar-rls-rls ‘eu chorei’ c. ã te ã-penãhã /ã tɛ ã-pɛdã/ 1sg.obl erg 2-ver.rls ‘eu te vi’ d. xa te mãm mãhã /ca tɛ bãp bã/ 2.obl erg peixe comer.rls ‘você comeu o peixe’ e. ã-po-t-a hok /ã-pu-t-a huk/ 2-chorar-rls-rls proh ‘não chore!’ f. ã te ã-penã ptup /ã tɛ ã-pɛdã ptɨp/ 1sg.obl erg 2-ver.rls desid ‘eu quero te ver’ g. ã-ti /ã-ti/ 2-estar_em_pé.pl.irls ‘estejam em pé!’ h. ũg=mõ-g nũy ũpenã /k=bũ-k dc -pɛdã/ 1sg=ir-rls fin.ms 3-ver.irls ‘eu vou para vê-lo’ i. ũ-mã /-bã/ 3-comer ‘coma-o!’

341 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin

Os verbos que são afetados por esta regra são aqueles terminados por vogal e incluem kupihi ‘caçar’, mãhã ‘comer (transitivo)’, mõnãhã ‘entrar.sg’, mõnũpaha ‘correr.pl’, mõxaha ‘sair.pl, chegar.pl’, mõxupaha ‘correr.sg’, nãhã ‘cair.sg’, nũpaha ‘fugir.pl’, paha ‘pegar.inan.sg’, penãhã ‘ver’, potaha ‘chorar’, tehe ‘estar preparado’, tihi ‘estar em pé.pl’, tomãhã ‘engolir’, topaha ‘voar.sg’, xaha ‘morder’, xanãhã ‘chamar’, xataha ‘gritar’, xehe ‘repetir’, xukoho ‘coçar’, xupaha ‘fugir.sg’, yãy taha ‘casar-se’, bem como todos os causativos em -nãhã. Por fim, a formação da sequênciaVhV não ocorre em alguns verbos, tais como xexka ‘ser/estar grande’, ta ‘estar maduro’, xuta ‘ser vermelho’, kohe ‘ser torto’, hi ‘estar vivo’, dentre outros, embora sua forma realis termine em uma vogal. Ressaltamos que todos esses verbos pertencem a uma subclasse de verbos nativos de argumento 14 SO que rotulamos de verbos descritivos. Os verbos desta classe são caracterizados pela possibilidade de integrar um sintagma nominal sem nenhuma derivação adicional (cf. kõnãg xexka ‘dilúvio’, lit. ‘água grande’; pipkup kohe ‘freio de cavalo’, lit. ‘prego torto’). O verbo yãy hi ‘vagar’ parece ser uma exceção à generalização por não ser descritivo, embora este verbo possivelmente seja uma derivação irregular do verbo descritivo hi ‘estar vivo’ (via de regra, o morfema yãy reflx deriva verbos reflexivos e recíprocos, reduzindo a valência dos verbos transitivos).

4.1 Construções que exigem a ocorrência da forma irrealis. A construção imperativa consiste no uso da forma irrealis de um verbo obrigatoriamente precedida por seu argumento interno no caso dos verbos transitivos nativos (argumento O, 7a) ou de uma subclasse dos verbos intransitivos nativos (argumento SO, 7b; neste caso o argumento sempre corresponde à segunda pessoa e é expresso pelo índice ã-). Por outro lado, os demais verbos intransitivos nativos ocorrem sem que seu único argumento possa ser expresso (7c).

(7) a. paha → ũ-pa pegar.inan.sg.rls 3-pegar.inan.sg.irls ‘pegue-o!’

14 O caráter verbal dos verbos descritivos do Maxakalí é confirmado por múltiplos diagnósticos, tais como a possibilidade de esses verbos serem nominalizados, ocor- rerem como predicados, além de apresentarem propriedades morfológicas exclusivas aos verbos, tais como a flexão de contiguidade (ver seção 3) e a nasalização do núcleo da última sílaba em diminutivos (Campos 2009: 281–288; Nevins e Silva 2017: 1031-1035).

342 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

b. tihi → ã-ti estar_em_pé.pl.rls 2-estar_em_pé.pl.irls ‘fiquem de pé!’

c. po-t-aha → poho chorar-rls-rls chorar.irls ‘chore!’

Há ainda pelo menos três construções imperativas que envolvem respectivamente os proclíticos mõy all.imp (8a), noi perm.imp (8b) e ka proh (8c–d), as quais também exigem que o verbo principal esteja no modo irrealis, com as mesmas restrições referentes à expressão do argumento interno que são observadas na construção imperativa em (7).

(8) a. mõy= tatxo! b. noi= pi! all.imp banhar_se.irls perm.imp deitado.sg.irls ‘vá se banhar!’ ‘fique aí deitado!’

c. ka= po d. ka= ũ-mĩ proh= chorar.irls proh= 3-fazer.irls ‘não chore!’ ‘não o faça!’

Há mais uma construção com a semântica proibitiva, exemplificada em (9), que envolve o enclítico hok proh e em que o modo verbal utilizado é o realis. Como nas demais construções encabeçadas por um verbo no modo realis, a expressão do argumento interno (um índice de pessoa ou sintagma nominal para transitivos; ã- 2 para intransitivos) é obrigatória nesta construção. A construção com hok possui uma diferença pragmática daquela exemplificada em (9) por apresentar um grau maior de polidez.

(9) a. ã-po-t-a =hok b. ũ-mĩ-y =hok 2-chorar-rls-rls =proh 3-fazer-rls =proh ‘não chore!’ (polido) ‘não o faça!’ (polido)

Além das construções imperativas, o modo irrealis é utilizado em orações subordinadas de finalidade introduzidas por uma das conjunções nũy fin.ms (10a), ũ fin.1 (10b), xa fin.2 (10c) ou pu fin.3 (10d). Observe que as conjunções codificam o sujeito das respectivas

343 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin orações, já que existe uma restrição à expressão desses sujeitos nas orações subordinadas de finalidade (seja por meio de índices de pessoa ou sintagmas nominais). O único argumento que pode ser expresso nesse tipo de orações é o argumento O (10a).

(10) a. ã te mĩm paha nũy 1sg.obl erg pau pegar.inan.sg.rls fin.ms ã-xu-ko-x 2-nctg-coçar-irls ‘Eu peguei o pau para te coçar.’

b. xa te ã mãm hõm ũ mã 2.obl erg 1sg.dat peixe dar fin.1sg comer.irls ‘Você me deu o peixe para eu comer.’

c. ã te xa mãm hõm xa mã 1sg.obl erg 2.dat peixe dar fin.2 comer.irls ‘Eu te dei o peixe para você comer.’

d. ã te mĩm paha pu yãy 1sg.obl erg pau pegar.inan.sg.rls fin.3 reflx xu-ko-x ctg-coçar-irls ‘Eu peguei o pau para que ele se coce.’

Não registramos o uso das formas irrealis em outros tipos de construções.

5. Contiguidade O Maxakalí conta também com uma classe fechada de verbos, tanto transitivos quanto intransitivos, que obrigatoriamente marcam a contiguidade (ou não contiguidade) do argumento interno à sua esquerda por meio de dois prefixos mutuamente exclusivos: ã- ‘contíguo’ e xu- ‘não-contíguo’.15 Ilustramos isto em (11).

15 Campos (2009: 78, nota 11) já havia notado a existência de uma classe de verbos com esses prefixos, porém não pôde “determinar o contexto e a causa dessa alternância.”

344 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

(11) a. ã te [paye ã-pa-k] 1sg erg [pajé ctg-escutar-rls] ‘eu escutei o pajé’ a′. ã te [Ø-xu-pa-k] paye 1sg erg [3-nctg-escutar-rls] pajé ‘eu escutei o pajé’ b. [kayak ã-ta] xi pnok [camisa ctg-ser_vermelho] e ser_branco ‘camisa vermelha e branca’ b′. kayak ponok xi [Ø-xu-ta] camisa ser_branco e [3-nctg-ser_vermelho] ‘camisa branca e vermelha’

Em (11a-a′) o verbo transitivo -pa-k ‘escutar’ tem como argumento interno paye ‘pajé’ (o argumento O). Em (11a), esse argumento está contíguo ao verbo à esquerda e, por isso, recebe o prefixoã- ctg. Já em (11a′), o argumento O está em uma posição não canônica, posposto ao verbo, o qual, por consequência, recebe o prefixo xu- nctg. Em (11b), o único argumento do verbo -ta ‘ser vermelho’ está localizado imediatamente à sua esquerda, logo o morfema utilizado é o indicador de contiguidade ã-. Por fim, em (11b′) entre o verbo -ta e o nome há um outro verbo em coordenação: por S e o verbo não estarem contíguos, o prefixo utilizado éxu- . Identificamos treze verbos, listados em (12) abaixo, que recebem o prefixo de contiguidade/não-contiguidade. Não conseguimos definir um critério semântico que os distinga dos demais verbos. Pelo menos um desses verbos (12g) parece ser derivado de outro verbo semanticamente relacionado, o qual possui uma raiz idêntica, mas não recebe prefixos de contiguidade/não-contiguidade. O verbo (12e), por sua vez, é um causativo derivado de (12d).16

(12) a. -pa-k ‘ouvir’ h. -koho ‘coçar’ b. -xi ‘estar frio’ i. -ktux ‘dizer’

16 Causativos, no Maxakalí, normalmente são formados por meio do sufixo-nãhã , porém, algumas raízes terminadas em consoante velar pedem um sufixo causativo a- , caso a vogal nuclear seja oral, e -ã, caso ela seja nasal (Campos 2009: 140).

345 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin

c. -xet ‘chamar-se’17 j. -mix ‘riscar’ d. -nuk ‘redondo, liso’ k. -pit ‘usar, mexer’ e. -nu-a ‘alisar, esfregar’ l. -tet ‘pintado’ f. -pep ‘sair.sg, voltar.sg’ m. -xak ‘ultrapassar’ g. -ta ‘ser vermelho’18

Os índices de pessoa (tanto os prefixos, como os clíticos) se diferenciam dos sintagmas nominais por exigirem a marca de não- contiguidade (13a–d), mesmo sendo contíguos ao verbo. Observe que, como já dissemos acima, yũmũg ‘nós.incl’ e ã-xop ‘vocês’ (itens que expressam os argumentos internos de 1incl e 2pl em Maxakalí) compartilham seu comportamento morfossintático com os sintagmas nominais e não com os índices de pessoa. Isso se manifesta na ocorrência da marca de contiguidade ã- com esses itens (13e–f), em analogia com os sintagmas nominais (13g).

(13) a. ũg=xu-ta 1sg=nctg-ser_vermelho ‘eu sou/estou vermelho’ b. ũgmũg=xu-ta 1excl=nctg-ser_vermelho ‘nós.excl somos/estamos vermelhos’ c. ã-xu-ta 2-nctg-ser_vermelho ‘você é/está vermelho’

d. ũ-xu-ta 3-nctg-ser_vermelho ‘(ele) é/está vermelho’

e. yũmũg ã-ta nós.incl ctg-ser_vermelho ‘nós.incl somos/estamos vermelhos’

17 Essa raiz é utilizada somente em sua forma nominalizada -xu-xet-’ax / -ã-xet-’ax, com o significado de ‘nome’. 18 Cf. ta [sem prefixo de contiguidade] ‘estar maduro’.

346 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí

f. ã-xop ã-ta vocês ctg-ser_vermelho ‘vocês são/estão vermelhos’

g. paye ã-ta pajé ctg-ser_vermelho ‘o pajé é/está vermelho’

Porém, em nominalizações, os índices de 1sg e 1excl (14a– b) exigem o marcador de contiguidade, comportamento o qual é compartilhado com sintagmas nominais (14c). Marcadores de 2 e 3 recebem o marcador de não-contiguidade (14d–e).

(14) a. ũg=ã-xet-’ax 1sg=ctg-chamar_se-nmlz ‘meu nome’

b. ũgmũg=ã-xet-’ax 1excl=ctg-chamar_se-nmlz ‘nosso.excl nome’

c. ãyuhuk ã-xet-’ax Yoãm não_indígena ctg-chamar_se-nmlz João ‘o nome do não-indígena é João’

d. ã-xu-xet-’ax te xĩy? 2-nctg-chamar_se-nmlz erg qual ‘Qual seu nome?’ e. ũ-xu-xet-’ax 3-nctg-chamar_se-nmlz ‘nome dele’

Esta particularidade morfossintática dos índices de 1sg e 1excl constitui uma evidência adicional para classificar esses dois marcadores como clíticos e não prefixos, que se soma ao que foi discutido na seção 3: em construções com verbos que pedem os prefixos de (não) contiguidade, eles se comportam como prefixos e em construções com estes mesmos verbos nominalizados, se comportam como sintagmas nominais.

347 Mário André Coelho da Silva | Andrey Nikulin

Conclusão Este artigo tinha como objetivo demonstrar que a morfologia flexional do verbo em Maxakalí é muito mais complexa do que proposto em descrições anteriores (Pereira 1992; Araújo 2000; Campos 2009). Nestes trabalhos há uma apresentação dos índices de pessoa e, apenas marginalmente, uma discussão sobre formas do imperativo, o qual, como pudemos ver, é apenas um dos contextos em que se utiliza o modo irrealis. Nada é dito, nesses trabalhos, sobre outros contextos em que se utiliza esse modo. Também não havia, até então, descrições sobre os clíticos de movimento e o ordenamento de índices de pessoa em relação a esses clíticos, assim como sobre os marcadores de contiguidade. Mostramos que os índices de pessoa que codificam o argumento absolutivo formam um paradigma morfossintaticamente heterogêneo. A posição desses índices em relação aos clíticos direcionais e sua interação com a categoria de contiguidade fornecem evidências convergentes, sustentando essa afirmação. Esse paradigma é resumido no Quadro 3 abaixo (para fins de completude, incluímos também os nomes yũmũg ‘nós.excl’, ã-xop ‘vocês’, que não são índices de pessoa stricto sensu, mas se assemelham semanticamente a estes). Quadro 2 — Morfossintaxe da codificação do argumento interno de 1ª, 2ª ou 3ª pessoa

posição relativa aos marcador de contiguidade em verbos clíticos direcionais em nominalizações

ã- 2, ũ- 3 prefixos entrepostos xu- xu-

ũg= 1sg, índices antepostos ou clíticos xu- ã- ũgmũg= 1incl entrepostos yũmũg ‘nós. antepostos ou entre- excl’, ã-xop nomes ã- ã- postos ‘vocês’

Note que é tipologicamente comum que paradigmas de pessoa incluam, ao lado de pronomes ou índices, itens que se comportam morfológica e/ou morfossintaticamente como nomes ou que apresentam propriedades mistas. Um exemplo é a gente ‘nós’, que retém a morfologia

348 Morfologia verbal flexional da língua Maxakalí de um sintagma determinante normal (evidenciada, por exemplo, na combinação com preposições), mas passou a apresentar algumas propriedades característicos de pronomes, como a subespecificação para o traço gênero, em muitas variedades do português brasileiro moderno (Lopes, 2004). Ademais, sistematizamos e ampliamos as informações sobre a expressão morfológica da categoria de modo em Maxakalí, a qual abarca dois modos: realis e irrealis. O primeiro, mais frequente, é utilizado em orações independentes, coordenadas e em grande parte de orações subordinadas, assim como na construção proibitiva polida (que não se diferencia morfossintaticamente das demais construções com enclíticos de TAM). Já o segundo, de uso mais restrito, pode ser encontrado em orações subordinadas de finalidade, tal como em construções imperativas e derivadas (a proibitiva menos polida, a imperativa alativa e a imperativa permansiva). Oferecemos, ainda, uma primeira descrição de uma categoria flexional do Maxakalí, que preliminarmente rotulamos de ‘contiguidade’. Presente obrigatoriamente em uma classe restrita de verbos, sem uma semântica definida que os diferencie dos demais, as marcas de contiguidade indicam se o argumento interno do verbo (O para verbos transitivos, S para intransitivos) se localiza ou não imediatamente à esquerda do núcleo do sintagma verbal. Pesquisas futuras poderão indicar não só se há mais verbos pertencentes a essa grupo, como também se há alguma motivação sincrônica para a presença desses prefixos e qual poderia ser sua origem histórica. Por fim, este trabalho demonstrou que, ao contrário do que Ribeiro (2006) afirma, o Maxakalí tem uma morfologia flexional de verbos que vai além da simples marcação de pessoa. Certamente, estudos dessa natureza, como os empreendidos aqui, contribuem não somente para um maior entendimento da história do Maxakalí e da família Macro-Jê, como para uma compreensão mais ampla da estrutura gramatical das línguas das terras baixas da América do Sul.

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Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

Ana Suelly Arruda Câmara Cabral Universidade de Brasília

Eliseu Waduipi Xavante Secretaria de Estado da Educação de Mato Grosso

Luis Miguel Rojas-Berscia The University of Queensland

Maxwell Miranda Universidade Federal de Mato Grosso

1. Notas preliminares Este estudo trata da expressão de número em predicados verbais em Xavante e Xerente, línguas pertencentes ao sub-ramo central1 da família Jê (tronco Macro-Jê), a qual é constituída de dois outros sub- ramos – Jê Meridional e Jê Setentrional (Rodrigues, 1986, 1999). A motivação do presente estudo partiu da observação de que as línguas Xavante e Xerente se destacam das demais línguas Jê por apresentarem um sistema de concordância de número nos predicados verbais por meio de partículas de número dual, plural e/ou coletivo que marcam o sujeito (Sa/A) e o objeto sintático (O), sejam esses expressos por nome ou pronome, os quais controlam concordância de número também por meio de partículas posicionadas após o núcleo de predicados, sejam estes verbais ou nominais. Além disso, parte dos verbos das duas línguas possuem formas lexicais alternantes que integram o sistema de concordância, sendo que a combinação dessas formas verbais alternantes com partículas de número torna o sistema de concordância

1 A outra língua pertencente ao sub-ramo Central é o Xakriabá que, atualmente, não é mais falada pela comunidade.

353 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda das duas línguas um misto de concordância sintática e de concordância semântica, o que faz das línguas Jê Central únicas no âmbito da família Jê e, quiçá, no âmbito das línguas indígenas do Brasil. A concordância por meio de partículas, como veremos, tem algumas restrições, pois depende em algumas situações de quem age sobre quem. Um olhar sobre as expressões de número em línguas Jê nos mostra que apenas a língua Panará apresenta um sistema de concordância por meio de proclíticos pronominais de pessoa/número, mas, diferentemente do Xavante e do Xerente, a concordância não é obrigatória. Formas verbais de plural em contraste com formas singulares são comuns em línguas Jê, embora algumas línguas parecem possuir número reduzido de formas plurais (dois ou três). Xavante e Xerente também se destacam com respeito às partículas de número e formas verbais alternantes por fazerem a distinção ternária singular/dual/plural, enquanto nas demais em que há formas verbais alternantes de número ou concordância por meio de partículas, a distinção é apenas entre singular/plural. Essas características fazem das línguas do sub-ramo Central únicas no âmbito da família Jê, assim como no âmbito do conjunto de línguas do tronco Macro-Jê. O presente estudo discute essas particularidades nas línguas desse sub-ramo, com foco especial em Xavante e busca responder, pelo menos em parte, às seguintes questões: (a) como se dá a associação de concordância por meio de partículas e por meio de formas verbais alternantes em Xavante e em Xerente? (b) seria o sistema complexo de concordância das línguas Jê Central uma inovação? e (c) quais são as motivações para um sistema de concordância de número por meio de partículas e qual a motivação para o desenvolvimento de uma distinção ternária de número? O presente artigo beneficiou-se de estudos clássicos que abordam a categoria de número nas línguas das Américas (Sapir 1922; Sapir e Swadesh 1946; Mithun 1988), de estudos que abordam tipologicamente sistemas de concordância de número em diferentes línguas (Corbett 2004; Corbett e Mithun 1995; Durie 1986), assim como de discussões no âmbito da linguística teórica e de contato com respeito ao Princípio de Transparência Semântica (Seuren e Wekker 1986). O capítulo encontra-se assim organizado: na seção 2, fazemos uma breve incursão nos estudos que descrevem concordância de número entre argumentos e predicados verbais em línguas Jê, de modo a destacar as línguas Jê Centrais como inovadoras de um sistema de concordância.

354 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

Na seção 3, descrevemos aspectos da expressão de número em Xavante e Xerente. A seção 4 focaliza os respectivos sistemas de concordância em ambas as línguas, principalmente no sistema de concordância Xavante, por termos acesso a dados em primeira mão relevantes para a discussão do problema em pauta. A seção 5 apresenta um conjunto de formas verbais alternantes transitivas e intransitivas em ambas as línguas, similar ao que foi discutido por Mithun (1988) para línguas da América do Norte. Na seção 6, destacamos a função da alternância de formas verbais singulares, duais e plurais no sistema de concordância em línguas Jê centrais. Além disso, é mostrada a preservação de formas verbais alternantes em nominalizações, tal como é encontrado em outras línguas Jê, como é o caso da língua Xikrin (Costa 2015), bem como a ocorrência de partículas de número em predicados nominais. Em seguida, reunimos os resultados deste estudo e apresentamos algumas hipóteses sobre as motivações e o desenvolvimento do sistema de concordância de número nas línguas Jê Centrais e sobre o que os dados dessas línguas revelam para o conhecimento da expressão de número na família Jê.

2. A expressão de número em línguas Jê Todas as línguas Jê fazem pelo menos a distinção singular vs. coletivo nos nomes por meio de partículas. Outras línguas apresentam partículas de número que modificam nomes e pronomes e que distinguem plural [+humano], coletivo [+ animado], coletivo [- animado] e partitivo, como o Xikrin (Costa 2015: 60-64). Nessa língua, os pronomes são modificados por partículas de número como ari ‘paucal’ e mẽ ‘plural’ (ibid.: 78) e em Krahô, que possui as partículas mẽ ‘pluralizador’, amẽ ‘coletivizador’ e khwə ‘partitivo’ (Miranda 2014: 83). Já em parkatêjê, há apenas uma partícula mẽ ‘plural’ que se combina com nomes de referentes [+humano] e com pronomes que codificam a primeira dual, a primeira exclusiva e a segunda plural. A língua Apinajé possui marcas para dual e plural que modificam pronomes e nomes e ocorrem precedendo verbos (Oliveira 2005: 172). Em Xikrin e Apinajé, marcas de número precedem prefixos pessoais e seguem pronomes. Em Krahô, a distribuição das marcas de número com respeito a formas pessoais segue o mesmo padrão do Xikrin e do Apinajé, apenas o que foi analisado nessas duas línguas como prefixos, foi tratado como pronomes dependentes (Miranda 2014: 106-107).

355 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda

As línguas Jê possuem até três nomes para expressar numerais cardinais : Krahô pɨtsit ‘um/sozinho’, ipijakrut ‘dois’ e ĩnkre ‘três’ (Miranda 2014: 152); Parkatêjê pɨtsit ‘um’, algumas vezes usado com o sentido de ‘sozinho’, aikrut ‘dois’ e hito ‘três’ (Ferreira 2003: 74); Xikrin pɨʤi ‘um’ e amẽ ‘par’ (Costa 2015: 121-122); Apinajé pɨči ~ piči ‘um/sozinho’, amẽ ~ amẽkrut ‘dois’ (Oliveira 2005: 402, 212) Em nenhuma das línguas Jê foi reportada concordância de número entre nome e seus modificadores. Por outro lado, formas lexicais singulares e plurais são encontradas para verbos e, em algumas línguas, também em nomes e adjetivos. Temas verbais que expressam multiplicidade de ação ou pluralidade de participantes expressos por meio de reduplicação, de afixação e de processos prosódicos são comuns em línguas brasileiras. Reduplicação, por exemplo, é pervasiva nas línguas indígenas brasileiras: línguas Aruák (Aikhenvald 1999: 81), Tupí (Rodrigues & Cabral 2012)2, línguas Karíb (Meira 2000; Bruno 2003); línguas de famílias menores, como da família Arawá (Dixon 1999), da família Txapakura (Everett & Kern 1997), assim como em línguas isoladas, como Aikaná (Aikhenvald & Dixon 1999), Kwazá (Van der Vort 1997) e Trumai (Guirandello- Damian 2014). Concordância de número com o sujeito e/ou com o objeto é também comum nas línguas do Brasil, sendo expressa por meio de afixos pessoais e/ou morfemas de número, estes últimos analisados seja como expressão de coletivo ou de plural, a exemplos de línguas Karíb, como o Kuikúro (Santos 2007), Tirió (Meira 1999), Ikpéng (Pacheco 2001); línguas Tukáno, como o Máíhɨkì (Farmer 2015) e Kubeo (Chacon 2012), línguas , como o Yanomama (Perri-Ferreira 2014), línguas Páno, como o Huní Kuĩ (Lima Kaxinawá 2014); e línguas Nambikwára como o Mamaindê (Eberhard 2009). Em línguas Jê, embora haja formas alternantes de verbos que concordam com o sujeito e com o objeto, trata-se de um número

2 Algumas das línguas Tupí para as quais foram reportados processos de reduplicação: Guaraní Antigo (Montoya [1640] 1993); Tupinambá (Rodrigues 1953); Tuparí (Rodri- gues e Caspar [1957] 2017); Kamaiurá (Everett e Seky 1986; Seky 2000); Tapirapé (Al- meida et al. 1983); Mundurukú (Crofts 1985); (Landin 2005; Storto 2014); Mekéns (Galúcio 2001); Juruna (Fargetti 2007); Makuráp (Braga 2005); Parakanã (Sil- va 1999); Parintintín (Pease 2007); Awá-Guajá (Magalhães 2007); Asuriní do Tocan- tins (Cabral e Rodrigues 2003); Anambé (Julião 2005); Araweté (Solano 2009), dentre outras.

356 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê) limitado de verbos. O Kaingáng e o Laklãnõ (Xokleng) são as línguas que, além de formas alternantes que distinguem singular de plural, desenvolveram formas distintivas de número a partir de reduplicação, de processos morfológicos e de processos prosódicos, como veremos em seguida. Rodrigues (1999: 183) diz a respeito de línguas Macro-Jê:

Some languages, although they have no marker of pluralization on nouns, have plural pronouns or personal prefixes on the verb for agreement with plural subjects and some of them also for plural objects. In the Jê family one such language is Kaingáng (Paraná dialect), which has personal pronouns for 3rd person plural masculine and feminine: Ɂaŋ ‘they (masc.)’, ɸaŋ ‘they (fem.)’. Kaingáng also has plural verbs for agreeing with plural S or O, even number. In this language there are several morphological devices for marking plurality on verbs: prefixation, infixation, reduplication, a combination of two of these with or without ablaut, and also suppletion.3

Das descrições sobre formas plurais em línguas Jê, destaca-se a tese de doutorado de Marita Pôrto Cavalcante sobre o Kaingang falado em São Paulo, por apresentar a mais extensa lista de formas singulares e plurais de verbos (1987: 150) de uma língua Jê e por oferecer uma análise de processos fonológicos e morfológicos que explicam a formação de parte desses verbos plurais. Cavalcante (1987: 56) descreveu, assim, a funcionalidade das formas singulares e plurais do Kaingang:

Nos verbos intransitivos essas formas indicam a singularidade ou a pluralidade do sujeito, ao passo que nos verbos transitivos indicam a singularidade pluralidade do objeto (por ex., nũr ‘dormir uma pessoa’, nũŋũr ‘dormirem várias pessoas’ e kɨm ‘cortar um objeto’, kɨkɨm ‘cortar mais de um objeto.

Quanto aos processos morfológicos que formam esses verbos, Cavalcante (1987: 65) os resume no seguinte quadro:

3 Tradução: Algumas línguas, embora elas não tenham marcador de pluralização em nomes, têm pronomes plurais ou prefixos pessoais no verbo para concordância com sujeitos plurais e alguns delas também para objetos plurais. Na família Jê, uma delas é a língua Kaingáng (dialeto do Paraná), que tem pronomes pessoais para 3ª pessoa plu- ral masculina e feminina: Ɂaŋ ‘eles (masc.)’ e ɸaŋ ‘elas (fem.)’. Kaingáng tem também verbos para concordar com S ou O plural, de mesmo número. Nesta língua, existem diversos dispositivos morfológicos para marcar pluralidade em verbos: prefixação, in- fixação, reduplicação, uma combinação de dois destes com ou sem ablaut, e também supleção (Rodrigues 1999: 183)

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Quadro 1. Processos morfológicos de formação de formas verbais plurais em Kaingang

Supleção Reduplicação Prefixação Infixação Exemplos Casos P + - - - 3; 130-3; 146 21 l - + - + 3; 147-3; 230 102 - - + + 3; 231-3; 244 16 u - - + - 3; 345-3; 248 4 r - - - + 3; 249-3; 299 61 a A maioria dos - - - - 3; 300-3; 304 verbos da língua l Casos 21 102 20 179

A autora observa também que, dos processos de pluralização verbal, a supleção é o mais complexo “uma vez que se caracteriza pela total alteração da forma, não suscetível de reduzir-se a nenhuma regra fonológica”. Consoante Cavalcante (1987), supleção e prefixação são mutuamente exclusivas, sendo que a prefixação pode coocorrer com supleção, reduplicação e prefixação. Rodrigues (1999: 184), a partir de um conjunto de exemplos do Kaingang (Tabela 1), sumariza os processos de formação de formas verbais plurais nessa língua. Tabela 1. Marcação de número em Kaingáng (dialeto do Paraná) a partir de Cavalcante (1987)

sg (s ou o) pl (s ou o) Glosa 1 pra kɨpra ‘to bite’ 2 ɸãnãn ɸãŋnãn ‘to use almost all’ 3 ɸi kiŋɸi ‘to weave’ 4 kajãm kɨŋjãm ‘to dig’ 5 kõm kõmkõm ‘to pay’ 6 kɔŋun kɔŋunŋun ‘to wither’ 7 mraɲ mrɨɲmraɲ ‘to break’ 8 rã ŋe ‘to go in’ 9 nĩ nĩŋnĩ ‘to sit’ 10 we wiŋwe ‘to see’

358 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

(l) prefixation of ki-, (2) infixation of -ŋ-, (3) prefixation and infixation, (4) infixation and ablaut (a →ɨ ), (5) reduplication of a monosyllabic verb, (6) reduplication of a disyllabic verb, (7) reduplication and ablaut, (8) reduplication and infixation, (9) reduplication, infixation and ablaut (e → i), (10) suppletion. Although most Kaingáng verbs are invariable, there are about 150 that have a plural form in one of the patterns illustrated in table 6.21. Even a verb that is probably a loan from Portuguese, paja ‘to promenade’ (Portuguese passear [pasja]), pluralizes in one of these patterns, namely pɨŋʃa (infixation and ablaut).4

Além do Kaingang, do Laklãnõ (Jê Meridional) e das línguas Xavante e Xerente (Jê Central), foi reportada alternância de formas verbais em concordância com o sujeito e com objeto plurais para as seguintes línguas Jê Setentrionais: Parkatêjê (Araújo 1989; Ferreira 2003), Panará (Dourado 2001), Tapayuna (Camargo 2015), Apinajé (Ham 1961; Ham et al. 1979; Albuquerque 2004; Oliveira 2005), Mẽbêngôkre (Reis Silva 2001; Costa 2003, 2015; Rodrigues, Cabral e Costa 2004; Apãniekrá (Alves 2004), Canela-Krahô (Popjes & Popjes 1986); Krahô (Souza 1997; Rodrigues, Cabral & Miranda 2008; Miranda 2014); Suyá (Santos 1997). A respeito de verbos plurais, Oliveira (2005: 128-129) afirma que:

Apinajé displays verb pairs which encode basically the same semantics, but contrast in the number of the absolutive argument. The contrast seems to lie in a distinction between plural, on the one hand, and singular, dual, or mass absolutives (termed here “non-plural”), on the other. Both bivalent verbs and monovalent verbs may have such pairs; in the case of monovalents, each member of the pair may come from a distinct class – intransitive and descriptive. Most such monovalent verb pairs consist of movement and position verbs (60). Transitive verb pairs include a broader range of meanings, from position manipulation to ingestion, to killing.5

4 Tradução: “(1) prefixação de ki-, (2) infixação de -ŋ-, (3) prefixação e infixação, (4) infixação e ablaut (a→ɨ), (5) reduplicação de um verbo monossilábico, (6) reduplicação de um verbo dissilábico, (7) reduplicação de ablaut, (8) reduplicação e infixação, (9) reduplicação, infixação e ablaut (e → i), (10) supleção. Embora a maioria dos verbos Kaingáng sejam invariáveis, existem em torno de 150 que têm uma forma plural em um dos padrões ilustrados na tabela 6.2.1. Mesmo um verbo que seja provavelmente um empréstimo do Português, paja, ‘passear’ [pasja], pluraliza em um desses padrões, isto é, pɨŋʃa (infixação e ablaut)” (Rodrigues 1999: 184). 5 Tradução: “Apinajé exibe pares de verbos que codificam basicamente a mesma se- mântica, mas contrastam no número do argumento absolutivo. O contraste parece

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Em Apinajé, a ocorrência de verbos plurais é ilustrada a partir dos exemplos (1) e (2) extraídos de Oliveira (2005).

(1) na pa ajtɛ amnĩ-m ic-kapẽr ɔ ɲi rls 1 sozinho rflx-dat 1-falar prt sentar ‘Estou falando com você.’ (Oliveira 2005: 176)

(2) mɛ a-krĩ [pu mɛ] pa krĩ pl 2-sentar.pl hort pl 1.incl sentar.pl ‘Sente-se, todos vocês, vamos nos sentar e nos reunir.’ (ibid.: 160)

Não foram encontrados exemplos em Oliveira (2005) que mostrem concordância com o objeto. O exemplo seguinte, em (3), contém uma segunda pessoa plural objeto, mas o verbo tem forma singular.

(3) [me a]-p-ubu pl 2-rp-ver ‘...ver todos vocês’ (Oliveira 2005: 205)

Em Panará, Dourado (2001), analisa as marcas de número dual –ra ~ –na, e plural –mɛra ou –mera como sufixos flexionais obrigatórios nos pronomes, mas opcionais nos nomes. A autora observa que o número dos nomes em posição argumental pode ser inferido a partir de proclíticos pronominais específicos. Entretanto, se nomes são marcados para número, “a concordância do verbo com esses elementos pode ser dispensada” (p. 13). Nestes termos, a flexão nominal nessa língua “atende mais a uma exigência pragmática do que propriamente gramatical”. A autora mostra que exemplos, como em 4(a-b), são encontrados principalmente em início de discurso, quando se introduz o tema ou as personagens, podendo também ocorrer quando se quer enfatizar ou realçar algum desses elementos. Por outro lado, sentenças em 5(a-b) ocorrem em contextos não- marcados do ponto de vista pragmático: estar na distinção entre plural, por um lado, e absolutivos singular, dual ou de massa (denominado aqui “não plural”), por outro. Ambos os verbos bivalentes e monova- lentes podem ter esses pares; no caso dos monovalentes, cada membro do par pode vir de uma classe distinta – intransitiva e descritiva. A maioria desses pares verbais monovalentes consiste em verbos de movimento e posição (60). Pares de verbos tran- sitivos incluem uma gama mais ampla de significados, desde manipulação da posição à ingestão, à morte” (Oliveira 2005: 128-129).

360 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

(4) a. mara-rã ĩpɨ-rã ele-du.erg homem.du.erg Ø=timɛ=͂ Ø=kə-ri ĩkua real.tr=3du.erg=3sg.abs=cortar-perf buriti.abs ‘Aqueles dois homens cortaram buriti.’ (Dourado 2001: 13)

b. mara-rã ĩpɨ-rã kə-ri ĩkua ele-du.erg homem.du.erg cortar-perf buriti.abs ‘Aqueles dois homens cortaram buriti.’ (ibid.:14)

(5) a. iɔti hẽ Ø =ti =ra =ku-n sɔti-mɛra sucuri erg real=3sg.erg=3pl.abs=comer-perf bicho-pl.abs ‘A sucuri come bichos.’ (ibid.:14)

b. iɔti hẽ Ø =ti =ra =ku-n sɔti (ĩkieti) sucuri erg real=3sg.erg=3pl.abs=comer-perf bicho muitos ‘A sucuri come (muitos) bichos.’(ibid.:14)

Quanto à distinção singular plural por meio de temas verbais, Dourado (2001: 33) afirma que há pelos menos três verbos que apresentam raízes distintas para suas formas no plural, tal como são indicadas em (6).

(6) Singular Plural tu-ri hoyow-ti ‘carregar na cesta’ te yoyo ‘cair’ te anpiain ‘correr’

Os exemplos da língua Krahô (Timbira) 7(a-b) e 8(a-b), extraídos de Miranda (2014), mostram a concordância de formas verbais plurais com o objeto direto do verbo ‘matar’ e com o sujeito do verbo ‘deitar’: (7) a. wa apu kãŋã Ø-kura 1sg prog cobra r1-matar ‘Eu estou matando a cobra.’ (Miranda 2014: 135) b. mẽ paɁ Ø-tɛ prɨrɛ Ø-khwə j-ipɛj-Ø pl 1±2 r1-obl caça r1-part r1-matar.pl-nmlz ‘Nós matamos várias caças.’ (lit. Houve a matança de várias caças por nós) (ibid.)

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(8) a. pe ka ha ra Ø-nõ? int 2sg irls já r2-deitar ‘Você já vai deitar?’ (ibid.)

b. mẽ iɁ-kunẽa ramã amẽ Ø-hikhwa-Ø pl r2-todos já col r2-deitar.pl-nmlz ‘Todos já deitaram.’ (ibid.)

A língua Xikrin apresenta a distinção singular vs. plural em temas verbais, as quais se alternam, segundo Costa (2015: 102-103), conforme o objeto de verbos transitivos ou o sujeito de intransitivos. Ambas as situações são mostradas nos exemplos em 9(a-b) e 10(a-b), respetivamente.

(9) a. mẽniɾɛ na kʌ Ø-kãm kʌj Ø-kuʤʌ mulher rls cesto r1-loc faca r1-colocar.sing ‘A mulher colocou uma única faca no cesto.’ (Costa 2015: 104) b. mẽniɾɛ na mẽ kʌ Ø-kãm piʤo j-aʤwə mulher rls pl cesto r1-loc fruta r1-colocar.PL ‘As mulheres colocaram as frutas no cesto.’ (ibid.: 104)

(10) a. ɲãj na aɾəp a Ø-katɔ? int rls já 2 r1-sair.sg ‘De onde você saiu?’ (ibid.: 299) b. məkãm na ga mẽ a j-apoj-Ø ket? int rls 2 pl 2 r1-sair.pl-nmlz neg ‘Por que vocês não saíram?’ (lit. Por que não há a saída de vocês?) (ibid.: 148)

Como vimos, as línguas Jê do sub-ramo Setentrionais apresentam marcas de número ‘plural’ ou ‘coletivo’ em núcleos de sintagmas nominais ou apresentam proclíticos verbais referentes a número/pessoa do objeto, como é o caso do Panará. Nessa língua, as marcas de número por meio dos sufixos-ra ~-na (dual) e -mɛra (plural) é obrigatória nos pronomes livres, conquanto nos nomes “são dispensadas”, como coloca Dourado (2001). Entretanto, línguas como o Krahô e o Xikrin não possuem marcas de concordância de número associadas aos núcleos dos predicados. Mas todas as línguas Jê possuem formas plurais alternantes de verbos, em um número maior de verbos, como o

362 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

Kaingang (Wiessemann 1972; Cavalcante 1987) e o Laklãnõ (Xokleng ) (Urban 1985; Gakrán 2005, 2015), enquanto outras línguas apresentam um número reduzido dessas formas, como o Parkatêjê (Araújo 1989; Ferreira 2003), o Panará (Dourado 2001) e o Tapayuna (Camargo 2015). Já outras línguas apresentam um número mais alto de formas verbais alternantes de número, como é o caso das línguas Xikrin e Krahô, assim como as línguas Xavante e Xerente.

3. Concordância de número em Xavante e Xerente Xavante e Xerente marcam número por meio de prefixos pessoais, formas alternantes de nomes, adjetivos e verbos, e partículas distintivas de número dual e plural que modificam nomes e pronomes, assim como predicados verbais e nominais, estabelecendo um sistema de concordância com o sujeito, em Xerente, e com o sujeito e o objeto, no caso da língua Xavante. Nesta seção, mostramos como esses dispositivos morfossintáticos atuam na marcação de número em nomes (3.1) e predicados verbais (3.2).

3.1 Marcação de número nos nomes A distinção de número nos nomes em Xavante e Xerente dá- se da seguinte forma: referentes singulares não são marcados para número, enquanto nomes com referentes percebidos como coletivo, são marcados pela partícula nõrĩ, sejam nomes de referentes humanos e não-humanos, animados e não-animados, conforme é mostrado a partir da língua Xavante nos exemplos em (11).

(11) a. siɁa nõrĩ ma urĩ zaɁra Ɂri galinha col 2/3 ao.redor.de pl casa ‘As galinhas estão rodeando a casa’ (Tsipré, notas de campo)

b. wa hã wãrãbəpə nõrĩ iɁahəɁuptabi wa to Ø-mãpə 1 enf tatu col muitos 1 rls 3-matar ‘Eu matei muitos tatus’ (ibid.)

Em Xerente, consoante Cotrim (2016: 135), tanto nomes quanto pronomes independentes são pluralizados por meio da partícula nõrĩ, que em muitas situações tem o significado de coletivizador.

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(12) a. pikõ(i) nõrĩ mulher pl ‘mulheres’ (Cotrim 2016: 135) b. ambə nõrĩ homem pl ‘homens’ (ibid.) c. akwẽ nõrĩ pessoa, indivíduo, índio, Xerente pl ‘povo, gente, pessoas, família’ (ibid.) d. mãr pibumã b za pikõi nõrĩ kupa ka-zanõ que fin int irls mulher pl mandioca 3-arrancar ‘Para que as mulheres arrancarão mandioca?’ (ibid.)

Nas duas línguas, em construções possessivas, uma concordância com o possuidor se dá pela combinação de prefixos pessoais com partículas de número. Os prefixos pessoais que marcam o possuidor em ambas as línguas são indicados na Tabela 2. Tabela 2. Prefixos pessoais em Xavante e Xerente

Xavante Xerente

1sg ĩĩ- ĩ-

2sg a-/aj- aj-

3sg/pl ĩ- ĩ-

1dual/pl wa- wa-

Em Xavante, a distinção entre dual e plural é feita por meio de partículas, as quais são posicionadas após o tema nominal e sua distribuição sistematizada na Tabela 3. Em seguida, a ocorrência de partículas de número pode ser vista nos exemplos em (13) (Tsipré 2019: 27).

364 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

Tabela 3. Distribuição das partículas de número com temas nominais em Xavante

Possuidor/número Partículas de número Possuidor de 1sg/2sg/3sg - Possuidor de 1dual/3dual Ɂwa Possuidor de 2dual dzaɁra waɁwa Possuidor de 1pl/2pl/3pl dzaɁra

(13) a. ĩĩ-Ɂãre 1sg.poss-cunhado ‘meu cunhado (irmão de minha esposa)’6

b. wa-Ɂãre Ɂwa 1dual/pl.poss-cunhado dual ‘nosso (dual) cunhado’

c. wa-Ɂãre zaɁra 1dual/pl.poss-cunhado pl ‘nosso (plural) cunhado’

Como pode ser observado nos exemplos precedentes, Ɂwa segue construções possessivas com possuidor de primeira pessoa dual, e zaɁra quando o possuidor é uma primeira pessoa plural. No caso de segunda pessoa, o prefixo pessoal é o mesmo, seja o possuidor singular, dual e plural. Por outro lado, a marca de dual que segue o núcleo da construção possessiva difere da marca dual das demais pessoas, como em (14b).

(14) a. aj-Ɂãre 2.poss-cunhado ‘cunhado de você’ (Tsipré 2019: 27)

b. aj-Ɂãre dzaɁra waɁwa 2.poss-cunhado pl dual ‘cunhado de vocês (dual)’ (ibid.: 27)

6 Na cultura Xavante o irmão da esposa do irmão, isto é, o irmão da cunhada também está em uma relação de -ãre wa.

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c. aj-Ɂãre dzaɁra 2.poss-cunhado pl ‘cunhado de vocês (plural)’ (ibid.: 27)

Já em construções possessivas, cujo possuidor é de terceira pessoa, as partículas são as mesmas que se combinam com possuidores de primeira dual e plural (Tsipré 2019: 27).

(15) a. ĩ-Ɂãre 3.poss-cunhado ‘cunhado dele’

b. ĩ-Ɂãre Ɂwa 3.poss-cunhado dual ‘cunhado deles (dual)’

c. ĩ-Ɂãre dzaɁra 3.poss-cunhado pl ‘cunhado deles (plural)’

Em Xerente, diferentemente do Xavante, a distinção de número em nomes se resume a singular e plural. O singular é não marcado e o plural é marcado com a partícula nõrĩ, a qual, segundo Cotrim (2016: 133), como já mencionamos, em várias situações tem o significado de coletivo.

(16) wa-siwadi nõrĩ za wrkbu si-mã sõ 1pl-parente pl irls paparuto recp-dat entregar ‘nossos parentes vão trocar paparuto7 uns com os outros’

3.2 Marcação de número nos núcleos de predicados verbais A expressão de número em núcleos de predicados Xavante e Xerente se manifesta formalmente por meio de prefixos pessoais, partículas de número e por formas alternantes de verbos. Em predicados verbais transitivos, as variações na codificação gramatical do objeto no

7 Comida feita a base de carne de caça misturada com massa de mandioca ralada, en- volvida em folhas de bananeira ou buriti e moqueada em buracos no chão com brasa e pedras.

366 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê) verbo são determinadas por fatores morfossintáticos como pessoa do sujeito, aspecto (perfectivo vs. imperfectivo) e finitude da oração (finita vs. nominalizada), ao passo que o argumento A e S é expresso ou por pronomes independentes, ou por um conjunto de morfemas pessoais que distinguem também aspecto, conforme é apresentado na Tabela 4. Tabela 4. Marcadores de pessoa/aspecto em Xerente e Xavante

Perfectivo Imperfectivo

Pessoa Xer Xav Xer Xav 1 wa wa 2 bə ma te te 3 mã ~ nã ~ Ø

Alguns exemplos ilustrativos da distribuição de prefixos pessoais que marcam o objeto são fornecidos de (17) a (20).

Objeto de terceira pessoa

(17) a. wa hã tebe ãhãna wa za ti-wĩ 1sg enf peixe hoje 1.imperf prosp 3-matar ‘Eu vou matar peixe hoje.’ (Tsipré 2019: 76)

b. a hã tebe ma ĩ-wĩ 2sg enf peixe 2/3.perf 3-matar ‘Você mata peixe.’ (ibid.: 76)

Objeto de segunda pessoa singular ou dual (18) a. wa hã wa aj-mãdə 1sg enf 1.imperf 2-ver ‘Eu vejo você.’ (Tsipré 2019: 102)

b. wa hã a norĩ waɁwa hã wa aj-mãdə-Ɂə ʔwa 1sg enf 2 col pl enf 1.imperf 2-ver-nmlz dual ‘Eu vejo vocês (dual)’ (ibid.: 102)

367 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda

Objeto de primeira pessoa singular (19) a. a hã ma ĩĩ-mãdə 2sg enf 2/3.perf 1-ver ‘Você me viu’ (Tsipré, notas de campo)

b. a hã ma ĩĩ-sa 2sg enf 2/3.perf 1-morder ‘Você me morde’ (Tsipré 2019: 102)

Objeto de primeira pessoa dual/plural (20) a. a hã ma to ĩwa-mãdə 2 enf 2/3.perf rlz 1dual/pl-ver ‘você nos (dual) viu’ (Tsipré 2019: 102)

b. a hã te ĩwa-mãdə-Ɂə zaɁra 2 enf 2/3.imperf 1dual/pl-ver-nmlz pl ‘Você nos (plural) vê.’ (ibid.: 102)

O Xerente distingue-se do Xavante quanto às marcas de objeto por possuir uma terceira pessoa objeto ka- e por não possuir uma primeira pessoa dual/plural objeto usada quando o sujeito é de segunda pessoa, como no exemplo (20). Tabela 5. Prefixos pessoais que marcam objeto de verbos transitivos em Xerente

Prefixo Sujeito (A) Objeto direto (acusativo) Sujeito de primeira, segunda ou de Objeto de terceira pes- ka- terceira pessoa (singular/dual/plural) soa(singular/dual/plural) Sujeito de primeira, segunda ou ter- Objeto de segunda pessoa aj- ceira pessoa (singular/dual/plural) Sujeito de segunda ou terceira pessoa Objeto de primeira pes- (singular/dual/plural) soa do singular ĩ- Sujeito de segunda pessoa (singular/ Objeto de primeira pes- wa- dual/plural) soa (dual/plural)

Em Xerente, a distribuição dos prefixos acusativos pode ser vista a partir dos seguintes exemplos.

368 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

(21) a. wa wa t məmĩ pkɔ krãsrut toka 1sg 1.perf rls lenha rachado amontoar 2sg ka-nhə-ri 3.acus-cortar-nmlz ‘Eu juntei a lenha rachada que você cortou.’ (Cotrim 2016: 124)

b. rɔmzakrã=rɛ wa ĩ-ktu kwaikə arknẽ wa de.manhã cond 1-acordar subj prob 1sg ai-waikrãm kw 2-encontrar pl ‘Se eu tivesse acordado cedo, eu já tinha encontrado vocês’ (ibid.: 254)

c. toka arknẽ kburɛ wa-kmãdkə kwaikə arknẽ 2sg prob todos 1dual/pl-ver subj prob wa-waihtu-n 1dual/pl-dispersar-nmlz ‘Se você nos tivesse visto, todos nós já tínhamos ido.’ (ibid.: 254)

Similarmente à marcação do objeto direto por meio de prefixos, núcleos verbais intransitivos também apresentam prefixos próprios em ambas as línguas. Como pode ser notado na Tabela 6, somente o prefixo de segunda pessoa corresponde à forma na função de objeto direto, tanto em Xerente quanto em Xavante. Tabela 6. Prefixos pessoais que marcam o sujeito de verbos intransitivos

Prefixos de Sujeito (S) Xavante Xerente

Sujeito de primeira pessoa (singular/dual/plural) ĩĩ- ĩ

Sujeito de segunda pessoa (singular/dual/plural) a- / aj- aj

Sujeito de terceira pessoa (singular/dual/plural) Ø- / ti- ti- / i-

Na sequência, mostramos a ocorrência desses prefixos com sujeito de rimeira, segunda e terceira pessoas, nas três distinções de número – singular, dual e plural – primeiro em Xavante e, posteriormente, em Xerente.

369 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda

Xavante Sujeito singular (22) a. wa hã Ɂri hawi wa za Ø-watɔb-rɔ 1sg enf casa abl 1.imperf irls 1-sair-nmlz ‘Eu sairei da casa.’ (Tsipré 2019: 72)

b. a hã Ɂri hawi te za aj-wat 2sg enf casa abl 2/3.imperf irls 2-sair ‘Você sairá da casa’ (ibid.)

c. õ hã Ɂri hawi te za Ø-watɔb-rɔ 3sg enf casa abl 2/3.imperf irls 3-sair-nmlz ‘Ele sairá da casa.’ (ibid.)

Sujeito dual (23) a. wa nõrĩ hã Ɂri hawi wa za Ø- watɔb-rɔ ni 1 col enf casa abl 1.imperf irls 1-sair-nmlz 1.dual ‘Nós dois sairemos da casa.’ (Tsipré 2019: 72)

b. a nõrĩ waɁwa hã Ɂri hawi te 2 col pl enf casa abl 2/3.imperf

za aj-watɔb-rɔ Ɂwa irls 2-sair-nmlz 2.dual ‘Vocês dois sairão da casa.’ (ibid.)

c. õ nõrĩ hã Ɂri hawi te za 3 col enf casa abl 2/3.imperf irls

ti-watɔb-rɔ zahurɛ 3-sair-nmlz 3.dual ‘Eles dois sairão de casa.’ (ibid.)

Sujeito plural (24) a. wa nõrĩ hã Ɂri hawi wa za Ø-watɔb-rɔ 1 col enf casa abl 1.imperf irls 1-sair-nmlz

370 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

zaɁra ni 1.pl 1.dual ‘nós sairemos da casa.’ (Tsipré 2019: 73)

b. a nõrĩ waɁwa hã Ɂri hawi te za 2 col pl enf casa abl 2/3.imperf irls aj-watɔb-rɔ waɁwa 2-sair-nmlz 2.pl ‘vocês sairão da casa.’ (ibid.) c. õ nõrĩ hã Ɂri hawi te za 3 col enf casa abl 2/3.imperf irls ti-watɔb-rɔ zaɁra 3corr-sair-nmlz 3.pl ‘eles sairão da casa.’ (ibid.) Xerente Sujeito Singular (25) a. wa wa t ĩ-wi(s) 1sg 1.perf rls 1-chegar ‘Eu cheguei.’ (Cotrim 2016 : 202)

b. toka bǝ t ai-wi 2sg 2.perf rls 2-chegar ‘Você chegou.’ (ibid.)

c. tahã nã t Ø-wi 3sg 3.perf rls 3-chegar ‘Ele chegou.’ (ibid.)

Sujeito dual (26) a. wa nõrĩ wa t wa-wsi nǝ 1 col 1.perf rls 1-chegar 1.dual/pl ‘Nós dois chegamos.’ (Cotrim 2016: 203)

b. toka nõrĩ kwa bǝ t ai-wsi kwǝ 2 col 2 2.perf rls 2-chegar 2.dual/pl ‘Vocês dois chegaram.’ (ibid.)

371 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda

c. ta nõrĩ nã t Ø-simãsis 3 col 3.perf rls 3-chegar.dual/pl ‘Eles dois chegaram.’ (ibid.)

Sujeito plural (27) a. wa nõrĩ kburɛ wa t wa-sinə nə 1 col todos 1.perf rls 1-chegar.pl 1.dual/pl ‘Nós todos chegamos.’ (Cotrim 2016: 203)

b. toka nõrĩ kwa kburɛ bǝ t ai-sinə kwǝ 2 col 2 todos 2.perf rls 2-chegar.pl 2.dual/pl ‘Vocês todos chegaram.’ (ibid.)

c. ta nõrĩ kburɛ mã t Ø-sinə 3 col todos 3.perf rls 3-chegar.pl ‘Eles todos chegaram.’ (ibid.)

Os dados apresentados nesta seção evidenciam o fato de que não há nas línguas do sub-ramo Central da família Jê prefixos pessoais cujas formas distinguem singular/dual/plural. As duas línguas apresentam três únicas formas pessoais que exprimem primeira, segunda e terceira pessoa. A alomorfia dessas formas pessoais é condicionada pela finitude das formas verbais. Passemos agora à concordância de número nas duas línguas.

4. Concordância número por meio de partículas de número em Xavante e Xerente Com respeito à expressão de número, a língua Xavante em comparação com o Xerente caracteriza-se por ser mais inovadora, já que ela exibe uma distinção ternária de número mediante o uso de partículas especiais para cada pessoa do discurso, sobretudo aquelas pospostas ao núcleo do predicado. O Quadro 2, adaptado de Tsipré (2019), sumariza a combinação das partículas de número com pronomes:

372 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

Quadro 2. Marcas de número em pronomes e marcas de concordância com o sujeito e com o objeto

Pronomes núcleos de sintagmas em função Partículas de concordância de número argumental de sujeito ou objeto posicionadas após o núcleo dos predicados Marcas de Concordância Concordância com Número Pronomes Pessoa número com sujeito objeto 1 wa Ø Ø Ø Singu- 2 a Ø Ø Ø lar 3 õ Ø Ø Ø

1 wa norĩ ni Ø 2 a waɁwa Ɂwa /aba Ɂwa/aba Dual 3 õ norĩ zahurɛ zahurɛ

1 wa norĩ zaɁra ni zaɁra norĩ zaɁra waɁwa/ 2 Plural a Ɂwa aba waɁwa waɁwa /aba 3 õ norĩ zaɁra zaɁra

Alguns exemplos da concordância por meio de partículas em Xavante são indicados em (28) e (29), com um verbo intransitivo e transitivo respectivamente.

(28) a. wa arɛ Ø-də-rə 1sg quase 1sg-morrer-nmlz ‘Eu quase morri.’ (Tsipré 2019: 31)

b. wa arɛ wa-dəɁə ni 1 quase 1dual/pl-morrer 1.dual ‘nós (dois) quase morremos’ (ibid.)

c. wa arɛ wa-dəɁə zaɁra ni 1 quase 1dual/pl-morrer pl 1.dual ‘Nós quase morremos.’ (ibid.)

(29) a. a hã tebe te za ĩ-pã ãhãna 2sg enf peixe 2/3.imperf irls 3-matar hoje ‘você vai matar peixe hoje’ (Tsipré 2019: 78)

373 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda

b. a nõrῖ waɁwa hã tebe ma to 2 col dual enf peixe 2/3.perf rlz ĩ-pã-rῖ Ɂwa ãhãna 3-matar-nmlz 2.dual hoje ‘Vocês dois mataram peixe hoje.’ (ibid.)

c. a norĩ waɁwa hã tebe ma ĩ-sim-rõ waɁwa 2 col pl enf peixe 2/3.perf 3-matar.pl-nmlz 2.pl ‘Vocês (plural) matam peixe.’ (ibid.)

Quando se trata de verbos transitivos, a concordância por meio de partículas pode ocorrer com o sujeito (agente) ou com o objeto em Xavante, como no exemplo (30), mas em Xerente somente com o sujeito.

(30) a. a norĩ waɁwa hã te ĩĩ-Ɂwapa-ri Ɂwa 2 col pl enf 2/3.imperf 1sg-escutar-nmlz 2.dual ‘Vocês (dual) me escutam.’ (Tsipré 2019: 104)

b. a norĩ waɁwa hã te 2 col pl enf 2/3.imperf ĩwa-Ɂwapa-ri Ɂwa 1dual/pl-escutar-nmlz 2.dual ‘Vocês (dual) nos (dual/plural) escutam.’ (ibid.)

Como mostram os exemplos acima, a distinção entre objeto de primeira pessoa singular e primeira pessoa dual/plural se dá por meio dos prefixos acusativosĩĩ - e ĩwa- respectivamente. Quando o objeto é uma primeira pessoa singular e o sujeito é dual ou plural, a concordância por meio de partículas é feita com o sujeito (agente). Naturalmente, se duas ou várias pessoas escutam uma pessoa singular, há multiplicidade de ação (seja dual, plural ou coletivo). Quando o sujeito é uma primeira pessoa singular que age sobre uma segunda pessoa dual ou plural a concordância de número por meio de partículas se dá com o objeto, como em (31).

(31) a. wa hã a norĩ waɁwa hã wa aj-wapa-ri Ɂwa 1sg enf 2 col pl enf 1.imperf 2-escutar-nmlz 2.dual ‘Eu escuto vocês (dual).’ (Tsipré 2019: 101)

374 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

b. wa hã a norĩ waɁwa hã wa aj-wapa-ri 1sg enf 2 col pl enf 1.imperf 2-escutar-nmlz zaɁra waɁwa pl 2.pl ‘Eu escuto vocês (plural).’ (ibid.)

Entretanto, se sujeito e objeto são duais ou plurais, a concordância de número por meio de partículas se dá com ambos. Neste caso, o verbo concorda com o objeto por meio de prefixos pessoais acusativos.

(32) a. wa norĩ hã a nõrĩ waɁwa wa a-sa-ri 1 col enf 2 col pl 1.imperf 2-morder-nmlz aba ni 2.dual 1.dual ‘Nós (dual) mordemos vocês (dual).’ (Tsipré 2019: 107) b. wa norĩ hã a nõrĩ waɁwa wa 1 col enf 2 col pl 1.imperf a-həzu-Ø aba ni 2-morder-nmlz 2.dual 1.dual ‘Nós (plural) mordemos vocês (dual).’ (ibid.)

Quando uma primeira pessoa plural age sobre uma segunda pessoa plural, a concordância por meio de partículas se dá também com o sujeito e com o objeto. Nos exemplos seguintes, em (33), zaʔra...ni concorda com a primeira pessoa plural wa norĩ hã, enquanto ʔwa aba concorda com a segunda pessoa plural objeto, a norĩ waʔwa.

(33) wa norĩ hã a norĩ waɁwa hã wa a-həzu-Ø 1 col enf 2 col pl enf 1.imperf 2-morder-nmlz zaʔra ʔwa=aba ni 1.pl 2.dual/pl 1.dual/pl ‘Nós (plural) mordemos vocês (plural).’ (Tsipré 2019: 107)

Com o objeto de terceira pessoa singular, dual ou plural, a concordância por meio de partículas se dá com o sujeito (agente), como mostram os exemplos em (34).

375 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda

(34) a. wa norĩ hã wãrãhəbə misi wa to 1 col enf tatu um 1.perf rlz Ø-sim-ro zaɁra ni 3-matar-nmlz pl 1.dual ‘Nós (plural) matamos um tatu.’ (Tsipré, notas de campo)

b. a nõrĩ waɁwa hã wãrãhəpə norĩ maparanɛ ma 2 col pl enf tatu col dois 2/3.perf to i-sim-ro zaɁra waɁwa rlz 3-matar-nmlz pl pl ‘Vocês mataram dois tatus.’ (ibid.)

Em Xerente, a concordância é mais simples do que em Xavante. Basicamente há dois sufixos verbais de número/pessoa:-n ə ‘primeira dual/plural’ e -kwə ‘segunda dual/plural’. A distinção entre primeira e segunda dual ou plural é realizada por meio de clíticos pós-pronominais. A Tabela 7, extraída de Contrim (2016: 96), resume a combinação de pronomes e marcas de número em Xerente. Tabela 7. Pronomes pessoais com marcação de número em Xerente

Número/Pessoa Formas Pronominais

1sg wa singular 2sg (to)ka 3sg ta=hã 1dual wa=nõɾĩ...nə 1pl wa=nõɾĩ=kbuɾɛ...nə 2dual (to)ka=nõɾĩ=kwa...kw(ə) não singular 2pl (to)ka=nõɾĩ=kwa=kbuɾɛ 3dual ta(hã)=nõɾĩ 3pl ta(hã)=nõɾĩ=kbuɾɛ

Nos exemplos (35) e (36), ilustramos a combinação de pronomes pessoais com morfemas de número, com verbos intransitivos e

376 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê) transitivos. Como pode ser notado, além de morfema de número, há ainda a ocorrência de formas verbais alternantes, como em (35c).

(35) a. wa nõrĩ wa t wa-wsi-nǝ 1 col 1.perf rls 1-chegar-dual/pl ‘Nós dois chegamos.’ (Cotrim 2016: 203)

b. toka nõrĩ kwa bǝ t ai-wsi-kwǝ 2 pl 2 2.perf rls 2-chegar-dual ‘vocês dois chegaram.’ (ibid.)

c. wa nõrĩ kburɛ wa t wa-sinə-nə 1 pl todos 1.perf rls 1-chegar.pl-dual/pl ‘nós todos chegamos.’ (ibid.)

(36) a. wa wa to bru ka-wadupa(r) 1 1.perf rlz roça 3.obj-capinar ‘Eu capinei a roça.’ (Cotrim 2016: 137)

b. toka nõrĩ kwa bə to kuĩwde kmãba-kw(ə) 2 pl 2 2.perf rlz tora.de.buriti carregar-dual ‘Vocês dois carregaram a tora de buriti.’ (ibid.)

5. Formas verbais duais e plurais Além do sistema de concordância de número por meio de partículas, as línguas Xavante e Xerente usam formas alternantes para parte de seus verbos intransitivos e transitivos. Alguns verbos têm a mesma forma para dual e plural, outros para singular e dual, outros para singular e plural, mas há verbos que tem três formas alternantes. Essa distinção de número por meio do léxico parece, à primeira vista, redundante, já que a concordância com o sujeito e com o objeto se dá por meio de partículas de número. Mas, como veremos, as formas alternantes são complementares no sistema de concordância da língua. Antes de discutirmos sobre qual a função das formas duais e plurais no sistema de concordância do Xavante e do Xerente, apresentamos, em seguida, alguns dos verbos que apresentam formas duais e plurais nas duas línguas:

377 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda

Quadro 3. Formais verbais alternantes intransitivas

Xavante Xerente Glosa Singular Dual Plural Singular Dual Plural wahudu; andar morĩ nẽ aiɁabaɁrɛ mõɾ nẽ(mã) mõmõɾĩ correr wara asamro sisarɛ waɾ(a) ssamɾo ssakɾe asisãro, estar.em.pé za ~ sa aimasa da simẽkwaɾ simãsa aimaɁwara estar.sentado nhamra simsisi asimro nãmɾ simãsi-kw sbuɾõ dazaɁwari saikwaɾ, estar.deitado nomro dabaɁwara  ɾ  daikwaɾ-kw daɁwa nom o nmĩkwaɾ entrar ãzɛ zasi asisi dɛbɾ dɛbɾ zas sair, emergir watobro sapusi, pusi wairɛbɛ watɔbɾ pus-kw waiɾɛb aimasisi, chegar wisi aihitu wi simãsis sinã dasimasisi

Quadro 4. Formais verbais alternantes transitivas

Xavante Xerente Glosa Singular Dual Plural Singular Dual Plural matar wĩ pã sim wĩ wrĩn/pã wrĩnĩ/smro carregar tidu wapɛ wasa du(ɾi) ka-duɾ-kw du(ɾ) colocar tisẽ tiza sẽmɛ sẽɾẽ sem-kw sem-kw comer Ɂhẽne si huri krẽ knẽ-kwa kmẽsi assar wanhẽ waza suɁwa kwanẽ samɾõ kwanẽ quebrar wẽɁẽ Ɂẽ mamaɁẽ pru zə-kw zə

Verbos que apresentam formas alternantes caracterizam-se semanticamente como verbos de movimento espacial (ir, vir, andar, chegar, entrar, sair, correr), verbos posicionais (estar.deitado, estar. sentado, estar.em.pé), verbos processuais (matar, bater, assar, carregar, colocar, comer). Esta caracterização semântica de verbos com formas alternantes em línguas Jê aproxima-se do que ocorre com línguas da América do Norte, segundo reporta Mithun (1988: 213). In many North American languages, verb stems alternate according to the number of participants involved. The set of alternating stems consists of a limited number of common verbs, in some languages only two or three in others up to several dozen. They usually include intransitives

378 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

such as ‘sit’, ‘lie’, ‘stand’ ‘go’, ‘walk’, ‘run’, ‘fly’, ‘die’, and transitive such as ‘take’, ‘pick up’, ‘carry’, ‘throw’, ‘kill’.8 Um fato interessante sobre formas verbais plurais de línguas Jê Meridionais e Setentrionais, diferentemente de línguas Jê Centrais, é o de que verbos com alternância de formas, há raros casos de reduplicação. Um exemplo de reduplicação é encontrado em uma das duas formas plurais do verbo mõmõɾĩ ‘ir’ em Xerente, em que se dá a reduplicação da base verbal mõ (o r é parte do sufixo de nominalizador de nome de ação, requerido em certos contextos sintáticos). Em Xavante, há a forma plural do verbo ‘entrar’ que apresenta reduplicação asisi (zasi é a forma para o dual). Embora não seja propósito do presente artigo identificar os formativos das formas verbais de dual e plural em Xavante e Xerente, algumas sequências de sons recorrentes em formas de dual e plural, sugerem que sejam formativos de plural, como nos seguintes verbos: Xavante – ‘deitar-se’ nomro.sg, dazaɁwari/daɁwa.dual, dabaɁwara.pl; ‘ficar em pé’ za ~ sa.sg, asisãro/aimaɁwara.dual, aimasa.pl; Xerente – ‘estar.deitado’ nõmɾõ.sg, daikwaɾ-kw.dual, saikwaɾ.pl/nmĩkwaɾ. pl; ‘estar.em.pé’ da.sg, simẽkwaɾ.dual, simãsa.pl. Nesses dois verbos estativos posicionais é possível depreendermos o formativo *kwar, possivelmente formativo de plural. Em Xerente, a forma plural nmĩkwaɾ foi muito provavelmente formada de nõm + kwar > nõm(ĩ)kwar. Já a forma daikwaɾ-kw, combina-se com o sufixo -kw.

6. As formas verbais singulares, duais e plurais no sistema de concordância em línguas Jê Centrais Como vimos na seção 4, as línguas Xavante e Xerente possuem um sistema de concordância de número por meio de partículas. Uma das questões que se coloca é qual a função de formas duais e plurais de temas verbais no sistema de concordância das duas línguas. Xavante é uma língua que marca sistematicamente concordância sintática com sujeito (agente) e com objeto por meio de partículas, ao passo que as

8 Tradução: “Em muitas línguas norte-americanas, as raízes verbais se alternam de acordo com o número de participantes envolvidos. O conjunto de raízes alternantes consiste em um número limitado de verbos comuns, em algumas línguas apenas dois ou três em outras até várias dezenas. Eles geralmente incluem intransitivos como ‘sen- tar’, ‘mentir’, ‘ficar’, ‘ir’, ‘andar’, ‘correr’, ‘voar’, ‘morrer’ e transitivos como ‘pegar’, ‘pegar’, ‘transportar’, ‘arremessar’, ‘matar’” (Mithun 1988: 213).

379 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda formas verbais alternantes pareceriam ser redundantes. Entretanto, nos casos de verbos transitivos, há algumas situações em que as formas verbais têm papel distintivo no sistema de concordância da língua. Isso se dá, por exemplo, quando o objeto é [-humano] e o sujeito é singular. Verifica-se nesses casos a seguinte distribuição: a. sujeito singular e objeto singular → forma singular b. sujeito singular vs. objeto dual → forma verbal dual c. sujeito singular vs. objeto plural → forma verbal plural

O verbo para ‘matar’, que é um dos verbos com três formas alternantes, exemplifica essa distribuição:

(37) a. wa hã wãrãhəbə misi wa to ti-wĩ 1sg enf tatu um 1.perf rlz 3-matar ‘Eu matei um tatu.’ (Tsipré, notas de campo) b. wa hã wãrãbəpə nõrĩ maparanɛ wa to ti-pã 1 enf tatu col dois 1.perf rlz 3-matar.dual ‘Eu matei dois tatus.’ (ibid.) c. wa hã wãrãbəpə nõrĩ iɁahəɁuptabi wa to Ø-mãpə 1 enf tatu col muitos 1.perf rlz 3-matar.pl ‘Eu matei muitos tatus.’ (ibid.)

Os exemplos acima mostram que formas alternantes de verbos transitivos de ação-processo são usadas para marcar o número do objeto – singular, dual e plural, quando o sujeito agente é singular. Entretanto, quando o sujeito é dual ou plural e o objeto é de terceira pessoa do singular, como em (38), o verbo concorda com o objeto, mas sendo o objeto dual ou plural, a forma verbal usada é a dual, conforme é indicado no exemplo (39).

(38) a. a nõrĩ waɁwa hã wãrãhəbə misi ma to 2 col pl enf tatu um 2/3.perf rlz ĩ-wĩ-rĩ Ɂwa 3-matar-nmlz 2.dual ‘Vocês (dual) mataram um tatu.’ (Tsipré, notas de campo)

380 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

b. wa nõrĩ hã wãrãhəbə misi wa to 1 col enf tatu um 1.perf rlz Ø-sim-ro zaɁra ni 3-matar.pl-nmlz pl 1.pl ‘Nós (plural) matamos um tatu.’ (ibid.)

(39) õ nõrĩ hã wãrãhəpə nõrĩ maparanɛ ma to 3 col enf tatu col dois 2/3.perf rlz

Ø-pã-rĩ zahurɛ 3-matar-nmlz 3.dual ‘Eles (dual) mataram dois tatus.’ (ibid.)

Um fato interessante sobre a concordância em Xavante e Xerente é que, nas nominalizações de agente e paciente, a base verbal transitiva concorda com o determinante, tal como pode ser observado em (40). (40) a. da=pã-ri-Ɂwa gen.h=matar.dual-nmlz-n.ag ‘matador (de pessoas).’ (Tsipré, notas de campo)

b. ĩĩ-ɲ-imi pã-ri 1sg.poss-r1-mp matar.dual-nmlz ‘minhas duas coisas matadas.’ (ibid.)

No primeiro exemplo o determinante é genérico e humano, sem especificação para o número de entidades envolvidas, podendo ser uma ou mais de uma pessoa matada, razão pela qual o verbo vem em sua forma dual (note-se que em línguas Jê setentrionais, como em Xikrin , cognatos dessa forma é semanticamente plural, por exemplo, pa-ri=ʤwəj matar.pl-nmlz=n.agt ‘matador’ (Costa 2015: 106)). Já no segundo exemplo, o possuidor é singular, mas o objeto implícito é dual, razão pela qual a forma verbal é -pã). Nos exemplos seguintes, em (41), a forma verbal é também dual, visto que o determinante é genérico e humano. As nominalizações são conservadoras e mostram um estágio anterior das línguas Jê Centrais, no qual ainda não havia a distinção entre formas verbais duais e plurais.

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(41) a. da=nɛb-Ø-zɛ gen.h=andar.dual-nmlz-n.cir ‘lugar de andar.’ (Tsipré 2019: 62) b. da=ɲam-ra-zɛ gen.h=sentar.dual-nmlz-n.cir ‘lugar de sentar.’ (ibid.: 63)

Durie (1986), que distingue concordância de supleção9, mostra que supleção de temas por número é preservada na formação de palavras por derivação, mas concordância por flexão não é. Segundo o autor (1986: 361): If suppletives select for, rather than agree with, an argument of the appropriate number, then this property follows naturally, since clearly a whole range of semantic characteristics of a stem are preserved in derivation, including those related to selection. Assassinate selects an object with human reference, and an assassination involves the death of a human being.10 Como discutiremos, adiante, o que estamos tratando como concordância em Jê central, é a expressão por meio de partículas de número. Como mostram os exemplos do Xavante e do Xerente, há constância nas expressões sintáticas de argumentos marcadas por número que controlam a concordância por meio de partículas nos predicados verbais. Em predicados nominais, como predicados negados, formas verbais nominalizadas e partículas de número concordam com o sujeito, como mostra o exemplo seguinte: (42) õ nõrῖ hã tebe hadu te Ø-sim-rõ zaɁra 3 col enf peixe ainda mp 3-matar-nmlz 3.pl õ di ãhãna neg exist hoje ‘Eles ainda não mataram peixe hoje.’ (Tsipré 2019: 84)

9 Neste estudo utilizamos a expressão “formas alternantes”, seguindo Mithun (1988), ao invés de supleção. 10 Tradução: “Se supletivos selecionam, em vez de concordar, um argumento do nú- mero apropriado, então esta propriedade segue naturalmente, uma vez que claramente toda uma gama de características semânticas de uma raiz é preservada na derivação, incluindo aquelas relacionadas à seleção. Assassino seleciona um objeto com referên- cia humana, e um assassinato envolve a morte de um ser humano” (Durie 1986: 361).

382 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

Considerações finais e futuras vias de pesquisa No artigo mostramos como as línguas Jê Centrais se destacam quanto ao sistema de concordância de predicados verbais com o sujeito e/ou com o objeto por meio de partículas. Nesse conjunto de dispositivos gramaticais, inclui-se um número limitado de verbos que possuem formas alternantes de singular, dual e plural. A presença de tal sistema de concordância faz das línguas Xavante e Xerente distintas das demais línguas. Embora formas verbais alternantes sejam encontradas em todas as línguas da família Jê, apenas em Xavante e Xerente, a distinção de formas verbais singulares, duais e plurais são encontradas. Da mesma forma, a maioria das línguas dessa família possuem marcas de número para plural ou para paucal e plural, as quais modificam nomes e pronomes, mas nas línguas Xavante e Xerente as marcas de número nos nomes acionam concordância expressa por meio de partículas de número pós-verbais. Além das línguas do sub-ramo central, apenas o Panará apresenta um sistema de concordância bem desenvolvido, em que quatro séries de proclíticos pronominais (absolutiva, nominativa, ergativa e dativa) se opõem, contrastando os valores de número singular, dual e plural/paucal (Dourado 2001: 43). A concordância por meio de partículas comporta-se como uma concordância sintática, enquanto que a concordância por meio de formas verbais alternantes é de natureza lexical e semântica, na medida em que apenas um conjunto de verbos possui formas alternantes de número: movimento espacial (ir, vir, andar, chegar, entrar, sair, correr), verbos posicionais (estar.deitado, estar.sentado, estar.em.pé), verbos processuais (matar, bater, assar, carregar, colocar, comer) entre outros. O sistema de concordância encontrado atualmente nas línguas Jê Centrais, muito provavelmente evoluiu de um conjunto de verbos com formas alternantes que distinguiam singular vs. plural, como são os casos da distinção de número nas formas verbais de outras línguas Jê, como o Krahô, o Xikrin e o Apinajé. O desenvolvimento de um sistema de concordância em Panará, por meio de proclíticos pronominais, pode ter resultado provavelmente de contato dos seus falantes com o Xavante, quando seus falantes se deslocaram de Mato Grosso do Sul para a região do Rio Peixoto (Giraldin 1997), mas pode também ter-se originado independentemente devido a tendência que tem as línguas Jê de desenvolverem sistemas de concordância, pelo próprio fato de marcarem para número nomes e pronomes nas funções de sujeito ou de objeto.

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Olhando para as formas verbais alternantes de número em línguas Jê, em geral, observa-se um reduzido número de verbos com formas singulares e plurais, o que sugere que este teria sido o cenário no Proto- Jê, sendo as formas plurais oriundas de verbos semanticamente plurais, indicadores de pluralidade de ação, bem na linha do que observam Sapir e Swadesh (1946: 104) sobre pluralidade de verbos em línguas ameríndias:

Sometimes it is the verb rather than the noun which is inherently singular or plural. A vague idea of this apparently illogical and yet perfectly natural classification may be obtained by looking upon such English verbs as to massacre and to troop as inherently plural forms meaning ‘to kill several’ and ‘to run (used of several subjects)’ respectively. If we think of a sentence like the dog trooped as the factual equivalent of the normal sentence the dogs ran, the plurality of the noun being ignored while the complementary plurality of action, which we habitually ignore, is selected for explicit grammatical expression, we shall be able to get an approximate feeling for the idiom of inherently plural verbs.11

A existência de pares de verbos etimologicamente distintos, mas semanticamente convergentes em um traço fundamental, alimentou, provavelmente ainda no Proto-Jê, a reanálise de verbos plurais como sendo a contraparte de verbos semanticamente singulares. O ancestral do Jê Meridional teria ampliado o número de formas plurais por meio de reduplicação, processo típico de expressão de pluralidade de ação (Sapir 1922; Mithun & Corbert 1995), mas também por meio de afixação (prefixos e infixos), com a aplicação de processos prosódicos como apofonia. Cavalcante (1987) lista, das formas plurais de seu corpus a partir do Kaingang, 102 formas plurais formadas por meio de reduplicação do tema singular, 20 por meio de afixação e 179 por meio de infixação, esta como única operação ou associada com a reduplicação ou prefixação.

11 Tradução: “Algumas vezes é o verbo ao invés do nome que é inerentemente singular ou plural. Uma vaga ideia dessa classificação aparentemente ilógica e, no entanto, per- feitamente natural pode ser obtida observando-se verbos em inglês como ‘massacrar’ e ‘marchar’ como formas inerentemente plurais que significam ‘matar vários’ e ‘correr (usado para diversos sujeitos)’, respectivamente. Se pensarmos em uma sentença como o cão marchou como o equivalente factual da sentença normal os cães correram, a plu- ralidade do nome sendo ignorada enquanto a pluralidade complementar da ação, que habitualmente ignoramos, for selecionada para expressão gramatical explícita, nós se- remos capazes de obter uma sensação aproximada do idioma de verbos inerentemente plurais” (Sapir & Swadesh 1946: 104).

384 Distinção ternária de número e concordância em línguas Jê Centrais (Macro-Jê)

Mas em sua lista há apenas 22 temas plurais, sem nenhuma relação com respectivos temas singulares. E como as demais línguas Jê apresentam formas de plural também de número reduzido, mas semanticamente agrupáveis em conjuntos semânticos, com poucas ocorrências de reduplicação ou afixação, dá suporte à hipótese de reanálise de verbos plurais etimologicamente distintos de verbos singulares, como contraparte plural destes últimos. Na maioria das línguas, não houve extensão significativa de pares de verbos distintos quanto ao número, como nas línguas Jê Meridionais. Outras línguas mantêm minimamente reflexos dessa alternância. Já em línguas como Xavante e Xerente, houve uma certa ampliação de formas distintivas de singular e plural, mas, por outro lado, desenvolveu-se uma extensão da marcação de número por meio de partículas posicionadas após o núcleo dos predicados, estabelecendo-se, assim, um sistema de concordância com o sujeito de verbos intransitivos e com o objeto de verbos transitivos e, em situações específicas, com o sujeito de verbos transitivos. O Xavante foi mais longe no processo de reanálise e extensão de um sistema de concordância de número, ampliando inclusive os traços semânticos envolvidos, passando a distinguir um sistema ternário de número – singular, dual e plural. Desde um ponto de vista teórico, particularmente da Sintaxe Semântica (Seuren 2018), o sistema das línguas Jê Meridionais é de grande interesse. Em estágios históricos mais antigos, as línguas apresentariam um sistema de marcação de número com um nível de transparência semântica baixo, após tanto predicados verbais quanto operadores subjacentes de número fundiram-se nas formas verbais plurais. O fato mais interessante desde uma perspectiva teórica e histórica é que as categorias semânticas implicadas nas formas supletivas parecem nunca ter perdido seu status independente na Análise Semântica Profunda (ASP, Deep Semantic Analysis), conforme atestam os desenvolvimentos sintáticos na língua Xavante, onde as categorias semânticas profundas foram externalizadas num sistema morfossintático difusivo de concordância de número sincronicamente. Esse sistema poderia ser chamado de redundante, tanto que apresenta a expressão repetida do mesmo operador de número na estrutura superficial. Porém, assim como a dupla negação em português ou espanhol, o sistema parece ser usado para evitar qualquer ambiguidade semântica na proposição. Assim, é verdade que o Xavante mostra um sistema complexo, mas a redundância ou ocorrência múltipla dos operadores incrementa o nível de transparência semântica (Seuren e Wekker 1986), i.e., um processamento cognitivo mais fluido da parte

385 Ana Suelly A. C. Cabral | Eliseu W. Xavante | Luis Miguel Rojas-Berscia | Maxwell Miranda tanto do falante como do interlocutor.12 Aliás, os dados atestam a existência do chamado questionário semântico (Seuren 2018: 400), um processo cognitivo no processo de transformação de proposições em sentenças nas línguas naturais pelo qual o falante examina quais são as categorias semânticas necessárias para a expressão de determinada asserção na língua x. Visto que no Xavante as distinções semânticas do plural são necessárias e, quiçá, culturalmente relevantes, e dado que as formas supletivas são de número restrito, não surpreende que novos mecanismos morfossintáticos, semanticamente mais transparentes, apareceram nos estágios mais recentes da língua. Entretanto, são necessários mais estudos sobre concordância de número nas línguas Jê, principalmente nas línguas Jê Meridionais e Centrais, e entre as línguas Jê Setentrionais, o Panará, para dar conclusões mais gerais sobre o desenvolvimento destes sistemas na família. Em Xavante, há que se investigar o tema em suas diferentes variedades. As variedades mais ocidentais têm sido consideradas menos conservadoras, devido, em parte, ao contato mais intenso com a sociedade não indígena envolvente. Há que se pesquisar também a fala dos jovens. Será que eles mantêm o antigo sistema ou estão progressivamente desenvolvendo um sistema de marcação numeral ternário ainda mais transparente? Assim, poder-se-á dispor de um panorama do que ocorre, na língua Xavante, com respeito ao seu complexo e fascinante sistema de concordância.

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12 É claro que a existência de distinções do número plural não é semanticamente trans- parente, tanto vai contra a estratégia de máxima uniformidade do princípio da trans- parência semântica (Seuren e Wekker 1986: 64-66), porém, a repetição ou redundân- cia dos operadores, numa versão atualizada da teoria, constituem outra estratégia de expressão do princípio (Seuren, c.p.).

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392 Algumas notas sobre predicados não-verbais em Kỳikatêjê (Jê)

Lucivaldo Silva da Costa Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará

Quélvia Souza Tavares Instituto Federal do Pará

Mirelly Paolla Borges de Carvalho Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará

Introdução Este texto apresenta uma proposta de descrição dos predicados não-verbais da língua Kỳikatêjê, pertencente ao conjunto dialetal Timbira , ao lado de outras duas variedades linguísticas, a Akrãtikatêjê e a Parkatêjê, faladas pelo povo conhecido na literatura antropológica como Gavião do Pará, na Reserva Indígena Mãe Maria (RIMM), localizada no município do Bom Jesus do Tocantins, no sudeste do estado do Pará (Costa & Ikeda 2017). Os dados foram coletados durante trabalhos de campo realizados pelos autores ao longo do ano de 2019, em virtude de um projeto de pesquisa que desenvolvem na RIMM. A análise proposta neste estudo apoia-se em Dryer (2007), Rodrigues (2011) e Payne (1997), dentre outros. Com base em critérios morfossintáticos e semânticos usados na investigação dos predicados não-verbais, foi possível classificá-los em predicados nominais – subdivididos em equativos, inclusivos e atributivos, predicados locativos, predicados possessivos e predicados existenciais. Esta pesquisa pretende ser uma contribuição ao estudo das línguas da família Jê, de maneira geral, e da língua Kỳikatêjê, de maneira específica, para a qual ãn o há estudos linguísticos descritivos1. Os resultados aqui descritos podem, ainda, ser comparados com pesquisas já realizadas para outras variedades da língua Gavião do Pará.

1 Ikeda (2017) faz um estudo sobre a morfologia nominal da língua Kỳikatêjê.

393 Lucivaldo S. da Costa | Quélvia S. Tavares | Mirelly Paolla B. de Carvalho

Este artigo está organizado em três seções, que são antecedidas de introdução e seguidas de considerações finais. Na seção 1, apresentam- se informações sobre a localização e filiação genética do povo Kỳikatêjê, bem como dos trabalhos linguísticos produzidos sobre esta variedade linguística e a variedade Parkatêjê; a seção 2, descreve os tipos de predicados não-verbais, conforme as concepções de Payne (1997) e Dryer (2007) e as importantes considerações que Rodrigues (2011) faz sobre argumento e predicado em Tupinambá, que nos auxiliam na definição de um subtipo de predicado nominal, a saber: o atributivo; a última seção descreve e analisa as propriedades morfossintáticas e semânticas de construções não verbais em Kỳikatêjê que possibilitam sua classificação em predicados nominais, locativos, possessivos e existenciais.

1. Povo e língua Kỳikatêjê: contribuição linguística para a língua Gavião do Pará O povo Kỳikatêjê vive na Reserva Indígena Mãe Maria (RIMM), localizada ao longo da BR-222, no município de Bom Jesus do Tocantins, no sudeste do estado do Pará. Nessa reserva, vivem também os Parkatêjê os Akrãtikatêjê. Por questões sociopolíticas internas, a população da reserva, estimada em aproximadamente 820 habitantes,2 está distribuída em dezesseis aldeias. Os povos Kỳikatêjê, Parkatêjê e Akrãtikatêjê, conhecidos regionalmente como Gavião do Pará, falam variedades dialetais de uma das línguas do conjunto Timbira, pertencente à família Jê (tronco Macro-Jê). Além dessas, esse conjunto dialectal é constituído pelas variedades Apãniekrá, Ramkôkamekra, Krahô, Krẽjê, Krĩkati, Parkatêjê e Pykobjê (Rodrigues 1986: 47). Desde o final da década de 70, a Reserva Indígena Mãe Maria tem recebido pesquisadores com interesse científicos diversos. No campo dos estudos linguísticos, destaca-se o pioneirismo da pesquisadora Leopoldina Araújo, como a primeira linguista a realizar pesquisa descritiva junto aos Gavião do Pará, tendo realizado trabalho de campo pela primeira vez no então Posto Indígena Mãe Maria, em fevereiro de 1974 (cf. Araújo 1977). Naquele mesmo ano, a linguista defendeu a dissertação de mestrado intitulada Estruturas subjacentes de alguns tipos de frases declarativas afirmativas do dialeto Gavião Jê (1977) e, em 1989,

2 Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (2015).

394 Algumas notas sobre predicados não-verbais em Kỳikatêjê (Jê) defendeu a tese de doutorado intitulada Aspectos da língua Gavião-Jê. Recentemente, a pesquisadora publicou a obra Dicionário Parkatêjê (Araújo 2016). Além das contribuições de Araújo ao estudo descritivo da língua Parkatêjê, há outros estudos linguísticos que, de modo geral, descrevem aspectos gramaticais exclusivamente da variedade linguística falada pelos Parkatêjê (Ferreira 2003; Freitas 2008; Neves 2012; Silva 2014; Silva 2016; Vale 2016; Neves 2017; Reis 2017), ficando carentes de descrição as variedades faladas pelos Akrãtikatêjê e Kỳikatêjê, que também vivem na RIMM. Para a variedade Akrãtikatêjê, não há qualquer estudo de natureza linguístico-descritiva. Para os Kỳikatêjê, há uma tese de doutorado que aborda a situação sociolinguística e as atitudes linguísticas dos falantes com respeito à língua indígena e à língua portuguesa (Brito 2015), um artigo sobre a realidade sociolinguística da comunidade Kỳikatêjê da aldeia do km 25 (Costa, Barboza & Sompré 2016), além de um livro voltado que conta a história migratória desse povo, seus contatos e conflitos sociais e linguísticos desde quando ainda viviam em suas terras originárias no Igarapé dos Frades, no estado do Maranhão, passando por sua realocação na Reserva Indígena Mãe Maria, até os dias atuais (Costa & Barboza 2018). Diante do quadro resumidamente exposto, é notável a urgência de estudos descritivos das variedades dialetais supracitadas, historicamente silenciadas pela hegemonia dos Parkatêjê no nível das relações micropolíticas entre os três grupos (cf. Costa, Barboza & Sompré 2016). Nesse sentido, esta pesquisa é uma contribuição para o preenchimento de uma lacuna histórica no que diz respeito à descrição gramatical da variedade linguística falada pelos Kỳikatêjê.

2. Predicados não-verbais Predicados não-verbais são construções caracterizadas pela ausência de um verbo figurando como núcleo, o qual pode ser constituído por nomes, adjetivos e sintagmas adverbiais (Overall et al. 2018). Linguistas têm apresentado propostas tipológicas na tentativa de classificar os predicados não-verbais, segundo suas propriedades formais e funcionais (Payne 1997; Dryer 2007; Dixon 2010; Overall et al. 2018). Ancorados em critérios morfológicos, morfossintáticos e semânticos, eles distinguem diferentes tipos e subtipos de predicados não-verbais. Nesta seção, apresentamos as propostas tipológicas de Payne (1997) e

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Dryer (2007), além do estudo de Rodrigues (2011), que nos auxiliam na classificação dos predicados não-verbais e seus subtipos em Kỳikatêjê. Payne (1997) apresenta cinco tipos de predicados não-verbais, a saber: (i) predicados nominais, (ii) predicados adjetivais, (iii) predicados existenciais, (iv) predicados locativos, e (v) predicados possessivos. Segundo Payne (ibid.: 114), o predicado nominal tem como núcleo um nome e expressa noções de inclusão própria e equação, daí sua subdivisão em inclusivo e equativo. No primeiro caso, o sujeito da oração é identificado como pertencente à categoria especificada no predicado. No segundo, o sujeito da oração é idêntico à entidade especificada no predicado. Com respeito ao predicado adjetival, o autor (ibid.: 120) afirma que, do ponto de vista estrutural, esse predicado raramente é distinto do predicado nominal, diferenciando-se deste último por expressar noções atributivas ao sujeito da oração. O predicado existencial tem como característica a exigência de um adjunto temporal ou locativo e tem uma função representativa, ou seja, introduz participantes na cena discursiva. Por isso, o elemento nominal é quase sempre indefinido (Payne 1997: 123). Payne (1997) não define nocionalmente o predicado locativo. Caracteriza-o morfossintaticamente como uma construção que usa um verbo cópula ou um morfema locativo, exemplificando com o inglês e o estoniano. Ele afirma, ainda, a existência de uma construção locativa secundária em inglês com o uso do verbo have, atentando para a correlação entre possuidor e locativo. Ele assevera que, em inglês, o locativo equivale a um possuidor inanimado, fato que justificaria o significado secundário de formar predicados locativos com base em orações possessivas (Payne 1997: 123). Com respeito aos predicados possessivos, Payne (ibid.: 126) argumenta que as línguas geralmente empregam estruturas existenciais e/ou locativas para expressar a noção de posse. Acrescenta que o mais comum nos predicados possessivos é o emprego de um particípio ou verbo cópula. Dryer (2007: 224) classifica os predicados não-verbais em adjetival, nominal e locativo. Ele afirma que as propriedades desses três tipos de predicados variam consideravelmente nas línguas do mundo. Mostra que, em inglês, esses predicados ocorrem com o verbo cópula to be, observando o fato de que o cópula funciona mais como um elemento relacional do que como um predicado. O pesquisador argumenta

396 Algumas notas sobre predicados não-verbais em Kỳikatêjê (Jê) também que há línguas que não dispõem de cópula e constroem predicados não-verbais justapondo sujeito e predicado, sem auxílio de qualquer elemento verbal, como é o caso da língua Muɹinypata (ibid.: 225). Dryer (2007) observa que predicados adjetivais em inglês são não- verbais, porque nessa língua os adjetivos são uma classe distinta da dos verbos. Ele ressalta que, em muitas línguas, as noções adjetivais podem ser expressas por verbos. Como resultado, os predicados adjetivais nessas línguas são um tipo de predicado verbal intransitivo, como é o caso da língua Cree. O pesquisador pondera que, em muitas línguas, o predicado nominal assemelha-se ao predicado adjetival no que tange ao uso de uma cópula. Por outro lado, ele afirma haver muitas línguas que não usam cópula em construção adjetival, mas exige em predicado nominal, como a língua Mizo (Dryer 2007: 229). O autor ainda esclarece haver línguas que não fazem uso de cópula nem em predicado adjetival, nem em predicado nominal, como a língua Gude. Ainda com respeito ao predicado nominal, Dryer (2007) subdivide-o em dois subtipos, o equativo e predicado nominal verdadeiro,3 atribuindo ao primeiro o caráter referencial, por identificar a entidade indicada pelo predicado com a entidade indicada pelo sujeito” e ao segundo o caráter não-referencial, já que o núcleo do predicado expressa propriedades do sujeito, o qual é visto de modo genérico. Com relação ao predicado locativo, Dryer (2007) atenta ao fato de que a mesma cópula usada com predicados adjetivais e nominais pode ser usado com o predicado locativo, embora seja comum muitas línguas usarem cópulas específicas para o predicado locativo com o sentido de “estar.em” (Dryer 2007: 238-239). Outra contribuição importante para o conhecimento dos predicados não-verbais é o estudo feito por Rodrigues (2011) a partir da língua Tupinambá (fam. Tupí-Guaraní), para a qual os predicados nominais são classificados em predicados equativos, atributivos, possessivos e existenciais. Na seção seguinte descrevemos, analisamos e classificamos os predicados não-verbais identificados na língua Kỳikatêjê com base em critérios morfossintáticos e semânticos.

3 No original: “Equational clauses versus clauses with true nominal predicates.” (Dryer 2007).

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3. Predicados não-verbais em Kỳikatêjê Os predicados não-verbais Kỳikatêjê são caracterizados pela ausência de verbo como núcleo. Ocupam, comumente, a posição de núcleo de predicado não-verbal nomes, adjetivos e sintagmas adverbiais (Overrall et al. 2018). Embasada em critérios morfossintáticos e semânticos, a análise dos dados possibilitou a identificação de quatro tipos de predicados não-verbais em Kỳikatêjê, que são: (i) nominal, (ii) locativo, (iii) possessivo, e (iv) existencial.

3.1 Predicados nominais Em Kỳikatêjê, há três subtipos de predicados nominais, os equativos, os inclusivos e os atributivos, cujas propriedades morfossintáticas e semânticas descrevemos a seguir. O predicado equativo tem como núcleo um nome. Semanticamente, caracteriza-se por estabelecer uma relação de identidade entre a entidade especificada pelo sujeito e aquela especificada pelo predicado. Morfossintaticamente, sujeito e predicado ligam-se por justaposição, sem uso de cópula. Quando o sujeito desse predicado é codificado por um pronome pessoal, este é representado pelos pronomes livres ou nominativos. A seguir, oferecemos exemplos ilustrativos de orações nominais equativas:

(1) jʌt ita batata dem ‘Isto (é) batata’

(2) kɾuwa ita flecha dem ‘Isto (é) flecha

(3) ka ka lucivawdo 2sg.enf 2sg.nom nome.próprio ‘Você é o Lucivaldo.’ (4) pa wa rɔpɾɛ 1sg.enf 1sg.nom nome.próprio ‘Eu sou o Ropre.’

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O predicado inclusivo especifica, de modo genérico, o sujeito como pertencente a uma classe. Nesse subtipo de predicado nominal, há a justaposição do argumento, que pode ser um nome pleno (5) ou derivado por nominalização (6), com o predicado. Note-se que não há diferença distribucional entre este predicado e o equativo; eles se distinguem apenas quanto ao aspecto semântico. A função do predicado inclusivo é atribuir uma relação de inclusão de um sujeito específico em uma classe genérica descrita pelo predicado, que é sempre não-referencial (Dryer 2017: 233). O argumento, quando pronominal, é codificado por pronomes independentes. Seguem, abaixo, exemplos desse tipo de predicado:

(5) lucivawdo kupẽ nome.próprio não.indígena ‘Lucivaldo é não-indígena.’

(6) rɔpɾɛ ri mẽ=h-amã-ɾ=kate nome.próprio enf hum=r2-observar-nmlz=n.ag ‘Ropre é o cacique da comunidade.’

(7) ka ka waj 2sg.nom 2sg.nom pajé ‘Você é pajé.’

(8) pa wa mẽ=h-akɾɛ-Ø=kate 1sg.enf 1sg.nom hum=r2-ensinar-nmlz=n.ag ‘Eu sou professor.’

Em Kỳikatêjê, os predicados atributivos expressam estado, qualidade ou atributo (cf. Rodrigues 2011). Morfossintaticamente, a oração atributiva apresenta dois elementos, o sujeito e o predicado. O primeiro pode ser constituído por um nome referencial ou por um pronome pessoal dependente. O segundo é formado por um nome e recebe flexão relacional para indicar relação de constituência sintática com o seu argumento. A seguir apresentamos exemplos de predicados atributivos:

(9) mpɨ Ø-kahʌk homem r1-maldade ‘O homem é maldoso’ (lit. Existe a maldade do homem)

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(10) i=Ø-mpɛj 1sg.abs=r1-bondade ‘Eu sou bondade.’ (lit. Existe a minha bondade)

(11) impo j-aɾa j-aka coisa r1-asa r1-brancura ‘A asa do pássaro é branca.’ (lit. Existe a brancura da asa do pássaro)

(12) kotʌj ʧ-wati cupuaçu r1-azedume ‘O cupuaçu é azedo.’ (lit. Existe o azedume do cupuaçu)

3.2 Predicados locativos Predicados locativos caracterizam-se por expressar a existência de algo em algum lugar (Dryer 2007: 241). Em Kỳikatêjê, esses predicados são constituídos por um um sintagma adverbial, que indica a localização de algo ou alguém, e um sintagma nominal, que se justapoem na oração. Podem, opcionalmente, ocorrer com verbos posicionais (16), como ilustram os seguintes exemplos: (13) ko Ø-kãm tɛp j-aɾeteti rio r1-loc peixe r1-muito ‘Há muito peixe no rio.’

(14) ajɾõm Ø-kãm mũ ɾɔp floresta r1-loc dir onça ‘Há onça na floresta.’

(15) escola ɾi mẽ=i=j-õ kɾĩ Ø-kãm escola enf pl=1sg.poss=r1-pertence aldeia r1-loc ‘Há mesmo uma escola em nossa aldeia.’

(16) mẽ=i=j-õ kɾĩ Ø-kãm nõ kojakati pl=1sg.poss=r1-pertence aldeia r1-loc estar.deitado kôjakati ‘No Kôjakati está nossa aldeia.’

3.3 Predicados possessivos O predicado possessivo, em Kỳikatêjê, expressa uma relação de pertencimento entre núcleo e argumento. O núcleo desse predicado

400 Algumas notas sobre predicados não-verbais em Kỳikatêjê (Jê) refere-se designa nomes que, semanticamente, são dependentes de um determinante sintático e abrangem conceitos relativos à parte do corpo humano, de um todo ou de animais e plantas, relações de parentesco, qualidades e sensações. Formalmente, esses núcleos são flexionados por prefixos relacionais, como ilustram os exemplos seguintes:

(17) a=j-aɾkwa 2sg.poss=r1-boca ‘Você tem boca.’ (lit. Existe a boca de Vanda) (18) vãda Ø-pjen nome.pessoal r1-esposo ‘Vanda é casada.’ (lit. Existe o esposo de Vanda) (19) a=Ø-kakɾɔ 2sg.poss=r1-calor ‘Você tem calor.’ (Existe teu calor) (20) i=Ø-tu ʧ-ʌ 1sg.poss=r1-barriga r1-dor ‘Eu tenho dor de barriga.’ (lit. Existe a dor da tua barriga)

3.4 Predicados existenciais De acordo com Dryer (2007: 241) predicados existenciais afirmam apenas a existência de algo. Para Payne (1997) eles expressam a existência ou presença de algo ou alguém introduzido na cena discursiva. Stassen (2007 apud Overrall at al. 2018) os define como construções que localizam um sujeito indefinido no mundo, sem apresentar, necessariamente uma localização mais específica. Em Kỳikatêjê, o predicado existencial é constituído por um único elemento, exemplos (22) e (23), ou por dois elementos, dos quais o primeiro codifica o núcleo do sintagma posposicional, constituído de um nome ou pronome dependente do caso absolutivo, regido pela posposição dativa/benefactiva mã, e o segundo é um nome que codifica a entidade existente da qual o sujeito é beneficiário. Ressalta-se que os dados que dispomos evidenciam a ocorrência de um predicado existencial, cujo complemento é governado pela posposição locativa kãm, sendo que essa construção expressa, de um modo geral, a existência de algo/alguém e não sua localização, conforme pode ser visto no exemplo (27). Os exemplos abaixo ilustram a ocorrência de predicados existenciais:

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(22) kɾuwa flecha ‘Existe flecha’

(23) heti aranha ‘Existe aranha’

(24) pa wa i=Ø-mã kɾuwa 1sg.enf 1sg.nom 1sg.abs=r1-dat flecha ‘Existe flecha para mim.’

(25) mũ a=Ø-mã puɾ dir 2sg.abs r1-dat roça ‘Existe roça para você.’

(26) i=Ø-kɾa Ø-mã krɨ 1sg.poss=r1-filha r1-dat frio ‘Existe frio para meu filho.’

(27) vãda ɾi Ø-kãm ʌʔʌɾɛ nome.pessoal enf r2-loc galinha ‘Na Vanda existe galinha.’

Considerações finais Ancorados nos trabalhos de Payne (1997), Dryer (2007) e Rodrigues (2011), propusemos uma descrição preliminar dos predicados não-verbais da língua Kỳikatêjê, sobre a qual ainda não há descrição gramatical. Nossa investigação constatou que em Kỳikatêjê os predicados não-verbais classificam-se em (i) nominais, os quais se subdividem em equativos, inclusivos e atributivos, (ii) locativos, (iii) possessivos e (iv) existenciais. Vimos que esses predicados se distinguem entre si por critérios morfossintáticos e semânticos. Há necessidade de aprofundamento da pesquisa sobre os predicados não-verbais do Kỳikatêjê, sobretudo, no que concerne aos locativos, possessivos e existenciais. Igualmente necessário, é tentar explicar por que só a língua Kỳikatêjê usa formas pronominais nominativas como argumentos de predicados equativos e inclusivos,

402 Algumas notas sobre predicados não-verbais em Kỳikatêjê (Jê) enquanto outras línguas da família indicam o argumento dessas orações com os pronomes pessoais dependentes? Ressalta-se, também, uma investigação mais acurada das relações semânticas e pragmáticas dos predicados não-verbais. O que essas construções podem revelar a respeito da cultura, das práticas socioculturais do povo Kỳikatêjê. Miranda (no prelo) faz uma análise dos predicados não-verbais do Krahô, mostrando que essas construções morfossintáticas expressam nuances semântico- pragmáticas reveladores de certos aspectos da dinâmica sociocultural do povo Krahô. Por fim, esperamos que esta pesquisa, contribua para os estudos sobre línguas Jê, de modo específico, para estudos comparativos das línguas conjunto Timbira e Jê como um todo, mas sobretudo para auxiliar o povo Kỳikatêjê no ensino e na aprendizagem e revitalização de sua língua nativa.

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Notas de Campo

Reflexões sobre escrita etnográfica: um breve relato de reviravoltas do trabalho de campo entre os Krahô

Eduardo Santos Gonçalves Monteiro Fundação Nacional do Índio - FUNAI

“[..] a escrita só funciona se ela for uma recriação imaginativa de alguns dos efeitos da própria pesquisa de campo” (Strathern 2014: 346).

Este pequeno texto foi construído a partir de reflexões sobre meu processo de pesquisa de mestrado, um trabalho etnográfico centrado no conjunto de festas dos Krahô, autodenominados mẽhĩ, povo falante de língua Jê (tronco Macro-Jê). A pesquisa foi desenvolvida a partir dos resultados de trabalho de campo na aldeia Rio Vermelho, situada na Terra Indígena Kraholândia, no município de Goiatins/TO, com duração de cerca de três meses, repartidos em três viagens entre os anos de 2016 e 2018. Contudo, não buscarei discutir aqui os resultados etnográficos de minha pesquisa ou argumentos e questões sobre a socialidade mẽhĩ e suas festas que dali emergem (Monteiro 2019). Trata-se, antes, de iniciar uma reflexão sobre o modo de construção do texto etnográfico, sobre as relações complexas entre trabalho de campo e escrita etnográfica e as reviravoltas, rearranjos e surpresas que tal processo pode suscitar. Para tentar efetuar esta vocação metalinguística pretendida, apresentarei um breve ocorrido durante meu próprio processo de pesquisa, um fragmento etnográfico específico. Em análise posterior ao próprio trabalho de campo, tal fragmento revelou-se como insight que contribuiu de maneira fundamental para o que pude apreender sobre a socialidade mẽhĩ e, sobretudo, para a forma como organizei textualmente este processo compreensivo. Muito já foi dito sobre as particularidades do processo de produção e do tipo de conhecimento produzido a partir do trabalho etnográfico. Ainda assim, os desafios da etnografia aparecem, sempre renovados, a cada nova experiência de campo. Não se pode negar, nesse sentido, a

409 Eduardo Santos Gonçalves Monteiro satisfação obtida com as pequenas recompensas que emergem durante a pesquisa. O trabalho de campo antropológico tem um potencial eminentemente renovador e sua riqueza, como afirma Mariza Peirano (2014: 379), depende:

[…] da potencialidade de estranhamento, do insólito da experiência, da necessidade de examinar por que alguns eventos, vividos ou observados, nos surpreendem. E é assim que nos tornamos agentes na etnografia, não apenas como investigadores, mas nativos/etnógrafos.

Tal capacidade de renovação e de transformação do pensamento antropológico está diretamente vinculada à relação complexa entre teoria e empiria estabelecida por meio da etnografia: “[…] a própria teoria se aprimora pelo constante confronto com dados novos, com as novas experiências de campo, resultando em uma invariável bricolagem intelectual” (Peirano 2014: 381). José Magnani também discorre sobre o minuncioso ofício de bricoleur que envolve o trabalho etnográfico, ressaltando sobretudo os arranjos imprevistos heuristicamente relevantes e potencialmente transformadores:

[...] a etnografia é uma forma especial de operar em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para atestar a lógica de sua visão de mundo, mas para, seguindo-os até onde seja possível, numa verdadeira relação de troca, comparar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente. Esse é um insight, uma forma de aproximação própria da abordagem etnográfica que produz um conhecimento diferente do obtido por intermédio da aplicação de outros métodos. Trata-se de um empreendimento que supõe um determinado tipo de investimento, um trabalho paciente e contínuo ao cabo do qual e em algum momento, como mostrou Lévi- Strauss, os fragmentos se ordenam, perfazendo um significado até mesmo inesperado (Magnani 2009: 135).

Após minha experiência em campo, tornou-se ainda mais evidente como esse tipo de aproximação característica da etnografia é, de fato, profundamente fragmentada e tentativa. Não são poucos os relatos de grandes etnógrafos sobre as dificuldades enfrentadas em campo, inclusive ao buscar estabelecer relações de confiança e amizade com seus anfitriões: é caso de Maybury-Lewis (1971: XXV) entre os A’uwẽ Xavante, e mesmo o de Evans-Pritchard (1999 [1940]:18), como se vê

410 Reflexões sobre escrita etnográfica nos cômicos diálogos que evidenciam a acentuada ironia nuer a respeito de sua presença em campo. Felizmente, minha convivência com os mẽhĩ, generosos anfitriões e professores pacientes, foi um guia fundamental para os caminhos trilhados pela pesquisa em meio ao enorme campo de questões suscitadas, investigadas pouco a pouco, dia após dia, durante o campo e depois dele. Os Krahô jamais ocultaram as coisas e os assuntos que mais lhe interessavam e agradavam; de certa forma, os contornos de minha pesquisa foram sendo formados a partir do que podia apreender disto, com maior ou menor dificuldade e precisão. Por outro lado, algumas dificuldades evocadas por Matarezio Filho (2016) em referência a sua própria experiência de campo entre os , ressoam meu próprio trabalho de campo. Por exemplo, a dificuldade em acompanhar a observação dos diferentes eventos simultâneos que fazem parte das festas, tema que, desde meu primeiro contato com os Krahô, acabou se tornando o principal eixo organizador de nossas relações. Outros desafios, por sua vez, se impõem durante o processo de escrita, como encontrar a difícil “boa medida” da descrição, que precisa fornecer todos os elementos para tornar compreensível a análise, e manter-se ao mesmo tempo viva, vibrante, sem acabar como uma tarefa extenuante para o leitor (Monteiro 2019). Tudo se complica quando, infelizmente, não tive condições para desenvolver adequadamente meus conhecimentos na língua mẽhĩ, visto o pouco tempo que tive para me preparar para o trabalho de campo, suscitado através de um súbito convite de meus anfitriões krahô para ir à aldeia acompanhar uma festa prestes a ser realizada. O aprendizado dos modos apropriados de perguntar e ouvir é uma tarefa árdua: exige paciência e sensibilidade aos modos particulares de nos equivocarmos ao lidar com o “português dos índios”, repleto de nuances específicos e variações tradutórias bastante significativas (cf. Perrone-Moisés 2015). Este processo de aprender a lidar com o “português krahô” se torna ainda mais desafiador quando lidamos, simetricamente, com o “krahô brasileiro”, ou seja, com minha própria tentativa de aprender a língua mẽhĩ. Em minha última viagem à campo, podia dizer que tinha um conhecimento razoável do vocabulário utilizado nas conversas corriqueiras e que conseguia deduzir mais ou menos acertadamente o tema das discussões. Contudo, compreendia muito pouco da articulação complexa da língua mẽhĩ, e minha capacidades de expressão eram também muito reduzidas. Este contexto gerou uma dupla dificuldade para a pesquisa: além daquelas evidentes na interação com meus interlocutores em campo, provocou impasses na análise e caracterização do campo semântico de categorias em língua

411 Eduardo Santos Gonçalves Monteiro krahô (cf. Monteiro 2019).A pequena anedota que apresento a seguir está centrada numa categoria fundamental e rica em significado para os Krahô: amijkĩ. Tal categoria possui uma polissemia que abrange a ideia de alegria, a ação de alegrar-se, mas também o termo para festa ou ritual, o que já havida sido notado há tempos por Júlio Melatti (1978). Nesse sentido, é possível pensar essa anedota tanto como exemplo da riqueza semântica do pensamento mẽhĩ quanto como pista “catalisadora”, por assim dizer, do processo de reflexão antropológica, abrindo portas para questões ou observações imprevistas. Como afirmava Magnani (2009), a prática etnográfica busca estabelecer em campo relações das quais emerjam novos modelos de entendimento ou pistas não previstas anteriormente. No caso desta pesquisa, essa pista, apesar de sua brevidade e caráter elusivo, mostrou-se como ponto de inflexão fundamental no esforço contínuo de reordenamento dos registros de campo, sempre fragmentários. Ela constituiu-se, com efeito, em peça indispensável para a construção de sentido envolvida na escrita etnográfica e na formalização das reflexões envolvidas em minhas pesquisa. A anedota aconteceu pouco antes do término da minha primeira viagem a campo, onde pude acompanhar duas festas, emendadas uma na outra – não por acaso. Aqueles que já presenciaram um amijkĩ timbira sabem o que lhes aguarda: multidão, cantorias diurnas e noturnas, atividades paralelas ocorrendo em lugares distintos – dentro e fora da aldeia –, preparação de alimentos, pintura de pessoas – enfim, uma imagem facilmente caracterizada como “caótica”, a partir de um olhar não habituado. Nos primeiros quinze dias em campo, período total da primeira viagem realizada, não pude fazer muito mais do que registrar o que podia a respeito das festas cuja preparações já haviam começado quando cheguei no Rio Vermelho. Apesar de minhas leituras prévias de etnografias sobre os Krahô, tudo parecia dificilmente apreensível. Ao final da festaPempcahàc , com a maior parte dos convidados ainda presentes na aldeia Rio Vermelho, uma reunião foi realizada para tratar de assunto sério e que envolvia um grande número de aldeias convidadas: o futuro e as formas de gestão da indenização financeira recebida por conta dos impactos sofridos com a construção de uma barragem na região, no município de Estreito/MA. Chamava minha atenção como ação política indígena e festa mostravam-se, ali, indissociáveis e reciprocamente engendradas (cf. argumentos de Perrone-Moisés 2015). Estava organizando minha partida, que iria ocorrer no dia seguinte, mas pude acompanhar o andamento daquela reunião, onde registrei o que segue.

412 Reflexões sobre escrita etnográfica

Amijkĩ é como vento! Sob as sombra das mangueiras de um dos wyty, importantes locais de reunião estabelecidos pelos mehĩ, travava-se de uma séria discussão, após longos dias e noites de realização da festa. Meu cansaço, após acompanhar os dias intensos de seu “arremate”, como se dizia, quase me obrigava a tirar um cochilo ali mesmo. O vento forte que refrescava aquele dia quente me encorajava ainda mais a me deixar levar por essa ideia, mas consegui resistir. Subitamente, Jonas Intep, um dos anciãos da aldeia que participava do debate, lançou-me uma pergunta desconcertante: “Ei, Cukà [meu nome mẽhĩ, recebido na aldeia Rio Vermelho], esse vento tem lugar? Fico aqui pensando. De onde vem esse vento?”. Meu sono, como que carregado pelo tal vento, dissipou-se de imediato. Contudo, a única coisa que me veio à cabeça como resposta para Jonas foi esboçar “o que os cupẽ [não-indígenas] pensavam”. Ou melhor, acabar apresentando uma versão simplificada (e, por certo, equivocada em alguma medida) de uma explicação inspirada cientificamente. Falei que os cupẽ achavam que o vento não parava de se mexer nunca, ele ia de um lugar para o outro de acordo com a mudança de temperatura (sequer mencionei a noção de pressão). Era movimento sem parar, finalizei um pouco inseguro sobre o próprio conteúdo da “explicação” que havia compartilhado, e interessado sobretudo em ouvir o que ele tinha a falar sobre o assunto. O tom curioso da resposta de Jonas não podia ter sido mais surpreendente: “Olha, mas isso aí que você está dizendo... parece alegria! Fica mexendo o tempo todo, vai e volta…”.

*

Infelizmente, em meus cadernos não há registro dos rumos que a conversa acabou tomando (talvez por conta do estado lamentável de sonolência em que me encontrava). Ainda que a experiência vivida tenha sido imediatamente marcante para mim, vide o modo como a registrei em meu caderno de campo, pode-se dizer que, de certa forma, esta pequena narrativa também se manteve, ela mesma, “adormecida” por certo tempo entre minhas anotações de campo. Minha segunda viagem de campo, com duração de quase dois meses, haviam permitido uma imersão muito maior e uma familiaridade crescente com meus anfitriões. Ainda assim, apesar do maior volume de registros, ao final

413 Eduardo Santos Gonçalves Monteiro do segundo período em campo ainda não eram evidentes os caminhos argumentativos e para organização textual de meu trabalho de pesquisa. Durante o “segundo campo” que envolve a reflexão e a escrita etnográfica, comecei a buscar alguma maneira de solucionar esse impasse analítico. Nesse sentido, alguns dos aspectos levantados pelo fragmento etnográfico acima foram cruciais para que eu pudesse deslocar minha perspectiva sobre o que havia registrado em campo. A partir de então, minha relação com o material de pesquisa coletado anteriormente e com minha experiência posterior de trabalho de campo sujeitou-se a uma inflexão decisiva, que levaria a uma reconfiguração da apreensão etnográfica e dos argumentos organizados durante o processo de escrita. Ao analisar brevemente o relato, é possível afirmar que se trata, por um lado, de verdadeiro, ainda que breve, trabalho de antropologia indígena a partir de uma descrição cupẽ de certa evidência, onde o antropólogo krahô observa, compara e aproxima analogicamente tal descrição com suas próprias categorias, tomadas por ele como auto- evidentes. Por outro lado, eu mesmo, buscando refletir e descrever este processo provocado por meu interlocutor, acabo produzindo mais uma camada de significação neste emaranhado, que envolve, justamente, perceber e explicitar textualmente quais as estratégias discursivas, marcadores descritivos e conexões estabelecidas por Jonas ao estabelecer uma comparação entre a minha e a sua explicação sobre fenômenos distintos. Afinal, nesta pequena história não há uma só palavra sobre o que pensam os mehĩ, ou ao menos Jonas Intep, sobre a origem dos ventos. O que chama atenção e surpreende é, justamente, a relação de conhecimento construída por Jonas entre minha “explicação” sobre a origem dos ventos e seus pressupostos sobre o amijkĩ. Ressalta, neste momento, o que Marilyn Strathern (1999:171) denomina “distintividade de modos de produção de conhecimento” evidenciada a partir da explicitação dos fundamentos, igualmente distintos, a partir dos quais nós e outros exercem práticas de descrição (e autodescrição). Durante o processo de pesquisa, travei contato inicial com a rica produção e debate atual sobre o conceito de teoria etnográfica. Aos poucos, pude perceber o rendimento do conceito ao tratar de categorias de semântica complexa e apreensível apenas indiretamente, como parecia ser o caso da categoria amijkĩ. Segundo Márcio Goldman (2006), a teoria etnográfica buscaria encontrar um ponto mediano que não se sobrepõe nem às “teorias nativas” nem às “teorias científicas” de pretensões universalistas. A diferença entre elas está em seus recortes,

414 Reflexões sobre escrita etnográfica escalas e programas de verdade, de modo que o objetivo central de uma teoria etnográfica seria “[...] a elaboração de modelos de compreensão de um objeto social qualquer que, mesmo produzido em e para um contexto particular, possa funcionar como matriz de inteligibilidade em e para outros contextos” (idib.: 171). Trata-se, então, de construtos analíticos que permitem alcançar certo grau de generalidade sem prescindir da certa concretude. Como disse acima, uma “aproximação frontal” da questão dos conceitos não era uma opção viável em meu contexto de pesquisa. O trabalho etnográfico que não pode contar com o domínio da língua nativa padece, com efeito, de séria dificuldade prática e metodológica, ainda mais ao tratar da explicitação do campo semântico de categorias do pensamento indígena. Neste caso, não é possível estabelecer relações qualitativas a partir do que Jakobson denomina tradução intralingual, uma “interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua” (2007: 64-65). Por um lado, restava-me abordar o tema de forma indireta, capturando, aos poucos, fragmentos, pequenos comentários, atitudes, ênfases que poderiam estabelecer conexões de sentido parciais e indiretas com a categoria amijkĩ. Por outro, tal caminho aparecia como uma possibilidade legítima de prosseguir na pesquisa:1 como diria o antropólogo Peter Gow (2015: 35):

[…] é possível empreender um projeto etnográfico de forma bastante legítima trazendo o que você pensa sobre o que uma palavra poderia significar para outra pessoa e usar este fato como uma aposta inicial. Esta aposta irá levar aonde muitas pessoas passam muito tempo debatendo sobre o significado daquela palavra, e então você percebe que é o debate que realmente importa (Tradução minha).2

Uma abordagem orientada para teoria etnográfica, segundo o comentário acima, poderia ser suscitada, então, a partir de considerações

1 Seria possível sugerir, alias, como hipótese de trabalho, a sugestão que justamente nesses contextos onde a capacidade do etnógrafo em operar traduções intraliguais está limitada, ele acaba se vendo obrigado a realizar experimentações no nível das tra- duções intersemióticas, permitindo-se, talvez, explorar um potencial de significação pouco convencional. 2 Texto original: “[…] you can set out on an ethnographic project quite legitimately by taking what you think a word might mean to another person and using that fact as an opening gambit. That opening gambit will lead you to where a lot of people spend a lot of time debating the meaning of that word, and then get you to realize that the debate is what matters” (Gow 2015: 35).

415 Eduardo Santos Gonçalves Monteiro indiretas ou enunciados de interlocutores envolvidos em determinado debate. Penso que, nesse sentido, a narrativa acima acaba por provocar certa “equivocação experimental”, por assim dizer, em torno do campo semântico da categoria amijkĩ. Este processo de equivocação, na esteira do argumento de Gow, instaura o debate a partir de pontos de partida imprecisos sobre certo assunto ou categoria, provocando uma discussão que evidencia, pelo contraste e pelo jogo de relações entre os pontos levantados, aspectos relevantes para a caracterização do objeto em questão. Assim, a partir de uma série de convergências, que envolvem o reencontro com este pequeno trecho de caderno de campo e a aproximação com o debate antropológico acerca do conceito de teoria etnográfica, foi possível percebercomo uma reflexão sobre o próprio conceito krahô de festa e alegria poderia se tornar o eixo estruturante de minha pesquisa. Penso que tal deslocamento possui fortes ressonâncias com o que Marilyn Strathern (2015) denominou imersão e momento etnográfico ao descrever a relação complexa entre os dois campos experienciados pelo antropólogo: o trabalho de campo propriamente e o momento de escrita. Nas palavras de Tânia Stolze Lima, a diferença crucial entre cada um deles implica uma abertura extraordinária para a imprevisibilidade desta relação: “cada um é uma dimensão da nossa existência, cada um tem sua trajetória e seu dinamismo próprios, e que a nós compete ligar e justapor em uma operação etnográfica aberta à surpresa e à imprevisibilidade” (Lima 2013: 21). O momento etnográfico, assim, constitui-se justamente na habitação simultânea nestes dois campos pelo etnógrafo; seus resultados potenciais derivam das conexões imprevistas ali explicitadas:

[...] O momento etnográfico é imersão mais movimento. É quando se cria uma relação de sentido — esta mola da escrita etnográfica. Rearranjando ao meu modo as palavras da autora, é o momento em que se articula o já entendido à necessidade de entender, o já analisado no momento da observação ao observado no momento da análise. Momento em que se conjugam o já apreendido no campo à demanda de apreensão que é inerente à escrita (Lima 2013: 22).

Até onde entendo o argumento de Strathern, tomar a escrita como segundo campo explicita a reflexão crítica que permitiu-me estabelecer relações entre os dados construídos em campo e as descrições tecidas por outros etnógrafos. Permitiu-me, além disso, tensionar as conexões estabelecidas, tornando esses pontos de tensão justamente

416 Reflexões sobre escrita etnográfica o eixo problematizador a partir do qual teria condições de construir textualmente minha própria descrição. Nesse sentido, a anedota também possui um interesse direto pelo conteúdo ali explicitado pelo próprio Jonas a respeito do conceito de amijkĩ: alegria e festa é movimento, é movimento incessante. Mais ainda, assim como os ventos, a alegria e festa vai e volta, alterna- se, portanto, em determinado lugar. Pensar o amijkĩ krahô como movimento permitiu uma aproximação preliminar com a complexa conexão semântica entre festa e alegria no pensamento mẽhĩ, a despeito das minhas limitações em sua língua. Percebi, então, que uma das vias para explicitar a extensão do campo semântico do termo passa pela descrição de um conjunto de atividades habituais que parecem ser muito importantes para os modos específicos de socialidade dos Timbira, e que são sensivelmente minimizadas em muitas descrições etnográficas de suas festas. Essas atividades procuram, justamente, criar “movimento” na aldeia, mesmo quando não há festa alguma acontecendo, que fazem a aldeia ficar impej - boa, bonita, certa. Penso que a descrição dessas atividades acaba contribuindo para dissolução, ao menos em certo nível de significação, duma oposição recorrentemente estabelecida, criticada, e, por vezes, silenciosamente restabelecida, entre festa e o “cotidiano” (cf. Perrone-Moisés 2015). Além disso, a importância extraordinária conferida a esta pequena narrativa no seio de minha pesquisa decorre de sua capacidade sintética. Movimentar-se é alegrar-se, diria talvez Jonas Intep. E movimento é algo buscando sem cessar pelos mẽhĩ através das mais diversas atividades, algo observado numerosas vezes em minha dissertação (Monteiro, 2019). Nas palavras de Morim de Lima (2016: 73-74), etnógrafa do povo Krahô,

O estado de alegria promovido pelas festas é a condição primordial do modo de vida Krahô, que depende de estar sempre em movimento: “não pode ficar parado, sem sair do lugar, triste, preguiçoso; tem que correr, tem que ir pro pátio cantar”, assim me aconselhavam muitas pessoas [...]. Podemos dizer que tudo na vida krahô é voltado para a produção deste estado de “amĩjkĩn”, de “alegrar-se”. E inversamente, tudo é concebido como produto deste estado. Um mehin apenas se motiva para realizar suas atividades quando se sente alegre: alimentado, forte, animado. É neste sentido que os velhos reclamam constantemente do comportamento dos jovens: apenas querem saber das coisas do branco, não se juntam, não correm, não cantam, vivem parados, preguiçosos, tristes.

417 Eduardo Santos Gonçalves Monteiro

As reconfigurações de sentido produzidas também contribuíram para o diálogo crítico com a produção bibliográfica etnológica existente a respeito dos mehĩ, o que traz aberturas para possíveis novos desdobramentos de pesquisa. Desse ponto de vista, por exemplo, tornou-se no mínimo curioso afirmações como as de Júlio Borges, outro etnógrafo que realizou pesquisa junto aos Krahô, de que “idealmente, amijkĩ deve ser o estado permanente da sociedade e do mundo e o fluir dos dias, para tanto, preenchido com festas” (Borges 2014: 25, grifos meus). Seria preciso contrastá-la, mais uma vez, com o comentário de Jonas Intep: amijkĩ, como o vento, é sempre circulante e circulador; imediatamente se descaracterizaria caso se tornasse imóvel, estado permanente de coisas e pessoas. Tanto a festa quanto a alegria não podem, portanto, durar indefinidamente. Mas, como disse acima, estes seriam caminhos abertos a explorações futuras, algumas delas iniciadas em minha dissertação de mestrado (Monteiro, 2019). Aqui, busquei apenas apresentar, ainda que de modo breve, uma reviravolta que considera crucial no processo de produção etnográfica em minha pesquisa, e algumas reflexões preliminares extraídas de uma retrospectiva crítica deste processo.

Referências Borges, Júlio. 2014. Feira Krahô de sementes tradicionais: Cosmologia, história e ritual no contexto de um projeto de segurança alimentar. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília. Coelho de Souza, Marcela. 2001. Nós, os vivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 16, N. 46. Evans-Pritchard, Evans. 1999 [1940]. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. São Paulo: Ed. Perspectiva. Goldman, Márcio. 2006. Alteridade e Experiência: Antropologia e Teo- ria Etnográfica.Etnográfica, Vol. X (I). Gow, Peter. 2015. Steps towards an ethnographic theory of acculturation. Gdańsk: Etnografia, Praktyki, Teorie, Doświadczenia n. 1 Jakobson, Roman. 2007. Linguística e Comunicação. 24ª ed. São Paulo: Cultrix.

418 Reflexões sobre escrita etnográfica

Lima, Tânia Stolze. 2013. O campo e a escrita: relações incertas. Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n. 2, pp.9-23. Magnani, José Guilherme Cantor. 2009. Etnografia como prática e expe- riência. Horizontes Antropológicos, n. 32, pp. 129-156. Matarezio Filho, Edson Tosta. 2016. Como compor a etnogafia de um ritual – Música, dança e performance na Festa da Moça Nova dos índios Ticuna. Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia. João Pessoa – PB. Maybury-Lewis, David. 1971. Akwe-Shavante Society. Claredon Press Oxford. Melatti, Júlio Cézar. 1978. Ritos de uma tribo Timbira. São Paulo, Ed. Ática. Monteiro, Eduardo S.G. 2019. Amijkin é como o vento! Notas etnográ- ficas sobre festa e alegria entre os Krahô. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade de São Paulo. Morim de Lima, Ana. 2016. “Brotou batata para mim”. Cultivo, gênero e ritual entre os Krahô (TO, Brasil). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Peirano, Mariza. 2014. Etnografia não é método. Horizontes Antropoló- gicos, n. 42, pp. 377-391. Perrone-Moisés, Beatriz. 2015. Festa e Guerra. Tese de Livre-Docência. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade de São Paulo. Strathern, Marilyn. 1999. No limite de uma certa linguagem. Mana, v. 5, n. 2, pp.157-175. _____. 2015. O efeito etnográfico. São Paulo, Cosac Naify.

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Xerente do Araguaia e a luta pelo “reconhecimento” étnico

Lilian Brandt Calçavara Fundação Nacional do Índio – FUNAI

1. A história fica Nas aldeias em Tocantínia (TO), os Akwẽ-Xerente,1 sobretudo os mais idosos, traziam ao longo da conversa a importância da memória. Valdeciano, da aldeia Salto, afirmou: “nossa história não é escrita, mas o velho conta. Quem se interessar, aprende. A história, quando a pessoa pega, não acaba nunca mais, só se a pessoa morrer. Mas se ensinar pros filhos, a história fica”. Arnaldo, da aldeia Rio Sono, também trouxe o contraponto com a história escrita: “porque o que eu sei que meu pai me passou, eu tô aqui só na cabeça, não escrevi não”. Isabel, da aldeia Zé Brito, disse que a história tem sido esquecida pelos mais jovens, “eles não botam na moringa, mas eu boto”, disse ela, apontando para a cabeça. Assim como os Akwẽ-Xerente guardam suas histórias, os Xerente do Araguaia guardam as suas. Ao longo das gerações suas histórias foram preservadas e repassadas aos mais novos, chegando até o presente com alguns detalhes impressionantes. A valorização dessas histórias e do passado que os vincula aos Xerente evidencia uma trajetória que nunca deixou de se reconhecer indígena, ainda que tenham sofrido discriminação e perdido os vínculos com seus parentes. Xerente do Araguaia é um povo formado por cinco diferentes núcleos familiares, tendo cada um sido formado a partir de uma pessoa Xerente, mulher ou homem, que veio para o Araguaia em um determinado momento. Os relatos dos Xerente do Araguaia evidenciam que, ao longo das gerações, estas famílias tinham fortes vínculos sociais, mantinham contato entre si e se apoiavam mutuamente.

1 Afim de facilitar a compreensão deste artigo, optei por utilizar o termo Akwẽ-Xerente para me referir ao povo Xerente que vive no Tocantins. Para me referir aos Xerente que vivem no Araguaia utilizarei o nome Xerente do Araguaia, conforme o grupo se identifica. Cabe destacar, no entanto, que é comum que tanto os Akwẽ-Xerente quanto os Xerente do Araguaia se identifiquem apenas com o nome Xerente.

421 Lilian Brandt Calçavara

Com o passar dos anos, muitos foram se mudando para outras regiões do Araguaia e o vínculo entre as famílias foi enfraquecendo. Hoje, as famílias estão distribuídas em pelo menos 13 municípios mato- grossenses na região do Araguaia. De acordo com informações das lideranças, o número de pertencentes à etnia Xerente do Araguaia é de aproximadamente 500 pessoas.

2. O “reconhecimento” Segundo os Xerente do Araguaia contam, ainda que distantes, crescia em diferentes famílias o desejo de serem reconhecidos como indígenas. Esta busca culminou na organização de um grupo que reuniu as famílias que tinham esta história em comum e, em 2013, constitui- se como Associação. Muitos não se conheciam, mas com uma rápida conversa descobriam os parentescos. Logo, deram entrada em documentos na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), solicitando “reconhecimento”. Entre aspas, sim, porque o pedido de reconhecimento ao Estado pode – e deve – causar estranheza. Se a pessoa se reconhece como indígena e se identifica com um grupo de pessoas que também se reconhece como indígenas e a consideram indígena, então ela é. Não existe nenhum reconhecimento da Funai, nenhum julgamento de um não indígena e nenhum critério imposto por nossa sociedade que possa ser maior do que o seu sentimento e o sentimento da coletividade a qual ela pertence. Ela pode se considerar indígena por uma questão genética, histórica e/ou cultural, mas não cabe a nenhuma instituição atribuir identidade a outra pessoa. A autodeclaração é inclusive reconhecida pelo Estado e defendida pela Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada pelo Decreto nº 5.0151 de 19 de abril de 2004. A Convenção nº 169 da OIT garante a autodeterminação dos povos e o direito de cada população indígena ou tribal escolher seus próprios caminhos para o futuro. Esse princípio consta ainda na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2008). De acordo com a Resolução Conjunta nº3, de 19/04/2012, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a etnia de indígenas pode ser lançada como sobrenome, a pedido do interessado. Os Xerente do Araguaia têm conhecimento de toda a legislação pertinente e tentam de diferentes maneiras ter este direito efetivado.

422 Xerente do Araguaia e a luta pelo “reconhecimento” étnico

Não foram poucas as vezes que as senhoras mais velhas choraram falando sobre o quanto era importante ter este documento em mãos. Este desejo não vinha delas: vinha de suas mães e suas avós, e estavam presentes também em suas filhas e suas netas. O pedido de reconhecimento levava à emissão de Registros Administrativos de Nascimento Indígena (RANI). Os RANI são conhecidos regionalmente como as “carteirinhas de índio”. Houve uma época em que a Funai fornecia de fato uma carteirinha, mas há muitos anos há somente um documento em papel A4. Mas o desejo de ter uma “carteirinha” faz com que muitos indígenas imprimam ele pequeno e plastifiquem, para ter junto aos seus documentos e “comprovar” que eles são indígenas. No entanto, o RANI não possui a finalidade de atestar identidade étnica, mas apenas ser um mecanismo de acesso ao Registro Civil de Nascimento e um instrumento de controle estatístico da população indígena pelo órgão indigenista. Justamente naquela época, foram suspensos em todo o território nacional as emissões de RANI tardio,2 ou seja, os RANI que não são feitos logo após o nascimento da pessoa. Não havia uma orientação sobre como proceder nestes casos. Após muitas idas do grupo à Brasília, suas demandas culminaram com a solicitação de uma viagem aos Akwê- Xerente. Acompanhada de três Xerente do Araguaia, partiríamos em busca de seus parentes que permaneceram no Tocantins.

3. Breve mergulho na história dos Xerente do Araguaia Os Xerente do Araguaia dispõem de um grande acervo de materiais com o histórico de cada uma das famílias: textos, vídeos, fotografias, árvores genealógicas e atas de reuniões. As histórias já registradas foram importantes à pesquisa, mas também tive a oportunidade de conversar muito com algumas lideranças, como Célia Maria Alves de Abreu (Célia Xerente), que foi escolhida para representar o grupo, Antônio Raimundo de Aquino (Antônio Xerente) e José Pereira Sousa (Zeca Xerente). São cinco famílias que se identificam como Xerente do Araguaia, conforme apontado por eles mesmos: descendentes de Tereza, de Luvirginia, de Melquides, de Joaquina e de Eva. Cada uma das famílias tem uma história diferente sobre a vinda para o Araguaia, mas em muitos relatos é mencionado o “movimento Bandeira Verde”. Alguns Xerente

2 Portaria nº 191/PRES-FUNAI, de 25/03/2015, que instituiu Grupo de Trabalho Téc- nico (GT) para revisar as normativas do RANI.

423 Lilian Brandt Calçavara do Araguaia relacionaram o movimento com o desejo de padres, outros com o desejo do governo. Mas todos concordam que o deslocamento da população para o Mato Grosso era incentivado devido à existência de matas, por isso “verde” e por ser uma região onde se teria como produzir e melhorar de vida. Conforme Vieira (2012), “Bandeira Verde” é uma referência a uma profecia atribuída ao Padre Cícero do Juazeiro. “A profecia previa a existência de um território sagrado, situado na mata, onde se viveria em paz em uma terra de abundância, que deveria ser alcançada após um percurso penitencial” (ibid.: 64). Segundo a autora, nas décadas de 50 e 60, comunidades camponesas se organizaram como movimentos sociorreligiosos no interior do Piauí, Maranhão, Tocantins, Goiás, Mato Grosso e Pará. A mudança de condição social, de passagem de um mundo para o outro, era simbolizada pela travessia dos rios Araguaia e Tocantins. Vieira (2012) menciona diversos relatos registrados por ela ou por outros pesquisadores que reafirmam a simbologia de atravessar os rios, pois o “Araguaia no final das eras vai ferver” ibid( .: 70). A vontade de contar os causos é grande, mas vai ficar para outra oportunidade. Não é objetivo deste trabalho apresentar as informações sobre as famílias dos Xerente do Araguaia. O relatório3 elaborado para a Funai conta com detalhes a história narrada previamente pelos Xerente do Araguaia e as relações que encontramos com a história lembrada pelos Akwẽ-Xerente. No entanto, não resisto a compartilhar algumas das histórias. Uma história que impressiona é a de Luvirgínia, uma criança Xerente que sobreviveu ao ataque da aldeia onde vivia. Segundo Maria Neuza Alves de Abreu conta, uma tribo de índios “brabos” roubou as únicas duas filhas de uma fazendeira chamada Maria José. Para se vingar, Maria José mandou queimar uma aldeia Akwẽ-Xerente, embora não tivessem sido eles quem roubaram suas filhas. Muitas pessoas foram mortas e as crianças que sobreviveram ao ataque foram criadas por não indígenas, entre elas, havia quatro irmãs. A irmã mais velha tinha seis anos, ficou com um irmão da fazendeira e passou a se chamar Laurinha e a de quatro anos ficou com outro irmão e passou a se chamar Raimunda. “A de dois anos, chamaram de Margarida, e como era deficiente, mataram dizendo que ela não servia”, disse Maria Neuza. E a menor, ainda bebê de colo, ficou com a fazendeira e passou a se chamar Luvirgínia.

3 O relatório, com 35 páginas, está anexado no processo da Funai nº 08620.002613/2017-42.

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Consciente do que havia ocorrido e, provavelmente, não tendo estabelecido laços afetivos com a família que a criara, não é difícil imaginar o sentimento de não pertencimento a que esta criança estiveram submetidas, vivendo com sua família não indígena. Por isso, depois de alguns anos, Luvirgínia se reaproximou dos Akwẽ-Xerente. A história segue cheia de emoções até chegar às gerações atuais. Maria Neuza, a narradora, é bisneta de Luvirgínia. Também gostaria de registrar a história de Andreza. A família dos descendentes de Melquides conta que o pai de Melquides era “Xerente legítimo”. E Melquides era pai de Andreza, nascida em 1907. Segundo seus descendentes contam, sempre que o marido de Andreza precisava viajar, a deixava sob os cuidados de dois Akwẽ-Xerente, Caboclinho e Siurim, que seriam primos dela. Eles levavam farinha e peixe a Andreza e seus filhos. Sem conhecer essa história, Maria Neuza, descendente de Luvirgínia, contou que quando era criança conheceu uma Xerente que era muito amiga de seus pais, que passava pela casa deles quando estava viajando. “Tia Andreza era muito bonita e guardo na lembrança as vezes em que ia lá em casa. Acredito que era prima de meu pai pelo grau de amizade e intimidade familiar que demonstravam”, disse. Isso evidencia que as famílias Xerente do Araguaia seguiam se relacionando mesmo após a vinda para região do Araguaia. Os laços de solidariedade, de reconhecimento e de pertencimento étnico vieram junto com cada indivíduo, ainda que cada um tenha tido sua própria trajetória.

4. Os Akwẽ-Xerente: seus nomes e seus parentes Tomarei emprestada a imagem de uma viagem de volta, trazida por Oliveira (1998: 64). Toda viagem supõe uma trajetória e uma origem. Segundo o autor, o mesmo acontece com a etnicidade. Embora Oliveira (1998) estivesse se referindo aos índios do Nordeste, o paralelo cabe bem. O autor discorre sobre os índios do Nordeste serem considerados “mestiços”. Adiante, veremos que essa ideia de “mestiçagem” e “pureza” também foi trazida pelos Akwẽ-Xerente em relação aos Xerente do Araguaia. A viagem de volta era a realização de um grande sonho. “Voltar às raízes” é um termo usado por alguns Xerente do Araguaia para falar sobre a vontade de no futuro aprender a língua Xerente para ensinar às crianças.

425 Lilian Brandt Calçavara

Foram apenas 5 dias em campo no território dos Akwẽ-Xerente, em Tocantins. Os Xerente do Araguaia que me acompanharam foram José Pereira Sousa, conhecido por Zeca Xerente, Maria da Conceição Pereira Brito e Antônio Raimundo de Aquino, que vieram representando respectivamente as famílias de descendentes de Melquides, Joaquina e Tereza. Visitamos as aldeias Funil, Salto, Porteira, Zé Brito, Baixa Funda, Rio Sono, Aldeinha, Brejo Comprido, Krité e Boa Esperança. O povo Akwẽ-Xerente é formado por 3.509 pessoas (SIASI/ SESAI 2014) que vivem no município de Tocantínia (TO). Sua língua pertence à família Jê (tronco Macro-Jê). O território Xerente está a 17 km da cidade de Tocantínia-TO e cerca de 70 km de Palmas, capital do Estado do Tocantins. Eles estão distribuídos em duas Terras Indígenas (T.I.): Xerente e Funil. Juntas, elas totalizam 183.245,902 hectares (Funai 2018). A organização do mundo para os Akwẽ-Xerente se dá em dois grandes sistemas sociais que se opõem medianamente para dar conta de oferecer equilíbrio ao cosmos. Esses elementos se refletem em toda estrutura ideológica e social. A divisão de clãs, ou partidos, marca a sociedade, conforme Schroeder (2006: 79):

[…] os Xerente gostam de dizer que tudo começou na “dividição dos clãs”. Até então não se respeitavam, eram todos iguais, não havia distinção, casavam de qualquer jeito, não havia respeito enfim. Para eles, a vida em sociedade está fundada no respeito e tem sua origem nos clãs. Em contraste com um tempo anterior, marcado pela indistinção sociológica, agora eles se pintam para se reconhecer, se distinguir e para se respeitar.

Valdeciano, na aldeia Salto, também falou sobre o respeito:

Antigamente, tinha que ser de outro partido para casar, para ter o respeito um do outro. Porque casando do mesmo clã, é irmão, daí pode bater, pode xingar, porque não tem respeito. Antigamente era bem organizado, porque não tinha escola, não tinha político, não tinha emprego, só trabalhava na roça.

Ser de um mesmo clã ou partido conecta os indivíduos ao “nós”, enquanto ser de outro clã coloca o indivíduo como diferente, o “outro”. Neste rápido contato com os Akwẽ-Xerente, sempre eles demonstravam mais interesse nos clãs que no parentesco. Assim que chegávamos nas aldeias, eles perguntavam ao grupo do Araguaia qual era o clã deles.

426 Xerente do Araguaia e a luta pelo “reconhecimento” étnico

Não perguntavam pelos nomes dos parentes, não perguntavam pelos antepassados. A questão Central sempre era o clã. Era visível a decepção dos Akwẽ-Xerente quando descobriam que o grupo do Araguaia não sabia o clã, porque essa informação era fundamental para haver alguma conexão ao “nós”. A segunda pergunta que faziam era sobre o nome indígena deles e de seus antepassados. Valdeciano afirmou prontamente “quero o nome de indígena, o nome branco não é comigo”. Dissemos que não sabíamos e ele insistiu: “e o clã? Cada clã tem um nome. Tem que dizer o nome indígena, então a gente sabe pelo menos qual é o clã”. Valdemar Soiti Xerente, da aldeia Krité, também perguntou logo: “tem nome de Xerente”? Não? Aí não tem como”. Os Akwẽ-Xerente muitas vezes diziam também que os “nomes de branco” se repetiam muito, então às vezes eles podiam conhecer alguém com o mesmo nome, mas se tratar de outra pessoa. O nome indígena, por outro lado, já traz outras informações sobre o indivíduo, inclusive o clã, o que evitaria enganos. De acordo com Sousa Filho (2006: 119), “a prática simbólica mais significativa dessa sociedade é o ritual de nominação dos indivíduos. Nesse ritual, a sociedade Xerente reativa todas as atividades que sustentam a cosmovisão secular que mantém a identidade desse povo.” Quando eu buscava informações mais precisas sobre nomes e relações de parentesco, a informação recebida era apenas de que a pessoa era “parente” ou era do mesmo clã. A resposta à minha insistência muitas vezes vinha com um genérico “primo”, “sobrinho” ou ainda parentescos diversos como quando Valdeciano disse: “Lucinda era prima-irmã do meu pai, ela é tia e mãe quase, mas é mais tia”. Em última instância, todos os Xerente se reconhecem como parentes. Valdeciano afirmou: “todos nós é primo, irmão, tio, nós somos tudo uma família só.” Foram encontradas muitas correspondências entre as histórias e as pessoas. Houve situações em que as informações dadas pelos Akwẽ- Xerente evidenciavam mais parentes em comum do que os próprios Xerente do Araguaia sabiam. Por exemplo, Aprígio era um senhor que a família de Joaquina tinha como uma das principais referências. Em campo, os Akwẽ-Xerente nos disseram que Aprígio era tio de Siurim, que era uma das principais referências da família de Melquides. A família de Tereza mencionava a lembrança de um akwẽ-Xerente chamado Procópio. Vários akwẽ conheciam a história de Procópio. Conversamos na aldeia Salto com sua neta Lucinda, uma senhora de

427 Lilian Brandt Calçavara idade bem avançada e já bem debilitada. Mas só Valdemar, da aldeia Krité, destacou que ele não era “índio puro”. Valdemar contou:

[…] pegaram ele criança, era branco, o índio pegou e casou com índia. O neto e bisneto mora aí, o Calixto. O velho meu pai contava que foi o pessoal da gente que criou. Eu perguntei “roubou?”, e ele disse “não, pegou, deixaram ele, largaram, aí os índios pegaram.

Aparentemente, o fato de ele “ser branco” não era tão importante, pois ele foi criado como Xerente. Valdemar completou: “o índio puro perguntava para o Procópio as cantigas, ele era muto sabido e trabalhador”. Em todas as aldeias Akwẽ-Xerente, bastava mencionar o caráter do trabalho, que os indígenas passavam a relatar histórias de parentes seus que saíram, muitos dos quais nunca mais se teve notícia. Entre os entrevistados, a Ilha do Bananal e o Mato Grosso foram seguidas vezes mencionados. “Nosso povo andava muito. Quem cansou de um lugar, muda”, disse Valdeciano. José Antonio, da aldeia Funil, também disse que antigamente “ia andando, fazia filho numa cidade, mais na frente fazia outro. Deixava filho pequeno na aldeia, quando voltava já tava grande. Parecia jabuti quando tá desovando. E a mãe que contava as coisas”. Isabel conclui: “tem muito Xerente pelo mundo”.

Quem é Xerente? Alguns Akwẽ-Xerente demonstraram preocupação se havia interesse dos Xerente do Araguaia em ir morar nas terra indígenas Xerente. Era preciso que os Xerente do Araguaia estivessem sempre afirmando sua territorialidade, falando que a vida de suas famílias era bem estabelecida no Araguaia. Rondon, na aldeia Baixa Funda, perguntou a todos assim que chegamos: “É pai ou mãe que é Xerente?”. Alguém respondeu “mãe”. E Rondon disse:

Eu sempre falo, eu conheço bem, dou mais atenção se o pai da pessoa é Xerente. Se não, eu não sei explicar nada. Agora tem sim parente de vocês, mas eu não aprovo que é índio. Tem Xerente, mas para mim nesse caso não comprova. Comprova se o pai for índio. Tem sim, posso falar que tem índio, mas vocês vão me desculpar, mas eu não posso fazer nada, vocês vão procurar o parente de vocês.

428 Xerente do Araguaia e a luta pelo “reconhecimento” étnico

Rondon explicou: “eu comparo que o branco quando tira o filho da barriga da índia, eu não considero que é índio, é descendente, eu considero que uma banda é índio. Mas se o pai é índio, ele é índio. Se você plantar arroz, nasce arroz”. Rondon também disse que aconteceram muitos ataques, “naqueles tempos gostavam de brigar. O índio pega filho do branco e branco pega filho do índio, mas enquanto ele não morre, ele é índio”. Segundo Rondon, ele só considera descendência na primeira geração, e seguiu:

Todo índio de nação é índio, Tupinambá... qualquer outra nação, ele é índio. Mas para comprovar os pais deles, avô, bisavô, tataravô, irmão mesmo, aí eu considero como índio. Porque índio, nativo, é tronco que tem no Brasil inteiro. Índio puro é porque meu pai e minha mãe são índios. Eu posso dizer que sou índio em qualquer lugar do Brasil.

Em outro momento, Claudio, da aldeia Salto, também explicou como se dá o reconhecimento de alguém Xerente, e disse: “nós chama a mãe de sakukrê – é só o saco, só bota no mundo, mas é o pai que dá a pintura e o nome”. Essa afirmação causou indignação entre os Xerente do Araguaia, que classificaram esse pensamento de “machista”. O critério genealógico para o “reconhecimento” étnico, que nos levou à viagem de volta, foi atendido: encontramos antepassados em comum. Por outro lado, os Akwẽ-Xerente levantaram uma série de questões sobre o que é constitutivo da pessoa Xerente. Para discorrer sobre isso, utilizo o arcabouço ideológico da “pureza” ciente das críticas às quais ele é passível pelas ciências, tanto biológicas quanto sociais. No entanto, evidencio o termo como uma categoria usada pelos Akwẽ- Xerente e pelos Xerente do Araguaia. A diferença substancial é que para um Akwẽ-Xerente, a “mestiçagem” impede que os Xerente do Araguaia sejam considerados Xerente. O fato de que em todas as famílias houve um homem não indígena na ascendência, segundo a tradição Akwẽ já os torna “mestiços”, “misturados”, “Xerente não puro”, em oposição a eles mesmos, que seriam “legítimos” e “puros”. Já para os Xerente do Araguaia, isso não afeta sua identidade indígena, muito pelo contrário. É possível que os Xerente que estavam deslocados de seus territórios tradicionais tenham modificado seu entendimento sobre o que seria ser Xerente, já que o contexto era diferente. Em meio à tanta mistura, e após tantas gerações, eles percebem como um grande êxito manter a identidade indígena viva.

429 Lilian Brandt Calçavara

Oliveira (1998: 64) afirma que “[...] o que seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade.” São pontos de vista diferentes, firmados em contextos históricos e sociais diferentes. O fato de o grupo se autoidentificar como “Xerente do Araguaia” já demonstra entendimento de que o processo histórico causou uma ruptura cultural e territorial. Até a conclusão deste artigo o grupo não havia conseguido incluir a etnia em seus nomes, e seguia em luta.

Referências Brasil. Decreto nº 5.051 de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Po- vos Indígenas e Tribais. Disponível em . Acesso em 19/01/2019. Brasil. Resolução Conjunta nº3 de 19 de abril de 2012. Dispõe sobre o assento de nascimento de indígena no Registro Civil das Pessoas Naturais. Conselho Nacional de Justiça – CNJ e do Conselho Nacio- nal do Ministério Público. Disponível em . Acesso em 19/01/2019. Brasil. Fundação Nacional do Índio/Ministério da Justiça. Índios no Brasil – Terras Indígenas. Disponível em . Acesso em 19/03/2018. Oliveira, João Pacheco de. 1998. Uma etnologia dos “índios misturados? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, vol.4, n.1, pp.47-77. ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indí- genas. 2008. Disponível em: . Acesso em 19/01/2019.

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Schroeder, Ivo. 2006. Política e parentesco nos Xerente. Tese Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo. SIASI/SESAI. 2014. Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indí- gena, Secretaria Especial de Saúde Indígena, Ministério da Saúde. Brasília, DF. Sousa Filho, S. M. de. 2006. Nomes próprios e a referenciação Xerente. Todas as Letras, vol. 8, n. 1. p. 118-125. Vieira, Maria Antonieta de Costa. 2012. Território em movimento: co- munidades camponesas da Amazônia Oriental (Missão de Maria da Praia e Romaria do Padre Cícero). Revista Pós Ciências Sociais, vol. 9, n.18, pp. 63-77.

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Sobre os Autores

Saberes entrecruzados

Prof.ª Dr.ª Águeda Aparecida da Cruz Borges Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso (1997), Mestrado (2000) e Doutorado (2013) em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente é professora Adjunto IV da Universidade Federal de Mato Grosso, Membro do Conselho Consultivo das Revistas Ecos (UNE- MAT) (1806-0331), Ícone Letras (UEG) e Guavira (UFMS), e Revisora da Revista de Administração da UEG (Aparecida de Goiás). Além de atuar na área de Linguística, tem experiência na área de Educação, com ênfase em Métodos e Técnicas de Ensino, Experiência em Formação de professores alfabetizadores e ensino de Língua Portuguesa (2ª língua) para vários povos indígenas, dentre os quais, os Tapirapé e Munduruku. Atua na área Análise de Discurso França/Brasil. Atualmente se inscreve na linha de pesquisa: Língua e processos discursivos para a inserção no projeto: A construção de um arquivo-gênero em discurso, filiado ao Pro- jeto Mulheres em Discurso (UNICAMP/IEL/CNPq). Lidera o projeto de pesquisa Arte, discurso e prática pedagógica (CNPq) e participa como pesquisadora do projeto Cartografias da linguagem (UNEMAT/CNPq).

Prof.ª Dr.ª Ana Suelly Arruda Câmara Cabral Possui graduação em Letras pela Universidade Regional do Nordeste (1974), graduação em Artes Plásticas pela Université de Paris I (Panthé- on-Sorbonne) (1978), Mestrado em Letras pela Université de Paris III- -Sorbonne-Nouvelle, 1976), Mestrado em Estética da Arte pela Univer- sité de Paris I, Panthéon-Sorbonne (1979), Doutorado em Linguística pela University of Pittsburgh, PA (1995). Realizou Estágio Pós-Doutoral em Linguística Histórica na Universidade de Brasília, sob a supervisão de Aryon Dall’Igna Rodrigues. Atualmente é professora Titular do De- partamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas do Instituto de Letras da Universidade de Brasília, onde atua na graduação e na pós- -graduação. No Instituto de Letras, atua também na qualidade de Co- ordenadora do Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas (LALLI) e como editora da Revista Brasileira de Linguística Antropológica. Tem experiência na área da Linguística, com ênfase em Línguas Indígenas,

435 Línguas e Culturas Macro-Jê atuando principalmente nos seguintes temas: descrição, linguística his- tórica, contato linguístico, dicionarização e dialetação de línguas indí- genas, ensino de línguas indígenas e formação de professores pesqui- sadores indígenas de línguas indígenas. Dedica-se principalmente aos estudos de línguas do tronco linguístico Tupí, do tronco linguístico Ma- cro-Jê, de línguas da família Aruák, e da língua Kokáma.

Dr. Andrey Nikulin É especialista em Linguística Teórica e Aplicada pela Universidade Estatal de Moscou (2015) e Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (2020). Tem experiência nas áreas de linguística teórica (com ênfase em linguística histórico-comparativa e fonologia) e aplicada, atuando principalmente nas seguintes áreas: línguas Macro-Jê, língua Chiquitana, reconstrução fonológica, linguística histórica, linguística descriti- va, fonologia areal, sintaxe diacrônica.

Prof.ª Esp. Damaris Kaninsanh Felisbino Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (2016) e especialização em Língua Portuguesa pela mesma universi- dade. Atualmente é professora do Colégio Estadual Indígena Benedito Rokag. Tem experiência na área de Letras e pesquisa na área da Socio- linguística Variacionista da língua indígena Kaingang.

Prof. Dr. Eduardo Soares Nunes É bacharel em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (2009), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (2012) e doutor pela mesma instituição (2016). É pesquisador associado ao Laboratório de Antropologias da Terra (DAN-UnB) e ao Grupo de Pesquisa-CNPq Tepahi – Terras, Paisagens, Histórias e Imagens na Amazônia (PAA-UFOPA). Etnólogo, faz pesquisa junto aos Karajá, gru-

436 Saberes entrecruzados po indígena centro-brasileiro, desde 2008, desenvolvendo temas como relações com os brancos, parentesco e pessoa, ritual e xamanismo. É professor do Bacharelado em Antropologia do Programa de Antropolo- gia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará.

Me. Eduardo Santos Gonçalves Monteiro É graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo. Mestre em Antropo- logia Social (2019) pelo Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social da Universidade de São Paulo, onde desenvolveu pesquisa etno- gráfica entre os Krahô, povo indígena localizado no estado do Tocantins e falante de língua classificada no tronco Jê, a respeito de suas festas e da rede de relações que as atravessam. Desde 2018 é Indigenista Es- pecializado na Fundação Nacional do Índio (Funai), sendo lotado na Coordenação Regional Xavante, em Barra do Garças (MT), no Serviço de Gestão Ambiental e Territorial, onde coordena atividade na área de agroecologia e gestão ambiental. Possui experiência na área de Antro- pologia (Etnologia Indígena) e na elaboração e acompanhamento de projetos junto a povos indígenas.

Prof. Me. Eliseu Waduipi Tsipré É graduado em Línguas, Artes e Literatura pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso, e Mestre em Linguística pela Universidade de Brasília (2019).

Prof.ª Dr.ª Fábia Fulni-ô Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Alagoas (2008), mestrado (2011) e doutorado em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística (UFAL). Tem experiência na área de Linguística, trabalhando com a descrição, análise e documenta- ção de línguas indígenas brasileiras, especificamente o Yaathe (Fulni-ô), que é a língua da etnia à qual pertence. Atualmente é professora Adjunto

437 Línguas e Culturas Macro-Jê

I da UFAL, Campus do Sertão. No campo da Linguística, seu interesse principal é pelos estudos em Fonologia e em Morfologia, com o objetivo de aplicar os conhecimentos adquiridos na sistematização de uma escri- ta para o Yaathe, que poderá ser usada no ensino da língua nas escolas da aldeia.

Dr. Guilherme Lavinas Jardim Falleiros Possui graduação em Ciências Sociais (1996-2000) e licenciatura (2000- 2001), ambas pela Universidade de São Paulo. Possui ainda mestrado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2003-2005). Doutor em Antropologia Social (2012) com a tese “Datsiauwedzé – Vir a ser e não ser gente no Brasil Central”, uma etnografia junto ao povo indígena Xavante. Atuou como pesquisador colaborador do Núcleo de História Indígena e Indigenismo da Universidade de São Paulo (hoje chamado Centro de Estudos Ameríndios), tendo participado do Pro- jeto Temático “Redes Ameríndias: geração e transformação de relações nas terras baixas sul-americanas” (FAPESP) (2007-2012), e de algumas atividades docentes durante o período de pós-graduação na Universi- dade de São Paulo (2003-2012). Participa como voluntário e membro do coletivo gestor do centro social Casa da Lagartixa Preta “Malagueña Salerosa” (desde 2004), onde ministrou diversos cursos. Participou do conselho gestor e como produtor da Cooperativa de Consumo Cons- ciente ABC (2013-2015).

Prof.ª Dr.ª Januacele Francisca da Costa Possui graduação em Letras pela Universidade de Pernambuco (1982), Mestrado (1994) e Doutorado (1999) pela mesma universidade. Reali- zou Estágio de Pós-Doutorado em Linguística pela Universidade Livre de Amsterdam (2004). Atualmente, é aposentada como professora As- sociada I da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), professora orien- tadora de Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras (UFAL). Tem experiência na área de Linguística, atuando na linha de pesquisa Teoria e Análise

438 Saberes entrecruzados

Linguística, dentro da qual trabalha com descrição de línguas indígenas, em todos os níveis de análise da estrutura linguística, com ênfase em Fo- nologia. Tem, ainda, interesse por Linguística Histórica (reconstrução), variação linguística e bilinguismo.

Prof. Dr. Julio Cezar Melatti Possui graduação em Geografia e História pela Universidade Católica de Petrópolis (1960), Especialização em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1962), Doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (1970) e Pós-Doutorado pela Smithsonian Institution (1987). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Etnologia Indígena. Atuando principalmente nos seguintes temas: Etnologia, Indígena, Timbira, Or- ganização social.

Me. Lilian Brandt Calçavara Bacharel em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) e Mestrado em Desenvolvimento Sus- tentável pela mesma universidade. Atua na área da Antropologia, com ênfase em patrimônio imaterial e etnodesenvolvimento junto a povos indígenas e comunidades quilombolas e tradicionais. Transita pela área ambiental, com maior conhecimento sobre o Cerrado. É praticante da agroecologia. Tem experiência com fotografia e audiovisual. Atualmen- te, é indigenista especializada na FUNAI (Fundação Nacional do Índio), na Coordenação Técnica Local de São Félix do Araguaia.

Prof. Dr. Lucivaldo Silva da Costa É licenciado em Letras (UFPA), com habilitação em língua Portuguesa e Língua Inglesa, Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Atua na área de descrição, análise e documentação das línguas indígenas brasileiras e na área de políticas linguísticas com vistas à (re)

439 Línguas e Culturas Macro-Jê vitalização e manutenção linguística. Coordenador os seguintes proje- tos: Formação de Professores, Planificação e Revitalização Linguística na Escola Mẽ Akre Kôjakati (PAPIM/UNIFESSPA-2018/2019), Descrição, Revitalização e Manutenção da Língua Gavião Kỳikatêjê da Aldeia Kô- jakati (PIBIC/FAPESPA/UNIFESSPA-2018/2019) e Formação de Pro- fessores, Planificação e Promoção do Status da Língua Xikrín no Domí- nio Escolar (PIBEX/UNIFESSPA-2019). É líder do Grupo de Pesquisa Grupo de Estudo sobre Línguas Amazônicas: Descrição, Uso e Planifica- ção (GELAMAZON). Atua como docente no Programa de Mestrado Acadêmico em Letras (POSLET) e no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar Indígena (PPGEEI), da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA).

Prof. Dr. Luis Miguel Rojas Berscia É graduado em Linguística e Literatura e licenciado em Linguística Geral, pela Pontifica Universidade Católica do Peru, com uma tese baseada em trabalho de campo com a língua Shawi, uma língua Kawa- pana falada na Amazônia peruana. Trabalhou também como docente de língua chinesa no Instituto Confúcio da mesma universidade. É Mes- tre em Linguística pela Universidade Radboud de Nijmegen nos Países Baixos, onde escreveu uma gramática da língua Selk’nam da Terra do Fogo (Argentina e Chile), e Doutor pelo Instituto Max Planck de Psico- linguística com uma tese sobre o desenvolvimento histórico e a variação sociolinguística na língua Shawi, com a qual ganhou o prêmio ANÉLA- -AVT pela melhor Tese de Doutorado em Linguística do ano de 2019. Atualmente trabalha sobre o desenvolvimento histórico das línguas do deserto ocidental da Austrália, na Universidade de Queensland. Seus interesses estão voltados para a teoria da Sintaxe desde a perspectiva da Semântica Gerativa, a Linguística Histórica e de Contato e o desenvolvi- mento do seu modelo conhecido pelo nome Flux Approach. Atualmen- te, estuda as línguas Kawapana, Shawi e Shiwilu, a língua Karib, Matipú, a língua Arawak, Yawalapíti, a língua misturada Atayal-Japonês falada em Taiwan, e a língua Pama-Nyungana Kukatja falada na Austrália.

440 Saberes entrecruzados

Prof. Dr. Marcelo Silveira Possui graduação (1993) e mestrado (1997) em Letras pela Universi- dade Estadual de Londrina e é doutor em Letras (Filologia e Língua Portuguesa: Argumentação e Retórica) pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Coordenador do Colegiado de Letras da mesma universidade. Tem experiência na área de Letras com ênfase em fonética, fonologia, mor- fologia, sintaxe, semântica, linguística descritiva, linguística indígena, história da língua portuguesa, sociolinguística, lexicologia, semiótica, teorias do texto, análise do discurso, argumentação e retórica, além de inglês e francês.

Prof.ª Dr.ª Maria Elisa Martins Ladeira Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1973), Mestrado em Antropologia Social (1982) e Doutorado em Lin- guística (2001) pela mesma Universidade. Atualmente, é vinculada ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI).

Prof. Dr. Mário André Coelho da Silva É graduado em Letras (Bacharelado em Linguística) (2012), pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-bolsista de iniciação científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob orientação da Prof.ª Dr.ª Thaïs Cristófaro Silva no período de 2008 a 2010. Possui Mes- trado em Linguística (2015) pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Filomena Spatti Sândalo e do Prof. Dr. Andrew Ira Ne- vins, e Doutorado em Estudos Linguísticos, pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob orientação do Prof. Dr. Rui Rothe-Neves, com bolsa pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). É Professor Substituto do curso de Educação Intercultural no Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Goiás (UFG), desde 2018. Os prin-

441 Línguas e Culturas Macro-Jê cipais interesses de pesquisa são: fonética, fonologia, linguística com- parativa, sociolinguística e estudo de línguas minoritárias, em especial línguas indígenas.

Prof. Dr. Maxwell Miranda Professor Adjunto II no Curso de Letras, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus Universitário do Araguaia, em Barra do Garças – MT. Possui Mestrado (2010) e Doutorado (2014) em Lin- guística pela Universidade de Brasília (UnB). Atua na linha de pesquisa Descrição, Análise e Documentação de línguas indígenas brasileiras, especialmente, aquelas filiadas à família Jê e ao tronco Macro-Jê, sobre as quais desenvolve pesquisa nas áreas de Morfologia, Sintaxe, Tipolo- gia Linguística, Gramaticalização e Linguística Histórica. É vice-coor- denador do Grupo de Pesquisa “Grupo de Estudos, Descrição e Docu- mentação de Línguas Indígenas (GEDDELI)”, na Universidade Federal de Mato Grosso, e é pesquisador vinculado ao Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas – Aryon Dall’Igna Rodrigues, da Universidade de Brasília. Atualmente, coordena o projeto de pesquisa Variação e mu- dança nas línguas faladas pelos povos timbira (família Jê): contribuições da Linguística e da Antropologia, financiado pelo CNPq, e desenvolve pesquisa sobre aspectos gramaticais e discursivo-pragmáticos do mẽhĩ jarkwa (Timbira, Jê Setentrional) falado pelo povo krahô, o qual está localizado na região nordeste do estado de Tocantins.

Mirelly Paolla Borges de Carvalho Graduanda em licenciatura plena em Letras Língua Portuguesa pela Faculdade de Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (FAEL/UNIFESSPA). Atualmente é bolsista no Projeto de Pesquisa Estudos Descritivos da Língua Kỳikatêjê, sob orientação do Prof. Dr. Lucivaldo Costa, da Faculdade de Educação do Campo, Uni- versidade do Sul e Sudeste do Pará.

442 Saberes entrecruzados

Prof.ª Esp. Quélvia Souza Tavares Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará (2010) e Habilitação em Espanhol pela Faculdade Cenecista de Senhor do Bon- fim (2014). É Especialista em Docência de Língua Espanhola pelo Ins- tituto de Pós-Graduação em Ensino Superior (INAPES). Atualmente, é Professora de Português/Espanhol no Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará.

Prof.ª Dr.ª Vanessa Rosemary Lea Possui graduação em Latin American Studies (Ciência Política e So- ciologia) pela University of Essex (1974), Mestrado em Latin American Studies (Sociologia e Antropologia) pela University of Oxford (1976), e Doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (1986). Realizou Estágio de Pós-Doutorado na Universidade de Cambridge 2000-2001, onde foi pesquisadora visi- tante no Kings College. Foi docente, de 1983 a 2014, do Departamento de Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É professora ti- tular desde novembro de 2010 e atualmente colaboradora do PPGAS. É especialista em Etnologia Indígena, pesquisando principalmente os seguintes temas: organização social, parentesco, gênero, cosmologia, ritual, mitologia, linguagem e filosofia ameríndia. Tem experiência na área de educação indígena e perícias judiciais e se interessa pela atual conjuntura política e econômica. Foi assessora e participante do curso de formação de professores bilíngues Mẽbêngôkre em Mato Grosso de 1998 a 2009.

Prof.ª Dr.ª Marcela Coelho de Souza É Professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília desde 2006, possui graduação em Ciências Sociais pela Univer- sidade de São Paulo (1985), mestrado (1992) e doutorado (2002) em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do

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Rio de Janeiro. Atua na área de Antropologia, com ênfase em Etnolo- gia Indígena, desenvolvendo pesquisa e projetos colaborativos de lon- go prazo junto ao povo Kisêdjê, da região do Xingu. Entre os temas de maior interesse, estão a teoria do parentesco e parentesco indígena, regimes de conhecimento e criatividade indígenas, patrimônio imate- rial e conhecimentos tradicionais, propriedade intelectual e, desde 2010 aproximadamente, a questão das terras e territorialidades indígenas e de outros povos tradicionais. É coordenadora do Laboratório de Antropo- logias da T/terra (TTERRA).

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