11

Resumo: Uso a palavra “mais-velhos” (uma palavra aglutinada com hífen) no sentido de os “menos novos” que viveram uma vida intelectual e política intensa e que, independentemente da idade com que morreram, acham-se hoje perpetuados entre os povos a que pertenciam, inclusive ultrapassando a condição nacional para projectarem as suas obras – escritos e legado político – para lá dos territórios de origem. O sentido da palavra está relacionado obviamente com o contexto africano, em que os “mais-velhos” são os depositários do saber e da experiência, que funcionam como exemplo para as suas comunidades. Estes “mais-velhos” são, de certo modo, uns antepassados especiais, com valor real de fundadores ou renovadores de comunidades e/ou representantes inovadores de tais comunidades. Renovaram as práticas políticas e culturais.

PPPalavras---chave: Política, literária, “mais-velho”, intelectual, origem.

Abstract: The use of the word “older-ones” (a word with hyphen) meaning the “younger-ones” who lived an intense intellectual and political life and independently the age thy died, they are nowadays perpetuated among people they belonged to even surpassing the national condition to project their masterworks – written and political legacy – far away their origin territory. The word meaning is obviously related with the African context which the “older-ones” are the knowledge and experience keepers who works as model to their communities. These “older-ones” are, in certain way, special ancestors with real value of founders or renewers of communities and/or innovative representatives of such communities. They had renewed the politics and cultural practices.

KKKeywords: Politics, literary, “older-ones”, intellectual, origin.

1 - Os mestres “mais-velhos”: na Galiza, Camões em , Gabriela Mistral experiência, saber e acção em alguma no Chile ou Walt Whitman nos EUA. Toda a sua literatura política do sul obra literária não pode ser cabalmente compreendida se não se ligar cada texto à época Uso a palavra “mais-velhos” (uma palavra precisa em que foi produzido e se não se fizer a aglutinada com hífen) no sentido de os “menos leitura obrigatória das componentes ideológicas, novos” que viveram uma vida intelectual e política axiológicas, sociais e políticas, sob pena de se intensa e que, independentemente da idade com perderem os sentidos relacionados com a épica, a que morreram, acham-se hoje perpetuados entre simbólica e a referencialidade do discurso. Ou seja, os povos a que pertenciam, inclusive ultrapassando a sua poesia – tal como necessariamente a a condição nacional para projectarem as suas intervenção política – mostra a experiência de quem obras – escritos e legado político – para lá dos a produz. No começo, quando escreveu os territórios de origem. O sentido da palavra está primeiros poemas, em 1945, pode-se arriscar que relacionado obviamente com o contexto africano, tinha muito presente a sua formação protestante, em que os “mais-velhos” são os depositários do como coadjuvante do pai, que era pastor religioso, saber e da experiência, que funcionam como além de apresentar nítidas marcas neo-realistas, exemplo para as suas comunidades. Estes “mais- dois anos antes de rumar a , a fim de se velhos” são, de certo modo, uns antepassados matricular na Faculdade de Medicina. São poemas especiais, com valor real de fundadores ou de estrutura e discurso simples, condoendo-se com renovadores de comunidades e/ou representantes os miseráveis e oprimidos, isto é, sobretudo com inovadores de tais comunidades. Renovaram as os colonizados negros de Angola. Existe nessa sua práticas políticas e culturais. poesia simples um traçado de quadros como que Agostinho Neto fundou o Estado-Nação de pictóricos dos sofrimentos e alienações dos negros. Angola e é o seu poeta fundacional, O motivo dos negros será recorrente, constante, correspondendo, no seu país, a Rosalia de Castro sem qualquer atenção solidária explícita com os

Edição nº 004 - Maio 2007 12 Pires Laranjeira oprimidos brancos. No entanto, sabemos como Argélia. Reconhecendo, nesse texto, que o Neto militou na Oposição a Salazar, tendo imperialismo do século XX arrastou consigo a pertencido ao MUD-Juvenil e esteve preso várias necessidade de um conhecimento maior das vezes, no , Aljube de Lisboa, Peniche, sociedades dominadas e suas culturas, com o e Cabo Verde. Por outro lado, ajudando o pai no estudo alargado de conceitos como os de raça, oficiar religioso e, já nos anos 60, actuando como casta, etnia, tribo, nação, cultura, identidade, médico em Luanda, junto ao povo carenciado, dignidade e outros, Cabral criticou a teoria de a ganhou conhecimentos sobre ele e também o seu cultura poder ser uma arma na luta pela reconhecimento. A dedicação ao negro africano independência, lembrando que somente as elites e de todo o mundo sobrelevou a solidariedade ou as diásporas coloniais detinham um saber internacionalista, típica do marxismo-leninismo, propício à luta política organizada e dirigida, elas embora a sua experiência de militância em Portugal que tinham sido assimiladas à cultura euro- pudesse fazer-nos pensar que o predispunha para ocidental, mas que, ainda assim, careciam de uma poética internacionalista, como a de Neruda respaldo popular. Estando as populações ou Alberti. Ele pretendeu incluir o negro – largamente alheadas da cultura do dominador, nomeadamente o angolano – no concerto dos não se colocava a questão de desassimilá-las ou povos livres do mundo, por meio da obra poética de propor um qualquer renascimento cultural, enquanto veículo ideológico e discurso estético, e pois elas eram as naturais detentoras das tradições conseguiu-o antes de os angolanos ascenderem culturais do território. Tratava-se, isso sim, de partir ao estatuto de independentes. das identidades preservadas pelo povo (ou O líder guineense Amílcar Cabral baseou-se estacionárias) para uma acção nacional popular na sua experiência de engenheiro agrícola, de libertação, considerada uma “expressão política licenciado em Lisboa, para palmilhar a Guiné- organizada de cultura”. Baseando-se no marxismo, Bissau profissionalmente, conhecendo o território Amílcar Cabral afirma o carácter de classe da e o seu povo, aliando a formação universitária à cultura (distinguindo as sensibilidades prática no terreno. Cabral, homem de cultura, diferenciadas nas categorias urbanas e nas rurais chegou a escrever alguns poemas na e de de estrutura vertical – o Estado), acabando por juventude, um acto sem continuidade. A entrega vinculá-la à dimensão nacional, a fim de poder à luta de libertação nacional obrigou-o a tornar-se operativa e consequente do ponto de empenhar-se por inteiro nas tarefas de organização vista político. Para isso, salienta ainda o carácter e liderança, como aconteceu com Neto em 1960. racional e nacional do movimento de libertação, Quando jovem, nessa poesia algo ingénua dos no que podemos chamar a consciência da anos 40, Cabral já assumia a doação ao povo ultrapassagem das limitações locais, regionais e negro. particulares e sua transformação em conhecimento Três décadas depois, ele haveria de escrever universalmente válido para todos. Tal como outros sobre o papel da cultura na luta pela autores de literatura política, Cabral postula a independência, como escreveu sobre a importância acção de libertação e desalienação política e da língua portuguesa como legado positivo dos cultural a partir da acção popular em movimento, portugueses, isto já muito próximo do seu baseado no saber de experiência feito e na prática assassinato e da própria independência do país, política correcta a partir de um saber transitando explicando que se limitava, e cito, “praticamente do universalmente adquirido para o campo a transmitir o resultado da […] experiência e das concreto da aplicação nacional e local, no […] observações”, impossibilitado que estivera de contexto político da dominação colonial no início consultar muita bibliografia que poderia ter da década de 70, o que, como se sabe, saldou - enriquecido o seu trabalho. Todavia, esse texto, se num triunfo inequívoco das suas teorias. lido por um intermediário em conclave de peritos Tendo sido Cabral assassinado e Agostinho da UNESCO sobre noções de raça, identidade e Neto falecido por doença, não chegaram dignidade, tornou-se uma peça teórica etariamente a ser “mais-velhos” na acepção fundamental quanto à noção da luta de libertação consuetudinária e cosmogónica dos seus povos. enquanto acto cultural, aliás, na senda do Foram-no, todavia, pela larga experiência de vida, pensamento do psiquiatra antilhano Frantz Fanon, de luta política, de saber científico e vivencial e que esteve empenhado na luta de libertação da de um largo engajamento na acção social e

Edição nº 004 - Maio 2007 Pires Laranjeira 13 política. Os seus textos de literatura política (de meridional, por causalidades bem precisas - a mais literatura, de cultura e de política) são um legado determinante das quais é o círculo muitíssimo incontornável para os países africanos e, por restrito das elites culturais, no tempo colonial – conseqüência, para um espaço de lusofonia a nessas regiões (como no Peru, um país haver. É de saudar, pois, o livro de Leonel Cosme, profundamente indígena e indigente) pode-se Agostinho Neto e o seu tempo, sobre o chegar a “mais-velho” na meia-idade e até antes pensamento e a acção política e cultural de Neto, disso, ou seja, ao estatuto de mestre respeitado, publicado pela editora Campo das Letras, o como o foi Agostinho Neto, dito Kilamba ou primeiro que, em Portugal, traça um perfil objectivo Doutor, na voz do povo. Experiência e saber só e esclarecedor do personagem histórico que ajudou têm validade quando transformados em acção: na luta pela democracia portuguesa. Note-se essa foi a lição destes três “mais-velhos”. ainda que, nos jovens países africanos, por vezes, equaciona-se a hipótese de considerar alguns discursos políticos como integrantes do campo 2 - Agostinho Neto – Um idealizador e literário. Nada que escandalize, se pensarmos que fautor do mundo de todos os homens a Carta de Caminha e outros textos epistolares, historiográficos, documentais e ensaísticos, O livro de Leonel Cosme, Agostinho Neto inclusive de autores portugueses, têm integrado a e o seu tempo (2004), editado pela Campo história da literatura brasileira. das Letras (Porto), é pedagógico quanto ao Aproveito para referir um outro exemplo de propósito de explicar o personagem histórico por um “mais-velho” que viveu apenas 35 anos, meio dos textos e atitudes que protagonizou e sendo este caso exterior à lusofonia, mas não a mostrar a coerência que os interligou. O retrato, uma latinidade, embora relativa. O peruano José com tintas fortes e personalizadas, que Leonel Carlos Mariatégui, que viveu no 1º quartel do Cosme traça de Agostinho Neto, líder político, século XX, é autor de 7 ensaios de estadista, cidadão, poeta e humanista, não é um interpretação da realidade peruana, panegírico, nem uma biografia, mas uma fundador da peruanidade moderna, os quais identificação das suas directrizes intelectuais e serviram, como a obra de outros pensadores sul- ideológicas, por via daquilo que escreveu, disse americanos, para transposição aplicativa a outros publicamente e ousou fazer, actuações essas que países ou mesmo ao subcontinente centro e sul- o levaram à fundação e chefia do Estado-Nação americano. Além desse texto, escreveu uma obra de Angola. O livro é crítico para com a sociedade considerável de teoria política, análise sócio- portuguesa – sem o dizer -, na medida em que política, cultural, artística e literária, com corrige erros, equívocos e preconceitos gerados intervenções em jornais e revistas, além de em torno da sua figura e da sua obra. Por exemplo, encontros, de variada índole. Mariatégui pensou, explica que, para Neto, o inimigo não era o fora da universidade (porque não era sequer branco, nem o povo português, que respeitava licenciado), a literatura do seu e de outros países, profundamente (até porque casou com a assim como a arte, a sociedade e a política, portuguesa Maria Eugénia Neto no dia da sua ajudando, no campo literário, a separar as águas formatura em Medicina), que não proibiu as peruano-coloniais da modernidade. Nos seus religiões após a independência, que manteve curtos 35 anos de vida, fundou a revista Amauta suficiente distância e relações de não submissão e a respectiva editora, que ainda subsiste, que com a União Soviética (visitou a China, por marcaram profundamente a realidade peruana e exemplo, facto sempre deliberadamente sul-centro-americana. Tendo sido católico na esquecido), nunca falou em abandonar ou primeira juventude, fundou o partido dos subalternizar a língua portuguesa (como já chegou trabalhadores peruanos (nomeadamente a afirmar publicamente José Eduardo Agualusa, proletários), tal como Cabral e Neto fundaram os que Cosme desmente cavalheirescamente, como movimentos nacionais de libertação. é seu timbre), explica as ressalvas ao regresso dos Em conclusão, a “velhice” ou “terceira idade” chamados “retornados” a Angola (somente com não constitui necessariamente um campo de certos requisitos, impossíveis de cumprir, é certo), “senectude”, mas, mental e culturalmente, relembra que visitou Mobutu no Zaire, depois de podemos considerar que, em qualquer região este ter invadido Angola e tentado depô-lo, logo

Edição nº 004 - Maio 2007 14 Pires Laranjeira em 1975 (contra o sentir de muitos dos seus dos anos 30 para os 40 - desferiam críticas à companheiros de jornada histórica), a sua administração colonial, lamentavam a literatura admissão pública dos excessos da polícia política angolana ser incipiente ou assinalavam a “alma DISA – e conseqüente reforma – e das incipiente de uma Nação” (e esta última tirada é arbitrariedades do partido e da administração de Galvão). central e local após o golpe falhado de Nito Alves Relativamente ao Sudoeste de Angola, em 1977. Quantos e que políticos, em Portugal, sobretudo à Huíla, o livro é um testemunho e uma por exemplo, admitem os erros? O livro é, pois, reposição de uma vertente histórica da colonização uma espécie de desmentido da imagem capciosa e sua importância cultural. Um maior e denegrida que, em Portugal, foi se criando, antes desenvolvimento desse tema pelo Autor quanto à e depois da democracia moderna, do líder colonização (que teve homens clarividentes, angolano. Mas é muito mais do que isso. homens bons, no conceito antigo e nobre da Leonel Cosme traça de Neto o perfil de um expressão), pode-se ler no seu livro sobre Crioulos humanista forjado no cristianismo e no marxismo, e brasileiros de Angola (2001). com grande capacidade de aceitação das Aparentemente, tratar-se-ia de um segmento muito diferenças, mas implacavelmente determinado a estrito da investigação sobre a constituição de uma lutar pela independência de Angola e, portanto, Angola moderna, mas, quando verificamos que, a não pactuar com jogos e traições de bastidores nas outras regiões do território, assistiu se a um por parte de intelectuais distantes do povo desmoronar relativo do saber e do respeito pelo angolano ou apenas sedentos de poder e glória, património e pela memória, o caso do Sudoeste baseando-se em ideias perigosamente injustas e dá para pensar que estamos perante uma região discricionárias, como as que levaram às posições muito especial, como se vê pelos trabalhos de de ruptura de Viriato da Cruz ou Mário Pinto de Cosme e de Ruy Duarte de Carvalho. Cosme Andrade. Cosme relembra que este último se efectua um tour de force cultural e manifestou contra o golpe de Nito Alves, dando historiográfico para nos dizer que tenhamos assim razão a Neto, mesmo após o afastamento cuidado com a visão globalizadora e, por outro político entre os dois. Sinal desse humanismo lado, generalista sobre Angola, que padece amplo, a poesia de Neto – segundo Cosme – sempre de ser defeituosa, lacunar e, portanto, podia ser escrita por um cristão, tanto como por omissa, por desconhecimento ou precipitação. um agnóstico ou ateu. É o elogio máximo, quanto A parte importante do livro dedicada também ao teor ideológico-religioso, que se pode fazer a à Huíla pode ser lida, por conseguinte, como uma quem encontrou no título Sagrada esperança explanação voltada para o futuro, como que a o lema da luta individual e colectiva. sinalizar vivências e trabalhos que não podem ser Um aspecto deveras inovador e surpreendente esquecidos, contributos para o desenvolvimento é que o livro revaloriza aquela produção literária cultural de Angola integrando o grande desígnio e cultural do tempo colonial que, sem ser de uma outra pátria que não a portuguesa. revolucionária, engajada, ou mesmo sem ser da Parece-me ser – e desculpe-se o meu desconforto esquerda dita tantas vezes radical, exprimia em dizer isto - uma espécie de testamento de peculiaridades não desprezáveis, sobretudo dos um protagonista, sempre modesto, a trabalhar que sonharam Angola como sua “Terra da para o bem comum dos cidadãos de bom nome e Promissão”. sem voto na matéria. É o desejo legítimo e A segunda parte do livro é um resumo merecido de mostrar aos vindouros que ali, no objectivo e amplo, suficientemente pormenorizado sul de Angola, existiu cultura, civilidade e vontade e esclarecedor (à maneira enxugadamente de ser angolano, mesmo quando tudo parecia ensaística, monográfica e jornalística que é a contrariar essa determinação de engrossar as marca capital do autor) do processo nacionalista, fileiras de uma pátria nova, nos limites de uma político-cultural que, após 1945, conduziu à actuação sob a capa da legalidade e com seus independência do país. Cosme dá a conhecer as subterfúgios, que muito espantarão quem e quando posições de homens que, antes dos movimentos vierem a ser conhecidos, se tal suceder. culturais da Mensagem ou da Cultura (II), como O tempo que foi dado viver a Agostinho Neto Norberto Gonzaga, Morais Sarmento ou Henrique – segundo tal entendimento - não deverá, então, Galvão – em certos períodos, como o da viragem ser aferido exclusivamente por padrões de leitura

Edição nº 004 - Maio 2007 Pires Laranjeira 15 que se fiquem pelo reconhecimento da Casa dos resistências de Mário Soares – na época, Ministro Estudantes do Império (que funcionou entre dos Negócios Estrangeiros - nesse relacionamento, meados dos anos 40 e meados dos 60), dos exílios, mais propenso, recorde-se, a apoiar a trágica das matas do maquis ou dos hinterlands de UNITA de Savimbi. Baseando-se no romance AAA Luanda, Malange, Benguela e Nova Lisboa geração da utopia, de , e numa (Huambo). Existiram mais angolas e uma delas, declaração deste escritor de que já não se revia como centro irradiador de cultura e actividade no MPLA, Cosme como que abre a porta para sócio-política foi a Huíla, cuja construção uma leitura que poderia colocar o escritor no rol, identitária da modernidade começou, como se não já dos resistentes, mas dos desistentes, sabe, em meados do século XIX. Esse contributo conformistas ou mesmo oportunistas, mas parece de Cosme ganha nova dimensão no livro dedicado afastar a ideia de que possa ter feito o jogo de a Neto, ao lembrar a pugna pela criação da traição dos ideais nacionalistas e revolucionários Universidade de Angola, de que ele próprio, no defendidos por Neto. São, de qualquer modo, Lubango, foi um dos pilares reivindicativos, reflexões inspiradoras e desassombradas, como é mantendo-se na discrição, isto é, numa luta travada apanágio do Autor. Por exemplo, Cosme ataca a nos bastidores, pela persuasão de intervenientes noção de crioulidade aplicada a Angola por institucionalmente melhor colocados. Convirá Agualusa e outros, mostrando que, para escritores eventualmente retirar daqui todas as como João Melo ou Ismael Mateus, o país não conseqüências: o tempo de Neto não é somente o morreu, ao contrário do que afirmam alguns tempo de Lúcio Lara, Iko Carreira, Comandante VVVelhos da Restinga, porque acreditam que Hoji-ia-Henda, Manuel Pedro Pacavira, José haverá sempre uma luta que continua, uma pátria Luandino Vieira ou Domingos Van-Dúnem; é que permanece viva e uma Sagrada Esperança também o tempo da Primeira Dama fundadora renovada. É por isso também que Leonel Cosme, do Estado-Nação de Angola, Maria Eugénia Neto, não se considerando ele próprio um angolano, e seus filhos, e é também o tempo de homens mas sendo um dos mais importantes intérpretes e como Leonel Cosme, que tentaram construir a sua defensores do pensamento de Agostinho Neto, feito “terra da promissão” com o MPLA. O Autor achou palavras e obras – colocando-o a par de Amílcar que agora era o momento certo de dar à estampa Cabral e outros - não poderá deixar de ser um livro como este. Não só este tipo de livro, como reconhecido por Angola, senão como um seu filho outros testemunhos (alguns já escritos e outros dilecto, ao menos como um dos seus mais-velhos publicados ou em vias de o serem, inclusive por mestres honoríficos, com quem os mais novos, sem meio da ficção), podiam ter sido publicitados mais complexos, muito terão a aprender. cedo, mas apenas o comedimento, o sentido Este livro, que é uma releitura objectiva e apurado da estratégia, o respeito ético para não edificante de uma personalidade do panteão atraiçoar afinidades electivas e princípios de solidariedade política, além da oportunidade, africano, obriga-nos à interrogação incontornável fizeram com que o Autor se contivesse e, penso do destino póstumo da obra e da imagem de Neto. eu, continuará a conter-se. Somos confrontados Que representa ele para os angolanos actuais – – e ainda bem – com o facto de ser um português, os do poder político e o povo -, o que é que se faz branco, com 30 anos de Angola, antes e depois em Angola para restituir-lhe a sua real e verdadeira da independência, que sonhou ser angolano (mas dimensão histórica e simbólica de libertador de teve de abandonar esse sonho, por motivos de um povo e um país e de solidariedade para com força maior, históricos e pessoais), a traçar em as lutas dos povos e nações da África Austral? O Portugal o primeiro retrato intelectual e político que será das gerações mais novas e das futuras, credível de Agostinho Neto, que muito irá ser se o Estado não fizer jus à sua grandeza e à dívida apreciado, consultado e estudado em Angola e que os africanos, nomeadamente os afro-austrais, no resto do Mundo – assim o espero e tenho a mas também os portugueses, têm para com ele e quase certeza incerta disso, tanto quanto mo a sua estratégia de lutar pela libertação dos permitem a intuição e a premonição. oprimidos e explorados do mundo? Honra seja Entre os muitos aspectos a salientar, existem feita a Boaventura Cardoso, que organizou em alguns de muito interesse. São relembrados o papel Roma um colóquio internacional, em 2002, ou a do Presidente Ramalho Eanes no desanuviamento Salvato Trigo e Botelho de Vasconcelos, que fizeram das relações entre Portugal e Angola e as o mesmo no Porto em 1989. O seu a seu dono,

Edição nº 004 - Maio 2007 16 Pires Laranjeira que outras referências podiam aqui ser trazidas, Literatura Angolana (nomeada pelo Ministro da mas estas, tão diversificadas, servem de Cultura, o também escritor Boaventura Cardoso), exemplificação. e, ainda, por exemplo, o jornalista e escritor Ismael Sintamo-nos reconhecidos por Leonel Cosme Mateus, para referir apenas três dos envolvidos ter acrescentado uma acácia rubra à memória de na oposição. Neto e nos ter explicado o seu percurso ideológico, Principal argumento dos descontentes com a cultural e doutrinário, lamentando que outro tanto selecção: dos 26 escritores escolhidos por JMA, e muito mais do que isso não tivesse já sido feito apenas quatro eram negros, sendo os restantes por outros com mais obrigações, devido à brancos e mestiços. Por outro lado, associando- condição de angolanos, políticos, combatentes se a este argumento, um outro concomitante: a cívicos, patriotas ou homens de cultura. Fica o selecção deixou de fora outros escritores que, recado e os agradecimentos pela obra que nos segundo os críticos de JMA, serão tão legaram de um admirador de Leonel Cosme e de representativos como os eleitos, ou, nalguns casos, Agostinho Neto. ainda mais. Para que se perceba melhor, convém aduzir outros dados. Mena Abrantes é branco, o mais importante dramaturgo angolano, encenador 3 – Uma violenta controvérsia quanto e responsável pelo grupo de teatro Elinga, entre à literatura angolana outras actividades, em que se insere o facto de ser, há mais de 15 anos, assessor do Presidente O dramaturgo angolano José Mena Abrantes José Eduardo dos Santos. Jorge Macedo publica, (JMA), nascido em Malange, organizou uma desde os anos 60, poesia e narrativa, bem como intitulada “Biblioteca de Literatura Angolana” ensaio literário, além de outro tipo de textos, sendo (BLA), constando de um conjunto de 24 livros e ainda etnomusicólogo. Adriano B. de Vasconcelos, 26 autores, um por autor, com excepção daquele além do seu percurso de escritor (nomeadamente que engloba três poetas num só volume, que na poesia) desde os anos 80, foi também, por entendeu representarem a literatura do seu país, exemplo, conselheiro cultural da Embaixada de dada à estampa em 2004. Os 26 escritores e livros Angola em Portugal, tendo co-organizado, com foram publicados, em Luanda, por encomenda Salvato Trigo e a Faculdade de Letras do Porto, da empresa brasileira de construção civil um Colóquio Internacional sobre a cultura Odebrecht, sob produção das Edições Maianga angolana e publicado um jornal de cultura, o e o apoio da União dos Escritores Angolanos Angolê. Ismael Mateus é um jornalista que (UEA), presidida por Adriano Botelho de recentemente se tornou romancista, com dois Vasconcelos (ABV). A publicação integrou os títulos, sendo dos três (todos negros), por isso, volumes em duas cuidadas caixas cartonadas, literariamente o menos importante. com óptima apresentação gráfica, que muito Voltando à “BLA”, arrolemos os autores e títulos valorizam o empreendimento. Até aqui, nada de seleccionados: António de Assis Júnior, OOO anormal. Porém, tal empreendimento levantou uma segredo da morta; Castro Soromenho, inusitada e violenta polêmica de contornos Viragem; Mário António, Crónica da cidade verdadeiramente surpreendentes, pois o autor da estranha; Alda Lara, PPPoemas; António Jacinto, “Biblioteca” foi acusado de parcialidade, PPPoesia; Viriato da Cruz, Ernesto Lara Filho e Aires discriminação qualitativa e mesmo de preconceito de Almeida Santos, Obra poética; Óscar Ribas, racista/etnicista. Na imprensa angolana – que é Ecos da minha terra; Agostinho Neto, completamente diversificada e livre, diga-se - Sagrada esperança; José Luandino Vieira, foram publicados textos e mais textos sobre a LLLourentinho, D. Antónia de Sousa Neto & questão, sobretudo no final do ano passado, mas eu; António Cardoso, A “fortuna”; Arnaldo com notícias e repercussões que ainda agora se Santos, A casa velha das margens; Costa fazem sentir. Entre os opositores declarados à Andrade, PPPoesia com armas; Pepetela, selecção apresentada por JMA encontram-se Mayombe; Uanhenga Xitu, “Mestre” Tamoda; precisamente o secretário-geral da UEA, o escritor Henrique Abranches, A khonkhava de Feti; ABV, além do escritor Jorge Macedo, que se David Mestre, Subscrito a giz; Ruy Duarte de tornou, entretanto, em fevereiro, o coordenador Carvalho, Hábito da terra; Arlindo Barbeitos, da Comissão para a Redacção da História da Angola, angolê, angolema; Boaventura

Edição nº 004 - Maio 2007 Pires Laranjeira 17

Cardoso, A morte do velho Kipacaça; Ana Botelho de Vasconcelos. Se a selecção pudesse Paula Tavares, PPPoesia; João Melo, Imitação de ser vasta (resta saber quais as condições editoriais), Sartre & Simone de Beauvoir; José Eduardo outros nomes podiam incluir-se, mas, com obra Agualusa, A conjura; Jacques Arlindo dos suficientemente vasta e significativa, não haveria Santos, Chove na grande kitanda; José Mena assim tantas opções como se possa pensar, a não Abrantes, Caminhos (des)encantados. A ser que se optasse por fenómenos recentes de selecção podia sempre ter sido outra, como é eleição editorial e mediática – sujeitos a óbvio, dependendo do responsável. Eu, por confirmação – como Ondjaki, ou, então, que se exemplo, escolheria antes Nós, os do Makulusu, contemplassem também nomes que, por vezes, são de Luandino Vieira, trocaria a narrativa de Mário esquecidos, por não estarem “na moda” ou se António pela sua poesia, optaria por alguma peça mostrarem tão fortemente “engajados” em de teatro do próprio Mena Abrantes, em vez dos temáticas revolucionárias, escritas directas ou contos, incluiria Jofre Rocha em vez de Agualusa assuntos “menores”, como Manuel Pedro Pacavira, e alguém da literatura infanto-juvenil. De Ruy Maria Eugénia Neto e Carlos Ferreira. Ainda outros Duarte de Carvalho incluiria não poesia, mas teriam lugar, por certo, numa mais ampla escolha. narrativa, por exemplo, Como se o mundo não A questão cultural mais grave surgida na tivesse leste ou mesmo VVVou lá visitar controvérsia em torno deste trabalho foi, sem pastores, um livro nem sempre considerado dúvida, a suspeição levantada sobre a literário. Optaria por TTTerra morta, de Soromenho. legitimidade, idoneidade e capacidade de JMA Aos que não foram contemplados, não me levar a cabo essa tarefa que lhe foi atribuída por repugnaria trocar David Mestre (acrescento: de uma empresa privada. Num país em que a crítica quem fui grande amigo) por João Maimona. literária sofre sérias dificuldades (quase nulo Substituiria facilmente Alda Lara por outro nome, suporte universitário, ausência de prática como o contemporâneo Jorge Macedo ou um do “profissional” continuada, formação inadequada, século XIX, que seria Cordeiro da Matta. carência aflitiva de bibliografia, etc) não vislumbro, Devo esclarecer que considero a selecção face aos textos críticos conhecidos, uma linhagem suficientemente diversificada e aceitável, quer substancial de práticas críticas eticamente credíveis, quanto aos autores, quer quanto aos textos lucidamente esclarecidas e teoricamente escolhidos. Assim, desde o poeta fundador do fundamentadas, com escassas excepções, a mais Estado-Nação, Agostinho Neto, aos representantes notável das quais é a de Luís Kandjimbo. Mesmo da literatura “tipicista” (“costumbrista” ou alguns “mais-velhos” críticos angolanos, “nativista”), como Assis Júnior e Óscar Ribas, respeitáveis, como Jorge Macedo, têm-se passando pelos poetas da modernidade comprazido, por vezes, em argumentações críticas vanguardista, que não descartam fundamentos da que lembram o tão criticado “ambaquismo”. Uma angolanidade, como David Mestre, Ruy Duarte outra questão fulcral: em Portugal, é óbvio que de Carvalho e Arlindo Barbeitos, ou poetas também há incidentes parecidos e basta recordar sobretudo do “tipicismo regionalista com o chinfrim em torno da antologia O século de propensão nacional e internacional” (Viriato da oiro, de poesia portuguesa, a propósito da não Cruz, Lara Filho e Almeida Santos), ou, finalmente, selecção de , Manuel Alegre, etc. aos escritos de temática revolucionária, como a Esgrimiram-se, então, argumentos os mais poesia “com armas” de Costa Andrade ou o disparatados, por pessoas ditas da “vida pública”, romance da guerrilha de Pepetela, e sem esquecer mas que, de poesia, devem compreender tanto os prosadores que adoptam a influência da como eu de alguidares. No caso angolano, o oralidade, como Uanhenga Xitu ou Boaventura mínimo que se poderia exigir a um JMA é que Cardoso, ou, drasticamente, reinventam o modo tivesse a máxima atenção com qualquer (f)acto narrativo angolano, como Luandino Vieira e João literário poder ter, com grande probabilidade, Melo, o âmbito selectivo parece-me suficiente para repercussões políticas. Não é a literatura, em dar ao leitor um panorama consistente de literatura Angola, mais do que noutros países, um efectivo angolana (repare-se: o título da “Biblioteca” não meio de promoção social e política? Afinal, é totalizador, não é da literatura). Insisto: gostaria género(s), raça, etnia, classe, cor de pele, de ver incluídos Manuel Rui (que recusou), Jofre notoriedade, reconhecimento, representatividade, Rocha, Jorge Macedo, João Maimona ou Adriano etc são componentes incontornáveis da instituição

Edição nº 004 - Maio 2007 18 Pires Laranjeira literária angolana. Tem de se lidar com isso quando mesmo “canonizados”, em 1986, na altura do se trata de literatura angolana, ao contrário do cinqüentenário, que teve honras nacionais, no país que muitos nefelibatas da crítica, seja ela qual e nomeadamente no Mindelo, com a realização for, ainda pensam, erradamente. Em Portugal e de um Colóquio Internacional. Nessa época, no Brasil, nem se imagina a escandaleira que ainda estava vivo também Baltasar Lopes, o assolou os médias angolanos. Trocaram-se patriarca da literatura do país e do movimento. verdadeiros mimos envenenados e falhos de rigor. Já falecera o terceiro elemento notável, o poeta Nunca tal tinha acontecido, que eu saiba. Um e Jorge Barbosa. A Claridade representa para outros dos envolvidos provocaram um autêntico Cabo Verde o que o PPPanorama representa para terramoto intelectual – de conseqüências Portugal ou a Amauta para o Peru, a Mensagem imprevisíveis - que poderia ter sido evitado se para Angola ou a Révue Indigène para o Haiti: fossem observadas certas condições: são revistas fundadoras de uma consciência conhecimento exaustivo dos factos e das regras; nacional nas artes e letras e no pensamento. E argumentação fundamentada, inequívoca e Manuel Lopes, com os seus textos ensaísticos compreensiva; aceitação das opções alheias; curtos, publicados na revista, como, depois, com ausência de arrogância e de mal-entendidos; a sua obra literária, tornou-se numa figura icónica, clareza e autenticidade de intenções; observância tanto pela sua importância literária e cultural como do direito à diferença; consciência lúcida do pela discrição com que viveu. Não é por acaso contexto social, cultural e ideológico; uso das que a sua estreia em livro se deu com um ensaio regras elementares de (con)vivência democrática monográfico sobre a Ribeira do Paúl, na ilha de e de sociabilidade institucional. Alguns destes Santo Antão, tendo o conhecimento dessa região pressupostos foram, por certo, desconsiderados agrícola servido para fundamentar a sua obra e, por isso, gerou-se um vendaval narrativa, à semelhança – noutra esfera e noutra desproporcionado de “mujimbos” (boatos), má- dimensão – do que aconteceu com Amílcar fé, juízos inconsistentes, desrespeitos deselegantes. Cabral, que, percorrendo a Guiné-Bissau como Nada que não tenha acontecido com qualquer engenheiro agrónomo, viria a conhecer o seu país literatura. Mas, atendendo ao que observei em tão bem para poder lançar com êxito a luta de Luanda, durante uma semana, muito libertação nacional. De igual modo, Baltasar Lopes recentemente, não me restam dúvidas de que existe acaba por transmitir no seu romance Chiquinho uma atmosfera de má vontade, em certos sectores a experiência inicial de professor, como Jorge da vida angolana, incluindo o empresarial, o Barbosa na poesia, a vivência dos problemas não político e o cultural, para com membros da só de Cabo Verde, como também dos compatriotas sociedade por serem brancos e mestiços, não se serviçais em S. Tomé. A literatura, para essas olhando à competência e experiência dessas pessoas da Claridade, tal como para toda a pessoas. Gostaria muito de estar enganado, mas grande literatura, não podia deixar de ser a experiência diz-me que essa situação, em experiência de vida e de morte, observação e contexto pós-colonial, é bastante corriqueira. E o empenhamento, saber e testemunho, com sua dose mesmo poderíamos dizer, ao contrário, se a análise de sonho, imaginação e maravilhoso, sobretudo recaísse sobre a sociedade portuguesa. De facto, em circunstâncias de dificultosas tormentas, qual ninguém pode lavar as mãos em água turva. epopéia prosaica e poético-moderna de um país em parto lento, também feito por eles. A discrição – até no estilo literário, enxuto e 4 – Manuel Lopes: um “mais-velho” fotográfico, relatando acções de grande densidade cuja força da natureza permanece e conteúdo, onde o povo cabo-verdiano revê os seus problemas de sempre - era uma marca Com a morte do cabo-verdiano Manuel Lopes distintiva desse homem-escritor pouco dado a (1907-2005), desaparece a última figura da vaidades mundanas, que acabou por não ser primeira Claridade (1936), mas não desaparece figura de “partido”, embora tomasse partido pela o legado dessa revista e desse movimento que cultura, pela humanização da sociedade, por revolucionaram as Letras em Cabo Verde, pois a apelar à “mocidade” (como era hábito, nos anos sua influência continuará a fazer-se sentir, na 40 e 50, chamar à juventude), desde sempre, a medida em que se tornaram incontornáveis e foram que não se perdesse nos descaminhos da incultura

Edição nº 004 - Maio 2007 Pires Laranjeira 19 e da alienação e usasse a dialéctica do romance Os Flagelados do Vento Leste tenha enobrecimento para lutar por causas benéficas para saído apenas em 1960 e seja um texto com fundas a humanidade de seres humanos concretos. Fê- implicações naturalistas, portanto, ainda com algo lo em palestras, em artigos, além do que pintou de profundamente enraizado na ideia de alguns quadros enquanto amador (amante) que determinismo do meio sobre o indivíduo, próprio pratica, usando, tanto nos escritos como na do século XIX. É certo que também se explica por pintura, o que se pode chamar a “referência ter sido escrito muito antes e a motivação ser a realista”, o querer dar a ver o real “tal como ele seca e a fome, de tal modo que, diga-se assim, o parece que é”, segundo a objectiva de um autor não podia escapar à violência do real para fotógrafo, a paleta de um pintor naturalista ou a desejar qualquer tipo de experimentalismo ou prosa de um jornalista descritivo. Ou seja, a sua vanguarda estética. Mais: a notação descritiva, a obra é a de quem quer dar notícia de Cabo Verde representação realista de acções, personagens, sob uma perspectiva social, económica, cultural, motivos, imagens, etc impuseram-se a Manuel mas sem o compromisso de fazer arte engajada Lopes, tal como a Baltasar Lopes, embora fossem politicamente, antes procurando “relatar” o que dois discursos literários diferenciados (mais em si fazia doer pela desumanização: as secas poetizante o de Baltasar). A realidade da vida, a terríveis, com seu estendal de miséria, sofrimento força da impiedosa natureza, a evidência do e morte; os dramas familiares, com seus sofrimento eram, para ele, inescapáveis, não desencontros e vida precária; os pequenos tráficos havendo outro modo de os querer dizer, a não ser morais, face à “amoralidade” da natureza com o instinto e a crença de que era preciso impiedosa; as vidas vividas a duras penas e os transmitir “uma mensagem” aos vindouros, para actos desesperados e também trágicos (como que não se esquecessem as secas da primeira Leandro ou José da Cruz, de Os Flagelados metade do século XX, qual calvário ou “tsunami” do Vento Leste); as actividades de sobrevivência cabo-verdiano. da gente comum; a obstinação dos que ficam e A sua inspiração parte, pois, da realidade do labutam sem “perder a alma”, como essa país ainda colônia, conhecidas e vividas as suas esplendorosa personagem de Mané Quim, seco e catastróficas secas, tal como a experiência, tão simplório, mas decididamente férreo e telúrico, que insular, da emigração, que experimentou para os não emigra e finca os pés na terra, finalmente Açores, com ida ao Estado norte-americano do varrida por uma “chuva braba” no romance com Massachusets e ficando-se por Lisboa até à morte. o mesmo título. Na pintura e no piano, para Prisioneiro das vivências da juventude, como todos usufruto próprio, mais do que para (se) expor. os da sua geração (Jorge Barbosa escreveria Discreto, com papéis, notas, esboços, rascunhos, poemas, mais tarde, sobre outros temas, incluindo etc., muitos, que não terá sequer completado, vê- os políticos), Manuel Lopes escreveu sobre um se – quem o conheceu sabe disso – que gostava tempo (o dos anos 30-40) e um território (Cabo sobretudo da vida, de viver, enquanto força da Verde, Ilha de Santo Antão), marcados pela natureza estuante de pujança e sensatez. Para nostalgia do que se viveu e se tenta recuperar pela quem não saiba: com mais de 80 anos de idade, escrita, não do saudosismo, mas da eficácia parecia que tinha apenas 50 e poucos, com o performativa e pragmática, isto é, para cabelo todo preto, sem ser pintado! Prezava a testemunhar, ensinar e louvar as gentes família e a amizade, os afectos e a convivência. desconhecidas. O seu estilo é, por isso, claro e Não era de rufar tambores e, modesto, escreveu explicativo, denunciador e saboroso, talhado em apenas o que quis e quando quis, sem se submeter moldes de norma canónica “metropolitana”, mas, a uma “carreira literária”: a literatura e a cultura sem dúvida, não podendo ser senão cabo-verdiano eram-lhe vitais, viscerais, modo antigo de “de gema”, tal como o romance Chiquinho, de (sobre)vivência do ser e do estar, contra o comércio Baltasar Lopes, sendo discursivamente de língua e o falso esplendor do mercantilismo cultural. literária bem “mais cabo-verdiana”, jamais poderia Assim se compreende que – como aconteceu ser “português”. Essa operação semântica, de com tantos outros autores da África – as datas de deslocação da portugalidade para a cabo- publicação não correspondam sequer às décadas verdianidade, uns pelo discurso também, outros de feitura dos textos, estes sempre “atrasados” na pelo conteúdo, outros ainda pela ideologia saída. Assim se explica que, por exemplo, o explícita, ousou-a o A. Somente através do ethos

Edição nº 004 - Maio 2007 20 Pires Laranjeira que não pode ser outra coisa que não o do ser-se teve elogios de Óscar Lopes e Vitorino Nemésio, cabo-verdiano nos comportamentos, expressões apenas para citar dois personagens da cultura (mesmo em português de Portugal), motivações, não cabo-verdiana e não ligados aos estudos idealizações, imaginários. Por isso, o romance africanísticos. Chuva Braba é o contrário dos Flagelados da Saiu primeiro um livro de PPPoemas de Quem seca, é a evidência da chuvada fertilizante que Ficou (1949), antes das narrativas em livro, mas sacia e, paradoxalmente, incomoda, de tão foram estas que o projectaram, inclusive no Brasil, inusual, como se pode ver, no final, em que uma à época da sua divulgação. Voltaria a reincidir porta custa a fechar, pela violência do vento e da na poesia com Crioulo e Outros Poemas, já chuva brava. O livro fala também das dificuldades nos anos 60, e só recentemente é que Alberto perante as autoridades coloniais, de modo subtil, Carvalho estudou e ajudou a organizar a nele usando o A. Também expressões muito totalidade da sua obra poética – com o sugestivo tipicamente insulares, para caracterizar melhor as título de Falucho Ancorado (2000), pequeno falas populares, e não se eximindo, por vezes, a barco como que de quem sempre ficou lá na terra, referências eruditas (a Mefistófeles, por exemplo), mesmo vivendo em Lisboa. Ora essa poesia, tal porém, escapando ao exibicionismo, fugindo dele como os de Baltasar Lopes e de Jorge Barbosa, a sete pés, apenas para pontuar melhor uma seus pares no panteão nacional das letras cabo- indicação, pois os seus livros podem ser lidos por verdianas, contribui para uma visão mais todos e qualquer um. aprofundada do escritor, não apenas de narrativas, São evidentes os contributos que fica a dever mas demonstrando uma sensibilidade poética na ao romance brasileiro nordestino de 30, a melhor tradição do arquipélago, que não pode Steinbeck como a Caldwell, mas, como ele afirmou ser desvinculada do desejo de expressar os em entrevista, procurou libertar-se das leituras e, sentimentos e a vontade de pertença a uma pode-se afirmá-lo, não manifesta qualquer dessas comunidade nova em formação, bem assim como “angústias das influências”, como agora se diz, as angústias e as dores da existência, tanto como mesmo que as queiram pesquisar no âmbito as alegrias, do ser-se cabo-verdiano, isto é, psicanalítico: Manuel Lopes era cioso – e tinha permanentemente insulado e solidário, por saber- razão – do seu fazer literário próprio, sem se e sentir-se na pele o que tal significa. Assim, dependência de cartilhas prévias, porque livre e leia-se a sua poesia com olhos de ver um país e um honesto, querendo somente “dar conta do recado” povo sofridos e empreendedores, mas no qual há que sentia poder levar aos leitores do seu tempo e lugar para a afectividade poderosa da criação, do do futuro. Foram-lhe feitas algumas críticas sublime e do intemporal, para resguardar a memória injustas, mas até Onésimo Silveira (o actual dos vivos para além da morte – destino maior de embaixador do seu país em Portugal), que criticou, qualquer arte, para lá da usura da mercadoria, de em tempos que já lá vão, os da Claridade, que Manuel Lopes sempre quis escapar. poupou-o mais do que aos companheiros do Merecia ter recebido o Prémio Camões, mas triunvirato, precisamente pelo romance Chuva felizmente que o Instituto com o mesmo nome Braba. Essa crítica, feita em 1963, no começo editou, sob a tutela de Jorge Couto e com da luta de libertação nacional, provindo do jovem organização de Armandina Maia, uma espécie politicamente aguerrido que Onésimo era, só podia de “álbum documental”, com fotos, as suas constituir-se como aval do escritor e homem que pinturas, uma entrevista, e outro material, incluindo usava numa epígrafe um trecho do escritor francês reproduções fac-similadas, constituindo uma bela Henri Barbusse, internacionalista, pacifista, anti- homenagem e um excelente baú de onde novas imperialista, curiosamente inspirador da revista e surpresas podem sempre sair, por meio de do movimento em que o “trio claridoso” se afirmou instigantes leituras de uma personalidade que como pilar da Nação a nascer. Uma obra que ultrapassa a sua modéstia.

Aceito em 20/06/2006.

Edição nº 004 - Maio 2007