ENTRE VOZES VIAJANTES: exploração vocal no Teatro Invisível de Meredith Monk.

Versão corrigida (Versão original disponível na Biblioteca da ECA/USP)

Inés Terra Brandes

São Paulo – 2019 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Universidade de São Paulo de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Inés Terra Brandes

ENTRE VOZES VIAJANTES: exploração vocal no Teatro Invisível de Meredith Monk.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Música, Área de Concentração Processos de Criação Musical, Linha de Pesquisa Sonologia: criação e produção sonora, da Escola de Comunicações e Artes da Universida- de de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Música, sob orientação do Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa.

Banca Examinadora Prof. Dr. ______Instituição: ______Julgamento: ______Assinatura ______

Prof. Dr. ______Instituição: ______Julgamento: ______Assinatura ______

Prof. Dr. ______Instituição: ______

Julgamento: ______Assinatura ______

São Paulo – SP – 2019

3 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. AGRADECIMENTOS

Ao Garrison Institute por ter me concedido à bolsa para participar do retiro Voice as Practice com Meredith Monk. À Meredith Monk, por ter autorizado a digitalização de documentos da Biblioteca Pública de Nova York, pelo retiro em Garrison e por tudo aquilo que me fez fazer esse trabalho. À Lanny Harrison e Deborah Kavash, pela disponibilidade e confiança. À Phil Minton, à Lilian Campesato, Flora Holderbaum, Lea Taragona, Wânia Sto- rolli, Ligia Liberatori, Barbara Togander, Ute Wassermann, por terem respondido os meus formulários. Ao meu orientador Rogério Luiz Moraes Costa, por ter confiado na minha proposta de pesquisa desde o início e ter respondido com tanta tranquilidade os meus constan- tes questionamentos. À banca de qualificação: Janete El Haouli e Lilian Campesato, por terem lido o meu trabalho com tanto envolvimento e por terem apontado possibilidades para a pesquisa. À Pedro Campanha, amigo e parceiro nesse trabalho, por se dispor a diagramar a dissertação. À Beatriz Sano, pela colaboração e por me incentivar a continuar e transformar. À Julia Teles, pela cumplicidade e amizade, e pelas inúmeras parcerias do passado, presente e futuro.

Catalogação na Publicação À Lea Taragona, pela profunda amizade, agora antiga, suas vozes, e especialmente pela Serviço de Biblioteca e Documentação escrivaninha “histórica” que me acompanhou nesse processo de escrita. Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Dados inseridos pelo(a) autor(a) À Asiya Wadud, Vanessa Grecco, Bernardo Barros, por me receberam em Nova York ______e pela amizade.

Brandes, Inés Terra À Enric Llagostera, Agnes Hvizdalek, Raíza Sanctis, Daiana Carvalho e Olguinha, ENTRE VOZES VIAJANTES: Exploração vocal no Teatro Invisível Tetembua Dandara, Greg Slivar, Lucas Ogasawara, Meghie Rodrigues, Adriana de Meredith Monk / Inés Terra Brandes ; orientador, Rogério Luiz Moraes Costa. -- São Paulo, 2019. Amaral, Cadós Sanchez, Rubinha, Nina Giovelli, Larissa Ballarotti, Daniela Alves, 148 p.: il. + CD. Sol Martincic, Henrique Cartaxo, Isabel Nogueira, Maíra Martinez, Regiane Ishi, Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Música Gustavo Lemos, Valéria Bonafé, pela amizade e parceria. Às amigas de pesquisa, sons - Escola de Comunicações e Artes / Universidade de São Paulo. Bibliografia e cafés, Flora Holderbaum, Clarissa Moser, Alexandre Nakahara, Renata Oliveira e Versão original Stenio Biazon. Às parceiras de som e amigas: Nahnati Francischini, Mariana Carvalho, 1. Meredith Monk 2. Key (1971) 3. Exploração Vocal 4. Marina Mapurunga, e Bella. Composição Vocal I. Moraes Costa, Rogério Luiz II. Título. Ao projeto DISSONANTES, organizado por Natacha Maurer e Renata Roman. À CDD 21.ed. - 780 residência Campo Comum da companhia Keyzetta e cia. À CASA LÍQUIDA e à Ju- ______lia Feldens, por me acolher e pela troca. Ao LEVIATÃ, por receber a série LÍNGUA Elaborado por Sarah Lorenzon Ferreira - CRB-8/6888 FORA. À ORQUESTRA ERRANTE, pelos sons compartilhados. Às minhas alunas e alunos, porque tudo o que eu faço se encontra atravessado pela potência desses encontros. À Solange Tola, pelo apoio constante e a confiança. Aos meus pais, à Gloria, Lucas, e aos meus sobrinhos Rafi e León. À Caetano Tola, por existir e pelas incontáveis conversas que me fizeram dizer em voz alta aquilo que não conseguia colocar em palavras. 4 5 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Todas as transcrições e traduções do inglês e do espanhol para o português foram realizadas por mim especialmente para esse trabalho, quando não for descrimi- nado no texto. A diagramação desse trabalho foi realizada pelo artista Pedro Campanha e pretende facilitar a leitura, propondo uma distinção entre as palavras de Meredith Monk, as referências de outras autoras e as experiências e reflexões pessoais.

6 7 RESUMO ABSTRACT

BRANDES, I.T. ENTRE VOZES VIAJANTES: exploração vocal no Teatro Invisível de Meredith Monk. 2019. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Música. Universidade Notes on the Voice it´s an artistic statement that Meredith Monk (United de São Paulo, São Paulo, 2019. States, 1942) wrote during the first years of her career on procedures present in her vocal compositions and on her understanding of voice until then (1976). The Notes As Notas sobre a Voz são enunciados que a artista Meredith Monk (Estados Uni- present a chronology of the discoveries of the artist, and by highlighting the intersec- dos, 1942) escreve durante os primeiros anos de carreira sobre procedimentos presentes tion between different areas of knowledge (performing arts, psychology, linguistics, nas suas composições vocais e sobre o seu entendimento de voz até então (1976). As Notas philosophy), allow bibliographical unfoldings for a reflection between the artist’s initial apresentam uma cronologia de descobertas da artista, e ao evidenciar o cruzamento entre practice and other compositional works from the exploration of voices. Understand- diferentes áreas de conhecimento (artes performáticas, psicologia, linguística, filosofia), ing the Notes as an artist statement of fundamental questions, regarding the creation possibilitam desdobramentos bibliográficos para uma reflexão entre a prática inicial da processes from the vocal possibilities, I investigate the modes of vocal exploration pres- artista e outros trabalhos composicionais a partir da exploração de vozes. Entendendo as ent in the compositions of the album Key (1971), and I create dialogues between the Notas como uma declaração indicadora de questões fundamentais, no que se refere aos poetics of Monk and my experience as a vocal performer. These dialogues are possible processos de criação a partir da potência vocal, investigo os modos de exploração vocal by the artistic relevance in Monk´s Notes, and by emphasizing the transformations that presentes nas composições do disco Key (1971), e crio diálogos entre a poética de Monk the voices present during their exploration, understanding it as a compositional process. e a minha experiência como performer vocal. Esses diálogos são possíveis pela relevância In Key, Monk creates an ever-changing environment called as “Invisible Theater.” In artística das Notas de Monk, e pela ênfase nas transformações que as vozes apresentam the words of the composer: “Each song presents a vocal character, a landscape, a technical durante a sua exploração, entendendo a mesma como um processo composicional. Em concern and a different emotional quality.” As part of the dialogue with Monk’s propos- Key, Monk cria um ambiente em constante mudança que ela chama de “Teatro invisí- als, two pieces of my own are presented in the third chapter. vel”. Nas palavras da compositora: “Cada canção apresenta uma personagem vocal, uma paisagem, uma preocupação técnica e uma qualidade emocional diferente.” Como parte do Key words: Meredith Monk, Notes on the Voice, Travelling Voices, Invisible Theater, diálogo com as propostas de Monk, no terceiro capítulo são apresentadas duas peças da Key (1971). minha autoria.

Palavras chave: Meredith Monk, Notas Sobre a Voz, Vozes Viajantes, Teatro Invisível, Key (1971).

8 9 SUMÁRIO página

Introdução

Trajetória pessoal e motivações 17 As Notas sobre a Voz 23 Escolha de Key (1971) 28 Entre vozes viajantes 29 Sobre as vozes 33 Percurso do trabalho 34

Capítulo I: Meredith Monk

Apresentação 37 Key (1971) 48 Teatro Invisível, Espacialidade e Continuidade 52 Procedimentos para a exploração vocal 59 Categorias para as análises das vozes 61

Capítulo II: As Notas sobre a voz (1976) e Key (1971)

A voz como ferramenta para descobrir, ativar, lembrar, desvelar, demonstrar uma consciência pré-lógica/primordial: Porch (faixa um, 2:14) 65

Trabalhando com um companheiro: What does it mean? (faixa três, 3:58) 73

10 11 A voz como linha direta para as emoções. Todo o espectro da emoção.Sentimentos para os quais não temos palavras: Fat Stream (faixa cinco, 7:28) 77 A voz como linguagem: Visões, Vision #2 (faixa seis, 2:03) 80 A voz como manifestação do Self, Persona ou Personas: Do You Be (faixa sete, 4:12) 86 Paisagem Vocal: Change (faixa nove, 3:45) 92 A voz que dança. A voz tão flexível quanto a coluna: Dungeon (faixa dez, 6:49) 94

Capítulo III: A voz como prática

Retiro Voice as Practice – com Meredith Monk e Ellen Fisher 99 Peça I: Solo para voz desacompanhada – Una mirada desde la alcantarilla 102 A voz do corpo/o corpo da voz 117 Peça II: Paisagem Vocal – Rastros 126 Exploração Vocal 129 Técnicas Estendidas da Voz 132

Considerações Finais 137

12 13 explicar con palabras de este mundo que partió de mí un barco llevándome.

(Alejandra Pizarnik)

14 15 INTRODUÇÃO Trajetória pessoal e motivações

Em 2010 subi em um ônibus na Estação de Retiro em (a minha cidade natal) e em trinta e oito horas cheguei à rodoviária do Tietê, em São Paulo. Levava cem quilos de bagagem, mais um teclado e um violão. Após mais uma hora e meia de viagem cheguei em Campinas, onde fui recebida pelo pianista de Cosmópo- lis (SP) Felipe Siles, quem achou um lugar para eu morar no meu primeiro ano em Barão Geraldo. Estudei voz popular na Unicamp e, após o final do curso, fui morar na cidade de São Paulo. “Um fio na garganta” foi o título do meu concerto de fim de curso, orientado pela Profa. Dra. Regina Machado. Extrai o título de uma poesia da escri- tora Hilda Hilst. Na poesia, Hilst se refere a um fio de cabelo na garganta. A minha escolha foi guiada por essa imagem, e pelo fato de entender que até então esse fio era o que me movia de um lugar a outro, através de canções (em sua maioria latino – americanas) apresentadas no último concerto de graduação no auditório do Instituto de Artes da Unicamp. Naquela época, as canções eram tentativas de fazer esse fio sair, puxá-lo do fundo da garganta, inventar o eu que nasce em outro país, na idealização dos obstá- culos terem um lugar físico, na vontade de mais autonomia, mais embate e transfor- mação. Em São Paulo trabalhei no Programa Vocacional (programa de políticas pú- blicas em artes) da Secretaria de Cultura durante três anos. Essa experiência me fez voltar à cidade grande, percebendo as semelhanças com a Argentina (especialmente com Buenos Aires) enquanto país latino – americano e as caraterísticas específicas enquanto sociedade brasileira e paulistana. Orientei grupos e turmas na Casa de Cul- tura da Brasilândia, em seguida no Tendal da Lapa e no Céu Caminho do Mar. Essas experiências mantiveram a minha vontade de conhecer mais a cidade de São Paulo, reconhecendo suas bordas e muros, conhecendo artistas, músicas e interesses que pouco circulam pela academia, trabalhando com equipes constituídas por artistas de diferentes áreas. Esses encontros, com artistas vocacionadas, articuladoras culturais e artistas da dança, do teatro e da performance, me instigaram a pensar a minha prática como musicista em uma abordagem expandida, e ao mesmo tempo mais crítica em relação ao contexto onde esta é desenvolvida. Nos meus últimos anos de graduação, as práticas corporais foram uma preo-

16 17 cupação, tanto no meu currículo escolar, quanto na minha pesquisa artística. Entendi possui uma potência para a composição, independentemente das palavras e dos ins- que precisava olhar para esse eu/corpo, que continuava o mesmo, embora com uma trumentos que podem acompanhá-la. Entendi que a voz pode ser um instrumento nova perspectiva. Respondendo a esse desejo fui timidamente me aproximando da que expande o conceito de composição, ao transitar por várias linguagens e contextos, dança. Olhar para o corpo significava enfrentar algumas dores, automatismos, e as- ao envolver um conhecimento (consciente ou não) aguçado do corpo, e ao estar in- sumir algumas violências. Ao mesmo tempo significava perceber a localização desse timamente relacionada com a biografia pessoal de quem a emite. Para compor com a corpo como estrangeiro e as suas relações com esse novo contexto. voz precisamos investigá-la, permitir que ela desenhe no espaço interno e externo do Na minha chegada a São Paulo entrei em contato com vários equipamentos corpo um dizer, muitas vezes caótico e dolorido. públicos com programas de aulas de dança gratuitas e consegui criar uma formação A investigação de “outras vocalidades” já estava presente nas minhas práticas continuada com diferentes artistas da dança contemporânea, com diferentes abor- durante o trabalho com o pianista e violinista Demian Luaces em Buenos Aires, Ar- dagens, todas elas focadas na investigação de movimento a partir da improvisação, gentina. Foi quando comecei a trabalhar com música. Nessa experiência (de 2004 a porém auxiliadas por outras práticas corporais. Ao longo desses anos me familiarizei 2007) compúnhamos, arranjávamos e repensávamos continuamente a relação entre com algumas práticas como Tai Chi Chuan, Chi Kung, Seitai – Ho, Ashtanga Ioga, um piano e uma voz, sempre com a provocação e orientação do professor e pianista BMM (Body Mind Movement) e Técnica de Alexander, prática que conheci através Marcelo Katz, grande influência na minha formação musical.

da cantora Izabel Padovani no Festival de Música de Curitiba em 2008, a primeira Em seguida, no curso de composição do compositor e professor Ricardo Ca- vez que estive no Brasil. Pesquisei movimento com as artistas Key Sawao, Beatriz pellano no Conservatório Manuel de Falla, em Buenos Aires, comecei a compor a Sano, Andreia Yonashiro, Nina Giovelli, Olivia Niculitcheff, Eduardo Fukushima, partir das possibilidades da voz. O curso promovia encontros entre diferentes ins- Ivo Dimchev e Meredith Monk. trumentistas no intuito de compor a partir de uma prática semanal de improvisação Uma das minhas professoras de voz em Buenos Aires foi a cantora e fonoau- guiada por diretrizes criadas por Capellano, e de práticas de escuta de composições dióloga Elisa Viladesau com formação em Educação Funcional da voz pelo método de diferentes autoras. Paralelamente a esses encontros, era realizado um encontro Rabine Institut (Alemanha). Esse método utiliza a técnica somática Feldenkrais como mensal com o professor para acompanhar os processos composicionais individuais, base para atingir uma liberdade vocal sem esforços. Essas experiências começaram a assim como os questionamentos e as vontades geradas no processo coletivo. Em uma influenciar e a deslocar a minha prática como cantora, aprofundando nas possibilida- das experiências de escuta me foi apresentado o trabalho da artista Meredith Monk. des do corpo e abrindo o leque do meu repertório vocal. Até então conhecia outros trabalhos de cantoras contemporâneas que valorizavam A expansão desse leque significa entender a potência do corpo vocal para além sonoridades vocais para além da linguagem e que incluíam o entendido como ruído do que se entende como canto erudito ou popular, para além das línguas, antecipan- e vocalidades polifônicas nas suas práticas, mas o trabalho de Monk me chamava a do seus fonemas e vocemas, e aproveitando os resíduos da fala. “O vocema é mais atenção por algum outro motivo que ainda não conseguia decifrar. da ordem do grito e do verbo. No começo era o grito; as parteiras sempre souberam Comecei a pesquisar e escutar as suas peças, tanto as que eram exclusivamente disso, mas é bom lembrar os poetas.” (ZUMTHOR, 2005). Cada corpo vocal emite musicais, como também as peças teatrais com o seu grupo, os site-specifics, as danças inúmeras possibilidades de sons. Na sua tese “Possível Cartografia para um corpo vo- pela cidade de Nova York, e os vídeos. O fato de a artista iniciar as suas criações em cal queer em performance” (2015), Jacobs utiliza o termo corpo vocal para se referir ideias vocais me interessou imediatamente. e “à integridade psicofísica entre corpo e voz” (CAVARERO) “à presença de uma voz Apesar de Monk ser norte-americana e eu nunca ter viajado para os Estados

corporificada na realização de uma obra artística” (ZUMTHOR) Unidos até então, aquelas vozes tinham familiaridade com vozes que tinha escutado O vocema é um possível vocal. A lista de vocemas no canto andino do norte argentino, algumas vozes remetiam à cidade grande e caó- seria infinita, estamos definitivamente fora da fono- logia clássica dos linguistas, para além das delimi- tica, outras às liturgias religiosas ocidentais, como o canto gregoriano ou o canto da tações próprias das línguas naturais. (ZUMTHOR, compositora alemã do século XII Hildegard Von Bingen. Aquelas vozes reuniam mui- 2007: p. 162) tas histórias (mesmo sem envolver palavras) ampliando o imaginário a cada escuta por Ao mesmo tempo confirmei que a voz, como início do processo de criação, meio de sensações criadas a partir do som. Não se tratava de um repertório incansável

18 19 de novas sonoridades, mas de uma articulação muito pessoal entre qualidade vocal Uma abordagem feminista? e qualidade emocional, contendo uma narrativa com várias interpretações possíveis. EU ESTAVA TÃO ALIVIADA QUANDO O MOVIMENTO DAS MULHERES EMERGIU O retiro que realizei com Monk em 2017 confirmou essa teoria. Durante o PORQUE ALGUMA DAS COISAS QUE EU curso, Monk trabalhou mais na integração das vozes presentes do que na expansão do TINHA SOFRIDO NOS MEUS VINTE ANOS ME FEZ VER QUE EU NÃO ESTAVA SOZINHA repertório vocal ou na experimentação, ensinando diferentes cânones compostos pela NESSE SOFRIMENTO. QUANDO ISSO SURGIU artista, e exercícios vocais, alguns provenientes do Somatic Voice Work, método criado PERCEBI QUE O QUE EU PENSAVA QUE ERA O MEU SOFRIMENTO PRIVADO ERA, pela professora norte-americana Jeannette Lo Vetri. NA VERDADE, UM PROBLEMA PÚBLICO E POLÍTICO, No meu primeiro ano em São Paulo (2014) cursei como aluna especial a dis- (MONK, 1997: P.112)1 ciplina “Performance e Corpo: Movimento, Respiração e Voz nos processos de cria- ção”. Ainda não pensava em fazer mestrado, mas tinha a intenção de voltar a explorar aqueles aspectos da potência vocal que tinha deixado um pouco de lado na minha Perceber que as opressões individuais são consequência de legados estruturais/ graduação em música popular com foco na canção. institucionais é o primeiro passo para entender o nosso local social e a nossa realidade Além da proximidade com bibliografias vinculadas ao meu projeto, como em relação. textos de Antonin Artaud, Adriana Cavarero e Paul Zumthor, conheci de perto a Se possuo alguma agência é a que deriva do fato de pesquisa da Profa. Dra. Wânia Storolli, e experimentei nas suas aulas a prática da que sou constituída por um mundo social que não escolhi. Que a minha agência esteja cheia de parado- Respiração Vivenciada de Ilse Middendorf como suporte para o canto, prática de- xos não significa que seja possível. Significa unica- senvolvida por ela durante o doutorado. Logo, também participei do grupo LIVE mente que o paradoxo é a condição da sua possibili- dade. (BUTLER, 2006: p. 16)2 (Laboratório de Improvisação de Vozes Experimentais) durante um ano, organizado pela mesma professora. Participei também dos Seminários de Vozes Performáticas Ser mulher é uma condição social, estabelecida antes de eu existir no mundo, organizados por Storolli. antes de eu ser capaz de escutar a minha própria voz, antes mesmo de eu ganhar um Ao mesmo tempo comecei as trocas de pesquisa em mobilidade e sonoridade nome: sou mulher. As definições binárias de sexualidade carregam um peso cujo com- 1 No original: I bate leva a exaustão, por se tratar de tecnologias político-sociais ligadas ao sistema re- com a artista Marina Matheus, com quem realizei uma residência no Centro de Refe- was so relieved when rência da Dança de 2016 a 2017, criando o projeto Corvo. No marco dessa residência the women´s movement produtivo e produtivo do capital (PRECIADO, 2002). São opostos aparentes, falsos came along becau- realizamos oficinas, ensaios abertos e uma intervenção no corredor do CRDSP junto se some of the things I contrastes: tudo o que não é mulher é homem, tudo o que não é homem é mulher, had suffered from in my tudo o que não couber nessa classificação é considerado inadequado e desviante. com as artistas Daiana Carvalho, Tetembua Dandara, Renata Oliveira, Maria Basul- twenties made me see I to, Graciela Soares, Beatriz França e Olivia Nicolutcheff. was not alone in that su- ffering. When that came Entendo que a emancipação do que se entende por mulher não pode se dar in I realized that what I no âmbito do jurídico, sempre ligado aos interesses políticos do estado-nação que Paralelamente às práticas corporais, desde que eu moro em São Paulo faço thought was my private acupuntura. É também a partir dessa vivência como paciente que entendo alguns suffering was actually a reproduzem um sistema baseado em hierarquias, “graus de humanidade” e opressões public, political problem. mistérios do meu corpo e suas vozes, estabelecendo relações entre os órgãos e os esta- (MONK in MARRANCA, sociais. Nesse sistema, onde há um aparente espaço democrático para a luta pelos 2014: p.112) dos emocionais, entre um ponto e outro no próprio corpo; confirmando que emoção direitos de grupos minorizados, consegue-se criar estratégias micro–políticas de so- e fisicalidade são indivisíveis. A história das manifestações do meu corpo revela as 2 No original: Si brevivência e resistência. tengo alguna agencia es formas que a minha voz toma ao longo do meu percurso artístico. la que deriva del hecho Há muitos feminismos, mas todos eles se originam na percepção de um tipo de que soy constituida Em 2016 comecei a participar da Orquestra Errante criada pelo Prof. Dr. Rogé- por un mundo social que de opressão. Dito isso, entendo que não há umx únicx sujeitx do feminismo contem- no escogí. Que mi agen- rio Costa. Foi um espaço importante de reaproximação com a universidade, e também cia esté repleta de para- porâneo, mas uma pirâmide de opressão ligada à raça, à classe, e à intolerância dos dojas no significa que sea padrões impostos pela sexualidade binária. de experimentação da pesquisa que estava realizando individualmente. Ao conhecer imposible. Significa solo outras musicistas e pesquisadoras interessadas na experimentação, na improvisação e na que la paradoja es la con- dición de su posibilidad. composição contemporânea, me senti incentivada a escrever o meu projeto. (BUTLER, 2006: p. 16)

20 21 O lugar da mulher na música e mais ainda na academia ainda é muito con- As Notas sobre a voz trolado e restrito. Por outro lado, no âmbito da pesquisa contemporânea existe a As Notas sobre a voz são anotações que Meredith Monk realizou ao longo dos expectativa de que ao ser feminista sua pesquisa deve ou será sobre feminismo. O que primeiros anos de carreira sobre procedimentos presentes nas suas composições vocais não pode-se negar é que a partir do momento em que as opressões são percebidas toda e sobre as suas impressões sobre a voz como instrumento nos seus processos de cria- ação é pensada e questionada a partir delas. Da mesma maneira, quando percebemos ção. As Notas foram traduzidas no Brasil pelo artista e pesquisador Conrado Falbo: que reproduzimos um sistema colonizador inicia-se um processo de reformulação do mundo, da história e suas narrativas, o qual dura a vida inteira, por ser um processo Notes on the voice foi publicado originalmente na re- vista literária The Painted Bride Quarterly, no ano de de embate constante com automatismos e com regimes instaurados. 1976, juntamente com o manuscrito comentado da partitura da obra “Our lady of late” (Monk, 1976). Apesar de haver muitas pesquisadoras com trabalhos internacionalmente re- Em 1997 o texto foi republicado em uma coletânea conhecidos, ainda a maior parte dos professores universitários são homens. Quase organizada pela crítica de dança norte-americana todos os meus professores de música, na educação não formal, e logo universitários, Deborah Jowitt contendo alguns escritos de Monk, além de resenhas e artigos sobre sua obra. (FALBO, foram homens brancos, sem contar as professoras de canto/voz. Porque a voz se refere 2014: p.3). à carne, ao corpo, portanto à mulher. As Notas da artista evidenciam o cruzamento entre a música, as artes cênicas Essa realidade configurou a minha escuta e acompanha a minha formação até e visuais, a linguística, a psicologia e a filosofia. Ao mesmo tempo, ao localizar as agora. Entendo que a leitura/escuta de diferentes referências feministas, performáticas Notas nas vivências da artista, é reconhecível a influência dos princípios budistas nas e/ou teóricas, e a valorização da minha experiência como musicista e performer me suas ideias artísticas. Os conceitos apresentados nas Notas geraram desdobramentos ajudam a traçar um caminho para descobrir alguns pontos que me interessa destacar bibliográficos que foram escolhidos durante a pesquisa de acordo com aspectos levan- nesse texto. Se trata de uma escuta que ao longo do tempo vai sendo destrinchada tados em Key e na minha prática artística. As Notas sobre a voz são também partituras a partir de estranhamentos em relação às vozes hegemônicas de enunciação, vozes abertas, enunciados da prática da artista, pistas para uma criação a partir das vozes. sob as quais o meu corpo vocal foi regulado, vozes que contam a história e que me formam em um entendimento de arte específico que negligencia outras perspectivas. Tradução das Notas sobre a voz por Falbo: 1.A VOZ COMO FERRAMENTA PARA DESCOBRIR, ATIVAR, LEMBRAR, DESVELAR, DEMONSTRAR UMA CONSCIÊNCIA PRÉ-LÓGICA/ PRIMORDIAL. 2. A VOZ COMO MEIO DE TORNAR-SE, RETRATAR, CORPORIFICAR, ENCARNAR OUTRO ESPÍRITO. 3. A VOZ QUE DANÇA. A VOZ TÃO FLEXÍVEL QUANTO A COLUNA. 4. A VOZ COMO LINHA DIRETA PARA 3 Há uma discre- AS EMOÇÕES. TODO O ESPECTRO DA pância nas duas versões publicadas do texto: EMOÇÃO. SENTIMENTOS PARA OS a publicação de 1976 QUAIS NÃO TEMOS PALAVRAS. traz apenas a palavra 3 “landscape”, enquanto 5. A PAISAGEM VOCAL. na republicação de 1995 pode-se ler o termo 6. O CORPO DA VOZ / A VOZ DO CORPO. “vocal landscape”. Optei pela segunda versão por 7. A VOZ COMO MANIFESTAÇÃO DO ser mais reveladora do SELF, PERSONA OU PERSONAS. caráter do texto. (FAL- BO, 2014: p. 3)

22 23 8. TRABALHANDO COM UM COMPANHEIRO (O INSTRUMENTO (AFINAÇÃO, VOLUME, VELOCIDADE, ACOMPANHANTE: ÓRGÃO, PIANO, TAÇA TEXTURA, TIMBRE, RESPIRAÇÃO, ETC.): PADRÕES OU RUÍDO CONTÍNUO COLOCAÇÃO, FORÇA); A VOZ COMO CRIANDO UM TAPETE, UMA TAPEÇARIA VEÍCULO DE UMA JORNADA PSÍQUICA. DE SOM PARA QUE A VOZ POSSA AGORA –1974, VOZ SOLO COM PIANO CORRER SOBRE, VOAR POR CIMA, (ACÚSTICO) (ANTHOLOGY), A VOZ DESLIZAR POR BAIXO, PRENDER-SE E DA MANHÃ, A VOZ SUAVIZANDO ENTRELAÇAR-SE. ENQUANTO O SOL LEVANTA, A VOZ DERRETENDO E REFORMANDO-SE 9. A VOZ COMO LINGUAGEM. MUITAS VEZES EM UMA CANÇÃO; A 10. INÍCIO – 1967, DUETO DE VOZ SOLO VOZ COMO MENSAGEIRA OU SIBILA; A COM ECHOPLEX REVERBERATION MENSAGEIRA DA ALMA. UNIT4 (BLUEPRINT), A VOZ LIVRE COMO 1975, SOLO PARA VOZ IMPULSO ELÉTRICO. 1968, VOZ (VOZES) DESACOMPANHADA (SONGS FROM E VIOLINO, BERIMBAU DE BOCA (JUICE), THE HILL), A VOZ COMO REFLEXO, A VOZ CRUA (RÚSTICA5, LAMENTOSA, ESPELHO, RECEPTOR DA NATUREZA; PRIMITIVA, AUDACIOSA), CÂNTICOS VOZES DE ANIMAIS, PLANTAS, REPETIDOS; A VOZ COMO INDICATIVO INSETOS; SINAIS, CHAMADOS, DE PERSONALIDADE – A MULHER DA HIERÓGLIFOS; UMA OFERENDA À MONTANHA VERMELHA, COMO ELA NATUREZA; A VOZ, TOTALMENTE SOA? CONTINUANDO – 1970, VOZ SOLO SOZINHA, DESACOMPANHADA, SEM COM ÓRGÃO ELÉTRICO (RAW RECITAL, ORNAMENTOS. KEY: AN ALBUM OF INVISIBLE THEATRE), 1975-6, ÓPERA (QUARRY7), 30 VOZES, A VOZ VIAJANTE (MOVENDO-SE POR CANÇÕES DE TODOS OS POVOS – PAISAGENS DE SONHO). 1971, ÓPERA ACALANTO, MARCHAS, RÉQUIEM ÉPICA (VESSEL), A VOZ DE DEUS (ALTA6, OU LAMENTO, HINOS, CANÇÕES DE TRANSPARENTE, CONTUNDENTE), AMOR, CANÇÕES DE TRABALHO; UM TELÉGRAFO CÓSMICO; A VOZ COMO MEMORIAL; CANONS OU SÉRIES DE 8 FENÔMENO SOBRENATURAL – AS VOZES 4 Dispositivo que E 16 PARTES FORMANDO UM CÍRCULO DE SANTA JOANA, COMO ELAS SOAM? produz efeito de rever- INVISÍVEL NO AR; VOZES DE HOMENS E beração (eco), tornado MULHERES CIRCULANDO, PAIRANDO, 1972-3, ÓPERA (EDUCATION OF THE célebre por sua ampla DESLIZANDO, GOLPEANDO; VOZES GIRLCHILD) A VOZ DE UM SER HUMANO utilização entre músicos COMO UMA ONDA DE ENERGIA, UMA norte-americanos a par- DE 80 ANOS, A VOZ DE UM SER HUMANO LAVAGEM, UMA CURA. (MONK, 2013: P.3)8 DE 800 ANOS, A VOZ DE UM SER tir da década de 1960. (FALBO, 2014: p. 3) HUMANO DE 8 ANOS; RAÍZES CELTAS, MAIAS, INCAS, HEBRAICAS, ATLANTES, 5 No original: Algumas considerações sobre a tradução e sobre as Notas ÁRABES, ESLAVAS, TIBETANAS; A VOZ “1968, voice (voices) and sobre a voz DO ORÁCULO, A VOZ DA MEMÓRIA. violin, Jew´s harp (Jui- ce), the raw voice (rou- 1972-3, DUETO DE VOZ SOLO COM gh, plaintive, primitive, 1) A palavra rough é utilizada no inglês também para se referir a um aspecto TAÇA (TAÇA DE VINHO CHEIA brash), repeated chants; D’ÁGUA), (OUR LADY OF LATE), A VOZ the voice as an indica- tátil. Portanto, eu traduziria a mesma como áspera, como alternativa para a palavra NUA, A VOZ FEMININA EM TODOS tion of character – the 7 INÉS: O vídeo escolhida (rústica). Embora se trate de um adjetivo que envolve o tato, na arte con- red mountain woman, OS SEUS ASPECTOS; GRADAÇÕES original do lançamento how does she sound? dessa ópera foi restau- temporânea, o empréstimo de termos entre as linguagens e sentidos é muito usual – DE SENTIMENTO, NUANCE, RITMO, (MONK in JOWITT, rado e relançado no dia QUALIDADE; A CADA SEÇÃO UMA 1997: p. 57) 20/5/2019 na cidade de nesse caso, como um modo de evidenciar a materialidade do som e a dificuldade de OUTRA VOZ (PERSONAGEM, PERSONA), Nova York. defini-lo, entendendo que os sentidos da percepção encontram-se entrelaçados. Há A CADA SEÇÃO UM PROBLEMA 6 Optei por tra- duzir “high” como “alta”, 8 INÉS: Tradu- muitos destes termos no âmbito musical, como as categorizações do tempo em estria- MUSICAL, UMA ÁREA DE INVESTIGAÇÃO em uma tentativa de ção de Conrado Falbo ESPECÍFICA; TODO O ÂMBITO DA VOZ preservar a polissemia (2014) do texto Notes on do e liso empregadas inicialmente pelo compositor Pierre Boulez (1925-2016), ou o do adjetivo, que pode the Voice (MONK, 1997: termo textura, do qual faço uso para falar em “tapete textural”, ao me referir às bases ser lido também como p. 56), republicado no “aguda”. (FALBO, 2014: livro Meredith Monk de instrumentais e às paisagens sonoras apresentadas por Monk para explorar a voz. Ao p. 3) Deborah Jowitt.

24 25 mesmo tempo rough pode se referir ao comportamento de alguém, pode se referir a Arkhé”. Segundo a autora: uma voz incisiva. usada pelo autor Muniz Sodré para designar as cul- turas que cultuam a própria vivência; que se fundam O conceito de textura adquire diferentes significados no âmbito da música na experiência presente entendida não só como he- contemporânea. Em sua pesquisa Textura Musical: Forma e Metáfora (2007), o pes- rança mas como continuidade das origens, do “eter- quisador Caio Neto indica três assimilações mais usuais na teoria musical: no impulso inaugural”, da ancestralidade. (BARBO- SA, 2015: p. 6)

• Tecido aparece em alguns comentários sobre música, e refere-se ao arranjo das partes de um trecho de música: Em seus estudos da voz, Meredith Monk não menciona uma pesquisa etno- “Esse efeito, da composição de um tecido musical, já foi chamado, apropriadamente, de uma “tapeçaria de gráfica das vozes, a partir da escuta de cantos de diferentes contextos, mas uma inves- sons” (PISTON, 411: p. 1984). tigação das possibilidades do próprio corpo vocal. Segundo ela, essa busca possibilita • Encadeamento e ligação são termos técnicos bastante o encontro com diferentes culturas, através de uma espécie de arqueologia da voz. Ao utilizados em música, com o sentido muito preciso de sucessão. falar de “voz primitiva”, Monk se refere a uma voz pre linguagem, e ao mesmo tempo • Seu uso na cristalografia, e na Geologia em geral, à voz como linguagem, mesmo quando há palavras na expressão vocal, reconhecendo pode ter sido a fonte, a partir do século XX, de certo tipo de terminologia, tal como densidade, massa, peso, duas linguagens simultâneas. relevo, e outros semelhantes. (NETO, 2007: p. 7)

2) A categorização de uma voz como primitiva sugere que as vozes remetem às vozes de povos originários, vozes ancestrais. De algum modo, a escolha dessa palavra se encontra ligada ao que na antropologia é chamado de primitivismo. Na introdução do seu livro Índios no Brasil (1998), Manuela Carneiro da Cunha menciona “a ilu- são do primitivismo” como uma das armadilhas que geram lacunas epistemológicas, apontando a importância de estudos sobre os povos indígenas como sociedades do presente. Segundo ela:

Na segunda metade do século XIX, essa época de triunfo do evolucionismo, prosperou a ideia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evo- lução, e que eram portanto algo como fósseis vivos que testemunhavam o passado das sociedade oci- dentais. Foi quando as sociedades sem Estado se tor- naram, na teoria ocidental, sociedades “primitivas”, condenadas a uma eterna infância.” (CARNEIRO CUNHA, 1998: p. 11)

Além de considerar as sociedades sem estado como sociedades do presente, projetar a continuidade e suas respectivas formas no futuro é necessário, tanto para sociedades sem estado como para sociedades por ele marginalizadas. Na sua pesquisa “O canto ancestral negro: resistência e protagonismo feminino na cultura negro– brasileira”, a pesquisadora Marília Rosa Barbosa apresenta a expressão “Culturas do

26 27 A escolha de Key (1971) Entre vozes viajantes

Em Key, Monk cria um ambiente em constante mudança que ela chama de A escolha do disco Key (1971) foi determinada pelo meu interesse nas compo- Teatro Invisível: sições iniciais de Meredith Monk, ao perceber que nessa etapa a artista se encontrava

em um processo de experimentação para a criação do repertório vocal que logo estaria PENSEI NISSO COMO TEATRO INVISÍVEL, presente em seus futuros trabalhos. Isso se relaciona com a potência da prática de PORQUE A MÚSICA PARECIA SAIR quem compõe e ao mesmo tempo performa, tendo que olhar para o próprio trabalho DA ESCURIDÃO E DO SILÊNCIO – A VOZ TRANSFORMANDO–SE DE UMA por diferentes ângulos: o planejamento, a experimentação, e a crítica da própria per- PERSONAGEM PARA OUTRA, INDO DE formance como atividades que se retroalimentam. Nessa pesquisa, onde descubro o UM ESPAÇO PARA OUTRO, VIAJANDO DE conteúdo da mesma a partir da escuta da performance e através da mesma, performar UM NÍVEL DE INTENSIDADE PARA OUTRO. (MONK, 1995) 9 e escrever tornam-se praticas que se tensionam e complementam constantemente. A escolha do disco coloca a atenção em um trabalho discográfico que foi pensado de forma contínua e interligada, assim como acontece em Key, álbum definido por Vozes viajantes é uma tradução para Travelling voices, modo em que Monk Monk como Teatro Invisível. se refere às vozes em Key. O que conduz as escolhas composicionais de Monk são os A poética que a artista propõe nesse primeiro trabalho (1971) e no texto No- caminhos da voz ao longo do disco, tanto nas composições inteiramente vocais como tas sobre a voz (1976) mostra que o corpo vocal é o que dá início aos seus processos de nas que possuem acompanhamento. Os instrumentos criam o que a artista chama de criação. Nas Notas, Monk entende a voz como parte do movimento do corpo e como “tapete textural para a voz viajar livremente.” Entende-se que essa liberdade é deter- um modo de habitar outros corpos e espíritos. Esse entendimento gera perguntas ins- minada pelo acompanhamento que condiciona a qualidade das vozes, influenciando tigantes para essa pesquisa, como por exemplo: Qual é a qualidade emocional dessa nas escolhas melódicas, rítmicas e harmônicas das mesmas. peça, considerando que são reconhecíveis diversas qualidades vocais? Considerando que a escuta realizada não é ao vivo, mas a partir de uma gravação, como refletir sobre VOCÊ QUER APRENDER A SUA VIDA INTEIRA. EU as transformações de um corpo que recriamos a partir da voz? Que corpos estão sendo AMO ISSO, DOLORIDO E TORTUOSO COMO É. É O QUE 10 criados e abandonados durante a peça? Qual é a relação entre vozes e espiritualidade ME FAZ CONTINUAR. (MONK, 2014: P.124) no trabalho de Meredith Monk? 9 No original: I thought of it as “Invisib- Uma rede de desejos vai sendo revelada ao longo da pesquisa; um diálogo le theater” because the entre os depoimentos de Meredith Monk que recolho, o disco Key como exemplo music seemed to come out of and go into dark- dos trabalhos iniciais da artista, e a minha experiência como musicista e performer. Se ness and silence – the voice transforming from trata de uma conversa por mim elaborada, mediada por algumas teorias e presenças one character to another, musicais e performativas; vozes que hoje reverberam no meu trabalho, e a prática da going from one space to another, travelling from exploração vocal como uma “usina” de pesquisa. one level of intensity to another.” (Meredith Para escrever sobre a poética de vozes no primeiro disco de Monk foram con- Monk, notas do álbum Key, 1995) sideradas também as composições de imagens e sons iniciais da artista e foi realiza- 10 You want to da uma pesquisa dos seus textos, junto aos possíveis desdobramentos bibliográficos: learn your whole life. I love that, as painful and sobre exploração vocal, sobre composição, sobre o corpo vocal e as emoções, sobre a tortuous as it is. It is the filosofia da expressão vocal. thing that keeps me go- ing. (MONK in MARRAN- CA: 2014: p. 124)

28 29 Paralelamente foi feita uma pesquisa a partir da minha experiência vocal dia- precisa e articulada. Sua experimentação com co- logando com os procedimentos apresentados por Monk em Key, e com As Notas reografia aleatória afetou o aspecto de seu trabalho de várias maneiras: decentralizou o espaço, criou sobre a voz. Essa experiência não foi realizada exclusivamente para esse trabalho, mas combinações inesperadas e engenhosas de partes do tem sido construída ao longo dos anos na minha pesquisa artística. Apresento nesse corpo em combinações de movimentos, e descen- tralizou o tempo em dança no sentido de que não trabalho duas peças da minha autoria. Estas peças não são exclusivamente composi- havia clímax ou desenvolvimentos lógicos. (BANES, ções musicais apresentadas em áudio, mas peças onde o dança e/ou o vídeo podem 13 American mod- 1983: p. 16)13 11 Just as film, fazer parte do processo de criação, ou tornar-se um e outro ao longo dos anos. Isto se ern dance, since its be- music, movement and ginning at the turn of No trabalho de Monk, a percepção das inúmeras possibilidades do som vocal deve ao meu interesse em trabalhar sobre diferentes abordagens e materialidades, e em theater are intertwined this century, has been a within one work, Monk series of avant-gardes. se relaciona diretamente com as práticas corporais, na medida em que se entende a ressaltar como Monk realiza passagens e traduções de uma linguagem para a outra em often changes the prin- Each generation called cipal form in which the voz também como parte do movimento e como uma força que ocupa e gera espaços, uma mesma obra. Schloss (1996) discorre sobre essa questão em sua pesquisa Out of for a new set of subjects, “same” work exists. Book a new dance technique, na medida em que o movimento do corpo é também contemplado, nem sempre the twentieth century: three composers, three musics, one femininity: of Days, for example, a new relationship to was a musical work, a musical, literary, visual, previamente coreografado ou em evidência, mas disponível para o jogo e os desdobra- Assim como o cinema, a música, o movimento e theatrical performance, and theatrical arts. By mentos da musicalidade e expressividade da performance vocal. o teatro estão interligados em um trabalho, Monk and finally a film; Turtle the late 1950s, a number muda frequentemente a forma principal em que o Dreams was first a thea- of choreographers were ter piece, which included “mesmo” trabalho existe. Book of Days, por exem- considered more radical a short film, and in 1983 than the dominant mod- EU NÃO ERA TÃO COORDENADA COMO plo, foi uma obra musical, uma performance teatral was recreated as a 27 mi- ern dance choreogra- e, finalmente, um filme; Turtle Dreams foi a primei- nute video. (SCHLOSS, phers and teachers, such UMA BAILARINA QUANDO ERA PEQUE- ra peça de teatro, que incluiu um curta-metragem, 1993: p. 11) as Martha Graham, José NA, E ESTAR EM CONTATO COM DANÇA Timón, Tamiris, and Ha- ME SALVOU. O QUE EU TERIA FEITO SE EU e em 1983 foi recriada como um vídeo de 27 minu- 12 No meu modo 11 nya Holm. Merce Cun- NÃO TIVESSE TIDO O MOVIMENTO NA tos. (SCHLOSS, 1993: p. 11) de ver, a educação musi- ningham, who had been MINHA VIDA? TIVE QUE ACHAR O MEU cal deveria basear-se por a soloist in Martha Gra- completo na audição, ham´s company, com- PRÓPRIO MODO DE ME MOVER. (MONK, ou em todo caso na bined the flexible spine 2014: P. 34)14 Mesmo nesse período em que Monk apresentava em galerias algumas músicas percepção do fenômeno used in modern dance que fariam parte do disco Key (1971) em forma de concerto solo de voz e órgão elé- musical – mediante o with the crisp footwork Como cantora, desde que me aproximei da dança, a minha escuta foi modi- ouvido que se acostuma of classical ballet in a trico, denominado Raw Recital, a artista montava cenários, vestia figurinos, e realizava a captar as relações technique that was pre- ficada. Comecei a perceber as vozes de outra forma, transformando a minha perfor- entre notas, tonalidades cise and articulate. His algumas danças entre as peças musicais como parte de uma única partitura. e os acordes e o corpo experimentation with mance vocal e a minha atuação como professora, focando em uma escuta interna, inteiro, por meio de chance in choreogra- explorando nuances a partir do movimento, da percepção de micro-movimentos da Desde o começo dos estudos de Monk, a prática musical e especificamente exercícios especiais, phy affected the look of vocal se encontra entrelaçada na pesquisa de movimento, inicialmente pela prática iniciando-se na aprecia- his work in a number of respiração, do mapeamento constante dos articuladores da voz e da ação muscular ção da rítmica, a [sic; ways: It decentralized Dalcroze12, logo a influência da dança moderna e ao mesmo tempo da convivência da] dinâmica e os [sic; space, created unex- no corpo em cada emissão. Não se trata só de um ganho na percepção, a partir da dos] coloridos agógicos pected and often witty consciência de como esses sons são produzidos, mas de uma escuta da voz a partir de com o Judson Dance Theater e outros grupos e artistas. da música. (DALCROZE, combinations of body 1926 apud RODRIGUES, parts in movement, and uma aceitação da mutabilidade do corpo. Entender a partir da experiência do corpo, A dança moderna americana, desde o seu início no [s.d.], p. 2). O princípio decentralized time in the início deste século, tem sido uma série de vanguar- básico do processo de dance in the sense that as possibilidades de ação da voz, e descobrir de que maneira a voz é capaz de criar das. Cada geração solicitou um novo conjunto de educação musical de there were no logical cli- outros corpos. A exploração vocal é uma experiência de descoberta do prazer que temas, uma nova técnica de dança, uma nova rela- Dalcroze é sentir, viver, maxes or developments. analisar e intelectualizar, (BANES, 1983: p. 16) novas emissões vocais possibilitam. Esse prazer se manifesta em termos de sensações ção com as artes musicais, literárias, visuais e tea- tomando como ponto de trais. Na década de 1950, vários coreógrafos foram partida a relação entre 14 No original: I físicas de ressonância e de movimento, e como um campo imaginário, a partir do qual considerados mais radicais do que os coreógrafos movimentação corporal was not that coordina- passado, presente e futuro tornam-se camadas da experiência. dominantes e professores de dança moderna, como e ritmo. Dessa forma, ted as a mover as a little Martha Graham e Jose Timon, Thamyris e Hanya em seu método a prática child, and being invol- musical antecede ao ved with dance saved Esses outros corpos são entendidos por Monk em Key (1971) como persona- Holm. Merce Cunningham, que tinha sido solis- aprendizado da teoria, me. What would I have gens. Nas Notas sobre a voz (1976) a artista menciona também os conceitos de self e ta na companhia de Martha Graham, combinou a da mesma forma como done if I did not have the coluna flexível utilizada na dança moderna com o uma criança aprende a movement in my life? I persona. Em Vocal Gestures (2003), Monk fala do trânsito pelas diferentes qualidades trabalho de pés do ballet clássico em uma técnica língua materna: primei- had to find my own way ro a fala e depois seus with movement. (MONK símbolos. (FERNANDES, in MARRANCA, 2014: p. 2010, p. 6) 34)

30 31 vocais como uma maneira de habitar outros gêneros, sexos e idades. Sobre as vozes

Em Key as vozes se apresentam valorizando a dimensão espacial das peças; as Para descrever as vozes nas suas diferentes características materiais parto da vozes esbarram criando uma narrativa em diálogo com o órgão elétrico, com o mri- minha experiência como aluna e professora em diferentes âmbitos do ensino de voz, dingam e com a paisagem sonora. no Brasil e na Argentina, e considero algumas nomenclaturas e reflexões que as pes- O trabalho de Monk funciona como um ponto de partida para pensar a voz quisadoras e professoras Regina Machado (2007) e Joana Mariz (2013) apresentam que se escreve a si mesma durante sua exploração. A prática da exploração vocal pos- nos seus trabalhos acadêmicos. Embora estas pesquisas estejam focadas em aborda- sibilita a investigação de sonoridades da voz; a criação de vocalidades a partir de rela- gens vocais do canto erudito e popular, considero relevantes esses trabalhos; o primei- ções com outros instrumentos, texturas e paisagens sonoras; a prática vocal ligada ao ro por trazer categorias de análise, como as dimensões técnica e física, e o segundo por desejo do corpo e a uma escuta profunda. se tratar de um estudo focado nas terminologias utilizadas por profissionais da voz no Brasil, e por ter sido escrito por uma cantora/fonoaudióloga/professora que possui ex- A compositora norte-americana Pauline Oliveiros (1932-2016) entende a es- periência com o Somatic Voice Work (Lo Vetri), técnica estudada por Meredith Monk cuta profunda como uma escuta atenta, ativa e voluntária. A escuta profunda é uma durante alguns anos nos Estados Unidos. prática que se destina a aumentar e expandir a consciência do som em tantas dimen- sões de consciência e dinâmica de atenção quanto humanamente possível. (OLIVEI- Sobre questões técnicas referentes a outros usos da voz recorro às pesquisas ROS, 2005: p.23). Monk e Oliveiros possuem um entendimento de escuta similar, “21 Century Voice” (2004) de Michael Edward Edgerton, “When words are not enou- considerando que as duas compositoras concebem a prática artística vinculada à prá- gh” (2008) de Melanie Austin Crump e ao artigo sobre técnicas estendidas da voz de tica espiritual e à meditação, e à ligação entre som e emoção. Deborah Kavash (1980). Ao longo do estudo sobre os trajetos das vozes faço uso tam- bém de símbolos fonéticos. Contudo, não desejo afirmar a voz como uma substância da linguagem ou mesmo reduzi-la à matéria significante, mas fazer uso de uma ferra- menta gráfica a partir da qual podem-se reconhecer certos sons que são estudados pela linguística, podendo a partir desse conhecimento isolar sonoridades, prolongá-las, de- formá-las, mesmo quando não se possui o domínio verbal de uma língua específica.15

15 INÉS: http:// www.ipachart.com/ Nesse site é possível visualizar os símbolos fonéticos e escutar seus respectivos sons.

32 33 Percurso do trabalho corpo da voz) de Meredith Monk para iniciar uma reflexão sobre a investigação de vocalidades desde uma perspectiva crítica à formação vocal tradicional atrelada à ins- Esse trabalho possui três capítulos. No primeiro capítulo realizo uma apre- crição sexo/gênero, por meio das pesquisas de JACOBS (2015), PRECIADO (2002), sentação da obra de Meredith Monk e dos aspectos da mesma que abordarei mais de EL HAOULI (1993) e outras. Para essa reflexão apresento também depoimentos de perto. Discorro também sobre o contexto em que Key (1971) foi gravado e lançado, artistas de vários contextos artísticos e nacionalidades, artistas que trabalham com e sobre algumas questões técnicas e filosóficas de Key, no que se refere ao Teatro Invi- a exploração da voz nos processos de criação. No final do capítulo discorro sobre a sível, à espacialidade e à continuidade apresentada no disco. Em seguida, distingo os prática de exploração vocal como processo da performer criadora e sobre o conceito modos de exploração vocal de Monk, separando as peças em procedimentos, alguns de técnicas estendidas da voz desde uma perspectiva histórica. anteriormente nomeados pela artista, e outros organizados por mim durante a pes- quisa.

No segundo capítulo relaciono cada uma das faixas escolhidas com uma das Notas sobre a voz para refletir sobre as mesmas. No total são apresentadas as seguintes sete faixas: Porch (faixa um), What does it mean? (faixa três), Fat Stream (faixa cinco), Vision (faixa seis), Do You Be (faixa sete), Change (faixa nove) e Dungeon (faixa dez). Nesta seção do texto apresento depoimentos de Meredith Monk e da artista Lanny Harrison sobre o próprio trabalho, referências ligadas à prática de Monk, como o Budismo Zen, e referências bibliográficas que auxiliam na reflexão que as Notas suge- rem, como textos de Adriana Cavarero, Antonin Artaud, Paul Zumthor, Leda Valla- dares, Mladen Dolar, Laura Beatriz Backes, Meran Vargens e outras autoras. Esta parte do trabalho combina análises técnicas das vozes apresentadas, sensações pessoais a partir da escuta de cada peça, desdobramentos bibliográficos a partir do enunciado escolhido para cada peça e depoimentos de Meredith Monk.

No terceiro capítulo realizo um breve relato da minha experiência no curso Voice as Practice (2017), conduzido por Meredith Monk e Ellen Fischer, e exponho duas peças criadas em diálogo com os procedimentos previamente apresentados no trabalho de Monk, ressaltando as diferentes abordagens e as reflexões sobre as expe- riências realizadas. A primeira peça surge da minha relação com a poesia Una mirada desde la alcantarilla da escritora argentina Alejandra Pizarnik (Buenos Aires, 1936 – 1972), publicada no livro “El árbol de Diana” em 1962. A peça foi se transformando ao longo do mestrado, tomando diferentes formas; no trabalho vocal, na pesquisa de movimento, na investigação das possibilidades em um formato audiovisual, entre outras. Essa peça foi apresentada e adaptada para contextos muito diferentes, como o Centro de Referência da Dança de São Paulo (2018), a Universidade Federal do Sul da Bahia (2018), a sala Eden´s Expressway (2018) no marco do evento Open Per- formance, e o Judson Church (2019) em Nova York. A segunda peça se refere a ideia de Monk de “Paisagem Vocal”, apresentando um contraponto de vozes com motivos repetitivos que vão transformando a sua sonoridade, assim como a artista realiza em Change (faixa nove). Neste capítulo utilizo uma das Notas da Voz (A voz do corpo/o

34 35 Apresentação

A TRADIÇÃO EUROPEIA ERA A ÚNICA QUE SEPARAVA ESSES ELEMENTOS, ENTÃO CANTORES CANTAM, ATORES ATUAM, BAILARINAS DANÇAM. EU SENTI QUE ERA TAMBÉM UMA FORMA DE CURA DA FRAGMENTAÇÃO DA NOSSA SOCIEDADE, A MANEIRA EM QUE JUNTAVAMOS ESSES ELEMENTOS E CRIAVAMOS UMA FORMA INTEIRA, ESTAVAMOS AFIRMANDO NÃO SÓ A RIQUEZA DA PERFORMANCE MAS TAMBÉM A RIQUEZA DO PÚBLICO (MONK, 2017)16

No intuito de desenvolver um repertório vocal que seja tão flexível quanto as articulações do corpo, Meredith Monk investiga vocalidades criando discos, óperas, CAPÍTULO I danças, obras site-specifics e produções áudio – visuais. Esta flexibilidade da voz trans- cende a linguagem verbal, valorizando a voz como um meio potente para a descoberta de um amplo leque de sonoridades e como início do processo de criação. Meredith Monk Propondo uma distinção entre oralidade e voca- lidade, Paul Zumthor define “oralidade o funcio- namento da voz como portadora da linguagem”, e vocalidade o conjunto das atividades e dos valores da voz que lhe são próprios, independentemente da linguagem”. (CAVARERO, 2011: p.27)

Monk evidencia as qualidades simbólicas do som, entendendo que o som vocal possui uma relação direta com as emoções e que ela é um instrumento original e espiritual, a partir do qual pode-se expressar mais diretamente do que com palavras. Dificilmente seu repertório vocal apresenta palavras, e quando estas fazem parte das peças, a escolha é feita principalmente pelas suas características sonoras. No entanto, a artista assume no seu trabalho uma voz carregada de histórias e fundamentalmente 16 The European tradition was the only de experiências do corpo. that separate these ele- DE ALGUM MODO, O MUNDO DA ments, so singers sing, actors, act, dancers dan- DANÇA ERA MAIS AVANÇADO DO QUE ce. I felt that it was also QUALQUER OUTRO MUNDO NESSE a healing modality of the MOMENTO. AS PESSOAS CONSEGUIAM fragmentation of our so- ENTENDER O QUE EU ESTAVA FAZENDO. ciety, by we were getting MAS NA VERDADE, NÃO ME VEJO together these elements and making a very hole COMO BAILARINA DESDE 16 MILLIMETER form, we were affirming EARRINGS EM DIANTE. DESDE ENTÃO not only the richness EU SOUBE QUE ERA UMA ARTISTA DO of the performance but TEATRO, TEATRO NO SENTIDO MAIS also the richness of the audience. (MONK in AMPLO DA PALAVRA. SABIA QUE QUERIA STAMPS, 2017)

36 37 CRIAR UMA FORMA VISUAL DE TEATRO. QUERIA CRIAR UM TEATRO DE IMAGENS. (MONK, 2014: P.15)17 Em 1960 um grupo de artistas se reuniu para participar de aulas com o artista 19 A liberal pro- Robert Dunn no studio de Merce Cunningham no prédio do Living Theater. Em Graduada da Escola Sarah Lawrence (Yonkers, NY) em 1964, onde realiza testant congregation that was housed on the julho de 1962 o grupo realizou uma primeira apresentação gratuita baseada nesses uma formação interdisciplinar, Meredith Monk se instala na cidade de Nova York, south end of Washington Square in Greenwich encontros. A apresentação foi chamada Dance#1 e aconteceu no Judson Memorial onde encontra um ambiente artístico efervescente com o grupo Fluxus, a Arte Pop, Village. There the minis- Church. Esse foi o começo de uma ocupação artística no local por meio de concertos o cinema e o teatro experimental, os happenings, o grupo Judson Dance Theater, entre try and parishioners had long been active in re- de dança, aulas e colaborações artísticas entre o grupo e outras artistas da cidade. Uma outros. form politics, civil rights, and arts activities. Alrea- das principais características do grupo era a rejeição dos códigos do ballet e da dança EU TENHO MUITA GRATIDÃO AO POVO dy the site of Happenin- DO FLUXUS. ELES FORAM MUITO gs, the Judson´s poet´s moderna, considerando todo movimento cotidiano uma dança possível. O grupo foi RECEPTIVOS COMIGO QUANDO CHEGUEI theatre, film screenings, fortemente influenciado pela colaboração entre Cunningham e Cage. at the Judson Gallery, A NOVA YORK. EU ACHO QUE ELES where exhibitions of Pop A colaboração Cunningham/Cage foi uma impor- VIRAM O QUE EU TINHA COM TODAS AS Art and political art were tante influência para oJudson Dance Theater.Os bai- DIFERENTES POSSIBILIDADES DE FORMA. held, the Judsons Chur- larinos aprenderam dos ensinamentos de Cage-- seu EU PODERIA CANTAR, EU PODERIA ME ch soon also became the center for avant-garde interesse em Budismo Zen, em se mover da música MOVER, EU ERA UMA ATRIZ. E ENTÃO dance in the city. (BA- para o teatro, nos escritos de Antonin Artaud, nos ELES ME PEDIRAM PARA TOCAR EM SUAS 17 In a way, the NES, 1983: p. 11) métodos do acaso, no valor do cotidiano. (BANES, PEÇAS. EU ACHO QUE ESSES MODOS dance world was more 1983: p.16)20 DIFERENTES NÃO ERAM UM GRANDE advanced than any 20 The Cunnin- PROBLEMA PARA ALGUÉM COMO other world at that time. gham-Cage collabora- People could see what tion was an important Durante esses anos, os parâmetros da performance estavam sendo repensados DICK HIGGINGS. ELE TAMBÉM ERA UM I was doing. But really, I influence on the Judson MÚSICO MARAVILHOSO, ELE É UM ATOR did not identify myself as Dance Theater. pelo New York’s Judson Dance Theater. Em 1965, a artista Ivonne Rainer do Judson MARAVILHOSO, E ENTÃO, QUANDO ELE a dancer and choreogra- The dancers learned Theater realizava seu “No manifesto”, a partir do qual evidenciava o afastamento dos TERMINOU SE APRESENTANDO COMIGO, pher from 16 Millimeter from Cage´s teachings-- Earrings on. From then his interest in Zen Bud- princípios dramáticos do teatro. Ivonne Rainer declarava: ELE ERA UM GRANDE IMPULSIONADOR on I knew that I was dhism, in moving from COM SEU CORPO, COM O SEU PRÓPRIO theatre artist, theatre in music towars theater, in não ao espetáculo, ESTILO. (MONK, 2014: P. 12)18 the largest sense of the the wrintings of Anto- não ao virtuosismo, world. (MONK in MAR- nin Artaud, in chance não à transformação e magia RANCA, 2014: p.15) methods, in the value of Naquela época Monk realizava algumas performances no Judson Memorial the everyday. (BANES, e ao faz de conta, Church criadas por ela e em colaboração com artistas do grupo Fluxus. O Judson 18 No original: I 1983: p. 16) não ao glamour e à transcendência da imagem da have so much gratitude estrela, Church foi um espaço muito importante para pensar dança e performance art na ci- to the Fluxus people. The 21 No original: não ao heróico, were very welcoming to No to spectacle, no to dade de Nova York. Em “Democracy´s Body: Judson Dance Theater 1962-1964” me when I first came to virtuosity, no to transfor- não ao anti-heróico, (1983), a pesquisadora Sally Banes discorre sobre este espaço: New York. I think they mations and magic and não ao lixo metáfora, saw what I had with make-believe no to the não ao envolvimento do intérprete Uma congregação protestante liberal que ficava no all the different possi- glamour and transcen- ou do espectador, extremo sul da Washington Square em Greenwich bilities of form. I could dence of the star image não ao estilo, sing, I could move, I was no to the heroic no to Village. Lá, o ministério e os paroquianos há muito na actor. And so they the anti-heroic no to não ao camp, atuavam na reforma política, nos direitos civis, e nas asked me to perform in trash imagery no to in- não à sedução do espectador pelos artifícios do atividades artísticas. O espaço, que já abrigava Ha- their pieces. I think the volvement of performer intérprete, ppenings, assim como o teatro dos poetas de Judson, fact of these different or spectator no to style não à excentricidade, modes was not a big deal no to camp no to seduc- as exibições de filmes e a Judson Gallery, onde foram to someone like Dick tion of spectator by the não ao mover ou comover, 21 realizadas exposições de arte pop e política, a Judson Higgings. He also was wiles of the performer não a ser movido ou comovido (RAINER, 1965) Church, logo se tornou o centro de dança de van- a wonderful musician no to eccentricity no to guarda da cidade. (BANES, 1983: p. 11)19 himself and a wonder- moving or being moved.” ful actor, and then when From ‘No Manifesto, he ended up performing 1965. Reprinted in Yvon- Frente ao manifesto de Rainer, Monk desenha seu próprio caminho. Nas pa- with me he was a great ne Rainer, Feelings are lavras da artista: mover with his body, in Facts, Cambridge, MA his own way. (MARRAN- and London: The MIT CA, 2014: p. 12) Press, 2006, p.263.

38 39 GRANDES ALEGRIAS DA MINHA VIDA E ISSO ME MANTEVE CURIOSA. (MONK, EU ESTAVA LUTANDO COM O JUDSON 23 DANCE THEATER NA MINHA MENTE. NO 1985) MOMENTO EM QUE RAINER DIZIA ‘NÃO’ PARA A TEATRALIDADE, EU DIZIA ‘SIM’; ELA DIZIA Embora influenciada pela simplicidade do ordinário promovido peloJudson ‘NÃO’ PARA A MAGIA, EU DIZIA ‘SIM’ PARA A enquanto dança, as vozes de Monk carregam uma teatralidade no sentido de chamar MAGIA; ‘NÃO’ À TRANSCENDÊNCIA, ‘SIM’ À a atenção para outros modos de comunicação não verbais, partindo do cotidiano TRANSCENDÊNCIA. (MONK, 2010)22 no corpo para transcendê-lo a partir da flexibilidade vocal e de outros elementos em cena. Nessa perspectiva, Monk se nutre também de outras formas dramáticas: Monk não se afastaria do teatro que possibilita outras realidades, que cria EM 1964-66 EU ESTAVA PENSANDO MAIS 24 ilusão entre espectador e performer, do teatro da representação, da ressignificação NA ÓPERA CHINESA E EM KATHAKALI , KABUKI THEATER25, E TENTANDO VOLTAR de objetos em cena e da investigação de diferentes expressões vocais não usuais. En- 23 No original: She also taught all of us to be A UMA INTEGRAÇÃO SENSORIAL tretanto, incorporaria no próprio trabalho outros elementos próprios do teatro per- respectful of each other QUE NÃO TEMOS NO OCIDENTE. UM – to apreciate each per- SENSO DE TEATRO COMO UM RITUAL formativo como a valorização de movimentos corporais cotidianos e o trânsito por son´s particular talents, OU UMA CELEBRAÇÃO, DE ILUSÃO – diferentes cenários ou perspectivas espaciais fora do palco, e/ou pensadas para o um styles, rates fo grow- UM TRIÂNGULO QUE INCLUÍA DRAMA, th for what they are, in espaço específico, por exemplo, em Juice (1969), Vessel (1971), em Songs of ascension other words, not to have MÚSICA E DANÇA. (MONK APUD JOWITT, a preconciebed idea of 1997: P.80)26 (2011) ou em Cellular Songs (2018). what a body is, a dance is, a song is, a play is. As sonoridades das vozes de Monk longe se encontravam da fala, da própria This basic atittude has given me the courage to Como consequência desse interesse por um tipo de obra total, surge uma língua ou mesmo de uma voz treinada em um único tipo de emissão vocal. As vozes try to find new ways of da artista se aproximavam mais de uma exploração sensorial que permitia uma des- putting art forms toge- pergunta central no desenvolvimento da sua obra: como integrar todos esses ele- ther by working between coberta constante, onde procurava-se não assumir com antecedência o que um corpo the cracks, it has tau- mentos em uma forma? A integração entre os elementos que compõem a sua obra se ght me to never assume relaciona com o aspecto social das suas peças. Esses aspectos se encontram explícitos deve ser e/ou expressar. Segundo Banes (1983) o mais importante na pesquisa do Jud- anything, it has made son Dance Theater era “a atitude de que todo podia ser visto como dança; o trabalho de the process of discovery nos assuntos que a artista aborda ao longo da sua carreira, como o antissemitismo, o one of the great joys of um artista visual, de um cineasta, de um músico”. No seu trabalho, Monk reconhece my life and it has kept exílio e o holocausto (Quarry – ópera), a contemporaneidade e a idade média (Book me curious. Meredith of days – filme), as questões de gênero (Paris – performance), os estágios na vida das a influência da professora Bessie Shoenberg no desenvolvimento de uma visão aberta Monk/Sarah Lawrence em relação às definições das artes. commencement spee- mulheres (Education of the Girl Child – ópera), limites físicos e mentais no trabalho ch, 1985. performático (16 Millimeter Earrings). 24 INÉS: Dança clássica indiana. ELA TAMBÉM ENSINOU A TODOS NÓS Na época em que foi lançado o LP Key (1971), Monk já tinha criado peças A SERMOS RESPEITOSOS UM COM O 25 INÉS: Dança como Break (1964), 16 Millimeter Earrings (1966), Blueprint (1967), Dedicated to di- dramática japonesa. OUTRO – PARA APRECIAR OS TALENTOS, nosaurs (1968), Barbershop (1969), Juice (1969). Nasceria ao mesmo tempo sua ópera ESTILOS E FASES DE CRESCIMENTO DE 26 No original: In épica Vessel (1971), surgiria um ano depois a peça intitulada Paris (1972) em duo com CADA PESSOA, EM OUTRAS PALAVRAS, 1964-66 I was thinking NÃO TER UMA IDEIA PRECONCEBIDA DO more about Chinese o artista de bricolagem Ping Chong, e lançaria Our lady of late (LP produzido também 22 No original: I opera and Kathakali, QUE É UM CORPO, UMA DANÇA É, UMA pelo produtor de Key: Collin Walcott) um ano mais tarde (1973). MÚSICA É, UMA PEÇA É. ESSA ATITUDE was fighting the Jud- Kabuki theater, and son Dance Theater in trying to get back to BÁSICA ME DEU A CORAGEM DE TENTAR my mind. At the time a sensory integration No livro editado pela pesquisadora Deborah Jowitt há uma cronologia da ENCONTRAR NOVAS FORMAS DE JUNTAR Rainer was saying ‘no’ to that we don´t have in AS FORMAS DE ARTE TRABALHANDO theatricality, I was saying the West. A sense of discografia e da obra completa da artista. A primeira gravação mencionada data de ENTRE AS RACHADURAS, ENSINOU- ‘yes’; she was saying ‘no’ theater as a ritual or a to magic, I was saying celebration, of wonder-a ME A NUNCA ASSUMIR NADA, FEZ DO ‘yes’ to magic; ‘no’ to triangle that included PROCESSO DE DESCOBERTA UMA DAS transcendence, ‘yes’ to drama, music and dance. transcendence. (MONK (MONK in JOWITT, in LEAVER–YAP, 2010) 1997: p.80)

40 41 29 No original: The House was a collec- tion of so vastly different beings! I came as a um single do ano 1967 chamado “Candy Bullets and Moon”. O primeiro disco lan- dancer, character ac- professor de teatro, um pintor. Eu ainda faço parte tress, mime, visual artist, çado após esse single é o álbum o Key (1971). Antes de lançar esse álbum, Monk já – trabalhando com Meredith Monk agora no renas- there was a scientist, cimento de Quarry. Todo esse trabalho é sempre de realizava concertos intitulados Raw Recital que continham algumas músicas de Key. O film maker, drama tea- cher, painter. I´m still a interesse – uma ótima combinação da melhor músi- primeiro Raw Recital foi apresentado no museu Whitney. No seu livro “Terpsichore in member – working with ca, teatro, ambiente, personagens. The House era um Meredith Monk now on microcosmo do mundo, habitada pelos seres mais Sneakers (1980)” a historiadora da dança Sally Banes faz a seguinte resenha: revival of “Quarry”. All interessantes. (HARRISON, 2019)29 this work is always of interest – a terrific com- bo of the best music, Em 1970, ela apresentou um concerto de música no 27 No original: In theater, environment, Whitney Museum, o primeiro de muitos Raw Reci- 1970 she gave a music characters. The House Em 1978 Monk forma seu grupo vocal. Ativo até hoje, e atualmente inte- tals. Esses recitais sempre têm um quadro teatral; no concert at the Whitney was a microcosmo of the grado pelas artistas Allison Sniffin, Ellen Fisher e Katie Geissenger, o grupo já teve primeiro, Monk satirizou uma diva, cuja aparência Museus, the first of many world...with most inte- 30 ficou mais estranha à medida que a música progredia different Raw Recitals. resting beings inhabiting diferentes formações e é um importante laboratório de ideias para pôr em prática as These recitals always it. de Bach para Monk. Vestida com um vestido rosa have a theatrical frame; peças vocais mais contrapontísticas da compositora. extravagante e botas de trabalho vermelhas, o cabelo 30 INÉS: Allison at the first, Monk satiri- FORMEI O MEREDITH MONK´S VOCAL arrebitado, ela fragmentou os gestos usuais da can- zed a diva, whose appea- Easter,Theo Bleckmann, ENSEMBLE, QUE COMEÇOU COMO UM tora, parou abruptamente quando uma assistente rance became weirder Tom Bogdan, Janis Brenner, Sidney Chen, TRIO DE MULHERES E SE DESENVOLVEU prendeu um corpete sobre ela. Aos poucos, o cabelo as the music progres- sed from Bach to Monk. Ching Gonzalez, Andrea COMO UM SEXTETO DE TRÊS MULHERES dela caiu. A plataforma em que ela estava se movi- Dressed in a fancy pink Goodman, Lanny Harri- E TRÊS HOMENS. AO LONGO DOS ANOS, mentou pela sala de concertos. A música de Monk, son, Bohdan Hilash, Joh dress and red work boo- TEMOS DESENVOLVIDO O PROCESSO DE sempre tão integrante das peças teatrais quanto seu ts, her hair done up re- Hollenbeck, Bruce Ra- CRIAR MÚSICA QUE PERMITE AS QUALI- senso de teatralidade é para os recitais de música, gally, she fragmented the mecker, Jo stewart, Pa- usual singer´s gestures, blo Vela, Randall Wong. DADES ÚNICAS DA VOZ DE CADA PES- tem sido chamada de reminiscência de Satie, ou de stopped abruptly as an Nomes que aparecem no SOA E SUA HUMANIDADE EMERGIREM. cânticos hebraicos, ou de chamadas de Muezzins. site de Meredith Monk assistant pinned a corsa- (MONK, 1990: P. 2)31 Tem uma qualidade folclórica simples, muitas vezes ge on her. Gradually her como participantes do com uma margem nasal; melodias repetitivas, con- hair fell down. The pla- grupo vocal em diferen- tes períodos da carreira sistindo em cadeias circulares de pequenas frases, são tform she sat on moved No início do processo de criação, Monk costuma passar um longo tempo around the concert hall. da artista. usadas nas harpas judaicas, nos kazoos, nas taças de Monk´s music, always sozinha, idealizando o que logo será compartilhado com o grupo. No entanto, os vinho ou nos teclados. Os acordes repetidos, explo- as integral to the thea- 31 I formed Me- processos composicionais de Monk, no âmbito do seu grupo vocal, sempre foram rados e ampliados no piano ou órgão; sua própria ter pieces as her sense redith Monk Vocal En- voz faz descobertas e gestos sonoros sem palavras, of theatricality is to the semble, which began colaborativos, na medida em que os ensaios funcionam como um espaço para o levan- music recitals, has been as a trio of women and circulando, torcendo, viajando. (BANES, 1987: p. called reminiscent of Sa- evolved into a sexteto of tamento de ideias a partir de um material preconcebido pela artista. Desta maneira, 27 154) tie, or of Hebrew chants, three women and three a obra é desenvolvida a partir da potencialidade do grupo. Deborah Jowitt comenta or of muezzins calls. It men. Over the years, we Monk compôs música vocal que ela mesma canta como solista, música para has a simple folk quality, have developed a pro- esses processos no seu livro sobre Monk: often with a nasal edge; cesso of creating music os seus grupos vocais e música para outros instrumentos. Quase sempre a artista está repetitive melodies con- that allows for the unique Compondo para o seu grupo vocal, Monk trabalha qualities of each person´s envolvida no processo de composição também como performer, principalmente nesta sisting of circular chains como uma coreógrafa, chegando ao ensaio, talvez, of small phrases are tea- voice and humanity to com pequenos módulos esboçados, construindo primeira etapa da sua carreira, final dos anos sessenta e começo dos setenta. sed out on jew´s harps, come through. (MONK, kazoos, a wineglass, or 1990: p. 2) material de ensaio diretamente junto aos artistas, redigindo uma peça – raramente na notação tradi- Em 1968 Monk funda The House, seu espaço de trabalho, uma companhia a keyboard. Chords are distilled, repeated, ex- 32 Composing cional – somente depois de configurada. (JOWITT, dedicada a explorar artes interdisciplinares, na época junto aos artistas Ping Chong, plored, and magnified on for her vocal ensemble, 1997: p.13)32 piano or organ; her own Monk proceeds much Lanny Harrison, Blondell Cummings. The House funcionava de maneira colaborati- voice makes discoveries as choreographer does, 28 and gestures in wordless coming to rehearsal, va, cada artista poderia contribuir com materiais e ideias. Em entrevista que realizei sound, circling, twisting, perhaps, with small Em relação à dança do corpo Monk se considera menos rigorosa. Embora as com a artista Lanny Harrison, ela diz: traveling. (BANES, 1987: modules sketched out, p. 154) building material in vezes a artista defina a movimentação de uma performance, ela considera importante The House era uma coleção de seres tão diferentes! rehearsal directly on Eu vim como dançarina, personagem, atriz, mímica, 28 INÉS: Entrevista the performers, writing que cada corpo realize sua própria interpretação da proposta apresentada. Em algu- a piece down-rarely in artista visual, havia um cientista, um cineasta, um concedida em janeiro de 2019 por meio de um traditional notation-only formulário enviado para after it is set. (JOWITT, a artista. 1997: p.13)

42 43 mas peças as vozes e o movimento são elaboradas juntas, e em outras Monk descobre Pensar na espacialidade e na arquitetura, pensar na voz como se pensa numa e explora a movimentação após a composição das vozes. Segundo a artista: pintura ou em uma escultura, com nuances de luz, transparências e texturas, pensar a TRABALHO NA MÚSICA COMO TRABA- voz como um modo de apresentação e representação de uma vida, como criadora de LHO NA DANÇA, O QUE QUER DIZER QUE espaços, e em relação com os instrumentos e objetos que a artista escolhe. No traba- TRABALHO DIRETAMENTE NAS PRÓPRIAS PESSOAS. CRIO A MÚSICA PARA SUAS lho de Monk tudo parece se desenvolver a partir do conteúdo da voz. VOZES PARTICULARES E ESTE PROCESSO A preocupação focada na recepção e na ação do público se relaciona com mu- É MAIS LIGADO À DANÇA QUE À MÚSICA (BLACKWOOD, 1980, TRANSCRIÇÃO DE danças no teatro a partir dos anos sessenta. “No teatro o performativo passa a designar CONRADO FALBO). um espaço e compartilhamento entre artistas e audiência, e não de obra acabada e Essa proposta se relaciona com a seguinte questão: o que um corpo a partir observação passiva.” (JACOBS, 2015) Desta maneira, há uma projeção também da das suas particularidades e da sua história tem a dizer/manifestar? Isto seria o contrá- ocupação do espaço pensada para o público, sendo convidado a fazer parte das peças. rio de partir de uma ideia de como este corpo deve se comportar, ou como este corpo Assim como na música de John Cage, o processo e o acaso ganham um outro valor e deve atingir certas formas para conseguir ser chamado de corpo dançante ou cantante. tratamento, entendendo o potencial da performance que envolve o público e os acon- Mesmo que na composição musical seja frequente compor para uma voz específica, tecimentos. Ao mesmo tempo, Monk encontra no cinema um desafio interessante ou no caso da música erudita, para uma categoria de voz específica, a tradição no âm- para o seu trabalho performático, ao se perguntar: bito da composição europeia, sempre provocou que as vozes/interpretes tivessem que atingir certas expectativas dos compositores; habitar uma proposta de corpo, um ideal COMO CRIAR UMA PERFORMANCE AO pautado pelas vozes hegemônicas de enunciação. O fato de Monk trabalhar com “as VIVO QUE POSSUA A SENSAÇÃO DE vozes particulares” indica que, embora certas emissões vocais e melodias sejam pro- DESCONTINUIDADE DO TEMPO E DO ESPAÇO? COMO CRIAR UMA PEÇA QUE postas, cada voz trabalhará a partir da sua flexibilidade e potência, inclusive propondo POSSUI SUAS SAÍDAS, QUE SE DISSOLVE, variações e criando vozes próprias. E QUE POSSUI O VOCABULÁRIO DO CINEMA? MUDANÇAS MUITO RÁPIDAS Na obra de Meredith Monk, as perguntas iniciais serão o núcleo de todo pro- DE INTENSIDADE, DE EMOÇÃO, DE 34 cesso de criação da obra, como por exemplo: PERSONA, DE FOCO. (MONK, 2014: P.6) 34 How do you make a piece that has EM ON BEHALF OF NATURE A PERGUNTA 33 No original: cuts, dissolves, and the Monk cria um vocabulário próprio onde a voz migra continuamente e pos- On Behalf of Nature the ERA, “COMO FAZER UMA OBRA DE ARTE vocabulary of cinema? question was, “How do How would you do that sibilita o trânsito entre corpos em uma mesma performance. A partir da exploração ECOLÓGICA, PENSANDO EM TODOS OS you make an ecological as a live person with MATERIAIS FÍSICOS E NÃO GERANDO artwork, thinking of all the continuity of only vocal, seus trabalhos transparecem o poder imagético do som e da voz, migrando DESPERDÍCIO?”, EM EDUCATION OF the physical materials one person? Very quick gradativa e/ou abruptamente de uma qualidade vocal para a outra. THE GIRLCHILD ERA, “COMO FAZER UM and not creating was- changes of intensity, of te?”, For Education of the emotion, of persona, of RETRATO NÃO-VERBAL DA VIDA DE UMA Girlchild it was, “How do focus. A very disconnec- Entre a permeabilidade do experimentalismo do pós-guerra norte-americano, MULHER?” EM SONGS OF ASCENSION, you make a non-verbal ted kind of piece, but entre a influência da música judaica35, entre a experiência com a dança moderna e ELA CONSIDEROU: “COMO VOCÊ TIRA portrait of one woman´s with a continuity of a AS PESSOAS DESSA SITUAÇÃO DE life?” For Songs of As- live, solo person. (MONK o contato com o Judson Dance Theater, a performance art, o seu interesse no teatro cension, she considered: PÚBLICO PARA SE TORNAREM UMA in MARRANCA, 2014: p. “How do you get people 6) oriental, e a partir do entendimento da prática artística como prática espiritual, Monk CONGREGAÇÃO?” SUA QUESTÃO DE out of that audience FUNDO ERA: “TEREMOS OBJETOS?” situation to become con- 35 O primeiro con- desenvolve composições de imagens, sons e movimentos. OBJETOS TÊM UMA SINTAXE, UMA gregation?” Her bottom tato de Meredith Monk LINGUAGEM, COMO QUALQUER OUTRO line question: “Are we com dança foi quando O trabalho da artista revela a ideia de composição a partir de uma voz que going to have objects?” tinha dezoito anos, ela ELEMENTO NA PERFORMANCE. (MONK, Objects have a syntax, participava de um grupo experimenta; peças vocais que surgem de uma contínua exploração do corpo vocal, 33 2014: P.8 E 9) a language, like every de performance de dan- investigando diferentes tipos de emissão, sem as limitações da classificação vocal her- other element in perfor- ças folclóricas judaicas. mance.” (MARRANCA, (MARRANCA, 2014: p. 2014: p.8 e 9) 94)

44 45 dada da música de concerto europeia, nem as amarras das formas da música erudita sussurro, máquina. A voz inacabada é desvendada pelo interesse e desejo deste corpo, e/ou popular, porém sempre revisitando a forma canção. sob as circunstâncias específicas do seu campo de ação.

Segundo o medievalista Paul Zumthor, “a voz desaloja o homem do seu cor- Monk explora a voz em um amplo espectro de respirações e ressonâncias, po, atravessando o limite do mesmo sem rompê-lo” (ZUMTHOR, 2000) Se a voz assim como também combina aspectos visuais e gestos que apresentam questiona- depende do corpo para se materializar e ressoar nos corpos e no espaço, ao mesmo mentos em relação ao que se espera socialmente de um corpo, como, por exemplo em tempo cria outros corpos a partir das possibilidades do som, que transcendem a loca- Paris (1972). lização pessoal. Nas Notas sobre a voz (FALBO, 2013) Monk sugere este fenômeno COMO ARTISTA MULHER, EU GOSTARIA ao definir “a voz como meio de tornar-se, retratar, corporificar, encarnar outro espíri- DE ENTENDER MINHA NATUREZA FEMI- NINA E MINHA NATUREZA MASCULINA. to, e a voz como manifestação do self, persona ou personas” (MONK, 1997) EM PARIS HOUVE UMA ESPÉCIE DE DUE- TO DE AMOR COM PING CHONG, E NÓS No trabalho de Monk a estranheza vocal é atingida a partir da ênfase na voz ESTÁVAMOS TENTANDO IR PARA A BOR- que transita por diferentes consistências sonoras na sua exploração, vocalidades de DA DA NATUREZA MASCULINA E FEMI- seres dificilmente classificáveis sob a distinção sexo/gênero ou do entendido como NINA. NÓS ÉRAMOS UM COMPOSTO DE HOMEM E MULHER. EU TINHA UMA SAIA humano. Há outras artistas cujas investigações são referências centrais na experimen- LONGA E MEU CABELO ESTAVA EM UMA tação vocal contemporânea, como Cathy Berberian (Estados Unidos, 1925-1983), TRANÇA, MAS EU USAVA BIGODE, UM Yoko Ono (Tókio, 1933), Phil Minton (Inglaterra, 1940), Demetrio Stratos (Grécia, BONÉ DE COURO E GRANDES BOTAS DE COMBATE. (MONK, 2014: P. 111) 36 1945-1979) e Joan La Barbara (Estados Unidos, 1947).

A pesquisa de vocalidades e a exploração vocal no processo composicional Ao falar da voz em um amplo espectro me refiro à voz que transita entre vo- destaca as qualidades materiais das vozes, evidenciando o trânsito entre as mesmas. calidades apresentando um amplo leque de texturas que percorre não só a extensão No entanto, como aponta Falbo em sua pesquisa, o foco nas vozes para além das vocal com suas variações espectrais, mas os seus vários tipos de corporeidade, uma palavras em Monk não parte de um interesse pelo entendimento das vozes como voz inclassificável, não necessariamente pela sua erudição e virtuosismo, mas pela sua estudo científico do som, mas como experiência dos corpos e da relação entre vozes potência de transformação. e emoções.

Em Monk, a exploração vocal se dá principalmente na investigação das pos- sibilidades do corpo, independentemente de ferramentas tecnológicas ou acessórios. “Agora, depois de trabalhar todos esses anos com a voz, percebi que a voz pode fazer quase tudo o que os eletrônicos podem fazer. Me mantive afastada dos eletrônicos” 36 As a female (MONK, 1997). artist I would want to understand my female Desta maneira, a voz se reinventa em relação com o contexto sonoro, indus- nature and my male nature. In Paris there trial e eletrônico, transitando entre a harmonia e a inarmonia do som vocal, mesmo was a kind of love duet with Ping Chong, and we quando não são utilizados acessórios digitais ou analógicos. Me refiro aqui a uma voz were very much trying que consegue trabalhar com a ideia de melodia e harmonia da música de concerto to go to the edge of male and female nature. tradicional e ao mesmo tempo uma voz que explora também seu aspecto mais rui- We were a composite of male and female. I doso e apresenta sonoridades não definidas pela denominação de nota ou altura, se had a long skirt and my apresentando também de forma inusitada na sua variação não harmônica e caótica. hair was in a braid, but I wore a moustache and Este entendimento é possível por uma busca contínua das possibilidades da voz. Ao a leather cap and big combat boots. (MONK mesmo tempo, esta voz, não necessariamente vinculada às línguas verbais, já é ruído, in MARRANCA, 2014: p. 111)

46 47 As composições de Key foram realizadas entre 1967 e 1970 e o LP foi gravado Key (1971)37 ao vivo de julho de 1970 a janeiro de 1971 em Santa Monica, California; em The Ace Gallery, Los Angeles, California e em The House, Nova York. Key foi produzido por Collin Walcott, produtor também de Our lady of late (1973). A edição em CD foi lançada em 1995 pela Lovely Music, Ltd. Há diferenças entre as datas de lançamento de Key encontradas na internet. Na página oficial de Meredith Monk aparece como o primeiro álbum, lançado em 1971. Na discografia do livro de Jowitt de Key há duas datas: 1970 e 1977 ao mencionar o álbum. E em alguns sites que vendem o LP origi- nal, o lançamento data do ano 1971 pela discográfica Increase Records e logo em 1977 pela discográficaLovely Music.

Outros créditos:

Direção artística–Paul Gruwel

Design–Ariel Peeri

Engenheiro de som–Daniel Nagrin, John Horton, Peter Pilafian, Tom Clack

Produção executiva–Ron Jacobs

Mixagem–John Horton

Fotografia–Peter Moore

Existem poucos textos que se refiram especificamente a este trabalho fono- gráfico inicial de Monk. A maior parte das referências teóricas sobre a sua obra são entrevistas realizadas ao longo da carreira, resenhas críticas e artigos em jornais, e alguns trabalhos acadêmicos, porém especificamente sobre trabalhos posteriores (não necessariamente fonográficos) e notas de artista.

37 INÉS: A segun- Nesse momento inicial (em que Key foi gravado e lançado), a artista se apre- da edição do álbum Key foi dedicada a Collin senta principalmente em galerias, realizando concertos solo de órgão elétrico e voz Capa e contracapa do álbum Key (1971), lançado novamente em 1995 em CD Walcott, percussionista e peças site – specific. Se trata de um momento de imersão através do qual Monk e produtor desse disco pela Lovely music, Ltd. e de Our Lady of Late intensifica a investigação sobre o seu repertório vocal na busca pela criação de um (1973). Walcott mor- re com 39 anos num vocabulário de vocalidades para a composição. Nas palavras da artista: acidente de carro numa turnê do seu grupo Ore- EXPLOREI DIFERENTES MANEIRAS DE gon na Alemanha. Lanny PRODUZIR SOM, VÁRIAS RESSONÂNCIAS, Harrison, uma das vozes MODOS DE USAR A RESPIRAÇÃO, LÁBIOS, em Key, companheira de BOCHECHAS E DIAFRAGMA. TAMBÉM Walcott na época, tra- TRABALHEI COM OS EXTREMOS DA balha com Monk até os dias de hoje. E respon- MINHA EXTENSÃO VOCAL E MUDANÇAS deu um formulário por RÁPIDAS ENTRE QUALIDADES VOCAIS mim enviado, em janeiro PARA QUE A VOZ PUDESSE SER UM de 2019.

48 49 CONDUTOR FLEXÍVEL PARA A ENERGIA QUE NÃO QUERIA COLOCAR MÚSICA EM E OS IMPULSOS QUE COMEÇARAM UM TEXTO; PARA MIM, A PRÓPRIA VOZ EMERGIR. EU COMPUS ALGUMAS ERA UMA LINGUAGEM QUE PARECIA CANÇÕES A CAPELLA DURANTE OS FALAR COM MAIS ELOQUÊNCIA QUE AS ANOS SEGUINTES (INCLUINDO “PORCH”, PALAVRAS. ESCOLHI CERTOS FONEMAS “CHANGE” E “DUNGEON”), E DEPOIS PELAS SUAS QUALIDADES SONORAS. SENTI QUE QUERIA TRABALHAR COM EM CERTO SENTIDO, CADA MÚSICA UM INSTRUMENTO HARMÔNICO COMO TORNOU-SE UM MUNDO EM SI PRÓPRIO, UMA BASE PARA VOZ. (MONK, 1995)38 COM SEU TIMBRE, TEXTURA E IMPULSO PRÓPRIOS. EU ESTAVA CRIANDO UMA EXPRESSÃO MUSICAL PRIMORDIAL QUE REVELARIA FRAGMENTOS DA MEMÓRIA E SENTIMENTOS PARA OS QUAIS NÃO Muitas vezes seu trabalho é associado ao minimalismo, no entanto, Monk TEMOS PALAVRAS. (MONK, 1995)40 explica que nunca pensou na voz como um instrumento repetitivo, mas que ela cria, a partir da instrumentação, um contexto para a voz viajar. O uso de repetições39 na Em Key há passos sobre diferentes superfícies que se aproximam e se afastam instrumentação de Key se justifica, segundo Monk, pela instauração de um tapete e texturas instrumentais que formam uma unidade ao longo do disco e possibilitam textural para a exploração vocal. Segundo a artista “o uso da repetição é mais no sen- os desdobramentos das vozes. São exploradas vozes na solidão e em companhia do órgão elétrico e do instrumento de percussão mrdingam. Assim como as sonoridades tido que se vê na música folk” (GARCIA LOPES, 1996) Se a música de Monk possui 38 I explored dif- alguma influência do minimalismo, essa percepção se fundamenta na continuidade ferent ways of producing das vozes mudam, são apresentados diferentes timbres de órgão elétrico para a criação sound, various reso- das bases harmônicas, com pedais sustentados no órgão elétrico ao longo de algumas nances, ways of using dos ostinatos, muitas vezes variando ao longo da peça junto com as vozes. No entanto, the breath, lips, cheeks as harmonias escolhidas insistem sobre a mesma ideia em cada uma das peças. Os peças (como em What does it mean, Fatstream e Do you Be) em que a voz explora dife- and diaphragm. I also rentes sonoridades, se entrelaça nas harmonias, mas sempre tem um lugar de destaque worked with the extre- fonemas são explorados a partir dos seus possíveis desdobramentos e suas nuances mes of my range and ao escutar as camadas da totalidade da peça e o seu desenvolvimento. quick changes from one discursivas. As palavras aparecem em narrativas de sonhos, procurando fidelidade vocal quality to another 40 In Key I wanted com as imagens inconscientes, imagens acústicas que se perdem na tentativa de so that my voice could to create a constantly A estrutura rítmica é fundamental neste trabalho, mas sempre em função da be a flexible conduit for shifting ambience. Each registro ou lembrança. the energy and impulses song deal with a diferen- exploração vocal. Nesse contexto, a exploração da voz é fundada na repetição des- that began to emerge. I te vocal character, lands- composed a number of se tapete textural que ao mesmo tempo apresenta o desafio de perceber a diferença cape, tchnical concern a cappella songs during or emotional quality. I gradativa e sutil da composição da mesma. O que nesses primeiros trabalhos surge the next few years (inclu- was trying for a visce- ding “Porch”, “Change” ral, kinetic song form como vocalidade mais experimental, logo fará parte de um extenso repertório vocal and “Dungeon”), and that had the abstract then felt that I wanted escolhido por Monk para a realização das suas peças e óperas. Esta fase de descoberta qualities of a painting to work with a keyboard or a dance. Iknew that I das vozes é a fase que definirá o resto das camadas da sua obra, já que tudo começa instrument as a ground dind´t want to set music base under my voice. to a text; for me, the voi- pelas vozes. (MONK, notas do álbum ce itself was a language Key (CD), 1995) which seemed to speak EM KEY, QUERIA CRIAR UM AMBIENTE EM 39 INÉS: Outros more eloquently than words. I chose certain CONSTANTE MUDANÇA. CADA CANÇÃO trabalhos de artistas norte – americanas phonemes for their par- LIDAVA COM UMA PERSONAGEM apresentavam este tipo ticular sound qualities. In VOCAL DIFERENTE, UMA PAISAGEM, de abordagem, como as a sense, each song beca- UMA PREOCUPAÇÃO TÉCNICA OU obras das composito- me a world in tiself with its own timbre, texture QUALIDADE EMOCIONAL. EU ESTAVA ras Pauline Oliveiros e Joan La Barbara, Sound and impulse. I was trying EXPERIMENTANDO UMA FORMA DE Patterns for chorus (1961) for a primordial musical MÚSICA VISCERAL E CINÉTICA QUE e The voice is the origi- utterance which uncover TINHA AS QUALIDADES ABSTRATAS DE nal instrument (1976), shards of memory and UMA PINTURA OU UMA DANÇA. EU SABIA trabalhos que também feelings that we don´t utilizam padrões de have words for. (MONK, repetição em função da notas do álbum Key, exploração de vozes. 1995)

50 51 Teatro Invisível, Espacialidade e Continuidade que cria dissonâncias, instabilidades, espaços “entre” o que é irreconhecível e a invenção dx artista. (JA- COBS, 2015: p.106)

O MEU TRABALHO NÃO É TÃO PICTÓRICO, NO SENTIDO DE UM QUADRO OU DE UMA IMAGEM. É MAIS Este entendimento da voz no teatro, não centrada no texto dramático (a par- ESCULTURAL. (MONK, 2014: P.95)41 tir do significado das palavras) está presente nos trabalhos de diretores e teóricos do teatro europeus do século XX, principalmente na poética do francês Antonin Artaud (1896-1948), grande influência filosófica para artistas do século XX e XXI. A ideia de teatro invisível se associa às diferentes escutas de espaço ao longo do disco e às diferentes vozes apresentadas como personas e/ou personagens. Apesar

de se tratar de um álbum que compila diversas peças compostas por Monk em situa- A voz, no ideal de Artaud, estaria disposta a gerar ções diferentes, as peças são como movimentos ou cenas interligadas pelas vozes que múltiplos sentidos em cena, diferentes instâncias se apresentam, com variações sutis, pelas paisagens e passos, pelas entradas e saídas de um processo comunicacional que não primaria apenas pelo discurso articulado da linguagem/texto, das vozes, pelas repetições de algumas qualidades vocais, e pelas intenções similares mas que procuraria atingir o inconsciente da au- do órgão elétrico, a partir das quais as vozes emergem. O álbum foi gravado ao vivo, diência através de seus sentidos: uma voz que se tor- naria corpo para chegar a outros corpos. (JACOBS, vozes e instrumentos simultaneamente, captando também as ambiências dos espaços 2015: p.107) das gravações. ENQUANTO TRABALHAVA EM KEY, COMECEI A PENSAR EM COMO ESSE Artaud propõe um teatro ritualístico voltado para o encantamento da mate- TRABALHO FICARIA COMO UM TODO. EU TENTEI CRIAR UMA SINTAXE E 41 No original: My rialidade das vozes, onde as palavras são também fenômenos sonoros em movimento. UMA CONTINUIDADE QUE UTILIZASSE work is not that pictorial, Ao considerar que a representação pertence ao sistema da linguagem, e que a mesma in the sense of a frame AS QUALIDADES PARTICULARES DO and a Picture. It is more está presente na percepção e recepção de quem assiste ou presencia uma performance, MEIO DE GRAVAÇÃO. NÃO ESTAVA sculptural. (MARRAN- INTERESSADA NO ÁLBUM COMO UMA CA, 2014: p.95) ainda, na investigação de vocalidades para além das palavras, há uma certa sujeição COLEÇÃO DE CANÇÕES, MAS COMO à linguagem verbal por parte de quem assiste. A intenção de quem performa pode 42 No original: UMA EXPERIÊNCIA MUSICAL COMPLETA. trazer corporeidades outras, pode estar entremeada em ações não vinculadas aos pa- (MONK, 1995)42 As I worked on Key, I started thinking of how péis sociais, e/ou priorizar o universo sensorial, porém a partir do momento em que all the material wou- ld go together. I tried 43 No original: The essa ação é percebida, ela pode ser interpretada também como representação. Mladen to make a syntax and first scream may be cau- Desta maneira, pode-se entender que o disco Key é constituído por cenas e continuity that utilized sed by pain, by the need Dolar se aproxima dessa discussão em seu artigo ‘A linguística da voz” (2006), onde personagens; trajetos das vozes por espaços diferentes. São corpos vocais que se cons- the particular qualities of for food, by frustration discorre sobre a transformação do grito da criança em apelo, no pensamento de Lacan the recording medium. and anxiety, but the mo- tituem e diluem principalmente sem apresentar palavras, mas evidenciando a presen- I wasn´t interested in ment the other hears it, (de um grito puro a um grito para alguém). the album just being a the moment it assumes ça das personagens a partir das possibilidades do som: collection of songs but the place of its addresse, rather a complete musi- the moment the other is cal experience. I thought provoked and interpe- O primeiro grito pode ser causado pela dor, pela ne- of it as “invisible theater” llated by it, the moment cessidade de comida, por frustração e ansiedade, mas Tendo em vista que as palavras são elas mesmas because the music it responds to it, scream no momento em que o outro o ouve, no momento representações de coisas (emoções, ações, objetos, seemed to come out of retroactively turns into em que assume o lugar de seu destinatário, no mo- and go into darkness appeal, it is interpreted, etc.), a criação de sentidos (e não significados) em mento em que o outro é provocado e interpelado cena através da materialidade sonora do corpo vocal and silence_ the voice endowed with meaning, transforming from one it is transformed into a por ele, momento em que responde, grita retroati- (que não está apenas a serviço da linguagem/repre- “character” to another, speech addressed to the vamente, transforma-se em apelo, é interpretado, sentação) pode expandir as possibilidades de inter- going from one space to other, it assumes the first dotado de significado, transforma-se em discurso pretação da obra pela audiência. Essa é uma ação another, travelling from function of speech: to one level of intensity to address the other and eli- dirigido ao outro, assume a primeira função da fala: another. (MONK, notas cit an answer. (DOLAR, dirigir-se ao outro e extrair uma resposta. (DOLAR, do álbum Key, 1995) 2006: p.27) 2006: p.27)43

52 53 Desejo frisar aqui que mesmo se tratando de vocalizações onde não há pala- elaborada tanto a partir da fala como a partir dos significados do corpo que “excedem vras, a memória e a experiência de quem escuta e percebe sempre se encontra condi- as intenções do sujeito.”(BUTLER, 2006) Para Fischer Lichte, o teatral é sempre per- cionada pelo sistema de representação da linguagem verbal. Ao mesmo tempo, vocali- formativo. No entanto, o performativo nem sempre é teatral, já que na perspectiva dades como a tosse ou respirações explícitas carregam significados. Há sempre alguma da pesquisadora o performativo não é sempre percebido. “Para mim, todo mundo é coisa sendo dita porque é dessa maneira que compreendemos o mundo, e pelo fato performer; o ator é sempre um performer, mas não todo performer é um ator.”(FIS- das vozes se encontrarem sempre em direção a alguém, mesmo quando esse alguém CHER LICHTE, 2013) não foi determinado ou parece estar ausente. Entretanto, as emissões vocais/não pa- quando estou lendo um livro e certas emoções sur- lavras expandem o leque de possibilidades de interpretação, deixando-o mais flexível, gem, há um impacto em mim e ninguém percebe – isso é performativo, mas não é teatral. Assim sendo, diminuindo o controle sobre a potência receptiva e sensibilizando outros aspectos da eles se entrelaçam frequentemente, mas têm signifi- recepção. cados diferentes. Mas teatral é sempre performativo. (FISCHER LICHTE, 2013: p. 2) No âmbito do teatro, a alternância entre tipos de vocalidades é frequente, en- tendendo que as vozes encarnam corpos/personagens de comportamentos inusitados, Segundo Fischer Lichte, uma vez que há um público sempre haverá um papel. nem sempre corpos ligados aos papéis sociais, porém quase sempre vinculados à ideia Em entrevista com o pesquisador Matteo Bonfito, a autora dá o exemplo de artistas de representação. Nesse contexto, a discussão sobre representação é frequente, ao da performance art que se machucam durante uma performance. Para a pesquisadora mesmo tempo cada vez mais ambígua, considerando que a intenção e a percepção se elas “estão fazendo o papel de quem se machuca.”(FISCHER LICHTE, 2013) No encontram em contínuos tensionamentos e considerando o entendimento da noção entanto, o papel de quem se machuca durante uma performance não é um “faz de de performance em diferentes contextos. conta”, mas uma experiência do próprio corpo que após aquela ação não será o mes- mo. Fischer acrescenta que, no século XXI performers também trabalham com per- No Ocidente, damos um foco muito grande para a intencionalidade. Certo, isso acontece, pois preten- sonagens e estórias, e atores fazem uso de ferramentas e abordagens que inicialmente demos algo, mas temos que entender que os outros eram parte da estética da performance art. vão receber isso que realizamos com a melhor das in- tenções de maneira diferente. Posso transmitir, mas Meredith Monk não tem a intenção de definir o que as personagens emKey o resto não é possível. E temos que entender isso. representam ou de contextualizar o lugar da paisagem sonora, evidenciando a fonte (FISCHER LICHTE, 2013: p. 3) dos sons que aparecem durante a obra, constituindo, desta maneira, uma narrativa Segundo Zumthor (2014) o conceito de performance se refere sempre a al- específica e/ou única. EmKey há várias histórias possíveis, e para cada voz, várias guma ação sendo percebida. “A palavra significa a presença concreta de participantes interpretações possíveis. implicados nesse ato de maneira imediata” (ZUMTHOR, 2014) Para a pesquisadora A ideia de tela que vai sendo preenchida pelas diferentes técnicas (traços e de teoria teatral Erika Fischer Lichte, a consciência da ação sendo percebida é sempre cores) é recorrente nos depoimentos de Monk. A artista expressa que trabalha princi- teatral. É importante destacar que em alemão não há diferença entre o conceito de palmente com o líquido da obra e logo define a garrafa (estrutura). teatro e de performance. MEU TRABALHO É COMO LÍQUIDO CO- Em inglês, quando se fala em teatro, pensa-se em LORIDO; CONTINUA MUDANDO. ÀS VE- dramaturgia; enquanto na Alemanha, falamos em ZES É BRANCO PURO, ÀS VEZES LAMA- teatro quando há performances, sejam elas provin- CENTO. PRINCIPALMENTE É ANÔNIMO E das da dramaturgia, do teatro não dramático, da MUDA DE TAMANHO. ÀS VEZES CONGE- dança ou ópera etc. (FISCHER LICHTE, 2013: p. LA EM UMA FORMA POR UM CERTO TEM- 1) PO E ESPAÇO; ENTÃO TEM UM NOME: É CHAMADO DE PEÇA. É DESPEJADO EM 44 INÉS: A noção UM DETERMINADO RECIPIENTE ESPA- de performatividade está CIAL E CONGELA NESSA FORMA. ENTÃO, Judith Butler (2006) entende que a identidade é produzida por meio dos presente no trabalho QUANDO ISSO TERMINA, ELE SE VAPO- nossos atos performativos44, evidenciando que a mesma não é algo inato e que esta é de John. L Austin em “How To do Things with RIZA, TRANSFORMA-SE EM GÁS, DEPOIS Words”(1962)

54 55 VOLTA PARA O LÍQUIDO E FLUI E NOVA- Percebemos a presença do som vocal e da paisagem sonora apresentada em MENTE. A MAIORIA DAS PESSOAS PENSA Key, mas o registro foi feito, mixado. Se trata de um teatro já interpretado, gravado, APENAS NOS RECIPIENTES, NOS NOMES, NOS NOMES CERTOS, NA REPETIBILIDA- editado, perpétuo. Um teatro da repetição, em que o que se diz, já foi dito, e a pre- DE, NA OBJETIVIDADE. (MONK, 1997: P. sença e reação de quem escuta não terá nenhum poder sobre essas vozes, a não ser o 30)45 de recriar Key em cada reprodução. Esse processo de escuta e recriação é um processo performativo, na medida em que altera o estado físico e emocional, na medida em O que é o líquido para Meredith Monk é algo complexo já que se trata de que se trata de uma ação a partir do que é escutado. uma artista que procura uma espécie obra total no seu trabalho, onde a voz é enten- dida como mais uma articulação do corpo e os objetos e espaços são constantemente PENSANDO EM TODAS AS MINHAS ressignificados. Considerando que a maior parte das suas peças Monk surgem de PEÇAS COMO ARTISTA VISUAL, UMA DAS MINHAS PRIMEIRAS ABORDAGENS É QUE ideias vocais, talvez o líquido seja a relação e a tensão que a artista reconhece entre as UMA VEZ QUE EU TENHO A CONFIGU- vozes a medida que a composição é realizada, a transformação da materialidade das RAÇÃO ESPACIAL, EU TENHO A ESTRUTU- 46 vozes, sem definir uma estrutura prévia. Entretanto, o líquido pode-se referir também RA DA PEÇA. (MONK, 2014: P.87) às vivências da artista como mulher de origem judaica, budista, compositora; vivên- cias que tornam-se sonoras quando se tornam voz. Entender o espaço para Monk é uma preocupação referida à preparação de Escutamos as vozes enquanto ocorrem/tocam no disco, mas elas possuem uma performance no palco ou em outros espaços, mas também é pensar de que ma- uma certa leveza que se refere ao corpo que produz essas vozes. Parte do corpo vocal neira as vozes ressoam, como elas convivem e se fundem em relação com outros foi capturado na gravação, outra parte perdeu-se. instrumentos e com a arquitetura, também quando se trata de uma gravação. Con- A mediatização atenua ou apaga certos aspectos cor- siderando que a artista começa os seus processos a partir das vozes, muitas vezes em porais da performance, aqueles que se referem à “ta- contraponto, pode-se pensar que o lugar que cada voz ocupa, no espaço e na harmo- tilidade”, mas ela deixa subsistir um traço essencial; nia, definirá a estrutura da peça. Segundo Monk: o jogo, na transmissão da mensagem, de estímulos e percepções sensoriais múltiplas. (ZUMTHOR, EU ACHO QUE EXISTE UMA MANEIRA DE 2005: p.142) ESTRUTURAR QUALQUER MÍDIA COM O CONCEITO DE CAMADAS – CAMADAS E TRANSPARÊNCIAS. (AT & T, 1998: P.68)47 Há um vazio nas vozes acusmáticas. São graus de performatividade; na voz Os espaços acústicos trazem a noção de camadas de acontecimentos, assim gravada perde-se a presença do corpo. A presença que é presença por ser também mo- 46 Thinking of all como sucede nas suas performances, onde a artista trabalha com diferentes planos vimento e não se refere necessariamente à presença visual desse corpo, mas as vozes my pieces as a visual 45 My work is like simultâneos de movimento dos corpos e vozes. O público (ouvinte) escolhe em que ressoando em um determinado espaço, ao hálito, ao som acústico determinado pelo colored liquid; it keeps artist, one of my first changing. Sometimes it approaches is that once camada focar a atenção; em que voz e movimento reparar. Ao escutar mais de uma espaço e por outras fisicalidades. A questão das vozes acusmáticas não aparece unica- is pure White, sometimes I´ve got the spatial con- muddy. Mostly it is name- figuration, I´ve got the vez temos diferentes percepções que podem ser conduzidas intencionalmente ou não, mente a partir do desenvolvimento das mídias (rádio, gramofone, gravador, telefone), structure of the piece. less and it changes sizes. já que cada vez escutamos de um modo, dependendo das circunstâncias, da intenção mas já se encontra presente na mitologia grega, também na literatura e no cinema. Sometimes it freezes into (MONK in MARRANCA, a shape for a certain time 2014: p.87) e do estado físico/emocional. and space; then it has a O mito de Ovídio mostra o processo de uma ninfa “dotada de um talento name: it is called a piece. 47 I think there is São camadas de ressonância, como em Songs of Ascension48 (2011), onde as retórico” (CAVARERO, 2011) que é condenada a repetir as palavras dos outros, “se It is poured into a certain a way of structuring any spatial container and medium with the con- performers se deslocam numa torre construída pela artista Ann Hamilton, por uma torna uma ninfa vocal que rebate sons” (CAVARERO, 2011). Ao ser rejeitada por freezes into that shape. cept of layering – layer- Then when that is over, ing and transparencies. escada em espiral. Durante a peça as performers dançam, tocam shruti box, cordas, Narciso, Eco perde a sua materialidade, seu hálito, sua boca e pele, sendo reduzida a it vaporizes, turns into (AT&T, 1998: p.68) uma voz, ainda a voz da repetição. gas, then back to liquid and flows on and again. 48 INÉS: https:// (MONK in JOWITT, 1997: www.youtube.com/ p. 30) watch?v=c3mSVR3xtfU

56 57 percussão, e cantam, percorrendo a torre em um roteiro idealizado por Meredith Procedimentos para a exploração Vocal Monk.

O modo em que a concepção espacial de Monk é traduzida na gravação de Em Key há alguns procedimentos que se repetem ao longo do álbum. Orga- Key (LP) depende das possibilidades técnicas da época (1970) e de um imaginário nizei as peças segundo estes modos de compor a partir da exploração vocal. Procurei sensível que emerge das vivências e das memórias da artista. manter nos títulos dos modos as descrições dadas pela mesma artista nas Notas sobre Com o advento da gravação estereofônica, que pro- a voz ou no encarte do disco. No caso das “Visões”, o procedimento e o título das porciona uma forma de escuta que se aproxima mais 50 1975, solo for à escuta binaural de nossos ouvidos (MENEZES, unaccompanied voice peças verbais presentes no álbum são o mesmo. No segundo capítulo me baseio nesses (Songs from the Hill), the 1998), observa-se uma ampliação na utilização do voice a reflection, a mir- procedimentos e nas Notas sobre a Voz para refletir sobre as músicas emKey. espaço sonoro uma vez que a reprodução dos sons ror” (MONK in JOWITT, ocorre em canais independentes. (BORGES, 2014: 2014: p. 56) Originally p. 3) published in Painted Bride Quarterly 3, no.2 1 – Solo para voz desacompanhada50 – Escolha de uma escala e/ou de um tipo de emis- (1976) Em seu artigo “Elementos composicionais da espacialidade sonora” (2014), são vocal e suas nuances pela variação de registros51 explorados. o pesquisador Alvaro Borges discorre sobre a organização do espaço na música ele- 51 INÉS: Utili- zo o termo registro 2 – Paisagem vocal – contraponto de vozes cujas sonoridades se transformam ao longo troacústica49. Borges recorre ao trabalho de Francis Dhomont, para quem a especula- aqui para explicitar as mudanças no processo da peça, apresentando diferentes vocalidades, mantendo em cada uma das vozes o ção composicional do espaço sonoro acontece por três preocupações mais básicas: “o fonatório que modificam mesmo motivo melódico ou notas pedais. Gravação de diferentes camadas que por figurativo, o simbólico e o artificial” (DHOMONT, 1998). O espaço figurativo apre- a qualidade do som, variações que partem de sua vez apresentam diferentes espaços acústicos no disco. senta o primeiro propósito de espacialidade, de que maneira as vozes são captadas, em ações da musculatura intrínseca da laringe. 3 – Visões – Imagens acústicas dos sonhos em discursos verbais solos ou grupais (si- que local? Com que tecnologia? O espaço simbólico se refere ao espaço imaginário, Na sua pesquisa sobre a que procura captar a espacialidade de algum local. O espaço artificial é o espaço simu- terminologia da peda- multâneos). gogia da voz, a pesqui- lado, criado no estúdio, por meio da manipulação psicoacústica e da mixagem. sadora Joana Mariz diz: 4 – Trabalhando com um companheiro – Vozes viajantes sobre um tapete textural: Segundo MCKINNEY Embora a obra de Monk não seja pensada como música acusmática, é im- (1994), nenhum outro termo da pedagogia a) Ostinato com pausas súbitas portante ressaltar que o sistema de reprodução estereofônico e multicanal emerge da vocal é mais envolto em mistério, controvérsia e b) Ostinato com variação de acentos, de motivos melódicos, de tentativa de aproximar a escuta da gravação às percepções durante uma performance, confusão semântica do no que se refere à espacialidade e à tridimensionalidade do corpo/som no espaço. que o termo “registro”. instrumentação e de tempo. Ele pode dizer respei- Entretanto, é evidente que se Monk apresentasse Key hoje em um concerto, as vozes to a uma determinada c) Pedal – acordes ligados, em um tempo lento com variações har- região da extensão vocal soariam totalmente diferentes em relação à espacialidade sugerida no disco. Ao mes- (como quando se fala em mônicas mínimas mo tempo, a gravação seria também outra, dado às mudanças e recursos tecnológicos registro agudo, médio ou grave), a ressonância d) Ostinato predominantemente rítmico de um tempo constante. do século XXI. O disco é uma obra e a performance é outra. No disco foi possível (peito e cabeça), a um 49 Com o nasci- processo fonatório, a um acrescentar diferentes tipos de reverberação, gravar as ambiências de diferentes paisa- mento da Música Ele- certo timbre ou ainda a gens onde emergem instrumentos e vozes, trabalhar as intensidades, a estereofonia e troacústica no fim da uma região da voz que é década de 1940 emerge delimitada por quebras Faixas e procedimentos relacionados: os aparecimentos das vozes, entre outros recursos. uma importante questão: abruptas na qualidade como organizar os sons vocal. Embora a registra- no espaço? Este ques- ção esteja em maior ou 1. Porch tionamento, de ordem menor nível relacionada musical, está intrinseca- com todos estes tópicos, 2. Change mente ligado ao supor- o fenômeno dos regis- te tecnológico uma vez tros vocais passou a ser 3. Vision #1, Vision #2, Vision #3 que a composição ele- visto pela pedagogia troacústica se dá em es- vocal de maneira mais túdio e a sua reprodução objetiva e pontual depois 4. Understreet (b), What does it mean (a), Fatstream (c), Do you be (c), sonora é feita por meio dos aportes das ciências de alto-falantes. (BOR- da voz.” (MARIZ, 2013: GES, 2014: p. 3) p.52)

58 59 5. Dungeon (d) Categorias para as análises das vozes

52 Ordem das faixas em Key: Como apresentado na introdução, contarei com o trabalho de duas autoras 1. Porch para auxiliar a análise de alguns aspectos materiais das vozes, como parte do capítulo II. Do trabalho da pesquisadora Regina Machado (2007) farei uso dos parâmetros no 2. Understreet nível físico e técnico. A seguir:

3. What does it mean? Nível Físico

4. Vision • Extensão

5. Fatstream •Tessitura

6. Vision •Timbre (ou qualidade vocal)

7. Do you be • Voz Clara

8. Vision • Voz escura

9. Change • Voz Aberta

10. Dungeon • Voz Fechada

• Registro

• Basal

• Modal

• Elevado

Nível Técnico

52 INÉS: Optei • Emissão por não traduzir o nome das faixas já que os • Nasal títulos foram conjugados poeticamente para a composição e não todos • Frontal seguem uma estrutura gramatical convencional. • Coberta Sendo assim poderia pensar numa tradução • aproximada. No entan- Articulação Rítmica to, considerando que o interesse de Monk pelas palavras é predominan- temente musical, a tra- dução mudaria absoluta- mente a sonoridade. Ao mesmo tempo considero que o significado desses nomes é sugerido ao longo da pesquisa por meio da reflexão sobre as peças.

60 61 A pesquisadora Joana Mariz (2013) apresenta um quadro que ilustra as dife- rentes partes do corpo mais diretamente envolvidas na fonação e suas funções. O esquema mostra que a cada nível do sistema acús- tico corresponde um grupo de órgãos do aparelho fonador, com seus agentes mais importantes, e uma função fisiológica específica. Assim, a respiração desempenha o papel de geradora de energia para o sistema formado entre a fonte, isto é, a fonação, e o filtro, isto é, a articulação. (MARIZ, 2013: p. 42)

(MARIZ, 2013: p. 42)

Foto do acervo de imagens da Biblioteca Pública de Nova York. Sem mais informações.

62 63 A VOZ COMO FERRAMENTA PARA DESCOBRIR, ATIVAR, LEMBRAR, DESVELAR, DEMONSTRAR UMA CONSCIÊNCIA PRÉ-LÓGICA/PRIMORDIAL: PORCH (FAIXA UM) (2:14)

Solo para voz desacompanhada – 1

CAPÍTULO II As Notas sobre a voz (1976) e Key (1971) Meredith Monk em Novo México. Foto extraída do filmeThe inner voice de Babeth M. Vanloo (2009)

No dia dezesseis de dezembro de dois mil e dezessete assisti um pequeno concerto que Meredith Monk e algumas performers do seu ensemble (Jô Stewart, Ellen Fisher e Allison Sniffin) realizaram noGarrison Institute (Garrison, NY) como parte do retiro 53 Em 1976, foi lançado o álbum com Voice as practice que Monk e Fisher estavam conduzindo esse mesmo fim de semana. a gravação da maior parte das seções que Porch foi a primeira música apresentada e também é a primeira música em compõem “Songs from the hill” (MONK, 1989 Key. Segundo Monk, Porch é uma música de abertura, de concentração, uma música [1979]). Este álbum traz Monk interpretando que a artista escolhe no começo de alguns dos seus concertos para iniciar a perfor- dez faixas. Entretanto, o mance. Ao mesmo tempo, Porch é uma das poucas músicas de início de carreira que programa de um recital (MONK, 1987) registra a artista preserva no seu repertório atual, apresentando a mesma por mais de trinta doze seções: além dos 53 dez presentes no álbum, anos. Porch é também parte de um trabalho posterior chamado “Songs from the hill” . Breath song, que nunca foi gravada por Monk A performance de Porch realizada no concerto em Garrison (NY, 2017) seguiu (ao menos não com este título) e Porch, gravada a estrutura do solo apresentado em Key (1971), porém a versão apresentou também no primeiro álbum de Monk. (FALBO, 2014: p.78)

64 65 outras sonoridades e articulações rítmicas54 da voz diferentes às da gravação. Nas duas 54 Articulação rít- com atividade bastante É A NOVIDADE E O ANTIGO. ÀS VEZES mica: a maneira como reduzida. (PINHO, 1998: SINTO QUE A NOVIDADE TAMBÉM versões o solo explora movimentos melódicos em uma escala pentatônica com uma a cantora articula fra- p.18) INÉS: O fry pode ses e períodos, a partir ser aspirado ou produzi- ESTÁ VOLTANDO AO PASSADO, COMO voz clara, uma emissão frontal em um registro modal com nuances nos decaimentos da percepção rítmica do durante a expiração. O CICLO DO TEMPO. A NOVIDADE É de cada frase vocal. Na versão mais recente, o ruído vocal é menos destacado e as arti- da melodia e do próprio No caso do fry aspirado TOTALMENTE NOVA, E SÓ ACONTECERIA texto (letra), fundindo ou a pressão do ar é mais NESTE MOMENTO, MAS AO MESMO culações rítmicas são mais lentas. O solo tem uma curva dinâmica decrescente; as fra- dissociando esses ele- irregular e há mais TEMPO HÁ ALGUMA RESSONÂNCIA EM mentos, destacando ou possibilidades de atingir ses começam como chamados que vão se desdobrando num movimento mais interno. minimizando a maneira sonoridades polifônicas. RELAÇÃO A ISSO ACONTECENDO EM UM como aparecem na com- PASSADO ANTIGO. (MONK, 2018: P.59)59 Em Porch há uma continuidade na repetição das frases. Cada expiração é um posição. (MACHADO, 2007 p.59) INÉS: Ao se 58 Caja: tambor trajeto similar ao anterior: os ataques e os decaimentos procuram lugares em comum tratar de vocalizações andino/indígena. As com mudanças sutis e gradativas e com exploração de diferentes vogais entre estes. O sem letra, penso na arti- mulheres são as grandes No livro “Cantando las raices” (2000), sobre o canto andino com caja, a pes- culação rítmica como ou- protagonistas do canto trânsito entre as vogais [u] e [i] nasais evidencia a manipulação dos harmônicos da tros modos de subdividir con caja. (VALLADARES, quisadora, filósofa e cantora Leda Valladares reconhece diferentes estratos percorridos e acentuar as frases vo- 2000: p.25) https://www. voz. cais, comparando a per- youtube.com/watch?v=_ pelo canto ao longo da história, cujos canais são três: formance na gravação WnVZg55plU&t=142s e a performance ao vivo após mais de trinta anos. 59 It´s the new- NO FINAL DOS ANOS 1960, ALGUÉM • O canto milenar e agreste. A sua substância é o grito ME DEU UMA HARPA JUDAICA55, E ness and the oldness. 55 INÉS: berimbau Sometimes I feel like the e o guizo, com as mais variadas expressões vocais. A ISSO ME DEU MUITAS IDEIAS. AGORA de boca. newness is also cycling sua estética é do abismal e infinito porque não procu- EU ÀS VEZES CANTO ATRAVÉS DA back to the ancient, ra a forma nem a beleza senão o estouro da emoção. HARPA JUDAICA, PUXANDO MINHA 56 In the late like the cycle of time. 1960´s someone gave A sua técnica é a imaginação e a liberdade total da RESPIRAÇÃO AO MESMO TEMPO, O QUE The newness is totally me a Jew´s harp, and fresh and would only voz, que pode alcançar qualquer pulo mortal que sir- CRIA UM PARCIAL ENTRE A HARPA E A that´s given me a lot of happen in this moment, va para o dessangre psíquico. VOZ. TRADUZI A HARPA JUDAICA PARA A ideas. Now I sometimes but at the same time VOZ, E FOI ASSIM QUE COMECEI COM sing through the Jew´s there´s some resonance • O canto acadêmico, de origem europeu, regido pela harp, pulling my breath 56 toward it happening in impostação e pela suavidade, e por uma estética da HARMÔNICOS. (MONK, 1997 P.142) in at the same time, an ancient past. (MONK, harmonia, a beleza e a perfeição. which creates a partial 2018: p.59) between the Jew´s harp and the voice. I trans- 60 El del canto • O canto popular cuja estética é o bonito e agradável lated the Jew´s harp to milenário y agreste. Su e sua técnica espontânea, natural e sem tensões dra- A nasalidade na transição entre [i] e [a] possibilita articulações muito rápidas em voice, and that´s how I sustância es el grito y el máticas. (VALLADARES, 2000: p.7)60 Porch (do 0:03 a 0:05, e do 0:28 a 0:31). O tipo de emissão vocal frontal, assim como began with overtones. estertor con las más va- (MONK in JOWITT: riedades de la expresión o uso da escala inicial de cinco tons, as quedas em micro–tons e as mudanças na qua- p.142) vocal. Su estética es de 57 lo abismal e infinito por- lidade do som nos finais de frase (decaimentos com drive e fry) , se assemelham às 57 O vocal fry cor- que no busca la forma Valladares procura enfatizar a diferença entre os cantos de origem indígena e sonoridades presentes no canto andino com caja58 do noroeste argentino, cantos de responde à região mais ni la belleza sino el des- grave da extensão vocal, borde de la emoción. Su a canção popular e erudita (de origem europeia). É evidente que essas categorias não paisagens montanhosas e áridas. Nesses cantos a voz cria trajetos a partir das paisagens abrangendo uma faixa técnica es la imaginación se encontram tão abruptamente separadas entre si no que se refere ao uso da voz, po- de frequências de 30 a y la libertad total de la e das distâncias, e das passagens da extensão vocal, ligadas à sociabilidade e à terra. 75hz. Fisiologicamente, voz, que puede alcanzar rém Valladares faz uma crítica ao estudo da voz a partir de uma relevância puramente é produzido com pouco cualquier salto mortal Monk entende que “o que procura fazer com a voz é bastante primordial, no fluxo de ar e ativida- que sirva para el dessan- técnica distante da emoção e a partir das demandas da indústria e do mercado musical de predominante do gre psíquico. El canto no que se refere ao tipo de sonoridade vocal. É importante contrapor à distinção de sentido de tentar resgatar essa que é a forma mais essencial de enunciação humana, e musculo TA, principal- académico, de origen que vem antes das palavras”(GARCIA LOPES, 1996). mente seu feixe externo europeo, regido por la Valladares, que a dramaticidade é sempre inerente à voz por estar absolutamente liga- (correspondendo ao impostación y la tersura, da à experiência do corpo. A autora chama a atenção para o uso limitado da voz em que chamamos de fry y por uma estética de la relaxado) e outras vezes armonia, la belleza y la contextos urbanos em comparação com as vocalidades rurais, embora seja evidente, do TA, juntamente com perfección. El del canto o CAL (Hirano, 1982), popular cuya estética es segundo a pesquisadora, que a música urbana foi e é influenciada por estas. Segundo correspondendo ao que lo bonito y agradable y chamamos de fry de su técnica espontanea, Valladares os cantos são nus (milenar e agreste) ou disfarçados (acadêmico e popular): pulsos escassos, creaky natural y sin tensiones

voice ou fry tenso, com dramáticas. Canto pasa- os demais músculos ↴ tiempo. (VALLADARES, intrínsecos da laringe 2000: p.7)

66 67 Os primeiros (milenares e agrestes) cantam o ser e DESACOMPANHADA, SEM ORNAMEN- expelem a melodia, trituram a voz e desesperam a TOS (MONK IN JOWITT, P.57)62 linha melódica, e os segundos (acadêmicos e popu- lares) cantam a melodia e mostram o brilho da voz. (VALLADARES, 2000: p.15)61

Em Porch a voz desacompanhada é uma oferenda e ao mesmo tempo espelha uma Valladares destaca as abordagens vocais andinas em contraposição a um único paisagem. Os ornamentos se encontram nas articulações da própria voz, na explo- tipo de emissão legitimado, e a relevância da impostação da voz no caso do canto ração de fonemas nasais e nas transições entre as vogais. A voz desacompanhada ao “acadêmico” em detrimento de vocalidades que percorrem as possibilidades da voz a mesmo tempo se entrelaça com a paisagem, sendo ela parte desta e ao mesmo tempo partir da expressão das emoções, evidenciando quebras e quedas. Ao longo do livro, estrangeira, receptora de um silêncio desconhecido. Não há imitação, mas uma aber- a pesquisadora explica a diversidade de interpretações (quanto à melodia e à emissão tura para desestabilizar a própria voz. vocal, inclusive à letra) que possui, por exemplo, uma baguala de uma mesma região, Entendendo que a partir de uma investigação do corpo explora-se o vocabulário apontando para a importância da unicidade da voz das cantoras, entendendo a unici- vocal que não necessariamente se encontra vinculado ao estudo de um tipo específico dade no seu aspecto material e vivencial. de música, mas é comum à potência da voz, Monk diz: Ao refletir sobre o conceito de impostação vocal percebo que esta acontece tan- to no canto “acadêmico”, no canto “milenar”, e/ou na própria fala. No processo de A VOZ TRANSCENDE CULTURAS. ELA aquisição das línguas passamos por uma adequação técnica aguçada, a partir da qual TEM O PODER DE REDESCOBRIR E RECU- somos capazes de repetir as mesmas palavras e sons pelo aprendizado de determinadas PERAR MEMÓRIAS, SENSAÇÕES E EXPE- RIÊNCIAS PARA AS QUAIS NÃO TEMOS qualidades materiais das vozes. Toda emissão é apreendida a partir de conjuntos de MAIS PALAVRAS QUE AS TRADUZAM, padrões referentes às línguas ou idiomas musicais. Portanto, toda emissão poderia QUE FORAM ESQUECIDAS OU QUE ESTÃO ser considerada um tipo de “impostação da voz”. Entendo por idiomas musicais, REPRIMIDAS. O QUE FAÇO NA MINHA MÚSICA É UMA ESPÉCIE DE ARQUEOLO- territórios estilísticos com características sociais, harmônicas, rítmicas e melódicas GIA DA VOZ; GOSTO DE EXPLORAR SUAS específicas, assim como também no que se refere ao uso da voz, com suas inflexões e TEXTURAS, SUAS ENERGIAS. A VOZ TEM variações no tipo de emissão vocal. ESSA CAPACIDADE DE EVOCAR OU ES- CAVAR OUTROS NÍVEIS DE EXPERIÊNCIA. Se por um lado, a busca por um vocabulário próprio e por uma voz que vai além QUANDO SE LIDA COM VOZ É COMO SE MEXÊSSEMOS COM TODA A ARQUEOLO- da ideia de beleza herdada da música de concerto europeia faz parte da pesquisa vocal GIA DO SER HUMANO. EXISTEM EFEITOS de Meredith Monk, a estrutura musical que ela estabelece é um elemento muito pre- VOCAIS QUE SÃO ENCONTRADOS EM sente nas suas peças, assim como a forma canção (mesmo quando as palavras se au- QUASE TODAS AS CULTURAS: O GOLPE DE EPIGLOTE, QUE É UMA TÉCNICA QUE sentam). Por outro lado, Porch se aproxima do primeiro percurso do canto (milenar) USO, EXISTE NA MÚSICA DOS BALCÃS, sobre o qual Valladares discorre, considerando o tipo de sonoridade vocal e a abertura NA MÚSICA AFRICANA, NA ASIÁTICA. à paisagem que Monk documenta na cronologia de descobertas ao final das Notas (MONK APUD GARCIA, 1996: P. 206) sobre a voz nas músicas do disco “Songs from the hill”: 1975, SOLO PARA VOZ DESACOMPA- NHADA (SONGS FROM THE HILL), A VOZ Monk entende que as técnicas vocais são inúmeras e que é possível che- COMO REFLEXO, ESPELHO, RECEPTO- gar a estas de diferentes modos, nem sempre mediante contato direto com músicas RA DA NATUREZA; VOZES DE ANIMAIS, 61 Los desnudos ou vocalidades específicas, mas também a partir da investigação da própria voz que PLANTAS, INSETOS; SINAIS, CHAMADOS, cantan el ser y expulsan HIERÓGLIFOS; UMA OFERENDA À NATU- la melodia. Los encubier- evidencia um eu ligado à ancestralidade das vozes. Desta maneira, talvez a voz não tos cantan la melodia y REZA; A VOZ, TOTALMENTE SOZINHA, 62 INÉS: Tradução “transcenda culturas”, mas transpareça um tecido entre estas, enfatizando a potência lucen la voz. (VALLADA- de Conrado Falbo, 2014. RES, 2000: p.15)

68 69 da voz em todas elas. Monk procura realizar uma arqueologia da voz, entender a voz estatuto relacional da voz e, portanto, da palavra. A como forma arquetípica, ligada para nós ao sentimento de sociabilidade. alma, tal como acaba sugerindo Platão, pode des- considerar a phoné corpórea e se contentar com a O que Meredith Monk chama de consciência pre-lógica ou primordial se metafórica. Do filósofo grego em diante a alma fala obstinadamente com uma voz que não vibra. Quan- relaciona com a experiência inicial do corpo vocal. Há na vivência das vozes, memó- do o seu discurso interior sai da boca e se vocaliza, rias e sensações não lógicas e/ou não lineares, referentes à primeira escuta, ainda não ela passa a ajustar as contas com uma interlocução verbal que atrapalha a perfeição insonora e descor- pautada na dialética dos discursos verbais. porizada do colóquio solipsístico. (CAVARERO, O modo linear de pensamento sobre o tempo e a 2011: p. 205) estrutura não é satisfatório porque...não reflete o 63 The linear way modo em que nossas mentes trabalham. Estou mui- of thinking about time to interessada em fazer algo que tenha integridade and structure is not sa- A ontologia vocálica sobre a qual Cavarero discorre, considera a unicidade do em termos do modo em que a mente funciona. tisfying because...it does (MONK apud SCHLOSS, 1993: p. 17)63 not reflect the way that ser. Segundo a autora, esta ontologia opõe-se às ontologias filosóficas que nomeiam our minds work. I´m very interested in doing some- o “homem”, o “sujeito” e o “indivíduo”, denominações que não consideram as parti- Se o logos64 é entendido no âmbito da filosofia ocidental como um código a thing that has integrity in cularidades de uma voz. “A filósofa baseia seu argumento na relacionalidade da voz, partir do qual se entrelaçam as palavras produzindo semânticas verbais (como discur- terms of the way that the mind works. (MONK in e na compreensão de logos66 como ligação ou religação, do grego legein.” (JACOBS, so e/ou como racionalidade), a voz em si nos conecta com o que Cavarero apresenta SCHLOSS, 1993: p. 17) 2015) como signo (semeion). Ao discorrer sobre a emissão da voz humana e a dos outros 64 Logos deriva do verbo legein. Desde a Em Monk a voz é um modo de entender o mundo e de atravessá-lo a partir animais, a autora aponta: Grécia arcaica, este ver- bo significa tanto “falar” das vozes que soam junto. Ao mesmo tempo, a artista reconhece também nas vozes a Na Política, Aristóteles é muito claro sobre a ques- quanto recolher, “ligar”, tão. Ele aponta que só no homem a voz significa, ou “conectar”. (CAVARERO, unicidade, dando como exemplo, vocalidades que são produzidas por uma performer seja, é semantiké. Nos animais ela é signo (semeion) 2011: p. 50) durante o ensaio e que ela não consegue reproduzir, e vice – versa. Na exploração da dor e do prazer, é grito ou lamento. A voz antes 65 Expresso em vocal descobre-se esta unicidade, a partir de fisicalidades e experiências diferentes; da palavra – ou independente da palavra é simples- grego com termos como mente voz animal: fonação alógica, uma vez que as- nomea ou idéa, o que diferentes vozes, diferentes escutas. Sobre a questão da unicidade Cavarero também nós chamamos signifi- semântica, e, todavia, mesmo no animal, já semeion. aponta: (CAVARERO, 2011: p. 51) cado é, de fato, para a metafísica, um objeto do pensamento carac- A voz humana é falante e gritante. Como tal ela é também signo do prazer e do la- terizado pela visibilida- mento. Na voz humana a palavra e o grito convivem em tensionamentos constantes. de, clareza, evidência. Basta refletir sobre um caso frequente, reiterado e até Não se trata apenas da engraçado da nossa vida cotidiana. Alguém atende Cavarero reflete sobre a desvocalização do logos, entendendo que a escuta da voz é relação entre plano do o telefone ou pelo interfone, me pergunta: ‘Quem pensamento e plano da esquecida no âmbito da filosofia platônica. Segundo a autora herdamos o mundo palavra, e tampouco da é?’, ‘Quem fala?’. E eu respondo, sem hesitação: extremamente visual dos gregos.65 O logos é, neste contexto, “um logos abstrato, convicção, também tipi- ‘Sou eu’. A função despersonalizante do pronome camente metafísica, de eu – aqui acentuada pelo fato de que quem fala não anônimo: um código, um sistema” (CAVARERO, 2011), anulando qualquer tipo de que o pensamento prima mostra seu rosto – é assim imediatamente anulada sobre a palavra. Trata- unicidade e relacionalidade: se, bem mais, do gesto 66 Por mais que pela unicidade inconfundível da voz. O som vence fundamental que coloca seja difícil dar-lhe uma a generalidade do pronome. A cena engraçada do o princípio do sistema de definição unívoca, o cotidiano, versão banal da história de Isaac, demons- significação, o signifi- logos alude ao plano tra que cada ser humano tem na unicidade da voz O preço da eliminação do caráter físico da voz é, em cado, na esfera visual. da palavra e abrange a uma auto – revelação sonora que transpõe o registro (CAVARERO, 2011: p. 53) fonação. Não por acaso, primeiro lugar, a eliminação do outro, ou melhor, linguístico da significação. (CAVARERO, 2011: p. dos outros. Preanunciado pela metafísica platônica, Enquanto na tradição Aristóteles o definePho - hebraica a metáfora guia né Semantiké. Mesmo 205) o diálogo silencioso da alma consigo mesma não é da verdade à a escuta, reduzida a significante somente um monólogo; é um solilóquio que, mes- esclarece Hanna Arendt, fônico, a voz parece mo metaforizando-se na esfera da voz, neutraliza o a tradição metafísica de ancorar o logos em um matriz grega entende a horizonte onde existem verdade em termos de bocas e ouvidos, mais metáfora visual. (CAVA- do que olhos e olhares. RERO, 2011: p. 53) (CAVARERO, 2011: p.58)

70 71 É importante mencionar que quantas mais vozes sejam exploradas mais dificilmente este eu é reconhecível, apesar da sua unicidade. As vozes da voz revelam TRABALHANDO COM UM COMPANHEIRO: WHAT DOES IT MEAN? uma multiplicidade de “eus”, portas de vaivém abertas à entrada e saída de um outro. O eu é também outros na voz relacional que experimenta e transita entre as suas (FAIXA TRÊS) 3:58’ possibilidades. No entanto, a unicidade é definida por uma fisicalidade, uma escuta Ostinato com pausas súbitas – 4a. e uma história específica, resultando em sonoridades próprias de uma corporeidade 67 No original: I EU TINHA ESTUDADO PIANO QUANDO had studied piano as a irrepetível. child and teenager. In ERA CRIANÇA E ADOLESCENTE. NO CO- highschool I had written LÉGIO EU TINHA ESCRITO ALGUMAS PE- a few short piano pieces ÇAS CURTAS DE PIANO E APRENDI VIO- and had learned guitar to LÃO PARA ME ACOMPANHAR COMO accompany myself as a folk singer. From my folk CANTORA FOLK. DOS MEUS DIAS DE singing days, I remembe- CANTO FOLK, EU ME LEMBRAVA DO PRA- red the pleasured of an ZER DE UM INSTRUMENTO SER UM TIPO instrument being a kind DE TAPETE PARA A VOZ SE MISTURAR OU of carpet for the voice to SALTAR A PARTIR DO MESMO. ESCOLHI either blend with or leap from. I chose an elec- O ÓRGÃO ELÉTRICO EM VEZ DE UM PIA- tric organ rather than NO PORQUE GOSTAVA DOS TONS SUS- a piano because I liked TENTADOS, DOS TIMBRES ESPECÍFICOS the sustained tones, the CRIADOS PELAS VÁRIAS PARADAS E DO particular timbres crea- ted by the various stops, SENSO INERENTE DE ESPAÇO E ESCALA 67 and inherent sense of EM SEU SOM. (MONK, 1995) space and scale within its sound. (MONK, notas do álbum Key, 1995) What does it mean? É uma pergunta sem resposta, ou uma pergunta sendo 68 Para melhor ca- racterizar as diferenças respondida por mais uma pergunta. São vozes que evocam imagens que ainda são entre espaços e tempos lisos ou estriados, Boulez esboços. Entre o harmônico e o ruidoso, entre o tempo estriado do órgão elétrico e usará a palavra superfí- de uma voz estridente e insistente, e o tempo liso da voz grave em queda com uma cie. Na famosa definição proposta por Boulez a emissão ruidosa68. Uma voz que empurra o sistema nervoso para fora do corpo, na respeito das operações que constituem o tempo necessidade de existir sobre um grave continuo que não abandona o corpo. Duas liso e o tempo estriado, vozes convivem e se contrapõem, elas são a mesma, porém cada uma tem seu espaço. ele sintetiza: “no tempo liso, ocupa-se o tempo sem contá-lo; no tem- O órgão elétrico desenvolve uma introdução (0:00 a 0:24), apresentando uma po estriado, conta-se o tempo para ocupá-lo”. textura harmônica e rítmica repetitiva, até estabelecer um ostinato em que a voz entra (BOULEZ apud BONA- para a experimentação. Este tempo não é fixo, variando ao longo da peça, e apresen- FÉ, 2016: p. 107). Ele dirá que uma superfície lisa tando pausas súbitas. Há variações de timbre no órgão elétrico. Estas acontecem a é aquela na qual não é possível determinar nem medida que as vozes também mudam. Monk entende o acompanhamento das vozes uma velocidade nem um como tapetes texturais. Pode-se pensar esse acompanhamento também como fundo e sentido para os aconte- cimentos, pois “o olho suas vozes como duas figuras contrastantes. não encontra nenhuma referência à qual se pren- Em Emotion and Meaning in Music, Leonard Meyer, der” (BOULEZ, 1963, p. fundamentando-se na teoria da Gestalt, descre- 100). Já numa superfície ve textura como “…as maneiras com que a mente estriada, regular ou irre- agrupa estímulos musicais concorrentes em figuras gular, a velocidade e o sentido dos eventos se impõem. (BOULEZ apud BONAFÉ, 2016: p; 49)

72 73 simultâneas, uma figura e um acompanhamento ENERGIAS PARA AS QUAIS NÃO TEMOS (fundo), e assim por diante (MEYER apud NETO, PALAVRAS.(MONK, 2018)69 2007: p.185) No artigo “No marulhar das glossolalias em Artaud”(2013), os pesquisadores Há nessa percepção uma hierarquização de espaços realizada durante a escuta. Gil Roberto Almeida e César Lignelli investigam o conceito de glossolalia e o caracte- Essa hierarquização pode mudar ao longo da peça a partir da escuta no tempo. A me- rizam como um termo em contínua transformação através da história: dida que a peça transcorre, o que parecia ser uma figura pode se tornar fundo e vice Palavra ampla de sentidos, estranha, historicamente – versa. Figura e fundo são conceitos ambíguos em algumas composições e/ou con- mutante, conceitualmente espessa, de muitas cama- textos, apresentando-se como conceitos dinâmicos. Em What does it mean? distingue- das, emanação de manifestações divinas e psiquiátri- se inicialmente o primeiro fenômeno, uma vez que quando a primeira emissão vocal cas, de transes, de contornos poéticos, contraditória, fugidia, obscura. Como prática de enunciação, ela se se estabelece, entende-se que o órgão cumpre a função de acompanhamento, pela sua configura aqui, porosamente, como experiência pos- apresentação inicial e repetição, e pelo seu lugar no espaço, com menos intensidade. sível no campo da performance vocal, no entanto, ela se relaciona e faz precipitar uma gama infinda, Tanto o órgão quanto as vozes se encontram equilibradas na sua divisão estereofônica, muitas vezes insondável, de aspectos que contri- porém a voz se encontra enquanto no convívio com o tapete textural em um plano buem para uma visão sonoro – poética da vocali- frontal. No entanto, o que foi entendido como acompanhamento logo se instala dade: cantos litúrgicos, fórmulas ocultistas, línguas inventadas, vaticínios oraculares, vozes de possessão, como mais uma voz (figura, de 0:59 a 0:19) entre as exposições vocais, apresentando discursos ininteligíveis, jogos teatrais, transgressão também um protagonismo gestual, ainda como superfície estriada. Por outro lado, a linguística, ruídos de vozes. (ALMEIDA; LIGNE- segunda figura se apresenta como uma voz na ausência do acompanhamento inicial: LI, 2015:74-75) como figura e fundo simultaneamente. Ao indagar em uma perspectiva histórica do termo, os pesquisadores men- Em What Does it Mean? a experimentação da voz acontece em três exposições. cionam a glossolalia como constitutiva de rituais cristãos, na prática oral das igrejas A primeira entrada da voz (0:25) se desenvolve na insistência do material vocal, che- pentecostais, como uma manifestação da voz de Deus. Entretanto, o termo é utiliza- gando num pico (do grito e de agudos) na primeira frase. Em seguida, após a segunda do em diferentes âmbitos, sendo apropriado e entendido de diversos modos, quase exposição, o órgão se detém e a voz faz um glissando com uma emissão ruidosa, a sempre ligado à oralidade e a um dizer nômade, ou para além da linguagem verbal partir do fry com variações entre [ɑ], [a] e [Ʌ]. No segundo “interlúdio” entre as ex- reconhecida: posições, destaca-se um som eletrônico inharmonico (1:45 a 1:55), sugerindo a voz/ a glossolalia não é um fenômeno religioso estrita- fry que passa entre as primeiras duas exposições, produzindo um processo de síntese. mente cristão, pois fazia parte de práticas pagãs, sobretudo em contextos marginais, como é o caso A partir do minuto 1:56 o fundo se expande ao acrescentar uma nova camada com das práticas oraculares e outras liturgias na Grécia um novo timbre e que complementa o ostinato inicial, com uma figuração que tam- antiga. Ademais, é um termo que foi apropriado pela psiquiatria, pela psicanálise e pela linguística, bém oscila e alterna fórmulas de compasso. para registros nosográficos de patologias psíquicas e distúrbios da linguagem. Em qualquer contexto A primeira voz se apresenta em uma região modal e aguda, de emissão predo- relacionado à prática glossolálica, ela sempre se rela- minantemente frontal; uma voz que flutua entre uma espécie de glossolalia com os ciona com uma instabilidade, seja do discurso, seja fonemas [m], [n], [s] e [z] e uma queda em glissando pelo fry nos finais de frase; uma da vocalidade, seja do texto escrito, sempre como transbordamento e excesso de um código, norma ou voz na que predomina o uso de vogais fechadas. Monk não menciona o conceito de de uma estrutura. (ALMEIDA; LIGNELI, 2015: glossolalia nas suas entrevistas, porém entende essas vocalidades ou línguas inventadas 69 I actually feel p.76) that sometimes these também como criadoras de sentidos: phonemes and nonver- bal vocal qualities speak EU REALMENTE SINTO QUE ÀS VEZES ES- louder than words. SES FONEMAS E QUALIDADES VOCAIS They can also delineate, Em alguns momentos, a voz insinua palavras nos finais de frase. Na segunda NÃO – VERBAIS FALAM MAIS ALTO QUE more clearly, emotions exposição se reconhece a frase She drives me crazy. As transições vocais entre as expo- PALAVRAS. ELES TAMBÉM PODEM DELI- and energies for which we don’t have words. NEAR, MAIS CLARAMENTE, EMOÇÕES E (MONK, 2018)

74 75 sições são imprevisíveis e carregam um tipo de tensão entre as partes, sendo que não se sabe qual será o desenvolvimento da exposição seguinte. A voz muda sem aviso. A VOZ COMO LINHA DIRETA PARA AS EMOÇÕES. TODO O ESPEC- NO MEU TRABALHO HÁ UMA PEQUENA TRO DA EMOÇÃO. SENTIMENTOS PARA OS QUAIS NÃO TEMOS LINHA ENTRE O DISCURSO/FALA E FO- PALAVRAS: FAT STREAM (FAIXA CINCO, 7:28) NEMAS PUROS. VOCÊ TEM A SENSAÇÃO DE UMA VOZ FALANDO, MESMO AO SE Ostinato Pedal – acordes ligados, num tempo lento com variações TRATAR DE UMA LINGUAGEM ABSTRATA. harmônicas mínimas – 4 c (MONK, 2014: P.105)

Fat Stream se inicia com um arpegio maior ligado, num ritmo lento, junto Apesar de preponderar um tipo de emissão vocal, existe o contraste entre o com um pedal agudo na oitava acima do baixo inicial, estabelecendo a harmonia a que foi chamado de exposição da voz mais aguda, frontal e rugosa, que constitui a partir da qual a voz emerge. A primeira emissão vocal (0:18) é coberta, com vibratos glossolalia, e uma voz mais grave e agonizante, que corta o fluxo e nos prepara para instáveis apoiados em melodias tonais e decaimentos micro-tonais (0:45), transitando um novo lamento sobre o tempo estriado. Como se tudo aquilo fosse um sonho, ou por diferentes vogais. Esta primeira emissão talvez seja a mais próxima a uma emis- como se tudo surgisse na vigília, e o ruído da voz e do órgão participassem de uma são lírica. Apesar de Monk ter realizado práticas de ópera durante a sua formação, a queda, quebrando a insistência. O órgão acrescenta agudos com um timbre de sino artista afirma que seu principal desejo era descobrir o seu modo pessoal de usar a voz. em forma de pedal (2:20 a 3:38), insistente, na tentativa de aproximação com esse Entender quais são as possibilidades no próprio corpo vocal, e não seguir um modelo ser híbrido e vibrante, diminuindo a intensidade e a velocidade. No entanto, este fica único. Sendo assim, o treinamento clássico vira mais uma ferramenta, invés de uma ressoando sem a voz, até a voz rugosa voltar em um glissando, escorregando, quase regra. Ao descobrir o seu próprio repertório de vocalidades, Meredith Monk compõe sem força, e o sonho, ou a consciência insistente, acabar. a sua obra. AO LONGO DO TREINAMENTO VOCAL CLÁSSICO, SENTI QUE NUNCA TIVE O TEMPERAMENTO PARA DEDICAR MINHA VIDA À EXECUÇÃO DE REPERTÓRIO PA- DRÃO. SIMPLESMENTE NÃO PARECIA CERTO OU CONFORTÁVEL.70 (MONK, 1990: P. 1)

Uma segunda emissão acentua o [i] frontal (1:00) como em um chamado repetitivo. Uma terceira voz evidencia variações de movimento de lábios modificando os harmônicos nos finais de frase (1:33), logo com ataques mais fortes (1:50), com movimentos do palato mole, do fundo da garganta, e um grito com a vogal “a” em uma textura mais ruidosa (1:54), tensa e chorosa. Aos poucos volta para uma sono- ridade mais lírica com vogais e glissandos ascendentes e descendentes (2:21) em baixa intensidade. São vogais fechadas; notas longas flutuando sobre o arpegio inicial. Volta ao [i] frontal ligado à voz inicial com vibratos, mais lamentos,…transita entre uma e outra, e ao mesmo tempo emergem novas possibilidades e variações entre as vozes já 70 Throughout the classical vocal training, apresentadas. A partir da segunda exposição das vozes (3:45), após uma breve reapre- I sensed that is was ne- sentação da introdução do órgão elétrico, algumas antecipações das frases vocais que ver my temperament to devote my life to perfor- virão escutam-se de forma mais evidente, porém em uma baixa intensidade. O tapete ming standard repertoi- re. It just didn´t feel right textural é constante e as vozes flutuam sobre o mesmo. O movimento é contínuo, mas or confortable. (MONK, 1990: p. 1)

76 77 a emoção/emissão se transforma ou transita pelo espectro apontado por Monk. (CERQUEIRA LEITE apud BACKES, 2010: p. 23-24) Se a emoção possui um espectro, ele é particular e diferente em cada pessoa. Ao mesmo tempo, o espectro é dependente e interligado com outros espectros. Em Wolfsohn procura recriar os gritos de guerra pelos quais tinha sido profun- seu livro “A voz articulada pelo coração” (2013), a pesquisadora e atriz Meran Vargens damente atravessado, mas que nesse momento estariam escondidos como marcas distingue emoção de sentimento, destacando a primeira como volátil e passageira, e o reprimidas no seu corpo, incapazes de sair a luz após o período de guerra. Ao não último como “cultivado e duradouro”. Ter palavras para os sentimentos é alimentá-los encontrar nenhum professor de canto que entendesse e aprovasse esse desafio, já que a partir da linguagem e do que recriamos como memória. Cultivar um sentimento é a maioria considerava o grito como prejudicial para a voz, Wolfsohn começa a expe- agir sobre ele. Há uma intencionalidade no que conhecemos como sentimento. Já as rimentar suas ideias em si mesmo: emoções parecem escapar do domínio da intenção, apesar de sermos conscientes das Ao longo das suas descobertas, com o que ele cha- mava de “exorcismo oral”, ele descobriu uma exten- mesmas. “A emoção é uma usina atômica de energia” (VARGENS, 2013) “E emoção são inimaginável, percebendo que a sua voz pode- não é o mesmo que sentimento. Emoção real – não temos nem uma palavra para isso. ria expressar inúmeras possibilidades de emoções, Não é tolice, tristeza. É como tons sutis de sentimento ou energia.” (MONK, 2014) atmosferas e personagens. Ele poderia trazer para a voz, não só os tons agonizantes do sofrimento, como Assumir que é inevitável transitar de um estado para o outro é mais importante para também a intensa alegria e prazer. A excitação com Monk do que escolher um tom emocional único predefinido. O que as vozes emFat suas descobertas fizeram com que ele continuas- Stream devem expressar não se encontra escrito; é uma corrente, um fluxo de passa- se a experimentar sua voz consigo mesmo durante muitos anos, conseguindo o tão esperado alívio das gens sutis entre sonoridades aproximadas. manifestações físicas do seu sofrimento. (BACKES, 2010: p. 26) Em sua pesquisa sobre voz e emoção (2010), a pesquisadora Laura Beatriz Backes apresenta teóricos do teatro que procuram uma descoberta da voz a partir do O que começou como um processo de cura tornou-se potência para a imagi- desbloqueio das emoções, estabelecendo relações entre processos da psicologia71 Freu- nação e a experimentação. É evidente que os dois processos convivem; os processos diana e Junguiana em suas práticas. Para isto estuda as práticas de Wolfsohns, Roy somáticos e os da criação, o enfrentamento das aflições e a produção de prazer. Per- Hart. Sobre Wolfsohn (Alemanha, 1896 – 1962), e ela diz: cebe-se como a experimentação vocal abre espaços no cotidiano das pessoas, espaços As técnicas de Wolfsohn nasceram da descoberta de que muitas vezes eram absolutamente negados e/ou desconhecidos. Nesse processo de novas possibilidades da voz relacionadas a uma si- escuta e de elaboração de si, o corpo vocal pode trazer experiências que foram esque- tuação de alto impacto emocional. Wolfsohn, aos 17 cidas ou anuladas, assim como revelar algum aspecto da personalidade. anos, participara da Primeira Guerra Mundial como maqueiro, transportando feridos do campo de ba- talha para os postos de enfermagem. Ao longo da guerra vivenciou sucessivas situações perturbadoras ligadas aos gritos de agonia de seus companheiros. 71 Considero, ain- (BACKES, 2010: p. 23) da, que há um paralelo importante a ser traçado com Reich, ainda que não haja uma influência Após a guerra, Wolfsohn procura diferentes terapias e conclui que precisa direta nas pesquisas de Wolfsohn. A procura realizar uma catarse a partir das vozes, entendendo que os seus traumas psicológicos de Reich em esclarecer como se dá a repressão se encontravam intimamente ligados às vivências do seu corpo durante a guerra. das emoções, relacio- nando os desbloqueios Catarse é “o método terapêutico que permite a evo- do corpo e da voz com cação e a revivência de acontecimentos traumáticos a liberação da pessoa é que foram reprimidos, permitindo a descarga dos semelhante à proposição afetos ligados a estes.” Já a ab-reação seria a própria de Wolfsohn, sintetizada numa frase de Roy Hart, descarga emocional que libera estes afetos, tornan- “a pessoa é aquilo o que do-os conscientes e aliviando os sintomas somáticos. pode cantar”. (BACKES, 2010: p. 22)

78 79 É um mecanismo onde o que primeiro reconhecemos é a diferença, pela história de uma voz, pela aquisição de uma língua ou, no caso de uma voz desconhecida, A VOZ COMO LINGUAGEM: VISÕES, VISION #2 (FAIXA SEIS, 2:03) pelo estranhamento que gera a escuta de uma voz que não pertence ao reconhecido politicamente como o sotaque oficial. A diferença sempre possui relações com o que Cada língua possui um repertório de sons e seus modos de articulação. Pode- é determinado como o hegemônico, priorizando um sotaque em detrimento de um se dizer que cada língua possui uma sonoridade específica e para cada língua explo- segundo ou terceiro, qualificando-o como “o outro”. ram-se diferentes qualidades materiais das vozes. Isto significa que, por exemplo, a Nas denominadas “Visões” Monk pede para as performers explorarem as vo- nossa língua materna propicia um determinado conhecimento da voz no processo de zes a partir de relatos de sonhos no intuito de sugerir imagens. Segundo o autor Paul aquisição da linguagem verbal. Ao mesmo tempo cada língua é constituída em um Zumthor (2014), “não se sonha a escrita, a linguagem sonhada é vocal”. Durante os determinado território, onde há múltiplos sub-territórios, que determinam sotaques, sonhos somos capturadas pelas vozes e pelas paisagens. e que são adquiridos a partir da experiência de cada corpo, manifestando também um A escrita se constitui numa língua segunda, os signos sotaque próprio. gráficos remetem, mais ou menos, indiretamente a palavras vivas. A língua é mediatizada, levada pela Em uma escuta das palavras para além do seu significado sugere-se um espa- voz. Mas a voz ultrapassa a língua; é mais ampla do ço onde todas as sonoridades se encontram, sejam elas elementos constitutivos das que ela, mais rica. (ZUMTHOR, 2005: p. 63) línguas ou não. Existe um sentido dos sons que a voz produz, construído a partir do Entre a língua escrita e a fala, toda língua possui uma distância, uma espécie contexto social e das especificidades do corpo vocal. No trabalho de Meredith Monk de vácuo, no que se refere à escolha das palavras, às construções gramaticais utilizadas há vários exemplos, como em Quarry (1976)72. O performer Ping Chong, vestido e ao modo de dizer, como se a língua resistisse à experiência de cada corpo. Por outro de terno, com as mãos na cintura, interpreta o ditador. Chong cria um discurso de lado, “a leitura de um texto poético é a escuta de uma voz.” (ZUMTHOR, 2014). Ao vocalidades ininteligíveis, gritadas, com um efeito de delay constante falando para perceber que há graus de oralidade também na escrita, talvez o vácuo encontre-se no uma grande plateia. Reconhece-se que Chong é o ditador pela entonação das palavras que concebemos como linguagem, em contraposição à oralidade. Segundo Cavarero: inventadas, pela sua postura e gestos ao vocalizar. A linguagem generaliza, universaliza, apaga as di- Ao escutar uma língua que desconhecemos, talvez o primeiro foco de atenção ferenças. Procede por semelhanças e abstrações, re- sumindo a multiplicidade das coisas a uma série de seja a sonoridade da mesma: Qual é a sua melodia, como são seus ruídos e quais são os nomes, continuamente reiterados como o mesmo. resíduos da fala? Ao escutar uma língua que conhecemos ou mesmo a nossa primeira (CAVARERO, 2011: p.68) língua, falada por alguém que possui um sotaque novo para nós, inicialmente escu- Se o sistema da linguagem universaliza a experiência ao dar um significado tamos o sotaque e depois o que a pessoa disse (o significado). Mesmo quando não se para cada palavra representando uma vivência ou um objeto (as vezes alguns significa- trata de uma voz que reconhecemos como diferente, de imediato captamos o hálito dos possíveis, no caso das palavras e línguas polissêmicas) a voz tensiona essa definição dessa voz, sua presença material. 72 INÉS: https:// www.youtube.com/ a partir da unicidade do corpo e da experiência do mesmo. Uma mesma história con- Mesmo no nível mais banal da experiência diária, watch?v=Rnfptm-IwxY tada por pessoas diferentes não é a mesma história, assim como a imagem das palavras quando ouvimos alguém falar, a princípio, podemos “ruído”, “terra” ou “fome” são imagens específicas em quem enuncia ou escuta essas estar muito conscientes de sua voz e de suas qualida- 73 Even on the des, sua cor e sotaque, mas logo nos acomodamos e most banal level of daily palavras. Sendo assim, toda e cada voz algo diz, mesmo quando repetem-se as mesmas nos concentramos apenas sobre o significado que é experience, when we lis- transmitido. (DOLAR, 2006: p.15)73 ten to someone speak,we palavras, ou mesmo quando estas se ausentam. may at first be very much aware of his or her voice Entendida como algo que sai da boca de alguém, a and its particular quali- palavra, mais do que lugar de expressão, é o ponto ties, its color and accent, de tensão entre a unicidade da voz e o sistema da but soon we accommo- linguagem. (CAVARERO, 2011: p.30) date to it and concentra- te only on the meaning that is conveyed. (DO- Mladen Dolar entende o ato de tossir e o soluço como quebras no discurso LAR, 2006: p.15)

80 81 verbal, ao se tratar de reações que interpreta como fisiológicas, não intencionais ou disco, que funcionam como contrastes entre as vocalidades exploradas no resto das não “culturais”, no sentido de não carregarem significados dentro da linguagem em faixas, a performatividade vocal dos sonhos evidencia as nuances sonoras das modu- si. Porém ele também discorre sobre a mensagem embutida nessas sonoridades lações da língua, com diversos sotaques e entonações, e sugere outras recepções da que o autor chama de pre – simbólicas: palavra, mais ligadas às imagens de um discurso poético e à flexibilidade das vozes, do “Semiótica da tosse”: tosse enquanto se prepara para que à palavra em si. falar, usa-se a tosse como comunicação fática de SEMPRE PENSEI NA VOZ COMO UMA LIN- Jakobson, estabelecendo um canal de comunicação GUAGEM EM SI MESMA […] ENTÃO, SE de comentários irônicos que põe em risco o sentido ESCUTO [O IDIOMA] INGLÊS AO MESMO do enunciado; como uma notificação da presença TEMPO EM QUE ESCUTO O SOM DA VOZ, de alguém; como uma interrupção de um silêncio PENSO NISSO COMO DUAS LINGUAGENS. difícil; como parte da pragmática da comunicação SE EU USO A LINGUAGEM [VERBAL, NAS 74 telefônica. (DOLAR, 2006: p.24) COMPOSICÕES]...ELA É UMA TEXTURA SONORA TANTO QUANTO É UM TEXTO. SE EU USO UM TEXTO, ELE VAI SER MUITO Nesses casos o pre – simbólico adquire significado em oposição ao SIMPLES, E ESTARÁ LÁ TANTO PELO SOM QUANTO PELO SIGNIFICADO. E TAMBÉM simbólico. No caso da risada, uma especificidade humana, pre – simbólica e simbó- ACHO QUE A MÚSICA, EM SI MESMA, É lica, esta se coloca como uma expressão vocal em relação com o discurso verbal, mas UM MEIO MUITO EVOCATIVO. É MUITO também possui uma independência do mesmo como sonoridade fisiológica. Tanto as ABERTO. E EU NÃO GOSTO DA IDEIA DE QUE AS PESSOAS PRECISAM TRABALHAR vocalidades que Dolar (2006) chama de pre – simbólicas como as simbólicas, podem ATRAVÉS DO FILTRO DA LINGUAGEM ser acionadas, sendo ressignificadas. Tanto as vozes fisiológicas como as simbólicas (MONK, 2001: P. 109)76. carregam as marcas de um corpo, e portanto, todas elas comunicam algo, mesmo quando são entendidas fora do domínio da linguagem. Na visão número 2 (faixa seis), criada por Lanny Harrison, a artista utiliza di- Nas Visões a tentativa de recriar as imagens acústicas dos sonhos sugere diver- ferentes emissões vocais, apresentando três personagens conversando entre si. Pode-se sas interpretações. Por um lado, escuto um texto em inglês, com diferentes sotaques, entender também como um monologo de oposições, três personagens em uma; uma com palavras reconhecíveis, porém, assim como nos sonhos, elas não se encontram voz que se acelera gradativamente, em uma fala atropelada, com uma sonoridade na ligadas de maneira que seja necessariamente destacada uma narrativa linear, mas prin- 74 “semiotics of que predominam os harmônicos médios; uma voz coberta, com mais harmônicos cipalmente uma poética da lembrança do sonho, a partir da qual é difícil saber o que coughing”: one coughs 76 I have always graves, apoiada nas vogais, mastigando o som; e uma voz estridente que se apoia nas veio antes e depois, e de que maneira surgiram as imagens. while preparing to speak, one uses coughing as thought of the voice as consoantes. As vozes ressoam em um espaço com bastante reverberação. Entre as vo- Jakobson’s phatic com- a language in itself... So Desta forma, escuto vocalidades que procuram recriar rastros do inconsciente, munication, establishing if I listen to English as zes há um comentário da harpa de boca (0:29). Além da variação no tipo de emissão a channel for communi- I hear the sound of the definidas pela linguagem verbal, mas independentes desta pela sua plasticidade so- cation ironic commen- voice, I think of it as two vocal, há variação na velocidade das frases, há repetição de palavras com entonações nora e imagética. É importante destacar que ao ser o inglês uma segunda ou terceira tary which jeopardizes languages. If I use lan- diferentes e explosões vocais ininteligíveis. As acentuações das palavras não se encon- the sense of the utte- guage [verbal, in com- língua no meu corpo, percebo às Visões mais facilmente como fenômenos sonoros, rance; as a notification positions]... it is a sound tram necessariamente ligadas ao seu significado. of one’s presence; as an texture as much as it is mesmo ao entender o significado das palavras. Quando escutamos uma língua sobre a interruption of a difficult a text. If I use a text, it haveria muito a dizer sobre o valor concreto da silence; as part of the will be very simple, and entonação no teatro, sobre a faculdade que tem as qual não temos total domínio, ao não realizar uma conexão imediata com a dimensão it will be there for both pragmatics of telephone palavras de criar, também elas, uma música segun- linguística do discurso, a percepção sonora predomina, percepção melódica, rítmica, communication. (DO- sound and meaning. And LAR, 2006: p.24) I also think music, in do o modo como são pronunciadas, independentes de acentos e entonações.“O fato de eu usar palavras de maneira abstrata é ainda uma itself, is a very evocative do seu sentido concreto, e que pode até ir contra 75 medium. It is very open. esse sentido se criar sob a linguagem uma corrente ideia musical de texto em oposição a uma ideia narrativa.” (MONK, 2014) 75 The fact that I And I do not like the idea use words abstractly is that people need to work subterrânea de impressões, de correspondências, de Apesar de Monk ter escolhido a presença das palavras para essas secções do still a musical idea of text through the language analogias. (ARTAUD, 1999: p. 37) as opposed to a narrative filter(MONK in KEY; RO- idea. (MONK in MAR- THE, 2001: p. 109,Tradu- RANCA, 2014: p.105) ção de Conrado Falbo).

82 83 No monólogo são feitas descrições de um lugar (“pequeno quarto”, “com artísticas, onde criam-se outras possibilidades de se relacionar, onde criam-se outras muitas paredes”) e de diferentes aparições (“plantas”, “criaturas”, “fantasmas”, “pás- ordens, onde as regras são outras. saros”, “pequenos gatos”, “um homem que veste uma camisa azul”, “uma cabeça ras- pada”) e ações (“colocando coisas em suas bocas”, “correndo ao redor”, “sabia que eu devia conhecê-lo”, “saiu fora do bolso”). Também há frases na primeira pessoa, anunciando a protagonista do sonho: “Fui ao fundo”, “Estou muito ocupada agora”. Ao perguntar sobre a participação de Lanny Harrison na Visão #2, a artista responde:

muitas vezes eu basearia os meus monólogos em um sonho de uma noite antes de uma apresentação. Os sonhos me contaram como contar uma história, ou me informaram sua forma, estilo, cor, pessoas, eras. O sonho de Key é sobre meu marido Collin Walcott. (HARRISON, 2019)77

Na cronologia de descobertas das Notas sobre a voz, Monk descreve Key como um disco de movimentos pelas paisagens de sonhos (moving through dream scapes). No livro “Meredith Monk” (editado por Deborah Jowitt) há textos de sonhos escri- tos por Monk. Para a artista os sonhos são referências em várias peças, assim como menciona Harrison. Se movendo entre paisagens de sonhos, os monólogos aparecem como um modo de levar a atenção para um outro lugar, apontando para outras nar- rativas.. Sobre a aparição e a ordem desses monólogos no disco, Harrison diz: muitas vezes usamos monólogos para colorir ou au- mentar ou fazer parceria com o movimento ou para apontar para uma ação ou ser contida por uma. às vezes as palavras eram muito escassas, ou, no meu caso e no de Mark Berger, a história poderia desven- 77 Often I would dar e desvendar e ser surpreendente ou sublimemen- based my monologues 78 on a dream from the te louca. (HARRISON, 2019) night before a perfor- mance. The dreams told Nos monólogos parecem ser alternados dois procedimentos, os dois influen- me how to tell a story, or they informed me their ciados entre si. Por um lado, a reconstrução dos sonhos das artistas através dos relatos. shape, style, color, peo- Por outro lado, a investigação da ressonância das vozes no espaço, se desapegando das ple, eras. The dream on Key is about my husband palavras que constituem a história, em um processo de repetição das mesmas. Nesse Collin Walcott.

processo de investigação do eco das vozes, outras palavras emergem, palavras que 78 We often used não necessariamente foram consideradas inicialmente para o relato dos sonhos. De monologues to color or heighten or partner with um modo e do outro, os sonhos se constituem como processos inconscientes que ao movement or to point to an action or be contai- ser narrados perdem sua característica principal. Durante os sonhos há outros mun- ned by one. sometimes dos possíveis, condensando realidades já vividas, inventando outras e iluminando os words were very sparse, or, in my case and in desejos mais recônditos; a linguagem sonhada se encontra vinculada às abordagens Mark Berger´s, The story was allowed to unra- vel and unravel and be surprising or sublimely crazy.

84 85 rajoso pelo telhado do seu loft ou por todo o teatro, e eu, como a Dama Branca revelada em sua escada A VOZ COMO MANIFESTAÇÃO DO SELF, PERSONA OU PERSONAS: de incêndio, ou em uma subida em uma escada, me DO YOU BE (FAIXA SETE, 4:12) inspirava em sua voz, em sua música, no seu brilho como criadora/performer. (HARRISON, 2019)80

Ao conceber o self como um fenômeno em devir, entende-se que a percep- ção de si e do mundo é continuamente reconfigurada. Desta maneira, as vozes são Embora Do You Be seja parte do repertório da ópera Vessel, estreada no mesmo percebidas também como um fenômeno em movimento, sendo inventadas a cada ano do LP em questão, é preciso escutá-la também no contexto do Teatro Invisível em momento. “A voz é uma construção a cada momento que se materializa, que se cor- Key, sem a ambição de tentar recriar a ópera de Monk, constatando que a música das porifica em formas de ondas sonoras” (VARGENS, 2013) Segundo o pesquisador vozes em Do You Be carrega o peso da história em Vessel. Entretanto, independente- Alexandre Socha, “embora a voz veicule uma determinada subjetividade, considerá-la mente de sua montagem visual e da concepção da ópera, Do You Be existe como peça expressão do self seria o mesmo que assumir o self como uma cápsula intrapsíquica 80 A love listening musical, possibilitando outras leituras e escutas. Nas palavras da artista: to Meredith´s Do You Be definida e bem delimitada” (SOCHA, 2010). Nessa perspectiva, a voz seria mais uma from Vessel. Her voice experiência do self do que uma expressão, se apresentando como potência gestual e in- sailed like a disembodied EU TOMEI UMA DECISÃO, EM CERTO and brave spirit throu- PONTO COM MEUS ÁLBUNS DE NÃO dividual, porém sempre sendo travessada por outras vozes. Em Monk, entender a voz gh the roof of her loft or throughout the theater... FALAR SOBRE OS ASPECTOS VISUAIS como um fenômeno em movimento se vincula a abertura da artista ao desconhecido. and I, as The White Lady DE UMA PEÇA QUE AS PESSOAS NÃO Ao mesmo tempo, a compositora concebe a interdependência dos elementos que ela revealed on her fire esca- VÃO VER, PORQUE ENTÃO ELES DIZEM: pe or on tour up on a lad- - QUERIA TER VISTO A PEÇA INTEIRA. E fricciona em uma mesma obra como uma analogia com a interdependência dos seres. der, took inspiration from her voice, from quer mu- EU DIGO: - VOCÊ GOSTOU DA MÚSICA? sic, from que brilliance (MONK, 2017)81 as conssumate criator/ A IDEIA DE DEIXAR TUDO PARA QUE ALGO performer. Em Key Do You Be começa com o ciclo de ataques e longos decaimentos de REALMENTE NOVO POSSA PASSAR. A IN- 81 I made a de- um som contínuo no órgão elétrico, um pedal, um fundo sem silêncios, uma sequên- TERDEPENDÊNCIA – EU SEMPRE TIVE A cision at a certain point IDEIA DE TECER ELEMENTOS JUNTOS with my albums not to cia de acordes ligados que preenche o espaço, ao mesmo tempo deixando um grande PERCEPTUALMENTE. É TAMBÉM UM RE- talk about the visual as- vazio; um fundo grave que chama a ação das vozes em regiões agudas para estas serem FLEXO DA IDEIA DE INTERDEPENDÊNCIA pects of a piece that peo- ple are not going to see, ouvidas. A dramaturgia dos acordes mostra como o corpo vocal envelhece, como ele DA PERCEPÇÃO E DOS SERES. EU FIQUEI because then they say, “I MENOS COM MEDO DE ARTICULAR ISSO. wish I saw the whole pie- se faz matéria. É nomeado e logo some repentinamente, se ausenta, porque nomeá-lo EU NÃO TERIA ARTICULADO QUANDO ce.” And I say, “Did you é destruí-lo. O som da voz insiste sobre diferentes gritos e relações com o fundo. EU ERA JOVEM, MAS ACHO QUE ESTA- like the music? (MONK, VA REALMENTE FAZENDO ISSO. (MONK, 2017) O órgão nos registros inferiores está escavando algo; 79 é em parte uma batida de meditação e, em parte, 2014: P.50) 82 The organ in the lower registers is uma limpeza de submersão, mas, contra esses cons- 79 The ideia of dregging at something; tantes batimentos de meditação de apagamento, letting go of everything it is partly a beat of de repente desenrolam-se os gritos insistentes e es- so that something really meditation and partly a tridentes das vozes de Joana. Eles vão em direção à neat of submersion, but new can come through. cabeça em saltos; eles brotam para nós em um cru- A música Do You Be foi gravada e lançada em um disco pela primeira vez em The interdependency against these steady dre- – I Always had the idea dging meditation thumps zamento surpreendente e desumano do primordial e Key (1971), mas é também parte da ópera épica Vessel (1971) sobre a história de Joana of weaving elements is suddenly uncoiled the eletrônico. (SAINER, 2014: p. 59)82 together perceptually. Is high-pitched, insistent d´Arc e do disco Do You Be (1987). A artista Lanny Harrison sugere Do You Be quan- was also a reflection of cries of Joan´s voices. Quando o tempo do tapete textural sincopado parece se estabilizar, ele os- do peço para ela escolher alguma música em Key. Harrison comenta: the ideia of interdepen- They drive at the head dency of perception and in leaps; they spring at cila mais uma vez para dizer: não há corpo que não flutue, não há corpo que não beings. I have become us in an astonishing, se perca na junção dos diferentes tempos internos, que são muitos, que fracassam less afraid to articulate inhuman cross-breeding Amo escutar a música Do You Be da ópera Vessel. Sua that. I wouldn´t have of the primordial and voz navegava como um espírito desmembrado e co- articulated when I was electronic. (SAINER in Young, but I think I was MARRANCA, 2014: p. really doing that. 59)

86 87 para surpreender, para desvendar mais uma voz. Do You Be é um leque de duas cores Thanos Vovolis e Giorgos Zamboulakis explicam que a máscara no teatro grego fun- principais com variações de fonemas, de dinâmicas e de intensidade das vozes sobre ciona como uma caixa de ressonância para as vozes, proporcionando as condições o tapete textural ligado dos acordes. Monk apresenta diferentes modos de ulular em para a metamorfose do ator e/ou da atriz. Segundo os autores: direção à região mais aguda da voz (1:02), modos de desenhar com as formas do O aparecimento da máscara trágica da era clássica é 83 uma representação de um estado de ser do corpo / riso (1:50), modos de glossolar, de desejar ficar (2:35), de pedir piedade (3:15), de 83 Laughter is di- mente. Um estado de meditação é criado dentro do dar mais uma oportunidade para a voz trazer diferença (3:29); são novos modos de fferent from the other phenomena considered usuário da máscara, seja focalizando o olhar em um ser Meredith Monk, novos modos de insistir sobre a ideia vocal inicial, em tensiona- above because it seems único ponto ou pela voz – ou mais especificamente mentos com o fundo. to exceed language in – pelos gritos, encontrados nos trágicos textos como both directions at the sons originais, arquetípicos; palavras sem significa- PARA MIM, É MAIS COMO DE QUE MA- same time, as both presymbolic and beyond do léxico e geralmente não traduzíveis. Essa parte NEIRA ENCONTRO NOVAS VOZES EM symbolic; it is not merely da vocalização é capaz de evocar uma enorme gama MIM? COMO NÃO ME ACOMODO NOS a precultural voice sei- de conotações emocionais. Os gritos correspondem MEUS ANTIGOS HÁBITOS? COMO DES- zed by the structure, but a diferentes caixas de ressonância no corpo humano CUBRO ALGO NOVO NA MINHA PRÓPRIA at the same time a highly cultural product which e levam a uma metamorfose. (VOVOLIS; ZAM- PERCEPÇÃO DO MUNDO? (MONK, AT&T 86 looks like a regression to BOULAKIS, 2007: p. 1) 84 1998, P. 75) animality. (Dolar, 2006: p.29) 86 The appearance A máscara, nesse contexto, produz uma certa reverberação que intensifica a Procurar novas vozes é permitir que novas personas sejam elaboradas e perce- of the tragic mask of the 84 For me, it´s escuta interna, valorizando o aspecto sonoro e possibilitando passagens por diferentes bidas. É soar através do mesmo corpo, de modos diferentes, e possibilitar que outras classical era is a repre- more how do I find new sentation of a body/mind tipos de vozes que são percebidas no estado de espírito apresentado pela única más- vozes passem através, também de um modo intencional. O conceito de persona se voices within myself? state of being. A state How do I not rely on my of meditation is created cara utilizada pelo grupo. Nesse sentido, “o coro é uma persona com múltiplas vozes” encontra inicialmente associado às máscaras no teatro da Grécia antiga. old habits? How do I within the mask wearer, (VOVOLIS; ZAMBOULAKIS: 2007). discover something new either by focusing the No antigo teatro grego, os atores usavam máscaras in my own perception gaze at a single point or representando expressões de felicidade ou pesar. As of the world? (MONK, by the voice—or more A dimensão trágica de Do You Be é criada – não através de máscaras visuais – AT&T 1998, p. 75) vozes do ator, com suas nuances e vibrações indivi- specifically—by the mas a partir da potência e diferença das vozes que provocam uma percepção distinta duais, podiam ser ouvidas atrás das coberturas rígi- cries, found in the tragic 85 In ancient texts as original, arche- do mesmo corpo a cada escuta. A tragédia é gerada na “máscara sonora”, que carrega das. O “som” da própria voz do ator dava um senso Greek theatre the ac- typical sounds; words de indivíduo por trás do contorno firme da máscara. tors wore masks de- without lexical meaning também personagens e emoções, nem sempre explicitamente nomeadas, mas com picting expressions of A palavra persona significa literalmente “soar atra- and usually not transla- uma abertura para a recepção e a interpretação segundo a experiência de quem escuta. vés”. Em uma sociedade que exige que certos papéis happiness or grief. The table. That part of voca- actor´s voices, with definidos sejam projetados para o mundo externo, a lisation is able to evoke “Através de transformações de gestos, posturas e vozes, Monk parecia grande ou pe- their individual nuances an enormous range of palavra persona também passou a significar o senso and vibrations, could emotional connotations. quena, saudável ou definhada. Ela se tornou todos os habitantes deste lugar deserto; be heard from behind de identidade que escolhemos projetar. Cada um de The cries correspond um velho dormindo, um visionário em uma missão, um cervo sendo perseguido.”87 nós têm inúmeras personas, algumas das quais pode- the rigid coverings. The to different resonance “sounding through” of chambers in the human (STEINMANN, 1995: p. 26) mos preferir manter ocultas. (STEINMAN, 1995: the actor´s own voi- 85 body and lead to a me- p. 28-29) ce gave a sense of the tamorphosis. (VOVOLIS, individual behind the 2006: p.1) O que significaDo you Be? Segundo a pesquisadora Virgínia Moreira (1994), “máscara” é uma palavra mask´s firm outline. The word persona means li- 87 Through trans- QUANDO ESTOU NO NOVO MÉXICO, que recebemos do árabe, e que no teatro grego representava tipos sociais e não indiví- terally “sounding throu- formations of gesture, OUÇO OS PÁSSAROS O TEMPO TODO. duos, evidenciando papéis sociais da polis, ao portar um simbolismo genérico, como gh”. In a society which posture, and voice, NÃO NECESSARIAMENTE SUAS CAN- calls for set roles to be Monk seemed huge or ÇÕES PARTICULARES, MAS O QUE EU uma categoria humana, uma classe social e/ou uma figura heroica.“A palavra pessoa projected to the out- small, hearty or with- CHAMO DE ORQUESTRA CÓSMICA EM side world, the word ered. She became all the tem suas origens no verbo personare que quer dizer soar através de, cujas raízes estão persona has also come inhabitants of this des- QUE ELES PARTICIPAM. A MEDIDA QUE ENVELHEÇO – E ESPECIALMENTE QUAN- no etrusco – phersu – que significa máscara teatral”.(MOREIRA, 1994). to mean that sense of ert place; and old man self whish we choose sleeping, (...), a visionary DO EU ESTAVA TERMINANDO ON BEHALF to project. We each on a quest, a deer being OF NATURE – PERCEBI QUE EU SOU UMA No artigo “The Acoustical Mask of Greek Tragedy” (2007), os pesquisadores have myriad personae, pursed. I felt the room some of which we may fill with the spirits of fif- FAZEDORA, UMA PESSOA QUE FAZ, prefer to keep hidden. teenth century corn peo- (STEINMAN, 1995: p. ple. (STEINMANN, 1995: 28-29) p. 26)

88 89 FAZ, FAZ. MAS AGORA ESTOU TENTAN- 88 When I’m in na prática, nossa vida principiante, aceitação, contemplação, observação do medo. A mente de principiante DO APRENDER A SER, SER, SER. ENTÃO, New Mexico I listen não é só plural, é tam- to birds all the time. bém singular. Cada um segundo Monk possibilita adentrar no desconhecido. MUITAS VEZES EU APENAS SENTO LÁ E Not necessarily their de nós é duas coisas ao OUÇO, MEIO QUE COMO UM CACHOR- particular songs, but mesmo tempo: depen- O QUE EU AMO NO SUZUKI ROSHI, UM RO. VOCÊ SABE COMO OS CÃES SENTAM what I call the cosmic dente e independente. MESTRE ZEN QUE VEIO DO JAPÃO PARA E VIRAM A CABEÇA E SIMPLESMENTE ES- orchestra they participa- (SUZUKI, 1994: p. 22) A AMÉRICA NO FINAL DOS ANOS 50, É CUTAM? AQUI ESTÃO OS GRILOS FAZEN- te in. Especially as I get A MANEIRA COMO ELE FALA SOBRE A older—and especially as 90 What I love DO SUA ENTRADA. É LINDO, OS RITMOS I was finishingOn Behalf MENTE DE PRINCIPIANTE: QUE TUDO É about Suzuki Roshi, a E PROCESSOS SÃO TÃO LINDOS. AFINI- of Nature—I’ve realized UMA POSSIBILIDADE. SE É “MENTE DE ES- Zen máster who came I’m a doer, a person who DADES ANIMAIS? EU GOSTO MUITO DE from Japan to America in PECIALISTA” VOCÊ JÁ ACHA QUE SABE O does, does, does. But GUAXININS. the late fifties, is the way QUE É, ENTÃO VOCÊ LIMITA AS POSSIBI- now I’m trying to learn he talks about beginners LIDADES. MAS A MENTE DE PRINCIPIAN- 88 how to be, be, be. So I (MONK, 2017) mind: that everything is often just sit there and TE PERMITE QUE TUDO CHEGUE. (MONK, a possibility. If it is “ex- listen, kind of like a dog. 2014: P.115)90 pert´s mind” you already You know how dogs sit think you know what it and turn their heads, and is so you limit possibili- É possível que a conjugação verbal de Do You Be se encontre relacionada às simply listen? Here are ties. But beginner´s mind the crickets making their práticas de meditação de Meredith Monk. A artista reconhece a sua prática artística allows for everything entrance. It’s gorgeous, Segundo esta perspectiva, a confiança no material e no fluxo da voz estabelece to come in. (MONK in the rhythms and pro- como uma prática espiritual, e essa ligação se fundamenta no processo da contem- MARRANCA, 2014: p.115) um estado meditativo e a meditação cria espaços para o fluxo musical. Para Monk cesses are so beautiful. 89 plação . Em seu livro “Mente Zen, mente de principiante” (1994), o mestre Suzuki Animal affinities?I like a mente de principiante é essencial na hora da performance, uma mente aberta aos explica: raccoons very much. https://www.artinameri- acontecimentos e às variações inevitáveis. “A prática da mente Zen é a mente de prin- Prática de meditação. Enquanto sentados, nós so- camagazine.com/news- cipiante. A inocência da primeira pergunta – o que sou eu? - é necessária em toda a features magazines/ mos nada, nem sequer nos damos conta do que so- in-the-studio-meredith- prática Zen. A mente do principiante é vazia, livre dos hábitos do experiente, pronta mos: apenas sentamos. Mas quando nos levantamos, monk/ (MONK, 2017) então estamos aí! Esse é o primeiro passo na criação. para aceitar, para duvidar e aberta a todas as possibilidades.” (SUZUKI, 1994: p.13) Quando você está aí, todas as outras coisas também 89 Hoje, eu gos- estão; tudo é criado a um só tempo. Quando emer- taria de falar sobre a postura zazen. Quando gimos do nada, quando todas as coisas emergem do você se senta na posição Desenho de Meredith Monk para a divulgação da Ópera Vessel (1971) nada, vemos tudo como uma criação nova e original. de lótus completo, seu Isso é não-apego. (SUZUKI, 1994: p. 62) pé esquerdo fica sobre que contem Do You Be no repertório. sua coxa direita, seu Meditar é se preparar para a possibilidade de descoberta do mundo e do eu pé direito, sobre a coxa esquerda. Ao cruzarmos ao mesmo tempo. Um eu vazio, a partir do qual tudo é potência. O eu emerge a cada as pernas desse jeito, embora tenhamos uma saída da postura Zazen, assim como também um novo mundo é percebido. No en- perna esquerda e outra tanto, o mundo interior e o mundo exterior são também um único mundo: direita, elas se tornam uma só. A postura ex- Quando praticamos zazen, nossa mente sempre se- pressa a unidade da dua- lidade: nem dois, nem gue a respiração. Quando inalamos, o ar entra em um. Este é o ensinamen- nosso mundo interior. Quando exalamos, o ar sai to mais importante: nem para o mundo exterior. O mundo interior não tem dois, nem um. Nosso limites e o mundo exterior também é ilimitado. Nós corpo e mente não são dizemos “mundo interior” e “mundo exterior”, mas, dois, nem um. Se você pensa que seu corpo na verdade, só há um único mundo. Nesse mundo e mente são dois, está sem limites, a garganta é uma espécie de porta de errado. Se pensa que são vaivém. O ar entra e sai como alguém passando por um, também está errado. uma porta de vaivém. (SUZUKI, 1994: p. 26) Nosso corpo e mente são dois e um ao mesmo tempo. Habitualmente, Relembrando os inícios da sua carreira, Monk considera que o budismo zen pensamos que se algo Imagem extraída do livro Meredith Monk (1997), editado por Deborah não é um, é mais do que

já se encontrava implícito na estética da sua obra, equivalente segundo ela, aos fun- Jowitt. um; que se algo não é ↴ damentos budistas posteriormente praticados pela artista: mente aberta, mente de singular, é plural. Mas,

90 91 PAISAGEM VOCAL: CHANGE (FAIXA NOVE, 3:45) uma voz aguda (1:24) com vibrato, também constante e distante, mas com um ataque mais acentuado, com uma duração menor que o primeiro pedal de sustentação do FIQUEI MUITO INTERESSADA NA IDEIA DA modo. MANDALA, QUE É UMA FORMA PADRO- NIZADA. NAS MANDALAS BUDISTAS OU Em princípio torna-se difícil definir exatamente qual é o tipo de emissão do TIBETANAS CLÁSSICAS, NORMALMEN- primeiro pedal, não sendo possível distinguir evidência de vocalidade, por causa da TE VOCÊ TERÁ UMA FIGURA CENTRAL, COMO UM BUDA. ENTÃO, NOS QUATRO distância e do ataque indefinido, por causa do tipo de reverberação que modifica a CANTOS, DIFERENTES ASPECTOS DE SUA qualidade vocal. Aos poucos os dois pedais vão se aproximando, com uma emissão VIDA. OU VOCÊ PODE TER SEIS LADOS, ONDE TERÁ DIFERENTES IMAGENS DE nasalizada e logo ruidosa (2:29), perdendo, lentamente, a clareza harmônica inicial. SUA VIDA, MAS SEMPRE TERÁ UMA FIGU- O [ɑ] das vozes apresentadas em um primeiro momento se fecha gradativamente, 91 RA CENTRAL. (MONK, 2014: P. 90) apresentando outras vogais, nasais e fechadas, a medida que os pedais ganham pre- sença. A nasalidade, e logo a rugosidade das notas pedais contagia as ideias melódicas iniciais (2:52), formando uma massa de ruído vocal que se perde no espaço. Change é uma peça em camadas, uma experiência de imersão no som a par- tir de ideias cíclicas. A partir de uma figura central cria-se uma paisagem de vozes interligadas de começo a fim. São trabalhados os planos pelas cores (emissões vocais diferentes) em relação à figura central (melodia modal inicial).

Na paisagem vocal ouvem-se as respirações, os espaços entre as vozes, e o espa- ço que cada uma das vozes cria. Change significa mudança. As vozes vão aos poucos se tornando outras, por meio de variações na qualidade vocal de cada uma delas; sono- ridades que se contaminam e influenciam a medida que são elaboradas. Aqui ganha relevância o conceito poético de “vozes viajantes” (travelling voices), apresentado por Monk. A importância do ato de viajar, do processo de ir de um lugar a outro, e não só do resultado obtido a partir da variedade de emissões vocais apresentadas. O que interessa é o processo de transformação gradativa, um caminho de passagem, onde as vozes são filtradas por alguma força externa.

A paisagem vocal se inicia com uma emissão coberta, em uma melodia mo- dal de duas frases longas (0:00 a 0:10) com [ɑ]. A melodia ligada alterna intervalos de terça menor e de segunda maior, partindo sempre da mesma nota. A segunda 91 I became very voz (0:33 a 0:57) segue o mesmo movimento rítmico uma quarta embaixo da voz interested in the idea of inicial, imitando suas articulações, evidenciando o modo dórico na utilização da sexta mandala, which is a pa- ttern form. In the clas- maior. A segunda voz também é emitida com [ɑ] se fundindo com a melodia inicial. sic Buddhist or Tibetan mandalas, usually you Entretanto, ela possui uma variação a partir da segunda exposição (0:58 a 1:10). will have a central figure, like a Buddha. Then, at Após algumas exposições da primeira melodia e da segunda harmonizando the four corners, diferen- te aspects of his life. Or esta, emerge uma voz de fundo (1:24), de sustento do modo (la dórico) e ao mesmo you might have six sides, tempo de continuidade e resolução; um som pedal que ressoa num outro espaço, ao where you´ll have diffe- rent images of his life, longe. Essa voz é a que traz uma mudança em termos de tipo de emissão, porém dan- but you will always have a central figure. (MONK do consistência a harmonia que já estava estabelecida. Ao mesmo tempo se apresenta in MARRANCA, 2014: p.90)

92 93 95 A noção de Em Dungeon, o mridingam de Walcott define o tempo em um pulso constan- que os registros estão A VOZ QUE DANÇA. A VOZ TÃO FLEXÍVEL QUANTO A COLUNA: relacionados aos meca- te que determina tons e ritmos criando um ostinato. Voz e mrdingam entram juntos DUNGEON (FAIXA DEZ, 6:49) nismos laríngeos enseja (0:26). A exploração de vogais predomina nessa faixa, principalmente com [i], [a], novas terminologias. Harry Hollien, um dos [e], [u], e [o] na região modal95 da voz, em um sub – registro misto, em uma região cientistas mais envolvi- COMO VOCÊ CRIA UMA EXPERIÊNCIA QUE dos com a pesquisa dos aguda da voz, no primeiro momento em que a voz acompanha o ritmo que o mr- PERMITA ÀS PESSOAS UMA NOVA MANEIRA DE registros vocais, é autor dingam estabelece. Monk alterna ataques com “m” que resolve em alguma das vogais VER E OUVIR? (MEREDITH MONK)92 de uma nomenclatura que se tornou muito apresentadas imitando o ritmo da percussão. A articulação rítmica das vozes varia na conhecida no Brasil: ele divide os registros medida em que este pulso sugere uma forma que não se modifica. em pulso (o equivalente ao vocal fry), modal ou Dungeon é uma das peças em Key que mais qualidades vocais apresenta. A elevado (o equivalente Dungeon começa com a chegada de alguém (0:00 a 0:25): sons de pegadas em ao falsete), sendo que exploração de vogais é logo desdobrada em diferentes vocalidades como a mudança dentro do registro modal rápida entre mecanismos laríngeos e ressonâncias, como na técnica do yodel (2:22 a superfícies com releves, talvez de folhas de um quintal, e um fundo ambíguo no que se encontram os subre- se refere ao espaço interno e externo. Em um primeiro momento ouvem-se latidos gistros de peito, misto e 2:27) 96, o golpe de epiglote (3:41 a 3:54 e de 4:42 a 5:00)97, o drive (2:04 a 2:14), cabeça, ou grave, médio ao longe, sons de cigarras e um fundo de rua. Este fundo (camada de som ambiente) e agudo. (MARIZ, 2013: os prolongamentos de vogais com acentuações a partir de glissandos (3:08 a 3:33), p.56) continua ao longo da peça e por mais alguns segundos logo depois das vozes saírem de vocalidades que sugerem uma fala (3:22 ao 3:31), os vibratos e os sons surdos respi- cena. Na descrição de Key, Monk apresenta Dungeon como uma música inicialmente 96 Yodeling é uma ratórios (2:28 a 2:41). técnica vocal particular composta sem acompanhamento. Porém, no disco, Collin Walcott cria uma base rít- usada por pessoas em mica com o instrumento que foi denominado em Key como mrdingam. uma variedade de dife- rentes culturas musicais PERCEBI QUE MINHA VOZ PODERIA TER ao redor do mundo, des- A FLEXIBILIDADE DE MEU CORPO, QUE Ao longo da pesquisa não foi encontrado nenhum registro de instrumentos de os Alpes Suíços, ao EU PODIA ARTICULAR UM VOCABULÁRIO clássicos da Índia com este nome, mas com o nome de mridangam, o que leva a con- início da música country PARA MINHA VOZ ASSIM COMO EU HA- 92 How do you americana, até a floresta cluir que talvez o instrumento em Key fosse uma variação do instrumento original, e create an experience tropical central africana. VIA CONSEGUIDO UM PARA MEU CORPO. for people that allows https://www.lawrence. (MONK,1996: P. 206) que Walcott fosse também um luthier, além de percussionista e produtor. A sonori- them to see and hear in a edu/conservatory/areas_ dade do mrdingam no disco é bastante diferente do mridangam. Ao perguntar para a new way? (MONK apud of_study// Em toda vocalidade há um ritmo externo e um ritmo interno. Em Dungeon, MARRANCA, 2014: p. con_brio/baka artista Lanny Harrison si o mrdingam é o mridangam indiano, ela disse: 95) o mrdingam estabelece o ritmo externo e as vozes são consequência da experiência de 97 INÉS: Em 93 INÉS: Termo “Plastic Ono Band”(1970) um ritmo interno em relação ao primeiro. O ritmo interno se refere ao sistema res- Sim, o Mrdingam utilizado era o indiano. Vive ao que designa uma família Yoko Ono utiliza bastan- piratório, aos ciclos cardíacos, ao sistema sanguíneo, e as variações físicas/emocionais te essa técnica. Monk lado do meu santuário, no norte do Estado de Nova de idiofones de origem africana. menciona essa técnica que ocorrem durante a performance a partir das relações com o contexto. O corpo é York (não estarei lá até março) e precisa de novas em várias oportunida- cabeças...não sei quando isso acontecerá. Collin não 94 Yes, the Mrdin- des, porém não explica ao mesmo tempo ritmo interno e caixa de ressonância das vozes; é produtor e resso- fazia instrumentos de cordas, mas ele tocava bate- gam used was the indian exatamente como é nador do som vocal. ria, fazia correias, fez uma grande sanza93. Ele tocava one. It lives next to my produzida. Não possuo bibliografia que confir- quase tudo, menos horns e piano. Ele era um músico shrine in upstate New York (will not be there me cientificamente que EU ACREDITO QUE QUANDO VOCÊ COLO- extraordinário com ouvidos como antenas e mãos de fato a ação esteja till March) and is in need CA A MÚSICA NO CORPO, VOCÊ SUPERA mágicas. (HARRISON, 2019)94 of new heads...not shu- focada na estrutura re when ever this will “epiglote” pelo que seria O TIPO DE PROCESSO DE MEMORIZAÇÃO O mridangam original é um instrumento de percussão de origem indiano que happen. Collin din not interessante fazer uma VISUAL QUE REALMENTE ATRAPALHA. make string instruments, nasolaringoscopia para (MONK, 1990: P. 3)98 produz uma grande variedade de timbres. Do lado direito possui diferentes alturas e but he did rehead drums, confirmar essa definição. make straps, made a big sonoridades que são acessadas pelas diferentes técnicas de dedos. Do lado esquerdo sanza. He played almost 98 I believe that se encontram os sons mais percussivos, com menos reverberação e algumas variações everything but horns and when you get the music piano. He was an extraor- into the body, you by- de altura. dinary musician with ears pass the kind of visual like antennas and magi- memorization process cal hands. (HARRISON, that actually gets in the 2019) way. (MONK, 1990: p. 3)

94 95 Como compositora de imagens, movimentos e sons, Monk não trabalha a partir da escrita, mas a partir das vivências do corpo vocal. Nessa experiência, a peça se encontra latente no próprio corpo antes de ser escrita no papel ou gravada, ela se manifesta como necessidade física e emocional através da prática composicional du- rante a performance. AS VEZES CRIO COMPOSIÇÕES QUE SÃO VOZ, MOVIMENTO E MÚSICA INS- TRUMENTAL SIMULTANEAMENTE. NÃO CONSIGO FAZER ISSO NO PAPEL. (MONK, 1990: P. 3)99

Na pesquisa de movimento do corpo Monk cria movimentos ligados às fi- guras rítmicas da composição musical/vocal, apresentando de modo geral, uma com- plementação com as vocalidades. Entre tanto, cada gesto vocal se configura como um movimento que apresenta uma nova versão do mesmo corpo em cada emissão. A exploração das vozes é uma pesquisa de movimento mais aguçada em relação às articulações do corpo na medida em que a potência das mesmas torna-se o veículo principal de transcendência durante a performance.

Em Dungeon, cada uma das propostas vocais se apresenta como uma personagem e entre elas existe um pacto conduzido pela vontade de quebrar com este pulso/tom constante. As vozes se debruçam sobre a pergunta: como quebrar com esse tempo? Cada personagem parece chamar a seguinte, em movimentos de acentuações e na repetição de uma mesma frase com aumentos gradativos na intensidade.

Quem insiste e delimita a forma é o mrdingam. Dungeon é o calabouço, cujas grades se encontram dentro e fora do corpo; um corpo condenado à repetição que procura modos de se revelar, alterando o seu ritmo interno, que é biológico, mas que é programado culturalmente para o seu funcionamento. Desta forma, compreendermos que quando um cor- po é inserido na sociedade, lhe são atribuídas formas e funções, e tal mecanização torna-o um organismo – ou seja, o corpo abandona a potência, sendo orga- nizado e reduzido para um estado de corpo, onde se almeja um fim determinado, a organização e produ- ção. (ASCENÇO SOARES; UHNG HUR: 2017: p.16)

Monk inventa a escuta da voz que realiza trajetos como quem dança ou parti-

cipa de uma luta, apresentando diferentes consistências físicas, esquecendo aos pou- 99 I sometimes cos a nossa percepção funcional do mundo, apresentando um corpo vocal que cria make compositions that are voice, movement, estratégias para cavar uma saída do calabouço. and instrumental music simultaneously. I can´t really do that on paper. (MONK, 1990: p. 3)

96 97 Voice as Practice no Garrison Institute: um retiro com Meredith Monk e Ellen Fischer. Do dia 15-12 ao 17-12-2017

A VOZ HUMANA POSSUI POSSIBILIDADES ILIMITADAS. PODE ABRIR A MEMÓRIA; PODE APONTAR AO FUTURO. PODE EN- VELHECER; PODE SE TRANSFORMAR. O NOSSO MUNDO PRECISA DO CORAÇÃO 100 The human ABERTO QUE É NATURAL À VOZ. (MONK, voice has limitless pos- 100 sibilities. It can open up 1990: P. 3) memory; it can point to the future. It can age; it can transform. Our world needs the open–heart- A Voz como Prática é o título de uma série de retiros/workshops que Meredi- edness that is so natu- ral to the voice. (Monk, th Monk conduz nos Estados Unidos ou como artista convidada em outros lugares 1990: P. 3) do mundo. Tive a oportunidade de participar de um dos retiros graças a uma bolsa concedida pela organização do Garrison Institute, instituição budista que recebe dife- 101 The voice, the original human instru- rentes apoios de iniciativa privada para artistas, educadoras e trabalhadoras da saúde. CAPITULO III ment, is an eloquent language of the heart Texto de divulgação do Retiro: that delineates energy for which we don’t have A voz, o instrumento original, é uma linguagem elo- words. This workshop offers a place where quente do coração que delineia energia para a qual voice, movement, and não possuímos palavras. O workshop oferece um es- image intersect to create paço de intersecção entre voz, imagem e movimento A Voz como Prática an opportunity for parti- para criar uma oportunidade para os participantes cipants to discover their descobrirem sua riqueza pessoal. Uma instrução bá- own personal richness. A basic instruction in me- sica em meditação é seguir a respiração. Vamos ex- ditation is to follow the plorar como a expiração se expande em som, tom breath. We will explore e ressonância e trabalhar com exercícios para apro- how the outbreath ex- fundar a nossa escuta e consciência da inspiração do pands into sound, tone, and resonance and work nosso ambiente e vozes que vêm através de nós. O with exercises to deepen aspecto lúdico da criação e a alegria de descobrir nos- our listening and aware- sas qualidades vocais únicas serão enfatizados como ness of the inspiration uma forma de nos conectar ao poder de cura da voz. of our environment and Durante o workshop, Meredith também dará uma voices coming through us.The playful aspect palestra sobre o relacionamento que ela criou entre 101 of creation and the joy sua prática budista e sua arte. of discovering our uni- que vocal qualities will O retiro foi um modo de acessar à prática cotidiana de Monk, apresentando be emphasized as a way of connecting us to the uma série de exercícios que a artista realiza na sua rotina, no conhecimento do corpo healing power of the voi- ce. During the workshop, vocal a partir da meditação. Meredith will also give a talk on the relationship Meditar [escutar], Dançar [escutar], Cantar [escutar]. Esses quatro verbos she has crafted between her Buddhist practice resumem a experiência do fim de semana em Garrison (NY, EUA) com as artistas and her art. https://www. Meredith Monk e Ellen Fisher. A escuta traçou uma linha entre todos os exercícios, garrisoninstitute.org/ event/meredith-monk- voice-as-practice/

98 99 seja no silêncio ou na movimentação do corpo e da voz. Escutar o espaço, o corpo, o ca, rítmica, de fonemas e/ou de letra. outro; as vozes em conjunto; uma escuta que é intencional e profunda, mas também No último encontro foram realizados exercícios de experimentação em gru- uma escuta que reconhece a conexão entre os sentidos e a influência de outras percep- po, pensando o espaço, o movimento e a vocalidade; composições realizadas a partir ções físicas não cocleares. de imagens sugeridas por Monk, como o deserto, o organismo celular, a floresta e Acordar, tomar o café da manhã, se encontrar na sala de meditação com aque- outros. No último exercício o grande grupo foi dividido em grupos de seis pessoas les primeiros raios de sol entrando pelos vitros das janelas, sentar e fechar os olhos, para trabalharmos a ideia de organismo celular, conceito investigado por Monk no escanear o próprio corpo: escutar as indicações de Monk para a meditação. O silên- seu concerto Celular Songs – estreado em 2018. A partir dessa ideia foram trabalhadas cio, os pensamentos de cada um dos cinquenta participantes102 sentados em roda, as as vozes e deslocamentos do espaço como em uma grande engrenagem entre as par- pálpebras leves e os olhos semiabertos, o olhar calmo projetado seis passos na frente ticipantes. Cada grupo escolheu um espaço para a performance dentro do Garrison do corpo, o foco na expiração, os pensamentos se dissolvendo no espaço. Institute, uma movimentação que evidenciasse uma certa interdependência entre as performers, e qualidades vocais que pudessem atravessar todos os corpos sem grandes Cada encontro era iniciado deste modo, meditando sentadas por aproxima- dificuldades, criando um tecido corporal e sonoro em comum. damente quinze minutos. Logo chegava a hora do aquecimento corporal conduzido por Ellen Fisher. Alongamentos, atravessamentos e exploração do espaço; exercícios focados na representação de imagens a partir do corpo. Uma vez aquecidas, Monk começava suas indicações para acordar a voz e iniciar a experiência e escuta das vozes em grupo. Dicas de respiração e postura, exercícios com consoantes fricativas, hum- ming, arpegios e exercícios de ressonância em diferentes partes do corpo com vogais. Monk ofereceu ferramentas referidas à saúde vocal demonstrando exercícios para não forçar a laringe. O pescoço alongado e a postura alinhada e ao mesmo tempo relaxa- da; cantar sem ultrapassar o grupo e entender o canto como prática espiritual; estas foram indicações recorrentes.

Durante os três dias, aprendemos algumas composições de Meredith Monk que cantamos em cânone, algumas delas junto com movimentos do corpo predefi- nidos pela artista. Várias composições apresentavam células rítmicas simples que na combinação das entradas das vozes formavam polirritmias. Os movimentos ajudavam a entender essas entradas e contrapontos.

O trabalho de movimento proposto por Monk se encontra vinculado à estru- tura rítmica que ela cria nas composições vocais. A pesquisa de movimento é algo que no geral vem em um segundo momento, se constituindo a partir da composição em relação à arquitetura e a uma busca de complementação do trabalho vocal. Ao mes-

mo tempo a forma é muito presente no tipo de movimentação, há uma simetria nas 102 INÉS: Meredith suas propostas em dança, ao delimitar espaços equidistantes entre as performers. Os Monk realiza esse retiro no Garrison Institut tensionamentos se encontram mais presentes na junção das vozes do que na junção (NY) uma vez por ano. Sempre há participantes da pesquisa de movimento do resto do corpo. No entanto, as propostas pedagógicas de diferentes lugares do de Monk foram mais pautadas na improvisação no que se refere à movimentação do mundo. O retiro, apesar de uma experiência corpo do que na pesquisa de vozes. Para as vozes sempre havia uma definição melódi- silenciosa, é uma expe- riência coletiva em todos os momentos.

100 101 PEÇA I – SOLO PARA VOZ DESACOMPANHADA: UNA Alejandra Pizarnik (1936 – 1972) MIRADA DESDE LA ALCANTARILLA103

Sinopse: Uma poesia da escritora argentina Alejandra Pizarnik é ignição para o solo Una mirada desde la alcantarilla – uma escuta da cidade pelo seu subterrâneo. A memória dessa escuta é recriada por vozes na tentativa de reconstruir os materiais a partir dos resquícios sonoros e das reverberações do corpo.

Una mirada desde la alcantarilla104 é uma performance cujo processo de cria- ção começou em 2016 como um solo de vozes, na invenção de um repertório de vocalidades provocadas pelas imagens poéticas de Alejandra Pizarnik.

Poeta nascida em Buenos Aires no dia 29 de abril de 1936, em uma familia de migrantes da Europa oriental. Estudou filosofía e letras na Universidade de Buenos Aires e, mais tarde, pintura com Juan Batlle Planas. Entre 1960 y 1964, Pizarnik morou em París onde trabalhou para a revista Cuadernos e algumas editoras francesas, publicou poemas e críticas em vários jornais, traduziu a Antonin Artaud, Henri Michaux, Aimé Cesairé, e Yves Bonnefoy, e estudou história da religião e literatura francesa na Sorbona. Após seu retorno a Buenos Aires, Pizarnik publicou três dos seus principais volumes: Los trabajos y las noches, Extracción de la piedra de locura e El infierno musical, assim como seu trabalho em prosa La 103 INÉS: Essa peça foi analisada como parte condesa sangrienta. Em 1969 recebeu uma bolsa Guggenheim, e em 1971 uma Fullbright. da tese de doutorado No dia 25 de setembro de 1972, enquanto passava um fim de semana fora da clínica onde se da pesquisadora Flora encontrava internada, Pizarnik morreu de uma overdose intencional. Holderbaum (2019).

104 INÉS: Versão de ensaio prévio à estreia (2016). Ideias iniciais https://soundcloud.com/ ines-terra/una-mirada- desde-la-alcantarilla-en- saio-13092017. Última versão apresenta- da: realizada no Judson Church em Nova York, 20/5/2019: https://www. youtube.com/watch?- v=SQKjUIufTcY&featu- re=youtu.be

102 103 A poesia: Dungeon, com acompanhamento. Interessa nessa experiência ver como uma mesma ideia ganha diferentes formas, e como a performance vocal pode se desdobrar em di- ferentes contextos com estruturas específicas, assim como valorizar as transformações Una mirada desde la alcantarilla de um corpo ao longo do tempo, ao continuar o mesmo trabalho durante os anos.

A pesquisa foi aos poucos sendo direcionada nas relações visuais e sonoras, na una mirada desde la alcantarilla construção da performance, embora inicialmente o solo tenha sido criado principal- puede ser una visión del mundo mente focado na pesquisa de vocalidades. Como parte do processo foi gravado um la rebelión consiste en mirar una vídeo105. O vídeo alimentou ideias específicas da linguagem, focando na repetição, rosa nas diferentes perspectivas de quem assiste a performance, e na montagem de um hasta pulverizarse los ojos corpo cujo final do instrumento (a boca) não se encontra em evidência. Ao não ter a possibilidade de apresentar em um espaço onde a performance pudesse ser assistida desde cima, gravar um vídeo era uma possibilidade de enxergar essa perspectiva do 23 de Árbol de Diana (1962) espaço desde diferentes ângulos.

Na poesia, a escritora argentina Alejandra Pizarnik utiliza principal- Aspectos técnicos: mente palavras entendidas linguisticamente como femininas: alcantarilla, visión, re- Inicialmente escolhi algumas sonoridades do meu repertório vocal belión, rosa. Em contraposição, o mundo e os olhos (Ojos) pelos quais este mundo para criar um solo de no máximo dez minutos. Realizei um roteiro e gravei uma é enxergado, são palavras masculinas. Essa mirada, intencional, traduzida como o versão por dia durante quinze dias antes da estreia (2016). O solo não é uma impro- “olhar”, é apresentada como uma possibilidade de existência. Uma mirada pode ser visação, porém a improvisação é um elemento fundamental durante a performance; uma visão do mundo. A perspectiva é desde o bueiro (alcantarilla), um olhar subter- como um modo de recriar no corpo os materiais que foram escolhidos e de descobrir râneo. Por cima deste olhar tudo passa, deixando rastros. O mundo acontece sobre outros novos entre estes, ligados à experiência do dia, às pessoas presentes e ao espaço uma mirada possível. Entendo esses rastros como a força das imagens que atraves- que é gerado. samos nos sonhos, reinventadas durante a vigília. A rosa pode ser outra mulher ou mesmo a própria ideia de mulher. A intenção de um olhar insistente sobre a imagem O que conduz o solo são as ligações e tensões entre as sonoridades escolhidas de uma rosa, para logo os olhos serem pulverizados conduziu o solo para um lugar previamente, o que há entre estas, respirações e ajustes do corpo vocal que acabam de explosão, momento em que as sonoridades que foram apresentadas de maneira criando outros lugares durante a performance. Considero que o meu trabalho vocal é recursiva e continua, se desdobram em um som multifônico que se dissipa. baseado nessa pesquisa durante a exploração da voz. Posso descobrir qualidade vocais e talvez catalogá-las e repeti-las, mas o meu interesse mais profundo é sobre aquilo Comecei a criar o solo a partir destes pensamentos e de algumas per- que ainda não sei e que aparece durante a performance, na tentativa de trazer as ima- guntas como: o que entendo como feminino? A partir de quais olhos consigo en- gens que eu criei da poesia ou de outras vivências, as ressonâncias das vozes que eu xergar hoje? Que grades consigo reconhecer? Em que partes do corpo reverberam as escolhi e suas reverberações no corpo. Na tentativa descobro sempre outros corpos memórias sonoras reincidentes? De que maneiras a voz pode romper com este corpo? vocais que ainda não entendo como são produzidos. O que garante o prazer: a rosa, a mirada, ou a destruição dessa imagem? Essa abertura me permite uma certa desconfiança dos meus processos mais Associo Una mirada desde la alcantarilla ao primeiro procedimento mencio- racionais e definidos em tempo diferido, valorizando tanto esse momento inicial de nado em Key (1971), “Solo para voz desacompanhada”, porém apresentando algumas planejamento como as contingências durante a performance. Os dois momentos se divergências. A primeira delas é a escolha da realização de um solo que apresenta mui- 105 https://www. encontram interligados e são dependentes um do outro, já que se não houvesse ex- tos tipos de qualidades vocais, assim como Monk realiza em Fat Stream, Do You Be ou youtube.com/watch?- v=mAlMvOo-HxE

104 105 perimentação não haveria planejamento possível. Este aspecto também se refere à “Eu acho que quando as pessoas trabalham com exploração do movimento do corpo. vocalização experimental, as pessoas têm reações muito fortes...e você tem que nos ensinar como ver a sua peça. Todo mundo estava rindo no começo, porque você estava fazendo um som engraçado com A performance foi apresentada em sete oportunidades: a sua voz, que não ouvimos com muita frequência. E como continuou, ficou muito lúgubre para mim, Como performance vocal: ficou muito real. E foi interessante como você não mudou, mas todo mundo sim.” 1) No Dissonantes: ciclo de mulheres na música experimental, organizado por Renata “Eu realmente amei como no começo foi como um Roman e Natacha Maurer em 2016. longo tempo apenas o som saindo desta criatura, quase como se você fosse uma pedra ou algo assim. 2) No seminário de Vozes Performáticas organizado pela Prof. Dra. Wânia Storolli na Seu grito era insano. Achei o movimento de suas Unesp em 2016. mãos muito disjuntivo na segunda parte. Eu senti que era um gesto que você queria fazer e que a sua 3) Como convidada do Macrofonia, ciclo de palavra, imagem e som, realizado na voz provocava uma outra coisa no seu corpo, o opos- to do começo. Eu me perguntava sobre o valor do Casa da Luz, Jeanne Callegari e Reuben da Rocha em 2017. disjuntivo.” Na pesquisa de movimento: “Eu também estava curiosa nesses momentos em que você estava em silêncio, quando você olhava e 4) No evento Open Performance da organização Movement Research em Nova York a gente fez contato visual, e isso foi incrível. E foi (apresentação de um trecho em processo) em 2018. assim.., eu pensei que você fosse uma criatura que não era desta terra, mas quando você olhou para Nesse evento foi apresentada uma versão de oito minutos do processo que mim você era tão humana, como realmente olhan- do, como você. Eu me pergunto sobre a visibilidade estava realizando sobre o movimento das vozes e do corpo como uma única partitura. e a invisibilidade, tanto como olhar para você como Nessa mesma noite foram apresentadas mais duas performances, uma da artista Jô sobre o seu olhar para o público, e como esse relacio- namento especial poderia funcionar.” Stewart que tem trabalhado com Meredith Monk no seu último concerto Celular Songs (2018), e uma performance da artista Taina Bey. Apesar de o evento ser organi- “O movimento em sua maior parte era de fluxo e, mais tarde, havia esse tipo de movimento de ser zado por ordem de inscrição (e não por uma curadoria), as três performances tinham tomado por um tipo de energia ou como um tai elementos em comum, como por exemplo, o entendimento da voz como parte do chi energético, carregando e transmitindo energia. movimento (no caso da performance de Stewart e da minha). No final do evento foi Onde está a voz, a localização da voz em momentos diferentes? porque eu acho que com o tipo de expe- realizada uma roda de comentários do público em colaboração com as artistas. Foram riência paralela que tenho de voz e movimento, eu mencionadas questões como a alternância entre a representação de uma personagem e sinto que há muitas oportunidades para os diferentes a auto referencialidade, a relação entre movimento e som (apontando para a contradi- espaços que esses dois criam (movimento e vozes), e eu penso assim, quando você estava assim (no chão, ção entre estes em alguns momentos), o movimento do corpo e das vozes como uma olhando para baixo) com voz, pra mim é como não única partitura. a fonte e o som e a possibilidade de não evidenciar sempre a origem poder ver a cabeça ou o rosto de alguém, realmente também cria a sensação de que poderia vir de qual- das vozes. Uma das falas que me chamou mais a atenção foi de uma artista que recriou quer lugar. Então pra mim, também se tornou uma com as suas palavras a poesia de Pizarnik, apesar de não ter nenhum contato explíci- questão da relação entre a fonte e o som. Porque eu to com a mesma previamente, ou mesmo durante a performance, já que não utilizo acho que visualmente você poderia fazer qualquer coisa e vocalmente, você estava fazendo isso. Havia palavras. Um dos meus desejos durante a performance é afinar modos de encarnar a certos sons que eram mais localizados e havia outros poesia sem falar as palavras. que poderiam estar em qualquer lugar, e eu me per- gunto se há outras maneiras de fazer isso com outro Seguem alguns comentários feitos após a apresentação. Como não possuo tipo de movimento ou postura ou orientação de si contato com todas as pessoas que participaram, mantive o anonimato dos depoimen- mesmo para si mesmo.” tos. 106 107 “Não percebi que a peça tinha acabado. Pensei: essa apresenta como um modo de elaboração constante de si. Todxs demonstraram vonta- personagem está sentando conosco no círculo.” de de explorar em grupo as possibilidades das vozes. Apresentei diferentes modos de 5) Na programação Cartografias do Possível do Centro de Referência da Dança (rees- investigar a potência vocal de forma individual, em duplas e em grupo, e ensinei um treia) em 2018. cânone de Meredith Monk a quatro vozes.

Essa foi a estreia da performance em sua versão mais longa (30 minutos) e 7) No evento Movement Research at the Judson Church em Nova York, 20 de maio de foi realizada na sala cênica do CRDSP. Nessa versão, contei com o trabalho de luz de 2019. Maria Basulto, e com o auxílio de Julia Teles no som. O solo já se encontrava divi- Para esse dia fiz uma versão reduzida da performance, com duração de dido em três atos, e no segundo apresentava uma paisagem vocal gravada. As vozes quinze minutos. O Movement Research at the Judson Church é um evento que acontece eram exploradas no espaço sem amplificação, com exceção do último ato, momento toda segunda feira a noite na Igreja Judson, com curadoria itinerante, promovendo em que vocalizo no microfone. A experiência de planejar um mapa de luz fortaleceu apresentações de performances em processo e algumas já finalizadas e especificamente a performance. Durante a mesma senti que o caminho não precisaria ser traçado adaptadas para esse evento. A limitação técnica no que se refere à luz e ao sistema de unicamente pelos meus deslocamentos e vocalidades, mas que a luz desenharia outros som é compensada pelas características acústicas do espaço. Ao se tratar de um espa- caminhos para a percepção. Ao mesmo tempo, a luz apontou e ressaltou espaços do ço histórico, na sua arquitetura e nos seus acontecimentos, desde os anos sessenta, o corpo que eu não planejava colocar em total evidencia. Judson Church possui um público constante e heterogêneo, interessado nos projetos 6) Como artista e pesquisadora convidada da Universidade Federal do Sul da Bahia que são desenvolvidos no espaço. Por tanto, o público chega nesse contexto por vias (UFSB) em 2018. diferentes, como a divulgação regular da organização Movement Research e no intuito de conhecer esse lugar histórico para as artes do movimento. Ao mesmo tempo o Essa apresentação foi feita para xs alunxs de graduação e xs professorxs da evento é compartilhado entre quatro projetos artísticos. Nessa mesma noite foram universidade. Nesta ocasião precisei simplificar a luz, o espaço acústico tinha pouca apresentados os seguintes trabalhos: La Mujer Maravilla Project, Ximena Garnica reverberação e o chão não era o adequado para o trabalho de movimento. Formei um & Shige Moriya com o LEIMAY Ensemble, e a coreógrafa Iliana Olalde. Dois dos chão de tatame e contei com dois refletores que coloquei um de cada lado na frente trabalhos tinham também uma pesquisa de som junto com o movimento. O Leimay do espaço delimitado para a performance, criando sombras no fundo. Apesar das di- ensemble dançava encima de uma plataforma redonda de madeira com microfones de ficuldades técnicas foi uma apresentação muito especial de troca com xs alunxs e pro- contato que captavam o impacto do peso dos corpos enquanto estes se equilibravam. fessorxs. Após as apresentações houve um debate com xs alunxs presentes. Algumas Complementando esses movimentos, quedas e impactos, o grupo também vocaliza- das obervações feitas se referiam à potência e à aflição que o grito provoca, às sombras va. La Mujer Maravilla Project eram três mulheres que exploravam a performativi- desenhadas no espaço em relação com as vozes produzidas (como personagens que dade do corpo entendido como feminino, questionando os padrões sociais de beleza emergem no espaço cênico), à falta de reverberação no espaço e à importância da mes- e comportamento, ocupando espaços também da plateia. Os saltos criavam padrões ma, à escolha previa de vocalidades e aos acontecimentos próprios da performance, rítmicos e as artistas também utilizavam a sonoridade da respiração sincronizada. entre outros.

Nessa mesma semana dei uma oficina de voz para xs estudantes. Conversamos sobre as impressões que elxs tinham sobre as próprias vozes e sobre os seus interesses. Equipe de trabalho do vídeo: No geral todxs expressaram o desconforto com a própria voz, por não sentir que estas Caetano Tola: imagens e edição do vídeo. eram capazes de atingir “certos lugares” formulados a partir das suas referências mu- sicais/vocais. Isto colocou o foco da discussão em questões como os padrões vocais Lucas Ogasawara: imagens e edição do vídeo. da televisão aberta brasileira e os padrões de gravação e mixagem na música escutada Julia Teles: gravação e edição de áudio. no rádio e nas redes sociais, assim como também a diferença entre a escuta interna da Clarissa Mosser: luz e sessão do espaço “Galpão do Folias”. própria voz e da mesma voz gravada. Conversamos também sobre a importância das vozes em relação à biografia pessoal e como o processo de descoberta das mesmas se Entende-se o vídeo como outro momento do processo criativo, a partir do

108 109 qual quem filma e edita cria e inventa sua própria escuta como quem está assistindo Atriz e pesquisadora Clarissa Moser: ao vivo e destaca fragmentos. Ao mesmo tempo, há uma direção no sentido das ima- gens dessa escuta, diretrizes de planos abertos e fechados (fragmentos do corpo), po- Abrir o Galpão é sempre um desejo: esta caixa vazia rém nunca focando na evidência da vocalidade (a boca) ou direto no olhar (mirada). e torta que só tem sentido quando tem gente dentro Me interessam os planos mais fechados na medida em que mostram lugares do corpo dela. Espaço grande e constantemente habitado por que se modificam a partir da relação com o som, mas não são partes do corpo evi- espetáculos de teatro que ocupam quase tudo e mais um pouco. dentes ou principalmente entendidas como responsáveis pela respiração e a fonação. O vídeo é um desdobramento da performance e não a performance em si. Se trata Através do trabalho nesta caixa preta cons- trói-se um beco. Um beco de luzes recortadas no de uma composição de grades do corpo, do som e das luzes entrecortadas (sombras e corpo, um corpo que não é bem um corpo, mas uma multifônicos). expressão que aparece e some na penumbra. O som que dele sai é um canto dos órgãos internos, das ca- A gravação – 6/5/2018 vidades e sonoridades pouco exploradas (por aquele no qual a voz é coisa que saí do cérebro e vem para a Para o dia da gravação foram pensadas algumas estratégias para criar mate- boca, lembrada corpo só quando falta) rial suficiente para a montagem do vídeo considerando as diretrizes iniciais sobre a O corpo encolhido no chão é a pulsação de concepção da performance. No teste realizado (no dia 22/4/2018) experimentamos uma voz, que se levanta, se expande e depois se reco- lhe, deixando no espaço os vestígios desta expressão. algumas perspectivas diferentes aproveitando a estrutura do espaço (galpão do Folias); Como quem adentra lentamente em um corredor filmando de cima, através das arquibancadas aproveitando as linhas e figuras do espa- que leva a um beco escuro e profundo, olha o que ço, com a câmera em movimento, acompanhando as mudanças e transições do corpo lá dentro pulsa, pulsa junto, sente, e depois se retira, ofuscado pela luz do dia. (nível baixo, médio e alto), e de frente num plano mais geral fixo.

Foram escolhidos dois espaços. O primeiro foi atrás das arquibancadas, apro- Documentarista e editor Caetano Tola: veitando as linhas dessas estruturas e uma iluminação do corpo entrecortada, pro- curando evitar uma luz direta em foco. E o segundo, o corredor atrás da cortina do palco, colocando um foco de lado de uma das saídas. A performance foi realizada Nos últimos anos já havia acompanhado algumas em uma dessas saídas e filmada desde o fim desse corredor. em um primeiro mo- apresentações do solo de Inés Terra num momento em que se sobressaia o trabalho como de poesia sonora. Pude no- mento realizei duas versões seguidas inteiras da performance focando na gravação do tar, assistindo ensaios, todo o processo que encorpou o solo áudio e para ter uma ideia dos trajetos do movimento e da voz. Logo repeti alguns vocal construindo um trabalho consistente de corpo e voz. Quando fui convidado para fazer o vídeo junto com Lucas fragmentos, explorando mais a parte inicial e a parte final. Por último foi gravada a não fazia muita ideia de como poderia funcionar. performance inteira novamente no segundo local escolhido. Da última versão não Ao irmos estudar a locação onde gravaríamos fica- utilizamos nenhuma imagem, por considerarmos que havia pouca luz no local. mos preocupados. O teatro em que iríamos estava todo ar- rumado com um cenário onde tudo era claro, luminoso, Outras vozes, observações da equipe de trabalho do vídeo: bege, nada podia ser mais antagônico ao que queríamos. QUANDO VOCÊ FAZ COLABORAÇÃO VOCÊ DEIXA SEU A dificuldade com esse cenário fez com que buscássemos TERRITÓRIO PARA PERMITIR QUE UM TERCEIRO TER- alternativas que já estavam no próprio propósito de ser da RITÓRIO ACONTEÇA. ESSE É UM DOS PRINCÍPIOS DA performance. Fomos encontrar “bueiros” nos bastidores do COLABORAÇÃO.(MONK, 2014: P.97)106 galpão e fomos parar na parte de trás das arquibancadas. Terminamos por filmar por entre as ferragens da estrutura 106 When you do a de maneira que pudéssemos intercalar os movimentos do collaboration you let go corpo com barras, pilares e sombras compreendendo esses of some of your terri- elementos como parte do corpo da Inés. Encontrar esse es- tory so a third thing is allowed to happen. That paço diante da dificuldade de se confrontar com um cená- is one of the principles rio que não era de nosso agrado dissolveu a dúvida de qual of collaboration.

110 111 seria o papel do vídeo ali, deveríamos ser de fato o bueiro, bem do meu corpo para dentro de mim (ou seja, depois a mirada do bueiro. Foi esse olhar do bueiro que veio a do ver, ouvir, tocar, etc), aprendi a diversificar os signifi- pautar, então, a filmagem e o processo de edição, seja adi- cados já que o meu entorno não permitia. Assim, percebo cionando elementos gráficos ou buscando sempre o corpo o mundo pelo diálogo multidisciplinar, onde não há uma como uma extensão desse bueiro audiovisual.” separação sensorial e muito menos discursiva ou narrativa: sentimos tudo porque estamos nos corpos que foram nos dados. Não há apenas som para um cego, há também ima- Compositora e editora de som Julia Teles: gem mesmo que nada se veja. O mesmo para o som, que possui sim o poder de distribuir olhares, toques e outras de- finições do sensível. Na realização dessa obra, muito foi me dito para considerar o distanciamento entre corpo, imagem “Quando fomos gravar a vídeo – performance Una e som como ato provocativo, e mesmo encontrando em Mirada desde la Alcantarilla, eu não sabia se nosso sistema mim resistência a essa desconexão, registrei a performance seria totalmente eficaz para captar esse som de um corpo pensando estar fazendo isso. Porém, acredito que na capta- em movimento. Optamos por um microfone do tipo lape- ção falhei por falta de compreensão sobre o processo da au- la, muito usado em filmagens justamente por ter um trans- tora. Já na edição, processo que me sinto a vontade por ter missor e receptor de radiofrequência, o que permite que o mais de 20 anos de experiência prática, permiti o desprezo ator (ou no caso, performer) se desloque mais livremente. à provocação da autora e cai em uma montagem aparen- Uma preocupação que eu tinha era de que podíamos captar temente documental, recheada de trucagens invisíveis ao muito ruído das movimentações da roupa, caso houvessem olhar e pouco sensíveis ao restante dos sentidos. É a minha movimentos bruscos. Como a performance se trata mais forma de desconectar imagem e som. Não pelo resultado de uma fluidez do que de impacto, conseguimos gravar de gerado, pois o corpo humano é ignorante de si mesmo e forma satisfatória, com pouco ruído. Usamos também um acaba sucumbindo as suas próprias ilusões, mas por saber gravador da marca Zoom, fixo, para captar o som no espaço, que o processo de diálogo multidisciplinar é construído, e para “garantir” a gravação, caso houvesse problemas com o o poder narrativo é instaurado pela percepção de cada um, lapela. Ao mesmo tempo que esse método capta mais su- o que gera em certos momentos a noção de dissociação sen- tilezas e frequências agudas, acaba captando mais ruídos sorial proposta pela autora. Há edição onde não se observa da rua e ambientes. São duas formas de captação opostas, ou escuta, há monotonia onde parece haver montagem. Há uma muito próxima da fonte sonora (o corpo) e outra mais divisão da imagem, há recorte, câmeras lentas e aceleradas, distante e dispersa, captando também todos os arredores. apagamentos e reconstrução do corpo da autora. Foi uma Esse tipo de captação com microfone de lapela gera um experiência enriquecedora não apenas por aprender mais som bem pouco natural, muito grave e com pouca defini- sobre mim através do trabalho dela, mas por permitir que ção aguda, porém o que fizemos na pós-produção foi equa- houvesse diálogos para além do discursivo e justificado, em lizar para trazer mais agudos e amenizar os graves, e colocar instâncias sensoriais e afetivas.” um leve reverbe nesse canal, para deixar sua projeção mais natural, como se estivesse mais inserido no espaço. Usamos ele somado ao som estéreo do gravador Zoom, pois assim trouxemos um pouco da naturalidade do ambiente de fun- Roteiro vocal para o vídeo: do e as reverberações reais do espaço. Foi interessante que com poucos equipamentos (um gravador estéreo e um mi- _Sons guturais: [H] epiglotal surdo fricativo, modificações do trato vocal. Sons gra- crofone de lapela) conseguimos captar várias nuances das ves. Movimento interno. Respirações sonoras. emissões sonoras da Inés (respirações, sons graves, som das movimentações, entre outras coisas), e conseguimos gravar _Sons vibrantes. [R] uvular ligado aos sons nasais, logo orais a partir das vogais. de uma maneira satisfatória. _Repetição desses ciclos (R uvular – som nasal – vogais) com vibratos, variações de registros, fry e drive. Documentarista e editor Lucas Ogasawara: “Venho de uma História e de um processo de memória _Desdobramentos das repetições. Sons lisos que viram estriados e sons estriados que onde o cotidiano monótono e opressor imperava sobre as viram lisos. vontades e as realizações, o que sempre me fez pensar na utilidade dos sentidos para além do sensorial (aquilo que _Golpes de epiglote sinto por meio deles). Através das partes sensoriais que ca-

112 113 _Sons polifônicos: sons aspirados atacados no agudo. Ao acabar a intervenção das vozes gravadas, a movimentação é ainda pautada pela memória das mesmas, apresentando resquícios e respostas, tanto no movimento do Roteiro inicial com a movimentação para o vídeo: corpo como nas vozes ao vivo. No primeiro ato as vocalidades conduzem o movimen- _Chão. Mãos nos joelhos, cabeça nas pernas. Ísquios nos calcanhares. Sons guturais to do corpo (no chão) com impulsos de sons graves sem vibração de pregas vocais. que ressoam dentro da boca com modificações do trato vocal (forma da boca e palato No segundo ato fico em pé e realizo uma movimentação em diagonal a partir dos pés mole). Movimentos do pescoço para um lado e para o outro em cada expiração, para e dos braços, enquanto alterno intervenções vocais que complementam as camadas a frente, sem sair do chão, assomando o olhar. Sentir a vibração desse som vocal no de vozes pre-gravadas que apresentam uma harmonia definida sobre a qual improviso peito, no chão, nas costas. com sons ligados que vão se desdobrando em diferentes técnicas vocais/efeitos. No _Saindo do chão, cabeça e tronco. Aos poucos deslizo as mãos nas pernas enquanto terceiro ato contínuo a movimentação do segundo ato ocupando o espaço de forma expiro. O olhar sobe, mas continuo ligada ao chão. Os sons se desdobram junto com mais livre, lembrando das vozes que passaram, alternando momentos em que estas re- os movimentos. Afundo o esterno na inspiração, enrolando a coluna e levando os co- verberam no corpo em movimentos e em que as vozes são novamente produzidas. Aos tovelos para afora do corpo. A inspiração é também propositalmente sonora, por ve- poucos vou trabalhando com o peso do corpo, a ideia de descontrole, como numa zes nasal, por vezes oral com modificação do trato vocal e variações de formas vogais. briga de forças internas e externas, realizando impulsos iniciais que se desdobram em Durante a expiração alongo a coluna, elevando a cabeça e voltando os cotovelos para movimentos não programados. Esse momento vai diminuindo a sua intensidade e as perto das costelas. Nesse processo as mãos passam pelas pernas, virilhas, estômago, intervenções no espaço até chegar no microfone. No microfone fico respirando um logo costelas, levando novamente os cotovelos para afora do corpo e deixando as mãos tempo até a respiração ficar mais lenta e realizar sons aspirados multifônicos atacados encostarem no ar ao redor do tronco. Aos poucos os braços se abrem, é uma nova na região aguda da voz. perspectiva, ainda no chão.

_R uvular – a u i [oral] – Enquanto desenho vocalmente a transição entre a textura mais ruidosa [R] e a textura lisa [a u i] da voz esculpo com as mãos formas análogas. Aqui começa uma parte onde a movimentação é produzida a partir da fisicalidade do som; a tensão entre o corpo que a voz produz e a voz que cria o corpo. Há um caminho para chegar em pé, sem perder esse centro, a ligação profunda com o chão.

_Movimentos dos braços e do centro do corpo me empurram para cima e para a di- reita, numa força em espiral.

_O corpo se dissolve junto com o som polifônico.

Após a gravação do vídeo continuei os ensaios regulares no intuito de apro- fundar as relações entre o movimento do corpo e as vozes, e no intuito de me preparar para a reestreia da performance no Centro de Referência da Dança (20/10/2018).

Ao trabalhar o movimento do corpo a partir dos lugares de ressonância das vozes e da minha pesquisa em dança, a peça ganhou outros tempos. Me refiro ao movimento que continua o som vocal e ao som vocal estimulado pelo movimento. Me refiro à importância dos silêncios e à diferença entre os tempos de um corpo em movimento e suas vozes, e à junção e contradição entre estes. A peça foi configurada em três atos. No segundo ato foram acrescentadas vozes pre – gravadas, como uma paisagem vocal externa. Durante a performance vocalizo junto com as vozes gravadas.

114 115 O CORPO DA VOZ/A VOZ DO CORPO107

A distinção sexo/gênero é um dos marcadores sociais mais fortes.108 A voz como parte do corpo adequa-se ao contexto e às suas demandas sociais. O som da voz ressoa no nosso corpo e fora dele, mas os limites da voz são difíceis de definir. A voz é capaz de criar outros corpos, desafiar esses processos de adequação e criar outros para- digmas. No trabalho da pesquisadora Dordete Jacobs (2015) sobre a queerização109da vocalidade em performance, ela aponta que: A voz é uma produção corporal, e uma produção de corporeidade. A partir das discussões de Butler (2003) e Preciado (2002) sobre sexo e gênero pode- ríamos pensar que estas práticas de naturalização de atos de gênero estariam inscritas também na vocali- dade atrelada aos diferentes sexos. (JACOBS, 2015: p.47) Storyboard do solo, realizado no dia 12 de março de 2019 na Casa Líquida. Há uma relação entre a voz e o corpo/imagem quando é presenciada uma Este não possui um mapa de movimentação exata do solo, mas é o acúmulo de certas 107 INÉS: Nota sobre a Voz número 6. performance, e mesmo quando se trata da escuta de uma gravação. Espera-se deste imagens que se encontram presentes enquanto danço. (MONK in FALBO, 2014) corpo que se apresenta para nós, uma voz com características específicas que desenha- A partir do fim de janeiro de 2019 comecei a ensaiar duas vezes por semana 108 Anne Karpf mos a partir da imagem do corpo, entendida a partir de definições contextuais fun- (2008) faz uma análise na Casa Líquida, em São Paulo. Julia Feldens mora na Casa Líquida e abre as portas sociológica da produção damentadas na diferença sexual e em padrões comportamentais definidos pelo lugar vocal e da relação da voz da mesma para diferentes artistas desenvolverem seus trabalhos. O projeto de Feldens com a diferença sexual. que esse corpo/imagem ocupa na sociedade. Segundo Paul Preciado, o sistema sexo/ começou como um processo que ela chama de “abrir o claustro”, uma performance de Ela explica que nem gênero é uma inscrição que liga os órgãos reprodutivos à sexualidade, determinando todas as diferenças entre longa duração baseada no entendimento de que ela e seus filhos possuem um corpo vozes femininas e mas- uma série de naturalizações e binarismos que se referem a uma construção social. culinas podem ser expli- que se transforma junto com a casa (outro corpo) mediante as partilhas diárias. Esses cadas pelas alterações O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. corpos se configuram a partir do que acontece na interação e troca cotidiana com da puberdade: “cada O corpo é um texto socialmente construído, um cultura estabelece para arquivo orgânico da história da humanidade, como artistas que entram na casa, realizam suas pesquisas e criam junto com Feldens modos os dois sexos normas e convenções contras- história da produção – reprodução sexual, na qual de troca não pautados no dinheiro. O projeto começou como uma experiência muito tantes que vão além das certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos aberta e hoje faz parte da pesquisa de mestrado da artista, investigando também ou- diferenças biológicas. e outros são sistematicamente eliminados ou risca- (JACOBS, 2015: p. 59) dos. (PRECIADO, 2002: p.26) tras economias possíveis para o que é produzido na Casa e entre as artistas. 109 Nesse contex- A partir do momento em que esperamos de um corpo em performance uma to, um corpo vocal queer em performance seria ação definida por uma série de pressupostos (ideias), inevitavelmente intervimos na um corpo vocal potente na materialização de sua mensagem poética cujas motivações são sempre de reciprocidade. corporeidade afetante e desestabilizador das Se atribuímos um sentido a alguma coisa presente, naturalizações de vocali- isto é, se formamos uma ideia do que essa coisa pode dade e gênero em cena. ser em relação a nós mesmos, parece que atenuamos O queer/estranho no inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso corpo vocal não precisa remeter a categorias corpo e os nossos sentidos. (GUMBRETCH, 2004: fixas de gênero, mas ao p.14) entre, aquilo que não se nomeia, um corpo vocal em devir, que está em transformação, devir queer. (JACOBS, 2015: p.104)

116 117 Atenuar o impacto é “ter controle” sobre alguma coisa. Imaginemos uma Sendo exaltados alguns atributos determinados como corpos – homem e cor- artista em cena, embaixo de um foco de luz. A plateia se encontra lotada, o público pos – mulher, a busca por uma adequação é constante. A distinção cultural binária vê, mas neste caso não é visto. É como se o público estivesse no panóptico, porém carimba e dificulta a expressão de performatividades “outras” qualificando-as como a artista sabe que está sendo vista [se prepara para isto] e é nessa percepção que a perversas. A voz foge do texto do corpo quando não responde à tecnologia social he- performance se faz possível. Ao ter consciência de ser vista, a artista se dirige a um teronormativa, como define Paul Preciado: outro, mesmo quando se tratar de uma performance silenciosa, embora invisível aos esse conjunto de instituições tanto linguísticas como próprios olhos nesse caso. médicas ou domésticas que produzem constan- temente corpos – homem e corpos – mulher. No A partir do momento em que a voz se faz presente, ela entra no em- âmbito do contrato contrassexual, os corpos se reco- bate com a ideia preestabelecida desse corpo/imagem. Se a ação quebra com a ideia nhecem a si mesmos não como homens e mulheres, e sim como corpos falantes. 111 (PRECIADO, 2002: preconcebida a partir do corpo imagem, então o impacto é inevitável. Somos olhados, p.21) mas dificilmente esse olhar é recíproco, no entanto, a escuta é sempre recíproca, a

voz se dirige sempre a um outro, “conexão plural de bocas e ouvidos” (CAVARERO, 111 Reconhecem 110 em si mesmos a possibi- Em detrimento da participação das mulheres como cantoras nos teatros e 2016). Se o corpo é um texto (visual), a voz pode ser a sua fuga (sonora): lidade de aceder a todas outros espaços, do século XV ao século XVIII homens eram castrados para impedir o a voz é um fenômeno queer, visto que gera um ter- as práticas significantes, assim como a todas as desenvolvimento hormonal que modifica a voz destes na passagem para a adultez para ceiro espaço entre quem vocaliza e quem ouve, ope- posições de enuncia- rando como mediadora entre corpo e linguagem, ção, enquanto sujeitos, estes atingirem uma voz não humana, ideal. Procurava-se na voz o som dos deuses a que para Jarman-Ivens são espaços engendrados. As- que a história determi- partir da castração. Ao mesmo tempo, “esse mesmo corpo com essa voz angelical des- sim, a voz é capaz de transpor e desestabilizar estes nou como masculinas, femininas ou perversas.” pertava desejos sexuais em mulheres e homens” (BECKER, 2009). Para atingir uma engendramentos. (JACOBS, 2015: p.148) (PRECIADO, 2002: p.21) voz “outra” era necessária a assexualidade, já que na perspectiva da época, a materia- A partir da exploração vocal se inicia um trânsito intencional entre o corpo e a 112 INÉS: Sobre lidade dos órgãos reprodutivos produziria sempre corpos homem ou corpos mulher. linguagem. A voz, criadora de outros corpos e espaços, afirma um eu fluido. Algumas este assunto, há diferen- ças entre a metodologia Com o fim doscastrati e a afirmação do pensamento cartesiano “as vozes passam a das frases mais recorrentes que surgem nos processos de estudo das vozes são: “que voz de canto erudito france- sa, italiana e alemã. No existir como femininas ou masculinas e acabam por ficar refém da moral burguesa é essa?”, “não parece comigo!”. Mesmo quando não há uma intencionalidade voltada estudo da voz na música vitoriana” (BECKER, 2009) para essa ruptura da imagem do corpo e/ou a afirmação da voz como um fenômeno popular, esse entendi- mento muda, devido à queer, o desconhecimento é constante. A escuta da própria voz é sempre inusitada. possibilidade de trans- Os corpos são determinados pelos códigos fundamentados na dualidade se- posição de uma tonali- xual para garantir a sua inserção heteronormativa no mercado e na cadeia repro- Demetrio Stratos explica que expressa seu componente feminino através do dade para a outra, e por ter nesse universo uma dutiva. Desta maneira, a nossa visão de corpo é diretamente entendida a partir de que ele chama de “som original, a voz” (EL HAOULI, 1993). Logo, Stratos mostra maior abertura aos dife- rentes tipos de emissão certas normas institucionais binárias, ligadas às noções de sexo e de gênero, às suas uma percepção do gênero como uma construção ao responder: vocais que evidenciam a unicidade das vozes, funções reprodutivas e consumidoras, e por consequência, também à escuta de vozes Na sociedade e na cultura ocidental, a audácia, a abordando diferentes devastadas por essas normas e códigos. Pensar as vozes sempre atreladas aos órgãos re- agressividade, o valor, a violência, são considerados modos por exemplo de masculinos; outros, como a ternura, a submissão, a 110 O que é pre- atingir uma nota muito produtivos é equivalente a entender a sexualidade sempre restrita aos mesmos. Nessa capacidade de compreensão, a doçura, como femini- ciso fazer é sacudir as aguda. Embora também tecnologias da escritura ligadas às suas respec- concepção, outras partes do corpo, não reprodutoras, não seriam sexualizadas, e as nos. Eu penso que essa é uma distinção cultural, que do sexo e do gênero, tivas heranças estéticas suas vozes, sempre perversas. são artificialmente exaltados na mulher e no homem assim como as suas ins- segundo o estilo, e tituições. Não se trata de embora não se trate de alguns valores em detrimento de outros, embora As classificações vocais112 (soprano, contralto, barítono, tenor, baixo) que co- se trata de um patrimônio comum a ambos. (EL substituir certos termos música escrita, mas so- por outros. Não se trata bretudo de processos de nhecemos a partir da cultura do canto erudito, seguem a ordem da diferença sexual HAOULI, 1993: p.85) nem mesmo de se des- transmissão oral, ainda fazer das marcas de gê- na pedagogia vocal da como afirmadoras e delimitadoras de gênero. Essa classificação possui uma história, nero ou das referências música entendida como à heterossexualidade, popular, a classificação diretamente ligada à escrita de composições para vozes específicas, e ao mesmo tempo, mas sim de modificar as vocal se faz presente na posições de enunciação. maior parte dos exercí- (PRECIADO, 1993: p.27) cios dados.

118 119 idealizadas ao longo dos séculos na música ocidental. No canto erudito a classificação Diversos caminhos podem ser tomados para a exploração de vozes que não vocal é fundamental pelo estudo direcionado para um recorte específico de obras. necessariamente se definem como canto ou fala, mas como uma continuidade ou des- Negar que existem diferenças na fisiologia da produção vocal113 entre as performers continuidade do corpo, perceptíveis através da escuta que envolve sensações físicas de seria inútil, mas desejar que o ponto de partida para o conhecimento das vozes seja ressonância, assim como da ação da musculatura envolvida na respiração. No início outro é instigante. O horizonte é maior quando nos encontramos descobrindo o uni- da pesquisa enviei um formulário para diferentes artistas que trabalham com explo- verso sonoro. A nossa escuta não é “castrada” ou delimitada pela diferença sexual. No ração vocal nos processos de criação. Ao se referir aos procedimentos que as artistas entanto, assim como o nosso alcance visual é regulado quando crianças (na educação abordam para a prática da exploração vocal, elas sugerem: institucionalizada) a nossa escuta será também direcionada segundo alguns padrões • Barbara Togander (Argentina): Pegar as estru- intencionais e não intencionais. Ao mesmo tempo, o ouvir não tem pálpebras e o som turas aprendidas desde sempre e desarmá-las, transformá-las, mudar a direção e a perspectiva é parte inevitável da experiência, o que faz deste sentido um guia principal para o co- (especialmente a perspectiva), perder o medo ao nhecimento e por consequência para a desestruturação de pensamentos engendrados. ridículo e começar a jogar com duas variantes bá- sicas: uma técnica e uma lúdica. O lúdico, obvia- A técnica do canto lírico pode ser uma ferramenta proveitosa para o desen- mente, permite que você se aproxime do trabalho volvimento da voz (mesmo para quem não deseja trabalhar com o repertório desse sonoro de uma perspectiva que o obriga a perder o medo do ridículo: apenas deixe ir e deixe algo universo), para adquirir recursos para um bom funcionamento da laringe e do trato que você não tem ideia do que será (não pense!), vocal, assim como para criar um fluxo respiratório mais consciente, porém, por que deixar que o corpo acompanhe, os braços, pernas, partir de um único tipo de emissão vocal, ou da classificação vocal relativa à escrita de saltos, esticar ou a quietude exacerbada, silêncio 114 tenso. Procure por estados de ânimo, personagens obras para iniciar os caminhos da voz? A cantora e compositora Pamela Z (2010) (a senhora da quitanda com essa voz estridente e fala sobre seu trânsito entre diferentes abordagens vocais, em entrevista com Tara aquele estado permanente de raiva, uma criança Rodgers: que tem muito sono e diz à mãe que ela não quer comer, etc.), procure quais outras vozes sugerem Eu acho interessante que no treinamento ocidental outras formas de arte como dança, pintura, lite- de música clássica, quando você estuda com uma ratura. Procure sonoridades nos filmes: o filme de professora de canto lírico, elas estão muito interes- Tarkovsky não tem a mesma sonoridade que o de sadas em ter você indo atrás do que é considerado Die Hard. Milhares de situações: mil sons. o som correto – como procurando um tipo de tom 113 Não há uma de cor que é o modo certo de cantar. E quando você teoria universalmente se envolve com tipos de canto mais experimentais, aceita sobre a produção vocal, e que dê conta • Ute Wassermann (Alemanha): Improvisação, Me- ou outras visões mais amplas, você descobre que há de todas as explicações mória do corpo, Escuta, disciplina pessoal, virtuosida- todas essas outras cores que você tem e pode usar – e necessárias para a di- de, contextos. Desenvolvi a minha linguagem vocal a não é certo ou errado, são apenas cores diferentes. versidade de produções partir da improvisação e a pesquisa. Ao mesmo tempo (Z, 2010: p. 217) vocais, tanto tidas como normais quanto como estou escutando outras cantoras (e musicistas) de dife- patológicas (disfonias). rentes origens, ouvindo a natureza, máquinas, eletrôni- As cores se localizam em práticas musicais diferentes com seus respectivos (JACOBS, 2015: p.51) cos, o meio ambiente e sintonizando minha voz. Eu simbolismos e/ou buscas estéticas. Há diferentes cores no território da língua e da pratico os sons que atraem meu interesse e desenvolvo 114 Pamela Z uma memória física (corpo). Eu também uso notação fala, nos modos de rir e de chorar, na maneira de rezar e nas procissões, nos lamentos, (1956) é uma composi- tora, performer e artista gráfica. Como produto secundário, trabalho em um nos gemidos e nos gritos, no corpo vocal instável, com seu mistério e erotismo. Esse sonora que mora em catálogo sistemático (articulação, pressão do ar, resso- corpo vocal regulado por inúmeros padrões de comportamento tem o potencial de San Francisco e trabalha nância) de sons vocais para compositores. com voz, tecnologias descobrir emissões que o modificam, sensibilizam e desafiam. Esse corpo vocal tem de amostras sonoras, e processamento eletrôni- também o potencial de contestar a si mesmo e de assumir uma busca que tensiona e co ao vivo. Ela combina • Ligia Liberatori (Argentina): Uma técnica vocal só- destrincha o que é dito através dele sem ele perceber, e o que ele realmente quer dizer. bel canto e técnicas lida fornece ferramentas para não se machucar e uma vocais estendidas expe- rimentais, com a palavra imensa quantidade de estímulos para investigar e expe- falada, objetos percus- rimentar. Penso que a técnica lírica é a base da minha sivos e som de samples. investigação. Claro que estou constantemente exposta (RODGERS, 2010: p. 216)

120 121 e sou influenciada pelos sons (de outros instrumentos, (TOGANDER; WAS- bem como do meio ambiente) que pedem uma técnica SERMANN; LIBERATORI, especial para desenvolvê-los com a voz. Mas todos têm CAMPESATO; HOLDER- uma base na técnica lírica. BAUM; TARAGONA; STOROLLI; MINTON apud BRANDES)115 • Wânia Storolli (Brasil): Meu trabalho vocal é funda- mentado na prática da Respiração Vivenciada de Ilse Middendorf e também no trabalho de Corpo e Voz Ao entender as línguas como territórios que exploram determinadas qualida- de Zygmunt Molik. Basicamente trabalho com impro- visação vocal em conexão ao movimento, procurando des materiais das vozes, pode-se estudar a fonética de uma língua não falada, como es- estimular a investigação dos recursos da voz e a desco- tudo de sonoridades. Ou mesmo, na própria língua, ao destrinchar seus componentes berta das várias “vozes” que existem na voz. A vivência em termos de fonemas e fragmentos de palavras, abre-se um leque de possibilidades de processos corporais como a respiração e o trabalho com improvisação vocal em conexão ao movimento de exploração do som vocal, como se descobríssemos uma articulação muito pequena são fundamentais para este tipo de abordagem. e sutil no corpo, antes não percebida, mas que na hora de caminhar pensando nela, toda a estrutura física se modifica. • Lilian Campesato (Brasil): A primeira coisa é não es- Quando estava criando Voci116, percebi que meu quecer que a voz é corpo e um corpo que tem uma canto experimental foi autodidata, e que o único biografia. O exercício interessante a fazer aqui é buscar treino que eu tenho é o treinamento vocal clássico. os sons próprios à sua voz: os sons fisiológicos ligados a Percebi nesse ano que faria aulas unicamente com uma produção que tem a ver com você, com a sua voz, cantores não ocidentais, só para ver como eles en- que é única para cada pessoa. É estabelecer um relacio- sinam. E foi tão interessante para mim que haviam namento pessoal com a sua produção vocal e trazer essa muitas coisas em comum. Por exemplo, todos ensi- intimidade à tona, o que inevitavelmente se torna algo navam sobre a máscara.117 (Z, 2010: p. 218) aflitivo por conta da exposição que pode gerar. A experimentação vocal não precisaria ser unicamente mediada por um/a mestre e/ou uma técnica específica, mas pela relação constante com outras vozes,

115 INÉS: TOGAN- escutas e narrativas. Se entendermos a voz como corpo e realizarmos uma exploração • Flora Holderbaum (Brasil): Experimentar calma- DER; WASSERMANN; consciente dos prazeres e aflições do mesmo, não precisaremos que alguém esculpa mente os sons não percebidos que costumamos fazer LIBERATORI; CAMPE- com a voz, como timbres roucos, tosses, chorinhos, SATO; HOLDERBAUM; as vozes ou as faça “sair do armário” da dualidade de vozes. Porém, a experiência da TARAGONA; STOROLLI; ladainhas, pequenas enunciações fáticas, expressões so- MINTON in BRANDES, performance e a escuta do outro é fundamental nos caminhos da voz; a companhia noras onomatopaicas. Treinar “mastigar a voz” como IT. Esculpir as Vozes. e a reciprocidade dessa escuta possibilitam a invenção e fortalecem as escolhas pelos aquecimento vocal com sons bem baixinhos (piano) Artigo em fase de elabo- e ir acomodando a voz. Ouvir artistas vocais. Jogos ração. labirintos da prática vocal, inevitavelmente ligados à experiência da relação e tensão de improvisação livre, improvisações roteirizadas gra- entre os corpos. A voz se forma e deforma na relação com o outro. “Escutar um outro 116 INÉS: https:// vadas, manipulação deste material sonoro gravado. é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte” (ZUMTHOR, Veicular o subjetivo ao poético e conversar sobre com www.youtube.com/ watch?v=PqGD2N1FLGg amigos(as). 2005) Quantos mais corpos sejamos capazes de escutar mais vozes serão desvendadas.

117 Muitos dos res- sonadores estão na sua • Lea C. Taragona (Brasil): A escuta do outro e de si, cara. Então, para obter experimentar ser outros, a livre improvisação. um timbre brilhante e realmente projetar sua voz, muito disso vem de aprender a ressoar atra- • Phil Minton (Inglaterra): Escute tudo o que produz vés da estrutura óssea som, até mesmo aquele feijão ou cerveja vazia que em seu rosto. É sobre pode cair no chão da cozinha. o uso das passagens nasais e coisas assim. (Z, 2010: p. 218)

122 123 Foto 1 (superior): Caetano Tola. CRDSP, 20/10/2018. Fotos 2, 3, 4 e 5 (sequência): Shige Moriya. Judson Church, 20/05/2019.

124 125 meu sacro para a terra e deixei o meu palato brincar com as nuvens. Mas ainda, da voz, nada sei. Quando PEÇA II: A PAISAGEM VOCAL: RASTROS (2018) alguém quiser cantar para você, agradeça. Agradeça o grito, a lembrança, o fio, o apito, a rouquidão, o fogo, o peso, o ruído, a multidão. Agradeça nada. https://soundcloud.com/ines-terra/rastros Talvez seja a última vez. Pedro falou: “vulcano silen- cioso”, e dançamos. Muito se fala em voz, de vozes, em constante guerra com o mundo. Vozes invisíveis, Rastros evidencia um processo que é antigo e que não se limita à composição cimentadas, amontoadas, apagadas ou enaltecidas. Sons articulados por altura e distância, nos corpos de uma peça, mas que emerge na minha prática como cantora a medida que exploro vibrantes. Logo se propagam no espaço. O espaço a potência composicional da voz. O trânsito entre o que se entende como melodia e fica úmido e a distância, e a distância,…é um valor perdido. O silêncio é o modo que temos de observar como ruído vocal, a passagem sutil entre estes e os seus limites difusos mostram uma o tempo, impermanente e ruidoso. Como vulcanos fricção constante entre um modelo de beleza vocal e o prazer da descoberta de sono- (silenciosos) esperamos o momento de entrar em ridades não pautadas na harmonia vocal, mas em uma necessidade do corpo de dizer erupção, virar esboços de cores e calor. Todos (en- quanto borrões) escutamos as vozes e esculpimos a o que antes de ser dito não lhe era permitido e/ou se encontrava oculto. Entretanto, terra sem querer, sabendo que a nossa única presença nessa peça há uma insistência melódica que impede o ruido de se instalar totalmente, possível, é a confusão, é uma queda, um tempo per- 118 sendo forçado até o final pela harmonia já estabelecida. O ruído se apresenta sempre dido. (TERRA, 2017) como um conceito relativo, considerando que ele é situado e identificado como tal a partir de uma série de associações realizadas durante a escuta. Nesse caso o ruído é a A melodia de Rastros (2018) nasceu como um esboço, a pedido de um amigo contaminação do contraponto modal inicial, a partir de sonoridades mais complexas que estava editando um documentário. Decidi retomar a ideia inicial para trabalhar que se instalam de forma gradativa nas vozes. uma Paisagem Vocal. Para essa peça interessava desenhar caminhos de transformação Em 2017 escrevi um texto para a revista de cultura eletroacústica LINDA do na emissão vocal para cada uma das camadas gravadas, assim como Meredith Monk grupo NME, como um modo de explicar esse mergulho na voz para além da lingua- propõe em Change (faixa nove de Key). Nesse caso realizei várias escolhas baseadas na gem verbal e do que sempre entendi como canto. peça de Monk, a seguir: Dizer alguma coisa sobre voz. Que não seja certeira, I. Apresentar uma melodia modal ou tonal. uma coisa solta, que tome vida e forma, sem precisar de um empurrão, de um sopro. E a voz se diz. Queria II. Encaminhar a composição para um lugar cada vez menos harmônico, porém que a voz dissesse alguma coisa, em movimento. Na sempre se remetendo à ideia inicial. verdade, as vozes, as de dentro já conheço. Porque a III. Escolher duas vozes com frases mais longas, movimentos melódicos com di- gente é sempre (um pouco) o desejo do que a gente ferentes intervalos, e uma voz que funciona como um pedal. gostaria de ser. O que não conheço é o meu corpo. Quando era ainda uma criança, não podia gritar. É er- IV. Fazer uso da nasalidade como transição para o ruido vocal. rado saturar o ambiente, as quatro paredes, ainda mais sendo mulher. Dizem. Menos paredes, mais vida? mais som? E foi assim que fui engolida. Com 27 anos come- cei a dançar. Entendi que a língua que eu falava (a pri- A transformação se dá do som senoidal com vibrato, ao som mais ruidoso. Fo- meira, a segunda), nenhuma delas era a minha língua. ram gravadas três camadas, sendo a primeira e a segunda melodias iguais, e a terceira A minha língua era a língua do corpo, a língua do som. Língua torta, corpo cansado, frenético, uma espécie de uma sonoridade continua que contamina as duas primeiras melodias. A peça foi gra- invasão. Tanto tempo procurando a afinação que en- vada e mixada por mim. Gravei com um microfone condensador e utilizei um efeito volvesse o mundo, numa canção que deitasse nas costas de áudio de reverberação e o pan para trabalhar a espacialização das vozes. As vozes de quem quisesse escutar. E elas deitaram. Canções são bonitas, são como rios. Mas o corpo falou uma ou- começam mais espalhadas, e vão se fundindo gradativamente a medida que a melodia tra língua. Percebi que a respiração era uma música, 118 INÉS: http:// vai se perdendo. As três vozes se transformam em termos de sonoridade ao longo da a mais realista delas. Dei para a garganta o que era da linda.nmelindo. garganta, deixei o pulmão apitar sem dor. Devolvi o com/2017/07/algu- peça. As primeiras duas vozes partem de uma emissão mais coberta com vibrato, aos ma-coisa-sobre-voz/

126 127 poucos se tornando mais ruidosas, por meio da nasalidade e da soprosidade, perden- Exploração vocal do seu caráter harmônico, seu local individual, se unificando gradativamente. A me- dida que as vozes se aproximam a partir do ruído, formam uma massa sonora única. Para quem estuda a voz em função de determinado repertório ou estilo A voz I é uma melodia em mi menor eólio que possui três frases. A entrada musical a experimentação vocal não é tarefa fácil. A procura por uma fidelidade em da voz II acontece em um segundo momento, começando na terceira frase, se entre- relação a um tipo de emissão vocal pressupõe um estudo baseado em modelos e pa- laçando em um outro ritmo e sincronizando em alguns momentos, harmonizando drões específicos. A exploração vocal pode ser uma tarefa “controlada” e de profunda e criando também alguns uníssonos. Não desejava estabelecer um tempo fixo nem vertigem, considerando a dificuldade de abandonar o lugar conhecido, para a desco- um movimento espelhado entre as vozes, mas possibilitar pontos de encontro sempre berta de outras vozes. Ao mesmo tempo, cada território e/ou estilo musical apresenta diferentes. A terceira voz é uma nota mi ligada que se instala quando foram apresen- uma flexibilidade específica para certas sonoridades vocais e tem muito a acrescentar tadas as duas primeiras exposições da melodia principal. A voz II demora um pouco no repertório da performer criadora. mais em chegar ao ruido, apresentando uma emissão vocal suave com bastante ar, a Considerando que a memória muscular e da escuta possibilita o desen- invés de passar pela emissão nasal como transição para emissão mais gutural. A voz volvimento técnico e criativo, como deixar em um segundo plano os padrões de bele- III transita entre “m” e “n” com o movimento da língua, evidenciando a mudança de za vocal e os parâmetros musicais para adentrar na experimentação e descobrir outras harmônicos. Em seguida acrescenta a sílaba “gang” que repete de forma ligada. Esta vozes? Como pensar composição a partir da experimentação vocal? voz já no início possui um espaço de ressonância maior do que as exposições da me- lodia original e emerge nos dois canais, invadindo tanto a primeira como a segunda Nos processos de exploração vocal da performer criadora, a voz deixa de voz. ser pensada e escrita unicamente pela compositora para ser investigada também por quem vocaliza, a voz se escreve a si mesma durante a performance. Ao mesmo tempo, como som que ressoa no corpo para logo se projetar no espaço e transcender o mes- mo, ele é suscetível à manipulação mediante ferramentas externas. A voz ressoa no próprio corpo e se propaga no espaço, gerando dois tipos de escuta simultâneas.

Quando se fala de exploração vocal, fala-se inevitavelmente de impro- visação, considerando que só mediante a experimentação e através de um despren- dimento dos hábitos vocais, consegue-se desvendar outras vocalidades. Segundo a contrabaixista e improvisadora Joelle Leandre, “improvisar é se encontrar entre dois mundos, onde nada é certo mas tudo é possível” (FRANCK, 2011)119. Os idiomas fazem parte do repertório da improvisadora, mas estes aparecem e se desfazem no tempo, a partir da experimentação e da busca constante em tempo real. Para Joelle, a improvisadora “não se prepara para a improvisação, se prepara para um vazio, para 119 To improvise is 120 to find oneself between o fluxo, a energia que é compartilhada durante a performance” (FRANCK, 2011) . two worlds, there where nothing is certain but A partir da experimentação vocal fazemos descobertas técnicas que não foram di- everything is possible. retamente procuradas. Aos poucos é criado um repertório de sons e seus modos de (FRANCK, 2011: p. 9) articulação mais intencional. 120 You don’t pre- pare an improvisation, Mesmo numa experiência solo, a performer criadora se depara com ma- you just prepare yourself teriais sonoros desconhecidos e pode eventualmente voltar para estes, como se volta for the emtiness, for the flux, the energy we send a um movimento do corpo que não foi coreografado, mas que fica na organicidade each other on stage”. (LEANDRE in FRANCK, 2011: p. 70)

128 129 psicomotora daquele momento. A descoberta da multiplicidade de qualidades vocais ram o Judson Dance Theater no início do mesmo, levando propostas para os processos produz em princípio a experiência de habitar diferentes corpos e de escutar sonorida- de criação em dança, e/ou apresentando algumas performances para o grupo. Uma des que revelam outros imaginários possíveis. Isto se relaciona com o que o pesquisa- delas é a artista Anna Halprin. Segundo Banes (1983), Halprin levou para o Judson dor Rogério Costa escreve em seu livro “Música Errante” (2016) quando se refere ao “a liberdade para seguir a intuição e o impulso durante a improvisação.” corpo e ao prazer da performance, no caso, durante a improvisação livre: Ao procurar mais informações sobre a artista, encontrei um vídeo de uma Quando falamos anteriormente sobre “os efeitos da performance realizada por Halprin em 1975 em Paris (França). O título do solo é performance em tempo real no próprio corpo dos 122 músicos e as afetividades ativadas antes e durante a Dancing my cancer. Halprin tinha sido operada de câncer algum tempo antes da performance”, pensamos em algo muito forte, liga- performance e a doença tinha voltado a se manifestar. A artista decidiu fazer um tra- do à noção de prazer físico e lúdico que percorre, balho/ritual em relação a essa situação, vestindo um pano preto, dançando e vocali- como um vetor de vital importância, toda prática de improvisação. A relação com o instrumento, […], a zando visceralmente para um desenho feito por ela mesma em representação também gestualidade, o prazer motor, a escuta do som pro- da doença. duzido, a possibilidade de manipulação, o prazer da enunciação, da expressão, tudo isso gera uma espécie A exploração vocal pode-se pensar para além do significado das palavras e dos de “gozo”. (COSTA, 2016: p. 181) parâmetros musicais, para adentrar em um processo de experimentação da materiali- dade do som. No entanto, desvencilhar essa materialidade do contexto é uma tarefa Descobrir modos de vocalizar é também descobrir outros modos de se relacio- questionável, considerando que o som é também um elemento cultural e simbólico. nar, modos de dizer o incomunicável; modos de transmitir experiências do corpo não Nesse sentido, é possível realizar uma investigação dos recursos sonoros da voz a partir nomeadas. O que Costa chama de prazer motor pode ser entendido como a percep- de qualidades simbólicas da mesma, pensando, por exemplo, em intencionalidades ção de um corpo sensível, que é agente e, ao mesmo tempo é habitado e marcado pela de expressão ou processos de tradução de imagens, memórias, textos e outras referên- ação de tudo o que o rodeia. Se é a partir da respiração, dos sentidos e das emoções, cias não necessariamente sonoras. A exploração vocal propicia um ambiente em que que fazemos parte de uma espécie de textura viva, o movimento das vozes do corpo é convivem os ruídos possíveis, as melodias simultâneas, a harmonia e a inarmonia ou, uma resposta contínua a essas relações: segundo o Cage, a harmonia anárquica. O prazer de dar uma forma própria às ondas sonoras faz parte da autorrevelação vocalizada. A emissão é gozo vital, sopro acusticamente perceptível, no qual o próprio modela o som revelando-se como único. (CAVARERO, 2011: p.19)

Entender a emissão vocal como gozo121 é também um processo de aceitação e descoberta, e de revelação de repressões, já que a voz se encontra intimamente ligada aos processos emocionais e psicológicos da experiência. No teatro antigo grego a ex- ploração de vozes era incorporada como um modo de se livrar de males e doenças do corpo: 121 Assim, a voz, Na tragédia grega, buscava-se gerar o sentimento utilizando a linguagem de verdade no público, permitindo a este purgar-se para dizer alguma coisa, de algum mal. Ela estava diretamente associada aos se diz a si própria, se males do espírito, e do corpo físico, quando afetado coloca como uma pre- sença. Cada um de nós pelo espírito. Um dos códigos de linguagem capazes pode fazer a experiência de promover isso era a voz. (VARGENS, 2013: p.5) do fato de que a voz, independentemente A pesquisadora Sally Banes (1983) menciona algumas artistas que influencia- daquilo que ela diz, 122 INÉS: https:// propicia um gozo. (ZUM- www.youtube.com/ THOR, 2005: p. 63) watch?v=R-OJ4ZvRlbo

130 131 Técnicas Estendidas da Voz tons menores e maiores, a inarmonia, ao contemplar também as mínimas subdivisões do tom, além de oferecer à nossa sensibilidade renovada o número Em When Words Are not Enough (2008) a pesquisadora norte-americana máximo dos sons determináveis, nos Melanie Crump define as técnicas estendidas da voz como: “Um corpo de práticas permite também novas e mais variadas relações de acordes e timbres. (BER- transportado pelos métodos não-tradicionais da produção vocal, possivelmente alte- NARDINI, 1980: p.58) rando o timbre natural123 da voz com o propósito da expressão musical”(CRUMP, 2008: p. 3)124 Junto a este discurso da valorização do ruído, encontramos nos manifestos futuristas, a exaltação ao militarismo e o desprezo à mulher. A sublevação (a partir das As pesquisas referidas às técnicas estendidas da voz têm crescido bastante artes) era na concepção dos futuristas uma ideia restrita aos homens, e o ruído uma a partir da segunda metade do século XX na área da música. Se entendermos o esten- arma, a ser usada unicamente por estes. A ideia de ruído como poder está presente no dido como práticas não aceitas em determinado contexto, partiremos da observação pensamento de Murray Schafer (A afinação do mundo). Nas palavras de Schafer: da voz e de como esta age em cada ambiente. Mais especificamente, o que seria en- tendido como não-convencional em um ambiente de música tradicional de concerto De fato, o ruído é tão importante como meio de chamar a atenção que, se tivesse sido possível desen- europeia, na música andina sul-americana poderia ser o modo de emissão cotidiano. volver a maquinaria silenciosa, o sucesso da indus- Isto quer dizer que a definição desse termo é sempre culturalmente situada e portanto 123 INÉS: Impor- trialização poderia não ter sido tão completo. Se os tante relativizar este canhões fossem silenciosos, nunca teriam sido utili- relativa. O termo é utilizado para definir técnicas vocais não usuais, derivadas da ex- termo, já que a ideia de zados na guerra. (SCHAFER, 2001: p.115) ploração do aparelho fonador e da utilização de suportes tecnológicos como pedais ou um timbre natural traz uma discussão muito computadores que transformam o som em tempo real, funcionando como figurinos presente nas diferentes áreas que estudam a voz, vocais. como a fonoaudiologia Segundo Crump (2008), um dos poucos documentos estruturados sobre as e o canto. Entendendo técnicas estendidas da voz é o Lexicon of Extended Vocal Tecniques, gravado em 1975 No âmbito da música ocidental, o que se entende por técnicas estendidas da que a produção vocal é sempre cultural, as pelo Extended Tecniques Ensemble de San Diego. Trata-se de uma gravação que apre- voz é continuamente associado a um lugar de ruptura das artes hegemônicas do sécu- possibilidades da mesma senta de forma descritiva as diferentes técnicas utilizadas na época, escolhidas a partir lo XVIII e XIX, com as vanguardas (Cubismo, Futurismo, Dadaísmo e Surrealismo) estariam sempre ligadas à experiência do corpo da experimentação e da pesquisa do grupo. Este léxico foi gravado em fita cassete e do começo do século XX. Para descrever estas influências, Crump sintetiza: vocal e ao interesse por ir além da funcionalida- pertence ao acervo da Universidade de San Diego (EUA). Na internet é possível aces- O cubismo e o Futurismo apresentaram para o mun- de da voz no cotidiano. sar à gravação de um concerto do ensemble, chamado Imaginary landscape, realizado do o conceito de colagem, o Dadaísmo ofereceu a linguagem do non–sense pelos seus poemas sonoros 124 A body of prac- no ano 1980. Recebi, por meio de Deborah Kavash, uma das fundadoras do grupo, e o Surrealismo proporcionou um sonho como at- tices conveyed through nontraditional methods o seguinte link: https://archive.org/details/IL_1980_12_19/IL_1980_12_19_A_16. mosfera capaz de sustentar sons bizarros. (CRUMP, of vocal production, pos- wav. 2008: p.37)125 sibly altering the natural timbre of the voice for Em 1980, Kavash, cantora e atual professora de composição da Universida- É pertinente acrescentar que os futuristas têm um papel fundamental the purpose of musical expression. (CRUMP, de de California escreveu um artigo sobre técnicas estendidas da voz no marco das na valorização do ruído como fenômeno estético. Deslumbrados com este novo 2008: p. 3) pesquisas que seu grupo estava realizando. No artigo ela discorre sobre cinco técnicas contexto, os futuristas italianos fazem uma exaltação do aspecto sonoro maquinário, 125 Cubism and principais utilizadas no seu grupo nas composições. Segundo a autora estas seriam as questionando as práticas tradicionais da escrita musical (como o contraponto e a Futurism presented the world with the concept técnicas mais usadas e mais facilmente aprendidas nesse contexto: harmônicos refor- fuga) e almejando “a realização do modo inarmônico” (BERNARDINI, 1980: p. 58). of the collage, Dadaism 126 127 128 offered the language çados , ululação , fry vocal, chant e multifônicos complexos . Segundo Kavash Enquanto o cromatismo nos faz unica- of non-sense through (1980), “embora a improvisação possa fornecer um contexto musical básico para mente usufruir de todos os sons conti- its sound-poems and dos em uma escala dividida por semi- provided a novos sons e, de fato, foi o primeiro veículo de performance para essas técnicas usadas dream-like atmosphere capable of sustaining the bizarre sounds. (CRUMP, 2008: p. 37)

132 133 pelo grupo, demandas composicionais oferecem à vocalista novas dimensões de per- 129 https:// 126 Os harmônicos www.youtube.com/ formance”. presentes em um tom watch?v=Qg4Fp-A7IRw cantado podem ser indi- É possível encontrar referências das sonoridades apresentadas por Kavash ou vidualmente reforçados ou amplificados e perce- de outras antes mencionados nesse trabalho, em cantos ao redor do mundo, e inclusi- bidos como alturas dis- ve na fala de diferentes línguas. Por exemplo o fry é incorporado como textura da fala cretas (soando como as- sobios) enquanto a ação no inglês. O canto difônico faz parte da expressão vocal na Ásia central, nas comuni- da língua e / ou os lábios mudam a forma do tra- dades mongóis e tuvanas, assim como também na língua sul-africana xhosa (língua to vocal. A fundamental bantu nguni), ou na música dos inuites. Os clicks129 (estalos de língua articulados na cantada é produzida (...) geralmente sem vibrato região alveolar da boca), são consoantes em línguas sul-africanas, como a língua xho- para que os harmônicos possam ser ouvidos com sa. mais clareza. Maior cla- reza também pode ser Assim como Meredith Monk menciona em diversas entrevistas, essas sono- alcançada através da nasalização, que tende ridades podem ser encontradas na experimentação do próprio corpo vocal, mesmo a filtrar o fundamental sem antes possuir essas referências. Fica a questão de como estas sonoridades são in- e concentra uma maior atenção nos harmônicos. corporadas na performance. Entender que muitas das vocalidades consideradas como (KAVASH, 1980: p. 2) técnicas estendidas da voz não são novidades é importante para não assumi-las como vocalidades concebidas na prática musical ocidental. Entretanto podem ser novas 127 A técnica de ululação é percebida para quem emite essas vocalidades pela primeira vez durante uma performance. como uma interrupção rápida e relativamente uniforme do som bási- Se entendermos que a prática da exploração vocal parte não só de um co. É articulada por as- adestramento musical ou de uma busca pela virtuosidade técnica, mas sobretudo de piração (sopro de ar ou “h”) ou quebras glotais uma vontade de ampliar o conhecimento do corpo vocal, acessando outros espaços e pode ser aplicada pra- ticamente em qualquer e prazeres do corpo, poderemos iniciar a busca de uma outra definição para estas som, vozeado ou não vo- vocalidades não usuais em um determinado contexto, um termo que destaque a com- zeado. (KAVASH, 1980: p.5) plexidade do desejo deste corpo mais do que a complexidade material das vozes em si. Estas são vozes que na pulsão de atravessar o corpo, o redefinem e desafiam. Uma 128 O termo “mul- tifonicos complexos” espécie de voracidade que dissolve a língua e o próprio corpo. designa vagamente um conjunto de sons pro- duzido de forma expi- rada ou inspirada por uma voz. O cluster pode ser percebido como um número de sons não re- lacionados por interva- lo que se assemelham ao ruído, ou como uma complexa mistura de fri- tura vocal com outros sons ou alturas. A mistu- ra total pode cobrir uma faixa estreita ou larga de som em vários níveis ge- rais de afinação (baixo, médio, alto) bem como em campos específicos e perceptiveis (KAVASH, 1980: p. 10).

134 135 Considerações Finais

Um dos desafios que enfrentei durante a pesquisa foi assumir que a escuta analítica é sempre uma escuta pessoal, que combina a bagagem de uma área de estu- do e suas intersecções epistemológicas, a vivência como performer em relação a esse assunto, e as sensações produzidas em cada escuta, escuta poética que ganha conti- nuamente novos sentidos. Por outro lado, percebo que a partir de cada uma das Notas da Voz poderia ser desenvolvida uma nova pesquisa, considerando que os assuntos apresentados requerem o estudo aprofundado de diferentes áreas de conhecimento.

Partir de enunciados de Meredith Monk para falar do seu trabalho inicial produziu dúvidas em relação às escolhas bibliográficas que eu faria para desdobrar os assuntos apontados pela artista, escolhas que poderiam não estar ligadas às intenções de Monk, mas que colocariam em foco, descobertas que revelam a pesquisa através da performance como um campo em constante expansão.

A análise das músicas do primeiro LP de Meredith Monk é inicialmente mais focada no objeto (nas qualidades vocais apresentadas), e também expandida em as- suntos mais gerais. Contudo, as músicas serão inevitavelmente interpretadas segundo simbolismos pessoas e míticos que fogem da minha escrita e percepção.

Escrever sobre a própria prática é um processo complexo, a partir do qual as ideias se modificam pela constante crítica alimentada pelas leituras, pelas gravações dos ensaios, pelos retornos e apontamentos do público, e pelas colaborações com outras artistas. No decorrer da pesquisa percebi que essa escrita não é só minha, que o solo nunca foi solo, que tudo o meu processo foi coletivo, seja pela parceria com outras artistas e pesquisadoras, seja pela constante lembrança e consideração de outras vozes que permanecem na memória, vozes que me atravessam e desafiam a medida que elaboro o trabalho.

Desistir ou mudar radicalmente a pesquisa foram opções sempre latentes. Mais tarde percebi que “não saber o que acontece a continuação está na natureza da criação, e a ambiguidade do caos é algo a ser abraçado em vez do que temido.”(FREE- MAN, 2010) Me perguntei porque anelava tantas certezas no processo de escrita se na minha prática artística estas são continuamente derrubadas. Embora se trate de práticas diferentes, cujos processos eu me esforçava em distanciar o máximo possível, as duas práticas requerem confiança, dedicação, crítica, referências e parcerias.

136 137 As inquietações provocadas pelas performances e pela escuta de Key revelaram Referências bibliográficas dois aspectos principais do trabalho: o prazer que produz o conhecimento de diferen- Livros e Teses tes vocalidades, e a criação de outros corpos por meio da potência vocal, como “más- caras sonoras” que esculpem o corpo em cada emissão, mudando a sua percepção. Acredito que essas duas questões podem ser estudadas mais profundamente em um ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. SP: Martins Fontes, 1999. trabalho futuro, investigando de que maneira estas “máscaras sonoras” são elaboradas e entendidas em diferentes contextos. BARBOSA, Rosa Marilia. O canto Ancestral Negro. Resistência e Protagonismo Feminino na Cultura negro-brasileira. ECA, São Paulo, 2015.

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