Manuel Alegre UMA OUTRA MEMÓRIA
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Manuel Alegre UMA OUTRA MEMÓRIA A escrita, Portugal e os camaradas dos sonhos Índice I Uma visão poética ................................. 11 O poema e a vida .................................. 21 II Que porque ...................................... 31 Sophia – comunhão ................................ 33 Uma janela sobre o Mondego ......................... 35 Natália ou a Feiticeira Cotovia ........................ 39 Mário Cesariny ................................... 42 Eugénio de Andrade................................ 43 Pedro Homem de Mello............................. 45 Herberto Helder: uma velha cumplicidade . 50 Fernando Assis Pacheco ............................. 55 José Carlos de Vasconcelos: um navio iluminado........... 59 Maria Teresa Horta: As Palavras do Corpo ............... 62 Algumas coisas que devo a Luandino Vieira .............. 65 Uma luz só luz .................................... 67 O marulhar da língua............................... 69 Música secreta .................................... 72 Poesia e medicina .................................. 73 País de Abril...................................... 78 5 III Passar o Cabo..................................... 83 Barnabé e nós .................................... 88 António Lobo Antunes ............................. 92 Uma outra memória................................ 93 IV Humberto Delgado: 31 de Maio de 1958 ................ 99 Um capitão de artilharia............................. 103 Mário Soares e eu – um resumo ....................... 109 Ele era sozinho uma frente ........................... 116 Francisco Salgado Zenha ............................ 121 Álvaro Cunhal: a lógica e a lenda ...................... 124 Um pequeno-almoço ............................... 128 João Pulido Valente ................................ 130 Manuel Tito de Morais ............................. 132 Um príncipe da República ........................... 135 A terceira morte de Amílcar Cabral..................... 139 João XXIII: a encíclica proibida ....................... 142 Eduardo Lourenço ................................. 146 Maria de Lourdes Pintasilgo: o realismo e o sonho ......... 150 César Oliveira: Os Anos Decisivos ..................... 152 Rui Feijó ........................................ 157 Urbano ......................................... 160 José Luís Nunes ................................... 163 Breve sumário de Sottomayor Cardia ................... 165 Alga............................................ 168 Laura ........................................... 170 V Amália.......................................... 173 José Afonso: do Choupal até ao Sul .................... 175 6 Adriano: trovador do vento que passa ................... 178 Carlos Paredes .................................... 187 António Portugal: guitarra da liberdade ................. 189 VI Viagem a Duíno .................................. 195 VII 25 de Abril: a quinta dimensão........................ 203 Os camaradas dos sonhos ............................ 208 Palavras imensas................................... 211 O bom e o mau socialista ............................ 214 Oxalá........................................... 217 VIII «Europa, sonho futuro» ............................. 221 Uma deriva ...................................... 227 Europa e crise .................................... 230 A Grécia e nós .................................... 233 IX Sobre a Liberdade ................................. 239 Portugal e Utopia .................................. 247 Último discurso na Assembleia da República ............. 252 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................ 255 7 I Uma visão poética Estava longe de pensar que um dia veria o meu nome asso- ciado a uma Cátedra sobre Literatura e Língua Portuguesa nesta Universidade que tem por lema a Liberdade e que, por isso mesmo, foi o primeiro centro da consciência crítica e da revolu- ção científica na Europa. Longe ainda de imaginar que tal suce- deria na cidade onde repousa o Santo que para uns é de Pádua, para nós de Lisboa, e, de qualquer modo, o Santo mais popular de Portugal. Não sou um académico. Estou aqui como poeta e agradeço que seja nessa qualidade que me recebem, já que, no meu país, historicamente, poesia e língua quase se confundem. Creio que pela mediação da poesia os poetas fundaram os povos. E os povos fundaram a língua. E a língua fundou as nações. Eduardo Lourenço, num ensaio sobre a minha escrita, fala da «nostalgia da epopeia». Eu tenho essa nostalgia. A minha visão de Portugal é uma visão poética, uma visão integradora, em que se misturam poemas, batalhas, revoluções. Dessa visão faz parte «a primeira tarde portuguesa», belís- sima expressão com que Alexandre Herculano se refere à vitória do primeiro rei Afonso Henriques na batalha de São Mamede, em Guimarães, esse breve e decisivo momento em que Portugal começa. 11 Mas também as lendas, as trovas, os cantares de amigo, as «Flores de Verde Pinho», esse fantástico poema do rei -poeta D. Dinis; as crónicas de Fernão Lopes, que é o nosso primeiro prosador e historiador e, ainda hoje, um dos mais originais; os Autos de Gil Vicente; Francisco Sá de Miranda, que trouxe de Itália a medida nova para fazer a primeira revolução literária e, em pleno século XVI, escrever estes versos tão modernos: Comigo me desavim, Sou posto em todo o perigo; Não posso viver comigo Nem posso fugir de mim. Dessa minha visão poética fazem ainda parte batalhas pela independência, sublevações libertárias e a Revolução de 1383, que é talvez a primeira revolução popular e nacional na Europa, aquela que consolida a independência de Portugal, assim como o poder central do rei apoiado pelo povo contra os grandes senhores aliados de Castela, ao mesmo tempo que abre o caminho para as navegações que, através do «ver claramente visto» e de um «saber de experiência feito», contribuiriam para uma nova visão do mundo e para uma revolução cultural e científica contra o saber livresco, dogmático e autoritário. Portugal, com as suas naus por sobre os mares desconhecidos, e cidades como Pádua e Veneza, com a sua liberdade cultural, foram Europa antes de Europa o ser. A minha visão poética de Portugal é indissociável da sua aventura marítima e passa, sobretudo, por esse momento de verdadeira fundação espiritual que é o da escrita d’Os Lusíadas e de toda a Lírica de Camões. Não só por nos ter dado uma epopeia em que o herói não é uma figura mítica mas o próprio povo português e a sua História, como por ter criado uma nova 12 linguagem poética e a língua portuguesa tal como hoje a escreve- mos e falamos. Ou como quem nunca mais foi capaz de a escre- ver assim, porque nunca mais ninguém voltaria a juntar o rude que e o terrível porque para os transformar em ritmo, música, poesia em estado puro. … se alguém te perguntasse Canção, como não morro, Podes -lhe responder que porque morro. Isto aconteceu uma vez. E ao acontecer refundou poetica- mente Portugal e consolidou para sempre a língua portuguesa. Claro que eu podia vir por aí fora, cair com D. Sebastião e o seu exército no grande desastre de Alcácer Quibir, e regressar depois com aquele enigmático romeiro que, no Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, quando lhe perguntam quem é aponta o seu próprio retrato e responde: «Ninguém.» Às vezes tenho a sensação de que todos somos esse romeiro. Ou de que ele até certo ponto se confunde com Portugal, «essa promessa não cumprida», como escreveu António Sérgio num dos seus ensaios. Também podia voltar atrás e partir de Coimbra com o Infante D. Pedro das Sete Partidas, para lavar a afronta em Alfarrobeira, esse confronto onde parece que estão sempre a cair todos aqueles que, em diferentes momentos históricos, têm lutado pela liber- dade e o espírito crítico contra o autoritarismo, a mentalidade dogmática e o espírito de seita. Visão poética que, evidentemente, passa pelo desembarque de Almeida Garrett e Alexandre Herculano com a esquadra liberal na praia do Mindelo para derrotarem o absolutismo e posterior- mente fundarem o romantismo. De armas na mão e de caneta em punho. 13 Passa obviamente pela inquietante e subversiva pergunta de Antero de Quental que hoje, de certo modo, se repete: «Mas, meus caros senhores, é possível viver sem ideias?» Visão poética que, desde as primeiras sílabas das primeiras trovas, até às estâncias d’Os Lusíadas, chega a Miguel Torga que nos interpela a «nunca descrer / do chão duro e ruim» e, ante- riormente, a outro momento fundamental e fundador: Fernando Pessoa e o seu «Portugal – Futuro do passado». Claro que uma tal visão não podia deixar de ter consequên- cias na minha vida e na minha escrita. Também eu, em certas circunstâncias, usei a caneta como arma. E até hoje tenho vivido a conjugar acção e literatura. Não é uma cisão. Essa aparente divisão é, ao fim e ao cabo, a minha própria unidade. Creio, aliás, que vida e escrita são inseparáveis. E que ninguém escapa à sua circunstância histórica. Não tive a possibilidade (e também a rejeitaria) de ser um daqueles poetas que, segundo o grande poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, se pretendem «intemporais, inespaciais e fora da História». A minha circunstância levou -me, em certo momento, a dizer não, e a dizê -lo em verso, segundo um certo ritmo, uma certa toada, uma certa correspondência de sons e imagens. E talvez nem tanto por um movimento de consciência, mas sobretudo por um impulso, uma energia, uma confiança na força mágica da palavra e na sua capacidade para mudar a vida e o mundo. Havia um grande não para dizer. Um não histórico, poético,