Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Letras

Fábio André Cardoso Coelho

que dão aulas” - A expressividade linguística nas canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz

Rio de Janeiro 2013

Fábio André Cardoso Coelho

“Sambas que dão aulas” - A expressividade linguística nas canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª. Dra. Maria Teresa Gonçalves Pereira

Rio de Janeiro 2013

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEHB

C672 Coelho, Fábio André Cardoso. “Sambas que dão aulas”: a expressividade linguística nas canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz / Fábio André Cardoso Coelho. – 2013. 189f.

Orientador: Maria Teresa Gonçalves Pereira. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras.

1. Língua portuguesa – Estudo e ensino – Teses. 2. Lopes, Nei, 1942 – Canções – Teses. 3. Cruz, Arlindo, 1958 – Canções – Teses. 4. – Rio de Janeiro (RJ) - Teses. 5. Língua portuguesa - Estilo - Teses. 6. Linguísitca – Teses. I. Pereira, Maria Teresa Gonçalves. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.

CDU 806.90(07)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Fábio André Cardoso Coelho

“Sambas que dão aulas” - A expressividade linguística nas canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Língua Portuguesa.

Aprovada em 19 de abril de 2013.

Banca Examinadora:

______Profª. Dra. Maria Teresa Gonçalves Pereira(Orientadora) Instituto de Letras da UERJ

______Prof. Dr. André Crim Valente Instituto de Letras da UERJ

______Profª. Dra. Tânia Maria Nunes de Lima Câmara Instituto de Letras da UERJ

______Profª. Dra. Rosa Marina de Brito Meyer Instituto de Letras da PUC-RJ

______Profª. Dra. Patrícia Ribeiro Corado Instituto Federal Fluminense-IFF-RJ

Rio de Janeiro 2013

A Deus, fonte da minha inspiração Aos meus pais, Francisco (in memoriam) e Ozalina À minha querida avó Anália

AGRADECIMENTOS

Um verdadeiro sonho não se constrói sozinho. Ser grato àqueles que contribuíram para a realização deste trabalho expressa apenas parcialmente o meu reconhecimento a todos que colaboraram e foram determinantes nas etapas da construção da tese. A Deus, fonte de inspiração e em quem sempre confio. Aos meus pais, Francisco (in memoriam) e Ozalina, grandes companheiros e incentivadores para o aprendizado acadêmico, e à minha irmã, Andréa, pela presença constante. À Profª Maria Teresa Gonçalves Pereira, minha estimada orientadora, a quem devo minha gratidão pelo cuidado, atenção e cumplicidade nesta pesquisa. Mais do que orientadora, amiga das palavras sábias, um exemplo que quero seguir. Aos professores André Crim Valente e Tânia Maria Nunes de Lima Câmara, pelas valiosas observações para a pesquisa, por ocasião do Exame de Qualificação. Ao Ricardo, pelo apoio constante em toda a trajetória acadêmica do Doutorado e por transformar os “fardos em belas cestas de flores”. À família Brandão, “do coração”, em especial, à minha irmã “de alma”, Márcia, pelas acolhidas, pelo convívio, por me fazerem sentir “da casa”, me darem apoio, partilharem meus sonhos, minhas ansiedades e alegrias. Meu terno amor a vocês. Aos meus tios José Faria e Maria do Rosário Faria, por acreditarem sempre em mim. À minha madrinha Ilcemar, pelo exemplo de mulher guerreira. À Luciana, Vera, Ângela, Auxiliadora, Márcia Resende, Déborah, Anamaria, fiéis escudeiras na arte da amizade e do respeito. À Fernanda Freitas, Ana Malfacini, Carmen Pimentel, Denise Salim, Maria Lília, Fabiana dos Anjos, Alessandro Messias, Eleone Assis, Roberto Borges, Anderson Ribeiro, Terezinha Machado, grandes tesouros encontrados na trajetória do Doutorado. Obrigado pelas interlocuções, desabafos, risos e choros. Aos ilustres professores da Banca Examinadora, André Crim Valente, Tânia Maria Nunes de Lima Câmara, Rosa Marina de Brito Meyer e Patrícia Ribeiro Corado, por aceitarem me beneficiar com seus comentários e sugestões. À Tânia Saldanha e ao Luiz, sempre solícitos e dispostos a ajudar. A todos os amigos e alunos que respeitaram esse tempo tão especial em minha vida. Ao SAMBA, pela inspiração e oportunidade.

Podemos sorrir, nada mais nos impede / Não dá pra fugir dessa coisa de pele / Sentida por nós, desatando os nós / Sabemos agora, nem tudo que é bom vem de fora / É a nossa canção pelas ruas e bares / Que nos traz a razão, relembrando Palmares / Foi bom insistir, compor e ouvir / Resiste quem pode a força dos nossos / E o samba se faz, prisioneiro pacato dos nossos tantãs / E um banjo liberta da garganta do povo as suas emoções / Alimentando muito mais a cabeça de um compositor / Eterno reduto de paz, nascente das várias feições do amor / Arte popular do nosso chão / É o povo quem produz o show e assina a direção (Coisa de pele. Jorge Aragão/ Acyr Marques)

RESUMO

COELHO, Fábio André Cardoso. “Sambas que dão aulas” – A expressividade linguística nas canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz. 2013. 189 f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

O presente trabalho tem como objetivo central estabelecer uma visão crítica do ensino de Língua Portuguesa, em dias atuais, apontando aspectos teóricos e práticos importantes, no processo de ensino/aprendizagem, e propostas de análises estilísticas das canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz. Reiteram-se alguns aspectos funcionais do idioma, associando-os às situações comunicativas, com vistas à formação do cidadão linguístico. Investigam-se os recursos expressivos presentes em 10 letras de cada compositor, constituindo-se, assim, o corpus da pesquisa. Para as análises teóricas, revisitam-se os princípios da Estilística propostos por Nilce Sant’Anna Martins, Manuel Rodrigues Lapa, dentre outros, descrevendo o conceito de estilo, a representação da afetividade na linguagem, o valor da expressão, as marcas da subjetividade. Indicam-se o percurso do samba na cidade do Rio de Janeiro e as raízes do gênero musical. Destacam-se a identidade cultural do povo carioca e a importância dos compositores estudados, quanto às representações linguístico-culturais. No decorrer das análises, consideram-se as composições como “Sambas que dão aulas”, material produtivo para se aprender vários conteúdos da língua materna.

Palavras-chave: Ensino de Língua Portuguesa. Expressividade Linguística. Estilo. Samba. Nei Lopes. Arlindo Cruz

ABSTRACT

The present work aims at establishing a critical view of the teaching of the Portuguese language, indicating the important theoretical and practical aspects, in the teaching/learning process, and the proposals of stylistic analyses of Nei Lopes’ and Arlindo Cruz’s songs. Some functional aspects of the language are reiterated in association with communicative situations, aiming at the formation of the linguistic citizen. Expressive resources present in ten songs of each composer are investigated, building, thus, the corpus of the research. For the theoretical analyses, the Stylistics principles proposed by Nilce Sant’Anna Martins, Manuel Rodrigues lapa, Marcel Cressot, among others, are revisited, describing the concept of style, the representation of affectiveness in the language, the value of the expression, the marks of subjectivity. The trajectory of the samba in Rio de Janeiro city and the roots of the musical genre are indicated. The cultural identity of the carioca people and the importance of the composers studied, concerning the linguistic-cultural representations, are highlighted. Throughout the analyses, the compositions such as “Sambas that Teach” are considerece productive and pleasant material to approach the mother tongue.

Key-words: The teaching of the Portuguese language. Expressiveness. Style. Samba. Nei Lopes. Arlindo Cruz.

RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo establecer una visión crítica de la enseñanza de Lengua Portuguesa, apuntando aspectos teóricos y prácticos relevantes en el proceso de enseñanza /aprendizaje, y propuestas de análisis estilísticos de las canciones de Nei Lopes y Arlindo Cruz. Se resaltan algunos aspectos funcionales del idioma, asociándolos a las situaciones comunicativas, con vistas a la formación del ciudadano linguístico. Se investigan los recursos expresivos presentes en diez letras de canciones de cada compositor, constituyéndose, así, el corpus de la investigación. Para los análisis teóricos, se revisitan los principios de la Estilística propuestos por Nilce Sant’Anna Martins, Manuel Rodrigues Lapa, Marcel Cressot, entre otros, describiendo el concepto de estilo, la representación de la afectividad en el lenguaje, el valor de la expresión y las marcas de la subjetividad. Se indica el recorrido de la samba en la ciudad de Río de Janeiro y las raíces del género musical. Se destaca la identidad cultural del pueblo carioca y la importancia de los compositores estudiados, con relación a las representaciones linguístico-culturales. A lo largo de los análisis, se consideran las composiciones como “Sambas que ministran clases”, material productivo y placentero para abordar la lengua materna.

Palabras-clave: Enseñanza de Lengua Portuguesa. Expresividad. Estilo. Samba. Nei Lopes. Arlindo Cruz.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 12

1 VISÃO CRÍTICA DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA ...... 19

1.1 A Língua Portuguesa como exercício de cidadania ...... 19

1.2 O ensino produtivo da Língua Portuguesa ...... 27

A perspectiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino 1.3 35 Fundamental e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio...... 1.3.1 PCN – Por uma leitura fundamental ...... 35

1.3.2 OCEM – Por uma leitura além da fundamental ...... 42

1.4 As práticas de linguagem e a formação do professor de língua materna.... 47

1.5 A canção como gênero textual ...... 54

2 A EXPRESSIVIDADE DA LÍNGUA PORTUGUESA ...... 60

2.1 Pressupostos da Estilística ...... 62

2.2 O estilo e seus conceitos ...... 68

2.3 A caracterização do estilo ...... 72

2.4 O valor expressivo das palavras ...... 78

2.5 Representações e percepções da intertextualidade...... 82

O SAMBA, AS TRADIÇÕES CULTURAIS E AS CONTRIBUIÇÕES 3 87 LINGUÍSTICAS ......

3.1 O samba, seu estilo e suas relações sociais...... 90

3.2 O Rio de Janeiro: cenário do samba ...... 96

3.3 A identidade cultural do carioca...... 104

3.3.1 A representatividade linguístico-cultural de Nei Lopes ...... 108

3.3.2 A representatividade linguístico-cultural de Arlindo Cruz...... 111

4 NA ESCOLA: “SAMBAS QUE DÃO AULAS” ...... 117 4.1 Com expressividade: as canções de Nei Lopes ...... 117 4.2 Com expressividade: as canções de Arlindo Cruz ...... 144 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 174 REFERÊNCIAS ...... 179 ANEXO A - Entrevista com Nei Lopes ...... 188 ANEXO B – Entrevista com Arlindo Cruz ...... 195

Eu já passei por quase tudo nessa vida / Em matéria de guarida, espero ainda a minha vez / Confesso que sou de origem pobre / Mas meu coração é nobre, foi assim que Deus me fez... / E deixa a vida me levar (vida leva eu) / E deixa a vida me levar (vida leva eu) / Deixa a vida me levar (vida leva eu) / Sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu... (Deixa a vida me levar. Serginho Meriti e Eri do Cais. Intérprete: ) 12

INTRODUÇÃO

O ensino de Língua Portuguesa, nas escolas e nos espaços acadêmicos, reflete a nossa sociedade. Se os alunos expressam seus pensamentos, é porque a escola realiza o seu papel de mantenedora dos ensinamentos e mostra o que é saber se comunicar. Se ela não concretiza, de forma clara e plena, a tarefa de educação da Língua Portuguesa aos aprendizes, deve-se repensar algo e o caminho para a efetiva produção do saber linguístico partir dos múltiplos recursos expressivos do idioma. Esse pensamento conduz todo trabalho de pesquisa e se reafirma continuamente com o propósito de mostrar o que se tem na riqueza linguística e o que se quer e pode ensinar para a comunicação e a expressão. Saber fazer uso da língua significa, em certa medida, perceber o código linguístico em suas manifestações discursivas, respeitando as variantes culturais, sociais, políticas, históricas, antropológicas e filosóficas da linguagem. Destacaremos a relevância da significação, da expressão dos sentidos, no processo de construção da realidade do mundo, para o sujeito- aprendiz, e a sua capacidade de se comunicar nas interações. A tomada de consciência do professor de Língua Portuguesa, no intuito de fazê-lo perceber que seu trabalho extrapola os muros da escola, torna-se decisiva, para um ensino de qualidade. Ao pensarmos como a língua era ensinada e como hoje ela se manifesta, percebemos avanços didáticos (aulas interativas, novos equipamentos, entre outros), mas não suficientes para reconhecermos o sucesso escolar. É preciso que as aulas busquem o real sentido do aprendizado linguístico, promovam a reflexão da ação dos sujeitos sociais, na construção dos enredos e dos lugares que cada um elege para si, nos espaços sociais. Torna-se inadmissível tratar a escola como espaço não produtivo do saber expressivo da língua, não a considerando como aquilo em permanente renovação, criação e interação. A presente pesquisa objetiva estabelecer uma visão crítica do ensino de Língua Portuguesa, na contemporaneidade, destacando aspectos relevantes para a atuação do professor e propondo análises no processo de planejamento/realização das aulas. Para isso, trataremos dos recursos linguístico-expressivos, ressaltando a sua potencialidade, aplicados às canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz, mestres da arte de escrever samba. A escolha dos dois compositores se deve ao fato de ambos, na trajetória cultural do samba, seguirem em plena defesa das raízes sociais e filosóficas do gênero musical em questão. 13

O professor precisa valorizar os caminhos linguísticos que se lhe apresentam e direcionar as ações pedagógicas para um profícuo encontro com a expressividade linguística. A necessidade de estar sensível às formas de escutar e falar dos textos é validada pelo propósito de possibilitar aos alunos o encontro com a razão de existir/a emoção de conhecer a língua. Destacamos o fato de algumas escolas manterem essa concepção de linguagem e de uma parcela de professores- formadores se revelarem como sujeitos/agentes, conhecedores das múltiplas formas de expressão, do real exercício de fazer e (re)criar o idioma. Dessa forma, o que propomos, lato sensu, é uma educação linguística eficaz, que reformule o pensamento sobre a língua, acabe com as idéias fantasiosas sobre determinados conceitos gramaticais e apresente formas de aprender/(re)conhecer o nosso aparato linguístico, com prazer. A defesa por uma língua não restrita apenas aos seus fatos se postula por considerar que sua representatividade deve centrar-se na mediação das atuações dos sujeitos sociais que articulam e realizam seus atos de fala, escuta, leitura e escrita. Aqui, cabe fazer respeitar aquilo que há de mais representativo: sua potencialidade significativa, expressiva, mediadora das interações entre os sujeitos. Ao trilhar esse caminho, o professor revelar-se-á como estimulador da criticidade de cada aluno e promotor de atividades reflexivas, instigantes, curiosas, voltadas para a pesquisa, para o desejo de se conhecer o “novo”. Consideram-se os aspectos funcionais, associando-os às mais variadas situações comunicativas dos falantes, dando a cada um dos usuários a possibilidade de se manifestar expressivamente. É, por assim dizer, formar o cidadão linguístico. Se o sujeito se cumpre na língua e revela toda a sua identidade cultural por meio dela, temos, assim, o código vivo, latente, pulsante nas relações interpessoais, caracterizando a sua ação cooperativa com a história, a cultura e a sociedade. Nessa tentativa de reafirmação do ponto de encontro de cada um dos sujeitos com suas histórias, construtores de uma memória cultural coletiva, pensamos nas canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz. A motivação para a pesquisa se dá porque nelas encontramos uma riqueza linguístico-expressiva, que comprova a grande tríade linguagem, língua e cultura. O samba corrobora o desejo de marcarmos a identidade cultural, recobrando a terra, destacando a pátria e revelando a genuína defesa da língua. As canções possibilitam um trabalho multidisciplinar e bastante significativo para o aprendizado da leitura e da escrita. Representam espaços sociais diversos, culturalmente e historicamente, demonstrando as peculiaridades linguísticas de cada 14

usuário. É notório o prazer que as letras de música proporcionam aos alunos nas aulas. Mais do que escutar uma bela canção, o sujeito-aprendiz se reconhece como participante da construção ativa dos sentidos atribuídos a cada trecho lido e cantado. No caso do samba, observamos a possibilidade de um trabalho linguístico de qualidade, no que tange aos aspectos morfossintáticos e semânticos da expressividade textual. Com Nei Lopes e Arlindo Cruz, percebemos que nossas vidas são registros do pertencimento a algum lugar, a um grupo e, por consequência, às suas ideias. Constroem-se, assim, sambistas, expoentes da forma criativa de fazer cultura e ciência. Para eles, o samba tem o lugar no povo. Falar sobre a descrição e discussão dos caminhos e possibilidades que a história do samba vem produzindo representa um terreno árduo, em que pesquisadores, munidos de diferentes perspectivas metodológicas (histórica, linguística, entre outras), encontram resultados diversos. Os próprios compositores, em análise, se inserem no contexto. Algumas considerações, ao longo da pesquisa, serão feitas para servirem como base para o entendimento do samba no seu aparecimento, evolução e formação, a partir de sua fixação no Brasil. O tráfico negreiro, a música na expressão dos batuques, as mudanças políticas e sociais ocorridas no início do século XX, o surgimento do samba carioca, as festividades com base no candomblé e com a presença de muitos músicos da época, como Donga e Pixinguinha, tudo demarca o cenário de apresentação do gênero que se revelaria como uma das grandes expressões artística e musical da alma brasileira. Diante das considerações sobre a formação e fixação do samba nas raízes culturais e linguísticas, constatamos a valorização do gênero devido a permanência e aderência às questões da formação de um povo brasileiro, o carioca. É perceber que a vida na cidade do Rio de Janeiro manteve-se, e ainda se mantém intrinsecamente ligada aos valores do samba. Entender a formação da cidade do Rio de Janeiro é, por conseguinte, caminhar na trilha do Samba carioca. O cantor, escritor, compositor, pesquisador e sambista Nei Lopes envereda pelo samba e nos arriscamos a acreditar que faz dele a “cara-metade” da sua alma. Caracterizado por um compromisso linguístico e ideológico, apresenta com leveza e marcação, assim como o ritmo do samba, as palavras nas composições. Propõe um passeio pela Língua Portuguesa e convida os leitores e ouvintes a olhar a crítica e a ideologia com uma fina ironia, certa dose de humor. Revela-se, assim, um carioca multifacetado na trajetória do samba. 15

Em Arlindo Cruz, reiteramos o valor da parceria, símbolo da reverência do sambista a quem comunga dos mesmos versos. Nomes importantes do samba passaram pela trajetória profissional do artista, reforçando os laços fraternais para que a cultura ocupasse lugar de destaque no país. Temas marcantes de suas composições são a festa, a família, a paixão, o samba, a religiosidade, dentre outros. A popularidade das canções se associa ao senso comum, às vontades da gente brasileira, à construção do discurso com elementos característicos do samba. O levantamento do corpus da análise compreenderá uma classificação das canções por eixos temáticos variados, como a mulher/as relações amorosas, o samba/a defesa pelo samba/a metalinguagem/metasamba, o cotidiano/as funções sociais do homem, a religião/o candomblé, integrantes do universo estilístico de Nei Lopes e de Arlindo Cruz. Na composição desse corpus, não haverá interesse em catalogar todas as composições dos sambistas, mas selecionar o quantitativo ideal, na tentativa de se confirmar a proposta do trabalho. Sobre o aspecto metodológico utilizado nesse estudo, se buscarão contribuições da Estilística e da Gramática, no que corrobora os recursos linguístico-expressivos aplicados à Língua, para evidenciar os efeitos de sentido alcançados com eles e presentes no material do corpus. No primeiro capítulo do trabalho, apresentamos uma visão crítica sobre o ensino de Língua Portuguesa, baseada nas concepções de Geraldi (1996, 2003, 2006), Antunes (2003,2009), Pereira (2001,2004), Guedes (1997, 2006) e outros, com o propósito de evidenciar o percurso percorrido pelos professores, apontando a eficácia e a improdutividade desse ensino. Traremos à luz questionamentos de Bunzen (2006), Travaglia (2000) e Mendonça (2006) sobre a formação do professor de Língua Portuguesa, o compromisso da leitura e da escrita por parte dos professores e alunos, e a interação almejada nas práticas efetivas de linguagem. Sobre as práticas de linguagem e a formação do professor, o que os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e as OCEM (Orientações Curriculares para o Ensino Médio) apontam e o real professor que se apresenta em sala de aula, tratando de evidenciar as ideias de Rojo (2000). Para as questões de metodologia e do objeto de ensino de língua portuguesa, Suassuna (1995) nos dará a fundamentação para uma abordagem pragmática. No segundo capítulo, revisitamos princípios da Estilística, a fim de fundamentarmos a análise proposta e aplicada ao corpus da pesquisa. Para os apontamentos sobre a Estilística, far- se-á necessário recorrermos às bases teóricas de Lapa (1998), Martins (2000), Monteiro (2005) e 16

outros, com o intuito de evidenciarmos os objetos, a análise e as ciências auxiliares, bem como apontarmos a variedade de conceitos de estilo e o aparecimento da Estilística no universo linguístico. No tocante às relações entre estilo/heterogeneidade e intertextualidade/estilo, recorreremos à Discini (2009). Destacaremos a representação da afetividade na linguagem, o valor da expressão e sua relação com o processo da comunicação, as marcas da subjetividade, levando em conta as pressupostos teóricos de Galvão (1979) e Possenti (2001). Consideramos relevante a descrição de aspectos semânticos pertinentes às análises dos textos e relacionaremos alguns autores e conceitos. Com base nas contribuições teóricas de Moura (1995, 2004), analisaremos o percurso do samba na cidade do Rio de Janeiro, tentando demarcá-lo como um dos mais importantes e criativos instrumentos de pensar a sociedade brasileira pelos próprios brasileiros. Apontaremos ainda, consoante às ideias de Moura (2004) e acrescidos do olhar apurado de Elias (2005) e de Trotta (2011), o samba como ponto de divergência e de convergência como gênero musical e das relações sociais. Identificaremos como pertencente a um contexto de reconstrução e refeitura dos laços caseiros e íntimos, singelos da amizade e de respeito. Para a compreensão da relação entre língua, linguagem e música, buscaremos as ideias de Sodré (1998) e de Amaral (2010), a partir de um estudo sobre a canção como linguagem em liberdade, mas com o cuidado na recepção e identificação cultural. Ainda trataremos de alguns aspectos característicos da letra do samba, servindo-nos como insinuação de uma filosofia da prática cotidiana, comentário social, exaltação de fatos imaginários, passíveis de serem entendidos pelos compositores e ouvintes, o que mostra a relação da cultura com o mundo. Também, no capítulo, é o próprio Nei Lopes (2008, 2012) quem nos oferece os apontamentos sobre a temática do samba, suas raízes, os bambas, a indústria cultural e de entretenimento e um recorte geo-histórico formador do gênero. Para a análise do corpus, propriamente dita, recorreremos ao aparato teórico exposto e outros necessários, a fim de elucidarmos as aplicações linguístico-expressivas em vinte canções dos compositores Nei Lopes e Arlindo Cruz (dez obras de cada um), trazendo aspectos significativos às discussões. Como critério de seleção, utilizamos a recorrência temática nos textos e trataremos de assuntos como, por exemplo: a caracterização do subúrbio carioca, os aspectos constitutivos da favela, o ato de criação do samba, as relações amorosas e a relações interculturais. Juntamente com o exemplar do trabalho, segue um CD com as vinte canções analisadas, para que o leitor acompanhe os apontamentos descritos no quarto capítulo. 17

É válido registrar que, provavelmente, ao longo do trabalho, outros teóricos aparecerão, fundamentando mais, no estudo sobre o que “no princípio era a roda” e hoje é, talvez, a maior manifestação linguístico-cultural do país. Com o objetivo de trazer à tona o samba como objeto de estudo linguístico, pretendemos comprovar sua elevação a uma dimensão acadêmica e, concomitantemente, adequada aos contextos de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa, mostrando os “Sambas que dão aulas”. Por fim, apresentaremos a entrevista com Nei Lopes, na busca de algumas informações sobre o uso da língua, por parte de cada compositor, o emprego dos mecanismos expressivos, dos recursos linguísticos e as perspectivas culturais dos textos, dentre outras, no que diz respeito ao jeito peculiar de falar uma língua de/para todos. Nos anexos, justificamos a ausência da entrevista com Arlindo Cruz.

Não, não basta ter inspiração / Não basta fazer uma linda canção / Pra cantar samba se precisa muito mais. (Pintura sem arte. Candeia)

Nosso samba é canção maior / De vocação e ideal promissor / Libertador / Como flor revelando véus / O samba, valha-me Deus, professor. (Samba, Deus, professor. Toninho Camargos) 19

1 – VISÃO CRÍTICA DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

1.1 – A Língua Portuguesa como exercício de cidadania

O ensino de Língua Portuguesa nas escolas brasileiras, há tempos, vem apresentando problemas, desde o planejamento até as atividades práticas de cada professor. O cenário que se evidencia em algumas aulas é de monotonia, falta de interesse na descoberta de fenômenos linguísticos que possibilitem a real funcionalidade da expressão verbal. Falta mostrar a Língua como um sistema em potencialidade, um conjunto de recursos disponíveis a cada sujeito-cidadão, um sistema linguístico que, de fato, se faz, se realiza e se constrói. Eleger apenas uma modalidade linguística para se utilizar no processo de ensino é reduzir a natureza de todas as manifestações da linguagem e esbarrar nas antigas indagações sobre qual a modalidade correta/incorreta. Várias questões estão imbricadas ao uso da Língua e não podemos pensar que apenas as questões linguísticas lhe estejam associadas. Considerar o conjunto de palavras e expressões nas situações de interação é percebê-lo nas questões culturais, sociais, políticas, históricas, antropológicas, psicológicas e filosóficas, evidenciando-se assim aquilo que possui de mais relevante: a sua significação, a expressão dos sentidos, a constatação desses sentidos à realidade do mundo e a capacidade de estabelecer a comunicação no processo de interação social. O professor de Língua Portuguesa precisa atentar ao reconhecimento de que suas ações se manifestam na escola, nas ruas, no lar, ou seja, nos espaços públicos, privados, acadêmicos e escolares. Suas atividades não se podem reduzir a exercícios de classificação de orações ou de termos morfológicos; devem buscar o sentido real do aprendizado linguístico, promovendo a reflexão da ação dos sujeitos sociais, na formação das próprias histórias e dos cenários em que cada um vive. A escola, nos tempos atuais, precisa trabalhar revelando a importância dos fatos da Língua como fatos sociais, ligados à vida cultural dos falantes. Ao professor sempre coube a chancela de quem detém o saber e que possui conhecimento para definir o certo e o errado. A despeito disso, nos empenhamos em buscar, em nossos ambientes escolares, condições adequadas para o encaminhamento da prática linguística, reflexões sobre o ensino, permitindo que se apliquem novos métodos, na tentativa de alcançarmos um ensino linguístico de qualidade. O que desejamos são transformações na prática pedagógica que, de fato, não se caracterizem como 20

meras transferências de teorias e conceitos linguísticos, nem que os livros didáticos sirvam como manuais que aprisionem a atuação dos professores. Buscamos a relativização entre a teoria linguística e a escola, mediada e coordenada por um professor atento aos fenômenos linguísticos. Critica Geraldi:

... para mim as principais razões para a não-adoção do livro didático são a alienação, a predeterminação e a falsificação das condições de trabalho. Arrisco-me a dizer que o livro didático é adotado – e fartamente distribuído – porque dá as aulas prontas, dispensando de pensá-las, de criá-las segundo as necessidades concretas do movimento de ensino-aprendizagem que vem ocorrendo em sala de aula (1987: 5).

Não cabe estender e esgotar a discussão sobre os manuais didáticos. Apenas destacamos o tratamento dado a eles, a fim de alertar os professores. Diante do exposto, ao tratar a prática do exercício linguístico de cidadania na escola, Antunes aponta que o trabalho deveria valorizar:

Uma análise que incluísse, evidentemente, questões de gramática, mas que soubesse ir muito além do que descrevem ou prescrevem os manuais. Uma análise que, enfim, explorasse os usos reais que são feitos e, assim, pudesse surpreender o movimento de criação e de vida que passa pelo interior da história de todas as línguas (2009: 31).

A afirmação reitera a ideia de que o código linguístico possui sua funcionalidade e, como tal, devemos associá-lo às situações comunicativas de seus falantes, possibilitando as manifestações expressivas de cada usuário. Afirmamos, assim, a Língua como prática social, instrumento de ação do discurso, objeto de intervenção de cada indivíduo, realização da intenção do falante. Em consonância com essa visão linguística, cumpre ratificar a importância da busca dos sentidos nas falas, nos dizeres que compõem o universo linguístico-social. O sujeito se estabelece na Língua e revela sua identidade cultural. É a ação cooperativa do idioma, da história, da cultura e da sociedade que torna a estrutura linguística viva, latente, pulsante nas relações interpessoais, e demarca a qualidade intrínseca pertinente a essas áreas. Também importam as disposições sociais que orientam a linguagem e estabelecem modelos discursivos concernentes a cada situação comunicativa. O processo de interação verbal se regula por uma rotina cultural na qual o espaço e o tempo se apresentam e confirmam a Língua como um aparato de práticas de uso social, o que se exemplifica pelas correspondências comerciais, pelas canções, pelas matérias jornalísticas, pelos editoriais das revistas produzidos e obedecendo, cada um, a sua intenção discursiva.

21

É indispensável destacarmos o aspecto da língua-em-função, que demonstra como as atividades sociais se manifestam, com a finalidade da interação e da intervenção humana. Os movimentos acontecem sob a forma da textualidade, característica inerente aos textos orais e escritos. Além da estrutura linguística, a extralinguística merece destaque, marcada por regras textuais e por regras culturais, interativas e sociais. Para Antunes, é possível entender esse sentido, quando afirma que:

Um ensino de línguas que, em última instância, esteja preocupado com a formação integral do cidadão, tem como eixo essa língua em uso, orientada para a interação interpessoal, longe, portanto, daquela língua abstrata, sem sujeito e sem propósito – língua solta de palavras e das frases soltas (2009: 38).

A escola que se preocupa com a formação do cidadão e que propõe uma educação linguística de qualidade é aquela que apresenta, como objeto de estudo, o texto mantenedor das relações próprias com o seu sujeito-autor, não ignorando as impressões do seu sujeito-leitor; o texto que se respeita na sua construção e possibilita as várias releituras, dadas as situações espaciais e temporais de leitura. Estabelece-se, então, a ideia de que todo texto tem seu momento de inauguração e pode/deve ser reinaugurado por todos que se encontram com ele – o texto. O professor de Língua Portuguesa precisa valorizar os caminhos linguísticos, encaminhando os alunos para o encontro com a expressividade linguística, um dos fatores que se relaciona com a adequação do discurso às circunstâncias e aos objetivos da comunicação, associado à competência pragmático-textual que habilita os usuários da língua a comunicar-se em situações concretas por meio de textos. Sobre a expressividade, escreve Azeredo:

Consiste na característica que faz com que um enunciado chame a atenção do leitor/ouvinte mais por sua materialidade linguística (expressão) do que pelo que significa (conteúdo). Em uma de suas manifestações – a função poética da linguagem – a expressividade consiste na simulação de uma isomorfia ou semelhança entre a estruturação do significante e a estrutura do conteúdo de um enunciado (2002: 48).

Mattoso Câmara Jr. apresenta, para o verbete EXPRESSIVIDADE, a seguinte descrição: “v. estilística; afetividade; eufonia; expressão” (CÂMARA JR., 1986: 114). A fim de nos aproximarmos de um sentido mais restrito da palavra, recorremos à definição do que nos aponta como EXPRESSÃO:

22

Em sentido lato, toda enunciação linguística, pois assim se exterioriza, isto é, se expressa, um estado mental. Em sentido estrito, a expressão – que convém substituir pelo termo EXPRESSIVIDADE – é a capacidade de fixar e atrair a atenção alheia em referência ao que se fala ou escreve, constituindo o objetivo essencial do esforço estilístico (v. estilo; estilística) (1986: 114).

Para a efetivação do referido encontro com a expressividade linguística, é preciso sensibilidade às formas de escutar os textos e falar deles, para que, assim, os alunos encontrem a razão de existir/a emoção de conhecer a língua. Tal concepção de linguagem não se manifesta em algumas escolas, em virtude de apenas uma parte dos professores-formadores se revelarem como sujeitos/agentes conhecedores das formas da Língua, do verdadeiro exercício de fazer e (re)criar a aprendizagem. Ressaltamos a importância de o aluno (re)aprender com a participação social, utilizando-se dos múltiplos recursos do código linguístico. Tal proposta de educação linguística envolve certos fatores para sua efetivação, como a reformulação de termos e conceitos e a mudança do pensamento sobre a Língua. Outra questão importante é destacar o papel da sociedade no que tange às avaliações sobre o papel da escola. Poucos expressam suas opiniões e não agem, de forma efetiva e consciente, na análise da realidade escolar. Alguns dados tão importantes não são levados a sério, no momento de avaliar o quanto o universo escolar tem feito pela formação do aluno cidadão. Por vezes, há escolas sem aulas, aulas enfadonhas; escolas sem professores, professores enfadonhos. Uma ciranda que interfere no ensino linguístico brasileiro. Aula de português – aula só de gramática. A associação ainda é percebida na prática de certos professores. Já percebemos que essa visão sobre o ensino está ultrapassada e que se necessita de um ensino de linguagens, centrado na compreensão e na produção dos sentidos dos textos, sob os diversos gêneros textuais. Assim, a gramática viria de maneira mais natural e eficaz. Estudar as normas gramaticais possibilitaria ao usuário perceber as variadas manifestações sociais do idioma. Conforme Suassuna:

Ora, se o objeto de ensino é a língua verdadeira e inteira (trabalho, processo histórico e social), estudar língua é estudar e fazer a língua ao mesmo tempo; é entender e usar um sistema que sempre se refaz. A função social do conhecimento é resgatada – no caso do Português – se, com ele, através dele, compreendemos o mundo, expressamos a nossa compreensão e buscamos os modos de intervir sobre ele, transformando-o (1995: 127).

Dizer que a sociedade não tem noção do quanto a escola exerce um papel fundamental na formação social e cultural do indivíduo seria enganoso. Na verdade, o que falta ao povo é a

23

tomada de consciência de que “a escola é de/para todos” e entender que se ela não funciona de forma eficiente é porque o permitimos. O conformismo não pode prevalecer na questão. Imaginamos um professor estimulador da criticidade de cada aluno, promotor de atividades reflexivas, instigantes, curiosas, voltadas para a pesquisa, para o desejo de conhecer o “novo”. Na defesa por um exercício linguístico de cidadania, pensamos no investimento da conscientização do sistema linguístico para a apreciação dos sentidos; na máxima exploração das palavras e das expressões; nas formas orais e escritas de interação; na reflexão crítica; na análise e na pesquisa, como prova cabal de que se aprende um pouco a cada dia; no estímulo por um conhecimento geral; numa competência lexical que favoreça a ampliação do repertório linguístico; na potência de cada falante em elaborar novas palavras e significados para o código; na aceitação da pluralidade linguística revelada nas diversas regiões, como manifestação brasileira; na cor, na raça e, sobretudo, na Língua. O objetivo desse posicionamento é fazer da escola um espaço em que possamos abordar as ações comunicativas, numa concepção interativa e discursiva. O aluno assumirá seu papel ao se apropriar das variadas formas de usos da Língua. É revelar a escola como lugar de construção da consciência crítica dos sujeitos, num mundo onde as palavras expressem a veia linguística do cidadão. Outra questão interessante é indagar de quem é a responsabilidade de ensinar a ler e a escrever. Muitos afirmam que é tarefa do professor de Língua Portuguesa e essa é informação equivocada. A experiência já provou que é tarefa da escola, de todos os professores, de todas as áreas. À medida que se respeitar o exercício linguístico, devidamente orientado nas diversas manifestações dos conhecimentos, o aluno tornar-se-á cada vez mais competente, tanto nas habilidades de leitura e de escrita, quanto nos conteúdos científicos. Os estudantes têm, ao longo da trajetória, demonstrado suas expectativas na atuação de seus professores e esperam que lhes ensinem o de que precisam. Tentamos buscar, para os nossos professores, uma formação pedagógica sobre a responsabilidade na decisão do que é oportuno no ato de ler. É dar autonomia, mas com segurança e confiança. Torna-se necessário, então, que cada professor estabeleça as etapas da leitura e da escrita. A programação efetiva de atividades que desenvolvam essas habilidades nos alunos proporcionará resultados satisfatórios na formação linguístico-cidadã do estudante. Os textos devem ser variados, divertidos, sérios, simples, relevantes, adequados a cada situação de aula. A

24

escola ainda é, para muitos, o único local onde há livros. Quando se referem às oportunidades de leituras disponibilizadas e o que se deve ler, Paulo Coimbra Guedes e Jane Mari de Souza afirmam:

Tudo, pois o único lugar onde a televisão ainda pode ser desligada é na escola. A sala de aula é o único lugar onde as crianças podem ser colocadas quietas nos seus cantos com um livro na mão para aprender que ler é um diálogo solitário com um texto que se vai desvelando ao seu olhar (2006: 17).

Dessa forma, haverá alunos capacitados para enxergar mais do que letras, palavras, frases soltas e descontextualizadas; formaremos sujeitos aptos a atribuir sentidos, a empregar os mecanismos da Língua de maneira que a expressão se revele, desenvolvendo a leitura, a competência em perceber o mundo como um universo criativo do ponto de vista linguístico. É aconselhável que os professores se coloquem na posição de alunos, apresentando-lhes a funcionalidade dos exercícios e esclarecendo-lhes as questões pertinentes aos assuntos abordados. Escrever não pode ser um ato de alienação, muito menos de preenchimento do tempo. Mais que a leitura de um texto, o que precisamos explicar ao aluno é a razão de realizar aquele ato, naquele tempo, com o sentido apropriado. As interpretações de textos não se baseiam apenas em intuição. Precisam ser ensinadas, conduzidas e aplicadas ao mundo do sujeito-leitor. Uma fantasia criada pelo ambiente escolar é aquela que postula ensinamento sobre o uso de dicionários e de enciclopédias, leitura de jornais, periódicos, jornais, artigos científicos, crônicas, entrevistas, visitas aos museus, teatros e cinemas, na prática do professor de Língua Portuguesa. A responsabilidade das atividades não é exclusiva dele; as demais disciplinas da escola devem também realizar essas ações. Se o acesso aos meios expressivos da Língua é um direito de cidadania do aluno, cabe à escola coordenar um trabalho de construção coletiva, discutindo com os alunos e os professores as mudanças pertinentes à concepção de linguagem no processo de aprendizagem e na produção do conhecimento. Mais do que fornecer informações, a tarefa do professor é organizá-las, na busca da produção de sentidos. É na aula de Língua Portuguesa que se aprimora a capacidade de leitura, considerando os subsídios necessários para a atividade de escrita e leitura, produzindo ações reflexivas. Para isso, afirma Guedes:

A tarefa a ser desenvolvida na aula de Português de uma escola que quer construir a cidadania é levar os alunos a contar a história de suas vidas, de suas famílias, de sua comunidade, falando de

25

sua realidade interior e de sua realidade social mais próxima para que produzam conhecimento a respeito deles mesmo e de seus leitores – o professor, os colegas de aula, os demais alunos da escola, os demais professores, os pais, a comunidade escolar, o bairro, a cidade, de acordo com o programa de publicação que a escola conseguir desenvolver (1997: 83).

O professor deve manter a atenção nas escolhas textuais para a elaboração do seu planejamento pedagógico, criando alternativas com os variados gêneros e autores. A tradição aponta alguns cenários de aulas baseadas nas repetições de exercícios e atividades monótonas. Os alunos querem aulas produtivas, com bons roteiros e a oportunidade de conhecerem uma “língua viva”. Segundo Pereira:

É necessário que o professor oriente a leitura dos poetas, romancistas, contistas, cronistas para revelar ao aluno o sentido da infinidade de recursos expressivos construídos historicamente na língua e o trabalho de (re)criação de novos para dar conta da configuração da realidade, compreendendo que estão à sua disposição para trabalhá-los à sua vontade, não ainda com o talento dos escritores consagrados, mas com o direito legítimo de fazê-lo como donos e usuários da língua (2004: 181).

Em consonância com tal visão cidadã do ensino da Língua Portuguesa, observamos que as canções possibilitam um trabalho multidisciplinar e bastante expressivo para o aprendizado da leitura e da escrita. São representações culturais e históricas de espaços sociais diversos e que demonstram as peculiaridades linguísticas do usuário da Língua. É preciso ressaltar o prazer que as canções instauram nas aulas. Mais do que escutar uma peça musical, o sujeito social se reconhece como participante da construção ativa dos sentidos atribuídos aos trechos lidos e cantados. A composição, assim, mantém os elos culturais e sociais, favorecendo um trabalho linguístico de qualidade, no que tange aos aspectos morfossintáticos e semânticos. Respeitamos o empenho de Anazildo Vasconcelos da Silva, responsável por atribuir à canção lugar como objeto de pesquisa acadêmica, por meio do texto “A poética e a nova poética de Chico Buarque”. O autor ressalta a importância do fazer poético, sem se deter no que é poesia ou canção, mas valorizando as formas poéticas empregadas, na busca de um lirismo expressivo, próprio da linguagem musical. Diz que:

A invasão da música popular não implica a descaracterização do setor, que continua paraliterário, nem da poesia, que permanece manifestação literária. De modo que, ao chegar à década de 60, o historiador terá, forçosamente, que considerar a presença da poesia na música popular, ou perderá a perspectiva crítico-evolutiva da lírica brasileira (2002: 78-79).

Supomos também tarefa do professor de Língua Portuguesa promover uma seleção das letras das canções que viabilizem um encontro da cultura, da sociedade, da antropologia, da

26

filosofia, com a história da língua e do povo. Mais do que analisar as rimas perfeitas, a intenção é possibilitar um diálogo harmonioso entre as áreas. Para tanto, damos à palavra o status de permanência no processo comunicativo, tornando legítimo o nosso discurso, e nos apropriamos de formas e meios de expressão e comunicação estáveis, detentores de sentidos: os gêneros textuais. Para Azeredo (2007: 109), “os gêneros textuais são, portanto, as formas relativamente estáveis pelas quais a comunicação verbal se materializa nas diferentes práticas sociais”. Tomada como um gênero textual mantenedor de proximidade com a realidade do aluno, a canção se distancia de outros textos que, por vezes, se mostram como exemplos de situações descontextualizadas. O uso das canções apresenta fatores que viabilizam um ensino consciente- crítico da Língua para o aluno: o (re)conhecimento do universo exposto; a abordagem didático- pedagógica significativa para a descoberta dos recursos linguístico-expressivos; o trabalho interdisciplinar com outras áreas do conhecimento; a possibilidade de questionamentos entre as manifestações culturais e os seus registros verbais. Numa proposta de interação por meio da linguagem, com respeito à pedagogia da Língua, temos a concepção de linguagem como prática discursiva, histórica e intersubjetiva inserida no contexto da sala de aula, provando a interlocução da ação pedagógica. A prática escolar comunicativa garantiria, segundo Suassuna:

a) A construção permanente de sistemas de referência, através dos quais o aluno-sujeito compreende a realidade e expressa o que compreendeu dessa realidade; b) O resgate das relações sociais em geral, pelo entendimento das relações entre os fatos da língua, e entre esta e o mundo; c) A apropriação, simultaneamente individual e coletiva, da linguagem por alunos e professores; d) O processo de constituição da subjetividade e de novas relações intersubjetivas, instauradas pelo exercício da linguagem; e) A percepção dos papéis e funções da língua em si mesma e no seio da vida social e simbólica; f) A utilização da língua em contextos interacionais efetivos e diversificados, com base na assunção de diferentes papéis no jogo das representações sociais; g) A análise crítica das relações sociais estabelecidas na e pela linguagem; h) A possibilidade de escolhas e opções diante da língua, considerada a sua multiplicidade (1995: 130).

Ao observarmos cada item proposto, percebemos que se interligam ao funcionamento da língua, numa perspectiva cidadã de uso. É tratar de conceder ao professor a chance de, metaforicamente, estar com “os dois pés na sala de aula”, com a firmeza de uma ação eficaz.

27

1.2 – O ensino produtivo da Língua Portuguesa

No tocante ao ensino da língua materna, refletimos sobre vários objetivos que se manifestam na competência comunicativa e, consequentemente, nas competências gramatical ou linguística e textual. Cada uma representa a capacidade de o sujeito empregar a Língua nas situações de uso. Quanto à competência gramatical, qualquer usuário promove sequências linguístico-gramaticais, verificando se tais sequências são possíveis e respeitadas nas construções frasais. Observamos pelas normas e regras, respeitando a criatividade e a capacidade de produção gramatical dos sujeitos. A competência textual, segundo Luiz Carlos Travaglia (2000: 18), “é a capacidade de, em situações de interação comunicativa, produzir e compreender textos considerados bem formados, valendo-se de capacidades textuais básicas”. Para justificar o uso da expressão bem formados, no texto, o autor lembra que, em relação às frases, os critérios para a formação do texto devem obedecer aos princípios de organização, constituição, construção e funcionamento. Algumas questões precisam de esclarecimento, quanto aos sentidos empregados para o termo gramática. Segundo Azeredo (2002: 28), “a gramática de uma língua é necessariamente um sistema de unidades e de regras que as combinam em construções de extensão variável”. Devemos levar em consideração duas acepções: a de sistema e a de sincronia. São quatro conceitos de gramática, divididos em dois grupos. O primeiro trata da tradição, da convenção, do que se chama de gramática normativa; o segundo demarca a observação e a análise da descrição da Língua, a gramática descritiva. Para fundamentarmos nossa análise sobre o ensino produtivo da Língua Portuguesa, faz- se necessária uma breve apresentação do que Azeredo (2002) aponta sobre os conceitos de gramática. O primeiro conceito diz “a gramática refere-se às regras que uma pessoa deve conhecer para falar e escrever corretamente uma língua” (2002: 31). Destacamos o caráter de correção da Língua e sua aplicação pedagógica. É a ideia que nos foi transmitida, ao longo da vida escolar. Em tese, tratamos do que aprendemos na escola e da capacitação dos usuários para, em determinadas situações sociocomunicativas, utilizarem o domínio padrão. O equívoco apontado pelo autor, reiterado por nós, concentra-se no exagero da importância desse conceito, levando-nos a crer que a modalidade padrão “é um uso universalmente indispensável à comunidade” – (2002: 32 – grifo do autor), ou seja, que devemos utilizá-la em todas as situações.

28

O segundo conceito exposto mantém relações com o primeiro, definindo que:

Gramática é um conjunto de informações geralmente aprendidas na escola, contidas em um livro específico também chamado ‘gramática’, que nos ensina, entre outras coisas, a classificar os sons que pronunciamos, as palavras e suas partes, as orações e seus termos, e a enunciar os processos usuais na combinação dessas unidades (AZEREDO, 2002: 32).

A análise se fundamenta “com base na crença em que a capacidade para ‘falar sobre a língua’ é condição para saber usá-la bem’” (2002: 32). A correlação existente entre os dois pensamentos é relativa, pois a garantia de sermos eficazes no uso dos mecanismos linguísticos não está na detenção de todas as regras e normas que regem as suas construções. Mais do que isso, devemos explorar as potencialidades da Língua, para, então, ensinarmos o caminho para a leitura e a escrita. Não há desconsideração pela visão normativa, apenas entendemos que o emprego dela precisa ser planejado e aplicado em situações de interação verbal que exijam esse rigor. Azeredo aponta mais dois conceitos, de forma conjunta, para evidenciar os pontos de convergência e divergência. No terceiro:

A gramática é o que numa língua, constitui o sistema de unidades ou conteúdos entre os quais se estabelecem distinções obrigatórias e em número limitado. Ela difere do léxico, que é o conjunto das palavras da língua, listadas em ordem alfabética nos dicionários (2002: 33).

Quanto ao quarto conceito, pontua o autor:

O sistema gramatical compreende as unidades portadoras de significado e os recursos formais que regem a combinação dessas unidades nos diferentes níveis da língua. Neste sentido, a gramática difere da fonologia – cujas unidades são desprovidas de significado – e do léxico, que é o conjunto das palavras listadas no dicionário (2002: 33).

Para nossa análise, as significações à gramática são correspondentes, satisfatórias, se inter-relacionam. Apenas o campo de atuação de uma diverge, por uma questão de restrição do último conceito aos aspectos sistemáticos do plano do conteúdo, não levando em conta a fonologia; já para o conceito anterior, a fonologia faz parte da gramática. Ressaltamos os aspectos estruturais com que essa se ocupa, a importância dos elementos que norteiam o conhecimento sobre a Língua e a habilidade na construção e compreensão de palavras, frases, enunciados, enfim, do discurso.

29

O ensino de uma Língua, segundo Halliday, McIntosh e Strevens (1974: 257-287), pode- se realizar por três tipos de ensino: o prescritivo, o descritivo e o produtivo. Preferimos o ensino produtivo por considerá-lo o mais adequado, no sentido de desenvolver a competência comunicativa dos falantes. Novas habilidades de uso são adquiridas pelo aluno, ao longo de sua vida escolar, aumentando seu potencial linguístico. Não descartamos, porém, o ensino prescritivo e o descritivo, já que entendemos que o produtivo se realiza por extensão dos anteriores. Na perspectiva da prescrição, Travaglia aponta que:

O ensino prescritivo objetiva levar o aluno a substituir seus próprios padrões de atividade linguística considerados errados/inaceitáveis, por outros considerados corretos/aceitáveis. É, portanto, um ensino que interfere com as habilidades linguísticas existentes. É ao mesmo tempo proscritivo, pois a cada “faça isto” corresponde um “não faça aquilo”. Esse tipo de ensino está diretamente ligado à primeira concepção de linguagem e à gramática normativa e só privilegia, em sala de aula, o trabalho com a variedade escrita culta, tendo como um de seus objetivos básicos a correção formal da linguagem (2000: 38).

Com a análise, as razões de ensinarmos a Língua Portuguesa para os próprios nativos se sintetizam em duas ações linguísticas: conduzir o aluno para o domínio da norma culta, dos princípios que norteiam o padrão da Língua, e a preocupação em desenvolver a sua variedade escrita (TRAVAGLIA: 2000). Nossa crítica aponta para um caráter reducionista em consideração à diversidade na construção do processo de comunicação verbal. Existem razões que justificam a visão preconceituosa adotada por algumas gramáticas normativas. Dentre elas, a noção de que a norma culta detém o português correto. O mais prudente seria o professor de Língua Portuguesa entender que não há uma Língua certa ou errada, mas a capacidade de comunicação de cada variedade linguística e o conhecimento das modalidades de prestígio e desprestígio sociais. Travaglia reitera: “Nossa proposta é que a variedade da escola seja não só a norma culta, mas também o trabalho com as variedades adequadas a situações em que a norma culta não será mais a conveniente” (2000: 63). Outra questão é quanto à diferença do caráter nacional para o caráter regional da Língua. Muitos usuários do Português escrito e falado insistem que o Português de Portugal é o “primeiro”, “o mais correto”, quando, na verdade, não existe tal conceituação. A dimensão do Brasil favorece a diversidade cultural, com mais normas e mais falares. Basta observarmos a produtividade lexical e a pronúncia dos vocábulos de cada região do país, para entendermos a formação dos muitos “Brasis” presentes na “Pátria Amada, Terra Adorada”, como diz a canção do Hino Nacional Brasileiro. Atentamos também para a associação entre o “bom português” e a língua histórica, representada nos clássicos da literatura, localizando a questão do

30

“bom idioma” na tradição linguística e problematizando a aprendizagem da Língua Materna, uma vez que as normas e regras devem respeitar o seu caráter social /atual. Assim, esperamos que a escola repense a prática de adequação e inadequação dos registros da Língua e respeite as variações linguísticas, como formas autênticas da fala e da escrita. No ensino descritivo, Travaglia chama atenção para o fato de existir não só a partir das gramáticas descritivas, mas nas normativas. Esclarece o que há nos compêndios, apontando que “a descrição feita é só da língua padrão, da norma culta escrita e de alguns elementos da prosódia da língua oral, enquanto nas descritivas trabalha-se com todas as variedades da língua” (2000: 39). A descrição da norma culta se estabelece, mas se transforma em convenção, regras, possibilidade única de uso. Pretende atingir dois objetivos: oferecer o conhecimento da estrutura e funcionamento da Língua, bem como sua forma e função, e desenvolver no aluno a capacidade de refletir a ciência linguística e analisar o sistema dos fatos e fenômenos naturais e sociais condizentes ao código linguístico. Tentamos estabelecer uma análise de reconhecimento dos atos de interações verbais com as representações das variadas manifestações de fala e de escrita. Acreditamos no ensino produtivo da língua materna pelas possibilidades de o aluno aprender o seu idioma, de forma mais eficiente, por meio da aquisição de novas habilidades linguísticas, encontrando e empregando os sentidos das expressões, dos conceitos e das palavras no texto oral e escrito, revelando a potencialidade gramatical e usufruindo dos recursos linguístico-expressivos. Novas experiências linguísticas são proporcionadas pelo professor, com a utilização de leituras e análises de textos que apresentem significados para a realidade do aluno. O desenvolvimento do domínio da norma culta e o da variante escrita, além da oralidade, integram esse ensino e só reforçam a importância de cada elemento no processo de reconhecimento da pluralidade do idioma. Cabe ao professor de Língua Portuguesa adequar cada tipo de ensino aos objetivos propostos em suas aulas. Nosso alerta apenas sinaliza para a prática docente que privilegia o ensino prescritivo, prejudicando a formação do aluno e de seu processo de (re)conhecimento linguístico. Entendemos, no processo das ações pedagógicas, a necessidade de se repensar na conjunção dos três tipos de ensino, objetivando a produtividade linguística. Numa proposta de ensino produtivo de língua materna, verificamos dois aspectos primordiais: a interação e a reflexão. A linguagem utilizada no âmbito social necessita se fazer bem empregada e com sentido, para que o interlocutor cumpra, de fato, seu papel de agente da

31

comunicação. A competência comunicativa deve assumir lugar de destaque na proposta, redimensionando a capacidade do aluno em aprender os recursos que a Língua lhe oferece. Na escola, o aluno deve aprender que o texto não é um amontoado de palavras apenas para um fim; linguisticamente, representa um universo de palavras e expressões com pistas, marcas contributivas de efeitos de sentidos. O aluno poderá adquirir o conhecimento necessário para entender e ser entendido, buscando sempre a reflexão no ato linguístico. Em suma, para Travaglia:

A proposta é também trabalhar a gramática numa perspectiva formal mais ampla, na dimensão do funcionamento textual-discursivo dos elementos da língua, uma vez que a língua funciona em textos que atuam em situações específicas de interação comunicativa e não em palavras e frases isoladas e abstraídas de qualquer situação ou contexto de comunicação. A perspectiva textual tem a possibilidade de fazer com que a gramática seja flagrada em seu funcionamento, evidenciando que a gramática é a própria língua em uso. Isto muda também o conceito de gramática que será usado no ensino de língua materna, pois se passa a ver como integrando a gramática tudo o que é utilizado e/ou interfere na construção e uso dos textos em situações de interação comunicativa e não só o conhecimento de alguns tipos de unidades e regras da língua restritas aos níveis morfológico (classe de palavras, flexão verbal e nominal e as categorias que elas expressam: gênero, número, pessoa, tempo, modo, voz e aspecto) e sintático (termos da oração, tipos de orações e períodos, regras de concordância e regência, etc.) (2000: 109).

A definição sobre o ensino de gramática e texto observa a estrutura e o funcionamento, a produção de enunciados e de discursos, a potencialidade expressiva e as marcas semânticas. É, sobretudo, mostrar o que é e como funciona a Língua, de legitimizar o seu conhecimento como instituição social e de levar a pensar os seus mecanismos. Assim, há possibilidade de alunos participantes de atividades do ensino produtivo da Língua Materna. Para acontecer, é aconselhável que o professor participe dessa reorientação metodológica, demonstrando vontade, apostando na mudança dos paradigmas do ensino, encontrando outra maneira de enxergar a Língua e fazer a autoavaliação. Antunes diz que a discussão será válida e com aplicabilidade, “apenas se completada com a reflexão crítica e criativa de cada profissional envolvido no processo de capacitar o cidadão brasileiro para o exercício fluente, adequado e relevante da linguagem verbal, oral e escrita” (2003: 35). No passado, quanto à metodologia de ensino, os livros didáticos, por vezes, eram utilizados como detentores dos programas de ensino e cada lição representava a aula. Criou-se a fama do professor como “transmissor de conteúdos”. No universo de mudanças, ao longo dos anos, o professor revelou-se como centro da atividade, com capacidade de observação, reflexão, orientação, pesquisa e análise dos fatos linguísticos.

32

A proposta de revisão dos conteúdos programáticos significa também rever os objetivos, assim como os procedimentos, em todas as fases de escolaridade (ANTUNES: 2003). As ações pedagógicas devem tratar de ampliar as habilidades do aluno como interlocutores, falantes, ouvintes, escreventes e leitores dos diversos tipos de textos. Buscamos o exercício da linguagem condizente com marcas históricas e sociais, respeitando as individualidades. Chamamos a atenção para a prática pedagógica do professor no que diz respeito à explicitação dos objetivos das aulas, da funcionalidade dos termos apresentados, a fim de um aprendizado eficaz. Esperamos que o professor se volte para aquilo que ainda não sabe e que precisa aprender, tornando, assim, explícitos os objetivos da atividade pedagógica. Antunes, sobre o ensino de Português, se posiciona:

Seria centrado em atividades, em produções (não no sentido mecânico de fazer para “encher o tempo”, ou para cumprir a praxe do “dever”, simplesmente). Tais atividades de produção teriam a função de promover (não de “treinar”) no aluno a prática da comunicação verbal fluente, adequada e relevante, e o conteúdo dessas atividades, repito, giraria em torno das habilidades de falar, ouvir, ler e escrever textos, na discriminação que fiz atrás. (...) Basta o professor explorar sua própria capacidade de pensar, de criar, de inventar para ver como as oportunidades surgem (2003: 123-4).

É desejável que o professor tenha a clareza de que refazer, redescobrir, reinventar e rever são atitudes sábias para o exercício de sua formação profissional e acadêmica. O estado de “aluno” é permanente, pois não se pode acreditar que alguém saiba “tudo” sobre “tudo”, mas numa educação permanente, numa aprendizagem constante, que confirma o nosso status de aprendiz. Investimos na hipótese de que o ensino da língua materna se associe ao desejo de contribuir para a formação do sujeito e de conduzi-lo às reflexões acerca dos fenômenos linguísticos. Elemento primordial para a tarefa do professor é a paixão pela Língua Portuguesa. Alguns podem achar “piegas” tal forma de enxergar o ato de ensinar, mas assim encaramos e consideramos o trabalho, tão engenhoso e, ao mesmo tempo, pleno de gratificação. Concordamos com as palavras de Aguiar:

Para que o ensino-aprendizagem de uma língua - no caso o Português – se produza com prazer, proponho um trabalho fundamentado na leitura de textos literários e/ou musicais para a construção de um conhecimento que possa ampliar o universo linguístico do aluno, desenvolver sua sensibilidade, sua imaginação, sua criatividade, possibilitando-lhe produzir seus próprios textos, tanto coletiva como individualmente, e apaixonar-se pelo mistério da linguagem através do mistério dos textos literários e dos textos da música popular brasileira que, ao longo do século passado, com sua grande diversidade, veio conquistando cada vez mais a admiração e reconhecimento internacional por sua qualidade e tem exercido grande influência sobre a música de outras nações e culturas (2008: 176-7).

33

Iniciamos pela proposta do trabalho com leitura de textos literários e/ou musicais, com a medida da sensibilidade e da imaginação no reconhecimento das palavras, do léxico e das estruturas textuais. Outro ponto merecedor de atenção é a validação dos textos literários e/ou musicais relacionados à possibilidade de se descobrir a paixão pela Língua. A autora segue em defesa do ensino linguístico não associado somente à objetividade, mas também a experiências emocionais singulares, representativas da comprovação de que, por trás das palavras, há sentimentos. Acrescenta:

Um trabalho arquitetado no enamoramento da língua que se está ensinando – e que se está estudando – de forma a ser ela uma camada da pele que nos abriga. Um trabalho engendrado pela paixão erótica que caracteriza todo ser humano, seja ele de que país for, que língua falar, a que sociedade pertencer. Um trabalho em que a alegria seja a tônica maior e o prazer do saber tenha sabor de infância. Um trabalho em que o prazer da língua se orquestre harmonicamente e que fale mais alto e mais sonoro. Creio que assim a língua portuguesa, com certeza, ganhará espaços geográficos e existenciais muito maiores que os que já possui. A beleza da língua está, não no lugar comum, mas no lugar inesperado do afeto, do deleite, do encanto, do gozo. Nos mitos, na ficção, na poesia, nas letras das músicas populares (grifo nosso) – na arte - a verdade histórica inventada se realiza pela dinâmica do jogo, da brincadeira, da troça, da astúcia, do prazer, da burla, da magia, da manifestação do inconsciente (2008: 177).

Suas palavras nos colocam diante da perspectiva de realização pedagógica e linguística que a maioria dos professores deseja em suas práticas. A preocupação se concentra em continuar a retirar da aula de Língua Portuguesa o estigma de “aula chata” e monótona, com propósitos não funcionais, além da descrição metalinguística dos conteúdos, e apresentar os propósitos de se estudar uma Língua que já falamos, escrevemos e ouvimos. Talvez seja um dos caminhos mais promissores para os professores atentos a uma prática pedagógica associada à prática de sentidos. Com tarefas instigantes, atividades interativas, há a chance de um público discente satisfeito e com prazer de (re)conhecer a Língua. Nossas ideias coincidem com uma proposta de trabalho de Aguiar, provocando-nos:

E se nós ensinamos a língua – no caso o Português – através da literatura, da música (grifo nosso), da pintura, da arquitetura, devemos estar fazendo isto para ajudar nossos alunos (e a nós mesmos) a entender aquela linguagem, de modo que ela penetre em seus corações, fazendo da “outra língua”, que é a sua própria, fonte de prazer, sentimento diverso do que sentiu Foucault em relação ao sueco, quando aprendia as palavras no roçar das significações, travestidas, simplificadas, tornando-se como pequenas marionetes irrisórias à sua frente, assim que as pronunciava (2008: 177-8).

34

1.3 – A perspectiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais do ensino fundamental e as Orientações Curriculares para o ensino médio

1.3.1 – PCN: Por uma leitura fundamental

Àqueles que se interessam pelo ensino da Língua Portuguesa tornam-se importantes as leituras dos textos norteadores da prática linguística do professor, a fim de orientá-lo, quanto aos métodos, e esclarecê-lo quanto aos conceitos. Tal encaminhamento leva à apreensão das informações contidas nos documentos oficiais, os PCN (2001) e as OCEM (2006). Na prática, devemos evitar que cada docente ou grupo de docentes faça a sua interpretação dos conteúdos dos manuais e, consequentemente, ocorram alguns equívocos, mal-entendidos acerca daquilo que se deseja, idealiza, almeja na sala de aula. Desde 1998, os conteúdos dos PCN, que se deveriam tornar uma ferramenta indispensável na esfera do ensino fundamental e médio, pois apontam metas de qualidade para o aluno enfrentar o mundo real como cidadão participativo, reflexivo e autônomo, conhecedor de seus direitos e deveres, se tornaram, em algumas situações, um emaranhado de interpretações equivocadas. Os objetivos dos PCN direcionam as atividades escolares para o exercício da cidadania, articulando experiências e conhecimentos num currículo escolar coerente e condizente às realidades do alunado. A criação do documento se deve à intenção de aplicá-lo como instrumento útil no apoio às discussões pedagógicas, na montagem de projetos educativos, na organização das aulas, na reflexão sobre as práticas de ensino e na análise dos materiais didáticos, viabilizando atualização plena dos professores. Também se inclui na proposta dos PCN a possibilidade de ampliar e integrar a educação básica como marco fundamental no desenvolvimento das competências e habilidades do aluno. A pretensão exposta pelos PCN não é ser uma espécie de roteiro para o professor, mas esclarecer as metas e os objetivos de qualidade, expondo sempre a preocupação em formar indivíduos pensantes e conscientes dos seus direitos e deveres. Os PCN norteiam o ensino ideal como aquele que se fundamenta na interação entre os elementos que compõem o cotidiano escolar (professores, alunos, pais, escola, comunidade), respeitando a realidade sociocultural das partes envolvidas no processo.

35

Outra questão destacável nos PCN refere-se ao caráter instrumental da Língua Portuguesa, reforçando a prática da cidadania, com o conhecimento das estratégias de leitura, da produção de textos, das variações linguísticas e da gramática, para que o aluno, de fato, conduza de forma produtiva as situações de comunicação. Mais do que ensinar a norma culta, pretende-se buscar o dinamismo e a mobilidade. Há tempos, os professores vêm refletindo sobre a reformulação de algumas práticas pedagógicas, diante do processo da “democratização do ensino”. A primeira questão diz respeito ao acesso às escolas, problematizando a qualidade em detrimento da quantidade. A preocupação, por vezes, deixa de ser com a qualidade, com a necessidade de se praticar uma “escola para todos” criando uma situação indesejada: salas lotadas, poucos professores, enfim, fatores que prejudicam a aprendizagem. O segundo ponto se refere à quantidade de incentivos científicos e tecnológicos para o exercício da atividade pedagógica. Várias são as ciências que passaram a contribuir e, a cada dia, apresenta-se uma nova maneira de se olhar a educação. Isso não se configura uma crítica negativa, mas o fato de ainda estarmos em momentos de experiências e vivências. A Informática, hoje, por exemplo, é grande parceira do ensino de Língua Portuguesa com a utilização planejada e organizada, nos variados contextos da sala de aula. Não se pode afirmar, por exemplo, que a leitura de um texto na tela de um computador proporcionará o mesmo prazer do encontro com os elementos da narrativa da leitura na folha de papel. É outra experiência, nem melhor, nem pior. O livro tem o seu lugar de destaque na apresentação do mundo fantástico/fictício x mundo verídico/real, pois, a cada “passar de páginas”, uma nova imagem/leitura se descortina. A sabedoria do professor está em conjugar os antigos métodos com as novas tecnologias. A orientação estabelecida pelos PCN produz uma nova maneira de trabalharmos com os instrumentos linguísticos, buscando a valorização da proficiência comunicativa na prática das modalidades de uso da Língua. Conjugamos o ensino da gramática normativa, com a visão mais ampla de usuário, responsável por articular as possibilidades expressivas, adequando-as ao seu contexto comunicacional. No tocante à participação social do sujeito no processo linguístico, os PCN afirmam que:

O domínio da língua tem estreita relação com a possibilidade de plena participação social, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz conhecimento. Assim, um projeto educativo comprometido com a democratização social e cultural atribui à escola a função e a

36

responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania, direito inalienável de todos (2001: 23).

Quanto mais se pratica a Língua, mais há possibilidade de se tornar proficiente nela. Com base na postulação feita pelos PCN, a escola precisa desenvolver no aluno a capacidade de interpretação de diferentes textos que circulam na sua vida social. A expectativa é que ele assuma autonomia e autoridade diante de cada palavra empregada e, como pleno cidadão, produza textos aplicáveis nas situações cotidianas. O tempo de vida escolar (em média, 12 anos), pelo qual cada aluno passa, necessita dedicação ao alcance dos reais objetivos de torná-lo um cidadão linguístico. Nesse sentido, as palavras dos PCN:

Toda educação verdadeiramente comprometida com o exercício da cidadania precisa criar condições para o desenvolvimento da capacidade de uso eficaz da linguagem que satisfaça necessidades pessoais – que podem estar relacionadas às ações efetivas do cotidiano, à transmissão e busca de informação, ao exercício da reflexão. De modo geral, os textos são produzidos, lidos e ouvidos em razão de finalidades desse tipo. Sem negar a importância dos que respondem a exigências práticas da vida diária, são os textos que favorecem a reflexão crítica e imaginativa, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas e abstratas, os mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada (2001: 30).

O ensino de Língua Portuguesa deve-se centrar na sua valorização social, nas reflexões sobre atividades destinadas à aprendizagem e na busca de alternativas metodológicas. O professor, como agente desse processo, conduz o aluno no caminho da realização pessoal. É preciso que também avalie seus conceitos e métodos pedagógicos. Um dos fatores de desestímulo na sala de aula parte da seleção de textos. Ainda hoje, alguns professores têm dúvidas se “devem” ou não adotar textos literários em suas aulas. O temor da leitura dos clássicos se reflete na postura de uma parcela dos alunos, provocando aversão à prosa ou à poesia literárias. Uma barreira se impõe, impedindo as oportunidades de aprendizagem linguística contextualizada com a história e a cultura popular. Em determinados casos, percebe-se uma priorização pelos textos jornalísticos/publicitários, na maioria, textos curtos, rápidos, servindo apenas para situação de exemplificação do conteúdo estudado. O diálogo com outros textos e a percepção das tipologias textuais adquire lugares menos significativos, em decorrência da velocidade acelerada da informação. Não desconsideramos os textos jornalísticos/publicitários, pelo contrário, os textos midiáticos e aqueles que conjugam a linguagem verbal e a não verbal são enriquecedores para a compreensão do mundo, das notícias, dos acontecimentos. Recorremos à Pereira:

37

Sabemos que se trata de uma linguagem plena porque nos permite “ver” o que acontece, participando, concretizando, sentindo-nos dentro do texto e não distanciados para, ao final, apre(e)nder a experiência em sua totalidade. (...) O autor de qualquer tipo de texto usa palavras orais e escritas, mas através delas, “vemos” o que se diz como numa grande tela. As palavras escolhidas, as estruturas em que se inserem, as imagens resultantes, nos permitem acompanhar o texto. Não somos espectadores distantes, passivos. As impressões sensoriais que nos acometem possibilitam que, efetivamente, façamos parte daquele processo em desenvolvimento. Construímos sentidos como íntimos do texto, conhecedores dos seus meandros e motivações, já que nos posicionamos internamente, conduzidos pelos mestres- artífices daquela carpintaria verbal. Assemelha-se a uma fotografia viva cuja animação é manipulada pelo produtor do texto (2001: 259).

A valorização de sentido dada pelo leitor é o que torna o texto uma sequência significativa de enunciados, embora cada um possa expressar sua dosagem de interpretação, entendendo que cada autor prevê um leitor-modelo capaz de contribuir para a compreensão textual e de transitar nas possibilidades interpretativas. Na obra PCNs de Língua Portuguesa: a prática em sala de aula, Eliana Vianna Brito destaca:

Em situação escolar, para capacitar o aluno a se tornar um leitor proficiente, é necessário, entre outras coisas, orientá-lo no sentido de que ele utilize adequadamente as estratégias de leitura, bem como capacitá-lo a deslinearizar a leitura, construindo hipóteses sobre o sentido do texto a partir de uma abordagem global, que pode ocorrer pela identificação dos índices formais, temáticos e enunciativos a serem interpretados (2001: 37).

Cabe ao professor planejar e coordenar as atividades de ensino que permitam a produção dos discursos, a determinação dos gêneros e as formas dos textos, com suas análises. Se é possível entendermos cada gênero com suas peculiaridades, ambientado num inter- relacionamento de grupos sociais, o ensino de Língua Portuguesa, assim, configurar-se-á um instrumento de socialização, permitindo ao usuário a possibilidade de participação e interação em qualquer atividade comunicativa. Os PCN ainda esclarecem:

O discurso, quando produzido, manifesta-se linguisticamente por meio de textos. Assim, pode-se afirmar que texto é o produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo significativo e acabado, qualquer que seja sua extensão. É uma sequência verbal constituída por um conjunto de relações que se estabelecem a partir da coesão e da coerência. Esse conjunto de relações tem sido chamado de textualidade. Dessa forma, um texto só é um texto quando pode ser compreendido como unidade significativa global, quando possui textualidade. Caso contrário, não passa de um amontoado aleatório de enunciados (2001: 25-26).

E mais:

Todo texto se organiza dentro de um determinado gênero. Os vários gêneros existentes, por sua vez, constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura,

38

caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Pode-se ainda afirmar que a noção de gêneros refere-se a “famílias” de textos que compartilham algumas características comuns, embora heterogêneas, como visão geral da ação à qual o texto se articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de literariedade, por exemplo, existindo em número quase ilimitado (2001: 26).

É fundamental, então, entendermos os significados de “texto”, “discurso”, “gêneros textuais”, e aplicá-los de forma apropriada, com propostas de atividades proveitosas. Os esclarecimentos dos PCN nos oferecem as diretrizes para conhecer os fundamentos teóricos da prática linguística e a adequação de determinados conceitos na elaboração dos objetivos das etapas do ensino. O documento não aponta soluções práticas para as situações de sala de aula, tampouco nos serve como manual de instruções de aprendizado da Língua Portuguesa. Esperamos que a sua leitura provoque reflexões sobre aspectos metodológicos e auxilie na atuação pedagógica do professor. Destaca-se a motivação, em muitos educadores, no sentido de pensarem nas práticas do sistema pedagógico, com vistas a melhorar as propostas de ensino e vislumbrar um aluno preparado para exercer a plena cidadania. Quanto à prática de reflexão sobre a Língua, os PCN a associam às atividades relacionadas à análise linguística chamadas de epilinguísticas e metalinguísticas, que possuem semelhanças, mas se diferem na finalidade prática. Enquanto a epilinguística se volta para o uso e a reflexão sobre fatos textuais/ linguísticos, buscando a melhor utilização dos recursos expressivos e com a finalidade de causar maior efeito na situação de comunicação, a metalinguística se volta para a descrição dos fatos da Língua, com base na categorização e sistematização dos elementos linguísticos, ou seja, nos conceitos e classificações. Dizem os PCN que:

Se o objetivo principal do trabalho de análise e reflexão sobre a língua é imprimir maior qualidade ao uso da linguagem, as situações didáticas devem, principalmente nos primeiros ciclos, centrar-se na atividade epilinguística, na reflexão sobre a língua em situações de produção e interpretação, como caminho para tomar consciência e aprimorar o controle sobre a própria produção linguística. E, a partir daí, introduzir progressivamente os elementos para uma análise de natureza metalinguística. O lugar natural, na sala de aula, para esse tipo de prática parece ser a reflexão compartilhada sobre textos reais (2001: 39).

Os termos “análise linguística”, “atividade linguística”, “atividade epilinguística” e “atividade metalinguística” são utilizados por dois especialistas da linguagem, Carlos Franchi (1988) e João Wanderley Geraldi (2003), na tentativa de mudar o caráter sistemático do ensino.

39

Essa abordagem revela, em perspectiva diacrônica, como as pesquisas sobre linguagem e o ensino têm apresentado propostas de novas metodologias, tratando os conteúdos com adequação teórica e funcionalidade. Nos trabalhos, percebemos uma preocupação maior com o desenvolvimento das competências e das habilidades dos alunos, no que se refere à valorização do uso social da linguagem e a busca pela manifestação coerente de sentidos na fala e na escrita. A capacidade de organização, provocação argumentativa, associações e a criação de novas ocorrências semânticas tornam-se resultantes dessa ação. Brito avalia:

Parece simples, mas o grande desafio para o professor é aliar a análise linguística a situações de uso efetivo da linguagem, construindo explicações e descrições a partir das regularidades observadas em textos significativos para os alunos (2001: 97).

Para uma leitura explícita e coerente dos PCN, é aconselhável que o leitor observe suas orientações e aplicações no contexto escolar. Em alguns momentos, há resistência em trabalhar com propostas de (re)conhecimento da Língua. Deve-se, em parte, a uma compreensão equivocada dos Parâmetros. Poucos trechos podem ser confusos ou inadequados. Incompletos, talvez, mas não sem clareza. Há perguntas, como “Por que o professor não consegue aplicar, de forma eficaz, as orientações dos PCN na sua prática de ensino de língua materna?”, “Quais as causas para essa dificuldade na leitura de um documento que se apresenta, numa visão geral, como objetivo, claro e conciso?”. Encontramos possíveis respostas pela impossibilidade do documento se aplicar à realidade brasileira, tendo em vista a má formação dos professores, as condições de trabalho, dentre outras. É possível que, com formação pedagógica de qualidade e condições dignas de trabalho, haja maior probabilidade de executarem tarefas e participar de programas de estudos. Falar da Língua Portuguesa, tratar dos aspectos linguístico-expressivos, abordar temas instigantes da gramática normativa, ler os clássicos da literatura universal devem ocupar lugares de prestígio. Para corroborar aquilo que, de fato, consideramos relevante nas propostas dos PCN, contamos com Brito:

A justificativa está na concepção ampla de análise linguística que incorpora, além das questões gramaticais e fonéticas, os aspectos semânticos e pragmáticos relacionados à produção e recepção de discursos. Portanto, a mudança não é de rótulos e sim de concepção de língua e de objetivo de ensino, afetando a metodologia a ser utilizada em sala de aula e o conteúdo a ser trabalhado (2001: 97).

40

Assim se concebe a estrutura linguística como forma de interação entre os elementos pertencentes à esfera escolar, social e as culturas envolvidas no processo de comunicação. O aluno, por sua vez, sente-se valorizado e a língua, pontualmente, se coloca como algo produtivo. A aplicação dos pressupostos indicados nos PCN se realiza, quando o trabalho do professor se pauta na análise de textos e a sua interpretação, produção e compreensão. A oralidade, pouco trabalhada nos livros didáticos e nas atividades do professor, ganha espaço. A diversidade de textos orais e/ou escritos, literários, musicais e/ou jornalísticos favorece a percepção do aluno em relação aos fatos da Língua. A possibilidade de dar sentido e funcionalidade às práticas de entonação, gesto e postura torna-se latente e o que verificamos é a conferência de sentidos a tudo dito, escutado e compreendido. As orientações do documento nos remetem a algo importante para a atividade reflexiva: o respeito pelas formas de expressão oral de cada aluno, de seus locais de origem, e a necessidade do professor em perceber a devida adequação aos contextos comunicativos, frente aos interlocutores, com intenções discursivas diversas. Mais do que trabalhar com a Língua Materna, aqui se configura um trabalho com a linguagem, atravessando as áreas do conhecimento e provocando um diálogo intertextual. Quanto ao trabalho com a oralidade, os PCN alertam:

Além das atividades de produção é preciso organizar situações contextualizadas de escuta, em que ouvir atentamente faça sentido para alguma tarefa que se tenha que realizar ou simplesmente porque o conteúdo valha a pena. Propostas desse tipo requerem a explicação prévia dos seus objetivos, a antecipação de certas dificuldades que podem ocorrer, a apresentação de pistas que possam contribuir para a compreensão, a explicitação das atitudes esperadas pelo professor ao longo da atividade, do tempo aproximado de realização e de outros aspectos que se façam necessários. Mais do que isso, é preciso, às vezes, criar um ambiente que convide à escuta atenta e mobilize a expectativa: é o caso, por exemplo, dos momentos de contar histórias ou relatos (o professor ou os próprios alunos). A escuta e demais regras do intercâmbio comunicativo devem ser aprendidas em contextos significativos, nos quais ficar quieto, esperar a vez de falar e respeitar a fala do outro tenham função e sentido, e não sejam apenas solicitações ou exigências do professor (2001: 52).

A primeira alternativa que vem à tona para auxiliar no processo de atualização dos conhecimentos é a viabilização da formação continuada, com investimentos dos governos e com mais regularidade e organização. Ainda notamos que as ocorrências quanto aos cursos de atualização poderiam ser maiores.

41

1.3.2 – OCEM: Por uma leitura além da fundamental

Num cenário de preocupação com a qualidade escolar e a inclusão/democratização do ensino, e a proposta de oferecer uma educação básica de qualidade, consolidando o exercício da cidadania, em 2006, surgem as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, elaboradas pelas equipes técnicas dos Sistemas Estaduais de Educação, professores, alunos da rede pública e representantes da comunidade acadêmica. Uma ação complexa, tendo em vista que a política curricular representa a expressão de uma política cultural, que seleciona conteúdos e práticas das culturas diversas, levadas para o contexto escolar. Nossa pesquisa refere-se a esse documento por considerarmos sua abordagem mais atualizada, com linguagem renovada e concepção de ensino orientadora da necessidade de objetos de ensino/estudo e fomentadora das práticas metodológicas. Antes das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006), na tentativa de promover a qualidade do ensino, mudanças estruturais foram incrementadas por entidades governamentais, com a publicação de alguns documentos. Mendonça e Bunzen indicam:

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), em 1998; Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), em 1999; Orientações Complementares aos PCNEM (conhecidas como PCN+), em 2002; Discussão, com professores de vários estados, dos problemas do PCNEM e do PCN+ (Moita Lopes & Rojo, 2005); Elaboração de novos documentos relativos aos Parâmetros Curriculares, em 2005 (2006: 16).

Assim como os PCN, as Orientações não são “receitas” prontas para uma atuação ideal do professor. As propostas pedagógicas continuam no eixo da reflexão, acrescentadas das discussões, compreensões e (re)significações dos referenciais na atividade docente, para que as abordagens direcionem o processo de ensino linguístico. Para o ensino médio, tomado pela LDBEN/96, como etapa final da educação básica, compreendemos que essa fase de estudos se possa caracterizar pela consolidação e pelo aprofundamento dos conhecimentos adquiridos ao longo de sua vida escolar. O próprio documento cita o que se espera do aluno, quanto ao desenvolvimento de suas capacidades:

I – avançar em níveis mais complexos de estudos; II – integrar-se ao mundo do trabalho, com condições para prosseguir, com autonomia, no caminho de seu aprimoramento profissional; III – atuar, de forma ética e responsável, na sociedade, tendo em vista as diferentes dimensões da prática social. (2006: 17-18)

42

As premissas corroboram as ideias para o pleno exercício da cidadania, ampliado pela atenção voltada para o mundo do trabalho, na tentativa de garantir a construção gradativa dos conhecimentos necessários. Se, inicialmente, o processo de ensino-aprendizagem da língua se volta para o (re)conhecimento dos conteúdos linguísticos, nos textos circulantes na sociedade, no contexto do ensino médio, a tarefa do professor é propiciar ao aluno o refinamento de habilidades de leitura e escrita, de fala e escuta, ampliando continuamente os conceitos ligados ao funcionamento da Língua e à capacidade de reflexão sistemática sobre os fenômenos linguísticos. Nas últimas décadas, na busca por novos caminhos dos estudos sobre a linguagem e na construção de uma nova identidade para o ensino da Língua Portuguesa, os debates em torno dos conteúdos adequados provocaram reflexões acerca das dificuldades de aprendizagem dos alunos e também dos professores. À luz da variação linguística e com a intenção de elucidar tais dificuldades, atividades ligadas ao planejamento, execução e avaliação passaram a considerar a classe social, idade, gênero e espaço dos alunos. A ação se deve ao fato de os elementos determinarem o registro da Língua, em cada situação comunicativa. À medida que o sujeito, na escola e na sociedade, constrói um texto, num dado contexto, observando os recursos e arranjos que a Língua possibilita, se percebe uma mudança sensível de paradigmas que valida o trabalho na construção e na conjugação dos sentidos entre os interlocutores. As OCEM assinalam as múltiplas dimensões das variações encontradas, no processo de produção e/ou recepção dos textos:

(a) Linguística vinculada, portanto, aos recursos linguísticos em uso (fonológicos, morfológicos, sintáticos e lexicais); (b) Textual, ligada, assim, à configuração do texto, em gêneros discursivos ou em sequências textuais (narrativa, argumentativa, descritiva, injuntiva, dialogal); (c) Sociopragmática e discursiva, relacionada, por conseguinte: • Aos interlocutores; • A seus papéis sociais (por exemplo, pai/filho, professor/aluno, médico/paciente, namorado/namorada, irmãos, amigos, etc., que envolvem relações assimétricas e/ou simétricas); • Às suas motivações e a seus propósitos na interação (como produtores e/ou receptores do texto); • Às restrições da situação (instituição em que ocorre, âmbito da interação (privado ou público), modalidade usada (escrita ou falada), tecnologia implicada, etc.); • Ao momento social e histórico em que se encontram engajados não só os interlocutores como também outros sujeitos, grupos ou comunidades que eventualmente estejam afeitos à situação em que emerge o texto. (d) Cognitivo-conceitual, associada aos conhecimentos sobre o mundo – objetos, seres, fatos, fenômenos, acontecimentos, etc. – que envolvem os conceitos e suas inter-relações. (2006: 21- 22/grifo dos autores)

43

Quanto mais se esclarecem esses conceitos, mais teremos a possibilidade de compreender as relações entre as propriedades que conferem a produção e a recepção de um texto e a sua contextualização. A função da escola se constitui em promover circunstâncias e maneiras para haver a reflexão acerca dos conhecimentos construídos durante a escolarização/socialização e a realização de transformações contínuas nas suas ações, de acordo com as necessidades das situações sociocomunicativas. À escola cabe, em seu projeto político-pedagógico, mencionar suas intenções, objetivos. As Orientações esclarecem que “trata-se de um projeto que aposta que a atividade de conhecer/aprender um dado objeto se pode organizar sistematicamente a partir de uma lógica que propicie que o objeto seja construído/abordado por meio de diferentes lentes” (SEB, 2006: 27). A interdisciplinaridade é enfatizada, pelas OCEM, levando-nos a considerar o trabalho com as múltiplas linguagens e os gêneros discursivos como uma forma de integrar os conhecimentos, auxiliando as diferentes percepções na produção de sentidos. Talvez, assim, cheguemos a um dos maiores objetivos dessa ação pedagógica: o de possibilitar letramentos múltiplos, isto é, conceber a leitura e a escrita como ferramentas de inclusão social, recuperando do contexto das comunidades em que a escola está inserida as práticas de linguagem e as composições orais e escritas representativas do seu mundo (SEB, 2006: 28). O trecho abaixo exemplifica a valorização do trabalho interdisciplinar:

Pode-se prever, por exemplo, uma série de estudos que vão desde a descrição da estrutura organizacional das narrativas aos espaços em que elas emergem; estudos que pressupõem um trabalho de produção de conhecimento, organizado por ações de leitura, escrita, escuta e socialização de saberes (informação), a ser orientado e avaliado contínua e permanentemente pelo(s) professor(es). Sob uma orientação interdisciplinar, podem-se eleger estudos sobre as narrativas do domínio literário; as narrativas dos grandes feitos históricos (locais, regionais, nacionais); as narrativas do universo oral (da cultura popular); as narrativas do mundo midiático (imprensa, TV e rádio); as narrativas do universo mítico; as narrativas do mundo bíblico (2006: 27-28).

A favor de uma escola inclusiva e aberta à diversidade, se espera uma proposta didática associada aos múltiplos letramentos com ações envolvendo os recursos das mídias, num tratamento multissemiótico, como nos filmes, internet e textos ligados à imprensa. Os alunos estarão diante de práticas de linguagem capazes de integrá-los às práticas profissionais e cidadãs. Entendemos, por ora, o sentido de prática de linguagem “como o processo de inserção dos sujeitos nas práticas sociais, que têm a linguagem como mediadora das ações, tendo em vista os

44

propósitos em jogo” (SEB, 2006: 30). Supõem-se as práticas de linguagem associadas aos seus espaços sociais (escolares e não escolares) onde se realizam, de forma interativa, evidenciando a estreita relação entre os participantes. Nas OCEM, notamos a preocupação em levar para o ambiente escolar ações que impliquem a apreensão de práticas de linguagem, a construção e compreensão do modus operandi nas interações e a explicitação das escolhas linguísticas dos participantes. A expectativa gerada no processo se volta para a compreensão, por parte do aluno, do sistema de normas do funcionamento da lingua(gem) e na sua capacidade de se colocar nos processos de produção e compreensão textual, constituindo-se um ser de ação social. Para que a prática se torne efetiva nos meios educativos, as estratégias linguísticas devem buscar, em consonância com as outras áreas do conhecimento, variadas manifestações da linguagem, como a dança, o teatro, a música (grifo nosso), a escultura e a pintura (SEB, 2006), valorizando e enriquecendo o trabalho pedagógico do professor de língua materna. É na necessidade da permanente formação científica/didática que o professor encontrará as elucidações sobre as práticas sociais da língua, suas análises, suas variações e as orientações fundamentais para o trabalho docente. As OCEM dão as seguintes diretrizes:

Parece adequado mais uma vez salientar que as orientações curriculares aqui delineadas refletem a conjunção de várias vozes, em cujos discursos ecoa o compromisso social de repensar e/ou apontar pistas que possam sinalizar a construção de rotas para as práticas pedagógicas de Língua Portuguesa no ensino médio, buscando, assim, criar e/ou ampliar possibilidades para fomentar as discussões sobre essa problemática que já se encontram em andamento em diversos estados e municípios brasileiros. (2006: 45)

Para aplicação das propostas das OCEM, há no texto uma atenção às políticas de formação inicial e continuada dos professores, de tal forma que propicie investimentos nos diálogos da Língua com os saberes de campos disciplinares distintos. O documento estima que tais abordagens políticas se construam levando em consideração os aspectos linguísticos, cognitivos, discursivos, interativos, pragmáticos, sociológicos e filosóficos da lingua(gem) e que os aprendizes percebam tais apropriações efetivas do conhecimento. Outra questão importante ligada ao Ensino Médio diz respeito às seleções e práticas de leitura realizadas em sala de aula, objetivando a formação do leitor crítico e reflexivo. Por que alguns alunos não se tornam leitores produtivos, críticos, praticantes de ações cidadãs? Não é

45

uma avaliação consensual, mas o que se vê nos jornais impressos, telejornais e na mídia em geral é um quadro de baixo rendimento de leitura que nos faz repensar sobre o que se quer, de fato, em sua formação. Para o ensino médio, criamos expectativas do desenvolvimento de capacidades que certifiquem o conhecimento sobre as mais variadas manifestações linguísticas. Na compreensão, aplicação e transformação da linguagem, concentra-se a possibilidade de se colocar diante do texto, como aquele que, numa posição consciente em relação ao ato interlocutivo, revelará as suas reações como leitor, julgando, avaliando, interpretando e defendendo seu ponto de vista. Para, então, saber avaliar e interpretar, é preciso relacionar essas capacidades à competência de contextualizar socioculturalmente o texto oferecido à leitura, reconhecendo e compreendendo o enunciado como produto sociocultural, do contexto em que se vive (ROJO, JURADO, 2006: 40). Destaca-se ainda a importância do desenvolvimento das competências orais e escritas, na busca pelos sentidos, de todas as formas, motivando a organização dos textos. Cabe ao professor selecionar os mais criativos e instigantes, de acordo com o contexto do aluno e estabelecer os resultados desse processo de apreensão da leitura. Para isso, o educador deve-se posicionar como leitor/(co)produtor de conhecimentos, numa perspectiva de ensino e pesquisa, de atualização e renovação do seu trabalho docente, tornando-o apto a decidir pelas concepções de Língua e gramática em seu trabalho (OLIVEIRA, WILSON, 2009: 241).

1.4 – As práticas de linguagem e a formação do professor de língua materna

Se considerarmos que os conteúdos curriculares de Língua Portuguesa estão norteados por dois eixos, o do USO e o da REFLEXÃO, teremos as práticas de leitura, escuta e produção de textos orais e escritos, e as práticas de reflexão sobre o sistema linguístico. A gramática normativa é considerada, mas não ocupa maior destaque, pois o que se pretende é o texto e os gêneros discursivos como objeto de ensino. Tal concepção de análise descarta o privilégio da gramática normativa, como fator determinante para um bom desempenho linguístico. Nossa experiência docente e as discussões promovidas sobre a questão nos direcionam para a hipótese de que partir da análise das categorias gramaticais não se configura uma proposta de ensino produtiva. A reflexão sobre a Língua em uso não se apresenta por meio de leitura, interpretação de textos e estudos gramaticais sugeridos apenas pelos livros didáticos. Tais atividades consideram

46

as situações de uso, sempre associadas aos gêneros e textos, sem caracterização dos elementos como pretextos para o ensino da norma gramatical. A partir das perspectivas dos PCN, em relação à escrita e análise de textos, há a seguinte proposta:

Ela implica uma atividade permanente de formulação e verificação de hipóteses sobre o funcionamento da linguagem que se realiza por meio da comparação de expressões, da experimentação de novos modos de escrever, da atribuição de novos sentidos a formas lingüísticas já utilizadas, da observação de regularidades (no que se refere tanto ao sistema de escrita quanto aos aspectos ortográficos ou gramaticais) e da exploração de diferentes possibilidades de transformação dos textos (supressões, ampliações substituições, alterações de ordem, etc.) (2001: 78-79).

Evidencia-se, assim, um trabalho de Análise Linguística (AL), expressão cunhada por Geraldi (1984), opondo-se ao ensino da tradição gramatical e propondo uma nova prática de ensino de Língua Portuguesa. O autor explica que o objetivo da AL é a reescrita do texto, não descartando o trabalho com aspectos sistemáticos. Para isso, é necessário que o professor desenvolva suas atividades, de modo que o aluno compreenda o fenômeno linguístico. Dentre as variadas questões tratadas, estão a coesão das frases e parágrafos, a coerência do texto e a análise dos recursos expressivos, preocupando-se em estabelecer uma prática de correção de textos e promover a interação dos interlocutores. A concepção de linguagem adotada faz repensar no que, de fato, é importante para o ensino e de que maneira conseguiremos resultados eficazes. A Análise Linguística vislumbra uma reflexão permanente, voltada para os efeitos de sentidos, objetivando a maior capacidade de uso e, assim, auxiliando a formação de cidadãos leitores de textos e do mundo. Mendonça estabelece um quadro comparativo sobre as diferenças entre o ensino de gramática e a prática de Análise Linguística. Nele, percebemos uma visão limitadora sobre o ensino de gramática que não valoriza a contextualização, colocando o professor como “transmissor de conteúdos”, sem a possibilidade de estabelecer a interação comunicativa com os alunos e entre eles. A Língua é tomada para análise por meio de fragmentos em detrimento da percepção do conjunto das palavras e expressões que constroem a estrutura textual. Observemos o quadro:

47

ENSINO DE GRAMÁTICA PRÁTICA DE ANÁLISE LINGUÍSTICA * Concepção de língua como sistema, estrutura * Concepção de língua como ação interlocutiva inflexível e invariável. situada, sujeita às interferências dos falantes.

* Fragmentação entre os eixos de ensino: as aulas de * Integração entre os eixos de ensino: a AL é gramática não se relacionam necessariamente com as ferramenta para a leitura e a produção de textos. de leitura e de produção textual.

* Metodologia transmissiva, baseada na exposição * Metodologia reflexiva, baseada na indução dedutiva (do geral para o particular, isto é, das regras (observação dos casos particulares para a conclusão para o exemplo) + treinamento. das regularidades/regras).

* Privilégio das habilidades metalinguísticas. * Trabalho paralelo com habilidades metalinguísticas e epilinguísticas.

* Ênfase nos conteúdos gramaticais como objetos de * Ênfase nos usos como objetos de ensino ensino, abordados isoladamente e em sequência mais (habilidades de leitura e escrita), que remetem a ou menos fixa. vários outros objetos de ensino (estruturais, textuais, discursivos, normativos), apresentados e retomados sempre que necessário.

* Centralidade da norma-padrão. * Centralidade dos efeitos de sentido.

* Ausência de relação com as especificidades dos * Fusão com o trabalho com os gêneros na medida gêneros, uma vez que a análise é mais de cunho em que contempla justamente a interseção das estrutural e, quando normativa, desconsidera o condições de produção dos textos e as escolhas funcionamento desses gêneros nos contextos de linguísticas. interação verbal.

* Unidades privilegiadas: a palavra, a frase e o * Unidade privilegiada: o texto. período.

* Preferência pelos exercícios estruturais, de * Preferência por questões abertas a atividades de identificação e classificação de unidades/funções pesquisa, que exigem comparação e reflexão sobre a morfossintáticas e correção. adequação e efeitos de sentido. (2006: 207)

As práticas de linguagem envolvidas no ensino de Língua Portuguesa se configuram num conjunto harmônico das dimensões gramatical, textual e discursiva da linguagem, na tentativa de desenvolvimento das habilidades de leitura e produção de textos orais e escritos, associado à compreensão dos fenômenos linguísticos. Ressaltamos, ainda, a elaboração de materiais didáticos compatíveis com tal proposta, necessitando do empenho e da produção dos próprios professores. Na prática escolar, ainda que se façam muitos esclarecimentos sobre a importância do ensino da gramática, vários professores, por vezes, não entendem até que ponto ou em que ponto

48

as normas e regras devem ser trabalhadas, o que causa um desconforto, uma sensação de “estar fazendo algo errado”, pois ele não entende que a nomenclatura gramatical é parte necessária dos objetos de ensino, é mais uma ferramenta nas etapas da aprendizagem (MENDONÇA, 2006). Mais do que classificar, decompor e nomear, o aluno se expressa. O uso da metalinguagem não deve ser abolido, pois compreendemos que sua aquisição gradual é importante, uma vez integrada ao desenvolvimento de outras habilidades linguísticas. A familiarização com a nomenclatura é necessária, pelo fato de ela fazer parte do universo do ensino da Língua Portuguesa. No processo de compreensão das práticas de linguagem, na formação do professor, algumas alternativas metodológicas são utilizadas nas abordagens de ensino, configurando uma “ciranda sem fim”, em que a proposta de trabalhar, por exemplo, com uma gramática contextualizada se torna um trabalho do texto como pretexto para se falar de aspectos da gramática normativa ou descritiva. O trabalho linguístico não alcança o primeiro propósito, o da produção de sentidos dos discursos, em observância ao funcionamento dos fenômenos gramaticais. Mendonça explica:

Nessa mudança que se pretende radical, com uma nova identidade profissional sendo forjada em meio a conflitos, a reflexão sistemática sobre os fenômenos linguísticos começa a perder espaço, embora a maioria dos professores ainda defenda o ensino tradicional de gramática, para melhorar a produção oral e escrita do aluno (2006: 222-3).

E acrescenta:

Ainda assim, a despeito desse perigo da pedagogia do “com o texto, estamos salvos”, nota-se que já há um redirecionamento para explorar aspectos discursivos e textuais, seja como resultado de uma reflexão consciente sobre as novas orientações para o ensino de português, seja para construir uma identidade profissional distinta da “gramatiqueira” (2006: 223).

Reiteramos a proposta de ensino de Língua com base nos gêneros, nas interações discursivas, formando as situações de produção de linguagem e objetivando essa mesma produção dos alunos, nas mais variadas situações sociais e culturais. Ancoramos as ideias aqui expostas na teoria de Dolz & Schneuwly, quando conceituam a noção de gênero:

É um instrumento semiótico constituído de signos organizados de maneira regular; este instrumento é complexo e compreende níveis diferentes; é por isso que o chamamos por vezes de “megainstrumento”, para dizer que se trata de um conjunto articulado de instrumentos à moda de uma usina; mas fundamentalmente, trata-se de um instrumento que permite realizar uma ação numa situação particular. E aprender a falar é apropriar-se de instrumentos para falar em situações discursivas diversas, isto é, apropriar-se de gêneros (2004: 65).

49

Os autores também viabilizam a proposta da utilização do gênero como meio de articulação entre as práticas sociais e o aprendizado da produção e compreensão dos textos orais e escritos. A ação de linguagem se dá na produção, compreensão, interpretação e/ou memorização de sequências de enunciados orais e escritos, ou seja, do texto. Para que essa ação se realize, requerem-se algumas pré-disposições do aprendiz, como as capacidades de ação, adaptação ao contexto e ao referente, as capacidades discursivas, de organizar e planejar modelos discursivos, e as capacidades linguístico-discursivas, de comandar operações psicolinguísticas e os conceitos linguísticos (KOCH, 2006). Koch (2006) sinaliza a importância de sabermos articular as diversas práticas de linguagem, com as atividades de sala de aula, e busca em Schneuwly & Dolz (s.d.) a hipótese de que através dos gêneros as referidas práticas são veiculadas nas práticas docentes, por apresentarem um caráter, concomitantemente, intermediário e integrador. Os gêneros assumem dupla função: oferecem um suporte para as atividades de comunicação e uma referência para os alunos. A escola, a casa, a rua se tornam espaços propícios ao ensino-aprendizado da Língua, lugares onde a escrita, a leitura, a produção e a reflexão dos textos orais e escritos se realizam com o prazer tão esperado nesse (re)conhecimento da língua materna. Além disso, baseados em perspectiva interacionista, os professores podem, por meio do que os PCN propõem, desenvolver ações de linguagem:

Produzir linguagem significa produzir discursos. Significa dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução. Isso significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso não são aleatórias – ainda que possam ser inconscientes -, mas decorrentes das condições em que o discurso é realizado. Quer dizer: quando se interage verbalmente com alguém, o discurso se organiza a partir dos conhecimentos que se acredita que o interlocutor possua sobre o assunto, do que se supõe serem suas opiniões e convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de familiaridade que se tem, da posição social e hierárquica que se ocupa em relação a ele e vice- versa (2001: 25).

Marcuschi (2008) esclarece sobre a questão dos gêneros e o ensino da Língua “Será que existe algum gênero ideal para tratamento em sala de aula? Ou será que existem gêneros que são mais importantes que outros?” Afirma que não há um consenso sobre tais indagações. Dessa forma, alguns gêneros se enquadram mais para atividades de leitura e outros funcionam com mais propriedades para atividades de produções textuais. O fator determinante da escolha é a proposta de trabalho do professor em sala de aula, de acordo com a sua organização dos conteúdos. Outra

50

análise feita pelo autor diz respeito àquilo que os manuais de ensino de Língua Portuguesa mostram com relação ao trabalho com gêneros, evidenciando uma “mesmice” na atividade. São os mesmos gêneros trabalhados, em detrimento de outros, que funcionam, apenas, como “apêndices” para observação dos alunos. Os orais ficam em segundo plano, nas atividades planejadas e o linguista ressalva:

Deve ter ficado claro que há muito mais gêneros na escrita do que na fala, o que é de certo modo surpreendente, mas explicável pela diversidade de ações linguísticas que praticamos no dia a dia na modalidade escrita. As civilizações em que a escrita tem um papel central nas tarefas do dia a dia, mormente no comércio, indústria e produção do conhecimento, tendem a diversificar de maneira acentuada as formas textuais utilizadas. Essa tendência torna de algum modo difícil a vida do cidadão comum, que já não consegue dominar com facilidade essa verdadeira selva textual (2008: 207).

As atividades dos professores, quanto à utilização dos gêneros, dão maior relevância àqueles com maior grau de formalidade, deixando de lado aqueles próprios da vida cotidiana dos alunos. Na prática, o que observamos são alguns equívocos no tratamento desse estudo, numa valorização das atividades de compreensão e o relativo abandono da produção. Percebemos o resultado da ação em diversas situações do ensino de Língua Portuguesa, por exemplo, quando os alunos são expostos às situações de escrita (provas discursivas, vestibulares, etc.): o caos linguístico. Apontamos o contato com os gêneros porque podemos atingir alguns objetivos do ensino de Língua: o exercício da construção, compreensão e intelecção dos textos. Como diz Koch, o gênero deixa de ser ferramenta de comunicação e passa a objeto de ensino/aprendizagem, para o desenvolvimento da linguagem. A autora ainda aponta dois objetivos de aprendizagem da Língua Portuguesa, oriundos da escolha didática, feita pelos professores, por um gênero na escola:

• Levar o aluno a dominar o gênero, primeiramente para melhor conhecê-lo ou apreciá-lo, para melhor saber compreendê-lo, produzi-lo na escola ou fora dela; para desenvolver capacidades que ultrapassam o gênero e são transferíveis para outros gêneros próximos ou distantes. Para realizar tais objetivos, torna-se necessária uma transformação, ao menos parcial, do gênero: simplificação, ênfase em determinadas dimensões, etc.; • Colocar os alunos, ao mesmo tempo, em situações de comunicação o mais próximo possível das verdadeiras, que tenham para eles um sentido, para que possam dominá-las como realmente são. Isto porque, como foi dito, o gênero, ao funcionar em um lugar social diferente daquele que está em sua origem, sofre necessariamente uma transformação, passando a gênero a aprender, ainda que permaneça gênero para comunicar. Trata-se do desdobramento mencionado acima, que constitui o fator de complexificação principal dos gêneros na escola e de sua relação particular com as práticas de linguagem: o gênero trabalhado na escola é sempre uma variação do gênero de

51

referência, construído na dinâmica do ensino/aprendizagem, para funcionar numa instituição que o tem por objetivo primeiro (2006: 58).

Na abordagem da autora, vislumbramos um trabalho em sala de aula capaz de manifestar nos alunos a consciência do saber, do fazer e da capacidade de (re)modelar a Língua. Em Antunes (2009), temos uma formação docente que busca um ensino de língua escrita, voltado para a produção, leitura e análise de diferentes gêneros, devidamente escolhidos e organizados, a fim de atingir metas comunicativas. Quanto mais o aluno conhecer os gêneros, maior conhecimento de mundo e sua participação social dar-se-á de maneira mais efetiva. Também a possibilidade de o aluno compreender as variações existentes dentro de um mesmo gênero comprovaria o exercício da linguagem e o reconhecimento das suas marcas linguísticas. Uma questão bastante importante se refere ao espaço escolar, no que diz respeito ao prazer da escrita. Por muitos anos, a escola passou a lugar do dever da “redação”. Em alguns casos, o termo “redação” ainda representa um sinônimo de “castigo”. Escrever “redação” tornou-se uma das formas de se punir o aluno por qualquer coisa mal feita. O ato da escrita que se associaria ao prazer do (re)conhecimento linguístico perdeu seu significado primário: o de fomentar no aluno a busca pelo saber lexical, morfológico, sintático, semântico, estilístico, tornando-o um cidadão da Língua. A gramática não perderia seu foco, sua importância, mas apresentaria os sentidos da sua aplicação, à medida que os textos fossem apresentados, estabelecendo precisão e consistência no alcance das regras, o que possivelmente traria, para o ensino, uma gramática do uso, próxima das experiências do aluno e das situações concretas de comunicação. O mito da “língua difícil” e da aversão pelo seu aprendizado daria espaço para um aprendiz ativo, aquele capaz de gerir e decidir os usos sociais da palavra e das construções frasais. Criamos a expectativa de uma sala de aula com alunos capazes de escrever/falar seus textos, assegurando aos seus leitores/ouvintes as pistas necessárias para a produção de sentidos. Antunes reforça:

Que cheguemos, já, a um ensino de línguas que, em cada momento, estimule a compreensão, a fluência, o intercâmbio, a atuação verbal como forma de participação nossa na construção de um mundo, inclusive linguisticamente, mais solidário e mais libertador. Ou seja, privilegiemos o ensino de uma escrita socialmente relevante, não excludente, encorajadora, centrada em tudo que dá sentido à grandiosa aventura da vida humana (2009: 216).

52

Ficamos com a consciência da resposta, com a fina ironia da pergunta da autora: “Será que o exercício de formar frases, aleatórias e soltas, pode promover a competência das pessoas para realizarem a complexa atividade da interação verbal?” (2009: 216).

1.5 – A canção como gênero textual

Na contemporaneidade, discussões sobre aprendizagem dos gêneros textuais e ensino da Língua Portuguesa permeiam alguns níveis e setores da vida escolar, com um lugar seguro tanto nas conversas informais entre professores como nos debates científicos. A proposta de trabalho com o gênero textual “canção” tende a mostrar o desenvolvimento das capacidades de leitura, a partir da identificação dos recursos linguístico-expressivos presentes nas composições. Tomemos a leitura como algo imprescindível na vida do homem e como o entendimento do que as palavras e expressões transmitem. Merleau-Ponty (1980) afirma que é próprio da natureza da linguagem o querer significar algo externo e manter seu aprisionamento em sua rede de significações, ou seja, o aparato linguístico, com o desejo de expressar o mundo, imprime sua marca e acaba por falar de si mesmo. É no autoespelhamento, numa espécie de labirinto de reflexos, que a linguagem apresenta, de forma paradoxal, o traço da opacidade resultante do contínuo movimento da geração de sentidos. Por fim, a linguagem já não é espelho do mundo, mas de si mesma. Utiliza-se a noção de gênero na denominação de vários fenômenos textuais. Gêneros compreendem formatos, suportes, de acordo com as épocas literárias. Observamos as concepções possíveis do gênero “canção”, levando em conta os fatores que basicamente orientam a classificação: a relação entre letra e música, com a divisão em partes e construída por versos, o texto curto e cantado. Segundo Meurer e Motta-Roth:

Ao servir da materialidade textual a uma determinada interação humana recorrente em um dado tempo e espaço, a linguagem se constitui como gênero. A partir de Bakhtin (1986), gênero é pensado como um evento recorrente de comunicação em que uma determinada atividade humana, envolvendo papéis e relações sociais, é mediada pela linguagem. É responsabilidade central do ensino formal o desenvolvimento da consciência sobre como a linguagem se articula em ação humana sobre o mundo através do discurso ou, como preferimos chamar, em gêneros textuais (2002: 11-12).

Assim, compreendemos a funcionalidade dos gêneros e entendemos, numa visão aplicada, a apresentação de como as letras de música (linguagem verbal) acrescidas da melodia e

53

do ritmo (linguagem musical) são combinadas na “canção”, justificando os elementos em conjunto. Para os autores, os gêneros textuais se configuram como textos de ordens variadas e são, por excelência, formas de interação, reprodução, com possibilidades de alterações sociais, envolvendo questões de acesso e poder. Bakhtin (1997) define os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados, envolvidos nos processos da ação humana. Tais gêneros são definidos como conjuntos de uso da linguagem, presentes em cada enunciação. Novamente, a relação dialógica proposta pelo autor indica a utilização da Língua e direciona o caráter histórico dos gêneros, marcando a flexibilidade de suas características e delimitando seus limites. A estabilidade comunicativa qualificará os enunciados como um gênero, definida por meio dos seguintes elementos: o conteúdo temático, o estilo e a estrutura composicional. Para Marcuschi (2002), a expressão “gênero textual” não contém as referências necessárias para denominar os textos do cotidiano. O autor dá ênfase ao caráter comunicativo do gênero em lugar da forma e aponta:

Importante é perceber que os gêneros não são entidades formais, mas sim entidades comunicativas. Gêneros são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos (2002: 22-5).

Assim como Bakhtin, ele trata os gêneros textuais como atos linguístico-históricos, ambientados na vida cultural e social, auxiliando a ordenação e estabilização do processo comunicativo. Leva-se em conta a forma de realizar linguisticamente os objetivos específicos em situações sociais particulares e de considerar os gêneros como operadores da legitimação discursiva, em dados contextos. De maneira sistemática, Marcuschi norteia o entendimento do termo:

Gênero textual refere os textos materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas. Em contraposição aos tipos, os gêneros são entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em designações diversas, constituindo em princípio listagens abertas (2008: 155).

À luz das ideias de Bakhtin e Marcuschi, identificamos a canção como gênero textual, uma vez que, além dos traços acima mencionados, há a presença do tema, do estilo marcado –

54

textos narrativos e descritivos - e uma estrutura composicional – letra e melodia. Além disso, a canção se revela como “fértil área interdisciplinar, com atenção especial para o funcionamento da Língua e para as atividades culturais e sociais” (MARCUSCHI, 2008: 155). Registremos a concepção das formas culturais e cognitivas das atividades sociais reveladas no modo particular na linguagem e a dinamicidade dos textos, com um convite a escolhas, estilos, criatividade e variação. Seguindo os pressupostos teóricos alinhados pelos autores, Barbosa corrobora o aspecto funcional e a compreensão dos gêneros como “artefatos linguísticos concretos”, fatores que contribuem para o estudo dos textos, e propõe o estudo mais particular das letras de samba, observando algumas peculiaridades:

1) características sócio-históricas – o que há na situação de comunicação, no modo de interação entre os produtor(es) e receptor(es) do texto, ou mesmo na identidade social desses atores discursivos, que condiciona a produção do texto; 2) características macroestruturais – as temáticas abordadas, o nível de linguagem, características estruturais genéricas das letras de samba; 3) características microestruturais – o que há de específico no uso dos recursos gramaticais no gênero em questão (2009: 67).

As reflexões de Ulhôa sobre a canção popular direcionam para outras características pertinentes ao gênero. O ato das letras de canções produzirem sentido no momento do canto reforça a interferência da letra e da melodia, enfatizando o resultado da junção da linguagem verbal e da linguagem musical. São as palavras do autor:

Na canção popular, melodia e letra interferem estreitamente uma sobre a outra. Existem elementos na letra, especialmente sua qualidade narrativa ou lírica, que conduzem a diferentes tipos de melodias: existem particularidades na melodia, especialmente seu contorno melódico e tipos de intervalos empregados que marcam o caráter da canção (1999: 49).

Os PCN apontam que “todo texto se organiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos as quais geram usos sociais que os determinam” (BRASIL, 2001: 21). Demarcam a canção como um gênero textual literário de natureza oral, apresentando na composição um elemento linguístico (verbal) e dois elementos extralinguísticos (melodia e ritmo, não verbais). Tatit (2001), ao tratar desses elementos, expõe que o texto é o que é dito; a melodia é modo de dizer. Segundo ele, a melodia é uma espécie de encaminhamento da musicalidade inerente à entoação, à fala.

55

Costa expõe que “a canção é um gênero híbrido, de caráter intersemiótico, pois é o resultado de dois tipos de linguagens, a verbal e a musical (ritmo e melodia)” (2002: 107). Evidenciamos a proposta de localizá-la numa zona instável entre a oralidade e a escrita, posto que encontramos características, em níveis distintos. Ressaltamos, aqui, o ponto de diferenciação dos PCN, por a considerarem como gênero oral. No que tange à canção popular, o autor destaca a realização de várias composições nos próprios instrumentos, o que não descarta o uso de partituras por parte dos músicos populares. Apenas registramos a liberdade dos compositores, em relação ao sistema de notação, no trabalho melódico. Quanto à utilização na escola, Costa esclarece sobre o papel do professor em manter a integridade da canção enquanto gênero autônomo. É levar em conta a dimensão melódica e todos os riscos que isso acarreta. Chama a atenção para o fato de a aula se tornar um espaço de lazer, mais do que de aprendizado, e para a harmonização com a produção consciente do trabalho na sala de aula. E esclarece:

A nosso ver, este (trabalho) deve ser o de proporcionar ao aluno uma educação dos sentidos e da percepção crítica, que proporcione, ao lado do prazer sensorial e estético, um exercício de leitura multissemiótica, voltada não apenas para a discriminação de cada materialidade semiótica do gênero, mas também para a interação pluridirecional que relaciona todos os elementos que uma canção pressupõe (autor – cantor – personagens – melodia – ouvinte genérico – ouvinte individual – etc.). Esteja bem claro, por fim, que o que se deseja não é formar cancionistas, mas ouvintes críticos de canções, capazes de perceber os efeitos de sentido do texto, da melodia e da conjunção verbo-melódica; conhecedores do cancioneiro e dos cancionistas de seu país, seus posicionamentos, estilos e discursos; tal como pretende o estudo da literatura (2002: 119-120).

A audição musical merece atenção especial, porque assim se realiza a estimulação dos alunos para perceberem a interação texto-melodia e perscrutar os meios técnicos e o processo de produção. Também o professor não necessita ser compositor ou cantor. Em contrapartida, desejamos que possua a sensibilidade e a visão crítica que lhe destina difundir e inspirar. Sobre as considerações didático-pedagógicas das canções, Valente reconhece, para além do valor da poesia cantada, a abordagem dos aspectos semântico-estilísticos, abarcando traços da fonética, morfologia e sintaxe. Destaca também o trabalho com as questões culturais associadas aos elementos antropológicos e sociológicos da formação cultural brasileira. É levar em consideração a história da Língua e do povo. Sobre o trabalho do professor, acrescenta:

Os professores de Português – ou professores de linguagem – podem, ainda, explorar aspectos dialectológicos ou sociolinguísticos, com base na nossa diversidade cultural e nossa riqueza, que se refletem na variedade da nossa música. Só não devem usar as letras de música como pretexto

56

para trabalhar a dicotomia certo X errado. É uma visão empobrecedora do fenômeno da linguagem que utiliza a poesia musical para cobrar normas gramaticais (...) (2004: 199).

Ratificamos, por fim, o papel do professor como aquele que apresenta o que será lido, o texto, o livro, a pintura, a paisagem, o mundo, e cantado, no caso, a música. O trabalho de auxiliar na interpretação e significação das palavras, de promover experiências, situações novas e encaminhamentos para a formação de leitores e produtores de textos capazes de manipular as múltiplas formas de linguagem e de apreender os recursos tecnológicos, disponíveis para as atividades comunicativas dos sujeitos, comprova as tentativas desse profissional da linguagem pelo exercício da técnica, mas também pela busca do prazer. A canção se apresenta e se denomina como gênero textual nesse contexto.

Ninguém pode maltratar o rapaz do violão / Pois se ele for embora / Deixa a moçada na mão / Ninguém pode maltratar / Um violonista em noite alta / Pois se ele for embora / Todos sabem que faz falta / O bom Ataulfo é quem diz / O negocio é samba de breque ou canção / Mas o samba é mais samba / Sendo acompanhado por um violão / Se o samba é de Chico Buarque / Eu não do o aparte / E exijo atenção / Mas o samba é mais samba / Se acompanhado por um violão / Cae- tano, Gilberto e Vandré / Gente muito pra frente e herdou posição / Não desprezam nem sonhando / acompanhamento de um violão / Se o Grande Noel revivesse / Ele iria pedir cheio de emoção / Cantem Feitiço da Vila / Mas acompanhado de um violão / Elza, Elis e Jair / Baden Powell e Vinicius / Ninguém diz que não / São reais defen- sores do samba / E arma que usam é o violão. (O rapaz do violão. Originais do Samba) 58

2 – A EXPRESSIVIDADE DA LÍNGUA PORTUGUESA

Ao tratarmos da expressividade linguística, destacamos a capacidade do homem de armazenar conhecimentos e difundi-los, ao longo da história, e também salientamos a competência expressiva necessária a validar sua aprendizagem. As palavras não são meros instrumentos gráficos do processo da comunicação humana. A sua aplicabilidade nos enunciados revela a intenção de cada palavra, frase, texto, e o papel da compreensão do interlocutor se justifica, à medida que as interpretações de cada um desses elementos se configuram como fenômeno intersubjetivo do discurso (AZEREDO, 2008). As significações presentes no mundo são representadas em nossas relações sociais pelos elementos característicos da atividade humana. Ações e pensamentos simbolizam a gama de interpretações que direcionamos aos seres e às coisas. Para Azeredo, se constroem os significados por meio das formas simbólicas (sonhos, desejos, ideias, descobertas, sentimentos, informações, lembranças) e pela convivência social, configurados pelas cores, gestos, sons, formas e riscos. Os textos, assim, se materializam com a exploração dos recursos linguísticos. Eis a importância, não apenas da comunicação, mas da expressão. O autor, ao tratar do texto como objeto de interpretação, esclarece:

Para o senso comum, um texto é um objeto feito de palavras organizadas segundo regras e estratégias para expressar algum significado pretendido por seu enunciador. Esta definição de texto aparentemente dispensa explicações, mas há no interior dela duas palavras-chave que precisam ser melhor esclarecidas: significado e enunciador. Dizer que um significado é “pretendido” por alguém implica admitir que ele preexiste ao texto, e que este nada mais é que um veículo do significado. (...) O significado não se confunde com a intenção da pessoa que fala ou escreve; nem mesmo é uma face abstrata do texto, guardada em seu interior. O significado é parte do evento discursivo que envolve o produtor do texto e seu destinatário, ouvinte ou leitor. Cada palavra escolhida, a entoação manifesta na fala ou intuída na leitura, cada construção empregada realizam – mais que transportam – a significação (2008: 476).

Sobre o papel do enunciador do discurso, apontamos alguns traços pertinentes à sua atuação. Levemos em consideração as entidades instituídas, denominadas, na relação discursiva: autor físico do enunciado e autor intelectual ou institucional. A cada um deles é atribuída uma parte comunicativa no processo de construção de significados. Ao autor físico, cabe a responsabilidade de construir o texto oral ou escrito; ao autor intelectual ou institucional, compete a concepção do conteúdo do enunciado e o interesse pelo que se pronuncia. A realização 59

das atividades se dá por meio da transtextualização, “processo pelo qual o enunciador constrói seu texto (texto meta) mediante a incorporação ou transformação da totalidade ou de parte de outro texto (texto fonte)”, segundo Azeredo (2008: 96). Além disso, a diferença entre as autorias deve ser observada pelo interlocutor, para que não haja nenhuma falha na adequada produção e atribuição dos sentidos nos enunciados. A busca por uma teoria coerente e pela utilização produtiva de uma metodologia levar-nos-á à possibilidade de identificação do processo de análise do texto, para obtenção da significação desejada. A percepção do texto como objeto de construção estilística envolve elementos como as escolhas lexicais e arranjos sintáticos. O trabalho do leitor extrapola a postura receptiva daquilo que primeiramente está representado no texto, para a atitude das descobertas linguísticas, do reconhecimento expressivo que as palavras assumem em suas ocorrências. Os sons, as classes, as formas, os significados possibilitam a análise estilística, levando a palavra ao seu lugar de destaque na formação e percepção do estilo de cada autor/escritor. Ao tratar do objetivo da análise estilística, Cressot diz:

O nosso objetivo será o de interpretar a escolha feita pelo utente em todos os compartimentos da língua, com vista a assegurar o máximo de eficácia ao seu ato de comunicação. Poderíamos ser levados a considerar apenas os meios estritamente expressivos, o que equivaleria a empobrecer a realidade ou, em certos casos, a falseá-la; são inúmeras as circunstâncias em que a expressão fica aquém do pensamento, numa meia-tinta, numa totalidade de expressão bastante discreta. E não será preciso refletir longamente para nos darmos conta de que a expressividade não é, de modo algum, uma coisa em si, mas o resultado de dados complexos e variáveis (1980: 14).

O trabalho dedicado ao fato estilístico ocupa-se da expressividade e da esteticidade, considerando os efeitos da comunicação e o prazer do interlocutor. Na tentativa de revelar o domínio da Estilística, o autor não apresenta apenas a escrita como campo de análise, mas ressalta a fala espontânea de cada sujeito. Isso nos leva à dimensão singular dos estudos da Língua, percebendo as ligações da ciência estilística com outras áreas: fonética, pela possibilidade rítmica, articulatória, entoadora, sonora dos vocábulos; lexicologia, pelo trabalho engenhoso na formação e criação de novas palavras; gramática normativa, pelo reconhecimento de estruturas excludentes do padrão e sua potencialidade expressiva; gramática histórica, pela visibilidade de uma estrutura linguística mutável e passível de escolhas; linguística geral, pela sua filiação; psicologia e sociologia, pelos aspectos afetivos e sociais; estética e antiga retórica, pela renovação e ampliação dos conceitos. Nessas relações, a Estilística se apropria, de acordo com

60

suas intenções, das contribuições de cada área, determinando a relação quantitativa e qualitativa entre a expressão e o sentimento. À Estilística cabe ponderar os contributos de cada área, para assim delimitar o seu campo de estudo e análise, e configurar amplitude à expressividade da Língua Portuguesa.

2.1 – Pressupostos da Estilística

Por excelência, todo e qualquer texto, marcado pela sua pessoalidade, revela a imagem de seu autor. Uma intencionalidade discursiva traçada pela expressividade linguística aponta para o estilo e a Estilística se mostra refletindo os fenômenos da linguagem carregados de valores afetivos e evocatórios. É a formação de um caráter por escrito, resultado de uma combinação de fatores. Toda descrição que a Gramática propõe possibilita as escolhas feitas pelo usuário da Língua, mas não é suficiente para a explicação dos aspectos relacionados aos componentes emotivos. Por se afastarem das regras do sistema linguístico, através de rupturas ou desvios, acabam entendidos, segundo Monteiro (2005), como erros ou construções viciosas, quando, na realidade, representam o exercício criativo da linguagem, a prova do pleno domínio da expressão. A Estilística revela-se como ciência, em 1902, com Charles Bally, iniciando os estudos de uma Estilística da língua ou da expressão linguística, que se detém na descrição do aparato expressivo da língua, em sua totalidade, em contraponto a um estudo dos estilos individuais, provocando, assim, um afastamento da literatura (REI, 2002). A partir da Estilística idealista de Leo Spitzer, seguida, então, por Dámaso Alonso e Amado Alonso, distintamente dos princípios de Bally, Vossler e Auerbach pela modernidade, que os estudos da expressão literária começaram a avançar, iniciando-se uma reformulação crítica no processo literário. A antiga retórica abre espaço para a Estilística, em cujos preceitos já não se exige o uso de uma “bela língua”, fria, pelas regras gramaticais. A língua, uma expressão do homem, evolui com ele, com os costumes, os ideais e os usos que exprime (GUIRAUD, 1970). Esse novo espaço provoca a alteração conceitual de linguagem e de estilo. No percurso, há duas grandes correntes da Estilística denominadas “descritiva” e “idealista”, diferentes no tratamento do objeto de estudo: o texto. Do ponto de vista conceitual, os estilólogos apresentam divergências entre as várias teorias. Com a tradição, apreendemos o sentido da Estilística como ciência e como a arte de bem

61

escrever, falar e dizer, com vistas à língua padrão. Percebemos, ao longo da história linguística, variadas representações da expressão Estilística e nos deparamos com uma nova ciência, a partir de Saussure e discípulos. Novas percepções e considerações convergem para a ampliação das análises da língua. Os estudos de Charles Bally se voltam para aspectos afetivos da língua falada, daquela que serve aos usuários, caracterizada pela sua espontaneidade, mas que atende às regras da gramaticalização, com um sistema expressivo descrito e examinado pela Estilística. O autor postula a linguagem sob duas faces: a intelectiva ou lógica e a afetiva. Analisa os efeitos da afetividade em seu uso e de que maneira a impessoalidade linguística se transforma na produção da fala. Pioneiro na distinção entre o conteúdo linguístico e o conteúdo estilístico, o autor preocupou-se em demonstrar as variadas possibilidades de se perceberem as diferentes maneiras da expressão verbal. Martins (2000) aponta a classificação dos efeitos significativos por meio dos quais o homem manifesta seus sentimentos e mantém suas relações com o outro, como: naturais (manifestações de prazer e desprazer, de admiração, e desaprovação, processos de intensificação de ideias e evocativos, instituídos em determinados grupos sociais ou dadas épocas e revelados na língua familiar, gíria, linguagem do trabalho, literária, entre outras). De acordo com a concepção saussuriana, Bally dedica-se aos estudos da langue, importando-se com o sistema expressivo da língua, e afastando-se da perspectiva de estudo da parole, ou seja, do uso individual da língua. Para ele:

A Estilística estuda os fatos da expressão da linguagem, organizada do ponto de vista do seu conteúdo afetivo, isto é, a expressão dos fatos da sensibilidade pela linguagem e a ação dos fatos da linguagem sobre a sensibilidade (apud: MARTINS, 2000: 4).

É com tal pensamento que o autor estabelece ideias sobre a Estilística da língua ou da expressão linguística, observando as características expressivas do aparato linguístico, e opõe-se aos estudos dos estilos individuais, com que se preocupava a literatura. Com Marouzeau, há uma Estilística discursiva, que estabelece o lugar da língua a serviço de seus usuários e o respeito às necessidades expressivas de cada um, na confirmação das escolhas e na produção do estilo. Juntamente com Cressot, inclina-se para a Estilística literária, por considerar a língua literária, com seus recursos expressivos, o campo de estudo de excelência da ciência.

62

Na sequência dos princípios de Bally, aparecem, em destaque, Manuel Rodrigues Lapa e Mattoso Câmara Jr. Por meio das obras consagradas dos autores, verificamos a redimensão dos estudos estilísticos e a defesa pelo reconhecimento da ciência estilística. Na elaboração da obra de Lapa, há a despreocupação na formulação dos conceitos de estilo e Estilística. Em contrapartida, imprime a dedicação do autor em dar a característica aplicativa aos assuntos tratados na obra. Destaca os valores expressivos das classes de palavras, do léxico e das combinações sintáticas, na tentativa de apresentar uma língua “sentida” pelo falante. Posiciona-se:

Vemos pois que, em volta de cada palavra ou, para melhor dizer, de certas palavras, se estabelece uma atmosfera fantasiosa e sentimental que constitui o seu valor expressivo. Há, evidentemente, palavras mais evocadoras do que outras. O bom escritor saberá aproveitá-las, para suscitar mais vivas e variadas imagens. Mas uma coisa é necessária a quem deseja conhecer a fundo a sua língua e utilizá-la para fins artísticos: pensar e sentir as palavras como se elas fossem feitas de novo, e evocar o objeto a que se referem com a maior frescura e vivacidade possível (LAPA, 1998: 4).

As possibilidades expressivas na obra de Câmara Jr. são balizadas na concepção estilística das três funções da linguagem de Karl Bühler: representação (linguagem intelectiva), expressão (expressão ou manifestação psíquica) e apelo (linguagem afetiva de Bally). A sua depreensão, em relação à langue, concentra-se em apresentar a Estilística como estudo da língua enquanto sistema de expressividade. Destacam-se, entre outros aspectos, o caráter da língua como representação mental da realidade e as utilizações, por parte dos falantes, e a finalidade de expressar a subjetividade dos usuários. Além disso, na perspectiva da visão saussuriana, atentemos ao que o linguista esclarece:

A língua, no conceito saussuriano, se deduz apenas da função representativa, pois compreende a estrutura, o esquema, o padrão ou a pauta que rege, em termos linguísticos, a nossa representação do mundo exterior e interior. Resulta de um trabalho de intuição infra-racional, mas de caráter intelectivo, que justamente a gramática se propõe a trazer para o plano da consciência, pondo-lhe em evidência os sistemas de sons, de formas, de significações e de ordenação de elementos, ou sejam – o fônico, o mórfico, o semântico e o sintático (1978: 10).

Leo Spitzer inaugura a chamada Estilística literária (idealista) com base na filosofia idealista de Croce e Vossler. A percepção dos estudos filológicos consiste na adoção da hermenêutica dos textos literários, na localização dos traços estilísticos marcantes e na análise psicológica desses traços, a fim de atestar sua relevância e pertinência, conforme Monteiro (2005). A análise proposta por Spitzer se concentra nos desvios da linguagem formal

63

influenciados pelo estado psíquico de seus usuários. O escritor revela, por meio da escrita e do uso da língua, as expressões e as impressões do mundo interior. É mister a orientação seguida pelo estilólogo na proposta de análise linguística direcionada aos estudos da parole e ao estilo formador da personalidade discursiva. Na filiação do pensamento spitzeriano, seguem outros estudiosos, como Dámaso Alonso e Amado Alonso. O primeiro é mais representativo, pela grandeza de trabalhos férteis acerca da obra artística. Para ele, o objeto da Estilística caracteriza-se pela sua amplitude e expressividade, abrangendo “o imaginário, o afetivo e o conceitual” (apud: MARTINS, 2000: 8). Em sua concepção, apesar de a obra literária compreender segredos e requerer mecanismos intuitivos para as análises literárias, torna-se viável o estudo científico dos elementos significativos inseridos na linguagem. Há a negativa de qualquer racionalidade para o método estilístico, em defesa da ideia da capacidade intuitiva para o acesso do universo literário. Aproximam-se Dámaso Alonso e Leo Spitzer, no tocante à visão psicologista e à abordagem intuitiva da língua e distanciam-se, ao estabelecerem o foco estilístico de suas análises textuais. Para Martins, “Enquanto Spitzer se mostrava mais preocupado com a manifestação do autor na obra, Dámaso Alonso se sente mais espicaçado pelo mistério da criação poética, pela pergunta: O que é o poema? O que é a obra literária?” (2000: 10). Amado Alonso, com sua argúcia, se insere na fusão dos postulados de Bally e Spitzer. O objeto da Estilística consiste no sistema expressivo do discurso literário, na estrutura e na potencialidade sugestiva das palavras. Constatamos, por um lado, a eficácia da técnica; por outro, a necessidade da sensibilidade para a fruição artística. Assim, os caminhos seguidos pela ciência estilística se associam aos aspectos da construção do texto e ao prazer da dimensão estética da palavra. Segundo Martins: “A Bally se prende a sua concepção dos elementos afetivos, ativos, imaginativos e valorativos da linguagem. A Spitzer a sua compreensão do estilo como revelação do homem” (2000: 10). Na perspectiva da fundamentação de novas teorias, vários estudiosos investigam, tentam estabelecer parâmetros para a análise linguístico-expressiva dos textos. Os fatos estilísticos são observados mediante as manifestações anímicas da estrutura da língua. A partir das concepções de Martins (2000) e Monteiro (2005), enumeramos as teorias e as definições de cada corrente da trajetória da Estilística, para compreensão mais didática e normativa:

64

CORRENTES TEÓRICOS DEFINIÇÕES Descritiva Bally De acordo com sua percepção, caberia à Estilística Marouzeau investigar a expressão dos fatos da sensibilidade Cressot pela linguagem e a ação dos fatos de linguagem sobre a sensibilidade (Bally, 1951: 16 et passim). E tal estudo incidiria basicamente em três vastos campos de aplicação: a) a linguagem em geral (os universais estilísticos); b) uma dada língua (a Estilística da langue); c) o sistema expressivo de um indivíduo isolado (a Estilística da parole) (MONTEIRO, 2005: 16). Idealista Leo Spitzer A Estilística de Spitzer parte da reflexão, de Dámaso Alonso cunho psicologista, sobre os desvios da linguagem Amado Alonso em relação ao uso comum; uma emoção, uma Devoto alteração do estado psíquico normal provoca um José Luis Martín afastamento do uso linguístico normal; um desvio Helmut Hatzfield da linguagem usual, é, pois, indício de um estado de espírito não-habitual. O estilo do escritor – a sua maneira individual de expressar-se – reflete o seu mundo interior, a sua vivência (MARTINS, 2000: 7). Estrutural Rifaterre Rifaterre considera a Estilística estudo exclusivo Samuel Levin da mensagem, negando a pertinência estilística do Dolezel sistema (o que se pode considerar uma posição radical contestável). O estilo é fato resultante da forma da mensagem e repousa sobre uma dupla série de procedimentos: uns decorrentes de uma convergência (paralelismo, colocação de elementos linguísticos equivalentes – fônicos e semânticos – em posições equivalentes), e outros decorrentes dum contraste de signos. (...) Ponto importante da teoria de Rifaterre é a ênfase dada ao leitor: o estudo do estilo só pode ser definido em função do leitor, sendo destituída de pertinência estilística toda referência ao autor (MARTINS, 2000: 15). Gerativa Ohmann Seja como for, as análises estilísticas que se fundamentam na teoria gerativo-transformacional optam por um enfoque desviacionista. O ponto de partida é a constatação de que, na literatura em geral e na poesia em particular, é muito comum a ocorrência de frases tidas como agramaticais ou inaceitáveis para o falante. A explicação deste fenômeno subjaz no fato de que a linguagem literária viola o sistema de regras sintáticas e

65

semânticas que constituem a gramática padrão. E, assim, o objeto da Estilística gerativa não seria outro senão o de definir as regras de uma gramática da literatura (MONTEIRO, 2005: 28). Retórica Dubois O esquema proposto por Dubois parte da distinção, concebida por Hjelmslev, entre os planos da expressão e do conteúdo. No plano da expressão, distingue os metaplasmos das metataxes; no do conteúdo, os metassememas dos metalogismos. (...) Mas, seja como for, a Retórica passa a ser redefinida como um conjunto de desvios (metáboles) que modificam o nível de redundância da língua, o que se torna perceptível em virtude de uma marca. E a análise de tais alterações, que incidem em qualquer aspecto da língua, constitui um campo fértil para a descoberta dos fatos de estilo (MONTEIRO, 2005: 29). Poética Jakobson Para Jakobson (1963:219), “o estudo linguístico Cohen da função poética deve ultrapassar os limites da Delas poesia e, por outro lado, a análise linguística da Filliolet poesia não pode circunscrever-se à função poética” (Apud MONTEIRO, 2005: 31). Não é difícil perceber que os recursos existentes nas mensagens literárias aparecem também na linguagem da publicidade ou em qualquer manifestação linguística em que, de uma forma ou de outra, o usuário exerça um domínio sobre a língua quando a emprega para fins expressivos (MONTEIRO, 2005:31). Semiótica Blanchard A verdade é que, com a constatação de que os métodos linguísticos devem ultrapassar o domínio da frase para dar conta dos mecanismos estruturadores do discurso, surgiu também uma tendência para ampliar os limites da Poética, passando a obra literária a ser vista dentro de uma configuração muito mais abrangente. A Estilística reformulada semioticamente é concebida como uma disciplina cujo escopo englobaria todos os temas relacionados às linguagens enquanto sistema de signos (MONTEIRO, 2005: 34). Estatística Guiraud Para Guiraud (1959), é pela frequência das Monteiro palavras ou de qualquer elemento que o escritor Roche age sobre o leitor, sendo o estilo resultante de um desvio que se define quantitativamente em relação a uma norma. Surge daí uma hipótese bastante

66

sedutora que se liga à questão das palavras-tema e das palavras-chave. As primeiras são as mais empregadas num determinado corpus; as outras são aquelas cuja ocorrência se caracteriza como um desvio. (...) O uso mais ou menos generalizado de uma expressão é que cria e condiciona o seu valor estilístico (MONTEIRO, 2005: 37).

Notam-se os limites frágeis e flutuantes entre as áreas da Estilística e a necessidade do esmero com os axiomas do sistema estilístico. Em contrapartida, observamos o reconhecimento dos estudiosos da área, em função dos levantamentos sobre a produção e a recepção do estilo, e a situação social de uso, por validar a capacidade de veiculação dos significados determinantes na concepção estilística.

2.2– O estilo e seus conceitos

Para entendermos a noção de estilo, é preciso delimitar o termo, uma vez que a diversidade de significações já aponta para um problema nos estudos da Estilística. A própria palavra estilo perpassa o universo das relações nas atividades humanas, caracterizando os hábitos culturais, os modos sociais, as maneiras individuais, enfim, revela o sujeito social no mundo em que está inserido (REI, 2006). O estilo aparece quando há a expressividade individualista ou personalista nos mais diversos atos humanos como marca de si mesmo. Toda proposta analítica de estilo se direcionará para a produção de determinado autor (poeta, escritor, compositor), levantando características que mostrem uma estilística individual, um traço distintivo em relação a outros. É, para Murry, “Tudo que contribui para tornar reconhecível o que alguém escreve” (1968:17). Monteiro (2005) destaca as propostas de Amado Alonso, afirmando que a Estilística não se satisfaz com o conhecimento dos mecanismos formais, nocionais ou organizadores do material linguístico da obra literária. O seu objetivo se direciona para o prazer de uma dimensão estética através da palavra. O produtor do texto escolhe os elementos linguísticos, ou seja, na base do estilo há uma escolha do ideal artístico, revelando o momento psíquico, vivido por uma pessoa, em determinado momento e em um grupo social determinado. Levam-se em conta dois aspectos: o da construção do texto e o da análise do prazer estético. Para a Estilística, o autor aponta o

67

deslocamento do sistema para o discurso representando o repertório de alternativas, para que os usuários da língua possam utilizá-la de acordo com as necessidades de expressão, praticando suas escolhas, revelando seu estilo. Do estilo como desvio, Genouvrier já destaca essa noção como bastante complexa. Afirma que “o pensamento preexiste à língua e que a função desta é aplicar as palavras sobre aquele” (1985:392). O desafio maior da linguagem é dar forma ao pensamento, pois o intervalo existente entre um e outro provoca algumas inadequações, traduções indesejadas do pensamento à realidade, através das palavras. A tentativa de encontrar a palavra “certa”, “exata” pode caracterizar imperfeição na linguagem, possibilitando a criação do estilo, por meio das escolhas. Quanto aos procedimentos afetivos, o que marca a escolha do locutor é a subjetividade: “a necessidade de expressar a afetividade leva a explorar na língua tudo aquilo que se afasta, de algum modo, do uso neutro: busca da expressividade que se exprime tanto nos sons como no vocabulário ou na sintaxe” (GENOUVRIER, 1985: 395). Isso só ratifica a ideia de que o estilo ocupa, no campo discursivo, um espaço relevante e imensurável, dado o seu entendimento como tradução, por meio dos recursos linguístico-expressivos. Nas palavras de Mattoso Câmara Jr, “o estilo é a definição de uma personalidade em termos linguísticos” (1978: 13). É pensar numa língua individual, na capacidade do sujeito de exteriorizar e transmitir suas concepções de mundo, utilizando aquilo que o rege como sujeito falante: a língua. Além disso, está a sua própria capacidade de criação individual, associada a uma linguagem que extrapola o plano intelectivo, para dar vazão a sua emoção e ao seu desejo. O que se constata, em determinadas escolhas linguísticas do falante, é uma espécie de transbordamento do ato linguístico, a revelação do seu entusiasmo. Certos de que o alcance representativo do termo linguístico se desdobra no seu dimensionamento expressivo, integrado às manifestações psíquicas e de apelo, e de que com o estilo a linguagem se expõe distribuída sob os nomes de linguagem significativa e linguagem sugestiva, concordamos com Mattoso Câmara Jr. (1978: 14): “A Estilística vem complementar a Gramática”. Em tese, a Estilística se compreende como a disciplina linguística que estuda a expressão em seu sentido estrito de expressividade da linguagem, demarcando sua distinção da Gramática por sua capacidade de emocionar e de sugestionar. O sujeito falante se depara com duas situações linguísticas explícitas: uma é o sistema linguístico que representa as suas ações

68

intelectivas, estabelecendo a comunicação pela linguagem; a outra é a utilização desse mesmo sistema para satisfazer os seus impulsos de expressão (CÂMARA, 1978). A moderna noção de estilo, envolvendo a compreensão do autor e da obra, deixa de ser formal, retórica ou gramatical, para ser psicológica. A Estilística passa a se ocupar da função afetiva da linguagem (REI: 2006). Mattoso Câmara Jr. esclarece ainda que a conceituação proposta por Bally remete à questão central sobre a tarefa da Estilística, afirmando sua associação à compreensão da personalidade linguística e o estudo das possibilidades de escolha. Diz:

Compreende-se, por outro lado, que, assim como a língua, no conceito saussuriano, se define primordialmente um sistema de “representações” sobre um ser coletivo, também o estilo caracteriza-se como um conjunto de “expressões”, independentemente da circunstância de ser um predicado do indivíduo (1978: 16).

O estilo, por si, individualiza o sujeito em função da linguagem empregada nos discursos e o que atentamos quanto à caracterização linguística pelo estilo é que são dois os campos mais propícios da língua: o vocabulário e a sintaxe. Neles, há de se perceberem arcaísmos, neologismos, escolhas sinonímicas, traços fônicos e as pertinências nas construções sintáticas. O estilo é, por assim dizer, “a forma pessoal de expressão em que os elementos afetivos se manipulam e catalisam os elementos lógicos presentes em toda a atividade do espírito” (GARCIA, 2002: 136). Outra afirmação sobre o estilo é o fato de o percebermos como um continuum abarcado pelo conhecimento, prazer, deleite, pela adequação, melodia, pelo fascínio, encantamento e por um potente caráter de reinvenção. Demarcamos a possibilidade de se redescobrirem os significados dos vocábulos e aproveitá-los como instrumentos de máximo efeito expressivo no universo linguístico. Em respeito às definições dos estilólogos, ao longo da história da língua, delineamos alguns apontamentos de Georges Mounin:

[o estilo] É um fenômeno de grande complexidade. É a resultante linguística de uma conjunção de fatores múltiplos, em que todas as hipóteses têm o seu lugar. (...) Se algum dia se chegar a atribuir ao estilo uma fórmula, há-de ser uma fórmula extremamente complexa. Todas as relações lapidares da definição do estilo só podem ser e permanecer como empobrecimentos unilaterais. Não damos ainda por findas as nossas tentativas para compreender o porquê do efeito que certas obras têm sobre nós. Nesta encruzilhada onde talvez compreendamos por que é que certo poema nos envolve e nos possui e nos toca de determinada maneira, tem que haver uma convergência de causas linguísticas formais, mas também de causas psicológicas, psicanalíticas, históricas, sociológicas, literárias, etc. E será indubitavelmente o conjunto que poderá dar conta dessa coisa ainda muito misteriosa que é a função poética: por que é que certas mensagens produzem em nós efeitos incomensuráveis com os de todas as outras espécies de mensagem que quotidianamente recebemos (1976: 158-9).

69

O estilo não possui um âmbito delimitado, por oferecer tantas dificuldades, tantos questionamentos para obtermos uma conceituação clara e exata. Isso se comprova através das divergências entre os linguistas que trataram da Estilística, encarando o assunto com facetas diferentes. O conceito não era e não é uno, ainda não balizado numa fórmula que preceitue o verdadeiro conteúdo. Nas palavras de Murry (1968), a afirmação sobre a individualidade do estilo se justifica pelo modo particular de o escritor demonstrar sua subjetividade. A peculiaridade de alguns estilos revela o sentimento do artista e as reações psicológicas se condicionam às experiências emocionais. Outra questão relevante é a relação entre artificialidade e naturalidade. Na crença de que todo estilo não é natural, pois os boas estilizações são peças resultantes da sutileza e da engenhosidade, ocorre um juízo tangente à literariedade, à cientificidade e à ética. Na prática, os limites entre tais valorações se manifestam nas maneiras de estilizar o texto. Além disso, o autor reitera a pluralidade de sentidos atribuídos à expressão estilo e justifica a análise na dupla consideração da relevância e não relevância. No primeiro caso, é constituinte do mérito do autor, pelo reconhecimento de sua obra e notoriedade permanente; no segundo, a ausência do relevo à expressão deve-se ao tratamento comum do trabalho do escritor e sua linguagem ausente de artifícios.

2.3 – A caracterização do estilo

A compreensão da língua individual e a busca por uma personalidade linguística pode ser caracterizada, segundo Mattoso Câmara Jr. (1978), pelos traços não coletivos do sistema da língua e pela manifestação psíquica presente na linguagem. A liberdade pertinente às realizações verbais confere expressividade e emoção aos atos da comunicação e revelam a originalidade nas interações sociais. Cressot (1980) relaciona a noção do estilo à sensibilidade do autor, no que compete à visão de mundo, à seleção e ao tratamento de determinados assuntos. Também destaca a necessidade do conhecimento sobre a história literária, a história da língua e a situação literária/linguística do momento de composição da obra. O escritor exerce com liberdade o direito de submeter a obra ao seu tempo ou retomá-la ao status do passado. É indispensável que

70

observemos os estados e as tendências da língua em um tempo, e a utilização dos elementos, por parte do autor, para revelar sua expressividade. Além disso, com relação ao léxico, faz uma distinção entre a língua que não se modifica e a língua em uso:

Fazer uma análise estilística não é elaborar um catálogo de vocábulos, mesmo neológicos; a tarefa do investigador é a de discernir as intenções e os efeitos que se lhes associam e, nesta ordem de ideias, um neologismo não tem, necessariamente mais interesse do que um termo corrente. Corneille, aperreado à língua do seu tempo, foi obrigado, para a expressão do seu gênio, a violentar a sintaxe e a recorrer à analogia. Racine, por seu lado, instala-se à vontade no falar do seu tempo; de uma língua usual, o seu gênio consegue uma língua de arte. Ambas as atitudes, embora a títulos diferentes, interessam a estilística (1980: 306).

As observações são pertinentes quanto ao registro linguístico dos compositores e as possibilidades de exploração de cada palavra ou expressão. Realizamos um balanço das contribuições vernaculares de cada artista, por meio das análises estilísticas, com vistas ao efeito de sentido pretendido nas canções. Na passagem: “ter estilo não é [só] possuir uma técnica de linguagem” (1979: 14), Galvão cita Fidelino de Figueiredo e alerta sobre a necessidade de apreendermos uma visão de mundo e a atenção no manejo das ideias. Destaca a busca dos mecanismos linguísticos adequados para a expressão de nossas emoções, sentimentos e percepção das coisas. Entendamos aqui a linguagem lato sensu, com suas cores, seleções, combinações, hierarquia de valores, sugestões, insinuações, pertencente à transmissão verbal, através da escrita, e que na fala não se torna integralmente perceptível. Preocupa-se com os malabarismos linguísticos, na formação do estilo próprio e na repercussão das ideias. Com Saussure, o sentido da expressão e da comunicação desenvolve-se na parole, pela expressividade, e na langue, pela comunicabilidade, apresentando uma língua enérgica e potente entre os sujeitos. Galvão expõe as palavras de Marouzeau:

Os recursos de estilo têm um valor latente, facultativo, que não aparece senão quando as circunstâncias o fazem aparecer, quando há interesse em o ressaltar; eles são expressivos em potencial e não necessariamente; seu valor não resulta do fato único de serem empregados pelo indivíduo falante; é preciso, para que eles sejam eficazes, que o autor e o destinatário do enunciado os tratem e os sintam como tais (1979: 16).

Na luta pela expressão, nem sempre a mensagem alcança revelação. Tal ocorrência se dá pelo fato de os elementos da língua não apresentarem totalidade significativa nas correspondências comunicativas. Nem todo texto consegue propagar sua força interpretativa. O

71

trabalho do escritor, em função do estilo, compreende a precisa aplicação das palavras, segundo sua seleção e abrangência e a exequibilidade de suas manifestações pessoais. Na referência à subconsciência e à afetividade na linguagem, Galvão ainda alerta sobre o desprezo à intelectualidade, ocupando-se a Estilística apenas com a linguagem subconsciente ou afetiva. O objetivo das proposições estilísticas concentra-se na junção dessas vertentes e nas proporções da expressividade. Os elementos participantes da realização linguística (afetivos e intelectuais) participam do estado de consciência de cada um. Na tentativa de delimitação do termo estilo, cada língua revela suas peculiaridades expostas pelo conjunto de possibilidades na representação das escolhas. Os recursos expressivos fornecem a caracterização e a variabilidade do aparato linguístico, nos planos lexical, fônico, sintático e/ou semântico. Observamos o trabalho da recriação ou renovação do pensamento, na adjetivação, na preferência vocabular, nos preciosismos sintáticos, revelando a tendência estética de determinada época. Para Martinet (1976), entende-se o estilo de duas formas: conjunto de escolhas ou afastamento da norma. Enfrentamos o problema da diversidade de conceitos que encerram as expressões. Uma questão marcante na análise desses conceitos chama ao esclarecimento dos desvios. Enquanto a norma se constitui dos hábitos, construções ou utilização da maioria, os desvios são observados como alterações provocadas pelo desconhecimento ou fator psíquico. É pertinente o entendimento da norma à não aplicação apenas à forma escrita e padrão da língua, praticada por sujeitos escolarizados e/ou desfavorecidos no aspecto social. No momento da formulação do conceito, a associação entre a Gramática e a Estilística permite perceber equívocos: as regras se associam às questões gramaticais, à norma; em contrapartida, o desvio se caracteriza por não apresentar caráter sistemático. O problema acarreta pressupostos falsos sobre o “erro gramatical”. Construções linguísticas são consideradas “erradas” por não pertencerem ao universo dos escritores conceituados, aos clássicos e aos privilégios do uso formal da língua. Diante dessa concepção gramatical, fatores são ignorados, como:

• O uso oral é intrinsecamente diferenciado do escrito, desde que ninguém fala como escreve ou vice-versa; • Cada uso, oral ou escrito, é influenciado pela situação comunicativa; • A norma literária representa apenas uma das possíveis formas de realização do sistema linguístico; • Uma vez que as variações e mudanças são inerentes à língua, a própria norma literária está longe de ser homogênea. (MONTEIRO, 2005: 48)

72

Para a análise estilística, no discurso com propósitos estéticos, há a contraposição da noção de desvio com a norma padrão. Consideramos a intencionalidade, com vistas à expressividade. A proposta para a conceituação pode partir das considerações de determinado registro linguístico ou ambiente sociocultural, ou seja, “o contexto desempenha o papel da norma e o estilo nasce de um desvio a partir dele” (MONTEIRO, 2005: 50). Há o entendimento do contexto como elemento determinante para as análises sobre a expressividade e, de acordo com ele, a hipótese dos fatos da língua assumirem as funções estilísticas. Baseada na análise semiótica de estilos, Discini (2009) trata estilo e norma com a verificação das relações sintáticas e semânticas presentes no plano do conteúdo (metaplasmos/nível morfológico, metataxes/nível da sintaxe) e no plano da expressão (metassememas/nível da semântica, metalogismos/nível lógico). No trabalho, a determinação de significados dos textos colaborará para a representação do estilo. No percurso gradativo, a reconstrução dos sentidos dos textos aumentará a compreensão da produção discursiva e do estilo. Para a autora, a norma se forma por meio de variadas circunstâncias geradoras de sentidos. Com base nos estudos de Hjelmslev (1943), reforça a substituição da dicotomia saussuriana língua/fala, pela relação esquema/norma/uso/ato, se baseando na perspectiva de aproximação da língua com seu ato individual, por consequência, com o estilo. A norma constituir-se-ia em tentativa de compilação da descrição do uso. Por fim, considera o esquema e o uso, em substituição à língua e à fala. O interesse de Possenti (2001) concentra-se na consideração do estilo como fato de língua e na descrição da tarefa da Estilística: caracterização da personalidade, isolamento dos traços do sistema linguístico (independentes da coletividade), contribuição para uma espécie de língua individual e concatenação e interpretação dos dados expressivos. A apresentação do estilo como desvio da norma direciona para a individualização da personalidade. A abordagem da questão estilística, na visão dos estruturalistas e gerativistas, apresenta problema na concepção de língua e de gramática. Em Saussure, a língua é concebida com uniformidade e a competência gramatical gerativa pode-se expressar pelo conhecimento de um falante-ouvinte apurado. Os traços estilísticos se revelam na variação linguística, no fato de o sujeito explorar os recursos expressivos, utilizando-se da diversidade de códigos. Estabelecer os papéis de uso da língua, a partir do esquema estrutural e situação social do usuário e perceber a diversidade na apresentação discursiva do falante. A distinção de um falante para outro se confirma por meio das diferenças

73

entre a ordem estrutural das frases e a utilização da linguagem. Temos, assim, a língua exteriorizada na potencialidade expressiva e plural. Possenti aponta três principais vertentes no tratar do estilo. Afirma que não se deve abandonar a busca da objetividade, na caracterização estilística, alerta sobre a perda de significação dos elementos linguísticos das obras analisadas e oferece dados para a composição do quadro:

PSICOLOGIZANTE SOCIOLOGIZANTE FORMALISTA • Estilo = desvio de • Estilo = recobre uma • Estilo = relacionado uma norma. multidão de fatos, de à forma, à organização • Destaca na obra conceitos (distancia-se do texto. basicamente a da língua) • Destaca revelação da • Destaca na obra fundamentalmente a personalidade do fundamentalmente a preocupação com a escritor. representação da materialidade da obra, • Representante: problemática de uma deixando em segundo Spitzer época. plano o autor e os • Representante: aspectos históricos Auerbach e/ou sciológicos. • Representantes: integrantes do Círculo Linguístico de Praga, Todorov.

Segundo Guerra da Cal, o reconhecimento do estilo e sua definição são tarefas relativamente fáceis e presentes nas análises textuais. O problema do trabalho se encerra na determinação e no entendimento da essência estilística, cabendo compreender a impossibilidade de percepção dos sinais expressivos da língua, em sua totalidade. Se para o autor o estilo é “aquilo que individualiza um autor, que o diferencia dos demais, que é caracteristicamente seu – e nós o vemos como seu por estar harmonicamente integrado no conjunto de sua originalidade e impregnado dela” (1969:51), por outro lado, concordarmos com a ideia de inapreensão e indissociabilidade do material linguístico que causa impressão com a personalidade e peculiaridades. E escreve:

Ter um estilo não é possuir uma técnica de linguagem, mas principalmente ter uma visão própria do mundo e haver encontrado uma forma adequada para expressar essa paisagem interior. As palavras são, pois, alguma coisa mais que o veículo de comunicação através do qual o artista nos

74

transmite sua mensagem. Por trás delas implícita, misteriosamente presente, está sua visão total da realidade, sua atitude vital, sua concepção subjetiva do mundo, sua maneira particular de simplificá-lo, de transformá-lo, adaptando-o à sua personalidade; sua maneira de sentir o mundo, de “pensá-lo”, poderíamos dizer. Sob o estilo verbal está a síntese intransferível das reações intelectivas e emocionais que a realidade provoca no escritor (1969: 51).

Baseados na proposta teórico-metodológica, elaboramos um quadro de conceituações do estilo, estabelecidos desde o surgimento da Estilística, na tentativa de compilação das variadas definições e caracterizações:

“O estilo é o homem” BUFFON “O estilo é o pensamento” RÉMY DE GOURMONT “O estilo é a obra” SAYCE “Estilo é a expressão inevitável e orgânica de MIDDLETON MURRY um modo individual de experiência.” “Estilo é o que é peculiar e diferencial na fala.” DÁMASO ALONSO “Estilo é a qualidade do enunciado, resultante MAROUZEAU de uma escolha que faz, entre os elementos constitutivos de uma dada língua, aquele que a emprega em uma circunstância determinada.” “O estilo é compreendido como uma ênfase RIFATERRE (expressiva, afetiva, ou estética) acrescentada à informação veiculada pela estrutura linguística sem alteração de sentido. O que quer dizer que a língua exprime e o estilo realça.” “O estilo de um texto é o conjunto de ARCHIBALD HILL probabilidades contextuais dos seus itens linguísticos.” “Estilo é surpresa.” KIBÉDI VARGA “Estilo é o que está presente nas mensagens JAKOBSON em que há elaboração da mensagem por si mesma.” “Estilo é o aspecto do enunciado que resulta de GUIRAUD uma escolha dos meios de expressão, determinada pela natureza e pelas intenções do indivíduo que fala ou escreve.” “Estilo é o conjunto objetivo de características HERCULANO DE CARVALHO formais oferecidas por um texto como resultado da adaptação do instrumento linguístico às finalidades do ato específico em que foi produzido.” “Estilo é a linguagem que transcende do plano MATTOSO CÂMARA JR.

75

intelectivo para carrear a emoção e a vontade.” “Em sentido mais restrito, estilo é o uso AMADO ALONSO especial do idioma pelo autor, uma mestria ou virtuosismo idiomático como parte da construção. Em sentido amplo, estilo é toda a revelação do artista, é o homem.” “Estilo é o conjunto dos recursos idiomáticos AZEREDO que estruturam expressivamente a mensagem em função de seu maior rendimento semântico.” “Um estilo é isto: uma visão simplificadora e FIDELINO DE FIGUEIREDO deformadora do mundo e da vida. Um estilo literário é a expressão dum estilo de vida ou duma visão interpretativa.” “Estilo é arquitetônica da imagem em poesia, e GUERRA DA CAL de sua descrição em prosa.” “O estilo deve ser entendido como resultado da REI expressão de uma subjetividade.” “O estilo constitui a marca da individualidade DUBOIS do sujeito no discurso.”

Entendemos o estilo como reflexo essencial do homem e o os meios de expressão representados pelas palavras, produto verbal resultante da cristalização da visão do homem, da vida e da natureza. É perceptível, no processo de seleção qualitativa e quantitativa, o entendimento das razões conscientes ou inconscientes, das escolhas idiomático-estéticas, do aparato expressivo relacionado à psiquê do escritor e os caminhos para estilizar a obra.

2.4 – O valor expressivo das palavras

Na comunicação linguística, a adequação na escolha das palavras resulta em bem falar e bem escrever, com arte e razão. Entendamos a expressão “bem falar e escrever” como eficácia comunicativa. Os sentidos das palavras se mostram com pluralidade e a complexidade imanente se apresenta sob vários aspectos: os sinônimos, as repetições das palavras, as palavras abstratas, entre outros. A construção das frases e a significação das palavras carreiam uma série de associações de ideias, interferindo no efeito de sentido da produção verbal. Lapa (1998) distingue as palavras reais pela expressividade e reitera a capacidade imagética de cada sujeito na apreensão dos vocábulos. Também ressalta o poder evocativo das situações verbais e afirma a

76

impossibilidade de apenas numa palavra se compreenderem todos os sentidos. Sente-se a atmosfera sentimental em torno dos signos linguísticos, ressaltando a vivacidade da língua e a aplicabilidade em variadas situações. Por um lado, as imagens visuais, normalmente, estão associadas às imagens tácteis, simbolizando-os diretamente ou indiretamente, em alguns dos seus aspectos; por outro lado, podemos transcender à imagem, associando-lhe representações pouco prováveis para o signo linguístico. Nas palavras abstratas, pela naturalidade, não há sugestões para representações. Elementos como cor e som possibilitam as correspondências com aspectos pertinentes ao que chamamos de sinestesia e favorecem a proposta criativa da linguagem. Na significação das palavras, a aquisição do sentido se realiza no ato da frase, na condição de uso. O registro linguístico busca a significação, de acordo com as matizes expostas nos dicionários e apresenta as variedades semânticas nos discursos. Por seu dinamismo e vivacidade, há a inesgotabilidade das possibilidades de interpretação e compreensão das sentenças linguísticas. As ocorrências vocabulares permite perceber o caráter exploratório e o potencial comunicativo do usuário da língua. Segundo Lapa, “a arte de escrever repousa essencialmente na escolha do termo justo para a expressão das nossas ideias e dos nossos sentimentos” (1998:17-8). Entendemos a atenção na escolha das palavras, para melhor eficácia comunicativa, como elemento determinante para a formação do estilo. A percepção e o sentimento das expressões regem as seleções vocabulares por meio das dominantes afetiva e intelectual presentes em cada palavra e atuam na busca pelo sinônimo mais adequado, nas conotações figurativas, nos termos que melhor aludem nosso poder de apreciação da língua. A linguagem se constitui de expressões evocativas de tempo e lugar, caracterizando sua ambientação psicológica e social. As tendências nas preferências lexicais revelam a intencionalidade expressiva do escritor e o emprego de determinadas construções linguísticas possibilitam o efeito verbal. Diante da impossibilidade de elencarmos todos os temas da língua portuguesa relacionados à expressividade, selecionamos alguns, com as considerações pertinentes às análises da pesquisa, a fim de demonstrações possíveis das manifestações de estilo. Trataremos de outros fatos, à medida que as análises do corpus da pesquisa direcionarem para a explanação e compreensão do aparato da língua.

77

Dentre as palavras evocativas, classificadas por Bally: os arcaísmos, os termos dialetais, os neologismos, as expressões de gíria, além de conotarem os aspectos semânticos, se integram ao contexto sociocultural do discurso. A presença dos estrangeirismos nas diversas situações textuais caracteriza a inerência das inter-relações linguísticas e as contribuições idiomáticas para o repertório verbal dos usuários. Alertamos para o equilíbrio na apropriação das expressões estrangeiras, configurando o excesso como fator prejudicial na preservação da essência da língua. Em contrapartida, por vezes, apenas nos termos estrangeiros encontramos a necessidade da expressão, justificando a escolha e o acolhimento. Lapa sintetiza:

O estrangeirismo é um fenômeno natural, que revela a existência de uma certa mentalidade comum. Os povos que dependem econômica e intelectualmente de outros não podem deixar de adotar, com os produtos e ideias vindas de fora, certas formas de linguagem que lhes não são próprias. (...) O estrangeirismo tem vantagens: aumenta o poder expressivo das línguas, esbate a diferença dos idiomas, tornando-os mais compreensivos, e facilita, por isso mesmo, a comunicação das ideias gerais (1998: 43-4).

Ratificamos a expressividade das palavras estrangeiras, na conferência da autenticidade e do exotismo nas relações linguísticas e também o caráter sonoro do vocábulo. No emprego de algumas palavras estrangeiras, percebemos o valor pejorativo, devido à popularização da palavra ou ao uso da metáfora e da metonímia. Há termos que alcançam maior dimensão comunicativa entre os falantes, a sua aceitação significativa, expondo as evidências pela escolha. A retomada do passado, a demonstração dos hábitos e a reprodução do estereótipo na fala estão nos arcaísmos, com a recuperação da época e a conservação linguístico-cultural dos vocábulos expressos. A justificativa pela escolha se concentra na recriação da ambientação discursiva e na evocação da atmosfera passadista. Do ponto de vista estilístico, a percepção dos efeitos expressivos valida a utilização da linguagem arcaica e confirma a vivacidade da língua. É conveniente, porém, atentar para o emprego das expressões arcaicas, no tocante à conveniência do uso e, por conseguinte, ao impedimento da ridicularização da escrita. Na linguagem evocativa, a gíria concentra grandes possibilidades expressivas e assinala a intensidade dos traços afetivos presentes no estilo popular. A dimensão de seu uso demonstra a força linguístico-expressiva, o caráter de renovação e o reflexo do comportamento social. O atestado da relação léxico-semântica das gírias reside na contextualização. Em: “Os homens têm a linguagem do seu meio, da sua profissão” (LAPA, 1998: 61), apreendemos a necessidade de

78

conhecermos o vocabulário giriático, para a compreensão adequada da linguagem nas situações comunicativas. As palavras, segundo Martins (2000), estabelecem as relações emotivas na constituição dos sentidos e recebem, além da classificação evocativa, as expressões de afeto, de julgamento, de avaliação e de sentido avaliativo relacionado ao afixo. Cada matiz expressa, por meio das palavras, da entoação, dos sinais gráficos, dos grifos, dos contextos, a aplicação e a produção discursiva pretendida pelo escritor. A variedade dos meios de expressão do sistema linguístico acarreta o impedimento da plena descrição morfossintática, fonoestilística e semântico-discursiva nessa disquisição linguística. O inventário da língua abarca as unidades construtivas das mensagens ou enunciados e compreende o conjunto das regras que determinam as possibilidades combinatórias entre si. A pesquisa tentará observar as ocorrências estilísticas nos níveis estruturais da língua e destacará os fatos linguísticos relevantes no corpus. No processo de apreensão e de análise da marca específica do escritor nas construções verbais, há a percepção da pessoalidade e da carga emotiva, correspondendo às conotações. Entendemos sua definição como a carga semântica presente no emprego da palavra, mas não pertencente à experiência de todos os utentes desse vocábulo, na língua. É a prova das múltiplas situações do aprendizado das palavras e da variabilidade dos sentidos. As situações de leitura de um texto ou a contemplação de uma cena comprovam as experiências dos sujeitos e constatam a aquisição das conotações. As vivências culturais nos levam a pensar sobre as conotações partilhadas e constituintes de um tempo. Os questionamentos sobre os efeitos das produções linguísticas direcionam os indivíduos para as possíveis respostas do envolvimento subjetivo e indicam a convergência de causas linguísticas formais, mas também de causas psicológicas, psicanalíticas, históricas, culturais, sociológicas, dentre outras. Se a língua nos oferece a sua disposição criativa, novos significados surgirão e de acordo com a necessidade de expressão, haverá a incorporação de novas palavras no corpus linguístico. Martins (2000) discorre sobre as ideias de Tatiana Slama-Cazacu, abordando a constância e o impedimento da arbitrariedade dos vocábulos. A complexidade de variações semânticas das expressões se associa ao núcleo de significado convencional e constitui a base de agrupamento semântico, para a compreensão da língua. Em Slama-Cazacu:

79

A palavra é um signo sonoro, que contém um núcleo significativo, que se atualiza e se completa pelo seu aparecimento em um conjunto de linguagem concreta. As palavras exprimem a realidade justamente porque podem moldar ou completar o significado conforme a situação (apud: MARTINS, 2000: 78).

A autora distingue significado de sentido. Ao significado, assinala sua existência na palavra formadora do léxico da língua e no componente nocional. De certa forma, o significado se individualiza, alcançando dinamismo e potencialidade, e se torna o sentido, advindo da particularidade do sujeito e especificidade do contexto. Tais particularidades demonstram a visão aplicada dos conceitos nos atos de comunicação. O significado representa uma das facetas da palavra, enquanto o sentido indica a parte concreta e ampliada da língua, condicionada pelos elementos afetivos. Em torno da recriação da linguagem, destaca a riqueza das conotações, respeitando as possíveis dificuldades nas decodificações. Para Monteiro, “convém centralizar o estudo estilístico na linguagem que se desvia da norma, na que utiliza os procedimentos de escolha com a finalidade de gerar conotações ou múltiplos significados” (2005: 59). Qualquer discurso circunstanciado nas esferas da emoção e afetividade contribuirá para a expressividade linguística.

2.5 – Representações e percepções da Intertextualidade

A linguagem se presentifica em todas as circunstâncias da vida; podemos verificá-la, por meio da convenção e da organização dos signos. Os textos se constituem a partir de sinais, revelando o processo de comunicação e possibilidades de variadas leituras. A utilização da língua, pelo falante, é motivada pelo assunto, destinatário, objetivo, contexto, dentre outros. A intencionalidade revela a mensagem, adequando o sentido, a escolha, a seleção das palavras, a fim de organizar e atingir a comunicação. O critério da intertextualidade expressa a relação entre um texto e outros conhecidos de experiências anteriores do usuário, com ou sem mediação. Marcuschi esclarece a existência de “um consenso quanto ao fato de se admitir que todos os textos comungam com outros textos, ou seja, não existem textos que não mantenham algum aspecto intertextual, pois nenhum texto se acha isolado ou solitário” (2008: 129). Outra acepção sobre o termo é descrita por Charaudeau e Maingueneau que o percebem como uma “propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado

80

mantém com outros textos” (2008: 288). Os autores distinguen intertextualidade de intertexto, designando-o como um conjunto de textos ligados pelas relações intertextuais, ou seja, o grupo de fragmentos convocados (citação, alusão, paráfrase, entre outros) em um corpus dado, enquanto aquela se configura como “o sistema de regras implícitas que subjaz ao intertexto, o modo de citação que é julgado legítimo pela formação discursiva, o tipo ou o gênero de discurso do qual esse corpus provém” (2008: 289). Há distinção entre intertextualidade interna, entre discursos do mesmo campo discursivo, e intertextualidade externa, presente em discursos diferentes como, o discurso jornalístico e o discurso literário. Apontam a expressão transtextualidade, proposta por Genette (1982), atribuindo maior especificidade e restrição ao termo intertextualidade. Desse modo, Charaudeau e Maingueneau apresentam as relações transtextuais:

* a intertextualidade, que supõe a presença de um texto em um outro (por citação, alusão...); * a paratextualidade, que diz respeito ao entorno do texto propriamente dito, sua periferia (títulos, prefácios, ilustrações, encarte etc.); * a metatextualidade, que se refere à relação de comentário de um texto por outro; * a arquitextualidade, bastante mais abstrata, que põe um texto em relação com as diversas classes às quais ele pertence (tal poema de Baudelaire se encontra em relação de arquitextualidade com a classe dos sonetos, com a das obras simbolistas, com a dos poemas, com a das obras líricas etc.); * a hipertextualidade, que recobre fenômenos como a paródia, o pastiche... (2008: 289).

No trabalho didático-pedagógico sobre a intertextualidade, Valente destaca o desafio do novo milênio no processo de ensino-aprendizagem: “nossos alunos pertencem a uma geração audiovisual e menos letrada” (2008: 80). Há dificuldade de reconhecerem as relações intertextuais nos textos literários e a facilidade nos textos de referências midiáticas. Entendemos que o trabalho da análise linguística amplia a leitura dos gêneros textuais. Outra abordagem do autor é quanto à diferença entre intertextualidade e interdiscursividade. Enquanto a primeira se fundamenta nas ideias de Julia Kristeva, indicando a construção do texto como um mosaico de citações, resultado da absorção e da transformação de outro, referindo-se às relações entre eles, a segunda se concentra nas possibilidades de conexões que todo texto, oral ou escrito, mantém com os enunciados ou discursos presentes na cultura e ideologia do povo. Kristeva introduz o conceito de intertextualidade na década de 60, baseando- se no postulado do dialogismo bakhtiniano e apresentando cada texto e a formação do intertexto numa sucessão de produções escritas ou que ainda serão escritas (apud KOCH, 2007).

81

Na análise de Fiorin, os fenômenos do discurso acima descritos apresentam “duas vozes num mesmo segmento discursivo e textual”. Para ele, na intertextualidade, há um processo de união de um texto com outro, a fim da produção do sentido ou para a transformação do próprio texto. Interdiscursividade é o processo da reunião de temas e/ou figuras de um discurso em outros. Assim, a interdiscursividade não pressupõe a intertextualidade, “embora o contrário seja verdadeiro, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao discurso que ele manifesta” (2003: 35). Em Sant’Anna (1985), encontramos a intertextualidade das semelhanças, em casos de textos com referências a outros, como exemplos. Há a reafirmação dos intertextos retomados, dos conteúdos propostos e a orientação para uma leitura com forma semelhante à produção original. A capacidade argumentativa se manifesta pela incorporação do intertexto, por exemplo, o argumento por autoridade. A intertextualidade das diferenças, segundo o autor, se realiza na representação da produção escrita com o objetivo de oferecer uma compreensão diferente ou contrária, no sentido da ridicularização, demonstrando a improcedência ou colocá-la em questão, como na paródia, na ironia. Para Koch , todo texto é provido da heterogeneidade, detentora da revelação máxima com sua exterioridade. O diálogo presente entre os textos confirmam a origem, a predeterminação, as retomadas, as alusões e as oposições, nas relações com outros escritos. Segundo Bakhtin:

O texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Somente neste ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo. Enfatizamos que esse contato é um contato dialógico entre textos... Por trás desse contato está um contato de personalidades e não de coisas (1986: 162).

A intertextualidade se configura como a propriedade relacionada a qualquer texto, originária das relações dialógicas presentes na linguagem, apresentando-se de forma explícita ou implícita. Para o autor, o intertexto também é uma propriedade inerente a qualquer produção verbal humana, advinda dos conceitos de dialogismo e de polifonia textual. A concepção dialógica traz em si a propriedade da linguagem humana já que por meio dela se realiza o diálogo entre os falantes nos variados processos de comunicação. Surgem diferentes vozes no processo textual, motivando a polifonia. Para Fiorin:

82

Como ela vai chamar ‘texto’ o que Bakhtin denomina ‘enunciado’, ela (Kristeva) acaba por designar por intertextualidade a noção de dialogismo. Roland Barthes vai difundir o pensamento de Kristeva e, a partir daí, o termo ‘intertextualidade’ passa a substituir a palavra dialogismo. Qualquer relação dialógica é denominada intertextualidade (2008: 51-2).

E acrescenta:

Intertextualidade deveria ser a denominação de um tipo composicional de dialogismo: aquele em que há no interior do texto o encontro de duas materialidades linguísticas, de dois textos. Para que isso ocorra, é preciso que um texto tenha existência independente do texto com que ele dialoga (2008: 52-3).

Cabe apontar os variados tipos de intertextualidade relacionados nas produções orais ou escritas, cada qual com características próprias: intertextualidade temática, intertextualidade estilística; intertextualidade explícita, intertextualidade implícita; autotextualidade, intertextualidade com textos de outros enunciadores, inclusive um enunciador genérico; intertextualidade “das semelhanças” e das “diferenças”; intertextualidade intergenérica; intertextualidade tipológica. Apenas destacamos os tipos, sem nos determos em todas as definições e exemplificações, uma vez que consideramos relevante, nesse caso, a menção à referida classificação. Estudamos uma parte da intertextualidade, apontando as significativas representações e percepções do fenômeno linguístico-textual. É essencial o leitor ampliar os horizontes das leituras e reconhecer o diálogo possível entre as produções verbais, dando os sentidos a cada texto, a partir das próprias interpretações culturais e ideológicas.

Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo sim senhor / Quero mostrar ao mundo que tenho valor / Eu sou o rei dos terreiros / Eu sou o samba / Sou natural aqui do Rio de Janeiro / Sou eu quem leva a alegria / Para milhões / De corações brasileiros / Salve o samba / Queremos samba / Quem esta pedindo / É a voz do povo de um país /Salve o samba / Queremos samba / Essa me- lodia, de um Brasil feliz. (A voz do morro. Zé Keti) 84

3 – O SAMBA, AS TRADIÇÕES CULTURAIS E AS CONTRIBUIÇÕES LINGUÍSTICAS

Uma língua existe em função dos falantes, como possibilidade de realização em si mesma, mas são eles que utilizam e potencializam os recursos linguísticos, para a interação verbal satisfatória. Os valores culturais que caracterizam lugar, situação e tempo são registrados na memória. A língua aponta para a heterogeneidade latente, abertura, variabilidade imanente e presente no conjunto das suas manifestações. Por ser a língua ponto de encontro do sujeito com os antepassados, com aqueles que construíram e que constroem a história, mantém íntima relação com a memória coletiva dos seus partícipes, o que se comprova na manutenção das relações intrínsecas e indissociáveis entre a língua e a cultura. Falar sobre a descrição e a discussão dos caminhos e possibilidades que a história do samba vem produzindo representa uma tarefa árdua, em que pesquisadores, munidos de diferentes perspectivas metodológicas (histórica e linguística, dentre outras), obtêm resultados diversos. Algumas considerações serão feitas para servirem de base para entender o aparecimento, a evolução e a formação do samba, a partir de sua fixação no país. Salientamos aqui o papel do tráfico negreiro que aporta no Brasil, trazendo homens, mulheres e crianças de todas as regiões da África, provocando a desestruturação das famílias e reestruturação em terras brasileiras. A música, na expressão dos batuques, exerce papel importante, pois agregava, reunia os cativos, que encontravam espaço para preservarem as culturas e reerguerem as tradições no novo espaço. Nas primeiras décadas do século XX, há o preconceito ao samba, por parte de alguns segmentos das elites. A causa se localiza no tratamento de um gênero musical oriundo dos redutos negros dos bairros pobres da cidade e na classificação como “submúsica”. Como expressão de identidade cultural, o samba se configura como gênero musical com tom nacionalista, revelador de hábitos e de tradições singulares. A língua usada nas composições representa a miscigenação brasileira e a forma genuína de democratização das palavras. O caráter social dos participantes das comunidades de samba promove a aglutinação de grupos sociais, em torno da comunhão cultural. A significação política e cultural, adquirida pelo samba, exprime-se 85

nos versos dos sambistas e demonstra a força da criação coletiva, o fortalecimento do meio, o discurso das etnias. Fatores como a construção das identidades negra e carioca, o papel sociocultural do samba e as obras dos compositores oferecem a representação da coletividade, a união do passado com o presente, elementos singulares da sociedade brasileira. Nas questões identitárias do gênero, a ocorrência do reconhecimento cultural permeia as vivências, as dores, os anseios, as origens africanas, a dança do corpo e as personagens se destacam nas comunidades, mostrando as diferenças para formar a igualdade. Ao tratarmos de samba e de identidade, retornamos à segunda metade do século XX, momento oportuno de formação e fixação de uma cultura melânea, ou seja, da cultura negra e mestiça. A necessidade do negro em vender sua produção de trabalho acarretará mudanças na composição cultural brasileira. Os homens do samba representam sujeitos agentes na determinação da identidade brasileira. Notamos a crescente aceleração da urbanização e da industrialização, o surgimento da classe média e as oportunidades de lazer. De forma paralela, a vida urbana notabiliza os padrões de relacionamento entre as camadas sociais e a propagação da música brasileira amplia seus apreciadores. A compreensão das interinfluências na disseminação do samba localiza-se no cenário das duas primeiras décadas do século XX, com o destaque para Maria Hilária Baptista de Almeida, a Tia Ciata, nascida na Bahia e com africanidade latente. Em sua casa, a representação das festas multidimensiona o papel das rodas de samba, com a simultaneidade de atividades em torno de um mesmo fim: a elevação cultural dos bailes, partidos-altos e batucadas. A ambiência da roda de samba caracteriza-se pela revelação da atmosfera de encontros e formações de elos de amizade e de identidades. Ao mesmo tempo, a informalidade das conversas e o culto à sonoridade dos batuques fundamentalizam as práticas do samba e os fatos culturais, das bebidas e das comidas. A abertura para o caráter doméstico do samba reforça a sociabilidade das relações entre os sujeitos e a participação das mulheres aumenta as referências locais das festas. Percebemos, pelos exemplos femininos presentes nas comunidades, o do “feijão da Vicentina”, na Portela, e as festas de Dona Zica e de Dona Neuma, na Mangueira. As responsabilidades são repartidas: ao elemento masculino, cabe tocar e cantar; às mulheres, a preparação da casa, dos quitutes e das bebidas, estimados pelos participantes das reuniões. No traçado cultural dos lugares do samba, Roberto Moura acrescenta:

86

Nesse cenário, a casa se desenha como um espaço em que há uma hierarquia. As pessoas sabem o seu lugar e a roda, de certo modo, incorpora essa hierarquia. Na rua, ao contrário, há uma ilusão de “democracia”. Todo mundo como indivíduo, é aparentemente igual. No entanto, é na casa que ele é mais igual. (...) Outra coisa: a casa do mundo do samba tem a porta quase sempre aberta. Há um entra-e-sai contínuo e que não causa nenhum mal-estar aparente, numa intimidade que tem seu preço – uma assumida falta de privacidade incorporada aos hábitos das pessoas com total naturalidade. Tal como as casas das velhas tias baianas, a casa de Dona Neuma, na Mangueira era assim. Foi instalado lá o primeiro telefone do morro – o que dá para imaginar o quanto este poderoso instrumento de comunicação alterou a realidade cotidiana daquele espaço (2004: 39).

O sentimento da comunhão confirma-se nas relações entre as pessoas e o ambiente doméstico alcança a representação de espaço da roda que forma o sambista, com todos os benefícios proporcionados pela aura intimista e caseira. Nesse sentido, Moura corrobora: “o samba é uma formação cultural, com um leque de influências que vem atraindo desde o início do século XX os intelectuais brasileiros mais ligados às questões da identidade nacional” (2004: 40). A pesquisa tende a compreender o samba, as tradições culturais e as contribuições linguísticas como pontos de convergências de costumes, tradições, pessoas, rituais, festas e sons formadores de um mosaico da expressividade musical brasileira. A inserção do samba nos estudos acadêmicos representa a tomada de espaço e a consagração da significação sociocultural do gênero, a referência como símbolo pátrio e a possibilidade alternativa de análise das letras, dos sons, dos textos para a compreensão linguístico-textual . Pelo processo gradativo, analisamos a incorporação do ritmo na sociedade. Nos anos 30, há a promoção do samba a “símbolo da brasilidade”, durante o auge do populismo getulista. Integra-se à indústria cultural e, nas décadas de 30 e 40, levanta como tema das composições a malandragem e o ufanismo nacionalista. Na progressão, o samba carioca se apresenta desde a época das danças de batuques, passando por vários ritmos: lundus, modinhas, polca, choro, maxixe, samba baiano, samba de roda e partido-alto, samba maxixado, samba do Estácio, samba de terreiro, samba canção, samba enredo, samba de breque, samba-choro, samba sincopado, samba-bolero, bossa nova, samba funk, , até os dias atuais. Nas décadas de 50 e 60, o ressurgimento do samba e a revitalização da forma musical, não apenas como bossa nova, imprimem nomes como os de Elizete Cardoso, Dolores Duran, Paulinho da Viola, Zé Ketti, Clementina de Jesus, Voz do Morro e tantos outros, com a propagação do sucesso dos discos e das rodas de samba nos diversos pontos da cidade. Lugares representativos da comunhão e da partilha.

87

Nos anos 70, época marcante para a história do samba, aparecem, no cenário musical, intérpretes e compositores com a característica do sucesso mercadológico, como Clara Nunes, , João Nogueira, , Nei Lopes, para citar alguns. Há o reaparecimento do compositor Cartola e alguns conjuntos se evidenciam, como Época de Ouro, Galo Preto e Os Carioquinhas. Outra “safra” de compositores se apresenta nos anos 80, em plena era do rock nacional, como Zeca Pagodinho, Grupo (Arlindo Cruz), Jovelina Pérola Negra, entre outros, com o propósito de engrandecimento do samba da época. Em dias correntes, a revelação de talentos, como Tereza Cristina, Dobrando a Esquina, Sururu na Roda, Roberta Sá, atribui características dinâmicas ao samba. Outras personalidades, como Walter Alfaiate, Cristina Buarque, e Tia Surica da Portela, consagram o gênero com experiências advindas do cotidiano popular. Diante das considerações sobre o desenvolvimento e a fixação do samba nas raízes culturais e linguísticas, apontamos a valorização, a permanência e a aderência às questões da constituição de um povo brasileiro, o carioca. A percepção da vida na cidade do Rio de Janeiro mantém-se coadunada aos valores sambistas. Entender a formação da cidade do Rio de Janeiro é, por conseguinte, caminhar na trilha do samba carioca. A partilha da intimidade e a reciprocidade no favorecimento à integração dos participantes do samba permite inscrevê-lo no evento social de trocas e negociações de costumes e expressões. E, assim, a prática musical coletiva conduz as estratégias de construção das identidades e revela as simbologias dos encontros no mundo da música popular.

3.1 - O samba, seu estilo e suas relações sociais

Estilos de voz, arranjos dos instrumentos, clichês e uma série de fatores favorecem a determinação do gênero musical. Na identificação do samba, a sonoridade e o ritmo assumem a relevância plausível para a propagação das letras e das melodias. Como resultado dos ajustes instrumentais e vocais, a sonoridade configura-se como registro da criatividade dos músicos, compositores e arranjadores, em suas elaborações musicais. A apropriação de determinados instrumentos, como pandeiro, tamborim, surdo, cuíca, flauta, cavaquinho e violão, ofereceu a moldura necessária para as práticas musicais nas rodas de samba. Outros instrumentos, como

88

chocalhos, “caixas de fósforos”, “talheres”, “latas” também contribuíam para a percussão nas mixagens. A complexidade polirrítmica entre os instrumentos acresce maior nitidez na audição dos sons, dos arranjos e das vozes. Segundo Trotta:

Na percussão do samba, cada instrumento é responsável pela execução de um padrão rítmico relativamente constante, e a combinação de diversos padrões diferentes resulta em um intrincado jogo de timbres e acentos. Esses padrões rítmicos, de certa forma conflitantes, conferem à sua execução uma certa confusão, uma certa “sujeira”, que, por sua vez, caracteriza o ambiente e a sonoridade da “batucada”. Na roda, durante a batucada, os instrumentistas têm liberdade para fazer variações e improvisos à vontade, o que muitas vezes incorre em sobreposição de ataques e padrões rítmicos (2011: 65).

Em consonância a essa complexidade rítmica, a informalidade das rodas de samba se evidencia nas conversas entre os cantores, os instrumentistas e os ruídos externos. A ideia da “sujeira acústica” designa maior autenticidade ao acontecimento festivo e a transformação da sonoridade em próprio adorno musical. Outra característica da ambientação é o coro, a fim de disseminar os sentimentos comuns e a sensação de familiaridade e envolvimento musical. O canto coletivo outorga a genuidade do vigor humano e se conjuga com os sons dos instrumentos, resultando na melodia ímpar do samba. Aos poucos, mais instrumentos adquirem espaços na variedade estética dos arranjos musicais, como banjo, repique de mão e tantã. Destacamos a importância dos conjuntos de choro do início do século XX como influências para a construção dos repertórios sonoros criados no percurso do samba. Ainda de acordo com Trotta, o ritmo é o mais importante critério para a definição de uma categoria musical, destacando dois aspectos: a segmentação do tempo e a ideia de acentuação. É por meio do reconhecimento da regularidade rítmica e do estabelecimento das comparações e identificações com as referências do gênero musical que a canção adquire a classificação do gênero. Para Wisnik:

O ritmo é a forma do movimento, ou a forma em movimento, que a música dá a perceber geralmente através de um pulso, um certo batimento regular e periódico (muitas vezes apenas implícito), que serve de base a variações de motivos longos e curtos rebatidos em tempos e contratempos. Esse rebatimento pulsante depende das acentuações, dos pontos tônicos e átonos dançando o tempo, variações sutis de intensidade que definem o seu perfil e seu fluxo (1999: 66).

Na referência ao pulso contínuo, associamos a métrica e o compasso das batidas, responsáveis pelos movimentos corporais produzidos pelas músicas populares. Dessa forma,

89

entendemos o reconhecimento do ritmo do samba a partir de um padrão polirrítmico, delineado pelas possibilidades dos vários sons, melodias e instrumentos. A organização sonora do samba permite integrar a história da escravidão dos negros e de suas práticas musicais com as raízes afro-brasileiras, na produção do intercâmbio cultural e, consequentemente, no surgimento da nova identidade cultural brasileira. Sobre as composições letradas, as temáticas perpassam o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro e os aspectos socioculturais do país. As letras dos sambas funcionam como meios de expressão das transformações urbanas, revelam as críticas, as ridicularizações dos vícios e os defeitos humanos, ao mesmo tempo que caracterizam os partícipes da época com a valentia, bravura e glória das ações. A preocupação na construção dos versos se concentrava na valorização do povo e na linguagem elaborada para conceder significação aos acontecimentos sociais. Muniz Sodré reitera:

O texto verbal da canção não se limita a falar sobre (discurso intransitivo) a existência social. Ao contrário, fala a existência, na medida em que a linguagem aparece como um meio de trabalho direto, de transformação imediata ou utópica (a utopia é também uma linguagem de transformação) do mundo – em seu plano de relações sociais. Um sapateiro, ao referir-se à sua produção, opera transitivamente: ele “fala o” sapato. Assim, quando um compositor como Chico Buarque de Hollanda fala hoje do personagem “autuado em flagrante/como meliante/por cantar de madrugada/na janela de Maria/” ou do operário que “caiu na contramão, atrapalhando o tráfego”, a qualidade poética aumenta com a intransitividade do discurso (1998: 44-5).

A vivência dos compositores e as relações sociais estabelecidas no dia a dia posicionam os discursos e demarcam a postura filosófica nas palavras versadas. A identidade cultural se revela por meio da correspondência entre a significação linguística e a realidade, fruto do comportamento social, como diz Sodré: “Os compositores são marceneiros, pintores de parede, serralheiros, fundidores, mecânicos, (...) enfim membros do vasto conjunto de empregados ou subempregados que compõe as camadas de baixa renda da população carioca” (1998: 59). Ainda hoje, pelas relações sociais dos criadores musicais, fica a percepção da quase impossibilidade de ascensão econômica pelas vias do trabalho artístico. Para além das questões raciais, inscrevemos a dimensão emotiva das músicas negras, na capacidade de emocionar, sugerir, transmitir os sofrimentos, as crenças, independente da etnia do letrista, branco, negro ou mestiço. O interesse por essa linha de composição localiza-se nas temáticas advindas das raízes socioculturais africanas, do universo político-social brasileiro e da forma genuína e espontânea do português falado.

90

Em outra abordagem, o citado autor afirma que “o corpo exigido pela síncopa do samba é aquele mesmo que a escravatura procurava violentar e reprimir culturalmente na História brasileira: o corpo do negro” (1998: 11). A música e a dança mostram-se integralizadas e confirmam as relações originárias com o povo das Áfricas. Em função dos movimentos corporais produzidos pelas formas musicais, acrescentamos a elaboração dos ritmos e a concepção da dança como expansão visual da música. Com relação ao negro, a energia que se propaga com a audição dos tambores demonstra a essencialidade dos ritos e estampa, além da sensualidade, a importância do sentimento religioso. A necessidade do negro em reforçar sua identidade, não apenas como elemento produtor da força de trabalho, mas como participante da esfera cultural africana, impulsiona as manifestações sociais (danças e batuques) nos quilombos, nas plantações e nas cidades. Com o processo de crioulização ou mestiçagem, a necessidade dos negros em busca de novas estratégias para a manutenção das tradições culturais revela a premência das modificações dos batuques. O intercâmbio de elementos socioculturais demonstra a fragilidade e a necessidade de adaptações nos ritmos, a partir da segunda metade do século XIX, com o surgimento da modinha, do maxixe, do lundu e do samba. Com o advento da Abolição, várias questões econômicas se apresentam nas comunidades negras e um novo panorama étnico-social se instaura no país. Para Sodré:

Excluída a viabilidade de um modo de vida rural autossuficiente, o negro se converteu numa mão- de-obra em eterna disponibilidade, flutuando, sem definição, entre o campo e a cidade. A rigor, algo parecido também aconteceu, a partir da década de 30, com amplos setores da sociedade brasileira, na medida em que o processo de industrialização (renovador de tecnologia e acelerador de urbanização) desorganizou as estruturas agrárias tradicionais, sem criar possibilidades de empregos industriais para todos. A marginalização de largas faixas da população urbana e rural é hoje a consequência lógica desse modelo industrializador que precisa da discriminação e da exclusão sociais, para gerar o seu próprio excedente econômico (1998: 13).

Vários fatores contribuíram para a marginalização socioeconômica do negro, impedindo a ocupação no mercado de trabalho. As questões de cor, a falta de qualificação técnica e, com mais evidência, as práticas culturais, se estabeleciam como aspectos negativos para a socialização no processo industrial do país. As festas e as reuniões nas casas inspiravam a socialização entre negros e brancos e reforçavam os laços étnico-religiosos. Muitos lares pertenciam às famílias baianas dos bairros em torno da Praça Onze (Saúde, Matacavalos e Lapa) e os chamados tios e tias ministravam os cultos de fé e os encontros do samba. A casa de Tia Ciata serve como representação da força musical

91

em favor das lutas contra o preconceito racial, advindo da Abolição. Um espaço repartido e, como diz Sodré, “segundo depoimentos de seus velhos frequentadores - tinha seis cômodos, um corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas, realizavam-se bailes (polcas, lundus, etc.); na parte dos fundos, samba de partido-alto ou samba-raiado; no terreiro, batucada” (1998: 15). Vários nomes ligados ao candomblé (Mãe Aninha, o babalaô Benzinho) assentados nas imediações da Praça Onze (Saúde, Santo Cristo, Morro da Conceição, Gamboa) confirmam o crescimento da comunidade baiana na cidade. Em 1876, Tia Ciata, juntamente com outros baianos, serão os responsáveis por disseminar o samba pelo Centro da Cidade e Zona Sul (Laranjeiras, Glória e Catete). A fixação dos traços culturais africanos se estabelece pela preservação das práticas associadas ao mundo do negro e dos baianos. Outros nomes importantes, como Perciliana Maria Constança, a Tia Perciliana, e Amélia Silvana de Araújo, a Tia Amélia do Aragão, mãe do compositor Donga, representam a manutenção dos elos sociais, com suas casas, verdadeiros centros de convivência da cultura do samba. Roberto Moura descreve a casa de Tia Ciata:

Aberta a porta, havia uma grande sala de visitas, com uma única janela para a rua. Na sequência, um enorme corredor dava acesso aos dois quartos principais da casa. O corredor, coberto por uma claraboia que garantia a luz natural da habitação, desembocava na sala de jantar, quase do mesmo tamanho da outra. Nesta, havia uma porta que levava à cozinha e uma outra, que dava no quintal. Curiosa, a cozinha, com três saídas. Uma para a sala, outra para o quintal, a terceira para o terceiro quarto, que se ligava diretamente ao banheiro (também com duas portas, podia-se ter acesso a ele diretamente do quintal). Ao fundo de tudo, um velho tanque de lavar (2004: 62).

Lá surge o primeiro samba, Pelo Telefone, uma criação em parceria dos frequentadores do reduto e que se converteu numa espécie de símbolo do nascimento do moderno samba carioca. O ambiente interno com canções, bebida, comida e alegria representava a exaltação da popularidade no cenário musical brasileiro, rompia com a segregação dos espaços, transformando a rua numa extensão da casa e tornando o espaço particular o espaço público de celebração da música e da cultura. Dois fatores são importantes nesse processo de expansão do samba: a perseguição dos policiais e a receptividade de setores da classe dominante. O interesse de Tia Ciata em promover a interação entre os frequentadores das festas levava pessoas a experimentar situações desprovidas dos preconceitos sociais. Na roda de samba, as diferenças étnicas, culturais, políticas e sociais se dissipam. Na realização de suas atividades comerciais, como vendedora de doces, de roupas de baiana e festeira, exercia função agregadora das classes sociais. Para Moura:

92

Se torna folclórico para alguns assistir a um pagode na casa da baiana, onde só se entrava através de algum conhecimento. Do mesmo modo, passa a interessar à alta sociedade da época a consulta com os “feiticeiros” africanos, como eram estereotipados aqueles ligados aos cultos negro- brasileiros [...], e mesmo a frequência aos candomblés, mais fechados à curiosidade de estranhos. A partir dos conhecimentos do marido [funcionário público nomeado pelo próprio presidente Wenceslau Brás] e de seu prestígio no meio negro, reconhecido mesmo fora dele, Ciata começa a manter relações com gente do outro lado da cidade, a ponto de eventualmente contar até “com os seis soldados do coronel Costa”, que ficavam garantindo dubiamente a festa africana, provavelmente alguns deles negros, o que dá maior espanto à situação (1995: 101).

A representação social e ideológica da casa imprime sua configuração como terreno de revitalização das raízes africanas e, ao mesmo tempo, ambiente de remodelação dos negros para a vida urbana. Há o redimensionamento da expressão do samba, deixando de ser apenas símbolo de um grupo social desfavorecido, para adquirir o formato de instrumento de luta pela qualidade de vida da raça negra no panorama social brasileiro. Mudanças políticas e sociais acontecem no início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro, surgindo na Cidade Nova o encontro de diversas influências – negra baiana, negra carioca, portuguesa, entre outras – e o nascimento do samba carioca, ganhando a denominação moderna de “samba de morro”, aproveitada pelas escolas de samba da época. Os lugares da difusão cultural do samba apresentam o caráter aglutinador das manifestações sociais, raciais e ideológicas. A Praça Onze (antigo Largo do Rocio Pequeno), na Cidade Nova, se notabiliza, na virada do século XX, como locus dos sambistas, e assume a caracterização de espaço da interlocução dos sujeitos. Torna-se ponto de encontro das pessoas pobres da Mangueira, Estácio e outros morros, com a proposta de defesa pela gênese e desenvolvimento da tradição do samba. A expressividade das formas religiosas permeia o universo dos negros, alcançando representatividade na integração entre os sujeitos e no dinamismo dos hábitos, costumes, palavras, expressões, ritos, mitos. O canto, a sonoridade, os batuques congregam não só os corpos daqueles que participam das festas e das reuniões, mas as almas, os sentimentos e as histórias preservadas pela cultura negra. Os terreiros, locais litúrgico-culturais dos descendentes africanos no Brasil, se constituem em centros de divulgação dos rituais religiosos, das danças brasileiras, de cantos profanos e recebem denominações distintas, de acordo com a região brasileira. Para Amaral:

Candomblé (de origem nagô) na Bahia; Macumba no Rio de Janeiro; Xangô em Pernambuco e em quase todo o Nordeste, nos quais o tambor usado é chamado de ilú; Jurema em Pernambuco; Babaçuê no Pará e Amazonas; Batuque no Rio Grande do Sul; Candomblé de Caboclo (quase extinto) em Pernambuco e na Bahia; Tambor no Maranhão e Umbanda e Quimbanda (com influências do Catolicismo e Espiritismo) no Rio de Janeiro (2010: 59).

93

Nei Lopes expõe a relação íntima do samba com a religiosidade africana e localiza, na história do samba, o momento da transmutação do nomeamento terreiro para quadra, reforçando a inserção da classe média na ambientação popular. A mudança se configura com relevância pelo fato de a palavra terreiro ser de origem africana, representar o mundo do negro brasileiro e confirmar o lugar das manifestações afro-brasileiras de cunho religioso. O autor ressalta a importância das relações de identidade humana com os elementos religiosos, para refletirmos sobre a representatividade social do lugar do samba e do candomblé (ELIAS, 2005).

3.2 – O Rio de Janeiro: cenário do samba

A definição geográfica do samba, na cidade do Rio de Janeiro, apresenta elementos políticos e sociais relevantes para o entendimento da motivação populacional, com o crescimento dos morros e dos subúrbios. A extensão da linha ferroviária da Central do Brasil até Santa Cruz e a inauguração da Avenida Automóvel Clube são marcos da expansão do samba nas residências, bares e bairros do subúrbio carioca. Como revelação do “berço” do samba carioca, a Praça Onze e as imediações representam o centro de valorização, expressão e transformação da cultura negra. As festividades eram realizadas à base de candomblé e de batuques, e músicos da época frequentavam as reuniões, como Donga e Pixinguinha. Confirma Nei Lopes:

É por esse momento que se estrutura, a partir da zona portuária e estendendo suas ramificações até a Cidade Nova, a comunidade afro-baiana, que Roberto Moura denominou “A Pequena África do Rio de Janeiro” (1983: 46). A expressão popularizada por Moura se baseia numa afirmação de Heitor Prazeres, segundo o qual a Praça Onze de seu tempo era uma “Pequena África”. Mas observe-se que o sambista se referia ao carnaval da Praça e não ao cotidiano da Cidade Nova, região de que o antigo logradouro era o Centro, e que abrigava também imigrantes italianos e uma coesa comunidade judaica. (...) A partir de Roberto Moura, então, foi que a expressão “Pequena África” começou a designar – exageradamente, para alguns – a comunidade baiana estabelecida, a partir dos anos de 1870, na região que se estendia da mencionada Praça Onze, passando pela estação ferroviária de Dom Pedro II e chegando até a Prainha, atual Praça Mauá. Compreendendo as antigas freguesias de Cidade Nova, Santana, Santo Cristo e Gamboa e constituindo-se em polo concentrador de múltiplas expressões da cultura afro-brasileira, da música à religião, a “Pequena África” foi o berço onde germinou o samba urbano (2008: 45-6).

Em seguida, expõe a seguinte visão sobre a cidade do Rio de Janeiro:

94

A velha praça foi deixando oficialmente de existir ao longo dos anos 50 e 60, mas permanece como símbolo da afro-brasilidade em terra carioca. Onde outrora existiu, ergueu-se, nos anos 80, um monumento a Zumbi dos Palmares e, em suas cercanias, foi construída a pista de desfile das escolas de samba (2008: 46).

Os bairros do Estácio, Tijuca e o Morro da Mangueira se configuram como redutos dos bambas cariocas, aqueles que delineiam caminhos rítmicos do samba no Rio de Janeiro. A região do Estácio compreende o mangue de São Diogo e os Morros de Santos Rodrigues, de São Carlos, do Catumbi, e o Largo se sobressai como “ponto de reunião, de noitadas de samba de , violão, prato-e-faca, palma-de-mão e muita cantoria improvisada, brigas e criação de sambas”, conforme registra Nei Lopes (2008:50), baseado no artigo de Francisco Duarte (JB, 12/02/79). Acrescenta:

Ali, entre 1923 e 1930 – arremata o jornalista – entre o Largo do Estácio e a subida do Morro de São Carlos, nas esquinas das Ruas Machado Coelho e Estácio de Sá, no Beco D. Paulina, subida da Rua Maia de Lacerda ou descida da Pereira Franco rumo à zona do meretrício, nasceu o samba carioca, o samba urbano que hoje conhecemos (2008: 50).

A ocupação da Mangueira alcança dimensão, a partir do incêndio no Morro de Santo Antônio e da derrubada das casas próximas à estação férrea. No fluxo habitacional, vários migrantes mineiros e fluminenses também estabelecem residências no local e participam da formatação do partido-alto em Mangueira, da propagação das rodas de batucada e pernada. Próximo à Quinta da Boa Vista, o Morro do Tuiuti, no Segundo Império, já era habitado. Nei Lopes, baseado na reportagem de Ana Maria Bahiana (JB, 01/03/81), relata que segundo Francisco Ramos, “o Salim, vice-presidente do G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti em 1981, sua bisavó, ‘africana, da Bahia, e mãe-de-santo’, contava ter visto, várias vezes, a família imperial, em dias de festa, aparecer nos jardins do palácio para distribuir dinheiro e roupas para o povo” (2008: 52). No século XIX, o bairro da Tijuca, conhecido como Andaraí Pequeno, com os Morros do Salgueiro, do Borel, da Formiga e dos Macacos, representa o lugar seguro da preservação e da propagação da cultura do negro e do samba. Lopes registra a fundação das fábricas de tecidos, com o serviço de estamparias, a Fábrica das Chitas e a fábrica de rapé e tabaco, conhecida como Fábrica do Borel. Por essa época, transformações sociais caracterizam a vida na região, a expansão demográfica se evidencia, ruas são abertas, nomeadas pelos proprietários das terras:

E esse arruamento pioneiro é o primeiro traço de uma tendência que vai se difundir a partir do ano de 1870 quando, experimentando uma acentuada decadência econômica, principalmente por causa do café, e vendo crescer a demanda de habitações no bairro, mormente por parte da massa

95

trabalhadora das fábricas recém-inauguradas, os grandes proprietários começam a lotear suas terras. É assim que, com a morte do Conde de Bonfim e de seu filho, o Barão de Mesquita, o genro deste, Barão de Itacuruçá, loteia a Chácara do Trapicheiro. E é assim, também, que é loteada a Fazenda do Macaco, em 1874, dando origem ao bairro Vila Isabel, que na virada do século vai ter, como polo de atração, a fábrica de tecidos Confiança e a vizinha América Fabril, no Andaraí. Nesse momento histórico, como já vimos, acentua-se vertiginosamente a decadência da lavoura cafeeira no Vale do Paraíba e zonas vizinhas. Assim, atraídos por melhores oportunidades de trabalho, seus habitantes, negros livres e ex-escravos em sua maioria, começam a migrar para o Rio e a se estabelecer também na zona da Tijuca, que já possui fábricas e residências aristocráticas e burguesas, necessitando de mão-de-obra subalterna. Então, por volta de 1885, começam a chegar, com suas crenças, com suas tradições, com sua cultura, enfim, de Miracema, Cantagalo, Vassouras, Itaperuna, Santo Antônio de Pádua etc., os primeiros habitantes do futuro Morro do Salgueiro, cujo nome se deve a Domingos Alves Salgueiro, que, já pouco além de 1900, é o mais próspero de seus moradores, dono de vastas extensões de terra, do único comércio local e mesmo de uma fábrica de conservas na Rua dos Araújos (2008: 52-3).

Há ocupação de morros, como o Borel e a Formiga, por pessoas de outros estados, em busca de emprego nas fábricas ou nas casas dos burgueses. Em cada lugar da região tijucana, aparece a autenticação de personalidades responsáveis por coadunar a cultura africana (costumes e religião) ao mundo do samba. Dentre elas, destacamos, na Mangueira, Fé Benedita de Oliveira, a Tia Fé, da Bahia; no Salgueiro, Manuel Laurindo da Conceição, o Neca da Baiana, de Valença, Rio de Janeiro; Joaquim Casemiro, o Calça-Larga, de Miracema, Rio de Janeiro; Geraldo de Souza, o Seu Geraldo do Caxambu, de Minas Gerais; Paula da Silva Campos, a Paula do Salgueiro, de Cantagalo, Rio de Janeiro (LOPES, 2008). Quanto à fixação do samba no subúrbio carioca, as relações sociais desenvolvidas definem e redesenham a paisagem urbana, a imagem da cidade, permanecendo impregnadas de significações construídas e modificadas pelas experiências vividas no plano social. A memória do Rio de Janeiro não está presente apenas nas lembranças das pessoas, mas nas ruas e nas avenidas, nos espaços públicos. O caráter histórico das expressões “subúrbio” e “suburbano” permite localizá-las além do espaço da cidade, incorporadas nos sentidos, imagens e sentimentos associados ao modo de vida, às moradias, às práticas culturais e às relações sociais e históricas. A potencialidade expressiva dessas palavras reside nos significados das experiências pessoais e no conjunto histórico dos espaços e modos suburbanos, não há dissociação entre o locus e o modus vivendi, dado o entrecruzamento dos sentidos e das experiências históricas dos sujeitos, segundo Maciel (2010). As considerações acima permitem entender, de acordo com a evolução dos sentidos linguísticos, a correspondência semântica adquirida ao longo dos séculos XIX e XX associada à “carga histórica de preconceitos e discriminação social da pobreza na cidade, da ausência de

96

direitos, e até um sentido muito particular de ausência de refinamento de hábitos, falta de bom gosto ou civilidade que seriam próprios, característicos ou quase inerentes aos moradores” (MACIEL, 2010: 193-194). Ressaltamos a utilização do termo “subúrbio” por jornais e cronistas, até o início do século XX, com referência a quaisquer áreas de expansão da cidade. Nelas, incluem-se Botafogo, Leme e Copacabana. O fator de determinação do espaço como suburbano não se relaciona ao tipo de ocupação ou uso do local. A qualificação se atribui ao distanciamento do Centro da cidade e à ausência dos símbolos do poderio econômico: iluminação pública, água, transportes, arruamento, estilo arquitetônico. Sobre a questão, Maciel esclarece:

Progressivamente habitados por moradores bem-nascidos, os então subúrbios ao sul da área central foram incorporados à cidade, transformaram-se em bairros, enquanto as regiões ocupadas pelos pobres continuaram a ser chamadas de subúrbios, mesmo após a aquisição de infraestrutura urbana. Essas questões em torno do processo de criação e circulação de significados e valores para e sobre o subúrbio remetem a uma rica reflexão proposta por Raymond Williams sobre a necessidade de problematizar a história das categorias e das palavras com as quais trabalhamos para compreender como elas “foram e são historicamente construídas, vividas e destruídas” (2010: 196).

A incorporação de outros sentidos, opostos aos originais, dos conceitos relacionados à vida suburbana leva não somente à procura dos significados ou definições, mas à compreensão das transformações relacionadas ao percurso histórico-social dos bairros. A linguagem como prática social pressupõe a compreensão e a interpretação da realidade do subúrbio como espaço da pluralidade e das diferenças, de variadas relações de dominação e de cooperação. Consideramos a importância da história construída pelos moradores das freguesias distantes, rurais, na definição dos rumos sociais da cidade, e as opiniões, os valores e as necessidades calados sob a ótica daqueles que consideravam os sujeitos locais como “problemas” (pela precariedade das moradias, das doenças). No registro da paisagem carioca, destacamos dois autores, segundo Elias:

Tanto Lima Barreto quanto João do Rio não se detiveram apenas na moderna cidade que surgia, mas também na cidade que havia desaparecido, a dos sobrados coloniais, quiosques, mafuás, tipos populares como vendedores ambulantes e colhedores de carvão. A obra de Lima Barreto procura retratar “outra” cidade, a do mundo suburbano, bares, cortiços, cabarés e trens por onde vai transitar na busca por um perfil para a “cidade ignorada”. O subúrbio irá assumir em sua obra uma outra dimensão, aparecendo como articulada à própria identidade nacional. “Vejamos como é que o autor constrói a sua argumentação. ‘Nós não nos reconhecemos’, diz. E essa ausência de autoconhecimento, ele a explica pela nossa crença cega nos modelos cosmopolitas. É como se tivéssemos medo de entrar em contato com a nossa própria identidade, porque ela simplesmente destoa do modelo externo. Nós não nos reconhecemos a não ser pelos olhos e ideias dos outros. Assim, antes de termos existência histórica própria, já éramos uma ideia europeia. O subúrbio, para Lima, é a verdadeira nação, em contraposição à outra parte da cidade

97

“inventada” pela elite. O morador da Zona Sul é aquele que não quer ver o Brasil com a sua verdadeira face. O brasileiro, para ele, era o suburbano. Portanto, para Lima Barreto, esta divisão em duas cidades somente seria possível pela atuação das elites que reforçavam esta divisão, pois esta não era de modo algum natural, mas tão-somente o resultado de uma segmentação por forças de movimentos políticos destes grupos (2005: 99-100).

A peculiaridade das observações dos autores nos aproxima da imagem suburbana da época e constata a necessidade de reconhecimento identitário do morador do subúrbio. Para Lima Barreto, o típico sujeito dos bairros representava a nacionalidade, em sua total expressão, e a oposição apontada nas obras entre o violão e o piano consagra a confrontação metafórica dos embates das camadas populares contra o preconceito e a perseguição às atividades culturais do samba, ao candomblé e à capoeira. Rio, além de expor a sociedade carioca moderna, revela a importância do homem que circula pelas ruas da cidade e observa o universo popular em contraponto ao burguês. Para Elias (2005,101), “A rua, para João do Rio, é o ponto máximo da simbolização do viver moderno; os seres que por ela transitam se constroem e discutem as suas existências, definem relações, criam hábitos e valores”. Na revelação do subúrbio como ataque à modernidade, aos traços franceses das elites dominantes, surgem os sambas de protestos. A zona suburbana é o lugar da espontaneidade e da liberdade de expressão política, social e cultural do Rio de janeiro. Em respeito à presença temática nas letras dos sambas, Elias arremata:

Portanto, o subúrbio e o morro serão constantes na canção popular brasileira, onde as camadas sociais que os habitam irão encontrar na verve dos sambas, maxixes, lundus e outras expressões artísticas a exteriorização de suas vivências por meio dos tipos populares, as idiossincrasias e os signos de suas almas retratados. Os morros e subúrbios, como lugares de exclusão e união dos grupos segregados, irão compor a alma da canção popular brasileira (2005: 106).

Noel Rosa representa Vila Isabel, com mais de duzentas composições, 90% compostas por sambas (MOURA, 2004) e que traceja os tipos sociais suburbanos na tentativa de retorno às origens, rejeitando a modernidade, por considerá-la uma forma de aprisionamento. Traço importante na trajetória dos compositores, como em Noel, é a devoção amorosa pelo samba, assinalada em todas as fases, subgêneros, estilos, escolas e variações. Há uma dedicação coletiva à exaltação do gênero, caracterizando o envolvimento daqueles que instituem a roda de samba como local sagrado para estabelecimento das relações culturais do povo. A formação dos valores sociais, das normas de condutas e dos modelos comportamentais inscrevem-se no fato do samba como reunião social, movimentos de danças, práticas de criação e improviso dos versos, local do

98

canto, da contemplação auditiva, dos quitutes, das bebidas, em suma, da interação de diferentes raízes. Moura (2004) destaca a importância do bairro da Penha na propagação da música brasileira no tempo anterior à hegemonia do rádio e do disco. A “Festa da Penha” torna-se espaço propício para as manifestações litúrgicas, advindas das tradições portuguesas, mas adquirindo os adornos do cotidiano carioca. Uma comemoração sincrética e ecumênica, com participação de vários elementos da cultura carioca que, com o passar dos anos, mostra o enfraquecimento da cultura branca portuguesa, para dar espaço à produção dos sambistas negros e mestiços. Um misto de religião e cultura popular, a festividade do bairro retrata, nas primeiras décadas do século XX, importante cenário de concentração e potencialização dos precursores do mundo do samba carioca. Com a institucionalização das escolas, a consolidação do mercado fonográfico e a expansão do rádio, há o enfraquecimento da Penha como lugar de principal difusão do samba. Traços da modernidade tornam-se aparentes, ao longo do século XX, impulsionados por movimentos sociais, fatores históricos e culturais. O processo de urbanização e saneamento na cidade movimenta a população em direção à Zona Norte, para as encostas dos morros e proximidades. As entidades carnavalescas surgem no cenário do advento do cinema falado e da comercialização da atividade musical pelas editoras. A música popular, por meio do samba, inicia o processo de veiculação de artistas. Segundo Nei Lopes (2008), entre 1917 e 1929, há o ciclo da canção carnavalesca, com o samba alcançando o status de principal gênero musical brasileiro. Entre os anos 20 e 40, aparece um tipo de samba intitulado “moderno”, com a alcunha de “bamba”, oriunda do quimbundo mbamba, significando algo como “mestre consumado, muito exímio e sabedor”, distanciando-se das origens rurais e africanas. Registramos, na época, a fundação do Bloco Carnavalesco Deixa Falar, primeiro a se autodenominar “escola de samba”. Outras entidades do samba carioca são apontadas por Nei Lopes: “em 1923, em Oswaldo Cruz, quando do surgimento da atual Portela; em 1928, em Mangueira; em 1932, no Santo Cristo, berço da revivida Vizinha Faladeira; e no Morro do Borel, nascedouro da Unidos da Tijuca” (2008: 160). Nesse tempo, chamam atenção três fatores sociopolíticos determinantes para a mudança do cenário do samba no Rio de Janeiro. O primeiro se relaciona à crise do capitalismo mundial, iniciada em 1929, provocando a migração das populações rurais brasileiras. Em seguida, a

99

inauguração da Rodovia Rio-Bahia, facilitando outro fluxo migratório. Por fim, a garantia de Leis Trabalhistas estimula a vinda de mais migrantes interioranos. Tudo colabora para que os conflitos entre a tradição e a modernidade se instaurem nos espaços do samba, evidenciados pelo choque entre o samba-de-roda baiano e as quadras. Moradores novos, gente diferente, culturas diversas, enfim, um novo Rio de Janeiro se configura a partir da impressão que os “novos” cidadãos cariocas também demarcarão em seus espaços. Para entendermos as mudanças de formato do samba e as características do samba de roda, atentemos à historiografia desde a casa da Tia Ciata, passando pela Penha, atravessando Oswaldo Cruz até chegarmos ao Cacique de Ramos, reduto dos novos sambistas. Moura assinala: “O que o Cacique de Ramos fez foi reinventar a tradição, entregando-a aos sambistas mais jovens numa versão renovada, mas com absoluto respeito pelos que moldaram a história do samba” (2004: 202). Entendemos o esforço da agremiação na tentativa de reconstrução, renovação e revitalização dos sambistas, a partir dos anos 70, com o começo efetivo das rodas de samba, às quartas-feiras. Vários sambistas surgem nesse lugar de exaltação da cultura popular e despontam para o mercado musical: , Jorge Aragão, Sombrinha, dentre outros. Diante da abordagem histórico-geográfica do samba no Rio de Janeiro, apontamos alguns aspectos sociais e políticos importantes para o entendimento das relações entre os espaços e os participantes da vida carioca. Nomes, como: Silas de Oliveira, Zé Ketti, Luiz Carlos da Vila, Candeia, João Nogueira, Martinho da Vila, Wilson Moreira, Nei Lopes, Arlindo Cruz, dentre tantos, cumprem o exercício de devoção à cultura do samba e preservam a essência do gênero. No compasso da identificação cultural do samba com o Rio de Janeiro, refletimos sobre o carioca da Praça Onze ao subúrbio, observamos as nuanças provocadas pelos elementos oriundos das culturas africana, baiana, interiorana e local formadoras do “mosaico” étnico-social das classes da cidade e esboçamos alguns fatores reiterados por Moura:

Persiste, como sempre, o velho embate entre a tradição e a raiz, de um lado, e modernidade e descaracterização, de outro. O samba, em sua história, vem trafegando dialeticamente na mão dupla dessa estrada. Na contramão, como uma carreta de frente, estão as habituais injunções da indústria do disco, a inserção midiática (primeiro, no rádio; depois, na tevê; hoje, também na Internet) e a crença dos que rezam cegamente pela cartilha do deus mercado (2004: 250-1).

Por fim, temos a representação do samba como elemento de resistência cultural, de leitura da história da música negra, de discurso tático de ideologia oposta ao modo de produção dominante, de movimento de continuidade e afirmação dos valores culturais negros. A

100

identificação do samba com sua origem racial não decorre, com exclusividade, da proximidade filosófica, hereditária e social. Na vida do sambista carioca, na alma da cidade, encontramos elementos característicos da ancestralidade da música dos ritos africanos na prática sociomusical do samba.

3.3 - A identidade cultural do carioca

Elias (2005) propõe a simbologia do carioca em três distintas fases, baseado nas ideias da historiadora Regina Abreu (2000). No primeiro momento, situa o tempo colonial, após a fundação do Rio de Janeiro, demarcando os elementos étnico-culturais, o branco e o indígena, nas relações de convivência. Nos períodos históricos do Primeiro Reinado, a Regência e o Segundo Império, destaca o fluminense, a figura distintiva dos homens da cidade e da Província, inaugurando a segunda fase. Com a República, indica a necessidade do estreitamento dos elementos de civilidade entre os cidadãos cariocas, no sentido de afinar os acordos sociais da época. No século XIX, a identificação da música como elemento fundamental na formação da identidade revela a cidade desse tempo como lugar das diferenças sociais e ideológicas. De um lado, as elites apresentam as influências europeias, rejeitando qualquer traço de mestiçagem; do outro, um grupo tentava formar os caracteres para o modus vivendi do carioca, na discordância dos preceitos modernos. A ideia do planejamento urbano, após os movimentos da Abolição e da República, conduz à reforma estrutural da cidade, não respeitando os limites culturais, religiosos, políticos estabelecidos no cotidiano da população. Os escritores da época tentam a reafirmação das características originais das ruas e dos tipos populares, almejando a conciliação de uma escrita estética aprofundada na defesa da popularidade e da democracia. As vozes dos cidadãos presentes nos bondes, nos cafés, nas ruas estão representadas nas personagens das crônicas e revelam a denúncia de um mundo moderno alheio aos cuidados pelos pobres e excluídos. Outra questão se concentra na não homogeneidade do carioca, com as diversidades de habitantes e culturas estabelecidas pelos imigrantes e migrantes, as mudanças no cenário político e econômico, alterando a geografia humana e social da população. Ao ratificar a associação da identidade com as questões étnicas, religiosas e culturais, Elias explica:

101

A identidade nacional e a identidade carioca foram construídas como resultantes desse processo, em um período que se tornou mais intenso a partir do novo rumo tomado pelo Estado Brasileiro com a República. Até porque este período é importante para o entendimento da construção identitária brasileira, principalmente no que se refere ao entre-guerras na década de 1920. Os acontecimentos dos anos 1920 são fundamentais, para o entender essa questão, pois, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), inaugura-se uma nova fase no processo do entendimento do referencial mundial europeu como exportador de cultura. Isto, porque a Europa, principalmente a França, perdeu o prestígio e poder de influência sobre a cultura mundial (aí incluída a cultura brasileira). O período conhecido como Belle Époque (1885-1918), chegara ao fim. Até então, a influência francesa era marcante em nossa sociedade, mas com o fim da guerra, muito desse ideal francês de civilidade se perdeu, dando lugar às incertezas. A ideia de uma Europa como centro do mundo já não encontrava sustentáculos plausíveis para se manter. Portanto, uma mudança de paradigma começou a delinear uma ideia de que o futuro estava no novo continente: a América. A Europa, então, passara a ser vista como um velho continente em decadência, enquanto a América era o novo continente, com um futuro promissor. A partir destas transformações é que se começou a acreditar na só no futuro da América, mas também no futuro do Brasil. Especificamente no Brasil, começou a haver a constante preocupação de se criar uma nação. Nesse aspecto, os intelectuais tiveram um papel preponderante, principalmente os envolvidos no movimento modernista (2005: 103-104).

A análise do autor permite o entendimento das letras de samba criadas na época em ataque às referências francesas, elitistas e apartadoras das classes e raças. Mais uma vez, o subúrbio se apresenta como espaço da espontaneidade, das vozes cariocas, da brasilidade, do samba negro. Trotta (2011), na análise das origens do samba, assume a existência da complexidade na associação da música popular com as identidades étnicas e relaciona o efeito “popular” à prática cultural decorrida das práticas dos sujeitos (sociais, culturais, musicais) nos centros urbanos. A dificuldade de se firmarem determinados valores a todos os sujeitos reside na abrangência da música popular, respeitando as peculiaridades de cada cidadão. A identificação do samba como prática majoritária de negros comprova as origens dos batuques e da cultura africana. O samba, como gênero de música popular urbana, segue caminhos de afirmação social das populações descendentes de escravos e revela a luta por melhores condições de vida e trabalho. Na aliança da música com a identidade, variações de graus e níveis. Trotta esclarece:

O que vale destacar é que a utilização da música popular como demarcadora de identidades sociais e étnicas traz para essa prática uma acirrada disputa quase sempre recheada de vaidades, preconceitos e estereótipos que caracterizam a arena simbólica dos conflitos sociais. E é nessa disputa que a categoria samba se insere no mercado e no imaginário nacional (2011: 75).

Com relação à identidade cultural do carioca, o samba aparece num período de mudanças significativas da capital federal da época e de implementação da “indústria cultural” do país. A população altera comportamentos no cotidiano, em função da chegada de ex-escravos e

102

seus descendentes, alocados em cortiços e moradias no bairro da Saúde e, após a reforma de Pereira Passos, em 1904, na Cidade Nova e arredores. A aglomeração social instaurada nos espaços promove as mais variadas práticas socioculturais lideradas pelos negros baianos, na tentativa de preservação das tradições. Os ranchos, anteriormente típicos lugares da congregação entre festa e religião, perdem o caráter religioso, após a ascensão do carnaval. Os rituais de candomblé, rodas de batucada, samba e partido-alto marcaram momentos de relevância social para os negros e mulatos, em especial, no carnaval, encontro da população marginalizada mestiça com a sociedade branca (SODRÉ, 1998). Trotta ressalta que “o samba não é negro, nem nacional, nem carioca, baiano, urbano, do morro, do Carnaval. Ele é um produto cultural que pode atuar como deflagrador de uma identidade nacional, negra, carioca, etc.” (2011: 81). Há a percepção da construção da identidade nacional, de acordo com o que o samba gerou como sinopse no mercado musical, mantendo as potencialidades de identidade étnica. Explica o conceito:

Para que elas sejam evocadas ou estabelecidas, é necessário que o sujeito da ação se sinta pertencente a este ou aquele grupo identitário e que utilize o samba para demarcar seu elo de identidade. É preciso que esta música seja empregada como um recurso para dizer quem você é e usada ‘para interpretar quem as outras pessoas são ou o que uma comunidade aspira’ (SEEGER: 1992, 3). Nesse instante, a narrativa de identidade a partir da música evocará um sentimento de identidade que pode se referir a componentes étnicos, geográficos, sociais ou nacionais. No caso do samba e da grande maioria das músicas populares urbanas, a construção identitária vai se tornando cada vez mais complexa e se adaptando à medida que o gênero vai ultrapassando as fronteiras culturais e se tornando parte da cultura nacional, veiculado pelo rádio e pelo disco para a totalidade da população (2011: 81).

A consolidação do samba como gênero de música popular na cidade do Rio de Janeiro conserva ambientes distintos de circulação: a roda e o mercado. A propagação das letras faz com que a melodia saia das vozes dos sambistas da roda para os discos das vitrolas. A exaltação do gênero acontece nas favelas, nos morros e bairros, permitindo a construção da simbologia e dissociação do ambiente de malandragem e marginalidade. É mister o destaque para a legitimação da identidade negra e o preconceito configurado nos termos nas canções. As ocorrências discursivas se materializam sob “a égide da miscigenação democrática e supostamente feliz de uma ‘gente bronzeada’ (Brasil Pandeiro, de Assis Valente), que vinha para a ‘cidade’ (Cidade mulher, de Paulo da Portela) ‘mostrar o seu valor’ (Brasil Pandeiro, de Assis Valente)”, informa Trotta (2011: 85-6).

103

Outro traço da aura sambista carioca diz respeito à evolução dos grupos organizados: “inicialmente a Deixa Falar era um Rancho Carnavalesco, posteriormente Bloco Carnavalesco e, por fim, Escola de Samba” (AMARAL, 2010: 52). Alguns dos fundadores são compositores do Estácio, entre eles Ismael Silva, Alcebíades Barcelos (Bide), Armando Marças e Mano Rubem (Rubem Barcelos), Buci Moreira, Mano Elói, Nilton Bastos, Aurélio Gomes, Baiaco (Osvaldo Caetano Vasques), Brancura (Sílvio Fernandes) e Mano Edgar. Até a década de 60, todas as escolas são coordenadas e planejadas pelos sambistas. Com o processo de profissionalização, os desfiles tornam-se atividades lucrativas para as agremiações, o poder público, a economia da cidade e para a recém-inaugurada televisão. Há o processo de mutação em diversas práticas, por exemplo, deixando o lugar da espontaneidade, da liberdade criativa, da roda, para se dedicar às competições dos desfiles. O processo de modernização se instaura e as composições passam a criticar o abandono das marcas originárias do samba, em função da nova forma de apresentar as composições pelas escolas. A tradição, a herança cultural e a consciência coletiva são elementos cultivados pelos antigos, com a intenção de preservar o diálogo com o passado. No que tange à resistência, entendemos o sentimento do sambista no deslocamento do seu espaço original e o resgate da tradição como tentativa de fincar raízes. Em contrapartida, Sérgio Cabral afirma que: “Os elementos ligados à tradição do samba – a harmonia, a dança, a bateria e o próprio samba – abriam espaço para as atrações mais ligadas ao aspecto visual das escolas. O espetáculo, de ano para ano, valia mais do que o samba” (2011: 219). Há a constatação da passagem de elemento cultural da etnia negra para diversão da classe média e a profissionalização dos músicos e dos compositores. Um novo tempo se abre na cultura carioca. Quanto à identidade, o samba deixa seu ambiente para a expansão nas ruas e nas avenidas e conquista o comércio musical da cidade. De fato, possuímos muitas identidades e uma delas representa um mosaico com as manifestações culturais espalhadas pelo território carioca, reconhecido e respeitado pelo povo brasileiro. Em terras de imensa diversidade cultural, a identidade carioca reafirma os princípios do multiculturalismo, da reverência à cultura de outros espaços e vislumbra alcançar a representatividade das etnias presentes, que se deslocaram para o Rio de Janeiro, e transformaram a cidade no cenário simbólico e genuíno da imagem brasileira.

104

3.3.1 - A representatividade linguístico-cultural de Nei Lopes

Compositor, cantor e escritor, Nei Brás Lopes, nascido no Rio de Janeiro, em 1942, formado em Direito, em 1966, abandona os estudos acadêmicos para se dedicar à música, a partir de 1970. Estudioso da religião e cultura afro-brasileira e das questões étnicas, torna-se um dos grandes pesquisadores da consciência negra no Brasil. Em 1972, lança a primeira composição “Figa de guiné” (com Reginaldo Bessa) gravada por Alcione, em compacto simples. Nos anos 70, com os parceiros Candeia e Wilson Moreira, funda o Grêmio Recreativo de Artes Negras e Escola de Samba Quilombo, em Coelho Neto, subúrbio carioca. Na mesma época, surgem algumas composições clássicas do samba, como “Goiabada cascão”, “Senhora liberdade”, “Gostoso veneno” e “Coisa da antiga”, em parceria com Wilson Moreira. Nomes, como Sereno e Dauro do Salgueiro, são relevantes na formação de suas parcerias, e intérpretes, como Roberto Ribeiro e Clara Nunes, consagram a harmonia das canções. Vários nomes participam da história musical de Nei Lopes, confirmando a riqueza cultural e linguística de suas letras. A ideologia e o compromisso linguístico do artista confirmam a associação da produção cultural com as veredas do samba. É peculiar a leveza e a marcação, assim como os sons das canções, nas composições do artista. O arranjo das palavras representa um passeio pela língua portuguesa, um convite aos leitores e aos ouvintes para apreciação crítica, com fina ironia e dose de humor. As palavras de Elias situam a importância do talento carioca multifacetado na trajetória do samba:

O cantor, compositor e pesquisador Nei Lopes revela importância fundamental em todas essas discussões. Não somente como elemento oriundo de todo este processo de criação popular e afirmação e identidade negra e carioca, como também em sua teorização, pois atua na pesquisa da canção popular brasileira. Nei Lopes é sujeito e ao mesmo tempo objeto de análise, o que lhe confere um caráter particular dentro do universo do samba. Nascido e criado na cidade do Rio de Janeiro, desde o início de sua carreira artística, nos anos de 1970, vem-se tornando um dos representantes mais importantes da identidade carioca (2005: 24).

No que se refere à proximidade da música de Nei Lopes com a crônica, percebemos a descrição do povo carioca, os cotidianos, traços que perfazem cidadãos singulares, na tentativa de se criar a identidade da cidade carioca. As referências a Lima Barreto, João do Rio e Marques Rebelo são de inegável valor. A obra de Barreto retrata “outra” cidade, a do mundo suburbano, bares, cortiços, cabarés e trens, por onde transita a busca por um perfil para a “cidade ignorada” (ELIAS, 2005: 99). Na mesma linha, João do Rio caminha por trás dos bastidores e das fachadas,

105

buscando uma cidade escondida na penumbra, marginalizada pelos padrões e códigos sociais elitistas (ELIAS, 2005: 101). Marques Rebelo apresenta o dia a dia de uma cidade que passa por um progresso de transição, recém-industrializada e com uma crescente classe operária. (...) Na verdade, o progresso veio como barbárie travestida de civilização, por não considerar o ser humano (ELIAS, 2005: 102). Identificamos alguns laços entre os cronistas do Rio de Janeiro moderno, as relações com o passado, a defesa pela importância da memória nacional em respeito às manifestações culturais e as composições musicais de Nei Lopes. O subúrbio do Rio de Janeiro, como símbolo da identidade carioca, também está presente nas construções dos sambas do artista, como lugar de oposição ao mundo elitista, da negritude, dos cancioneiros populares. O mundo popular do carioca suburbano, morador da Zona Norte, dos morros, os tipos urbanos perfilados caracterizam as linhas das composições e, mais além, notamos a presença de um tipo idealizado, “que se ajusta num linho S-120, sapato bicolor com salto carrapeta, o blusão de vual e chapéu copanorte, tudo isso aliado a uma atitude corporal típica, um jeito de andar gingando bem malandramente” (ELIAS: 2005, 109). A tentativa de marcar o vestuário do carioca caracteriza o recurso de singularização desse tipo e a contraposição ao modelo cultural europeu e americano. É a afirmação da tradição, por meio dos símbolos evocados na história social do samba, nos diversos contextos históricos da cidade. Elias sintetiza:

Nei Lopes é o que se pode chamar de um homem do mundo, cidadão do samba e do subúrbio, que procura romper com as barreiras impostas aos negros e menos favorecidos. A extensa obra literária ou musical construída ao longo de sua carreira o faz singular. Paralelamente às histórias que recolhe do cotidiano dos tipos humanos mais “humildes”, Nei desenvolve uma erudição por meio de suas pesquisas sobre a cultura negra e a música popular em geral, conseguindo estabelecer um elo de ligação entre o popular e a academia (2005: 106).

E acrescenta:

A vivência de Nei Lopes no mundo do samba desde a sua iniciação nos anos 1960, a tomada de consciência de sua negritude, as primeiras canções e a profissionalização nos anos 1970 circunscrevem-se em um período de transformações socioeconômicas importantes na história brasileira, de discussão da cultura de massa, mudanças nos padrões das escolas de samba, revoluções na estrutura rítmica do samba, como no Cacique de Ramos, e posteriormente sua cooptação por parte da indústria cultural sob a denominação de pagode, além dos movimentos de reação da cultura popular com o “samba de raiz”. Sua obra e sua vida artística transcendem um período que se caracteriza pela efervescência de transformações rápidas, características de seu tempo. Tudo isso irá refletir em sua produção musical ou literária, nas críticas e reações aos novos rumos tomados pela cultura popular brasileira e ao movimento negro. Para entender a construção da identidade carioca e negra sob o prisma de sua obra, é necessário que se faça uma análise do contexto em que suas produções musical e literária se materializaram (2005: 140).

106

Na música, Nei Lopes procura mostrar as questões do negro em referência ao seu passado africano, na forma, na tradição e no ritmo embalado pelos batuques e variados instrumentos. Outro ponto aparente é a figura do velho, na representação da ancestralidade, oferecendo ao ambiente imaginário do samba a identidade do mais experiente e repleto de histórias de vida como baluarte da gênese carioca. Essa construção simbólica denota a mescla do ser negro e se constituir cidadão carioca. A vertente humorística se apresenta nas canções do artista como afirmação da identidade cultural e apreciação em torno da modernidade. Dentre as questões tratadas, destacamos as conversas nas ruas e o cotidiano, como elementos de inspiração para suas canções e a expressão da sátira em relação às dificuldades do dia a dia, as ações dos governantes e a exclusão social. Segundo Muniz Sodré, nas letras de samba de Wilson Batista, de Geraldo Pereira (dois dos mais importantes sambistas dos anos 40) e de outros de idêntica posição cultural, o que se diz é o que se vive, o que se faz (1998: 45). Acrescentamos Nei Lopes no rol de ilustres compositores e destacamos o valor funcional das palavras em relação ao mundo, na preceituação das ações cotidianas, na vida social, no imaginário coletivo, elementos inteligíveis no universo do autor e do ouvinte. O trânsito das letras de samba do compositor nas diversas esferas sociais e culturais se afirma na capacidade de a canção negra exaltar a vivência dos sentimentos, das certezas e incertezas, das emoções, das situações de sofrimentos reais, sem o afastamento da inteligência e da razão. Encontramos nas composições aspectos significativos do português no Brasil, o modo brasileiro de falar, na expressão despojada e sonhadora do sambista. Ritmos de feição religiosa e temática da religiosidade popular estão representados em composições, com o objetivo de afirmar a identidade negra e a ancestralidade africana, bem como ressaltar o compromisso ideológico e linguístico. Com leveza e marcação, assim como o ritmo do samba, as expressões são harmonizadas e propõem um percurso pela Língua Portuguesa, a fim de observarmos a crítica social com ironia e humor. O reconhecimento do estilo da fala cotidiana e ordinária brasileira tornou-se um dos traços característicos do samba, presente nas composições de Nei Lopes. Constatamos a importância de temas próximos à vida comum e ao dia a dia das pessoas nas letras, anteriormente, em formato de crônicas. O compositor referencia personagens femininas pretas, mulatas, mulheres do povo, e explora o uso expressivo dos ditos populares, gírias e provérbios, promovendo a união desses elementos a formas tradicionais de intercâmbio social e relacionados

107

à África. Destacamos traços no “estilo” do compositor, na permanente defesa do samba por meio da expressividade linguística.

3.3.2 - A representatividade linguístico-cultural de Arlindo Cruz

Carioca, Arlindo Domingos da Cruz Filho, nascido em 1958, cantor, compositor e instrumentista, também conhecido como Arlindinho, iniciou sua carreira em 1975, ao participar da gravação do disco de Candeia, com arranjos de cavaquinho. É filho do cavaquinhista Arlindo Domigos da Cruz, integrante do grupo Mensageiros do Samba, sob a liderança de Candeia, e com componentes do G. R. E. S. Portela. No Cacique de Ramos, descobre os caminhos do trabalho com as composições e introduz o banjo como instrumento do samba. Em 1982, integra o grupo Fundo de Quintal, de estilo próprio, caracterizado por apresentar um ritmo diferente e uma nova maneira de falar do cotidiano, além de utilizar instrumentos incomuns nas rodas de samba, como o banjo com braço de cavaquinho, criado por Almir Guineto; o tantã, criado por Sereno e o repique-de-mão. Em 1987, ingressa na ala dos compositores do G. R. E. S. Império Serrano, com co-autoria de oito dos doze sambas-enredo até 2007 e premiações nos anos de 1989, 1995 e 1996. Em 1991, inicia sua carreira independente e, logo em seguida, em 1992, em dupla com o compositor Sombrinha, lança dois CDs Da música e O samba é a nossa cara. A parceria rendeu vários trabalhos fonográficos, tanto nas vozes quanto nas composições. Outros parceiros, como Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Dona Ivone Lara e Beto Sem Braço, ratificaram o valor da união entre sambistas. Grandes intérpretes, como Alcione, Beth Carvalho e Leci Brandão, entoaram as canções de Arlindo Cruz com as peculiaridades melódicas de cada uma delas, comprovando, assim, que o samba não tem apenas uma melodia, tampouco um só modo no cantar. A história do artista se caracteriza pela presença marcante de nomes importantes do universo do samba na sua trajetória profissional e revela o seu trânsito permanente entre várias comunidades e suas escolas, o que reafirma o valor das amizades, dos laços fraternais que se constroem em nome da arte e da cultura. Apesar de se manter, originariamente, às raízes do G.R.E.S. Império Serrano, Arlindo Cruz sempre cultivou os diálogos com representantes culturais e musicais de outras comunidades: Mangueira e Portela corroboram a amizade e o valor nas relações do artista com as agremiações.

108

As temáticas recorrentes nas composições do sambista, como a família, o contexto, a festa, a comida, a bebida, a malandragem, a religiosidade, o amor, a paixão, os lugares, dentre outros, se fundam no acervo do senso comum. Inúmeros ditados e frases feitas configuram a representação e a reafirmação desses temas nas canções. Os provérbios e os ditos fraseológicos oferecem as noções associadas ao universo construído pelas pessoas, o lugar de construção do discurso popular apresentado por Arlindo Cruz, no samba. Os recursos linguísticos se espalham nas canções brasileiras, mas ressaltamos a percepção do compositor em trabalhá-los como elementos caracterizadores do samba e de um discurso que se pode considerar “popular”. Nas criações do compositor, a popularidade, por conter a proposta de proximidade com a realidade, viabiliza o pensamento crítico, a autoconsciência, a reflexão cultural, social e política dos apreciadores do samba. É a partir da relação do sujeito com o outro e da relação com o contexto que o processo popular do sambista inicia sua construção e permeia a vida dos cidadãos. A sutileza e a eficiência dos sambas do referido compositor agregam os diferentes lugares da cidade do Rio de Janeiro, por vezes tão repartida, fragmentada em pequenos universos socioculturais, e o vocabulário revela a língua franca dos cariocas, dos suburbanos, dos amantes do pulsar do surdo, do cavaco e do tamborim. Se, em Nei Lopes, percebemos uma inclinação da ideia do subúrbio carioca associada aos tempos antigos, com traços das épocas clássicas do samba, em Arlindo, identificamos elementos da visão urbana contemporânea, do sujeito moderno e com o jeito da cidade multifacetada. Nas raias dessa ideia, Cruz trabalha com a representação da periferia. Segundo Torres:

espaços socialmente homogêneos, esquecidos pelas políticas estatais, e localizados tipicamente nas extremidades da área metropolitana. Tais espaços são constituídos predominantemente em um loteamento irregular ou ilegal de grandes propriedades, sem o cumprimento das exigências para a aprovação do assentamento no município. A maioria das casas desses locais é “autoconstruída” (2003: s/p).

Para Pallone (2005), o subúrbio é o espaço que cerca uma cidade e se configura como uma região entre a cidade e o campo, sem qualquer relação com a situação socioeconômica. Outro traço característico é o menor índice de densidade ocupacional e o fato de as localidades abrigarem tanto propriedades agrícolas quanto parques, empreendimentos e condomínios de luxo que careçam de amplas delimitações de espaço. Com isso, ressaltamos a rápida expansão da industrialização e a consequente formação dos subúrbios operários e industriais. A autora ainda

109

registra a confusão conceitual na designação dos espaços urbanos que se distanciam do centro (lugar onde se concentra o poder econômico de uma cidade, principalmente nas grandes metrópoles), pelo fato do subúrbio e da periferia comumente considerados sinônimos. Destaca-se a nomeação do termo periferia, reforçada após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e popularizada durante a Guerra Fria, classificando os países com baixo poderio militar, econômico e com graves problemas de infraestrutura. Em outro sentido, o status de centro apresentava os Estados com uma economia mais estável e com expressivo potencial armamentista. Ainda de acordo com Pallone (2005), esses motivos levaram o termo periferia a uma conotação mais social, política e econômica, que a diferencia de subúrbio. Assim, as letras de Arlindo dialogam com a ideia da periferia harmônica, comumente assistida e figurada nas telenovelas, em oposição discursiva à periferia criminalizada e marginalizada apresentada nos telejornais. Outro termo usado pelo sambista, bastante significativo na história do carioca e dicionarizado por Nei Lopes, é a favela. Segundo ele:

Uma favela é, em síntese, um aglomerado de casebres erguidos de modo improvisado e desordenado, em terreno invadido. O termo surgiu na última década do século XIX, quando, finda a Guerra de Canudos, ex-combatentes e vivandeiras, de várias procedências, vieram, em grande número, à antiga Capital Federal reivindicar a assistência do governo. Alojados precariamente no Morro da Providência, próximo ao Quartel General do Exército, esses migrantes foram os responsáveis pelo apelido “Morro da Favela”, pelo qual esse morro foi conhecido durante largo tempo. O apelido veio de um outro Morro da Favela, existente no entorno do arraial de Canudos e mencionado por Euclides da Cunha no clássico Os Sertões, ou pro semelhança, segundo alguns, ou por ser o local de origem das vivandeiras, segundo outros. Daí, do aspecto tosco das moradias improvisadas, o termo “favela” se estendeu, para qualquer aglomeração do mesmo tipo. Inicialmente construídas com restos da sociedade industrial, como tábuas de caixotes e folhas de flandres ou na forma conhecida como “sopapo”, as moradias das favelas cariocas foram, com o tempo, ganhando características mais permanentes como a utilização de tijolos e de lajes de concreto, embora quase sempre sem emboço ou revestimento. Outro aspecto a ser destacado é que, no Rio, muitos núcleos populacionais historicamente considerados como favelas, por vivenciarem alguns dos problemas mais comuns desse tipo de moradia, são, na atualidade, complexos parcial ou totalmente urbanizados, obtendo o estatuto oficial de bairro, como é o caso da Maré e do Alemão, por exemplo. Observe-se, ainda, que a ideia de favela como o “morro” oposto ao “asfalto”, lá em baixo, vem principalmente das favelas da Zona Sul da cidade, incômodas principalmente pelo fato de se situarem em regiões altamente valorizadas pela especulação imobiliária, como acentuou Marcelo Monteiro (2011), em seu pequeno dicionário das favelas, disponibilizado na internet. Olhadas como um câncer a ser extirpado, foram elas o objeto exclusivo das políticas de remoção postas em prática durante o governo de Carlos Lacerda, na década de 1960. Essas políticas pareciam explicitar o perverso sentimento segundo o qual “lugar de pobreza é o subúrbio”. Ironicamente, antes e agora, as favelas da zona sul parecem representar verdadeiros bolsões de cultura suburbana dentro da sofisticação internacionalizada dos abastados bairros litorâneos (2012: 143-4).

De acordo com Garcia, se “o estilo é tudo aquilo que individualiza obra criada pelo homem, como resultado de um esforço mental, de uma elaboração do espírito, traduzido em ideias, imagens ou formas concretas” (2002: 123) e “é a forma pessoal de expressão em que os

110

elementos afetivos manipulam e catalisam os elementos lógicos presentes em toda atividade do espírito” (2002: 123), temos, nas composições de Arlindo Cruz, a expressividade peculiar para refletir sobre a realidade da língua falada no território brasileiro. A estruturação linguística do compositor demonstra as inter-relações entre as ideias do cotidiano e dos sentimentos pessoais de cada brasileiro. As “marcas”, termo usado em favor da qualidade e da distinção, lexicais e sintáticas dos versos, resultam na eficácia semântica almejada pelos artesãos da língua e produtores discursivos, no caso, os sambistas. A coloquialidade marcante nas canções atende às necessidades da comunicação imediata entre o intérprete e o ouvinte, no jogo de ideias concretas, no raciocínio lógico, na expectativa do efetivo alcance das mensagens e na integração ao cancioneiro do subúrbio carioca. A criatividade temática do compositor passa pelas regiões da cidade do Rio de Janeiro, sob a forma idílica, genuína, ou modificada pelos cidadãos, revelando nos ambientes das escolas de samba e dos pagodes suburbanos os “partideiros”, praticantes e defensores do partido-alto, ora verbetizado, como a “modalidade de samba cantada em desafio por dois ou mais sambistas e que se compõe de uma parte coral (refrão ou ‘primeira’) e de uma parte solada com versos improvisados ou do repertório tradicional, os quais em geral se referem ao assunto do refrão” (LOPES, 2012: 270). Quanto ao processo de autorreferência, percebemos o compromisso que os compositores, em geral, apresentam em seus trabalhos, aplicando a temática do próprio samba e o relacionando tanto ao gênero musical como à festa. O diálogo com as raízes culturais e sociais do samba se integra às letras de Arlindo Cruz e revitaliza os laços com as gerações pioneiras, mantenedoras da tradição e da caracterização do ritmo. Embora sem a pretensão de exposição conclusiva dos temas abordados nas canções dos artistas selecionados, esperamos vislumbrar a validade dos recursos linguístico-expressivos presentes em suas obras.

- Alô Brother. / - Eu hein! / Eu não falo gringo, eu só falo brasileiro / Meu pagode foi criado lá no Rio de Janeiro / Minha profissão é bicho / Canto samba o ano inteiro / Eu falei pra você... / Eu aposto um “Eu te gosto” / Contra dez “I love you” / Bem melhor que hot dog / É rabada com angu / Gerusa comprou uma blusa / Dessas made in USA/ E fez a tradução / A frase que tinha no peito / Quando olhou direito / Era um palavrão.../ Ou me dá meu terno branco / Ou não precisa nem vestir / Bunda de malandro velho / não se ajeita em calça Lee / Às vezes eu sinto um carinho / Por esse velinho chamado Tio Sam / Só não gosto da prosopopeia / Que armou na Coréia e no Vietnã / Eu não falo gringo, eu só falo brasileiro... (Eu não falo gringo. João Nogueira)

112

4 – NA ESCOLA: “SAMBAS QUE DÃO AULAS”

Baseados na prática reflexiva sobre o ensino da Língua Portuguesa e se valendo dos seus mecanismos expressivos, apresentamos algumas canções dos compositores e sambistas Nei Lopes e Arlindo Cruz. As canções exploram o estilo da fala popular, em oposição ao formato literário de outros gêneros, ao tratarem de temas ligados à vida simples e ao dia a dia do povo brasileiro, mais especificamente, do carioca. Percebemos também a influência de elementos tradicionais da cultura africana, contributivos para a formação da brasilidade. O texto tem como validação a imagem de seu criador e os estilos aqui aparecem nas escolhas lexicais, temáticas, nos arranjos sintáticos, neologismos, na elaboração dos versos dos compositores. Sobre a conceituação da Estilística, consideremos as palavras de Mattoso Câmara Jr. (1986: 110): “é uma disciplina linguística que estuda a expressão em seu sentido estrito de expressividade da linguagem, isto é, sua capacidade de emocionar e sugestionar”. Assim, tentaremos demonstrar as identidades linguísticas dos compositores, sambistas, cidadãos do mundo, como enunciadores, por meio das marcas textuais (linguísticas e gramaticais) de suas composições, e revelar como as canções se configuram como instrumentos da Língua Portuguesa para a formação de cidadania. As várias maneiras de imprimir marcas da personalidade e da identidade nas canções comprovam a estreita relação entre a linguagem elaborada pelos artistas e os recursos expressivos pertencentes à Língua. Oferecem cenários que envolvem cultura, história e aplicação do código linguístico, com o destaque merecido. Imbuídos de criatividade e sensibilidade, apresentam materiais artísticos singulares e jeitos diferentes de enxergar, pedagogicamente, algumas aplicações linguísticas.

4.1 – Com expressividade: as canções de Nei Lopes

Dicionário Everson Pessoa/ Nei Lopes

No meu dicionário roqueiro é aquilo Que fica lá em cima da rocha E fanqueiro é o cara 113

Que vende tecido De linho e algodão Pra mim sertanejo É antes de tudo um forte E axé é força e boa sorte No meu dicionário Galera é apenas uma embarcação

Pois é É preciso cuidado com o que a gente fala A boca mais sábia é aquela que cala E que pensa bastante antes da canção Porque um poder bem mais alto sempre baixa a crista Do crente que abafa, pensando que artista É só quem se avista na televisão

Artista foi quem decorou a Capela Sistina Quem edificou a Muralha da China Quem moldou os bronzes de Benim, Ilê Ifé Artista, em meu ponto de vista, é quem cria e conquista E que sabe que, mesmo em capa de revista, Artista é artista e mané é mané.

Na canção Dicionário, em parceria com Everson Pessoa, verificamos um exercício metalinguístico, possibilitando uma significativa trajetória histórica de alguns vocábulos pertencentes à Língua Portuguesa. Elementos linguísticos enriquecem a leitura da composição, trazendo à tona a expressividade do compositor e a possibilidade de um prazeroso aprendizado da língua. Nos primeiros versos,“No meu dicionário roqueiro é aquilo/Que fica em cima da rocha/E fanqueiro é o cara/Que vende tecido/De linho e algodão”, Nei Lopes revela os sentidos de algumas palavras e aponta uma possível aquisição de novos significados, ao longo do uso histórico. A palavra “fanqueiro” tem seu registro dicionarístico como derivada de fanka (saco) e representa o sujeito “que tem loja para venda de lençaria ou tecidos de linho, algodão e lã” (AULETE, on line) e “roqueiro”, como assinala o compositor, mantém suas relações semânticas com o vocábulo rocha, “massa grande e compacta de pedra” (AULETE, on line). Ficam explícitas, assim, as observações para as aplicações/adaptações atualizadas dos termos, no Rock e no Funk. No campo da intertextualidade, a utilização dos versos “Pra mim sertanejo/É antes de tudo um forte” lembra o escritor Euclides da Cunha, em Os Sertões. Em “E axé é força e boa sorte”, há uma demonstração das relações linguístico-culturais entre Brasil e África, com o 114

emprego expressivo da palavra “axé”. Segundo Nei Lopes, é um “termo de origem iorubá que significa a força que permite a realização da vida; que assegura a existência” (2006: 24), utilizado para desejar votos de felicidade a alguém e já incorporado por boa parte dos usuários. Na primeira estrofe, há uma tomada de consciência linguístico-literária-cultural, por parte do compositor, permitindo que o professor se utilize dos apontamentos contidos nos versos e apresente alguns recursos linguístico-expressivos da Língua. A atividade pedagógica se realiza como um exercício de formação da cidadania linguística, oferecendo, ao aluno, o atributo da percepção, do conhecimento e do uso consciente das manifestações verbais. Em seguida, a expressão “Pois é” serve como modalizador textual, indicando uma espécie de alerta, de tomada de atenção, de pausa para os versos seguintes. O articulador discursivo não é apenas responsável pela coesão textual, como também pelas indicações ou sinalizações destinadas a orientar a construção interacional do sentido e, portanto, da coerência (KOCH, 2006). O registro popular também aparece na canção, por meio de algumas expressões: “A boca mais sábia é aquela que cala”, “baixa a crista” e “crente que abafa”. O valor dos registros linguísticos assinala um potencial expressivo da coloquialidade tão presente nas situações comunicativas. O sambista, com originalidade e genialidade, registra a marca da oralidade na escrita e confirma o quanto uma não se distancia da outra, para maior proximidade da língua do mundo com a que se aprende na escola. Os versos seguintes ratificam a linha linguístico-cultural defendida, à medida que os pares verbais “edificou/moldou” e “cria/conquista” apresentam a progressão lexical dos verbos, conotando a figura de linguagem gradação, fazendo o leitor “perceber, no fio do discurso, as várias etapas na operação de intensificação” (AZEREDO, 2008: 499). Em “Capela Sistina”, “Muralha da China”, “bronzes de Benim”, há a representação de elementos que pertencem à história mundial. Evidenciamos o caráter de formação linguística de cidadania, uma vez que se espera do aluno curiosidade sobre as expressões culturais e a consciência crítica do quanto significam para o povo. Destaca-se, também, a marca de pessoalidade grafada no texto, por meio de “Artista, em meu ponto de vista...”, e confirmada pela utilização do pronome possessivo de 1ª pessoa, permitindo ao sambista deixar, em sua canção, o seu estilo, sua identidade musical e sua proposta de reflexão. Quanto aos valores afetivos dos possessivos, Bechara (2002) assinala que tais 115

pronomes não se limitam a exprimir apenas a ideia de posse, assumindo matizes contextuais de sentido. Como proposta de intertextualidade, Nei Lopes finda seus versos, “artista é artista e mané é mané”, estabelecendo um diálogo com o trecho “malandro é malandro e mané é mané”, de autoria de Neguinho da Beija-Flor e interpretada também por Bezerra da Silva. Tal fenômeno textual, segundo Koch, “ocorre quando, em um texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade ou da memória discursiva (domínio estendido de referência, cf. Garrod, 1985) dos interlocutores” (2007: 17). Assim, outro elemento expressivo-cultural aparece na música, permitindo ao professor resgatar canções do compositor, enriquecendo seu trabalho.

Águia de Haia Luís Felipe de Lima/ Nei Lopes

Saí do baile, rumo de Copacabana E em pleno Campo de Santana recebi um santo Quem viu me disse que foi um espanto Que eu falei coisas meio um tanto ou quanto, sei lá ... Dizem que eu falava discursando Com sotaque de baiano intelectual E de repente, sem ter dó nem piedade Eu entrei na Faculdade de Direito Nacional

Data vênia, Homo sapiens! Dura Lex sed Lex In natura, causa mortis, habeas corpus cum jontex!

(In extremis, lato sensus,ad libitum, ad hoc, Libertas quae será tamen! Delenda est pop-rock!)

Na faculdade, escrevi regras e tratados Dei lições pro doutorado com muita ciência Só me chamavam de Vossa Excelência Me convidaram pra livre-docência, pois é ... Discursei três horas sem dar pausa Fui doutor honoris causa e quase fui reitor Porém, no meio dessa história gloriosa O caboclo Rui Barbosa de mim desincorporou

Ab origine, spiritu tuum! Ex libris, quiproquó! Revertere ad locum! Olha o teu status quo! 116

(Vade retro, alter ego! Ite dominus missa est Vôte, persona non grata! Modus in rebus, ô peste!)

E eu que já era um mestre consagrado Fui então chamado de Doutor Bebum De catedrático eu passei a ser lunático Um caso psiquiátrico, um alcoólatra comum Tudo isso culpa de um traçado Também, fui misturar conhaque com rum Agora, quando eu passo levo vaia: Águia de Haia, Rui Barbosa um-sete-um!!!

Saí do baile, rumo de Copacabana...

Vade ônibus! Mutatis mutantes, modus vivendi! Sacania Vabis! In memoriam, in vino veritas? Humm... Canabis!!!!!!!!!!!!!!!!

Em Águia de Haia, o compositor utiliza a alcunha dada ao jurista, político e filólogo Rui Barbosa, por sua atuação na II Conferência de Paz de Haia, na Holanda, em 1907, onde defendeu o princípio da igualdade dos Estados, para nomear a canção. A inteligência e a eloquência fazem do jurista um dos grandes representantes da República e um dos ícones do Direito, no Brasil. Na denominação, Águia de Haia representa uma figura de palavras, a antonomásia, que consiste na substituição de um nome por outro ou por uma expressão que promova a identificação. Entendemos essa figura de linguagem como uma variante metonímica e Azeredo acrescenta que “o rendimento discursivo do nome comum em lugar do nome próprio não está no simples fato de identificar o mesmo referente, mas de revelar uma situação relevante para a situação comunicativa, visto que estabelece entre ambos uma relação de predicação” (2008: 488). A expressão “baiano intelectual”, por estabelecer a referência a Rui Barbosa (nascido em Salvador/BA, com méritos honrosos na história do país), representa outra forma da figura de palavras, antonomásia, uma vez que há “a substituição do nome de um ser pelo de uma sua qualidade” (2008: 487). A partir da primeira estrofe, verificamos o predomínio das formas verbais indicativas de ação como “saí”, “disse”, “falei”, “entrei”, dentre outras, levando-nos à construção da canção, a partir de uma sequência narrativa, no caso, uma crônica. Com base nas ideias de Azeredo, a narração pode ser “a sequenciação própria da enunciação de fatos que envolvem personagens movidos por certos propósitos e respectivas ações encadeadas na linha do tempo, seja por simples 117

sucessão cronológica, seja também por relações de causa e efeito” (2008: 86). Assim, temos o relato de acontecimentos que revelam um episódio de um sujeito e sua trajetória irônica e decadente. Ressaltamos também, na mesma estrofe, a atenção dada ao compositor quanto aos espaços da narrativa cantada, indicando as localidades “Copacabana” (Zona Sul), “Campo de Santana” e a “Faculdade de Direito Nacional” (Centro) como uma espécie de traçado geográfico carioca, onde acontecem as ações do suposto personagem, e o fato de o próprio compositor ter sido aluno desse estabelecimento de ensino. Na tentativa de demonstrar elevação de status social, percebemos a utilização irônica das expressões latinas, provas do rebuscamento linguístico, típicas da linguagem forense, “Data vênia, Homo sapiens! Dura Lex sed Lex/ In natura, causa mortis, habeas corpus cum jontex!” O compositor utiliza esses e outros exemplos, ao longo das estrofes, contribuindo para a concepção de que a linguagem do poder atribui algum “prestígio” àquele que a utiliza e detém maior poder de persuasão, impressionando o ouvinte. Na prática jurídica, as expressões latinas, assim como as descrições científicas e/ou os termos técnicos, caracterizam uma linguagem diferenciada, complexa e ininteligível à maioria dos usuários da língua. O emprego de expressões como “recebi um santo”, “caboclo Rui Barbosa” e “desincorporou” nos remetem ao universo linguístico das expressões religiosas. É Nei Lopes quem define “caboclo”, na umbanda, “designação de cada uma das entidades ameríndias da linha de Oxóssi” (2006: 34) e “no candomblé de caboclo, cada uma das entidades principais, reverenciadas como ancestrais dos primeiros habitantes da terra brasileira, em eloquente exemplo das inúmeras trocas e alianças entre indígenas e negros nas Américas” (2006: 34). A presença de construções linguísticas relacionadas às manifestações afro-religiosas é recorrente em algumas canções do sambista e reafirma sua devoção espiritual aos rituais candomblecistas. Temos em “recebi um santo” uma expressão que se tornou popular e que significa, em síntese, a incorporação de alguma entidade espiritual. Já em “desincorporou” atentamos para, além da aplicação semântico-discursiva, a formação lexical. Quanto à significação, verificamos o seguinte registro “deixar o corpo do médium (diz-se de espírito, entidade)/deixar de ter um espírito ou entidade incorporado em si” (AULETE, on line). Sobre o processo de derivação, Azeredo aponta essa realização em dois estágios. No caso da palavra utilizada pelo compositor, acrescenta-se primeiro o prefixo in- ao radical, seguido das desinências, corporou e a resultante recebe o prefixo des-, dando a forma verbal. Seguindo as ideias do autor, temos a seguinte regra, “ao ser 118

acrescentado a um verbo ou a um adjetivo, o prefixo des- dá origem a um lexema que significa o oposto desse mesmo verbo ou adjetivo” (2008: 451). É o que verificamos em incorporar/ desincorporar. Martins (2000) afirma que o prefixo des- é com certeza o mais produtivo e mais popular, desde as cantigas de escárnio, quando já revelava sua vitalidade. No verso “Tudo isso culpa de um traçado”, há um exemplo de homonímia quanto ao emprego da palavra “traçado”, entendendo a tradição gramatical esse fenômeno linguístico, segundo Bechara, como a “propriedade de duas ou mais formas, inteiramente distintas pela significação ou função, terem a mesma estrutura fonológica, os mesmos fonemas, dispostos na mesma ordem e subordinados ao mesmo tipo de acentuação” (2002: 403). Os sentidos correspondentes do vocábulo podem ser a “ação ou resultado de traçar (linhas, riscos etc.); maneira ou modo de traçar” (AULETE, on line) e, popularmente, a “mistura de aguardente com vermute” (AULETE, on line). Na canção, a segunda acepção é utilizada e tomada como responsável pelo estado decadente do sujeito narrado. Para Valente, em outras palavras, a homonímia compreende “o emprego de significantes iguais com significados diferentes” (1998: 192), obtendo as classificações como: homófonas (mesmo som com letra diferente), homógrafas (mesma letra com som diferente) e homônimas perfeitas (mesmo som e mesma letra). Assim, dizemos que em “traçado” há uma ocorrência dessa última classificação, um homônimo perfeito. Em “Águia de Haia, Rui Barbosa um-sete-um”, mais uma vez o compositor faz referência a um elemento comum nas Ciências Jurídicas e presente no Código Penal, o Artigo 171, sobre o estelionato, promovendo o diálogo interdisciplinar. É a Língua Portuguesa em comunhão com a “língua dos juristas”. Segundo o referido Código, é crime “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento” (www.jusbrasil.com.br/.../art-171-do-codigo- penal-decreto-lei-2848-4...). Popularmente, o sujeito praticante do crime, infrator da lei, é denominado malandro, pessoa que abusa da confiança dos outros e usa de esperteza para sobreviver, em vez de trabalhar. Outros significados foram absorvidos, ao longo dos tempos, pela expressão designadora da malandragem. Sobre tal processo de significação das palavras, Lapa afirma que “há certa lógica em que o sentido atual do vocábulo não divirja do que tinha há mais de mil anos. Mas, se a palavra mantém um significado preciso, que lhe dá o mais frequente emprego, adquiriu também com o uso uma série de sentidos subsidiários” (1998: 11). Cabe ao professor da Língua Portuguesa explorar os variados sentidos. 119

Pombajira Halloween Ruy Quaresma/ Nei Lopes

Eu bem que sabia Que um belo dia Isso ia acabar mal Esse olhar de descaso Chamando de atraso A cultura nacional Humilharam, pisaram, Pintaram e bordaram E olha só qual foi o fim: Pombajira baixou no Halloween

Tinha até website De gótico e dark Pra chamar coisas ruins Até analfabeto Era heavy metal De jaquete James Jeans Tinha até Sepultura Lá na cobertura E olha só qual foi o fim: Pombajira baixou no Halloween

Marafo long neck Curimba em playback Ela veio mesmo assim Mas quando deram um break Ela viu que era fake Tudo fashion, tudo teen Foi então que a cigana Rodou a baiana Riscou fogo no estopim Pombajira baixou no Halloween

Em Pombajira Halloween, temos a parceria de Nei Lopes com Ruy Quaresma, em proposta crítica à invasão estrangeira nos costumes e vocabulário nacionais. A crítica se dá, inicialmente, nos versos “Chamando de atraso/A cultura nacional”, ou seja, tudo o que se refere à brasilidade, aos termos originalmente nacionais, foram descartados, numa constatação de supervalorização do elemento de fora. Na canção, destacamos a mistura de elementos de culturas 120

distintas, no caso, “Pombajira” (origem africana) e “Halloween” (origem inglesa), na tentativa de sugerir uma possível confusão instaurada no universo linguístico, segundo o compositor, quanto às aquisições de expressões de outras línguas como parte do idioma. Fica a reflexão sobre o que nos apropriamos, com aplicação consciente dos termos. Na tentativa de esclarecer aspectos relevantes ao processo neológico por empréstimo, levamos em consideração as palavras de Alves, “o estrangeirismo costuma ser empregado em contextos relativos a uma cultura alienígena, externa à língua enfocada. Nesses casos, imprime à mensagem a ‘cor local’ do país ou da região estrangeira a que ele faz referência” (1994: 72-3). Podemos ter alguma justificativa para o efeito estilístico pretendido pelo usuário, ao buscar itens lexicais de idiomas distintos. Isso se revela quando o termo dá “à fala ou ao texto um toque de exotismo, quando contribui para dar autenticidade à referência a outras terras e outras gentes, ou ainda quando a palavra estrangeira, pela sua constituição sonora, parece mais motivada que a vernácula” (MARTINS, 2000: 81). Expressões, como “marafo long neck” e “curimba em playback”, reforçam a ideia da balbúrdia que se instaurou na comunicação em Língua Portuguesa. Há, no exemplo acima, uma palavra de origem africana associada às de origem inglesa. É preciso possibilitar ao aluno perceber qual a verdadeira razão de utilizar expressões que não fazem parte do idioma e exercitar a crítica, quanto à inserção oficial dos termos nos dicionários. Torna-se desejável a discussão, nas aulas de Língua Portuguesa, em torno dos critérios para se decidir se um vocábulo é de origem estrangeira e até que ponto expressões deixam de sê-lo (se é que deixam). Nei Lopes revela, por meio dos versos, que em se tratando de línguas distintas, quem pode afirmar o que é “estrangeiro”, de fato, uma vez que as línguas são tecidos aderentes, potencialmente assimiladoras de múltiplas vozes? Alves confirma que “o emprego frequente de um estrangeirismo constitui também um critério para que essa forma estrangeira seja considerada parte componente do acervo lexical português” (1994: 79). Já Martins (2000) esclarece sobre a tolerância no uso das expressões para a comunicação entre os povos. Mesmo mantendo a grafia estrangeira, a popularização dos termos e o emprego corrente são observados nas variadas áreas. Dessa forma, notamos também a intenção do compositor em ressaltar o caráter pluricultural da língua, falada em quatro continentes, e a possibilidade de análise filológica e/ou etimológica das palavras e de observação das origens dos vocábulos e expressões. O trabalho do professor concentra-se, no caso, em suscitar possibilidades de uso das expressões estrangeiras em diálogo com os textos escritos. A partir de Pombajira Halloween, 121

discussões acerca da linguagem empregada nos diferentes contextos sociais poderão surgir, objetivando o uso mais consciente das ações e escolhas linguísticas. Viabilizamos a realização de tal trabalho em parceria com músicas, como, por exemplo, Pela Internet, de Gilberto Gil, e Samba do Approach, de Zeca Baleiro, que tratam da mesma temática linguística, reforçando o valor da discussão. Parceria importante para a realização da ação cidadã com a Língua é buscar o envolvimento de professores das demais áreas, como Inglês e História, um trabalho interdisciplinar, na tentativa de oferecer recursos expressivos e culturais que fundamentem a presença de palavras estrangeiras nas situações comunicativas.

Coisa da Antiga Wilson Moreira/ Nei Lopes

Na tina, vovó lavou, vovó lavou A roupa que mamãe vestiu quando foi batizada E mamãe quando era menina teve que passar, teve que passar Muita fumaça e calor no ferro de engomar Hoje mamãe me falou de vovó só de vovó Disse que no tempo dela era bem melhor Mesmo agachada na tina e soprando no ferro de carvão Tinha-se mais amizade e mais consideração Disse que naquele tempo a palavra de um mero cidadão Valia mais que hoje em dia uma nota de milhão Disse afinal que o que é de verdade Ninguém mais hoje liga Isso é coisa da antiga, ai na tina... Hoje o olhar de mamãe marejou só marejou Quando se lembrou do velho, o meu bisavô Disse que ele foi escravo mas não se entregou à escravidão Sempre vivia fugindo e arrumando confusão Disse pra mim que essa história do meu bisavô, negro fujão Devia servir de exemplo a "esses nego pai João" Disse afinal que o que é de verdade Ninguém mais hoje liga Isso é coisa da antiga Oi na tina...

Em Coisa da Antiga, Nei Lopes retoma traços, hábitos e valores socioculturais do passado histórico brasileiro, para trazê-los à lembrança do povo e resgatar a memória de costumes significativos para a construção da identidade coletiva. Marcas linguísticas auxiliam o 122

trabalho do compositor. Apontaremos algumas, na intenção de evidenciar contribuições para uma possível leitura significativa. Percebemos, inicialmente, várias formas preposicionais, realçando o uso expressivo requerido pelo compositor e a possibilidade de um ensino produtivo da língua. Dentre elas, uma possibilita realizar a análise plurissignificativa dos valores registrados no uso da língua portuguesa. É o caso da preposição de notadamente marcada na canção e que verificamos o emprego com frequência, para fins diversos. No título “Coisa da antiga”, a preposição é utilizada com valor adverbial, indicando tempo (BECHARA: 2002), e na expressão “ferro de engomar” também se emprega o mesmo valor, só que indicando fim, acompanhado com infinitivo (BECHARA: 2002). Para o que observamos em “ferro de carvão” e “nota de milhão”, existe a possível justificativa, “ligando dois substantivos, imediatamente ou por intermédio de certos verbos, serve para caracterizar e definir uma pessoa ou coisa” (BECHARA: 2002, 313). Ao longo da canção, aparecem outras expressões iniciadas por de, “palavra de um mero cidadão”, “olhar de mamãe” e “história do meu bisavô”, indicando “a pessoa, coisa, grupo ou série a que pertence ou de que se salienta, por qualquer razão, o nome precedido de preposição” (BECHARA: 2002, 313), e “o que é de verdade”, revelando “a matéria de que uma coisa é feita” (BECHARA: 2002, 313). Na passagem “falou de vovó, só de vovó”, há outro valor, demonstrando “o assunto ou o objeto de que se trata” (BECHARA: 2002, 313). O sambista constrói a canção, usando uma diversidade expressiva presente na preposição de, possibilitando a proposta de análise semântica das preposições. Observamos, assim, a sua ampla funcionalidade e das suas indicações de uso. Ressaltamos que de também “indica o meio, o instrumento ou o modo, em sentido próprio ou figurado” (BECHARA: 2002, 313), o que se exemplifica na expressão “servir de exemplo”. As ocorrências contribuem para a percepção da língua como uma entidade dinâmica, viva e não como formas aprisionadas aos sentidos estabelecidos. Valores circunstanciais podem ser encontrados e criados, nos diversos textos da Língua Portuguesa, tendo em vista que o sujeito interage por meio de seu saber elocucional, adquirido na troca de experiências com outros sujeitos e no seu conhecimento de mundo. Em, “Na tina, vovó lavou, vovó lavou”, alguns aspectos expressivos servem às investigações linguísticas. O primeiro diz respeito à palavra “tina”, expressão não usual nos dias de hoje, que corrobora a ideia passadista da canção e que significa “vasilha grande de aduelas, 123

que lembra um barril cortado ao meio, usada para carregar água, lavar roupa, tomar banho, etc.” (AULETE, on line). Atualmente, a renovação lexical se dá pelo emprego da palavra tanque. Dentre várias descrições, temos, “reservatório para líquidos, depósito, tanque de gasolina; cuba, geralmente de cimento, metal ou plástico, onde se lava roupa à mão; construção de pedra ou alvenaria, com bicas por onde jorra água” (AULETE, on line). O segundo traço expressivo do verso se refere à epizeuxe presente na repetição do grupo de palavras, em uma sequência imediata, “vovó lavou, vovó lavou”, traduzindo a ênfase sugerida na ação da vovó. Conforme Azeredo, é “um recurso de modalização que mobiliza o envolvimento do enunciador com a matéria enunciada” (2008: 493). Temos aqui um mecanismo estilístico que, além de chamar a atenção do receptor da mensagem pelo recurso da repetição em si, adiciona-lhe outra possibilidade significativa, um sentido acrescido de ênfase. É possível a mesma análise em “teve que passar, teve que passar” e “de vovó, só de vovó”. Também se percebe a organização da camada fônica, explorando o potencial expressivo dos sons, nos grupos de vocábulos referidos, pois “tanto a aliteração quanto a assonância atuam no propósito do enunciador por meio da iconicidade da linguagem, produzindo harmonias imitativas que ratificam e ampliam de forma suplementar o sentido da mensagem” (AZEREDO, 2008: 508). No caso da palavra “vovó”, quanto à aliteração (repetição sistemática de uma consoante) e à assonância (repetição sistemática de uma determinada vogal tônica), a reprodução dos fonemas [v] e [o] sugerem uma forma delicada de nos referirmos à figura feminina carregada de afeto, associada à experiência de vida ou à velhice. Já em “teve que passar”, temos a incidência de três fonemas [t], [k] e [p] caracterizados quanto ao modo de articulação das consoantes como oclusivos, ou seja, produzidos com obstrução total dos órgãos articuladores, sugerindo a ideia de inevitabilidade da ação, algo que expressa a certeza do ato. Assim, tentamos exemplificar como a matéria fônica da linguagem também apresenta uma função expressiva relativa às particularidades articulatórias dos fonemas, auxiliando o caráter estético ou afetivo do enunciado, proposto pelo artista (MARTINS, 2000). Outro traço relacionado à expressividade refere-se aos tempos das formas verbais na canção. Ao tratar sobre um tempo anterior ao presente e o conjunto dos acontecimentos que compõe a história de alguém ou de algo, no caso, a sua história, o sambista recorre, em grande parte, à conjugação do pretérito perfeito do indicativo, “lavou”, “vestiu”, “teve”, “falou”, “disse”, “marejou”, “lembrou”, “entregou”, pela qual se nota uma ação já finda ou um estado 124

anterior ao momento em que se fala. A ação se dá como concluída, afastando-se do presente e alcançando a intencionalidade discursiva (CUNHA, 2001). Percebemos também a oposição entre as formas do pretérito perfeito do indicativo, citadas, as do imperfeito do indicativo, “era”, “tinha”, “valia”, “vivia”, “devia”, na tentativa de valorização do passado, e as formas do presente do indicativo “liga”, “é”, como constatação do esquecimento e da irrelevância da tradição cultural. Martins (2000) aponta que, após a menção ao fato passado, com o auxílio do pretérito perfeito, o sujeito utiliza o tempo da simpatia, no caso, o imperfeito. Quanto à funcionalidade das formas verbais, ainda apontamos os chamados verbos dicendi, auxiliares na reprodução ou suposta reprodução fiel e textual das palavras e ações dos interlocutores dos discursos, dos diálogos (BECHARA, 2002). Na canção, temos “falou” e “disse” como exemplos sugestivos na retomada da oralidade das histórias antigas. Ressalta-se a hipótese do resgate da memória, por parte do artista, na ocorrência da forma “lembrou”. Outras palavras também aparecem na canção como referências semânticas à história e à memória dos velhos como “bisavô”, “escravo”, “negro fujão”, “escravidão” e “velho” em oposição à expressão adverbial, “hoje”, recorrente em vários versos, demarcando o tempo da depreciação de hábitos culturais apontados por Nei Lopes.

Chutando o balde Nei Lopes

Chutar o balde É quando a gente Está cansado de fazer Realizar e acontecer

Mas pra chutar Tem que saber Onde é que o balde Vai bater Pra coisa entrar Sem ofender Suavemente

Quem não tem água pra beber Nem cozinhar seu de-comer Nem pra lavar, não vai viver Chutando o balde Quem já sofreu e aprendeu 125

Leva na manha como eu E faz um samba igual ao meu Que o povo aplaude

Não vale a pena ser juiz Com tanta fraude Minando o centro do país E os arrabaldes Como diz Seu Aldir da Garibaldi “Quem não aguenta batidão Vai de Vivaldi” Ou faz um samba igual ao meu Que o povo aplaude

No ritmo falado do rap, em “Chutando o balde”, o compositor esclarece a fidelidade ao samba e às raízes nacionais, marcadas por um fio condutor de ironia. A canção, como um todo, representa um texto metadiscursivo em relação ao posicionamento do próprio Nei Lopes em outras composições. A expressão “Chutando o balde”, em sentido estrito, revela a significação da insatisfação seguida da ação de rebeldia ou manifestação polêmica. O compositor inicia, definindo a expressão “chutar o balde” e a quase confissão do estado da sua alma sambista. Vale-se da metalinguagem como recurso expressivo para dizer ao seu leitor-ouvinte sobre “Chutar o balde/ É quando a gente/ Está cansado de fazer...”. Na concepção de Valente, esse ato de comunicação “é a linguagem através da própria linguagem, ou seja, ela explica ou comenta a si mesma” (1998: 95). Em seguida, o compositor continua os versos utilizando um articulador argumentativo responsável por alertar, esclarecer que o zelo e a sabedoria são as armas para que toda e qualquer mensagem seja eficaz e entendida “Mas pra chutar/ Tem que saber/ Onde é que o balde/ Vai bater/ Pra coisa entrar/ Sem ofender/ Suavemente”. Os introdutores de relações discursivo- argumentativas (conjunção, contrajunção [oposição/contraste/concessão], justificativa, explicação, conclusão, generalização, disjunção argumentativa, especificação, comprovação, entre outras) são operadores que articulam dois atos de fala, em que o segundo toma o primeiro como tema, no caso, com o fim de contrapor-lhe argumentos, responsável pela orientação argumentativa dos enunciados (KOCH, 2006). Os versos reforçam a ideia de que, para “chutar o balde”, devemos ter prudência. O uso do paralelismo “Nem cozinhar seu de-comer/Nem pra lavar, não vai viver” denota o efeito rítmico da sequência fônica, apresentando “um certo isocronismo, que provoca 126

um padrão prosódico cadente” (AZEREDO, 2008: 514), a fim de sugerir a ligação entre as ações dos enunciados. Em defesa do samba, Nei Lopes ressalta o valor da experiência do sambista e declara que quem “Leva na manha como eu/ E faz um samba igual ao meu/ Que o povo aplaude” faz um samba de respeito, de verdade, parafraseando Ataulfo Alves e Paulo Gesta, “na cadência bonita do samba”. O artista também valida o empréstimo semântico da figura do “juiz”, aquela com autoridade máxima para criticar o cotidiano do país: “Não vale a pena ser juiz”. Introduz a visão político-social configurada por meio da metáfora,“Com tanta fraude/ Minando o centro do país/ E os arrabaldes”, à cidade de Brasília, e bem como à corrupção e à ganância. Nas palavras de Azeredo, entendemos que as construções metafóricas se percebem “quando se dá a um significante já existente na língua um significado novo graças a uma relação de semelhança entre os conceitos associados” (AZEREDO, 2002: 101). Na perspectiva intertextual, o sambista traz o texto de Aldir Blanc, compositor e escritor brasileiro, e a referência à Rua Garibaldi, onde mora, na Tijuca, bairro do Rio de Janeiro, ao citar “Como dizia Seu Aldir da Garibaldi”, estabelecendo, logo em seguida, a referência explícita por meio dos versos “Quem não aguenta batidão/ Vai de Vivaldi”. No caso, a intertextualidade é explícita, pois assim se apresenta, segundo Koch, “quando, no próprio texto, é feita menção à fonte do intertexto, como acontece nas citações, referências, menções, resumos, resenhas e traduções, na argumentação por recurso à autoridade (...)” (2006: 146). Por meio do elemento linguístico marcador de alternância ou, Nei Lopes registra, apenas, como caminhos para uma canção com qualidade sonora e letra apurada, a voz do referente anterior ou a sua própria voz, “Ou faz um samba igual ao meu/ Que o povo aplaude”. Apresenta-se mais um articulador discursivo-argumentativo e, como aponta Koch, não se trata “de um operador (de tipo lógico) de disjunção, exclusiva ou inclusiva, mas de um operador de disjunção argumentativa, que tem um efeito de provocação, de convocação à concordância” (2006: 131).

Pala pra trás Magnu Sousá/ Nei Lopes

Lá vem ele outra vez De boné tipo inglês Mas de pala pra trás 127

Quem é esse cara, compadre? O que é que ele faz?

Com a pala na nuca Ele é fraco da cuca Que estranho ele é Ou será que é uma touca Muito, muito louca O boné do Mané?!

Vira essa pala pra frente Antes que o mal te aconteça

Isso é mais um banal lero-lero Que os gringos puseram Na tua cabeça

A pala é a maior proteção Pros olhos e a visão Quando a luz é demais A não ser que a sensibilidade Em Vossa Majestade Venha lá de trás

Em retomada aos elementos formatadores da crônica social e para a representação do traço linguístico em Nei Lopes, tomemos, como exemplo, “Pala pra trás”, de Magnu Sosá e Nei Lopes. A letra descreve com peculiaridades linguísticas um sujeito influenciado pela modernidade, pelos hábitos e pelos costumes estrangeiros. Contém a afirmação de quem é “do samba” não usa a pala do seu boné para trás, expondo a posição de Nei Lopes em defesa do purismo na caracterização do sambista e o sujeito que não respeita as raízes do gênero musical, fraco da cuca, um alienado, um “maria-vai-com-as-outras”. Outra marca discursiva é a presença do interlocutor, o compadre, apontado sintaticamente e discursivamente como vocativo (AZEREDO, 2002), com quem os questionamentos iniciais se estabelecem, seguido de pontuação grafada por exclamações e interrogações, o que confirma o espanto com a figura do mané. Em Martins, há o registro do termo, à parte da estrutura da oração, prestando-se a várias funções da comunicação e revelando “o sentimento do falante em relação ao interlocutor, podendo assumir tonalidades várias, que vão da ternura à rispidez” (2000: 215). Quanto ao papel do interlocutor, Charaudeau define o vocativo como a pessoa que estabelece os diálogos, as discussões, as conversas com os outros. E 128

ainda acrescenta, “mais precisamente, designa, do ponto de vista daquele que fala, a pessoa que, em uma troca verbal oral, representa ao mesmo tempo o destinatário do sujeito falante e aquele que tem o direito de tomar a palavra em seu turno, a responder, a replicar ao locutor” (2008: 287). E, se outro sambista, Bezerra da Silva, já cantava que “malandro é malandro e mané é mané”, cabe entender que o sujeito contado pelos compositores é alguém externo ao contexto samba. A marca imperativa registrada “Vira essa pala pra frente/ Antes que mal te aconteça” reforça o caráter da ordem, nos múltiplos sentidos, expressando que, no cenário do samba, não há espaço para aquilo “Que os gringos puseram/ Na tua cabeça”. É a própria contestação dos valores da modernidade, a fácil aceitação e inserção dos modos e atitudes de outros países. Percebemos uma possível crítica aos ritmos estrangeiros, como o hip-hop, por exemplo. No caso, os conteúdos implícitos colaboram para a análise, uma vez que “só podem ser identificados graças a outros fatores, em princípio contextuais” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008: 271). A própria “pala pra trás” permite combinar as informações extraídas do enunciado, a fim de se construir uma representação semântico-pragmática coerente e verossímil do enunciado. Os adeptos do hip-hop usam o boné de forma diferente, na formação de um estilo visual. Amaral aponta que os dois ritmos pertencem a culturas de origem negra, assimiladas por culturas diversas, como a europeia e a americana (Central, Norte e Sul), “mas basicamente, ambos, o samba e o hip-hop, são de origem afro, mesmo que, no caso do samba, uma mescla de ritmos afro-brasileiros e no caso do hip-hop, de origem jamaicana” (2010:95). Na estrofe final, existe um tom dicionarístico, conceitual, de definição sobre a pala, “A pala é a maior proteção/ Pros olhos e a visão/ Quando a luz é demais”, marcando a importância desse objeto e encerrando com humor, tipicamente carioca, e subentendendo uma possível condição sexual do sujeito, no caso, a homossexualidade, “A não ser que a sensibilidade/ Em Vossa Majestade/ Venha lá de trás”.

Goiabada Cascão Wilson Moreira/ Nei Lopes

Goiabada cascão em caixa É coisa fina, sinhá, que ninguém mais acha! Rango de fogão de lenha, na festa da penha, comido com a mão Já não tem na praça, mas como era bom! Hoje só tem misto quente, só tem milk-shake, só tapeação. Já não tem mais caixa de goiabada cascão. 129

Samba de partido alto, com a faca no prato e batido na mão. Já não tem na praça, mas como era bom! Hoje só tem pop-rock, só tem hip-hop, só imitação. Já não tem mais caixa de goiabada cascão. Vida na casa de vila, correndo tranquila, sem perturbação Já não tem na praça, mas como era bom! Hoje só tem conjugado que é mais apertado do que barracão. Já não tem mais caixa de goiabada cascão.

A partir do título, “Goiabada Cascão”, compreendemos a intenção do compositor em validar um símbolo da tradição cultural, num determinado tempo da história brasileira, e um reconhecimento de algo presente na memória do povo, o que se evidencia, por exemplo, no verso “É coisa fina, Sinhá, que ninguém mais acha!”, ao expressar que a “Goiabada Cascão em caixa” é do passado, de um tempo que não se pode mais reviver. Notamos certa nostalgia nos versos da canção, com a medida melancólica e saudosista do sambista. No primeiro verso, “Goiabada cascão em caixa”, os elementos linguísticos que provocam percepção sonora, no caso, a aliteração presente na repetição do fonema consonantal oclusivo [k], “cascão/caixa”, sugerindo algo em fechamento, no caso, a própria goiabada colocada com o invólucro. Martins registra que “as consoantes oclusivas, pelo traço explosivo, momentâneo, prestam-se a reproduzir ruídos duros, secos (...)” (2000: 34). Salienta também que a surda [k] dá uma expressão mais forte, violenta, do que as sonoras. Há também a proximidade fonética da expressão “em caixa” com a forma verbal encaixa, do verbo encaixar, com o sentido de enfiar uma peça em outra, usando partes que se ajustam. Entendemos, assim, a possibilidade sugestiva do compositor de dizer que a “Goiabada cascão”, além de se apresentar “em caixa”, também se encaixa, se insere na embalagem, pertencendo à tradição cultural. Temos a análise fonossemântica de um dos recursos linguístico-expressivos utilizados na canção. O termo “sinhá” utilizado pelo artista, no segundo verso, se apresenta como vocativo, um termo de entoação exclamativa, evidenciando o interlocutor na composição. É outro vocábulo relevante, para a percepção do retorno ao passado histórico, sugerido por Nei Lopes. A palavra “rango”, expressão popular que designa comida, refeição, surge como exemplificação sob a perspectiva diacrônica. Bastante utilizada na linguagem coloquial, percebemos como as manifestações discursivas se realizam também com termos populares, na informalidade comunicativa e, ao longo dos tempos, não mais utilizados, oferecem espaços para possível renovação lexical, comprovação da dinâmica linguística. 130

Nas expressões “fogão de lenha”, e não a lenha como as gramáticas normativas, em geral, apontam, “festa da Penha” e “comido com a mão”, há o emprego de locuções adjetivas e adverbiais, estabelecendo uma caracterização de costumes não existentes nos dias de hoje. As locuções adjetivas “de lenha” e “da Penha” são expressões formadas de preposição e substantivo com a função de adjetivo, modificando o substantivo. Particularmente, Bechara alerta para um fato que notamos nos exemplos, “nem sempre encontramos um adjetivo de significado perfeitamente idêntico ao de locução adjetiva” (2002: 144). Já a locução adverbial “com a mão”, também formada por preposição e substantivo (no exemplo, o substantivo está acompanhado do artigo definido), exerce a função de modificador do verbo. Outros versos, “Samba de partido alto com a faca no prato e batido na mão” e “Vida na casa de vila, correndo tranquila sem perturbação” corroboram o saudosismo de um tempo de tradições socioculturais que não existe mais. Na oposição entre os termos “conjugado” e “barracão”, temos a crítica social do artista em relação à nova prática de moradia que não garante a felicidade, nem o conforto de outra época. Nei Lopes define a Festa da Penha como “festejo popular tradicional, realizado desde 1728, nos domingos de outubro, em louvor de Nossa Senhora da Penha de França, em sua igreja” (2012: 152). Atos religiosos como subir os 382 degraus da escadaria (a tradição conta 365, como os dias do ano), beber a água das nascentes, consideradas milagrosas, ver os pagadores de promessas subindo de joelhos, com velas acesas, fazem dessa festividade uma das maiores manifestações populares do início do século XX. Há alguns anos, observamos a queda da frequência e do encantamento dos fieis, em virtude dos altos índices de violência nas redondezas da Igreja. No verso “Já não tem na praça, mas como era bom!”, existe ocorrência da sinédoque na utilização do termo “praça”, posto que a expressão nomeia uma das partes da totalidade (AZEREDO, 2008), no caso, a cidade ou o universo local do compositor. Martins define tal figura de linguagem como “a troca de palavras com significado de diferente extensão, havendo entre elas uma relação de inclusão” (2000: 103). Outro elemento expressivo no verso é a conjunção adversativa “mas”, responsável por estabelecer a relação de sentido pretendida pelo compositor, a oposição entre o passado e o presente. As ideias de Azeredo se fazem oportunas, ao afirmarem que “o fato ou ideia introduzido por mas recebe um realce em face da ideia anterior e se impõe à atenção do ouvinte ou leitor, funcionando como argumento para os efeitos de sentido 131

que o enunciador pretende produzir” (2008: 305). A primeira oração, de efeito negativo, revela a insatisfação, caracterizando a tristeza na constatação, enquanto, a segunda, de efeito positivo, eleva, realça e valoriza a época quando havia o costume. As expressões adverbiais “já” e “hoje” desempenham a função de delimitadores do tempo presente, adjuntos verbais, funcionando semanticamente em referência ao significado do verbo como uma época reconhecível pelo interlocutor relativamente ao momento em que acontece a enunciação (2008: 285). A presença de estrangeirismos como “milk-shake”, “pop-rock” e “hip-hop” leva à reflexão sobre o processo de inserção dos termos estrangeiros e a sua absorção no vernáculo. Nos exemplos da canção, permanece o sistema gráfico da língua de origem, caracterizando um tipo de estrangeirismo, o xenismo. Sob a análise de Lapa, “o estrangeirismo tem suas vantagens: aumenta o poder expressivo das línguas, esbate a diferença dos idiomas, tornando-os mais compreensivos, e facilita, por isso mesmo, a comunicação das ideias gerais” (1998: 43-4). As expressões empregadas pelo artista ainda são empregadas com recorrência, comprovando a eficácia discursiva de cada uma delas e a não obsolescência da palavra.

Samba de fundamento Maurílio de Oliveira/ Magnu Sousá/ Nei Lopes

Vestiu o meu terno de linho e ficou feito um morto Calçou meu pisante branquinho e sentiu desconforto Botou na cabeça o chapéu assim feito uma flor Pegou meu pandeiro e bateu com mais ódio que amor

E aí foi catando cavaco em fundos de quintais Arfando, como quem viola tempos virginais E como era sambista só porque Seu Rei mandou Vibrou minha sétima corda e nela se enforcou

O samba vem de muito longe De antes da Praça Onze De emoções ancestrais Candeia por sinal dizia Que ele é filosofia Não é moda fugaz

O samba é coisa de dentro Tem os seus fundamentos Os seus rituais E a gente só penetra essa seita 132

E em seu colo se deita Quando sabe o que faz

Em “Samba de fundamento”, a parceria de Nei Lopes se dá com Magnu Sosá e Maurílio de Oliveira na proposta de atacar os projetos de artistas apresentados no mundo do samba. Por meio de construções metonímicas, “quando se dá a um significante já existente na língua um significado novo graças a uma relação de proximidade entre os conceitos associados” (AZEREDO, 2002: 101), há um sujeito malandro e, seguindo ainda a linha entoada por Neguinho da Beija-Flor e Bezerra da Silva, um mané, que mal sabe tocar um dos instrumentos representativos da sonoridade do samba, o pandeiro. Há um signo não verbal, o ícone que, para Valente, “apresenta uma relação de semelhança entre o significante e o significado. Ícon, elemento grego, significa imagem” (1998: 15). Afora o traço semântico, Diniz o define como “instrumento de percussão, de origem árabe. Tornou-se conhecido na Europa, durante a Idade Média, geralmente associado a artistas ambulantes, mas também adotado por conjuntos da corte. No Brasil, foi divulgado pelas mãos de João da Baiana” (2012: 237). A descrição traçada evoca o sujeito: “Vestiu o meu terno de linho e ficou morto/ Calçou meu pisante branquinho e sentiu desconforto/ Botou na cabeça o chapéu assim feito uma flor/ Pegou meu pandeiro e bateu com mais ódio que amor”. As formas verbais “vestiu”, “ficou”, “calçou”, “sentiu”, “botou”, “pegou” e “bateu” indicam ações que se produziram no passado. Os exemplos da forma simples do pretérito perfeito do indicativo se realizam para “descrever o passado tal como aparece a um observador situado no presente e que o considera do presente” (CUNHA, 2001: 454). Além disso, justificamos o emprego por exprimir fatos do passado não habitual e por indicar ações momentâneas, definidas no tempo. Adiante, destacamos o caráter polissêmico de expressões, como “catando cavaco”, por manter associações com o instrumento de corda e, ao mesmo tempo, com a significação popular de uma topada seguida de vários tropeços; “viola”, na visão descritiva da língua, possibilitando a dupla significação do verbo violar (infringir, violentar e, popularmente, tocar a viola); “corda”, por também apresentar os sentidos de fio de aço, náilon ou metal que vibra, produzindo sons e também como objeto comprido, flexível, para ligar, amarrar, prender. Temos, assim, uma intencionalidade discursiva marcante e produtiva, baseada na polissemia, a propósito dos diferentes sentidos de uma mesma palavra percebidos como extensões de um sentido básico (AZEREDO, 2008). 133

Os compositores localizam o samba como gênero musical de tempos antigos, para denotar a fundamentação, as raízes e argumentam, pela voz de Candeia, compositor e cantor, reconhecendo sua autoridade na história do samba: “Que ele é filosofia/ Não é moda fugaz”. Se, por um lado, é filosofia, os artistas destacam também, pelas metáforas, a associação com a religião: “O samba é uma coisa de dentro/ Tem os seus fundamentos/ Os seus rituais/ E a gente só penetra essa seita/ E em seu colo se deita/ Quando sabe o que faz”. O recurso metafórico do compositor “resulta de uma busca, da qual participam a sensibilidade e a imaginação, controladas pelo espírito crítico do poeta” (MARTINS, 2000: 96). A metalinguagem no samba é outro fator linguístico em Nei Lopes. A partir das ideias de Valente, afirmando que “há, na Música Popular Brasileira, várias canções que comentam o samba, a ele fazem alusão, rendem-lhe homenagem ou refletem sobre a questão cultural a ele pertinente” (1997: 131), Conforte (2007) apresenta o tipo de samba metalinguístico, o metassamba – samba que narra a própria história. O autor apresenta uma breve discussão sobre a noção de metadiscursividade, por perceber o recurso no momento em que o enunciador baliza seu discurso na situação da enunciação, ou seja, é o samba que contém o discurso sobre o samba.

Gostoso Veneno Wilson Moreira/ Nei Lopes

Este amor me envenena Mas todo amor sempre vale a pena Desfalecer de prazer, morrer de dor Tanto faz, eu quero é mais amor...

A água da fonte bebida na palma da mão Rosa se abrindo, se despetalando no chão Quem não viu e nem provou Não viveu, nunca amou...

Se a vida é curta e o mundo é pequeno Vou vivendo, morrendo de amor Ai!Gostoso Veneno...

Falar de amor com poesia, de um jeito irreverente, com abordagem, ao mesmo tempo, particular e universal. Assim, Nei Lopes compõe “Gostoso Veneno” e expõe as razões do amor 134

se comparar a algo que causa dano à saúde, a substância prejudicial ao organismo, levando à morte. Já no título, a anteposição do adjetivo “Gostoso” demarca o potencial afetivo- conotativo, com função explicitadora, de realce. Para Cunha, “sendo a sequência adjetivo + substantivo provocada pela ênfase dada ao qualificativo, decorre daí a noção de que, anteposto, o adjetivo assume um valor subjetivo” (2001: 266). Dessa subjetividade decorre a relação semântica estabelecida pelo compositor entre o amor e o “Gostoso Veneno”, que nomeia e norteia a canção. Martins aponta que “o adjetivo anteposto ao substantivo forma com ele uma espécie de grupo fraseológico, em que ambos os elementos perdem um pouco do seu valor, em proveito do conjunto” (2000: 128). Assim, no verso, há a enunciação de uma ideia geral, sem precisão, porque nem sempre o veneno é gostoso. As posições sentimentais não colaboram para a nitidez das ideias e tendem a expressar construções usuais de intensidade e clichês, como grave acidente e suave melodia. Outra questão expressiva percebida no título, e ao longo da canção, diz respeito à construção metafórica que compreende o amor como algo fatal, funesto, desastroso, mas que, ao mesmo tempo, promove a vida. Temos também a antítese, estabelecendo “a relação entre duas unidades de significado – palavras, sintagmas ou enunciados – que expressam conteúdos opostos” (AZEREDO, 2008: 497). A oposição estabelecida pelo compositor revela uma contraposição simétrica das palavras, a fim de enfatizar a contraditoriedade manifestada pelo enunciador. Azeredo ainda acrescenta, “essa noção de oposição muitas vezes só pode ser apreendida a partir de um determinado contexto” (2008: 497). É o que verificamos por meio das palavras e expressões contextualizadas na canção. Em “Este amor me envenena”, a forma verbal “envenena” no tempo presente do indicativo demonstra uma ação constante, observado na sua duração, manifestado no discurso. Tal recurso linguístico é empregado “para indicar ações e estados permanentes ou assim considerados, como seja uma verdade científica, um dogma, um artigo de lei (presente durativo)” (CUNHA, 2001: 448). Mais do que observar o tempo presente do indicativo, é percebermos na construção a importância da categoria do aspecto verbal presente na forma “envenena”, ao estabelecer “o ponto de vista do qual o locutor considera a ação expressa pelo verbo” (2001: 382). 135

No verso seguinte, “Mas todo amor sempre vale a pena”, consideramos as expressões “todo” e “sempre” como hiperbólicas, por designarem a intensidade da informação revelada. De fato, o exagero e a intensidade do conteúdo levam a pensar numa quase impossibilidade da validade permanente de todo amor e à obtenção da maior expressividade. Quanto à intenção do compositor, nos servimos das ideias de Azeredo, “a expressão exagerada amplia o seu ponto de vista sobre a matéria apresentada, revelando seu juízo passional do fato” (2008: 498). Sobre a análise morfossemântica da palavra “desfalecer”, chama atenção o emprego do prefixo latino des- ligado ao vocábulo falecer. Cunha assinala o sentido “separação, ação contrária” (2001: 85) e compreendemos que a palavra utilizada pelo compositor não remete à ideia exatamente contrária, esperada pelo usuário da Língua. Os dicionários, em geral, associam a palavra falecer a deixar de viver, perder a vida, morrer; em contrapartida, o significado apontado para desfalecer relaciona-se a perder ou fazer perder os sentidos, desmaiar, e não a viver, existir, perdurar. O des- de desfalecer é, sim, um prefixo, tanto quanto em desgastar (sin. de gastar), desinfeliz (sin. de infeliz). Nessas formas, ele modifica levemente ou modaliza, se assim se pode dizer, a intensidade da forma primitiva, tanto que desfalecer é "menos" que falecer e desgastar é "menos" que gastar. Mário Barreto tratou desse emprego do prefixo des- no capítulo IV da obra intitulada Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa, que teve uma edição pela Presença, em 1980. Ele entendia que se tratava de um caso de realce, já que a forma derivada preserva o significado fundamental da forma primitiva. Entendamos que realce signifique, no caso, um meio de chamar atenção para a intensidade do significado negativo da palavra, já presente na forma primitiva: desfalecer, desinfeliz, desinquieto, desgastar, dentre outros. Em “Desfalecer de prazer, morrer de dor”, notamos a intenção de Nei Lopes em expressar uma gradação, ou seja, uma sequência de palavras ou expressões empregadas segundo uma lógica semântica progressiva. O efeito observado na canção é o de fazer o interlocutor perceber as várias etapas no processo de intensificação da mensagem. Como prova dessa inter- relação com a hipérbole, a ideia de intensidade, Azeredo diz que “por se realizar dentro de um processo paulatino, a gradação é uma forma perifrásica de hiperbolização de uma ideia que habita o espírito do enunciador” (2008: 499). Quanto à atitude subjetiva do falante e ao exagero das ideias, tal recurso estilístico se dá “por meios linguísticos os mais variados: a entoação anormal, a repetição, a escolha do termo mais (ou menos) intensivo de um paradigma sinonímico, a 136

superlativização em suas múltiplas formas, o pleonasmo, a metáfora, a comparação metafórica” (MARTINS, 2000: 217). Outros processos gradativos também são percebidos nos versos “Rosa se abrindo, se despetalando no chão” e “Vou vivendo, morrendo de amor”. Ressaltamos o uso do gerúndio em “abrindo” e “despetalando”, acompanhadas do pronome reflexivo se que “revela o papel de ser afetado ou paciente assumido pelo indivíduo ou coisa designados pelo sujeito da frase” (2008: 277) e em “vivendo” e “morrendo”, a presença do verbo ir em posição anterior às formas gerundiais, expressando, em ambos os casos, “uma ação durativa que se realiza progressivamente ou por etapas sucessivas” (CUNHA, 2001: 493). No último caso, o estabelecimento da antítese viver x morrer nos sugere uma possível alternância, inconstância do amor, passível de prazer e dor. A partir do verso “Quem não viu e nem provou”, a aliteração provocada pelo uso recorrente de vocábulos com o fonema consonantal [v], “viu”, “provou”, “viveu”, “vida”, “vou”, “vivendo”, “veneno”, pelo seu aspecto constritivo e sonoro, amplia a condição de se manter vivo, mesmo provando esse amor que é veneno. Percebemos a atuação do recurso expressivo no propósito do enunciador por meio da iconicidade da linguagem, dando origem ao que Mattoso Câmara Jr. (1986), Martins (2000) e Azeredo (2008) chamam de harmonias imitativas, ratificando e ampliando o sentido.

Senhora Liberdade Wilson Moreira/ Nei Lopes

Abre as asas sobre mim Oh, senhora liberdade Eu fui condenado Sem merecimento Por um sentimento Por uma paixão Violenta emoção Pois amar foi meu delito Mas foi um sonho tão bonito Hoje estou no fim Senhora liberdade abre as asas sobre mim Não vou passar por inocente Mas já sofri terrivelmente Por caridade, oh liberdade abre as asas sobre mim

137

“Senhora Liberdade” traz à cena romântica um pedido de independência afetiva, um lamento de opressão, ocasionado por um sentimento arrebatador expresso pelo enunciador. Notamos a aceitação do compositor em assumir sua responsabilidade e declarar seu sofrimento e sua paixão. Nei Lopes, novamente, expõe o lado ambíguo e contraditório da feição sentimental, com as consequências por tal experiência emotiva. A expressão que intitula a canção, “Senhora Liberdade”, caracteriza o recurso expressivo denominado prosopopeia que “consiste em transportar para a cena enunciativa seres que logicamente não podem dela participar, tornando-os instâncias interlocutivas” (AZEREDO, 2008: 503). Martins ratifica que ela “é uma figura de linguagem de certa grandiosidade, que implica poder imaginativo” (2000: 216). No contexto apresentado, à “Liberdade” são conferidas atribuições próprias do ser humano e a ela também é dada a responsabilidade de livrar os danos afetivos. A animação do sentimento liberdade torna-se mais evidente pelo emprego do vocativo, “Oh, senhora liberdade”, tendo em vista o tom de chamamento, de interpelação. Encontramos em Mattoso Câmara Jr. respaldo para a afirmação, “em português, caracteriza-se apenas pela entoação exclamativa e muitas vezes por interjeição de chamamento, como – ó, eh, olá!” (1986: 243). A assonância formada em “Abre as asas sobre mim” se dá pela incidência repetitiva do fonema vocálico [a], oral e em posição tônica aberta (CUNHA, 2001). Pelo grau de abertura articulatória, inferimos que o compositor oferece, assim, a ideia de autonomia, de permissão, de condição de ser livre. Com as palavras de Azeredo, há a relevância do recurso linguístico, porque o material fonético pode cumprir uma tarefa expressiva atribuída “às peculiaridades articulatórias dos fonemas, quais sejam, seu modo, sua zona e seu ponto de articulação, seu timbre, sua altura, sua intensidade, etc., contribuindo para a feição estética ou afetiva do enunciado” (2008: 509). Em “Violenta paixão”, o recurso estilístico da anteposição do adjetivo ao substantivo dá a dimensão da subjetividade empregada pelo artista, no tocante à expressiva ação de violar, arrebatar, tomar o afeto do outro. Seguidamente, em “Pois amar foi um delito”, o conectivo “pois” responde pelo tom explicativo da causa condenatória e as expressões “amar” e “delito” imprimem a possibilidade de significação do crime associado ao amor. Também notamos o emprego da palavra “delito”, em vez de crime, infração, como caso de eufemismo que, na concepção de Azeredo, denota o recurso estilístico responsável pela “atenuação de um fato 138

trágico, grosseiro ou desagradável por meio de expressões consideradas mais amenas” (2008: 500). Outro conectivo aparece no verso seguinte, “Mas foi um sonho tão bonito”, estabelecendo a oposição semântica com a ideia expressa no verso anterior, “Pois amar foi um delito”. O contraste se confirma na tensão latente entre as forças opostas dos campos semânticos envolvidos nos significados das palavras “delito” e “bonito”, revelando, assim, uma representação da antítese. Traço expressivo em algumas canções de Nei Lopes, a ironia se apresenta no verso “Não vou passar por inocente”, pelo fato de o enunciador desejar, pela entoação e pelo contexto, o sentido do oposto do que declara. É necessária a atenção do receptor quanto ao entendimento da violação da verdade entre o que o emissor expressa literalmente e aquilo de que fala. Para Martins, “o conhecimento do referente é indispensável para que se compreenda o sentido que se deve atribuir ao enunciado. Na ironia, o sentido oposto ao literal” (2000: 217). Percebemos a graça extraída da sutileza e consideramos sua eficácia advinda da cumplicidade cooperativa do ouvinte e do leitor. Cabem algumas considerações quanto à versificação. A combinação rímica apresenta, a partir do quarto verso da canção, “Sem merecimento”, o esquema de rimas emparelhadas, por se sucederem duas a duas. Vejamos as ocorrências em “merecimento/sentimento”, “paixão/emoção”, “delito/bonito”, “fim/mim”, “inocente/terrivelmente”. Os exemplos, com rimas perfeitas, apresentam uma identificação absoluta entre os sons dispostos (BECHARA, 2002), mas apenas os dois primeiros exemplos citados são classificados como rimas pobres, “feitas com terminações muito correntes no idioma, principalmente as de palavras da mesma classe gramatical” (2002: 700), enquanto os demais possuem rimas ricas, “que se fazem com palavras de classe gramatical diversa ou de finais pouco frequentes” (2002: 700). Por fim, ressaltamos o tom apelativo da canção, caracterizando a função conativa da linguagem. Conforme Valente, tal função “está centrada no destinatário (também chamado receptor, decodificador ou ouvinte). Espera-se dele uma resposta ou uma atitude. A função conativa caracteriza-se por um apelo social” (1998: 90). O emprego do imperativo, na 2ª pessoa, “abre”, e o uso do vocativo “Oh, senhora liberdade” constituem marcas linguísticas desse recurso linguístico-expressivo. 139

É importante observar com quem Nei Lopes dialoga: as pessoas, o povo, o estado carioca, a brasilidade latente. Nos sambas, a parceria é uma instituição, funciona como matiz, regido por preceitos éticos e morais responsáveis pelos elos de solidariedade e respeito entre os sambistas, refletindo nas relações estreitas entre os integrantes do ritmo, apontadas como prova da sociabilidade inerente ao samba. Falar das parcerias é falar de encontros em que se vivenciam momentos ímpares, trocas de experiências, independentemente do lugar, um café, um bar, nos terreiros dos subúrbios, por onde passar a alma carioca. Em respeito aos parceiros de Nei Lopes, valorizamos o caráter identitário, o compartilhamento das ideias, a colaboração para o seu “estilo” de compor, de expor, de revelar, de desvelar aquilo que o Rio de Janeiro tem de mais valioso: o povo carioca. A busca pela identidade negra e carioca, a defesa pelo “samba de raiz”, a religiosidade advinda do candomblé, a mistura de outros vieses rítmicos, associados aos traços linguísticos citados nas canções, corroboram a ideia de como o artista carioca escreve, com a alma e com o coração, e o samba se torna expressivo na formação do “estilo” das composições.

4.2 – Com expressividade: as canções de Arlindo Cruz

Meu lugar Mauro Diniz/ Arlindo Cruz

O meu lugar É caminho de Ogum e Iansã Lá tem samba até de manhã Uma ginga em cada andar O meu lugar É cercado de luta e suor Esperança num mundo melhor E cerveja pra comemorar O meu lugar Tem seus mitos e seres de luz É bem perto de Osvaldo Cruz, Cascadura, Vaz Lobo e Irajá

O meu lugar É sorriso é paz e prazer O seu nome é doce dizer Madureiraaa, lá lá laiá, Madureiraaa, lá lá laiá 140

Ah que lugar A saudade me faz relembrar Os amores que eu tive por lá É difícil esquecer

Doce lugar Que é eterno no meu coração E aos poetas traz inspiração Pra cantar e escrever

Ai meu lugar Quem não viu Tia Eulália dançar Vó Maria o terreiro benzer E ainda tem jogo à luz do luar

Ai que lugar Tem mil coisas pra gente dizer O difícil é saber terminar Madureiraaa, lá lá laiá, Madureiraaa, lá lá laiá, Madureiraaa

Em cada esquina um pagode num bar Em Madureiraaa Império e Portela também são de lá Em Madureiraaa

E no Mercadão você pode comprar Por uma pechincha você vai levar Um dengo, um sonho pra quem quer sonhar Em Madureiraaa E quem se habilita até pode chegar Tem jogo de lona, caipira e bilhar Buraco, sueca pro tempo passar Em Madureiraaa E uma fezinha até posso fazer No grupo dezena centena e milhar Pelos sete lados eu vou te cercar Em Madureiraaa E lalalaiala laia la la ia... Em Madureiraaa

A reafirmação do lugar de origem, das características presentes em Madureira, bairro carioca, e das raízes do sambista registram a canção “Meu lugar”, de Arlindo Cruz. Nos primeiros versos, o compositor destaca a religiosidade do lugar: “O meu lugar é caminho de 141

Ogum e Iansã”, representada por dois elementos cultuados pelo candomblé, oriundos do animismo africano. Os registros religioso e cultural também se encontram em outro trecho: “Ai meu lugar/ Quem não viu Tia Eulália dançar/ Vó Maria o terreiro benzer/ e ainda tem jongo à luz do luar”. A referência à Tia Eulália se dá pelo fato de ser fundadora do G. R. E. S. Império Serrano e pelo casamento com Seu Nascimento, um dos grandes nomes do jongo brasileiro. A figura de Maria Joana Monteiro, a Vó Maria, personalidade marcante do Morro da Serrinha, em Madureira, na década de 70, com seu terreiro e a função de rezadeira, ilustra o vínculo e o respeito do compositor às práticas candomblecistas. Sob análise semântica, os verbos “dançar”, “benzer” e o substantivo “jongo”, pela associação ao campo da religiosidade afro-brasileira, se configuram como terminologias de subconjuntos razoavelmente homogêneos de “agrupamentos de substantivos, adjetivos e verbos designativos da organização conceptual de um campo de atividade ou de conhecimento (ex: léxico da pesca, léxico da música)” (AZEREDO, 2008: 412). Em: “Lá tem samba até de manhã/ Uma ginga em cada andar”, temos a intensidade da festa motivada pelos batuques e a evidência nas diferenças existentes entre as pessoas, confirmando a diversidade cultural, pessoal e artística do lugar. Compreendemos a forma adverbial Lá, como elemento de referência a “meu lugar” e, por meio das considerações de Koch, que este e outros advérbios podem funcionar como articuladores de conteúdo proposicional “que servem para sinalizar as relações espaciais e temporais entre o estado de coisas a que o enunciado faz referência ou estabelecer entre eles relações de caráter lógico- semântico” (2006: 130). Quanto à evolução ideológica dos advérbios, Martins dá a medida expressiva, ao compreender que as palavras invariáveis não foram menos atingidas que as outras pelos choques afetivos. Segundo a autora, “a língua ficou muito enriquecida com os novos valores semânticos; mas não há dúvida de que o estudo e até a compreensão desses tons de significado apresentam muita dificuldade, pela sua excessiva condensação” (2000: 219). Existe, assim, a percepção da dificuldade de apreensão do verdadeiro sentido da palavra adverbial, pela afetividade presente. Nas primeiras estrofes, a expressão “O meu lugar é” revela algumas peculiaridades linguísticas relevantes para o entendimento da proposta estilística do compositor. Tomemos a utilização do pronome possessivo “meu”, como elemento indicativo da relação de proximidade/posse expressa pelo artista com relação ao local de suas experiências pessoais. Há 142

um tom afetivo no emprego da forma pronominal (CUNHA, 2001), acentuando o sentimento de deferência, de respeito aos elementos referidos na canção e de intimidade com o bairro. A repetição inicial nas quatro primeiras estrofes também revela a intencionalidade discursiva com a proposta de definição, grafada pela forma verbal “é”, assim apresentando as características do lugar e do sujeito mencionados. As palavras “luta” e “suor” aparecem associadas à ideia do trabalho, das atividades que dignificam o homem, na expectativa de uma satisfatória qualidade de vida. Em contrapartida, no mesmo ambiente onde as pessoas trabalham, há “cerveja pra comemorar”, ou seja, tem-se espaço para as festividades e a alegria. Na passagem hiperbólica, “tem seus mitos e seres de luz”, Arlindo destaca as celebridades, parceiros, intérpretes, sambistas e artistas de Madureira, conferindo especial relevo à informação (AZEREDO, 2008), e indica que o seu lugar, o universo do samba carioca “é bem perto de Oswaldo Cruz, Cascadura, Vaz Lobo, Irajá”, configurando a presença do subúrbio do Rio de Janeiro nos versos da canção. Em seguida, estende à alegria e à sonoridade do lugar, ao prazer que o samba proporciona, “É sorriso, é paz e prazer/ O seu nome é doce dizer/ Madureira, lá, laiá/ Madureira, lá, laiá”. Para representação do tom saudosista e contemplativo, utiliza as expressões interjetivas “Ah que lugar”, “Ai meu lugar” e “Ai que lugar” com o mesmo valor nostálgico e admirador. Valemo-nos da observação de Cunha sobre as interjeições, “com efeito, traduzindo sentimentos súbitos e espontâneos, são as interjeições gritos instintivos, equivalendo a frases emocionais” (2001: 592). Os versos: “A saudade me faz relembrar/ Os amores que eu tive por lá/ É difícil esquecer” com suas formas verbais “relembrar”, “tive”, “esquecer” denotam as lembranças do compositor, confirmando o mesmo saudosismo. A anteposição do adjetivo em “Doce lugar” assume o sentido figurado da ternura, do encantamento, da tranquilidade do bairro. O potencial conotativo do adjetivo revela o caráter explicitador e aponta a característica semiótica assumida no vocábulo anteposto (AZEREDO, 2008). Em seguida, por meio da seleção lexical nos versos: “Que é eterno no meu coração/ E aos poetas traz inspiração/ Pra cantar e escrever”, percebemos a relação de proximidade, interação e inspiração dos “poetas” compositores da escrita melódica e suburbana de Madureira. No trecho “tem mil coisas pra gente dizer/ o difícil é saber terminar”, o compositor exagera na hipérbole “mil coisas” e pelo conteúdo semântico-expressivo na infinidade de elementos característicos da localidade. Na sequência “Em cada esquina, um pagode, um bar” 143

conota outra imagem hiperbólica do bairro, permitindo a percepção da intensa movimentação rítmica em torno do samba. As referências às escolas de samba também aparecem na descrição, reforçando a ideia de lugar do samba, pois “Império e Portela também são de lá/ Em Madureira”. Na tentativa de realçar o caráter comercial do bairro, Arlindo Cruz cita “E no Mercadão você pode comprar”, chamando atenção para o Mercadão Popular de Madureira, lugar de compra e venda de mercadorias e apetrechos de todos os tipos. Essa diversidade comercial se constitui como reveladora da diversidade cultural na ambientação do comércio e, por conseguinte, do bairro (LOPES, 2012). A utilização do léxico popular também se apresenta na canção, por meio dos vocábulos “pechincha” e “fezinha”, permitindo a proximidade da língua com o povo. Quanto à “fezinha”, observamos a vitalidade do sufixo –(z)inha, associado ao substantivo “fé”, provocando a ampliação de sentidos e a consequente associação ao campo semântico das apostas e dos jogos. Na aplicação dos sufixos, em geral, Bechara ressalta que, em alguns casos, os “sufixos assumem valores especiais [por exemplo florão não se aplica em geral a flor grande, mas a uma espécie de ornato de arquitetura], enquanto outros perdem o seu primitivo significado, como carreta, camisola” (2002: 357). Assim como em “fezinha”, não há associação com fé pequena. Ao observar o valor afetivo dos diminutivos, Martins registra, por meio das ideias de Leo Spitzer, que “revelam uma ternura com o idioma, um enamoramento da língua que acaricia as palavras como se fossem pessoas” (2000: 115). Quanto às práticas sociais de lazer, os jogos aparecem nos termos: “Jogo de lona, caipira e bilhar/ Buraco, sueca pro tempo passar”, demonstrando o prazer lúdico dos moradores. A associação ao jogo do bicho (bolsa ilegal de apostas em números representativos de animais e criado, em 1892, pelo Barão João Batista Viana Drummond, fundador e proprietário do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, em Vila Isabel) está presente nos versos: “Grupo, dezena, centena e milhar/ Pelos sete lados eu vou te cercar”, com o caráter polissêmico das palavras. “Grupo” e “cercar”, por exemplo, adquirem novos sentidos em função da necessidade de adequação à prática do jogo do bicho, mostrando “que o uso de determinadas palavras e expressões, além de descrever as realidades de que se fala, cria uma representação do falante, do ouvinte e da interação verbal” (ILARI, 2001: 41).

Tô a bangu Franco/ Arlindo Cruz 144

Eu tô a Bangu, (Hum-um) tô na Irajá Se erramos sim, diga que Mauá Vou para Cambi para te encontrar

Meu bem, vou a pé, vou de trem Em qualquer lugar vou pra te buscar, Meu bem

Deodoro, Leblon, Madureira, ou Vila Vintém Em qualquer lugar vou pra te buscar, Lá em Paquetá Lá em Camará Pois é, Perco a paciência, perco a estribeira Morro de saudades, Morro de Mangueira

Eu não sei por onde, mas você se esconde E sim, São Cristovão, Ipanema, Tijuca, Quintino, Austin Deixa de maldade Tenha piedade

A homenagem ao subúrbio, a um lugar privilegiado pelo encontro do urbano com o rural, do nacional com o universal, aos lugares por onde o samba trilhou sua representação histórica na cidade do Rio de Janeiro e adjacências está presente nos versos da canção “Tô a bangu”. O termo popular “a bangu” inicia a canção, apontando para a coloquialidade marcante nas letras dos sambas. O efeito expressivo da construção linguística está registrado na memória dos suburbanos. Nei Lopes, em Dicionário da Hinterlândia Carioca, define seu significado: “locução adverbial que representa o modo desorganizado, sem regras, de se fazer alguma coisa. Originando-se nos campos de futebol, caiu na linguagem geral. Surgiu, provavelmente, por ocasião das primeiras partidas de futebol disputadas pelo Bangu Atlético Clube” (2012: 11). 145

Os bairros e localidades do subúrbio e adjacências (localizados em cidades próximas ao Rio de Janeiro) estão representados, direta e indiretamente, por dezoito denominações, “Bangu”, “Irajá”, “Mauá”, “para Cambi” (Paracambi), “Deodoro”, “Leblon”, “Madureira”, “Vila Vintém”, “Camará” (Senador Camará), “Paquetá” (Ilha de Paquetá), “paciência” (Paciência), “Morro de Mangueira”, “São Cristóvão”, “Ipanema”, “Tijuca”, “Quintino” (Quintino Bocaiuva), “Austin”. Esse repertório de lugares do samba traz algumas peculiaridades ligadas à lexicologia, estudo dos lexemas, suas estruturas e variedades e suas relações com os significantes, à onomástica, estudo histórico dos nomes próprios, mais especificamente, à toponímia, história dos nomes dos lugares. Selecionamos alguns, a fim de elucidar a riqueza linguístico-expressiva contida nas denominações. “Bangu”, com associações linguísticas à língua africana, apresenta várias hipóteses para a sua significação. Nei Lopes registra essa relação semântica e aponta para “a possibilidade de o topônimo ‘Bangu’ originar-se do quicongo (língua da região de Congo e Angola), do termo mbangu, que designa grande árvore, de casca amarga e adstringente, a qual talvez existisse na localidade, marcando-a para sempre” (2012: 39). A palavra “Irajá” é de origem ameríndia; seguindo as ideias de Teodoro Sampaio (1987), Nei Lopes explica, “no tupi ira-yá, o lugar do mel, a meleira – certamente, por ser o lugar por excelência das culturas apícolas indígenas” (2012: 190). Registramos a possibilidade de as grandes colmeias dos índios terem sido cultivadas no lugar de campos férteis e fartura de água. Câmara Jr. assinala a relevância dos topônimos “na história de qualquer língua como testemunhas das línguas sucessivas que vigoraram no país” (1986: 232-3). Outras denominações de bairros se associam a homenagens a pessoas ilustres do local ou a figuras históricas, como “Madureira”, referência a Lourenço Madureira, um boiadeiro arrendatário da Fazenda Campinho, uma das propriedades da região, “Deodoro”, em função do Marechal Deodoro da Fonseca, proclamador da República Brasileira, “Quintino”, nome do líder republicano Quintino Bocaiuva, e “Austin”, engenheiro que projetou a linha férrea que passa pela localidade. A interlocução estabelecida pelo compositor está registrada pelo vocativo “Meu bem”, no refrão. A expressão é responsável por interpelar o ouvinte, determinando a enunciação verbal. Uma de suas características marcantes é a entoação exclamativa, presente no chamamento do sujeito para o qual se dirige a ação comunicativa. Para Martins, o vocativo, assim como se apresenta no verso, “também é afetivo, pois revela o sentimento do falante em relação ao interlocutor, podendo assumir tonalidades várias, que vão da ternura à rispidez” (2000: 215). 146

Em relação às marcas de articulação na progressão do texto, Koch (2004) aponta, dentre os organizadores textuais, aqueles marcadores discursivos continuadores, responsáveis pelo encadeamento dos fragmentos da produção verbal. Em “Pois é”, temos um exemplo de marcador utilizado em textos falados, ou em textos escritos nos quais se deseja uma feição semelhante à da fala. Apesar de a autora não listar a expressão no rol desses operadores, consideramos por extensão semântica a justa classificação. Tais elementos não desempenham qualquer função sintática na frase e são auxiliares no estabelecimento de conexões entre os enunciados, objetivando a coesão e a coerência textual. Na canção, Arlindo se utiliza da construção textual como reformulador do discurso (aquilo que antecede à expressão) e introdutor do tom explicativo (o que segue após a expressão).

Nos versos “Lá em Camará/ Lá em Paquetá” e “Perco a paciência, perco a estribeira/ Morro de saudades, Morro de Mangueira”, além dos paralelismos sintáticos, temos os paralelismos rítmicos comprovados pela simetria nas construções dos versos e a exploração dos aspectos sonoros. Segundo Azeredo, “os segmentos fônicos da frase ou do verso devem apresentar um certo isocronismo, que provoca um padrão prosódico cadente” (2008: 514). Existe, assim, um recurso de estilo que promove a similicadência dos versos e o aproveitamento da camada fônica das palavras. Para Martins, “não se deve esquecer que a variedade (de fonemas), especialmente da gama vocálica, também constitui importante procedimento estético” (2000: 47). Ainda em “perco a estribeira”, o compositor se utiliza de uma expressão popular, marcada semanticamente pelo sentido figurado, que significa “descontrolar-se emocionalmente”. Mais uma vez, há coloquialidade, a fim de aproximar a canção ao universo do leitor/ouvinte. Nas ocorrências em que aparece a forma preposicional “pra”, “vou pra te buscar”, o tom coloquial, informal contribui para a maior interação entre aquilo que se lê/ouve. Propositalmente, na primeira estrofe, a preposição “para” surge na forma culta, com a intenção de promover a regularidade rítmica, a cadência dos versos “Vou para Cambi/ para te encontrar”. Se, para Ilari, “as palavras homônimas são aquelas que se pronunciam da mesma maneira, mas têm significados distintos e são percebidas como diferentes pelos falantes da língua” (2002: 103), em “Morro de saudades/Morro de Mangueira”, a consciência da homonímia é tomada como fator potencial da ambiguidade, na utilização da palavra “Morro”, e apresentada com o sentido de morte e lugar, respectivamente. Como exemplo de hipérbole, a 147

expressão “Morro de saudades” se confirma como figura de linguagem, posto que “o enunciador se serve do exagero – quase sempre inverossímil – do sentido para conferir especial relevo a alguma informação” (AZEREDO, 2008: 498). Consideramos a expressão hiperbólica como recurso estilístico de modalização, revelando o grau de envolvimento e interesse que o compositor apresenta na enunciação. Registramos também a possibilidade de as palavras “paciência” e “piedade” adquirirem novos sentidos, um jogo semântico estabelecido pelo artista, ao considerarmos os nomes de dois bairros do subúrbio carioca.

Amor à favela Rogê/ Arlindo Cruz

Os barracos de hoje, são de alvenaria. Não tem mais o silêncio, da Ave Maria. Hoje tudo é segredo, e circula o medo, em cada viela. Hoje o morro tem dono, também tem disputa, um total abandono filhos que vão a luta Gente que não se cansa Poesia esperança e amor a favela A música mudou A rosa já não fala Não canta, nem sorri O encanto acabou Injustiça e dor, é o que tem por aqui Crianças sem controle Sem o valor da vida Comunidade chora Mocidade perdida Mas ainda tem malandro Que chega tarde em casa Implora a patroa Por favor me perdoa! Pra ficar numa boa Ensaboa mulata, ensaboa

148

Por meio do tom descritivo da favela, demonstrando a transformação das características originais de formação, Arlindo Cruz escreve “Amor à favela”. Os versos iniciais “Os barracos de hoje/ São de alvenaria” apontam a mudança de padrão das favelas, no que tange à construção das moradias. As palafitas, estacarias que sustentam as habitações lacustres, e as moradias de madeiras foram substituídas por espaços com tijolos, ainda em locais reveladores da pobreza. Temos “a combinação de preposição + substantivo ou verbo no infinitivo apto a ocupar o lugar de um adjetivo” (AZEREDO, 2008: 170), ou seja, a utilização da locução adjetiva, “de hoje”, correspondente a atuais, responsável pela caracterização do substantivo “barracos” e pela orientação semântica do trecho. Em: “Não tem mais o silêncio/ Da Ave Maria”, retomamos à prática social e religiosa de se rezar a oração nos morros, ao entardecer, e provocar a reflexão sobre as experiências diárias, em cada morador. Existe intertextualidade, “propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos” (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2008: 288), possível de se estabelecer com referência à canção Ave Maria no morro, de Herivelto Martins, compositor e intérprete das décadas de 30 e 40. A canção contém versos representativos da visão idealizada do morro e a descrição originária do lugar: “Barracão de zinco/ Sem telhado, sem pintura/ Lá no morro/ Barracão é bangalô”, estabelecendo o diálogo entre as composições. Destacamos outras referências intertextuais na letra de Arlindo Cruz, por meio dos versos “A rosa já não fala” e “Ensaboa mulata, ensaboa”, associadas, respectivamente, às músicas As rosas não falam e Ensaboa, ambas de Cartola, cantor, compositor e violonista, um dos ícones da história da música brasileira. Além das relações temáticas entre as letras dos compositores, identificamos a reverência do sambista contemporâneo aos consagrados artistas do século XX. Expressões como “segredo”, “medo”, “dono”, “abandono”, “injustiça”, “dor” e versos como: “Crianças sem controle/ Sem o valor da vida/ Comunidade chora/ Mocidade perdida” integram o campo semântico (ULLMANN, 1967) da violência, da descaracterização do morro, como lugar tranquilo, da invasão populacional geradora da miséria e da pobreza, associadas à desesperança pela paz social. A expressão “comunidade” aparece como renomeação de favela, tentativa de reintegralização das classes e estratégia linguística de requalificação da localidade pobre, onde os barracos “São de alvenaria”. 149

No trecho: “Filhos que vão à luta/ Gente que não se cansa”, atentemos para a caracterização dos moradores da favela, como aqueles abençoados e protegidos “filhos” de Deus. Pessoas “que vão à luta”, o jargão usado para o trabalho honesto e o esforço daqueles que habitam o morro. A palavra “gente” denota a expressividade popular, a referência à criatura humana, ao povo brasileiro, ao ser comum. Ressaltamos outra situação intertextual com a propaganda televisiva, de tempos recentes, em que um brasileiro reafirma o orgulho de ser brasileiro e não desistir nunca. Um recurso linguístico nos mesmos versos diz respeito ao paralelismo sintático: “Filhos que/ Gente que...” para o estabelecimento da cadência melódica e funcionalidade expressiva e estrutural da língua. Para Azeredo, a correlação entre os versos “constitui um importante recurso de rendimento enfático na estrutura paralelística do discurso e, quando os elementos correlativos são bem utilizados, atuam no espírito do receptor da mensagem, despertando nele a atenção para as referências contidas nos pares” (2008: 511). Também verificamos o emprego do pronome demonstrativo “o”, como sujeito da forma verbal “é” e “Injustiça e dor” como predicativos. No caso, a antecipação do predicativo assume um valor estilístico de realce (CUNHA, 2001). Em ordenação mais comum, a frase seria O que tem por aqui é injustiça e dor. Questão relevante é a presença do acento intelectual na palavra “Injustiça”, uma vez que recai sempre na primeira sílaba da palavra, iniciada por consoante ou vogal. No caso, percebemos o aumento da duração, da altura e, sobretudo, da intensidade do vocábulo, um recurso eficaz para valorizar o sentido, a definição, em contraste com a noção contrária (CUNHA, 2001). A figura do malandro constitui-se personagem típica dos sambas, por conter características ligadas às artimanhas, à engenhosidade e à sagacidade. As ações da malandrice se associam ao carisma, à sedução, à agilidade, a fim de, como o provérbio popular “levar vantagem em tudo”. Descrevemos o sujeito da canção como bom vivant que, com astúcia e lábia, tenta resgatar a imagem perante a esposa: “Por favor, me perdoa!”, mas também pode ser quem se associa à bandidagem e ao tráfico de drogas e armas. Do ponto de vista semântico, identificamos a ampliação de sentidos em torno da expressão, pois, ao longo dos tempos, novas acepções se juntaram às existentes, caracterizando as diferenças entre o morador antigo do morro e o habitante dos dias atuais, o malandro contemporâneo. Registramos, no mesmo verso, o tom apelativo, típico da função conativa da linguagem. Para Valente, está “centrada no destinatário 150

(também chamado de receptor, decodificador ou ouvinte). Espera-se dele uma resposta ou uma atitude” (1998: 90). E é isso que o sujeito da canção espera: o perdão da amada. Quanto à visão normativa da língua, nos versos: “Mas ainda tem malandro/ Que chega tarde em casa”, cumpre apontar, primeiramente, dentre os múltiplos valores afetivos da conjunção coordenativa “mas”, a ideia de contraste (CUNHA, 2001), associada à ideia de adição sugerida pela forma adverbial “ainda”; outra questão observada acerca da norma culta é a transgressão à regência do verbo chegar, com o uso da preposição “em”, em vez de a, apontando, assim, para a informalidade e coloquialidade praticada pelos falantes. Há ainda uma marca da língua popular, a forma “pra” em: “Pra ficar numa boa”. Pelo viés metafórico e eufêmico da linguagem, o verso: “Ensaboa, mulata, ensaboa” também representa popularmente dar um sabão, dar uma bronca e se enquadra no contexto da música, com leveza e expressividade, reiterando a capacidade discursiva e estrutural da língua, em atender aos propósitos da comunicação.

Favela Ronaldinho/ Acyr Marques/ Arlindo Cruz

Entendo esse mundo complexo Favela é a minha raiz Sem rumo, sem tino, sem nexo E ainda tô feliz. Nem sempre a maldade humana Está em quem porta um fuzil Tem gente de terno e gravata Matando o Brasil acima de tudo

Favela,ô Favela que me viu nascer Eu abro o meu peito e canto o amor por você. Favela,ô Favela que me viu nascer Só quem te conhece por dentro Pode te entender.

O povo que sobe a ladeira Ajuda a fazer mutirão Divide a sobra da feira E reparte o pão.

151

Como é que essa gente tão boa É vista como marginal Eu acho que a sociedade Tá enxergando mal

Na próxima canção, Arlindo Cruz estabelece a defesa pela favela e por seus moradores, com a crítica social e expressando o amor às suas origens. A palavra “complexo”, na primeira estrofe, chama atenção por sua ampliação léxico- semântica. Tomada pelo significado, dentre vários, de “conjunto, reunião de várias coisas, elementos, circunstâncias etc., com algum tipo de relação entre si” (AULETE, on line) e “conjunto organizado de representações e lembranças de forte valor afetivo, parcial ou totalmente inconscientes ou reprimidas, que podem influir no comportamento” (AULETE, on line), percebemos a possibilidade de, diante da realidade urbana do Rio de Janeiro, também entendê-la como referência aos conglomerados de favelas da cidade e suas características de formação. Assim, são chamados o Complexo do Alemão e o Complexo da Maré. Em “Sem rumo, sem tino, sem nexo”, há a repetição da preposição “sem”, a fim de sugerir e reforçar a ausência de algo. Selecionamos, nas considerações de Azeredo, a seguinte justificativa, “a preposição não é escolhida pelo que significa, mas imposta ao usuário da língua pelo contexto sintático” (2008: 196). No verso, a escolha da forma preposicional também contribui, seguindo as ideias do autor, para a aliteração, ou seja, “repetição sistemática de uma consoante – ou encadeamento de unidades consonânticas muito parecidas – na sequência do enunciado” (2008: 508). Nos versos “Matando o Brasil acima de tudo” e “Favela que me viu nascer”, os vocábulos “Brasil” e “Favela”, de acordo com o processo de formação e significação das palavras, são apresentados pelo recurso estilístico da metonímia. Como Azeredo, ela “opera a associação entre elementos do mesmo domínio” (2008: 419). No caso de “Brasil” e “Favela”, há a representação das pessoas do país e dos moradores daquele lugar, respectivamente. Os usos dos termos se justificam pela relação de proximidade ou contiguidade estabelecida entre as expressões usadas nos versos e as identificações possíveis. Ainda na perspectiva estilística das figuras de linguagem, os exemplos também permitem analisar dois casos de prosopopeia. Para Martins (2000), tal recurso é uma figura retórica que se relaciona com os papéis da enunciação e faz o sujeito perceber rapidamente os fatos em sua essência, daí sua força expressiva e o seu teor 152

emocional. Apresenta seres ausentes, inanimados ou sobrenaturais, dando-lhes o atributo dos sentidos humanos. Em “Brasil”, a intencionalidade discursiva do compositor é afirmar que o povo brasileiro é quem morre; na ocorrência de “Favela”, são as pessoas do lugar que o viram nascer. Em consonância com a mesma figura de linguagem, os versos “Eu abro o meu peito e canto o amor por você” e “Só quem te conhece por dentro” reiteram a percepção da favela como algo vivo, latente, pulsante, e possibilitam a linguagem metafórica. Nos primeiros versos, a ação de abrir o peito potencializa expressivamente o discurso do compositor, por meio da associação semântica. Para Azeredo, “a metáfora resulta de uma operação substitutiva” (2008: 485), com vistas ao maior aproveitamento estilístico. Quanto à semântica, é possível concebermos as expressões “fuzil”, “gente de terno e gravata” e “matando” pertencentes ao mesmo campo semântico, uma vez que a dinâmica de uso dos termos nos remete ao universo da criminalidade. Neles existem traços significativos expressivos e comuns valorizados pela escolha lexical do compositor, objetivando a clareza na canção. Outro ponto interessante respeita à criação dos versos “Ajuda a fazer mutirão/ Divide a sobra da feira/ E reparte o pão”, ao abordar palavras que nos direcionam para a ideia de comunidade como, por exemplo, “mutirão”, “divide”, “reparte”. Dentre as acepções atribuídas ao termo, temos os registros, “Conjunto das pessoas que partilham, em determinado contexto geográfico ou num grupo maior, o mesmo habitat, religião, cultura, tradições, interesses etc.: a comunidade judaica: a comunidade da zona oeste” (AULETE, on line). Há anos, favelas recebem essa denominação, a fim de se retirar o estigma da criminalidade, do tráfico de drogas e da miséria, na mentalidade popular. Na última estrofe, constatamos o uso da expressão “como” nos dois primeiros versos e cumpre ressaltar a diferença conceitual entre as situações. Em “Como é que essa gente tão boa”, a palavra assume a classificação morfológica de advérbio interrogativo de modo, por se tratar de uma frase interrogativa indireta (CUNHA, 2001); no verso “É vista como marginal” identificamos o vocábulo gramatical como uma conjunção subordinativa adverbial comparativa. Bechara diz que a comparação pode ser assimilativa ou quantitativa. No verso, temos uma comparação quantitativa, pois sua ocorrência “consiste em comparar, na sua quantidade ou intensidade, coisas, pessoas, qualidades ou fatos” (2002: 326).

153

Nos braços da batucada Babí, Jr. Dom, Arlindo Cruz

Noites a fio sem te ver Meu desafio foi viver saudade Agora chega de sofrer Eu nada fiz pra merecer maldade Foi quando um amigo lembrou Que o samba não pode parar, não Não é como um caso de amor que acaba Se eu perco no jogo do amor O samba é meu protetor, sim Me tirar do trauma da dor, da mágoa Cansei de esperar por você Achei o prazer de sonhar Não tenho mais tempo a perder Não tenho mais medo de nada Que bom Ver o dia nascer Que bom ver o sol despertar Nos braços da batucada

Na tentativa de provar que o elo com o samba pode curar o sofrimento das decepções amorosas, Arlindo Cruz compõe “Nos braços da batucada”, uma canção que trata das intempéries do amor e exalta o samba como protetor dos males sentimentais. Mais uma vez, a língua se apresenta a serviço do artista. Nos primeiros versos, “Noites a fio sem te ver/ Meu desafio foi viver maldade”, o compositor trabalha com a exploração da camada sonora da linguagem, por meio dos vocábulos “fio/desafio” e “ver/viver”, expressando o possível conflito entre a realidade do plano da expressão, onde as formas se aproximam, e a do plano do conteúdo, onde se afastam (AZEREDO, 2008). Temos a paranomásia, considerada por Martins “como figura pela qual se aproximam, na frase, palavras que oferecem sonoridades análogas com sentidos diferentes” (2000: 44-5). Há um jogo de palavras, uma similaridade fônica responsável por sugerir, no caso, a dificuldade do sujeito em continuar sua vida, em virtude do afastamento da pessoa amada. Atentemos para a utilização dos artigos nos versos “Foi quando um amigo lembrou” e “Que o samba não pode parar, não”. Na primeira ocorrência, o emprego de “um”, artigo indefinido, se dá pela intenção do compositor em apontar alguém ainda não conhecido, sem nomeá-lo ou oferecer qualquer identificação (CUNHA, 2001). O autor esclarece a relação de indefinição, indicando sua proveniência do numeral latino unus, una, unum, e o enfraquecimento 154

do valor numeral, em ‘um certo’, “nos diversos empregos das formas do singular (um, uma), principalmente no mais comum deles, qual seja, o de apresentar o ser ou objeto expresso pelo substantivo de maneira imprecisa, indeterminada ou desconhecida” (CUNHA, 2001: 237); no que diz respeito à segunda ocorrência, o artigo definido “o” já designa o caráter único, universal do elemento representado, o samba. Expressa-se, assim, a relação de proximidade do artista, indicando para o leitor o conhecimento singular sobre o assunto tratado. Em “Não é como um caso de amor que acaba”, há a presença do símile, na comparação explícita entre o “samba” e o “caso de amor”. Sobre a associação entre os elementos, Martins define que “na maioria dos casos, o análogo, ou fundamento do símile, fica implícito, pois pode ser apreendido pelo ouvinte/leitor; ou pode ser um tanto vago, difícil de precisar, ficando ao encargo do leitor completar, pela sua imaginação, o que o autor quis dizer” (2000: 97). Ou seja, estabelece-se uma orientação do pensamento do receptor da mensagem, a fim de tornar mais clara a relação pretendida entre os fatos ou seres no processo comparativo. Destacamos o conectivo mais usual, como, e na linguagem popular outras expressões (que nem, feito) e na linguagem culta (tal, à semelhança de, análogo a). O compositor, ao escrever “O samba é meu protetor, sim/ Me tira do trauma da dor, da mágoa”, eleva o gênero musical ao status da proteção, da guarda e potencializa os efeitos do samba na vida do sujeito, ao livrá-lo dos males. No emprego das expressões “trauma”, “dor”, “mágoa”, “medo”, “saudade” e “maldade”, identificamos a associação entre as palavras, a partir das ligações de sentidos com a palavra “amor”, usada pelo artista com a conotação de sofrimento. Segundo Henriques, o campo associativo é a “expressão genérica que permite reunir palavras a partir de qualquer associação coerente (semântica ou não) que exista ou se faça entre elas” (2011: 78). Os termos apontados por Arlindo Cruz também podem pertencer a um campo lexical, isto é, “conjunto de palavras empregadas para designar, qualificar, caracterizar, significar uma noção, uma atividade, uma técnica, uma pessoa” (HENRIQUES, 2011: 78). Os vocábulos colaboram na significação do sentimento. Outro recurso utilizado é o paralelismo sintático, recorrente também em outras canções de Arlindo Cruz. Nos versos “Não tenho mais tempo a perder/ Não tenho mais medo de nada” e “Que bom ver o dia nascer/ Que bom ver o sol despertar”, as estruturas se confirmam como diretrizes de ordem estilística, contribuindo para a harmonia dos enunciados, e estabelecendo a coesão responsável pela simetria sintática, com função articulatória (ANTUNES, 2005). Os 155

paralelismos se constituem em recursos de rendimento enfático do discurso, envolvendo o leitor/ouvinte e despertando nele a tomada de atenção para as mensagens contidas nos pares coordenados. Arlindo Cruz encerra a canção com o verso que a intitula “Nos braços da batucada”, expressando a figura de linguagem responsável pela transferência de atributos humanos a seres inanimados, a personificação. No exemplo, o autor atribui “braços” (membros superiores do corpo humano) a “batucada” (ritmo de sons combinados numa percussão), sugerindo que o lugar do sujeito desiludido pela paixão amorosa seja a batucada, a roda de samba.

Um velho malandro de corpo fechado Almir Guineto/ Franco/ Arlindo Cruz

Olha o samba aí de novo Servindo de rima pro bem do meu povo Saindo das cinzas sem ter se queimado É o velho malandro de corpo fechado

Olha o samba aí de novo De peito aberto querendo passar Mais forte que o tempo, quem sabe o infinito E bem mais bonito pra gente contar (cantar)

O samba é retrato do meu ser, uma pintura, é um quadro de Debret Um arrastão de paz é o meu coração que quando bate faz o reviver da multidão

porque meu samba é meu dengo, meu chamego É meu sossego, é meu bem, meu bem querer é tudo que eu quiser, o samba é meu lugar, é meu viver Sambar

A próxima canção Um Velho Malandro de Corpo Fechado revela um samba marcado pela tentativa de expressar as relações identitárias entre o compositor e os elementos formadores do gênero musical. Alguns recursos linguísticos servem ao artista, demonstrando um jeito singular de falar do amor ao samba. No verso “Olha o samba aí de novo”, a forma imperativa “olha” contribui para uma construção discursiva tipicamente coloquial. O imperativo se expressa de maneira peculiar, 156

segundo Mattoso Câmara Jr., “na língua popular do Brasil, aparece no imperativo, por vulgarismo, a forma de 2ª pessoa no tratamento indireto de você (...); ou melhor, a interferência da forma indireta, que mostra a ordem disfarçada em pedido” (1986: 142-3). Assim, o compositor chama atenção para aquilo revelado sobre o gênero musical. Discursivamente, o verso enuncia um suposto reaparecimento/ressurgimento do samba e pela construção metafórica “Saindo das cinzas sem ter se queimado” demonstra seu fortalecimento e sua integridade moral, após passar por supostos momentos de intolerância ao ritmo, por parte de alguns, ou seja, reconhece-se a preservação das raízes culturais e da formação musical daquele contemplado e cultivado pelos vários ritmistas e compositores, o samba. Além de “Saindo das cinzas sem ter se queimado”, outros dois aparecem na canção contendo uma das formas nominais do verbo, o gerúndio, de modo particular e significativo: “Servindo de rima pro bem do meu povo” e “De peito aberto querendo passar”. Segundo Cunha, “a forma simples expressa uma ação em curso, que pode ser imediatamente anterior ou posterior à do verbo da oração principal, ou contemporânea dela. Este valor temporal do gerúndio depende quase sempre de sua colocação na frase” (2001: 490-491). É possível entendermos, como Azeredo (2008), a expressão de adição, pelo fato de a forma nominal do verbo denotar fato posterior ao do verbo utilizado em forma finita, ou seja, as noções apresentadas são “saindo” (e sai), “servindo” (e serve) e “querendo” (e quer). Nos exemplos, também atentamos para a questão do aspecto verbal das construções gerundiais, no que se refere à “duração do processo verbal, independentemente da época em que esse processo ocorre” (2002: 132). Para o autor, essa categoria gramatical é uma caracterização da extensão da fala relacionada ao tempo, descartando o ponto de vista do enunciador. Associamos o processo expresso pelos verbos como progressivo, ou seja, algo como a ação que estende no tempo. Uma referência metafórica se apresenta no verso “É o velho malandro de corpo fechado”, ao estabelecer a transferência do termo usado para outro âmbito de significação. A metáfora possui uma função expressiva, destacando aspectos que o termo próprio não é capaz de evocar. A expressão utilizada pelo compositor, “velho malandro de corpo fechado” não corresponde a idoso com o corpo literalmente fechado por algo, mas corresponde à expressão do candomblé que significa quando o sujeito passa por algum ritual religioso e adquire a imunidade para combater as influências negativas. Arlindo Cruz estabelece tal associação por considerar o 157

samba, que já sofreu tantos preconceitos, no estado de convivência harmoniosa com os demais gêneros, no reconhecimento e integração da música popular brasileira. Ao longo da canção, percebemos a quantidade de expressões metafóricas nos versos e o modo peculiar no tratamento de cada uma. Em “De peito aberto querendo passar”, temos um enunciado portador de significados que não se deduzem da mera associação entre seus elementos lexicais, apresentando valores não literais no discurso (AZEREDO, 2002). A expressão “peito aberto” representa a franqueza, a sinceridade e/ou a lealdade. Assim também os versos da terceira estrofe “O samba é retrato do meu ser/ uma pintura, é um quadro de Debret/ Um arrastão de paz/ é o meu coração que quando bate faz o reviver da multidão”, com várias metáforas, a fim de promover a equivalência das imagens discursivas, “retrato do meu ser”, “quadro de Debret”, “arrastão de paz”, “o meu coração”, ao conceito do samba e, mais uma vez, à identidade do compositor. Há menção ao pintor, desenhista e professor francês, Jean-Baptiste Debret, autor de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, documentando aspectos da natureza, do homem e da sociedade brasileira no início do século XIX. É a partir dessa estrofe que Arlindo, por meio da utilização recorrente da forma verbal “é”, cria uma particular definição do samba, promovendo uma atmosfera emotiva e revelando o total envolvimento com o gênero musical em questão. Na última estrofe, a repetição do pronome possessivo “meu” enfatiza os laços de proximidade, de união, estabelecidos com o mundo do samba. Para Azeredo, os pronomes “expressam um vínculo qualquer, constante ou eventual, entre o objeto ou assunto de que se fala e cada uma das pessoas do discurso” (2008: 176). Na canção, percebemos a constância dessa ligação entre o tema e o compositor, marcadamente pelo uso da 1ª pessoa. Lapa registra que nem sempre as formas pronominais possessivas assumem significações associadas à posse de algo e alguns casos oferecem certa delicadeza estilística. Na passagem “o samba é meu lugar, é meu viver”, podemos “denotar familiaridade e certo sentimento de superioridade” (1998: 148) e, consequentemente, o entendimento das relações afetivas estabelecidas pelo compositor. A presença do tom hiperbólico em “é tudo o que eu quiser” reforça o grau de envolvimento do enunciador pelo fato enunciado, ampliando, por meio da expressão exagerada, o ponto de vista sobre o tema e revelando o juízo passional do fato (AZEREDO, 2008). Há exagero do sentido, a fim de que o discurso alcance relevância para o versado ou cantado. 158

Sobre a metadiscursividade nas letras de samba, Conforte descreve os metassambas como aqueles que “narram a história do samba e descrevem a vivência dos sambistas e o universo que os rodeia” (2007: 40). Além disso, cada momento da enunciação discursiva representa a atualização do discurso, caracterizado pela reflexão e pela referência aos elementos constituintes do universo do samba: o morro, os instrumentos musicais, os parceiros, o subúrbio, entre outros.

O que é o amor? Maurição/ Fred Camacho/ Arlindo Cruz

Se perguntar o que é o amor pra mim Não sei responder Não sei explicar Mas sei que o amor nasceu dentro de mim Me fez renascer, me fez despertar

Me disseram uma vez Que o danado do amor pode ser fatal Dor sem ter remédio pra curar Me disseram também Que o amor faz o bem E que vence o mal Até hoje ninguém conseguiu definir O que é o amor

Quando a gente ama, brilha mais que o sol É muita luz, é emoção O amor Quando a gente ama, é o clarão do luar Que vem abençoar O nosso amor

Na tentativa de definir o sentimento, Arlindo Cruz expõe análises sobre o amor, em O que é o amor?Apresenta, em linhas gerais, a impossibilidade de definição do amor, mas aponta consequências originadas da experiência amorosa. Num primeiro momento, expõe um distanciamento em relação ao tema, mas, na última estrofe, a emoção e a entrega pessoal ao amor são confessadas. Apesar de a conjunção subordinativa adverbial condicional “se” não iniciar, necessariamente, uma sentença que exprima condição, entendemos a noção de hipótese expressa 159

no verso, “Se perguntar o que é o amor pra mim”. Balizamos a análise nas palavras de Azeredo, ao afirmar que, na expressão da hipótese, há uma gradação de matizes de sentido que compreendem, dentre outras possibilidades, “fatos possíveis/prováveis, expressos no futuro do subjuntivo” (2008: 325). Em seguida, o autor revela a posição de resguardo e prossegue com duas assertivas de negação “Não sei responder/ Não sei explicar”, indicando para o leitor a impossibilidade inicial de conceituar o sentimento amoroso. Na sequência, temos um operador argumentativo, “mas”, com valor adversativo e, ao mesmo tempo, afirmativo (KOCH, 2006) quanto aos efeitos da afeição na pessoa amada “Mas sei que o amor nasceu dentro de mim/ Me fez renascer/ Me fez despertar”. Cabe atentar para a informalidade da colocação do pronome oblíquo “me”, em oposição à norma padrão da língua portuguesa, nos versos, e em “Me disseram também”. Um vocábulo revelador da linguagem popular é “danado”, ao designar a esperteza e habilidade do amor. A expressão, mesmo dicionarizada, assume tom coloquial no uso cotidiano. Em “Dor sem ter remédio pra curar”, a linguagem figurada se valida pela metáfora e pela hipérbole associadas ao verso, apresentando a “dor” correspondente à terna sensibilidade e “sem ter remédio pra curar” como a impossibilidade de manifestação ofensiva aos danos causados. Na passagem “Me disseram também/ Que o amor faz bem/ E que vence o mal”, atentamos para o uso das conjunções subordinativa integrante “que” e coordenativa aditiva “e” que estabelecem a antítese “bem” e “mal”. Na última estrofe, o artista enfatiza a atemporalidade do amor, ao citar “Quando a gente ama”, justificando a instabilidade, a periodicidade do sentimento. Em “Brilha mais que o sol.../ É um clarão do luar”, as expressões hiperbólicas respondem pela carga imagética do tema e a palavra “clarão” reforça, com base no sufixo aumentativo -ão e na potencialidade fonética, a grandeza da luz e a correspondência metafórica de estar iluminado pelo amor. Novamente, a presença do vocábulo pertencente ao campo lexical da religiosidade “Que vem abençoar/ O nosso amor” sugere o envolvimento, a devoção do compositor às práticas religiosas.

Chegamos ao fim Pezinho/ Arlindo Cruz

Olha pra dentro de nós Nosso amor terminou no deserto Você vem me condenar 160

Mas sabe que errou também Olha prá dentro de nós No jardim já morreram as flores Nossas fotos perderam as cores Nossa cama está tão vazia Chego a ter calafrio no corpo A tristeza invade o meu rosto Quando lembro teu cheiro, teu gosto E a farra que a gente fazia

Onde foi nossa magia? Nosso mundo encantado Foi sofrendo lado a lado Que o amor se acabou...

Chegamos ao fim tá doendo sim Eu chego a perder a voz Só resta chorar e se lamentar Pelo que restou de nós

Os versos de “Chegamos ao Fim” revelam uma visão diferente sobre o amor versado por Arlindo Cruz, a desilusão amorosa tão presente nas letras dos sambas desse e de outros compositores. Falar de amor não é só falar de felicidade, mas também dos infortúnios e contratempos presentes em muitas relações afetivas. O título “Chegamos ao Fim” sugere uma possível ambiguidade, à medida que identificamos o primeiro sentido da expressão como o término do relacionamento amoroso. Cabe ressaltar outra interpretação possível, por extensão semântica, associada ao sofrimento, a dor, ao abalo emocional, quando se decide pela ruptura dos laços afetivos. Ilari aponta que “um mesmo operador se aplica de duas maneiras diferentes aos conteúdos da sentença” (2002: 10). Assim, entendemos a dupla possibilidade como o fim do relacionamento e o “fim”, relacionado à angústia passional, ao sofrimento pela perda, à desunião. Ainda em análise do verso, conferimos o uso da forma “chegamos” empregada, de acordo a normatividade da língua, ao percebermos a regência verbal com a utilização da preposição a. O procedimento da listagem de verbos, adjetivos e substantivos seguidos de preposições contida nas gramáticas normativas contém algumas limitações, pelo uso linguístico- expressivo do idioma. Na língua, as ocorrências do verbo chegar, em sua maioria, estão 161

associadas ao emprego da preposição em, o que comprova a dinamicidade do código linguístico e a possibilidade de alterações e inclusões nos postulados gramaticais. No primeiro verso “Olha pra dentro de nós”, novamente destacamos a forma verbal imperativa tão presente nas canções de Arlindo Cruz, lembrando particularidades tratadas por Azeredo (2008). A primeira se refere ao fato da invariabilidade verbal quanto ao tempo, ou seja, diferentemente das formas verbais do modo indicativo e subjuntivo, as formas imperativas não variam para situar os fatos em determinados intervalos de tempo; a segunda destaca as formas do modo imperativo como exclusivas dos usos da língua em que o enunciador se remete diretamente ao interlocutor, indicando-o ou não pelo emprego do vocativo, caracterizando a função conativa da linguagem. Tais ideias se ratificam em Martins (2000). As formas do indicativo e do subjuntivo são empregadas em todas as funções da linguagem. A criação metafórica da palavra “deserto”, no segundo verso, se presentifica na canção e na linguagem cotidiana, por meio da projeção associativa entre os domínios de experiência dos usuários da língua. O sambista recorre à metáfora como “um recurso inerente a todo o processo de verbalização dos conteúdos processados pela mente humana, Enfim, um traço do princípio geral da economia linguística” (AZEREDO, 2008: 421). Por analogia, o vocábulo “deserto” empresta sua significação de lugar árido, de vegetação e chuva escassas, para representar o local do fim do amor. A sequência dos versos “No jardim já morreram as flores/ Nossas fotos perderam as cores/ Nossa cama está tão vazia/ Chego a ter calafrio no corpo” remete a possíveis passagens hiperbólicas. Se considerarmos as ideias de Mattoso Câmara Jr. sobre a hipérbole como “exagero da significação linguística para fim de expressividade” (1986: 138), encontraremos fundamentação para a intensificação do discurso do compositor. Por meio do pronome de tratamento “você”, no terceiro verso, percebemos a presença do interlocutor do discurso e a preocupação no direcionamento da fala, a fim de delimitar o sujeito com quem se estabelece a comunicação. Temos, assim, a pressuposição da existência de um sujeito com quem o locutor dialoga a partir da situação em que se encontram e o registro informal da “forma pronominal característica da interlocução coloquial na maior parte do território brasileiro” (AZEREDO, 2008: 264). As formas de tratamento tu/você, vós e formas variantes, dentre outras, também se associam à estilística da enunciação, uma vez que identificamos a tendência para o uso de você, que já tomou grande parte do uso do tu, também 162

absorver a forma Sr., como observamos nas relações familiares, escolares, e demais situações comunicativas (MARTINS, 2000). Em “A tristeza invade meu rosto”, aparece a sinédoque denominada por Azeredo como “a variedade da metonímia que consiste em designar a totalidade de algo por meio de uma palavra que nomeia um de seus componentes ou uma de suas partes ou, pelo contrário, designar uma de suas partes pela palavra que nomeia o todo” (2008: 486). No verso, a palavra “rosto” (a parte) sobressai e é tomada como expressão do corpo (o todo), sugerindo o efeito do sofrimento, da tristeza. A repetição do pronome possessivo de 2ª pessoa “teu” no verso “Quando lembro teu cheiro, teu gosto” leva à reflexão sobre os valores afetivos. Vários são os matizes emotivos expressos, servindo, por vezes, para realçar um sentimento de deferência, de respeito, de polidez, de intimidade, de amizade, de simpatia, de interesse, de ironia, de malícia ou de sarcasmo (CUNHA, 2001). Na canção, a repetição pode enfatizar cada qualidade do interlocutor, indicando intimidade com o locutor, pela lembrança mencionada. Na segunda estrofe, os primeiros versos “Onde foi nossa magia?/ Nosso mundo encantado”, as expressões “magia” e “mundo encantado” remetem ao campo semântico associativo à fantasia, ao sonho, e encaminham à ideia do sentimento amoroso que leva o sujeito para o bem-estar e a plenitude.

O Brasil é isso aí Marcelo D2/ Jr. Dom/ Arlindo Cruz

Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá, laiá Se liga, que o Brasil é isso aí Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá, laiá Se liga, que o meu povo é isso aí Mas olha...

Olha... Na cor do meu país Mora a razão de ser feliz Brasil miscigenou Brasil se misturou É índio, é branco, é negro

Olha... Na cor do meu país 163

Mora a razão de ser feliz Está na hora de dizer ao preconceito não E não à discriminação Então, por que você não vê Que o direito é paz, amor e união.

É café com leite, é arroz com feijão É tupinambá, caiapó, guarani Maria Bonita que amou Lampião Tiradentes, Araribóia, Zumbi Padre Ciço, Negra Anastácia e Quelé É Maracanã, Mineirão, Morumbi É congada, é jongo e é samba no pé Se liga, que meu povo é isso aí.

Goiabada e queijo Torresmo e Tutu É Brasil de sangue, suor e amor É Caramuru que amou Paraguaçu É Chica da Silva e seu contratador É cavaco, é banjo, pandeiro e tantã É cachaça, é pinga, goró, parati É santa guerreira que vira Iansã Se liga, que meu povo é isso aí

Para tratar das questões sociais, culturais e linguísticas do país, Arlindo Cruz expõe em “O Brasil é isso aí” elementos significativos e representativos da brasilidade. A utilização das expressões “se liga” e “é isso aí”, nos versos iniciais da canção, reforça o caráter popular de alguns jargões e indicam o tom evocativo do cancioneiro. A forma verbal imperativa “olha” representa outro modo de chamar atenção do leitor para a mensagem anunciada. O modo verbal imperativo se configura de acordo com a posição do falante em face da relação entre a ação verbal e seu agente, em relação à atividade que se exige do sujeito (BECHARA, 2002). Ao tratar da “cor do meu país”, o compositor cita “Brasil miscigenou/ Brasil se misturou”, por meio da sinédoque. No caso, “Brasil” designa as pessoas das raças constituintes do povo. Ainda destacamos o paralelismo sintático em “É índio, é branco, é negro” formando o recurso estilístico de aproveitamento enfático, atuando na receptividade da mensagem e despertando a atenção para as partes coordenadas (AZEREDO, 2008). Na parte “Está na hora de dizer/ Ao preconceito não/ E não à discriminação”, encontramos uma construção figurada se desviando da significação identificada como normal 164

pelos usuários e estudiosos da língua. Trata-se do quiasmo, ou seja, a construção bimembre reveladora da inversão da ordem nas partes simétricas descritas (AZEREDO, 2008). No trecho, há a dupla negação enunciada e realçada pela inversão da ordem dos termos, apontando uma nova dimensão paralelística, rompendo a estrutura sistemática. Na passagem “Então, por que você não vê”, o adjunto verbal textual (endofórico), “então”, refere-se ao significado do verso como o tempo da enunciação descrito na canção, “Está na hora de dizer”. Nas duas últimas estrofes, Arlindo Cruz faz uso de expressões culturais da culinária brasileira “É café com leite e arroz com feijão”, “Goiabada e queijo, torresmo e tutu” e nomes de bebidas tipicamente nacionais “É cachaça, é pinga, goró, parati”. Há também aqueles que se referem ao povo e à língua indígena, “É tupinambá, caiapó, guarani”, “É Caramuru que amou Paraguaçu”, além do resgate de personalidades das histórias social e literária brasileiras “Maria Bonita que amou Lampião/ Tiradentes, Arariboia, Zumbi/ Padre Ciço, Negra Anastácia e Quelé”, “É Chica da Silva e seu contratador”. Como símbolo do esporte de representatividade nacional, o compositor destaca os nomes de estádios brasileiros de futebol, no verso “É Maracanã, Mineirão, Morumbi”, e provoca a sonoridade com a aliteração, a repetição sistemática dos fonemas iniciais das palavras. Nas passagens “É congada, é jongo e é samba no pé” e “É cavaco, é banjo, pandeiro e tantã”, há a valorização dos ritmos africanos disseminados no Brasil e o destaque para os instrumentos musicais típicos nos batuques do samba (DINIZ, 2012). Aspectos do sincretismo religioso cultuado no país são representados no verso “É santa guerreira que vira Iansã”. De acordo com as denominações das religiões, a “santa guerreira”, no catolicismo, é denominada Santa Bárbara, e, no candomblé, reverenciada como Iansã.

Brasil moleque Marquinhos PQD/ Arlindo Cruz

Brasil, tua voz, tua raça, teu jeito moleque de viver Reúne amor, simpatia, paixão, alegria e muito prazer Brasil, arremessa pra longe a tristeza Que teima em ficar por aqui Se inspira num lindo poema Que um dia eu ouvi

Solta teu canto em todos os cantos Que o mundo virá a ti 165

Um curumim de olho azul Falou que foi Nego Zulu Quem trouxe a batucada E riu quando um cafuzo cochichou Que um branco fez juras de amor A negra cor da madrugada Então, Brasil.

Pode contar que o povo brasileiro Que sofre tanto, mas é companheiro É bom guerreiro pra lutar É bom parceiro pra cantar E verdadeiro pra te amar, Brasil

A canção “Brasil Moleque” também aborda alguns aspectos culturais brasileiros e reforça essa dedicação temática do compositor. A expressão “Brasil” localizada, duplamente, na primeira e no final da última estrofe exemplifica o vocativo que “serve apenas para invocar, chamar ou nomear, com ênfase maior ou menor, uma pessoa ou coisa personificada” (CUNHA, 2001: 161). A entoação exclamativa e a utilização da vírgula como fatores linguísticos auxiliam a determinação do termo sintático. Na primeira estrofe, a sequência dos pronomes possessivos de 2ª pessoa “tua voz, tua raça, teu jeito moleque de viver” apresenta e ressalta traços da personalidade do povo brasileiro, observados pelo compositor. Nas palavras de Cunha, “O pronome possessivo concorda em gênero e número com o substantivo que designa o objeto; e, em pessoa, com o possuidor do objeto em causa” (2001: 319). Há o uso da palavra “que”, em vários versos da canção, e cumpre esclarecer suas formas normativas. Nos versos “Que teima em ficar por aqui”, “Que um dia eu ouvi” e “Que sofre tanto, mas é companheiro”, identificamos seu papel como pronome relativo, pois, segundo Bechara, esse termo desempenha dois papéis gramaticais, sob a perspectiva da morfossintaxe, “além de sua referência ao antecedente como pronome, funciona também como transpositor de oração originariamente independente a adjetivo e aí exercer função de adjunto adnominal deste mesmo antecedente” (2002: 171). Em “Falou que Nego Zulu”, “Que um branco fez juras de amor”, “Pode contar que o povo brasileiro”, percebemos outra classificação gramatical. Segundo o mesmo autor, “o transpositor ou conjunção subordinativa transpõe oração degradada ou subordinada ao nível de equivalência de um substantivo capaz de exercer na oração complexa 166

uma das suas funções sintáticas que têm por núcleo o substantivo” (2002: 323). As orações transpostas pelo “que”, nos versos, exercem funções comuns ao substantivo, objetos diretos dos núcleos verbais. No estabelecimento da diferença, o gramático síntetiza, “o transpositor pronome relativo que difere do transpositor conjunção integrante porque este não exerce função sintática na oração em que está inserido, enquanto o relativo exerce sempre função sintática” (2008: 171). Por fim, o verso “Que o mundo virá a ti” revela mais uma possibilidade de classificação da expressão “que” como conjunção coordenativa explicativa. Há um tom de confirmação no verso, na associação ao verso anterior “Solta teu canto em todos os cantos”. Celso Cunha define “(explicativas) que ligam duas orações, a segunda das quais justifica a ideia contida na primeira” (2001: 581). Na tentativa de confirmar os elos étnico-raciais presentes na sociedade e na cultura brasileiras, Arlindo Cruz se utiliza de expressões tipicamente designadoras de cada grupo racial. Percebemos, na terceira estrofe, determinadas referências, como “curumim”, termo tupi para as crianças indígenas; “Nego Zulu”, alusão ao “maior grupo étnico do continente negro, com população estimada em 11 milhões – cerca de 24% de toda África. No século XIX, gozavam de poder político e eram considerados uma nação guerreira” (RAÇA BRASIL, 2011); A expressão “cafuzo”, sujeito proveniente da miscigenação entre o índio e o negro. O “branco” e a “negra”, como representações do povo europeu e africano, também constituintes da terra do pau-brasil. Apontamos dois tipos de paralelismos nos versos “É bom guerreiro pra lutar/ É bom parceiro pra cantar”, segundo Azeredo. Primeiramente, afirma que “o paralelismo pode constituir um interessante recurso expressivo do qual o enunciador pode lançar mão para ordenar e orientar, segundo suas intenções, as ideias do receptor da mensagem, fazendo corresponder ideias similares a formas verbais similares” (2008: 510). As construções oracionais dos versos permitem assinalar, além do paralelismo sintático, o processo de coesão recorrencial ocasionado pela repetição das estruturas sintáticas. Verificamos um processo de reafirmação daquilo já enunciado, atendendo aos valores expressivos dos versos, por meio também das recorrências dos recursos fônicos e dos tempos verbais. Quanto ao paralelismo rítmico, notamos a simetria na construção dos versos, envolvendo a regularidade de determinadas proporções, por meio de um isocronismo que promove a cadência prosódica. Há, segundo Azeredo, uma similicadência que “quando empregada com precisão, constitui recurso de estilo de rendimento considerável, por dar relevo ao pensamento” (2008: 514). 167

Quanto à questão das parcerias no universo do samba, o verso “É bom parceiro pra cantar” reitera o valor do trabalho do parceiro nas composições e nas cantorias. Verdadeiro matiz que estabelece laços de solidariedade, elo entre os sambistas, a parceria revela a união de valores e modos de vida, ocasionando o estreitamento das relações. O encontro entre os compositores revela vivências, trocas culturais e relatos de experiências e se apresenta como movimento aglutinador das ideias. Para Elias, “Falar de parceria é falar de construção e afirmação, pois ela se apresenta, antes de tudo, como uma forma de se construir em sociabilidade uma identidade” (2005: 44). Cumpre, assim, alertar sobre a variedade de aspectos linguísticos, culturais, sociais, políticos e antropológicos espalhados por essas e outras canções de Arlindo Cruz e de Nei Lopes. A proposta se firma na tentativa de apontar recursos linguístico-expressivos presentes nas canções, demonstrando uma perspectiva produtiva do ensino da língua portuguesa, um trabalho de exploração dos conteúdos linguísticos, utilizando como corpus as canções de artistas, símbolos da relevante manifestação cultural, o samba.

... Só posso levantar a mão pro céu / Agradecer e ser fiel ao destino que Deus me deu / Se não tenho tudo que preciso / Com o que tenho, vivo / De mansinho, lá vou eu / Se a coisa não sai do jeito que eu quero / Também não me desespero / O negocio é deixar rolar / E aos trancos e barran- cos, lá vou eu / E sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu. (Deixa a vida me levar. Serginho Meriti e Eri do Cais. Intérprete: Zeca Pagodinho) 169

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No desenvolvimento da tese, procuramos refletir sobre o ensino da Língua Portuguesa e suas práticas pedagógicas, considerando o seu uso consciente, ao se servir dos recursos linguístico-expressivos encontrados nas canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz. Além disso, mantemos nossa preocupação com o exercício linguístico de cidadania, por meio de atividades de análises das múltiplas formas de aplicação dos conceitos teóricos. Na busca pelas variadas atribuições dos significados das expressões e das palavras, experienciamos as ações que envolvem os sujeitos, em cada situação comunicativa. Entender a expressividade linguística presente nos textos é tarefa que exige atenção, cuidado e respeito por aquilo que se quer dizer, daí a necessidade de compreender que a Língua revela o mundo como uma estrutura dotada de significados compartilhados pelos sujeitos, de acordo com o universo de vivências e percepções particulares. No processo de constituição da pesquisa, percebemos a importância das relações entre linguagem, língua e cultura e reconhecemos como elemento relevante da nossa identidade cultural: o samba. As canções nos serviram como material produtivo, do ponto de vista linguístico, e viabilizador de atitudes reflexivas, instigantes e curiosas sobre a Língua Portuguesa. Encontramos variados recursos fonológicos, morfossintáticos, semânticos, discursivos e textuais nas composições, comprovando a hipótese de que temos, no corpus de análise, “Sambas que dão aulas”. As canções apresentam a possibilidade de trabalho com a leitura e a escrita, contribuindo para o exercício criativo da linguagem e o ensino produtivo da Língua, por meio do humor, da crítica, das descobertas semânticas, das construções metafóricas, das expressões hiperbólicas, das aplicações das classes de palavras, dos estrangeirismos, da formação do samba, das peculiaridades sociais da favela, do subúrbio carioca, dentre outros aspectos. Identificamos, com as análises, a participação do sujeito na construção dos sentidos, assim desenvolvendo a consciência linguística. Pretendemos que a competência discursiva se desenvolva em sala de aula, com conhecimento das estratégias textuais, do seu uso intencional e das estruturas gramaticais, estabelecendo um conjunto de conteúdos acessível e, principalmente, funcional. 170

O estudo revelou uma Língua Portuguesa repleta de meios expressivos pelos quais os falantes e os autores podem manifestar estados emotivos e sentenças de valor, de forma peculiar, despertando no ouvinte ou leitor reações de caráter pessoal. Observamos fatos da linguagem presentes nas canções e processos próprios da expressividade verbal. Sem a intenção de esgotar as possibilidades de análises estilísticas, enfatizamos uma maior consciência de outras leituras da Língua, objetivando a aprendizagem e a exploração dos recursos linguísticos utilizados pelos compositores e usuários do idioma. Sugerimos aos professores que o trabalho com a linguagem se recrie em cada enunciado, representando um fator de valorização das situações comunicativas. O trabalho da construção estilística das canções, por parte dos compositores, de fato, envolve escolhas lexicais e arranjos sintáticos, motivando a busca pela identificação significativa dos vocábulos empregados nos sambas. Vários recursos estilísticos contribuem para a apreensão do estilo do artista, no que tange aos sons, às palavras, às formas e aos sentidos. Há a expressividade individual nas ações humanas como registro de si mesmo e a disposição criativa, o surgimento de novos significados, de acordo com as necessidades de expressão. Levando-se em consideração a relevância do valor estético do samba , a partir da ideia da tradição, da retomada do passado, do repertório, das pessoas, dos lugares e dos símbolos de sua origem e identidade, apontamos outras possibilidades de ensino da Língua Portuguesa, numa abordagem linguística, social e cultural, ampliando os horizontes das práticas de ensino sobre linguagem. O universo popular presente no samba representa o jeito brasileiro de fazer arte e, ao mesmo tempo, de expressar as mais variadas opiniões sociais e políticas no país. A nacionalidade se presentifica na feição do ritmo, revelando uma série de simbologias próprias pelas quais o povo se reconhece. A linguagem coloquial, bem empregada, “ao ponto, pro freguês”, se mostra potencialmente expressiva, em especial, nas canções de Nei Lopes e Arlindo Cruz, assinalando o samba como instrumento de afirmação da identidade do cidadão e evidenciando de que forma ele funciona como meio de exteriorização da cultura popular, da política e da própria história brasileira. De fato, verificamos, por meio das tradições culturais e das contribuições linguísticas como pontos de convergências de costumes, tradições, rituais, personalidades, festividades e sons formadores de um mosaico da expressividade musical brasileira, os “Sambas que dão aulas”. Os estudos sobre o gênero musical representam a tomada de espaço e a consagração da significação 171

sociocultural, a referência como símbolo da brasilidade e a possibilidade de análise das letras, para a percepção e o entendimento linguístico-textual, nos estudos acadêmicos. A questão cultural brasileira, assim como em outras culturas, não é homogênea, caracterizada pela diversidade oriunda dos processos de colonização, das (i)migrações e demais influências. Os sambas analisados se apresentam como prova de múltiplos processos culturais das camadas populares. O carioca, o branco e o negro são elementos de trocas culturais, ao longo da história, em torno da canção popular. As raízes africanas funcionam como lugar onde a identidade reside. Nas composições, o subúrbio carioca adquire relevo, por meio das relações sociais estabelecidas nos bairros, nos morros e pela linguagem que se revela, pressupondo a compreensão, o entendimento da realidade e a admissão do lugar como espaço da pluralidade. A cidade do Rio de Janeiro se redefine e se redesenha como uma paisagem urbana com mudanças significativas, ao longo do século XX. Os sambistas se colocam como representantes legítimos do espaço social, com impressões, imagens individualizadas dos locais, sentimentos associados ao modo de vida, às moradias, às práticas culturais. A sedimentação do samba e suas referências estéticas se deram em torno de Mangueira, Madureira, Estácio, Praça Onze, Ramos, Penha, Lapa e outros bairros representativos da alma suburbana. As referências geográficas cariocas passam a circular pelas canções, confirmando as relações entre a identidade do samba e o povo da cidade. Essa ideia em torno do Rio de Janeiro se dá pelo fato de, musicalmente, a cidade ser considerada o principal mercado de música, onde se desenvolveu o gênero representativo do maior fator de identidade nacional. As canções selecionadas para nossas análises linguístico-expressivas reiteram a presença de elementos constitutivos das relações socioculturais e ideológicas presentes no convívio do cidadão carioca/brasileiro. Tanto em Nei Lopes, quanto em Arlindo Cruz, se encontram ritmos de feição religiosa e temas associados à religiosidade popular. Expressões africanas demarcam o elo cultural estabelecido com a Língua Portuguesa, oferecendo ao processo enunciativo as contribuições para a expressividade verbal. A preocupação com os significados lexicais e as relações semânticas trazem à leitura a percepção de um universo linguístico a se desvelar pelos interessados nas questões sobre o idioma. O exercício da crítica aos termos estrangeiros mostra a preocupação com estabelecimento de critérios para os empréstimos vocabulares. 172

No decorrer da pesquisa, notamos o dinamismo verbal e a potência expressiva da Língua na construção dos discursos. Sob essas perspectivas, entendemos a possibilidade de análises dos sentidos expressos e das intenções nos textos. Nas canções, vimos que as palavras formam cadeias expressivas na sequência do texto, com a construção da unidade. No processo da composição, os artistas oferecem subsídios linguísticos que possibilitam traçar um caminho de ensino mais pragmático, interativo, funcional e comunicativo. Registramos a possibilidade da aplicação desse estudo em qualquer região do Brasil, quiçá em outros países de Língua Portuguesa. Pretendemos que os usuários identifiquem os mecanismos linguístico-expressivos presentes nos sambas e, ao mesmo tempo, usufruam do prazer estético que proporcionam. Que o interesse pelas análises linguísticas, pelas formas das palavras, pelos seus efeitos de sentido supere o exercício da sala de aula e leve o sujeito a entender a razão de se estudar/abordar a Língua. Aula de Português – aula com prazer. De fato, a escola tem mudado e as práticas discursivas veiculadas devem ser consideradas como caminhos que auxiliam o desenvolvimento e a ampliação dos discursos. Nesse contexto, as letras dos sambas ajudam o sujeito a reconhecer as mudanças nas ações com e sobre a linguagem e o professor delineia o percurso pedagógico, segundo as realidades linguísticas, sociais e culturais dos alunos. A Língua Portuguesa e o samba de mãos dadas. As considerações feitas não esgotam as possibilidades expressivas da Língua, uma vez que muitas observações são pertinentes e possíveis. Resta-nos dizer que nossa intenção é que esse material estimule a postura crítica diante da Língua que se modifica, se altera, se renova, nos variados contextos sociais. Assim, se o professor se servir dele, poderá realizar uma educação linguística de qualidade, com postura pedagógica consciente para a formação da cidadania. “Sambas que dão aulas” contribuem para que a abordagem da língua materna se transforme em experiência prazerosa.

173

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Maria Alice Aguiar. A Língua Portuguesa numa aprendizagem de paixão. In: HENRIQUES, Cláudio Cezar; SIMÕES, Darcília (Org.). Língua Portuguesa: Educação & Mudança. Rio de Janeiro: Europa, 2008.

ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Houaiss da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Paracatu, 2006.

ALVES, Ieda Maria. Neologismo – Criação lexical. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994.

AMARAL, Euclides. Alguns aspectos da MPB. 2. ed. Rio de Janeiro: Esteio, 2010.

ANTUNES, Irandé. Aula de Português: Encontro & Interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003

______. Língua, Texto e Ensino: Outra Escola Possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

______. A quem cabe ensinar a leitura e a escrita? In: Pauliukonis, M.A.; Gavazzi, S. (Org.). Da Língua ao Discurso: Reflexões para o Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

______. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. 2. ed. São Paulo, PubliFolha, 2008.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.

______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BARBOSA, Flávio Aguiar. Palavra de bamba: estudo léxico-discursivo dos pioneiros do samba urbano carioca. Rio de Janeiro: UERJ, 2009. (Tese de Doutorado)

BARRETO, Mário. Novíssimos estudos da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: INL:Presença, 1980.

BARROS, Albertina Fortuna. Técnica do estilo. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Fundo de Cultura, 1968. 174

BECHARA, Evanildo. “A correção idiomática e o conceito de exemplaridade”. In: AZEREDO, José Carlos de (Org.). Língua Portuguesa em Debate: Conhecimento e Ensino. Petrópolis: Vozes, 2000.

______. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

BORBA, Francisco da Silva. Introdução aos Estudos Linguísticos. 12. ed. Campinas: Pontes, 1998.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC, SEF, 2001

______. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.

BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica. São Paulo ; Campinas: Educ : Pontes, 1992.

BRITO, Eliana Vianna (Org.). PCNs de Língua Portuguesa: a Prática em Sala de Aula. São Paulo: Arte & Ciência, 2001.

BUENO, Silveira. Tratado de Semântica Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1960.

BUNZEN, Clécio; MENDONÇA Márcia. Sobre o ensino de língua materna no ensino médio e a formação dos professores. In: ______. (Org.) Português no ensino médio e a formação do professor. Rio de Janeiro: Parábola Editorial, 2006.

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. São Paulo: Lazuli Editora: Companhia Editora Nacional, 2011.

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Contribuição à estilística portuguesa. 3. ed., Rio de Janeiro: Ed. Ao Livro Técnico, 1978.

______. Dicionário de Linguística e Gramática. Petrópolis: Vozes, 1986.

CAVALIERE, Ricardo. Fonologia e Morfologia na Gramática Científica Brasileira. Niterói: EdUFF, 2000.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

175

CÓDIGO PENAL. São Paulo: 2001. Disponível em:< http://www.jusbrasil.com.br/.../art-171-do- código-penal-decreto-lei-2848-4>. Acesso em: 25 jan. 2013.

CONFORTE. André Nemi. As metalinguagens do samba. Rio de Janeiro: UERJ, 2007. (Dissertação de Mestrado)

COSTA, Nelson Barros da. “As letras e a letra: o gênero canção na mídia literária”. In: DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA M. A. (Org.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

CRESSOT, Marcel. O estilo e suas técnicas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3. ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

DA CAL, Ernesto Guerra. Língua e estilo de Eça de Queiroz. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.

DINIZ, André. Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir , o que ler, onde curtir. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

DISCINI, Norma. O estilo nos textos: história em quadrinhos, mídia, literatura. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

DUCROT, Oswald. Princípios de Semântica Linguística. São Paulo: Cultrix, 1977.

ELIAS, Cosme. O samba de Irajá e de outros subúrbios: um estudo da obra de Nei Lopes. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.

ENKVIST, Nils Erik; GREGORY, Michael J.; SPENCER, John (Org.). Linguística e estilo. São Paulo: Cultrix, 1970.

FARACO, Carlos Alberto. Linguística Histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas. São Paulo: Parábola, 2005.

FERRAREZI Jr. Celso. Semântica para a educação básica. Rio de Janeiro: Parábola, 2009.

176

FERREIRA, Martins. Como usar a música na sala de aula. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

FIORIN, José Luiz. “Polifonia textual e discursiva”. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. (Org.). Dialogismo, Polifonia e Intertextualidade. São Paulo: EdUSP, 2003.

______. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.

FRANCESCHI, Humberto. Samba de sambar do Estácio: 1928 a 1931. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010.

FRANCHI, Carlos. Criatividade e Gramática. São Paulo: SE/CENP, 1998.

GALVÃO, Jesus Belo. Subconsciência e afetividade na língua portuguesa. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979.

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 21. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002.

GENOUVRIER, Emile; PEYTARD, Jean. Linguística e ensino de português. Coimbra: Livraria Almedina, 1985.

GERALDI, João Wanderley. Livro didático de Língua Portuguesa: a favor ou contra? Campinas Leitura: teoria e prática – Revista da ALB – Vol. 9, Ano 6, Junho/ 1987.

______. Linguagem e ensino - exercício de militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras, 1996.

______. Portos de Passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. O Texto na Sala de Aula. São Paulo: Ática, 2006.

GUEDES, Paulo Coimbra. A língua Portuguesa e a cidadania. Rio grande do Sul: Organon 25 – Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Vol. 25, Ano 11, 1997.

GUEDES, Paulo Coimbra; SOUZA, Jane Mari de. “Não apenas o texto, mas o diálogo em língua escrita é o conteúdo da aula de Português”. In NEVES, Iara Conceição Bittencourt. et al.(Org.). Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. 7. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2006.

GUIRAUD, Pierre A Estilística. São Paulo: Mestre Jou, 1970.

177

HALLIDAY, M. A. K.; McINTOSH, A.; STREVENS, P. As Ciências linguísticas e o ensino de línguas. Trad. Myriam Freire Morau. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974.

HENRIQUES, Cláudio Cezar. Estilística e Discurso: estudos produtivos sobre texto e expressividade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

______. Léxico e Semântica: estudos produtivos sobre a palavra e significação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

ILARI, Rodolfo. Introdução à semântica. São Paulo: Contexto, 2001.

______. Introdução ao estudo do léxico. São Paulo: Contexto, 2002.

JURADO, Shirley; ROJO, Roxane. A Leitura no Ensino Médio: o que dizem os documentos oficiais e o que se faz? In: BUNZEN, Clécio, MENDONÇA, Márcia (Org.). Português no Ensino Médio e a Formação do Professor. São Paulo. Parábola Editorial, 2006.

KATZ, Jerrold J. Semantic Theory. New York: Harper & Row, 1972.

KOCH, Ingedore G. V. Introdução à Linguística Textual: Trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______. Desvendando os Segredos do Texto. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

KOCH, Ingedore G. V.; BENTES, Anna C.; CAVALCANTE, Mônica M. Intertextualidade: Diálogos Possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.

LAPA, Manuel R. Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1998.

DICIONÁRIO CALDAS AULETE ELETRÔNICO. São Paulo: 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2012

LIMA, Rocha. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 18. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

LOPES, Nei. Dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Centro Cultural Municipal José Bonifácio, 1996.

178

______. Sambeabá: o samba que não se aprende na escola. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Folha Seca, 2003.

______. Dicionário escolar afro-brasileiro. São Paulo: Selo Negro, 2006.

______. Partido-alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.

______. Dicionário da hinterlândia carioca: antigo “subúrbio” e “zona rural”. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

MACIEL, Laura Antunes. Outras memórias nos subúrbios cariocas: o direito ao passado. In: OLIVEIRA, Márcio Piñon de Oliveira. et al. (Org.) 150 anos de subúrbio carioca. Rio de Janeiro: Lamparina: Faperj: EdUFF, 2010.

MARCUSCHI, Luiz A. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

______. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA M. A. (Org.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à Semântica. 2. ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

MARTINET, André. Conceitos fundamentais da Linguística. Lisboa: Presença, 1976.

MARTINS, Nilce Sant´Anna. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.

MENDONÇA, Márcia. Análise linguística no ensino médio: um novo olhar, um outro objeto. In: BUNZEN, Clécio ; MENDONÇA Márcia (Org.) Português no ensino médio e a formação do professor. Rio de Janeiro: Parábola Editorial, 2006.

MERLEAU-PONTY, M. De Mauss a Claude Lévi-Strauss. In: MERLEAU-PONTY, M. Os pensadores: textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

MEURER, José Luiz; MOTTA-ROTH, Désirée. Introdução. In: MEURER, José Luiz; MOTTA- ROTH, Désirée (Org.). Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para o ensino da linguagem. Bauru: EDUSC, 2002.

179

MONTEIRO, José Lemos. A estilística: manual de análise e criação do estilo literário. Petrópolis: Vozes, 2005.

MOUNIN, Georges. Introdução à Linguística. São Paulo: Martins Fontes, 1976.

MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.

______. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

MOUTINHO, Marcelo (Org.). Canções do Rio: a cidade em letra e música. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009.

MURRY, J. Middleton. O Problema do estilo. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1968.

NASCIMENTO, Sônia. Nação Zulu. Revista Raça Brasil. nº 175, 2013. Disponível em: < http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/154/artigo215084-2.asp>. Acesso em 18 fev. 2013.

NEVES, Iara Conceição Bitencourt et al. (Org.). Ler e Escrever: compromisso de todas as áreas. 7. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2006.

OLIVEIRA, Mariângela Rios, WILSON, Victoria. Linguística e Ensino. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo (Org.). Manual de Linguística.. 1.ed., 2. reimp. São Paulo: Contexto, 2009.

PALLONE, S. Diferenciando subúrbio de periferia. Revista Notícias do Brasil, Ciência, Cultura, São Paulo, SP, vol. 57, nº 2, abr/jun. 2005. Disponível em: Acesso em : 25 set. 2012.

PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. A Linguagem Não-Verbal no Texto Escrito: Da Apropriação da Imagem pela Palavra. In: AZEREDO, J. C., (Org.). Letras e Comunicação: uma parceria no ensino de Língua Portuguesa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

______. O Texto Literário na Escola: Perspectivas de Abordagem. In: HENRIQUES, Cláudio Cezar; SIMÕES, Darcília (Org.). Língua e Cidadania: novas perspectivas para o ensino. Rio de Janeiro: Ed. Europa, 2004.

POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

180

RECTOR, Mônica ; YUNES, Eliana. Manual de Semântica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

REI, Cláudio Artur O. A Palavra Caetana: estudos estilísticos. Rio de Janeiro: UERJ, 2002. (Dissertação de Mestrado).

______. Estilística In: SOUZA, Jorge Máximo (Org.). Língua Portuguesa: Semântica. Rio de Janeiro: Ed.Rio ; Saraiva, 2006. (Coleção Resumida).

ROJO, Roxane (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC, 2000.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase e cia. São Paulo: Ática, 1985.

SILVA, Anazildo V. da. A Lírica Brasileira no Século XX. Rio de Janeiro: OPVS, 2002.

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2. ed., Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

SOUZA, Tárik de. Tem mais samba – das raízes à eletrônica. São Paulo: Editora 34, 2003.

SUASSUNA, Lívia. Ensino de língua portuguesa: uma abordagem pragmática. Campinas, SP: Papirus, 1995.

TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

TORRES, H. et al. Pobreza e espaço: padrões de segregação em São Paulo. Revista Estudos Avançados. v.17, nº47, jan/abr. 2003. Disponível em: Acesso em: 25 set. 2012.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e Interação: uma proposta de ensino para o 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 2000.

TROTTA, Felipe. O samba e suas fronteiras: “pagode romântico” e “samba de raiz” nos anos 1990. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

ULHÔA, M.T. Métrica derramada: prosódia musical na canção brasileira popular. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1999.

ULLMANN, Stephen. Semântica – uma introdução à ciência ao significado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967.

181

VALENTE, André. A linguagem nossa de cada dia. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1998.

______. Intertextualidade: aspecto da textualidade e fator de coerência. In: HENRIQUES, Cláudio Cezar; PEREIRA, Maria Teresa (Org.). Língua e transdisciplinaridade: rumos, conexões, sentidos. São Paulo: Contexto, 2002.

______. Letras de música nas aulas de português: estilo, cultura e cidadania. In: HENRIQUES, Cláudio Cezar; SIMÕES, Darcília (Org.). Língua e cidadania: novas perspectivas para o ensino. Rio de Janeiro: Ed. Europa, 2004.

______. Intertextualidade e interdiscursividade nas linguagens midiática e literária: um encontro luso-brasileiro. In: OLIVEIRA, Fátima; DUARTE, Isabel Margarida (Org.). O fascínio da linguagem. Porto: CLUP, 2008.

VANOYE, Francis. Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita. 13. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007.

VOGT, Carlos. O intervalo semântico. São Paulo: Ática, 1977.

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

182

ANEXO A – ENTREVISTA COM NEI LOPES

Consignamos a presteza e atenção do artista Nei Lopes, desde o primeiro contato, para os esclarecimentos sobre a pesquisa. Em todos os momentos de que precisamos, o compositor se pôs à disposição, nos elucidando sobre as informações desejadas. Em contrapartida, várias tentativas de comunicação foram estabelecidas com o artista Arlindo Cruz e em nenhuma delas obtivemos a reciprocidade esperada.

1. Como nasce a letra de um samba, de onde vem a inspiração? Existe algum "caminho" traçado para o emprego de certas palavras-chave?

Antes de tudo, preciso esclarecer que crio letras de canções de várias formas. Há aquelas que escrevo para serem musicadas por um parceiro; as que completam temas já desenvolvidos; as que são escritas para melodias pré-existentes; e as que crio sozinho, letra e música. Há, sim, aquelas que partem de palavras, como é o caso daquelas, sempre humorísticas, do repertório “jurídico” (marca do meu trânsito pela advocacia). Nessas, sem dúvida, eu utilizo palavras do jargão jurídico como piada, o que pode ser visto, por exemplo, na do samba de breque Águia de Haia, musicado pelo violonista Luiz Felipe de Lima, na qual eu ousei escrever breques em latim, rimando; da mesma forma, em Justiça gratuita, de minha autoria exclusiva, onde o “juridiquês” é o tema. Em No tempo de Dondon, que já teve duas versões gravadas (Zeca Pagodinho e Dudu Nobre), com letras diferentes, eu parti de palavras que caíram em desuso; a ponto de ter que fazer a segunda versão pelo fato de que até mesmo as atualizações já estavam desatualizadas (“ambulância”; “vinte e dois”; “patamo”). No trabalho que mais me envaidece até hoje, o projeto “Ouro Negro”, no qual escrevi, em 2001, cinco letras para temas do célebre maestro Moacir Santos, que não gostava das letras em inglês, meramente funcionais, escritas para esses temas por compositores norte-americanos, eu parti da biografia dele. Então, aconteceu o seguinte: em Maracatu, nação do amor, gravada por Gilberto Gil, eu explorei o universo afro-pernambucano do Maestro, usando palavras tais como “maracatu”, “bantu”, “gonguê”, “uçá”, “sururu” etc.; em Oduduá, gravado por João Bosco, eu usei palavras do iorubá falado nos cultos baianos e pernambucanos; da mesma forma em Sou eu, gravado por Djavan etc. Então, as palavras- chave surgem de acordo com a circunstância

183

2. Qual o interesse do compositor no emprego das variadas temáticas sociais nas canções?

Da minha parte, acho de uma enorme pobreza esse abuso da temática do amor romântico ou sexualizado na música popular. O samba sempre falou de tudo, sempre fez crônica, denúncia social, registro histórico... E é pra isso que existe a música popular. O monotematismo amoroso aliena e emburrece. E parece que é isso mesmo que a indústria transnacional da música quer.

3. Você já afirmou, em algumas entrevistas, o gosto pela leitura. As suas experiências com a leitura interferem de que maneira no trabalho da canção?

Eu não tenho “gosto pela leitura”; eu tenho compulsão. E pela escrita, também. Eu sempre estou escrevendo, e consequentemente lendo também. Aí, tudo se cruza. Vou citar um exemplo engraçado. Quando eu estava preparando meu Dicionário da Antiguidade Africana (Rio, Civilização Brasileira, 2011), pra desanuviar um pouco, eu escrevi um conto, “Joelzinho não toma ‘quente’”, em que botei o meu queridíssimo amigo Joel Rufino dos Santos, historiador, num fictício “Café e Bar Faraó, que é o estabelecimento do Chabaca, um negão deste tamanho” (Vinte contos e uns trocados, Rio, Record, 2006, pág, 229). Da mesma forma, para espairecer, saiba que a letra do épico Maracatu do meu avô, gravado por Alcione em 1983, foi motivado pela leitura, em um livro de História (Mãe África, de Basil Davidson), do preço de 1 escravo, em determinada época, expresso em um rol de mercadorias: tabaco, rum, lenços de linho etc., como está na letra. A coisificação dos africanos escravizados, como devem ter sido alguns de meus ancestrais remotos, me emocionou muito e motivou a letra, em que eu supervalorizei, ironicamente, minha ancestralidade, estabelecendo uma quantidade grande de mercadorias caras como seu valor de troca.

4. O que difere, essencialmente, na composição do samba para o samba-enredo?

O samba-enredo é como um jingle publicitário: o compositor cria a letra a partir de uma sinopse do tema que será desenvolvido e exibido no desfile. Tempos atrás, ainda havia certa liberdade de criação, mas hoje, de um modo geral, o “carnavalesco” até obriga o uso de determinadas palavras e expressões.

184

5. Você poderia apontar qual a responsabilidade social do samba hoje e no passado, na formação do cidadão brasileiro?

Essa responsabilidade é uma utopia. No atual panorama cultural brasileiro, o samba, como toda a criação musical é refém do mercado. O compositor, a única coisa que pode fazer é se defender, pra não ser engolido pela selvageria reinante. A “cidadania” hoje em ação é sempre aquela do “pop-rock”, do “funk”, da batucada na lata... Então, não há como botar na conta do samba nenhuma responsabilidade social. Veja bem que não estou falando de “escola de samba” e sim de “samba”. São coisas diferentes...

6. É sabido que as influências dos patriarcas do samba, de forma geral, sempre interferem na formação dos sambistas. Há alguns deles que na história do samba tenham deixado algum legado para você?

Poxa, que susto! Eu tinha entendido “patrono”. Patriarcas, fundadores, daqueles do tempo de Cartola, Paulo da Portela, Ismael Silva, Mano Elói, Antenor Gargalhada, só conheci pessoalmente o primeiro; mesmo assim, de longe. Dos que conheço por leituras, me impressiona bastante o que se diz do “Seu Paulo”, que queria ver o samba como veículo de ascensão social do povo negro. A história de Antenor Gargalhada também é heróica, como liderança comunitária. Na década de 70, participei do trabalho do compositor e líder Candeia, no Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo. Candeia era apenas sete anos mais velho que eu, mas hoje já pode ser visto também como um patriarca. Morreu cedo, em 78. Mas não sei se teria conseguido encarar a truculência que hoje ocorre por conta do que se chama agora de “Economia da Cultura”.De qualquer forma, o legado que recebi foi esse: o do inconformismo contra a exclusão e o preconceito.

7. Quais as suas canções preferidas? Por quê?

São mais de 350 títulos gravados, de várias formas, com algumas canções merecendo tratamentos diversos, em gravações diferentes. Em termos de criação, cada uma tem um momento, um motivo, uma ideia. Cada uma se aplica a um ambiente, a uma circunstância. Então, fica difícil escolher as preferidas.

185

8. Você pode dizer o que é "difícil" e o que é "fácil" para o sambista/letrista, no ato da composição?

Pra mim, é fácil rimar. Por isso procuro sempre fugir das soluções fáceis demais. Difícil, pra mim, é criar letra para uma melodia. Demora muito pra gente descobrir o que aquela melodia quer dizer. Tem que decifrar.

9. O subúrbio carioca faz parte de muitas de suas canções. É possível afirmar que ele é a "matriz" do samba carioca? O que há nessa "matriz"?

Na cultura carioca, tudo o que é, mesmo, “da gema”, nasceu na zona suburbana (aí incluídas as antigas zonas rurais). O único produto legitimamente carioca que não nasceu suburbano foi a bossa-nova. Mas é bom saber que bossa-nova é um estilo de compor e interpretar pertencente ao universo do samba. E que foram suburbanos alguns grandes músicos que vieram antes e que sedimentaram o caminho.

10. De que maneira o samba pode contribuir para a formação linguístico-cultural do povo brasileiro? O que o povo aprende com as suas canções?

Não sei a que ponto o samba pode dar essa contribuição. Quanto às minhas canções, acho, sem falsa modéstia, que muito delas pode, pelo menos, motivar a procura por conhecimentos mais aprofundados sobre a riqueza da participação de africanos e descendentes na formação da civilização brasileira.

11. Em várias composições, as parcerias resultam em letras com aprofundamento cultural, linguístico e social. Como se dá esse trabalho de construção das letras e combinação dos versos, especificamente, nas parcerias?

Eu acho que isso é uma questão de sensibilidade do parceiro. O bom parceiro, quando letrista, é aquele que vê, na ideia do outro, possibilidades que ele mesmo não enxergou. E aí, aprofunda, na medida do seu embasamento intelectual... Mas sem complicar muito, que letra de música é poesia popular e não concretismo, práxis, experimentalismo.

186

12. Como é a convivência do intelectual com o sambista compositor ou compositor sambista?

No meu caso, as duas “espécies” se misturam muito bem: o sambista ainda é o grande mantenedor da família, e é aquele que ganha dinheiro para o intelectual comprar seus livros. Mas de uns tempos pra cá, o intelectual, em seu ofício de escritor, já contribui um pouquinho também para o sustento da casa.

13. Nesses 40 anos de música popular, quais as contribuições das suas canções para as questões culturais brasileiras?

Eu seria muito pretensioso se dissesse que contribui com alguma coisa.

14. Em suas composições, notamos muitas expressões africanas, com a tentativa de estabelecer diálogos entre os povos e as culturas do Brasil e de África. Na sua concepção, esse diálogo já foi estabelecido ou ainda há muito a se fazer?

Eu uso naturalmente minha etnicidade, porque gosto e me orgulho dela. Mas não sei se esse diálogo Brasil-África ainda é possível. Tenho sabido do horror que causa, a muitos intelectuais africanos, o racismo brasileiro. Todos, pelo que sei, se surpreendem, principalmente com a ausência de afro-brasileiros na TV. É algo muito forte, e acachapante.

15. Em algumas palestras e shows, você afirma que a matriz das músicas negras é a cubana e aponta algumas influências nas músicas norte-americana e brasileira. Em que medida elas se inter-relacionam?

O que eu sei e digo é que a música afro-cubana é a grande matriz da música africana moderna. A África colonial não tinha música popular, de consumo, pois o que consumia musicalmente, vinha das matrizes, ou dos Estados Unidos (via discos e cinema). Com as independências, a partir da década de 1960, a África, para moldar sua música popular, hoje bastante significativa, foi buscar de volta o DNA que tinha deixado no Caribe. Além disso, a música afro-cubana influenciou profundamente o jazz, já na década de 1940, num tempo em que Cuba era uma espécie de “quintal” dos norte-americanos. Mas a coisa vem de mais longe ainda: há estudos de musicologia que comprovam a forte presença da habanera, antigo 187

gênero de musica afro-cubana, na gênese do choro, no Brasil, e no ragtime, nos Estados Unidos.

188

ANEXO B – ENTREVISTA COM ARLINDO CRUZ

1. Como nasce a letra de um samba, de onde vem a inspiração? Existe algum "caminho" traçado para o emprego de certas palavras-chave?

2. Qual o interesse do compositor no emprego das variadas temáticas sociais nas canções?

3. Você já afirmou, em algumas entrevistas, o gosto pela leitura. As suas experiências com a leitura interferem de que maneira no trabalho da canção?

4. O que difere, essencialmente, na composição do samba para o samba-enredo?

5. Você poderia apontar qual a responsabilidade social do samba hoje e no passado, na formação do cidadão brasileiro?

6. É sabido que as influências dos patriarcas do samba, de forma geral, sempre interferem na formação dos sambistas. Há alguns deles que na história do samba tenham deixado algum legado para você?

7. Quais as canções compostas por você, mesmo em parceria, são as canções preferidas? Por quê?

8. Você pode dizer o que é "difícil" e o que é "fácil" para o sambista/letrista, no ato da composição?

9. O subúrbio carioca faz parte de muitas de suas canções. É possível afirmar que ele é a "matriz" do samba carioca? O que há nessa "matriz"?

10. De que maneira o samba pode contribuir para a formação linguístico-cultural do povo brasileiro? O que o povo aprende com as suas canções?

11. Em várias composições, as parcerias resultam em letras com aprofundamento cultural, linguístico e social. Como se dá esse trabalho de construção das letras e combinação dos versos, especificamente, nas parcerias? 189

12. Nesses 40 anos de música popular, quais as contribuições das suas canções para as questões culturais brasileiras?

13. Em suas composições, notamos o emprego de algumas expressões africanas, com a tentativa de estabelecer diálogos entre os povos e as culturas do Brasil e de África. Na sua concepção, esse diálogo já foi estabelecido ou ainda há muito a se fazer?