UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS

Rafael Marcelo Viegas

“Dando peso à fumaça” Mundos paralelos das crenças absurdas em Dos Coxos (Ensaios III, XI)

Texto apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à defesa de Doutorado em Letras Neolatinas, Literatura Francesa.

Orientador: Prof. Marcelo Jacques de Moraes Co-Orientador: Prof. João Camillo Barros de Oliveira Penna

Rio de Janeiro 2014 CATALOGAÇÃO NA FONTE UFRJ/SIBI/

V656 Viegas, Rafael Marcelo.

“Dando peso à fumaça”. Mundos paralelos das crenças

absurdas em Dos Coxos (Ensaios III, XI) / Rafael Marcelo Viegas. – 2014.

282f. Orientador: Marcelo Jacques de Moraes. Co-orientador: João

Camilo Barros de Oliveira Penna

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.

Montaigne, Michel de, 1533-1592 – Teses. 2. Ensaio – Teses. 3. Narrativa – Teses. 4. Literatura – História e crítica – Teoria, etc –

Teses. I. Moraes, Marcelo Jacques de Moraes. II. Penna, João Camillo Barros de Oliveira Penna. III. Universidade Federal do

Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. IV. Título.

CDD 809

Título em inglês:

“Able to give weight to smoke”: Parallel Worlds of bizarre beliefs (Essays III, XI). UFRJ – Faculdade de Letras | Rio de Janeiro | 2014

FOLHA DE APROVAÇÃO

Rafael Marcelo Viegas. “Dando peso à fumaça”. Mundos paralelos das crenças absurdas em Dos Coxos (Ensaios III, XI)

Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 2014

______Marcelo Jacques de Moraes, Professor no Departamento de Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro

______João Camillo Barros de Oliveira Penna, Professor no Departamento de Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro

______Edson Rosa da Silva, Professor no Departamento de Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro

______André Rangel Rios, Professor no Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

______Maya Suemi Lemos, Professora no Instituto Multidisciplinar de Formação Humana e Tecnológica, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

______Antônio Alcir Bernardez Pécora, Professor no Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas

______Luiz Fernando Medeiros de Carvalho, Professor no PPG-ML, Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora Suplentes ______Eduardo Guerreiro Brito Losso, Professor no IM, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Si juxta claudum habites, subclaudicare disces (Adagiorum chiliades , 1536)

Pela primeira vez, meus agradecimentos acadêmicos não podem mais contar com a presença física de minha mãe, Terezita Rosa Viegas.

A ela e a Maria José da Silva, pilares vigilantes de uma formação obtusa e misteriosa, dedico este trabalho. Agradecimentos

É evidente que esta pesquisa, em sua mecânica profunda e insondável, deve mais a muito mais gente do que os que poderiam estar listados abaixo. Não falarei dos percalços (bibliotecas pífias, serviços ruins etc.) porque absorvemos nossas idiossincrasias locais como fatos naturais e não como contingências históricas contra as quais precisamos lutar encarniçadamente, se necessário, até a consumação dos séculos. Considera-se tolo chover no molhado. Estou de acordo. Por outro lado, é um alívio, justamente por conta desses reveses, não ser obrigado a manifestar gratidões por estruturas que só por pura deferência burocrática constariam aqui. Deste modo, nestas poucas linhas, onde reino soberano, posso retribuir com palavras de carinho e gratidão apenas a quem realmente foi importante na vida que, durante todo esse período, teimou em acontecer ao meu redor.

A Marcelo Jacques de Moraes e a João Camillo Penna, mestres pacientes, cuja confiança depositada em mim, mesmo em meus períodos mais neuróticos e confusos, valeram de estímulo constante e de escudo contra a adversidade.

A André Rios – que desta vez está em uma banca minha como júri e não como orientador –, meus agradecimentos pela formação de quase vinte anos ininterruptos.

A eles gostaria de somar os nomes de Edson Rosa da Silva, Maya Lemos, Alcir Pécora, Eduardo Guerreiro Brito Losso e Luiz Fernando Medeiros de Carvalho – uma alegria e uma honra em tê-los como juízes.

À equipe do Escritório do Livro e de Mediatecas da Embaixada da França no Rio de Janeiro: até 2012, Jérémie Desjardins, Alice Toulemonde, Sabrina Derris, Alessandra Santos, André Sena, Gabrielle Feitosa; até 2013, Marion Loire, Paul Marcille, Luiz Miranda, Marina Borges de Carvalho, Claudia Cordeiro, Rachel Rufino Almeida (que colaborou no estabelecimento da lista bibliográfica final). E last but not least , pairando solene e elegante por sobre todos nós, aprendizes, Elisabeth Nevière Rodrigues do Nascimento.

A Almerinda Stenzel e Dennis Gerstenberger (Goethe Institut-RJ), Carlos della Paschoa (Instituto Cervantes), Andrea Lacerda, Carla de Oliveira, Rita de Cássia Marques Páscoa (Biblioteca do CCBB-RJ), e Regiane Eliel (Biblioteca do IFCH-Unicamp).

Aos amigos Marcus Reis, Flávia Hasky, Laila Hasky Pinheiro, Marcelo Cattan, Cristina de Pádula, Pedro Duarte, Marcela Cibella, Marco Ruffino, Alexandre Carneiro, Guilherme Castro de Carvalho, Carolina Alfradique, Daniele Grace, Rodrigo Ielpo, Paola Ghetti, Manoella Martin-Baffa e família, Liana Carreira Martins, Jairo Gama, Ariane Moreth, Patrícia Rebello, Bia Russo, Helene Aguiar, Flora Mangini, Ivan Frias, Marcia D’Angelo, Simone Gryner, Pierre Guisan, Gustavo Olivieri, Rémi Loire, Tempero Carioca (Marcos China, Agrião, Pelé, Marcos Basílio, Sérgio Procópio, Marcelo Pizzotti, Evandro Lima), Thiago Cesário Alvim e equipe, e Sebastião Fagundes e família.

A Pablo de Vargas, o Azedo. A Marcelo de Araújo, Admoestador Incansável. A Adaildo Moreira, o mais fino dos mestres beethovenianos pós-modernos. E ao inesgotável celeiro de ideias que é Aloys Zimmermann (Cuba) Lancaster.

Ao amigo Carlito Azevedo.

Aos Bieri (Frederico Guido, Sarah Alvine e Ricardo), fortaleza inexpugnável encravada na fronteira sul de nosso país.

Aos sobrinhos Marcos Paulo Hilário Filho e Amanda Viegas, e aos primos Paula Taitelbaum e Eduardo “Peninha” Bueno (suas exigências de idolatria incondicional a Bob Dylan ajudaram a montar o fundo musical de boa parte da escrita da tese, no que sou imensamente grato).

A Leandro Salgueirinho, pela leitura paciente do copião e pela revisão final do texto.

Aos alunos dos cursos de LitComp I e II (2008) e LitComp I (2009-2011) da Faculdade de Letras da UFRJ.

A pesquisa se beneficiou de um estágio sanduíche de quatro meses em , dentro do acordo Capes-Cofecub firmado entre a Universidade de Paris-VII e a PUC-Rio. Agradeço aos contribuintes brasileiros que me financiaram na figura da Capes e, em especial, aos funcionários dessa instituição, pela gentileza, paciência e disponibilidade. Agradeço a acolhida do professor Christophe Bident, coordenador francês do acordo. E um agradecimento todo especial a Ana Kiffer, que coordenou a parte brasileira.

Reza um velho provérbio universitário que um casamento não resiste à preparação de uma tese – e esta é a segunda que escrevo com Andréa Bieri ao meu lado. A explicação é mútua e sinfônica e está nos clássicos: οὔτε γὰρ ὕπνος οὔτ' ἔαρ ἐξαπίνας γλυκερώτερον . Assim seja.

A todos os que não estão listados aqui, mas que têm, secreta ou abertamente, o meu mais profundo reconhecimento.

Rafael Viegas Verão escaldante de 2014 [email protected] RESUMO

VIEGAS, Rafael Marcelo. “Dando peso à fumaça”. Mundos paralelos das crenças absurdas em Dos Coxos (Ensaios III, XI) . Texto para defesa (Doutorado em Letras Neolatinas, Literatura Francesa). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Em Dos Coxos, capítulo XI do terceiro livro dos Ensaios, não vemos apenas o estabelecimento de um discurso crítico montado sobre dispositivos céticos, cujo objetivo principal seria a demolição de uma atmosfera saturada de superstições e de dogmatismos de todas as ordens (jurídicos, políticos, sexuais). Vemos também o estabelecimento de uma lógica ficcional, onde elementos narrativos eruditos e biográficos são mesclados a dispositivos miméticos, aliados a um plano diegético que oscila entre a informação e a lógica narrativa conteuse e exemplar. O trabalho tenta acompanhar essas oscilações, mostrando possibilidades de leitura a partir de dispositivos contemporâneos ao seu momento de publicação ( fait divers , pastoral) como também assumindo perspectivas extemporâneas e comparativistas.

With Dos Coxos, chapter XI of the third book of the Essays, we not only see the establishment of a critical discourse devices mounted on skeptics, whose main objective would be the demolition of a saturated atmosphere of superstition and dogmatism of all orders (legal, political, sex). We also see the establishment of a fictional logic, where scholars and biographical narrative elements are merged to mimetic devices, combined with a diegetic plane oscillates between information and narrative logic conteuse and exemplary. The thesis attempts to follow these oscillations, showing possibilities of reading from contemporary to his time of publication ( fait divers , pastoral) devices as well as taking a comparativist activity in perspective.

Índice

Prefácio 111111

I. “Montaigne” em perspectiva 212121 Referências metodológicas de leitura

II.II.II. No reino dos nobres pastores 505050 Resumo de contexto

III.III.III. No seio das doutas virgens 757575 Análise pastoral de um texto preambular de Montaigne

IVIVIV . O fait divers na época pré ---Moderna 107107107 Situação geral e contexto literário

V,V,V, I. 136136136 Dos Coxos : preparativos

V, II ... 171717917 999 Dos Coxos: peregrinações

Conclusão 232323423 444

Bibliografia 257257257

Apêndice 289289289 Texto de Dos Coxos

Nota sobre as edições

Embora cotejado com o de outras edições, todas referendadas na minha bibliografia, o texto dos Essais utilizado neste trabalho é o de Pierre Villey (PUF, 1924) revisto por V.L. Saulnier (1965) e reimpresso na coleção Quadrige , em 2004. Ainda que não exista uma edição definitiva dos Essais , o trabalho de Villey é muito comumente aceito como referência. Em Quadrige , os três livros, publicados em um único volume, retomam a mesma paginação da edição de 1924 – o que facilita seu uso nas citações, no mapeamento dos parágrafos e nos trabalhos de concordância. O texto é pontuado pelas letras [A], [B] e [C], que permitem distinguir os diferentes estágios de publicação dos Essais : [A] para o texto de 1580; [B] para o texto de 1588; [C] para o material posterior a 1588.

Para os Ensaios em português, servi-me da tradução em 3 volumes de Rosemary Costhek Abílio (Martins Fontes, 2002), que é a versão literal do texto estabelecido por Villey-Saulnier, com todas as notas, a biografia resumida, e alguns apêndices – embora, em algumas passagens, sobretudo frases latinas citadas por Montaigne e demasiado licenciosas para Villey e seu público (e por isso não traduzidas por ele para o francês), Costhek Abílio lhes tenha feito a tradução literal. A clássica versão dos Ensaios por Sergio Milliet, editada originalmente pela Editora Globo em 1961 e desde 1972 reimpressa pela Editora Abril na coleção Os Pensadores , é livre demais para o trabalho crítico que me proponho aqui.

As citações tomam por base o texto de Villey-Saulnier (VSVSVSVS, seguido do número da página), mas estabeleço a correspondência com a paginação de Costhek Abílio (CACACACA., seguido do número do volume e do número da página).

Introdução

TEXTO QUE APRESENTO AQUI , como seria natural, tem vários porquês, Odiversos pontos de fuga, tangentes e secantes. Para efeitos práticos, este Doutorado que desenvolvi no Departamento de Letras Neolatinas-Francês da UFRJ responde pelo cruzamento direto de duas pesquisas diferentes, bem anteriores ao início do curso em si.

1. A primeira, mais explícita, é a continuação de meus estudos sobre Michel de Montaigne – que foi objeto de minha outra tese de doutorado, defendida em 2008 no Instituto de Medicina Social da UERJ;

2. A segunda – neste caso não poderia nem dizer que se trata de uma pesquisa em si – é antes uma meditação contínua sobre o que eu poderia chamar de “a história das margens”: minha teimosa inclinação pelos excluídos, pelos fracassados, meu interesse por tudo o que se constitui no dehors das instituições (tomadas em seu sentido sociológico). E, consequentemente, minhas simpatias, às vezes inconfessáveis, pela história e pela reflexão teórica sobre o resto , sobre o imperfeito , sobre o impuro , sobre o excremencial , sobre o informe . A bruxaria, tema por excelência do outsider e do marginal, me soou um tema perfeitamente compatível e confortável nesse contexto.

Devo a reunião desses dois temas distintos à pesquisa de Pós-Doutorado sobre a monstruosidade no século XVI, que desenvolvi paralelamente aos dois primeiros anos de Doutorado, também na UFRJ, mas junto ao Departamento de Ciência da Literatura (Literatura Comparada), sob supervisão de João Camillo Penna. No projeto que apresentei, estabeleci um longo cronograma em quatro partes: a primeira, sobre o fenômeno da bruxaria europeia no Renascimento; a segunda, sobre o corpo anatômico; a terceira, sobre os canibais; e a quarta, sobre o monstro propriamente dito, sempre no período renascentista europeu. Por conta da instrumentalização do tema e pelas leituras que fiz, porém, decidi deixar o restante de lado, concentrando-me apenas na bruxaria. Foi o que estudei durante os dois 12 primeiros anos do curso. A condição simultânea de pós-doutorando me permitiu ministrar alguns semestres de Literatura Comparada para alunos da graduação. E essa experiência em sala de aula foi determinante na condução das leituras que fiz desde então – influenciando diretamente a primeira fase do trabalho de pesquisa.

Digo isso porque, diante dos percalços na preparação e no desenvolvimento dos cursos que ministrei, sob a crítica cerrada de alguns alunos, vi que a pesquisa sobre a bruxaria europeia, por mais que eu fizesse um esforço para passar à História (canônica) da Literatura , me mantinha solidamente fixo no campo da História da Cultura . Isso era tão óbvio que, num dado momento, eu me perguntei por que, afinal, a bruxaria, embora um fenômeno quase onipresente (ainda que tratado de modo marginal) na História da Europa desde fins do século XV até o século XVII, ficara tão pouco representada na Literatura canônica e tão desprezada pelas diversas Teorias Literárias que abordam o período. Por que (os cursos que havia preparado até então me mostraram) havia uma quantidade enorme de textos sobre bruxas nos mais diversos matizes (filosóficos, teológicos, mágicos, jurídicos), mas praticamente nada no que é reconhecido como canonicamente literário?

Feiticeiras apareciam em Homero, em Apolônio de Rodes, em Horácio, em Propércio, em Teócrito, em Virgílio. Mas, quando chegam as bruxas (no sentido dado ao termo pelos demonólogos do Renascimento, a saber, o de feiticeiras definidas pelo pacto satânico ), fenômeno tão importante no imaginário coletivo europeu da época que me interessa aqui, é gritante a anomalia: realmente, faltam bruxas na literatura do século XVI. Em boa parte das narrativas medievais, claro, encontramos feiticeiras com certa facilidade. O detalhe, porém – e o que me importava na percepção do problema –, é que elas apareciam na mesma latitude diegética do unicórnio , do cálice sagrado , dos lagos encantados , das florestas misteriosas , das cavernas profundas e fantasmagóricas : ou seja, como marca ou índice do fantástico e como personagens totalmente pontuais e/ou secundários.

O pacto satânico foi teorizado pelos demonólogos do século XV; sendo assim, a rigor não poderíamos ter “bruxas”, tecnicamente falando, na literatura anterior ao trabalho efetuado por esses eruditos. Mas o problema está justamente aí: a produção literária contemporânea aos demonólogos ainda hesita em usar a bruxa satânica, preferindo a personagem medieval 1. Podemos levar em conta, neste aspecto,

1 A distinção entre feitiçaria e bruxaria não é uma fronteira nítida e categórica, tratando-se antes de uma distinção feita por comodidade teórica nossa: pois a feitiçaria é um fenômeno social e histórico tão disseminado quanto a magia (embora, na maioria das vezes, uma não se confunda com a outra), pouco importando a religião oficial que esteja no comando. E é a 13 algumas passagens de Shakespeare ( Macbeth ), uma peça de Fernando de Rojas ( La Celestina ), outra de Thomas Middleton ( The Witch ), além de trechos do Don Quijote , de Cervantes. Contudo, mesmo nas raras vezes em que as bruxas tinham algum papel relevante no enredo, o conjunto histórico que este inventário representa é pobre demais para constituir um cânon exclusivamente literário 2, sobretudo um que fornecesse material suficiente para sustentar as minhas 20 aulas (pois normalmente não exijo seminário) diante de desconfiados alunos de Literatura Comparada.

Refletindo a respeito, e ampliando um pouco o leque dos meus interesses (a esta altura, já englobando a magia, os mortos-vivos e os vampiros), deparei com um fato curioso: a bruxaria, agonizando no século XVIII, após sofrer forte concorrência dos fenômenos de possessão no século XVII 3 e golpes da legislação civil 4, é substituída, por assim dizer, no imaginário popular da Europa, sobretudo da Europa Central, pelo vampirismo. Era evidente que havia alguma coisa ali. Pois o vampiro foi inicialmente caracterizado e definido pelos “mesmos” mecanismos intelectuais que determinaram aquilo que era considerado, um pouco antes ainda, bruxaria: a teologia (Augustin Calmet, autor de um importantíssimo Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenants , de 1746, era teólogo e monge beneditino); a medicina ; a ordem jurídica e política (o médico Gerard van Swieten, por exemplo – o ancestral de carne e osso de Van Helsing –, estava a mando da imperatriz Maria Teresa, da Morávia, quando foi incumbido de examinar os “acontecimentos vampirescos” na Sérvia e na Bósnia, em 1755). Mas, ao contrário das bruxas, os vampiros (ou os personagens associados a eles) inspiraram um enorme manancial de textos decididamente literários (de Ossenfelder a Bram Stoker, passando por Coleridge, Gottfried Bürger, Goethe, Byron, Charles Nodier, Sheridan Le Fanu, Poe, Gautier, Maupassant, Wells), até serem capturados pelo cinema século XX adentro. E continuam, ainda hoje, tendo uma inegável vitalidade junto ao mercado editorial – independentemente do que a crítica diga de Anne “Entrevista com o Vampiro ” Rice, Stephen “ A Hora do Vampiro ” King, Lisa Jane

feiticeira, essa personagem antropológica comum, muitas vezes caricatural, que normalmente é instrumentalizada pelos textos literários, no geral pouco preocupados com as implicações teológicas propriamente ditas a respeito de sua definição categorial. 2 Para isso, ver Ryan Curtis FRIESEN , Supernatural Fiction in Early Modern Drama and Culture , Sussex Academic Press, 2010. 3 Lembro que distinção feita por Michel de Certeau na Escrita da História , no capítulo A Palavra da Possuída (resumindo grosseiramente: bruxa pobre, possessa rica), me causou uma impressão profunda, ajudando a fixar bem claramente as fronteiras dos fenômenos. 4 Ao menos na França, a partir do decreto de Luís XIV, em 1682, o qual proscreveu a pena de morte em processos de bruxaria. 14

“Vampire Diaries ” Smith ou Stephenie “ Twilight ” Meyer, entre infinitos outros autores e livros.

Se a pergunta era óbvia – “por que o vampiro, e não a bruxa, produz literatura ?” –, a tentativa de resposta se transmudara no meu exato novo ponto de partida. Tratava- se de momentos históricos diferentes (um fenômeno é Renascentista; o outro, Iluminista), mas, de qualquer modo, minha nova hipótese de trabalho – meu primeiro “navio quebra-gelo” metodológico – partiria desta contraposição. Eu a formulei assim:

Na verdade, o conjunto teórico e crítico arrolado para determinar, definir e condenar a bruxaria é tão densamente ficcional (ou, se preferirem, delirante) em si mesmo (basta abrirmos qualquer página da Demonomanie des sorciers , de Jean Bodin), ainda que nada tenha de ingênuo – é sempre bom lembrar que a demonologia é um fenômeno das “Luzes” do Renascimento e não das “Trevas” da Idade Média –, que esse conjunto esgota quase que por completo tudo o que a Literatura, tomada aqui quase como uma hipóstase, poderia ser capaz de bolar de mais maquiavélico, assustador, ensandecido ou... ficcional.

Original ou não, eis uma hipótese própria (boa ou ruim, certa ou errada, hermeneuticamente procedente ou uma tolice sem tamanho, pouco importa): o tema da bruxaria, que até então permanecia opaco para o meu entendimento – quer dizer, totalmente dependente de literatura secundária –, começava a mudar de rumo. Foi aí que me lembrei de um texto pouco conhecido (de todo modo, pouco comentado) de Montaigne, a partir do qual esta e várias outras questões associadas poderiam ser abordadas com força suficiente para gerar uma pesquisa de tese. Com isso em mente, reli o ensaio Dos Coxos (capítulo 11 do Livro 3). E, de fato, seria quase impossível não considerá-lo (numa pequena parte, é verdade) um microcosmo onde todas essas instâncias, sobretudo as teológicas e jurídicas – que fizeram a festa ficcional da demonologia do Renascimento –, são ironicamente reconstituídas e, finamente, desconstruídas.

Assim – mas de um modo que não poderia afirmar se inteiramente consciente ou pragmático –, as duas pesquisas se reuniram. Este conjunto caracterizou o que posso chamar de Fase I do trabalho: uma possível exploração comparativista de Dos Coxos em função das leituras de textos teratológicos e demonológicos, mas repensados (ainda que longinquamente) no contexto epistemológico e literário do 15 vampirismo (ao menos aquilo que eu havia até então entendido como vampirismo) 5. Para todos os efeitos, no entanto, a pesquisa continuava ainda fundamentalmente histórica – a literatura secundária, pelo menos, era totalmente histórica... Precisava de alguma guinada para que a tese fizesse, finalmente, sentido em um Departamento de Letras, e que se justificasse dentro da área que escolhi trabalhar 6.

***

A Fase II começou pouco antes da defesa de qualificação (julho de 2011). Tentando repensar o trecho demonológico de Dos Coxos do ponto de vista literário, realizei, então, minha primeira investida teórica na área: compreender o discurso demonológico dentro da problemática de uma teoria da ficção. Passei a orientar o trabalho nos termos de uma distinção entre imaginário e real , entre ficção e real , entre verdade e mentira , a partir dos termos e textos dos demonólogos, quer dizer, tentando refletir sobre uma possível “poética do discurso demonológico”. O ponto de partida foi sintetizado na noção de “ fictions du diable ”, extraída de uma coletânea organizada por Françoise Lavocat 7. As interrogações sobre o estatuto das operações diabólicas ( realidade ou ilusão ) já era uma questão jurídica e teológica importante para os próprios demonólogos, e o ensaio de Montaigne, na sua seção sobre a bruxaria, seria incluído aqui como uma mise en abyme de mimese cética ou irônica desses discursos (ficcionais?) particulares, a partir do qual se poderia extrair uma resultante comparativista também do restante do ensaio, em relação ao controle da natureza, à crítica ao excesso de milagres etc., também presentes, nele, de modo radical.

Esta nova orientação, embora importante na sempre buscada valorização temática em Letras, poderia funcionar para a seção “demonológica” do ensaio, mas

5 Isso que chamo de “fases” do trabalho correspondem tanto às leituras em si quanto às superações das leituras (em suma, às tentativas de leitura) que fiz de Dos Coxos . No caso da fase I, a exploração comparativista não funcionou bem, pelos motivos que exponho mais abaixo. 6 Essa obsessão, algo neurótica, pelo ajuste , pela adequação ao lugar , pela aceitação – implicando num eterno adiamento e numa sempre renovada preliminarização das discussões a fim de justificar uma intromissão num contexto que, em princípio, não seria o meu –, foi reconhecida como um problema que se refletia objetivamente no trabalho, mas que, por razões certamente dignas da psicologia das profundezas, me foi até aqui impossível sanar. A frase “Rafael Viegas é o homem das preliminares”, observada por João Camillo Penna, encontrou eco preciso no material então apresentado à banca de qualificação, definindo-se claramente como um defeito formal do texto , que nunca entrava de fato no planeta das questões, permanecendo sempre em sua órbita: “Car ses prefaces, definitions, partitions, etymologies, consument la plus part de son ouvrage; ce qu’il y a de vif et de mouelle, est estouffé par ses longueries d’apprets ”, diria, neste caso, o próprio Montaigne. Tentei, o máximo que pude, superar isso neste momento final. De certa forma, o último capítulo é uma tentativa de contornar esse problema – ao menos para mim, é mais uma superação psicológica do que uma solução silogística dos capítulos que definem, em linhas gerais, um formato de tese. 7 Françoise LAVOCAT et alii , Fictions du diable , Droz, 2007. 16 infelizmente não dava suporte hermenêutico suficiente ao resto do texto, deixando Dos Coxos ainda sem uma ergonomia geral de concatenação e de unidade temática: a articulação dessa poética demoníaca no quadro do ensaio (no qual essas questões demonológicas poderiam ser, de fato, atomizadas e criticamente debatidas) continuava me causando certo embaraço, uma vez que os diversos outros blocos temáticos – contrariando os meus esforços, à época – teimavam em não se interligar com os problemas demonológicos seus contemporâneos. A figura estereotipada da bruxa velha e feia, os signos epidérmicos do pacto satânico, o interrogatório, a sentença, a pena, estes dispositivos sine qua non da demonologia estavam efetivamente presentes no ensaio, mas apenas numa pequena parte dele, concorrendo com outros blocos narrativos totalmente independentes: a reforma do calendário gregoriano, a mulher coxa, o embuste de dois jovens charlatães de vilarejo... Pensei se não haveria, apesar do meu interesse primordial continuar sendo a bruxaria renascentista, algo a dizer a respeito disso como um todo, no intuito de rearticular essa aparente heterogeneidade do ensaio num campo unificado (ou algo assim) de discussões.

O estágio sanduíche que fiz em Paris-VII, de novembro de 2011 a fevereiro de 2012 8, me permitiu ter contato (junto ao acervo da BNF e a partir de coincidências difíceis de expor aqui) com documentos menores, não demonológicos (quer dizer, não produzidos diretamente por teólogos e juristas), sobre a bruxaria. Esse material era relativamente popular na produção, e certamente ainda mais popular, na recepção, que os textos demonológicos eruditos. Narrativas de tipo demonológico escritas para um público muito mais abrangente que o dos tratados teóricos: os suportes eram folhas precariamente encadernadas e mal impressas (muito parecidas com os nossos cadernos de cordel), material dos séculos XVI e XVII trazendo muitos relatos de tipo demonológico, bem como relatos sobre prodígios, portentos, fenômenos celestes e assassinatos. Suportes que a crítica especializada chama hoje de bulletins d’occasion e canards . A partir daí, meu esforço foi o de tentar compreender, epistemológica e historicamente, a natureza desses documentos, para valorizar o modo como Dos Coxos poderia lhes ser direta ou indiretamente associado (abrindo espaço, aliás, para reconsiderar a lista de influências/leituras de Montaigne, proposta por Villey, em um nível menos erudito).

8 Dentro do projeto Capes-Cofecub, Desacordos no Tempo. Estéticas brasileiras e francesas modernas e contemporâneas (séculos XX e XXI) , sob coordenação, no Brasil, da professora Ana Paula Veiga Kiffer (PUC-Rio), e, na França, do professor Christophe Bident (UFR-LAC da Universidade de Paris VII–Denis Diderot). 17

Após meu retorno ao Brasil, tentei desenvolver, na medida do possível, a pesquisa nesse caminho. Trata-se do material exposto no capítulo IV. E, com estas questões em mente, fechei a Fase II.

***

Fase III. Há mais ou menos um ano, na minha peregrinação periódica às bibliotecas da Unicamp, escrevi em um dos meus cadernos de notas: “O mundo de Dos Coxos é um mundo fora da courtoisie ”9. Como não existe, de minha pena, qualquer outra referência à courtoisie em Dos Coxos antes dessa data, acredito ter sido este o primeiro insight (ainda sem qualquer sentido de desenvolvimento, pura e simplesmente uma ideia que me ocorreu en passant ) a respeito da realocação de Dos Coxos numa dinâmica diferente da que vinha pensando até então. É dessa dinâmica que trato na tese. E é essa dinâmica que o leitor acompanhará no texto a seguir. ***

Resumo histórico feito, algumas palavras sobre a forma da tese. Primeiramente, não quis organizar a discussão de modo puramente teleológico, finalizando a tese, como seria de se esperar, com um ensaio dedicado à análise de Dos Coxos – os capítulos anteriores servindo-lhe apenas como propedêutica. Embora, na apresentação dos capítulos que estão mostradas no sumário, isto pareça ter acontecido, em nenhum momento achei que minha análise de Dos Coxos sairia forçosamente de premissas. Do ponto de vista formal, eu já saberia o que dizer, mas escreveria o texto fazendo de conta que não se sabia ainda, apresentando argumentos que teriam necessariamente de ser concluídos de uma dada maneira etc. etc. Em outras palavras, não vaticinei ex eventu . Não considero isso, em si, equivocado, claro. Mas é apenas uma fórmula de composição, como qualquer outra possível. No concreto, não faço a menor ideia de onde este texto dará. Por isso, contrariamente às recomendações que dou aos alunos, comecei a escrevê-lo pela introdução – e boa parte do que está dito aqui, excetuando-se o histórico acima, foi escrito para a banca de qualificação, dois anos atrás. Nessa época, de fato, não fazia ideia de onde iria estar agora. Em respeito a este detalhe, quis trabalhar num formato um pouco mais aberto, em que os capítulos pudessem ter certa independência (organizados como papers , por exemplo), a lógica que os articula entre si vindo não exatamente de uma sequência clássica de premissas e conclusões, mas, antes, do que poderíamos

9 A nota é datada de 18/10/2012, e foi escrita, a se levar em conta o cabeçalho da página, na Biblioteca do IEL. 18 chamar de lógica de acumulação, de coletivo. Afinal, estamos no terreno do maravilhoso 10 . Devemos metabolizá-lo.

Se polemizo, importa abordar este ponto em particular. Por um lado, esclareço que não quero nem vou amontoar argumentos sem prova. Por outro lado, também não gostaria de sacrificar o prazer de ter lido esses textos (tratados sobre tortura, anatomia, demonologia, agricultura, tragédia, poesia, magia, entre tantos outros, leituras quase sempre desprovidas de interconexão aparente), de modo autodidata, por assim dizer. Logo, é interessante deixar marcado aqui, ao menos nestes parágrafos iniciais, o sabor dessa experiência infantil do móbile. Assim como muitas coisas que fazem sentido para mim são possíveis de provar apenas em minha cabeça, muito do que pude mostrar pela argumentação precisou atravessar inicialmente um filtro de sentido, e de gosto, interno meu, mas também aconteceu ao sabor das eventualidades e do acaso. Confesso que, no fundo, li o que quis ou o que caiu nas mãos e não necessariamente o que deveria ter lido obedecendo uma sequência coerente de leitura ou algo assim; valorizei as coisas que me interessavam e não necessariamente o que seria mais fácil valorizar a princípio. É claro que isto que descrevo, em minha fantasia, como algo levemente singular deve ser o processo natural de um processo de pesquisa e escrita. Talvez o que eu queira dizer é que escrevi quase como um eclético erudit local , para usar uma nomenclatura francesa do final do século XIX. Fui investigar o tema mais pelo prazer que pela preocupação acadêmica em si, e acho que isso se reflete concretamente na escrita do texto: embora ele esteja recheado de notas, o movimento que concatenou a pesquisa se desenvolveu dentro de uma liberdade temática e de zoneamento (o que acho que lhe confere um perfil interdisciplinar) do que propriamente com uma pragmática de pesquisa concentrada numa perspectiva de univocidade temática e de área.

Por outro lado, utilizei o período do Doutorado para criar uma espécie de currículo mínimo de leituras na área de Letras. A ideia, claro, não era correr atrás do tempo perdido, mas minimizar o fato de nunca ter estudado Literatura europeia como

10 “(...) interrogo-me sobre se existiria no mundo muçulmano um termo que, mutatis mutandis , correspondesse ao que nós chamamos maravilhoso. O Ocidente medieval possuía um termo para isso. No tocante à cultura erudita , o termo mirabilis era empregado na Idade Média e tinha, aproximadamente, o mesmo sentido. Os clérigos da Idade Média, todavia, não tinham a bem dizer uma categoria mental, literária e intelectual que correspondesse exatamente àquilo a que chamamos o maravilhoso. Naquilo que corresponde ao nosso ‘maravilhoso’, e onde nós vemos uma categoria – categoria do espírito ou da literatura –, viam os clérigos da Idade Média (e aqueles que deles recebiam a informação e a formação) um universo, sem dúvida, o que é muito importante, mas um universo de objetos: mais uma coleção que uma categoria.” (Jacques LE GOFF , “O Maravilhoso no Ocidente Medieval” in O Imaginário Medieval , p. 46). 19 gostaria – ao menos até o período que me interessa. Desde o começo da graduação, por exemplo, eu praticamente parei de ler romances. Em outras palavras, este trabalho é também um reflexo direto dessa tentativa de obter erudição mínima (nomes, datas, filiações) na Literatura francesa do século XVI: e com isso explico – o que não significa que justifico – o aspecto de fichamento de alguns capítulos. Por conta destas circunstâncias, meu leitor ideal, na verdade, não é o júri da banca, mas um estudante de graduação em Letras, com um razoável domínio de línguas e pesquisa, interessado em entender, a partir de um tema dado (inicialmente, Montaigne e a bruxaria), como as coisas se organizam do ponto de vista da História da Literatura (sem necessariamente se esgotar numa cronologia esquemática, mas tomando essa História como pano de fundo e de referência geral). Quer dizer, escrevi o texto para mim mesmo, numa perspectiva quase espectral.

Daí, talvez, insisto, o conjunto um pouco extenso demais. Fiz o possível para que os argumentos expostos tivessem o máximo de informação, usando as notas não apenas como referência bibliográfica, mas realmente como apoio instrumental à escrita da argumentação: muitas vezes, quando esta se mostrava já suficiente para sustentar algo no corpo do texto, usei as notas para ampliar a densidade, sugerir outras hipóteses ou intensificar o que já estava dito com outros matizes. Isso acontece, em seu paroxismo, nos capítulo II e IV – quase que exclusivamente fichamentos históricos. Mas... como (obviamente um defeito meu) nunca tinha ouvido falar da pastoral renascentista (Sannazaro, d’Urfé, Poliziano, Bernardim Ribeiro...) ou do canard de fait divers até ter de falar sobre eles neste trabalho, mantive os capítulos como lembrança desse tour de force para comigo mesmo: e, seja como for, esses resumos ganham sentido no contexto global. De modo geral, acredito que o texto esteja corrido e relativamente articulado, e as notas, apesar de longas, permanecem como um elemento de diatribe, que me interessa manter e que pude manter em função do formato, e do escopo reduzido de leitores reais, de uma tese.

Por estes e outros motivos, o trabalho foi pensado e escrito como uma atividade intuitiva antes que um exercício de lógica textual. Vamos a ele.

No capítulo 1, introduzindo algumas questões relativas ao texto de Dos Coxos , apresento uma perspectiva de leitura do ensaio, dentro de uma metodologia geral de abordagem de Montaigne.

No capítulo 2, como disse acima, faço uma síntese do ambiente bucólico-pastoral na época do Renascimento europeu. O objetivo era criar condições para construir a 20 análise feita no capítulo 3, que versa sobre alguns aspectos sócio-históricos ligados ao desenvolvimento da literatura pastoral. Uma vez que compreendi melhor esses aspectos, talvez não tivesse mais sentido manter esse resumo no corpo da tese, mas decidi deixá-lo como está para marcar uma trajetória de leitura e de percurso da pesquisa.

No capítulo 3, analiso um texto montaignista pouco explorado, o da inscrição de 1571 – texto “preambular” escrito por Montaigne quando de sua aposentadoria parlamentar. Esta análise serviu como uma espécie de aplicação prática do trabalho realizado sobre a pastoral (resumo exposto no capítulo 2), mas também como parte do impulso especulativo que guiará a análise posterior de Dos Coxos .

No capítulo 4, de modo similar ao capítulo 2, preparei painel de contextualização do sistema informacional da época dos Ensaios . O objetivo era sentir um pouco o comportamento da circulação de informação que não fosse transmitida pelos textos autorais canônicos, mas por veículos mais “populares” (ou, em todo caso, menos eruditos). Sobretudo no que dizia respeito a eventos prodigiosos e de fundo maléfico. Embora o capítulo também seja um resumo, ainda considero importante sua presença, novamente, como corporificação de um momento da pesquisa.

O capítulo 5 teve de ser dividido em duas partes. Não denominei a segunda parte o “sexto capítulo” porque as considerei o desmembramento de uma mesma estrutura lógica. Na parte 5-1, tentei criar elementos que fornecessem à parte 5-2 um encaminhamento necessário, vendo os trechos que formam Dos Coxos como prolongamento de dispositivos fabulares. Na parte 5-2, finalmente, faço a análise do ensaio em função dos tópicos discutidos nos capítulos anteriores.

Uma conclusão tenta dar um aspecto de síntese ao material trabalhado nos capítulos.

O resultado final não é exatamente uma tese. Fiz mais uma exploração de leitura de Dos Coxos que propriamente uma tese formulada a partir de uma hipótese geral. Por outro lado, há várias micro-teses, por assim dizer, que preenchem a problemática e servem como motor de leitura do texto. No geral, penso que essas micro-teses se acumulam e se equilibram dando ao texto um valor que compensaria uma eventual falta dessa hipótese geral. Mas não compete a mim decidir se isso funcionou ou não. I Montaigne em perspectiva Referências metodológicas de leitura

EVO INICIAR COM UMA DISCUSSÃO sobre a minha “arte de ler” Montaigne D– pois uma obra tão aberta precisa de uma lógica especial de leitura. Não que me seja possível, claro, ensinar alguém a ler Montaigne: há outros autores infinitamente mais capazes que eu 1. Não é a isso que me refiro, mas sim a esclarecer melhor o meu posicionamento e o meu método de leitura, como encaro o texto, como tento driblá-lo. No caso de Montaigne, isso já dirá muito sobre o direcionamento das conclusões. Tentei emular algo parecido num momento anterior 2. O que argumento lá está pressuposto aqui: a distinção dramática de personae narrativas nos Ensaios mostrando sua descontinuidade subjetiva, distinção que impede aceitar naturalmente uma univocidade autoral pura que unifique a escrita dos capítulos e das seções; a manutenção de uma ordem plural de níveis discursivos em função da dinâmica de publicação editorial do(s) livro(s) – o que chamei de Montaignes [A], [B] e [C]; a dimensão essencialmente aristocrática da assinatura “Michel Senhor de Montaigne” e das negociações em torno da recepção da obra; e, claro, como o título do artigo indica, o entendimento algo ontológico das camadas editoriais. Por uma questão formal, não poderia, evidentemente, supor a leitura de um texto fora da tese para que esta adquira sentido. Mas, como esse artigo-capítulo (agora excluído da redação final que apresento aqui) constava no esboço do texto de qualificação defendido em julho de 2010, posso considerar que, ao menos num nível subliminar, esse pressuposto metodológico existiu, e, de

1 CAVE , How To Read Montaigne , Granta Books, 2013. 2 Rafael M. VIEGAS , “Montaigne de [A] a [C]. Ensaio sobre as couches ” in Remate de Males , nº 31/1-2, Jan-Dez 2011, pp. 35-52. O texto completo encontra-se em: http://www.iel.unicamp.br/revista/ index.php/remate/article/view/1424 22 alguma maneira, está efetivamente incorporado à discussão que apresento abaixo. Ainda assim, será necessário acrescentar algumas breves considerações.

Como li Dos Coxos ? Optei por fazer uma leitura passo-a-passo do ensaio, que seccionei em algumas partes. Uma divisão anatômica é uma estratégia que tem suas vantagens 3. Em linhas gerais, qualquer capítulo dos Ensaios pode perfeitamente ser dividido em blocos distintos, formando unidades quase sempre integrais e independentes, unidades que podemos chamar perícopes 4 – e Dos Coxos não é exceção à regra 5. De certa forma, a disposição original das suas perícopes serviu, até certo ponto, como uma arquitetura fenomenológica em si mesma: no início, havia me concentrado apenas na perícope demonológica, desprezando as restantes; mas, depois, ao aglutinar as outras perícopes na discussão, passei a trabalhar o ensaio como uma sucessão não exatamente de topoi , mas de causos – o que teve consequências diretas no modelo geral de interpretação.

Importa lembrar, desde sempre, que as perícopes não necessariamente se conectam tematicamente. Na verdade, e o neófito que começa a ler os Ensaios rapidamente se dá conta disso, os blocos temáticos que os compõem muitas vezes não guardam qualquer relação entre si – e, frequentemente, não explicam/justificam os próprios títulos dados a cada capítulo 6. Como consequência disso, nos Ensaios , a sucessão de perícopes de cada ensaio e a sua concatenação interna (ou externa) levam a problemas, às vezes, insolúveis se tentarmos fazer com que funcionem numa dimensão hermenêutica unitária. O que a reforma do calendário gregoriano tem a ver com os coxos? O que o caso Martin Guerre tem a ver com o calendário gregoriano? O que as delícias superiores da experiência sexual com a mulher manca

3 A Anatomia, enquanto disciplina médica, foi apropriada também como metáfora cultural nos séculos XVI e XVII e tem sua importância na dinâmica dos Ensaios . 4 Muitas vezes, poderiam tratar-se mesmo de logias , quer dizer, de ditos sagrados. Não sem certa ironia, portanto, aplico ao texto sacro dos Ensaios uma nomenclatura da crítica neotestamentária. 5 “Cada capítulo dos ensaios contém numerosos essais ” (Michael SCREECH , Montaigne et la mélancolie , p. 20). Em linhas gerais, o roteiro de Dos Coxos inclui: 1). Reforma do calendário e posição pessoal acerca dos prodígios; 2). Príncipe com a gota e continuação das considerações sobre os prodígios; 3). Caso dos charlatões “num vilarejo qualquer a duas léguas daqui”; 4). Digressão sobre a técnica judicial; 5). Caso Martin Guerre [discussão sobre a sentença de Coras]; 6). Caso das feiticeiras; 7). Digressão sobre as mulheres coxas; 8). Carnéades. 6 No caso de Dos Coxos , por exemplo, das dez páginas da edição brasileira, somente dois parágrafos (menos de uma página) são dedicados aos “coxos” do título. Lembrando que utilizo, neste trabalho, as edições de Villey-Saulnier (VS + paginação, para o texto francês) e de Costhek Abilio (CA + volume + paginação, para a tradução em português). 23 têm a ver com uma reflexão “sociológica” a respeito dos milagres? E assim por diante.

Embora não se possa dizer que Dos Coxos apresente uma estrutura mitológica implícita, onde a pluralidade díspare das perícopes certamente se beneficiaria de uma leitura estrutural (“absurda no nível sintagmático”, mas “coerente no paradigmático”), teremos de criar forçosamente um circuito diegético mais amplo que o oferecido por uma leitura puramente linear e teleológica das perícopes 7. Efetivamente, pela própria incongruência dos temas que compõem a tessitura do texto, e que adiantei acima, tal leitura não é suficiente para dar conta da sua interface (ou, para usar um neologismo dos próprios Ensaios , de sua contexture 8).

7 “Lévi-Strauss is certainly cognizant of the difference between syntagmatic and paradigmatic structure (1988:205). Moreover, throughout his four volume Mythologiques series, Lévi-Strauss repeatedly denigrates the sequential syntagmatic while at the same time praising the virtues of the paradigmatic. In The Raw and the Cooked , the first of the Mythologiques volumes, Lévi-Strauss claims that a detail of one myth which is ‘absurd on the syntagmatic level’ becomes ‘coherent from the paradigmatic point of view’ (1969:253). Again and again, the syntagmatic context is summarily dismissed. In speaking of another myth, Lévi-Strauss argues, ‘If we consider only the syntagmatic sequence—that is, the unfolding of the story—it appears incoherent and very arbitrary in construction’ (1969:306), and he proceeds to generalize, ‘Considered purely in itself, every syntagmatic sequence must be looked upon as being without meaning,’ and the only solution involves ‘replacing a syntagmatic sequence by a paradigmatic sequence’ (1969:307). Interestingly enough, although Lévi-Strauss’s methodology wears the trappings of structuralism, his actual method is a form, an idiosyncratic form to be sure, of the comparative method. It is through comparison with one or more other myths (not always cognates!) that the elusive meaning of a myth text can be ‘revealed’. Lévi-Strauss is explicit on this point: ‘Finally, one detail in the Bororo myth that remained incomprehensible when viewed from the angle of syntagmatical relations, becomes clear when compared to a corresponding detail in the Kayapo myth’ (1969:210, my emphasis). In this case, it is a Kayapo text which purportedly illuminates a Bororo text, but the comparison can go either way: ‘The Kayapo-Kubenkranken version (M8) contains a detail that in itself is unintelligible and that can only he elucidated by means of the Bororo myth, M55’ (1969:131). So although Lévi-Strauss is essentially known as a structuralist, the empirical fact is that he is much more of a comparativist than a structuralist” (Alan DUNDES , “Binary Opposition in Myth: The Propp/Lévi-Strauss Debate in Retrospect” in The Meaning of Folklore , p. 146). 8 A citação fundamental para o sentido de contexture está no ensaio Da Vaidade : “[A antiga Roma] abrange em si todas as formas e contingências que concernem a um Estado: tudo o que a ordem pode nele, e a desordem, e a boa fortuna e o infortúnio. Quem poderia desesperar de sua própria situação, vendo os abalos e movimentos com que aquele foi agitado e a que resistiu? (...) No entanto, [Roma] a suportou e sobreviveu-lhe, conservando não [apenas] uma monarquia enclausurada em seus limites, mas sim tantas nações tão diversas, tão distantes, tão desafeiçoadas, tão desordenadamente comandadas e tão ilegitimamente conquistadas; (...) Nem tudo o que balança cai. La contexture d’un si grand corps tient à plus d’un clou [A contextura de um corpo tão grande depende de mais de um prego]” (Ensaios III, cap. IX, Da Vaidade , VS. 959 e ss; CA, III, 260 e ss). Em Montaigne, “(...) o sentido de contexture deriva sempre do de reunião: a constituição de um corpo, de um aglomerado qualquer de elementos. 24

Em outras palavras, definir a natureza das perícopes (elas podem ser filosóficas, demonológicas, agrônomas...), quer dizer, definir a circunscrição temática dos topoi não significa entendê-las no seu funcionamento e na sua articulação no texto. Além disso, não parece haver qualquer teleologia na sua sucessão: elas simplesmente vão aparecendo, se solidarizando em pequenas interseções e pontos comuns abertos pela sucessão de ideias que elas mesmas representam ou criaram. Se fosse uma forma musical, certamente não seria uma forma-sonata: o tema estaria oculto (o título do ensaio não quer dizer nada na dinâmica da forma) e, de qualquer modo, pouco importa, pois não há desenvolvimento nem reexposição nem fechamento temático, embora possamos assumir a ideia de variação.

Trata-se de um problema explícito em Dos Coxos , mas facilmente verificável em dezenas de outros ensaios, claro. E, de um modo geral, uma atitude de reverência em relação a Montaigne quase sempre impele o crítico a encontrar uma saída necessária para os inumeráveis quebra-cabeças que esses textos compósitos e heterodoxos apresentam. Há saídas complexas e sofisticadas, as quais tentam dar conta do caráter dinâmico dos Ensaios a partir de uma lógica crítica igualmente dinâmica e plural 9. Mas há também saídas algo redutoras (muito embora eruditas e bem preparadas, nos justos termos acadêmicos), como as que fazem eco ao ceticismo de Montaigne para explicar suas inumeráveis contradições – contradições autorais que, doravante pensadas em um autor referencialmente filosófico (cético), poderiam contaminar a excelência de seu texto e de suas convicções, se deixadas sem justificativa ou explicação.

No entanto, também está implícito nessa densidade material (dimensão no espaço) o momento (dimensão no tempo) em que tais elementos passam a funcionar como um conjunto – uma densidade que, por sua vez, supõe uma força qualquer de coesão, subentendida claramente em alguns casos. Por esse motivo, ainda que o sentido têxtil de contexture esteja presente, o termo não tem (...) o primado inercial e imóvel que caracteriza a natureza do tecido. [Sendo assim], (...) a contexture de qualquer corpo supõe uma dinâmica de forças que a sustente centrífuga e/ou centripetamente. De fato, o movimento inerente à tensão entre as partes antagônicas de um corpo, movimento que normalmente arruína a estrutura de qualquer conjunto constituído, [está quase sempre subentendido quando o termo contexture aparece no texto dos Ensaios ]. [Por exemplo] (...) antes de aplicar a Roma o termo contexture , ele afirma: ‘Nem tudo o que balança, cai’” (Rafael VIEGAS , “ Nous sommes toujours au dela ”. Negociações narrativas do sujeito moderno em Sur des vers de Virgile (Ensaios III, cap. V) de Michel de Montaigne , Tese de Doutorado, IMS-UERJ, 2008, p. 76). 9 Não é à toa que Starobinski intitulou seu clássico livro sobre Montaigne como Montaigne en mouvement , verdadeiro exercício filosófico que toma o autor dos Ensaios como eterno repositório de energia para a criação de exercícios críticos. Na mesma linha, Michel JEANNERET , Perpetuum mobile: métamorphoses des corps et des œuvres de Vinci à Montaigne , Paris, Macula, 1997, insiste no caráter movente da escrita e do pensamento montaignista para valorizar uma perspectiva aberta e inconclusa a respeito dos Ensaios e de obras que lhe são contemporâneas. 25

Foi Pierre Villey quem definiu, a partir da reconstituição virtual da Biblioteca de Montaigne, as bases “científicas”, por assim dizer, do ceticismo montaignista. Sabe- se que, por volta de 1576, Montaigne teria tido contato com o texto das Hypotiposes Pirronianas de Sexto Empírico 10 , e essa leitura teria tido um impacto tão dramático que lhe causou uma “crise cética”, influenciando profundamente os textos imediatamente posteriores a essa época 11 . Embora, claro, essa “crise” deva ser colocada em matizes bem mais suaves, para Villey é inegável que o ano de 1576 marca o início da segunda fase de sua carreira intelectual, substituindo a primeira fase, “estoica”: de certa forma, a crítica posterior aceita essa divisão, e boa parte das discussões do Montaigne cético valoriza os textos dos Ensaios escritos nesse contexto e, claro, nele se inclui a enorme Apologia a Raymond Sebond 12 .

10 Montaigne teria lido as Hipotiposes na tradução latina de Henri Estienne, e a “medalha pirroniana”, que data desta época, é o índice normalmente tomado como referência cronológica nesta evolução – muito embora a medalha tenha provavelmente maior implicação política que propriamente intelectual: “(...) en janvier ou février 1576, et comme pour confirmer sa noblesse, Montaigne avait fait frapper un jeton où se lisaient sur une face ses armes entourées du collier de l’ordre de Saint-Michel et la légende «Michel Seigneur de Montaigne» et, au revers, une balance aux plateaux horizontaux avec la légende «je m’abstiens». C’est en fait là une devise des plus appropriées pour un négociateur entre deux partis qui s’affrontent ou encore pour un ambassadeur qui rend compte d’une situation et applique les ordres qui lui sont donnés par le souverain à qui il est censé rapporter sans pour autant émettre de jugement personnel” (Philippe DESAN , “Montaigne, philosophe au quotidien. Vie privée et vie publique dans les Essais” in Kriterion , nº 126 Dez. 2012, p. 340). A famosa frase Que sçay-je? , normalmente associada a esta medalha, é uma citação tirada da Apologie : “[C] Cette fantasie est plus seurement conceue par interrogation: Que sçay-je ? comme je la porte à la devise d’une balance ” (VS, 527). 11 “Montaigne n’a laissé aucun jugement sur Sextus Empiricus, mais, dans les Essais de 1580, il a donné une pleine adhésion à la philosophie pyrrhonienne, dont Sextus était, à ses yeux, le représentant (II. 12. t. III, p. 283 et suivantes). Il a appelé la secte des sceptiques « le plus sage parti « des philosophes ». (II, 15.). Dix des inscriptions de la « librairie » viennent de Sextus ; en outre, en 1580, l’ Apologie de R. Sebond a fait un très grand nombre d’emprunts aux Hypotyposes , peut-être vingt-cinq à trente, dont plusieurs sont passablement développés. En dehors de l’ Apologie , on ne rencontre que bien peu de traces de Sextus : il y a encore un emprunt dans l’essai II, 15, une allusion assez vague dans l’essai I, 31, peut-être rien de plus. Il semble d’ailleurs qu’après 1580, Montaigne n’est pas revenu à l’étude de cet auteur. Les passages que les commentateurs ont cru venir de lui, dans l’édition de 1595, sont tirés en réalité de Diogène [Laércio] et de Cicéron. Donc tous les emprunts à Sextus, à peu de chose près, sont concentrés dans l’ Apologie de 1580” (Pierre VILLEY , Les Sources et l’évolution des Essais de Montaigne , Vol. 1, Hachette, 1908, p. 218). 12 A teoria das fases proposta por Villey explora essencialmente três, a estoica , a cética e a idiossincrática – ou propriamente montaignista: “Au point de vue de la pensée, Montaigne a d’abord passé vers 1572, par une attitude raide et tendue qui lui donne quelque chose de la démarche affectée du stoïcien. En second lieu, vers 1576, nous surprenons une crise sceptique, car, qu’on admette ou non que les chapitres sceptiques sont de cette époque, à tout le moins la médaille pyrrhonienne est certainement frappée au début de 1576. Enfin, vers 1578 ou 1579, il 26

Embora o “Montaigne cético” seja uma estratégia de leitura importante, ela teve o inconveniente de contaminar a análise dos textos anteriores e posteriores (dentre os quais Dos Coxos ), uma vez que a perspectiva cética, de certo modo superada por um ecletismo muito particular a Montaigne (ecletismo que a crítica atribui, em geral, ao Livro III dos Ensaios ), parece ter ficado como sua principal marca intelectual desde então. Em outras palavras, o ceticismo é uma espécie de senso comum atribuído a Montaigne e, embora seja tecnicamente ligado a um período particular de sua vida (e da vida dos Ensaios ), foi ampliado, por sinédoque ( totum pro parte ), à obra como um todo 13 .

A partir daí, assume-se uma posição relativamente clara, a qual poderíamos, muito grosseiramente , resumir assim: o escritor (agora não mais apenas o “filósofo ”) cético Montaigne, não tendo nenhuma verdade pré-estabelecida, vaga por sobre os silogismos, sobre as perícopes e sobre as opiniões gerais como a face de Deus boiando nas águas do oceano primordial, sem se decidir por nenhuma posição ou parâmetro que dure mais que três parágrafos. Temos, portanto, uma consequência textual de uma atitude intelectual muito precisa. Ela é complexificada pelo fato de que, normalmente, as leituras exclusivamente céticas dos Ensaios são feitas por intérpretes egressos da área de Filosofia que, em geral, não se preocupam muito com aspectos biográficos nem com problemas literários, retóricos e estilísticos: logo, não trabalham questões tão importantes na dinâmica de ideias dos capítulos,

se dégage de ces influences assujettissantes, et c’est à la formation d’une philosophie très personnelle que nous commençons à assister” (VILLEY , Les Sources et l’évolution des Essais de Montaigne , p. 390) . 13 “The claim that Montaigne is a skeptic does find support in the Essays , both in their form and in their content. The essay form itself is nondogmatic and nonauthoritative. There is also an undeniably skeptical tone, a “common sense” skepticism that is often made explicit in the Essays : “when some new doctrine is offered to us, we have great occasion to distrust it, and to consider that before it was produced its opposite was in vogue; and, as it was overthrown by this one, there may arise in the future a third invention that will likewise smash the second” (II.12, F429, V570). This kind of healthy commonsense skepticism also has important practical consequences especially evident in Montaigne’s attitude toward accusations of sorcery and witchcraft: “To kill men, we should have sharp and luminous evidence; and our life is too real and essential to vouch for these supernatural and fantastic accidents” (III.11, F789, V1031)” (Ann HARTLE , “Montaigne and skepticism” in Ullrich LANGER (ed.) The Cambridge Companion to Montaigne , CUP, 2009, p. 184). Como se vê, e muito embora Hartle tenha escrito o artigo combatendo a ideia do Montaigne cético, o texto põe lado a lado uma citação da Apologie a Raymond Sebond (o mais emblematicamente cético dos ensaios de Montaigne) e uma citação de Dos Coxos (VS, 1031; CA III, 371, texto escrito por volta de 1585, nove anos depois da suposta crise cética), como exemplos do “common sense skepticism” montaignista. 27 do livro e de suas edições, tais como voz narrativa, valorização social da escrita, construção da persona autoral entre outros aspectos “formais” 14 .

Por outro lado, é bem verdade que o estilo de composição dos ensaios (seja lá de qual fase), cheio de justaposições e parataxes, aproxima os textos da isostheneia (equipolência , quer dizer, o “equilíbrio entre proposições opostas”), um dos pilares do procedimento cético 15 . E, o que não pode ser ignorado em nosso contexto, Dos Coxos termina com uma referência direta a Carnéades de Cirene, o cérebro cético da Terceira Academia. No meu entender, porém, Villey está coberto de razão quando acentua o ceticismo como uma fase . “Que sçay-je?” não é a mesma coisa que “Eu duvido”: trata-se de uma leitura do ceticismo antigo, mas também de uma releitura 16 . Além do mais, por conta dos infinitos debates suscitados pela Reforma, o ceticismo é uma estratégia intelectual de parte dos católicos franceses e está em total consonância com o debate da época: “tornar-se cético” não é exatamente uma posição de escola; significa, por exemplo, escolher um lado nas Guerras de Religião – o lado católico, evidentemente. Por último, devemos ter sempre em conta que o “canibalismo intelectual” (expresso, sobretudo, por uma economia citacional de amplo uso nos Ensaios ) é uma virtude montaignista das mais elementares.

14 Penso, por exemplo, em todo o lastro de leituras montaignistas feitas a partir do trabalho de Richard Popkin. 15 “Nem o bem nem o mal existem por natureza, pois se há por natureza algo bom ou algo mau, deve ser bom ou mau para todos, da mesma forma que a neve é fria para todos; mas nada existe de bom ou de mau para todos; logo, nem o bom [sic ] nem o mal existem por natureza. Com efeito, ou tudo que é considerado bom por qualquer pessoa deve ser chamado bom, ou nem tudo; mas certamente não se pode dizer que tudo é bom, pois uma mesma coisa é considerada um bem para uma pessoa – por exemplo, o prazer por Epicuro – e um mal para outra, como o mesmo prazer por Antístenes. Disso se deve deduzir que a mesma coisa é boa e má ao mesmo tempo. Mas, se dizemos que nem tudo que alguém considera bom é bom, temos de distinguir as opiniões diferentes, porém isso é impossível em decorrência da equipolência de argumentos opostos [ἰσοσθένειαν τῶν λόγων ]. Logo, o bem por natureza não pode ser conhecido” (Diógenes Laércio [Mario da Gama Kury, trad.], Vidas , IX, 101). Para o contexto da isostheneia em Montaigne, ver Frédéric BRAHAMI , Le scepticisme de Montaigne , PUF, 1997, p. 63. 16 “Montaigne introduit cette formule [Que sçay-je?] juste après avoir souligné que les Pyrrhoniens doivent se voir confrontés à une difficulté énorme lorsqu’ils veulent énoncer leur point de vue caractéristique. Notre langage, observe-t-il, « est tout formé de propositions affirmatives, qui leur sont de tout ennemies. De façon que, quand ils disent : « Je doute », on les tient incontinent à la gorge pour leur faire avouer qu’au moins assurent et savent-ils cela, qu’ils doutent » [VS, 507]. Ainsi, Montaigne conclut-il que l’attitude sceptique se laisse mieux exprimer si l’on évite des assertions telles que « j’ignore » ou « je doute ». Elle est « plus sûrement conçue par interrogation : ‘Que sais-je’»” (Charles LARMORE , “Un scepticisme sans tranquillité : Montaigne et ses modèles antiques” in Vincent CARRAUD & Jean-Luc MARION (eds.), Montaigne : scepticisme, métaphysique, théologie , PUF, 2004, p. 20). 28

Além das possibilidades de leitura formais e filosóficas, outra, muito difundida, valoriza o aspecto “vital” do texto montaignista. Essa percepção mais propriamente ética variou, claro, através das gerações, mas é o Montaigne sábio, o Montaigne sentencioso – do qual se louva a sabedoria senão puramente estoica, aquela sabedoria prática, orientada para a vida ordinária –, o Montaigne das máximas do Livro I (quer dizer, o Montaigne [A] da edição de 1580), o Montaigne das logias proverbiais, é a este Montaigne que seus contemporâneos fazem referência quando pensam no autor dos Ensaios : “Inter septem illos te referam, aut si quid sapientius illis septem ” [“É entre os Sete Sábios que eu te situo, a menos que haja algo de mais sábio que esses Sete”], escreveu-lhe Lipsius, cerca de quinze anos mais jovem que Montaigne, em abril de 1588 17 . A essa dinâmica veio se somar, posteriormente, o homem complexo e corajoso, dotado de pensamentos de todas as cores e da audácia da philautia (quer dizer, o amor de si , que se depreende do falar de si mesmo, esse vício deplorável e anticristão 18 ), o idiossincrático Montaigne do Livro III (ou seja, os Montaignes [B] e [C], das edições e adições de 1588 e de 1595), o Montaigne excêntrico, que fala do diminuto tamanho do seu pênis e dos revezes do seu casamento. Este, de recepção muito mais complexa, não foi bem compreendido pelos contemporâneos 19 .

17 Justus LIPSIUS , Epistolae pars III , Bruxelles, Académie Royale, p. 95 apud Olivier MILLET , La première réception des Essais de Montaigne: (1580-1640 ), Honoré Champion, 1995, p. 57. “Geralmente, o Montaigne mais apreciado e imitado foi o primeiro, estoico e sentencioso; o que mais se parecia com seus contemporâneos. Seu amigo, Florimond de Raemond, escrevendo em 1594, mencionou ‘sua filosofia corajosa e quase estoica’. (...) Claude Expilly chamou-o de um ‘grande pensador estoico’. Pasquier, outro amigo de Montaigne, viu nos Ensaios uma ‘sementeira de máximas belas e memoráveis’. (Peter BURKE , Montaigne [1981], Loyola, 2006, p. 95). 18 “La φιλαυτία devient chez eux [les auteurs chrétiens, ou judéo-chrétiens, ou judéo- helléniques] d’autant plus redoutable qu’elle risque de contredire le premier commandement du Décalogue, celui qui prescrit d’aimer Dieu par-dessus tout, de contredire aussi l’exigence d’humilité si souvent posée dans la Bible: ‘Le principe de tout péché est l’orgueil’, dit par exemple l’Ecclésiastique.” (Jean MESNARD , “Les origines grecques de la notion d’amour- propre” in La Culture du XVIIe siècle , PUF, 1992, p. 45). O aforismo 117 do Oráculo manual y Arte de Prudencia (1647) de Baltasar Gracián aconselha a “Nunca falar de si mesmo. Ou estaremos nos elogiando, o que é vaidade, ou nos recriminando, que é pusilanimidade: demonstrando falta de sensatez em quem fala, causa aflição em quem ouve. Se já convém evitar tal situação na intimidade, quanto mais em altos cargos onde se fala publicamente e onde qualquer aparência de tolice á é tida pela própria. O mesmo inconveniente de sensatez tem o falar de pessoas presentes, pelo perigo de se esbarrar em um de dois obstáculos: bajulação ou ofensa.” (Baltasar GRACIAN , Oráculo Manual e Arte da Prudência , Ahimsa Editora, 1984). No Laus Stultiae , Erasmo faz da Filautia uma das sete seguidoras da Estultícia. Para o termo, ver também Jean MESNARD , “Sur le terme et la notion de ‘ philautie’ ” in La Culture du XVIIe siècle , PUF, 1992, pp. 48-66. 19 Quando perguntam a Etienne Pasquier, em 1605, “ quel jugement je fay des Essais du feu Seigneur de Montaigne ”, ele dirá: “ Rien ne me desplaist en iceux, encores que tout ne m’y plaise ”, sendo categórico 29

Mas é justamente a philautia , esta marca de forte subjetividade – que tanto distingue Montaigne dos outros escritores, e que o torna, a princípio, tão moderno e tão próximo de nós –, que interessa aos leitores de hoje. É esta recepção tardia a que vale ainda. Tal “proximidade” é um verdadeiro fenômeno teórico e prático, pois quase todo grande montaignista conhecido tem em Montaigne um amigo – e essa constatação algo absurda me fez pensá-la como uma constante, que eu expressaria em termos sintéticos como a síndrome do “Montaigne amigo”: expressão que mediria o grau de empatia (no sentido também hermético do termo) e a complexa rede de laços críticos, psicológicos e apologéticos existentes, para o bem e para o mal, na relação entre o montaignista e seu objeto.

Sentir-se tão próximo de Montaigne até passar a percebê-lo como um igual . Poder levá-lo para o campo ou flanar com ele pela cidade, se deliciando com a leitura descontextualizada e pontual dos Ensaios, encontrando neles verdades luminosas e passageiras, como se fossem uma droga, um remédio – como se faz por aí com o Tao Te Ching , com os Analectos de Confúcio ou mesmo com Paulo Coelho 20 . Poder reavaliar suas próprias raízes regionais e se inflar de orgulho ao ver no biografado um conterrâneo mais do que especial – o “antigo prefeito da nossa cidade” 21 . Poder, nos estertores do paroxismo, escrever uma biografia que, bizarramente, sem aviso prévio e sem as aspas citacionais, muda da terceira para a primeira pessoa do singular 22 . Ou até mesmo hipostasiar o autor dos Ensaios em Pai 23 . a respeito do Livro III: “ Toustefois en quelque endroit de son troisieme Livre, par luy composé longtemps apres les deux premiers, il s’en voulut aucunement excuser: Chose que j’impute à la foiblesse de son aage, qui emportoit lors à la balance, la force de son naturel ” (Etienne Pasquier, Lettres , Tome 2, XVIII, I, Sonnius & Petis-Pas, 1619 apud Olivier MILLET , La première réception des Essais de Montaigne: (1580-1640 ), Honoré Champion, 1995, p. 143). 20 Embora não seja exatamente um montaignista, Gide nos fornece uma imagem paradigmática desse tipo de companheirismo intelectual: “Matinée au Louvre; matinée délicieuse. J’avais un petit Montaigne avec moi, mais n’en lisais que par instants , en marchant, et juste ce qu’il faut pour entretenir l’exaltation joyeuse de ma pensée” [grifo meu]. (André Gide, Journal , 24 novembre 1905). Já a imagem dos Ensaios como droga aparece em Jean-Yves POUILLOUX , Lire les Essais de Montaigne , p. 13. 21 Jean Lacouture, Montaigne a cavalo , p. 9. 22 “Il me faut tout reprendre depuis le commencement. Quitter le Parlement me permet de revenir vivre sur mes terres, de ne pas me laisser distraire par les affaires politiques ou judiciaires, bref de me consacrer à l’essentiel : y voir clair, faire l’essai de la raison humaine. C’est-à-dire prendre un peu de recul au milieu de la confusion générale, prendre le temps de considérer les choses tranquillement.” (Jean-Yves POUILLOUX , Montaigne. Que sais-je? , Gallimard, 1987, cap. 3). Embora o parágrafo faça sinteticamente referência a momentos da vida de Montaigne, ele jamais escreveu isso. 23 “J’ai toujours aimé Montaigne comme personne. Toujours je me suis réfugié auprès de mon Montaigne lorsque j’éprouvais cette peur mortelle. J’ai laissé Montaigne me guider et me 30

Na série produzida para a rede de TV inglesa Channel Four , de Londres, o escritor Alain de Botton 24 traça painéis de seis filósofos de épocas diferentes, tentando – a partir de cenas e situações do cotidiano, entrevistas com pessoas comuns e viagens aos locais importantes na vida pública ou privada dos biografados – mostrar a Filosofia como uma ferramenta na busca ordinária da felicidade no atribulado mundo contemporâneo. Mas, quando fala de Montaigne, no programa em que aborda a inadequação social e a (falta de) autoestima, estranhamente volta a questão sobre si mesmo – e não deixa dúvidas de estar falando a respeito de sua própria vida de estudante, provavelmente tímido e retraído 25 : formado em Cambridge, Alain de Botton abre o programa indo até lá, no dia de uma formatura 26 . Mostra ao telespectador uma foto de sua própria turma de graduandos, com a cabeça ainda cheia de cabelos, meditando sobre as arrogantes ilusões juvenis de se achar no topo do mundo civilizado 27 . Chega mesmo a tirar satisfações com o antigo reitor do seu

conduire, me mener et me séduire. Montaigne a toujours été mon sauveur et mon secours. Quand bien même j’ai fini par me défier des autres, de ma pléthorique famille philosophique française, qui n’a jamais compté que quelques cousins et cousines venus d’Allemagne ou d’Italie, rapidement disparus qui plus est, Montaigne est toujours resté pour moi une sorte de refuge. Je n’ai jamais eu ni père ni mère, mais j’ai toujours eu mon Montaigne. Mes géniteurs que je ne saurais qualifier de père et de mère, m’ont rejetés dès l’origine, et j’ai tôt fait de tirer les conséquences de ce rejet, me réfugiant tout droit dans les bras de Montaigne, voilà la vérité. Montaigne, me suis-je toujours dit, est à la tête d’une famille philosophique extraordinairement prolifique, mais jamais je n’ai aimé les membres de cette famille philosophique autant que son chef, mon cher Montaigne.” (Thomas BERNHARD , Goethe se mheurt [Récits traduits de l’allemand par Daniel Mirsky], Gallimard, 2013). 24 Alain de Botton, Philosophy – a Guide to Happiness (Channel Four, 2000). Na versão brasileira, o DVD se chama Filosofia para o Dia-a-dia (Ed. Abril, 2007). Os programas são: “Sêneca e a raiva”; “Schopenhauer e o amor”; “Montaigne e a auto-estima”; “Epicuro e a felicidade”; “Nietzsche e o sofrimento”; “Sócrates e a autoconfiança”. 25 “Michel de Montaigne é um filósofo atípico e cativante por uma razão principal: ele compreendia o que faz você se sentir mal consigo mesmo e escreveu um livro para levantar seu moral. O livro aborda três tipos de inadequação: (...) a física, seu sentimento de desconforto com seu próprio corpo; a que existe quando temos nossos hábitos e costumes desaprovados; e a intelectual, o sentimento de que somos pouco sagazes.” 26 “Mais um grupo de jovens bonitos, inteligentes e talentosos prepara-se para enfrentar o mundo adulto na busca por fama, riqueza e poder. Essa é uma visão que pode nos encher de alegria. Ou então, ao vê-los atravessar o pátio para receber o diploma, algo nesse momento de conquista pode nos levar à incômoda sensação de que não somos tão inteligentes quanto deveríamos, nem tão ricos, bonitos, talentosos e bem-sucedidos. O comportamento desses jovens, nesse dia tão especial, pode ter um efeito deprimente sobre nós. Se formos assaltados por esse sentimento, há um filósofo a quem podemos recorrer. Seu nome é Michel de Montaigne.” 27 “A foto [de formatura] supostamente reúne a nata da inteligência inglesa. Digo supostamente porque, quando analisamos um lugar como Cambridge sob a ótica de Montaigne, o quadro que se configura é bem diferente.” (...) “Para Montaigne, a maior parte dos graduandos era, 31

College na época da graduação 28 . E termina o programa no château de Montaigne, deitado no chão da Biblioteca, lendo com emoção as inscrições gregas e latinas nas traves do teto 29 .

Como se pode observar, não estou me referindo somente a leitores “ordinários” e casuais dos Ensaios , aqueles que tomam o texto de forma descompromissada, ou até como fonte de sabedoria e pensamento para o dia a dia – mesmo se cito André Gide e o trabalho popular de Alain de Botton. Estou me referindo a estudiosos que apesar da beca e dos diplomas, ‘um bando de tapados’.” (...) “Montaigne nunca disse que o estudo era inútil, mas observou que muitos universitários não se tornam mais felizes ou mais sábios que as outras pessoas. Por experiência própria, acho que isso faz sentido.” [grifo meu]. (...) “Aqui dentro [em Cambridge], perdi muitas lições que a vida tinha a ensinar. Se fosse para sugerir o curso ideal, eu usaria textos de Montaigne, demonstrando como muitos pontos importantes não são abordados aqui, mas deveriam ser. Assuntos como a boa convivência com os outros, como combater a ansiedade, como lidar com a morte. Até assuntos banais, como a forma de terminar uma relação. Essas questões não são debatidas aqui, mas talvez devessem ser.” 28 “O retorno a Cambridge também me deu a chance de discutir algumas idéias de Montaigne com um personagem temido de meu passado, o reitor da minha antiga faculdade, Mr. McKendrick.” Numa sacada da universidade, os dois se põem a conversar: “Há uma passagem”, começa de Botton, “em que Montaigne diz que olhou pela janela e se deu conta de que muitos lavradores que aravam suas terras eram melhores, mais felizes e mais sábios que gente que ele conhecia na Universidade de Paris. O que o senhor acha disso?” “Existe o mito romântico”, responde McKendrick, “da felicidade da vida frugal. Para mim, essa é uma das maiores pragas de nossa sociedade. Seríamos mais felizes se vivêssemos só até os 27 anos, sem posses, e trabalhando de sol a sol. Não engulo isso.” “Não estou falando da idéia de que seríamos mais felizes trabalhando menos...”, interrompe de Botton. “Ou seja”, responde McKendrick, “de que eu seria mais feliz se fizesse menos do que faço... Acho essa idéia improvável, para não dizer ridícula.” E, enquanto as imagens mostram McKendrick apertando a mão dos jovens saídos da cerimônia de diplomação, visivelmente constrangidos em cumprimentá-lo, de Botton pergunta: “O senhor acha que quem se forma aqui tem uma vida mais feliz do que quem nunca foi à universidade?” “É difícil dar uma resposta exata, mas imagino que sim. Gosto de pensar que eles têm boas recordações daqui. Acho que a maioria pensa no tempo passado aqui com saudades.” De Botton consegue de McKendrick autorização para propor cinco perguntas a alguns dos graduandos, cerimonialmente respondidas na biblioteca: O que fazer quando se está ansioso ? O que é ser bom pai ou boa mãe ? Como distinguir amor de uma paixão passageira ?... Mas, talvez por uma questão de respeito à sua antiga instituição, não mostra as respostas ao público. 29 De todo modo, Alain de Botton não desconhece o fascínio exercido por Montaigne: “Já que estabelece conosco uma relação de confiança, a ponto de contar detalhes inusitados sobre sua impotência ou sua flatulência, é fácil imaginar Montaigne como um amigo, distanciando-o da imagem austera do filósofo típico.” Entrando pessoalmente na torre do castelo, ele diz: “Assim como se visita um amigo, eu quis conhecer o seu château , a fim de fomentar ainda mais essa sensação de proximidade.” Subindo a estreita escadaria, acrescenta: “Esta é a torre descrita por Montaigne séculos atrás. Isto reforça a sensação de identificação pessoal que os leitores dos Ensaios costumam experimentar.” (...) “Se acreditamos nele é por confiarmos em Montaigne como amigo, um homem com a coragem para dizer grandes verdades com simplicidade e honestidade.” 32 passaram, de certa forma, pelo crivo técnico da universidade e da produção acadêmica moderna, com experiência no trabalho de crítica textual.

O problema do “Montaigne amigo” (visível, sobretudo, nos textos montaignistas de caráter biográfico, claro) muitas vezes retorna veladamente em textos que exploram aspectos mais técnicos da obra. Principalmente na, a meu ver, sempre mal resolvida percepção da voz autoral nos Ensaios , dúvida que paira em praticamente todos os trabalhos que conheço sobre Montaigne 30 .

Neste ínterim, é raro o estudo que considere o texto dos Ensaios como ficção e, neles, a presença desse tal Montaigne como um personagem fictício – ou simplesmente, um personagem a mais em meio a tantos outros que povoam a obra. Para dizer a verdade, até agora, embora imagine que esse tipo de trabalho exista, nunca encontrei um só texto que trabalhasse, ao menos a título de exercício, essa hipótese. Se pudesse fazer uma comparação com os estudos neotestamentários (coisa que na verdade já fiz mais acima), diria que a maior parte da crítica montaignista está ainda na fase dogmática da teologia mais conservadora – aquela que vê, no texto, o mistério imediato e revelado da divindade. Simplesmente, para a grande maioria dos montaignistas, Montaigne existe como uma presença real e indubitável – e fico cá imaginando o que diriam os pirrônicos a respeito disso. Neste sentido, a voz de Montaigne faz autoridade sobre si próprio – a ponto de muitos críticos identificarem o texto dos Ensaios com o pensamento do próprio (que, na verdade, será sempre a voz de um suposto e hipotético ) “Montaigne” de carne e osso. Não poderia dizer com certeza, mas me parece que nunca, em toda a história da literatura europeia (a não ser no caso das escrituras sacras e místicas, é claro), um texto supostamente autoral foi mais absurdamente contaminado, para usar termos desconstrucionistas, pela sua própria presença 31 .

30 Mesmo o sóbrio e clássico trabalho de Jean-Yves POUILLOUX , Lire les Essais de Montaigne (1969), que começa com o curto e incisivo “Lire les Essais e non lire Montaigne, ce qui n’est pas indifférent” (p. 11), não leva às últimas consequências essa afirmação: acaba por aceitar os Ensaios como o pensamento de Montaigne, impondo-o como o intermediário por excelência entre o texto e seu autor. Em última análise, destrói por completo a distância assumida originalmente, mantendo ambos, autor e texto, sua integridade, sua harmonia e sua possibilidade de fusão e cooperação. Como resultado, o livro de Pouilloux apenas dá alguma nuance sobre o problema de se considerar os Ensaios suficientes em si mesmos para a interpretação do pensamento de Montaigne – em vez de se recorrer à biografia –, marcando posição na parte da crítica montaignista que considera os Ensaios , sob este aspecto, autossuficientes. 31 Obviamente, admitir que “eu não encontrei” não significa que esta crítica não exista. Ao rever a versão final deste texto, descobri um artigo já antigo de Richard REGOSIN , “Recent Trends in Montaigne Scholarship: A Post-Structuralist Perspective” in Renaissance Quarterly , 33

Tentei me colocar fora dessas leituras possíveis dos Ensaios por diversos motivos. No fundo, leituras que reificam o ceticismo (e/ou o controle autoral) montaignista por si só consideram os Ensaios um grande jogo de faz-de-conta: pois deverá sempre existir uma verdade última por trás de cada impasse que a leitura, sobretudo a leitura silogística do texto, produz. O trabalho do crítico será apenas o de escutar o texto como se este fosse uma espécie de oráculo. No mesmo sentido, simbólico e prático, essas leituras transformaram os Ensaios numa espécie de teocracia, onde tudo é controlado por um sujeito soberano que brinca de esconder sua verdadeira opinião aos seus contemporâneos e aos póstumos. Julgando sempre Montaigne um grande autor, e ele o é, atribuímos a ele superpoderes divinos que, no final das contas, não deixam seu texto respirar plenamente aquela descontinuidade tão característica, de uma crueza telúrica, móvel e jocosa. Estrangulam-se as contradições e imperfeições lógicas dos Ensaios com alguma pressuposição de ordem e de sentido oculto e necessário 32 . Mas as imperfeições lógicas do texto talvez sejam apenas imperfeições, o contínuo estado de confusão textual talvez seja simplesmente consequência da falta de concisão, da preguiça, do tédio, do desprezo, ou de sei lá que outros fatores e contingências. Por outro lado, assumindo essas eventuais confusões textuais como dados em si, não precisamos explicá-las com um a priori biográfico: o ceticismo como um dispositivo funcional do texto, e não caracterizando teleologicamente um Montaigne que é cético . Neste caso, podemos fazer leituras ou microleituras que valorizem mais o texto que a biografia de Montaigne.

Vol. 37, No. 1. (Spring, 1984), pp. 34-54, que coloca em questão muitos dos problemas gerais que aponto aqui (inclusive a metáfora da exegese bíblica!). Isto me incomoda, por um lado, mas por outro me diz que não estou equivocado na percepção do problema metonímico (autor = texto) entre os montaignistas. 32 Um exemplo dessas contradições entre muitos outros. Nos idos de 1588, um “Montaigne”, essencialmente resignado, pacato e bom marido, diz: “[B] Do excesso de alegria [na juventude] caí no de severidade [na velhice], mais aborrecido. Por isso, atualmente deixo-me levar um pouco pelo descomedimento, intencionalmente; e às vezes ocupo a alma em pensamentos brincalhões e jovens, em que ela descansa. Hoje em dia chego a ser assentado demais, grave demais e maduro demais. Diariamente os anos me dão aula de frieza e temperança. [VS. 840- 841; CA. III-83-84] (...) Conheço bem, por ouvir dizer, várias espécies de voluptuosidades prudentes, fortes e gloriosas; mas a opinião não tem sobre mim poder suficiente para despertar meu apetite. [VS. 842; CA. III-85-86]”. Esse “Montaigne” contrasta vividamente com seu “outro”, também de 1588, desta vez irônico quanto ao seu papel na sexualidade doméstica: “[B] Os temperamentos desregrados – como é o meu, que detesta toda espécie de ligação e de compromisso – não são tão apropriados para ele [o casamento]. (...) E certamente fui levado a ele mais mal preparado então e mais contrariado do que estou atualmente, depois de experimentá-lo. E, por mais licencioso que me considerem, na verdade observei as normas do casamento mais rigorosamente do que havia prometido ou esperado. [VS. 852; CA. III- 100-101]”. 34

Obviamente, essas minhas observações dizem respeito justamente a leituras de ordem linear, histórico-filológicas, sintagmáticas. Não haveria sentido em pulverizar qualquer leitura estruturalista ou semiológica dos Ensaios , uma vez que, neste caso, podemos lê-los (os Ensaios , mas também qualquer coisa) de modo completamente descontextualizado. Mas, pelo que sei, são raros os trabalhos puramente “estruturalistas” a respeito deles. Seja lá qual for a inclinação, a scholarship montaignista gosta da convivência com Montaigne, não abre mão de sorrir ouvindo-o falar de seu casamento; de como ele era, por conta da estatura comum e do jeito pouco fidalgo, frequentemente confundido com a criadagem do castelo; ou das ironias dirigidas ao pai – que promovia formidáveis banquetes eruditos com a nata do humanismo bordelês apenas para se sentir embasbacado por não entender absolutamente nada. Verdade? Mentira? O homem fala de um jeito tão irresistível que é necessário acreditar nele 33 .

Embora eu também goste da convivência com Montaigne (não tentei estudá-lo à toa), não me situo exatamente em nenhum dos dois casos. As esferas sincrônicas e diacrônicas são perfeitamente aproveitáveis na medida em que fornecem ao nosso entendimento exercícios interessantes de observação cultural e de análise textual. Mas tentei sempre, aqui e alhures (eu tentei , vejam bem), me posicionar de modo a relativizar pontos de vista muito mecânicos. Diante dos Ensaios , é necessário assumir uma leitura que se destrave de pré-juízos, pré-conceitos, pré-disposições dessa espécie: no final das contas, estudar Montaigne é uma espécie de ascese libertária, que se casa mal com uma postura intelectual reducionista, mecanizada ou comportada demais. E eis-me aqui, em miserável idolatria, fazendo exatamente o mesmo que acabo de criticar. Mas foi a tentativa de conceber respostas a esses problemas, sem, na medida do possível, recair no “Montaigne cético” (reducionista, unitário) ou no “Montaigne amigo” (teológico e oracular), enfim, a busca de uma hermenêutica que mantivesse o texto como uma experiência de leitura em aberto (no que estaria de acordo com a noção primal de essay 34 ), o que me conduziu na pesquisa que apresento a seguir e nos capítulos que compõem o trabalho.

***

33 “Thou com’st in such a questionable shape | That I will speak to thee ”, diz Hamlet ao espectro do pai. 34 Os críticos dão, em geral, quatro sentidos ao termo essay em Montaigne: a. Tentativa; b. Experimentação; c. Ação de degustar; d. Obra do aprendiz (cf. Marie-Luce DEMONET , Michel de Montaigne. Les Essais . p. 6). 35

A seção que abre o Dos Coxos começa com uma discussão sobre a passagem do sistema calendárico juliano ao sistema gregoriano.

[B][B][B] Il y a deux ou trois ans qu’on acoursit l’an de dix jours en France. Combien de changemens devoient suyvre cette reformation'ce fut proprement remuer le ciel et la terre à la fois. Ce neantmoins, il n'est rien qui bouge de sa place: mes voisins trouvent l'heure de leurs semences, de leur recolte, l’opportunité de leurs negoces, les jours nuisibles et propices, au mesme point justement où ils les avoyent assignez de tout temps. Ny l’erreur ne se sentoit en nostre usage, ny l’amendement ne s’y sent. Tant il y a d’incertitude par tout, tant nostre apercevance est grossiere, [C][C][C] obscure et obtuse. [B][B][B] On dict que ce reiglement se pouvoit conduire d'une façon moins incommode: soustraiant, à l’exemple d’Auguste, pour quelques années le jour du bissexte, qui ainsi comme ainsin est un jour d’empeschement et de trouble, jusques à ce qu’on fut arrivé à satisfaire exactement ce debte (ce que mesme on n’a pas faict par cette correction, et demeurons encores en arrerages de quelques jours). Et si par mesme moyen on pouvoit prouvoir à l’advenir, ordonnant qu’apres la revolution de tel ou tel nombre d’années ce jour extraordinaire seroit tousjours eclipsé, si que nostre mesconte ne pourroit dores en avant exceder vingt et quatre heures. Nous n’avons autre compte du temps que les ans. Il y a tant de siecles que le monde s'en sert; et si, c’est une mesure que nous n’avons encore achevé d’arrester, et telle, que nous doubtons tous les jours quelle forme les autres nations luy ont diversement donné, et quel en estoit l’usage. Quoy, ce que disent aucuns, que les cieux se compriment vers nous en vieillissant, et nous jettent en incertitude des heures mesme et des jours? et des moys, ce que dict Plutarque, qu’encore de son temps l’astrologie n’avoit sçeu borner le mouvement de la lune? Nous voylà bien accommodez pour tenir registre des choses passées 35 .

35 “[B] Há dois ou três anos encurtaram em dez dias o ano na França. Quantas mudanças deviam seguir-se a essa reforma! Foi propriamente mover o céu e a terra ao mesmo tempo. Apesar disso, tudo continua no mesmo lugar: meus vizinhos acham a hora da semeadura, da colheita, a ocasião certa para os negócios, os dias nefastos e propícios, exatamente no mesmo ponto que vinham designando para eles desde sempre. Não se percebia erro em nosso costume, nem se percebe melhora – tanta incerteza há em tudo, [C] tanto nossa percepção é grosseira. [B] Dizem que esse ajuste poderia ter sido feito de um modo menos incômodo: eliminando durantes alguns anos, a exemplo de Augusto, o ano bissexto, que de qualquer maneira é um dia de embaraço e de confusão, até que chegássemos a compensar exatamente esse débito (o que nem sequer se fez com essa correção, pois continuamos devedores de alguns dias). E ainda, pelo mesmo meio, poderiam ter se precavido quanto ao futuro, ordenando que após a decorrência deste ou daquele número de anos esse dia extraordinário fosse sempre eclipsado, de tal forma que daí em diante nosso erro na conta não poderia 36

A apresentação, claramente irônica, é uma crítica direta à reformulação, feita pelo papado, do sistema calendárico que vigorava na Europa desde Júlio César (instituída por sua ordem, ganhou o nome “juliano”)36 . Do que se tratava essa reforma?

Em linhas gerais, a reformulação tentava sanar uma incompatibilidade entre datas oficiais cristãs (que, até o século XVI, seguiam o calendário juliano) e determinados eventos de ordem astronômica. Alguns desses eventos astronômicos fornecem datas sazonais importantíssimas para o cristianismo oficial, como a Páscoa 37 – ressignificação cristã de uma data originalmente judaica, o Pessah (comemoração da saída dos hebreus do Egito efetuada, segundo suas escrituras sacras, sob o comando de Moisés) 38 . O Pessah é datado a partir de um calendário lunar . Mas o calendário juliano é de tipo solar . Como os sistemas lunar e solar não são harmônicos entre si, conseguir uma data fixa para a Páscoa a partir do calendário Juliano vai se transformando numa tarefa complexa.

Evidentemente, a datação correta da Páscoa judaica não era uma questão que preocupava Júlio César. Embora insignificantes no curto prazo, as diferenças entre os sistemas lunar e solar são cumulativas e crescentes em longo prazo. E, de fato, já causavam bastante embaraço às instituições católicas oficiais por volta do século IV: a datação pascal, discutida com fervor no Concílio de Nicéia, sob os auspícios exceder vinte e quatro horas. Não temos outra conta no tempo que não os anos. Há tantos séculos que o mundo se serve deles; e entretanto é uma medida que ainda não acabamos de determinar, e tal que diariamente ficamos incertos sobre qual forma as outras nações lhe deram diversamente e qual era o costume delas. Que pensar do que dizem alguns, que os céus se comprimem em nossa direção ao envelhecer e nos lançam na incerteza mesmo das horas e dos dias? E dos meses o que diz Plutarco, que em sua época ainda a astrologia não conseguira delimitar o movimento da Lua? Ei-nos bem arranjados para fazer o registro das coisas passadas!” (CA, III, 362-363). 36 Para uma história do calendário na Antiguidade greco-romana, ver Denis FEENEY , Caesar’s Calendar. Ancient Time and the Beginning of History, University of California Press, 2007; Robert HANNAH , Greek and Roman Calendars. Constructions of Time in the Classical World , Duckworth, 2005; E. G. RICHARDS , Mapping Time. The Calendar and its History, OUP, 1999; Michele SALZMAN , On Roman Time. The Codex-Calendar of 354 and the Rhythms of Urban Life in Late Antiquity , University of California Press, 1990. 37 A Páscoa cristã celebra os acontecimentos em torno da paixão de Cristo – que, segundo o texto dos Evangelhos sinóticos, teria acontecido durante o Pessah judaico. 38 Originalmente, o Pessah era uma antiga celebração dos pastores nômades de Israel, ainda no período pré-mosaico, marcando a chegada da primavera. Ela marcava o primeiro domingo após a primeira lua cheia quando do equinócio da primavera (no hemisfério norte). Quer dizer, já se trata de uma comemoração resiliente. Ver o capítulo sobre a Páscoa em Philippe Walter, Mitologia Cristã: Festa, ritos e mitos na Idade Média (2003). Maceió, UFAL, 2012. 37 do primeiro imperador romano cristão, Constantino, mostra a importância da questão para seus contemporâneos 39 .

Lunar e solar são sistemas de amplo uso, as maneiras mais evidentes de se criar um sistema de datação do tempo de médio e longo prazo 40 . No primeiro caso, medindo- se a revolução lunar , quer dizer, o tempo que a lua nova necessita para estar de novo no mesmo lugar no céu, obtemos a noção de “mês” (29 dias). No segundo caso, medindo-se a revolução solar , obtemos a noção de “ano” (365 dias). Poderíamos acrescentar a revolução do próprio céu noturno, a posição dos planetas, das estrelas e assim por diante. Em outras palavras, a primitiva maneira de estabelecer uma sistemática de contagem do tempo é através da observação astronômica (ou astrológica) a olho nu: cria-se um sistema a partir dos mais regulares fenômenos celestes que conhecemos 41 .

Muito embora regulares , esses fenômenos não são aritmeticamente inteiros . O número redondo de 29 dias é uma convenção arbitrária, pois a lua completa este ciclo (tecnicamente chamado de lunação ) em torno de 29 dias – o cálculo médio sendo de 29,530589, podendo variar enormemente, em algumas horas ou até em um dia, por conta de fatores orbitais. O sol, por sua vez, completa o seu ciclo (o ano) em 365,242190 dias. Esses números fracionários precisam ser, por razões práticas, arredondados: 29 dias e 365 dias, respectivamente. Embora, por um lado, este arredondamento simplifique as coisas, criam-se, em médio prazo, complicações: se fizermos a divisão entre 365 e 29, isto é, se quisermos determinar quantas lunações , quer dizer, quantos meses (de 29 dias) temos no total de uma revolução solar (ano), veremos que o resultado não será um número aritmético inteiro 42 .

Não é possível criar burocracias e administrações ordenadas ajustando o relógio a cada minuto. Mesmo hoje em dia, não seria prático fazer o primeiro dia de um dado mês começar às 0h53, e o primeiro do mês seguinte às 0h54, e o próximo às 0h55, e assim ad infinitum – a fim de compensarmos as diferenças fracionárias das contas astronômicas somente para fazê-las coincidir com o calendário civil. A abstração e o arredondamento são, portanto, necessários. No entanto, o que resta à direita da

39 Um bom resumo em David DUNCAN , Calendário (or. 1998), Ediouro, 1999, pp. 94 e ss. 40 Para o curtíssimo prazo, temos, é claro, a duração da luz solar (do nascer ao pôr do sol), que determina a noção de dia. 41 Para nós, urbanos, desacostumados a olhar o céu, esta parece uma discussão longínqua; mas basta uma semana de férias num local de pouca ou nenhuma iluminação pública para entender a facilidade desse método lunar-solar, que fundamenta, entre outros, todos os calendários da Antiguidade europeia. 42 O valor será 12,586206896551724137931034482759. 38 vírgula, em todos esses cálculos, não pode ser suprimido pela força de uma canetada: ao arredondarmos os valores físicos por força de nossas comodidades práticas – transformando, por exemplo, o resultado da divisão “ano [365]” / “lunação [29]” de 12,586206896551724137931034482759 em um simples número inteiro 12 –, continuamos a criar um real problema de continuidade, que será, inevitavelmente, sentido no longo prazo . As abstrações, embora necessárias, precisam, pois, vir acompanhadas de compensações: podemos fazer com que os números de dias de um mês civil oscilem entre 29 e 30 dias durante o ano para fazer com que caibam no valor aritmeticamente inteiro 12, mas o ajuste sempre precisará ocorrer.

O calendário juliano, que viu o nascimento do Império Romano e seguiu sua cristianização, baseava-se, pois, na revolução solar – muito embora uma revolução solar fracionária de 365,25 dias (em vez de 365,242190 que é o cálculo astronômico usado hoje). Ele servia muito bem aos propósitos romanos quando foi criado, mas sua lógica interna de arredondamento (que parece mínima a princípio, diferindo apenas 0,00781 dias do ano solar astronômico atual) causava um atraso de cerca de 11 minutos e 14 segundos por ano em relação à realidade astronômica dos equinócios e solstícios. Isso em si não seria um problema, mas, como lembrei acima, a Páscoa cristã é datada pelo Pessah judaico – primeira lua cheia após o equinócio da primavera do hemisfério Norte –, quer dizer, uma data lunar em referência a uma data solar. Partindo de um ano de referência qualquer, a cada vez que o equinócio acontece, como a defasagem entre o calendário juliano e a sucessão de equinócios é crescente, a primeira lua cheia cairá, no curto prazo, num momento diferente da noite ; no médio prazo, num dia diferente; e, no longo ou no longuíssimo prazo, num mês diferente. Isso é claro. Ao cabo de 400 anos, os 11 minutos e 14 segundos de diferença equinocial entre um ano e outro, inerentes ao sistema juliano, se transformam numa defasagem equinocial de 3,12 dias. Quando Júlio César estabeleceu sua reforma, em 45 a.C., o equinócio da primavera ficara datado no dia 25 de março. Durante os dois primeiros séculos do Império, a diferença continuou sendo pequena. Mas, quando os teólogos reunidos no Concílio de Nicéia (325 d.C.) quiseram definir as regras litúrgicas para a Páscoa, o mesmo equinócio aconteceu em 21 de março – pois o sistema calendárico cristão romano era ainda o mesmo que o da época de Júlio César 43 . Por volta de 1582, ano da reforma promulgada pelo papa Gregório XIII, o calendário civil juliano tinha mais

43 Karen BELLENIR (ed.), Religious Holidays and Calendars. An Encyclopedic Handbook , p. 32. A data 21 de março ficou, pela importância teológica do Concílio de Nicéia, como referência para a reforma posterior. 39 de dez dias de defasagem em relação à realidade astronômica dos equinócios e precisaria de grandes compensações (arranjos e cortes em diversos meses do ano) para que as datas cívicas e astronômicas se correspondessem. E, consequentemente, para que a fugidia lua da Páscoa (data fundamental no calendário litúrgico), efetivamente permanecesse – com todas as implicações simbólicas associadas à estação – na primavera do hemisfério Norte.

A reforma gregoriana do século XVI teve por objetivos, portanto, reestabelecer o alinhamento do calendário religioso com a revolução solar; definir um sistema de compensação e ajuste mais preciso; fornecer a previsão das datas pascais com maior rigor. Este último item, demandado desde o Concílio de Nicéia, foi bastante discutido durante os séculos XII-XV, mas somente após o Concílio de Trento, em 1545-63, chegou-se à constituição de um grupo de trabalho a respeito 44 . Após anos de considerações, o jesuíta Clavius, à época o astrônomo que encabeçava o grupo de especialistas ocupados na reforma, levou uma proposição formal ao então pontífice, Gregório XIII, que instituiu oficialmente a mudança do calendário numa bula de fevereiro de 1582 45 . A reforma estabeleceu o valor da revolução solar em 365,2422 dias – 0,0078 dias a menos por ano em relação ao calendário juliano; declarou ano bissexto cada vez que um ano centenário fosse divisível por 400 (para recuperar os dias de defasagem que fatalmente ocorreriam no longo prazo, como aconteceu com o calendário juliano) 46 ; instituiu o dia primeiro de janeiro como início do ano; e, para sanar o problema imediato da defasagem da Páscoa, suprimiu dez dias do mês de outubro de 1582 (o dia 5 de outubro virou dia 15 de outubro), fazendo o equinócio da primavera retornar ao dia 21 de março (a data da Páscoa no Concílio de Nicéia) e permanecer aí.

Em ambos os casos (Juliano e Gregoriano), portanto, o tempo, ao menos o tempo do calendário, é uma regra definida, artificialmente, através de determinações oficiais: está de acordo com pressupostos religiosos, é organizado por um saber institucionalizado (astrológico ou astronômico) e executado pelo Estado ou governo. Efetivamente, a reforma exigiu o consentimento do poder civil. Os reis de

44 Na verdade, o Concílio não tomou nenhuma decisão específica quanto ao problema, mas, na sessão final (4 de dezembro de 1563), fez referência a uma reforma do breviário e do missal – efetivamente revistos por Pio V, papa na época. No entanto, por diversas razões de ordem técnica, essa reforma no missal implicava uma mudança no calendário, o que foi tomado ao pé da letra por Gregório XIII, sucessor de Pio V. (Bonnie BLACKBURN & Leofranc HOLFORD - STREVENS , The Oxford Companion to the Year , p. 684). 45 BELLENIR (ed.), Op. cit. , p. 32. 46 Excetuando-se, neste caso, os anos múltiplos de 100 que não fossem, ao mesmo tempo, múltiplos de 400. 40

Espanha, Portugal e os Estados italianos chancelaram imediatamente a bula de Gregório XIII, mas o parlement de Paris resistiu até que Henrique III conseguiu, não sem estratagemas, impor a reforma aos franceses em meados de dezembro de 1582 47 . É justamente a esse corte de dez dias que se refere a frase [B] que abre Dos Coxos 48 .

A leitura laicizada do parágrafo de abertura dirá: claro, ninguém planta ou colhe porque hoje é dia 28 de outubro ou porque estamos no Trigésimo Domingo do Tempo Comum – e sim porque, evidentemente, existe uma complexa equação entre a temperatura, a quantidade de chuva ou de sol, a adequação do tipo de semente e de legume, fruta, verdura, à estação ou ao tempo determinado para o plantio ou para a colheita. Uma infinidade de fatores que não dependem, obviamente, da vontade institucional de uma congregação, de um burocrata ou de um administrador a mando do rei ou do papado. Se a data cristã da Páscoa no sistema gregoriano ou juliano (quer dizer, quando definidos pelo calendário civil), derrapa perigosamente para o verão ou para o inverno, astronomicamente o equinócio da primavera continua acontecendo no seu momento, no ponto onde a órbita terrestre em relação ao sol será tal que o sol cortará a linha do Equador, fazendo o dia e a noite serem exatamente iguais, independentemente da nossa vontade. Logo, como síntese final dessa leitura, teríamos: tudo isso é inútil, pois o agricultor se adéqua ao tempo das estações, ao ritmo da natureza – e não o contrário.

Lendo deste modo, só nos resta, como opção, concordar com o narrador do ensaio. Seria, em princípio, a tudo isso que se refere o trecho de abertura de Dos Coxos : à crítica da inútil institucionalização (quer dizer, ao controle) do tempo, pensada a partir do ponto de vista do agrônomo ou do paysan , e expressa em toda a perícope calendárica. Por extensão, como consequência lógica dessa leitura, a abertura levaria, silogisticamente, a uma imediata interpretação do ensaio inteiro como crítica à institucionalização e ao controle de todos os fenômenos anormais descritos posteriormente nas suas outras perícopes: crítica à profusão de milagres (quando conta a história dos garotos ventríloquos da paróquia vizinha), ao controle institucional da identidade (quem define quem é Martin Guerre, afinal?), ao exagero

47 BLACKBURN & HOLFORD -STREVENS , Op. cit. , p. 684. É notória a relação de conflito entre os parlements regionais e o poder real na França do Ancien Régime . Podemos supor que o Sieur de Montaigne, ele mesmo ex-integrante de um Parlement , o de Bordeaux, tinha, portanto, embora católico e pró-realista, suas razões solidárias para ironizar o estabelecimento de uma reforma imposta pelo rei. 48 [B] “Há dois ou três anos suprimiram em dez dias o ano na França.” A datação do ensaio (partes [B] escritas por volta de 1585), proposta por Pierre Villey em sua edição dos Ensaios , leva obviamente em conta esta referência. 41 no controle de supostos desvios dogmáticos (o poder civil encarcera um acusado de crime herético a partir de “provas” pífias ou sem sentido).

Seria possível, portanto, tomar dessa abertura esse operador epistemológico generalizante e entender Dos Coxos (e suas perícopes) a partir de um dispositivo único: deixar que a ironia relativa ao calendário seja também o fio condutor do ensaio inteiro , que seria lido então como ironia (ou sarcasmo ou brincadeira) cética em relação aos temas tratados nos blocos narrativos que o compõem (calendário, bruxaria, processo penal, milagres, sexualidade, para citar os mais óbvios). Em outras palavras, o cético Montaigne zomba da Igreja que quer controlar o tempo; zomba dos que acreditam em bruxaria e na profusão aleatória dos milagres; zomba do poder judiciário que institui sentenças antes de entender plenamente os fatos; zomba da ideologia sexual que exclui o feio e o disforme da fruição plena do prazer e do gozo, e assim por diante: καὶ τὸ μὲν οὖν σαφές οὔτις ἀνὴρ ἴδεν οὐδέ τις ἐσται εἰδώς [pois a clara verdade, nenhum homem a soube ou jamais saberá ]. E poderíamos perfeitamente traduzir a sentença para o moyen-français e colocá-la na boca de nosso herói [ la nature de la liaison et cousture de ces admirables ressorts, jamais homme ne l’a sçeu , Ensaios II, 12, Apologie à Raymond Sebond , VS, 539]; ou deixá-la em grego mesmo, gravada numa das traves da sua Biblioteca 49 . Teríamos, assim, uma perspectiva de leitura e de interpretação que se casa de modo ideal com ao menos três dos grandes pressupostos atribuídos classicamente a Montaigne: ironia , ceticismo e humor .

Mas o que dizer disso tudo? Ainda que a ironia feita à reforma do calendário (à institucionalização do tempo) seja evidente, ela é evidente demais . Dizer que Dos Coxos é mero fruto do ceticismo e que só pode ser entendido a partir dele, ou, o que dá no mesmo, aceitar o ceticismo atribuído ao seu signatário como a chave mais óbvia para resolver todos os seus problemas textuais – quer dizer, considerar o ceticismo como um dogma (?!) de composição –, seria tão monolítico como declará-lo (o ensaio) acometido de uma doença terminal 50 . O ceticismo, inegavelmente presente nos Ensaios , é, no fundo, mas não tão no fundo assim, uma

49 A sentença original é o fragmento de Xenófanes, DK 34, citado por Diógenes Laércio, Vidas [Vida de Pirro ] IX, 72 (consultei a tradução feita por Mario da Gama Kury, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres , Ed. UNB, 2008², p. 270); a mesma citação em Sexto Empírico, Adversus Matemáticos , VII, 49. A sentença em grego foi, efetivamente, gravada numa das famosas traves do teto da Biblioteca do château . É a de número 27, na edição dos Ensaios , de Villey (CA, I, p. XCV); e de número 24, na edição crítica das sentenças das traves feita por Alain LEGROS , Essai sur poutres , Klincksieck, 2003, p. 349-351. 50 “Cancer is boring ”, diria Gregory House (o personagem vivido por Hugh Laurie no seriado House M.D.). 42 solução simplista e que nada prova, pois esse Montaigne, o cético, é também um personagem em seu próprio livro. Em outras palavras, o ceticismo é um problema a mais a se considerar no texto dos Ensaios – por que ele aparece aqui e ali?, por que é valorizado cá e acolá? –, e não uma solução, ou uma resposta que se tira da manga quando é hermeneuticamente conveniente.

Volto a insistir, porque é uma posição de princípio que tem consequências no desenvolvimento de toda a pesquisa a respeito de Montaigne: operações unidimensionais como a do Montaigne cético (a substancialização do signatário como cético , melhor dizendo) têm por efeito atribuir ao texto uma intentio auctoris bastante característica, que contamina as leituras ordinárias dos Ensaios . Realizam, e se contentam com, uma relação metonímica (autor = texto) que talvez até esteja na letra do seu projeto intelectual – mas que nós, enquanto críticos, não podemos assumir de modo imediato, sob pena de sermos controlados, ainda uma vez, por Ele.

Podemos, então, cavar outras perspectivas. A abertura de Dos Coxos mostra um mundo condensado em torno de um modelo de vida essencialmente rural : um modelo que envolve a “época da semeadura”, a “ocasião propícia para os negócios” 51 . E essa correlação é secante (mais do que tangente) ao modelo de vida seguido pelo Sieur de Montaigne, o signatário do texto.

Por princípio formal, e pelo que deixo entender logo acima, não gosto de fazer correspondências diretas entre Michel de Montaigne e seus Ensaios . Estes usam e abusam da instância retórica e autoritativa de seu signatário, e o recorrente artifício da primeira pessoa deve ser entendido como um problema em si e não (é a média dos estudos montaignistas) como garantia de uma verdade ontológica do texto: o que nos impede, pois, de usar tais correspondências simbióticas (autor ↔ texto) de modo natural e imediato 52 . Mas, obviamente, podemos admitir paralelos entre o

51 O sentido desse “rural” é aquele dado por Emmanuel LE ROY LADURIE em La Civilisation Rurale , Paris, Allia, 2012 (reimpressão de um verbete inicialmente publicado na Encyclopédie Universalis , XIV, 1972, depois republicado integralmente em Le territoire de l’historien , Tome 1, 1973, pp. 141-168) e que veremos abaixo. 52 Voz autoral e técnicas de discurso e de retórica complexas (nunca escolarmente aplicadas), problemáticas temporais ligadas a performances editoriais, enfim, uma infinita e dinâmica série de elementos tornam os Ensaios – tomados a princípio como testemunho de um self polido e controlado (o de Michel de Montaigne) – altamente problemáticos do ponto de vista biográfico ou autobiográfico: “As narrativas mostram tantos Montaignes, conhecemos tantas maneiras diferentes de compreender a mesma coisa, que temos dificuldade sobre qual deles devemos nos decidir. Mais ainda, começamos a desconfiar que essa pluralidade paradoxal das opiniões é não somente um efeito de uma suposta displicência lógica ou retórica (no que alguns diriam, simplesmente, fruto característico da posição cética do autor), mas uma espécie 43 texto dos Ensaios e a história (extratextual, quer dizer, extraensaística) de Michel de Montaigne. Esta “história extratextual” não deixa de ser contraditória, claro, pois boa parte do que sabemos a respeito de Montaigne é contada por ele mesmo no texto dos Ensaios 53 . A ideia não é negar as fontes, é simplesmente ter cuidado com elas, entendê-las como mediações e negociações de uma persona literária altamente complexa. Neste sentido, enquanto entendida como paralelo , isto é, enquanto não sucumbimos à pura metonímia de sacralidade (autor = texto), a correlação entre Montaigne e os Ensaios permanece legítima e útil. Mas, ainda assim, precisamos ter cuidado, uma vez que esta distinção entre Montaigne e seu texto é feita, por ele mesmo, já nos próprios Ensaios 54 .

Mas o que dizer do Sieur de Montaigne? As biografias recentes lançadas em português são ótimas, mesmo quando não são estritamente acadêmicas ou quando vêm com maior apelo público – e estão à mão nas prateleiras das livrarias locais 55 . Desnecessário, portanto, retraçar uma cronologia de datas e principais eventos de sua vida. Suponhamos que estivesse adaptando a vida de Montaigne num roteiro de cinema. Eu o mostraria como mais um nobre de robe da nova aristocracia francesa (paysan em larga medida) do Renascimento. Herdeiro de uma “nobreza de parchemin ” em ascensão 56 , egressa do comércio bordelês, e da qual ele mesmo de descoberta, de construção de um terreno vago e movediço, que confunde o leitor na medida em que protege o autor, ou autores, de comprometimentos biunívocos ou imediatos.” (VIEGAS , “Montaigne de [A] a [C]”, p. 47). 53 Por que, então, entre aqueles que assumem uma verdade do texto como sinceridade autoral, ninguém admite que ele possa mentir, ao menos ocasionalmente, a respeito de si mesmo? De onde vem esse estatuto de verdade e de sinceridade? Simplesmente pelo fato do autor- narrador dizer que se pinta a si próprio, et ergo est : tudo o que ele diz é verdade?! 54 Montaigne parece estar cônscio do uso de sua posteridade literária e autoral quando diz: “Le Maire et Montaigne ont tousjours esté deux, d’une separation bien claire” ( Essais , III, 10, VS p. 1012). Embora seja uma afirmação político-administrativa, lida no contexto da perigosa simbiose entre a esfera pública e a esfera privada, é uma distinção que pode perfeitamente servir de aviso a uma esfera hermenêutica mais profunda. Seu autor está plenamente consciente de que a relação diegética entre ele e seu texto, feita por seus leitores (trata-se de uma frase [B], quer dizer, escrita para a segunda edição dos Ensaios , logo, Montaigne já era um autor de renome), responde a uma questão, de ordem geral, de como sua figura pública é, ou será, potencialmente entendida por seus leitores. Para uma análise desta citação, ver Jack ABECASSIS , “‘Le Maire et Montaigne ont tousjours esté deux, d’une separation bien claire’. Public Necessity and Private Freedom in Montaigne” in MLN Vol. 110 n° 5 (1995), pp. 1067- 1089. 55 André TOURNON , Montaigne (1989), Discurso Editorial, 2004; Sarah BAKEWELL , Como Viver (2010), Objetiva, 2012; Saul FRAMPTON , Quando Brinco com a minha Gata, como sei que ela não está brincando comigo? (2011), Difel, 2013. Mas usei também Jean LACOUTURE , Montaigne a Cavalo (1988), Record, 1998. 56 A expressão derrisória é tirada das Bigarrures de Tabourot des Accords e mostra bem o desprezo com que os nobres de sangue do final do Renascimento viam a ascensão 44 representa o ápice 57 . Michel Eyquem: toda uma carreira no Direito – exercendo funções no parlement de Bordeaux (a partir de 1557). Michel de Montaigne (depois que recebeu o título de Sieur de Montaigne): prefeito da cidade durante três anos (dois mandatos, 1581-83). Antes, ele havia optado por vender seu posto vitalício no parlamento em 1571, passando a viver, em princípio, exclusivamente de suas terras 58 . No contexto que analisamos aqui, viver exclusivamente da boa renda de suas terras (tornar-se parte da aristocracia rural, dotando-se de um título e de um nome atrelado a um terreno e um château ) significa também “viver nobremente”: e isso é, paradoxalmente, o cume da vida social para o burguês renascentista, objeto de desejo de todo cidadão abastado da França do século XVI 59 .

Tecnicamente, o posto de parlamentar não representava um obstáculo ao exercício social dessa vida aristocrática e, num certo sentido, a gestão de uma grande atividade comercial também não (desde que se tratasse de um empreendimento nobiliárquica dos burgueses seus contemporâneos: “«[...] ces changeurs de noms, qui desdaignent de recognoistre leur Roy, & se dire anoblis par sa puissance : se moquans de ceux qui ont lettres du Roy, & les appellant Gentils-hommes en parchemin . » [p. 28 b] Hist. & étymol.: FEW 8, 240 a (Pergamena): frm. gentilhomme de parchemin « qui a ses titres de noblesse depuis peu de temps » OudC 16408. 57 Seus ancestrais paternos, os Eyquem, ricos comerciantes de Bordeaux, adquiriram indiretamente o título nobiliárquico Montaigne (bem como o castelo e as terras correspondentes ao título) da nobreza falida pela Guerra dos Cem Anos, na segunda metade do século XV (10 de outubro de 1477). Indiretamente , porque já o compraram das mãos de uma outra família burguesa de Bordeaux. Foi somente seu pai, Pierre, o primeiro dos Eyquem a nascer no château , que se estabeleceu definitivamente na propriedade. 58 Embora não pudesse fazer uso explícito desses rendimentos (a dérogeance tem status herético, pois a aristocracia é, teoricamente, anticomercial, logo, antiburguesa), é evidente que sua nobreza havia se beneficiado de todo o dinheiro acumulado por sua família no comércio bordelês. Efetivamente, a pecha de “comerciante” ainda perseguirá Michel de Montaigne durante um bom tempo: “‘Nobre Pierre Eyquem’? ‘Senhor de Montaigne’? Certamente. Mas Jules-César Scaliger (1484-1558), da cidade de Agen, que não via com bons olhos a ascensão desse vizinho afortunado, chamará o autor dos Ensaios de ‘filho de vendedores de arenque’ – profissão sem dúvida honrosa, mas que o avô de Michel havia abandonado sem contudo livrar-se completamente do cheiro que se lhes associava” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo , p. 20). A citação original de Scaliger em Scaligeriana (Coloniae-Agrippinae: apud Gerbrandum Scagen, 1667), p. 158 [edição em Archive.org]. 59 “The gentry aspire to noble status. Its wish is to be confused with the gentilhommes . So we are told by witnesses like Loyseau; and the evidence assembled in the regional studies of Goubert or Deyon also presents the gentry as a transitional class, barely emancipated from the taint of commerce and already impatient to slip into the role of gentilshommes ” (George HUPPERT , Les Bourgeois Gentilhommes . An Essay on the Definition of Elites in Renaissance France , University of Chicago Press, 1977, pp. 24 e ss.). Importante notar que, para Huppert, não é apenas a aspiração social e simbólica dos burgueses abastados em relação à aristocracia de sangue que interessa, mas o significado econômico dessa passagem (gerando isenções de impostos, benesses políticas e públicas, entre outras vantagens). Quer dizer, no fundo, os novos aristocratas continuam... burgueses na alma! Para as definições do que significava “vivre noblement”, ver Arlette JOUANNA , La France du XVI e siècle (1483-1598) , PUF, 2002³, pp. 61 e ss. 45 puramente administrativo e de grande porte). Mas, ao menos em 1571, o Sieur de Montaigne estava disposto a gastar seu tempo com seus próprios afazeres, sem a necessidade de um patrão, de um arrendatário, ou de administrar um séquito de assalariados citadinos – o que não necessariamente era a regra da época 60 .

Logo, embora de origem urbana, oriunda das fileiras burguesas do capitalismo renascentista 61 , a família de Michel estava, teoricamente e ao menos a partir de seu pai, exclusivamente ligada à aristocracia da terra, tirando dela seu sustento 62 . Podemos admitir, a título de exercício, que a província tenha uma proeminência paradoxal no seu way of life , entendendo por isso participar de uma lógica social exógena à cidade: seja em relação à cidade mais próxima, Bordeaux , seja em relação à corte parisiense – naquela Paris que, desde Luís VI, e sobretudo depois das reformas de Francisco I, vem a ser a cidade por excelência da França 63 . A equação é um pouco confusa: para uma família de ricos comerciantes bordeleses, sair da cidade e ir para o campo é, por estranho que possa parecer a nós, uma questão de performance e ascensão social.

Num primeiro momento, essa questão é de ordem particular, sendo relativamente simples de se entender: para esses últimos “Montaigne”, Bordeaux significa os “Eyquem” ancestrais e seu comércio – atividade, grosso modo , incompatível com sua nova condição aristocrática. No segundo caso, de um modo mais amplo e genérico, pois envolve a própria essência do ser nobre por essa época, a cidade é um complexo contraditório: necessário na mesma medida em que precisa ser mantido à distância. Muito embora a corte dos Valois esteja sempre no horizonte de eventos dessa nova aristocracia, esta última ainda não utiliza Paris de modo contínuo e

60 “L’âge précoce de cette retraite loin des affaires publiques était plutôt insolite pour un membre de la noblesse de robe” (Hugo FRIEDRICH , Montaigne , Gallimard, 1968, p. 21). 61 Maarten PRAK (ed.), Early Modern Capitalism: Economic and Social Change in Europe (1400-1800), Routledge, 2001. Para uma análise a respeito de como os Ensaios pensam a ordem econômica, ver Philippe DESAN , Les commerces de Montaigne. Le discours économique des Essais, Nizet, 1992. Para a evolução aristocrática dos Eyquem-Montaigne, ver DESAN , Op. cit. , e, sobretudo, George HOFFMAN , Montaigne’s Career , Clarendon Press, 1999. 62 Os irmãos de Montaigne eram, evidentemente, todos nobres e alguns moravam com ele no château . 63 Como se sabe, Luís VI foi o primeiro rei francês a estabelecer sua residência oficial em Paris, por volta de 1130 – muito embora, na prática, essa residência fosse descontinuada e só tenha se tornado efetiva no século XVI: “Em 15 de março de 1528, o rei Francisco I (r. 1515- 1547) declarou de modo solene ao conselho municipal de Paris: ‘De hoje em diante, a nossa intenção é viver a maior parte do tempo na boa cidade de Paris e arredores mais do que em outra parte do reino. Reconhecendo o nosso castelo do Louvre como nossa morada mais adequada e conveniente, ordenamos que o dito castelo seja restaurado e posto em ordem’” (Colin JONES , Paris, Biografia de uma cidade , L&PM, 2010, p. 121). 46 parasitário (melhor seria usar o termo comensalista), tal como fará a aristocracia (de espada ou de toga) sob os Bourbons: boa parte da nobreza do século XVI prefere permanecer em seus respectivos domínios 64 , quase sempre longe da corte 65 . E, importa acrescentar, esses domínios são, em larga margem, como o dos Montaigne, propriedades rurais. Evidentemente, vai-se correntemente a Paris para estudar, aprender bons modos, se civilizar: pois, na segunda metade do século XVI, Paris já é o cosmo ideal e imprescindível da civilité francesa 66 . Mas há uma diferença entre ir até a corte e depender dela: este será o caso da nobreza, mas somente a partir do século XVII, no sistema que se forma, de modo incontornável, em torno dos Bourbons 67 . Para a nova nobreza rural do século XVI, a capitalização simbólica do estágio que seus filhos fazem na corte dos últimos Valois depende de que essa nobreza permaneça rural, que não migre para a cidade – onde facilmente se tornariam translúcidos e sem importância especial. Se, para seus serviçais e visitantes, esses nobres são considerados reis em seus respectivos territórios, na planície parisiense os mesmos não seriam, em relação uns aos outros, senão meros funcionários fagocitados pela corte, por mais que recebam títulos honoríficos e adicionais aristocráticos (habilmente multiplicados pelo poder real em expansão).

64 Apesar de Paris ter se tornado a cidade oficial da corte francesa “no início do século XVI, os reis somente vão à cidade ocasionalmente, para a realização de cerimônias. Eles preferem seus castelos nas margens do Loire à mansão das Tournelles”. (Jean-Louis HAROUEL , História do Urbanismo (1985), Papirus, 1990, p. 57). 65 O que é o caso de Michel Senhor de Montaigne: “Although French elites spent ever lengthier periods at court as the sixteenth century progressed, it is difficult to speak of a continuously resident court nobility comparable to the group that characterized later reigns. The court’s peripatetic nature, though diminishing by the end of the century, prevented its members from establishing any permanent residence in its environs; even during the reign of Henri III, when the royal entourage began to settle for longer periods in Paris, many courtiers did not possess property in the capital but simply rented lodgings while at court.” (Cf. Jeanice BROOKS , Courtly Song in Late Sixteenth-Century France , p. 333). 66 E a civilité é a distinção social dos novos aristocratas, por oposição à antiga courtoisie dos aristocratas feudais. Ver Anna BRYSON , From Courtesy to Civility: Changing Codes of Conduct in Early Modern England , Clarendon Press, 1998, p. 24 (só pude consultar este livro pelo Google Books); e também Marvin BECKER , Civility and Society in Western Europe, 1300-1600 , Indiana University Press, 1988. 67 O sistema de corte dos Bourbons (o do “absolutismo” francês pós-renascentista, quer dizer, a corte como extensão da casa do rei) foi amplamente estudado e debatido: Cf. Nobert ELIAS , A Sociedade de Corte , especialmente cap. III, p. 66 e ss; Emmanuel LE ROY LADURIE , O Estado Monárquico , esp. caps. XIII e XIV; ver, também, Alison FORRESTAL & Eric NELSON (eds.), Politics and Religion in Early Bourbon France , Palgrave Macmillan, 2009. Para uma visão mais detalhada do funcionamento dessa estrutura, ver Bernard BARBICHE , Les institutions de la monarchie française à l’époque moderne , PUF, 2001², pp. 37 e ss. Para uma discussão mais centrada em Montaigne, ver Stephen MENNELL , “Montaigne, Civilisation and Sixteenth Century European Society” in Keith CAMERON (ed.), Montaigne and his Age , Exeter University Printing Unit, 1981, pp. 69-85. 47

Para um signatário situado nesse universo de coordenadas, novo-aristocrata de pergaminho estabelecido em um castelo provinciano, podemos assumir que um modelo de vida rural, embora não necessariamente contamine seu modo de escrever (uma escrita puramente rural é possível?), pode perfeitamente sugerir os causos dos quais ele se serve e os causos que ele efetivamente valoriza em seu quotidiano e em seu texto 68 . Essa relação não precisa ser gnosiologicamente estrita ou eticamente íntegra, poderá inclusive se dar por sarcasmo, deboche ou humor. Mas, ainda assim, podemos assumir, em função da tipologia das perícopes que vamos analisar, a importância (epistemológica, diegética e narrativa) desse mundo rural, naquilo que vai nos interessar aqui. Observe-se o conteúdo de Dos Coxos e se verá que nenhuma de suas partes pertence ao universo ordinariamente atribuído à corte real de sua época: existe um sabor rústico muito particular e muito próprio, que, como veremos, guarda afinidades com o modelo literário canônico dos contemporâneos que escreviam sobre o campo. De certa forma, Dos Coxos é um mundo outsider e longínquo, se considerarmos a urbanidade da corte parisiense como o centro ontológico e narrativo desse universo 69 . Este universo é o que discutirei aqui.

Portanto, a título de hipótese de trabalho – isto é, sem fazer uma correlação cerrada e totalmente biunívoca entre uma coisa e outra –, insisto que nem a abertura de Dos Coxos nem as diversas seções narrativas que compõem o ensaio, e que veremos abaixo, provêm da corte ou do “meio urbano”. Esse universo de Dos Coxos , supondo-se um universo ficcional passível de ser compreendido historicamente,

68 Uma vez que raríssimos camponeses (no sentido de “trabalhadores rurais sem recursos”) tinham condições técnicas e tempo para exercer atividades intelectuais, a noção de escrita paysan necessitará de uma aristocracia agrária que saiba ler e escrever para fazer sentido: na Île-de- France, a taxa de alfabetização dos entrepeneurs rurais ricos (não nobres) era de 100% (cf. Arlette JOUANNA , La France de la Renaissance , Perrin, 2009², p. 213; ver também Jean-Marc MORICEAU , Les fermiers de l’Île-de-France, XV e-XVII e siècles , Fayard, 1994). Por outro lado, no século XVI, a rigor, não existe uma produção literária urbana , mas cortesã – o urbano, tal como entendemos hoje, a cidade em si e por excelência, só passa a ser objeto de interesse literário, e fonte de energia intelectual, no século XIX, com os jornais e o fait divers , os folhetins, o romance burguês – aquele heteróclito caldo intelectual que chamamos de “modernidade”. E quando digo isso, penso em Baudelaire como representante mais distinto de uma escrita especificamente urbana. 69 O exemplo de um contexto sócio-econômico – o de um nobre francês do Renascimento (Michel de Montaigne) – poderia servir, portanto, como elemento contrafactual (quer dizer, como mundo possível) da nossa discussão, restrita aqui a um ensaio assinado por ele. Veja-se que essa diferença sutil muda nossa perspectiva: o nobre que serve de parâmetro e o nobre que efetivamente está em questão não são os mesmos, ainda que tenham o mesmo nome e apareçam no subtexto do mesmo livro. E a perspectiva muda na medida em que saímos do biográfico para o ficcional. 48 assenta-se neste aspecto modelar que caracteriza a província rural. Isso requer uma reflexão mais técnica, e tentarei fazê-lo adiante, mas essa lógica de enquadramento carrega consigo uma série de consequências importantes no que diz respeito ao posicionamento midiático do récit . É, pois, fundamental entender que o parágrafo de abertura de Dos Coxos remete – entre outras coisas, mas essencialmente – ao mundo do paysan francês da segunda metade do século XVI 70 . E, se descontarmos as inevitáveis alusões citacionais ao mundo clássico, bem ao estilo dos Ensaios , Dos Coxos permanecerá paysan até o fim 71 .

Uma coletânea “paysan ” de perícopes? Pois não é uma coletânea qualquer. Os temas dos causos remetem a um universo também particular e historicamente circunscrito: o dos mirabilia e, por este viés, o dos fait divers que tratam do mesmo tema (prodígios, monstros, fenômenos celestes, catástrofes naturais etc.). Veremos, pois, como será possível articular essas duas dimensões – a dos dispositivos informacionais de meados do século XVI e a phrônesis do mundo camponês –, a fim de permitir especulações teóricas comparativistas dos mais diversos matizes.

70 Devemos tomar a palavra paysan aqui como um universo de relações e funções que vai muito além do que o termo “camponês” em língua portuguesa (a tradução corrente) permite entender de imediato: camponês , para nós, hoje, por conta sobretudo das influências do vocabulário marxista, guardou apenas o aspecto do “trabalhador braçal do campo”. Quer dizer, em última análise, sinônimo de roceiro pobre . No entanto, na sua História dos camponeses franceses , Emmanuel Le Roy Ladurie trata indistintamente os habitantes das campagnes francesas (sejam eles ricos, pobres ou remediados, nobres aristocratas ou fundiários) como paysans – muito embora deixe sempre clara sua diferenciação econômica. Neste caso, a distinção mais importante para ele é, obviamente, entre cidade e campo (ricos e pobres sendo, neste caso, de valor secundário). A nota introdutória do tradutor brasileiro desta obra, Marcos de Castro, é bastante precisa e esclarecedora a este respeito. Embora não tenhamos um termo em português que dê conta dessa complexa logística social francesa, camponês (quer dizer, paysan ) deveria ser tomado aqui no aspecto oposicional à cidade , a partir de algo próximo do que reservam os seres cosmopolitas das grandes capitais aos que vêm “ do interior ”. Cf. Emmanuel LE ROY LADURIE , História dos Camponeses Franceses (2002), 2 Vols., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007. 71 Comecei muito tardiamente a leitura dos folcloristas franceses (de hoje e de ontem) e seus repositórios de histórias, contos e narrativas da França profunda (em especial os que tratam do sudoeste, próximo às latitudes do château de Montaigne, e sobretudo os que valorizam o prodigioso e o extraordinário), de modo que não pude absorvê-los adequadamente no correr deste texto. Por exemplo, Hilarion BARTHETY , La Sorcellerie en Béarn et dans le pays Basque . & Pratiques de sorcellerie et superstitions populaires du Béarn , Ribaut, 1879; Georges ROCAL , Vieilles coutumes devotieuses et magiques du Perigord (1922), Fanlac, 1997³; Jean-Louis BONCOEUR , Le village aux sortilèges , Fayard, 1979; Christian DESPLAT , Sorcières & Diables en Gascogne , Cairn, 2001. Mas seria interessante, ao discutir as perícopes de Dos Coxos , mostrar o quanto o ensaio funciona num registro, se não folclórico, ao menos solidário de muitas das historietas etnográficas compiladas por esses especialistas. 49

Tentarei, ao máximo, para ser coerente com o exposto acima, considerar Dos Coxos como uma unidade em si (embora não redutível a um único dispositivo teórico hermenêutico), um universo textual próprio, destacado do contexto geral dos Ensaios . Não porque ele não se comunique com o livro ou com os outros capítulos, claro, mas pela mesma razão que o anatomista extrai o fígado para melhor analisá- lo. No entanto, não realizo esta operação com o objetivo de entender Montaigne ou os Ensaios (como estou longe disso!!), mas esse pequeno mundo que Montaigne [B] e Montaigne [C] disseram fazer parte de um capítulo do livro assinado por Michel Sire de Montaigne. Quero entender o porquê, se é que existe um porquê, disso que está dito lá existir enquanto um microcosmo finito de algumas páginas. Ou melhor, quero que esse texto, Dos Coxos , adquira um sentido para mim – e ainda assim, muito mais a título de exercício intelectual que para provar o quer que seja. Quero simplesmente trabalhar nele e ver no que vai dar.

IIIIII No reino dos nobres pastores

Este resumo, embora um pouco histórico demais, tenta facilitar o enquadramento teórico que farei mais adiante.

MUNDO PAYSAN FRANCÊS 1 da época da composição de Dos Coxos , este Omundo rural que para nós hoje se constitui por oposição à corte citadina 2, guarda, em muitos aspectos, certa imobilidade demográfica e estamental, herdada da Idade Média, que se prolongará até a segunda metade do século XVIII – malgrado o avanço e o inchaço das cidades e de sua sofisticação cultural e técnica, sua estratificação social e política. Em se tratando do território francês, certo aspecto modelar – o vilarejo ( village ) articulado em função de uma igreja e de um cemitério, com os espaços agrários anexos –, que é sua marca fundamental, persiste, apesar das flutuações históricas e regionais, desde pelo menos o século XII até a Revolução de 1789 3.

1 Para uma boa ideia do contexto, ver Georges DUBY & Armand WALLON (eds.) Histoire de la France rurale , Tome 2, L’Âge classique (1340-1789) . Paris, Seuil, 1975. 2 Embora a oposição entre cidade e campo tenha sido valorizada aqui, trata-se evidentemente de uma abstração, pois o que interessa na cidade ideal no Renascimento francês (Paris) é a corte do Rei de França – uma lição normalmente tirada de Norbert Elias: “It was the royal and princely courts, suggested Elias, not the towns or cities, which had come to constitute the social nucleus of seventeenth-century European societies, and ‘the town, as was said in the ancien regime, merely ‘aped’ the court’” (Robert VAN KRIEKEN , Norbert Elias , Routledge, 1998, p. 83). 3 Para toda a reflexão que se segue, ver LE ROY LADURIE , “La civilisation rurale”, pp. 148 e ss. “A partir du XIV e siècle, et jusqu’au début du XVIII e, puis de nouveau pendant la période 1720-1860 (voire 1720-1913) en ce qui concerne la France), il devient possible d’observer la civilisation rurale pour ainsi dire in vitro , on n’ose pas dire ‘au repos…’. Certes, elle reste agitée par des fluctuations négatives et gigantesques (je pense notamment à la période 1340-1450 en Occident, et aussi à la période 1630-1660 en Allemagne et même en France). Mais entre 1300 et 1700 le temps des très grands progrès semble passé. Les défricheurs, vers 1300, on atteint une sorte de limite qu’ils dépasseront certes par la suite, mais très peu, et seulement aux XVIII e et XIX e siècles. Le cercle vert des forêts subsistantes ne reculera plus beaucoup désormais, au profit des grandes clairières. Quant aux populations rurales, elles sont stabilisées. Elles fluctuent certes. Mais elles ne dépasseront guère, jusque vers 1720-1730, le niveau 51

Para a expressão literária do universo paysan , as culturas neolatinas do Renascimento tiveram basicamente duas categorias gerais, que, grosso modo, podem ser consideradas como virgilianas: a via da estilização ideal da vida no campo (no modelo pastoral 4 das Bucólicas ); e a via da celebração do trabalho agrícola (no modelo – irônico, otimista ou pessimista, dependendo da leitura – das Geórgicas 5). Exagerando um pouco, para que a hipótese possa fazer sentido num primeiro momento, podemos dizer que toda e qualquer obra literária europeia que pretendeu retratar a vida no campo (ao menos a partir de 1520) se posicionou, de alguma forma, em relação a essas duas obras-arquétipo capitais 6.

Para a discussão aqui, e para que o texto não se estenda demais, vou-me concentrar quase que exclusivamente no texto das Bucólicas e na tradição pastoral decorrente – a mais evidente das influências antigas para os autores propriamente literários do Renascimento interessados em valorizar o universo paysan . Comentarei as Geórgicas apenas incidentalmente, na medida do necessário para a argumentação, no próximo capítulo.

qu’elles avaient atteint une première fois vers 1300-1310. Ainsi, crispée, bloquée, stabilisée ‘au plafond’, la civilisation rurale, en son âge classique avant sa désintégration progressive par la société industrielle ou post-industrielle, se prête convenablement à l’observation structurale, et à la description fonctionnelle” (LE ROY LADURIE , Op. cit. , pp. 149-150). 4 Para a noção de gênero pastoral , usei Terry GIFFORD , Pastoral , Routledge, 1999 [New Critical Idiom]; Paul ALPERS , What is Pastoral? , University of Chicago Press, 1997; Annabel PATTERSON , Pastoral and Ideology (Virgil to Valéry) , University of California Press, 1987; Judith HABER , Pastoral and the Poetics of Self-Contradiction (Theocritus to Marvell ). CUP, 1994; Marco FANTUZZI & Theodore PAPANGHELIS (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral , Leiden, Brill, 2006. 5 O título do poema de Virgílio vem de uma importação do grego antigo γεωργέω, verbo que no infinitivo significa “ agri-cultor ” (literalmente, “ trabalhar [εργ-] a terra [γε ]”). Para o texto das Géorgicas , usei VIRGÍLIO , Geórgicas (Antonio Feliciano dos Santos, trad.) in Geórgicas & Eneida , W. M. Jacksons, 1964 [Clássicos Jackson, 3]; VIRGILE (Eugène DE SAINT -DENIS & Jackie PIGEAUD , eds.), Géorgiques , Les Belles Lettres, 2009; VIRGILE (Maurice RAT , ed.), Les Bucoliques et les Géorgiques , Garnier, 1953; VIRGIL (Peter FALLON & Elaine FANTHAM , eds.), Georgics , OUP, 2006; VIRGIL (Janet LEMBKE , ed.) Virgil’s Georgics , Yale University Press, 2005; Para as discussões, usei L. P. WILKINSON , The Georgics of Virgil, A Critical Survey , CUP, 1997²; SPURR , “Agriculture and the Georgics ” in Greece & Rome , Vol. 36 n° 2, 1986, pp. 164-187; William BATSTONE , “Virgilian didaxis: value and meaning in the Georgics ” in Charles MARTINDALE (ed.), Cambridge Companion to Virgil , CUP, 1997, pp. 125-144; Michael C. J. PUTNAM , Virgil’s Poem of the Earth: Studies in the Georgics, Princeton University Press, 1979; Monica GALE , Virgil on the Nature of Things (The Georgics , Lucretius and the Didactic Tradition ), CUP, 2004; 6 Para a influência do Virgílio agrário no Renascimento, ver David Scott WILSON -OKAMURA , Virgil in the Renaissance , CUP, 2010. Para a longa descendência dos temas e formas virgilianos, da Antiguidade ao século XVII, ver a bibliografia listada em: http://www.virgil.org/ bibliography. 52

• Um universo bucólico 7

Gramáticos e eruditos de renome conhecedores da antiguidade clássica têm situado a origem da poesia pastoril em razões de ordem mitológica, religiosa, lírica ou dramática. Dadas as condições em que se terá processado o desenvolvimento do homem primitivo e a mútua influência que nele terão exercido os ritos, as crenças, as tradições, os hábitos, as representações, os mimos, etc, é de pressupor que não se deva falar de um elemento específico como determinante do aparecimento da poesia pastoril, mas antes se deva falar de um elemento compósito. Quando sob a influência deste elemento o homem conseguiu elaborar o primeiro poema bucólico nasceram também as características que o definem: um tema, uma forma, uma perspectiva narrativa. O tema é a vida pastoril; a forma é o hexâmetro dactílico; a perspectiva narrativa é a do poeta feito cúmplice e não mero espectador do mundo que descreve 8.

Descontando-se, claro, a valorização algo romântica e sentimental do problema, este parágrafo é válido como ponto de partida. Tema , forma e perspectiva narrativa pastorais forneceram, de fato, desde a Antiguidade, um modelo tradicional e replicável para os cultores do gênero, ainda que tal modelo tenha sido sempre reorientado em função das idiossincrasias de contexto. Por isso, uma rápida amostragem genealógica é necessária. Embora o nome de Virgílio seja onipresente na tradição literária idílica, ela não é uma invenção dele, e nem exatamente do poeta alexandrino de língua grega Teócrito (~ 315-250 a.C.), que lhe serviu de base –

7 “Lembra F. Plessis que o verdadeiro título da composição era esse mesmo, Bucólicas de βούκολοι , pastores de bois, apoiando-se em Probo ( loc. laud. ), Columela (VII, 10), Ovídio (Trist ., II, 537) e Aulo Gélio (IX, 9, 4). Atribui aos gramáticos e editores a falsa denominação de Éclogas, já que o termo eclogae , em sua origem, significava simplesmente ‘trechos escolhidos’, ‘extratos’, mudando de acepção nos séculos seguintes, tal como sucedeu com idyllion . Ora, como é óbvio, a composição de Virgílio não é uma seleção de textos, mas uma coletânea de peças inteiras, descrevendo cenas e costumes da vida pastoril, em seu ambiente natural” (João Pedro MENDES , Construção e Arte das Bucólicas de Virgílio , p. 37). Para os textos de Teócrito, Bion, Moschus e outros, Bucoliques grecques (Ph.-E. Legrand, ed.), 2 Tomes, Les Belles Lettres, 1960³ [CUF]; e J. M. EDMONDS (ed.), The Greek Bucolic Poets , Loeb Classical, 1916. Para as edições das Bucólicas de Virgílio, usei Wendell CLAUSEN (ed.), A Commentary of Virgil Eclogues, Oxford, Clarendon Press, 1994; João Pedro MENDES , Construção e Arte das Bucólicas de Virgílio , Ed. UnB, 1985; VIRGÍLIO (Raimundo CARVALHO ed.), Bucólicas , Belo Horizonte, Crisálida, 2005; VIRGILE (Maurice RAT , ed.), Les Bucoliques et les Géorgiques , Garnier, 1953. Para os bucólicos posteriores, CALPÚRNIO SÍCULO [João BEATO (ed.)], Bucólicas , Lisboa, Verbo, 1994; e CALPURNIUS SICULUS [Jacqueline AMAT (ed.)], Bucoliques & PSEUDO -CALPURNIUS , Éloge de Pison , Les Belles Lettres, 2003 [CUF]. 8 João BEATO , “introdução” in CALPÚRNIO SÍCULO (João BEATO , ed.), Bucólicas , Lisboa, Verbo, 1994, pp. 42-43. 53 muito embora tenha sido Teócrito quem efetivamente fez a passagem do assunto pastoral ao gênero literário pastoral. A pastoral, tal como a entendemos hoje, é uma tradição que deita raízes já em Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo 9. A importância dos Idílios 10 na constituição de uma forma narrativa específica que desaguou no modelo bucólico latino-virgiliano é inegável, mas não precisa ser avaliada aqui, uma vez que os escritores renascentistas não se preocuparam com sua genealogia profunda e tomaram Virgílio como ponto de partida ordinário da sua própria literatura pastoral. Teócrito havia montado a atmosfera bucólica de seus poemas nas montanhas da Sicília helenística. Mas Virgílio transferiu seus pastores (parte deles, para ser mais exato) para a Arcádia – que se transformou, a partir daí, na mais longeva, característica e resiliente das topografias literárias ideais 11 . Muito embora a Arcádia possa ser facilmente posta em dúvida enquanto lugar por excelência da primitiva pastoral latina (ela é citada literalmente em apenas três das dez éclogas das Bucólicas , a primeira delas mostrando pastores sicilianos e não árcades ), somente nossa crítica contemporânea levantou esse detalhe como um problema 12 .

9 Entre os poetas gregos que trataram de temas bucólicos antes de Teócrito, temos Tísias (poeta lírico também conhecido pelo nome de Estesícoro, ~632-553 a.C.), Epicarmo e Sófron. Em Homero, há inúmeras passagens que aliam o repouso ao décor natural, e fartas exposições de paraísos com bosques e choupanas bem-aventuradas, como a Ilha das Cabras ( Odisséia , IX, vv. 132 e ss.), o jardim de Alcino ( Odisséia , VII, 112 e ss.), a gruta de Calipso ( Odisséia , V, 63 e ss.), e, claro, o Elísio, “onde a eterna primavera é animada pelo Zéfiro” ( Odisséia , IV, 565). Servi-me de uma coletânea dessas imagens em E. R. CURTIUS , “A Paisagem Ideal”, cap. 10 de Literatura Européia e Idade Média Latina , pp. 240-261. 10 Algumas éclogas das Bucólicas são praticamente versões em latim dos textos gregos de Teócrito. Ver Richard HUNTER , Theocritus and the Archaeology of Greek Poetry , CUP, 1996. 11 “Era a Arcádia uma região montanhosa [grega] do centro do Peloponeso, sobre a qual se contavam as mais contraditórias versões. Mundo pouco acessível e primitivo, nos confins do universo romano. Falava-se de crimes horrendos que ocorriam entre seus habitantes e até de histórias de licantropia. Fama funesta que o historiador Políbio, arcádio de origem, sente-se obrigado a refutar, colocando a Arcádia como um país pacífico em que reinavam a música e as artes. A última versão, e o fato de que se tratava de um lugar remoto na época e por isso mesmo preservado da degradação da pólis , são os elementos que permitem a Virgílio construir sua ficção, pois, inspirado no exemplo de Teócrito, sobretudo, não lhe era alheio o fato de que a Sicília, que este [Teócrito] havia celebrado como o sítio mais ameno da terra, convertida em província romana, havia perdido seus encantos naturais.” (LA SERNA , Arcádia, Tradição e Mudança , p. 47). A defesa de Políbio de seu torrão natal está na sua História (esp. IV, 20-21). Por sua vez, alguns dos mitos arcadianos mais importantes (o nascimento de Arcos, filho da ninfa Calisto, que deu o nome à Arcádia; o episódio entre a náiade Syrinx e o deus Pã) são compilados não por Virgílio e sim por Ovídio: nas Metamorfoses II, 401-530 (Arcos) e I, 689- 712 e X, 13-14 (Syrinx e Pã). 12 Para a relação da Arcádia com as Bucólicas , ver Richard JENKYNS , “Virgil and Arcadia” in Journal of Roman Studies , Vol. 79 (1989), pp. 26-39. Um conhecido estudo de Bruno Snell contribuiu bastante para a moderna continuidade desta confusão: “Arcadia: The Discovery of a Spiritual Landscape” in The Discovery of the Mind. The Greek Origins of European Thought , Harvard University Press, 1953, pp. 281-308. 54

Seja como for, e por conta sobretudo dos escritores renascentistas, toda literatura latina que se estabelece sob o modelo pastoral, no contexto analisado aqui, é arcadiano-virgiliana 13 .

De fato, a tradição da Arcádia literária tem características peculiares, todas já encontradas no poema de Virgílio e que serão, efetivamente, retomadas pelos continuadores pastorais do Renascimento, mil e quinhentos anos depois: trata-se, para todos os efeitos, já em Virgílio, de uma estrutura modelar. É cheia de pastores, mas sutilmente esvaziada de agricultores e demais trabalhadores do campo – talvez por questões inerentes à desqualificação do trabalho puramente braçal, ação indigna dos homens livres na ótica da aristocracia antiga 14 . É rica em ninfas e sátiros (o deus Pã seria originário da Arcádia 15 ), numa conjugação de flora e fauna que expressa a intensa beleza e a pujança do mundo natural mediterrâneo. A vida pastoral, nesse quadro de juventude estática e extática, se completa com o amor simples (direto e sem rodeios); a música, que conjuga as melodias da tibia ou da siringe (a famosa flauta de tubos desiguais que uma tradição mítica faz remontar ao deus Pã) com o canto que jorra dos lábios dos pastores, todos eles exímios poetas virtuoses; uma moral direta, sem grandes volteios metafísicos, conjugada com maneiras igualmente simples; dieta frugal (diríamos hoje uma dieta “mediterrânica”: leite, queijo branco, vinho, frutas, azeite, carnes bovina e ovina) e vestimentas sem adereços; enfim, um modo de vida pretensamente descomplicado no contraste com as inquietações e a existência nas grandes cidades e nas cortes imperiais – consideradas corrompidas , por comparação. Mais importante, a Arcádia é uma terra distante, longínqua, desconhecida e misteriosa para a maioria de seus ouvintes romanos contemporâneos: é para lá que Virgílio envia seu amigo Gallus, poeta e amante infeliz, para chorar e receber o consolo das florestas e das grutas, das divindades das artes e da natureza 16 . Contudo, seja à sombra das árvores, ao frescor do vento, ou sob o sol das latitudes meridionais da velha Europa, esses pastores têm consciência do inverno: o bucolismo lida sutilmente com a noção de perda e uma angústia

13 “Il revient à Sannazar ( Arcadia , 1502) d’en avoir fait la patrie du chant pastoral par antonomase et translation dans le décor sicilien, à Lope de Vega dont l’ Arcadie connaît plus de vingt éditions entre 1598 et 1675 et à Philip Sidney qui compose son Arcadie entre 1577 et 1585 d’en avoir assuré la fortune européenne.” (Bernard BEUGNOT , Le discours de la retraite au XVII e siècle , p. 97). 14 Embora também agricultores, os pastores das éclogas nunca são retratados ocupando-se das suas lavouras (uvas e oliveiras, sobretudo). Estas parecem tão beatíficas que não precisam de maiores cuidados, numa espécie de fartura sem fim que tem mais a ver com o puro extrativismo paradisíaco que com a agricultura propriamente dita. 15 Philippe BORGEAUD , The Cult of Pan in Ancient Greece , University of Chicago Press, 1988. 16 Toda esta descrição é inspirada diretamente em Gilbert HIGHET , The Classical Tradition. Greek and Roman Influences on Western Literature , OUP, 1985 10 , pp. 162-163. 55 melancólica permeia, de certa forma, a vida fácil do verão e da primavera – as estações por excelência do universo pastoral 17 .

Pastores que falam um grego helenístico altamente complexo e rico em nuances musicais e retóricas (no caso de Teócrito); pastores latinos que se expressam em hexâmetros dactílicos (no caso de Virgílio)... Logo se vê que não se trata de uma representação muito realista da vida no campo. Mas isso, longe de ser um problema, foi incorporado à sua estrutura modelar e retomado na essência – por ironia, por ingenuidade ou por opções estéticas ou políticas – pelos continuadores pastorais. Efetivamente, o mesmo disparate se dará no bucolismo pré-moderno, pois os pastores das Arcádias do Renascimento não falam o patois rústico de suas respectivas línguas regionais ou locais 18 . Eles se comunicam no idioma elegante das línguas cortesãs de sua época 19 .

Virgílio teve continuadores no mundo latino romano 20 . “Continuadores” porque, formalmente, o gênero mudou muito pouco. As Bucólicas de Calpúrnio Sículo, por

17 “Assim, no bucolismo virgiliano, o contraste se dá entre os prazeres da vida rural e a ameaça da perda e da evicção. Esse contraste, por sua vez, vai desenvolver-se como um outro contraste, já presente na literatura anterior, em tempo de guerra ou convulsão cívica, em que a paz da vida campestre se contrapõe às perturbações ocasionadas pelas guerras, a guerra civil e o caos político da cidade. Tudo depende do modo como esse contraste é estabelecido. Pode ser um fato presente, como nas Bucólicas I e IX [de Virgílio]. Pode ser uma retrospecção vivida, como nas tristes recordações de Melibeu. Ou pode dar margem ao esboço de um sistema de ideias mais amplo: uma visão do passado ou do futuro.” (Raymond WILLIAMS , O Campo e a Cidade (1973), Cia das Letras, 2011, p. 35). 18 “Des bergers enrubannés, à l’expression verbale recherchée ? Des troupeaux dont la garde ne requiert aucun effort ? Des prairies, des sous-bois et des hameaux toujours épargnés par la tempête ? À qui serait tenté de lui reprocher l’invraisemblance de son roman, Honoré d’Urfé rétorque : ‘Mais ce qui m’a fortifié davantage en l’opinion que j’ai, que mes bergers et bergères pouvaient parler de cette façon sans sortir de la bienséance des bergers, ça a été que j’ai vu ceux qui en représentent sur les théâtres, ne leur faire pas porter des habits de bureau, des accoutrements mal faits, comme les gens de village les portent ordinairement. Au contraire, s’ils leur donnent une houlette dans la main, elle est peinte et dorée, leurs jupes sont de taffetas, leur panetière bien troussée, et quelquefois faite de toile d’or ou d’argent’.” [« L’Auteur à la bergère Astrée », L’Astrée , éd. Vaganay, Lyon, P. Masson, 1925-1928, pp. 7-8]” (Jean-Pierre VAN ELSLANDE , “Roman pastoral et crise des valeurs dans la France du premier XVIIe siècle” in Dix-septième siècle 2002/2 n° 215, p. 1). 19 “O drama pastoril, a partir da Aminta de Tasso (1572), é também a criação de uma corte principesca, na qual o pastor nada mais é que uma máscara idealizada, um disfarce palaciano: uma figura tradicionalmente associada à inocência, através da qual, paradoxalmente, elabora-se uma intriga. Esse jogo delicado, que permaneceu como forma de entretenimento aristocrático até a época de Maria Antonieta e deixou, como legado físico, milhares de figuras de porcelana pintada, evidentemente tem mais a ver com interesses da corte do que com a vida rural, em qualquer de seus aspectos possíveis.” (WILLIAMS , Op. Cit. , p. 41). 20 Seus principais representantes são Calpúrnio Sículo e o último dos bucólicos pagãos, Marcus Nemesianus: “their poems were read, admired and imitated” (Cf. MAYER , “Latin 56 exemplo, longe de revolucionar a logística e a temática virgilianas, situam-se no mesmo décor das Bucólicas – e seus pastores, todos com nomes helenizados (Melibeu, Córidon, Amintas), são reconhecidos como derivações diretas dos pastores de Virgílio (ainda que não sejam textualmente os mesmos personagens): a originalidade de Calpúrnio está no detalhe, não na sua concepção geral do bucolismo 21 . A pastoral, portanto, se torna modelar já no estágio embrionário desses textos latinos, e, muito embora alguns elementos secundários venham se somar ao conjunto, a tradição pastoral no Ocidente europeu permanece essencialmente, daí por diante, virgiliana.

Na Idade Média ocidental, apesar de Virgílio ser altamente considerado como poeta, o gênero pastoral caiu no esquecimento, só voltando à evidência por volta do século XIV 22 . Mas a écloga continuou sendo cultivada pelos escritores bizantinos – ainda que, neste caso, por conta do seu interesse por Teócrito, e não por Virgílio 23 .

Pastoral after Virgil”, p. 464). Para Calpúrnio, usei a tradução portuguesa de João BEATO (ed.), Calpúrnio Sículo, Bucólicas , Lisboa, Verbo, 1994; e CALPURNIUS SICULUS [Jacqueline AMAT (ed.)], Bucoliques & PSEUDO -CALPURNIUS , Éloge de Pison , Les Belles Lettres, 2003 [CUF]. 21 Entre esses detalhes, está a reflexão sobre a preponderância imperial de Roma no Mediterrâneo, bem como adequações estilísticas para satisfazer o gosto do tempo: uma abordagem descritiva mais minuciosa e com mais colorido que a de Virgílio; a presença do locus inserido com fins de contraste com o locus amoenus ; o gosto por máximas e expressões sintéticas; e assim por diante. Cf. João BEATO , “Introdução” in Calpúrnio Sículo, Bucólicas (João BEATO , ed.), Lisboa, Verbo, 1994, p. 53. 22 Isso, evidentemente, é um problema crítico importante, mas que não poderia desenvolver aqui. “(…) Calpurnius and Nemesianus reappeared in Italy at a time propitious to pastoral: a manuscript at Verona came to the notice of Petrarch about 1360, after the composition of his own Bucolicum Carmen but not too late to influence Boccaccio’s. It is important to bear in mind that for many later European pastoral poets Virgil was only one, albeit the most admired, available model. The lesser lights had something to contribute as well. Fortunately, their talents are nowadays receiving a fairer assessment.” (MAYER , Op. cit. , p. 466). Para a influência de Virgílio na Idade Média, ver Jan ZIOLKOWSKI & Michael C. J. PUTNAM , The Virgilian Tradition. The First Fifteen Hundred Years , Yale University Press, 2008; no Renascimento, ver David Scott WILSON -OKAMURA , Virgil in the Renaissance , CUP, 2010. 23 “Yet Byzantine literature from early on reveals strong interest in Theocritean poetry as well as familiarity with bucolic/pastoral themes and imagery. Literary allusions, particularly to Theocritean poetry, appear throughout the Byzantine period. For example, Nonnus’ 5th-cent. Dionysiaca includes a ‘pastoral’ lament modeled largely on Daphnis’ song in Theocritus.” Id . 1 (Nonnus 15.370–422). An epigram by the 5th-cent. poet Cyrus ( AP 9.136) includes the familiar bucolic theme of a shepherd playing music for solace. Epigrams by the 6th-cent. writer Agathias echo phrases from Theocritean bucolic poems. The 10th-cent. writer Ioannes Geometres’ “second encomium of the apple” offers a later, extended example of easy familiarity with Theocritus’ poetry. In Byzantine literature, allusions to such authors as Moschus and Bion as well as are more scarce than to Theocritus, yet they too figure in the construction of continued Byzantine interest in bucolic/pastoral themes and imagery. A 57

• Romances, novelas e narrativas da Roma imperial

Às Bucólicas , a posteridade pastoral renascentista assimilou também, por razões de sincronia e de parataxe cultural, um repositório de enredos retirados de certas narrativas da época imperial romana (romances ou novelas, dependendo de como encaramos os termos) 24 . Não existe aí, a princípio, relação de causa e efeito: simplesmente, aconteceu dessas narrativas serem redescobertas no momento de gestação da pastoral pré-moderna. As poucas obras que chegaram às mãos dos eruditos renascentistas (completas, na verdade, apenas cinco) começaram a ser editadas por volta do primeiro quarto do século XVI. Peças relativamente inéditas (oriundas do final da Antiguidade, não entraram nos cânones dos principais gramáticos e retores romanos, logo, não foram estudadas na Idade Média), exerceram uma influência enorme na Europa literária a partir do final da década de 1540, quando começaram a ser traduzidas para as línguas modernas: Clitofonte e Leucipeia , de Aquiles Tatius (~II d.C.) 25 ; a Etiópica , ou Theagenes e Charicleia , de

5th-cent. translation of Theocritus into iambic trimeters (an easier meter for Byzantines than hexameters) may have helped keep his poetry alive among the Byzantines. Further, the texts produced by Planudes’ pupil Manuel Moschopoulus (late thirteenth/fourteenth century) include an influential collection of the first eight Theocritean Idylls.” (Joan BURTON , “The pastoral in Byzantium” in Marco FANTUZZI & Theodore PAPANGHELIS (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral , p. 550-551). 24 Para uma abordagem de conjunto das novelas helenísticas no contexto da literatura imperial romana, consultei Albrecht DIHLE, Greek and Latin Literature of the Roman Empire, from Augustus to Justinian , Routledge, 1994; Albin LESKY , História da Literatura Grega , Calouste Gulbenkian, 1995; Suzanne SAÏD , Monique TRÉDÉ -BOULMER & Alain LE BOULLUEC , Histoire de la littérature grecque, PUF, 1997. Para uma visão mais detalhada, Tomas HÄGG , The Novel in Antiquity , University of California Press, 1991; Niklas HOLZBERG , The Ancient Novel (or. alemão, 1986), Routledge, 2005; Tim WHITMARSH (ed.), The Cambridge Companion to the Greek and Roman Novel , CUP, 2008; Shadi BARTSCH , Decoding the Ancient Novel: The Reader and the Role of Description in Heliodorus and , Princeton University Press, 1989; Massimo FUSILLO , Naissance du roman (or. italiano Il Romanzo Greco, polifonia ed Eros, 1989), Seuil, 1991; Consuelo Ruiz MONTERO , La novela griega , Editorial Síntesis, 2006. Para a recepção e sobrevivência desses textos no cenário europeu, ver Marilia P. Futre PINHEIRO & Stephen J. HARRISON (eds.), Fictional Traces: Receptions of the Ancient Novel . 2 Vols. [Ancient Narrative Supplementum, 14-1 & 14-2], Groningen, Barkhuis Publishing University Library, 2011. Quanto aos textos em si, uma edição de referência é a de Pierre GRIMAL (ed.), Romans grecs et latins , Paris, Gallimard [Bibliothèque de la Pléiade], 1986, mas usei as edições críticas da coleção CUF de Les Belles Lettres. 25 Achilles TATIUS (S. GASELEE , ed.), The Adventures of Leucippe and Clitophon , Loeb Classical Library, 1917; Achille TATIUS , Les Aventures de Leucippé et de Clitophon in Pierre GRIMAL (ed.), Romans grecs et latins , Paris, Gallimard, 1986; Achille TATIUS (Jean-Philippe GARNAU , ed.), Le Roman de Leucippé et Clitophon , Les Belles Lettres [CUF], 1991. 58

Heliodoro de Emesa (~III d.C.) 26 ; e Dafnis e Cloé , de Longo (~II d.C. – III d.C.) 27 . Delas, retiraram-se enredos, temas e personagens de inúmeras peças ao longo de todo o século XVII – das tragicomédias do Barroco às tragédias de Racine, passando por Shakespeare – e, muito embora não tenham influenciado a primeira obra pastoral propriamente moderna, a Arcadia de Sannazzaro, pois esta é anterior à sua redescoberta, foram fundamentais na produção subtextual da geração seguinte de escritores europeus (Belleforest, d’Urfé, Cervantes e daí por diante), permitindo uma mudança profunda no paradigma narrativo da época 28 .

Embora represente um capítulo maior na história literária da Europa, não tenho como aprofundar essa influência aqui – isto seria, certamente, um outro trabalho 29 .

26 HÉLIODORE , Les Ethiopiques ou Histoire de Théagène et Chariclée in Pierre GRIMAL (ed.), Romans grecs et latins , Paris, Gallimard, 1986; HÉLIODORE (R. M. RATTENBURY & T. W. LUMB , ed.; J. MAILLON , trad.), Les Éthiopiques. Théagène et Chariclée , 3 Vols., Les Belles Lettres [CUF], 1935. Primeira edição moderna em Basiléia, 1534, tradução francesa feita por Jacques Amyot (1547), tradução inglesa por Underdowne (1569). É o primeiro texto literário europeu totalmente em prosa que se conhece. A tradução de Underdowne, revista, encontra-se em: http://www.elfinspell.com/HeliodorusTitle.html 27 LONGO , Dafne e Cloé, ou As pastorais , São Paulo, Princípio, 1996; LONGUS , Daphnis et Chloé in Pierre GRIMAL (ed.), Romans grecs et latins , Paris, Gallimard, 1986; LONGUS (J.-R. VIEILLEFOND , ed.) Pastorales. Daphnis et Chloé , Les Belles Lettres [CUF], 1987. O enredo de Longo mostra os amores de pastores e camponeses na ilha de Lesbos, e a narrativa foi traduzida para o francês por Amyot, em 1559. A tradução brasileira foi feita a partir da tradução de Amyot revista para o francês moderno. 28 Para uma síntese desse processo, em especial no contexto francês, usei Laurence PLAZENET , “Jacques Amyot and the Greek Novel: the Invention of the French Novel” in Gerald SANDY (ed.), The Classical Heritage in France , pp. 237-280. 29 A redescoberta de obras gregas, cópias manuscritas esquecidas nos porões de mosteiros, em grandes ou modestas bibliotecas católicas e protestantes, tornou-se uma constante por conta de um interesse pela cultura grega que se sofistica e se dinamiza com as gerações de humanistas e seus debates internos – e não apenas porque essas obras foram, realmente, fisicamente descobertas pela primeira vez. A Historia Æthiopica de Heliodoro já “existia” em 1453, quando o humanista Francesco Griffolini foi à Biblioteca do Vaticano e pegou emprestado quatro manuscritos gregos – além do texto de Heliodoro, obras de Tucídides, Demóstenes e Luciano. Talvez por ter imaginado inicialmente se tratar, em vez de um gênero ficcional, de uma História como a de Tucídides ou Heródoto (o bibliotecário que assinou a ficha de empréstimo sintomaticamente intitulou o livro “História de assuntos do Egito, de Eliodoro”), Griffolini parece não ter dado muita importância ao texto. Ao menos, não se sentiu inclinado a traduzi-lo, no todo ou na parte, ainda que fosse um material totalmente inédito para seu público contemporâneo. Foi Angelo Poliziano o primeiro a traduzir algumas seções do texto para o latim. Embora tenha sido o leitor imediatamente seguinte a Griffolini nos registros da Biblioteca do Vaticano, seu empréstimo (feito em 1487) dista de pelo menos 35 anos desse empréstimo anterior. Ainda assim, foi preciso esperar mais duas gerações para que Vincentius Obsopoeus (editor em Basileia) fizesse uma edição moderna do texto grego (que só saiu em 1534). Trata-se de um exemplo banal, mas ele mostra que existe uma história da valorização desses textos, bem como uma história de suas publicações, que percorre tanto caminhos 59

Importa dizer, no que tange à difusão desses textos no Renascimento, que a crítica reconhece seu papel na passagem do modelo novelístico (quer dizer, o padrão literário-narrativo) então corrente, de tipo cavaleiresco 30 , para a novela renascentista propriamente moderna. Na França, a Etiópica de Heliodoro, na tradução de Amyot (1548), teve ares de revolução, caindo como um meteorito em seu cenário intelectual e literário. A mudança promovida por esses textos é evidente: o gosto dos novelistas franceses foi tão influenciado pela tradução de Amyot que, mesmo quando o tema de uma obra (pós-1548) estava ainda textualmente ligado ao elemento cavaleiresco tradicional (com seus personagens devidamente tipificados), sua dinâmica narrativa já modulara para o regime pastoral 31 . Além de Heliodoro, a importância de Dafnis e Cloé neste circuito foi considerável: a obra de Longo serviu de modelo direto para La Sireine de Honoré d’Urfé, para a Diana de Jorge de estéticos quanto ideológicos, e que precisa ser levada em consideração quando abordamos o impacto das descobertas textuais nessa época. O detalhe da incorporação dessas novelas ao regime pastoral exigiria, portanto, um trabalho histórico muito complexo, que demonstrasse as razões para que fossem assimiladas ao ambiente bucólico de Virgílio – mas, aqui, faço apenas algumas considerações gerais. Importa dizer que tal assimilação aconteceu de maneira reflexiva e dinâmica, influenciada também pelo modo como os humanistas produziram suas próprias obras: o que valorizavam em suas descobertas tinha a ver com suas posições pessoais ou sectárias, e a visualização do passado clássico respeitava, claro, idiossincrasias particulares. Cf. Michael REEVE , “The re-emergence of ancient novels in western Europe, 1300-1810” in Tim WHITMARSH (ed.), Cambridge Companion to the Greek and Roman Novel , p. 282. O livro de Stephen Greenblatt sobre o humanista Poggio Bracciolini e sua redescoberta do De Rerum Natura , de Lucrécio ( The Swerve: How the World Became Modern , 2011), é um exemplo de como poderia ser complexa a atividade de redescoberta ou a releitura editorial do texto antigo pelo humanismo do Renascimento. Para a dinâmica de manuscritos, ver também Brian RICHARDSON , Manuscript Culture in Renaissance Italy , CUP, 2009 e Anthony GRAFTON , Forgers and Critics, Creativity and Duplicity in Western Scholarship , Collins & Brown, 1990. Para um contexto mais geral do humanismo diante dos originais gregos, Jean-Christophe SALADIN , La Bataille du Grec à la Renaissance , Les Belles Lettres, 2000. 30 Remanescente da Idade Média e disseminada através de um paradigma narrativo espanhol, cujo modelo emblemático é o Amadís de Gaula , 1508, de Garcí de Montalvo, composto a partir de um original mais antigo. Usei Garci Rodríguez de MONTALVO , Amadis de Gaula (Juan Manuel Cacho BLECUA , ed.), 2 Vols., Madrid, Catedra, 2001. 31 “From 1540 to 1548, the various versions of the chivalric Amadis series were best-sellers in France; widely acclaimed and printed as beautiful in-folios, they were only occasionally published with poems praising them and, after the publication of the first volume, never with explanatory prefaces or defences. But after Jacques Amyot published a translation of the in 1548, the translator of Amadis , Nicolas Herberay des Essarts, stopped promoting the diffusion of the Spanish novel; in addition, he invariably provided new publications such as Primaleon (1549) or Dom Flores (1552) with apologetic prefaces in which he attempted to argue that, despite their being novels of chivalry, they employed the same devices as Heliodorus’s novel. In 1548, Michel Servin prefaced the eighth book of Amadis with a ‘Discours sur les Livres d’Amadis’, which already took into account the criticisms formulated in Amyot’s preface to his translation of the Aethiopica.” (PLAZENET , “Jacques Amyot and the Greek Novel”, p. 238). 60

Montemayor, para a Aminta de Tasso, bem como ao Gentle Shepherd de Allan Ramsay.

Temos uma situação tal que, em meados de 1560, na França, a moda do romance- novela de cavalaria de origem espanhol havia passado 32 – não exatamente do ponto de vista do público consumidor, claro, uma vez que Amadis foi um dos maiores sucessos literários do Renascimento, mas, sim, do ponto de vista dos autores preocupados com a evolução formal e estética de seus estilos literários 33 . Aliada a esses novos temas e personagens, a pastoral – que se fundiu a eles de um modo tão natural que praticamente não percebemos tratar-se de elementos historicamente heterogêneos – tornou-se signo de modernidade narrativa. Se não é fácil entrar no detalhe das negociações e sinergias que possibilitaram essa aglutinação, não é difícil entender-lhe as razões gerais. Nos romances/novelas da Roma imperial, encontramos uma sistemática amorosa que nada tem a ver com a do agonizante – mas, à época, via Amadis por exemplo, ainda vivo – romance medieval. Na verdade, já na própria época helenística de redação desse material, essa sistemática amorosa aparece como o valor idiossincrático da literatura imperial frente à produção literária greco-romana anterior. O funcionamento essencialmente erótico dos pastores da Arcádia (muitas vezes homoerótico), aliado aos enredos e personagens romanescos dessas novelas imperiais, significou, para os escritores das gerações posteriores a 1540, a descoberta de outros modelos de criação narrativa, que serviram de base à renovação da prosa literária do Renascimento 34 .

32 Cf. Michel SIMONIN “La disgrace d’Amadis” in L’encre & la lumière (1976-2000) , Paris, Droz, 2004, pp. 189-234. “Ultimately, the success of the novel of chivalry faded among the social elites during the 1560s. Typically, Cervantes, while meditating in Don Quixote (1605) on the future of fiction as embodied in the chivalric novel, saw a way out of this literary dead end through imitating Heliodorus, a realisation he put into practice in his last work, Los trabajos de Persiles a Sigismunda (published posthumously in 1617).” (PLAZENET , “Jacques Amyot and the Greek Novel”, p. 238). 33 “The gradual ‘disgrâce d’Amadis’ has been well studied by Michel Simonin, but the very vehemence of the attacks against it should alert us to its obstinate popularity and enduring appeal: the eight books translated by Des Essarts between 1540 and 1548 initiated a series of twenty-four books in their entirety; and although the series had been published by 1613, editions of individual books were frequently re-printed throughout the period.” (John O’B RIEN , “Sixteenth-century prose narrative” in William BURGWINKLE , Nicholas HAMMOND & Emma WILSON (eds.), The Cambridge History of French Literature , p. 220). 34 “La principale nouveauté du roman grec est d’avoir donné à l’amour une position absolument centrale à l’intérieur de la structure hétérogène que nous avons examinée jusqu’au présent; il n’est plus représenté à travers des figures mythologiques, mais directement, dans sa réalité quotidienne (quelque peu théâtralisé, il est vrai), et devient pour la première fois l’expérience déterminante de l’expérience humaine, et donc le thème privilégié sur lequel est construite toute l’œuvre narrative. C’est une innovation même par rapport à Ménandre : ce dernier accordait une égale importance à des thèmes voisins, comme celui des rapports 61

• Releituras da Arcádia

Uma longa tradição liga o material clássico greco-romano, sobretudo a écloga latina virgiliana, à literatura pastoral posterior 35 . Para o bucolismo renascentista, considera-se, pela força do sucesso, a Arcadia (primeira edição incompleta em 1480 e edição completa em 1505) de Jacopo Sannazaro a obra seminal, apresentando de modo acabado e em vernáculo uma releitura estética, coerente e replicável, das Bucólicas de Virgílio ao público europeu da época. Entretanto, o universo pastoral clássico já gozava, desde meados do século XIV, de um lento e progressivo interesse da parte de alguns autores e eruditos italianos: Dante (2 éclogas), Petrarca (12 éclogas do Bucolicum carmen , 1360), Boccaccio ( Comedia delle ninfe fiorentine , ou Ninfale d’Ameto , escrita por volta de 1341, é a primeira obra em vernáculo a sintetizar o ideal pastoral 36 ), assim como, na segunda metade do século XV, Giovanni Pontano (3 éclogas e idílios), Matteo Boiardo, Angelo Poliziano e Battista Mantovano, todos escreveram obras pastorais inspiradas em modelos clássicos. Mas a influência da Arcádia de Sannazaro (1458-1530) é tão importante aqui quanto a do próprio Virgílio 37 .

familiaux, qui dans le roman, sont au contraire totalement subordonnés à la relation de couple. Les romanciers grecs se font ainsi les héritiers de toute la tradition érotique, qu’ils transmettent à leurs successeurs après l’avoir quelque peu infléchie (par la valeur accordée au couple et au mariage, en particulier) : dans le roman moderne, l’éros occupe une place presque aussi centrale, mais la conception classique y interfères sans cesses avec celle qui s’exprime dans le mythe de Tristan : lié comme il l’est à l’anéantissement et à la mort, l’amour-passion a des connotations plus mystiques et morbides.” [Em nota, o autor acrescenta:] “Sur l’amour passion, voir Rougemont 1939 : mais lorsqu’il ne voit dans L’Astrée , « machine romanesque » orientée vers un dénouement heureux, qu’une forme dégradée du mythe de Tristan, il ne perçoit pas l’influence exercée par le roman grec, qu’il cite pourtant ailleurs ; la tradition grecque, où l’amour n’apparaît pas exclusivement sous la forme de l’amour-maladie, a influencé de façon intermittente, mais décisive, les conceptions occidentales.” (Massimo FUSILLO , Naissance du roman , p. 193-194 e nota 3, p. 250). 35 Para o desenvolvimento da pastoral pós-virgiliana, Roland MAYER , “Latin Pastoral after Virgil” in Marco FANTUZZI & Theodore PAPANGHELIS (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral , pp. 451-466. 36 HIGHET , The Classical Tradition , p. 167. 37 Iacopo SANNAZARO (Francesco ERSPAMER , ed.), Arcadia-L’Arcadie , Les Belles Lettres, 2004. Utilizei, também, para sentir a adaptação vernácula da nomenclatura pastoral no moyen français , L’Arcadie de messire Jacques Sannazar , mise d’italien en françoys par Jehan Martin, Paris, 1544. 62

Ao atualizar o cenário pastoral latino para o contexto do Renascimento italiano, a Arcádia de Sannazaro criou um painel literário bem particular 38 . Partindo do substrato virgiliano, reproduzia determinadas situações-tipo do bucolismo clássico (pastores, campo, música) tão idealizadas quanto às dos modelos originais. Seus personagens falavam um dialeto italiano, mas não o dos habitantes da campagna , e sim o da corte da sua Nápoles natal, ou, mais especificamente, o da Accademia Pontaniana , da qual Sannazaro fazia parte 39 . No entanto, os enredos da sua Arcádia eram ainda mais árcades que os de Virgílio 40 : é Sannazaro quem define a Arcádia (e só ela) como pátria definitiva dos pastores literários (Virgílio se dividia entre a Sicília e a Arcádia). Do ponto de vista formal, foi inovador: diferentemente de Poliziano, que, como Virgílio, escreveu suas éclogas em hexâmetros dactílicos latinos (mostrando seu virtuosismo no domínio da língua e do estilo antigos), Sannazaro transformou a écloga puramente poética de Virgílio em uma estrutura híbrida e idiossincrática, escrita em italiano e utilizando formas do vernáculo ( terza

38 Evidentemente, não poderia entrar no detalhe das apropriações e simbioses pastorais feitas por Sannazaro, o aspecto mitologizante de seus resultados, as delicadas superposições de vozes narrativas e as negociações (auto)biográficas presentes no texto. Valorizo aqui apenas alguns aspectos importantes para a discussão posterior. Para o contexto da pastoral pós- Sannazaro, ver Françoise LAVOCAT , Arcadies malheureuses. Aux origines du roman moderne , Honoré Champion, 1998; e, sobretudo, William J. KENNEDY , Jacopo Sannazaro and the Uses of Pastoral , University Press of New England, 1984. 39 “Arcadia is also a metaphor for the community of poets and writers belonging to the Accademia Pontaniana in Naples, most of whom were attached to the Aragonese court. Many of the shepherds are identified as court personalities in the course of the work: Sincero, for example, who signs a mournful Petrarchan sestina about night bringing him torment, not peace, is Sannazaro himself. Uranio (Pontano) is elderly and wise and has a dog which guards the flock from wolves, just as the faithful Pontano does the King and his kingdom. Ergasto’s lament for Arcadia’s leader Androgeo, ‘Chi vedra mai nel mondo / Pastor tanto giocondo?’ (Will we ever see such a pleasant shepherd again in the world?) is a tribute to Panormita, founder of the Academy. Meliseo’s final lament for his dead and dearly beloved Filli is a transposition into the vernacular of a Latin eclogue by Pontano in honour of his dead wife.” (Letizia PANIZZA , “The Quattrocento”, p. 161). 40 “Its authorized redaction of 1505 consists of a prologue, an epilogue, and twelve prose selections intercalated with an equal number of poems, written in various meters. The main story is related in the first person by the author’s textual persona, Sincero. The subject of the connecting frame tale is the love story of the protagonist narrator who travels to Arcadia, the mythical scene of almost all classical bucolic poetry, to escape from the memories of an unreciprocated love. Sincero participates in the daily life of the Arcadian shepherds; he shares in their games, their singing and dancing contests, their religious rituals and funeral ceremonies, but he is troubled by a premonition of impending calamities. With the help of a friendly nymph who escorts him through caverns under the sea, he manages to return to Naples only to find his beloved dead.” (Albert MANCINI , “Forms of prose fiction in early Italian literature” in Peter BONDANELLA & Andrea CICCARELLI (eds.) The Cambridge Companion to the Italian Novel , CUP, 2003, p. 24). 63 rima , sestina e frottola ) com interpolações em prosa 41 . Deu a essa estrutura uma tonalidade especial, enchendo-a de uma melancolia lírica, em contraste com a poesia épica que é sua contemporânea 42 .

O gap temporal entre o desaparecimento da tradição pastoral clássica na Idade Média (o tema pastoril é outra coisa, este permaneceu vivo entre os autores do período 43 ) e seu ressurgimento em Sannazaro teve também um efeito suplementar – que se soma à circunscrição exclusivamente literária da retomada do tema pastoral por Poliziano, como veremos mais adiante. Virgílio escrevia sobre uma época de ouro em terras distantes (Sicília ou Arcádia), mas relativamente contemporâneas aos seus leitores (quer dizer, nele a Arcádia se situa essencialmente na ordem do espaço); Sannazaro, ao reproduzir uma época de ouro a partir de Virgílio , ainda que, em muitos aspectos, descrevesse a sua Nápoles contemporânea, multiplicava a sensação de distância de tal maneira que o fundamento ontológico da nova Arcádia se montava sobre uma noção de perda irrecuperável, tanto no espaço quanto no tempo , do substrato literário árcade que elegeu como seu modelo. Ou seja, uma Arcádia duplicadamente árcade. Daí esse tom elaboradamente triste, o do “reino irremediavelmente perdido” 44 , e tão característico da pastoral moderna: foi Sannazaro quem o inventou, ou, pelo menos, quem o valorizou a ponto de se constituir, ele mesmo, em um objetivo poético 45 . Outra contribuição original é a

41 Letizia PANIZZA “The Quattrocento” in Peter BRAND & Lino PERTILE , eds., Cambridge History of Italian Literature , CUP, 2007, pp. 161 e ss. 42 Como o Orlando Furioso , de Ariosto, ou as duas Gerusalleme , de Tasso. 43 A pastourelle (ou pastorela, que descreve o romance de um cavaleiro com uma pastora), por exemplo, era uma forma poética occitana cultivada já pelos troubadours . Aparentemente, foi o poeta gascão Marcabru (fl. 1130-1150) seu criador, com as peças “L’autr’ ier jost’ una sebissa” e “L’autr’ ier, a l’issida d’abriu”. Mas a pastourelle , obviamente, não é organizada segundo o substrato pastoral antigo: paisagem árcade subliminar ou explícita, quase divinização da natureza e um casting específico de pastores que remete sempre a um remoto passado greco- romano. Logo, não poderia servir de influência decisiva na formação do regime pastoral pré- moderno. Assim também o jeu de Robin e Marion, de Adam de la Halle, e diversos fabliaux narrando aventuras camponesas, entre outros exemplos, têm muitas vezes temas campestres, mas não pastorais no sentido usado aqui. 44 “A Arcádia de Sannazaro é, como a de Virgílio, um reino utópico. Mas, além disso, um reino irrecuperavelmente perdido, visto através de um véu de melancolia reminiscente.” (PANOFSKY , “Et in Arcadia Ego...”, p. 387). 45 “Refletindo o sentimento de uma época que, pela primeira vez, compreendera que Pã morrera, Sannazaro chafurda nessas cerimônias e hinos fúnebres, nesses anelantes cânticos de amor e lembranças melancólicas que só apareciam ocasionalmente em Virgílio; e sua grande predileção por rimas triplas, conhecidas tecnicamente como drucciolo (...), dá a seus versos um lamento doce, melancólico. Foi por seu intermédio que este sentimento elegíaco – presente, mas, por assim dizer, periférico às Éclogas de Virgílio – tornou-se a qualidade essencial da 64 dimensão onírica, inexistente em Virgílio, e que, em diversas situações (como na Prosa XII, 4-10), reforça o estado diáfano e algo fantasmagórico da sua Arcádia. O sucesso foi imenso: 66 edições somente na Itália durante o século XVI (mais 17 até a primeira metade do século seguinte), dezenas de traduções e imitações.

A inserção de certas situações subliminares (a camuflagem dos membros da Accademia como pastores, por exemplo) dá ao texto uma tensão hermenêutica toda especial: o projeto de uma sociedade modelar, ideal, temporalmente distendida e, ao cabo, irrealizável foi construído ironicamente com personagens reais, concretos e reconhecíveis da Nápoles sua contemporânea 46 . Portanto, o perfil aristocrático dos pastores literários segue, de certo modo, a tradição virgiliana – o que mais uma vez demonstra a força do modelo latino 47 .

Por sua vez, o prólogo da Arcádia é um verdadeiro programa intelectual. A partir dele, Sannazaro obtém um efeito de contraste ainda mais denso ao trabalhar seu bucolismo dentro de uma oposição entre natural e artificial – no que se diferencia sensivelmente de Virgílio, que faz prevalecer, antes, a oposição entre a cidade e o campo :

Sogliono il piú de volte gli alti e spaziosi alberi negli orridi monti de la natura produtti, piú che le coltivate piante da dotte mani expurgate negli adorni giardini, a’ riguardanti aggradare; e molto piú per i soli boschi i selvatichi ucelli, sovra i verdi rami cantando, a chi gli ascolta piacere, che per le piene cittadi, dentro le vezzose e ornate gabbie, non piacciono gli ammaestrati. (…) E chi dubita che piú non sia a le umane menti aggradevole una esfera arcádica.” (Erwin PANOFSKY , “ Et in Arcadia Ego : Poussin e a tradição elegíaca” (1936) in Significado nas Artes Visuais , Perspectiva, 1976, pp. 377-409). 46 “All of this of course reflects the classical pastoral’s constant reference back to the real world, while still being a world of the imagination. In some senses Arcadia is a model society, lay and male, in which a common love of letters creates bonds of friendship surpassing social class, titles and, above all, wealth, inherited or earned. The shepherds comfort one another, collaborate in their literary activities and engage in contests in which all prove excellent. In Arcadia there are no hatreds, treacheries or envious rivalries.” (Letizia PANIZZA , “The Quattrocento”, p. 161). 47 A camuflagem pastoral de temas cortesãos, esse jogo de metamorfoses e ocultamentos, criou mesmo uma ilusão de ótica, fazendo às vezes esquecer o caráter idealizado das descrições, e varrendo de certas formulações pastorais o real funcionamento da vida no campo: “[Alexander] Pope confundiu o jogo com a realidade em seu ensaio sobre o bucólico [Discourse on Pastoral Poetry , 1717], no qual recomenda descrições ‘ não (...) dos pastores tais como são agora, mas como se pode conceber que tenham sido, no tempo em que a profissão atraía os melhores homens ’. De tanto os cortesãos bancarem pastores, acabou-se por concluir que os pastores originariamente eram aristocratas.” (Raymond WILLIAMS , O Campo e a Cidade (1973), Cia das Letras, 2011, p. 41). 65

fontana che naturalmente esca da le vive pietre, attorniata di verdi erbette, che tutte le altre ad arte fatte di bianchissimi marmi, risplendenti per molto oro? 48

Essa dialética natural -artificial é muito mais profunda que a oposição campo - cidade de Virgílio, porque, no final das contas, desenraiza a noção de pastoral da noção de campestre , permitindo a transferência da pastoral para situações a rigor não-bucólicas: em última análise, mesmo na mais sofisticada das redes de relações urbanas, seremos capazes de reificar um universo pastoral, pois o natural pode sempre ser considerado um way of life fechado em si mesmo e ativo em qualquer esquema sócio-histórico – em vez de somente uma situação de ordem topográfica. Efetivamente, esta nova oposição terá longa vida na pastoral posterior: o próprio Sannazaro fez a adaptação do bucolismo pastoral para um milieu não-campestre em outra obra, substituindo os pastores pelos pescadores da região de Nápoles 49 . Nós também encontraremos a oposição natural-artificial , por exemplo, na apresentação teórica da Poesia Ingênua e Sentimental , de Schilller – marcando, assim, um momento importante da ressignificação dessa temática na era moderna, permitindo uma constelação de novas e complexas relações pastorais no mundo contemporâneo 50 . O décor pastoral ultrapassou as fronteiras italianas, produzindo

48 “Frequentemente, as grandes e copiosas árvores que a natureza produz nas rudes montanhas dão mais prazer aos que as contemplam do que as plantas cultivadas , talhadas pelas mãos expertas nos jardins ornamentados. E, nos bosques solitários, os pássaros selvagens que cantam sobre os verdes ramos dão mais prazer a quem os escuta que aqueles, nos formigueiros das cidades, presos em gaiolas douradas. (...) E quem duvida que, para o espírito humano, uma fonte em meio às plantas verdes, correndo naturalmente da rocha viva, não seja de prazer maior que todas aquelas que são, por artifício , feitas de mármore alvíssimo, e resplandecentes de tanto ouro?” (SANNAZARO [F. ESPARMER ed.], Arcadia , prologo, p. 9). 49 Suas Eclogae piscatoriae foram publicadas em 1526. Ver Jacopo SANNAZARO , “Piscatory Eclogues” in Latin Poetry (Michael Putnan, ed.), Harvard University Press [I Tatti Renaissance Library], 2009, pp. 102-141. 50 De fato, a Poesia Ingênua e Sentimental (1800) de Schiller, embora parta de posições teóricas muito diferentes, se assenta numa oposição entre “natureza” e “cultura” que deve bastante à lógica pastoral do Renascimento. No século XIX, e sobretudo no século XX, o bucolismo ganha uma sofisticação e uma amplitude hermenêutica inéditas, ultrapassando em muito a lógica textual e os pressupostos do modelo virgiliano. “(…) the editor of the Macmillan Casebook on The Pastoral Mode has to admit that, far from being a dead form, there are now so many varieties of pastoral that it has to be regarded as ‘a contested term’ (Loughrey 1984: 8). Brian Loughrey complains that there is an ‘almost bewildering variety of works’ to which modern critics attribute the term, ranging from anything rural, to any form of retreat, to any form of simplification or idealisation. In this second, more general, sense we can, for example, read in the work of certain critics about ‘Freudian pastoral’ (Lawrence Lerner), ‘the pastoral of childhood’ (Peter Marinelli), ‘revolutionary pastoralisms . . . like the lesbian-ecofeminist vision of Susan Griffin’ (Lawrence Buell), even ‘proletarian pastoral’ (William Empson) or ‘urban pastoral’ (Marshall Berman) where no sheep are in sight for miles.” (Terry GIFFORD , Pastoral , p. 4). 66 uma grande quantidade de best-sellers em vernáculo, seja no campo poético, seja no campo da prosa e do drama 51 .

Considerando esses gêneros em conjunto, teremos, além de Sannazaro, entre tantos exemplos e para ficarmos apenas no entorno do século XVI, na Itália, o Orfeo (1480), de Angelo Poliziano; as Bucolica seu adolescentia (1528), do carmelita Baptista Mantuano (1448-1516) 52 ; Il sacrificio (1554), favola pastorale de Agostino Beccari (1510-1590); a Aminta (1573), de Torquato Tasso (1544-1595); Mirtilla (1588), de Isabella Andreini (1562-1604); Il pastor fido (1590), de Giovanni Battista Guarini (1538-1612). Entre os ibéricos, Menina e Moça (1554), do português Bernardim Ribeiro (1482-1552); Los sete libros de la Diana (1559), do português escrevendo em espanhol Jorge de Montemayor (1520-1561); Arcadia (1598), de Lope de Vega. Entre os ingleses, as Eclogues (1515), de Alexander Barclay; Arcadia (1577), de Philip Sidney; The Shepheardes Calender (1579), de Edmund Spenser (tendo Mantuano por modelo); Endimion (1579), de John Lyly, entre dezenas e dezenas de outros exemplos. Quanto à pastoral francesa do Renascimento, analisaremos mais abaixo.

A produção pastoral avança por todo o século XVII, até chegar à segunda metade do século XVIII (o Arcadismo mineiro da Inconfidência é um dos frutos da temática pastoral do Renascimento 53 ), a Rousseau 54 , ao “cultivar nosso jardim” do Candide de Voltaire 55 , e mesmo, por caminhos tortuosos, aos dias de hoje. Podemos até

51 Ressalto as obras em vernáculo, pois elas carregam um signo implícito de modernidade que não se satisfaz com a “simples” imitação virtuosística dos modelos virgilianos. É preciso, no entanto, sobretudo no caso italiano, sempre insistir no papel de difusão exercido pelos humanistas do Quattrocento , que publicaram éclogas em latim, ao estilo de Virgílio – como, por exemplo, Giovanni Pontano (1429-1503) e, claro, Angelo Poliziano. 52 Embora tenham sido escritas em latim, as Bucólicas de Mantuano têm importância histórica nesta lista de vernáculos pastorais, pois são a fonte direta de Edmund Spenser. Texto completo em: http://www.uni-mannheim.de/mateo/itali/autoren/baptista_itali.html 53 Em 1768, saem as Obras Poéticas , de Glauceste Satúrnio (i.e., Cláudio Manuel da Costa), marco do Arcadismo brasileiro. 54 “No que se refere ao próprio mundo natural, Rousseau estava entre aqueles que instigaram a mudança na sensibilidade do desejo de ‘domesticar’ a natureza e fazê-la ostentar a marca do plano do homem, para apreciação do rústico, do simples, do intacto e aterrador na natureza, que é característico do Romantismo. Esse aspecto da sensibilidade de Rousseau é mais visível no sétimo passeio de Os devaneios de um viandante solitário . Aí escreve uma de suas exposições botânicas: ‘Abri caminho até perto das fendas dos rochedos... e cheguei finalmente a um recanto tão profundamente escondido que não penso ter visto alguma vez um local mais agreste e primitivo (...)’ (Œuvres complètes , Bibliothèque de la Pléiade I, pp. 1070-1071)” (N. J. H. Dent, Dicionário Rousseau , p. 172). 55 A frase pode ser tomada de modo irônico, mas Voltaire adquiriu sua propriedade rural de Ferney em 1759, ano da publicação de Candide . 67 desconfiar se certas comodidades modernas e altamente urbanas, a princípio totalmente alheias a questões de ordem literária, não negociam, paradoxalmente, com ecos pastorais 56 .

O sucesso da literatura pastoral no Renascimento, portanto, foi imenso – ainda que nossa leitura atual desses textos beire os estertores do tédio absoluto e da pura obrigação técnica e prosopográfica. E um sucesso também musical 57 . Vê-se que boa parte desses personagens 58 e enredos acabou convertida em óperas e madrigais, sobretudo pelos compositores italianos contemporâneos e imediatamente posteriores 59 . A importância de Guarini nesse circuito é enorme. Seus poemas pastorais, solilóquios particularmente interessantes no pathos melancólico e nos jogos antitéticos de sentimentos (características que serão exploradas à exaustão no

56 Parece existir algo de pastoral, por exemplo, na disseminação dos produtos plásticos da década de 1950. Sua pressuposição de ordem, de limpeza e de simplicidade condiz com o ambiente neutro do décor pastoral mais imediato, embora filtrado por dinâmicas diversas – como bem viu Barthes: “Apesar dos seus nomes de pastores gregos (Polistirene, Fenoplaste, Polivinile, Polietilene), o plástico, cujos produtos foram recentemente concentrados numa exposição, é essencialmente uma substância alquímica.” (Roland BARTHES , Mitologias , p. 111). 57 Ver, sobretudo, Giuseppe GERBINO , Music and the Myth of Arcadia in Renaissance Italy , CUP, 2009. 58 Uma verdadeira constelação de nomes que, no desenvolvimento da literatura pastoral, ganham contornos quase simbólicos: Daphnis (o pastor ideal), Corydon, Thyrsis, Amaryllis, Amyntas, Menalcas... 59 “A participação da música em tais espetáculos [nas antigas representações dramáticas e sacras da Itália] não era decerto muito diferente da que se observa, durante todo o século XVI, nas pastorais , particularmente apreciada nas cortes e cidades italianas. Um dos modelos do gênero era um Orfeo , o de Poliziano, representado em Mântua, em 1474, que parece ter sido inteiramente cantado com música de [um compositor totalmente desconhecido,] Germi, atualmente desaparecida. Esse gosto pela pastoral não irá esmorecer dessa data até o século XVII. Entre os textos especialmente marcantes, estão a Aminta , de Torquato Tasso, representada em 1573, e Il Pastor fido , de Battista Guarini. Aminta será regularmente encenada e musicada: quando, em 1590, foi [mais uma vez] representada com música, Emilio de Cavalieri (ca. 1550-1602) e Laura Guidicciomi estavam entre os organizadores do espetáculo. Em 1628, em Parma, foi Monteverdi quem compôs os intermezzi ” (Jean & Brigitte MASSIN , História da Música Ocidental , p. 257). Apesar de Orfeu não ser exatamente um personagem pastoral, o texto de Poliziano previa uma série de intermezzi e danças que contribuíram em muito para o desenvolvimento do tema pastoral na música italiana: “Angelo Poliziano’s Favola d’Orfeo (1471) included various instrumental episodes and dances; and throughout the 16th century dramatic and musical pastorals became increasingly popular in Italian courts and academies, and strongly influenced early opera. They generally took the form of elegant courtly entertainments with a classical veneer, especially for weddings.” (Owen JANDER & Geoffrey CHEW , “Pastoral” in The New Grove Dictionnary of Music and Musicians , versão eletrônica). O grupo holandês Huelgas Ensemble, dirigido por Paul van Nevel, gravou, em 1981, um álbum com as adaptações italianas do texto de Poliziano (dentre as quais as de Serafino D’Allaquilano e Bartolomeo Trombocino). Reedição em CD pela Sony Classical [SB2K 60095]. 68 drama barroco 60 ), foram intensamente utilizados pela primeira geração de operistas italianos. Il pastor fido foi um estrondoso sucesso internacional, tendo vários trechos musicados por compositores tão diversos quanto Schütz, Marenzio, Wert, Gastoldi, Ballavicino, Segismondo d’India e, claro, Monteverdi 61 . Mas os temas pastorais sobreviveram, no meio musical, muito depois dos cânones formais do Renascimento terem sido totalmente suplantados pela estética barroca, e esta pelos ditames sucessivos do classicismo, do romantismo, do modernismo, e assim até hoje 62 .

60 A teoria estética dos afetos no Barroco musical tem “como ideia central (...) a representação das paixões e dos estados da alma” (Ulrich MICHELS , Atlas de Música (1985), Vol. 2, Lisboa, Gradiva, 2007, p. 305). 61 “During the 1590s, when Il pastor fido brought the pastoral vogue to its height, Guarini’s popularity with composers gradually surpassed even that of Tasso. More than 550 madrigals, by 125 composers, inspired by the play are to be found in extant printed sources alone (see Hartmann). The pathetic monologues in which nymphs and shepherds express their melancholy in lyrical sighs and tearful plaints were specially appealing to madrigalists and monodists writing in the new affective style: ‘Ah, dolente partita’ (Act 3 scene III), ‘Cruda Amarilli, che col nome ancora’ (1.II) and ‘O Mirtillo, Mirtillo, anima mea’ (3.IV) are among the soliloquies which appeared most frequently in madrigal collections by, among others, Wert, Marenzio, Monteverdi (in whose works Guarini almost completely usurped Tasso after about 1600) and Philippe de Monte (who published in 1600 a collection actually called Il pastor fido ). Monteverdi’s madrigals from around 1600 on texts from Il pastor fido differ from his earlier settings of Guarini’s epigrammatic lyrics in that they are stylistically more responsive to the free, discursive passages of dramatic poetry intended for theatrical projection. Thus, although not necessarily performed on stage, these madrigals were to some extent the proving ground for Monteverdi’s own operatic language. Only two scenes from Guarini’s play were set to music in their entirety: Act 2 scene VI, as a dialogo musicale by Tarquinio Merula (Venice, 1626), and Act 3 scene II (‘Giuoco della cieca’, wherein nymphs and shepherds play a type of ‘blindman’s bluff’), settings of which were published by Fattorini (1598), Gastoldi (1602), Ghizzolo (1609), Marsilio Casentini (1609), Brognonico (1612), Gabriel Usper (1623) and Biandrà (1626). (Guarini reported a setting by Luzzaschi as well.) An earlier adaptation of the ‘Giuoco’, a ‘ pastorella tutta in musica’ with words by Laura Guidiccioni and music by Emilio de’ Cavalieri, was performed in Florence in 1595; it is now lost.” (Barbara HANNING , verbete “Guarini” in The New Grove Dictionary of Music and Musicians [versão eletrônica]). Uma coletânea de 18 peças de diferentes compositores, apenas com textos extraídos de Il pastor fido , foi gravada por Konrad Junghänel, à frente do conjunto Cantus Cölln: Il pastor fido , Deutsche Harmonia Mundi, 1992 – posteriormente reeditada em CD em 2003 [DHM 77240]. 62 Il pastor fido propriamente dito é tema de uma ópera homônima de Haendel (HWV 8, de 1712) e o título de seis sonatas atribuídas a Vivaldi (ordinariamente editadas como seu op. 13) mas de autoria de Nicolas de Chédeville (publicadas em 1737). Se considerarmos, porém, os personagens pastorais típicos (como Dáfnis) e, sobretudo, as histórias ambientadas no décor pastoral, os exemplos vão ao infinito: a pastoral heroica (“A type of Ballet-héroïque whose plot often turns on the loves of nobles or gods (or goddesses), usually in disguise, for shepherdesses (or shepherds) in Arcadian settings”, Cf. Grove ) de Lully ( Acis et Galatée , 1683, libreto de Jean Galbert de Campistron extraído das Metamorfoses de Ovídio) e de Rameau ( Zaïs , 1748, Naïs , 1749, libretos de Louis de Cahusac), para citar apenas três exemplos de um gênero altamente disseminado na França. A ópera pastoral inglesa , inaugurada por Haendel, com sua 69

Na pintura, a tradição é também extremamente rica, sobretudo por conta do texto singularmente imagético da Arcadia de Sannazaro, cheio de descrições e atmosferas pictóricas latentes, o qual serviu de base e inspiração a dezenas e dezenas de artistas 63 . Um dos exemplos pastorais mais antigos do Renascimento – lembrando que a pintura mural helenística já produzia situações pastorais – é A Festa Campestre (também conhecida como Concerto Pastoral ), realizada entre 1501- 1510, quadro ora atribuído a Giorgione ora a Ticiano. Porém, as mais famosas versão de Acis e Galatea (1718). Para uma abordagem sintética da pastoral inglesa do final do barroco, ver Tim NEUFELDT , “Italian Pastoral Opera and Pastoral Politics in England, 1705- 1712” in Discourses in Music , Vol. 5 n° 2 (Fall 2004) [http://www.discourses.ca/v5n2a2.html]. Mozart encenou seu Il re pastore (KV 208) em 1775 (libreto de Metastasio baseado na Amynta de Tasso). Haydn fez intenso uso do espaço pastoral no seu oratório A Criação (1798). O organista alemão Justin Heinrich Knecht publicara, já em 1749, uma sinfonia pastoral, Le portrait musical de la nature (onde mimetizava uma tempestade ao órgão). Mas a mais famosa manifestação sinfônica a evocar o décor pastoral é, claro, a sinfonia n° 6, op. 68, de Beethoven (publicada em 1808): intitulada Sinfonia Pastoral pelo próprio compositor, marca um momento importante dessa tradição bucólica no mundo musical, transcrita através de uma orquestração largamente sugestiva e impressionista, e influenciada pelo Empfindsamer Stil . Ecos dessa tradição pastoral no Prélude à l’après-midi d’un faune (1894) de Debussy (o tema do prelúdio foi retomado numa jazz ballad de Gordon Burdge & J. Russel Robinson, A Portrait of Jennie , tema do filme homônimo de 1948 e que ouvi pela primeira vez numa gravação live do trompetista Donald Byrd no Half Note Cafe em 1961). Mas evocações pastorais também estão presentes no Sacre du Printemps (1913) de Stravinsky, e nas composições ornitológicas de Olivier Messiaen (como o Catalogue des Oiseaux , 1956-58). Em 2011, a compositora americana Ann Callaway (*1949) estreou sua ópera de câmara Vladimir in Butterfly Country , enredo pastoral construído a partir dos interesses de Vladimir Nabokov pela entomologia. Entre tantos outros exemplos. 63 “A Arcadia [de Sannazaro] está cheia de descrições e pinturas. Por exemplo, na entrada do templo de Pales está uma das famosas composições [quer dizer, descrições textuais] com que Giorgione e Ticiano iriam decorar as paredes dos palácios de Veneza cinquenta anos mais tarde. ‘Encontramos’, diz Sannazaro, ‘pintados sobre a porta de entrada, bosques e colinas da mais deliciosa beleza, cheios de árvores frondosas e de uma centena de espécies de flores, entre os quais se veem muitos rebanhos a pastar, andando à vontade pelos campos verdejantes, com cerca de dez cães para os guardar, e cujas pegadas se viam no pó, representadas com muita naturalidade. Alguns dos pastores estão a ordenhar, outros tosquiam, outros tocam flauta, e há outros que parecem estar a cantar, tentando acompanhá-los. Mas o que mais me agradou observar com mais atenção foram algumas ninfas nuas, semiescondidas atrás de um tronco de castanheiro, rindo de um carneiro, que na sua ânsia de procurar roer um ramo de castanheiro suspenso sobre seus olhos, se esquece de comer a erva que o rodeia. Ao mesmo tempo aproxima-se quatro sátiros com cornos e pés de cabra, deslocando-se furtivamente através de um maciço de aroeira, suavemente, para apanharem as donzelas de surpresa.’ É este o tipo de tema que iria fazer as delícias dos pintores de Veneza durante os cinquenta anos seguintes. Sannazaro profetiza o próprio colorido da pintura veneziana: ‘Era a hora em que o crepúsculo bordava em todo o ocidente centenas de variedades de nuvens, algumas violetas, outras azuis escuras, outras carmesins; outras entre o amarelo e o verde e algumas tão rubras de fogo que pareciam a imagem do mais fino ouro polido.’” (Kenneth CLARK , Paisagem na Arte , p. 81). 70 representações da Arcádia pastoral são as duas telas de Nicolas Poussin, Les Bergers de l’Arcadie , em especial a segunda, também intitulada Et in Arcadia ego (1638) 64 . Posteriormente, a Arcádia serviu de inspiração plástica a diversos artistas europeus, sendo retomada com interesse inclusive pelos cultores do simbolismo do fim do século XIX: seja como antídoto à forte mecanização industrial do período, seja como ressignificação sentimental das colônias imperiais na esteira das antigas visões do Paraíso. O quadro As Hespérides (1884-1885), de Hans von Marées, e, sobretudo, as famosas pinturas murais de Puis de Chavannes ( Inter artes et naturam foi terminado em 1890) são alguns de seus exemplares mais conhecidos 65 .

Voltando ao Renascimento europeu, essa valorização dos temas e personagens ditos pagãos no teatro, bem como nas demais manifestações artísticas e plásticas, estava, como se sabe, na ordem do dia do humanismo, e o universo pastoral é apenas um aspecto – importante, mas complementar – desse movimento. Temos, portanto, uma linhagem de mais de cem anos ininterruptos de valorização da temática bucólica nas Artes – do começo do século XVI ao começo do século XVII –, quando surgem as primeiras críticas ao seu predomínio maciço 66 . A partir daí, a pastoral deixa de ser

64 Poussin foi diretamente influenciado por Guercino (o Et in Arcadia ego deste, finalizado em 1622, está hoje na Galleria Nazionale d’Arte Antica, de Roma), mas o tema fúnebre vem originalmente da écloga XII, de Sannazaro. Ver Erwin Panofsky, “Et in Arcadia Ego : Poussin e a tradição elegíaca” (1936) in Significado nas Artes Visuais , Perspectiva, 1976, pp. 377-409. No texto, Panofsky discute o sentido da frase latina que dá título ao quadro de Poussin, mas ele acaba servindo como boa introdução para a tópica da Arcádia virgiliana nas artes visuais. 65 Podemos acrescentar um sem-número de exemplos na pintura, mas também na fotografia, dentre os quais os sátiros andróginos de Wilhelm von Gloeden (como Man and Two Youths in Grecian Costume in a Garden , 1900, atualmente no acervo do Metropolitan Museum); os imberbes tocadores de syrinx de Clarence H. White em The Faun or Pipes of Pan (1907, no acervo da Royal Photographic Society); e os nus florestais de Frank Eugene Smith. “Puisant dans le répertoire des allégories bien connues de l’élite intellectuelle, plusieurs artistes, pourtant reconnus pour la modernité de leurs recherches formelles, remettent à l’honneur, comme alternative aux effets néfastes de l’ère industrielle et au déséquilibre qu’elle engendre, le mythe antique et païen de l’heureuse harmonie de l’homme avec la nature. Ils rappellent à l’homme que l’histoire du monde a commencé par un âge d’or et que l’Arcadie en était le pays d’élection. (...) Marées est souvent comparé à Pierre Puvis de Chavannes pour la pondération des gestes et l’atmosphère réflexive qui se dégage de ses compositions décoratives. Grand évocateur du Bois sacré et du Doux pays, Puvis fut sans aucun doute, pour ses contemporains de la jeune génération, celui qui a le mieux réussi à promouvoir la vision antique et arcadienne d’une manière novatrice. Dans un paysage idyllique rythmé par des bosquets d’arbres fruitiers croises en berceaux, il présente sur un mode allégorique une réflexion originale et énigmatique sur les rapports complexes inter artes et naturam .” (Constance NAUBERT -RISER “Vers un homme nouveau” in Jean CLAIR (ed.), Les Paradis perdus , p. 458). 66 Charles Sorel (~1582-1674) escreve seu sarcástico Le Berger extravagant em 1627: “Vous autres poètes êtes fous avec votre âge d’or”. E um crítico como Samuel Johnson (1709-1784) estava já totalmente à vontade para dizer, a propósito do Lycidas , de John Milton: “Its form is 71 um gênero quase unânime para começar uma imensa carreira de releituras e resiliências.

Quanto à França 67 , o romance pastoral começa com La Pyrénée (1571), de François de Belleforest – baseada, por sua vez, na Diana de Montemayor 68 . A data e a origem de seu autor nos fazem lembrar outro caso, que discutiremos mais adiante 69 . O século XVII verá nascer uma série importante de textos pastorais em prosa e drama, o mais célebre deles sendo a Astrée de Honoré d’Urfé, publicada entre 1607 e 1627. Porém, tal como nas Bergeries (1625), de Honorat de Bueil de Racan, acentua-se aqui o clássico funcionamento de imposture pastoral: pois, apesar de serem nomeadamente pastores, os personagens não são mais que cortesãos eruditos discutindo todos os temas possíveis à arte da conversação. Em si mesmo, o ambiente pastoral, neste caso, é pouco mais que uma convenção ficcional.

No entanto, a écloga poética propriamente dita foi cultivada pelos autores da Pléiade – e mesmo antes. Joachim Du Bellay, quando estabelece “Quelz genres de Poëmes doit élire le poëte francoys” – seção importante da Deffence et illustration de la langue francoyse que, a partir do desprezo das formas medievais 70 , define os gêneros poéticos não-épicos a serem cultivados na língua –, faz as honras de Clément Marot como grande compositor de éclogas em francês 71 . Du Bellay se

that of a pastoral, easy, vulgar, and therefore disgusting: whatever images it can supply are long ago exhausted; and its inherent improbability always forces dissatisfaction on the mind.” (Samuel JOHNSON , “ Life of John Milton ” in The works of Samuel Johnson , LL. D.: with and essay on his life, Vol. 2, George Dearborn Publishers, 1832, p. 39). 67 Para uma análise de conjunto da literatura pastoral francesa, usei um antigo trabalho de Jules MARSAN , La Pastorale dramatique en France , Paris, Hachette, 1905; e, sobretudo, Alice HULUBEI , L’Eglogue en France au XVI e siècle , Droz, 1938. 68 Jorge de MONTEMAYOR (Asunción RALLO ed.), La Diana , Madrid, Catedra, 1999. 69 O ano de 1571 e o fato de Belleforest ser gascão não deixam de ter ressonâncias na possibilidade de um regime pastoral em certo castelo do Perigord, como veremos no próximo capítulo. 70 A seção da Deffence está no cap. IV, Livro II, primeira edição em 1549: “ Ly donques et rely premièrement (ò poëte futur), fueillette de main nocturne et journelle les exemplaires grecz et latins: puis me laisse toutes ces vieilles poésies francoyses aux Jeuz Floraux de Thoulouze [espécie de convenção de troubadours ] et au Puy [confraria literária e musical] de Rouan: comme Rondeaux, Ballades, Vyrelaiz, Chantz Royaulx, Chansons, et autres telles episseries, qui corrumpent le goust de nostre langue, et ne servent si non à porter temoingnaige de notre ignorance .” (Joachim DU BELLAY , La Deffence et illustration de la langue françoyse [édition critique de Henri CHAMARD ], Paris, Albert Fontemoing, 1904, pp. 201- 203). 71 “Chante moy d’une musette bien resonnante et d’une fluste bien jointe [Cf. Tibi fistula cera juncta fuit , Virgílio, Bucólicas III, vv. 25-26] ces plaisantes ecclogues rustiques, à l’exemple de Thëocrit et de Virgile, marines, à l’exemple de Sennezar gentil homme nëapolitain. Que pleust aux Muses, qu’en toutes les espèces de poësie, que j’ay nommées, nous eussions beaucoup de telles immitations qu’est cete ecclogue sur la naissance du 72 referia à écloga composta por Marot em 1544, mas poderia invocar também sua tradução em francês da primeira écloga das Bucólicas de Virgílio (1512, em pares de decassílabos rimados); a Complainte de Madame Louise de Savoie, mére du Roy, en forme d’éclogue , 1531) 72 ; a Eclogue au Roy [François I] , soubz les noms de Pan et Robin , publicada em 1539. De fato, embora seus predecessores rhétoriqueurs façam referências a pastores, é Marot o primeiro francês a cantá-los no décor virgiliano 73 . Du Bellay, por sua vez, lançará uma coletânea de Jeux Rustiques (compostos a partir de 1554 e publicados após seu retorno da Itália) em 1558. Muito embora sua ode Au fleuve de Loyre (1549) 74 já houvesse tentado recuperar em verso a paisagem angevina de sua infância, ela ainda não tem a concepção mais propriamente virgiliana que será a dos Jeux .

Ronsard descobriu a poesia pastoral (Teócrito) em 1545, quando estudava no Collège de Conqueret junto ao helenista francês Jean Dorat. Malgrado o comentário positivo feito por Du Bellay, não se interessou pelo gênero senão por volta de meados dos anos 1550, quando a moda pastoral estava estabelecida 75 . E, para não me estender demais, dentre tantos outros poetas que se dedicaram à pastoral poética e dramática, cita-se pela naïveté e pela qualidade verdadeiramente rústica do seu décor (sem recursos de camuflagem aristocrática) Vauquelin de La Fresnaye.

filz de Monseigneur le Dauphin, à mon gré un des meilleurs petiz ouvraiges que fict onques Marot. ” (DU BELLAY , Deffence , pp. 225-228). 72 Neste caso, Thenot e Colin, nomes de camponeses franceses, tomam o lugar dos gregos: “Berger Thenot, je suis esmerveillé | Des tes chansons: et plus fort je m’y baigne | Qu’à escouter le linot esveillé | Ou l’eau qui bruyt tombant d’une montaigne .” (Clément MAROT , Œuvres de Clément Marot , [édition critique de Pierre JANNET ], Vol. 2, Alphonse Lemerre, 1873, pp. 260-268). Para as complexas negociações de Marot com a pastoral, ver Annabel PATTERSON , Pastoral and Ideology (Virgil to Valéry) , University of California Press, 1987, pp. 111 e ss. 73 Henri CHAMARD , Histoire de la Pléiade , Vol. III, Didier, 1961, p. 41. 74 “ (...) Regarde, mon Fleuve, aussi | Dedans ces forêts ici, | Qui leurs chevelures vives | Haussent autour de tes rives, | Les faunes aux pieds soudains, | Qui après biches et daims, | Et cerfs aux têtes ramées | Ont leurs forces animées. | Regarde tes Nymphes belles | A ces Demi-dieux rebelles, | Qui à grand’course les suivent, | Et si près d’elles arrivent, | Qu’elles sentent bien souvent | De leurs haleines le vent . (...)” . (DU BELLAY , “Les louanges d’Anjou. Au fleuve de Loyre” in Œuvres de Joachim Du Bellay , [édition de Léon SECHE ], Vol. 1, Paris, Revue de la Renaissance, 1903, pp. 260-268). “Il [Du Bellay] était naturellement préparé par toute son enfance de petit campagnard, dans la molle et douce terre d’Anjou” (Emile FAGUET , Seizième siècle. Études littéraires , Paris, Société Française d’Imprimerie et de Librairie, 1898, p. 312). Ver também Henri CHAMARD , Histoire de la Pléiade , Vol. II, Didier, 1961, p. 213. 75 “L’ Elegie à Jean de la Peruse , écrite en 1553, présente la ‘chanson bucolique’ comme un genre encore négligé, avec le poème héroïque, la satire et l’épigramme. Tout change en 1559 lorsque Ronsard, aiguillonné peut-être par l’exemple de Baïf, s’y intéresse brusquement. Il n’est pas seul. À cette date, c’est toute la poésie française qui joue de la flûte de Pan ”. (Ronsard, Œuvres complètes , Vol. II, Bibliothèque de la Pléiade, notes, p. 1343) 73

• Regime pastoral

Penso que este resumo do contexto pastoral pré-moderno, ainda que breve e superficial, já é suficiente para contextualizar o que vou desenvolver mais adiante. Evidentemente, não tive, nem poderia ter, qualquer pretensão de ser exaustivo, concentrando-me numa certa linhagem, sobretudo poética, da tradição pastoral. Creio, porém, que o contexto poderá ser adaptado, de certa forma, também para as outras formas não tratadas aqui – o drama e as formas poéticas bucólicas menores, por exemplo 76 . Além disso, mesmo se fôssemos adiante nessas determinações, também não daríamos conta da real extensão do tema: pois não se trata apenas de um gênero literário. Diversa em tons e formas, a produção pastoral renascentista evoca, ao menos no imediato textual, essa vida-cenário dos pastores livres no campo a partir do modelo bucólico transmitido por Virgílio. Mas é preciso acrescentar que o somatório dos enredos novelescos romano-imperiais com a atmosfera idealizada (que não deixa, evidentemente, de contrabandear consigo diversas questões de ordem política e social) das Éclogas e seus continuadores, relidas e filtradas por Sannazaro e pelas imitações em vernáculo, acabou se firmando numa produção autóctone e autorreferente. Tudo isso culmina em uma perspectiva cultural particular, alinhada a questões ainda maiores, embora indiretas (uma melancólica reflexão sobre o significado do passado clássico, por exemplo), ganhando uma densidade intelectual e filosófica que permitiu seu transbordamento, da poesia e do drama, para a música, a pintura e para as Artes em geral. Essa dinâmica nova é que se chama de regime pastoral – e exatamente por isso, não fica circunscrita apenas ao gênero literário que está na sua origem 77 .

76 Para além da écloga, personagens bucólicos aparecem em odes, canções, baladas, sonetos, epigramas, encenações e jeux rústicos, stances , villanelles , elegias etc. etc. Cf. Alice HULUBEI , L’Éclogue en France au XVI e siècle , pp. XIII e ss. 77 Discussões sobre o valor da pastoral como dispositivo cultural amplo em ALPERS , What is Pastoral? e GIFFORD , Pastoral . IIIIIIIII No seio das doutas virgens Análise pastoral de um texto preambular de Montaigne

Pouco estudada entre nós, a inscrição de 1571 – o texto escrito por Montaigne para decretar sua aposentadoria parlamentar e ao mesmo tempo dar início à sua carreira intelectual – permanece como um signo estruturante não apenas da sua biografia como também da escritura dos Ensaios . Neste artigo, faço algumas considerações que permitem entendê-la numa dinâmica ampla, deitando raízes na literatura bucólico-pastoral clássica e apontando para formas de leitura centrífugas, de modo a recontextualizá-la num dispositivo narrativo multifacetado.

I.

TEMA DA “EXCELÊNCIA DA VIDA NO CAMPO ”, equivalente ao bordão O“melhor ficar longe da cidade”, é um antiquíssimo e resiliente topos cultural, que pode ser facilmente ligado à literatura de fundo bucólico- pastoral – aquela que, grosso modo , deita raízes nos Idílios de Teócrito (e seus imitadores ou continuadores, como Bion de Phlossa e Moschos de Siracusa), mas, sobretudo, nas releituras campestres dos idílios promovidas por Virgílio (a partir das suas Bucólicas ), tradição latina continuada pelas obras de Calpúrnio Sículo e de Nemesiano. Por um lado, o cenário idealizado de pastores instalados em colinas férteis e verdejantes, sob o sol de um Mediterrâneo benfazejo (na Sicília ou nas montanhas da Arcádia grega), dados ao cultivo do amor e das artes poético- musicais. Por outro, a noção de que a cidade (ou, mais propriamente, a civilização imperial, cortesã etc.) deturpa a essência do homem – a qual, de maneira ampla e genérica, o faria acompanhar ciosamente os ciclos mais elementares da natureza. O mito da Época de Ouro não está longe 1.

1 Harry LEVIN , The Myth of the Golden Age in the Renaissance , OUP, 1968; Georges MINOIS , A Idade de Ouro (orig. francês 2009), Unesp, 2011. 76

Como vimos mais acima, uma longa tradição liga o material clássico greco-romano, sobretudo a écloga latina virgiliana, até Sannazaro e a literatura pastoral posterior 2. O arquétipo dessa crescente produção renascentista continua sendo, em linhas gerais, o texto das Bucólicas , mas estas não constituem o único texto de cunho campestre de Virgílio. As Geórgicas , num contexto estético diferente, também são uma obra agrária – na verdade, do ponto de vista do conteúdo, bem mais agrária que a anterior, uma vez que, em diversos momentos, lida, por assim dizer, com aspectos propriamente “técnicos” da agricultura 3. Neste ínterim, o mérito de pô-la na moda vem das obras latinas do poeta, dramaturgo e erudito italiano Angelo Poliziano (1454-1494) 4. Embora já houvesse escrito um poema (o Manto ) no molde das Bucólicas , foi a partir do seu Rusticus (quer dizer, “O Homem do Campo”) –, o qual pretendia, entre outros objetivos, servir de propedêutica literária à sua interpretação pública de Os Trabalhos e os Dias , de Hesíodo, e das Geórgicas – que esta obra de Virgílio passou a ser conhecida por um público mais amplo, ainda que, claro, restrito à capacidade de compreender o latim clássico 5. Seja como for, os dois textos de Poliziano relembraram aos humanistas europeus uma linhagem poética celebrando a vida no campo, valorizando tanto modelos agrários (a dinâmica do campo tomada em seu aspecto mais concreto e ordinário) quanto bucólicos.

Felix ille animi divisque simillimus ipsis, quem non mendaci resplendens gloria fuco sollicitat, non fastosi mala gaudia luxus, 20 sed tacitos sinit ire dies et paupere cultu exigit innocuae tranquilla silentia vitae, urbe procul, voti exiguus ; sortemque benignus ipse suam fovet ac modico contentus acervo non spes corde avidas, non curam pascit inanem ; securus quo sceptra cadant, cui dira minentur

2 Para o desenvolvimento da pastoral pós-virgiliana, Roland MAYER , “Latin Pastoral after Virgil” in Marco FANTUZZI & Theodore PAPANGHELIS (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral , pp. 451-466. 3 É onde Virgílio banca o fazendeiro, na expressão de Philip THIBODEAU , Playing the Farmer. Representations of Rural Life in Vergil’s Georgics, University of California Press, 2011. 4 L. P. WILKINSON , The Georgics of Virgil, A Critical Survey (1978), University of Oklahoma Press, 1997², p. 292. 5 É preciso entender que uma parte dos humanistas cumpria um papel detetivesco e a comunidade contemporânea de latinistas e grecistas ansiava por novidades de ordem editorial advindas seja da pesquisa nos arquivos das bibliotecas e nos repositórios de documentos Europa adentro (obsessão de colecionador que nem todo mundo estava, evidentemente, apto a fazer); seja simplesmente de novas edições críticas de textos já conhecidos (comparando-se manuscritos de origem diferente). Ver cap. II, n. 29. 77

astra et sanguinei iubar existiale cometae6.

O cenário , aqui, pode ser entendido na lógica pastoral mais clássica: a superioridade ética do campo, aliada à vida simples e frugal, longe das intempéries e do tumulto do mundo, é quase um resumo do que, de fato, o leitor encontra no texto das Bucólicas de Virgílio – bem como nas Bucólicas de Calpúrnio Sículo. Mas a expressão literal do trecho citado não está nas Bucólicas , e sim, como era o objetivo do Rusticus no final das contas, nas Geórgicas :

felix qui potuit rerum cognoscere causas atque metus omnis et inexorabile fatum subiecit pedibus strepitumque Acherontis auari: fortunatus et ille deos qui nouit agrestis Panaque Siluanumque senem Nymphasque sorores. illum non populi fasces, non purpura regum flexit et infidos agitans discordia fratres, aut coniurato descendens Dacus ab Histro, non res Romanae perituraque regna; neque ille aut doluit miserans inopem aut inuidit habenti. quos rami fructus, quos ipsa uolentia rura sponte tulere sua, carpsit, nec ferrea iura insanumque forum aut populi tabularia uidit 7.

6 “Feliz em espírito e comparável aos próprios deuses é o homem que não está preso às tentações da glória, com seus falsos esplendores, ou aos prazeres malévolos da luxúria arrogante, mas aceita os dias de maneira discreta e, em seu modesto modo de vida, passa seu tempo na tranquilidade silente de uma vida sem mácula, longe da cidade, com poucos desejos. Ele aceita seu quinhão resignadamente e é feliz com suas modestas posses. Não alimenta ávidas esperanças ou preocupações vazias no coração. É indiferente à queda dos reinos, aos que são afetados pelos mórbidos signos no céu e ao brilho fatal dos cometas cor-de-sangue.” (Angelo POLIZIANO , Rusticus , vv. 17-26). 7 “Feliz o que pode conhecer a causa das coisas e que pôs sob os pés todos os medos, e o inexorável destino, e o ruído do avaro Aqueronte. Mas afortunado também aquele que conhece os deuses campestres, e Pã, e o velho Silvano, e as ninfas irmãs. Este, nem os feixes [fasces , machado amarrado com feixes de madeira, símbolo do poder dos cônsules romanos] outorgados pelo povo, nem o púrpura dos reis conseguiram dobrar, nem a discórdia que impele os irmãos sem fé [provável referência aos irmãos que disputavam o trono parta], nem o Dácio que desce do conjurado Ister [i.e., o Danúbio; os dácios, que habitavam a região entre o Danúbio e o Mar do Norte – a Transilvânia e a Moldávia atuais –, eram uma ameaça bárbara temida pelos romanos], nem os negócios de Roma, nem os reinos destinados ao declínio. Ele não vê em torno de si nem indigentes a rogar por misericórdia, nem ricos a invejar. Os frutos que dão os ramos, aqueles que as benevolentes campanhas fornecem de graça, ele os colhe sem conhecer nem as leis de ferro, nem o fórum insensato, nem as tábuas do povo [os atos civis que ficavam guardados no templo de Saturno].” (Virgílio, Geórgicas , II, vv. 490-502). 78

A longa fórmula, retomada por Poliziano, ainda que dita em termos geórgicos, traduz à perfeição o estado de espírito bucólico que será retomado pelos poetas árcades posteriores. O discurso pastoral, por definição ideal e intangível (utópico- edênico), e o discurso agrário (supostamente didático e ao alcance da enxada ou do arado) funcionam, efetivamente, numa rede mútua de valorizações 8.

Entretanto, um detalhe importante sobressai nestas adaptações. Muito embora a dinâmica diferencial entre real (agrário) e ficcional (bucólico) possa ter sido importante para Virgílio, ela não existe para Poliziano: temos aí um homem urbano, um cortesão do Renascimento italiano, mais especificamente, do humanismo florentino e da corte dos Médicis, e tanto as Geórgicas como as Bucólicas são, para ele, modelos puramente literários . O mesmo se aplica a Petrarca e a Boccaccio. E, claro, literário será também o uso desses temas em Sannazaro 9.

Vimos, no capítulo anterior, um resumo dessa evolução da pastoral moderna. Vimos também que a França, claro, não ficou imune a este sucesso. A primeira geração francesa influenciada por Sannazaro (a partir de meados do século XVI) produziu um sem-número de textos bucólicos, entre poesia, drama e prosa 10 . Some-se a isso

8 Esta simbiose entre dois modelos, o bucólico e o agrário, a princípio díspares, é um signo importante do valor desse material para Poliziano. Para Virgílio, o modelo agrário das Geórgicas estaria, em teoria, mais próximo de sua história pessoal de filho de proprietários rurais (daí sua qualidade “didática”, obviamente discutível embora reconhecida como evidente por muitos de seus contemporâneos) que o modelo pastoral idealizado das Bucólicas . Mas Virgílio discorre acerca do agrário não num tratado técnico sobre a agricultura – como o De Agri Cultura , de Catão (160 a.C.) ou De re rustica , de Marcus Varrão (116 a.C.-27 a.C.) – e sim em seu longo poema, literário para todos os efeitos, de 2.188 hexâmetros dactílicos. Logo, os dois modelos literários, dos quais as Bucólicas (bucólico) e Geórgicas (agrário) são os representantes fundacionais, podem até ser separados por comodidade técnica e estilística, mas são em muitos aspectos interdependentes do ponto de vista ético e da concepção de mundo. Embora não se vejam signos propriamente árcades nas Géorgicas (nestas não há flautas, nem disputas de versos, nem espaço para amores perdidos), é evidente que aí também se trata, tal como nas Bucólicas , de um modelo idealizado. Logo, os dois modelos se entrecruzam num ziguezague histórico e teórico- literário e um não pode ser considerado sem o outro. O debate atual separou, naturalmente, o modelo bucólico-pastoral da mimese do mundo campestre , considerando a cena pastoral (idealizada), como pano de fundo e pretexto a instâncias indiretas de crítica política e social, em vez de representação concreta do mundo. Mas isto pode ser colocado em discussão: ver, por exemplo, Ken HILTNER , What Else is Pastoral? Renaissance Literature and the Environment , que defende uma ideia de discurso pastoral como discurso agrário – quer dizer, ligado também à descrição concreta da natureza. 9 Iacopo SANNAZARO (Francesco ERSPAMER , ed.), Arcadia – L’Arcadie , Les Belles Lettres, 2004. 10 “Indeed, the 1570s and early 1580s saw a flurry of rustic celebration, especially in the circle surrounding Pierre de Ronsard and the already elderly Jean Dorat, and De Thou was clearly caught up in this movement” (Ingrid DE SMET , “Pastoral Politics in the Poetry of Jacques- 79 impacto da disseminação das novelas imperiais, recém-descobertas pelos humanistas e traduzidas para o francês por Amyot na década de 1550 11 , e teremos um resumo da produção literária propriamente moderna (no sentido de vanguarda) desta época: e foi assim que os pastores Dáfnis, Alexis, Córidon, por oposição aos cavaleiros Artur, Galvain, Perceval e Amadis, tomam de assalto o cenário subtextual da segunda metade do século XVI 12 .

Para alguns autores franceses da geração posterior, no entanto, essa tradição bucólico-agrária ganhará, aos poucos, contornos um pouco diferentes. Uma série de importantes tratados técnicos sobre a agricultura já havia sido publicada por volta de meados do século XVI 13 . Porém, quando um escritor como Pierre Charron 14 escreve, na virada do século seguinte, sobre o campo e seu significado, numa perspectiva mais filosófica que técnica, vemos que modelo pastoral e modelo agrário (ou doravante modelo “agrônomo”, se considerarmos que a Agronomia moderna tenha nascido por esta época 15 ) já se confundem com uma dinâmica de

Auguste de Thou, 1553–1617” in Canadian Review of Comparative Literature , March-June 2006, p. 116). Para o regime pastoral especificamente francês dessa época, ver Alice HULUBEI , L’eglogue en France au XVI e siècle , Paris, Droz, 1938. 11 Comentei essa evolução brevemente, no capítulo anterior. Para sua ligação com a literatura pastoral, ver M. DI MARCO , “The Pastoral Novel and the Bucolic Tradition” in FANTUZZI & PAPANGHELIS (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral , pp. 479-498. 12 Cf. Michel SIMONIN “La disgrace d’Amadis” in L’encre & la lumière (1976-2000) , Paris, Droz, 2004, pp. 189-234. 13 Charles Estienne, Praedium rusticum (1554), traduzido para o francês por Jean Liébault em 1564 como L’Agriculture et la maison rustique – inúmeras reimpressões; as Vinti giornate dell’ agricoltura et de piaceri délia Villa etc. (1550), de Agostino Gallo, pai da agronomia italiana, sucesso editorial com mais de vinte edições e reimpressões, foi traduzido por François de Belleforest, em 1570, como Secrets de la vraye agriculture, et honestes plaisirs qu’on reçoit en la mesnagerie des champs. Deve-se computar aí os tratados antigos, sobretudo os latinos, que circulavam na primeira metade do século XVI, e os quais eram publicados quase sempre em conjunto, como antologias: Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo, os Econômicos de Xenofonte, as Geopônicas de Cassiano Bassus, o De Agricultura de Catão o Antigo, o Res rustice de Varrão, o De re rustica de Columela, o De re rustica de Palladius, e, claro, as Géorgicas de Virgílio e a História Natural de Plínio o Antigo, entre outros. 14 No De la Sagesse (1600), capítulo 58 do Livro I ( Comparaison de la vie rustique et menée ès villes ), ele nos dá seu veredicto: “Les villes sont prisons mesmes aux esprits, comme les cages aux oyseaux et aux bestes”. 15 “II est communément admis, et à juste titre, qu’avec Le Théâtre d’Agriculture et mesnage des champs s’ouvre la voie de la science agricole moderne. Dès sa préface, Olivier de Serres, en fondant l’agriculture nouvelle sur la triade « science, experience et diligence », se distingue de son prédécesseur le plus connu, Charles Estienne, plus théoricien que praticien. Or, il faut désormais compter avec l’expérience née de la pratique et de la confrontation des savoirs savants et paysans.” (Danièle DUPORT , “La ‘science’ d’Olivier de Serres et la connaissance du ‘naturel’” in Bulletin de l’Association d’étude sur l’Humanisme, la Réforme et la Renaissance , n° 50, 2000, pp. 85-95). 80 discussão de viés sócio-político (a análise atual dos poemas campestres virgilianos ressalta, aliás, o mesmo aspecto), dando margem a uma reflexão moral, ascética (ainda que, obviamente, não monástica), aliada ao tema do retiro do mundo – tema que ganhará vigor (literário e religioso) na décadas seguintes16 . Mesmo um agrônomo como Olivier de Serres ficará, como veremos abaixo, tentado a refletir de modo filosófico a respeito do campo – embora, no seu caso, protestante retirado em suas terras por conta das Guerras de Religião, não se trate apenas de simbolismo literário quando diz ser no campo que se protege contra a “fascheuse (...) foule du peuple ”17 . O desprezo da corte já era o topos de uma importante obra espanhola de 1539, o Menosprecio de corte y Alabanza de Aldea , de Antonio de Guevara, traduzido em francês por Allègre (Du mespris de la court & de la louange de la vie rustique ) em 1542 18 . Mas é a geração que escreve entre 1570-1580 que vai aprofundar esse menosprecio em território francês: quando isso acontece, entramos já no reino particular e, de certa forma, pós-pastoral das vies rustiques – que podemos definir como uma moda cultural paradoxalmente cortesã 19 .

16 Bernard BEUGNOT , Le Discours de la retrait au XVII e siècle , PUF, 1996. 17 Le théâtre de l’agriculture et ménage des champs (1600), 4 Vols., Paris, Meurant, 1802, IV, p. 626. Dezenove edições e reimpressões até 1675. Irresistível não enxergar nesta expressão um trocadilho com o fasces populi do livro II das Geórgicas de Virgílio (v. 495) citado mais acima, embora a etimologia aceita para o adjetivo médio-francês fascheuse (na grafia atual, fâcheux, -euse , quer dizer, “irritante” ou “fastidioso”) o faça derivar do latim fastidium e não de fasces , nominativo plural de fascis, -is (“feixe”): usado no plural, fasces significa o machado envolto em feixes de madeira, símbolo dos cônsules romanos; daí o termo, figurativamente, ser usado na Geórgicas , livro que De Serres conhecia bem, como símbolo do poder (cf. nota 7). Ver Martine GORRICHON “Sources latines d’Olivier de Serres” in Bulletin de l’Association d’étude sur l’Humanisme, la Réforme et la Renaissance , n° 50, 2000, pp. 45-58. Para um estudo mais amplo, Jean BOULAINE & Richard MOREAU , Olivier de Serres et l’évolution de l’agriculture , L’Harmattan, 2002. 18 Antonio de GUEVARA (éd. bilingue critique de Nathalie PEYREBONNE ), Du mespris de la court et de la louange de la vie rustique , Classiques Garnier, 2012. Ver Pierre CIVIL , “Le thème de l’éloge de la vie rustique en Espagne au XVI ème siècle” in Gabriel-André PEROUSE & Hugues NEVEUX (eds.), Essais sur la Campagne à la Renaissance , Société Française de Seiziémistes, 1991, pp. 103-114. 19 Considera-se aqui, claro, uma moda literária e cultural, pois poucos autores rustiques tinham, de fato, a experiência real da vida no campo – o que não quer dizer que a discussão a respeito dos valores atribuídos ao mundo rural por seus autores seja diminuída. Como obras desta geração, contamos, dentre outros, Les plaisirs de la vie rustique (1574), de Monsieur de Pibrac; Les Plaisirs de la vie rustique et solitaire (1583), de Claude e Pierre Binet; La columbière ou maison rustique (1583), de Philibert Hegemon; Les Plaisirs du gentilhomme champestre (1583), de Nicolas Rapin; Le Plaisir des champs , divisé en quatre parties selon les quatres saisons de l’année, où est traicté de la chasse et de tout autre exercice recréatif, honneste et vertueux (1583), de Claude Gauchet; Plaisirs et félicités de la vie rustique (1584), de Germain Forget; sendo Les propos rustiques (1547), de Noël du Fail, texto bem anterior. Eram obras algumas vezes editadas em conjunto, no formato de antologias. Para o contexto, ver Jacqueline BOUCHET , “Vrai ou faux amour de la campagne à la cour des derniers Valois” in Gabriel-André PEROUSE & Hugues NEVEUX (eds.), Essais sur la Campagne à la 81

O De re rustica , de Varrão, já oferecia um ponto de vista mordaz dos valores éticos da agricultura e da vida no campo em relação à cidade:

Viri magni nostri maiores non sine causa praeponebant rusticos Romanos urbanis. Ut ruri enim qui in villa vivunt ignaviores, quam qui in agro uersantur in aliquo opere faciendo, sic qui in oppido sederent, quam qui rura colerent, desidiosiores putabant. Itaque annum ita diviserunt, ut nonis modo diebus urbanas res usurparent, reliquis septem ut rura colerent. Quod dum servaverunt institutum, utrumque sunt consecuti, ut et cultura agros fecundissimos haberent et ipsi valetudine firmiores essent, ac ne Graecorum urbana desiderarent gymnasia 20 .

Mas a fórmula literária que define o modelo rustique utilizado pelos franceses está em Horácio, declarado admirador das Bucólicas 21 :

Beatus ille qui procul negotiis,

Renaissance , Société Française de Seiziémistes, 1991, pp. 57-72; Pauline SMITH , The Anti-Courtier Trend in Sixteenth Century French Literature , Droz, 1966; Jeannice BROOKS , Courtly Song in Late Sixteenth Century France , University of Chicago Press, 2000, esp. Cap. VI, “Pastoral Utopias”; para o significado do que era ser um nobre rural por essa época, ver Arlette JOUANNA , La France du XVI e siècle , PUF, 2002³, cap. IV; e Emmanuel LE ROY LADURIE , História dos Camponeses Franceses (2002), 2 Vols., Civilização Brasileira, 2007, esp. cap. II. 20 “Não por acaso, grandes homens, nossos ancestrais, preferiam os romanos do campo aos da cidade. Com efeito, assim como, nas terras, os que vivem na casa de campo são mais fracos do que quem se ocupa da lavoura fazendo algum trabalho, julgavam mais ociosos os que se estabeleciam em cidades do que quem cultivava a terra. Assim, dividiram o ano de modo que apenas a cada oito dias eles se dessem aos assuntos urbanos, mas, nos outros sete, cultivassem os campos. Enquanto tiveram esse costume, lograram duas coisas: possuir os mais fecundos campos, cultivando; e serem eles próprios de melhor saúde, sem acharem falta dos ginásios urbanos à grega.” (VARRÃO , Das coisas do campo , II, 1, [trad. Matheus Trevizam], Ed. Unicamp, 2012, pp. 126-127). 21 A influência rusticizante de Virgílio contaminou os escritores latinos seus contemporâneos e sucessores diretos: “ was not alone in his admiration of Virgilian pastoral. The contemporary erotic elegist, Tibullus, ‘rusticated’ the essentially urban code of elegy by dreaming of love in the country; his very first elegy strikes this unusual note. Like Horace, he too picks up Virgil’s ideal of the Golden Age (1.3.35–48), as a contrast to the grim reality of warfare. Tibullus’ work in turn influenced Propertius, who tries his hand at a recodification of elegy, by joining his mistress in a rustic retreat (2.19). The contrast between town and country is particularly stressed, and Propertius expresses satisfaction that once in the country his mistress will be out of the way of urban temptations (shows, and trysting places). Like Virgil’s Gallus, he fancies he’ll do some hunting ( ipse ego venabor , l. 17), not great big lions or wild boars of course (too dangerous), but hares and birds. One last poet’s engagement with the pastoral mode deserves a word. Ovid incorporated many poetic modes in his kaleidoscopic Metamorphoses , and the bucolic world is certainly not neglected, particularly in the tales of Pan and of Narcissus.” (Roland MAYER , “Latin Pastoral after Virgil” in FANTUZZI & PAPANGHELIS (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral , p. 453). 82

ut prisca gens mortalium, paterna rura bubus exercet suis solutus omni faenore neque excitatur classico miles truci neque horret iratum mare forumque vitat et superba civium potentiorum limina 22 .

E, efetivamente, o primeiro dos poetas rustiques , Monsieur de Pibrac, retoma de modo categórico esses termos horacianos, mas que também são os termos georgianos de Virgílio relidos pelo Rusticus de Poliziano:

O bien-heureux celuy, qui loing des Courtisans, Et des Palais dorez pleins de soucis cuisans, Sous quelque pauvre toict delivré de l’enuie, Jouyst des doux plaisirs de la rustique vie : La trompette au matin ne l’esveille en sursaut, Pour hardy des premiers se trouver à l’assaut ; Ou guindé sur le mast d’un vaisseau n’importune, Par prieres & vœux le courroncé Neptune. Il ne luy chaut d’avoir la faveur des grands Rois, Ny les premiers honneurs aux joustes & tournois, Les couronnes de prix richements estoffées, Ny les chars entaillez de superbes trophées ;23

Por sua vez, Olivier de Serres afirma, invocando Virgílio e em torno de um verso de Les plaisirs de la vie rustique , de Pibrac:

Virgile tient qu’à l’homme des champs ne manque, pour sa félicité , que de connoître son bonheur, disant :

Oh ! que par trop seroient heureux les laboureurs , S'ils savoient leur bonlieur, auxquels loin des horreurs, Du discord martial, d'une volonté franche, De vivre largement, la terre juste épanche 24

22 “Feliz aquele que, afastado dos negócios, / como a antiga raça dos mortais, / cultiva os campos paternos com seus bois, / liberto de toda usura; nem, como soldado, é despertado pela trombeta ameaçadora / nem teme o mar irado; / aquele que evita o foro e as soberbas moradias / dos cidadãos mais poderosos.” (HORÁCIO , Epodo II, vv. 1-8 e ss; tradução de Arlete José MOTA in Calíope n° 20, 2010, pp. 101-105). 23 Guy Du Faur de PIBRAC , Les plaisirs de la vie rustique composez par le S. de Pyb. à Paris, par Federic Morel, Imprimeur du Roy, 1575 (BNF, Res Ye 4628), vv. 1-12. [Gallica]. 24 VIRGILIO , Geórgicas , II, 458: O fortunatos nimium, sua si bona norint , / agricolas! quibus ipsa, procul discordibus armis , / fundit humo facilem victum justissima tellus . 83

(...) Ces contentemens ont induit plusieurs grands personnages à chanter le plaisir des champs, s’égayant sur tant riche sujet, dont plusieurs livres se trouvent écrits, remplis de telle belle nature, et beaucoup d’illustres hommes à se retirer en la solitude de la campagne , pour, hors de bruit , jouir en repos des aises dont elle abonde. La sérénité du ciel, la salubrité de l’air, le plaisant aspect de la contrée, montagnes, plaines, vallons , coteaux, bois , vignobles, prairies , jardins, terre à bled, rivières, fontaines, ruisseaux, étangs, les beaux promenoirs et jardins, prairies, et d'un autre côté, la contemplation des belles tapisseries des fleurs, les beaux ombrages des arbres, la joyeuse musique des oiseaux, les divers chants et langages du bétail, gros et menu, louant le créateur, en sont les principales causes; y en ayant d'autres infinies, qui ne se peuvent réciter, pour la nourriture, vèture, port et plaisir de l’homme, dont Dieu a rempli la terre.

Là dessus, dit le sieur de Pibrac :

Bref, en l’homme des champs, on ne sauroit choisir Un jour, heure ou moment, sans honnête plaisir 25

Entre lesquelles plaisantes commodités, ceste – ci est remarquable, qu’es champs, vous n’y voyés que de vos amis, vos ennemis ne vous allans jamais visiter. Et si bien vous n’y estes pas beaucoup accompaigné de vos semblables, vous y esprouvés véritable ce commun dire, qu’il vaut mieux estre-seul, que mal accompaigné ; se pratiquant tous les jours ès villes, combien fascheuse y est la foule du peuple, parmi lequel sont contraints de vivre ceux qui y habitent, estans souvent forcés de faire bonne mine à tels dont ils ne sont guières aimés : au lieu de la saincte liberté, en laquelle vit nostre noble mesnager 26 .

Dessas passagens, interligadas como vasos comunicantes, decantamos uma substância ascética evidente, que, a partir de uma arquitetura mental (e de uma fraseologia) latina, desconfia (ao menos textualmente) dos elementos e dos quadros sociais que habitam as grandes cortes do Renascimento europeu. Esta reatualização rustique do topos bucólico-pastoral tem, contudo, certos pressupostos que devem ser levados em consideração quando se fala em valorização da vida rural no final do século XVI – uma vez que esta nova cena deve ser entendida não exatamente no

25 Ver Guy Du Faur PIBRAC , Les quatrains de Pibrac; suivis de ses autres poésies , Paris, A. Lemerre, 1874 [Gallica, BnF YE- 30060], p. 117. 26 Olivier de SERRES , Le Théâtre de l’Agriculture et Ménage des Champs (1600), Vol. IV, Paris, Meurant, 1802, p. 626 (conclusion). Encontrei a referência a Pibrac primeiramente em Maxime GAUME , Inspiration et les sources de l’œuvre d’Honoré d’Urfé , Université de Saint-Etienne, 1977, p. 288. 84 contexto bucólico-renascentista, mas já no contexto pré-moderno da civilité , a noção-chave que define o comportamento cortesão por essa época 27 .

Tal contexto é, a um só tempo, coerente e paradoxal. Por um lado, a França do Renascimento e do Ancien Régime é, para todos os efeitos, uma França rural: com quase 90% de sua população habitando o campo, a existência de uma literatura que o valorize seria quase que, olhando a partir da nossa experiência contemporânea, uma obviedade sócio-cultural. Mas, paradoxalmente, o que ocorre é o contrário. Como todas as suas instituições importantes (legislativas, religiosas, culturais) estão nas cidades e nas cortes (sobretudo, já por essa época, em Paris), a França pré- moderna pensa sua realidade interna de um modo esquizofrênico, transformando a cidade (minoritária em quase tudo) numa obsessão que permeia e controla todas as instâncias da sua vida intelectual 28 . Valorizar o campo, neste contexto, mesmo literariamente, tem certo ar de heterodoxia irônica. Além do mais, ressaltar sua superioridade em relação à cidade (tema essencial dos teóricos e poetas da vie rustique ) implicaria, em última análise, num tipo de renúncia – uma renúncia complexa, claro, por conta das denegações implícitas e da lógica de legitimação social e cultural que a Cidade por excelência (Paris e sua corte, em nosso caso) impõe às classes abastadas francesas por essa época. Pois a Corte real do final do século XVI é já uma cosmologia particular: diferentemente dos quadros medievais

27 Para a reflexão clássica sobre o valor da civilité , ver Norbert ELIAS , O Processo civilizador (1939), 2 Vols., Zahar, 2000. E também Orest RANUM , “Courtesy, Absolutism, and the Rise of the French State, 1630-1660” in The Journal of Modern History , Vol. 52 n° 3 (Sep., 1980), pp. 426-445; Michael CURTIN , “A Question of Manners: Status and Gender in Etiquette and Courtesy” in The Journal of Modern History , Vol. 57 n° 3 (Sep., 1985), pp. 395-423; Jacques REVEL , “Os usos da civilidade” in Philippe ARIÈS , Georges DUBY & Roger CHARTIER (eds.), História da Vida Privada , Vol. 3, Da Renascença ao Século das Luzes (1986), Cia das Letras, 2006, pp. 169-209; Marvin BECKER , Civility and Society in Western Europe, 1300-1600 , Indiana University Press, 1988; Jennifer RICHARDS (ed.), Early Modern Civil Discourses , Palgrave Macmillan, 2003; Anna BRYSON , From Courtesy to Civility: Changing Codes of Conduct in Early Modern England , Clarendon Press, 1998, p. 24. 28 “As Hugues Neveux has recently observed, the geographic descriptions of France’s regions and provinces which developed as a literary genre from the second half of the sixteenth century onward regularly devoted as much as ninety per cent of their space to describing the towns of the regions in question. This reflects more than the simple fact that the most impressive architectural monuments of the kingdom were located disproportionately in the cities. Most of the institutions from law courts to episcopal sees which governed people’s lives and souls were found there as well. Much of the country’s wealth was, if not generated, then spent and displayed in the towns. And cities possessed exceptional significance in regional and national politics, as events from the Wars of Religion to the Revolution would demonstrate. Furthermore, it can be argued that between the years 1500 and 1789, the dominance exercised by cities over France’s economic and social life increased substantially.” (Philip BENEDICT , “French cities from the sixteenth century to the Revolution” in Philip BENEDICT , Cities and Social Change in Early Modern France , Routledge, 1992, pp. 6-7). 85 da noblesse d’épée , onde o rei é um primum inter pares , a “nova” nobreza francesa, rural ou cortesã, de espada ou de robe, falida ou rica, que toma forma decisiva a partir dessas últimas décadas – mas cujo processo começa bem antes, com François I –, é uma aristocracia a mando do (e decorada pelo) Estado. E, em última análise, quando ocupando postos judiciários, é, na maioria das vezes, direta ou indiretamente, paga por ele 29 . Progressivamente, essa nobreza vai-se agregando à Corte naquela simbiose que define a clássica esfera político-administrativa da França moderna, sobretudo a partir de Henrique IV e dos Bourbons: a dos nobres estatizados 30 .

Para a elite que não só afirma literariamente, mas que efetivamente vive, a vie rustique , quer dizer, a nobreza paysan de fato, estar retirada no campo (longe da Corte) significa estar longe da cidade e de suas benesses civilizatórias. Mas para os rustiques cortesãos – que valorizam o campo de modo literário ou estetizado –, seria certamente um exagero imaginar que teorizam ou pregam algum tipo de retiro semi-

29 O fato de ser nobre paysan não significava, em absoluto, opulência ou tranquilidade financeira por si só: “Les revenus du domaine forment l’essentiel des ressources des gentilhommes campagnards, même si l’apport des droits seigneuriaux n’est pas négligeable lorsque ceux-ci sont perçus en nature. Ces moyens suffisent le plus souvent à leur procurer une vie conforme aux exigences de leur état” (Arlette JOUANNA , La France de la Renaissance , Perrin, 2009², pp. 227-228). 30 Os chevaliers e títulos honoríficos concedidos pela Coroa francesa se multiplicam sensivelmente por essa época e a transformação dos gentilhommes em funcionários públicos é um dos pilares de um Estado Moderno apoiado, administrativamente, nos quadros da sua noblesse de robe : “A Corte é, antes de mais nada, um instrumento do poder real. Ela sustenta a nobreza, domesticando-a. Para muitas linhagens que se encontram em dificuldades devido ao modo de vida nobre, à preocupação com as aparências e à recusa de medir despesas, ‘fazer a corte’ e obter do soberano colocações, benefícios e doações são o único meio de escapar da ruína e da decadência social. É cada vez mais frequente que gaviões provincianos se apresentem ao rei para obter dele uma garantia de manter sua posição.” (Jean JACQUART , François I er , Fayard, 1981, p. 384). “Entre os Montaigne, sabe-se que o problema não é nem tanto a ‘preservação’, mas sim a elevação da posição social, sendo mais importante consolidar uma ascensão do que não afundar. Entretanto, na mente de Pierre Eyquem, a vocação de seu engenhoso herdeiro é inscrever-se nesse movimento que poderia ser descrito como a nacionalização da Corte, no qual a pequena ou média nobreza provinciana toma parte de bom grado.” (Jean LACOUTURE , Montaigne a cavalo , p. 52). Para o contexto geral da mutação nobiliárquica no Renascimento francês, ver John RUSSELL MAJOR , From Renaissance Monarchy to Absolute Monarchy: French Kings, Nobles, and Estates , John Hopkins University Press, 1997; Keith CAMERON , From Valois to Bourbon: Dynasty, State and Society in Early Modern France , Liverpool University Press, 1989; Arlette JOUANNA . Le devoir de la révolte. La noblesse française et la gestation de l’État modern, 1559-1661 , Fayard, 1989; Guy CHAUSSINAND -NOGARET (ed.), Histoire des élites en France, du XVI e au XX e siècle , Tallandier, 1991; George HUPPERT , Les Bourgeois Gentilshommes. An Essay on the Definition of Elites in Renaissance France , University of Chicago Press, 1977; e para o caso específico de Montaigne, ver George HOFFMANN , Montaigne’s Career , Clarendon Press, 1998. 86 monástico. Para os rustiques , valorizar o campo não significa dizer que, automaticamente, a civilização por inteiro é um mal 31 . Não se trata de macrobiótica social, de abandono do valor civilizatório da cidade para uma utopia animalesca do puro e do ingênuo, pois temos aqui um contexto de vida retirada onde os modelos são ainda e sempre obviamente aristocráticos e cortesãos: microambientes que flutuam sob os poderes da cité . Pois mesmo quando, eventualmente, não está na Corte, essa aristocracia continua, às margens do mundo urbano, mesmo a léguas de distância da cidade mais próxima, funcionando com as armas da civilité : ou antes, contrabandeia e capitaliza a civilité em armadura, brasão e moral 32 . É evidente que nem Pibrac, nem Philippe Desportes 33 , e tampouco Olivier de Serres se pensam bárbaros porque escrevem sobre o campo (ou eventualmente a partir dele), glorificando ou estetizando sua excelência. Muito pelo contrário: o funcionamento da camuflagem aristocrática, já presente, aliás, na concepção teócrito-virgiliana de pastoral (aquela que põe pastores rústicos falando em sofisticado grego-helenístico ou em hexâmetros dactílicos), continua no contexto rustique tão vivo, em sua medida, quanto nas idealizações literárias de Poliziano e Sannazaro: pois aristocratas rurais também têm seu séquito local de empregados, vizinhos, amigos e

31 Não devemos esquecer, claro, que a valorização do campo em relação à cidade (e vice-versa) funciona por vagas e depende de um sem-número de fatores que, muitas vezes, nada têm a ver com a vida no campo em si: “Nos tempos da Renascença, a cidade fora sinônimo de civilidade, o campo de rudeza e rusticidade. Tirar os homens das florestas e encerrá-los numa cidade era o mesmo que civilizá-los. Como dizia um diálogo elisabetano, um fidalgo criado na cidade seria mais ‘civilizado’ do que um educado no campo. A cidade era o berço do aprendizado, das boas maneiras, do gosto e da sofisticação. Era a arena de satisfação do homem. Adão fora colocado em um jardim, e o Paraíso terrestre associado a flores e fontes. Mas, quando os homens pensavam no paraíso da salvação, geralmente o visualizavam como uma cidade, a nova Jerusalém. (...)” No entanto, o século XVIII começará a inverter essa noção: “(...) já bem antes de 1802, tornara-se lugar-comum sustentar que o campo era mais bonito que a cidade. ‘Ninguém’, escrevia William Shenstone em 1748, ‘preferirá a beleza de uma rua à de uma relva ou um bosque; na verdade, os poetas não achariam muito tentador o Elíseo, se o concebessem como uma cidade.’” (Keith THOMAS , O Homem e o Mundo Natural , pp. 290-291). 32 “The advantages of the country life are not limited to the abundance of good food, clean air, and fresh water that Guevara and his French imitators describe. The nobleman in the country is his own master, the ‘petit roi’ of his environs; at court, only the most powerful enjoy such freedom, while the majority of noblemen of modest fortunes live in servitude and obscurity. In the rural village, he is honored by the inhabitants of lower social status, and there are people much poorer than he upon whom he may bestow his liberality.” (Jeanice BROOKS , Courtly Song in Late Sixteenth-Century France , p. 361). 33 “O bien-heureux qui peut passer sa vie | Entre les siens, franc de haine et d’envie, | Parmy les champs, les forests et les bois, | Loin du tumulte et du bruit populaire, | Et qui ne vend sa liberté pour plaire | Aux passions des princes et de rois !” (Oeuvres , Bergeries, I, p. 431). 87 frequentadores 34 . Logo, a civilité não só continua em funcionamento no campo como é uma carapaça utilizada como forma instrumental de poder. Por esses e outros motivos, o que os rustiques franceses valorizam no campo não é a natura naturans , mas a natura naturata : não a natureza selvagem e primitiva dos bosques e dos rincões perdidos – que será a de Rousseau e a dos Românticos alemães –, mas a paisagem fértil e cultivável do Vale do Loire e da Île-de-France 35 .

Ainda assim, o valor ascético do décor agrário-pastoral nas vies rustiques é evidente e podemos extrair dele até mesmo, pela via de uma amplificação de ordem ética, um valor medicinal . Este está de par com certas recomendações pré-modernas contra a melancolia e que envolvem alguma espécie de phármakon pastoral 36 . Não por acaso, quando Robert Burton se expressa neste sentido na Segunda Partição da sua Anatomia , após haver examinado as curas possíveis da melancolia (meios lícitos ou ilícitos, dietéticos, ascéticos – nas Seções 1 e 2) chegando às proposições de ordem

34 Vemos, por exemplo, no diário de Gilles de Gouberville (escrito entre 1549 e 1562), oriundo da pequena e modesta nobreza campestre que não pertence necessariamente à noblesse de épée , uma sucessão de situações que demonstram seu enorme prestígio junto aos habitantes de sua região: o pároco que espera sua presença na igreja para dar início à missa; os camponeses que batem à sua porta para dirimir contendas legais – apesar de seu estatuto específico de nobreza não prever prerrogativas de cunho judiciário; os pedidos de apadrinhamento dos recém-nascidos e assim por diante (Cf. Arlette JOUANNA , La France du XVI e siècle , p. 82). Temos, neste caso, um retrato bastante consistente de um microcosmo social paysan , hierarquizado por um elemento da pequena nobreza campestre, mas que é, na verdade, um sistema bem horizontalizado de trocas diretas: “a familiaridade rural entre patrão e empregado, vivendo muito perto um do outro, em constante relação na família doméstica, nas atividades do campo: as ordens dadas para a realização das tarefas do dia, o salário pago diretamente pelo dono, o universo do trabalho em comum nos prados, nos campos e nos bosques”. (Madeleine Foisil, “A Escritura do foro privado” in Philippe ARIÈS , Georges DUBY & Roger CHARTIER (eds.), História da Vida Privada , Vol. 3, Da Renascença ao Século das Luzes (1986), Cia das Letras, 2006, p. 344). Para o texto de Gouberville, usei Le Journal du Sire de Gouberville (Eugène de BEAUREPAIRE , ed.), 2 Vols., Caen, Henri Delesques, 1892. Ver Philippe HAMON , “Gilles de Gouberville officier” in Les Cahiers du Centre de Recherches Historiques , n° 23, 1999; Madeleine FOISIL , Le Sire de Gouberville , Flammarion, 2001². Ver também Emmanuel LE ROY LADURIE , História dos Camponeses Franceses (2002), 2 Vols., Civilização Brasileira, 2007, esp. cap. II 35 Jacqueline BOUCHET , “Vrai ou faux amour de la campagne à la cour des derniers Valois”, p. 60. 36 Federico SCHNEIDER , Pastoral Drama and Healing in Early Modern Italy , 2010, especialmente o último capítulo, “The Pastoral phármakon ”, pp. 203-210: o contexto, neste caso, refere-se mais a uma teoria do drama pastoral como phármakon [quer dizer, droga medicinal], mas é iluminador a respeito da relação da pastoral com a melancolia. Ver, também, Laurent Giavarini , “Représentation pastorale et guérison mélancolique au tournant de la Renaissance: questions de poétique” in Etudes Epistémè , n° 3 (avril 2003), pp. 1-27; Laurence PLAZENET , “Inopportunité de la mélancolie pastorale: inachèvement, édition et réception des œuvres contre logique romanesque” in Etudes Épistémè n° 3 (avril 2003), pp. 28-95. 88 consolatória (mas antes de passar às digressões de ordem propriamente farmacológica – na Seção 4), usa exatamente o trecho de Poliziano (que também são os termos de Pibrac) que citei mais acima, associado ao famoso trecho do Epodo II de Horácio:

Beatus ille qui procul negotiis Paterna rura bobus exercet suis. [Horácio, Epodo II, 1-2]

Happy he, in that he is freed from the tumults of the world, he seeks no honours, gapes after no preferment, flatters not, envies not, temporiseth not, but lives privately, and well contented with his estate;

Nec spes corde avidas, nec curam pascit inanem Securus quo fata cadantcadant. [Poliziano, Rusticus , vv. 24-25]

He is not troubled with state matters, whether kingdoms thrive better by succession or election; whether monarchies should be mixed, temperate, or absolute; the house of Ottomans and Austria is all one to him; he inquires not after colonies or new discoveries; whether Peter were at Rome, or Constantine's donation be of force; what comets or new stars signify, whether the earth stand or move, there be a new world in the moon, or infinite worlds, &c. He is not touched with fear of invasions, factions or emulations;

Felix ille animi, divisque simillimus ipsis, Quem non mordaci resplendens gloria fuco Solicitat, non fastosi mala gaudia luxus, Sed tacitos sinit ire dies, et paupere cultu Exigit innocuae tranquilla silentia vitae . [Poliziano, Rusticus , vv. 17- 21] 37

Poderíamos estender essas considerações, mas, para o que me propus aqui, esse pequeno resumo já mostra algumas possibilidades. Fazendo uma temerosa inflexão

37 “[ Beatus ille ...] Feliz daquele que, livre dos tumultos mundanos, não busca honras, não se embasbaca atrás de promoções, não bajula, não inveja, não temporiza, mas vive reservado e contente com seu estado, [ Nec spes ...]. Não se perturba com assuntos de estado, ou se reinos prosperam melhor por sucessão ou eleição, se monarquias deveriam ser mistas, temperadas, ou absolutas; a casa de Osmã e a Áustria para ele são a mesma coisa; ele não questiona sobre colônias e novas descobertas; se Pedro está em Roma, ou se a doação de Constantino fora feita à força; que significam cometas e novos astros, se a Terra está imóvel ou movente, se há um novo mundo na Lua, ou infinitos mundos, etc. Ele não se comove por medo de invasões, facções ou emulações; [ Felix ille ...].” (Robert BURTON , A Anatomia da Melancolia [tradução de Guilherme Gontijo Flores], Vol. III da edição brasileira, Segunda Partição, Seção 3, Membro 3, Subseção 1, p. 204. As citações em latim estão no original inglês.). 89 de ordem geral, poderíamos dizer que, na sociedade europeia pré-moderna, a disseminação da literatura pastoral se dá não apenas na aplicação recontextualizada de um modelo literário helenístico-romano, mas faz parte de uma ampla, contínua e dinâmica reflexão sobre certos padrões de comportamento e ação envolvendo a cidade e o campo. Essa reflexão canibaliza e ressignifica elementos de ordem literária na criação de um universo bastante particular de práticas sócio-culturais. E é a partir de um contexto diretamente derivado da vie rustique francesa, que por sua vez depende de topoi pastorais clássicos e modernos (apoteose da vida no campo, phármakon pastoral, revalorização de temas agrários na literatura, melancolia difusa, complexificação denegatória da civilité ), que gostaria de analisar o texto abaixo. 90

II.

An. Christi 1571 aet. 38, pridie cal. mart., die suo natali, Mich. Montanus, servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus, dum se integer in doctarum virginum recessit sinus, ubi quietus et omnium securus (quan)tillum in tandem superabit decursi multa jam plus parte spatii: si modo fata duint exigat istas sedes et dulces latebras, avitasque, libertati suae, tranquillitatique, et otio consecravit 38 .

Estas linhas ornam uma das paredes da Torre do château de Montaigne e, ao que tudo indica, foram escritas logo após a entrega do posto que Michel ocupava desde 1557 no Parlement de Bordeaux (seu primeiro posto, na Cours des Aides do Perigord, em 1556, foi absorvido pelo Parlement quando a Cours foi extinta em 1557). Seu pai, Pierre Eyquem de Montaigne, morrera um pouco antes, em 1568, e parece que Michel, a partir daí Sire de Montaigne e até então parlamentar por conta

38 “No ano do Cristo de 1571, com a idade de trinta e oito anos, na véspera das calendas de março, no aniversário de seu nascimento, Michel de Montaigne, já há muito tempo entediado com a escravidão da Corte do Parlamento e dos cargos públicos, sentindo-se ainda bem disposto, vem isolar-se para repousar no seio das doutas Virgens, na calma e na segurança; aí ele atravessará os dias que lhe restam para viver. Esperando que o destino lhe permita aperfeiçoar esta habitação, estes doces refúgios paternos, ele os dedicou à sua liberdade, à sua tranquilidade e a seu lazer.” A citação em latim encontra-se em Michel de MONTAIGNE , Ensaios , Vol. 1, p. LXXXII; a tradução, de Costhek Abilio, p. LIX. 91 dos desejos de ascensão nobiliárquica da família, se sentia finalmente livre para cortar o último dos cordões umbilicais 39 .

Do ponto de vista formal, esta inscrição de 1571 não é nem literatura, nem filosofia, nem história, nem ciência, mas uma efeméride, como as que foram escritas pelos Montaigne nas Efemérides de Beuther 40 . E as efemérides, que se associam tanto ao diário íntimo avant la lettre quanto a eventos de ordem cósmica, religiosa e civil, recortam um momento singular no tempo do indivíduo e do mundo. No entanto, embora efeméride, podemos facilmente ampliar seu quadro hermenêutico. Efetivamente, a inscrição pode ser entendida como o primeiro exemplo do mesmo impulso por citações que anima a ornamentação das famosas traves da sua Biblioteca 41 . Neste caso, podemos acrescentar-lhe também uma faceta gnômica explícita – aquela que, por sua vez, é tão característica do próprio texto dos Ensaios . Se entendida assim, a inscrição de 1571 constitui o primeiro momento da economia citacional que os anima: é sua abertura simbólica e concreta, ainda que algo paradoxal 42 .

Com isso em mente, este pequeno texto, explicitamente arcaizante 43 – e, a princípio, claro em seus objetivos imediatos (aposentadoria parlamentar e exclusivismo da

39 “Embora Jacques-Auguste de Thou veja em Montaigne (de longe) um magistrado ‘assíduo’, a experiência de Montaigne com a toga não deixa de ser uma série de desculpas para se esquivar, de viagens a trabalho, de férias fora de época. É significativo que a primeira referência a seu nome nos arquivos da região de Guyenne seja relativa a uma falta... E que o principal caso que conduziu, segundo os arquivos municipais, tenha envolvido a cobrança do imposto sobre bois, vacas e carneiros...” (Jean LACOUTURE , Montaigne a cavalo , p. 100). 40 As Éphémérides de Beuther eram uma espécie de agenda (trazendo apenas os dias e os meses) que mostrava as principais datas comemorativas do calendário. Não trazendo indicação do ano, e como metade de cada página era em branco, o usuário podia inscrever nela suas próprias efemérides (casamentos, nascimentos, óbitos, festas) durante praticamente a vida toda, e mesmo além – a agenda passando de pai para filho, por gerações. Ver “Notes de Montaigne inscrites sur son exemplaire des ‘Ephémérides’ de Beuther” in MONTAIGNE (Albert THIBAUDET & Maurice RAT , eds.), Œuvres Complètes [Bibliothèque de la Pléaide], Gallimard, 1962, pp. 1401-1415. 41 Sabe-se que a inscrição de 1571 foi gravada e pintada em um painel na parede do gabinete contíguo, mas as inscrições gregas e latinas da Biblioteca do château foram talhadas em baixo relevo nas 48 traves e vigas de madeira do seu teto (o que as torna solidárias de um dos topoi pastorais, como veremos abaixo). Ver Alain LEGROS , Essais sur poutres. Peintures et inscriptions chez Montaigne . Klincksieck, 2003². 42 Neste caso, ironicamente, a primeira das citações desta economia gnômica (quer dizer, as frases gregas e latinas das traves que se juntam às infinitas citações de autores antigos nos ensaios) não só não está no texto dos Ensaios como é do punho do próprio Montaigne. Reforça o aspecto gnômico geral, obviamente, o fato de a inscrição de 1571 também estar em latim, como a maioria das citações presentes nas traves e nos Ensaios . 43 “(...) tournée dans l’style de l’épigraphie classique” (Hugo FRIEDRICH , Montaigne , p. 22). 92 vida intelectual), mas, no fundo, bastante enigmático –, pode ser lido no quadro das inscrições de ordem monumental, como as do antigo Egito ou da antiga Pérsia 44 . Ou, ao contrário, como documento de derrota e capitulação 45 . Pode ser lido como grafito: marcando ou poluindo o espaço público ou privado com palavras de ordem, codificações secretas, esotéricas ou simplesmente ininteligíveis (o latim tem, nisso, algumas vantagens e a criadagem do château constitui seu público incompreensivo) 46 . Neste caso, é também solidário às garatujas de banheiro, quer

44 Podemos considerar a arte rupestre pré-histórica como inscrições monumentais, mas esta a que me refiro aqui precisa da invenção da escrita. A inscrição de Behistun (nos montes Zagros, província de Kermanshah, no Irã) é um exemplo disso que chamo de inscrição monumental: imensa (25 x 15 m), foi gravada por volta de 515 a.C. na rocha de uma falésia, a 100 m de altura, a mando de Dario I (550-486 a.C.). Escrita em três línguas (antigo persa, elamita e acadiano), conta a história da sua ascensão ao poder diante de Smerdis da Pérsia. Tem, pois, uma dimensão solene, grave, institucional e, ao mesmo tempo, de júbilo, que caracteriza o ato conquistador. 45 Como se sabe, o título Chevalier de l’Ordre de Saint Michel foi outorgado a Michel de Montaigne também em 1571, a mando do rei Charles IX. A designação chevalier quer dizer, entre outras coisas, que o nobre com esse título descende da mesma linhagem dos nobres equestres romanos (a ordo equester reorganizada por Augusto como segunda ordem do Estado, lotada sobretudo nas províncias). Assim como os membros da ordo equester romana, que eram proprietários rurais (o equestre típico é um “ bonus agricola ”), o chevalier, ainda que, essencialmente, um soldado , pode ficar sentado atrás de uma mesa, trabalhando diante de uma pilha de papel, rodeado por seus assessores ou cuidando de suas terras. Neste caso, um soldado que se alinha na tradição das antigas decúrias judiciárias do Império, perfazendo uma carreira no Direito e não no exército. (Cf. Paul CORBIER , L’épigraphie latine , esp. cap. 5, “Les cursus équestres et leur fusion avec les carrières sénatoriales au IV e siècle”, pp. 63-77). Desse modo, a inscrição de 1571 pode ser lida como um documento, irônico, de capitulação: à entrada na ordem dos cavaleiros corresponde a saída da vida pública. 46 Podemos pensar nos antigos graffiti (que para nós perderam completamente a noção de coisa ordinária para entrar no corpus sagrado dos monumentos), mas também no grafito moderno, demarcando uma cultura ou subcultura específica (o caso do hip-hop é um exemplo, cf. Janice RAHN , Painting without Permission: Hip-Hop Graffiti Subculture , Greenwood Press, 2002). Sem muita elucubração, também podemos pensar o texto na ordem da pichação pura e simples. Há, em todo caso, uma longa tradição associada a essas operações. “Most out-of-place inscriptions can be classified as tourist graffiti, inner-city graffiti of toilet graffiti. Tourist graffiti are scratched on rocks, trees and monuments by passing visitors and consist mainly of names, dates and simple expressions of affection. Roman soldiers left them on the pyramids during their occupation of Egypt, and hundreds of Greek and Latin inscriptions of the form ‘Kilroy was here’ have been found on rocks at a popular resting spot beside an ancient trail in Palestine. Inner-city graffiti tend to be more elaborate, featuring names, images and statements of identity painted on city walls, often staking territorial claims. Toilet graffiti – dubbed ‘latrinalia ’ by one scholar – appear on bathroom walls. They are produced in a setting that is an unusual mixture of private and public. All graffiti-writing requires a certain amount of secrecy, and bathroom stalls are more private than the spaces where other forms of graffiti are produced, allowing wall-scribblers more time and leisure to compose their messages. The chances of being caught in the act of writing are minimal if the latch is correctly engaged.” (Nick HASLAM , Psychology in the Bathroom , Palgrave, 2012, pp. 114-115). 93 dizer, marca de comportamento eliminativo 47 . Pode ser lido como inscrição de caráter votivo, amoroso ou profético (no registro pastoral) 48 , ou como inscrição devocional e simbólica aos daimones ancestrais – os antigos romanos diriam de devoção aos deuses “Lares” 49 . Pode ser lido como documento mágico 50 . Como

47 Roger-Henri GUERRAND , Les lieux. Histoire des commodités , La Découverte, 1985; Nick HASLAM , Psychology in the Bathroom , Palgrave, 2012; Harvey MOLOTCH & Laura NOREN , Toilet: Public Restrooms and the Politics of Sharing , NYU Press, 2010. 48 Se considerarmos a inscrição de 1571 (apesar de pintada numa parede) como mais um texto somado ao conjunto gnômico das traves, podemos aproximá-las das inscrições que ocorrem nos subtextos bucólicos, inscrições em madeira (quer dizer, nas árvores clássicas da literatura pastoral: a faia, o plátano, a cerejeira e o pinheiro), ora alimentando a mitologia de uma iminente época de ouro (Virgílio, Bucólicas IV; Calpúrnio Sículo, Bucólicas , I, vv. 21-89; Bucólicas , IV, vv. 128-136); ora lembrando recados eróticos entre amantes (Calpúrnio Sículo, Bucólicas , III, vv. 43 e ss; Virgílio, Bucólicas , V, vv. 13 e ss). Teócrito também faz referência ao plátano ornado por uma inscrição votiva: “(...) tomando um estilete de prata verteremos o untuoso licor gota a gota sobre um plátano umbroso. E uma inscrição será gravada sobre sua casca para ser lida pelo passante, como fazem os dórios: ‘Honrem-me, sou a árvore de Helena’.” (Idílios , XVIII, v. 45-49). O tema é retomado por Sannazaro, no prólogo da sua Arcadia . 49 Juntamente com a pietas – quer dizer, o respeito à memória familiar e cívica –, o culto aos deuses Lares é um dos fundamentos da vida religiosa romana, desde a época real. Ele era atribuição exclusiva do pater familias (função, aliás, muito parecida com a de Michel de Montaigne a partir da morte de Pierre Eyquem, noves fora as diferenças históricas mais imediatas), e normalmente era prestado num altar (o lararium ou sacrarium ) que ficava no atrium (peça frontal da casa, próximo à porta), o que faz do culto doméstico aos Lares uma religião de foyer : “The paterfamilias was responsible for maintaining the traditional rites of his family, the worship of the Lares and Penates and the other sacra inherited from his ancestors and destined to be passed on to his descendants (the sacra familiae ); while on the country estate, as we learn from the agricultural handbook of Cato the Elder, the whole household ( familia ) including the slaves, would gather together for ceremonies to purify the fields and to pray to the gods for protection and for the fertility of crops and herds.” (Mary BEARD , John NORTH & Simon PRICE , Religions of Rome , Vol. 1, CUP, 1996, p. 49). 50 Inúmeros papiros gregos mágicos (que respondem pela sigla técnica PGM), por exemplo, mostram não apenas conjuntos de recitações ou fórmulas, utilizadas em práticas rituais ou semirrituais, mas também regras para confecção de amuletos (filactérios) – que, uma vez sacralizados pelo ritual mágico, precisam permanecer junto ao corpo ou nos aposentos dos que esperam receber dele algum benefício (o olho de boi ou ferradura na porta de entrada das casas de hoje são sobrevivências dessas práticas antigas). Ver sobretudo Hans Dieter BETZ (ed.), The Greek Magical Papyri in translation , University of Chicago Press, 1986. E também Christopher FARAONE & Dirk OBBINK (eds.), Magika Hiera. Ancient Greek Magic and Religion , OUP, 1991; John GAGER (ed.), Tablets and Binding Spells from the Ancient World , OUP, 1992; Marvin MEYER & Paul MIRECKI (eds.), Ancient Magic and Ritual Power , Brill, 2001; Paul MIREKI & Marvin MEYER (eds.), Magic and Ritual in the Ancient World , Brill, 2001; Matthew DICKIE , Magic and Magicians in the Greco-Roman World , Routledge, 2001; Jan BREMMER & Jan VEENSTRA (eds.), The Metamorphosis of Magic from Late Antiquity to the Early Modern period , Peeters, 2002; Richard KIECKHEFER , Magic in the Middle Ages , CUP, 1989. Boa compilação de ilustrações de amuletos para diversos fins em Sheila PAINE , Amulets. A World of Secret Powers, Charms and Magic , Thames & Hudson, 2004; e também Claude LECOUTEUX , Le livre des talismans et des amulettes , Imago, 2005. Um exemplo de fabricação de filactério no contexto greco-romano é o PGM VII, linhas 579-590 (Cf. BETZ , Op. cit. , p. 134) – e a inscrição de 1571, 94 epitáfio, cenotáfio ou placa memorial 51 – e, neste caso, uma derivação possível é a de ser lido como uma inscrição de esquife 52 . Pode ser lido como documento

com sua logística obsequiosa e de invocação, permite aproximá-la desse tipo de artefato mágico. No mesmo sentido, a partir de um raciocínio consideravelmente surrealista, a inscrição de 1571, se relida nesse contexto, poderia levar a uma reavaliação ampla e complexa da própria atividade citacional montaignista: a inscrição, somando-se à economia gnômica das traves, por sua vez ampliada pela economia gnômica dos próprios Ensaios , formariam um conjunto sentencioso relativamente coeso e solidário, doravante lido na perspectiva dos grimoires – livros mágicos contendo compilações de fórmulas e feitiços variados, quase sempre de segunda mão, e seu modus operandi . Ver Owen DAVIES , Grimoires, a History of Magic Books , OUP, 2009; Claude LECOUTEUX , Le Livre des Grimoires. De la magie au Moyen Age , Imago, 2008³. Neste caso, inverteríamos completamente a ordem das coisas: não o texto dos Ensaios sendo ornamentado por citações, mas as citações ornamentadas pelo texto dos Ensaios . Por último, como reforço a essa dimensão mágico-religiosa, não devemos esquecer que o latim, apesar de toda a sua importância para o humanismo do Renascimento, é também uma língua eclesiástica e, em última análise, também uma língua esotérica. 51 O túmulo e o epitáfio são, visualmente, e enquanto memento mori , os signos árcades da melancolia – elemento explorado, mais tarde, por Guercino e, sobretudo, por Nicolas Poussin em suas telas retratando Les Bergers de l’Arcadie . O memento mori , como vimos, já era valorizado como componente pastoral desde Sannazaro (o topos tumular arcadiano foi extraído da Écloga XII da sua Arcadia ). A mais completa iconografia da melancolia (e da melancolia associada ao memento mori ) que conheço é Jean CLAIR , Mélancolie. Génie et folie en Occident , Gallimard, 2005. Para o epitáfio na Antiguidade, Maureen CAROLL , Spirits of the Dead: Roman Funerary Commemoration in Western Europe , OUP, 2006. Para uma poética do túmulo, Scott NEWSTOCK , Quoting Death in Early Modern England. The Poetics of Epitaphs Beyond the Tomb , Palgrave, 2009. Para a morte na Arcádia, ver Bruno DAMIANI & Barbara MUJICA , Et in Arcadia ego: essays on death in the pastoral novel , University Press of America, 1990. Para uma perspectiva geral do tema da morte e do fúnebre, Jean-Claude SCHMITT , Os Vivos e os Mortos na Sociedade Medieval (1994), Cia. da Letras, 1999; e, claro, Philippe ARIÈS , O Homem diante da Morte (1977), 2 Vols., Francisco Alves, 1982, e História da Morte no Ocidente (conferências de 1974), Nova Fronteira, 2012 [Saraiva de Bolso]. 52 No sentido dos coffin texts egípcios, textos exequiais inscritos no interior dos sarcófagos com o fim de ajudar o morto no trajeto ao além e no desenrolar da vida póstuma. São, no final das contas, documentos mágicos. A maior parte das inscrições vem dos textos piramidais do Império Antigo (~2700-2180 a.C.) e do chamado Livros dos Mortos – o que quer dizer que, inicialmente, eram de domínio exclusivo dos faraós. Depois do colapso do Império Antigo, inscrições desse tipo passam a figurar também nos sarcófagos comuns (de quem tinha dinheiro para comprá-los, claro), fenômeno denominado pelos especialistas de “democratização da vida além-túmulo”. Muitos desses textos implicam numa dramatização de um tribunal divino, o que não deixa de ser interessante no contexto pós-parlamentar de Montaigne (os parlements franceses do Ancien Régime são instituições de caráter jurídico – quer dizer, tribunais –, e não de caráter legislativo): “Salve Thoth e seu Tribunal. Salve, ó Thoth, em quem está a Paz dos deuses, e todo o tribunal que está contigo!” (FAULKNER , I, texto 9). Ver Steven SNAPE , Ancient Egyptian Tombs: The Culture of Life and Death , Wiley-Blackwell, 2012; Raymond O. FAULKNER , The Ancient Egyptian Coffin Texts , 3 vols., 1972-78. Para os textos do Livro dos Mortos , E. A. WALLIS BUDGE , O Livro Egípcio dos Mortos (1923), São Paulo, Pensamento, 1993. 95 utópico 53 . Como documento escatológico-milenarista 54 . Ou, simplesmente, como literatura de parede, onde a própria casa é entendida como livro 55 .

A inscrição indica ou pressupõe, portanto, um cosmo complexo e cheio de energia potencial. Ela sugere não apenas uma posição de princípio (no registro ético ou

53 A nova Idade do Ouro é, claro, também um topos pastoral. Em Virgílio, ele parece escapar do contexto das outras éclogas, mas o fato de ser um tema “um pouco mais alevantado” que os “arbustos e as humildes tamargueiras” da temática pastoral estrita não quer dizer que também não seja um tema pastoral – afinal de contas, a Écloga IV (que fala do nascimento de um menino prodigioso, que governará uma Roma beatífica e que terá ampla repercussão nas discussões milenaristas cristãs) foi publicada pelo próprio Virgílio como sendo uma... écloga. A passagem mais característica desse universo edênico é: “ Ultima Cumaei venit iam carminis aetas; | Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo. | Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna [Já chegou a última idade da profecia de Cumas; a grande série de séculos recomeça. Já também retorna a virgem, voltam os reinos de Saturno]” (Virgílio, Bucólicas IV, vv. 4-6). Mais tarde, Calpúrnio Sículo igualmente celebrará sua própria época beatífica: “ aurea secura cum pace renascitur aetas | et redit ad terras tandem squalore situque | alma Themis posito iuvenemque beata sequuntur | saecula, maternis causam qui vicit Iulis [Assegurada a paz, renasce a Idade de Ouro e, uma vez eliminada a torpeza e a sordidez, a benéfica Témis regressa, enfim à terra. Tempos felizes acompanham este jovem: saiu vitoriosa a causa dos maternos Julos]” (Calpúrnio Sículo, Bucólicas , I, vv. 21 e ss.). Estas passagens reforçam a ligação da literatura pastoral como um todo com os dispositivos utópicos (faceta que tem lugar preponderante também no desenvolvimento da vie rustique ). Na citação de Virgílio, a referência é especialmente interessante, pois esse dispositivo utópico é anunciado, além da expressão Saturnia regna , pelo termo Virgo – que tem importância estrutural no texto da inscrição de 1571, como veremos abaixo. A dimensão utópica, neste caso, é, evidentemente, aquela que invoca o nascimento de um novo ciclo do tempo, um novo começo, uma nova ordem – compatíveis, portanto, com a atmosfera explícita da inscrição feita por Montaigne. 54 Faço uma consideração a respeito mais adiante. Para uma literatura geral sobre o milenarismo, ver Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the Middle Ages , OUP, 1970; Barry BRUMMETT , “Premillennial Apocalyptic as a Rhetorical Genre” in Central States Speech Journal 35 (Summer 1984), pp. 84-93; Stephen O’L EARY , Arguing the apocalypse: a theory of millennial rhetoric , OUP, 1998; Bernard MCGINN , Visions of the End. Apocalyptic Traditions in the Middle Ages , Columbia University Press, 1979. 55 Na Inglaterra elisabetana, por exemplo, as paredes são também utilizadas para comportar textos, sobretudo textos poéticos. No Welspring of wittie Conceights (anônimo, 1584), ou no A Hundreth good pointes of husbandry, lately maried unto a hundreth good poynts of huswifery (1570), de Thomas Tusser, encontramos propostas literárias específicas para esse tipo de inscrição: “At the end of the Welspring of wittie Conceights occurs a set of ‘ Certaine worthie sentences, very meete to be written about a Bed-chamber or to be set up in any convenient place in a house ’. The appendices to Thomas Tusser’s A Hundreth good pointes of husbandry… similarly include a series of something called ‘ Husbandly Poesies’ – ‘Poesis for the hall ’, ‘ Posies for the Parler ’, ‘ Posies for the gest’s Chamber ’ and ‘Posies for thine own bed Chamber ’. These two sets of poems bear witness to the surprising fact that the Elizabethan householder was advised to write on his, or her, own walls. Evidence that such advice was followed is furnished by two Hertfordshire properties, on whose interior walls selections from Tusser’s posies can still be read” (Juliet FLEMING , Graffiti and the Writing Arts of Early Modern England , Reaktion Books, 2009, p. 29). 96 moral), mas também um lugar – um locus amoenus 56 – múltiplo, multifacetado e com características bastante peculiares. Aqui, no entanto, quero explorar apenas uma dimensão fracionária desse locus , aquela que se liga à expressão mais propriamente ascética da vie rustique .

E de fato, sem muito esforço, extraímos da inscrição de 1571, ao menos em princípio, um modelo de vida onde o Rusticus se sentiria em casa: o innocuae tranquilla silentia vitae (do verso 21) unido ao urbe procul e ao voti exiguus (do verso 22) do poema de Poliziano se casam com o ubi quietus , o ominum securus , o dulce latebras do texto da inscrição – ainda que, neste último caso, isto se dê num contexto que negocia com esse território austero da vie rustique e, aparentemente (por oposição ao texto de Poliziano, que é altamente virtuosístico), não tenha em si grandes aspirações literárias 57 . Claro, por “ modelo de vida” devemos entender o sentido que a palavra “modelo” guarda em termos de singularidade, de valor ideal : na inscrição de 1571, trata-se obviamente de uma tomada de posição, uma carta de intenções (o cansaço do trabalho no Parlamento conduziu à entrega do cargo e à vida doravante voltada para o château ), mas não necessariamente de uma práxis real que deva ser entendida ao pé da letra 58 . E, neste caso, temos em funcionamento um exemplo de menosprecio – com suas inerentes contradições e paradoxos cortesãos.

Seja lá como for, quer espelhe uma necessidade contingente ou uma mera intenção superficial, há algo de irônico nesta declarada ascese rústica, pois o “seio das doutas virgens” [ doctarum virginum sinus ] alia uma densidade altamente sexualizada à

56 Alexander SAMSON (ed.), Locus Amoenus . Gardens and Horticulture in the Renaissance , Wiley & Sons, 2012. 57 “[A inscrição de 1571 é] o pior e menos verdadeiro dos textos que [Montaigne] jamais escreveu” (Jean LACOUTURE , Montaigne a cavalo , p. 143). 58 A decisão pelo recolhimento, provavelmente preparada há muito tempo mas anunciada no dia do seu aniversário (28 de fevereiro), tem algo de teatral. Teatral também será a data de publicação da primeira edição dos Ensaios , 1 de março de 1580, no dia seguinte ao seu aniversário de 47 anos. Montaigne considerava seus novos ciclos sócio-profissionais como renascimentos? Certamente gostava de dramatizá-los. Seja como for, o “retiro do mundo”, como se sabe, mostrou-se um exagero: mesmo depois da entrega do cargo em 1571, Montaigne continuou uma intensa vida social e política, muito pouco ascética e solitária. Para uma análise histórica do tema do recolhimento, ver Georges MINOIS , Histoire de la solitude et des solitaires , Fayard, 2013; e Bernard BEUGNOT , Le Discours de la retrait au XVII e siècle , PUF, 1996. Para uma abordagem sociológica, ver Roelof HORTULANUS , Anja MACHIELSE & Ludwien MEEUWESEN , Social Isolation in Modern Society , Routledge, 2006. Em todo caso, por razões que explico mais abaixo, não gostaria de assimilar muito rapidamente o tema do contemptus mundi (na lógica místico-eclesiástica) à inscrição de 1571. Para este último, ver Michel de CERTEAU , Jean DANIELOU et alli , Le mépris du monde , Cerf, 1965. 97 imagem do οἶκος ancestral. Essa correlação irônica se fortalece na medida em que “sinus virginum ” coincide actancialmente, no texto da inscrição, com “ dulces latebras ” enquanto lugares invocados como os de repouso e de reflexão 59 . Pois sinus pode ser entendido como seio , mas também como vagina 60 ; e o substantivo latebras , embora seja um termo elegante para refúgio , está muito próximo do adjetivo latebrosus – que, associado a locus , pode significar tanto o lugar oculto , o recanto profundo e obscuro , quanto o lugar desrespeitável 61 . Sem contar que o mesmo radical também serve à formação do perigoso substantivo latebricola 62 .

59 A tradução de Costhek para a inscrição de 1571, que segue literalmente a de Villey (pelo que se vê, o texto em português foi feito a partir do francês e não do latim) assumiu “ dulces latebras, avitasque ” como “doces refúgios paternos ”, mas seria mais correto e literal dizer “refúgios doces e avoengos ”. Muito embora possa ser subentendida, uma vez que Michel de Montaigne colocou a inscrição num dos cômodos do castelo que herdou do pai , não é a palavra “ păternus, -a” que figura literalmente no texto em latim mas ăvīta [genitivo de ăvītus ]: adjetivo que designa não o pai , mas o avô , o que muda completamente o contexto. Agradeço a Gustavo Olivieri a observação. 60 “Sinus is used of the vagina or womb by Tibullus, 1.8.36: ‘ teneros conserit usque sinus ’; cf. Ovid Fast . 5.256 ‘ tangitur et tacto concipit illa sinus ’. As an anatomical (or near-anatomical) term sinus strictly denoted the space between the chest and the arms held in front of the chest as if to clasp an object (= ‘bosom’). It is not from this usage that the above anatomical examples could be derived, but from its use in application to any hollow space or cavity.” (J. N. ADAMS , The Latin Sexual Vocabulary , Duckworth, 1982, p. 90). 61 É este, por exemplo, o sentido de latebrosus no contexto de uma comédia de Plauto, as Báquidas . A entrada no Lewis-Short dá o seguinte: “lătēbrōsus , a, um , adj. latebra , full of lurking- holes or coverts, hidden, retired, secret. Lit. (rare but class.): loca, lurking-places, disreputable haunts , Plaut. Bacch. 3, 3, 26: via, * Cic. Sest. 59, 126: locus, Liv. 21, 54: viae, Amm. 14, 2, 2: loca, id. 17, 1, 6: flumina, Verg. A. 8, 713: latebrosae tempora noctis , Luc. 6, 120: serpens, Sen. Oedip. 153: latebrosa et lucifuga natio , Min. Fel. 8, 4.—Poet.: pumex , i. e. full of holes, porous, Verg. A. 12, 587”. A citação de Plauto: Magis illectum tuom quam lectum metuo. mala tu es bestia. | nam huic aetati non conducit, mulier, latebrosus locus . [Tenho menos medo dos teus jantares que das tuas iscas; és um animal sagaz. Na minha idade, moça, devemos evitar esses lugares de má reputação] ( Báquides , Ato I, cena I, vv. 55-56). O contexto (a peça trata de uma escrava meretriz emprestada que não quer voltar ao seu dono) é evidentemente irônico, mas os tradutores do final do século XIX e início do século XX que verteram esta peça para as línguas modernas (ao menos nas versões que pude checar em francês e inglês) esvaziaram por completo a expressão latebrosus locus de seu sentido sexual. No subúrbio carioca dos anos 1970, traduziríamos a expressão latebrosus locus por “inferninho”, gíria da época para puteiro – guardando, assim, as características tectônicas e abscônditas de latebrosus , embora com um colorido judaico-cristão que não se aplica a Plauto. “Inferninho” é bom ainda por outra razão: coincidentemente, o mais famoso latebrosus locus intelectual que se conhece hoje é o Enfer da Bibliothèque Nationale (sendo “enfer” um termo genérico usado pelos bibliotecários franceses para designar suas sessões de livros licenciosos e pornográficos), o que, a partir do projeto intelectual de Montaigne (a Biblioteca do château estreitamente ligada à produção dos Ensaios ), só faria re-energizar sexualmente o contexto da inscrição e da vida intelectual de seu autor. 62 Quer dizer, “o que frequenta lugares de baixa reputação”. Mais uma vez, o contexto é de uma comédia de Plauto, Trinummus , v. 240: latebricolarum hominum corruptor . 98

Lugar desrespeitável onde se vai para repousar sobre as vaginas das doutas musas/virgens ... 63

Na inscrição de 1571, temos, evidentemente, uma lógica rústica e pastoral – mas que se cristaliza perfeitamente na performance contemplativa e extática do otium cum litteris humanista 64 . Afinal de contas, a rusticidade não se contrapõe à civilização 65 . Mas tal performance , em princípio ascética (ou puramente intelectual), existe num cenário erótico irônico e subliminar. A tensão entre os elementos masculinos e femininos presentes no texto em latim (expressos por vocábulos intelectualizados e/ou da tradição monástica, e que ordinária e classicamente são esvaziados de perspectiva corporal, como quietus , otium , tranquillitas , libertas ) pode ser lida como perversamente complementar a esta densidade erótica e, na esteira desse jogo de significados, a relação estrutural entre latebras e sinus (relidos e ressignificados, como fiz acima, nos difamáveis domínios da lubricidade) não faz senão amplificá-la 66 .

63 É interessante notar que Starobinski, embora não tenha atentado para a possibilidade desse bricabraque terminológico psicodélico, também faz uso de uma leitura algo erótica de “ sinus virginum ”, partindo, porém, do conceito psicanalítico de regressão : “A libertação vai de par com o encerramento. Uma estrita oposição se manifesta entre a expressão do desgosto, a vontade de ruptura ( servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus ) e o ato votivo que consagra e circunscreve estreitamente o lugar de retiro ([...] libertati suae, tranquillitatique, et otio consecravit ). Esse lugar é, metaforicamente, o ‘seio das doutas Musas’ ( doctarum virginum sinus ): trata-se, seguramente, das paredes que lhe oferecem, ‘ao curvar-se’ [ Ensaios , II, 3, p. 828], a coleção das obras de poesia, de filosofia, de história que ele quer cercar-se. A imagem do afastamento (recessit ) do lugar oculto ( dulces latebras ), a figura feminina das Musas (...) evocam, para o leitor moderno o conceito psicanalítico de regressão, com seu cortejo de noções associadas.” (Jean STAROBINSKI , Montaigne em Movimento , p. 17). Ainda assim, Starobinski insiste que “a inscrição inaugural de 1571 não deve ser lida essencialmente como um documento psicológico”. 64 A fórmula deriva de um trecho das Cartas de Sêneca: (...) otium sine litteris mors est et hominis vivi sepultura [O ócio sem o estudo é a morte, a sepultura do homem ainda em vida ] ( Epistulae morales 82, 3), servindo como divisa ou inspiração para diversos humanistas do Renascimento (Cf. Hugo FRIEDRICH , Montaigne (1949), Gallimard, 1968, p. 22). 65 Como já adiantava Idas, personagem de Calpúrnio Sículo: “ Ne contemne casas et pastoralia tecta: rusticus est, fateor, sed non et barbarus Idas [Não desprezes as minhas choupanas nem meus abrigos pastoris. Confesso que Idas é rústico, mas não bárbaro]” ( Bucólicas II, vv. 60-61). Ainda aqui, a inscrição de 1571 acompanha a tradição pastoral, valorizando um de seus aspectos fundamentais: a imagem do rústico aristocrático. 66 “Quando Montaigne evoca a tranquilidade ( quietus , depois tranquillitas ), a segurança ( securus ), o repouso ( otium ), pode-se acreditar que não faz mais do que confirmar a natureza regressiva de seu desejo. Por certo, a casa é o lugar ancestral ( avitas sedes ) e remete à linhagem dos ancestrais masculinos, mas essa masculinidade, ligada desde 1477 à propriedade dominial, acha-se contrabalançada (para a argumentação psicanalítica) pelo gênero feminino de sedes e pela preponderância dos nomes femininos, na lista dos termos que a inscrição consagra (depois de libertas e tranquillitas , apenas otium não é feminino, mas neutro!).” (STAROBINSKI , Montaigne em Movimento , p. 17). 99

O jogo erótico não é, evidentemente, estranho ao bucolismo normativo. É importante não perder de vista que o regime pastoral tem firme no horizonte, desde sempre, o amor e o amor erótico : é para entender o amor que o Gallus de Virgílio está na Arcádia da última écloga; e é o amor erótico que está em jogo quando o pastor Córidon se desespera diante do desprezo do belo Alexis, ou quando Ástaco e Idas disputam um torneio poético para conquistar a jovem Crócale (Calpúrnio Sículo, Bucólicas II): não se espera nada de intelectual quando tais desprezos forem contornados, quando tais conquistas se concretizarem 67 . Por sua vez, o desenraizamento topográfico da pastoral em direção a uma autonomia aplicável a contextos não bucólicos, quer dizer, a sua desterritorialização 68 , torna esse jogo erótico pastoral (filtrado pelos mecanismos da vie rustique ) um dispositivo aplicável também ao contexto da Biblioteca do château . Quando relidos no ethos pastoral, a amizade e o erotismo se complementam e se energizam neste espaço da vida intelectual, sobretudo quando sabemos que a Biblioteca tem sua origem nos livros herdados de Étienne de La Boétie, o amigo por excelência de Montaigne 69 . Eis, portanto, outra relação bastante sintomática de reificação erótica da Biblioteca como um latebras /latebrosus locus 70 . Ainda uma vez, a inscrição de 1571, como

67 Note-se também que o regime erótico pastoral latino, continuado pela pastoral pré- moderna, teve como complemento a redescoberta da erótica das antigas novelas imperiais. 68 Ampliação de contexto, como vimos, presente já em Sannazaro, quando adaptou o bucolismo pastoral clássico (exclusivamente agrário) para um milieu não-campestre, substituindo os pastores pelos pescadores da região de Nápoles (as Eclogas piscatoriae foram publicadas em 1526). Ver Jacopo SANNAZARO , “Piscatory Eclogues” in Latin Poetry (Michael Putnan, ed.), Harvard University Press [I Tatti Renaissance Library], 2009, pp. 102-141. 69 “On ne peut qu’en supposer les motifs [do retiro de Montaigne]; lui-même s’est exprimé de façon très vague à ce sujet. Ils tiennent peut-être dans l’obligation, survenue à la mort de son père, de reprendre la charge du château en qualité d’héritier. Il est possible que des déceptions politiques, la satiété de sa magistrature, le chagrin d’avoir perdu son ami La Boétie, aient joué leur rôle. Nous savons en tout cas qu’il s’installa dans sa ‘librairie’, entouré de livres dont la plupart lui venaient de la succession de La Boétie (…).” (FRIEDRICH , Montaigne , p. 22). 70 Um dos elementos mais fundamentais da civilité , a conversação, não escapa de uma perspectiva erótica – complementada na imagem do casamento heterossexual como dispositivo que desfaz, no cidadão comum (quer dizer, o cortesão que não é nem eclesiástico, nem asceta em busca de Deus), os perigos da solidão (problema complexo no contexto corteggiano , uma vez que impede o exercício das virtudes civis que são próprias ao homem socializado): “(...) et con la medesima raggione debbiamo porre quest’altro fondamento, ch’essendo l’huommo animal sociabile, ami di natura sua la prattica de gli altri huomini, & habbia in odio la solitudine, & facendo il contrario offenda l’istessa natura” (Stefano GUAZZO , La Civil Conversazione , Tomazzo Bozzola, 1574, pp. 4-5). Milton, por exemplo, falará do casamento insistindo nesses termos: “In The Doctrine and Discipline of Divorce , [John] Milton argues that the original purpose of marriage was ‘to comfort and refresh [man] against the evil of solitary life’, assuaging ‘God-forbidden loneliness’ with ‘meet and happy conversation’. And, as Milton insists in Tetrachordon , such fulfillment is possible only in the heterosexual relation...” (Melissa E. SANCHEZ , Erotic Subjects: The Sexuality of Politics in Early Modern English , 100 elemento fundacional da economia gnômica e do processo intelectual que ressignifica a Biblioteca e suas traves em dispositivo rustique , embora tenha um funcionamento interno irônico e multifacetado, permanece de fato sincrônica a uma das instâncias maiores do regime pastoral: esse lugar do retiro e da solidão é não só um lugar do cultivo da amizade, da amizade perdida que permanece no culto da memória (pública e privada) e do luto (pelo amigo e pelos ancestrais), como também o lugar do prazer e, mais profundamente ainda, do gozo 71 .

Por sua vez, esse dispositivo ascético , que se esvazia em ironia sexual implícita, precisa também ser lido em paralelo ao dispositivo político que lhe é inerente: a decisão de um funcionário de Estado de entregar seu cargo também é irônica na medida em que esta ação apenas o liberta de compromissos imediatos com a ordem hierárquica à qual ele estaria preso se continuasse empregado no Parlamento. A frase “Servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus ” precisa, portanto, ser entendida em seu sentido literal. Cansado da escravidão da corte e dos cargos públicos – e não do trabalho , dos compromissos aristocráticos que sua

OUP, 2011, p. 212). Se não há referências diretas ao casamento na inscrição de 1571, sobram especulações sobre esse lugar privilegiado onde se unem erotismo e civilité : “Montaigne dirá que não sabe se não preferiria ter produzido um filho ‘nascido de um comércio [ acointance , termo que até o século XVI é “próprio da linguagem nobre da ‘courtoisie’” (Cf. TLF-i), significando neste caso comércio no sentido sexual ] com as musas a um produto das suas relações [ acointance ] com minha mulher’ ( Ensaios II, VIII, p. 401 [“Da Afeição dos pais pelos filhos”, CA II, p. 105])” (STAROBINSKI, Montaigne em movimento , p. 17). Ver também Georges MINOIS , Histoire de la solitude et des solitaires , Fayard, 2013; e Peter BURKE , A Arte da Conversação (orig. inglês 1993), Ed. UNESP, 1995, esp. cap. 4. 71 Resistirei à tentação de colocar no rol desta análise o funcionamento dos vários modelos monásticos cristãos, desde as primitivas regras cenobíticas de Antônio e de Pacômio até às ordens criadas no século XVI – modelos que exprimem, em teoria, microcosmos ideais, ainda que permeados de problemas práticos de todas as cores e tamanhos. Mas é evidente que as correlações são totalmente possíveis, sobretudo na insistência – estabelecida pelos reguladores desses contextos ascético-anacoréticos – da problemática sexual como um dos pilares de sua organização teórica e prática. Uma leitura montaignista mais tradicional (p. ex., FRIEDRICH , Montaigne , p. 21 e ss; LEGROS , Essai sur poutres , p. 239 e ss.), claro, valorizará a cena quase religiosa do “espaço votivo” ao falar da inscrição de 1571 – concepção que se liga, em última análise, à visão da Biblioteca do château como um tipo de monastério laico. Mas gostaria de acrescentar que, quando observo o cosmo citacional das traves, conjuntamente com a inscrição de 1571, fica-me também a impressão irresistível e característica do pin-up (a foto, pôster ou cartaz de uma mulher, normalmente de seios avantajados e curvas generosas, afixada na parede) – sobretudo se considerarmos as inscrições nesse contexto do gozo , ainda que intelectual. Logo, outra leitura possível é, para dizer o mínimo, a de inversão irônica dessa perspectiva monástica em uma dinâmica sexualizada – cujo rastro nos levaria, com um pouquinho mais de esforço, às margens totalmente laicas do... bordel . Ver Mark GABOR , Pin-up, a Modest History , Taschen, 1996²; Maria Elena BUSZEK , Pin-up grrrls: feminism, sexuality, popular culture , Duke University Press, 2006. 101 posição exige e da ação política ordinária 72 –, ele pode, perfeitamente, agora que não representa mais o Estado, tornar-se capaz de ações políticas concretas sem necessariamente revogar sua condição de neutralidade – o que lhe será útil quando exercer o futuro papel de mediador entre Henrique de Navarra e Paris 73 . Neste aspecto, ainda uma vez, a inscrição de 1571 pode ser lida a partir do contexto bucólico clássico, pois a neutralidade do enquadramento político, embora não seja nominalmente declarada nos subtextos, é também uma das facetas explícitas do regime pastoral e, especialmente, da sua dinâmica utópica – ainda que a faceta implícita (que é a crítica subliminar ao poder constituído, dimensão valorizada pelos críticos atuais da pastoral) diga justamente o contrário. Tanto a IV Écloga de Virgílio quanto as éclogas I e III, de Calpúrnio Sículo, localizam a Época de Ouro após o advento de uma figura política real: Polião (neto de Otaviano) e Nero, respectivamente – segundo uma leitura mais tradicional. Pois a estabilidade edênica da pastoral depende de ações políticas diretas e concretas, de manutenção da ordem

72 No trecho, Costhek Abílio parece ter se baseado exclusivamente na tradução francesa feita por Villey e não no texto latino da inscrição, pois, literalmente, “ aulici ”, em latim, significa apenas “corte”, no sentido de “corte do rei” – e não “corte do Parlamento”, como traduz Villey: aulĭcus , a, um , adj., of or belonging to a prince’s court, princely: apparatus , Suet. Dom . 4; luctatores , id. Ner . 45.—Hence subst.: aulĭci , ōrum , m., courtiers, Nep. Dat . 5, 2; Suet. Calig . 9 (cf. Lewis-Short). Neste caso, ela só teria razão em manter o acréscimo se entendermos “corte” como “corte de justiça” – quer dizer, neste caso, o Parlement de Bordeaux (no Ancien Régime, os parlements são instituições judiciárias e não legislativas), local de trabalho do Sire de Montaigne. No entanto, criaríamos aí uma ironia ainda mais profunda, pois uma coisa é a “corte” (i.e., a corte do Rei) e outra coisa é o “ Parlement ” (instituição mantida pelo Rei, mas que, em diversos momentos, por articulações de cunho político-nobiliárquico e pelas idiossincrasias da casuística judiciária, podia paradoxalmente fazer oposição ao poder real). Embora seu papel de oposição ao poder real só seja plenamente sentido no século XVIII, os Parlements provincianos, assim como outras instituições administrativas regionais ( cours des aides , chambres de comptes etc.), são uma força de equilíbrio na dinâmica de poder do Absolutismo francês: “Si nous tenons compte de leurs origines qui nous sont bien connues, de leurs pouvoirs exactement délimités, calqués sur ceux des organes similaires qui existaient dans l’entourage du roi, il est clair qu’elles [as cortes provincianas] ne possédaient aucun caractère représentatif, et qu’elles ne pouvaient exercer aucune action politique. Elles n’auraient jamais inquiété le gouvernement central, si leur activité ne s’était pas parfois manifestée en faveur des autonomies provinciales : elles répondaient en effet à ce désir, généralement répandu, d’une administration renfermée dans un cadre régional étroit, et exercée par de magistrats originaires du pays [quer dizer, da região].” (Roger DOUCET , Les institutions de la France au XVI e siècle , Tome I, Picard, 1948, p. 211). 73 “Até então [1586], esse católico confesso pôde atravessar sem maiores obstáculos as tempestades da guerra, considerado pelos seus [católicos] como um fiel aliado do poder, pelos reformados como um tolerante exemplar, respeitoso em relação a suas crenças, cujo irmão, irmã e muitos amigos haviam abraçado a Reforma. Seus textos sobre a guerra, que permeiam o primeiro tomo dos Ensaios , mostram duas faces do mesmo homem: facilmente envolvido (junto aos católicos) nas operações longe de sua propriedade, do Poitou à Île-de-France, mas pacífico quando a batalha chega perto de seus horizontes familiares, de sua casa e dos seus.” (Jean LACOUTURE , Montaigne a cavalo , p. 249). 102 e de apaziguamento militar e/ou diplomático do cenário externo e interno 74 . Restaria saber que ordem existe na França (a agitadíssima França dos Guise e da Liga) em 1571 75 . Ou se o texto aponta, nas crises preliminares que culminarão na Noite de São Bartolomeu (23-24 de agosto de 1572), seja para uma ordem política e social que precisa se reestabelecer de imediato para que a França não mergulhe no caos da guerra civil (onde a inscrição alcançaria seu sentido edênico pleno 76 ); seja para uma nova ordem do indivíduo em relação às tensões crescentes e inevitáveis das Guerras de Religião (no que a inscrição, escrita em 1571, representaria, de certa forma, uma profecia 77 ). Neste sentido, enquanto registro pastoral (funcionando numa dinâmica de forte crise de identidade social, política e religiosa da França na segunda metade do século XVI, mas também a da crise do indivíduo que remodela sua própria existência – no que não se poderia desprezar, no caso de Montaigne, também uma dinâmica intelectual própria ao ceticismo renascentista), a inscrição seria também um phármakon 78 .

74 “É ele [o recém-entronizado imperador da época, i.e., Nero] que concede paz às minhas montanhas; é graças a ele que, se me apraz cantar ou pisar, em ritmo ternário, a relva flexível, ninguém mo impede. Não só posso cantar dançando, como também gravar os meus cantos na casca verde de uma árvore, sem que as estridentes trombetas de guerra abafem a minha siringe.” (Calpúrnio Sículo, Bucólicas , IV, vv. 128-136). 75 Sobre o contexto político envolvendo a Liga Católica, ver Jean-Marie CONSTANT , La Ligue , Fayard, 1996. E também Pierre MIQUEL , Les Guerres de Religion , Fayard, 1980. 76 “Guerras civis” e “reestabelecimento da ordem” são tópicas subliminares das Bucólicas clássicas, como vimos acima. 77 O anúncio de uma nova Civitas Dei , mas de caráter particular e privado – como convém, aliás, numa visão grosseira, aos politicamente céticos. 78 Para alguns críticos (por exemplo, Susan SNYDER , Pastoral Process: Spenser, Marvell, Milton , Stanford University Press, 1998), e resumindo aqui seus argumentos de maneira simplista, a pastoral tem, por pano de fundo, a alienação . Snyder pensa a nostalgia como o conceito chave da pastoral – sendo isso o que define, na prática, o que ela entende por alienação: “Nostalgics suffered from anxiety, depression, disruption of eating and sleeping. They were likely to court death through active or passive means. In a variety of ways they withdrew from present life, obsessed instead with private fantasies of the lost home” ( Pastoral Process , p. 17). O sentido de nostalgia usado por ela, por sua vez, vem do médico suíço Johannes HOFER (Dissertatio medica de nostalgia, oder Heimwehe, Basel, 1688, translated by Carolyn Kiser Anspach in The Bulletin of the Institute of the History of Medicine Vol. 2-6, 1934, pp. 379-91) sendo a caracterização clínica do Heimweh (ou mais particularmente do Schweizerheimweh , quer dizer, a “saudade” de casa dos mercenários suíços de Luís XIV) o expediente, em Hofer, do que seriam essas “fantasies of the lost home”. Além disso, Snyder divide a nostalgia/alienação pastoral em dois vetores – uma pastoral “árcade” (nostalgia centrada na dimensão espacial) de uma pastoral “edênica” (nostalgia centrada na dimensão temporal). Logo, utilizando-se as categorias de Snyder, poderíamos afirmar que, na inscrição de 1571, desilusões de todas as ordens (políticas, religiosas, filosóficas) nos fazem localizar no texto o princípio nostálgico de “evasão do real” – um dispositivo inerente à esfera bucólica tradicional. Sendo esse “real” aqui entendido na discussão essencialmente rustique do menosprecio da corte (quer dizer, se reportando indissoluvelmente a uma ontologia do mundo cortesão), teríamos na inscrição de 1571 tanto o 103

Não discutirei aqui, no detalhe, o contexto profético-milenarista e o contexto utópico, mas precisamos levar em conta que este último pode ser lido de maneira implícita no texto da inscrição e podemos explorá-lo de maneira especulativa de modo mais incisivo. Como vimos mais acima, na IV Écloga de Virgílio, o termo Virgo da expressão “ Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna [Já também retorna a virgem, voltam os reinos de Saturno]” implica numa assunção do reino de Saturno, quer dizer, o retorno a uma era de pujança e de plena potência. Os escoliastas virgilianos interpretaram a expressão literalmente, como sendo uma referência à constelação da Virgem, mas, como se entende hoje, ela poderia ser também Astreia (a versão romana da Δίκη , deusa grega da Justiça) 79 . Entendida como deusa ou constelação, temos a palavra latina virgo como marca contextual, elemento de anunciação dos novos tempos – o que, efetivamente, é o caso do contexto evangélico (no sentido propriamente grego, de “boa nova”, do termo) da inscrição de 1571. Por esse motivo, o virginum (da inscrição) é tão evidentemente implicado na síntese de um momento edênico para Montaigne que sua associação imediata ao virgo (signo da Época de Ouro) da IV Écloga torna a relação etimológica entre esses dois termos uma obviedade quase absoluta.

Entretanto, tal como na perspectiva do bucolismo clássico, os novos bons tempos, a nova era de Saturno, implicam sempre numa melancolia de fundo: a que reconhece sua própria finitude como inexorável 80 . A pujança e o bem-estar, signos maiores da Arcádia, se posicionados no âmbito dessa perspectiva cíclica ou circular do tempo cósmico, terão certamente um fim – o que permite reconhecer sua abordagem aspecto mais particularmente temporal (quer dizer, o in illo tempore da Idade do Ouro: “doutas virgens”, “refúgio ancestral”) quanto o aspecto espacial (“corte” ou “corte do Parlamento”). Logo, a inscrição poderá ser lida, na nomenclatura de Snyder, como um exemplo de pastoral plena, ao mesmo tempo árcade e edênica. Este tipo de leitura, por sua vez, permite pensar uma resultante terapêutica à pastoral – uma vez que tal evasão do real equivaleria a uma catarse. Os dispositivos rustiques têm, certamente, esse efeito – e a inscrição de 1571 acompanha, de certo modo, essa conformação catártica geral . 79 João Pedro MENDES , Construção e Arte das Bucólicas de Virgílio , p. 224, n. 7; Jérôme CARCOPINO , Virgile et le mystère de la IV e Éclogue . Paris, L’Artisan du Livre, 1943². 80 Não podemos esquecer, aqui, a associação de Saturno com a melancolia – ainda que esta relação direta não seja encontrada nos textos fundadores da etiologia atrabiliária, mas uma formulação muito posterior, já árabe-medieval – porque as teorias renascentistas do gênio, que Montaigne segue de perto, reconhecem-na como uma de suas coordenadas mais elementares. Para a melancolia e Saturno, ver Rudolf & Margot WITTKOWER , Les enfants de Saturne , Macula, 1991; Erwin PANOFSKY , Fritz SAXL & Raymond KLIBANSKY , Saturne et la mélancolie , (1923- 69²), Gallimard, 1989; para a melancolia e o gênio, ver Noel L. BRANN , The Debate over the Origin of Genius during the Italian Renaissance , Brill, 2002; e também Michael SCREECH , Montaigne et la mélancolie (1984), PUF, 1992. 104 temporal na linhagem também clássica do tema do Eterno Retorno 81 . Na inscrição de 1571, o reino das doutas virgens/musas, no contexto da Biblioteca (o latebras /latebrosus locus ), existirá, portanto, somente até a morte daquele que ordenou seu registro na parede do quarto contíguo (e, posteriormente, porá inscrições na própria Biblioteca, nas traves que flutuam acima dela): graffiti e garatujas que projetam sua sombra melancólica a partir “dos tempos que [a Michel de Montaigne] restam para viver”. A inscrição de 1571 é, portanto, também uma mensagem apocalíptica, uma prece para o fim dos tempos. Apesar do contexto edênico do momento presente ( doctarum virginum recessit sinus, ubi quietus et omnium securus (quan)tillum... ), das forças revigoradas que apontam para uma nova era, ela é subitamente transfigurada em um memento mori ou em uma vanité a partir da imagem diferida da morte e do fim (... in tandem superabit decursi multa jam plus parte spatii )82 . O que, mais uma vez, ajuda a inflar o domínio semântico da inscrição até atingir as descrições pré-modernas da melancolia (que tem na vanitas , pictorialmente, um elemento chave) 83 .

81 Mircea ELIADE , Le mythe de l’éternel retour (1969), Gallimard, 1991. 82 Uma vanité é uma derivação do gênero pictórico natureza-morta , com forte acento alegórico em torno da noção de finitude da vida: é a estetização pictural do memento mori . O termo (de uso corrente no mercado das artes francês por volta de 1652) foi transportado da Pintura para as Letras já no século XVII. “Le critère d’une vanité en littérature, le premier et le plus évident, repose sur cette articulation textuelle entre une matière austère et pessimiste traditionnellement identifiée autour du memento mori et de la vanité de toutes choses face au temps qui passe (savoir, gloire, richesses, beauté) et la volonté de donner à voir une représentation artistique au sens large en termes de beauté et d’effets.” (Thierry BRUNEL , “«Vanités textuelles», «Vanités littéraires», validité du concept et critères de reconnaissance dans la littératures du XVIIe siècle?” in Études Épistémè , 22, 2012). A vanité literária será, claro, uma especialidade do Barroco. A expressão vanitas /vanité , por sua vez, vem do texto hebraico do Qoheleth (Eclesiastes ), quer dizer, o “pregador das assembleias”, que a tradição cristã latina assimilou através da Vulgata : “(…) vanitas vanitatum omnia vanitas [vaidade de vaidades, é tudo vaidade]” ( Ecl ., 1:2). Sabe-se que, das 16 sentenças veterotestamentárias das traves, 11 são citações do Eclesiastes : “En tout, entre les sentences et les Essais , Montaigne cumule une cinquantaine d’emprunts bibliques distincts, dont quatorze, proportion considérable – entre le quart et le tiers –, en provenance de L’Ecclésiaste . Aucun autre livre de la Bible n’a de loin la même importance pour l’auteur des Essais .” (Jean-Charles DARMON , Littérature et vanité , PUF, 2011, pp. 10-11). Ver Alain TAPIE (ed .), Les Vanités dans la peinture au XVIIe siècle [catalogue de l’exposition du Musée des Beaux-Arts de Caen], Albin Michel, 1990; M. MOUTAHAR , Les Vanités , Ed. Traversière, 1994; Karine LANINI , Dire la vanité à l’âge classique. Paradoxes d’un discours , Honoré Champion, 2006. Para o gênero natureza-morta , ver Norbert SCHNEIDER , Naturezas Mortas (or. alemão Stillleben , 1999), Taschen, 1999; Claus GRIMM , Natures mortes (2 Vols.), Herscher, 1996. 83 “Le système de représentation du XVI e et du XVII e siècle établit une étroite parenté entre la mélancolie, la mort et la conscience de la vanité. La bile noire, qui présente les deux qualités contraires à la vie (froideur et sécheresse), est l’humeur de la mort. (...) La mélancolie est aussi associée au passage du temps et au sentiment de la vanité. Saturne est Chronos, le Temps qui ‘dévore ses œuvres’ et qui met en évidence la fugacité de toute chose. (...) L’iconographie met 105

Por outro lado, se a inscrição de 1571 pressupõe, nessa dedução melancólica indireta, a finitude e a morte , no sentido inverso, ao pé da letra, ela se refere à vida, embora unicamente à vida daquele que mandou gravá-la na parede. E, de fato, o locus amoenus do responsável pela inscrição foi preparado e pensado exclusivamente para si mesmo : representa o fim de um ciclo (ancestral, amical, profissional), do qual seu autor se toma por herdeiro direto e privilegiado; e também o início de um novo, embora este que se abre seja totalmente autorreferente . Não há sombra de parentes, consortes, qualquer sinal de que tudo aquilo que está descrito e pressuposto na inscrição (o atestado desse novo ciclo) possa estar sendo oferecido também para sua esposa, sua linhagem, seus filhos, netos, bisnetos ou amigos. Operação sumamente diferente da que preparou seu bisavô, legando aos Eyquem- Montaigne (o próprio Michel o reconhece usando a expressão avitasque ) o latebras que é agora sua propriedade exclusiva 84 . E também bastante diferente do gesto de Etienne de La Boétie, ao doar em testamento os livros que Michel instalou no aposento contíguo e que serão, doravante, seus companheiros durante os vinte anos de composição dos Ensaios 85 . A inscrição de 1571 é, portanto, para usar a expressão do topos pictural que surgirá algumas décadas depois 86 , o Et in Arcadia ego de Michel de Montaigne: o início de um projeto intelectual individual (e individualista) de toda uma vida sob o signo paradoxalmente melancólico, vaidoso, tumular e exequial (em outras palavras, pastoral , na roupagem moderna de Sannazaro) do seu próprio fim.

en évidence la parenté étroite de la mélancolie et du savoir de la vanité. La Melancholia I de Dürer représente en arrière-plan un sablier, symbole du passage du temps qui obsède le mélancolique et, de manière générale, la mélancolie est souvent associée à des objets exprimant l’inanité des choses matérielles (des sabliers, des souches d’arbres, des colonnes brisées ou de crânes).” (Christine OROBITG , Garcilaso et la mélancolie , Presses Universitaires du Mirail, 1997, pp. 159-160). Para a articulação pictural da vanitas com a Melancolia, ver Jean CLAIR , Mélancolie. Génie et folie en Occident , Gallimard, 2005. 84 Como se sabe, o bisavô de Michel, Ramon Eyquem, comprou a propriedade de Montaigne (castelo e título nobiliárquico) em 1477. Tratava-se, então, de uma senhoria pertencente a outro comerciante da região, Guillaume Duboys, que, por sua vez, havia adquirido as terras da nobreza arruinada pela Guerra dos Cem Anos. Ligadas a um título nobiliárquico, as terras de Montaigne são um investimento em longo prazo, oferecido à sua descendência – sobretudo porque Ramon, que contava já com 75 anos, não deveria mesmo imaginar que sobreviveria tempo suficiente para tornar-se um aristocrata. De fato, morreu cerca de um ano depois, em 1478. 85 LEGROS , Essai sur poutre s, p. 248. 86 Por conta dos quadros de Guercino (1622) e, sobretudo, de Poussin (1638). Ver Erwin PANOFSKY , “ Et in Arcadia Ego ”, p. 387 e ss. 106

Vemos, pois, que uma dinâmica pastoral pode se estabelecer a partir de um amplo espectro de questões heterogêneas (e não apenas da retomada do tema campestre em si). O exemplo da inscrição de 1571 mostra como essa dinâmica, funcionando já no contexto da vie rustique , poderia ter afetado um intelectual nobre vivendo o fim do “beau XVI e siècle” . Por extensão, e ao menos a título de exercício, uma lógica paysan tornaria possível uma abordagem também pastoral de diversos capítulos dos Ensaios – o que, no final das contas, permitiria uma releitura do seu contexto geral, ressignificando e rearticulando algumas de suas perícopes. IV OOO fait divers nnnana época prépré----ModernaModerna Situação geral e contexto literário

Ao que parece, a maior parte da crítica montaignista ignorou completamente a presença de faits divers nos Ensaios . A reconstituição da Biblioteca de Montaigne, proposta por Villey em 1924, fez autoridade, mas passou completamente ao largo desse material documentalmente rarefeito que são os bulletins d’information , os occasionnnels e os canards . No entanto, uma das principais mídias da França e da Europa durante o fim do século XV e todo o século XVI, os occasionnels provavelmente estão na base de muitos dos inumeráveis causos descritos no texto dos Ensaios . Para o que argumentarei mais adiante, proponho neste capítulo um resumo histórico a respeito desse material e suas relações com os textos literários e teóricos seus contemporâneos.

1.O noticiário impresso no final do Renascimento

OUCO ANTES DO APARECIMENTO dos primitivos jornais (estruturas montadas para a transmissão impressa e periódica de notícias, com corpo P 1 relativamente organizado e recorrente de articulistas e colaboradores ), o cenário do circuito noticioso europeu foi invadido por uma grande massa de textos, de caráter pontual, tratando de eventos particulares. Esses textos são parte de um conjunto-universo novo, o dos hoje denominados boletins de informação , ou ocasionais 2. Embora não fossem os únicos veículos de comunicação no período imediatamente anterior ao aparecimento dos jornais (os mensageiros, os viajantes, soldados em campanha, os éditos e diversos outros dispositivos escritos e orais,

1 Na França, a imprensa periódica só aparecerá em 1631, com a publicação do primeiro número do semanário La Gazette , impresso por Théophraste Renaudot. Minha definição do jornal do século XVII não difere muito daquela do jornal tal como a conhecemos hoje – exceto, talvez, neste caso, pelo papel dado à publicidade –, mas, como se trata apenas de uma definição contextual, não entrarei no mérito de sua especificidade. 2 Uma arqueologia exaustiva da pré-história dos jornais deveria retroagir até contemplar uma análise dos Acta diurna do Império Romano – publicações diárias [ diurna ] que circulavam trazendo todo tipo de informação (de casamentos a crônicas esportivas e teatrais), redigidas pelos diurnarii [diaristas] (ancestrais dos jornalistas modernos). Salústio, por sua vez, um dos protegidos de Júlio César, era o redator de uma publicação periódica, o Commentarius Rerum Novarum [Crônica das novidades], semanário que empregava 300 escravos escribas com 10 mil exemplares por edição (Cf. Jacques WOLGENSINGER , L’Histoire à la Une. La grande aventure de la Presse , pp. 14-15). Não sendo o objetivo último deste artigo fazer uma história da imprensa, mas a contextualização do noticiário no final do Renascimento, me desincumbo desta tarefa historiográfica geral. 108 como os rumores , cumpriam esta tarefa 3), a difusão de notícias teve, nos boletins publicados pontualmente – isto é, cada vez que um fato importante ou sensacional vinha à luz, daí o nome de “ocasional” –, um dos seus principais meios propagadores 4. Na França, e alhures, eles foram um medium importante de circulação de notícias para o grande público já no século XV: incluindo-se aí desde o iletrado – que ouvia os relatos lidos em voz alta pelos alfabetizados – até o cronista e o historiador seus contemporâneos, que utilizavam esses boletins como fontes diretas ou indiretas 5.

Trechos de cartas, relatórios, testemunhos em primeira mão (de atores ou observadores diretos, de coadjuvantes), mas também testemunhos indiretos, (retomados de outras fontes, mais ou menos confiáveis), ou simplesmente informações falsas ou de teor falacioso, esses textos, por conta de diversas circunstâncias, foram publicados com crescente interesse pelos florescentes e ativos impressores do Renascimento 6.

3 “De façon générale, le rôle fondamental que joue la rumeur dans l’espace public reste à découvrir, alors qu’elle agit à la fois comme information et comme contestation de l’information dans les milieux populaires.” (Maïté BILLORE & Myriam SORIA , La Rumeur au Moyen Age , p. 27). 4 Lembro que essas denominações (“ocasional”, “boletim de informação”, “ fait divers ”) são retroativamente anacrônicas em relação ao período considerado aqui, final da Idade Média e Renascimento, uma vez que se trata de uma nomenclatura jornalística que vem do século XIX. 5 Embora, por razões internas à pesquisa, a análise aqui esteja concentrada no desenvolvimento dos ocasionais franceses, essa nova dinâmica da informação não é, claro, específica à França. Em algumas regiões, como na Itália, na Alemanha e nos Países Baixos, a produção de boletins e ocasionais reunia uma verdadeira estrutura de notícias – à qual faltava somente periodicidade para ser considerada como jornalística. No caso desses países, os ocasionais operavam com conteúdos de interesse direto para o comércio: “Quant aux nouvellistes [i.e., os profissionais de notícias] vivant de leur profession, ils devinrent très nombreux. Certains avaient de véritables bureaux bien organisés : Jérémie Krasser dirigea un bureau de ce genre à Augsbourg, qui fut repris après sa mort pour Schiffle ; tous les deux travaillaient pour les Fugger et pour d’autres clients. Les électeurs de Saxe payaient de nombreux correspondants (parmi lesquels figure Hubert Languet) pour leur envoyer les feuilles dont la collection est conservée aujourd’hui à Dresde. Certains nouvellistes cherchèrent à étendre leur clientèle. Un témoin du XVIe siècle voit à Hambourg un bureau de ce genre, où les diplomates et bien d’autres personnes viennent se procurer des nouvelles manuscrites et imprimées. C’est en Italie surtout que le commerce des fogli a mano se vulgarise. A Venise on les vendit publiquement sur le Rialto dans une boutique ; nombreux étaient dans cette ville les professionnels, appelés tour à tour menanti , novellanti , rapportisti , gazettanti . Ce dernier terme nous rappelle que, d’après la tradition, le mot « gazette » vient de la petite pièce de monnaie vénitienne ( gazzetta ) qui payait la feuille mise en vente (…)” (Georges WEILL , Le Journal. Origines, évolution et rôle de la presse périodique , pp. 11-12). 6 Na França, a voga começou com as Guerras da Itália: “Sous Charles VIII, de nombreuses pièces de cette nature avaient fait connaître, parfois presque jour après jour, à un public assoiffé de nouvelles, les péripéties des campagnes d’Italie. D’autres reproduisaient les textes 109

Normalmente de pequenas dimensões – com poucas folhas e papel ruim, muitas vezes ilustrados, usando tipos já gastos e as sobras da confecção dos produtos editoriais de primeira linha (livros), numerosas imprecisões ortográficas (uma mesma palavra escrita de maneiras diferentes na mesma página, por exemplo) –, esse material, feito visivelmente para consumo rápido e amplo, é hoje, por conta desses fatores de produção (e pelo fato, não menos importante, de não terem sido absorvidos pelas bibliotecas da época), considerado raro 7.

Apesar dessas limitações, e graças ao interesse de alguns colecionadores contemporâneos como Pierre de L’Estoile – que os recolhia muitas vezes pouco tempo depois de sua impressão 8 –, os poucos documentos que chegaram até nós são suficientes para traçar algumas considerações gerais.

É sabido que a voga dos ocasionais na França foi sincrônica a um significativo incremento na velocidade e na amplitude da circulação de notícias: se o que se passava na Itália demorava algumas semanas para ser conhecido em Paris, um acontecimento relevante no que então era considerado solo francês demorava em torno de uma semana para ser impresso e difundido nos grandes centros regionais por volta de meados do século XVI 9. Essa intensificação do circuito noticioso foi

de traités importants ou relataient les circonstances d’entrées de souverains ; d’autres, enfin, vulgarisaient le texte de la lettre de Christophe Colomb ou racontaient de passionnants faits divers. Au début du XVIe siècle, les bulletins d’information se font de plus en plus nombreux, et leur clientèle s’accroît. Les règles du genre, dans le choix de nouvelles et dans leur présentation, s’élaborent telles qu’on les retrouvera pratiquées par les éditeurs de gazettes, par les canardiers et par les journalistes à venir.” (Jean-Pierre SEGUIN , L’Information en France de Louis XII a Henri II , p. 7). 7 O acervo da Bibliothèque Nationale de France [BNF] possui a mais importante coleção de occasionnels em língua francesa, alguns deles já digitalizados e oferecidos na base Gallica. Os principais estudos de conjunto sobre essa coleção foram publicados a partir do final dos anos 1950, sendo os dois livros de Jean-Pierre SEGUIN , L’Information en France de Louis XII a Henri II (1961) e L’Information en France avant le périodique (1964), ainda fundamentais. Estes livros são reuniões corrigidas de artigos publicados anteriormente na revista Arts et traditions populares . O de 1964, fundamental para este estudo, saiu como sequência de artigos em ATP T. XI nº 1, Janvier-Mars 1963, pp. 20-32; ATP T. XI nº 2, Avril-Juin 1963, pp. 119-145; e ATP T. XI nº 3-4, Juillet-Décembre 1963, pp. 203-280. 8 Annik DUBIED & Marc LITS , Le fait divers , p. 7. Ver também Annik DUBIED , Les Dits et les scènes du fait divers , pp. 19 e ss. 9 “Il semble que les Parisiens, les Rouennais, les Lyonnais pouvaient lire le récit d’un événement quelques jours seulement après qu’il ait lieu en France ; ils n’attendaient guère plus de deux à trois semaines pour connaître ceux d’Italie ou d’Egypte. Pour publier ces bulletins, il suffit de quelques jours au cours de la première moitié du XVIe siècle pour les événements survenus dans le royaume, deux à trois semaines pour les nouvelles de l’étranger. A la fin du 110 sincrônica também à melhoria dos correios 10 – o que, por sua vez, foi uma das pré- condições de periodização dos bulletins , desembocando nos semanários do início do século XVII: o jornal é uma equação feliz entre a invenção da imprensa (quer dizer, da prensa de tipos móveis de Gutenberg), do mercado de papel (desenvolvido e disseminado para alimentar as prensas 11 ) e dos correios. Bem como, claro, de um público consumidor regular 12 .

Em grande parte, o jornal primitivo podia ser definido como as notícias enviadas por um editor a um número fixo de leitores associados (“assinantes”), impressas entre o momento de chegada do correio (isto é, com as últimas notícias) e seu momento de partida (já com as mesmas notícias postas no papel). Vem desse cronograma apertado, aliás, as inumeráveis falhas de composição que vemos nos exemplares que sobreviveram 13 . A regularização dos correios, portanto, foi de fundamental importância no processo: quando o sistema passou a ser mais eficiente (com malotes mais frequentes), as gazetas acompanharam o ritmo – o que comprova a rápida dinâmica adquirida pelo mercado específico de notícias. Este passou a ser autônomo – quer dizer, não dependente apenas das informações trazidas pelos

XVIe siècle, d’après le journal de Pierre de L’Estoile, il faut une semaine pour savoir ce qui se passe dans les Pays-Bas, douze jours pour le monde méditerranéen. En 1622 encore, les privilèges [licença de impressão] portent des dates postérieures de deux, six et même dix jours au déroulement des faits français, quinze jours pour les pays voisins.” (Claude BELLANGER (ed.), Histoire générale de la presse française , I, p. 33). 10 O correio francês foi oficialmente criado por Luís XI em 1462. O sistema postal foi assim chamado “porque envolvia o estabelecimento de postos com homens e cavalos estacionados ao longo de algumas estradas ou rotas de correio”. Sistemas estruturados de informação foram vitais não apenas na transmissão de notícias, mas também no estabelecimento dos grandes Estados europeus do Renascimento. É notório que, antes dos correios e de rotas que assegurassem a boa circulação de dados, os grandes aristocratas e, sobretudo, os reis, precisavam se deslocar bastante para manter seus domínios sob controle. Carlos V (reinando entre 1520 e 1556) é um exemplo, com 40 viagens: “dez à Holanda, nove à Alemanha, sete à Itália, seis à Espanha, quatro à França, duas à Inglaterra e duas ao norte da África”. Já durante o reinado de seu sucessor, Felipe II (1556-1598), a ubiquidade do rei é sensivelmente menor: “Ele preferia, na medida do possível, permanecer em um lugar, Madri ou seus arredores, e sentar a sua mesa de trabalho durante várias horas por dia, lendo e anotando os documentos que chegavam de todos os seus domínios. Não é de estranhar que os súditos tenham-no apelidado de ‘ el Rey papelero ’” (Asa BRIGGS & Peter BURKE , Uma História Social da Mídia , p. 33 e p. 34). 11 Ver Michel VERNUS , La fabuleuse histoire du papier , Cabédita Editions, 2004. 12 A ideia de semanário não existe por acaso. É função direta da periodicidade dos correios, que servia as cidades a cada sete dias: “Au début du XVIIe siècle, la régularité des services postaux – le courrier, en principe, partait des grandes villes une fois par semaine – assura la régularité de la réception des informations et permit la régularité de la réception des feuilles de nouvelles. (…) Elle fut hebdomadaire comme l’arrivée et le départ des courriers.” (Raymond MANEVY , La presse française de Renaudot à Rochefort , p. 10). 13 MANEVY , op. cit. , p. 12. 111 correios – quando, sobretudo nas grandes cidades, sem desprezar o noticiário externo, o noticiário local ganhou também o interesse de seu público consumidor 14 . Assim, poderíamos resumir grosseiramente, dizendo que sistema de comunicação eficiente, organização geopolítica, controle da informação 15 e criação de uma cadeia de consumo de notícias são partes do fenômeno que tornou possível a existência da imprensa periódica no começo do século XVII 16 .

O advento do jornal – ou, mais especificamente, da gazeta semanal – não significou, porém, a morte dos ocasionais – assim como os ocasionais não significaram a morte da transmissão oral de notícias 17 . Todos eles coexistiram num determinado

14 “Quand les courriers circulèrent deux ou trois fois par semaine sur les routes principales partant d’une capitale, les journaux d’information devinrent bi et tri-hebdomadaires. La rupture de la concordance se produisit quand dans la ville même où elles s’imprimaient les gazettes trouvèrent une matière assez riche pour les alimenter en copie et une clientèle assez importante pour les faire vivre.” (MANEVY , op. cit. , p. 12). 15 A exigência do privilège du Roy para os occasionnels da primeira metade do século XVI é difícil de ser avaliada. Privilèges são concessões dadas pelo governo a um editor para a publicação e a distribuição de uma obra impressa, e que regulamentavam também o prazo máximo para as reimpressões. No que concerne à produção, ignora-se quais seriam os ateliês de impressão da grande maioria dos ocasionais pelo menos até 1547 – a partir daí, uma déclaration real obrigou impressores e editores a estampar seus nomes nos frontispícios de todas as suas produções. Muitos ocasionais trazem efetivamente menções de privilégio e de autorização, embora a natureza exata (regulamentação especial?) permaneça, como para o conjunto da edição francesa da época, mal conhecida. Não é possível dizer, por exemplo, se a circulação era mantida sob vigilância estrita do governo ou da Igreja (como no caso de textos de teor religioso). A título de comparação, os privilèges concedidos aos boletins variavam de oito dias a um mês – ao passo que os livros gozavam de licenças de circulação de até cinco anos (Cf. SEGUIN , L’Information em France entre Louis XII e Henri II , p. 49). No que diz respeito ao século XVII, no entanto, não custa lembrar que a Gazette de Renaudot, sustentada e muitas vezes alimentada por Richelieu, o todo-poderoso ministro de Luis XIII, é praticamente um aparelho a serviço do Estado. 16 “No século XVI, uma família dominava o sistema postal europeu, a Tassis ou Taxis (...). Foi essa família, dona dos correios dos imperadores Habsburgo a partir de 1490, que desenvolveu o sistema usual, operando de acordo com uma tabela fixa (disponível em forma impressa a partir de 1563). Bruxelas (...) era o ponto central do sistema. Uma rota ia de Augsburg e Innsbruck a Bolonha, Florença, Roma e Nápoles. Outra ia a Paris e, através da França, a Toledo e Granada. Mensageiros especiais, trocando os cavalos a intervalos regulares, eram capazes de viajar até cerca de 200 quilômetros por dia e, assim, trazer as notícias de importantes eventos com relativa rapidez. Em 1572, por exemplo, as notícias do massacre de protestantes em Paris chegaram a Madri em três dias (...). Entretanto, o tempo em geral gasto para a chegada das mensagens era consideravelmente maior, pois correios normais andavam cerca de dez a 13 quilômetros por hora.” (BRIGGS & BURKE , História Social da Mídia , pp. 33- 34). 17 “L’apparition des périodiques ne fera pas disparaître ces publications épisodiques, qui entretiendront avec eux des échanges réciproques soit que le journal inclue des pièces occasionnelles (ainsi le Courrier universel de Claude le Villain à Rouen qui en imprime quatorze en 1632 e 1633), soit que les occasionnels reproduisent des textes empruntés à la Gazette (ainsi 112 momento – de fato, até o fim do século XIX, ainda serão impressos ocasionais na França nos moldes daqueles do século XVI 18 .

2. Fait divers e canards

Se a folha impressa dos ocasionais não substituiu a circulação de manuscritos dos cronistas (anônimos ou não), que continuaram copiados e recopiados no mesmo sistema, algumas particularidades foram sendo sentidas na dinâmica da informação em papel. Os boletins, que, de início, tal como no caso das crônicas e das memórias clássicas e medievais, se concentraram sobre acontecimentos bastante aristocráticos (entronizações, casamentos reais, grandes batalhas, golpes de estado 19 ), vão, aos poucos, oferecendo um quadro mais amplo, levando ao seu público também notícias sobre a atualidade geral – quer dizer, notícias cujo fundo e interesse não era necessariamente aristocrático. Essa mudança de conteúdo dos ocasionais políticos e históricos do século XV para os do século XVI, de espectro mais largo, é de fundamental importância para todo o circuito de narrativas produzidas no século XVI – e não somente no que diz respeito às gazetas e periódicos posteriores, como veremos. E tal como no caso do livro, mas ampliado aqui por conta das vicissitudes do formato, a facilidade de imprimir cópias a partir de uma matriz (inerente ao sistema de prensa de tipos móveis de Gutenberg) lhe forneceu, portanto, um meio de produção eficiente, massivo e relativamente barato 20 .

A partir do começo da década de 1530, na continuidade desse mercado, os boletins franceses começaram a mostrar também um interesse sistemático pelo acontecimento puramente quotidiano , i.e., o acontecimento sem necessariamente

à Bordeaux où Guillaume Millanges et les de La Court réimpriment sous cette forme des Extraordinaires de Renaudot).” (Roger CHARTIER , “Pamphlets et gazettes” in Histoire de l’édition française , I, p. 411). 18 Annik DUBIED & Marc LITS , Le fait divers , p. 7. Mesmo com a industrialização, o modelo de venda dos jornais modernos ainda deveu muito ao dos colporteurs do medievo-renascentistas (ver mais abaixo): nas grandes cidades, até poucas décadas atrás, vendiam-se edições de última hora gritando-se o conteúdo de sua manchete principal (com o bordão “Extra! Extra!...”). 19 Exceção feita aos boletins do final do século XV, sobretudo na Itália e nos Países Baixos, que também traficavam informações de caráter funcional para o comércio. 20 Para os impressores do Renascimento, o valor econômico dos boletins de informação é, desde o início, bastante significativo, mas de modo pontual: “S’il existe déjà quelques spécialistes [em imprimir ocasionais] – P. le Carron et J. Lhomme surtout ont droit à ce titre – pour la plupart des autres imprimeurs, les bulletins d’information n’étaient qu’un moyen, plus ou moins souvent employé, de réaliser une bonne affaire en vendant rapidement, à une clientèle étendue, une marchandise produite à peu frais.” (Jean-Pierre SEGUIN , L’Information en France de Louis XII a Henri II , p. 50). 113 uma implicação política, econômica ou religiosa clara ou ao menos declarada . Em outras palavras, por esta época, os editores também começaram a publicar aquilo que modernamente chamamos de fait divers 21 .

Essa mudança de atitude com relação aos “fatos” da “vida ordinária” é uma verdadeira revolução. De 1529 em diante, os faits divers entrarão no circuito do noticioso como uma força autônoma e decisiva, de apelo e consumo populares. Seu veículo de proliferação será o canard – definido, para todos os efeitos, embora tautologicamente, como o ocasional que compila um fait divers 22 .

Tecnicamente, o canard , na definição dada por Seguin,

(…) est un imprimé vendu à l’occasion d’un fait divers d’actualité, ou relatant une histoire présentée comme telle.

21 “Pour la période 1488 à 1529, J.-P. Seguin a retrouvé près de 200 occasionnels, mais aucun ne relate un fait divers, ce qui est assez curieux. A partir de cette date, les canards se multiplient. Le Journal d’un bourgeois de Paris [sous le règne de François I ], de 1515 à 1536, en consigne d’innombrables. Pierre Boaistuau en rassemble dans un recueil sous le titre Histoires prodigieuses en 1560.” (BELLANGER [ed.], Histoire générale de la presse , I, p. 41). Aproprio-me, aqui, como se vê, de um conceito clássico de fait divers – tal como o usado, entre outros, por Roland BARTHES (“Structure du fait divers” [1962] reprint in Essais Critiques , pp. 194 e ss.). Lembro, porém, que, embora de uso corrente pelos especialistas (em particular por Seguin), o emprego do termo fait divers aqui é anacrônico: só começou a ser utilizado no circuito jornalístico no primeiro terço do século XIX (o Robert traz a data de 1838), designando uma rubrica noticiosa reunindo os acontecimentos menores do quotidiano – quer dizer, aqueles sem lugar nas grandes rubricas de um jornal (Política ou Economia, por exemplo). Importa dizer que, se exagero essa ideia de canard “sem implicações” e “fora das rubricas clássicas”, é para melhor contextualizá-lo, à espera de uma discussão mais fina posterior. 22 Preferi não traduzir canard por “pasquim”, que seria o termo equivalente em português, por três motivos: 1). pelo fato de trabalhar aqui exclusivamente a partir de fontes francesas; 2). por ser o termo pasquim ligado em demasia a uma tradição de sátira e crítica política – o que não é necessariamente o caso no canard (veja-se a etimologia proposta por HOUAISS , Dic. da Língua Portuguesa , entrada “pasquin-”); 3). e também porque canard (literalmente “pato”) conserva em si, por sinédoque, uma referência ao aspecto oral (o grasnar agudo do pato ) da circulação de notícias que não deve ser esquecido em nosso contexto. A obra essencial para a análise do canard francês da época aqui considerada é Jean-Pierre SEGUIN , L’Information en France avant le périodique. 517 canards imprimés entre 1529 e 1631 (Paris, 1964). Algumas peças desse seu repertório de 517 canards , boa parte dele inventariado a partir do acervo da Bibliothèque Nationale no final da década de 1950, foram perdidas – ao que parece, extraviaram-se no próprio acervo da BNF, segundo o que pude constatar em pesquisa local. Desde então, outros canards foram descobertos em bibliotecas menores e acervos diversos, mas o inventário de Seguin permanece referência obrigatória para o estudo desse material. O mais antigo canard francês de que se tem notícia se intitula Le grand Miracle Dung enfant ne Par la voulente de Dieu en la ville de Norden, au pays de Frise, en Allemagne (abril de 1529) e foi modernamente publicado no Bulletin du bibliophile , mai-juin 1890, pp. 201-208. 114

Il peut avoir des liens plus ou moins étroits et avoués avec les évènements politiques et religieux contemporains, mais le fait divers y demeure le principal motif d’intérêt et si propagande il y a, celle-ci passe sous son couvert.

Le canard peut être imprimé au recto seul d’une feuille de grand format illustrée, comportant assez de texte pour se différencier de l’image, mais il se présente presque toujours sous la forme d’une brochure d’un ou de deux, très rarement de trois cahiers, généralement composée à la hâte, sur un papier de médiocre qualité 23 .

O termo canard foi empregado, acima, numa dimensão conceitual e técnica, mas ele já é popularmente corrente, no século XVI, para designar notícias impressas vendidas nas ruas 24 . Neste sentido, existe uma clara continuidade entre o noticiário oral de atualidade e seu “homônimo” impresso, pois “ canard ” traduz bem, em última análise, o estado ordinário de circulação da informação: publicados às vezes em cadernos de até 25 páginas (embora normalmente oscilando em peças in-8° de 10 a 16 páginas), frequentemente com a folha de rosto ilustrada (ainda que as gravuras pouco tenham a ver com o conteúdo 25 ), canards e bulletins não são comercializados em bancas, lojas ou casas de edição, mas por ambulantes (colporteurs e vendeurs à là criée ) que gritam o seu conteúdo nas ruas 26 .

23 SEGUIN , L’Information en France avant le périodique , p. 8. 24 Essa afirmação é controversa, mas sustentada por Maurice LEVER . No século XVIII, o termo canard “désigna une fausse nouvelle lancée dans la presse pour abuser le public, puis par extension [por volta de 1848], un journal de peu valeur”. (Maurice LEVER , Op. cit. , p. 11, n. 2). 25 “C’est ainsi que la crue de la Seine en 1579 est illustrée par une vue de Venise en 1480”, entre outros tantos exemplos. Cf. WOLGENSINGER , L’Histoire à la Une. La grande aventure de la Presse , p. 17. 26 Colporteurs no campo e “ vendeurs à la criée ” (literalmente, “vendedores na base do grito”) nas cidades, com seus cestos cheios de impressos pendurados em torno do pescoço (Cf. WOLGENSINGER , op. cit. , p. 17; duas ilustrações de gritadores em ação na p. 13 desse volume). Pierre de L’Estoile dá, em seu diário, uma ideia de como funcionava esse comércio: “Le jour mesme [2 de agosto de 1611] on crioit un Discours du marquis des Sorciers , fait par un nommé La Fontaine, médecin du Roy, sur les subject du procès fait au prestre de Marseille, sorcier, nommé Louis Gaufridi. M’a cousté deux sols.” (L’E STOILE , Mémoires-Journaux , Vol. XI, p. 135). Evidentemente, não são apenas canards ou bulletins que são vendidos dessa maneira, tampouco a tradição da vente à là criée é especificidade dos ambulantes de notícias: os cris de Paris são uma verdadeira instituição, que existe até hoje, sendo catalogada por observadores e artistas de diversas épocas (uma célebre chanson polifônica renascentista de Clément Janequin, usando exclusivamente frases cantadas por comerciantes de rua e de feiras parisienses, se intitula justamente Les Cris de Paris ; existe gravação em CD feita por Dominique Visse com o Ensemble Clément Janequin). A figura do crieur público, por sua vez, o portador de notícias oficiais do governo ou de instituições públicas ou privadas, embora vista com frequência em diversos filmes retratando a Idade Média, é ainda relativamente pouco estudada. Para uma 115

Concomitantemente, por funcionarem num registro, por assim dizer, sensacionalista, os bulletins e, sobretudo, os canards guardam, embora suportes impressos, algo da dinâmica dos rumores, da fofoca e, logo, da comunicação oral.

De temática ampla, indo de catástrofes naturais a prodígios, de processos de bruxaria a assassinatos, o canard é evidentemente um veículo novo, que veio estabelecer um universo diferente, ainda que solidário, daquele dos boletins de informação anteriores. Ele acompanha de perto a intensificação da informação impressa na Europa, mas com uma dinâmica que lhe é particular, sobretudo no aspecto espetacular 27 . Muito embora nem sempre digno de crédito por seus contemporâneos intelectualizados, é visto com simpatia e interesse pelo público das cidades e dos campos – o que reproduz, avant la lettre e guardadas as proporções, muitas das questões em torno da objetividade e da imparcialidade dos meios de informação dos jornais nossos contemporâneos 28 .

Trata-se, efetivamente, de um fenômeno midiático: se, entre 1529 e 1550, temos apenas 18 canards sobreviventes (descontadas as eventuais cópias do mesmo título), passamos a 39 peças entre 1550 e 1575; a 110 peças entre 1575 e 1600; e a 323 canards entre 1600 e 1631 29 . Neste caso, considerando apenas os exemplares análise recente do papel desse tipo de funcionário, ver Nicolas OFFENSTADT , En place publique: Jean de Gascogne, crieur du XV e siècle , Stock, 2013. 27 Jean-Pierre Seguin tenta isolar o contéudo e as estratégias do canard em relação ao boletim de informação: “(…) emporté par son sujet et désireux d’en accentuer le côté sensationnel, le narrateur empiète un peu dans le domaine de la fiction. Un de ses congénères y glisse franchement, dans un autre texte relatant l’apparition d’un dragon dans le ciel de Paris. Cette fois, comme toujours en pareil cas, les éléments empruntés au réel ont pour but de faire passer un fait imaginaire, que le lecteur aura plaisir à croire vrai.” ( L’Information en France de Louis XII a Henri II , p. 41). Mais adiante, diz que o interesse documentário no boletim de faits divers “n’est pas exactement de même nature que celui des autres bulletins, ni tout à fait semblable la manière de leurs auteurs” ( Op. cit. , p. 41). 28 Através de Pierre de L’Estoile, “nous savons que la masse, émotive et passionnée, prenait souvent pour argent comptant toute fable imprimée. Nous connaissons aussi les réactions des esprits cultivés et critiques dont il est le représentant : la liste est longue des termes péjoratifs qu’il emploie pour qualifier les occasionnels en général et ceux de faits divers en particulier : « balivernes , fadèzes , fables , bagatelles , baguenaudes , triqueniques , drolleries , amusebadaus , sornettes , charlatanneries , folastreries , fables », etc. ” (SEGUIN , L’Information en France avant le périodique , p. 23). A nomenclatura usada por L’Estoile não é, evidentemente, precisa. Fadèze , sornettes , fables , charlatanneries (termos negativos e derrisórios) não são empregados em seu diário apenas no contexto de documentos impressos, mas servem também, como adjetivos e substantivos, a uma ampla gama de circunstâncias – normalmente de cunho fraudulento. O contexto geral é o da tromperie , vocábulo importante que analisarei mais adiante. No entanto, a partir do final de 1606, L’Estoile começa a preferir os termos fadèze e, sobretudo, bagatelles quando se refere particularmente aos canards . 29 Cf. SEGUIN , L’Information en France avant le périodique , p. 14. 116 que chegaram até nós, temos no mínimo um título de canard por mês nos primeiros trinta anos do século XVII. Evidentemente, o aumento do número bruto dos canards também se deve à proliferação de editores capaz de imprimi-los (estamos no primeiro grande boom editorial da Europa moderna após a invenção de Gutenberg), mas, dadas as condições materiais precárias e inerentes a esse tipo de suporte (tornando impossível saber ao certo quantas peças foram de fato impressas nos períodos citados), o aumento proporcional entre os decênios mostra que, ao final de Renascimento, o canard é um claro sucesso de público. Muito embora popular, por volta da última metade do século XVI, ainda não existem editores totalmente especializados em sua produção, mesmo em Paris (o maior centro consumidor e produtor). Lucro quase certo, o canard permanece porém – enquanto produto na linha de montagem editorial – secundário e de circunstância 30 .

Entre as razões de seu sucesso, certamente está o preço: canards são mídias baratas se comparadas aos livros – variando entre 1 e 5 sols franceses por peça 31 . Pierre de L’Estoile nos diz, em suas Mémoires , que, em setembro de 1608, pagou 48 sols pelos dois tomos das Fleurs des exemples de Antonie d’Avroult (coletânea de

30 “À Paris, les plus gros éditeurs de canards ne sont aucunement spécialisés dans la production de livres peu coûteux pour un public « populaire » mais, à l’occasion, font rouler leurs presses inoccupés pour imprimer ce matériel au prix de revient faible et à la large diffusion.” (Roger CHARTIER “Stratégies éditoriales et lectures populaires, 1530-1660” in Histoire de l’édition française , I, p. 597). Em Lyon, por sua vez, o mercado de canards era dominado por um único impressor, Benoît Rigaud, “qui imprime près du quart des éditions faites dans la ville. Pour lui, la publication des occasionnels s’insère dans une activité centrée sur l’édition des livrets bon marché – ce qui ne veut pas dire destinés à un même public – : almanachs et prédictions, chansons et poésies, actes officiels” ( Op. cit. , p. 597). 31 No sistema monetário do Antigo Regime, 1 sol era subdividido em 12 deniers e, por sua vez, valia 1/20 de uma livre tournois – sendo esta a proporção monetária de referência na França, de 1200 (quando a livre tournois substituiu a livre parisis ) até o século XVII. A partir dessa época, o sol passou a grafar-se sou , de acordo com a pronúncia, mas o sistema duodecimal denier–sol [sou ]–livre tournois manteve-se em uso até a Revolução Francesa. No entanto, isso diz respeito apenas à racionalização monetária de referência geral. Embora as moedas desse sistema duodecimal também existissem fisicamente, na prática os franceses do Antigo Regime negociavam com dezenas de outras moedas – o que transformava uma simples transação comercial num complexo empreendimento matemático. Em 7 de março de 1533, por exemplo, um documento escrito pelos notários do castelo de Guéméné (Bretanha) saldava uma dívida de 6000 livres tournois em nada menos que quatorze tipos de moedas diferentes (Cf. Bulletin de la Société archéologique du Finistère , Tome 9 [1882], pp. 109-112). O Journal do Sire de Gouberville nos diz, por sua vez, que, em novembro de 1559, após solicitar um serviço que lhe custara “19 libvres, 6 solz ”, pagou por ele em oito tipos de moedas: “ Ung double ducat, ung angelot, deux impérialles, ung chevalot, une horne, une réalle de 8 sols, et en monnoie 19 sols, somme : 19 libvres, 6 solz ” (Journal du sire de Gouberville, p. 529). Para os nomes das moedas usadas pelos notários de Guéméné: [ http://martine.lauwers.pagesperso-orange.fr/monnaies.html ] 117 milagres e narrativas catequéticas ou edificantes) 32 ; 20 sols pelo 5° tomo da Historiarum sui temporum , de Jacques Auguste de Thou 33 ; 10 sols por um Édict et déclaration du Roy Henry Quatriesme de France, et 3 de Navarre ... (203 páginas a propósito da incorporação patrimonial da coroa de Navarra pela coroa francesa), publicado por Pierre de Belloy 34 ; e 70 sols por uma edição de cerca de 1.000 páginas do Discours des Spectres de Pierre Le Loyer 35 . Todos os volumes com costura e capa de pergaminho. Por outro lado, em janeiro do mesmo ano, comprara duas novas “bagatelles ” ( Un Deffy du Grand Sophi de Perse au Grand Turq e o canard Histoire tragique de la constance d’une dame envers son serviteur... )

32 “Le samedi 13 e, j’ay acheté ung livre de dévotion, qu’on appelle, et moi, «de superstition», intitulé: Fleurs des exemples . Qui est un ramas de miracles de toutes sortes, où les faux et controuvés surpassent de beaucoup les vrais et servent de passetemps et risée à beaucoup, principalement aux Hérétiques de nostre temps, car ce sont, la plus part du temps, de vrais Contes de la Mère Oye. Ils ont esté réimprimés nouvellement ici par Gisdelin, en deux tomes in-8°, qui m’ont cousté, reliés en parchemin, trois quarts d’escu (48 sols).” (Mémoires-Journaux , IX, p. 129). A primeira edição, em dois tomos, saiu em 1603 (Douay por Jean Bogart); a edição comprada por L’Estoile é a de Jean Gesselin, revista, publicada em Paris, 1608. 33 “J’ay acheté, ce jour, le 5 e tome et dernier de l’ Histoire de M. De Thou, où est la Saint- Berthelemi, et va jusques à la mort de Charles IX e. Drouart [o editor parisiense da obra] me l’a vendu vingt sols, relié en parchemin” ( Mémoires-Journaux , IX, p. 129). Seu exemplar da História de De Thou editada em 1608 é provavelmente muito semelhante ao volume conservado na Bayerische Staatsbibliothek de Munique e digitalizado por Google Books [ http://books.google.com.br/books?id=muMGAAAAcAAJ&dq=Historiarum%20sui%20temporis &hl=pt-BR&pg=PP5#v=onepage&q&f=false ]. 34 “Le lundi 15 e, j’ay acheté un Édit et une Déclaration du Roy, sur l’union et incorporation de son ancien patrimoine, mouvant de la Couronne en France, au domaine d’icelle; avec la vérification du Parlement de Tolose, ensemble l’interprétation des causes d’icelui par Pierre De Beloy, Conseiller et Avocat général de Sa Majesté audit Parlement. Il est imprimé, à Tolose, in-8’, l’an présent 1608, et m’a cousté, relié en parchemin, 10 sols.” (Mémoires-Journaux , IX, p. 129). 35 “ Le vendredi 19 e, j’ay acheté un Loyer, des Spectres , réimprimés par le sire Buon, in-4°, reveu et augmenté, qui est un livre curieux, de plaisir et de proufit, dans lequel toutefois y a beaucoup de choses qui ne trou veroient aisément caution : dont on en trouvera, entre les autres, deux marquées en ce Registre : de la Confession et du Purgatoire. Desquelles je fis extraîct, lorsque M. Chrestien, il y a quelque temps, m’en presta le livre, après lequel je me suis encore mis, pource que je le voy recommandé de beaucoup d’hommes de sçavoir. Qui a esté cause de me le faire acheter et y escrire au commencément ung sonnet gaillard, sur ceste matière, fait par Passerat, il y a longtemps, qui le donna à un mien ami. Il m’a cousté, relié en parchemin, soixante et dix sols.” (Mémoires-Journaux , IX, p. 132). A primeira edição do livro de Pierre Le Loyer se chamava ainda IIII Livre des Spectres ou apparitions et visions d’esprits, anges et et demons se monstrans sensiblement aux hommes (Angers-Paris, 1586). Na edição de 1608, o título mudara para Discours des Spectres ou visions et apparitions des esprits comme anges, demons, et ames, se monstrans visibles aus hommes… (impresso por Nicolas Buon, Paris), e é a esta que L’Estoile se refere. Google Books tem uma versão desta edição, digitalizada a partir de um exemplar da Biblioteca jesuíta des Fontaines, agora pertencente à Biblioteca municipal de Lyon [ h ttp://books.google.com.br/books?id=MTcJh60fteIC&dq=inauthor%3A%22Pierre%20Le%20Loyer%22&hl =PT-BR&pg=PP7#v=onepage&q=inauthor:%22Pierre%20Le%20Loyer%22&f=false ]. 118 pagando, por ambas as peças, a quantia de 2 sols 36 . Mais tarde, em março de 1609, pagou 1 sol pelo canard Discours veritable de l’execrable cruauté commise par une femme nommée Marie Hubert…37 ; e 3 sols pela Histoire prodigieuse de l’assassinat commis en la personne d’un jeune advocat… 38 . E, em 23 de abril, comprou o canard Histoire nouvelle et prodigieuse d’une jeune femme laquelle pendit son père… pela quantia de 1 sol 39 .

Seria difícil medir esses valores em termos de moedas de hoje (ou talvez seja inútil, uma vez que o modo de produção industrial capitalista e a sociedade de consumo mudaram por completo nosso modo de pensar e mensurar alimentos, bens e serviços – logo, transformaram o valor absoluto e o valor relativo que o dinheiro tem para nós, inviabilizando comparações desse tipo), mas as diferenças de preço entre livros e canards é, proporcionalmente ao menos, bastante significativa 40 .

36 “Le lundi 14 e, j’acheptai, deux sols, deux bagatelles qu’on crioit par ceste ville : l’une, Un deffy du Grand Sophi de Perse au Grand Turq ; l’autre, une Histoire tragique de la constance d’une dame envers son serviteur, à Moyencourt, en Picardie .” (Mémoires-Journaux , IX, p. 41). Essa histoire tragique é o canard BNF 8 LK7 5289 Gallica (S 41). 37 “Le vendredi 13 e, j’achetai [pela quantia de] ung sol une nouvelle fadèze, qu’on crioit devant le Palais, d’une femme qui avoit fait massacrer son mari” ( Mémoires-Journaux , IX, p. 230). [S 42; BNF 8 LN27 16509 Gallica]. A identificação dessa passagem do diário com o canard em questão foi feita por Seguin. 38 “Le mardi, dernier de ce mois, j’ay acheté, trois sols, une nouvelle Histoire tragique , qu’on crioit devant le Palais, arrivée à Thoulouze, d’un Augustin, Docteur en théologie, d’un Conseiller au Présidial, et d’une Damoiselle espagnole : tous trois exécutés en ladite ville, par arrest du Parlement, pour homicide et adultère, en febvrier dernier de l’an présent 1609. Laquelle Histoire, avouée pour véritable, est digne de remarque, pour y reluire plainement une singulière providence et jugement de Dieu.” (Mémoires-Journaux , IX, p. 237). [S 43; BNF RES G 2862 Gallica]. Essa história reaparece no Mercure françois , tome 1 (1609), pp. 325-332. 39 “Le jeudi 23 e, j’ay acheté autre Histoire prodigieuse imprimée, qu’on crioit par ceste ville (de laquelle on m’avoit fait voir le mémoire, le dernier du mois passé) d’une jeune femme exécutée à Nice, pour avoir pendu son père. Elle m’a cousté un sol.” ( Mémoires-Journaux , IX, p. 250). [S 44; BNF RES 8 LK7 30308 (9)]. Reprodução moderna em LEVER , Canards sanglants , pp. 163- 176. 40 Mesmo levando-se em conta uma imensa pluralidade de fatores, a profusão e as variações regionais das moedas francesas na época pré-Moderna, os períodos inflacionários, as guerras, as fusões de reinos (e, consequentemente, de sistemas monetários) etc. etc. etc., alguns documentos permitem traçar ao menos uma ideia do significado bruto desses valores. Num deles – o livro contábil de Jehan Harsenet, maître d’hotel [intendente] de Pregent VII de Coëtivy, senhor de Rays e de Taillebourg (Bretanha) –, consta que, entre 6 de março de 1450 e 12 de janeiro de 1451, pagou-se, entre outras coisas: 2 livres tournois (40 sols ) por um burro de carga; 2 sols por uma galinha; 3 sols por duas vasilhas d’água; 7,5 sols por uma pele de lobo; 4,17 sols por um par de galochas femininas; 2 sols por uma luva de falconaria; 40 sols (2 livres tournois ) por um forro de lã negra; 5 sols por uma jornada de trabalho de três lenhadores; 2,08 sols pelo dia de trabalho de um couvreur [pedreiro especializado em consertar ou montar telhados]; e assim por diante. Esse livro contábil foi publicado nos Archives historiques de la Saintonge et de 119

Dos 517 canards repertoriados e estudados por Seguin, numa amostragem que vai de 1529 a 1631 (ou seja, um século de produção), 109 são relatos de crimes; 116 de calamidades diversas (enchentes, tempestades etc.); 95 de fenômenos celestes; e 180 descrevem eventos mais ou menos maravilhosos 41 . Ao menos tematicamente, portanto, o sucesso do canard está ligado ao interesse popular pelo fait divers – o que pode parecer redundante, uma vez que a definição de canard se confunde com a deste último. Mas esse interesse não é uma especialidade apenas do canard . O fait divers também ocupa um lugar importante na composição dos journaux (diários ) que lhe são contemporâneos, como o Journal d’un bourgeois de Paris sous le règne de François I (autor anônimo, 1515-1536); e nos congêneres de Pierre Driart (Chronique parisienne , 1522-1535), de Nicolas Versoris (Livre de Raison , 1519- 1530), de Claude Haton (Mémoires , 1553-1582), de Gilles de Gouberville (Journal , 1549-1562), entre outros 42 . No mais antigo, o Journal d’un bourgeois de Paris... , aparece, já em junho de 1515 (bem antes da voga dos faits divers ), uma nota breve sobre um assassinato que poderia, perfeitamente, se enfeitado com mais retórica, figurar nas páginas de um canard 43 . O texto é ainda mais surpreendente porque é o único do gênero dentre as anotações registradas pelo Bourgeois de Paris nesse mesmo ano – todas as outras são, sem exceção, exclusivamente aristocráticas, quer l’Aunis , Vol. 6 (1879), pp. 56-69. Um bom resumo, entre outras questões relativas ao contexto econômico francês dessa época, pode ser visto aqui: [ http://www.histoirepassion.eu ]. 41 Essa divisão nem sempre fica clara na leitura dos textos, pois não quer dizer que temas diferentes não possam se interpenetrar num mesmo canard . Vale lembrar, também, que as entradas do repertório de Seguin incluem duplicatas e referências a outros suportes (como os diários), o que praticamente duplica o número total de seus faits divers . 42 Há edições on-line (Google Books, Gallica, Archive.org) de todos esses textos. É bem verdade que a maior parte dos memorialistas franceses não partilha do interesse pelo quotidiano comezinho da vida ordinária: seja porque suas crônicas são politicamente engajadas (estão a serviço do rei, ou da nobreza, ou de si mesmos nesse contexto aristocrático, tratando exclusivamente de assuntos dessa natureza), seja porque não faz parte da genealogia intelectual do gênero que entendem estar prolongando (seus arquétipos são as clássicas memórias políticas latinas e as crônicas medievais que lhe constituem a sequência): quer dizer, são crônicas histórico-políticas, não crônicas de costumes. Google Books e Archive.org oferecem todos os volumes das duas séries da Collection des Mémoires relatifs à l’Histoire de France , editadas por Petitot no início do século XIX. Embora editorialmente antigas, elas permitem reconstituir facilmente o contexto contemporâneo dessas narrativas e avaliar a significação discursiva do surgimento do fait divers . 43 Neste caso, faltaria somente que a narrativa ocupasse ao menos uma página completa, em vez de um único parágrafo: “En l’an 1515, le vendredy vingt deuxiesme de juing, fut décapité un homme à Paris qui avoit tué sa femme, et estoit fiancé à une autre femme, près d’Amiens. Et mena icelle femme au bois de Senac, près Paris, auquel lieu il l’estrangla de sa ceincture, après avoir eu sa compaignie. Et vouloit espouser celle qu’il avoit fiancée, dont il fut accusé et fînableraent décapité, comme dit est.” (Journal d’un bourgeois de Paris sous le règne de François 1er (1515-1536). Paris, Société de l’histoire de France, 1854, pp. 14). 120 dizer, no regime temático dos occasionnels , não dos canards . Em outro exemplo, o relato de um enforcamento fracassado (ocorrido em 19 de setembro de 1528), com todas as tintas de um legítimo fait divers , ocupou as atenções de Versoris, de Driart e, novamente, do Bourgeois de Paris 44 . Era algo que estava, pois, no ar do tempo. Dentre esses memorialistas, o Bourgeois parece ser o mais entusiasta em relação aos acontecimentos dessa ordem 45 .

A isso acrescentemos que os faits divers foram sendo reunidos posteriormente em compilações de crônicas de fatos marcantes: o Mercure françois , por exemplo, espécie de revista impressa regular e anual (mas de conteúdo retroativo, um resumée de histórias) da época, cuja data de publicação começa em 1605, trará em suas páginas várias narrativas extraídas de canards 46 .

Embora muitos dos faits divers que aparecem nos diários e nas compilações do final do Renascimento também provenham, efetivamente, de canards , outros são testemunhos, a princípio, originais (diretos ou indiretos) – descontados aí os que potencialmente saíram de canards que não sobreviveram ao tempo e de que não temos mais notícia. Em todo caso, tratando-se canards e diários de universos textuais refletindo leitores e autores de classes diversas, podemos inferir que o interesse pelos faits divers (seja nos diários, seja nos canards ) se tornou comum a todas as camadas possíveis de leitores e autores.

44 Journal d’un bourgeois de Paris sous le règne de François 1er (1515-1536). Paris, Société de l’histoire de France, 1854, pp. 372-373; Livre de raison de Maître Nicolas Versoris, avocat au parlement de Paris (1519-1530). Paris, Société de l’histoire de Paris, 1885, p. 116; Chronique parisienne de Pierre Driart, chambrier de Saint-Victor (1522-1535), Mémoires de la société de l’histoire de Paris et de l’Ile de France, vol. 22, 1895, p. 135. 45 “Les mémoires-journaux contemporains trahissent cependant, presque à chaque page, l’intérêt que prennent leurs auteurs aux faits divers. Le « bourgeois de Paris », surtout, consigne soigneusement ce qu’il apprend des cataclysmes de toute nature, des vols et des crimes commis par des bandes de pillards et d’incendiaires, etc. Il recueille aussi des bruits les plus étranges qui, malgré leur vraisemblance, trouvaient toujours un certain crédit : apparition de comète en forme de dragon, en janvier 1515, combat dans les airs en janvier 1517, monstre engendré par une vache, en décembre 1522, etc.” (SEGUIN , L’Information en France avant le périodique , pp. 10 e ss.). 46 Alguns exemplos: a Histoire tragique de la constance d’une dame envers son serviteur... [BNF Arsenal 8 J 5521 (3)], da qual L’Estoile afirmou ter comprado um exemplar, foi reimpressa no Mercure françois , Tome I, 1608, pp. 285r-286r, com o título Acte tragique de Mussard et de sa Concubine . A Histoire prodigieuse de l’assassinat commis en la personne d’un jeune advocat... [BNF RES G 2862 Gallica] foi reimpressa como Histoire tragique d’un Augustin Espagnol, d'un Conseiller de Tholose, & d'une Demoiselle Portugaise (Mercure François, Tome I, 1609, pp. 325-332). E o Récit véritable de la condamnation et exécution à mort de MM. de Bouteville et comte Des Chapelles [BNF 8 LN27 2870] foi reimpresso como Duels de Bouteville és anees 1624, 26 & 27 (Mercure françois ,T. XIII, 1627, pp. 400-461). 121

Entretanto, os journaux , quando impressos, não possuíam as mesmas condições de circulação de que gozavam os canards, sobretudo naquilo que diz respeito ao seu (destes) baixo custo – fato que garantia aos canards uma distribuição bem mais ampla, rápida e eficiente. Além do mais, tal facilidade fazia com que os canards estivessem temporalmente mais “próximos” da notícia (ainda que isto também seja relativo), dando a eles certa “dinâmica jornalística” que dificilmente se conseguiria com os journaux e seus extratos. “Dinâmica jornalística” mesmo em se tratando de conteúdo, muitas vezes, quimérico (sobretudo nos canards relatando prodígios, monstros etc.), claro. Esse modelo dava ao canard a supremacia enquanto veículo por excelência dos faits divers .

Dois outros tipos de publicação, ligados à voga do fait divers , são as histórias trágicas e as narrativas prodigiosas. Em ambos os casos, as relações com os canards , subliminares ou francamente explícitas, merecem atenção especial 47 . Em linhas gerais, no caso das histórias trágicas, vale a relação com os canards violentos. No caso das narrativas prodigiosas, com os canards de prodígio. Publicadas muitas vezes por literatos reconhecidos (como Pierre de Boaistuau e François Belleforest), essas narrativas, se não necessariamente criaram, certamente ajudaram a ampliar o circuito dos canards (filtrados numa certa dinâmica literária) até um público, em princípio, erudito. Editadas, reeditadas, copiadas e recopiadas inúmeras vezes durante os séculos XVI e XVII, são mais um atestado do sucesso dos faits divers na França do período 48 .

3. Canards sangrentos

O interesse pelos faits divers a partir da terceira década do século XVI gerou, como vimos, um grande número de narrativas. Num primeiro momento, esses faits divers foram disseminados nos textos dos memorialistas e dos canards – neste caso, as narrativas com as quais eles dialogam têm ar de testemunho, mas não necessariamente de testemunho literário . Quando avançamos século adentro, o campo dessas narrativas será ampliado: novas formas literárias, em sinergia com

47 Esses dois gêneros prolongam e renovam, como veremos, o conjunto-universo das novelas francesas do Renascimento. Para uma abordagem geral da novela nesse período, ver Roger DUBUIS , Les Cent Nouvelles nouvelles et la tradition de la nouvelle en France au Moyen Âge (1973); e, sobretudo, Gabriel PEROUSE , Nouvelles françaises du XVI e siècle (1977). 48 SEGUIN , L’Information en France avant le périodique , pp. 10 e ss. 122 essa dinâmica informacional dos canards , ganharão corpo e terreno – sobretudo nas derivações formais da novela renascentista 49 .

Para fins de contexto, uma análise breve mostra, por exemplo, que, ao final do século XVI, uma caracterização diferente da ideia de trágico em certas formas narrativas (antes em prosa que em drama) teve muito a ver com o impacto popular dos faits divers e, mais particularmente, dos canards especializados em faits divers sangrentos 50 .

Essa correlação (que é visceral, com duplo sentido) encontra seu apogeu nas primeiras décadas do século XVII. Quando, por exemplo, em 1630, Jean-Pierre Camus, Bispo de Belley (1584-1662), publica seu L’Amphithéatre sanglant où sont représentés plusieurs actions tragiques de notre temps , o primeiro volume de uma sequência enorme de “ramas de quelques Ocurrences funestes que j’ay triées dans la masse de plusieurs autres que j’ay remarquées dans mes Memoires ”, como ele dirá em outra coletânea semelhante ( Les spectacles de l’horreur , 1630), deixa claro que partiu do ensinamento de dois já bem-sucedidos autores de “d’histoires tragiques ”, os novelistas, poetas e tradutores François de Belleforest (1530-1583) e François de Rosset (1571-1619) 51 . À época de Camus, portanto, uma “história trágica” é uma forma narrativa perfeitamente estabelecida: um gênero em prosa, com seus iniciadores, continuadores, algumas regras comuns e com um mercado consumidor razoavelmente estável.

49 É sabido que a pintura da vida quotidiana (logo, em última análise, a relação com algo da ordem do fait divers ) sempre foi uma das características essenciais da novela, tanto nos primórdios da novela francesa (que nasce com a publicação das Cent Nouvelles nouvelles , a partir de 1456) quanto na de seus ancestrais italianos (cujas raízes são as novelle do trecento , como, entre outras, Il Novelino , as Novelle de Sercambi, Il Trecentonovello de Sachetti, as Facetiae de Poggio Bracciolini e Il Decamerone de Boccaccio). Mas, no caso da nouvelle francesa dos séculos XVI e XVII, trata-se de uma formulação particular. Discutir a fundo essa formulação não cabe, porém, no resumo funcional do canard que faço aqui – coisa que gostaria de desenvolver mais adiante. 50 Os “canards sanglants ”, retomando a expressão de Maurice LEVER . “Il est en effet très probable que le canard, forme dérivée du genre d’information que constitue l’occasionnel, ait institué les schèmes qui ont permis la conversion de la nouvelle à l’histoire tragique.” (ZUFFERY , Le discours fictionnel: autour des nouvelles de Jean-Pierre Camus , p. 138). Esse impacto estabeleceu um campo importante de relações, ainda que indiretas, entre as esferas do Direito e a da Literatura, que poderia ser explorada de modo interessante. 51 “En cela je marche après les pas de François de Belleforest et de François de Rosset, qui ont auparavant moi écrit des Histoires tragiques avec un succès assez heureux.” (Jean-Pierre CAMUS , L’Amphithéâtre sanglant , L’auteur au lecteur). 123

A nova atmosfera trágica, no entanto, fora iniciada sete décadas antes, com as Histoires tragiques (1559) de Pierre Boaistuau (1517-1566). Esta obra, uma tradução (às vezes cheia de liberdades) para o francês de seis novelas extraídas das Novelle do boccacciano Matteo Bandello (214 narrativas cômicas e farsescas dentre as quais 60 com temática trágica) 52 , foi cuidadosamente pensada para conter apenas os textos mais trágicos: infanticídios, parricídios, incestos, crimes violentos, mortes sangrentas em geral.

Boaistuau (ou, antes, Bandello-Boaistuau) forma, pois, o que poderíamos chamar de primeira geração de novelistas trágicos 53 . É do substrato temático particular desta obra-tradução que se construirá doravante a ideia de “história trágica”, sobretudo no que diz respeito ao seu continuador direto, as Histoires tragiques de Bellesforest (1567). Lançadas como 2ª edição das Histoires de Bandello-Boaistuau, as de Bellesforest vieram com acréscimo de mais 12 novelas inéditas – sendo seguida de mais seis reedições, sucessivamente aumentadas (a última saindo em 1583).

As coletâneas Bandello-Boaistuau-Belleforest foram, em linhas gerais, seguidas de perto por autores como Jacques Yver ( Le Printemps d’Yver , 1572; 20 edições até 1618); Benigne Poissenot ( L’Esté , 1583, e Nouvelles Histoires tragiques , 1586); Alexandre Sylvain ( Epitomes de cent histoires tragicques , 1581); Vérité Habanc (Nouvelles histoires tant tragiques que comiques , 1585); Bruneau de Rivedoux (Histoire véritable de certains voyages périlleux et hasardeux sur la mer , 1599), entre outros. Esses autores, juntamente com Bellesforest, formam a segunda geração de novelistas trágicos. François de Rosset, com Les Histoires memorables et tragiques de ce temps où sont contenues les morts funestes et lamentables de plusieurs personnes, arrivees par leurs ambitions, amours desreiglees, sortileges, vols, rapines et autres accidents divers , de 1614 (2ª edição em 1619), e Camus formam a terceira geração.

Em seu conjunto, a temática das novelas trágicas é basicamente a mesma: “morts funestes et lamentables ”. Seu esquema estrutural é também bastante homogêneo, obedecendo à fórmula: Lei ‰ Transgressão ‰ Punição, típica das tragédias clássicas 54 . Embora a temática seja tratada, ao menos até a segunda geração desses novelistas, numa atmosfera estética novelística essencialmente italianizada (na

52 Os três livros da primeira edição das Novelle de Bandello (1485-1561) foram publicados em 1554. Como se sabe, uma novela dessa coletânea é a fonte de Romeu e Julieta , de Shakespeare. 53 Cf. COMBE , Histoires tragiques et canards sanglants , cap. 1. 54 Cf. Anne de VAUCHER GRAVILI , Loi et transgression. Les Histoires Tragiques du XVIIe siècle , p. 21. 124 linhagem de Boccaccio via Bandello), a significativa substituição de Nouvelles (título original da coletânea de Bandello) por Histoires (na tradução de Boaistuau), demarcará uma dimensão formal e estética própria – particularmente francesa – desse subgênero renascentista 55 . Terreno que a terceira geração de novelistas trágicos afirmará como seu.

Ainda que as similitudes sejam muitas, uma relação imediata entre as Histoires e a Tragédias (gênero poético-dramático clássico) precisa ser matizada. Em primeiro lugar, as definições de tragédia atestadas em muitos autores do humanismo francês são tentativas de harmonização de preceitos normativos aristotélicos com a dramaturgia medievo-renascentista de moralidades (um instrumento pedagógico, a partir de noções abstratas como o Bem, a Justiça etc.)56 . Em segundo lugar, o desenvolvimento francês desse gênero narrativo mostra-nos um trágico de tipo novo, familiar e ordinário – apesar de ser retoricamente valorizado como da ordem do maravilhoso ou do incomum. É, em grande medida, um trágico vulgar .

Do ponto de vista da composição, o trágico das Histoires trabalha essencialmente com a hipérbole : o paroxismo é sua marca registrada. Insiste tanto na evocação dos detalhes das mortificações físicas que seu valor pedagógico (índice importante na dimensão trágica clássica) pode perfeitamente ser colocado em questão. O trágico ordinário é, pois, estético (quase gore , como diríamos hoje), mas não necessariamente moral 57 . Lendo essas páginas, alguns críticos argumentam que quarenta anos de sangrentas guerras civis na França contribuíram fortemente para a criação de um público afeito a descrições desse gênero – dando base à formação de um gosto literário que lhe fosse diretamente proporcional 58 .

55 “En dépit de son caractère particulièrement vague (il convient d’avoir à l’esprit le flottement de la terminologie aux XVIe et XVIIe siècles), l’étiquette « histoire tragique » désigne une réalité littéraire très précise, un véritable genre à part entière. Il s’agit d’une forme narrative brève proche de la nouvelle mais qui, s’inspirant toujours d’événements sanglants, fait divers ou historiques donnés pour vrais, s’en démarque par l’esthétique de la violence et de l’horreur qui la caractérise.” (Stéphan FERRARI (ed.), “Introduction” in Jean-Pierre CAMUS , L’Amphithéâtre sanglant , p. 57). 56 Na Définition de la tragédie , pequena introdução à sua tradução em versos da Electra de Sófocles (1537), Lazare Baïf afirma que a “Tragédie est une moralite composee des grandes calamitez, meurtres & adversitez survenues aus nobles & excellentz personnaiges, comme Ajas...”. 57 “(...) les auteurs d’histoires tragiques ne lésinent pas sur l’évocation des détails physiques les plus atroces, et le genre se révèle tributaire de ce sénéquisme ambiant qui constitue l’un des plus puissants courants esthétiques de la fin du XVIe siècle et des premiers décennies du XVIIe.” (Stéphan FERRARI (ed.), “Introduction” in Jean-Pierre CAMUS , L’Amphithéâtre sanglant , p. 57). 58 Cf. Nathalie GRANDE , Le Roman au XVIIe siècle , p. 24. 125

Um inventário das cenas repertoriadas no L’Amphithéatre de Camus talvez já bastasse para ver a relação do trágico ordinário com seus avatares canardianos 59 . Pois, em larga medida, essa é também a relação que o “ canard sanglant ” guarda com seu público imediato: o detalhe sangrento, o sadismo, a atrocidade – que poderíamos etiquetar como uma retórica de tipo sensacionalista 60 . Os títulos de vários canards , descritivos e já bastante sugestivos, demonstram que se trata de um universo peculiar 61 .

59 “Le recueil [ L’Amphithéâtre de Camus], au sein duquel ne s’entassent pas moins d’une centaine de morts (soit trois morts en moyenne par nouvelle!), propose toute une panoplie des atrocités les plus variées : morts par duel ou embuscade (les plus nombreuses), morts sur le champ de bataille, décapitations et pendaisons, empoisonnements, coups de pistolet, de couteau, victimes enterrées vivantes, lynchages collectifs, strangulations, sans parler des maladies mortelles ou de la folie (sort de « mort intellectuelle ») causées par le remords ou le désespoir, ni des brutalités de certains maris sur leur femme, des viols, des visages défigurés, des séquestrations forcées, etc. L’allusion à la putréfaction de l’enfant mort dans les flancs de Cyrée, à la fin du « Père maudissant », l’évocation des divers châtiments que les paysans font subir, en une véritable hécatombe, aux soldats pillards de « La généreuse vengeance », ou celle de Portiane qui, digne héroïne stendhalienne, se défigure pour sauvegarder son honneur « avec de l’eau forte qui lui brûla tout le teint et lui fit tomber par écailles la peau de la face », donnent une idée du degré d’horreur parfois bien complaisante que peuvent atteindre les histoires tragiques.” (FERRARI (ed.), op. cit. , p. 57). 60 “Ce qui passionne surtout les canardiers et leur clientèle, ce sont les détails les plus affreux de crimes bien sanglants. Les tueurs, les sadiques et les monstres font recette, comme ce Cristeman, exécuté en Allemagne en 1582, pour avoir « tué et assassiné neuf cent soixante et quatre personnes » et qui « la torure [ sic ] lui ayant esté donnee, confessa, sans faire gueres presser, les meschancetez sus escrites, adjoustant qu’il estoit resolu de tuer jusques au nombre de mille personnes, puis se roposer [ sic ] » [ Discours admirable des meurtres et assasinatz de nouveau commis par un nommé Cristeman alemant, executé à mort en la ville de Berckessel, pres de Mayence en Allemagne . Mayence, 1582. [Seguin 10; BNF MP 3287]” (SEGUIN , L’Information en France avant le périodique , p. 30). Este canard foi reproduzido em LEVER , Canards sanglants, pp. 71-78. 61 São inúmeros os exemplos, dentre os quais Histoire tragique d’un gentilhomme savoyard qui ayant trouvé sa femme adultère la fit tuer par ses deux enfans propres, avec une fille qu'elle avait eue en son absence et depuis tua luy mesme ses deux enfans : au mois de febvrier mil six cens cinq. Troyes, J. Oudot, 1505 [Seguin 27; BNF 8 LN27 26924]; Histoire horrible et effroyable d’un homme plus qu’enragé, qui a égorgé et mangé sept enfants dans la ville de Chaalons en Champagne ; ensemble l’exécution mémorable qui s’en est ensuivie . Paris, N. Alexandre, 1619 [Seguin 72; BNF 8 LK7 1748]; Histoire sanguinaire, cruelle et emerveillable d’une femme de Cahors en Quercy, près Montaubant, qui desesperée pour le mauvais gouvernement et menage de son mary, et pour ne pouvoir apaiser la famine insuportable de sa famille, massacra inhumainement ses deux petis enffans, et consecutivement sondict mary, pour lesquelz meurdres elle fut executée à mort par ordonance de justice le 5e jour de feburier mil VCIIIJXX trois dernier passé ; avec la remontrance qu’elle fit publiquement au dernier suplice sur le devoir des hommes mariez envers leurs femmes et enffans . S.l., s.d., copie imprimée à Thelouze, par J. Columbier, mil VCIIIJIIJ ( sic , 1583) [Seguin 11; BNF Res 8 LK7 1544]; Accident terrible, pitoyable, & espouvantable d’un laboureur de S. Paul de Varras en Bresse, lequel pensant fraper son fils le tua, & de deuil s’alat pendre . Lyon, M. Sourbin, 1610 [Seguin 51; BNF Res G 2852]. Os códigos entre colchetes remetem ao número no repertório de Seguin e às cotas de localização no acervo da Bibliothèque Nationale de France (BNF). Como 126

Histoire tragique …, Histoire sanguinaire …, Histoire horrible & effroyable … Tais são os temas e as estratégias retóricas que toda uma linhagem de escritores franceses (de autores ditos literários , quero dizer) também seguirá de perto. Bom notar que, por essa época, dos crimes descritos através dos canards (109 canards dessa espécie, no repertório de Seguin), o crime passional é importantíssimo – ocupando cerca de dois terços dos exemplares que chegaram até nós 62 .

Essa “estética trágica” de meados do século XVI até a primeira metade do século XVII (de Boaistuau a Camus) tem, certamente, muitas fontes concomitantes, mas é quase certo que o fait divers esteja diretamente entre elas 63 . Sobretudo se imaginamos que os canards e suas compilações já haviam familiarizado o público francês, desde meados do século XVI, com toda sorte de crimes, sobretudo os mais espetaculares. Em outras palavras, as formas literárias do novo trágico e os canards fazem parte de um mesmo momento cultural e estético europeu 64 .

O sensacionalismo dos canards pode ser deduzido também de outros aspectos, não imediatamente perceptíveis. Embora evidentemente sensíveis ao valor midiático de seus temas, os autores canardianos são pouco afeitos a discussões em torno dos porquês de suas cenas mirabolantes. Quando o fazem, são considerações de ordem geral, muitas vezes superficiais, o que demonstra seu desinteresse por questões de

os títulos dos canards são frequentemente confusos, longos e repetitivos, as cotas são fundamentais para rastrear os documentos. 62 SEGUIN , L’Information en France avant le périodique , p. 32. Seguin cita, como exemplos, BNF K 14982 (Seguin 16) e BNF 8 LK7 472 (Seguin 67). 63 “Au seuil de cette époque que l’on qualifie parfois « d’âge baroque », se développe en littérature une esthétique tragique de la violence criminelle qui doit autant à l’actualité qu’aux lectures de la Poétique d’Aristote, à la redécouverte du théâtre de Sénèque et aux imitations des nouvelles tragiques italiennes. Sadisme de tyrans tortionnaires ou mélancoliques, cruels supplices, crimes d’alcôve, femmes lascives et pères vengeurs font partie des lieux communs de cette littérature. (…) Comme l’affirmait Jean Rousset, à propos du théâtre de la fin du XVIe siècle et du début du XVIIe, « presque tout ce qui ne tend pas vers la pastorale tend vers le drame de l’horreur » ( La Littérature de l’âge baroque en France , p. 81). Les corps démembrés lacérés, mutilés, les parricides, fratricides et toute la gamme des crimes familiaux (les plus « atroces » au regard des criminalistes et les plus propres à la tragédie selon Aristote) envahissent simultanément la scène et la nouvelle tragique.” (Thierry PECH , Conter le crime , p. 27). Em Aristóteles, por sua vez, “les actions qui suscitent la plus grande émotion sont celles qui déchirent la philia (Poétique , XIV, 1453b)”. (PECH , op. cit. , p. 27, n. 36). 64 “Des histoires analogues ou directement reprises de ce répertoire, jalonneront les premiers volumes du Mercure François et feront quelques années plus tard le bonheur de la jeune « Gazzette Renaudot ».” (PECH , op. cit. , p. 25). 127 ordem psicológica, criminológica ou jurídica (tecnicamente falando) 65 . Um canard sanglant pode até descrever momentos do circuito criminal além do crime em si (uma vez que “tout crime entraîne une enquête et des poursuites ”66 ), interessando-se por determinados subtemas (a prisão e/ou a inculpação de inocentes, por exemplo), ou quando, entre outros, entram em cena descrições da ação dos juízes. Neste caso, o canard será considerado pela crítica moderna já como um gênero à parte, o “canard criminel ”67 . Em ambos os casos, porém, raramente dará uma explicação de fundo ou uma arquitetura textual que permita a análise ou a reflexão mais detida do público leitor em relação ao caso especificamente tratado 68 . Para todos os efeitos, o processo criminal (investigação policial e processo penal incluídos), elemento importante nos canards do século XIX (e ainda fundamental nos documentários e séries de TV, de ficção e não-ficção, que hoje em dia exploram temas similares), é praticamente ausente nos canards até a segunda metade do século XVI: e mesmo quando aparece, um pouco mais tarde, nesses ditos canards criminais, o insosso sabor das cortes de Justiça não parece gozar do mesmo potencial de exploração sensacionalista que o crime em si 69 .

65 “[Os canards ] se montrent beaucoup moins prolixes lorsqu’il s’agit d’expliquer les mobiles des meurtres et ils ne s’attardent guère à peindre la psychologie des criminels, ou s’ils le font, c’est généralement pour tomber dans des considérations beaucoup trop générales. Il est rare de voir un cas tout simple exposé avec précision et l’on doit considérer comme exceptionnel, sous ce rapport, le très court récit d’un drame de la misère, survenu en 1608 [ Discours estrange et pitoyable d’une femme envers ses enfans, à l’occasion d’un faux monnoyeur, et pour la necessité d’elle et de sesdits enfans, laquelle s’est desesperée et pendue... BNF 8 LK7 3296].” (SEGUIN , L’Information en France avant le périodique , p. 31). 66 SEGUIN , op. cit. , p. 31. 67 Quer dizer, quando o canard descrever alguma coisa do processo criminal em si (juízes, corpo investigativo etc.). O primeiro canard desse tipo aparecerá em 1574: Histoire horrible et espoventable, d’un enfant, lequel apres avoir meurtry et estranglé son pere, en fin le pendit. Et ce advenu en la ville de Lutzelflu, païs des Suysses, en la Seigneurie de Brandis, pres la ville de Berne, le iii. Jour du mois d’Avril. 1574. Ensemble l’Arrest et Sentence donnee alencontre dudit meurtrier : Avec les Figures dudit meurtre . Traduit d’Allemant en François. Paris, Jean de Lastre, 1574, a iii. [BNF MZ 4203] (Cf. Jean-Claude ARNOULD , “Le juge et le criminel dans les « canards » (1574-1610)” in Juges et criminels dans la narration brève du XVIe siècle , n. 7). 68 O topos da acusação injusta é recorrente nos canards criminais. O caso de Helene Gillet (1624) [BNF 8 LK7 1307] é o mais famoso deles, e particularmente interessante, porque constitui “l’un des meilleurs spécimens de l’information de faits divers avant la presse et le meilleur, sans conteste, de la littérature, si abondante, consacré aux derniers moments et à l’exécution des criminels” (SEGUIN , L’Information en France avant le périodique , p. 34). Mas, do ponto de vista da análise dos móbiles e da reflexão de fundo, justamente porque o faz, constitui-se como uma exceção à regra. 69 “(…) l’on voit des malheureux trainés jusqu’au supplice et sauvés à la dernière extrémité, non pas grâce à une action de la Justice, mais par une intervention providentielle et spectaculaire. Il apparaît bien, certes, que les magistrats s’acquittent consciencieusement de leur office, mais leur rôle, trop humain, trop prosaïque, ne retient guère l’attention des canardiers, peu attirés par les problèmes policiers.” (SEGUIN , op. cit. , p. 34). 128

4. Fait divers prodigiosos

Dos 517 canards repertoriados por Seguin, 180 descrevem não crimes, mas eventos prodigiosos. O noticiário de prodígios é, pois, outra força considerável no rol dos faits divers do final do Renascimento. Sua fórmula básica é relativamente simples. Os canards sangrentos e criminais têm por objeto o que chamaríamos hoje de “fatos policiais”: raptos, assassinatos, estupros, vinganças. Quer dizer, eventos em sua maioria produzidos e explicados pela ação do homem 70 . No caso dos canards prodigiosos, os relatos têm por origem acontecimentos que fogem às capacidades realizadoras do homem comum, podendo ser atribuídos a forças não naturais: cometas, inundações, terremotos e fenômenos celestes; monstros, hermafroditas e todo tipo de deformidades físicas, sobretudo no momento do parto; feitiçarias e encantamentos; epifanias demoníacas, e assim por diante 71 . Não por acaso, a época de proliferação dos canards (meados do século XVI) é também a época de ouro da literatura erudita sobre prodígios.

De um modo geral, podemos dividir o universo dos textos do século XVI especializados em eventos prodigiosos entre compilações históricas eruditas (como, por exemplo, os De Prodigiis libri III , de Polidoro Virgílio; o De Ostentis , de Joachim Camerarius, o Velho; e as Histoires prodigieuses ); textos científicos ou com claras preocupações epistemológicas e taxonômicas (como Des monstres et prodiges do médico francês Ambroise Paré [1510-1590] e o Tractatus de monstris [1570] de Arnaud Sorbin [1532-1606], posteriormente incorporado à coletânea de Histoires prodigieuses ); e, finalmente, os canards de prodígio. Devemos acrescentar trechos dos diários contemporâneos (como o journal de Pierre de L’Estoile) 72 . Todos esses autores eruditos, em algum momento, flertaram com os canards de prodígio – e estes, por sua vez, constituem o elemento popular nesta divisão essencialmente erudita.

70 “(...) désordres causés par les hommes”, na expressão de Seguin. 71 Quando digo “forças não naturais”, é óbvio que me refiro ao modo como os autores e leitores contemporâneos consideravam esses fenômenos: um cometa é um fenômeno celeste natural para nós, mas não para o público mediano do século XVI, que via nele, quase sempre, um portento. 72 Sem esquecer, claro, passagens literárias específicas ou tangenciais aos temas prodigiosos (Ronsard, Montaigne, Rabelais). Neste caso, porém, excetuando-se alguns ensaios de Montaigne (que discutirei mais adiante), não são textos devotados ao problema do prodigioso enquanto tal. 129

Mas a leitura comparativa de tais textos nos mostra, justamente, que as fronteiras entre as considerações de ordem erudita (tratados científicos ou quase) acerca dos acontecimentos prodigiosos e as considerações de caráter popular, que os canards de prodígios eles mesmos representam, se tornam ainda mais diáfanas que entre canards sangrento-criminais e as novelas trágicas. Nas narrativas de prodígio, vê-se que os interesses dos diferentes autores ( canardiers, memorialistas e teóricos), e de seus respectivos leitores, são mais do que simplesmente convergentes. Efetivamente, há claros indícios de uma simbiose entre o material “erudito” e o “popular”: Ambroise Paré não apenas leu como efetivamente fez uso dos canards como fontes diretas em seu famoso estudo sobre monstros. Em outras palavras, deu aos canards de prodígio certa forma de legitimação “científica” 73 . Neste contexto específico, as Histoires prodigieuses constituem uma espécie de meio-termo entre o popular e o erudito, sendo sua relação com os canards mais próxima que as relações existentes entre novelas trágicas e canards sangrentos. Mas, ainda assim, o canard prodigioso se mostra mais suscetível às interpolações e aos empréstimos diretos que os canards sangrentos e seus primos eruditos 74 . No sentido inverso, ao mesmo tempo em que Paré e Boaistuau fazem uso dos canards , as Histoires prodigieuses , embora escritas para um público erudito, caem no gosto dos colporteurs e seu público, encontrando terreno propício para cópias e disseminações – possibilitando aos canards de prodígio, numa contramaré, canibalizarem seus primo-irmãos eruditos 75 .

Essa relação de simbiose direta acontecerá até pelo menos o começo do século XVII, quando os textos eruditos sobre prodígios se estabilizarem em

73 “Le public savant et ce public plus populaire n’étaient certes pas, à l’origine, absolument étrangers l’un à l’autre. De même, les deux littératures, populaire et savante, ne s’ignoraient pas. Au temps où Paré compose son livre Des monstres et prodiges , il n’hésite pas à emprunter des récits aux canards, qu’il connaît souvent directement [veja-se Des Monstres …, fim do cap. XIX].” (Jean CEARD , La Nature et les prodiges , p. 470). 74 “Entre cette littérature populaire [os canards ] et la littérature savante, les recueils d’ histoires prodigieuses constituent un intermédiaire qui assure une continuité de l’une à l’autre et qui, de fait, sert souvent de relais ; Boaistuau a recueilli dans les canards beaucoup de faits qu’à son tour Paré lui emprunte. Il arrive même que l’on se demande si certains canards n’ont pas eu pour auteur l’auteur d’un recueil d’histoires prodigieuses [um canard de 1578 editado por Jean de Lastre aparece integralmente no cap. 5 das Histoires prodigieuses de Rod. Hoyer].” (CEARD , op. cit. , p. 470). 75 “(…) l’ Almanach pour l’an de Grâce 1679 s’intéresse aux « femmes qui ont enfanté grand nombre d’enfants » et recopie tranquillement le chapitre VII [das Histoires ] de Claude Tisserant.” (CEARD , op. cit. , p. 471). 130 autorreferências consistentes – trazendo, por consequência, o necessário desprezo pela literatura ambulante dos canards 76 .

Pode-se dizer, no entanto, que esse desprezo traduz uma mutação geral – uma vez que a relação dos autores de Histoires prodigieuses com os temas que lhe são caros também mudará radicalmente entre 1560 e 1598. Essas compilações, tal como as Histoires tragiques , surgiram por volta da metade do século XVI: compêndios eruditos de acontecimentos peculiares, entendidos como consequências de causas naturais, sobrenaturais ou simplesmente inexplicáveis. A primeira delas, as Histoires prodigieuses de Pierre Boaistuau (1560), foi repetidamente editada e ampliada por diferentes autores nas décadas subsequentes 77 . Apesar dos numerosos adendos das edições posteriores, foi Boaistuau quem estabeleceu sua forma: singularidade dos fenômenos, genealogia e erudição histórica, capítulos coerentemente arranjados em torno do mesmo tema (com descrições eruditas de apoio), ilustrações em sinergia com o texto (no que se diferencia da maior parte dos canards ), primado da monstruosidade (19 relatos de monstros ou correlatos num total de 44 capítulos), e certa leveza no tratamento temático 78 . Esta leveza, de certa

76 “A mesure que la littérature savante, grâce aux travaux de Schenck et à d’autres compilations du même genre [Riolan, nos Discours des Hermaphrodits , 1614, aconselha o leitor a ler os livros de Schenck], disposera des ses propres sources d’information, elle marquera plus de mépris pour les canards : la traduction [francesa] du livre de [Fortunio] Liceti, [ De monstrorum natura, caussis, et differentiis libri duo , 1616], qui paraît en 1708, est suivie d’un très grand nombre d’observations rassemblées par Gérard Blasius (Gerhardt Blaes) et qui sont tirées, prévient-on le lecteur, « non pas de ce que nous apprennent ces feuilles volantes, qu’on publie tous les jours dans nos Ruës : mais des ouvrages des plus celebres Medecins ».” (CÉARD , op. cit. , p. 470). 77 Não deixa de ser curioso que Pierre Boaistuau seja o iniciador tanto da moda das Histoires tragiques quanto das Histoires prodigieuses . O título da edição original demarca sua caracterização erudita: Histoires Prodigieuses les plus memorables qui ayent esté observees, depuis la Nativité de Jesus Christ, jusques à notre siecle : Extraictes de plusieurs fameux autheurs, Grecs et Latins, sacrés et prophanes : mises en nostre langue par P. Boaistuau, surnomé Launay, natif de Bretaigne, avec les pourtraictz & figures . Paris, 1560. A ordem de publicação é a seguinte: Livro I por Pierre Boaistuau (1560); livro II por Claude de Tesserant (1568); Livro III por François de Belleforest (1571 e adições do mesmo à edição de 1575); Livro IV por Rod. Hoyer (1582, provavelmente também o autor do material anônimo publicado em 1578); Livro V por Arnauld Sorbin (1582, escrito em latim em 1570, traduzido por François de Belleforest e publicado nesta edição); e Livro VI por ‘I. D. M.’ (1598). Com as contínuas adições, o livro passou de 130 páginas (na primeira edição de 1560) a 1.282 páginas na última edição de 1598. (Cf. Jennifer SPINKS , “Print and polemic in sixteenth-century France: the Histoires prodigieuses , confessional identity, and the Wars of Religion” in Renaissance Studies [Online version, september 2011], p. 6). 78 “Pierre Boaistuau’s 1560 Histoires prodigieuses established the structure for the cycle of editions, and his approach was to place particular phenomena – such as earthquakes, famines, snakes, and even prodigious feasts – into individual chapters and then in most cases proceed to provide many more examples of each phenomenon. The Histoires prodigieuses is richly 131 forma, contribuiu para que a obra, apesar de erudita, caísse no gosto popular – mas é também um índice do significado que o prodígio passou a receber a partir de meados do século XVI – do qual a própria obra é uma espécie de sintoma. Se, em 1560, Boaistuau inaugura um gênero de texto prodigioso tão próximo do canard que os próprios canards canibalizarão seu nome 79 (incluindo-se aí os numerosos causos emprestados diretamente ao material de colportage ), a atitude de seus sucessores – sobretudo o anônimo da edição de 1598 (a última) – será paulatinamente diferente da sua.

As Histoires de Boaistuau foram escritas na esteira de obras similares: as compilações de prodígios, em voga desde o Império Romano 80 . Essas compilações tiveram continuações importantes Idade Média adentro – notando-se aí, entre outras, a influência do livro XI das Etimologias de Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.) 81 . Mas a obra seminal para o modelo utilizado no Renascimento é o

illustrated with woodcuts, which begin almost every chapter and presumably contributed to the great success of this series.” ( SPINKS , op. cit. , p. 6). 79 Embora não fosse inicialmente de uso exclusivo dos canards descrevendo prodígios – pois canards criminais também a utilizaram – a expressão Histoire prodigieuse... passou, na primeira metade do século XVII, a descrever majoritariamente casos específicos desse gênero: Histoire prodigieuse de sept épouvantables monstres sortis des abîmes de la terre représentés par des signes étranges et abominables devant Dieu,... Paris : J. Chemin, 1618 (In-8°) [BNF D 65706]; Histoire prodigieuse d’un ours monstrueusement grand & espouvantable, tuant & devorant tout ce qu’il treuvoit devant luy, & violant femmes & filles au pays de Forests : qui fut tué par le Capitaine la Halle de Sainct Estienne de Furant au bois de la Trappe pres Sainct Geny de Mallefaut . Lyon, Claude Chastellard, 1613. [Arsenal 8 H 28033 (1)]; Histoire prodigieuse et admirable arrivée en Normandie et pays du Maine, du ravage qu’y ont fait une quantité d’oiseaux étrangers et inconnus, sur les fruits et arbres desdits pays... Paris : I. Mesnier, 1618 (In-8 °) [BNF LK2 1279]; entre outros. 80 A ideia de prodigium (e sua cadeia de correlatos: portentum , ostentum , monstrum ), enquanto signo funesto ou de evidente gravidade, é uma obsessão do Império Romano (Cf. Blandine CUNY - LE CALLET , Rome et ses monstres , pp. 43 e ss). Varrão, Estrabão e outros autores latinos escreveram a respeito dos prodígios enquanto presságios – bem como Agostinho ( Cidade de Deus ), retomando o mesmo ponto de vista, mas aplicado ao universo cristão. A História Natural de Plínio, o Velho (23-79 d.C.), por sua vez, suma de todos os saberes antigos sobre o mundo natural, é uma fonte importante de prodígios monstruosos. 81 A produção medieval sobre prodígios e similares é imensa, alimentada ora pela literatura de viagem, como os relatos d’ O Livro das Maravilhas de Marco Polo (séc. XIII) e das Viagens de Jean de Mandeville (séc. XIV); ora por textos ficcionais e/ou apócrifos, como o Romance de Alexandre (séc. XII), a Carta do Preste João (séc. XII); ora por compêndios de mirabilia (isto é, de relatos maravilhosos), como os repertoriados nos Otia Imperialis , de Gervásio de Tilbury (séc. XII, material listado por Jacques LE GOFF na primeira parte de seu livro O Imaginário Medieval ); ora por tratados (ou quase) das mais diversas áreas, como o Liber monstruorum (anônimo do séc. VIII); a Física de Hildegarde von Bingen (1098-1179) e o Livro dos Animais , do Pseudo- Hugo de Fouilloy (1110-1172), estes dois inspirados diretamente no Physiologus (bestiário em versão latina do séc. IV d.C. de um original grego perdido que remonta ao séc. II d.C., onde aparecem, entre animais conhecidos, diversas espécies de animais fantásticos, como os 132

Prodigiorum Liber de Julius Obsequens (~IV d.C.), ele mesmo, por sua vez, uma compilação de trechos da História Romana de Tito Lívio enumerando os portentos aparecidos em Roma entre 249 a.C. e 12 d.C 82 . Trata-se, portanto, de uma compilação retroativa , indireta , não presencial – anunciando já o formato que será seguido por seus continuadores 83 . A primeira publicação moderna de Obsequens data de 1508, a partir de um manuscrito encontrado no século XV, mas é a nova edição preparada na Basileia por Conrad Lycosthenes (1552), mais completa – com adições de narrativas prodigiosas extraídas de outros autores antigos –, que se tornou clássica. No entanto, entre 1508 e 1552, a primeira edição do Prodigiorum Liber já tivera nada menos que 14 edições – muito embora fosse sempre publicado como apêndice a obras de autores mais conhecidos, como Plínio, o Velho, ou Cícero. Com Lycosthenes, no entanto, o texto ganhou importância por si mesmo. E, ainda que reapareça editado em meio a outras obras (juntamente com os livros de Camerarius e Polidoro Virgílio), será vendido como prato principal da discussão, não mais como sobremesa 84 .

O europeu demorou, portanto, cerca de 45 anos, desde a primeira edição moderna de Obsequens, para tomar gosto pela literatura de prodígios como algo valorizado

unicórnios); e assim por diante. Evidentemente, essa produção é multifacetada, assíncrona, multicontextual e serve a objetivos diversos, não podendo ser reduzida a uma inspiração comum ou uniforme. 82 Utilizei a edição bilíngue preparada por Victor VERGER : Julius OBSEQUENS , Livre de Prodiges , Paris, 1842. 83 As compilações eruditas e os textos de caráter epistemológico são geralmente históricos e/ou indiretos, isto é, não se pretendem necessariamente testemunhas oculares dos fatos narrados: é uma consequência direta do seu sistema de legitimação, apoiado exclusivamente na autoridade citacional dos autores antigos. Já os canards , pela própria natureza de representação do fait divers , frequentemente invocam sua condição imediata de testemunho ou de proximidade espaço- temporal com o objeto narrado: mesmo se essa qualidade testemunhal não possa, na maioria das vezes, ser provada, ela permanece como marca de uma esfera de ação narrativa – que, em larga medida, chamaríamos hoje de “jornalística”. 84 A reedição de 1553 do De ostentis (primeira edição Norica, libri duo , sive de Ostentis , Viteberga, 1532) de Joachim Camerarius, o Velho, e a edição de 1554 do De Prodigii (primeira edição como parte dos seus I Dialoghi de 1531) de Polidoro Virgílio, obras que inicialmente ficaram praticamente sem repercussão, ganharão vida nova com o texto de Obsequens. “C’est en 1552 que ces deux ouvrages commencent leur véritable carrière : non plus négligés ou insérés parmi d’autres ouvrages que rapproche la seule forme dialoguée [como o De Prodigii de Virgílio], mais réunis et livrés au public avec une édition très neuve de l’opuscule de Obsequens, ils constituent le dossier le plus complet sur les prodiges et les mille problèmes que ces derniers soulèvent. Le succès de ce recueil ne se fit pas attendre : dès 1553, les mêmes pièces, disposées dans le même ordre, sont éditées à Lyon ; l’année suivante, Damiano Maraffi en donne, à Lyon encore, une traduction italienne complète ; enfin, en 1555, Georges de La Bouthière, toujours à Lyon, publie une traduction française de Julius Obsequens et de Polidoro Virgile (...).” (CEARD , La Nature et les prodiges , pp. 162-63). 133 em si mesmo : a partir da década de 1550, as compilações de Camerarius, Polidoro Virgílio, lançadas conjuntamente com o texto de Obsequens (editado por Lycosthenes), estarão na crista da onda – com um público que certamente não era composto apenas de eruditos humanistas 85 . A reedição conjunta das três obras em um único volume não é, aliás, mero acaso. Camerarius, defensor ardoroso do valor expiatório e apocalíptico dos prodígios, se opõe a Polidoro Virgílio, muito mais sóbrio e, em certa medida, mais cético. Essas coletâneas ofereciam ao leitor da época, portanto, não apenas uma extensa prosopografia a respeito dos prodígios como também duas posições relativamente antagônicas sobre seu significado – constituindo, pois, de certo modo, um cenário completo das questões para um público não necessariamente especialista.

5. Faits divers religiosos

Por faits divers religiosos entenderemos um conjunto de três subgêneros: 1). os que retratam milagres; 2). os que atestam conversões e apostasias; e 3). os que descrevem eventos demonológicos. Cerca de 200 entradas no repertório de Seguin. Embora estejam intimamente correlacionados (daí a etiqueta “ faits divers religiosos” dada ao conjunto), para o que proponho discutir adiante vou-me concentrar sobretudo no terceiro grupo, os canards com claras referências aos demônios (bem como, em segundo plano, nos canards de milagres). Isto não apenas pelo fato de utilizar essa discussão instrumentalmente, no último capítulo. No pré- Moderno, o diabo está em toda parte. Sua presença e/ou as reverberações de sua presença talvez sejam mais sentidas entre os séculos XVI e XVII que em todas as fases da Idade Média juntas. Consequentemente, no período que consideramos aqui, a atividade demoníaca é uma grande produtora de narrativas. Textos demonológicos (teológicos, médicos, jurídicos, filosóficos, tratando direta ou indiretamente dos demônios) foram escritos, reescritos, editados e comentados à exaustão a fim de solucionar problemas relativos à sua ação concreta – e a de seu grande chefe, Satã – no mundo quotidiano. Os canards acompanharam essa proliferação narrativa do demoníaco. Eles são contemporâneos estritos do que, na primeira metade do século XX, os historiadores passaram a denominar como A grande caça às bruxas na Europa Moderna : um grande e complexo conjunto de acontecimentos históricos onde, em linhas gerais, conjugando-se esses textos demonológicos com uma

85 “(...) en quatre ans, Julius Obsequens et P. Vergile étaient édités ou traduits quatre fois, et Camerarius l’était trois fois. La demande du public devait être pressante ; elle devait, en outre, venir des lecteurs très divers, et qui n’étaient pas tous de savants érudits, puisqu’on prit soin de traduire ces ouvrages.” (CÉARD , op. cit. , p. 163). 134 jurisprudência específica, processos penais por acusações de bruxaria (ou por supostas conivências com atividades de cunho demoníaco), culminaram em frequentes condenações à morte, somadas a perseguições algo histéricas de supostos cúmplices ou assessores dos condenados 86 . A sincronicidade entre as teorias demonológicas eruditas (os textos e os eventos aos quais aquelas se interligam) com os canards que narram acontecimentos dessa natureza é a relação que gostaria de valorizar neste momento: donde a nomenclatura de canard demonológico para associá-los num conjunto-universo comum.

O circuito demonológico é, de fato, um irresistível topos pré-Moderno – muito embora sejam relativamente poucos os textos literários que dele façam uso direto, sobretudo no caso da bruxaria (tema amplamente tratado pelos eruditos, mas pobremente representado nas formas literárias então em voga). Seria, no entanto, surpreendente se, no repertório reunido por Seguin, não constassem também canards envolvendo o diabo, ao menos em algum grau. Num canard desse tipo, trata-se não propriamente da descrição do diabo em si (seja lá qual for sua forma, cor, dimensão), mas de sua ação ou de sua influência – quer dizer, de acontecimentos descritos como tendo, por causa direta ou indireta, uma atividade considerada originalmente demoníaca. Esta pode gerar um roubo, uma catástrofe, a morte de um animal ou de um rebanho, uma briga entre vizinhos, um engodo amoroso, um assassinato, uma possessão, o aparecimento de um bebê monstruoso, e assim por diante. Muitas vezes, esta ação contará com o apoio claro de consortes humanos – bruxas ou hereges de todos os tipos –, configurando um malefício . Nem todo assassinato, nem toda morte, nem toda tempestade será, claro, atribuída, na parte ou no todo, à influência do demônio ou a um malefício. Já outros eventos, destes ou de outros gêneros, muito claramente, sim. E é justamente aí, quando seu atestado textual é explícito, que interessa rotular o canard como demonológico.

Pelas situações que acabo de enumerar (entre elas, assassinatos e a produção sobrenatural de monstros), vê-se que o diabo é pervasivo e secante a praticamente

86 A expressão “caça às bruxas” soa como um exagero historiográfico se a tomamos como um fenômeno homogêneo e contínuo. Mas, de fato, considerando certos períodos curtos (vários pequenos subconjuntos de dois ou três anos entre 1486 e 1750) em algumas regiões (sobretudo em pequenas comunidades localizadas numa faixa que vai do leste da França ao oeste da atual Alemanha), ela tem razão de ser empregada. Trata-se, pois, de um fenômeno altamente complexo, difícil de definir sem pensá-lo em um quadro dinâmico e cumulativo de acontecimentos. No meu entender, o melhor estudo de conjunto continua sendo Brian LEVACK , A Caça às Bruxas na Europa Moderna (or. 1987), Campus, 1988. É Levack quem usa a expressão “conceito cumulativo de bruxaria”. 135 todos os temas clássicos tratados pelos canards: Satã é, indubitavelmente, um dos maiores produtores de faits divers da época pré-Moderna.

O resumo proposto neste capítulo é importante, e espero já suficiente, para definir o meio-ambiente retórico do fait divers do final do Renascimento – quer dizer, suas continuidades, empréstimos e negociações com outras formas narrativas (literárias ou não). Meu objetivo foi tentar mostrar, mesmo resumidamente, sua pervasividade: será difícil ler algum autor francês pré-moderno, escrevendo sobre qualquer um dos temas clássicos abordados pelos canards , sem doravante levar estes últimos também em consideração. Será o caso do ensaio de Montaigne que analisarei mais adiante.

VVV 1. Dos Coxos : PPPreparativosPreparativos

Minha leitura de Dos Coxos , aqui, tem um duplo objetivo: posicionar o ensaio num contexto da produção popular; e fazer a síntese de todas as questões abordadas nos capítulos anteriores.

ODEMOS ENTENDER A SEÇÃO DE ABERTURA de Dos Coxos dentro de um Puniverso dúplice (bucólico-agrário). Pois ela não parece se decidir por um modelo único, mas sim fazer uma síntese entre ambos: de um lado, uma phronesis geórgica, quer dizer, uma sabedoria prática que vem do uso da terra, do acúmulo de experiência necessário à sua exploração e ao seu controle; de outro lado, o tempo imutável das estações que se sucedem à revelia do homem, esse tempo fora do tempo, que fornece a estabilidade cósmica (a estabilidade política é outra história) necessária para que um discurso pastoral seja estabelecido:

[B] (...) Tudo continua no mesmo lugar. Meus vizinhos acham a hora da semeadura, da colheita, a ocasião certa para os negócios, os dias nefastos e propícios, exatamente no mesmo ponto que vinham designando para eles desde sempre.

Há evidentemente algo de idílico nessa estabilidade, muito embora ela seja carente de signos propriamente arcadianos: falta-lhe, por exemplo, o canto e a música (tópicas que, aliás, faltam por completo ao conjunto dos Ensaios ). Por outro lado, esse idílio, movido ao dinheiro aristocrático das rendas da terra, é também uma sofia . É da experiência peculiar ao paysan que se extrai sua sabedoria, uma sabedoria (literalmente) terrestre: assim como o agricultor das Geórgicas , o vizinho paysan de Dos Coxos conhece, pelos signos da natureza, “a ocasião certa” da ação e do repouso, da semeadura e da colheita, “do nefasto e do propício”. E podemos supor, por extensão e por ironia, que o narrador esteja falando também do nobre paysan que é o signatário do ensaio. Neste sentido, poderíamos perfeitamente acrescentar, à economia citacional de Dos Coxos , estes versos de Virgílio:

Hinc tempestates dubio praediscere caelo 137

Possumus, hinc messisque diem tempusque serendi Et quando infidum remis impellere marmor Conveniat, quando armadas deducere classes, Aut tempestivam silvis evertere pinum. Nec frustra signorum obitus speculamur et ortus, Temporibusque parem diversis quattuor annum 1.

O tempo, as estações, o calendário comum e a sabedoria constituem um mesmo cosmo interdependente, com energia para desconfiar dos desejos controladores de forças institucionais. A entronização de nosso ensaio dentro de uma agrimensura paysane (bucólico-agrária, sócio-histórica e literariamente falando) nos permite, portanto, fazer uma série de inferências importantes.

Considerando exclusivamente o aspecto cronológico, Dos Coxos (escrito por volta de 1585) é contemporâneo – na Europa e no contexto particular da vida intelectual francesa – ao desenvolvimento do bucolismo e da valorização da vie rustique . Mas, ao menos do ponto de vista da época de sua publicação, é também contemporâneo dos faits divers e dos canards . Como o texto se comporta diante dessas duas facetas da modernidade de sua época: um vetor intelectual e erudito, a produção de um espaço literário pastoral 2; outro vetor, “popular” e informacional? Se o humanista do Renascimento europeu, apesar de todo o trabalho técnico de construção de uma identidade com o passado clássico, precisa necessariamente fazer parte de seu tempo, penso que, de certo ponto de vista, esta sincronia funcionaria num

1 “Daí [dos ciclos da natureza e de sua metódica observação] podermos, mesmo através de um céu duvidoso, predizer as estações, distinguir o tempo do plantio e o tempo da colheita, quando convém fender com os remos o mármore pérfido das ondas, ou lançar as frotas armadas, ou desenraizar no tempo certo o pinho nas florestas infindo. Tampouco é em vão que observamos o deitar e o nascer dos astros e as diversas estações que dividem igualmente o ano.” (Virgílio, Geórgicas , I, 252-259). 2 O romance pastoral teve seu lugar na Biblioteca do château : “In France, Montaigne briefly enumerated in the Essays ‘les livres simplement plaisans’ that captured his attention: Giovanni Boccaccio’s Decameron , Francois Rabelais’ novels, and the Flemish humanist Jean Second’s cycle of erotic Latin poems. He mentioned the Amadis and similar books, but only to reject them explicitly [“Quant aux Amadis et telles sortes d’escrits, ils n’ont pas eu le credit d’arrester seulement mon enfance” (Ensaios, II, 10)]. In 1582, he added a new title to his list of favourites: L’Histoire aethiopique [i.e., a tradução de Heliodoro feita por Amyot]” (PLAZENET , “Jacques Amyot and the Greek Novel”, pp. 238-239). Efetivamente, a Etiópica de Heliodoro- Amyot consta no catálogo reconstituído da Biblioteca feito por Pierre Villey: “L’ Histoire éthiopique traitant des loyales et pudiques amours de Theagenes et de Choriclea (Paris 1547, ou 1549, ou 1559, ou 1570): “C’est la traduction qu’Amyot avait donnée du roman d’Héliodore; certainement Montaigne la possédait. «Entre les livres simplement ‘plaisans’» il trouve «l’histoire œthiopique digne qu’on s’y amuse» à ce qu’il nous apprend dans son essai Des livres . Je ne vois pas qu’il lui ait fait aucun emprunt dans les Essais .” (Pierre VILLEY , Les sources et l’évolution des Essais de Montaigne , Tome 1, 1908, p. 146). 138 entrecruzamento que é quase o de uma querelle des anciens et des modernes : pois ele é moderno ao recuperar paradoxalmente figuras literárias da Antiguidade em detrimento de um imenso corpus medieval ou pós-medieval até pouco tempo em uso (os Amadis, os Huons, os Lancelotes), rejeitado como formal e estilisticamente ultrapassado 3. Como seria possível reunir esses vetores em nosso contexto?

Na abertura de Dos Coxos , vemos signos comuns da pastoral: mas, tal como no modelo virgiliano, a representação de um mundo ideal e estático, transmutado para o Renascimento europeu, não impedirá, em meio à calma, o contrabando de problemas de ordem muito concreta – políticos e institucionais, estéticos e sexuais. Podemos imaginar se esse jogo de ocultamentos e transmutações não existiria também no ensaio. O terreno paysan inicial abre caminho para outros temas que podem ser ressignificados de maneira atraente a partir de uma lógica de reverberação , tomando-se o regime pastoral por referência (como detonador ou catalisador do processo). Esse modo de organização é um dos fundamentos da minha análise. Se é impossível retirar do conjunto das perícopes uma unidade sintagmática imediata, podemos abrir mão dessa tarefa e entender Dos Coxos num contínuo de tangenciamentos , que partem do pastoral para alhures. Como irmãos que nada têm em comum, se vistos em relação uns aos outros, mas que se tornam semelhantes quando a seu retrato na parede se acrescenta a imagem da mãe ou do pai, os temas internos de Dos Coxos se solidarizam sem necessariamente serem

3 Um texto dos Ensaios mostra como essa tensão clássico-medieval poderia afetar a percepção de um intelectual da época sobre seu próprio desenvolvimento: “[A] Car, environ l’aage de sept ou huict ans, je me desrobois de tout autre plaisir pour les lire: d’autant que cette langue estoit la mienne maternelle, et que c’estoit le plus aisé livre que je cogneusse, et le plus accommodé à la foiblesse de mon aage à cause de la matiere. Car des Lancelots du Lac, des Amadis, des Huons de Bordeaus, et tel fatras de livres à quoy l’enfance s’amuse, je n’en connoissois pas seulement le nom, ny ne fais encore le corps, tant exacte estoit ma discipline. Je m’en rendois plus nonchalant à l’estude de mes autres leçons prescriptes. Là, il me vint singulierement à propos d’avoir affaire à un homme d'entendement de precepteur, qui sçeut dextrement conniver à cette mienne desbauche, et autres pareilles. Car, par là, j’enfilay tout d’un train Vergile en l’Aeneide et puis Terence, et puis Plaute, et des comedies Italiennes, lurré tousjours par la douceur du subject. S’il eut esté si fol de rompre ce train, j’estime que je n’eusse raporté du college que la haine des livres, comme fait quasi toute nostre noblesse. Il s’y gouverna ingenieusement. Faisant semblant de n’en voir rien, il aiguisoit ma faim, ne me laissant que à la desrobée gourmander ces livres et me tenant doucement en office pour les autres estudes de la regle. Car les principales parties que mon pere cherchoit à ceux à qui il donnoit charge de moy, c’estoit la debonnaireté et facilité de complexion. Aussi n’avoit la mienne autre vice que langueur et paresse. Le danger n'estoit pas que je fisse mal, mais que je ne fisse rien. Nul ne [p. 176] prognostiquoit que je deusse devenir mauvais, mais inutile.” (I, 26). 139 explicados por uma tópica unitária a priori 4. O verbo solidarizar se aplica melhor, neste caso, do que explicar , provar ou demonstrar . Estamos no terreno do maravilhoso, onde objetos e coleções valem mais que categorias 5. Sendo assim, meu esforço se concentra não exatamente na sucessão silogística das perícopes e na sua inter-relação imediata, mas na sucessão dos temas passíveis de reverberação a partir das perícopes: a Arcádia e o jardim; o jardim e a utopia; a utopia e o paraíso, o paraíso e o juízo final; o juízo final e o apocalipse; o apocalipse, o final dos tempos com seus signos inseparáveis: monstros, feiticeiros, milagres. Abordarei apenas alguns desses temas, mas quero deixar claro que é este o princípio que rege a leitura.

Esses dispositivos complementares não estão ditos nem se apresentam de modo claro e distinto na narrativa do ensaio, mas permitem implicações, justaposições ou tangenciamentos num subtexto em que aparecem uma bula papal a respeito do tempo, uma jurisprudência sobre o self , ou a mimese de um tribunal demonológico. E, mais uma vez, em Dos Coxos , esses problemas, contrabandeados, se apresentam numa relação de energia, contínua e orbital, mas não necessariamente numa estrutura de silogismo. O termo “reverberação” me parece, de fato, o mais adequado. A perícope de abertura não explica o ensaio; ela define uma paisagem , a partir da qual entra-se num território : esse lugar, a que tudo mais se reporta, está

4 Indiretamente, a crítica reconhece isso, pois, pelo que conheço, a pouca literatura secundária dedicada a Dos Coxos explora quase sempre as perícopes tomadas isoladamente , abrindo mão do entendimento do ensaio como um todo: artigos sobre o caso Martin Guerre, a partir do comentário de Montaigne a respeito (p. ex., Nicola PANICHI , “La boiterie de la raison” in BSAM Vols. 21-22, Janvier-Juin 2001, pp. 171-183; Emile TELLE , “Montaigne et le procès Martin Guerre” in Bibliothèque d’humanisme et Renaissance Vol. 37, 1975, pp. 387-419); sobre a posição demonológica de Montaigne, no trecho do interrogatório com a feiticeira (Emily BUTTERWORTH , “The work of the Devil? Theatre, the supernatural, and Montaigne’s public stage” in Renaissance Studies Vol. 22 nº 5, november 2008, pp. 705-722), e assim por diante. Como exceção a uma leitura holística do ensaio, Bernd RENNER , “A Monstrous Body of Writing? Irregularity and the Implicit Unity of Montaigne’s ‘Des boyteux’ ” in French Forum , Vol. 29, n° 1, Winter 2004, pp. 2-20. 5 Fiz esta citação antes, mas vale a pena retomá-la aqui: “(...) interrogo-me sobre se existiria no mundo muçulmano um termo que, mutatis mutandis , correspondesse ao que nós chamamos maravilhoso. O Ocidente medieval possuía um termo para isso. No tocante à cultura erudita , o termo mirabilis era empregado na Idade Média e tinha, aproximadamente, o mesmo sentido. Os clérigos da Idade Média, todavia, não tinham a bem dizer uma categoria mental, literária e intelectual que correspondesse exatamente àquilo a que chamamos o maravilhoso. Naquilo que corresponde ao nosso ‘maravilhoso’, e onde nós vemos uma categoria – categoria do espírito ou da literatura –, viam os clérigos da Idade Média (e aqueles que deles recebiam a informação e a formação) um universo, sem dúvida, o que é muito importante, mas um universo de objetos: mais uma coleção que uma categoria.” (Jacques LE GOFF , “O Maravilhoso no Ocidente Medieval” in O Imaginário Medieval , p. 46). 140 parado no tempo por algum motivo misterioso. Se esta abertura-paisagem poderia servir de gazua hermenêutica (a gazua do cético) para suas infinitas portas (perícopes), como evoquei na introdução, ela não reduz o ensaio a uma explicação geral, unitária e excludente: o ceticismo favorece uma dinâmica de ambiguidades que pode até contaminá-lo, mas certamente não o condenará à morte do puro ceticismo. E, de qualquer modo, como veremos, o ceticismo está lá como proteção e não como poluidor, isto é, mais como bom phármakon que como maleficium . Um exercício de reverberação foi o que tentei fazer na segunda parte do capítulo 3: ambientar temas diversos em sinergia uns com os outros, mas sem necessariamente explicar tudo a partir de um só; em outras palavras, compreender como um tema (a pastoral, no caso) se torna combustível para um exercício de leitura mais amplo e que tenta se equilibrar por si mesmo no próprio processo intuitivo de desenvolvimento. Um exercício de contexture 6, claro, mas também um exercício de serendipidade 7.

Abre-se aqui, portanto, um problema de ordem dinâmica, plural e autossuficiente: a sucessão heteróclita de perícopes o exige. Para chegarmos até lá, precisamos de um projeto teórico que reúna self , paisagem, retiro, cronologia, biologia, teratologia, demonologia, estética, política, jurisprudência, ceticismo, escritura, sexualidade e natureza. Trata-se de um problema taxonômico? Que taxonomia possível poderia reunir essa disparidade autônoma de topoi ? O que os organiza? Do ponto de vista do conteúdo, a pontificação dos rumores. Do ponto de vista formal, a perspectiva do fait divers .

1)

Uma mulher de 42 anos foi agredida e mantida em cárcere privado por seu marido, em Franca (400 km de São Paulo), sob a justificativa de que ela o traía “em pensamento”. A vítima, segundo depoimento registrado em boletim de ocorrência, foi agredida entre a noite de segunda-feira e a madrugada de terça-feira e ficou presa em seu apartamento, no bairro Vicente Leporace, pelo marido. O acusado, um servente de pedreiro de 38 anos, que foi localizado pela polícia logo após receber denúncias de vizinhos do casal, foi preso por suspeita de lesão corporal (lei Maria da

6 Cf. Cap. 1, n. 8. 7 Só me dei conta de que devia esse exercício à noção de serendipity – pensada a partir de um artigo de Carlo Ginzburg, lido anos atrás num contexto muito diferente – agora, nas revisões finais deste texto. Por que razão isso teria sido excluído da memória bibliográfica da pesquisa, eu não sei dizer, mas seria interessante investigar. Ver Carlo GINZBURG , “Sinais. Raízes de um paradigma indiciário” in Mitos, Emblemas, Sinais, Morfologia e História [or. 1986], Cia das Letras, 2007 2, pp. 143-179. 141

Penha) e cárcere privado. Ele chegou a ser encaminhado para a cadeia do Jardim Guanabara, mas foi transferido para o CDP (Centro de Detenção Provisória) de Franca. Em depoimento à polícia, segundo o delegado Clóves Rodrigues da Costa, ele disse que agrediu a mulher porque ela o traía “por telepatia” e que “pensava em vários homens”. A mulher apresentou hematomas pelo corpo e disse ter levado pauladas. “A agressão então deveria ser mental também”, disse o delegado 8.

Temos aqui um exemplo algo particular de fait divers . Para analisá-lo como convém, precisamos invocar uma sensibilidade (amorfa ou imprecisa, pouco importa) que se move no limite entre o que é considerado imaginário e o que é da ordem do real. A ideia freudiana de Umheimliche não está longe.

Inicialmente, claro, existe a legitimação dada pela estrutura jornalística. Tudo o que for dito e pensado a respeito deste fait divers passa por esse dispositivo – um dispositivo tão automático e natural que mal percebemos sua existência: cremo-lo verdadeiro porque está escrito na Folha de S.Paulo . O que é a Folha de S.Paulo 9, e por que razão o que está escrito lá é verdadeiro , são questões que deixarei em aberto, mas que não poderiam ser desprezadas por completo no contexto que apresento aqui 10 . Sua dimensão teológico-doutrinária, embora importantíssima, também não precisa entrar em pauta agora 11 .

Por ora, vamos nos ater à narrativa. Formalmente, a história nos é dada, como diria Barthes, seguindo a diretriz mais clássica de um fait divers , a da imanência – quer dizer, neste caso, uma característica que se revela na sua absoluta completude 12 .

8 Rodolfo TIENGO , “Mulher é espancada em Franca (SP) sob acusação de trair marido em pensamento” in Folha de S.Paulo , Caderno Cotidiano , 14/10/2010 (edição eletrônica) [http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/814719-mulher-e-espancada-em-franca-sp-sob- acusacao-de-trair-marido-em-pensamento.shtml]. 9 Fundada por Olival Costa e Pedro Cunha em 19 de fevereiro de 1921 com o nome original de Folha da Noite . A Folha da Noite jornal foi fechada pela Revolução de 1930, por conta de seu apoio a Júlio Prestes – presidente formalmente eleito quando da ascensão de Getúlio Vargas ao poder –, reestruturada e reinaugurada em 1931 com o sugestivo e litótico nome de Folha da Manhã . Em 1962, a Folha da Manhã foi comprada pelos sócios Carlos Caldeira Filho e Octavio Frias de Oliveira (cujos herdeiros ainda mantêm seu controle acionário), passando a se chamar Folha de S.Paulo . As informações foram tiradas da Wikipédia. 10 Por que , ou melhor, como essa legitimação ocorre ultrapassa em muito a discussão circunstancial prevista na tese. No entanto, na medida em que essa legitimidade tem paralelos com estratégias ficcionais que ocorrem em situações que discuto adiante, devemos ter sempre à vista uma crítica da aura metafísica do veículo jornalístico. 11 Abaixo faço algumas correlações a este respeito. 12 “L’assassinat politique est donc toujours, par définition, une information partielle ; le fait divers, au contraire, est une information totale, ou plus exactement, immanente ; il contient en 142

Quando terminamos o parágrafo, entendemos que ele está não somente terminado como inteiro em sua própria limitação: assim como o soneto perfeito, ele também se constitui como um micromundo. Os acontecimentos que constituem sua origem tiveram, provavelmente, precedentes narrativos importantes, e os acontecimentos de que temos efetivo conhecimento devem ter tido suas inevitáveis consequências e continuações: pouco importa, a história (tal como nos é apresentada) já é, em si, uma história total . Nosso fait divers é um evento recortado e recontado de dentro de um evento maior: ele é seu atestado público, nada mais. Todas as informações processuais (o que exatamente está “descrito no boletim de ocorrência”, por exemplo?), passadas no silêncio e no mistério, não existem para nós: e, não obstante, eis sua especificidade , damo-nos já, e plenamente, por satisfeitos 13 . Essa plasticidade finita e completa – unidade que, em última análise, não deixaria de ser um dispositivo dramático aristotélico –, é importante para constituir sua dimensão diegética: “ voilà donc, une structure fermée ”14 . Estamos, certamente, no território das formas simples 15 .

Mas de que tipo? Só se responderia a isso com um modelo capaz de dar conta, entre outras coisas, de um bricolage surrealista: não só a “coincidentia oppositorum ” (dispositivo místico que aliaria contrários inconciliáveis) como também a expressão “participação mágica” (aquilo que pensaria “o estado dinâmico do sistema de comparação” entre os opostos) caberiam em sua equação geral 16 . Uma autoridade,

soi tout son savoir : point besoin de connaître rien du monde pour consommer un fait divers ; il ne renvoie formellement à rien d’autre qu’à lui-même. (…) C’est son immanence qui définit le fait divers.” (Roland BARTHES , “Structure du fait divers” in Essais Critiques , p. 189). 13 É realmente importante perceber que o fait divers não esgota a história à qual se refere. No nosso caso, não esgota a narrativa dos dispositivos legais e processuais implicados em seu prolongamento: de fato, não sabemos nada do acontecido além do que está dito no parágrafo, nem os nomes, nem os endereços, nem os autos, nem as negociações dos advogados e dos promotores, nem mesmo se o caso já foi julgado, se houve questionamento, se a mulher foi colocada sob algum tipo de custódia policial, se o marido foi absolvido ou condenado, nem as penas comutadas. Nada disso, porém, é necessário à completude formal do fait divers nem à sua intelecção narrativa. 14 BARTHES , Op. cit ., p. 189. 15 No sentido das estudadas por André Jolles – muito embora não haja, efetivamente, uma forma que possa ser atribuída diretamente ao universo dos faits divers . Cf. André JOLLES , Formas Simples [Einfache Formen , 1930], Cultrix, 1976. 16 “[A invenção surrealista] sera par un jeu que j’appellerai du ‘ bricolage’ , au sens favorable que Claude Lévi-Strauss donne à ce mot, et qui revient finalement à fabriquer des oeuvres littéraires ou plastiques (…). Ainsi se trouve explicitée la notion de participation , de type magique , qui est au coeur de l’entreprise et de l’univers surrealistes. Quando le surréalisme prône la valeur de la magie – lorsqu’il perçoit avant toute différence ‘le commun dénominateur unissant le sorcier, le poète et le fou’ [Benjamin Péret, 1942] – il ne suggère pas à l’homme d’aujourd’hui de fabirquer de toutes pièces un monde du ‘passé’ ou de la ‘primitivité’. (...) Le 143 que supomos laica e racional, é obrigada, por força de sua posição, a julgar e sentenciar uma ação que beira o extraordinário. Um acontecimento nonsense conduz a uma construção silogística e racional: se o marido acreditou que ela tivesse feito tal coisa, “a agressão então deveria [grifo meu] ser mental também”. O verbo no modo condicional é importantíssimo: estamos às margens de um mundo possível 17 . E ficaria tudo por lá mesmo, nesse mundo possível, difuso e misterioso – tal como acontece com seus congêneres do mundo dos sonhos e das fadas –, se sua sequência, violenta e covarde, não reconvocasse para si os deveres do real, simbolizado aqui pela esfera do Direito. Contra todas as expectativas, o subtexto (surrealista em sua medida) e seus desenvolvimentos não deságuam – como seria de se esperar numa dinâmica de magia , de maravilhoso e de mistério – numa ficção qualquer, e sim num fato concreto na ordem da legislação penal: um enquadramento (na lei n° 11.340/06 [Maria da Penha]; no artigo 148 do Código Penal Brasileiro [cárcere privado]) e uma imediata ordem de prisão. Se é certo que necessitamos de uma forma simples para delimitar este fait divers , precisamos de uma que interaja com tudo isso: com o surreal que se torna real, com o impossível que se faz lei e sentença.

De certo modo, a solução do delegado para o problema funciona como uma espécie de catarse 18 . Ela sustenta a supremacia do nosso universo, a garantia de que existe

surréalisme suggère plutôt de prendre conscience de la part d’irrationnel qui toujours innerve nos décisions individuelles, qui toujours pèse sur les idéologies collectives, pour le pire comme pour le meilleur. Et de se donner les moyens pratiques de ‘maintenir à l’état dynamique le système de comparaison, de champ illimité, dont dispose l’homme, qui lui livres des rapports susceptibles de relier les objets en apparence les plus éloignés et lui découvre partiellement la mécanique du symbolisme universelle’ [Breton, Arcane 17].” (Jacqueline CHENIEUX - GENDRON , Surrealisme , PUF, pp. 40-41). 17 No sentido lógico do termo. Enquanto a pesquisa se concentrava exclusivamente na compreensão literária da bruxaria – e sua simbiose com Dos Coxos (fase II) –, imaginei que o trabalho fosse se estruturar em função das relações entre lógica e literatura, a teoria dos mundos possíveis servindo de elo entre demonologia e teoria literária, incorporando a “ficção filosófica” como fundamento de uma poética do discurso demonológico. Embora tenha desistido de seguir por esta perspectiva, todo o plano fenomenológico dos interrogatórios e das provas, inquisitoriais ou civis, envolvendo a bruxaria poderia ser entendido nessa tensão, uma tensão que cria um campo autônomo e efetivo – algo que pretendo desenvolver no futuro. Para o estabelecimento da discussão mais geral, ver Thomas PAVEL , Fictional Worlds , Harvard University Press, 1986; Lubomír DOLE ŽEL , Heterocosmica. Fiction and Possible Worlds , John Hopkins University Press, 1998; e Possible Worlds of Fiction and History , John Hopkins University Press, 2010; Ruth RONEN , Possible Worlds in Literary Theory , CUP, 1994; Françoise LAVOCAT (org.), La théorie littéraire des mondes possibles , CNRS ed., 2010; Peter LAMARQUE & Stein OLSEN , Truth, Fiction and Literature , Clarendon Press, 1994. 18 Seria interessante desenvolver, em outro momento, este aspecto propriamente dramático do fait divers : a catarse seria o momento em que, à beira da identificação e da superposição de dois 144 um nosso mundo – por oposição a esse outro mundo, errado e bizarro, onde a telepatia não só é possível como pode desencadear ações obtusas e desconcertantes, causar a morte e o desespero, despertar o terror e a brutalidade. Nós, espectadores externos e distanciados, chancelamos esse lugar hierárquico, é claro. Damos aos dois mundos suas posições relativas de autoridade e sacralidade, de dependência e subordinação. A partir do zoneamento de uma mitologia pressuposta e palmeirim, encontramos uma posição hermenêutica imediata, confortável e duradoura – na qual um mundo se submete ao outro e tudo termina, para nós, em “riso, o mais autêntico limite do conhecimento” 19 .

Mas tal dispositivo hermenêutico não reflete um antigo enquadramento eurocêntrico e antropológico-positivista a respeito da magia primitiva? Por um lado, o paganismo (lugar onde se encaixa, nesse contexto e por extensão, a magia e a telepatia) não pode se sustentar diante da magnitude da Religião – sobretudo da Religião Cristã ocidental 20 . Por outro lado, a superstição – todo esse amplo lastro de “raison imbecile ” – deve ruir diante do Iluminismo subliminar da Ciência (metonímia do mundo civilizado). No entanto, por mais antitéticos que sejam em seus respectivos domínios contemporâneos, Religião e Ciência se reúnem aqui. Pois, se nossa leitura do fait divers seguiu por este mesmo caminho, temos de mundos reais A e A (quer dizer, o mesmo mundo, mas separados de alguma maneira por uma etérea linha divisória), o leitor – que se encontra no mundo real A – se reconforta sabendo que não poderá ser atingido pelo que lê (isso que ele lê também fazendo parte do mundo real A.) Neste fait divers , no entanto, por razões discutidas abaixo, desenvolvo a questão separando os dois mundos (o do leitor e o do subtexto da narrativa) em A e A’. No entanto, sobretudo nos faits divers associados a crimes brutais, o elemento catártico se beneficia justamente do fato dessa separação tender a zero mas o leitor permanecer a salvo . A título de comparação: no noticiário político, por exemplo, trata-se de um mesmo mundo A, mas sem qualquer separação ou divisão, uma vez que, neste caso, o que acontece nos bastidores da política nos diz respeito e nos afeta integralmente (“Olhem o que esses desgraçados fazem com o meu dinheiro”, e assim por diante). Por outro lado, quando o leitor médio (não aficionado) vê uma notícia sobre uma nova adaptação de Superman nos cinemas, temos uma informação agindo em mundos distintos A e B. E assim por diante. 19 Se me permitem a liberdade de uma autocitação. 20 Encontramos frequentemente esse eco derrisório nos autores do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX: “Faudra-t-il donc dire que la magie ne peut être distinguée avec rigueur de la religion ; que la magie est pleine de religion, comme la religion de magie et qu'il est, par suite, impossible de les séparer et de définir l’une sans l’autre ? Mais ce qui rend cette thèse difficilement soutenable, c’est la répugnance marquée de la religion pour la magie et, en retour, l’hostilité de la seconde pour la première. La magie met une sorte de plaisir professionnel à profaner les choses saintes; dans ses rites, elle prend le contre-pied des cérémonies religieuses. De son côté, la religion, si elle n’a pas toujours condamné et prohibé les rites magiques, les voit, en général, avec défaveur. Comme le font remarquer MM. Hubert et Mauss, il y a, dans les procédés du magicien, quelque chose de foncièrement antireligieux.” (Emile DURKHEIM , Les formes élémentaires de la vie religieuse , Livro I, Cap. I, seção IV). 145 admitir que, de certa forma, ele também reunifica em nós , hoje, mesmo que sub- repticiamente, esses dois campos distantes, sempre inconciliáveis, da Ciência e do Cristianismo. No final das contas, o fait divers acaba nos remetendo a pré- concepções de mundo que não imaginávamos ter tão plenamente enraizadas em nós mesmos: ele nos revela o nosso próprio handicap teórico (uma palavra que tem consonâncias no meu desenvolvimento aqui), a nossa dificuldade em entender até onde, e por quais caminhos insondáveis, vai a alteridade mais banal em seu sentido absoluto. Pois acontece diante de nós, entre cidadãos que poderiam estar ao nosso lado esperando a vez no caixa automático, no balcão da padaria, na mesa da urna eleitoral. Temos de redefinir nossa real posição? O que esperar? E o que fazer?

Poderíamos ao menos criar uma planificação temporária e etiquetar nosso fait divers com uma frase que lhe impõe, senão uma ordem, ao menos uma aventura-tipo ou um imediato lugar literário: “A Telepata adúltera de São Paulo”; “A Cinderela Espírita de Franca 21 ”; “A Encantadora espancada de Vicente Leporace 22 ”. O reposicionamento literário ajudaria ao menos, me parece, a pensar as coisas taxonomicamente. Mas nossa tipologia taxonômica teria de ir além.

Quando o delegado Clóves 23 sintetiza, na única frase completa em discurso direto do texto, o argumento de sua sentença (“A agressão, então, deveria ser mental

21 O município fica no interior de São Paulo e é sede da microrregião de Franca (14ª Região Administrativa do estado). Fundada por Hipólito Antônio Pinheiro (1754-1840) em 3 de dezembro de 1805, seu nome é uma homenagem ao criador do Distrito de Franca, Antônio José da Franca e Horta, então Governador da Capitania de São Paulo. Localiza-se a 20º 32' 19" de latitude sul e 47º 24' 03" de longitude oeste, a uma altitude de 1.040 metros. Tem uma superfície de 607.333 km², dos quais 84.571 km² estão em zona urbana, e sua população em 2010 era de 318.785 habitantes. É conhecida em todo Brasil como “A Capital Nacional do Calçado Masculino”. 22 Trata-se, na verdade, do Parque Vicente Leporace (S 20° 29’ 52.58”, W 47° 24’ 43.92”), um dos projetos da Companhia Estadual de Casas Populares (CECAP) de São Paulo no final da década de 1970 – e implementado no início dos anos 1980, com verba do BNH (Banco Nacional da Habitação). No site da Folha de S.Paulo , onde está hospedado esse fait divers , um leitor deixou a mensagem: “A única informação boa na notícia é que em Franca há um bairro chamado Vicente Leporace, que iluminou milhões de ouvintes de rádio com seu magnífico trabalho. Se ainda houvesse mais gente como ele, haveria menos gente como esse troglodita descarregando sua falta de autoestima em outras pessoas.” (Antônio Gonçalves Caneiroq (650) em 14/10/2010, às 20h32). Sabemos que o radialista Vicente Leporace apresentava, entre 1962 e 1978, quando morreu, um programa matinal diário de comentários políticos e sociais na rádio Bandeirantes (PRH-9 de São Paulo), chamado “O Trabuco”. Seu bordão era “Assino e Dou Fé!” e a vinheta anunciava: “Seu Leporace vem agora com o trabuco | Vai dar um tiro nos assuntos nacionais...”. 23 A homonímia imperfeita (puramente homófona) pode ser fortuita, mas traz consequências interessantes a uma leitura livre do fait divers : o germânico xlu :Dawigaz , formado por xlu :Daz 146 também”), temos um desdobramento inusitado que enquadra nosso fait divers nos estertores de uma epifania : uma noção geral que pode ser apropriada tanto pela psicologia 24 quanto pela teoria da religião 25 , como, ainda, pela teoria literária 26 – embora, ao que parece, não pelas teorias do jornalismo 27 , nem pela teoria criminal ou processual. O que, neste último caso, não deixa de ser compreensível – já que a

“célebre, famoso” e wi :gaz “guerra”, deu (Ch-)Leuthwig, Chlodovech, latinizado como Chlodovechus [Ludovicus, Ludwig, Louis, Luís], e finalmente Clóvis (466-511), primeiro rei dos francos , e tradicionalmente considerado o primeiro rei cristão da França. A partir dessa etimologia, podemos traçar outras relações: com o cravo-da-índia (Syzygium aromaticum , cloves em inglês, partindo do latim clavus através do Middle English clowe ), por suas propriedades afrodisíacas e vermífugas: Clóves , a “célebre autoridade policial (ou guerreira) que purga”. Com o francês clou (que serve tanto para cravo-da-índia quanto para prego , também do latim clavus através do antigo francês clou ): Clóves , a “célebre autoridade policial (ou guerreira) que prende”. E como uma etimologia derivada de clown , palhaço, para o mascarado bate-bola [clóvis ] que ainda se vê durante o carnaval brasileiro: Clóves , a “célebre autoridade policial (ou guerreira) que aparece no circo (sinônimo, para muitos, da comunicação midiática)”. Para a etimologia completa do nome Clóvis-Luís, ver: http://mitoblogos.blogspot.com/2008/07/ etimologia-60-o-nome-lus.html. 24 Matthew MCDONALD , “The Nature of Epiphanic Experience” in Journal of Humanistic Psychology , Vol. 48 n° 1, January 2008, pp. 89-115. 25 Reportando-se, por exemplo, às teofanias (irrupções dos deuses), teorizadas pelos mais diversos autores antigos e modernos – como na ideia de tremendum , de Rudolf Otto. Ou, mais particularmente, às hierofanias (irrupções do sagrado) de Mircea Eliade – conceito a partir do qual se distinguem os campos do profano e do sagrado, base teórica da ontologia eliadiana. O caso de Eliade traz ressonâncias mais concretas para a análise do nosso fait divers , uma vez que, segundo ele, “nas sociedades em que o mito ainda está vivo, os indígenas distinguem cuidadosamente os mitos – ‘histórias verdadeiras’ – das fábulas ou contos, que chamam de ‘histórias falsas’” (Mircea ELIADE , Mito e Realidade , Perspectiva, 1972, p. 13). E a questão do verdadeiro e do falso – sobretudo quando atestado por veículos de comunicação que negociam explicitamente com a imparcialidade da apresentação dos fatos – é importante em diversas camadas da episteme do nosso fait divers . 26 Ainda que seu substrato teórico deite raízes no Romantismo (nos “spots in time” do Prelude de William Wordsworth), é em James Joyce (“ a sudden spiritual manifestation, whether in the vulgarity of speech and gesture or in a memorable phase of the mind itself ”, Stephen Hero , p. 211, lembrando apenas que o termo “ spiritual ” aparece aqui esvaziado de qualquer conteúdo místico ou sobrenatural), e em Marcel Proust (o episódio da madeleine na Recherche ) que encontramos os exemplos mais conhecidos e reivindicados de sistematização da ideia de epifania literária. Ver a introdução de Wim TIGGES (ed.), Moments of Moment: Aspects of the Literary Epiphany, Rodopi, 1999; Sharon KIM (ed.), Literary Epiphany in the Novel, 1850-1950: Constellations of the Soul , Palgrave Macmillan, 2012; e Ashton NICHOLS , Poetics of Epiphany , University Alabama Press, 1987. Para o conceito em James Joyce, ver Irene HENDRY , “Joyce’s Epiphanies” in The Sewanee Review , Vol. 54, No. 3 (Jul. – Sep., 1946), pp. 449-467; para Wordsworth, ver David ELLIS , Wordsworth, Freud and the Spots of Time : Interpretation in The Prelude , CUP, 1985. 27 Embora o “a-ha! moment” de jornalistas seja frequentemente recolhido em coletâneas, não encontrei um só estudo que o articulasse epistemologicamente no contexto do seu savoir faire . Como exemplo de coletânea, ver: http://www.whoneedsnewspapers.org/jepiphanies.php 147 prática forense busca “provas” e não “verdades” 28 –, embora esteja em contradição com certas dimensões do detetivesco ficcional de hoje, que muitas vezes faz uso do epífano como expediente ex-machina na condução de investigações as mais complexas e labirínticas 29 .

Enquanto conceito operacional, uma epifania, por definição, não é aguardada nem pretendida: quando menos se espera ela... acontece . Ela se comunica, porém, numa instância necessária do nosso intelecto: só nossa sensibilidade, nossa intuição sinestésica e correlativa poderia nos mostrar de onde ela “realmente” vem, de que tipo de solidariedade ela “de fato” depende (aspas aqui, pois estaremos sempre criando mundos possíveis nas brechas que se abrem quando ela surge no “nosso” mundo). Embora, aqui, totalmente desprovido de qualquer singularidade transcendente (ao menos a princípio, o repórter não parece ser crente na telepatia, valorizando justamente o aspecto bizarro da história vista da perspectiva de um não- crente ), nosso fait divers tangencia essa dimensão geral do epífano. Ele aconteceu por conta de algo misterioso, cuja razão nos escapa, ou que não compreendemos completamente: o riso , o ódio , o desgosto , a revolta do leitor 30 são, aqui, categorias a posteriori porém fundamentais (não pertencentes à narrativa mas que se acoplam a ela como um efeito desejável, de modo que o fait divers se potencialize nos receptores), que enquadram e exprimem a transmutação da racionalidade absoluta (a nossa, diante do bizarro, do acontecimento que não faz qualquer sentido em um mundo civilizado e laicamente organizado pela ciência) em um paradoxal irracionalismo latente (e, mais uma vez, desejável em última instância), eflúvio psicológico de nosso confronto e desconforto com essa dimensão do mistério. Mas se há uma epifania (se o bizarro tem força para irromper no real, se tem força para criar esses paradoxos em nossa tranquila racionalidade), podemos repensá-lo e redefini-lo, doravante, num quadro relativamente coerente de eventos cheios de novos significados. Para o que me interessa aqui, podemos, a partir de um dado que

28 “The principles underpinning the criminal justice system reflect the adversarial approach of a search for ‘’ rather than ‘truth’ (Sanders & Young, 2007). This claim is made on the basis that ‘at the final stage proof need not be absolute, but only ‘beyond reasonable doubt’’ (Sanders & Young, 2007, p. 954).” (Stephen TONG , Robin BRYANT & Miranda HORVATH , Understanding Criminal Investigation , Wiley-Blackwell, 2009, pp. 171-172). 29 De fato, o Sherlock Holmes original, de Conan Doyle, é o homem das puras deduções lógicas, mas suas reaparições cinematográficas e televisivas atuais insistem essencialmente na epifania como seu corolário de ação: é o caso de House M.D. (seriado médico, mas diretamente inspirado no personagem de Doyle) e do Sherlock de Steven Moffat e Mark Gatiss (adaptação para a TV com Benedict Cumberbatch no papel principal). 30 Cf. o comentário de Antônio Gonçalves Caneiroq na nota 22. 148 o próprio texto revela de modo indireto mas loquaz, dar um passo além da finita completude que é própria ao fait divers .

Trata-se, portanto, de um passo decisivo, e que tem, claro, consequências diretas e incontornáveis no modo como vamos entendê-lo. Em primeiro lugar, nem Clóves 31 ; nem a mulher; nem seu marido; nem a fidedigna Franca (que construiu sua história entre café e sapatos 32 ); nem o Parque Vicente Leporace (que se deixa enganar pelos prédios amarelos de baixa renda, e as ruas curtas e curvas, atravessadas em linha reta por uma única avenida de quatro pistas 33 ); nenhum desses agentes parece suspeitar que se tornou parte de uma narrativa muito maior, doravante lida num prazer novo e irredutivelmente próprio, pois descontextualizado : prazer egoísta, sem

31 Delegado e professor da Acadepol-SP, Clóves Rodrigues da Costa foi o organizador e é atualmente o titular do NECRIM (Núcleo Especial Criminal), órgão da Polícia Civil criado para intermediar acordos nos chamados “crimes leves” (com penas previstas de até dois anos). Seu trabalho teórico e prático insiste na utilização dos delegados de polícia como instrumento de conciliação do juizado especial criminal. Talvez por conta dessa inclinação conciliatória, o delegado Clóves seja também um rapper . Suas composições trazem os temas comuns ao gênero (girando em torno das mazelas da injustiça social) e duas estão disponíveis na rede: Laços Eternos e outra, sem título, que repensa a dimensão melancólica e solitária do estar no mundo a partir do autoconhecimento e da inter-relação comunitária: “Ser ou não ser é um pensamento profundo | Ser ou não ser é uma dúvida atroz | Mas a mudança do mundo começa em cada um de nós”. Para ouvi-las: http://www.gcn.net.br/jornal/ index.php?codigo=130221&codigo_categoria=132 e http://www.gcn.net.br/jornal/ index.php?codigo=130067&codigo_categoria=132. 32 A franqueza – atributo, aliás, que poderíamos pensar como etimologicamente inerente aos habitantes de Franca, os francanos –, ou, melhor dizendo, a falta de franqueza da esposa (na perspectiva do marido) não está fora das relações binárias que poderíamos constituir para alargar o escopo simbólico da narrativa. 33 “The homogeneous and undifferentiated character of modern cities kills all variety of life styles and arrests the growth of individual character. (...) In a city made of a large number of subcultures relatively small in size, each occupying an identifiable place and separated from other subcultures by a boundary of nonresidential land, new ways of life can develop.” (Christopher ALEXANDER , Sara ISHKAWA & Murray SILVERSTEIN , A Pattern Language. Towns, Buildings, Constructions , OUP, 1977, p. 43 e p. 44). Podemos imaginar, a partir dessa ideia geral, se a realidade espacial de Vicente Leporace, que ao menos em teoria valoriza a heterogeneidade dos elementos urbanos em seu planejamento inicial, não favoreceria o surgimento de uma subcultura fora dos quadros do cristianismo normativo: “A concepção projetual [do Parque Vicente Leporace] denota uma nova postura urbanística em relação aos padrões tradicionalmente utilizados nos projetos de habitação social do BNH, a forma urbana rompe com a malha ortogonal e com a homogeneidade. O projeto não se reduz ao lote e à unidade habitacional, prevê áreas de uso coletivo e dos equipamentos sociais, valoriza as características particulares do lugar, os condicionantes físico-ambientais, preserva as áreas de mata e de nascentes. A estrutura urbana foi ordenada obedecendo à setorização e hierarquização dos usos, utilizando-se de princípios do urbanismo moderno, embora não possa ser considerado um projeto modernista em sua totalidade.” (Maria Cecília Sodré FUENTES , “A Concepção Urbanística do Conjunto Habitacional Parque Vicente Leporace na Trajetória do BNH” in Ciência et Práxis v. 1, n. 2, 2008, pp. 41-48). 149 dúvida, que ignora (ou ressignifica) o vago e nobre sentimento através do qual poderíamos mimetizar (pela força da nossa imaginação e pelos sentimentos de um humanismo difuso) a dor bastante real dos hematomas, o som dos pontapés, dos socos, das pauladas que choveram sobre o corpo supostamente adúltero da suposta telepata paulista. Um prazer que os ignora porque sintetiza este outro, totalmente diferente e perfeitamente fechado em si mesmo: o prazer lúdico da leitura de um fait divers .

Mas temos de ir ainda mais além. Nem eles (Clóves, mulher, marido, Franca, Vicente Leporace), nem o repórter, nem os leitores medianos da Folha de S.Paulo , parecem suspeitar que todo o episódio – o ocorrido em si, mas também o julgamento sintético, em primeira instância, de uma autoridade penal diante de um acontecimento que revela um mundo fantástico e fora do comum; sua circunscrição ao quadro do humor e das falácias lógicas do quotidiano; sua transformação, para uns , em personagens de uma narrativa que constitui um universo bizarro que intersecciona o “nosso”, racional e lógico, mas de alguma forma está fora, ou precisa estar fora dele para que faça o sentido necessário; sua adequação, para outros , dentro do quadro das difíceis porém possíveis rupturas mágicas do real 34 ; a viagem extática e seus correlatos; a veiculação midiática do caso; a anonímia obrigatória imposta aos seus atores principais, em nítida oposição à presença do nome da autoridade constituída para julgar seus atos (anonimidade que os protege juridicamente, por um lado, ao mesmo tempo em que os condena ao homogêneo correr da vida, retirando deles sua própria espetacularidade)... – ninguém parece realmente suspeitar que tudo isso rememore uma situação arquetípica no circuito demonológico do Renascimento europeu 35 .

34 Tais rupturas podem ser aceitas, claro, mesmo na instância da própria autoridade penal. Intérpretes “etnográficos” do interior da África atual (como os policiais deste fait divers no Zimbabwe), por exemplo, poderiam entender nossa narrativa de modo perfeitamente natural : “A polícia de Zvishavane (Zimbábue) prendeu um homem acusado de usar a mente para fazer com que a calcinha de uma mulher parada em ponto de ônibus desaparecesse. O detido teria ido além: ele fez sexo com a vítima usando o mubobobo , uma espécie de magia negra, sem que ela percebesse. De acordo com autoridades, o detido, Clifford Mavete, de 27 anos, foi visto fazendo movimentos sexuais e exibindo uma expressão de prazer diante da mulher parada no ponto. Segundo testemunhas, a vítima tinha entrado em transe por causa do mubobobo . Ao sair do transe, a mulher percebeu estar sem a calcinha. Policiais encontraram a peça íntima dentro de um saco plástico de Clifford, contou o site ‘Bulawayo24’.” (Fernando MOREIRA , blog Page Not Found (O Globo ) [15.10.2012|07h25], http://oglobo.globo.com/blogs/pagenotfound/ posts/2012/10/15/homem-preso-por-usar-mente-para-fazer-calcinha-desaparecer-470350.asp 35 É preciso reconhecer aqui, no entanto, que o eneassilábico hino do município de Franca faz, de maneira algo profética, uma breve referência ao potencial mágico das terras que, outrora, produziram seu café: “És florão da grandeza paulista, | semeada em teu chão feiticeiro : | Teu café 150

E se é assim, somos forçados a admitir, estamos diante de um enredo que pouco tem de realmente original . Ele aparece de modo solidário através de narrativas de diversos matizes: seja entre os Iacutos siberianos 36 , seja, como vimos, entre os crentes no mubobobo da África meridional. O enredo está pressuposto na discussão a respeito de superpoderes de fundo demonológico 37 . E, finalmente, do ponto de vista teórico, ela é coerente com os mais clássicos enquadramentos teológicos neotestamentários e patrísticos 38 – embora pareça, a princípio, uma importação

em aleias se avista, | Soberano, em seu reino altaneiro”. A versão completa, bem como a gravação oficial do hino, encontra-se em: http://www.franca.sp.gov.br. 36 “(...) les abassy [espíritos], garçons ou filles, pénètrent dans le corps des jeunes gens de sexes opposés, les endorment et font l’amour avec eux.” (Mircea ELIADE , Le Chamanisme et les techniques archaïques de l’extase , Payot, 1978, p. 75). 37 No Capítulo 3 da Seção II do Malleus Maleficarum , temos uma posição demonológica doutrinária a respeito de ações extracorporais (aquelas provenientes não de entidades sobrenaturais, mas de indivíduos concretos, beneficiados por alguma mais-valia demoníaca): “É preciso confessar que tais coisas [voar pelos ares] não só acontecem aos que estão despertos, mas também aos que estão dormindo; ou seja, podem ser transladados corporeamente pelo ar durante sono profundo.” (Heinrich KRAMER & Johannes SPRENGER , O Martelo das Feiticeiras , Rosa dos Ventos, p. 226). Trata-se de um lugar-comum: “The activities of witches are sometimes (…) ambiguous. During the witchcraft persecutions in Europe, there was a great debate over whether witches flew in their physical bodies or after leaving their physical bodies behind. The European witchcraft tradition clearly included the possibility that witches might not only leave their human bodies but also either change them or enter alternative bodies such as those of animals.” (David J. HUFFORD , “Assaults, Supernatural” in Thomas GREEN (ed.), Folklore Encyclopedia of Beliefs , Vol. 1, p. 67). 38 Nesse fait divers , encontramos ecos muito claros de práticas mosaicas [“Não cometerás adultério”, Êxodo , 20:14] relidas numa dinâmica explicitamente neotestamentária: “Eu, porém, vos digo: qualquer um que olhar para uma mulher com desejo [ ἐπιθυμῆσαι ], já adulterou [ἐμοίχευσεν ] com ela no coração [καρδίᾳ]” ( Mateus , 5:28, Bíblia de Jerusalém , Paulus, 2002). Embora o termo empregado seja καρδία , a perspectiva evangélica, claro, não é a anatômica, mas sim a da interioridade metafórica, de imensa fortuna cenobítica e eclesiástica. Neste contexto, podemos associar καρδία sem maiores problemas a λογισμός [pensamento , e para o “ato de pensar” o verbo λογίζομαι ] e até mesmo a θυμός [a “intensa expressão do eu interior”] – sendo, no entanto, o termo νοέσις [o “produto do ato de pensar”] filosófico e técnico demais para o ambiente neotestamentário. Uma vez que, no cristianismo primitivo, o pecado é uma noção elástica e sutil – pois não é considerado apenas do ponto de vista da pura observação ritual, como no caso mosaico –, as categorias pecaminosas, de certa forma, se equivalem nesse foro íntimo. Por esse motivo, noções diferentes como μοιχεία [adultério] e πορνεία [termo genérico para fornicação e desejo libidinoso ] são equivalentes na lógica de perscrutação regulamentar do self – como, por exemplo, neste apotegma do abba João Kolobos (339-405), onde “fornicação” substitui o “adultério” da citação de Mateus sem prejuízo do entendimento neotestamentário do circuito pecaminoso: “Aquele que se enche de comida [χορταζόμενος ] e fala com uma criança já fornicou [ ἐπόρνευσε ] com ela em pensamento [τῷ λογισμῷ]” [ PG , 65, 205 AB; Apophtegmes des Pères , Vol. I, V, 3, Cerf, 1993, p. 242]. Neste 151 esotérica new age (filtrada pela celeridade mental de um “troglodita descarregando sua falta de autoestima em outras pessoas”) 39 .

Mas essa falta de originalidade não é uma coincidência, nem uma especificidade deste fait divers . Ele não só retoma algo que lhe é externo como faz com que um sentido (que primitivamente não lhe pertence) consiga chegar até ele e se encha de reverberações distintas e complementares. Falta, efetivamente, algo à ideia barthesiana de que todo fait divers se define pela imanência – se isto quiser dizer apenas que o fait divers simplesmente se apague por si mesmo depois que se deu a combustão de sua leitura.

sentido, o fait divers apenas atualizaria este circuito geral através de uma nomenclatura mais contemporânea. 39 Encontramos crenças em experiências de intercurso sexual extracorporal entres os adeptos da chamada Projeção Astral : “A woman in the astral can take substance from a man in the physical, and come into very close contact with him, and experience sexual pleasure.” (Melita DENNING & Osborne PHILLIPS , The Llewellyn Practical Guide to Astral Projection, The Out-of-Body Experience , Llewellyn Publications, 2001², p. 182). Ver também Bruce GOLDBERG , Astral voyages: mastering the art of interdimensional travel , Llewellyn Publications, 2006. Em blogs especializados, encontramos, igualmente, diversos testemunhos de viagens astrais: “(…) my experience in astral projection tells that upon the time of initializing projection the sleeping physical body starts to feel like a hover craft then the astral body leaves. Upon astral sex, you should always make astral projection then meet the partner that you know in any place you recognize and make sex like a real state, Don’t forget to put the seatbelts upon projection unless you’ll be threw like a bouncing ball unto moon, it is very exciting to make it I think it is much healthy, because you feel the power of you spirit, you solve the mystery of your soul and achieve big advance in the unltimate world” (Comentário ao post The Beginning steps to Astral Sex , Tuesday, April 17, 2012 10:39 PM by cynicalistic in http://www.keen.com/ CommunityServer/UserBlogPosts/SirCheo/The-Beginning-steps-to-Astral-Sex/570786.aspx). Diferentemente das concepções ascéticas que informam certos setores do Cristianismo ocidental, os adeptos de várias das correntes norte-americanas da Wicca veem o sexo, tomado como uma potência semidivinizada em si, como uma atividade de alto apreço: “Sexuality heterosexual, homosexual, and bisexual is openly celebrated at Neo-Pagan rituals. Sex is seen as a magically powerful act.” (Helen BERGER , A Community of Witches: Contemporary Neo- paganism and Witchcraft in the United States Studies in Comparative Religion , University of South Carolina Press, 1999). “Even if their stories of evil orgies are sensationalistic and inaccurate, Christian critics correctly perceive that Neopagans mix sex and religion, and it is this mix that troubles them, that they find most threatening to their attempts to raise children in a safe and Christian world. Most Neopagan festivals welcome gay marriages and offer workshops on safe sex, open marriage, bisexuality, ‘sacred prostitution’ (the idea that women or men may engage in sex as part of a commitment to a god or goddess), and many other topics that explore various forms of sexuality and the relationship between sexuality and spirituality.” (Sarah PIKE , Earthly bodies, magical selves: contemporary pagans and the search for community , University of California Press, 2001, p. 98). 152

2)

Entre o final da década de 1970 e o começo da década de 1980, eu acompanhava durante toda a semana o programa do radialista Waldir Vieira, na Rádio Globo RJ AM (1220 kHz). Não tinha escolha. Criança ainda, ficava em casa, tentando fazer as lições da escola para a manhã seguinte e minha mãe invariavelmente girava o dial na hora do jingle e ouvíamos: “ Waldir Vieira, um cara tão legal ...”. O programa, diário, durava horas e horas, do começo ao fim da tarde. Tinha como seções fixas “As Canções do Rei Roberto Carlos” ( mise en abyme de rádio dentro da rádio, onde durante uma hora só se ouvia, obviamente, Roberto Carlos), “Onde Anda Minha Gente” (que buscava pessoas desaparecidas ou separadas pelas circunstâncias da vida), o “Show do Quebra-Cuca”, as “Cartas da Vovó”, além de comentários e notícias, variedades de todo tipo, conversas telefônicas com ouvintes, prêmios, assim por diante 40 . E havia também uma seção de crônicas, na qual não raro se fazia a leitura dramatizada de acontecimentos policiais, bizarros ou fora do comum. Coisas que nosso rádio sempre foi pródigo em difundir nas solitárias tardes de agonia do último Brasil ditatorial – e que eram ainda mais pungentes e angustiantes no imenso e bidimensional subúrbio onde passei a infância 41 . Eu não tinha condições de definir, à época, uma nomenclatura técnica para esta seção do programa de Waldir Vieira – mas, hoje, não me resta qualquer dúvida: de fato, tratava-se de emissões de faits divers .

Certa vez, Vieira anunciou um episódio infeliz, trágico, espantoso e verídico na história de uma anônima família de classe média 42 . Iria narrá-la a partir das relações de um cachorro e seu dono. A sonoplastia era intensa. Ele contava o causo pausadamente, com uma voz ao mesmo tempo doce e empostada, mas com a dose certa de drama – podíamos imaginar sua gesticulação no estúdio, diante do microfone, seus olhos se apertando e a cabeça girando levemente para a esquerda,

40 Por conta disso, o jingle era um resumo perfeito de seu conteúdo: “Waldir Vieira, um cara tão legal | Na Rádio Globo, ele é sensacional | Amigo da dona de casa ele vem | Trazendo prêmios... | Dicas... | Música... | Para você se alegrar”. 41 Dentre estes programas de caráter singular, destaco “A Patrulha da Cidade” (narrativas de estilo yellow press , diárias, sonorizadas com tiros e sirenes de viaturas policiais, no ar até hoje: http://www.tupi.am/PatrulhadaCidade); e “Eu acredito no incrível” (nosso Twilight Zone , que ia ao ar nas noites de domingo). Ambos pela Rádio Tupi. Importa observar que Duque de Caxias, violento município da Baixada Fluminense, o angustiante subúrbio bidimensional, era ele mesmo manchete quase diária na imprensa marrom carioca dos anos 1970-80. 42 É o espaço ocupado na Rádio Globo AM que dá forma ao dispositivo autoritativo imediato de veracidade. Ainda estou à procura do material nos arquivos do estúdio. Por ora, o leitor terá de confiar na memória do autor – o que não deixa de ser um problema altamente relevante neste contexto. 153 cada vez que uma pausa anunciava uma modulação no desenvolvimento da narrativa. O casal possuía um cão feroz (talvez um fila brasileiro, moda naquela época, mas não poderia dizer com certeza). Feroz, mas, ainda assim, o querido xodó de um lar pleno de harmonia: criado desde filhote, sempre fora de poucos amigos, mas era extremamente devotado aos donos. Tudo ia bem até que o casal teve um bebê. O cão ficara visivelmente ciumento, rosnando para a criança sempre que o pai a punha no colo ou mesmo quando a criança dormia no berço. O pai ficara apreensivo com a situação, mas não considerou que haveria maiores consequências [sons graves e funestos] e tocava a vida como antes. O cão se mantinha sempre afável e carinhoso com o dono, porém cada vez mais irrequieto com a criança e com a partilha de atenções que parecia não querer compreender – apesar das repetidas admoestações e ameaças. Um belo dia, o casal teve de se ausentar de casa para resolver uma questão rápida. O cão, como de hábito, ficara de guarda. O bebê na cadeirinha, dormindo. Os pais voltam e, suspense total no naipe de cordas, não encontram o filho. Vasculham toda a casa, mas não encontram nada, nem criança nem cachorro. O pai começa a panicar, entrando ofegante em todos os cômodos. A cada canto em que procura em vão o filho, vai descortinando a terrível revelação. E nós também. Corre para o quintal e vê o cão ensanguentado, com as mandíbulas ainda vermelhas, pingando. Entra em desespero, chega à despensa, pega o revólver e volta, gritando para o cão impropérios de todas as ordens e atirando uma, duas, três vezes. O cão, em agonia, olha para o dono enquanto perde os sentidos e Vieira finaliza com uma prosopopeia extraordinária: “Por que estaria ele fazendo isso comigo? Eu ?... Logo eu ?... O amigo ?...” e tomba inerte. O pai, totalmente fora de si, segue quintal afora em busca do cadáver e, entre o estreito muro que separa uma casa da outra, depara com uma cena dantesca. Com o pescoço arrancado pela mordida, um homem desconhecido jaz ao lado da cadeirinha e, dentro dela, serena e absorta em sua própria inocência, a criança dorme totalmente alheia ao acontecimento, ao barulho dos tiros, ao espetáculo insólito de que foi vítima e coadjuvante. O pai, compreendendo a tragédia, retorna e chora longa e amargamente diante do corpo sem vida do velho amigo. A música envolvente dá o tom, Vieira fica em silêncio e a vinheta da seção de crônicas fecha o fait divers .

Por volta de 1240, o frade dominicano Etienne de Bourbon (1180–1261) flanava pela diocese de Lyon (então pertencente ao Sacro Império Romano-Germânico). Predicador geral 43 em uma vasta região – que ia da Borgonha até a Lorena,

43 Espécie de alto funcionário eclesiástico de livre circulação regional e, mesmo, internacional: “Apparus en 1228, les prédicateurs généraux étaient choisis en fonction de leur compétence théologique (ils avaient étudié au moins trois années au lieu d’un seule pour les autres frères) et 154 descendo do Maciço Central até o Roussillon, quer dizer, um território que cobria a metade da França atual –, entrara na Ordem dos Pregadores na década de 1220, após completar seus estudos em Paris. Em Lyon, além de suas atribuições teologais de combate, ele também celebrava o culto e dava assistência sacramental, ouvindo as confissões dos fiéis em sua paróquia. Em algum momento por essa época, redigira uma espécie de sumário teológico-doutrinal para a identificação e a catalogação de práticas heréticas – hoje perdido, mas que acabou servindo de inspiração e fonte para o Practica Inquisitionis Heretice Pravitatis de outro famoso dominicano, Bernard Gui 44 . Esse seu catálogo de “erros heréticos” teve, através do que veio a ser popularmente conhecido como o Manual do Inquisidor do frade Bernard, uma importância histórica considerável. A relação entre os dois não é fortuita: efetivamente, em 1236, Etienne fora, como Gui o será 65 anos mais tarde, oficialmente designado inquisidor papal 45 . Há registros de sua atuação em 1239, no processo de Mont-Aimé, na Champagne, sob o comando do inquisidor Robert Le Bougre, no qual o papado condenara uma centena e meia de hereges cátaros 46 . Viria de Etienne de Bourbon, em princípio, esse misto de desconfiança e apuro psicológico, esse caldo detetivesco e algo lúdico (porém terrivelmente eficaz) que caracteriza os grandes manuais anti-heréticos? Talvez. Em todo caso, através de Bernard Gui, e seguindo por ele através do Malleus Malleficarum , a influência de Etienne se fez sentir, ainda que indiretamente, por toda a demonologia inquisitorial renascentista. Retirou-se para o convento dominicano de Lyon em 1250, vindo a falecer 11 anos depois.

Etienne de Bourbon é mais conhecido, porém, pela redação de seu imenso Tractatus de diversis materiis predicabilibus – escrito durante seus últimos anos de vida em retiro, composto a partir de referências eruditas e, sobretudo, de sua experiência teológica e pastoral em campo. Cerca de três mil narrativas, de conteúdo muito diverso, mas cuja finalidade principal é clara, definida já em seu importante prólogo (um verdadeiro programa do significado da literatura exemplar na Alta Idade

de leur talent de prédicateur. Ils étaient institués par le chapitre provincial, dont ils faisaient ensuite partie de plein droit.” (Jean-Claude SCHMITT , Le Saint lévrier , p. 24). 44 Bernard GUI (Annette PALES -GOBILLIAR , ed.) Livre des sentences de l’inquisiteur Bernard Gui, 1308-1323 , 2 Vols., CNRS Editions, 2002. 45 Etienne fez parte da primeira geração de inquisidores franceses, uma vez que a instituição inquisitorial papal (que substituiu a inquisição de formato episcopal ) fora criada, oficialmente, por Gregório IX em 1230 – ficando, na prática, desde então, sob o comando dos frades dominicanos. 46 Bernard HAMILTON , “The Albigensian Crusade and heresy” in David ABULAFIA (ed.) The New Cambridge Medieval History , Vol. 5, c.1198-c.1300, p. 176. 155

Média): o livro inteiro se constitui como material acessório para a ars praedicandi 47 . Em outras palavras, um repositório inteiro na mais pura definição medieval de exemplum 48 .

Certa vez, estando na diocese de Lyon numa atividade pastoral contra os sortilégios, incitando os paroquianos à remissão de pecados dessa natureza, ouviu de algumas mulheres confissões que envolviam o culto a um santo desconhecido. As histórias convergiam: elas tinham, por núcleo, mães que levavam seus filhos, acometidos de alguma doença, a um determinado bosque nos arredores, invocando os cuidados de São Guinefort. Como desconhecesse por completo o santo, Etienne foi colecionando os relatos até conseguir montar uma história coerente, que ele compilou no seu Tractatus na forma de um exemplum contra as superstições.

Na diocese de Lyon, próximo do vilarejo canonical chamado Neuville 49 , nas terras do Senhor de Villars 50 , havia um castelo, cujo senhor teve, com sua esposa, um filho.

Um dia, como o senhor e a dama saíssem de sua casa, e a ama de leite também, deixando a criança sozinha no berço, uma enorme serpente

47 James MURPHY , Rhetoric in the Middle Ages , University of California Press, 1974, esp. cap. VI, “Ars praedicandi , The Art of Preaching”. 48 Anedotas de cunho moral, normalmente usadas na homilética como recurso de ilustração teologal. Comentarei o exemplum mais adiante. A versão mais antiga do Tractatus se encontra na seção de manuscritos da BNF (Bibl. Nat., ms. lat. 15970), retomada, em grande parte, na edição de Albert LECOY DE LA MARCHE , Anecdotes historiques, légendes et apologues, tirés du recueil inédit d’Etienne de Bourbon, dominicain du XIIIe siècle , Paris, 1877. Embora se trate, como se vê pelo título, de uma compilação, LECOY DE LA MARCHE selecionou apenas os exempla extraídos de eventos presenciais ou supostamente presenciais – quer dizer, tendo por fonte a experiência direta de Etienne ou de algum contemporâneo. Para um resumo, ver Jean Thiébaut WELTER , “Le Tractatus de diversis materiis predicabilibus d’Etienne de Bourbon de l’Ordre des Frères-Prêcheurs (1251–1261)” in L’Exemplum dans la littérature religieuse et didactique du Moyen Age , Paris-Toulouse, 1927, pp. 215-223. E Jean-Claude SCHMITT , Le Saint lévrier. Guinerfort, guérisseur des enfants depuis le XIII e siècle . Paris, Flammarion, 1979, 2004². 49 Neuville-les-Dames, N46°9’43.92” E5°0’10.08”, situada no departamento do Ain (região de Rhône-Alpes), a 60 km de Lyon, foi, da Idade Média até a Revolução Francesa, lar das canonisas (religiosas de cabido regular, seguidoras da Ordem de Santo Agostinho) – daí o epíteto “les-Dames”. 50 A senhoria de Villars (que remonta ao ano da graça de 940) tornou-se, por conta de fusões matrimoniais, senhoria de Thoire et Villars em 1188. Atualmente existe ainda uma Villars-les- Dombes (Ain, Rhône-Alpes), N46°00’05” E5°01’46”, comuna de 4.000 habitantes e 25 km² situada cerca de 20 km ao sul de Neuville-les-Dames e a 33 km de Lyon. Na época em que Etienne de Bourbon ouviu essa história, provavelmente na década de 1240, as terras pertenciam a Etienne de Thoire et Villars (~1200–1249), seigneur de Villars a partir de 1235 – mas a história ou lenda que deu origem ao culto parece ser muito anterior a essa data. 156

apareceu na casa e se dirigiu até ela. Ao vê-la, o lebréu [leporarius] 51 , que havia ficado na casa, rapidamente a seguiu e a perseguiu, atacando- a embaixo do berço, virando-o, ao mesmo tempo em que cobria a serpente de mordidas – que, por sua vez, se defendia e, da mesma maneira, mordia o cão. Este acabou por matá-la e a jogou longe do berço. O ocorrido deixou o berço, o chão, o focinho e a cabeça do cachorro inundadas com o sangue da serpente. Ferido por ela, o cão se manteve deitado próximo ao berço.

Quando a ama entrou no quarto, acreditou, diante da cena, que a criança tinha sido devorada pelo cão – e dá um forte grito de dor. Ouvindo-a, por sua vez, a mãe da criança acorreu, viu e acreditou na mesma coisa, dando um grito semelhante. Paralelamente, o cavaleiro chegando, também pensou a mesma coisa – e, desembainhando sua espada, matou o cachorro.

Mas se aproximando da criança, eles a encontraram sã e salva, dormindo docemente. Procurando compreender o que havia se passado, acabaram descobrindo a serpente despedaçada e morta pelas mordidas do

51 O lebréu , reconhecido na classificação da FCI ( Fédération Cynologique Internationale ) como sendo do tipo 10, é um cão de caça da família dos hounds . Em comparação com os perdigueiros , que ajudam os caçadores achando a presa abatida pelo tiro ou pela flecha e retornando-a, os hounds são essencialmente usados para persegui-la. Existem dois tipos de hounds : os lebréis e os sabujos . Os lebréis (como o whippet , o agár húngaro e o galgo ) caçam guiados pela visão, enquanto que os sabujos (como o beagle , o bloodhound , o basset hound ) são considerados cães farejadores – o foxhound americano é capaz de sentir o cheiro de um animal deixado num rastro de mais de três dias. A maioria das raças de sabujo são, portanto, usadas para indicar o lugar da presa ao caçador. Os lébreis , por outro lado, se especializaram em caçar a presa em ataque direto, mantendo-a sempre sob a vista: para isso, necessitam ser hábeis em detectar movimentos rápidos, desenvolvendo uma visão extremamente apurada, e contando com orelhas pequenas para não atrapalhar seu campo de visão quando a caça se movimenta em ziguezague. A maioria tem pernas longas, o que lhes possibilita passos largos, um tórax profundo para suportar um sistema cardiovascular forte, e um corpo esguio e curvo – anatomicamente desenvolvido, portanto, para corridas curtas, possibilitando arrancadas de até 65 km/h. Por esses motivos, foram sempre usados para caçar animais rápidos e ágeis, como lebres (daí o nome) e cervos. Independentemente da veracidade ou não do relato de Etienne de Bourbon, não seria mesmo possível identificar qual o subtipo de lebréu em questão aqui – a maioria das raças hounds atualmente na França tiveram origem no século XIX –, mas se sabe que o galgo (lebréu espanhol), o deerhound (ou scottish deerhound , lebréu da Escócia) e o greyhound (lebréu inglês) são raças muito antigas: o galgo parece ter origem na época romana (por volta de 600 a.C.); o deerhound já era atestado no século IX d.C.; e o greyhound parece ter existido no Oriente Médio por volta de 3.000 a.C. – embora sua penetração nas Ilhas Britânicas date de 900 d.C. No entanto, por possuir um temperamento às vezes agressivo em relação a gatos e outros cães de menor porte, o greyhound seria o meu preferido para figurar como protagonista da narrativa. Para uma lista de cães desta raça, consultei David ALDERTON , Chiens (tradução francesa de Eyewitness Handbook: Dogs , 1994), Paris, Bordas, 2002, pp. 138-206. Um vídeo do YouTube, entre muitos outros, mostra galgos atacando uma lebre: http://www.youtube.com/ watch?v=u2vLqaK9Yxg 157

cachorro. Reconhecendo a verdade do ocorrido, e lamentando ter matado tão injustamente um cachorro tão prestativo, eles o jogaram num poço situado na porta do castelo, lançaram sobre o cadáver uma grande massa de pedras e plantaram, ao redor, árvores em memória do fato.

Ora, o castelo foi destruído pela vontade divina e a terra, reconduzida ao estado de deserto, abandonada pelo dono. Mas, os camponeses [homines rusticani] , ouvindo falar da nobre conduta do cão [nobile factum canis] e de como ele tinha sido morto – embora inocente e por uma coisa que ele fez de bem –, visitaram o lugar, honraram o cachorro como um mártir, e rezaram por suas enfermidades e necessidades, e vários foram vítimas das seduções e ilusões do diabo – que, por esse meio, levava os homens ao descaminho.

Mas sobretudo as mulheres, com filhos fracos e doentes, é que iam até lá. Em um burgo fortificado a uma légua de distância, procuravam uma velha que lhes ensinava a maneira ritual de agir, de fazer oferendas aos demônios, de invocá-los, e que lhes conduzia ao tal lugar. Quando aí chegavam, ofereciam sal e outras coisas. Penduravam as roupas das crianças nas sarças ao redor. Enfiavam um prego nas árvores que lá haviam crescido. Passavam a criança nua entre os troncos de duas árvores: a mãe, que estava de um lado, a segurava e, por nove vezes, a jogava nos braços da velha que estava do outro lado. Invocando demônios, elas conjuravam os faunos, que habitavam a floresta de Rimite, a tomar a criança doente e enfraquecida que, diziam elas, era [ofertada] para eles, e [em seguida] lhes devolver grande e gorda, sã e salva, a criança que levaram consigo 52 .

Isto feito, as mães infanticidas tomavam suas crianças e colocavam-nas nuas, sobre a palha do berço, ao pé de uma árvore. E com o fogo que haviam trazido até ali, acendiam, de um lado a outro da cabeça, duas velas de uma polegada, e as fixavam nos troncos acima. Depois se retiravam, de maneira a não ouvir os gemidos da criança nem vê-las, até que as velas estivessem consumidas. Foi se consumindo assim que muitas velas queimaram inteiramente e mataram várias crianças – como soubemos através de diversas pessoas. Uma mulher me reportou que havia acabado de invocar os faunos e se retirava quando viu um lobo sair da floresta e se aproximar de seu filho. Se, com o amor maternal compelindo seu sentimento de piedade, não tivesse retornado, o lobo – ou, sob sua forma, o diabo, como ela dizia – teria devorado a criança.

52 Trata-se de um tema medieval recorrente, o do changelin . Ver Jean-Michel DOULET , Quand les démons enlevaient les enfants. Les changelins: étude d’une figure mythique , Presses Universitaires de Paris- Sorbonne, 2003. 158

Quando as mães retornavam aos seus filhos e os encontravam vivos, elas os levavam às águas rápidas de um rio próximo, chamado Chalaronne, onde os mergulhavam nove vezes 53 ; se a criança conseguia escapar e não morria no momento do ritual ou depois, é porque tinhas as vísceras bem resistentes.

Fomos até esse lugar, convocamos o povo dessa terra e pregamos contra tudo o que foi dito. Exumamos o cão morto, cortamos as árvores sagradas e as queimamos junto com seus ossos. E fiz afixar, através dos senhores da terra, um édito prevendo o confisco e a retomada dos bens daqueles que chegavam ao local por essa razão 54 .

No meio da vasta e quase desabitada região de Gwynedd, no alto das montanhas do parque nacional do Eryri ( Snowdonia , como é conhecido em inglês), na confluência tranquila dos rios Glasly e Colwyn, jaz o pequeno vilarejo galês de Beddgelert 55 . Ali, conta-se que um afilhado do rei João da Inglaterra,

53 A referência ao Chalaronne, ao bosque, a vestígios do poço e do castelo e reminiscências a respeito da sobrevivência do culto (que ainda se fazia notar no início do século XX) levou algumas equipes de arqueólogos, no final da década de 1970, a tentar estabelecer as coordenadas exatas do local: “Le lieu-dit ‘Le bois de Saint-Guinefort’ est situé sur la commune de Sandrans, à deux kilomètres au S.E. de Châtillon-sur-Chalaronne. Il se présente sous la forme d’un éperon orienté Nord-Sud mesurant 200m x 75m et dont le point le plus élevé est à 256m. La topographie du site présente une série d'aménagements, du Nord vers le Sud: un fossé qui barre l’éperon, une butte et une plate-forme. (…) Les sondages effectués avaient pour but de vérifier la présence à cet endroit d’un site fortifié et abandonné avant le XIIIe siècle. De plus, ils devaient permettre de définir l’importance et la durée de l’établissement, ainsi que son mode d’occupation. Trois sondages ont été implantés sur une même ligne Nord- Sud afin de fournir uns stratigraphie d’enseble (fossé, butte, plateforme), qui puisse mettre en évidence le mode d’aménagement du site et les relations éventuelles entre les vestiges d’habitat et le système defensif.” (Archéologie Médiévale 10, 1980, p. 433). “L’emplacement du château est au nord de la commune de Sandrans à 4,1 kilomètres du village, à 3,6 kilomètres au sud-ouest de Romans, à 3,6 kilomètres au sud-est de Châtillon-sur-Chalaronne dans la direction du Châtelard à 4,3 kilomètres.” (Jacques DUBOIS , “Saint Guinefort vénéré en Dombes. Comment un martyr inconnu fut substitué à un chien-martyr” in Journal des savants , 1980, n° 1-2, pp. 141- 155). Com esses dados, podemos dizer que seria mais ou menos próximo destas coordenadas: N46°5’39.29” E4°59’51.95”. Para um dossiê detalhado, ver Jean Michel POISSON , “Le plan topographique du bois de Saint Guinefort” in SCHMITT , Le Saint lévrier , pp. 249-252 ; e SCHMITT , “L’enquête ethnographique en Dombes”, in Idem , ibidem , pp. 173-198. 54 Minha tradução foi feita a partir do texto de SCHMITT , Le Saint lévrier , pp. 13-17. Na edição de Albert LECOY DE LA MARCHE , Anecdotes historiques, légendes et apologues, tirés du recueil inédit d’Etienne de Bourbon, dominicain du XIIIe siècle , o texto em latim (editado como o exemplum n° 370) figura entre as páginas 325 e 328. 55 N53°0’42.65” W4°6’8.86”. A lenda diz que o vilarejo herdou seu nome (que significa, literalmente, em gaélico, “A Tumba de Gelert”) do episódio narrado a seguir. David JENKINS , Bedd Gelert. Its Facts, Fairies, & Folk-lore . Portmadoc, Llewelyn Jenkins, 1899. 159

Llewelyn, o filho de lorwerth Drwyndwn, às vezes chamado de Llewelyn o Grande, era um bravo príncipe do século XII. Ele e sua família passavam os verões em Eryri, deleitando-se nos esportes galeses daqueles tempos. Caçar corças, raposas, lebres etc. eram considerados excelentes passatempos naquela época. O príncipe tinha um cão muito afeiçoado, chamado Gelert, sempre na liderança das caçadas. Um dia, porém, quando tinham saído para esses divertimentos, Gelert não foi avistado entre os cães. Não conseguiam saber o que lhe acontecera. Enquanto estavam fora, deu na cabeça da ama de visitar Ogof Ddu, pelos lados de Moel Hebog, levando consigo uma das serviçais. Quando Llewelyn e seu séquito chegaram a casa, foram recebidos por Gelert – que correra em sua direção coberto de sangue e abanando o rabo. A princesa desmaiou, o príncipe correu para o berçário, mas... ai!, quando entraram, o lugar estava lavado de sangue e o berço virado de cabeça pra baixo, sem sinal da criança. Enlouquecido, Llewelyn puxou a espada e atravessou-a no corpo do pobre Gelert, que deu um enorme grito e morreu. O gemido de morte do cachorro acordou a criança. Um dos monges correu até o berço e, desembaraçando as colchas, trouxe a criança à presença dos espectadores, sã e salva. Levantando os cobertores, descobriram um grande lobo de aparência voraz, terrível de se ver até mesmo enquanto carcaça sem vida. Mas o pobre cão agora estava tão morto quanto ele, e o príncipe desolado chorava uma torrente de lágrimas diante de tal demonstração de fidelidade: Gelert. Ele ordenou que o cão deveria ser enterrado com honra em um local arborizado perto dali, e determinou que uma grande pedra devia ser colocada em seu túmulo para marcar seu lugar de descanso 56 .

No entanto...

56 David JENKINS , Bedd Gelert. Its Facts, Fairies, & Folk-lore , p. 59. A variante galesa mais antiga não faz referência ao vilarejo. “Conta-se que, perto dali, em Abergarwan, um homem e uma mulher mantinham seu único filho, um bebê, em seu berço. Um dia, quando sua esposa tinha saído para assistir suas devoções, o homem ouviu o grito de cães em sua terra, em plena perseguição de um veado [ stag ]. ‘Irei até eles’, disse, ‘para que eu possa, como senhor da terra, obter a participação que me é devida na caça’. E lá foi ele, deixando a criança no berço, e perto do berço, deitado, seu galgo [ greyhound ]. Enquanto o homem estava ausente no campo, um lobo entrou na casa, e teria matado e devorado a criança: mas o galgo lutou muito, e depois de uma luta longa e sangrenta, e muitas feridas e contusões, finalmente conseguiu matar o lobo. Acontece que durante a luta o berço havia virado, e jazia no chão, com a face para baixo. Quando o homem voltou para a casa, o galgo, coberto de sangue, levantou-se para receber seu mestre, mostrando sinais de alegria pelo seu retorno, agitando a cabeça e abanando o rabo. Mas o homem, quando descobriu sangue na galgo e uma poça de sangue no chão, pensou que o galgo havia matado seu único filho, e assim, em um acesso de raiva e distração, empurrou o galgo, atravessou-o com sua espada e o matou. Mas quando foi até o berço, e o desvirou, encontrou seu filho vivo e ileso, e viu o lobo morto ao lado do berço, e também que o galgo tinha sido mutilado e rasgado pelos dentes do lobo, tornou-se quase louco de tristeza.” (in The Iolo Manuscripts . A selection of ancient Welsh manuscripts , Society for the Publication of Ancient Welsh Manuscripts, 1848, p. 561). 160

Houve certa vez, em certa cidade, um brâmane chamado Devasarman . Sua mulher criava uma criança e um mangusto. E como ela amasse os seres pequenos, cuidava do mangusto como um filho, deixando-o mamar no peito, passando óleos no corpo, dando-lhe banho e assim por diante. Mas ela não confiava nele, pensando: “O mangusto é um tipo perverso de criatura. Ele pode machucar meu bebê”. (...)

Um dia ela o deixou na cama, tomou uma jarra e disse ao marido: “Mestre, estou indo buscar água. Deves proteger o bebê do mangusto”. Quando ela partiu, porém, o brâmane saiu à cata de comida, deixando a casa vazia. Enquanto estava fora, uma serpente negra saiu da toca e se arrastou em direção ao berço. Mas o mangusto, sentindo seu inimigo natural e temendo pela vida do seu irmão bebê, atirou-se ao meio da serpente, ferindo-a com mordidas, e jogando seus pedaços por todo lugar. Então, maravilhado como seu próprio heroísmo, com o focinho cheio de sangue, correu para encontrar sua mãe – pois queria mostrar o que tinha feito. Quando a mãe o viu chegar, excitado e com o focinho ensanguentado, temeu que ele tivesse comido seu bebê – e sem pensar duas vezes, atirou com raiva a jarra em cima dele, matando-o instantaneamente. Imediatamente correu para casa, onde encontrou o bebê são e salvo, e perto do berço uma grande serpente negra, feita em pedaços. Então, tomada de tristeza por ter matado inopinadamente seu benfeitor, seu filho, bateu na cabeça e no peito. Neste momento, o brâmane voltou com um prato de arroz empapado em caldo, conseguido de alguém em sua peregrinação por comida, e viu a mulher lamentando amargamente por seu filho, o mangusto. “Ganancioso! Ganancioso!”, ela grita. “Por não teres feito o que eu te disse, deves agora provar o sabor amargo da perda de um filho, fruto da árvore da tua própria fraqueza”. É isso o que acontece aos cegos pela ganância 57 .

Eis um caso de rememoração narrativa em que um fait divers parece se disseminar retroativamente de modo interminável 58 . Vemos que o fait divers da década de 1970/80, embora finito e compreensível em sua limitação dramática (algo aristotélica, como disse acima), está longe de se reduzir a uma única narrativa: ele é, pois, replicável – guardando ao mesmo tempo o sentido de cópia como também o

57 Esta história se encontra numa coletânea hindu, o Panchatantra . Arthur RYDER (ed.) The Panchatantra , University of Chicago Press, 1925, p. 423 e ss. 58 Em A Dama e o Vagabundo [The Lady and the Tramp ], desenho animado produzido pelos Estúdios Disney em 1955, um rato substitui a serpente. O Vagabundo salva o filho dos donos da cadela Lady do ataque do malvado rato, mas é injustamente acusado de agredir a criança e vai preso na carrocinha. Lady se esforça para mostrar aos donos o que realmente acontecera, e o corpo do rato é encontrado atrás da cortina, reabilitando finalmente o herói. 161 de resposta . Noções que escapam por completo ao conceito de imanência do fait divers em sua generalidade.

Evidentemente, compreendemos esse caráter replicável de trás pra frente, lendo a narrativa de Vieira em primeiro lugar. Só nos demos conta de que nosso fait divers depende de um enredo muito antigo – que, na verdade, deita raízes na literatura bramânica hindu do século III a.C. – completamente por acaso. De qualquer modo, a relação de temporalidade teria aqui algum sentido? Na verdade, o enredo está listado na classificação Aarne-Thompson (AT, index que cataloga enredos de narrativas folclóricas do mundo inteiro) como sendo do tipo 178A59 . A mera possibilidade de replicação de um enredo folclórico nos faz desconfiar se o fait divers de Vieira não seria escandalosamente falso. E o anonimato de seus personagens, imprecisão que não ajuda em nada na sua validação de veracidade, torna nosso espírito infinitamente mais desconfiado: saber que esse enredo é uma história-tipo já catalogada pelos folcloristas do início do século XX praticamente sacramenta o problema. Fomos enganados 60 . Mas fomos enganados por um discurso

59 O enredo foi denominado “Faithful Hound”, e está na seção Animais Selvagens & Humanos (tipos 150–199) da classificação AT. “When the dog replaced the mongoose, the tale was commonly interpreted as a legend (that is as a true event), and the loyal animal’s undeserving death was commemorated by small shrines to the dog not only in Wales but also in north India […] On a larger scale, this tale inspired the cult of St. Guinefort in France.” (Stuart BLACKBURN , “The Brahmin and the Mongoose: The Narrative Context of a Well-Travelled Tale” in Bulletin of the School of Oriental and African Studies (University of London) 59 (3), 1996, p. 496). Aqui não me interessa valorizar exatamente os motivos folclóricos, mas apenas os enredos (unidades maiores que podem agrupar e articular vários motivos em narrativas temporalmente estáveis). 60 O mesmo enredo (muito similar à versão contada por Vieira) é viral na internet e aparece, por exemplo, num post (“Cão herói é morto por engano”) do blog Plantão Policial.net , como uma história verídica ocorrida em 15/10/2012, na Bahia. Nos comentários, os primeiros leitores classificam a história como “lamentável”, “triste”, mas logo depois um deles reconheceu-lhe a origem lendária: “ Marcio Alessandro Fernandes [Trabalha na empresa Interativa Digital] ‘Isso é apenas ema (sic ) estória, uma lenda, baseado (sic ) no conto ‘O Lobo e o Lenhador’” [postado em 25 de novembro de 2012 às 09h33] (Ver http://www.plantaopolicial. net/index.php?menuid= 2&codnot=1059). Um perfil público do Google+, Cão Dorgado , replica o mesmo texto do Plantão Policial.net , usando a mesma data, mas transferindo o local para o Rio de Janeiro e fazendo a ressalva: “A historia é verdade, aconteceu a mais ou menos uns 20 anos no Rio de janeiro. A imagem claro não são do ocorrido. Mas a historia é verdadeira. E no caso o Dono do cachorro era um policial e o cão foi morto no quintal de casa, logo que os donos chegaram.” [Postado em 12/11/2012]. Nos comentários a esse post , um internauta escreveu: Ayao Tzian: “conheço estória em São Paulo, muito tempo atrás, família viajou deixou doberman tomando conta de casa, e pediu ao vizinho colocar ração e água pelo muro. No 3º dia vizinho chamou o cão e não aparecia, este pulou muro para vê o que estava acontecendo. Quando deparou o cadáver de um assaltante morto pelo cão com a canela uma parte comido pelo cão. Chamou a polícia. No fim sacrificaram o animal por matar e comer um ser humano e proprietário respondeu processo por homicídio culposo” [Postado 162 que reconhecemos como replicável, numa estrutura jornalística de respaldo. Narrativas que oscilam entre a informação e a mistificação, que improvisam coletivamente interpretações sobre fenômenos fora do correr passivo do quotidiano, também têm nome. Rumores. Lendas urbanas 61 .

3) Depois de conviver cinco anos com um homem que se apresentou como Leonardo André de Aguiar Damas, a mulher descobriu o nome real do marido. Ela não quis gravar entrevista. Mas, na delegacia, comentou que suspeitava da mentira. “Desconfiava. Todo mundo da família dele chama de Robson, mas só que nunca cheguei para conversar com ele e perguntar por quê. Eu o conhecia como Leonardo”, contou. Leonardo na verdade é Robson Vieira Pereira, de 41 anos. Ele foi desmascarado na frente da mulher durante uma audiência na Justiça onde respondia por agressão à própria sogra. Quando assinou o depoimento com o falso nome, Robson acabou preso em flagrante por falsidade ideológica. A investigação começou há sete meses quando o verdadeiro Leonardo foi surpreendido ao renovar a carteira de motorista junto ao Detran. em 12/11/2012]. E, mais uma vez, depois dos inúmeros comentários (“lamentável”, “muito bonito mas muito triste” etc.), a internauta Aline Rodrigues escreveu: “Se o cachorro tivesse lido essa fábula não teria morrido: http://carencitta.blogspot.com.br/2011/09/fabula-raposa- e-o-lenhador.html. Curiosa a semelhança com a ‘história verídica’”[Postado em 13/11/2012]. No mais recente comentário ao post , o internauta Cristiano Rosa Matarazzo acrescentou: “Interessante. No texto, primeiro temos a seguinte afirmação: ‘Acontece que no último dia 15/10/2012, no RJ, onde viviam harmoniosamente, aconteceu o inesperável...(sic)’, mas depois lemos ‘A historia é verdade, aconteceu a mais ou menos uns 20 anos no Rio de janeiro’.” Além disso, há um viral circulando no Facebook , exatamente com o mesmo texto, apenas alterando o estado para a Bahia. Isso, na minha opinião, tira a credibilidade do texto. Agora, vejam a notícia deste link: http://g1.globo.com/sao-paulo/itapetininga- regiao/noticia/2013/ 02/menino-fica-ferido-apos-ser-atacado-por-pit-bull-em-itapetininga- sp.html. Essa é real, ocorreu na minha cidade e foi publicada no G1 no dia 15/02/2013. Fala sobre uma criança que quase foi morta por um pitbull”[Postado em 27/02/2013]. O post inicial, com todos os comentários, em: https://plus.google.com/108290186861305905399/ posts/8P87zTuYpka 61 “Car il faut modifier l’idée reçue, beaucoup trop simpliste, que les légendes sont des récits fictifs, mais que les gens croient vrais. Il serait plus juste de dire que la légende est un récit fait de telle sorte que la question de la véracité des faits relatés est pertinente, à la différence d’une histoire drôle par exemple. Comme l’a exprimé magnifiquement Marie-Louise Tenèze : La légende n’a de sens que par le discours qu’elle suscite. Discours qui porte non seulement sur l’enseignement à tirer des événements du récit, mais aussi sur le degré de foi à y ajouter. Il est clair que la limite entre telle histoire drôle et telle légende urbaine par exemple ne tient pas à leur contenu, souvent identique, mais à l’attitude du locuteur et de l’auditoire à leur égard : faut-il rire, ou faut-il commenter?” (Véronique CAMPION -VINCENT , “Dossier Rumeur et Legendes Urbaines”, in Diogène , n° 213, 2006/1, p. 238). A noção de “improviso coletivo” em Tamotsu SHIBUTANI , Improvised News: A Sociological Study of Rumor , Bobbs-Merril, 1966. 163

Alguém se passando por ele já tinha conseguido o documento e o verdadeiro Leonardo, indignado, procurou a polícia para registrar o caso. Não foi somente a mulher que Robson enganou. Com o falso nome, ele conseguiu um emprego de motorista e até um benefício da Previdência Social, depois de se envolver em um acidente de trabalho. “Pelo fato de ele não ter empresas no nome falso que usava, não ter restrição a crédito e nem mandado de prisão, acreditamos que essa história dele possa ser plausível. A única obtenção de ganho que ele poderia ter nesse caso é usando a carteira falsa para o emprego”, afirma o delegado Robson da Costa Ferreira da Silva 62 .

Ainda que a figura da mulher aqui permaneça opaca, imersa nas brumas cerradas do anonimato, eis um exemplo de fait divers onde a anonímia (explícita nos faits divers 1 e 2 acima) não poderia ser posta em primeiro plano. Como seria natural, a autoridade constituída para tipificar o caso – novamente um delegado, que enquadrou o acontecimento nos termos da lei (“agressão”, “falsidade ideológica”, respectivamente os artigos 129 e 299 do Código Penal) – permanece na áurea constelação do renome: delegado Robson da Costa Ferreira da Silva 63 . Mas, desta vez, pois o que este fait divers tem de particular para seus leitores depende diretamente das interpenetrações das antroponímias, o personagem principal da intriga também é nomeado por extenso: “Leonardo André de Aguiar Damas”, a.k.a . “Robson Vieira Pereira”. Trata-se, portanto, de um enredo que evolui a partir das noções antitéticas, mas complementares, de ambiguidade , impostura e de identidade .

Antes de continuarmos: fomos novamente enganados? Provavelmente. Pois a linha mestra do enredo pode ser reduzida a uma figura mitológico-folclórica bem conhecida: a ação do farsante (personagem que se conjugará tanto com o impostor

62 Bom Dia Brasil, TV Globo, edição do dia 06/10/2010, 07h48. No site G1, atualizado em 06/10/2010, às 08h34. http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2010/10/homem-com- identidade-falsa-engana-esposa-por-cinco-anos-no-rj.html. A matéria não indica o nome do repórter. 63 Lotado atualmente na 65ª DP (Magé, Baixada Fluminense), à época do fait divers o delegado Robson era titular da 60ª DP (Campos Elíseos, distrito de Duque de Caxias). Petropolitano nascido em 1974, formou-se Oficial do Exército-R2 (Infantaria) em 1993, no Núcleo Preparatório de Oficiais da Reserva do 32º BIMTZ – Batalhão de Infantaria Motorizada, localizado em Petrópolis. Concluiu o bacharelado em Direito em 1998, pela Universidade Católica de Petrópolis e um MBA em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas. Sua atuação de maior repercussão se deu em março de 2011, quando solucionou, em três dias, o caso Lavínia, menina de seis anos encontrada em um quarto de hotel depois de ser sequestrada e estrangulada com um cadarço de sapato pela ex-amante de seu pai, Luciele Reis Santana – a “Fera da Baixada”. Por esses e outros serviços, o delegado Robson recebeu da ALERJ, por iniciativa do deputado Paulo Ramos, a Medalha Tiradentes (resolução 79/2011). 164 como com o trapaceiro , o trickster , o trompeur 64 ). Seria, portanto, de se esperar também aqui uma replicação infinita. De fato, não será preciso procurar muito a fundo o “farsante” para se reconhecer suas solidariedades e parentescos narrativos com o nosso fait divers : o impostor greco-mitológico por excelência, Zeus, se vale de seus poderes de transmutação para copular com fêmeas humanas – uma imagem que tem uma imensa fortuna narrativa (inclusive, claro, no substrato cristianizado da demonologia europeia 65 ). O trapaceiro folclórico 66 , por sua vez, está muito bem representado nos contos de fada, nas fábulas – sobretudo a partir de figuras animais (por exemplo, na raposa, símbolo proverbial da esperteza 67 ) –, nos contos populares: e não necessariamente ocupando o papel marginal ou infringente 68 . Se pensarmos no

64 O termo francês normalmente empregado para designar o circuito da farsa, da impostura, da enganação, desde o século XIV, é tromperie . O moyen français criou outro termo, a imposture , primeiro registro datado de 1546 (Rabelais) e significando farsa , impostura , erro . Imposture aparece nos Ensaios (12 vezes no total, sendo duas delas em Dos Coxos ), embora Montaigne também faça uso corrente da palavra tromperie e seus correlatos. Tromperie , imposture e derivados têm largo uso na demonologia (p. ex. a tradução francesa de Johannes Wier, Les cinq livres de l’imposture et tromperie des diables, des enchantements et sorcelleries , 1569), pois Satã é geralmente considerado o maior dos trompeurs . Descartes usará imposture apenas uma única vez em sua obra filosófica inteira, sendo o famoso “Deus Enganador” das Meditações um trompeur e não um imposteur . O ancien français já registrara o uso de empost (e as grafias alternativas enpost , enpoz ou impost ), um adjetivo cujo sentido geral, derivado do latim positum, e do baixo latim im-postura , é aquilo que está “mal colocado”; daí “enganador”, no sentido de “um mau uso da palavra”: essencialmente aplicado no contexto courtois como coisa indigna de fidalgos. Até o século XV, no entanto, o único substantivo derivado de empost e variantes é o feminino imposteresse : “s.f., Celle qui commet des impostures : « Le parlement de Bourdeaux commua par son arrest du 17 juin en amende honorable et une fustigation jusqu’au sang, sur la personne de ladite imposteresse » [Chron. bordelaise , I, 155, 7, Delpit.].” (cf. GODEFFROY , Vol. IV, p. 556). Por sua vez, o substantivo imposteur não é registrado em sua forma masculina senão em 1532, também em Rabelais. 65 Merlin, por exemplo, personagem lendário da Távola Redonda – descrito, entre outras fontes literárias, no poema homônimo de Robert de Boron (século XIII) –, é filho de um consórcio ilusionista do diabo com sua mãe: “ Icist deables qui ot pooir de converser et de gesir a femme fu tost apareillez et vient a li en dormant, si conçoit [Aquele demônio que tinha poder de, assumindo figura humana, dormir com mulher, estava pronto. Veio, dormiu com ela e ela concebeu]” (Robert de BORON , [Alexandre MICHA , ed.], Merlin , VI, 38-39, Droz, 1979; trad. Heitor MEGALE ). 66 Para o trapaceiro folclórico, a obra de referência continua sendo Paul RADIN , The Trickster. A Study in American Indian Mythology , Philosophical Library, 1956. 67 “Knowledge of many tricks, cunningness, and insidiousness are not the only qualities attributed to the fox. As with all other trickster figures the fox is characteristically and ambiguous being.” (Hans-Jörg UTHER , “The Fox in World Literature. Reflection on a ‘Fictional Animal’” in Asian Folklore Studies , Vol. 65, 2006, p. 147). 68 Por exemplo, no conto Das tapfere Schneiderlein [O Alfaiate Valente ] da coletânea dos Irmãos Grimm (tipo 1640 na classificação Aarne-Thompson, seção Lucky Accidents AT 1640–1674), em que o esperto Alfaiate se safa das mais variadas situações sempre com engenhosidade cômica (ao menos para nós). Aliás, este conto, que existe nos Grimm em mais de uma versão, é muito interessante porque reúne diversos outros enredos-tipo: “Tirar água de pedra” (AT 165 contexto literário que nos interessa aqui (a literatura “francesa” que vai dos primórdios até o final do século XVI), nós o encontraremos também nos fabliaux : neles, o trompeur é quase onipresente, na maioria das vezes retratado como cavaleiro, monge ou padre, tipos sagazes postos faceciosamente diante de vilões ingênuos – por sua vez, descritos como maridos tolos e amantes ineptos 69 . E, claro, ele aparece com frequência também nas novelas: como o falso aleijado Martellino, na segunda jornada do Decamerão ; o apaixonado que engana seu companheiro, no conto XXI dos Propos Rustiques de Noël du Fail 70 ; o amante que, saindo imundo do cabinet onde estava escondido e, com a prancha da privada no pescoço e o rosto enegrecido pelo fumier , é confundido com o diabo pelo marido ciumento e traído, conseguindo finalmente escapar da cena do crime (na novela 72 das Cent Nouvelles Nouvelles 71 ). Entre infinitos outros exemplos.

Para afinar essa genealogia no contexto do nosso fait divers , a tipologia do trapaceiro que nos interessa (uma vez que, nele, tudo acontece pelo realce da relação conjugal entre o farsante e sua esposa) é a do trompeur sexual, personagem malandro e astuto que, na maioria das vezes, por via de subterfúgios, consegue manter-se a salvo das instituições de poder ou das punições que sua ação, marginal ou fora-da-lei, acarretaria 72 . Outras vezes, porém, se deixa malograr, sendo apanhado em flagrante e punido direta ou indiretamente por conta de algum

1060); “Disputar atirando pedras” (AT 1062); “Disputar carregando árvores” (AT 1052); “Pular árvore curva” (AT 1051); “Tentar matar o herói em sua cama” (AT 1115). Para uma tradução em português, ver Irmãos GRIMM , Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos (1812-1815) , 2 Vols., Cosac & Naify, 2012. 69 Normalmente, os jograis preferem a figura do trompeur à do impostor, mas no fabliau Du chevalier qui fist sa fame confesse , por exemplo, um nobre testa sua mulher gravemente enferma, disfarçando-se de padre confessor, para saber “[v. 44] S’ele est tant bone [quer dizer, fiel ] com l’en dit ” (Cf. Anatole de MONTAIGLON & Gaston RAYNAUD (eds.), Recueil general et complet des fabliaux des XIII e et XIV e siècles , Vol. 1, fabliau XVI, Librairie des Bibliophiles, 1877, p. 178 e ss). 70 “À trompeur, trompeur et demi ”, diz a célebre frase tirada deste conto. 71 Uma inversão interessante do tema do diabo trompeur sexual. Cf. Les Cent Nouvelles Nouvelles (Roger DUBUIS , ed.), Honoré Champion, 2005, pp. 418-422. 72 “A trickster is one who engages in trickery, deceives, and violates the moral codes of the community. Oral and written tales associated with this pervasive figure are usually humorous, and the tales generally combine both comical and satirical elements. The entertainment value of trickster tales is predicated on not only the trickster’s clever actions per se but also on the subversive nature of his trickery. Members of his society derive satisfaction from witnessing the sociopathic trickster violate social norms, often in fact to the benefit of others, which can give him the status of a folk hero. In this way, trickster tales also convey moral lessons within a society.” (Ana Raquel FERNANDES , “Trickster” in Donald HAASE (ed.), The Greenwood Encyclopedia of Folktales and Fairy Tales , Vol. 3, p. 992). 166 deslize 73 . Na mesma linhagem, poderíamos alargar sua amplitude histórica, fazendo caber nele, guardadas as proporções, os libertinos de todas as formas, cores e tamanhos 74 . O impostor , aquele que disfarça sua identidade a fim de obter o logro (sexual, no nosso caso), embora uma figura mais restrita e talvez menos difundida que o trapaceiro , acompanha essa mecânica geral, sendo também um personagem facecioso tanto no meio literário quanto no folclórico-mitológico 75 .

E nosso fait divers – que existe, em sua imanência, enquanto um microcosmo articulado em torno das astúcias de um impostor-trapaceiro, verdadeiro malandro- otário – se completa, de fato, com o pano de fundo dessa instituição fundamental que é a do casamento (cenário recorrente na tipologia histórica do trompeur literário, como disse acima). Não se trata de uma “simples mulher”, mas de uma esposa, companheira do trompeur em um quotidiano comum, ordinário, sólido e duradouro – ao menos nas aparências 76 . Por conta disso, e muito embora o fait divers não faça menção a ganhos sexuais (senão ao próprio casamento), o fato de “viver cinco anos” com o farsante, “desconfiando” (o termo não é vago à toa) que ele não seria quem realmente é, nos traz à lembrança a típica narrativa faceciosa dos fabliaux , que acentuam a duperie de um dos componentes do casal como o mais característico e essencial dos seus elementos cômicos 77 . O que, diga-se de

73 “The central figure in one of the most characteristic worldwide myth cycles – a god, animal, and human all in one who is always duping others and is always duped in return and whose stories tell of experiences involving a lengthy series of dangerous, outrageous, and often obscene adventures and behaviors marked by trickery.” (Keith CUNNINGHAM , “Trickster” in Thomas GREEN (ed.), Folklore. Encyclopedia of Beliefs , Vol. 2, p. 811). 74 E não seria exagerado lembrar a função da metamorfose animal e das vestes de pele ritualizadas entre caçadores e entre medicine-men (o jaguar entre os xamãs siberianos, por exemplo). Donde a licantropia... 75 “An impostor disguised as a doctor or other learned man (Motifs K1825, K1955–1956) is such a figure, as is the commonplace farcical situation of illicit lovers who are threatened with discovery.” (Christine GOLDBERG “Folktales” in Thomas GREEN (ed.), Folklore. An Encyclopedia of Beliefs, Customs, Tales, Music and Art , Vol. 2, ABC-Clio Inc., 1997, p. 360). 76 O que nos faz classificar o fait divers como um enredo do tipo AT 1468 (“Marrying a stranger”). 77 Nos fabliaux , mulheres e trompeurs (homens) estão sempre juntos para enganar maridos tolos e parvos. No entanto, no contexto novelesco primitivo, as mulheres são retratadas como frágeis e propensas à duperie , sobretudo nos textos escritos pelos homens. No Heptameron , a conteuse Longarine sustenta que as mulheres são “aisées à tromper, quant elles mectent leur fantaisye à la jalousye, avecq une estime de leur bon sens de vouloir tromper leurs mariz ” (MARGUERITE DE NAVARRE , Heptameron , nouvelle 7, Société de Bibliophiles Français, Vol. 1, 1853, p. 77). Mas, na oitava novela, o Heptameron sustenta a tese oposta, lugar-comum na dogmática medieval e que terá vida longa e dramática nas caracterizações genéricas da demonologia renascentista: “À l’inverse de la plupart des précédents conteurs et conteuses dont les récits mettaient en relief l’étendue du pouvoir, voire la supériorité sur les hommes que confèrent aux femmes leur finesse et leur subtilité (que celles-ci les mettent au service de la vertu comme l’héroïne de la 167 passagem, está longe de ser uma exclusividade dos jograis 78 . Sendo assim, por oposição aos faits divers anteriores, neste caso não há nada de trágico , mas, sim, de cômico : apesar da agressão à sogra, a história se concentra na pretensa ingenuidade (ou quase impossível ingenuidade, de acordo com os quadros mentais “normais” do restante da população que lê o fait divers ) da mulher-esposa – fonte particular de insólito e de patético.

Daí, uma vez que o conjunto trata de uma narrativa obviamente verdadeira 79 , fazemos a óbvia pergunta: a dupe não se deixara enganar de propósito, uma vez que Leonardo e Robson não têm nada em comum 80 ? Caso o episódio criminal não cinquième nouvelle ou au service du vice comme celle de la sixième), c’est la fragilité des femmes au regard du mensonge et de l’erreur et la facilité avec laquelle il est possible qu’on les trompe et qu’elles se trompent elles-mêmes que Longarine se propose de mettre en évidence dans la huitième nouvelle.” (Philippe DE LAJARTE , “La nouvelle aux frontières du commentaire et du dialogue dans L’Heptaméron de Marguerite de Navarre” in Vincent ENGEL & Michel GUISSARD (eds.), La nouvelle de langue française aux frontières des autres genres, du Moyen Âge à nos jours (Actes du colloque de Metz, Juin 1996), Quorum, 1997, Vol. 1, p. 111). 78 Fora do circuito dos fabliaux , mas ainda em suas imediações, temos um exemplo, entre tantos, no qual a duperie do marido concorre para o elemento cômico nas Confabulationes [Facécias ], de Poggio Bracciolini: “O pai de um dos meus amigos tinha ligação com a esposa de um homem gago e estúpido. Certa noite, estando ela em casa e imaginando ele que o esposo estava ausente, bateu na porta indiscretamente, imitando a voz blesa do marido, pedindo para entrar. Então, o imbecil, que estava lá dentro, ouvindo a voz gaga, disse: ‘Giovana, abra a porta e deixe-o entrar, parece que sou eu’.” (Facécia LXVIII, Le POGGE [Stefano PITTALUGA & Etienne WOLFF , eds.], Facéties /Confabulationes , Les Belles Lettres, 2005). 79 Novamente, a esfera jornalística (neste novo caso o programa Bom Dia Brasil , da TV Globo) passa a funcionar, em primeira instância, como garantia de verdade e legitimação. 80 A não ser uma longínqua etimologia, se considerarmos ambos como originários do antigo alto alemão. No primeiro caso, Leonardo , a mais óbvia é a que põe em relevo o termo latino leo [leão], mas, efetivamente, Leonhard pode também ser explicado através do antigo alto alemão (prefixo levon [leão] e o sufixo hardu [valente]), um prenome e nome de família comuns no contexto dessa língua. Daí, “força de leão” ou “forte leão”. Na Idade Média, Leonardus (que teria vivido por volta do início do século VI) é o santo dos prisioneiros – neste caso, Jacopo de Varazze (1228-1298), que é a fonte hagiográfica mais conhecida, dá como etimologia, além de uma tradução também derivada do latim leo , a expressão “odor do povo” ( leos [povo] + nardus [uma erva odorífera]), “pois o odor de sua boa reputação atraía o povo para ele”; e também legens ardua [“aquele que escolhe os lugares escarpados”] (Cf. Jacopo de VARAZZE , “São Leonardo” in Legenda Aurea , Cia. das Letras, 2003, pp. 866-870). A etimologia gaélica, por sua vez, nos permite ler o antropônimo de maneira diversa e mais interessante para nosso contexto, sexualizado e ritualizado pelo casamento, uma vez que Leonard é também um sobrenome irlandês, derivado de O’Leannain (O’ [filho de] + Leannain [amante]). O registro mais antigo do sobrenome foi fixado em 1272 (Huntingdonshire, Inglaterra) e em 1479 (Ulm, Alemanha). Quanto a Robson , corruptela de Robinson , Robin -son [filho de Robin ], e este, por sua vez, um diminutivo de Robert . Robert , prenome e sobrenome, vem do antigo alto alemão Hruodberht , “brilho glorioso” ( hruod [fama, glória] + berht [brilho]). Tornado um nome comum na Europa a partir da disseminação de sua grafia no antigo francês Robert , penetrou na Inglaterra com a Conquista Normanda no século XI – apesar do inglês antigo já haver 168 tivesse vindo à tona, até quando Leonardo continuaria, para ela , para a esposa , para a dupe – já que os parentes, familiares e amigos do farsante, que funcionam aqui como signo da onisciência divina do narrador, estão ironicamente a par de sua verdadeira identidade (dimensão de um gozo plenipotenciário partilhado doravante também com o leitor e o ouvinte) –, existindo no lugar de Robson ?

As últimas pedras do moledro ainda não estão todas postas. Vemos dedos do cadáver sujos de sangue seco e suas calças rotas entre a fuligem cinza dos cascalhos. O homem que o enterrou tem as mãos feridas, o uniforme confederado. E lava o rosto perdido em lembranças distantes. Findo o trabalho, ele atravessa o sul desolado pela Guerra Civil: sua peregrinação começa em Snowshoe , nas Alleghenies Mountains da antiga Virgínia. Vemos destacamentos de yankees marchando sob a neve, crianças observando homens enforcados, trabalhadores reconstruindo ferrovias arruinadas. O contraste entre seu caminhar solitário, o décor glorioso dos Apalaches e o destino que ele busca e que o espera é uma marca do cinema americano, sobretudo do faroeste (embora estejamos no leste , no território da mais originária das Treze Colônias).

As semanas correm, o herói desce o Hidden Valley em direção a Hot Springs , Lexington , Appomattox . Seu objetivo é o vilarejo de Vine Hill (também conhecido como Charlotte Court House ), até a propriedade de Laurel Sommersby 81 . Nove anos se passaram desde que ele, John Robert ‘Jack’ Sommersby, partira para a Guerra. Chega de soslaio, chapéu encobrindo o rosto barbudo e misterioso. Os amigos de outrora demoram a reconhecê-lo – incluindo-se aí a própria Laurel, o jovem filho do casal, Robert, e Jethro, o envelhecido cão à soleira da porta –, mas enfim todos festejam seu retorno. Os tempos do pós-guerra são difíceis 82 , mas ele agora é outra pessoa e veio para ficar. Conta suas aventuras no banquete realizado para marcar seu regresso. Os anos encarcerados em Elmira, a terrível prisão no Norte abolicionista 83 , mudaram seu modo de encarar a vida, tornaram-no afável, provavelmente mais bonito, lhe deram o gosto pela literatura grega e... diminuíram seus pés em cerca de dois números 84 . registrado as formas Hr ēodb ēorht , Hrodberht , Hr ēodb ēorð , Hrœdbœrð , Hrœdberð . Informações básicas coletadas na Wikipedia.org. 81 Sommersby , Somersby , Somerby, Somerbie : “Cidade do Sol” [ Summer + Ville ]. 82 É sua antiga escrava, Esther, quem lhe diz: “Todos aqui perderam alguém. Os garotos de Ezzel, o pai morto... E todos os que não morreram estão indo embora. Esta cidade acabou, Mr. Jack. Não sobrou nada, exceto solo duro e ninguém para trabalhar nele.” 83 Michael HORIGAN , Elmira: Death Camp of the North , Stackpole Books, 2002. 84 Sommersby (1993), dirigido por Jon Amiel, história de Nicholas Meyer e Anthony Shaffer, roteiro de Nicholas Meyer e Sarah Kernochan, estrelado por Richard Gere, Jodie Foster e Bill 169

Jack tenta retomar as graças da bela Laurel. Seu passado algo brutal e insensível não ajuda muito a romper as desconfianças. Ela teve, durante todos esses anos, a ajuda apaixonada, mas contida, do vizinho perneta Orin Meecham 85 , membro secreto dos Cavaleiros da Camélia Branca 86 . Laurel confessa a Jack que jamais se entregou a outra pessoa, muito embora tivesse prometido ceder aos anseios de Orin em um ano – caso não tivesse mais notícias do marido. Jack e Laurel se reconhecem biblicamente e o mundo ao redor parece se reestabilizar.

Jack, porém, tem ideias. Numa cidade caindo aos pedaços, divide sua propriedade com os villageois , planta tabaco Burley (uma especialidade sulista, particularmente do Kentucky, mas desenvolvida primeiramente em Ohio em 1864 87 ) e, heresia das heresias, dá participação aos negros nos lucros e nas terras. Desconfiam de Jack, há algo errado, ele mudou muito e, no entender de Laurel, pra melhor 88 . Três forasteiros chegam à cidade, reconhecem-no, dizem a Orin que este Jack é um impostor. Orin, furioso, pergunta a Laurel se ela não sabia da impostura todo esse tempo, traindo a cidade e a ele, mas Laurel está entregue: terá um filho com Jack, ela o ama. Laurel tem uma conversa tensa com Jack, aponta-lhe uma arma 89 : efetivamente ela sabe da farsa, sempre soube, pergunta quem ele é de verdade , ameaça expulsá-lo. Jack diz que fica, ele está em casa agora, não vai partir de novo.

Pulmann. Os moldes dos sapatos, ciosamente conservados pelo sapateiro de Vine Hill e que não se encaixam mais nos pés do marido-pródigo, é o primeiro índice de que há um problema com Jack. 85 Como se vê, entre Orin e Jack há uma tensão essencial: os moldes de sapatos de Jack e a deficiência física de Orin, que usa uma perna de pau. O calçado como marca da identidade é, aliás, também um conhecido motivo folclórico, cujo enredo mais famoso está na história de Cinderela (exemplos clássicos em Perrault e nos Grimm). Para a correlação entre sapato e identidade, ver o interessante artigo http://www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-2158076/ How-tell-good-sole-You-really-judge-person-shoes--need-look-else.html 86 Uma das várias organizações racistas dos estados confederados, paralela à Ku-Klux-Klan, criada por volta de 1867, em Louisiana. Para o contexto, ver Allan LICHTMAN , White Protestant Nation: The Rise of the American Conservative Movement , Atlantic Monthly Press, 2008. 87 Ann FERRELL , Burley: Kentucky Tobacco in a New Century , University Press of Kentucky, 2013. 88 “Laurel : Você certamente mudou, não foi? Jack : Para melhor? Laurel : Tão melhor que me assusta às vezes.” 89 Trata-se, ao que tudo indica, de um revólver Colt Army Model de 1860, calibre 44, “the most widely used revolver of the Civil War” (“Colt Army Model 1860”, in Wikipedia.org). Sabe-se que Samuel Colt foi, como bom comerciante, extremamente ambíguo em relação à Guerra Civil, fornecendo armas tanto aos yankees quanto aos confederados. Isso poderia indicar, sub- repticiamente no roteiro, já uma indecisão (ou uma manobra consciente) de Laurel diante de Jack? Para o contexto, ver William EDWARDS , Civil War Guns . The complete story of Federal and Confederate small arms , The Stackpole Company, 1962; e William HOSLEY , Colt: The Making of an American Legend , University of Massachusetts Press, 1996. 170

Orin finalmente luta com Jack e, enquanto enche-o de pancadas, nasce o bebê, Rachel: filha legítima e filha bastarda, filha do consórcio do trompeur com a cristã wasp , filha da podridão eterna 90 .

No dia do batismo, os federais trazem um mandado de prisão para Jack Sommersby por assassinato. Na corte, tudo leva a crer que será enforcado: as acusações, as testemunhas, sua assinatura. Orin intervém e diz a Laurel que, se Jack confessar que não é Sommersby, poderá escapar da prisão. Laurel leva a proposta a Jack: “Diga a eles quem você realmente é.” “Não posso.” “Por quê?” “Porque eu sou Jack Sommersby.”91 Por intermédio de Orin, a defesa invoca o testemunho de Martin Folsom, um dos Camélias mascarados que espancaram covardemente um negro do novo sistema de terras dos Sommersby, sustentando que Jack na verdade é Horace Townsend, ex-professor em Redthorn, que “conhecia coisas elegantes, escrita Grega e tudo”, um charlatão que enganara meio mundo e havia desertado do Exército Confederado. Apoiada pelo advogado, e com o respaldo desses testemunhos, Laurel sustenta que Jack não é Jack 92 , mas Jack abre mão da defesa e institui-se como seu próprio defensor, diante de todos os seus credores e, sobretudo, de seus ansiosos arrendatários, numa insólita disputa no tribunal – pois se defende se autoacusando: à meia-voz, ele diz a Laurel que não ser Jack Sommersby tornará nulos todos os contratos, dará fim às concessões de terra, levará todos eles à ruína. Ele finalmente a convence, e à audiência, aos jurados e ao juiz negro que preside a sessão 93 , e como prêmio será devidamente enforcado pelo crime que cometeu em outra dimensão, em outro tempo e outra vida. Entrementes, o preço do tabaco dispara, os agricultores de Vine Hill enchem seus cofres, o dever foi cumprido. Jack, efetivamente, mudou e mudou o mundo. Se a ocasião fosse propícia, seria aplaudido no cadafalso. A última cena mostra Laurel coroando sua lápide com um ramalhete de flores do campo: gravado em baixo-relevo sobre a pedra “John Robert Sommersby, 1831-1867, Querido Marido, Amado Pai e Cidadão de Vine Hill ”, o roteiro fecha o ciclo transmutando o moledro anônimo de pedras irregulares em um impecável túmulo

90 “Orin : Você e esta criança estão em perigo de viver... em maldição eterna! Vê o que é isto? [mostrando um balde cheio de pulgões, praga que assola a plantação de tabaco] É o sinal da podridão que consome este lugar!” A peste, signo do descontentamento divino e marca da poluição ritual comunitária, como sabemos, é um dos motores dramáticos da tragédia clássica, mas aparece no filme como instrumento de tensão apenas pontual. 91 “Laurel : Tem que dizer quem é. Assim, terão que soltá-lo. Jack : Não posso. Laurel : Sim, você pode. Jack : Quem devo dizer que sou? Laurel : Apenas quem é. Jack : Você realmente quer saber? Laurel : Sim. Jack : Tem certeza? Eu sou...Jack Sommersby.” 92 “Tenho certeza disso, pois nunca amei meu marido como amo você.” 93 “Sem meu nome, acho que não tenho vida, meritíssimo.” 171 familiar, vigilante na colina de uma comunidade próspera e reorganizada pela nova equipolência racial.

Em 1560, um caso similar chegou à corte superior de Toulouse. A ação fora movida por um tal Pierre Guerre, do vilarejo de Artigat, localizado às margens do rio Lèze, 60 km ao sul da capital da antiga província do Languedoc. Por essa época, Artigat era uma espécie de lugar polimorfo política e eclesiasticamente: quase um non- lieu 94 . E foi ali que os irmãos Daguerre (Sanxi e Betrisantz/Petri/Pierre), imigrantes bascos do Labourd 95 , se instalaram em 1527, adaptando o sobrenome na grafia local e tornando-se prósperos proprietários e comerciantes.

Os anos passam. Dentro da logística de cruzamentos familiares, típica do Ancien Régime , em 1538 os Guerre acertam o casamento do jovem primogênito de Sanxi, Martin, com Bertrande de Rols, infanta de um importante proprietário local 96 . Celebrando-se a noite de núpcias, e apesar dos expedientes clássicos 97 , sobrevém o patético: o casamento não se consuma, o pobre Martin (mal entrado na adolescência) é impotente 98 . O diagnóstico é claro: nouement d’aiguillettes, o casal está enfeitiçado 99 .

94 “Do ponto de vista linguístico, a aldeia estava na fronteira dos diferentes sons nasais e líquidos da Gasconha e do Languedoc. Geograficamente, ligava-se ao Condado de Foix [30 km ao sul], mas juntamente com Pailhès e algumas outras aldeias [Le Carla, Le Fossat, Saint- Ybars], dependia do governo do Languedoc [quer dizer, do Parlement de Toulouse, 60 km ao norte]. Embora próxima a Pamiers [20 km a leste], sede de diocese, Artigat fazia parte da diocese mais distante de Rieux [atualmente Rieux-Volvestre, 30 km a noroeste]. A nomeação do prior da principal igreja paroquial, Saint-Sernin de Artigat, dependia dos cônegos de Saint- Etienne, na ainda mais distante Toulouse; o cura de Bajou, uma paróquia menor que estava sob a jurisdição de Artigat, também era designado por um cabido sediado em Toulouse. Os habitantes de Artigat tinham de atravessar muitas fronteiras em suas atividades de agricultores, pastores, litigantes e cristãos, e recebiam vários rótulos: gascões, ‘foixianos’, languedocianos.” (Natalie ZEMON DAVIS , O Retorno de Martin Guerre [or. 1982], Paz & Terra, 1987, p. 31). 95 Região do mais terrível dos demonólogos franceses, Pierre de Lancre. 96 A partícula “de” associada ao sobrenome não implicava ascendência aristocrática, mas tão somente o fato da mulher pertencer ao clã familiar correspondente. 97 “As bodas foram celebradas na igreja de Artigat, onde estavam enterrados o avô de Bertrande, Andreu, e vários antepassados seus. A seguir, a procissão voltou à casa de Sanxi Guerre onde, à moda basca, o jovem senhor [Martin] devia viver com o antigo senhor [seu pai]. À noite, após o banquete, o casal foi conduzido ao leito nupcial de Bertrande. Ao soar a meia-noite, irromperam no quarto os jovens convivas trazidos por Catherine Boëri, parente do cura de Artigat. Ela lhes trazia o resveil : generosamente temperada com ervas e especiarias, a beberagem asseguraria aos novos esposos abraços ardentes e casamento fecundo.” (ZEMON DAVIS , O Retorno de Martin Guerre , p. 35). 98 “Os cônjuges Rols-Guerre eram singularmente jovens. Pelos trabalhos de demografia histórica, seria de se esperar que tivessem ao menos dezoito anos. Ora, Martin não tinha mais de catorze anos e quanto a Bertrande, se tinha a idade que posteriormente declararia [dez 172

Pela lei, um casamento não consumado (quer dizer, sem sexo) em três anos poderia ser desfeito – e, por mais que se escondesse o fato, a falta de gravidez era um sintoma claro da humilhação da mulher (uma das poucas dimensões da vida civil que uma mulher poderia reivindicar claramente contra o marido perante a justiça). Entretanto, apesar das pressões dos Rols, Bertrande permaneceu casada 100 . A gravidez só veio tempos depois, sob os auspícios de uma velha curandeira, que ensinou o casal a reverter o sortilégio: os padres rezam quatro missas e dão aos jovens hóstias e bolos folares. O expediente tem efeito positivo: Bertrande anos], seu casamento, segundo o direito canônico, não era válido. Contudo, os Rols e os Guerre estavam muito ansiosos por uma aliança, e o cura de Artigat, messire Jacques Boëri, era de uma família local e, evidentemente, não levantou nenhum impedimento” (ZEMON DAVIS , O Retorno de Martin Guerre , pp. 33-34). 99 O nouement d’aiguillettes [literalmente, “amarração de agulhas”] era considerado, por essa época, o típico encantamento causador da impotência masculina – se esta não fosse causada por um claro problema de ordem fisiológica ou anatômica. “L’expression parait avoir pris naissance à l’époque où les pièces du vêtement masculin, notamment le haut de chausses, se fermaient par leurs bords à l’aide d’aiguillettes dont l’usage a précédé celui de nos boutons actuels.” (Henri GELIN , “Les noueries d’aiguillette en Poitou” in Revue des Etudes Rabelaisiennes , 8 (1910), p. 122). A impotência na noite de núpcias e no casamento em geral, obviamente, é um tema antigo, amplamente disseminado, mas o contexto medievo-renascentista acompanha de perto o desenvolvimento demonológico que os atribui paulatinamente ao circuito da bruxaria e dos maleficia: “Such nouements , or ligatures, had been known since antiquity. Ovid wrote a poem ( Amores , III, 7) relating an episode of sexual impotence that he attributes, perhaps ironically, to witchcraft. Medieval canon law established a whole tradition concerning ligatures. The rule of Hostiensis, for example, distinguished carefully between frigidus (organically impotent) and maleficiatus (bewitched, made impotent by sorcery). The French word maleficié , from the noun malefice (harmful spell of a sorcerer), was a virtual synonym of impuissant in the sixteenth century. The prevalence of nouements d’aiguillettes , and of male impotence generally, in late sixteenth-century France is documented by numerous literary allusions. Brantôme observes candidly: ‘Il se trouve bien plusieurs femmes qui rencontrent des marys inhabilles et impotens, et ausquelz on a noue l’aiguillette. Nous en avons veu un’infinité depuis vingt ans, en France et ailleurs, que ce meschant usage de nouement est venu ’ [ Œuvres complètes , VIII, Renouard, 1875, p. 92]. Guillaume Bouchet [Les Sérées, ed. C. E. Roybet, I, Lemerre, 1873, pp. 183-200] discusses the nouements d’aiguillettes in great detail, and additional reports can be found in the writings of Pasquier, Tahureau, Le Loyer, Bodin, Tabourot, Beroalde de Verville, and others. French jurisprudence and canon law provide further evidence of the problem: the commentaries de frigidis et maleficiatis ; the congrès , a grotesque medico-legal procedure for determining marital impotence, and the controversy surrounding its frequent use. Martin Delrio says that ligatures were so common that in some places men were afraid to get married in public.” (Lee ENTIN -BATES , “Montaigne’s Remarks on Impotence” in MLN , Vol. 91, n° 4, French Issue, May 1976, p. 643). 100 “Sua recusa em anular o casamento – o que tê-la-ia deixado livre para contrair um novo matrimônio segundo a vontade dos seus pais – permitia-lhe subtrair-se a certos deveres conjugais. Dava-lhe a oportunidade de viver uma adolescência em companhia das irmãs mais novas de Martin, com quem se entendia bem. Além disso, podia vangloriar-se de sua virtude.” (ZEMON DAVIS , O Retorno de Martin Guerre , p. 46). 173 engravida e finalmente dá à luz Sanxi em 1546 101 . Dois anos depois, porém, temos Martin às voltas com a acusação de furto de trigo das despensas paternas – coisa intolerável entre os bascos. A princípio, temendo represálias, ele foge e desaparece por completo, sem dar nenhuma notícia à esposa e ao filho.

O que se passou nos anos seguintes é digno de um filme de Hollywood. Os pais de Martin nunca viram seu retorno, mas o perdoaram: Sanxi designara Martin seu legatário universal, passando-lhe em testamento as terras e propriedades de Artigat e de Hendaye. Pierre Guerre, o tio, em caso de ausência do legatário, administraria os bens até sua volta. Bertrande, nesse meio-tempo ficando órfã de pai, acaba tendo por padrasto Pierre, que casa com sua mãe – provavelmente em 1550 –, comprometendo-se a cuidar da nova filha adotiva e de seu sobrinho-neto. Não saber se Martin estava vivo ou morto implicava num problema clássico em situações do gênero: ela não poderia se casar novamente, retornando a uma posição semelhante à anterior ao casamento 102 . Nem esposa nem viúva, alheia às possíveis investidas, voltando a morar na casa da mãe e sem poder administrar seus bens (doravante nas mãos de Pierre), é certamente com alívio que Bertrande vê chegar em Artigat, no verão de 1556, o desaparecido Martin Guerre.

Martin é um novo homem. Suas andanças pela Espanha, lutando sob a bandeira de Filipe II, tornaram-no virtualmente inimigo do reino de França, mas o aprendizado cortesão que recebeu por lá mudou seu modo de encarar a vida, tornou-o afável, provavelmente mais bonito, lhe ensinaram a ler e a escrever e... diminuíram seus pés em cerca de dois números. Martin teve dois filhos, além de Sanxi (um dos quais não sobreviveu à primeira infância). E tem ideias. Quer dividir sua propriedade, vender uma parte (heresia entre os bascos) para plantar cevada, cobra do tio o dinheiro acumulado durante todos esses anos pelo uso de suas terras – causando finalmente a fúria de Pierre Guerre. Os dois se desentendem. Pierre prepara uma escaramuça. Um viajante diz que aquele não é Martin Guerre, mas sim Arnaud du Tihl, ou Pansette, tipo que também andara guerreando mundo afora na mesma época que Martin. Pierre instila a desconfiança a respeito desse Martin em Artigat, vai à justiça contra ele e dois magistrados de Toulouse são designados para o caso: as provas são inconclusivas, Martin Guerre é libertado, mas, rápida e novamente

101 ZEMON DAVIS , O Retorno de Martin Guerre , p. 39. 102 Em 1557, o Tribunal de Toulouse invocava o Código de Justiniano para chancelar sua tradição de interdito: “Durante a ausência do marido, a mulher não pode voltar a casar: a menos que tenha prova de sua morte... Nem mesmo quando ele tenha ficado ausente vinte anos ou mais... E a morte deve ser provada por testemunhas, que depõem com certeza ou grandes e evidentes suposições.” ( apud ZEMON DAVIS , O Retorno de Martin Guerre , pp. 51-52). 174 processado por Pierre, é levado preso a Rieux, uma das comarcas de Toulouse. Martin se defende com brilhantismo diante do tribunal, mas, no momento em que já havia conseguido a absolvição, o verdadeiro Martin Guerre irrompe na sala: Pierre o reconhece, é ele, o Guerre que se justificava alegando ter conhecido o prodigiosamente dotado, e de memória quase demoníaca, Arnaud, há tempos atrás. Desmascarado e depois de tentativas desesperadas de manter as aparências, Arnaud du Tihl é condenado à morte. No dia 12 de setembro, o Tribunal abriu suas portas para anunciar o veredito – que a essa altura já tomara dimensões supraregionais, atraindo uma turba considerável de curiosos (no meio da qual talvez fosse possível distinguir um jovem conselheiro do Parlement de Bordeaux) –, determinando que Arnaud du Tihl seria finalmente enforcado em Artigat quatro dias depois, 16 de setembro do ano da Graça de 1560.

A seguir, como qualquer bom camponês pai de família, fez seu testamento. Arrolou todos os seus devedores e credores em dinheiro, lã, trigo, vinho e painço, e pediu que as dívidas fossem pagas com as propriedades que herdara de Arnaud Guilhem du Tihl e outros parentes; atualmente eram ocupados por Carbon Barrau. Para ter certeza de que seu tio pagaria, abriu processos civis contra ele, certamente continuados pelos seus executores testamentários. Fez de sua filha Bernarde – agora Bernarde du Tihl – herdeira universal, tendo como tutores e executores testamentários Jean du Tihl de Le Pin e um certo Dominique Rebendaire de Toulouse.

Para o perdão público, ajoelhou-se diante da igreja, na posição tradicional dos penitentes – camisa branca, cabeça desnuda e pés descalços, um archote na mão. Pediu perdão a Deus, ao rei, à justiça, a Martin Guerre e Bertrande de Rols, marido e mulher, e a Pierre Guerre. Conduzido através da aldeia, corda no pescoço, o camponês de língua de ouro dirigiu-se às multidões: ele era Arnaud du Tihl que, por infâmia e astúcia, tomara os bens de um outro e a honra de sua mulher. Louvou os juízes de Toulouse pela maneira como conduziram a investigação e expressou sua vontade de que os honoráveis Jean de Coras e François de Ferrières estivessem presentes para ouvi-lo. Na escada que o conduzia ao patíbulo, ele ainda falava, recomendando ao homem que ia tomar seu lugar que não se mostrasse rude para com Bertrande. Podia testemunhar que era uma mulher de honra, virtude e constância. Desde que ela suspeitara, tinha-o repelido. Ao agir assim, manifestara coragem e elevação de espírito incomuns. A Bertrande, pediu apenas que o perdoasse. Morreu implorando a misericórdia de Deus em nome de seu filho, Jesus Cristo. 103

103 ZEMON DAVIS , O Retorno de Martin Guerre , pp. 115-116. 175

Dos conselheiros da corte de Toulouse designados para o caso, além do presidente Michel du Faur 104 , estavam François de Ferrières e Jean de Coras 105 . Interrogaram cuidadosamente todos os personagens envolvidos. Não era comum que casos julgados pelo tribunal se transformassem em narrativas que ultrapassavam a circunscrição dos anais técnicos da jurisprudência. Mas o caso foi muito rapidamente entendido como um potencial evento midiático. Certo Guillaume Le Sueur lançou um primeiro relato, em latim, já em 1560 (que foi, logo em seguida, traduzido para o francês e editado, sem nome de autor, por Vincent Sertenas 106 ). Mas foi Coras, o juiz principal, quem lhe retirou os maiores dividendos, publicando um arrest (os autos comentados do processo e sua sentença) cerca de um ano depois 107 . Embora cronologicamente seja o terceiro texto publicado referente ao caso, é o material de primeira mão mais importante que nos resta do affaire .

Foram quatro edições do arrest com Coras ainda vivo, somadas às diversas versões para línguas europeias. Gaillot du Pré, editor parisiense da versão publicada em 1572, vendeu a narrativa como uma das mais extraordinárias histórias de sua época. No Advertissement aux lecteurs (datado de 12 de setembro de 1571) que escreveu

104 Seigneur de Pujols (cerca de 130 km ao norte de Toulouse) e de Saint-Jory. Juge-Mage (no Languedoc e em regiões vizinhas, o juge-mage era o oficial encarregado das funções judiciárias do senescal) de Toulouse em 1547. Presidente do Parlement de Toulouse de 29 de novembro de 1557 até 1569. Tutor de Catarina, infanta de Portugal. 105 O juiz Jean de Coras nasceu em Réalmont (cerca de 140 km a nordeste de Artigat), no Albigeois – esse infame celeiro de hereges cátaros, trovadores e huguenotes –, em 1515 e cresceu em Toulouse, onde o pai era advogado no Parlamento. Recebeu seu título de Doutor em 1536 (Sienne) após ter estudado nas universidades de Angers, Orléans, Paris e Pádua. Em Toulouse, tornou-se o mais importante professor de Direito na universidade. 106 Admiranda historia de Pseudomartino Tholosae damnato idib. septemb. anno Domini M.D.L.X... Lugduni : apud J. Tornaesium, 1561 [BNF F- 13876 (2)]. A atribuição de autoria [“ a Gulielmo Sudario Boloniensi Latinitate donatum ”] está no corpo do texto. A tradução francesa, publicada por Sertenas, saiu alguns meses depois: Histoire admirable d’un faux et supposé mary, advenue en Languedoc, l’an mil cinq cens soixante , Paris: Vincent Sertenas, 1561 [BNF MICROFILM M-6061 (2)] e foi atribuída erroneamente por J.-C. BRUNET (Manuel du libraire et de l’amateur de livres , Vol. II, col. 268, Slaktine reprints, 1990) a Coras. A BNF tem duas outras versões dessa tradução, também editadas em 1561: uma com título idêntico, a da Bibliotheque Mazarine (BNF Maz 47214); e outra, onde “ Histoire admirable ” aparece grafada como “Histoite (sic) admirable ” (BNF Res. Ln 9277 bis). Foi esta última que consultei. Le Sueur, personagem ao que tudo indica conhecido apenas por esse relato, pode eventualmente ter dado assistência ao processo, mas, segundo Zemon Davis, deve ter reconstruído a história a partir das notas de Du Faur. 107 Jean de CORAS , Arrest Memorable, du Parlement de Toulouse, Contenant une histoire prodigieuse, de nostre temps, avec cent belles, & doctes Annotations, de monsieur maistre Jean de Coras, Conseiller en ladite Cour, & rapporteur du proces. Prononcé es Arrestz Generaulx le xii Septembre MDLX . Lyon : Antoine Vincent, 1561. Avec Privilege du Roy. [BNF F 13876, Gallica NUMM - 76130]. 176 como prefácio ao dossiê de Coras, Du Pré marcava a singularidade do episódio com todas as tintas do fait divers de prodígio:

J’espere amys lecteurs qu’en lisant soigneusement cet arrest, ensemble ses annotations, vous aurez occasion de loüer non seulement celuy, qui premier le meit en lumiere: mais aussi serez persuadez d'approuver le conseil & advis de ceux, qui le font renaistre par le benefice d'impression. Voire ne vous repentirez aucunement d'avoir employé quelque temps à la lecture d’iceluy: attends qu'il ne vous est icy presenté un compte adventureux, ou fabuleuse invention: ains une pure, vraye histoire, & ingement influx de Dieu, en un cas autant estrange & memorable, qu’il en advint jamais: contenant presque une Tragi comedie: car la Protase, ou entrée d'icelle est fort joyeuse, plaisante & recreative, contenant les ruzes, finesses & tromperies d’un faux & suppose mary…

Na verdade, Du Pré invocou para o texto franca superioridade sobre as histórias comuns, uma vez que se trataria não de um “ compte adventureux ”, uma “ fabuleuse invention ”, mas de uma “pure, vraye histoire ”, uma narrativa veraz da qual Coras, “Conseiller en ladite Cour, & rapporteur du proces ”, quer dizer, um personagem acima de qualquer suspeita, era o principal chanceler. Por outro lado, o arrest se valorizava justamente pela antítese de ser, embora “fato verídico”, “ un cas autant estrange & memorable, qu’il en advint jamais ”.

Mas não precisamos esperar o prefácio de Du Pré para entendermos a extensão dessas negociações. De fato, Coras voluntariamente acentua, desde o título inicial de 1561, que seu arrest tem fortes solidariedades com a atualidade literária de seu tempo: trata-se de uma “histoire prodigieuse ”108 , comentada através de “ cent belles, & doctes Annotations ” – o número 100 sendo aqui uma marca transacional fortíssima de simbiose com o maior dos gêneros literários em prosa de sua época, a novela 109 . E, last but not least , todo o enredo se deixa informar, ainda que

108 As Histoires Prodigieuses , coletânea de Pierre de Boistuau, best-seller francês da segunda metade do século XVI, teve sua primeira edição lançada um ano antes, em 1560 – ou seja, à época em que se dava o interrogatório de Bertrande de Rols. 109 Basta lembrar que aquilo que o Renascimento europeu considerava como a mais seminal das coletâneas novelescas, o Decamerão (os “dez dias”, por referência ao tempo que duram as cem narrativas da obra, contadas em dez jornadas) de Boccaccio, fora traduzido em francês, por Laurent de Premierfait (1414), como “Les cent nouvelles” (sendo comumente referido assim durante todo o século XVI), e esse título é retomado pela principal coletânea francesa congênere da época, as “Cent nouvelles nouvelles” (anônimo, 1ª edição em 1462). As “ cent annotations ” do primeiro arrest foram, entretanto, acrescentadas de outras a partir da segunda 177 indiretamente, pela mais importante das questões literárias desde a Poética de Aristóteles: a da mimese .

Além das inevitáveis correspondências com motivos folclóricos bem conhecidos 110 , é claro que o sucesso literário do caso Martin Guerre também se beneficiava das inevitáveis associações de sua “ vraye histoire ” com enredos muito antigos: tanto o já citado Marrying a Stranger (AT 1468) quanto o The Homecoming Husband . A referência literária matricial e europeia neste caso, obviamente, é o Ulisses, da Odisseia de Homero, mas temos inumeráveis exemplos dessas histórias-tipo, com suas diversas variantes e interpolações 111 . E a dimensão da tromperie sexual/matrimonial folclórico-mitológica-narrativa, que evoquei acima, a propósito do fait divers n° 3 (dimensão importante no contexto dos fabliaux e das facécias) dificilmente poderia ser minimizada neste contexto.

Na sua Morfologia do Conto Maravilho , Propp faz uma série de considerações fundamentais a respeito das permutações no conto maravilhoso russo:

A). Os elementos constantes, permanentes, do conto maravilhoso são as funções dos personagens, independentemente da maneira pela qual eles as executam. Essas funções formam as partes constituintes básicas do conto. B). O número de funções dos contos de magia conhecidos é limitado.

Devemos aplicar ao fait divers , portanto, uma reflexão que se aproxime das estratégias de formulação estrutural do conto folclórico e entender que ele também pode ser reduzido a um motivo ou a um conjunto de motivos dentro de uma sistemática de classificação?

edição – a de 1572, a última publicada com Coras ainda vivo, trazendo um total de cento e doze comentários. 110 O fetch anglo-irlandês (“sosie identique en tout point à la personne à laquelle il est attaché jusqu’au moindre détail de ses vêtements”, Catharine RAGER , Dictionnaire des fées , Brépols, 2003, p. 338), o fylgja e o hugr das sagas islandesas, quer dizer, o Doppelgänger de maneira geral, são figuras narrativas muito disseminadas do duplo (normalmente de consistência sobrenatural). Embora fosse possível criar correlações com esse mundo fabuloso, Coras eliminou do arrest toda referência que não fosse estritamente natural. 111 O enredo The Homecoming Husband foi catalogado no index Aarne-Thompson como AT 974. Na versão de Sommersby , temos, aliás, um motivo conexo claramente retirado da Odisseia: o envelhecido Jethro é uma óbvia referência ao cão Argo, fiel companheiro de Odisseu, que, após longos anos de espera, reconhece o dono fantasiado de mendigo, abana o rabo e morre. Jethro não morre, mas desaparece por completo da narrativa do filme após essa identificação, que só obteve sucesso por conta de um subterfúgio do trompeur (ele faz o cachorro farejar um pedaço de camisa do verdadeiro dono enrolado em sua mão). 178

Neste caso, podemos considerar a continuação de um fait divers em dois níveis hipotéticos. No primeiro, pensamos a mera continuação do subtexto apresentado no jornal – mesmo que sua sequência se torne absurda ou sem graça, ou que influencie no comprazimento do texto original. No segundo, mais sofisticado, está essa possibilidade que invocamos nos casos anteriores, a possibilidade de um fait divers canibalizar, retomar um outro, ou se deixar entender através de fontes e gêneros totalmente diferentes. Isso será plenamente possível, como vimos acima, se o encararmos dentro de uma organização maior – como uma tipologia folclórica, por exemplo. Se pensarmos nessa perspectiva, teremos de organizar um padrão de leitura completamente diferente tanto para estes quanto para os faits divers renascentistas.

É essa dimensão de recuperação e alargamento , que a nomenclatura de Barthes não contempla, essa relação de simbiose e de canibalismo , que nos faz desejar uma formulação diferente. E é justamente nesta função que o fait divers se aproxima de outro dispositivo similar: o rumor.

VVV 222.2... Dos Coxos : Peregrinações

[B][B][B] Vi em minha infância [i.e., antes da morte do pai] um processo que Coras, conselheiro de Toulouse, mandou imprimir, de um acontecimento estranho: dois homens que se passavam um pelo outro. Lembra-me (e não me lembro de outra coisa mais) que me pareceu que Coras julgara a impostura [imposture] daquele que considerou culpado como tão espantosa e excedendo tanto nosso conhecimento (e o dele que era juiz) que considerei muito ousada a sentença que o condenara a ser enforcado. Aceitemos uma forma de sentença que diga: ‘A corte não está entendendo nada’, mais livremente e sinceramente do que fizeram os do Areópago, os quais, achando-se pressionados por uma causa que não conseguiam explicar, ordenaram que as partes retornassem dentro de cem anos. (CA, III, 369-370) 1

A fonte desta perícope é, obviamente, o fait divers descrito no processo de Coras e que vimos na seção anterior. Dos Coxos , entretanto, não fala exatamente do fait divers , mas do processo (mais particularmente, da sentença ) de Coras – a história de Martin Guerre, bem conhecida por esta época, sendo apenas um pretexto para colocar questões que seriam da ordem do ceticismo jurídico: “ Aceitemos uma forma de sentença que diga: ‘A corte não está entendendo nada’ (...)”.

Há um circuito de desdobramentos aqui. Ainda que o fait divers já estivesse em vias de se transformar num sucesso de público independentemente do arrest de Coras, certamente ganhou muito de sua espetacularidade através de sua reputação de homem público e jurista reconhecido. Efetivamente, o relato de Le Sueur lhe é anterior, mas a posteridade do caso Martin Guerre depende diretamente do que o juiz de Toulouse publicou e reeditou a partir de 1561 – a ponto do texto de Le Sueur, considerado autêntico pela crítica, se tornar invisível, ou ser considerado, no

1 “[B] Je vy en mon enfance, un procez que Corras Conseiller de Thoulouse fit imprimer, d’un accident estrange ; de deux hommes, qui se presentoient l'un pour l’autre : il me souvient (et ne me souvient aussi d’autre chose) qu’il me sembla avoir rendu l’imposture de celuy qu’il jugea coulpable, si merveilleuse et excedant de si loing nostre cognoissance, et la sienne, qui estoit juge, que je trouvay beaucoup de hardiesse en l’arrest qui l’avoit condamné à estre pendu. Recevons quelque forme d’arrest qui die : La Cour n’y entend rien ; Plus librement et ingenuëment, que ne firent les Areopagites : lesquels se trouvans pressez d’une cause, qu’ils ne pouvoient desvelopper, ordonnerent que les parties en viendroient à cent ans.” 180 século XIX, mera variante do texto de Coras 2. Sendo assim, o elemento de espetacularidade de Martin Guerre não está apenas no enredo, mas também na sua promoção. Embora preceda Coras, Le Sueur não participou da história – coisa que Coras, por sua vez, enquanto interlocutor e juiz, pôde valorizar desde o início. O arrest é apresentado como uma história prodigiosa, muito embora narrado como um documento processual (interrogatório, sentença técnica e comentários, e fico me perguntando se tal formato interessaria ao público leitor de uma histoire prodigieuse de sua época). Mas, assim como a novela negocia com personagens reais, Coras renegociou sutilmente acusados, réus e testemunhas em personagens , criando um campo ainda mais complexo que o da novella italiana 3 (dimensão de “autenticidade dos fatos”, aliás, também explorada pela nouvelle francesa 4). E foi mais além: Coras se introduziu no relato (o arrest , afinal, é dele ) como um porta- voz semidivino, o homem que abre para os mortais comuns a janela para um mundo misterioso, que está alhures e que é único, irrepetível, matéria de gozo infinito: um gozo de fait divers , poderíamos arriscar. O caso Martin Guerre é seu fuit hic , sua garatuja, seu universo de contrabando intelectual entre o real e o imaginário – tensionado aqui entre o novelesco e o informativo (jurídico). Pensado nesta tensão estruturante (factual versus ficcional, por assim dizer), o que há de mais espetacular no caso Martin Guerre é que ele tenha realmente acontecido – quer dizer, jamais

2 Motivo de confusão para mim, em particular, pois o catálogo da BNF segue, neste caso, as recomendações de atribuição autoral definidas por J.-C. BRUNET (no seu Manuel du libraire et de l’amateur de livres , Vol. II) – sustentando erroneamente, com BRUNET , ter sido o texto publicado por Sertenas em 1561 escrito por Coras e não por Le Sueur. A confusão somente foi esclarecida a partir da leitura do trabalho supracitado de Zemon Davis. 3 O Decamerão , por exemplo, está cheio de personagens que poderíamos encontrar andando nas ruas de Florença de sua época: a simbiose entre “ficcional” e “real” é evidente. Uma leitura primária das suas novelle nos mostrará, em meio a personagens totalmente fictícios (a Oretta da primeira novela da sexta jornada), diversas figuras históricas (aristocráticas, eclesiásticas, burguesas ou populares): o Geri Spina da terceira novela da mesma jornada; o Abraão da segunda novela da primeira jornada; o beberrão Cinciglione da sexta novela; o Guilherme Borsiere da oitava, e assim por diante. Se as narrativas onde todos eles aparecem são sempre filtradas por dispositivos ficcionais os mais diversos, nada impede de considerar, em diversas novelas, situações históricas plausíveis, anedotas efetivamente ocorridas, presenciadas ou ouvidas, contadas e recontadas aqui e ali. 4 “L’authenticité des faits est, pour l’auteur [das Cent Nouvelles nouvelles ], une conséquence de leur caractère récent. On peut broder sur des faits anciens, sur ceux qui sont récents on ne doit, ni ne peut, le faire. Il l’affirme à plusieurs reprises, mais jamais aussi nettement que dans la nouvelle 25 [La chasse au furet] : ‘La chose est si fresche et si nouvellement advenue dont je veil fournir ma nouvelle, que je n’y puis tailler, ne roigner, ne mettre, ne oster.’” (Roger DUBUIS , Les Cent Nouvelles nouvelles et la tradition de la nouvelle en France au Moyen Age , Presses Universitaires de Grenoble, 1973, p. 25). 181 poderia ser considerado uma fadèze , no sentido dado por Pierre de L’Estoile 5; e, mais ainda, que alguém como Coras tenha conseguido mostrá-lo ao seres comuns, sustentando a veracidade incorruptível dos fatos através de sua marca indelével de autoridade (pessoal e institucional) 6.

Logo, quando o texto de Dos Coxos minimiza o fait divers para se concentrar em Coras, isto significa, por sua vez, minimizar duplamente Coras: indiretamente , por não valorizar o fait divers , que acabou se tornando postumamente sua obra mais conhecida 7; e diretamente , por desvalorizar sua sentença final 8. Poderíamos dizer: “Bom, o texto é referência explícita a um caso hiperconhecido, não havia necessidade de replicá-lo mais uma vez”. Podemos, então, assumir que o narrador se apoie neste sucesso para se concentrar exclusivamente no que desejaria de fato discutir (a sentença de Coras). Ou... podemos presumir que o fato de ser meramente um resumo de um causo dessa magnitude signifique algo em si.

Pois, muito embora a perícope se negue a replicar toda a espetacularidade do caso Martin Guerre (o trecho sequer nomeia o personagem), ela, claro, a pressupõe – num circuito diegético que é uma amostra da complexidade rizomática de Dos Coxos . Ela a pressupõe dentro de uma marca denegatória: falar do que eventualmente se despreza (por ceticismo, talvez), mas falar assim mesmo . Ainda

5 E a coletânea de termos derrisórios utilizados por L’Estoile para definir os faits divers de seu tempo é preciosa: balivernes , fadèzes , fables , bagatelles , baguenaudes , triqueniques , drolleries , amusebadaus , sornettes , charlatanneries , folastreries , fables . Cf. Cap. 4, n. 28. 6 A “verdade institucional” é um desses elementos altamente complexos que negociam com aspectos densos (no sentido geertziano do termo, i.e., das situações que não precisam ser demonstradas, mas que são evidentes por si para o grupo ao qual se refere) da nossa relação com o mundo da informação, motor de infinitas teses e hipóteses conspiratórias dos mais diversos gêneros. Por exemplo, uma matéria como a do Projeto Stargate (“the umbrella code name of one of several sub-projects established by the U.S. Federal Government to investigate claims of psychic phenomena with potential military and domestic applications”), no verbete homônimo da Wikipedia.org, torna difícil ao leitor médio e não especialista saber exatamente se se trata de uma embromação ou um fato, dada a quantidade de referências a agências governamentais (o verbete já estampa desde o início o “U.S. Federal Government” em seus parágrafos iniciais); citações de livros; referências a matérias na imprensa; argumentos prós e contras de pessoas que parecem visivelmente bem informadas a respeito do assunto (sem contar, claro, o fato de figurar como verbete na própria Wikipedia – apesar de seu aspecto geral delirante e da ressalva “The neutrality of this article is disputed”); e que pululam e se multiplicam ad infinitum , desestabilizando o bom senso mesmo de quem desconfia de teorias conspiratórias e complôs. Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Stargate_ Project 7 Lembrando que Coras morreu em 1575 e Dos Coxos teria sido escrito por volta de 1585. 8 “(…) Coras julgara a impostura [ imposture ] daquele que considerou culpado como tão espantosa e excedendo tanto nosso conhecimento (e o dele que era juiz) que considerei muito ousada [no sentido irônico de ser um pouco tola] a sentença que o condenara a ser enforcado.” (Grifos meus.) 182 mais a fundo, Dos Coxos denega-lhes a espetacularidade, inserindo nelas um cogito bastante peculiar, um cogito de autoridade, típico dos mirabilia medievais (os testimonia de causos singulares e maravilhosos 9); quer dizer, uma denegação que concebe sua autoridade a partir de uma metafísica quimérica da presença 10 . É esta que, em linhas gerais, garante também o funcionamento do cogito (obviamente mais erudito e humanisticamente mais apresentável que o anterior) do exemplum e da ars praedicandi 11 . Embora o caso Martin Guerre seja um pleno sucesso midiático da época, o “Martin Guerre” de Dos Coxos não escapa dessa dimensão autoritativa presencial dos testimonia , fazendo tabula rasa de tudo o que possa ter sido dito do causo em prol dessa mesma metafísica referencial: “Vi [i.e., eu presencialmente vi] em minha infância [antes da morte do pai] um processo que Coras, conselheiro de Toulouse, mandou imprimir [i.e., mandou imprimir depois de eu tê-lo pessoalmente presenciado], de um acontecimento estranho (...)”. Para logo então resumir o subtexto do mais famoso caso jurídico de sua época sem fazer qualquer referência aos célebres anônimos de Artigat: “dois homens que se passavam um pelo outro” 12 . E, como se não bastasse, pulverizando a “ pure, vraye histoire ” de Coras, dizendo: “E eu não me lembro de muita coisa mais”. Isso referindo-se a uma história contada num arrest que teve cinco edições entre 1561 e 1585 (incluindo a de Le Sueur), sem contar as diversas traduções mundo afora...

Observando as perícopes restantes, a proliferação de outros causos espetaculares obedece exatamente aos mesmos critérios: as perícopes são resumos de enredos, que poderíamos etiquetar literariamente, à maneira dos contos populares ou das

9 Para uma definição do termo e um inventário de fontes, ver Jacques LE GOFF , O Imaginário Medieval , Editorial Estampa, 1994, pp. 45-80. 10 Para a questão da metafísica da presença nos Ensaios (estruturada a partir de um vocabulário explicitamente derridiano), ver Gerard DEFAUX , Marot, Rabelais, Montaigne : l'écriture comme présence , Slaktine, 1987. 11 “Ao contrário do passado (e da eternidade), que caracteriza o tempo das autoridades e das razões, o tempo do exemplum vai buscar uma das suas forças de persuasão ao seu caráter recente. Já Gregório Magno, pai do exemplum medieval, conferira a estas historietas o selo do presente ao basear o apostolado em narrativas verificáveis oralmente por um auditório ao qual o escrito e o passado transmitido pelo escrito eram inacessíveis.” (Jacques LE GOFF , O Imaginário Medieval , p. 125). A relação entre o exemplum (e certos dispositivos literários, como a novela) e os canards faria parte de um capítulo suplementar da tese, onde eu argumentava que os faits divers do século XVI incorporaram certa dinâmica novelística, articulada a partir de uma logística teológica típica do exemplum – daí seu sucesso enquanto veículo de comunicação impresso. Mas, para não ultrapassar aqui um tamanho formalmente razoável, decidi que esta discussão será objeto de um artigo posterior, colocando essa relação em relevo aqui apenas pontualmente. 12 De todas as referências ao caso Martin Guerre listadas na bibliografia de Zemon Davis (abrangendo publicações que datam de 1560 até hoje), a de Dos Coxos é a única que não nomeia Arnauld du Tilh nem Martin Guerre. 183 novelas: “Os Garotos Ventríloquos”, “O Príncipe Ingênuo com a Gota”, “A Feiticeira na Masmorra do Príncipe Soberano”. Ou, se quisermos aplicar a Dos Coxos uma nomenclatura usada pelos formalistas russos, não há fábulas no ensaio, somente enredos 13 . Neste caso, enredos paradoxalmente recontados como fábulas. E, em todas elas, temos em ação o mesmo cogito presencial dos testimonia e dos exempla .

O fato de se tratar de perícopes do Livro III torna este aspecto ainda mais significativo 14 . Pois “Montaigne [B]” já constrói seus textos com exemplos

13 “Fábula é o esquema fundamental da narração, a lógica das ações e a sintaxe dos personagens, o curso de eventos ordenado temporalmente. Pode também não constituir uma sequência de ações humanas e pode referir-se a uma série de eventos que dizem respeito a objetos inanimados, ou também a ideias. O enredo, pelo contrário, é a história como de fato é contada, conforme aparece na superfície, com as suas deslocações temporais, saltos para frente e para trás (ou sea, antecipações e flash-back), descrições, digressões, reflexões parentéticas. Num texto narrativo o enredo identifica-se como as estruturas discursivas.” (Umberto ECO , Lector in Fabula , pp. 85-86). 14 A crítica montaignista assinalou essa evolução no tecido intertextual dos Ensaios : os capítulos escritos entre 1572 e 1576 possuem uma economia citacional baseada na transferência de credibilidade, isto é, os temas são aristocráticos mas sempre apoiados por citações retiradas dos autores clássicos. Se tomarmos por base os primeiros ensaios escritos, datados do entorno de 1572 (que, nas edições modernas, formam as partes [A] dos capítulos II a XVIII do Livro I), veremos que Montaigne não se pinta a si próprio tal como o anunciado no prefácio à primeira edição de 1580 (texto datado de 1 de março deste ano). A mera comparação das camadas [A] de 1572 com os acréscimos posteriores [B, de 1588] e [C, de 1592-1595] dos mesmos ensaios, mostra que o “eu”, naquela “época”, não tem nada da força confessional, autobiográfica e discursiva que é classicamente atribuída a Montaigne. Observando esse material primitivo, o máximo que ele pretenderia com os Ensaios seria constituir uma espécie de código de conduta (militar, em grande medida) para o nobre de sua época. Em todo caso, esses capítulos primitivos (que, com os acréscimos das edições posteriores, se tornaram trechos de capítulos) são muito influenciados por obras descritivas de caráter aristocrático, como a Historia di Italia de Francesco Guicciardini e dos Annales d’Aquitaine , de Jean Bouchet – onde só tomam parte do enredo nobres europeus, Condes, Senhores, Duques, Marqueses, Imperadores, suas aventuras, seus feitos bélicos, sua arte da fidalguia, curiosidades, estratégias e miudezas: deve o comandante sitiado sair para parlamentar? (Livro I, Cap. V); qual o cerimonial a seguir nas grandes recepções? (Livro I, Cap. XIII); quais os limites para a valentia? (Livro I, Cap. XV); o medo (Livro I, Cap. XVIII). Claro, como sempre, coletâneas de exempla – mas, neste momento, retirados de outros autores , em que o enfoque está sempre nos valores aristocrático-militares. Até então, os Ensaios – se é que já merecem esse epíteto – estão curvados pelo peso dos brasões. Considerando, por exemplo, nos Ensaios publicados em 1580, um título como De la tristesse (Livro I, Cap. II, publicado em 1580 mas datado, segundo Villey, de 1572), cujo tema (a “tristeza”) por si só já deixaria simular uma inundação do “eu” confessional, ele praticamente nada informa sobre o autor-narrador do ensaio: muito embora o texto comece com um singular “Estou entre os mais isentos dessa paixão”, tal frase é, como nos informa a escansão editorial, uma frase [B] – quer dizer, posterior a 1580 e somente publicada em 1588. Em De la tristesse , todas as frases [A] (quer dizer, todas as frases publicadas na edição de 1580), sem exceção , usam a terceira pessoa do 184 frequentemente retirados de experiências atribuídas por ele a si próprio (o que nos conduz a graves questões de ordem epistemológica, uma vez que, como ninguém teve a possibilidade de averiguar se se tratam de verdades ou invenções...) 15 . Sendo o exemplum um dispositivo técnico que parece fundamental nessa dinâmica, penso ser necessário criar desde já um parêntese.

No período que consideramos aqui, exempla são farto material de causos – extraídos, sobretudo, das Escrituras, de autores canônicos e de hagiografias –, instrumentalizados (principalmente pelos frades mendicantes) na catequese ou na condução das almas dos fiéis 16 . Originalmente, porém, o exemplum [παράδειγμα , em grego] é um artifício tradicional da arte retórica – analisado por diversos teóricos da Antiguidade na esteira da tematização geral dada por Aristóteles , que o classifica entre os “meios comuns de persuasão” 17 . O exemplo é sempre um dado , um material pré-existente , utilizado pelo orador com fins de impactar seu público. Neste sentido, não existe, para Aristóteles, um tipo de texto que seja, ele mesmo, exemplo : quer dizer, não existe uma forma chamada exemplo, mas tão somente um

singular. Por comparação, tanto o Livro III (que veio a lume somente a partir da segunda edição, em 1588), quanto as diversas adições [B] e [C] dos livros I e II, são muito mais livres, neste aspecto. 15 Há, de fato, em Dos Coxos , essa problemática ficcional do relato presencial, que, descontadas as diferenças, soa similar a certos problemas evocados pela epistemologia antropológica contemporânea: “Ainda que, como vem acontecendo cada vez mais, outros profissionais trabalhem na mesma área ou com o mesmo grupo, de tal sorte que se faz possível ao menos uma verificação geral, é muito difícil invalidar o que foi dito por alguém que não seja obviamente desinformado. Podemos tornar a examinar os azandes, mas, se não for encontrada a complexa teoria da paixão, do conhecimento e da causalidade que Evans- Pritchard disse ter redescoberto lá, é mais provável que duvidemos de nossos próprios poderes de observação que dos dele – ou, quem sabe, que concluamos simplesmente que os azande já não são os mesmos” (Clifford GEERTZ , “Estar lá. A Antropologia e o cenário da Escrita” in Obras e Vidas, o Antropólogo como autor , Ed. UFRJ, 2009³, p. 16). 16 Jean-Yves BORIAUD , La littérature française du XVI e siècle , p. 124. 17 Aristóteles discute a função do exemplo na Retórica , 1393 a 22 até 1394 a 18: “[1393 a 24] Os meios de persuasão comuns comportam dois gêneros, o exemplo [παράδειγμα ] e o entimema [ἐνθύμεμα ], pois a máxima [γνώμε ] não é senão uma parte do entimema . (…) [1393 a 28] Há duas espécies de exemplo : uma consiste em contar eventos que são produzidos no passado, outra em contar eventos inventados pelo próprio narrador. Nesta última espécie, distingue-se a comparação [παραβολὲ] e as fábulas [λογοὶ], como as fábulas esópicas e as fábulas líbias. Ao ‘contar eventos’ [de fato acontecidos], o narrador pode se exprimir assim: ‘É necessário se preparar para combater o Grande Rei [da Pérsia, Antaxerxes III] e não deixá-lo subjugar o Egito. Pois Darius não cruzou o mar Egeu [chegando à Grécia] sem antes conquistar o Egito. Quando o conquistou, cruzou [o Egeu até a Grécia]. Xerxes por sua vez não lançou ofensiva [contra a Grécia] sem antes ter tomado o Egito. Quando o tomou, atravessou [o Egeu]. De modo que esse Grande Rei, se conquistar o Egito, o [Egeu] cruzará – por isso não podemos deixar que o faça.’ (...)”. 185 uso retórico do anedotário histórico ou pretensamente histórico (uma vez que se pode inventar a anedota que servirá como exemplo dentro de um discurso) 18 . Para o que me interessa aqui, é evidente que a definição aristotélica de exemplo carrega um enorme potencial tanto para o ficcional quanto para o noticioso, muito embora seja entendida quase que exclusivamente na linhagem dos dispositivos retóricos (valor instrumental na persuasão) e não como uma categoria propriamente poética (produção de um tipo de texto).

Os autores romanos, por sua vez, em especial Cícero ( De Inventione )19 e Quintiliano (De Institutio Oratoria ), deram a forma definitiva da discussão pós-clássica a respeito, na medida em que, neles, a estrutura retórica distingue, grosso modo , o signo (prova material), o argumento (raciocínio dedutivo estabelecendo o provável sobre o certo) e o exemplum (fato ou dito de um personagem célebre do passado que somos convidados a imitar). Em linhas gerais, esse foi o modelo herdado pela Idade Média. Com isso, o exemplum torna-se, na prática, um tipo de texto – embora em subserviência a outro, o discurso propriamente dito. E foi para uso prático das escolas de retórica que Valério Máximo (I d.C.) elaborou sua coletânea de Factorum et Dictorum Memorabilium [Ditos e fatos memoráveis]:

Como as ações e os ditos memoráveis dos romanos e das nações estrangeiras são muito dispersos em outras obras para que possamos nos instruir com elas em pouco tempo, resolvi fazer, seguindo um plano metódico, um florilégio extraído de historiadores célebres, para diminuir o fardo da longa pesquisa aos leitores que desejem se debruçar nos

18 “In Aristotle’s Rhetoric the παράδειγμα occupies a central position in the inventio on the basis of the juxtaposition of rhetoric and dialectic, because just as reasoning by means of rhetorical syllogisms ( ἐνθυμέματα ) is parallel to deductive reasoning in dialectic, so reasoning by means of paradeigma forms the counterpart of inductive reasoning in dialectic. Thus, Aristotle defines the example as a rhetorical induction, forming one of the two categories of artistic proof. In his analysis of the modes of persuasion common to all three species of rhetoric, Aristotle discusses the παράδειγμα in detail; unlike the Rhetorica ad Alexandrum , he not only considers and discusses specimens of historical examples ( τὸ λέγειν πράγματα προγεγέμενα ), but also invented ones ( τὸ αὐτὸν ποιεῖν), subdivided into comparisons (παραβολαί) and fables ( λόγοι ). Aristotle specifies that παραδείγματα must be used as proof when the case does not allow the use of ἐνθυμέματα.” (Marc van der POEL “The Use of exempla in Roman Declamation” in Rhetorica. A Journal of the History of Rhetoric , Vol. 27 nº 3, 2009, p. 335). 19 “Exemplum est, quod rem auctoritate aut casu alicuius hominis aut negotii confirmat aut infirmat. Horum exempla et descriptiones in praeceptis elocutionis cognoscentur . [É exemplo o que – recorrendo ao que já foi dito por uma pessoa tradicionalmente reverenciada ou narrando um acontecimento particular envolvendo pessoas ou interações entre elas – busca confirmar ou refutar algo anteriormente proposto. Exemplos e descrições desse recurso devem ser expostos nos preceitos da arte oratória].” ( , De Inventione , 1, 49). A tradução é de André Rios. 186

ensinamentos históricos. Não tive a intenção de abarcar tudo: quem poderia reunir os fatos de todas as épocas em um pequeno número de volumes? E que homem sensato, diante do fluir da História, tanto estrangeira quanto local, que outros escritores contaram com talento, poderia se vangloriar de lhes deixar uma narrativa de exatidão mais escrupulosa e de uma eloquência mais distinta 20 ?

Embora o Factorum de Valerius seja na verdade uma espécie de enciclopédia da vida civil romana (seus temas são diversos, mas de ligeira tendência para o assunto moral, com suas respectivas considerações teóricas), a maioria dos capítulos ou seções vem recheada também de ilustrações “práticas” – que, por sua vez, ele denominou “ exemplos ” (romanos e estrangeiros) 21 . Neste sentido, ainda que não seja somente isso, seu livro é a primeira coletânea sistemática e modelar de exempla que conhecemos 22 .

A patrística latina se apropriou desse modelo e, desde Tertuliano, fez uso de exempla na homilética. Claro, toda a literatura evangélica (sobretudo a dos Evangelhos sinóticos ), bem como os Atos dos Apóstolos e mesmo as epístolas neotestamentárias, já poderiam ser considerados como objetos exemplares neste mesmo sentido – mas, obviamente, não se trata ainda de textos exclusivamente instrumentais. Por outro lado, tornaram-se muito rapidamente, eles mesmos, fontes exemplares de discursos predicatórios – os factorum et dictorum de Jesus (e também os dos apóstolos e, posteriormente, dos santos), exercendo papel de predominância nos exempla cristãos desde muito cedo. A relação do anedotário ideal com uma auctoritas sempre advinda do passado (neotestamentário, neste caso) permanece, portanto, essencialmente, tal como nos exempla da retórica romana, seu elemento definidor.

Esta relação mudará por volta do século VII. Várias passagens dos Diálogos com frade Pedro, do papa Gregório o Grande (540-604) 23 , comprovam a continuidade do uso retórico de exempla na homilética e no discurso predicatório de sua época. No

20 Usei a antiga edição bilíngue preparada por A. F. FRÉMION : Valère MAXIME , Faits et paroles memorables, Paris, Panckoucke, 1834, e uma tradução mais recente, da Garnier, hospedada no site: http://remacle.org/bloodwolf/historiens/valere/index.htm 21 A estrutura do Livro 7, por exemplo, estabelece o padrão: Capítulo I , Do pudor; I,1 Exemplos romanos ; I,2, Exemplos estrangeiros. Capítulo II , Da liberdade nas ações e nas palavras; II,1 Exemplos romanos; II,2 Exemplos estrangeiros. Capítulo III , Da severidade; III,1 Exemplos romanos; III,2 Exemplos estrangeiros... E assim por diante. 22 Jean-Pierre BORDIER , “Exemplum” in Dictionnaire des genres et notions littéraires , p. 278. 23 GRÉGOIRE LE GRAND , Dialogues (texte critique et notes par Adalbert DE VOGU É̈ ; traduction par Paul ANTIN ), 3 Vols., Cerf, 1980. 187 entanto, embora tais passagens não se resumam ao modelo das coletâneas cristãs “puramente” instrumentais que surgirão posteriormente, Gregório redefiniu o recurso ao apoiar sua prática sobre um anedotário passível (em teoria, ao menos) de aferição direta – remodelando fundamentalmente o papel desse anedotário na predicação comum. Quando, por exemplo, ele recorre a uma historieta para provar um ponto obscuro de doutrina ou uma questão teológica, tal historieta é, não raro, um “fato” que lhe aconteceu pessoalmente ou que alguém, “digno de fé”, lhe transmitiu diretamente – como no exemplum invocado acerca do monge Justus (importante na história das formulações contemporâneas a respeito da ideia de Purgatório) 24 . A dimensão temporal e espacial imediata (quer dizer, sincrônica ao narrador) nesse exemplum é, efetivamente, valorizada como autoritativa e referencial:

Sed neque hoc silendum existimo, quod actum in meomeomeo monasterio ante hoc triennium reminiscor 25 .

No texto de Gregório, esse tipo de passagem soma-se a dezenas de outras com esse dado comum: valorização informativa do tempo presente, e, em linhas gerais, da

24 Jean-Pierre BORDIER , “Exemplum” in Dictionnaire des genres et notions littéraires , p. 278. Esses episódios são comentados por Jacques Le Goff ao final do capítulo 2 de La Naissance du Purgatoire (usei a reedição em Un Autre Moyen Âge , Paris, Gallimard, 2002, pp. 881-887). 25 A frase é modelar: “Mas eu penso que não deveria deixar em silêncio o que se passou em meu mosteiro, se bem me lembro, há três anos atrás [grifos meus]”. E, logo depois dessa observação, Gregório prossegue contando a história do monge que, moribundo, confessa ao irmão, o médico leigo Copiosus, possuir três moedas de ouro escondidas entre seus pertences – o que era rigorosamente proibido pela ordem. Gregório descobre, põe Justus em quarentena e o condena a não receber visitas nem o viático. O monge finalmente morre, e uma cova é aberta fora do cemitério monástico. No momento em que descem seu corpo, são-lhe atiradas, na sepultura, as famigeradas três moedas, enquanto seus antigos companheiros gritam: “Pecunia tua tecum sit in perditione [Que teu dinheiro esteja contigo na tua perdição]”. No entanto, sua alma parece não ter ido diretamente ao inferno: à medida que lemos o texto, entendemos que ela arde numa espécie de limbo intermediário. Um mês após sua morte, Gregório, apiedando-se de sua sorte, dá ordens ao prior do mosteiro para realizar cerimônias regulares em sua intenção: durante trinta dias, os monges rezam e rezam para expiar a usura. Ao cabo desse período, Copiosus, que ignorava as cerimônias, sonha com o defunto e, ao lhe perguntar como estava passando, este lhe diz: ‘Nunc usque male fui, sed iam modo bene sum, quia hodie communionem recepi [Até aqui eu estava mal, mas agora estou bem, pois hoje recebi a comunhão]’. Copiosus corre ao mosteiro para narrar o fato quando, finalmente, fica sabendo dos ritos em nome do irmão: imediatamente todos se dão conta de que o defunto havia escapado do suplício graças aos expedientes determinados por Gregório. A resposta do interlocutor de Gregório nos Diálogos , o frade Pedro, é também significativa: “ Mira sunt ualde quae audio et non mediocriter laeta [Maravilhoso o que ouço. E, não pouca, a alegria]”. Cf. GRÉGOIRE LE GRAND , Dialogues , IV, 57, 8-17 (ed. DE VOGÜÉ , Tome 3, pp.188-195). Trata-se, portanto, apesar das implicações morais em primeiro plano, de um circuito que valoriza claramente o extraordinário da situação. 188 experiência direta 26 . A partir daqui, entramos numa sistemática nova da qual o exemplum medieval – embora sem abandonar a roupagem da Retórica clássica – se sentirá devedor.

A cristianização do exemplum deu-lhe, portanto, cores diferentes na medida em que vai sendo capitalizado como elemento na ars praedicandi da Alta e, sobretudo, da Baixa Idade Média 27 . Ele poderia perigosamente descambar em philautia 28 ou em algum procedimento narrativo literário, caso os pregadores cristãos não valorizassem sempre o docere (o “instruir”) e o prodesse (o “ser útil”) em detrimento do delectare (o “divertir”) – uma relação de cunho poético posta em voga por Horácio 29 , mas que se reporta a Cícero, e que, no final das contas, claro, é mera questão de perspectiva subjetiva 30 . No entanto, seria certamente excessivo, dado seu caráter sempre instrumental, tentar estabelecer diferenças muito fortes entre o exemplum predicatório cristão e o retórico clássico greco-romano: eles se

26 “Perante o tempo da história antiga, recolhido pelos especialistas eruditos na memória escrita, afirma-se um tempo da história recente, alcançado pela experiência visual ou auditiva (eu vi, eu ouvi – é o método de Heródoto) e por intermédio da memória oral.” (Jacques LE GOFF , O Imaginário Medieval , p. 125). 27 James MURPHY , Rhetoric in the Middle Ages , University of California Press, 1974, esp. cap. VI, “Ars praedicandi , The Art of Preaching”; Jacques BERLIOZ & Marie Anne POLO DE BEAULIEU , Les Exempla médiévaux: Nouvelles perspectives . Honoré Champion, 2000; Jacques BERLIOZ , Marie- Anne POLO DE BEAULIEU & Pascal COLLOMB , Le tonnerre des exemples: Exempla et médiation culturelle dans l’Occident médiéval ., PU Rennes, 2010. 28 Cf. Jean MESNARD , “Sur le terme et la notion de ‘ philautie’ ” in La Culture du XVIIe siècle , PUF, 1992, pp. 48-66. 29 “Aut prodesse volunt aut delectare poetae | aut simul et iucunda et idônea dicere vitae [Os poetas ou pretendem ser úteis ou deleitar ou, ao mesmo tempo, dizer coisas belas e aproveitáveis à vida].” ( Ars Poetica , vv. 333-334, in Dante TRINGALI (ed.) A Arte Poética de Horácio , Musa Editora, 1994, p. 34). 30 Não me refiro exatamente aos três estilos de modelagem retórica ( docere , delectare /conciliare , movere /flectere ) para os quais Cícero definiu modos operacionais da arte oratória – o modo humilde, sutil ou tênue para o docere ; o mediano para o conciliare (delectare ); e o grave, sublime ou veemente para o flectere (mouere ) – e que foram assumidos na Patrística latina, como, por exemplo, em Agostinho: “Tal como disse um homem eloquente [Cícero], e ele falou a verdade, o homem eloquente deve falar de modo a ensinar [doceat ], dar prazer [delectet ] e dominar o auditório fazendo-o se curvar [ flectet ]. Acrescentando então: Ensinar por necessidade, deleitar por prazer e dominar para ganhar.” (AGOSTINHO , De Doctrina Christiana IV, 74, citando o De oratore ). Refiro-me aqui, mais particularmente, à oposição poética entre a função primária do exemplum quando cooptado pela ars praedicandi (o docere , que é seu valor educativo e de formação moral) contrastado ao valor artístico da narrativa: “Pero si cualquier procedimiento es bueno para captar la atención del oyente, siempre en aras de una supuesta eficacia pedagógica, la historia de la predicación religiosa no tardará en poner de manifiesto la reversibilidad de la relación prodesse /delectare en que se funda el discurso ejemplar y que supedita el deleite narrativo al aprovechamiento moral ya la instrucción.” (Federico BRAVO , Arte de enseñar, arte de contar. En torno al exemplum medieval . X Semana de Estudios Medievales, Nájera, 1999. http://www.vallenajerilla.com/berceo/bravo/exemplum.htm 189 situam, para todos os efeitos, numa razoável linha de continuidade 31 . Em todo caso, ou talvez por esse motivo mesmo, as coletâneas de exempla gozaram de imenso sucesso entre os autores eclesiásticos, sobretudo a partir da segunda metade do século XIII: coletâneas que, sem se dessolidarizar com uma aparelhagem técnica e intelectual do mundo antigo, afirmam o valor exemplar dos modelos cristãos . A articulação desse sucesso está em clara sinergia com o aparecimento das ordens mendicantes (dominicanos e franciscanos, sobretudo): criadas na primeira metade século XIII e com uma atividade inicial dedicada quase que exclusivamente à pregação, são os autores oriundos de suas fileiras os maiores entusiastas das coletâneas de exempla medievais 32 .

Concretamente, a função imediata do exemplum não mudou muito desde então e, embora relativamente em desuso no Renascimento, voltando à carga na Contra- Reforma, ela permanece, em linhas gerais, obedecendo aos mesmos vetores: fornecer adorno retórico aos sermões, na ênfase de conclusões morais ou na ilustração de pontos de doutrina 33 . Os temas poderiam ser tirados de diversas fontes

31 “Il n’est pas question d’opposer un exemplum rhétorique et un exemplum dit homilétique. Ces distinctions, peu opératoires, ont été proposées surtout par commodité afin de distinguer des récits intervenant dans des textes qui n’étaient pas destinés à la prédication et d’autres qui en dépendaient directement (recueils d’ exempla essentiellement mendiants, sermons).” (Jacques BERLIOZ , Marie-Anne POLO DE BEAULIEU & Pascal COLLOMB , Le tonnerre des exemples: Exempla et médiation culturelle dans l’Occident médiéval , pp. 11-12). 32 O material que, direta ou indiretamente, comporta exempla medievais (eclesiásticos) é imenso. Entre as mais importantes coletâneas, estão o Tractatus de diversis materiis predicabilibus do inquisidor dominicano Etienne de Bourbon (1180-1261) e os Sermones vulgares do bispo Jacques de Vitry (1160-1240). Ver Thomas CRANE (ed.), The Exempla of Illustrative Stories from the Sermones Vulgares of Jacques de Vitry , London, 1890; Jean-Thiébaut WELTER , L’ Exemplum dans la littérature religieuse et didactique du Moyen Âge , Paris et Toulouse, 1927; Joseph MOSHER , The Exemplum in the Early Religious and Didactic Literature , New York, 1911. Na França, a base de dados ThEMA ( Thesaurus Exemplorum Medii Aevi ), mantido pelo GAHOM (Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval ), dá acesso a um considerável número de resumos em francês de exempla extraídos de diversas obras e coleções. Embora não traga os textos em si, a base fornece a referência bibliográfica, as fontes e os parentescos textuais do anedotário. Ver http://gahom.ehess.fr/document.php?id=434 33 “Aux XV e et XVI e siècles, ils [os exempla ] tombent en déshérence sans le Saint Empire Germanique, l’heure étant aux disputes théologiques. Mais les pieux des deux confessions se lassent au XVII e des discours fondamentalistes, et l’on voit réapparaître l’ exemplum entre 1620 et 1720 dans la prédication baroque. Le mouvement de rénovation du prêche, décidé au Concile de Trente, faisant partie de la Contre-Réforme, l’ exemplum se retrouvera plutôt chez les catholiques que chez les protestants. Cela explique que les Jésuites en aient été les pionniers, et que les auteurs présentés [neste artigo] soient surtout catholiques.” (pp. 163-164) (Odile SCHNEIDER -MIZONY , “ Exemplum et écriture savante dans les sermons et oraison funèbres du Baroque allemand” in Manuel BORREGO -PEREZ (ed.), L’ Exemplum narratif dans le discours argumentatif (XVIe-XXe siècles) , Besançon, Presses Universitaires Franc-Comtoises, 2002, pp. 163-164). 190

(das Escrituras e de fatos reais e históricos, mas algumas vezes de fábulas e lendas folclóricas) e depois fartamente utilizados em releituras eclesiásticas 34 . Entretanto, no geral, o recurso à auctoritas ; a forma breve; a alegação factual do anedotário; a univocidade de interpretação; e essa inclinação à instrução (docere ) a que me referi mais acima, são as características formais que mais facilmente podemos destacar dessas coletâneas 35 .

Logo, em Dos Coxos , assumindo-se uma arquitetura retórica que faça uso dessa aparelhagem autoral e exemplar, não se trata de um contexto de causos qualquer. Vejamos um deles.

[B][B][B] Há alguns anos, passei pelas terras de um príncipe soberano que, em meu benefício e para abater minha incredulidade, concedeu-me a graça de mostrar-me pessoalmente, em lugar privado, dez ou doze prisioneiros dessa categoria 36 , e entre outros uma velha, realmente muito bruxa em feiura e disformidade, famosa de longa data nesse ofício. Examinei provas, confissões espontâneas e não sei que marca não sensível naquela pobre velha, e perguntei e conversei o quanto quis, prestando a mais isenta atenção que pude; e não sou homem que se deixe garrotear o julgamento por prevenções. No final e em sã consciência, eu lhe teria receitado antes o heléboro 37 que a cicuta 38 . [C][C][C] “Captisque res magis

34 Não por acaso, Chaucer satiriza a proliferação dessas compilações monótonas e maçantes nos Canterbury Tales . 35 Para uma poética do exemplum , ver os artigos de Claude BREMOND , “L’ exemplum médiéval est-il un genre littéraire? I. Exemplum et littérarité” (pp. 21-27) e Claude CAZALE -BERARD , “L’ exemplum médiéval est-il un genre littéraire? II. Exemplum et la nouvelle” (pp. 29-42) in Jacques BERLIOZ & Marie Anne POLO DE BEAULIEU , Les Exempla médiévaux: Nouvelles perspectives . Honoré Champion, 2000. 36 Como não se trata de um nobre qualquer (com 10 prisioneiros em sua masmorra...), Villey sugere ser esse “príncipe soberano” Charles de Lorraine (irmão mais novo de Henri de Guise e chefe militar da Liga durante as Guerras de Religião). Charles teria recebido a visita de Montaigne em 1580 – embora o Journal de Voyage não faça qualquer menção ao episódio. Cf. CA, III, 372, n. 32. 37 Para os médicos antigos, o heléboro [Helleborus niger ], que é um veneno poderoso, podia servir como um expediente farmacológico de amplo espectro – quando usado em certas dosagens. Embora a lenda tenha servido para sua fama (Hérakles teria sido curado da loucura com uma dose de heléboro administrada por Anticireu. Cf. PAUSANIAS , Χ 3.1, 36.5), a doxografia de Ctésias (fim do séc. V a.C.) nos informa que, “nos tempos de seu pai e seu avô”, não se administrava o heléboro senão em último caso e com um testamento previamente assinado por parte do doente (Cf. ORIBASIUS , VIII, 8). O Corpus Hippocraticum receita o heléboro negro como purgante ou emético. No Corpus existe, porém, uma passagem interessante para nosso contexto, que é seu uso no tratamento de uma das “doenças espessas” do tratado Doenças Internas . Trata-se, provavelmente, de uma forma grave de hepatite com “perturbación de los sentidos y alteraciones psíquicas” (cf. Tratados Hipocráticos , Vol. 6, “Sobre las afecciones internas”, Gredos, 1990, p. 270, n. 89): “Quando o fígado incha em direção ao 191

mentibus, quam consceleratis similis visa [O caso parecia mais próximo da loucura que do crime] (Tito-Lívio, VIII, 18) 39 ”. [B][B][B] A justiça tem seus próprios corretivos para tais doenças. (CA, III, 372) 40 .

diafragma, [o doente] delira; parece que tem répteis diante de si, e outros animais de todo tipo; vê hoplitas combatendo; ele próprio se vê lutando junto com eles; fala como se visse combates e guerras; levanta, faz ameaças se não o deixam partir; pondo-se de pé, não consegue erguer as pernas e cai. Seus pés estão sempre frios, e quando dorme se levanta de um salto caso tenha visto em sonhos coisas terríveis. Assim, sabemos que se sobressalta e sente medo por causa dos sonhos, porque quando está desperto conta que viu sonhos que correspondem ao que fazia seu corpo e expressava com a boca [enquanto estava inconsciente]. (...) Quando cessa de delirar, retoma imediatamente a consciência e, se perguntam, responde corretamente e sabe tudo o que se diz. Pouco tempo depois, recai nos mesmos sofrimentos. Esta enfermidade [espessa] provém da bile quando esta atinge o fígado e sobe até a cabeça. (...) [Ela] sobrevém, principalmente, quando se está em viagem fora de casa e no caso de se caminhar por algum lugar solitário. (...) Quando nesse estado, dá-se ao enfermo cinco óbolos [3,92 g] de heléboro negro, junto com vinho doce (...)” (HIPPOCRATE [Emile LITTRE , ed.], Œuvres complètes , Vol. 7, # 48, J.-B. Baillière, 1851, pp. 284-289). Caelius Aurelianus (séc. V d.C.) prescreve o heléboro em caso de asma, doença do esôfago, doenças no fígado e no baço, hidropisia, doenças do cólon, artrite e gota – e para a mania e a melancolia (no que está de acordo com Areteu e Rufus de Éfeso, que, por sua vez, também ampliam a prescrição do heléboro para distúrbios muito além da melancolia). Mas é “dans la tradition populaire, comme on le voit dans la Satire II, 3, d’Horace, [que] le traitement par l’ellébore est celui de la folie sous toutes ses formes” (Jackie PIGEAUD , Folies et cures de la folie chez les médecins de l’Antiquité gréco-romaine , Les Belles Lettres, 2010, p. 207). 38 A cicuta ( κώνος , Conium maculatum , no médio-francês cicue [ciguë]), nos remeteria aqui à morte de Sócrates, descrita no Fédon (117 e – 118 a) de Platão. Muito embora, desde a década de 1970, os classicistas tenham colocado em dúvida o realismo dessa descrição (por conta de dispositivos ético-filosóficos ou de uma maior complexidade farmacológica da poção ingerida por Sócrates – o envenenamento por alcaloides neurotóxicos dificilmente se daria de modo sereno), o entendimento literário tradicional da passagem ligaria a ingestão de cicuta à pena de morte instaurada pela justiça ateniense. Logo, em Dos Coxos , ela serve como metáfora para o desfecho de um processo demonológico clássico (terminando com a morte do acusado). Para a discussão, ver Christopher GILL “The Death of Socrates” in Classical Quarterly , 23, 1973, pp. 25-8; William OBER , “Did Socrates Die of Hemlock Poisoning?” in New York State Journal of Medicine , Vol. 77 n° 1, Feb. 1977, pp. 254-8; e Thomas BRICKHOUSE & Nicholas SMITH , Plato and The Trial of Socrates , Routledge, 2004. 39 Há mais de uma ironia nesta passagem. Comentarei mais abaixo. 40 “[B] Il y a quelques années, que je passay par les terres d’un Prince souverain : lequel en ma faveur, et pour rabattre mon incredulité, me fit cette grace, de me faire voir en sa presence, en lieu particulier, dix ou douze prisonniers de ce genre ; et une vieille entres autres ; vrayment bien sorciere en laideur et deformité, tres-fameuse de longue main en cette profession. Je vis et preuves, et libres confessions, et je ne sçay quelle marque insensible sur cette miserable vieille : et m’enquis, et parlay tout mon saoul, y apportant la plus saine attention que je peusse : et ne suis pas homme qui me laisse guere garroter le jugement par preoccupation. En fin et en conscience, je leur eusse plustost ordonné de l’ellebore que de la ciguë. [C] Captisque res magis mentibus, quam consceleratis similis visa . [B] La justice a ses propres corrections pour telles maladies.” (VS, 1032) 192

Mais uma vez, também aqui se trata de uma experiência pessoal e direta , que o narrador afirma ter tido em algum momento da vida. E o recorte bizarro da cena se dissimula a partir dessa referência biográfica, pois o nonsense se anuncia já pela condição irônica de “incapacidade” do narrador em compreender o que vai acontecer no nível diegético do que será narrado por ele mesmo – levando-se em conta que existe em cena também o ponto de vista de um “verdadeiro” demonólogo, aqui mimetizado pelos olhos confiantes do “Príncipe Soberano” 41 . Trata-se de algo que o narrador, por alguma forma de imposição social, deve viver e experimentar (invocado ironicamente pelo “em meu benefício”), mas de que ele decididamente não participa a priori (pressuposto ironicamente pelo “para abater minha incredulidade”). Quando o texto começa a falar de feiticeiras, valendo-se de todos os dispositivos clássicos de um processo de bruxaria 42 , trata-se de uma mimese , um dispositivo farsesco: pois o narrador (que já é confessadamente um descrente) não é, claro, um demonólogo (embora aja como um, na perícope) – mesmo se, outrora, ele

41 “O que não tem fé não pode criticar a fé pelo fato de não ter fé” é uma petição de princípio fartamente utilizada pelos defensores de teologias acríticas. Por conta disso, demonólogos escrevem tanto contra bruxas como contra os que não acreditam em bruxas – coisa que a questio 1 da prima pars (quer dizer, a abertura técnica dos trabalhos) do Malleus Malleficarum não faz senão reiterar: “Se crer em bruxas é tão essencial à fé católica que sustentar obstinadamente opinião contrária há de ter vivo sabor de heresia.” (Heinrich KRAMER & Johannes SPRENGER , O Martelo das Feiticeiras , Rosa dos Ventos, p. 49). Por outro lado, pressuposições de superioridade intelectual a respeito de delírios coletivos evidentes não impedem que sua concretização escrita fique ela mesma isenta de erros e preconceitos. Um vocabulário de pertença, legitimidade, imparcialidade, voltará sempre à discussão toda vez que se trate de descrever fenômenos de cunho etnográfico: “Não se trata apenas de que isso seja inverídico, de que por mais delicada que seja a questão de enfrentar o outro, ela não seja igual a enfrentar a página [em branco]. A dificuldade está em que a estranheza de construir textos ostensivamente científicos a partir de experiências em grande parte biográficas, que é o que fazem os etnógrafos, afinal, fica inteiramente obscurecida. A questão da assinatura, tal como o etnógrafo a confronta, ou tal como ela confronta o etnógrafo, exige o olimpianismo do físico não-autoral e a consciência soberana do romancista hiper-autoral, sem de fato permitir nenhum dos dois. O primeiro suscita acusações de insensibilidade, de tratar as pessoas como objetos, de ouvir a letra, mas não a música, e, é claro, de etnocentrismo. A segunda, acusações de impressionismo, de tratar as pessoas como fantoches, de ouvir uma música que não existe, e, é claro, de etnocentrismo. Não admira que a maioria dos etnógrafos tenda a oscilar, insegura, entre as duas coisas, ora em livros diferentes, ora, com mais frequência, no mesmo livro. Para começo de conversa, descobrir onde se situar num texto do qual, ao mesmo tempo, espera-se que seja uma visão íntima e uma avaliação fria é quase tão desafiador quanto chegar a essa visão e fazer a avaliação.” (Clifford GEERTZ , “Estar lá. A Antropologia e o cenário da Escrita” in Obras e Vidas, o Antropólogo como autor , Ed. UFRJ, 2009³, p. 22). 42 O cenário é completo: a masmorra, o interrogatório, a “confissão espontânea”, a busca da marca não sensível, o destaque dado à feiura, a sentença final – excetuando-se a tortura, está tudo lá. Para a montagem do processo demonológico clássico, ver Roland VILLENEUVE , Les procès de sorcellerie , Marabout, 1974. 193 pertencesse aos quadros jurídicos do Parlement de Bordeaux (onde certamente conhecera algum caso similar julgado nas cortes inferiores 43 ).

Logo, o domínio da imposture – a do próprio narrador – é evidente; mas também a imposture da acusação de bruxaria, a imposture do tribunal, a imposture da bruxa (que por “confissão espontânea” afirma ser, de fato , bruxa). O contexto é amplamente teatral, desdobrando-se em diversos níveis de mise en abyme 44 . O narrador fala de feiticeiras revestido por essa fantasia parlamentar 45 . Ironia retroalimentada pelo fato dele (assumindo o signatário da obra como seu narrador) não ser mais um membro oficial do judiciário. Por fim, reconta o causo no seguro e autorreferencial contexto do exemplum . E exatamente por ter invertido o arrest demonológico através de dispositivos irônicos (que visam alertar sobre os absurdos do processo em si), a perícope, em sua retórica profunda, tem algo do docere da ars praedicandi . Acrescente-se, claro, que a equipolência jurídica46 , ao gerar uma sentença cheia de sarcasmo e derrisão, metamorfoseia ( com uma única frase: o “heléboro em vez da cicuta”) o ex-jurista (cicuta) em médico (heléboro) – colocando o narrador, ao menos indiretamente, no rol dos defensores das teses antidemonológicas do médico suíço Johannes Weyer (do qual Bodin, pressuposto no texto de Dos Coxos como um d’“eles ”, é inimigo declarado) 47 .

43 Na França dos Valois, a bruxaria passou a ser considerada crime comum (quer dizer, não puramente teológica e passível de ser julgada por tribunais laicos) por volta de meados do século XVI. Para a atuação dos Parlements franceses nos processos de bruxaria dos séculos XVI e XVII, ver Alfred SOMAN , “Les procès de sorcellerie au parlement de Paris (1565- 1640)” in Annales. Histoire, Sciences Sociales , 1977, Vol. 32, n° 4, pp. 790-814 ; e sobretudo Robert MANDROU , Magistrados e Feiticeiros na França do século XVII (or. 1968), Perspectiva, 1979. 44 “Montaigne’s hoax ghost story is explicitly qualified as theatre, a piece of fun that got out of hand: it is ‘ badinage ’, ‘ farce’ , ‘ battelage’ , echoing Montaigne’s own discursive performance in company. The badin was the actor who, with floured face, embodied the ambiguous foolishness of the farce, while the bateleur was a comic actor often employed to please the crowd with linguistic trickery, and who was associated with charlatanry, references which resonate here; but Montaigne’s choice of vocabulary is also suggestive in a demonological context.” (Emily BUTTERWORTH , “The work of the devil? Theatre, the supernatural, and Montaigne’s public stage” in Renaissance Studies , Vol. 22, n° 5, Jul. 2008, pp. 705–722). 45 “Parlamentar” no sentido do Ancien Régime , pois os Parlements não são instituições legislativas mas judiciárias. 46 “[B] Examinei provas, confissões espontâneas e não sei que marca não sensível naquela pobre velha, e perguntei e conversei o quanto quis, prestando a mais isenta atenção que pude; e não sou homem que se deixe garrotear o julgamento por prevenções.” (CA, III, 372). 47 Comento os “ eles ” mais abaixo. Em linhas gerais, Johannes Weyer (Wier, na grafia francesa) sustentava que a bruxaria, tal como discutida pelos demonólogos contemporâneos, era um fenômeno melancólico – logo, de jurisdição médica e não teológica. Esta posição – que em nenhum momento nega a bruxaria em si, apenas a desloca do teólogo para o médico – teve muitos adeptos importantes, a ponto de Jean Bodin dedicar um capítulo inteiro da sua Démonomanie des sorciers (1580) para refutá-la. O De Praestigiis Daemonum, et incantationibus ac 194

Uma leitura mais sutil da sentença do nosso falso demonólogo, porém, o metamorfosearia não só em médico , mas também (com essa resolução branda) em simpatizante da bruxaria – o que, em certas circunstâncias, significaria a mesma coisa que declará-lo, ele mesmo, bruxo . A sentença final só reforçaria uma perspectiva inicial (desconfiada) do Príncipe Soberano e, por esse viés, a desconfiança de todos os verdadeiros demonólogos em relação ao narrador: pois o heléboro 48 e a cicuta 49 seriam, dependendo da dosagem e tal como entendidos na época, componentes ritualísticos da própria bruxaria. Do ponto de vista de demonólogos mais radicais, receitar o heléboro (ou a cicuta) poderia ser entendido literalmente como receitar um phármakon 50 . Em seu entender, neste caso, o objetivo veneficiis Libri V , de Weyer, impresso em Basileia por Jean Oporinum em 1564, foi traduzido em francês como Les cinq livres de l’imposture et tromperie des diables, des enchantements et sorcelleries e impresso por Grévin em 1569. Para o contexto, ver Jean CÉARD , “Folie et Démonologie au XVI e siècle” in A. GERLO (ed.), Folie et déraison a la Renaissance , Editions de l’Université de Bruxelles, 1976, pp. 129-147; Sidney ANGLO , “Melancholy and Witchcraft: the Debate between Wier, Bodin, and Scot” in Idem, ibidem , pp. 209-227; Jean CÉARD , “Médecine et démonologie: les enjeux d’un débat” in M. T. JONES -DAVIES (ed.), Diable, diables et diableries au temps de la Renaissance , Touzot, 1988, pp. 97-112; Christian MARTIN , “Bodin’s Reception of Johann Weyer in De la Démonomanie des sorciers ” in Howell LLOYD (ed.), The Reception of Bodin , Brill, 2013, pp. 117-135. 48 Para além da referência à loucura, que parece ser a relação médica mais imediata, receitar o heléboro a uma (suposta) bruxa que confessa ser bruxa presa numa masmorra é um desdobramento irônico que se volta sobre si mesmo. Muito embora a mais importante fonte do século XV (o capítulo 32 do Buch aller verbotenen Kunst , do médico bávaro Johannes Hartlieb, 1456) liste apenas seis , o heléboro seria o sétimo componente utilizado na fórmula do famoso unguentum phaleris (também conhecido como unguento de voo ) da bruxaria medievo-renascentista: a poção mágica que permitiria às bruxas voar pelo céu rumo ao sabá (e, eventualmente, fugir de situações como a da prisão). Para o texto de Hartlieb, ver P. G. MAXWELL-STUART , Witch Beliefs and Witch Trials in the Middle Ages , Continuum, 2011, p. 77); para a função do heléboro em rituais demonológicos, ver Michael HARNER , “The Role of Hallucinogenic Plants in European Witchcraft” in Michael HARNER (ed.), Hallucinogens and Shamanism , Oxford University Press, 1972, pp. 125-150. 49 Efetivamente, receitar a cicuta também seria irônico, pois a Conium maculatum (hemlock em inglês) seria uma planta ritualística popularmente associada à bruxaria renascentista, como mostra este trecho de Shakespeare: “Escamas de dragão, dente de lobo | múmias de feiticeiras, mandíbulas e estômago | de tubarão voraz, | Raiz de cicuta [ Root of hemlock ] arrancada nas trevas, | Fígado de judeu blasfemo | Fel [ Gall ] de bode, e ramos de teixo [ yew ] | cortados em noite de eclipse de lua, | Nariz de turco e lábios de tártaro, | Dedo de criança estrangulada ao nascer, | lançada no fosso pela mãe, | Fazei que a massa fique espessa e viscosa: | Acrescentemos entranhas de tigre, | aos ingredientes de nosso caldeirão” ( Macbeth , ato IV, cena I). O nome galego da cicuta (“prixel das bruxas ”) é também bastante sugestivo dessa associação. 50 A noção de phármak-, embora de uso frequente no contexto do maleficium antigo, é muito abrangente, e pode significar tanto veneno-feitiço quanto antídoto-remédio-contrafeitiço . As atestações do pharmak -malefício são muitas, como neste exemplo: [Argos, sobrinho de Medeia, diz para os Argonautas]: “Existe uma jovem [Medeia], que habita no palácio de Aetes, a quem a deusa 195 oculto maior (do doravante simpatizante da bruxaria) seria, claro, a libertação final e sem maiores consequências da bruxa: coisa que alguns juízes interioranos, por exemplo, poderiam tomar ao pé da letra como um artifício dissimulado de consorte para consorte 51 .

Hécate ensinou a manusear com extraordinária habilidade todas as ervas mágicas [φάρμακα] que crescem na terra seca e nos rios correntes. Com elas, ela pode apagar um incêndio violento, pode conter o curso revoltoso dos rios, pode parar uma estrela e deter o movimento da lua sagrada.” (APOLÔNIO DE RODES , Argonáutica III, 529). O caráter ambíguo dos pharmak- (feitiço-contrafeitiço ) já pode ser encontrado, porém, em Homero: “[Circe] levou [os companheiros de Odisseu] para dentro e ofereceu-lhes cadeiras e tronos, e misturou-lhes, depois, louro mel, queijo e branca farinha em vinho Prâmnio; à bebida assim feita, em seguida mistura droga funesta [φάρμακα ] que logo da pátria os fizesse esquecidos. Tendo-lhes dado a mistura, e depois que eles todos beberam, com uma vara os tocou e, sem mais, os meteu na pocilga. Tinham de porcos, realmente, a cabeça, o grunhido, a figura e as cerdas grossas; mas ainda a consciência anterior conservavam.” ( Odisseia , X, 233 e ss). Contudo, quando Hermes decide ajudar o herói com uma poção que anularia o efeito dos pharmaka de Circe, o termo empregado é o mesmo: “Toma esta droga de muita eficácia [ τόδε φάρμακον ] e o palácio de Circe entra, porque há de livrar-te a cabeça do dia funesto.” ( Odisseia , X, 287). As traduções são de Carlos Alberto Nunes. Já a relação de ambiguidade na dosagem do heléboro e da cicuta, entendidos como pharmaka (maléficos ou benéficos, dependendo do caso), é evidente neste outro fragmento: se o peixe é um ingrediente eventualmente usado em maleficia , diz Apuleio ao se defender de uma acusação de feitiçaria, não se pode acusar o pescador de maleficium só porque tem peixe guardado em casa. Logo, desafiava os acusadores a provar, por seus próprios meios, se tratar de um crime comprar “heléboro [ elleborum ], cicuta [ cicutam ] ou sumo de papoula [ papaueris ], ou outros produtos análogos, cujo uso moderado é salutar, mas que misturados a outros ou tomados em doses grandes, tornam-se perigosos: quem toleraria de sangue-frio que me acusem de envenenamento [ veneficii ] só pelo fato de que [tais subtâncias] podem matar um homem”? (LUCIUS [Jackie PIGEAUD & Paul VALETTE , eds.], Apologie , 32, Les Belles Lettres, 2002, pp. 78-81). 51 Um inquisidor como Nicolau Eymerich (1316-1399) poderia situar essas imprecisões da perícope (mais propriamente das ironias céticas que heléboro e cicuta permitem descortinar) no contexto dos “truques dos hereges para responder sem confessar”, seção 22 da Tertia pars do seu Directorium Inquisitorum : “Os hereges sofisticam as perguntas – para esquivar-se delas – de dez maneiras. 1. A primeira consiste em responder de maneira ambígua: Perguntados sobre o verdadeiro corpo de Cristo, respondem sobre o seu corpo místico. Assim se lhes perguntardes ‘Crês que isto seja o corpo de Cristo?’, responderão ‘Sim, creio que isto seja o corpo de Cristo’ (entendendo-se por isto uma pedra que estão vendo ou o seu próprio corpo, no sentido de que todos os corpos são de Cristo, porque pertencem a Deus, que é Cristo) (...). 2. O segundo truque consiste em responder acrescentando uma condição. Se perguntardes ao acusado: ‘Crês que o casamento é um sacramento?’, ele responderá ‘Se Deus quiser, creio!’ (subentendendo-se que Deus não quer que ele acredite) (...) 3. O terceiro truque consiste em inverter a pergunta. Se perguntardes ‘Crês que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho?’, tereis como resposta ‘E vós, em que acreditais?’. Nós lhe diremos ‘Acreditamos que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho’. Então, responderá ‘Também acredito’ (subentendendo-se: acredito que creiais nisso, mas eu não acredito) (...) 4. O quarto truque consiste em se fingir de surpreso (...) 5. O quinto truque consiste em mudar as palavras da pergunta. Perguntareis ‘Crês que é pecado prestar juramento durante um julgamento?’, e ele responderá ‘Acho que quem diz a verdade não comete pecado’. Portanto, responde sobre a verdade e não sobre o 196

Esta dimensão da dosagem , caracterizando a sentença final como phármaka , dinamiza o pleno circuito da imposture na perícope, tornando-a passível de suscitar pontos de vista diametralmente opostos: neste caso, a sentença final (cética, irônica e ambígua) poderia servir tanto aos argumentos antidemonológicos (narrador, Wier) quanto demonológicos (Eymerich, Bodin). E a perícope, que se toma como phármakon , é capaz de sustentar relativamente bem essas ambiguidades de leitura.

Vemos, pois, que, neste caso, não se trata apenas de imposture , mas de uma dialética da imposture : o falso demonólogo, ex-jurista , sintetizando uma sentença médica (diríamos hoje, um diagnóstico psiquiátrico ), retrato para nós de um herói liberal em pleno século XVI, tangencia, por outro lado, a heresia antidemonológica numa série de ardilosas mises en abyme – perfeitamente denunciáveis, por sua vez (a partir de uma leitura menos liberal), como parte de um esquema herético engenhoso e sutil.

É claro que poderíamos pensar o quadro confessional geral da perícope também numa imposture que une o aspecto jurídico da cena à dimensão exemplar do self . Trata-se de um narrador moralmente superior , que aponta incongruências e disparates de um mundo (jurídico) em equívoco. Ele pode ter chegado à sentença final através de um rigor de ordem técnica (supondo-o ex-jurista do Parlement de Bordeaux), perfazendo o circuito ordinário do inquérito processual de sua época 52 . No entanto, embora o narrador possa ser jurista, ele certamente não é teólogo (uma especialidade necessária ao domínio inquisitorial) 53 . E se seguisse os silogismos teológicos – os quais, por mais terrivelmente desumanos que possam parecer a nós, formam a sintaxe intelectual dos grandes inquisidores –, em vez da lógica processual civil, poderia ter chegado a uma percepção diferente. Pois o contraste entre demonologia e jurisprudência laica, quando não estava em cena o maleficium juramento, único objetivo da pergunta. (...)” e segue por aí. Cf. Nicolau EYMERICH , Manual dos Inquisidores [1376], Rosa dos Ventos, 1993, pp. 119-122. 52 “Alors que le recours aux ordalies et au duel judiciaire déclina et disparut complètement au cours du XV e siècle, le système probatoire se rationalisa et posa l’aveu et le témoignage comme fondements principaux de l’enquête judiciaire. On connaît l’importance que revêtit alors l’aveu dans la procédure inquisitoire: on chercha d’abord à faire dire l’occulte, le Diable, le contre-nature, mais cela s’élargit ensuite vers la veritas dans son sens le plus entier: l’aveu devint la ‘reine des preuves’.” (Pascal BASTIEN , Une histoire de la peine de mort. Bourreaux et súplices, 1500-1800 , Seuil, 2011, p. 74). 53 “L’Inquisition fut créée (...) par le pontificat à partir de 1233 en vue de poursuivre l’hérésie et elle garda longtemps cette spécialisation, qui impliquait un recrutement de juges plus théologiens que juristes.” (Alain BOUREAU , Satan hérétique. Histoire de la démonologie (1280-1330) , Odile Jacob, 2004, p. 50). 197 ou a heresia demonológica, podia ser muito grande 54 . Desta sintaxe intelectual dos inquisidores, criticamos as premissas e o quadro mental geral, claro, mas a lógica demonológica de investigação em si, o aparato inquisitorial, ciosamente acumulado por gerações de inquisidores, visava justamente tanto contrabalançar o self nas investigações do inquérito quanto oferecer mecanismos suplementares à lógica processual ordinária do tribunal laico 55 . Apesar do suposto treino técnico do narrador, a perícope resume o inquérito com termos vagos, sentimentais e distendidos no tempo:

[B][B][B] Examinei provas, confissões espontâneas e não sei que marca não sensível naquela pobre velha, e perguntei e conversei o quanto quis, prestando a mais isenta atenção que pude; (...)

Termos vagos porque tendem a ser resolvidos a partir da perspectiva triunfalista do seu próprio self :

(...) e eu não sou homem que se deixe garrotear o julgamento por prevenções.

54 A partir de meados do século XVI, tribunais laicos podiam também julgar crimes heréticos de caráter demonológico, mas os contrastes podiam ser gritantes entre um caso e outro: “The new reach of the Inquisition put the men and women accused of witchcraft in far greater peril than they had previously faced in the civil courts. The Inquisition (…) simply ignored the rules of evidence and procedure that afforded some measure of due process in ordinary judicial proceedings. One man who accused a woman of practicing “weather-magic” in a magistrate’s court in the fifteenth century, for example, was called on to substantiate the charge, and when he failed to meet his burden of proof, he was drowned as a punishment for making a false accusation. By contrast, the accuser in an inquisitorial trial was allowed to remain absent and anonymous, and the accusation itself was regarded as admissible evidence.” (Jonathan KIRSCH , The Grand Inquisitor’s Manual , HarperOne, 2008, p. 146). 55 Não raro, o inquisidor era um especialista escolhido quase que exclusivamente pelo zelo teológico, entendendo pouco de leis – podendo inclusive receber apoio de um jurista laico. “The Inquisition itself, on the other hand, was well supplied with expert legal advice. Starting in 1300, as we have noted, the preferred candidates for the job of inquisitor were men who had earned a doctorate of law at a university. However, most inquisitors were ‘utterly ignorant of the law,’ according to the fourteenth-century commentator Zanghino Ugolini, and they ‘were chosen rather with regard to zeal than learning.’ As a result, the grand inquisitor Nicholas Eymerich (ca. 1320–1399) recommended in his own manual of instruction that an inquisitor ‘should always associate himself with some discreet lawyer to save him from mistakes,’ not only the kind of mistakes that might allow a victim to escape punishment but, even more crucially, the blunders that might cause the inquisitor to be dismissed from his job by his superiors. Eventually, some tribunals of the Inquisition routinely employed an attorney with the official title of Counselor as a member of the paid inquisitorial staff.” (KIRSCH , The Grand Inquisitor’s Manual , p. 79). 198

O narrador chega ao seu resultado final, portanto, através de uma posição ela mesma confessional, expressa por uma primeira pessoa “em sã consciência”, e através de um exercício inquisitorial provavelmente fraco e genérico demais (“prestando a mais isenta atenção que pude”) – fraqueza que, aos olhos do verdadeiro demonólogo, não lhe permite enxergar as dissimulações e impostures típicas de hereges e bruxas. Ele não vê, por exemplo, que a demência e a insanidade, apresentadas como prova circunstancial última (“Montaigne [C]” acrescentou, invocando o “testemunho” quase literal de Tito Lívio: “O caso parecia mais próximo da loucura que do crime”), embora consistentes com a dimensão laica da sua sentença, não seriam mais que possíveis subterfúgios ao olhar atento do verdadeiro inquisidor 56 .

A isso, soma-se o agravante fato de não existir o expediente da tortura, componente essencial de qualquer julgamento demonológico: tal raciocínio seria mais diáfano no contexto, pois não estaria nas mãos do narrador decidir a respeito (era um visitante), mas ainda assim poderia ser visto (uma vez que o narrador não sugere a tortura) como desdobramento das benesses sorrateiramente contrabandeadas de um consorte a outro 57 .

56 Eymerich caracterizaria o expediente à loucura no interrogatório inquisitorial como outro clássico truque herético: “(...) 9. O nono truque consiste em simular idiotice ou demência. Fingem que são loucos (como fez o rei Davi diante de Acaz) para não serem humilhados. Riem enquanto respondem às perguntas, misturando várias palavras inconvenientes, engraçadas e absurdas. Assim, acabam encobrindo os seus erros. Fazem isso frequentemente, quando sentem que vão ser torturados ou que vão ser entregues à autoridade secular. Tudo isso para escapar à tortura e à morte. Vi isso mil vezes: os acusados fingem que são completamente loucos ou que têm somente alguns momentos de lucidez.” (Nicolau EYMERICH , Manual dos Inquisidores [1376], Rosa dos Ventos, 1993, pp. 119-122). 57 No Ancien Régime , a tortura [quaestio ] não é a punição do crime, mas parte sine qua non do interrogatório . Embora teorizada de longa data (Ulpiano, séc. II d.C.), a doutrina jurídica específica herdada pelo Renascimento começou a ser formulada no século XIII e, a partir daí, foi utilizada intermitentemente até a Revolução Francesa: “A tortura é uma inquisição feita para se trazer à tona a verdade na qual se usa o tormento e o sofrimento do corpo” (Tractatus de tormentis ). Trata-se de um método de prova e assim foi entendida pelos teóricos inquisitoriais. Eymerich resume as situações de tortura em sete pontos: 1. Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas porque “presume-se que esconde a verdade”; 2. O suspeito que só tem contra si uma testemunha deve ser torturado, pois “um boato e um depoimento comum constituem juntos uma semi-prova, o que não causará espanto a quem sabe que um único depoimento já vale como um indício”; 3. Tortura-se quem tiver “um único depoimento contra si em matéria de heresia”; e assim por diante. (Cf. EYMERICH , Manual , p. 208). O Malleus , que atualizou a heresia para o contexto da bruxaria, regulamentava a tortura na sua Terceira parte: “(...) a justiça comum exige que a bruxa não seja condenada à morte a menos que tenha sido declarada culpada por própria confissão” ( Malleus Maleficarum , Questão XIII, p. 428). Logo, a função da tortura é, na maioria das vezes, confirmar um boato através do emprego da força e do sofrimento: é a “verdade” que está em questão, e a verdade é sacramentada pela palavra do 199

Logo, o entrelaçamento entre fingimento e loucura , tópica inquisitorial das mais importantes, continua a alimentar centrifugamente o domínio da imposture na perícope, dando-lhe um viés teológico técnico não imediatamente perceptível a priori 58 . Sendo assim, o heléboro e a cicuta, entendidos como phármaka (numa ambiguidade interessante entre objeto e função, e entre dosagem e valor), entram no texto como uma materialização irônica ou da equipolência (necessária a juízos corretos) ou das ambivalências de uma lógica jurídica deficiente (em que juízes parvos, como no caso dos “dois homens que se passavam um pelo outro”, sentenciam sem a compreensão correta de todas as partes, agravantes e atenuantes). Mas, obviamente, não se trata de condenar o sistema com um todo. Se, por um lado, a “clareza luminosa e pura”, necessária à equipolência penal, contrasta com a loucura e a stultitia das ocorrências “sobrenaturais e fantásticas”, por outro lado, elas existem em meio a outras circunstâncias muito claramente criminais (“drogas e venenos”, “homicidas da pior espécie”), pelo que se pode presumir que o narrador (assumindo-se ser ex-jurista bordelês) esteja defendendo sua história pessoal ou livrando a reputação de muitos de seus ex-colegas juristas civis 59 : acusado. Para a história da tortura, ver Edward PEETERS , Tortura (or. 1986), Ática, 1989; John LANGBEIN , Torture and the Law of Proof , University of Chicago Press, 2006³; para a evolução dos procedimentos no contexto demonológico, ver Brian LEVACK , A Caça às Bruxas na Europa Moderna , cap. 3. 58 Quanto a isso, o inquisidor Francisco Peña, comentando a seção do Directorium de Eymerich citada acima, acrescentou, em 1578: “A questão de se fingir de louco merece atenção especial. E se se tratasse, por acaso, de um louco de verdade? Para ficar com consciência tranquila, tortura-se o louco, tanto o verdadeiro como o falso. Se não for louco, dificilmente poderá continuar a sua comédia [ fictionem ] sentindo dor. Se houver dúvidas, e se não se puder saber se se trata mesmo de um louco, de toda maneira deve-se torturar, pois não há por que temer que o acusado morra durante a tortura. Mas se o herege continuar blasfemando como um louco durante a tortura, e mesmo quando for conduzido para a execução, não haverá como suspendê-la para fazê-lo arrepender-se, de modo que perca a vida, sem perder também a alma? Parece-me que sim. Mas é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e intimidar o povo. Ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando o bem de um indivíduo.” (Franciso PEÑA , comentário à seção 22 de Nicolau EYMERICH , Manual dos Inquisidores [1376], Rosa dos Ventos, 1993, p. 122; para o texto em latim, a edição de Simeonis Vasalini, Veneza, 1595, p. 432, disponível no Google Books). Por este exemplo, entendemos como a prática inquisitorial era um instrumento colaborativo e cumulativo. Ver Matteo DUNI , “The Editor as Inquisitor: Francisco Peña and the Question of Witchcraft in the Late Sixteenth Century” in Machtelt ISRAËLS & Louis WALDMAN (eds.), Renaissance Studies in Honor of Joseph Connors , Florence (Villa I Tatti), The Harvard University Center for Italian Renaissance Studies, 2013, pp. 297-303. 59 Embora originalmente um crime herético (que atentava à centralidade de um dogma) e por isso circunscrito à esfera da Inquisição, a bruxaria foi absorvida (com idiossincrasias locais) pelos tribunais seculares por volta de meados do século XVI. A partir de éditos promulgados por diversos Parlamentos europeus, os tribunais laicos poderiam entrar em cena quando se 200

[B][B][B] Para matar pessoas é preciso uma clareza luminosa e pura; e nossa vida é real e essencial demais para avalizar essas ocorrências sobrenaturais e fantásticas. Quanto às drogas e aos venenos, excluo-os de minha consideração: são homicidas, e da pior espécie. Entretanto, mesmo nisso, diz-se que não devemos ater-nos à confissão pessoal desses indivíduos, pois por vezes aconteceu de se acusarem de haver matado pessoas que se encontravam saudáveis e vivas. (CA, III, 371).

Joga-se, portanto, e de maneira muito sagaz, com todos esses dispositivos de ambiguidade e de mimese – jogo ainda mais irônico neste caso, pois um dispositivo similar foi ciosamente obscurecido quando o texto falava justamente do caso “dos dois homens que se passaram um pelo outro” (Martin Guerre/Arnaud du Tilh) da perícope sobre Coras. E é a partir desse jogo de incompletudes que a perícope demonológica incorpora uma dinâmica, a meu ver, claramente novelesca.

A oscilação entre o docere e o delectare me parece evidente nestas e nas outras perícopes exemplares de Dos Coxos . O texto sabe valer-se de estratégias complementares de construção narrativa: a transferência e a valorização da auctoritas (a equação “narrador = Montaigne” funciona quando convém, pois faz referências ao château onde mora o signatário) e o uso de operadores céticos de cunho “educativo” (que pretendem desmontar as crenças errôneas dos atores sociais ou personagens que informam os subtextos) acentuam o docere (princípio maior do exemplum ); contudo, flerta também com dispositivos propriamente “ficcionais” (como a farsa e a impostura), os quais, por sua vez, enquadram a narrativa no delectare (princípio ativo, por exemplo, da nouvelle ). Efetivamente, trata-se de um cenário de fundo fortemente conteur : tanto no causo da bruxaria quanto no causo dos jovens ventríloquos, e no do príncipe com a gota, as perícopes, curtas e eficazes, se bastam em ações únicas, totalmente centradas em si mesmas; trabalham o subtexto, de fundo farsesco (seja pelo dispositivo de impostura aplicado pelo narrador a si próprio, seja pela tromperie dos personagens centrais em relação aos dupes 60 ), de modo a se beneficiar de certa dimensão cômica, apesar da relativa gravidade dos fatos narrados; e trabalham a noção de verdade, não raro, de modo metacrítico e com desdobramentos em mise en abyme (por exemplo, o falso tribunal

tratava de maleficium – envolvendo envenenamento, morte etc., quer dizer, crimes relativos à bruxaria, mas com evidente consequência na legislação penal ou civil. Neste caso, o sabá e as orgias demoníacas, em geral, não interessariam aos juízes não eclesiásticos. Mas “drogas e venenos homicidas”, sim. 60 Podemos acrescentar o “processo de Coras” nesta perspectiva do farsesco. 201 mimético da demonologia sua contemporânea 61 ). Ora, se pusermos essas características no papel, teremos: a brevitas , a linearitas , a delectatio e a veritas . Quer dizer, controlando-se aqui a delectatio segundo o regime do docere , temos o circuito do exemplum ; mas também o circuito operacional da novella primitiva, coisa que indiquei mais acima 62 .

Podemos complexificar ainda mais o cenário. Pois essa atividade exemplar é simulada num mundo de coordenadas evidentes, o das quimeras . Todos os “príncipes”, notáveis e juízes de Dos Coxos são retratados, após a redução fenomenológica feita pelos operadores céticos do discurso, como tolos e parvos, situando-se na mesma latitude diegética dos villageois mais estúpidos ou dos loucos aos quais se “receita o heléboro”: dupes que, afinal, formam a matéria-prima dos subtextos montados sobre exempla . E, em certo sentido, essa atividade exemplar foi toda constituída, por alguma razão, num perímetro que está fora da courtoisie . Não se trata apenas de uma impressão inicial. Em Dos Coxos , nenhuma das perícopes exemplares faz qualquer referência ao mundo das grandes cortes da civilité . Na verdade, elas até fazem, pois há, como de praxe, em se tratando dos Ensaios , citações literárias e eruditas. No entanto, os elementos desse mundo civilizado são claramente imantados e cooptados por questões que não pertencem, à primeira vista, ao domínio das grandes cortes. E precisamos entender o contexto dessas experiências particulares para retirar das perícopes sua densidade local 63 .

61 No fim das contas, o tribunal demonológico de Dos Coxos julga (e condena) a figura do próprio tribunal demonológico: uma leitura mais radicalmente cética diria que é este que está em juízo, não a bruxa. 62 “L’apport du Novellino [primeiro exemplo do gênero novella ] est précisément la première mise au point d’un modèle de narration qui parviendra à son degré de maturité avec le Décaméron . Si assurément la nouvelle a partagé avec l’ exemplum les mêmes principes générateurs : la brevitas , la linearitas , la veritas , la delectatio , elle va les traiter de façon originale, de manière à répondre à une finalité interne et à un idéal moral et esthétique d’harmonie et de mesure. Ainsi, la brevitas devient-elle le critère d’appréciation de la virtuosité intellectuelle et discursive du narrateur : le plus souvent la résolution de l’intrigue narrative repose sur la pointe finale ; la linearitas se trouve distendue ou interrompue par des lignes d’action secondaires ou par des effets d’emboîtement d’histoires, l’une dans l’autre ; la veritas ne réfère plus à une Vérité absolue et éternelle : elle consiste dans la vérité narrative, dans l’exploitation ordonnée et cohérente des prémisses ; la delectatio , enfin, se résout désormais dans le ‘plaisir du texte’ ; c’est-à-dire une appréciation de ses qualités narratives, une vérification des capacités combinatoires de son auteur.” (Claude CAZALE -BERARD , “L’ exemplum médiéval est-il un genre littéraire? II. Exemplum et la nouvelle” in Jacques BERLIOZ & Marie Anne POLO DE BEAULIEU , Les Exempla médiévaux: Nouvelles perspectives . Honoré Champion, 2000, pp. 36-37). 63 “Densidade”, como já adiantei mais acima, no sentido dado por Clifford Geertz: “A análise é, portanto, escolher entre as estruturas de significação – o que Ryle chamou de códigos estabelecidos, uma expressão um tanto mistificadora, pois ela faz com que o empreendimento soe muito parecido com a tarefa de um decifrador de códigos, quando na verdade ele é muito 202

Se tratamos aqui de experiências pessoais, o narrador de Dos Coxos , onde ele está? Em qualquer lugar , me parece, pois ele bem sabe que se constroem universos, mundos paralelos, mundos possíveis, onde é perfeitamente plausível se instalar e viver a mentira “na face conforme da verdade”64 :

[B][B][B] Nosso raciocínio é capaz de construir cem outros mundos e descobrir-lhes o princípio e a textura. Ele não precisa nem de material nem de base; deixai-o correr: constrói tão bem no vazio como no pleno, e tanto na inanidade quanto na matéria 65 .

E o narrador viaja, certamente. Ele está sempre alhures. Viaja por esses “cem outros mundos” e descobre neles uma força inaudita, com os poderes da expansão do universo 66 . Em Dos Coxos , a viagem, obviamente, está associada ao plano do deslocamento concreto, mas também ao plano do devaneio e, em última análise, à viagem extática 67 . Como a bruxa do Malleus Maleficarum 68 , o narrador se desloca tanto física quanto intelectualmente, e as frases que reverberam essa lógica de construção são muitas:

* [B] Eu estava agora devaneando [resvassois 69 ] como faço amiúde... (CA, III, 363); mais parecido com a do crítico literário – e determinar sua base social e sua importância.” (Clifford GEERTZ , “Por uma Teoria Interpretativa da Cultura” in A Interpretação das Culturas , p. 19). O caráter complexo dos fatores culturais, seu jogo entrelaçado e superposto, ao mesmo tempo ordinário (isto é, quotidiano e público), mas “irregular e inexplícito” – quer dizer, intraduzível ao mesmo tempo em que comum a todos os que pertencem a uma dada cultura (à maneira do enthymema aristotélico) –, sintetiza, por sua vez, a dimensão densa que subjaz ao trabalho perpetuamente interpretativo proposto por ele. 64 “[B] A verdade e a mentira têm faces conformes, porte, gosto e atitudes iguais: vemo-las com os mesmos olhos” (CA, III, 364). 65 CA, III, p. 364. 66 A força desse construto é tão poderosa que leva mesmo à bizarra pressuposição de uma teoria do big-bang : “ [B] Que pensar do que dizem alguns que os céus se comprimem em nossa direção ao envelhecer e nos lançam na incerteza mesmo das horas e dos dias?” (CA, III, 363). 67 “De vase corporis anima effusa est [A alma sai do envelope corporal]”, diz o Manuscrito A da Visão narrada pelo paysan de Godeschalc, da paróquia de Neumünster (no Holstein alemão), em novembro de 1190. Ver Claude LECOUTEUX , “Le voyage extatique” in Fées, Sorcières et Loups-garous au Moyen-Age , Imago, 2005 4. 68 Cf. cap. V-1, nota 37. Alguns anos depois, [C] acrescentou um allongeail bastante significativo a respeito da viagem extática demonológica: “ [C] Se os feiticeiros sonham assim materialmente, se às vezes os sonhos podem incorporar-se assim em efeitos (...)” (CA, III, 373). 69 O verbo intransitivo resvasser (forma atual rêvasser), formado a partir de resver (rêver ), é atestado desde 1489; e o substantivo feminino resvasserie , desde 1533. O sentido é sempre o de um delirar vago, ou do devaneio. 203

* [B] Presenciei o nascimento de vários prodígios... (CA, III, 365); * [B] O mesmo faríamos com a maior parte de tais coisas se as estudássemos em seu sítio. [C][C][C] “Miramur ex intervallo fallentia [Admiramo-nos das coisas que enganam devido à distância] (Sêneca, Ep . CXVIII)”… (CA, III, 367); * [B] Até agora, todos esses milagres e eventos estranhos vêm se escondendo de mim. Não tenho visto no mundo [o que pode ser entendido literalmente, “em minhas andanças por aí…”] aberração e milagre mais explícitos do que eu mesmo… (CA, III, 367) 70 ; * [B] Passando anteontem por um vilarejo a duas léguas de minha casa 71 … (CA, III, 368); * [B] As feiticeiras da minha redondeza… (CA, III, 370); * [B] Há alguns anos, passei pelas terras de um príncipe soberano… (CA, III, 372).

Mesmo quando a forma do exemplum apelativamente pessoal é momentaneamente abandonada em prol de uma história em terceira pessoa (a primeira pessoa aparece no pronome possessivo, mas no plural), o topos do deslocamento e da viagem retorna sutilmente à montagem da perícope:

[B][B][B] Há pouco tempo um de nossos príncipes 72 , em quem a gota pusera a perder uma bela índole e uma disposição ágil, deixou-se persuadir pelo relato que faziam das maravilhosas atuações de um sacerdote, que por meio de palavras e gestos curava todas as doenças, que fez uma longa viagem para ir ao seu encontro... (CA, III, 366).

E quando um trecho decididamente nada tem a ver com viagens, mas com referências históricas e étnicas claramente literárias (usadas desta vez à maneira dos exemplos funcionalmente ordinários e impessoais, presentes na economia de citações dos Ensaios como um todo 73 ), a saturação oferecida pela repetição dos topoi de deslocamento descritos acima é tamanha que as entendemos na mesma logística, como se o narrador continuasse sua peregrinação sem sair do lugar :

* [B] (…) dizem na Itália, em conhecido provérbio… (CA, III, 374); * [B] Naquela nação feminina [a das amazonas] … (CA, III, 375); * [B][B][B] Essa também é a razão pela qual os gregos… (CA, III, 375);

70 Típico exemplo de contradição textual montaignista, uma vez que, mais acima, o narrador diz ter presenciado “o nascimento de vários prodígios” (CA, III, 365). 71 Uma lieue da Gasconha corresponde a 5,4 km. 72 Jacques de Nemours, sobrinho de Louise de Savoie, acometido de gota durante 35 anos, morreu em 1585, à época da composição provável do ensaio. 73 Cf. nota 14. 204

*** [B][B][B] Torquato Tasso, na comparação que faz entre a França e a Itália… (CA, III, 376).

Esta contaminação “extática” não para aí, ela continua até os estertores da representação material e textual dos próprios meios de deslocamento, presentificados e contrabandeados em citações a princípio alheias ao contexto de viagem:

* [B][B][B] [Segundo Tasso], temos as pernas mais mirradas do que as dos fidalgos italianos (…) [porque] estamos continuamente a cavalo… (CA, III, 376); * [B[B[B][B ]]] Nada há de tão maleável e errático [erratique 74 ] quanto nosso entendimento: é o sapato de Terâmenes, adequado a todos os pés… (CA, III, 376).

Sim, ele viaja. E o que ele descobre? Tal como os navegadores no mar infinito, ele descobre mundos peculiares e bizarros em meio a este outro, lúcido e equilibrado, o mundo instrumentalizado do seu próprio self , este do qual ele parte e para o qual ele retorna (“eu devaneava, como faço comumente”). Dimensões espaço-temporais que, no conjunto, perpetuam a noção de pluralidade de mundos característica do período medieval 75 . Pois o navegador europeu, claro, carrega seu mundo consigo (sua religião, sua política, suas bactérias e seu imaginário) 76 . No sentido inverso ao de Colombo, porém (que se vê diante de dezenas de novidades , canibais, animais fantásticos, florestas luxuriantes, mas se recusa a entendê-las como tal,

74 O termo do moyen français guarda o mesmo ambitus semântico que o termo “errático” em português: denotando ao mesmo tempo confusão e movimento . 75 “Uma das principais características da cosmografia medieval é a admissão da coexistência de sistemas muito diferentes e a manutenção das teorias mais diversas, sem jamais proceder a uma ‘tábua rasa’ que permitiria privilegiar um sistema em relação aos outros.” (Claude KAPPLER , Monstros, Demônios e Encantamentos no Fim da Idade Média [or. 1980], Martins Fontes, 1994, p. 14). 76 “Un des grands intérêts de ces voyages au long cours du XVIe siècle, parmi lesquels je rangerai les voyages imaginaires et utopiques, c’est qu’ils témoignent encore, plus que d’aucune autre aventure, des vicissitudes humaines. Les voyageurs de la Renaissance ont complété, pou la plupart, les informations qu’ils n’avaient pu recueillir sur place et de visu, par des compilations de récits de voyages effectués ou imaginés par d’autres, et notamment par les Anciens, d’Alexandre le Grand à Pausanias, d’Appien à Ptolémée, du mythique Ulysse au réel Strabon. De tels récits confirment les voyageurs modernes dans leurs croyances et donnent à leurs propres relations de voyage une consistance qu’elles n’auraient peut-être pas eue sans eux.” (Jean-Claude MARGOLIN “Voyager à la Renaissance” in Jean CEARD & Jean-Claude MARGOLIN , eds., Voyager à la Renaissance. Actes du Colloque de Tours, 1983 , Maisonneuve & Larose, 1988, p. 17). 205 considerando-as variações do conhecido ou previsões da literatura antiga 77 ), o narrador de Dos Coxos descobre, no conhecido (os índices de familiaridade são claros: “a duas léguas”, “um de nossos príncipes”, “nas minhas redondezas”), a força descomunal das fantasias coletivas: mundos delirantes capazes de se reproduzir de modo incontrolável, e que justamente por isso dão a ele a oportunidade, em moto contínuo, de demonstrar as potências críticas e “desconstrutoras” do seu próprio intellectus (cético e equipolente). Mundos de aquém-mar 78 , onde o nobre provinciano, eventualmente formado na grande corte parisiense, vislumbra as bolhas de alteridade de sua época para além das clássicas minorias medievais 79 , e que, de certa forma, são tão (ou mais) impressionantes quanto às novidades trazidas pelos diários dos novos navegantes. Mundos paralelos das crenças absurdas.

[B][B][B] Passando anteontem por um vilarejo a duas léguas de minha casa, encontrei o lugar ainda inflamado por um milagre que acabara de fracassar ali, pela qual a redondeza fora enganada durante vários meses e as províncias vizinhas começavam a agitar-se e a acorrer em grandes grupos de todos os níveis. Um rapaz do lugar divertira-se, uma noite em sua casa, em imitar a voz de um espírito, sem pensar em outra marotagem além de desfrutar de uma brincadeira momentânea. Tendo se saído nisso um pouco melhor do que esperava, para ampliar com mais recursos sua farsa associou a ela uma jovem aldeã, totalmente bronca e tola; e por fim ficaram em três, de mesma idade e igual inteligência; e de pregações domésticas passaram a pregações públicas, escondendo-se sob o altar da igreja, só falando à noite e proibindo que levassem para lá

77 “Como bem notou Todorov, Colombo era menos um observador infatigável que um infatigável leitor de signos, e os detalhes que ele registra aqui e em outros lugares não constituem tentativas de captar o mundo tal qual este se apresentava a seus olhos, e sim compilações de sinais significativos. A ideia de descoberta acarretando um ato de representação narrativa sustentada e altamente particularizada das diferenças era totalmente estranha a ele; tinha pouco ou nenhum interesse em levar de volta uma descrição rica e circunstanciada das terras que havia descoberto. Antes de seu embarque em 1492, passara anos coletando sinais e semelhante atividade estabeleceu o padrão básico de suas observações posteriores.” (Stephen GREENBLATT , Possessões Maravilhosas [or. 1991], EdUSP, 1996. 78 A literatura de viagem proveniente das Grandes Navegações nos faz esquecer a riqueza dos relatos de viagem intraeuropeus do Renascimento, dos quais o Journal de Voyage de Montaigne, descoberto e publicado no século XVIII, é apenas um exemplo. Para o contexto da viagem no campo, ver Hervé BAUDRY, “Les singularités campagnardes dans la littérature de voyage au XVI e siècle” in Essais sur la Campagne à la Renaissance , 1991 ; e Jean CEARD & Jean-Claude MARGOLIN , Voyager à la Renaissance. Actes du Colloque de Tours, 1983 , Maisonneuve & Larose, 1987. Para o texto de Montaigne, cuja primeira metade foi inteiramente escrita pelo seu secretário, ver François RIGOLOT (ed.), Journal de Voyage de Michel de Montaigne , PUF, 1992. 79 Hereges, bruxos, judeus, prostitutas, homossexuais, leprosos... Ver Jeffrey RICHARDS , Sexo, Desvio e Danação. As minorias na Idade Média [or. 1990], Zahar, 1993. 206

qualquer luz. De palavras que tendiam para a conversão do mundo e ameaças com o dia do juízo final (pois são assuntos sob cuja autoridade e respeito a impostura se abriga mais facilmente), passaram para umas aparições e movimentações tão tolas e ridículas que mesmo na brincadeira das criancinhas dificilmente haverá algo tão grosseiro. Se no entanto a fortuna houvesse desejado favorecê-la um pouco, quem sabe até onde teria chegado essa palhaçada? Os pobres-diabos estão agora na prisão e provavelmente receberão punição pela tolice geral; e nã0 sei se algum juiz neles se vingará da sua própria. Vemos claro nesta, que é evidente; mas em muitas coisas da mesma categoria e que ultrapassam nosso conhecimento, sou de opinião que suspendamos nosso julgamento tanto para rejeitar como para aceitar. (CA, III, 368).

Apesar de exemplar , a perícope pressupõe narradores-intérpretes em primeira instância, pois todo o cenário é remontado, reconstituído de segunda mão 80 . O narrador nos faz a síntese, retoma a história e a resume, pois, quando ele chega lá, “há dois dias atrás”, tudo já havia acontecido: os aldeões já tinham se dado conta das embromações e exigido a cabeça dos idiotas, os jovens estão na cadeia e assim por diante. O narrador só sabe do já acontecido , a história lhe é retrospectivamente recontada como fait divers , e o modo de replicá-la a reinsere mais uma vez na dinâmica apropriativa (exemplar e biográfica) típica do ensaio: foi “há dois dias atrás” (uma dimensão temporal que escapa , a princípio, ao controle do exemplum ), mas o vilarejo fica “a duas léguas da minha casa” (dimensão espacial que o recupera no contexto do exemplum ). Trata-se, porém, de um caso viral. O contágio descontrolado é característico da função replicável do rumor: o que acontece no vilarejo se expande coletiva e centrifugamente, de modo constante.

[B][B][B] Passando anteontem por um vilarejo a duas léguas de minha casa, encontrei o lugar ainda inflamado por um milagre que acabara de fracassar ali, pela qual a redondeza fora enganada durante vários meses e as províncias vizinhas começavam a agitar-se e a acorrer em grandes grupos [troupes] de todos os níveis.

Logo, esta perícope é importante porque contém um forte elemento de síntese em relação ao ensaio como um todo. Pois, em Dos Coxos , não apenas esta, mas todas as perícopes fundadas em exempla (estritamente pessoais ou não) tratam, na verdade, de superstições 81 . E, no ensaio, as superstições agem, por contágio , no contexto do

80 É um cenário similar ao do intérprete de Dos Canibais... 81 A noção de superstição que extraímos desses exemplos não é o moderno conceito estrutural (“As superstições são expressões tradicionais de uma ou mais condições e um ou mais resultados, sendo algumas dessas condições sinais e outras, causas”, Alan DUNDES , “A Estrutura da Superstição” in Morfologia e Estrutura do Conto Folclórico , Perspectiva, 1996, p. 216), 207 rumor 82 : se alimentam dele, e são reproduzidas por ele, tentacularmente, através das “grosses troupes, de toutes qualitez ”, que o replicam, decuplicando sua força. Uma sociedade invadida pela superstição em “todos os níveis” tem todas as tintas paranoicas e conspiratórias que permitem, aos estudiosos dos rumores, linhas de observação interessantes à nossa análise das perícopes exemplares. Quando agrupados em lógicas fechadas em si mesmas, conjuntos autossuficientes de rumores permitem o nascimento de teorias complexas e autoajustáveis – e que, na maioria das vezes, fogem ao controle das estruturas intelectuais institucionalizadas 83 . E seu aspecto sobrenatural, neste caso, se desdobra metacriticamente em função do valor misterioso da geração , das transformações , das evoluções e dos temas dos rumores veiculados pelas perícopes 84 : “troupes, de mas um mais rasteiro, que tende (embora nem sempre seja o caso) a coincidir superstição com “crença popular”, e “popular” com racional ou intelectualmente tacanho. Quer dizer, mais próximo do tipo de definição que Dundes chama de “genética”: a que lida não “diretamente com o material [supersticioso] em si, mas com opiniões sobre ele”, e que depende não só da noção de crença como também “pressupõe elementos de irracionalidade e de temor” – como na formulação de David Bidney: “[Superstição] é uma forma de temor baseada em alguma crença irracional ou mitológica e comumente envolve algum tabu” [BIDNEY , Theoretical Anthropology , 1953, p. 294] apud DUNDES , Op. cit. , p. 213. Em Dos Coxos , o domínio da superstição não está restrito, obviamente, apenas a um contexto popular, pois faz parte da tessitura social em todas as instâncias intelectuais: “[B] É coisa difícil estabelecermos nosso julgamento contrariando as ideias comuns. A convicção inicial, extraída do próprio assunto, apodera-se dos simples de espírito; deles espalha-se para os mais capazes” (CA, III, 366). Michael BAILEY , Fearful Spirits, Reasoned Follies: The Boundaries of Superstition in Late Medieval Europe , Cornell University Press, 2013; Judith DEVLIN , The Superstitious Mind. French Peasants and Superstition , Yale University Press,1988. 82 Uma citação [C] faz referência a isso: “ Insita hominibus libidine alendi de industria rumores [Pela tendência inata que leva os homens a dar livre curso a rumores] (Tito Lívio, XXVIII, 24)” (CA, III, 365). 83 “Les théories du complot peuvent être considérées comme l’expression d’une « sous culture de dissension intellectuelle [Eric ELIASON , “Conspiracy theories”, in BRUNVAND , American Folcklore , p. 157] », une sociologie ou une histoire spontanée cherchant comme les ouvrages de ces disciplines à expliquer de façon significative et juste l’état du monde. La pensée conspirationniste s’inscrit aussi dans une lutte quotidienne pour donner du sens à un monde en changement accéléré. Cette approche interprétative est bien définie par l’expression ‘mythologies contemporaines’, qui désigne « des scénarios regroupant croyances et récits qui sont acceptés puis utilisés pour relier et donner et donner du sens à des événements stressants [Bill ELLIS , Raising the Devil , p. 5] ».” (Véronique CAMPION-VINCENT , La société parano. Théories du complot, menaces et incertitudes , Payot, 2007, pp. 12-13). 84 Mistério que é partilhado pelos estudiosos contemporâneos : “On commence à savoir un certain nombre de choses sur ce que l’on peut appeler la statique des croyances , c’est-à-dire la façon dont elles sont hiérarchisées, rendues approximativement cohérentes et dont elles se défendent face aux démentis de la réalité. On en sait beaucoup moins sur la question de la dynamique des croyances : comment se transforment-elles, comment disparaissent-elles? On ne sait presque rien, enfin, sur la génération des croyances , c’est-à-dire sur leur processus d’émergence sur le marché cognitif.” (Gérald BRONNER , “Une théorie de la naissance des rumeurs” in Diogène , 2006/1 n° 213, p. 108). 208 toutes qualitez ” não somente replicam a história como fazem com que essa replicação se torne, ela mesma, índice maior da verdade do fenômeno replicável.

[B][B][B] É coisa difícil estabelecermos nosso julgamento contrariando as ideias comuns. A convicção inicial, extraída do próprio assunto, apodera-se dos simples de espírito; deles espalha-se para os mais capazes, sob a autoridade do número e da antiguidade dos testemunhos. (CA, III, 366).

Neste sentido, se a idiotia se presta a idiotizar, a tromperie é uma clara vantagem epistemológica dada aos que começaram a história.

Por outro lado, vê-se que a dimensão da anonímia , da pluralização rizomática dos agentes que replicam e reatualizam os rumores, é uma noção obrigatória. Mesmo se os nomes dos agentes são, a princípio, eventualmente conhecidos, a reatualização constante do rumor permite a dissolução das antroponímias sem a necessidade de referenciais precisos, bastando algumas indicações bastante genéricas a respeito do lugar, do tempo, das circunstâncias concretas.

O narrador está ciente dessas imprecisões, constitutivas do contexto do rumor. Em outros lugares do texto, utiliza-as de modo consciente:

[B][B][B] Bem vejo que [eles] se encolerizam e proíbem-me de duvidar, sob pena de injúrias execráveis. Uma nova maneira de persuadir... Graças a Deus, minha credulidade não se maneja a socos. (CA, III, 370-371).

Neste passo, curiosamente, talvez por conta de uma compreensível estratégia defensiva e de proteção do seu próprio nome e reputação, o narrador não diz quem seriam eles que “se encolerizam” e que o “proíbem de duvidar” 85 . Neste sentido, retroalimenta um circuito de imprecisões que é justamente o que pretende, de certa maneira, desmontar quando fala de outras situações.

[B][B][B] É espantoso de quão vãos começos e frívolas causas costumam nascer as opiniões tão divulgadas. Exatamente isso dificulta a investigação sobre elas. (CA, III, 367).

Pois o circuito demonológico (imaginado aqui como uma das facetas do conjunto- universo do supersticioso) era extremamente suscetível a essa proliferação incontrolável do rumor através de testemunhos processualmente pouco consistentes:

85 Villey dá como “eles”, neste caso, os demonólogos representados na figura de Jean Bodin. 209 a maledicência, a boataria e a fofoca são, neste circuito, elevadas à categoria de prova documental 86 . O processo demonológico ordinário (inquisitorial ou laico) não só não exclui esse tipo de improcedência técnica de sua lógica processual como – muito pelo contrário e muito bizarramente para nós – o incorpora : um único testemunho, sem qualquer prova material, poderia servir de detonador a uma série viral e interminável de detenções em cadeia (com duplo sentido), cujo fim era, evidentemente, o de determinar onde estariam eles (os agentes do mal) 87 . E podemos visualizar uma dinâmica ainda mais profunda aqui: pois, para além de um dispositivo rumoroso, esse “eles ” indeterminado e informe (logo, que pode tomar a forma que bem entendermos), transformação do pronome pessoal do caso reto em um pronome de tipo indefinido, o inominado que simboliza o eterno e sempre em suspenso “perigo iminente”, que corrói em surdina o equilíbrio da contexture social 88 , é uma característica fundamental das mais variadas teorias do complô 89 .

Olhando agora as perícopes por esse viés, elas parecem também replicar (jogando conscientemente com a anonímia) o circuito rumoroso da falta de provas: o narrador

86 Pamela STEWART & Andrew STRATHERN , Witchcraft, Sorcery, Rumors, and Gossip , CUP, 2004. 87 “A repressão não começava espontaneamente nas comunidades intelectual, legal e psicologicamente preparadas para vivenciá-la. Alguém – um cidadão, um grupo de aldeões ou um magistrado – tinha de desencadear o processo, acusando ou denunciando alguém ou intimando uma pessoa que se acreditasse ser bruxa. Sendo esse o caso, surge a questão de que eventos específicos davam origem a tais acusações iniciais. Na maioria dos casos, o catalisador era um infortúnio pessoal, interpretado por alguém e seus vizinhos como ato de magia malévola. A morte súbita de uma criança ou membro da família, a contração de uma doença (principalmente de causa ignorada), a perda de um animal da fazenda, a impotência sexual ou o fracasso amoroso, o fogo ou mesmo o roubo levavam a vítima ao infortúnio, num esforço para explicar o ocorrido e se vingar do suposto malfeitor, a atribuir o dano à bruxaria e levar a bruxa à justiça.” (Brian LEVACK , A Caça às Bruxas na Europa Moderna , p. 167). Para a evolução do crime de bruxaria a partir do contexto teológico do final da Idade Média, ver Edward PETERS , The Magician, the Witch and the Law , University of Pennsylvania Press, 1978. A forma e as etapas inquisitoriais de um processo anti-herético (que abarcava também o crime de bruxaria) está bem resumida em Frédéric MAX , Prisioneiros da Inquisição (original francês, Prisonniers de l’Inquisition , 1989), L&PM, 1991, cap. 2. 88 O termo é dos Ensaios . 89 Cenários conspiracionistas “nourrissent la conviction d’être victimes des ‘ils’, des forces obscures, invisibles et toujours à l’œuvre, conviction qui est une attitude quotidienne pour beaucoup” (Véronique CAMPION -VINCENT , La société parano. Théories du complot, menaces et incertitudes , Payot, 2007, p. 13). Evidentemente, não só as massas ignaras são capazes de produzir cenários semelhantes. Encontramos exemplos contemporâneos desse tipo de manipulação da opinião pública em diversos estratagemas de comunicação política, referendadas pelo Estado: “Quando eu era jovem, tratava-se de um mundo perigoso, e sabíamos exatamente quem eram ‘eles ’. Estavam contra nós, era óbvio quem eram ‘ eles ’. Hoje, não sabemos mais com certeza quem ‘ eles ’ são, mas sabemos que ‘ eles ’ estão lá.” (George W. Bush, campanha presidencial norte-americana em 21 de janeiro de 2000 apud Véronique CAMPION -VINCENT , La société parano , p. 7). 210 esteve mesmo naqueles lugares? Viu de fato aquelas pessoas? Interrogou feiticeiros no castelo de “um príncipe soberano”? A imprecisão das frases de contexto marcam uma característica da dimensão conteuse , o in illo tempore de uma diegese fora do tempo mas que negocia com o tempo atual 90 . Nossa noção atual de autenticidade jornalística, embora proteja a origem da informação (as “fontes”), não poderia existir sem a nominação clara do contexto e dos acusados. Mas onde então fica esse vilarejo “a duas léguas”? A se identificar, pelo ato signatário, o narrador com o habitante do château de Montaigne, ainda assim, fazendo-se um círculo com este raio em torno da torre do castelo, poderíamos apontar dezenas de “vilarejos a duas léguas” de lá: Villefranche-de-Lonchat, Puisseguin, Saint-Genès-de-Castillon, Sainte-Colombe, Flaujagues, Montpeyroux, Vélines 91 ... Além disso, nenhum dos causos recolhe o nome real dos protagonistas, mesmo quando são possivelmente reconhecíveis: se há apenas conjecturas se esse “príncipe soberano” seria mesmo Charles de Lorraine, o “Príncipe com a Gota” poderia, ao que tudo indica, ser Jacques de Nemours (cuja longa doença era conhecida em sua época), mas ele nunca é nomeado; e, o que não deixa de ser sintomático, mesmo o famoso Arnauld du Tilh foi paradoxalmente reanonimizado dentro desse tempo neutro sepulcral e absoluto criado na articulação das perícopes.

Entretanto, quando o narrador, no mundo de seu texto, diz que viaja por uma terra em que um “príncipe soberano” acredita em bruxas... isso significa dizer que esse

90 A expressão por si só, ao menos para nós, já remeteria ao contexto do maravilhoso. Mas ao lhe associarmos o tema geral da perícope (bruxaria), o “príncipe sem nome” e sua superstição (ele acreditar em bruxas já é, em si, um encantamento em formato metapoético) nos permitem fazer a mais clássica das associações do conto de fadas e do folclore: “The main protagonists of magic tales are type characters: penniless boys or girls, nameless princes and princesses. The fantasy figures appear as animals, goblins, trolls, witches, spirits, dead people, devils, or human actors endowed with marvelous and incredible abilities.” Ao que podemos acrescentar, claro, as marcas de indeterminação no tempo e no espaço (o “era uma vez”, o “em certo país”) como reforço dessa dimensão diegética geral do maravilhoso: “Even though the magic tale is a prose narrative, it may include poetic lines or songs. Openings and closings are often formulaic: ‘Once upon a time’ and ‘Then they lived happily ever after’ transport the storyteller and audience in and out of the fictitious world. A familiar feature of this type of folktale’s style and structure is repetition: the presentation of the same element in two or three versions.” (Satu APO , “Magic Tale” in Thomas GREEN , Folklore. An Encyclopedia of Beliefs, Customs, Tales, Music and Art , p. 530). 91 Embora eu não esteja a par, é bem provável que os Amis de Montaigne , em Bordeaux, tenham especulado a respeito e descoberto pistas irrefutáveis de qual lugarejo seria esse “a duas léguas” de distância. Neste caso, pouco importa, uma vez que o texto voluntariamente o esconde (o que sinaliza uma estratégia clara) e pelo fato dos moradores das “províncias vizinhas” também acorrerem até lá. Dentre esses “vizinhos”, aliás, está nosso narrador-viajante: que pode ter ido ao lugarejo por acaso (como parece sugerir pelo “caminhava eu...” tipicamente conteur ) ou especialmente para investigar o rumor (e não querer confessá-lo). 211 seu mundo foi, vertical e horizontalmente, contaminado por dispositivos mágico- esotéricos: onde o indivíduo supersticioso está preso num aparelhamento sinestésico, de um hermetismo feroz, e que não se restringe a um contexto puramente simbólico. É de uma realidade bastante concreta que se trata aqui. Tal como o ensorcellé do Bocage, analisado por Favret-Saada, o supersticioso de Dos Coxos na verdade é um conjunto : seja porque o diagnóstico da feitiçaria (como o da superstição) só acontece após um crescendo de signos e acontecimentos que vão do corpo ao oikos 92 e, não raro, se dissemina entre a população; seja porque a superstição precisa da chancela do grupo e da comunidade para se perceber como real e sacramentar a sua eficácia 93 .

A casuística (aporética) de Dos Coxos termina por estabelecer a crítica radical desse universo de tolices, é claro, mas, se deixarmos as mesmas histórias transpostas num contexto teológico e crente (ou seja, se não forem esvaziadas previamente por nenhum tipo de dispositivo cético), elas sinalizarão as clássicas marcas categoriais do final dos tempos : milagres, prodígios (mortos ao nascer), feiticeiros, monstros (na figura de uma deficiente física, idealizada de modo quase pornográfico 94 ), signos claros de que há algo errado com o mundo conhecido.

92 “Dans le Bocage, comme ailleurs en France, les malheurs ordinaires sont expliqués un par un : une maladie et une seule, la perte d’une bête, une faillite, une mort même n’entraînent pas d’autre commentaire que singulier : « ce qu’il a, c’est qu’il boit trop » ; « elle avait un cancer du rein » ; « ma vache était si vieille ». L’attaque de sorcellerie, elle, met en forme le malheur qui se répète et qui atteint au hasard les personnes et les biens d’un ménage ensorcelé; coup sur coup, une génisse qui meurt, l’épouse qui fait une fausse couche, l’enfant qui se couvre de boutons, la voiture qui va au fossé, le beurre qu’on ne peut plus baratter, le pain qui ne lève pas, les oies affolées ou cette fiancée qui dépérir... Chaque matin, le couple s’angoisse: « Qu’est-ce qui va ’core arriver? » Et, régulièrement, quelque malheur advient, jamais celui qu’on attendait, jamais celui qu’on pourrait expliquer.” (Jeanne FAVRET -SAADA , Les mots, la mort, les sorts , Gallimard, 1977, p. 20). 93 “Marge, é preciso mais de um para mentir”, diz Homer Simpson a sua esposa: “Um para mentir e outro para acreditar” (em Itchy & Scratchy: The Movie , sexto episódio da 4ª temporada de Os Simpsons , seriado da Fox, exibido em 3 de novembro de 1992). Esse valor estrutural da mentira, que existe em duas faces complementares e necessárias, também é o do circuito supersticioso – que, de qualquer modo, podemos especular dentro das coordenadas possíveis fornecidas pelas perícopes. Neste caso, penso eu, é Lévi-Strauss quem oferece a formulação mais precisa: “Não há, pois, razão de duvidar da eficácia de certas práticas mágicas. Mas, vê-se, ao mesmo tempo, que a eficácia da magia implica na crença da magia, e que esta se apresenta sob três aspectos complementares: existe, inicialmente, a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; em seguida, a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam a cada instante uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça.” (Claude LÉVI -STRAUSS , “O Feiticeiro e sua Magia” in Antropologia Estrutural , Tempo Brasileiro, 1974, p. 194). 94 Explorarei a perícope da mulher coxa mais abaixo. 212

Ao relermos Dos Coxos na sequência ordinária, tomando por base a perspectiva da perícope calendárica inicial, vemos claramente como o texto se move numa antítese em longo arco: a dimensão estática do mundo camponês aos poucos foi sendo contrabalançada pelo contínuo e nervoso movimento dos exempla . O narrador valoriza o tempo imutável do campo, mas está consciente da fugacidade do mundo ao seu redor e dos costumes, acentuando uma logística de instabilidade pelo deslocamento. Neste caso, apesar de investir inicialmente na tranquilitas campestre, sua outra perspectiva ( noturna , por assim dizer), seu outro vetor estrutural, é a desestruturação deste mesmo mundo.

Em outras palavras, podemos entender o ensaio inicialmente numa dinâmica pastoral, edênica, imperturbável, a do Jardim das Delícias ou a do Paraíso 95 . Enquanto isso, sua lógica de reverberação o conduz gradualmente ao seu oposto , às angústias proféticas do Apocalipse 96 . Oposto necessário , porém, à reconquista do

95 A noção ordinária que temos do Paraíso – um jardim de delícias onde o tempo é imobilizado na bonança e no bem-estar – é antiga e foi concebida por civilizações que, paradoxalmente, não cultivaram “jardins”, tal como o termo é entendido hoje. Evidentemente, culturalmente informados por um cristianismo difuso, entendemos hoje o Paraíso como uma dimensão do Céu, logo, uma categoria etérea, localizada num plano divino ou supra-humano. Importa dizer, no entanto, que as primitivas versões do Paraíso não são exógenas ao mundo natural: ao contrário, elas estão no plano da natureza; melhor ainda, elas são , de fato, a natureza, a natureza por excelência, plena e estável que remete aos primórdios da criação mítica do mundo. Em outras palavras, o Paraíso tem uma materialidade concreta e até bastante ordinária: é algo que acontecerá na Terra , como uma compensação material por serviços prestados ou coisa assim. Daí a formulação do Paraíso como um jardim. Embora, neste caso, a mitologia cristã derive, em grande parte, da judaica, o Céu cristão é um elemento compósito, historicamente construído em função de crises teológicas diversas e dependente de orientações e interesses diferentes (místicos, catequéticos etc.). Ver Colleen MCDANNELL & Bernhard LANG , Heaven, a History , Yale University Press, 1988. Entendido deste modo, trata-se do jardim do eterno extrativismo sem esforço – completamente expurgado de qualquer dimensão agrária, quer dizer, do trabalho infinito, difícil e quotidiano na terra, o arado, a capina, a colheita, o estoque, a conservação. Neste aspecto, o Paraíso judaico, tanto quanto o cristão, são pastorais. Mas, claro, apenas num dos sentidos possíveis do que se entende por pastoral: só depois de esvaziado de deuses pagãos e divindades extras (salvo os anjos) terá pontos em comum com o dispositivo virgiliano (não esquecendo de excluir-lhe também sua forte carga erótica). 96 “Apocalypse , a Greek word meaning revelation or unveiling, is thus that discourse that reveals or makes manifest a vision of ultimate destiny rendering immediate to human audiences the ultimate End of the cosmos in the Last Judgment. Apocalyptic eschatology argues for the imminence of this Judgment, in which good and evil will finally receive their ultimate reward and punishment.” (Stephen O’L EARY , Arguing the apocalypse: a theory of millennial rhetoric , OUP, 1994, pp. 5-6). 213

Paraíso? Poderíamos supor que sim – o que seria coerente, a princípio, com uma formulação clássica do cristianismo milenarista 97 .

Em todo caso, é fácil ver essa transmutação da estabilidade edênica inicial de Dos Coxos em descalabro apocalíptico, pois é a mesma gradação que estrutura a perícope dos ventríloquos: a instância jocosa inicial, caracterizada pela infantilidade (da ação e da idade, referência irônica à inocência paradisíaca ) dos trompeurs...

[B] Um rapaz do lugar divertira-se, uma noite em sua casa, em imitar a voz de um espírito, sem pensar em outra marotagem além de desfrutar de uma brincadeira momentânea.

... se amplifica, em número e grau, pelo seu próprio sucesso...

[B] Tendo se saído nisso um pouco melhor do que esperava, para ampliar com mais recursos sua farsa associou a ela uma jovem aldeã, totalmente bronca e tola; e por fim ficaram em três, de mesma idade e igual inteligência.

... vai pouco a pouco ganhando uma dimensão mais grave, anunciando alguns topoi escatológicos clássicos...

[B][B][B] (...)(...)(...) e de pregações domésticas passaram a pregações públicas, escondendo-se sob o altar da igreja 98 , só falando à noite e proibindo que levassem para lá qualquer luz 99 .

97 Paradoxo importante: para nós, embora o Paraíso seja esse território de incontáveis benesses (o locus amoenus , o hortus deliciarum , lembrando uma época de ouro do homem em seu estado puro e perfeito, quer dizer, uma categoria edênica ), é, cristianamente falando, também um dos signos pós-apocalípticos do Juízo Final, localizado no fim de um processo conhecido como o Milênio (neste caso, uma categoria, desculpando aqui a tautologia, milenarista ). Em ambos os casos, embora tenha uma importância ontológica primordial, o Paraíso é textualmente adiáforo. Marca de uma conquista ou marca de uma perda, ele existe como um acessório, um grande espetáculo secundário: perde-se ou ganha-se o Paraíso, mas o que interessa ao homem é por que se saiu dele ou como se chega até lá. Por outro lado, se o Paraíso é um bem, ele só pode sê-lo em relação ao mal, expressando um dualismo bastante maniqueísta, que implica e se realiza plenamente na ideia de justiça divina, de vingança e de compensação: seja porque o homem primordial foi punido (e perdeu seu lugar natural no hortus deliciarum ), seja porque os outros foram punidos (e o homem sobrevivente, o perseverante, o digno de fé, o ganhou). Isso, de certa forma, também vale no ideário imperial romano pré-cristão: quando o desejo pastoral se instaura, quando se instaura o desejo de um décor literário idealizado e estável da vida no campo, é porque a vida lá, no concreto mundo cortesão onde está o poeta pastoral, se encontra diretamente ameaçada. 98 No contexto da perícope, a referência ao “embaixo do altar” ganha um colorido escatológico bastante sugestivo: “Quando [o Cordeiro apocalíptico] abriu o quinto selo, vi, debaixo do altar [θυσιαστηρίου], as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra 214

... até materializar referenciais abertamente apocalípticos...

[B] De palavras que tendiam para a conversão do mundo e ameaças com o dia do juízo final (pois são assuntos sob cuja autoridade e respeito a impostura se abriga mais facilmente)

... e finalmente receber o tratamento cético e o selo da tolice, a qual, por sua vez, permite o retorno das categorias edênicas da infância...

[B][B][B] passaram para umas aparições e movimentações tão tolas e ridículas que mesmo na brincadeira das criancinhas dificilmente haverá algo tão grosseiro

O contexto no qual essas marcas ocorrem nos permite, por outro lado, repensar um outro valor da perícope calendárica, fundamental na estrutura dessa modulação edênico-escatológica: pois a materialização do tempo é importante tanto na agricultura (neste caso, temos as estações, os períodos de colheita e de repouso da terra etc.) quanto na apocalíptica (a partir, claro, de outros elementos) 100 . Que outros elementos? Todos os cristãos aprendem que o fim do mundo tem data certa, ainda de Deus e por causa do testemunho que sustentavam” (Apocalipse , 6:9-11). É importante lembrar que o espaço sagrado da igreja não estava livre de sofrer ações consideradas sobrenaturais, ou mesmo demoníacas. Seja porque ele se solidarizaria com os supostos rituais sabáticos, que invertiam diabolicamente o cerimonial clássico (altares com crucifixos de cabeça para baixo, beijos no traseiro do demônio, hóstias feitas com cadáveres de crianças pagãs etc.); seja porque, sobretudo no campo, a missa era o momento por excelência das relações sociais (logo, dos conjuros, pragas, sortilégios que dependiam da presença física dos agentes diante de suas potenciais vítimas). “A igreja é o lugar de predileção onde se exerce a atividade satânica.” (Robert MANDROU , Magistrados e Feiticeiros na França do século XVII , p. 70). 99 A dialética entre luz e escuridão , que se descortina sutilmente aqui, é um topos evangélico dos mais importantes (Mt 6:23, Lc 11:36 e sobretudo em diversas passagens de João, como por exemplo Jo 8:12: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida”). Remete a um fundo judaico-escatológico (o típico milieu teológico do Segundo Templo, como por exemplo em Qumran , 1QS, Col. III [O imperfeito “não será justificado enquanto segue a obstinação de seu coração, pois contempla as trevas com o caminho da luz”] e Col. X, onde toda uma relação poético-ritual se estabelece entre o “começo do domínio da luz” e “o começo da vigília das trevas”), partilhado e reconfigurado por todas as tendências apocalípticas cristãs posteriores. Importa notar que, em outras passagens joaninas, a relação entre luz e escuridão se deixa traduzir também por uma imagética espacial, entre o em cima e o embaixo (“Vós sois daqui de baixo, e eu sou do alto. Vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo”, Jo 8:23), imagética que podemos igualmente ler no trecho da perícope, uma vez que os que enganam a comunidade e exigem as trevas estão “escondidos embaixo do altar”. 100 Em todo caso, a dinâmica de eterna circulação do narrador, impressa a partir das perícopes exemplares, nos permite repensá-las também à luz do tempo : pois, segundo a clássica proposição de Aristóteles, o tempo é “a medida do movimento” – ou mais precisamente, “o número do movimento de acordo com um antes e um depois” (Física IV, 11, 219 b 1-2). 215 que esta seja um mistério para a humanidade: pois se trata de uma relação que não é astronomicamente (ou matematicamente, ou institucionalmente) mensurável. Não é exatamente nos números que compõem o calendário que temos o seu esquema definidor: é através dos signos apocalípticos (que o corporificam ) que o homem entende estar num tempo anormal 101 , o aeon , o αἰών οὗτος , quer dizer, este tempo, mas que, por conta desses signos corporificados, anuncia a “segunda época” por vir 102 . Logo, a inserção de Dos Coxos num ambiente explicitamente apocalíptico (se irônico ou não, é outro problema) enquadra (e transforma) as perícopes numa taxonomia casuísta que se apropria desses elementos numa dinâmica narrativa e intelectual precisa, e que doravante pode perfeitamente ser entendida nesse movimento interno e oscilante entre o pastoral e o milenarista. E não precisamos aceitá-la, aqui, como mero delírio especulativo, pois, desde sempre, a apocalíptica é um sistema maleável, resiliente e de longo alcance 103 .

Dito de outro modo, o tempo anormal tem uma relação estrutural com as notícias que chegam: são os prodígios e os portentos (e é essa a sua materialidade , muito mais evidente e profunda que a oferecida pela teologia oficial) que nos informam a realidade deste tempo e a proximidade escatológica do tempo prestes a ser cumprido. Se considerarmos o mundo e o tempo civil de hoje, por conta de mecanismos que conhecemos bem (web, redes sociais, TV, radio, isto é, um mundo/tempo saturado de informação ), podemos contrastar o mundo de Dos

101 Gabriel MOTZKIN , “Abnormal and Normal Time: After the Apocalypse” in Albert BAUMGARTEN (ed.), Apocalyptic time , Brill, 2000, pp. 199-214. 102 “The essential feature of the Apocalytic is its dualism which, in various expressions dominates its thought-world. Above all, in the doctrine of the Two Ages, in the dualistic time- scheme of world eras ( ὁ αἰών οὗτος [esta era] and ὁ αἰών μέλλων [a era por vir]), the entire course of the world is comprehended. This Age is definitely detached form the Age to come , and therefore the words this and to come are not simply time-divisions, but have a qualitative significance: this Age is temporary and perishable, the Age to come is imperishable and eternal. This idea first becomes explicit as a theory in the later Apocalyptic ( 4 Esd and syr. Bar.), but it is in fact present already in the oldest apocalypses.” (Philipp VIELHAUER & Georg STRECKER , “Apocalypses and related subjects, Introduction” in Wilhelm SCHNEEMELCHER (ed.) New Testament Apocrypha , Vol. 2, Westminster John Knox Press, 2003, p. 549). 103 “The Jewish apocalypses were not produced by a single ‘apocalyptic movement’ but constituted a genre that could be utilized by different groups in various situations. This genre was characterized by a conventional manner of revelation, through heavenly journeys or visions, mediated by an angel to a pseudonymous seer. It also involved a conceptual framework which assumed that this life was bounded by the heavenly world of the angels and by the prospect of eschatological judgment. This conceptual framework is a symbolic structure that can be given expression through different theological traditions and with varying emphases on the pattern of history or the cosmology of the heavenly regions.” (John COLLINS , The Apocalyptic Imagination, An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature , Dove Booksellers, 1998 2, p. 280). 216

Coxos , sob esse tempo anormal da superstição apocalíptica, como um mundo/tempo de relativamente poucas informações , mas paradoxalmente saturado de signos . Para todos os efeitos, ele é um mundo palpável (concreto, plausível, navegável, deambulatório, ao alcance dos pés e do cavalo), mas ontologicamente construído por sinais apocalípticos, inflacionado por signos e portentos, representado essencialmente como um mundo possível : em movimento e perigosamente em expansão, mas paralelo, decomponível em perícopes e que pode perfeitamente ser desconstruído através de dispositivos céticos. A crença e a quantidade dos atores que o constituem definirá o seu grau de realidade:

[B][B][B] É lamentável estarmos numa situação tal que a melhor pedra de toque da verdade seja o imenso número de crentes, numa multidão em que a quantidade de loucos é tão maior que a de sábios. (CA, III, 366).

Retrato de uma “epistemologia social” que serve tanto para denunciar o universo de factoides inerentes às superstições quanto para acusar, numa relação indireta, mas possível, o universo de crenças do próprio cristianismo – uma vez que este permite, a partir de uma logística teológica incompreensível para o “imenso número de crentes” e uma nomenclatura que lhe é própria, a criação de mundos (supersticiosos) correlatos.

Essa epistemologia não é sempre negativa. Se, para o narrador, as superstições cristalizam o pior do mundo social, uma phronesis popular (tal como a phronesis campestre do “vizinho que sabe a hora da semeadura”) pode ser valorizada a partir de outras experiências concretas. E, em Dos Coxos , sua materialização se dá pelo provérbio .

[B][B][B] A propósito ou fora de propósito, não importa, dizem na Itália, em conhecido provérbio, que não conhece Vênus em sua perfeita doçura quem não deitou com mulher manca. O acaso ou algum acontecimento particular puseram essas palavras na boca do povo há muito tempo; e diz-se dos homens como das mulheres. Pois a rainha das amazonas respondeu ao cita que a convidava para o amor: ἄριστα χολός οἰφεῖ, “O manco é quem faz isso melhor”. Naquela nação feminina, para evitar a dominação dos homens, elas os aleijavam na infância – braços, pernas e outros membros que lhes davam vantagem sobre elas – e serviam-se deles apenas para o que nos servimos delas deste lado. Eu teria dito que o movimento desconjuntado da manca acrescenta a atividade sexual algum prazer novo e um auge de doçura aos que o experimentam, mas acabo de saber que a própria filosofia antiga já decidiu sobre isso: ela diz que, como as pernas e as coxas das mancas, por causa de sua imperfeição, não 217

recebem o alimento que lhes é devido, advém que as partes genitais, que ficam acima, são mais cheias, mais nutridas e vigorosas. Ou então que, como esse defeito impede o exercício, os que são marcados por ele dissipam menos as forças e chegam mais robustos aos jogos de Vênus. Essa é também a razão pela qual os gregos proclamavam que as tecelãs eram mais ardentes que as outras mulheres: por causa do trabalho sedentário que fazem, sem muito exercício do corpo. A esse preço, sobre o que não podemos discorrer? Destas eu poderia dizer também que os estremecimentos que seu trabalho lhes provoca assim sentadas as desperta e solicita, como fazem às damas o balanço e o de seus coches.

Não servem esses exemplos para o que eu dizia no início – que frequentemente nossas razões antecipam o fato e têm tão infinita a extensão de sua jurisdição que julgam e se exercem mesmo na inanidade e na inexistência? Além da flexibilidade de nossa fantasia em forjar razões para toda espécie de sonhos, nossa imaginação presta-se com igual facilidade a acolher impressões da falsidade por aparências bem frívolas. Pois, pela simples autoridade do uso antigo e conhecido desse provérbio, outrora pus-me a crer que recebera mais prazer de uma mulher porque ela era defeituosa, e coloquei isso na lista de suas graças. (CA, III, 374- 376).

No contexto renascentista, a deficiência física não é necessariamente um distúrbio teratológico, pois pode ser adquirida por diversos motivos – dentre os quais um ferimento de guerra ou uma doença. É importante termos essa distinção no horizonte, pois, ao menos em Aristóteles, todas as questões em torno da monstruosidade giram em função da reprodução e da determinação genética entre indivíduos de um mesmo gênero – quer dizer, do ponto de vista da espécie considerada como um todo ou ao menos na geração de pai para filho –, e não exatamente da simetria das partes de um mesmo indivíduo tomado em relação a si mesmo 104 . Neste sentido, o monstro aristotélico não é necessariamente feio ou

104 “[767 a 35] III. As mesmas causas [debatidas até aqui ] explicam que alguns produtos pareçam com os pais e outros não; que uns pareçam com o pai e outros com a mãe, [767 b] tanto no conjunto do corpo quanto em cada uma das partes; que eles se assemelhem mais aos pais que aos ancestrais, e a estes últimos mais que ao primeiro de toda sequência; que os machos se assemelhem antes ao pai e as fêmeas à mãe; que, em alguns casos, os filhos não se assemelhem a ninguém na família, mas tenham, entretanto, uma forma humana; que outros não tenham nem mesmo aparência humana, mas já a de um monstro. Aliás, aquele que não se assemelhe aos pais é já, em certo sentido, um monstro: pois, neste caso, a natureza, em certa medida, se desviou do tipo genérico [ quer dizer, do tipo mais comum ]. O desvio mais fundamental [ quer dizer, o mais básico na questão da diferenciação de sexos ] é o nascimento de uma fêmea em lugar de um macho. Mas ela é necessitada pela natureza, pois é preciso salvaguardar o gênero de animais onde machos e fêmeas são distintos [ quer dizer, sem fêmeas as espécies não poderiam se reproduzir e as 218 disforme em si, apenas difere dos outros indivíduos que, tomados em conjunto, constituem o curso normal da sua espécie 105 . Entretanto, as mulheres coxas, altamente erotizadas, são valorizadas na perícope como um verdadeiro prodígio , digno dos livros de mirabilia – o que talvez seja interessante acentuar.

Por outro lado, o mero fato do texto mencionar a existência de uma sexualidade no quadro handicapé já indicaria um campo importante de análise. Mas fazer tal sexualidade superior à da maioria normatizada é ainda mais sugestivo e particular, uma vez que, ao menos entre nossos leitores contemporâneos, o deficiente físico tende a ser visto também como sexualmente deficiente 106 . O debate atual a respeito da sexualidade handicapé é rico e implica frequentemente um contexto de “representatividade das minorias”, o que não seria de todo descartável na hermenêutica da perícope e que poderia fornecer outras pistas de interpretação ao ensaio como um todo 107 . No que diz respeito à letra do texto, porém, a sexualidade exponencial da mulher coxa de Dos Coxos é apresentada numa espécie de imbróglio espécies seriam extintas ].” (ARISTÓTELES , Geração dos Animais , IV, 767 a 35 e ss). Passos que informam a posteridade da discussão teratológica ocidental no Renascimento. Para um resumo do contexto, ver Claude LECOUTEUX , Les monstres dans la pensée médievale europeéenne , Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 1993. 105 Esta definição aristotélica é seguida por Paré, que, a partir dela, estabelece a diferença fundamental entre monstro (o que ocorre fora do curso normal da Natureza) e prodígio (o que ocorre contra o curso normal da Natureza): “Monstres sont choses qui apparoissent outre le cours de Nature (& sont plus souvent signes de quelque malheur à advenir) comme un enfant qui naist avec un seul bras, un autre qui aura deux testes, & autres membres, outre l’ordinaire. Prodiges , ce sont choses qui viennent du tout contre Nature, comme une femme qui enfantera un serpent, ou un chien, ou autre chose du tout contre Nature (...)” (Ambroise PARÉ , Préface à Des Monstres & Prodiges , in Oeuvres , Paris, Gabriel Buon, 1585). 106 “(...) disabled people have usually been degendered and regarded as asexual, and we felt that the literature on disability had an absence around sexuality. There are various dimensions to this. Traditional literature on disability has been discredited by the emergence of the disability movement and the disability studies perspective, which is based on the social model and a disability equality approach rather than a medical tragedy assumption. While there are books which discuss disability and sexuality, they fall within the limitations of the traditional literature.” (Tom SHAKESPEARE , “Researching Disabled Sexuality” in Colin BARNES and Geof MERCER (eds.) Doing Disability Research , Leeds, The Disability Press, 1997, pp. 177-189). 107 Para questões de ordem clínica e da prática assistencial, ver Elaine COOPER & John GUILLEBAUD , Sexuality and Disability , Radcliffe Medical Press, 1999; para um contexto mais teórico, ver Robert MCRUER & Anna MOLLOW (eds.), Sex and Disability , Duke University Press, 2012; e também, com temática mais abrangente, Carrie SANDAHL & Philip AUSLANDER , Bodies in Commotion. Disability & Performance , The University of Michigan Press, 2005. O handicapé entendido na lógica pós-moderna do cyborg (“Perhaps paraplegics and other severely handicapped people can (and sometimes do) have the most intense experiences of complex hybridization with other communication devices”, Donna HARAWAY , “A Cyborg Manifesto” in Simians, Cyborgs, and Women , p. 178) foi criticado por Alison KAFER , Feminist, Queer, Crip , Indiana University Press, 2013. Uma história do handicapé , Henri-Jacques STIKER , Corps infirmes et sociétés , Dunod, 2013³. 219 entre o exemplum pessoal (confissão) e a epistemologia social (provérbio). Podemos, a partir da mulher coxa, assumir uma dinâmica informacional em Dos Coxos – que reflete, na verdade, a materialidade narrativa própria à época de sua escrita.

No século XVI, éditos, ordonnances , déclarations etc. são veículos de comunicação do poder real. Arrests , comentários, são veículos dos juristas. Bulas, tratados, homilias etc. são veículos do poder eclesiástico. Obviamente, tais veículos não tratam de qualquer tema, são normalmente centrados no que sua natureza específica determina. O diálogo filosófico, por sua vez, bem como o recém-nascido ensaio , podem virtualmente trabalhar todas essas questões. As memórias e crônicas funcionam como veículos ao mesmo tempo aristocráticos e históricos. Quando se trata, porém, de compreender como as “massas populares” 108 transmitiam informações (e de como essas informações funcionavam na prática), encontramos diversos problemas de representação: a carência de alfabetização, logo, da transmissão escrita da informação, está em sua linha de frente 109 . Não poderia explorar aqui os vetores e pressupostos que informam a teoria da história oral – que, ao menos em uma de suas correntes mais conhecidas, tentam dar forma e consistência às vozes opacas dessas camadas 110 . Mas alguns historiadores do período medieval e do Renascimento sustentam, com boas razões, que provérbios e rumores são para nós como que negativos fotográficos e indiretos dessas informações, documentos a partir dos quais temos acesso mais ou menos consistente às opiniões do “vulgo” no Ancien Régime . Provérbios, neste caso, são documentos folclóricos, no sentido mais estrito do termo 111 .

Vimos mais acima que, por razões de ordem prática, os predicadores medievais coletavam anedotas para o uso em homilias. No mesmo sentido, existiam coletâneas de provérbios da mesma maneira que coletâneas de exempla , mas as paremiografias da Idade Média não se restringiram a um uso eclesiástico 112 . Embora muitos poetas

108 A famigerada expressão tem sentido, porém, em nosso contexto pois é sempre do ponto de vista do narrador aristocrata que temos notícia de sua realidade. 109 Michel BALARD (ed.), La circulation des nouvelles au Moyen Age , Publications de la Sorbonne, 1995; Nicolas OFFENSTADT (ed.), Information et société en Occident à la fin du Moyen Age , Publications de la Sorbonne, 2005; Pierre NOBEL (ed.), La transmission des savoirs au Moyen Age et à la Renaissance , 2 Vols., Presses Universitaires de Franche-Comté, 2005. 110 Paul THOMPSON , The Voice of the Past. Oral History . OUP, 2000³; Robert PERKS & Alistair THOMSON (eds.), The Oral History Reader , Routledge, 1998. 111 Wolfgang MIEDER , Proverbs: a handbook , Greenwood Press, 2004. 112 Hugo BIZZARRI & Martin ROHDE , Tradition des proverbes et des exempla dans l’Occident médiéval , Walter de Gruyter, 2009; Marie-Thérèse LORCIN , Les recueils de proverbes français: 1160-1490. Sagesse des nations et langue de bois , Honoré Champion, 2010; 220 medievais tenham feito uso de sentenças de cunho proverbial – neste caso, o repertório provém do vernáculo, mas não necessariamente do meio popular 113 –, as fontes das coletâneas contemporâneas de provérbio propriamente ditas são, essencialmente, de criação popular. Das mais conhecidas, os Proverbes au vilain (1180) são os mais antigos 114 , seguidas do Dit de l’Apostoile 115 , e sobretudo dos Proverbes ruraux et vulgaux (séc. XIII) 116 , antologia de quinhentos provérbios, em sua maioria de cunho popular. O título dado a esta última coletânea é sintomático. Na época de compilação desse material, “popular” é sinônimo de “rural”, ao menos nas estratégias retóricas que definem o propósito das antologias; e os dois adjetivos se conjugam com um terceiro, praticamente inseparável: equivalem a dizer que os provérbios são anônimos 117 . Essa relação entre o “popular” e o “savant ” é complexa demais para ser reduzida numa discussão de dois parágrafos, claro, mas os medievalistas sabem que o uso dos provérbios “populares” por classes aristocráticas (e eventualmente classes clericais) tinha, entre outras coisas, um caráter performativo: ajudaram a construir e singularizar identidades culturais

113 “Les proverbes sont familiers aux plus anciens monuments de la langue [francesa]. Les chansons de geste n’en sont pas dépourvues; on en trouve dans les fabliaux, dans l’ancien théâtre. Ils abondent au XIV e dans [Eustache] Deschamps et ses contemporains. Pendant les XIV e et XV e siècles, les poètes terminent souvent leurs strophes par un proverbe et ce procédé est encore suivi par Charles d’Orléans. Mais là, comme ailleurs, il s’agit de sentences plutôt que de proverbes proprement dits. Il faut arriver à Coquillart et surtout à Villon pour rencontrer toute une ‘Ballade en proverbes’.” (L. SAINEAN , La Langue de Rabelais , Vol. I, De Boccard, 1922, pp. 356-357). 114 “Les Proverbes au vilain , poème composé vers 1180, renfermant les dictons du menu peuple du XII-XIII siècle, le plus ancien monument de la parémiologie française. Il fut imité par le comte de Bretagne, Pierre Mauclerc (1213-1250), mais ce poème, divisé en strophes de 6, 8 et 9 vers, n’offre qu’une suite de maximes morales, alors que le texte original est d’une teneur foncièrement populaire.” (SAINEAN , La Langue de Rabelais , Vol. I, p. 357). A edição clássica é a de Adolf TOBLER (ed.), Li proverbe au vilain. Die Sprichwörter des gemeinen Mannes: Altfranzösische Dichtung nach den bisher bekannten Handschriften , S. Hirzel, 1895. 115 G. -A. CRAPELET , Proverbes et dictons populaires au XIII e siècle, l’Apostoile, etc , Paris, 1831. “Le Dit de l’Apostoile , c’est-à-dire le Dit du Pape , du XIII e siècle, proverbes et dictons souvent appliqués aux provinces et villes, constituant ainsi le plus ancien document du Blason populaire.” 116 BNF Fr 25545. 117 “Os provérbios têm mesmo origem camponesa? Claramente, a autoridade da coletânea [os Proverbes ruraux et vulgaux ] dependia que os leitores assim o acreditassem, mas os organizadores não dizem precisamente onde ouviram ou viram os ditos sendo usados. É muito provável que alguns dos provérbios tivessem uma origem rural ou ‘comum’ genuína, mas eles foram transformados para uso de não-camponeses. Por um lado, suas metáforas eram sobre temas familiares aos habitantes do campo – touros, cavalos, cachorros, cereais, campos estéreis – e às vezes eram grosseiras ou vulgares. Por outro lado, eram em francês arcaico e não nos dialetos regionais que os camponeses usavam no final da Idade Média. Todo o seu gume particular tinha se perdido.” (Natalie ZEMON DAVIS , “A Sabedoria proverbial e os erros populares” in Culturas do Povo. Sociedade e Cultura no início da França Moderna , Paz e Terra, 1990, p. 190). 221 independentes 118 . O humanismo renascentista se interessou vivamente pelos provérbios (tanto savants quanto populares), e, não por acaso, o maior sucesso literário de Erasmo foi sua coletânea de Adagia 119 . O saber erudito tem algo de lapidar 120 e o provérbio tem tanto o formato curto quanto o sabor moral que se adequa a essa conformação geral – uma tendência não só francesa como europeia 121 .

Na perícope da mulher coxa, encontramos um interessante movimento de negociações entre o savant e as camadas de representação que envolvem uma phronesis de tipo popular. Vimos que, enquanto veículos de transmissão de ideias

118 “Conforme observou Le Goff, na França do século XII ao século XIV, os nobres e cavaleiros proprietários de terra tentavam se distinguir do clero e construir uma identidade cultural independente. Isto incluía, em parte, certos gostos ‘populares’ aprendidos com seus camponeses, tal como o amor por Mélusine e por outros contos de fadas. O interesse pelos provérbios de seus camponeses faz parte disso.” (ZEMON DAVIS , “A Sabedoria proverbial e os erros populares”, p. 191). Ver Jacques LE GOFF “Culture cléricale et traditions folkloriques dans la civilisation mérovingienne” in Annales. Économies, Sociétés, Civilisations , Vol. 22 n° 4 (1967), pp. 780-791; e Emmanuel LE ROY LADURIE & Jacques LE GOFF , “Mélusine maternelle et défricheuse” in Annales. Économies, Sociétés, Civilisations , 26e année, n° 3-4 (1971), pp. 587-622. 119 Os oitocentos provérbios retirados dos autores clássicos e bíblicos na primeira versão (1500) tornaram-se mais de quatro mil na última edição de 1536 (a décima sexta, publicada com Erasmo ainda vivo, o que dá 2,25 edições por ano, sendo dez delas “revistas e aumentadas”), sempre apresentados com comentário do autor. ÉRASME , Adages (Editio minor), édition dirigée par J.-C. SALADIN , 5 Vols., Les Belles Lettres, 2013; Kathy EDEN , Friends Hold All Things in Common. Tradition, Intellectual Property, and the Adages of Erasmus , Yale University Press, 2001. 120 A primeira recepção dos Ensaios segue nesse mesmo sentido, valorizando o “sábio estoico”. Cf. Introdução, n. 17. 121 “Of central importance to the modes of thought and expression which epitomize England in the sixteenth and seventeenth centuries was the proverb. This period, it may justly be said, witnessed the golden age of proverbial expression in European intellectual life. English society, in common with other contemporary cultures, was one which relied heavily on oral traditions and supported a wide variety of unstandardized vernacular forms. At the same time, however, in an age of expanding formal education and the rapidly emerging technology of print, sententious wisdom assumed the status of a didactic tool and a literary genre to a degree which it has enjoyed neither before nor since. Contemporaries repeatedly laced their conversation with old adages, filled their writings with trusted maxims, and delighted in making collections of choice dicta. Not surprisingly, many attempts were made to define this most popular of verbal and literary forms. To the Elizabethan antiquary, Richard Carew, proverbs were ‘ concise in words but plentifull in number, briefely pointing at many great matters, and vnder the circuite of a few syllables prescribing sundry auaileable caueats ’. The churchman Thomas Fuller later agreed that ‘ a proverb is much matter decocted into few words ’. The six properties which he believed essential to it, ‘ namely that it be, 1. Short 2. Playn 3. Common 4. Figurative 5. Antient 6. True’ , were transcribed approvingly into the diary of the Reverend John Ward who took the living at Stratford-upon-Avon in 1662. Proverbs, according to one early eighteenth-century student, were ‘ short, dogmatical concise sentences, accommodated to the principal concerns of life; commonly used, and commonly known: and, for the most part, conceived in figurative expressions (…)’.” (Adam FOX , Oral and Literate Culture in England (1500-1700) , Clarendon Press, 2000, pp. 112-113). 222 na Europa do final da Idade Média, os rumores se deixam compartimentar em alguns tipos de causos particulares: prodígios, portentos, superstições de todos os gêneros, números e graus. No entanto, como mostrei no capítulo 4, desde meados do século XVI temos a replicação de prodígios e portentos também nos canards de faits divers . Se os memorialistas do século XVI filtraram seu presente vivido e factual, registrando apenas os grandes atos públicos e os acontecimentos grandiloquentes, o desenvolvimento do canard nos deixa a impressão de que esse interesse está longe de ser homogêneo e extensivo a todos os atores sociais – se considerarmos o canard na continuidade da dinâmica informacional popular dos rumores. Em nosso caso, o provérbio – quando apresentado como dispositivo explicitamente popular – aponta tanto para um circuito performático (no domínio da esfera social do narrador) quanto para uma dimensão complementar dos exempla das perícopes anteriores.

[B][B][B] A propósito ou fora de propósito, não importa, dizem na Itália, em conhecido provérbio, que não conhece Vênus em sua perfeita doçura quem não deitou com mulher manca. O acaso ou algum acontecimento particular puseram essas palavras na boca do povo há muito tempo; e diz-se dos homens como das mulheres. Pois a rainha das amazonas respondeu ao cita que a convidava para o amor: ἄριστα χολός οἰφεῖ, “O manco é quem faz isso melhor”.

A abertura da perícope (“a propósito ou fora de propósito”) é fundamental nessa dinâmica performativa que define o provérbio, pois indica o caráter impreciso e ambíguo dessa negociação entre a alta cultura e a cultura popular. A abertura é, portanto, metacrítica. E, neste sentido, também uma ironia, pois trata-se de uma síntese das dicotomias entre os operadores céticos (eruditos) e a superstições que se acumulam nos exempla anteriores: “a propósito ”, por um lado, pois se trata aqui ainda de uma relação com uma phronesis popular tal como nas outras perícopes; mas “ fora de propósito ” por outro lado, porque é uma phronesis popular não contaminada pela superstição. Não contaminada porque ela é reputadamente verdadeira segundo a experiência do próprio narrador:

[B][B][B] Pois, pela simples autoridade do uso antigo e conhecido desse provérbio, outrora pus-me a crer que recebera mais prazer de uma mulher porque ela era defeituosa, e coloquei isso na lista de suas graças.

Trata-se de uma comprovação exemplar (confessional) de uma assertiva proverbial (pública). No entanto, antes de receber a validação desse estatuto confessional, coroamento da verdade popular através de um empirismo subjetivo, o provérbio 223 italiano 122 – que, aliás, não é descrito na forma lapidar que convém ao provérbio, mas numa estrutura de discurso indireto – já passara pelo crivo técnico da referencialidade erudita: “ ἄριστα χολός οἰφεῖ” é uma frase retirada de Plutarco 123 , traduzida pelo narrador no corpo do texto 124 , e posicionada para funcionar ela mesma como provérbio.

No século XVI, paremiografias tinham um papel de divulgação e de aprendizado para o público culto. Passavam adiante, num registro linguístico de segunda mão (pois filtrado previamente pelos autores das coletâneas), um material de origem popular ajustado às necessidades e aos gostos de uma elite intelectual. O provérbio é uma forma narrativa muito utilizada também no contexto jurídico. As Institutes coutumières de Antoine Loisel (1607), tendo por fim, em contraposição ao Direito romano, o estabelecimento de uma lei orgânica e pura (“ vray et naif droit de la France ”, dirá Pasquier 125 ), extraída da imensa diversidade de regulações regionais em território francês, fez uso de provérbios – na medida em que sintetizam formulações antigas de funcionamentos sociais. Camponeses e juristas têm algo em comum. “Sempre que puder”, aconselha um texto jurídico oficial da Idade Média, “cite um provérbio, porque os camponeses gostam de julgar de acordo com eles 126 ”.

Esse desenvolvimento tem uma dupla face, claro. Ele é sincrônico ao início da civilité , mas só existe num contexto em que a inserção dos regionalismos não só é tolerada como vista como uma espécie de energização do repertório (vocabulário, ideias) da língua comum 127 . Quer dizer, o contexto não é ainda o de uma plena

122 Ele continua anônimo e popular, apesar de ser geograficamente localizável. 123 Note-se que substantivo χωλός [aleijado] está grafado equivocadamente no texto de Dos Coxos (com ο e não com ω) – o que não deixa de ser também uma boiterie metapoética... A passagem aparece nas Παροιμίαι αἷς Ἀλεξανδρεῖς ἐχρῶντο , Centuria I, 15, in Ernst VON LEUTSCH & Friedrich SCHNEIDEWIN , Corpus Paroemiographorum Graecorum , Vol. 1, Vandenhoeck et Ruprecht, 1851, p. 323. 124 Coisa raramente feita no conjunto dos Ensaios , onde a maioria das citações é deixada sem referência autoral ou tradução. 125 “II est desormais temps qu’ostions ceste folle apprehension qui occupe nos esprits, par la quelle mettans sous pieds ce qui est du vray et naif droit de la France, reduisons tous nos jugemens, aux jugemens des Romains (...) tout ainsi que Dieu nous voulut separer de l’Italie par un haut entrejet de montaignes, aussi nous separa-t-il presque en toutes choses, de moeurs, de loix, de nature et complexions ”. ( Les Oeuvres d’Etienne Pasquier , Tome II, “Lettres”, IX, 1, col. 223, Amsterdam, 1723). 126 Archer TAYLOR , The Proverb , Harvard University Press, 1931, p. 87 apud ZEMON DAVIS , “A Sabedoria proverbial e os erros populares”, p. 200. 127 “Como diria o editor-acadêmico Henri Estienne em 1579, em seu Précellence du langage françois , a variedade de temas dos provérbios em vernáculo e a graça de alguns deles provaram mais uma vez que o francês podia competir em força e beleza de expressão com o italiano, o grego e o latim.” (ZEMON DAVIS , “A Sabedoria proverbial e os erros populares”, p. 196). 224 civilização cortesã: aquela que se definirá justamente pela pureza dos gestos e da linguagem, que precisa se afastar de regionalismos e impõe o desprezo pelas manifestações populares. Se, por volta de 1530, Rabelais fez intenso uso de provérbios como matéria-prima textual (aparentemente sem prejuízo da intelecção do discurso pelo seu público leitor 128 ), a segunda metade do século XVII já começa a ver o provérbio, enquanto formulação popular, como mera curiosité 129 , coisa de antiquaire , de “etnógrafos” em busca de primitivismos regionais (se podemos dizer assim) 130 .

Nesta fase, a caracterização regional (linguística e topograficamente falando) do provérbio – apesar do esforço dos paremiógrafos em transcrevê-los no francês normativo de sua época – poderia eventualmente impedir seu entendimento imediato alhures. Embora um provérbio quase nunca chegasse ao público leitor no seu patois original, é evidente que a mera transposição linguística não eliminava algumas idiossincrasias regionais: a distinção mais forte era, evidentemente, entre a mentalidade cortesã, que absorvia os provérbios em uma estrutura mais ou menos uniforme de língua e escrita, e a mentalidade camponesa que estava na sua origem. Mas não quer dizer que fosse a única. Além disso, a forma ordinariamente lapidar (quase oracular) do provérbio reforçava esse jogo de imprecisões, tornando-o

128 “Les proverbes sont copieusement représentés dans le roman de Rabelais, qui a puisé à pleines mains dans l’Antiquité, dans le Moyen Age et dans sa propre expérience. En groupant ces données éparses dans son œuvre, on obtient un tableau unique de la sagesse populaire, tout à la fois vaste, curieux et pittoresque. Ces proverbes, par le cadre où ils figurent, acquièrent un relief inattendu et accusent ainsi fortement le réalisme des personnages qui les débitent.” (SAINEAN , La Langue de Rabelais , Vol. I, p. 343). 129 “Novas compilações de provérbios continuaram a ser impressas na França do século XVII, ainda que em menores tiragens antes [do século XVI]. No conjunto, [as novas compilações] expressavam um desprezo educado pela cultura do povo. As Curiositez françoises , de Antonie Oudin, de 1657, por exemplo, pretendiam ser um esforço ‘para limpar a língua de erros’ e um dicionário de expressões baixas e vulgares, a maior parte das quais, segundo ele, não deveria ser empregada. (É interessante que ele censurasse não apenas ditados como ‘ Bas de cul, bas de fesses ’, mas também provérbios que, um século antes, Bouelles julgara inócuos, como ‘ Ung barbier rase l’autre ’ – ‘Um barbeiro barbeia o outro’).” (ZEMON DAVIS , “A Sabedoria proverbial e os erros populares”, p. 202). 130 “Le Roux de Lincy (1842) considère que l’abus proverbial commis par Rabelais et par d’autres auteurs de son époque eut une influence sur le mépris envers les parémies. Le XVII ème siècle est marqué par la norme du français et Le Roux de Lincy (1842, p. 65) indique de Vaugelas en arrive à détester les proverbes: ‘Les proverbes ont même été frappés d’anathèmes par quelques-uns de ceux qui ont le plus contribué au perfecionnement de notre langue: Vaugelas les avait pris en haine’. N’oublions pas que Vaugelas écrit ses Remarques sur la langue françoyse (1647) où la norme du français est constituée par l’usage de la Cour. Qui plus est, au XVII ème siècle est créée l’ Académie Française chargée d’imposer la norme du français.” (Sonia Gómez-Jordana FERARY , Le proverbe: vers une définition linguistique , L’Harmattan, 2012, p. 34). 225 frequentemente ambíguo ou incompreensível 131 . Daí que a contraparte de sua nova circunscrição no rol das curiosités era também signo de uma necessidade crescente de explicações e de exegese 132 . Logo, no substrato profundo da questão dos provérbios estão a diversité (muitas vezes intracultural: camponês versus cortesão, parisiense versus normando etc.) e o comparativismo (cultural, social, jurídico). Frequentemente, um provérbio simplesmente perdia o sentido por conta de mudanças culturais profundas. No entanto, por conta de sua polivalência, poderia (“ainda em vida”, por assim dizer) significar coisas diametralmente opostas, dependendo do contexto. O próprio fato de terem sido retirados de seu ambiente e reunidos em coletâneas para uso de uma elite é já o índice dessa polivalência e do seu caráter resiliente.

Nesse progressivo descarte do “povo” enquanto categoria produtiva, enquanto repositório de metáforas e de construção de imagens para o cortesão (que se reconhece na rápida evolução que descrevi acima, entre os repositórios medievais

131 Jacques Moisant de Brieux, originário da Normandia, escreve Les origines de quelques coutumes anciennes, et de plusieurs façons de parler triviales (1672) para explicar o sentido de diversos provérbios e ditados de sua região. Se, por um lado, “ Faire un cygne d’un oyson ” (i.e., “Loüer ce qui ne le mérite pas: ou loüer trop ”) e “ Le Papier endure tout ” (empregado “Pour dire, qu’il ne faut pas croire à la légère les Ecrivains : (…) une plume d’or pour ses amis, & une de fer pour ses ennemis ”), são provérbios relativamente fáceis de se entender (mesmo hoje em dia), por outro lado “C’est un ris de Boucher ” (quer dizer, “Uma risada de açougueiro”, significando um riso dissimulado e falso; “provérbio comum entre os habitantes da alta Normandia, do fato que os açougueiros seguram sua faca entre os dentes”); e “ Faire mérienne, faire rincie ” (“interromper os trabalhos ao meio-dia, comer e fazer uma sesta”, do fato dos “diaristas normandos que trabalham na agricultura, dependendo da estação, agem assim, pois os dias são mais curtos depois da data de Todos os Santos”), já eram menos evidentes para o público francês contemporâneo mas de fora da Normandia. Jacques MOISANT DE BRIEUX , Les origines de quelques coutumes anciennes, et de plusieurs façons de parler triviales (1672), (E. de BEAUREPAIRE & G. GARNIER , eds.), 2 Vols., Caen, Le Gost-Clérisse, 1874. Ver ZEMON DAVIS , “A Sabedoria proverbial e os erros populares”, p. 203. 132 “Como observou o jesuíta Dominique Bouhours, provérbios [tornaram-se] velhos trajes no guarda-roupa de uma casa nobre – adequados apenas para festas à fantasia. E, em realidade, os cortesãos brincavam com os provérbios – não com as irônicas tiradas [da coletânea de provérbios apócrifa] de Salomão e Marcolf, mas como jogos de adivinhação mais lentos. Em 1654, o jovem Luís XIV e seus amigos fantasiaram-se e fizeram um balé com os ditados ‘ Para pequenos vendedores, cestas pequenas ’ e ‘ Não implique com o cachorro até estar fora da aldeia’ . Mais tarde, madame de Maintenon e outros escreveram peças completas baseadas em provérbios que a audiência devia adivinhar. Os provérbios conhecidos pareciam ser em menor número do que no século XVI: por volta de 1660, quando Jacques Lagniet publicou suas notáveis gravuras para ilustrar provérbios populares, teve de acrescentar notas em toda parte para que elas fosse compreendidas.” (ZEMON DAVIS , “A Sabedoria proverbial e os erros populares”, p. 202). O Ballet des Proverbes , dividido em duas partes, com texto de Isaac de Benserade e, ao que tudo indica, musicado por Lully (mas do qual não sobreviveu partitura), foi dançado duas vezes (em 17 e em 23 de fevereiro de 1654). A divisão das partes e das entrées aqui: http://livretsbaroques.fr 226 até as curiosités e antiquitez do século XVII 133 ), o elemento mais evidente de distanciamento é o controle das imagens vulgares. Esse controle já estava em operação no século XVI 134 . Mas o obsceno (que vai do grotesco ao grosseiro), como em Rabelais, poderia ser entendido ainda como um elemento socialmente revigorante. Porém, no mesmo movimento das Explications Morales , os eruditos do final do século XVII limparam suas coletâneas de tudo o que consideraram chulo ou impróprio. Contudo, essa operação detergente valeu também para outras dimensões (não proverbiais) advindas da cultura popular – como, por exemplo, a da superstição. A relação dos eruditos com essa (sub)cultura é o que Jacques Revel chamou de “magistério cultural e social”, e que poderíamos denominar também como “superioridade do observador” ou ainda “presunção etnográfica”135 . Assim como Arnauld Oihénart suprimira provérbios bascos chulos de sua coletânea 136 , e Perrault e Lhéritier reajustavam situações para tornarem seus “contos populares” mais palatáveis ao gosto cortesão 137 , Thiers, ao comentar costumes pouco

133 “Depois de aproximadamente 1650, é possível encontrar pessoas eruditas, na Inglaterra, França e Itália, que distinguem entre cultura erudita e cultura popular, rejeitam crenças populares, mas consideram-nas um objeto de estudo fascinante.” (Peter BURKE , Cultura Popular na Idade Moderna , p. 371). 134 “Excetuando-se os Proverbes communs [1539] de Gilles de Noyers, que eventualmente foram incorporados aos Trésor de la langue française , a maior parte das coletâneas [de provérbios] não registrava ditados [populares] grosseiros. As Explications Morales incluíram ‘ On auroit aussitost un pet d’un asne mort ’ (indicando uma pessoa que se recusará a falar, não importa o quanto lhe perguntarem), com o comentário: ‘Entre os adágios um pouco sujos, este é um exemplo’.” (ZEMON DAVIS , “A Sabedoria proverbial e os erros populares”, p. 199). Rabelais usa essa expressão: “ Mais toute la countenance [a única reação] de Gargantua fut qu’il prit à pleurer comme une vache, et se cachait le visage de son bonnet. Et ne fut possible de tirer de lui une parole, non plus qu’un pet d’un âne mort ” (RABELAIS , Gargantua , XV, 50, édition critique par Gérard DEFAUX , LGF, 1994, pp. 191-193). Em tempo: as Explications morales , anônimas, foram incluídas como apêndice na edição póstuma do Thrésor de Jean Nicot (editado por David Douceur em 1606). 135 “[Quando quiseram falar sobre o povo,] tanto comentadores letrados como simples observadores da vida popular descreveram uma esfera cultural que lhes era alheia. Definiram esse mundo [popular] como diferente e estabeleceram, com ele, uma relação tendente a reforçar a coerência de sua própria cultura. Desta forma, seus trabalhos transmitem dois registros frequentemente impossíveis de distinguir: o da observação (no seu sentido mais lato) e o da visão da sociedade no seio da qual os autores se situavam, pelo menos implicitamente. Além disso, quando estes escritores, partindo de uma forma de conhecimento estabelecida, se dedicaram a descrever, explicar, classificar e julgar as práticas populares, recorreram, de forma mais ou menos explícita, a formas de autoridade (com as suas contingências contraditórias e por vezes coincidentes) que os investiam de certo tipo de magistério cultural e social, o que está na origem de uma dupla coerência e de uma interdependência entre aqueles que descreveram a cultura popular e aquilo que descreveram.” (Jacques REVEL , “Formas de especialização: os intelectuais e a cultura ‘popular’ em França (1650-1800)” in A Invenção da Sociedade , or. 1989, Difel & Bertrand do Brasil, 1990, pp. 77-78). 136 Les Proverbes basques recueillis par le Sr d’Oihenart, plus les poésies basques du mesme auteur , Paris, 1657. 137 Marc SORIANO , Les Contes de Perrault. Culture savant et traditions populaires , Gallimard, 1977². 227 dogmáticos no seu Traité des superstitions 138 , suprimiu da sua narrativa palavras e referências que ele condenava no texto, justamente para não dar mau exemplo 139 .

J’ai quelquefois noté de Superstition certaines pratiques qui paroissent innocentes & irrépréhensibles, parce qu’elles sont accompagnées de choses saintes & honnêtes, de paroles de l’Ecriture, de croix, de prieres, de bénédictions, de jeûnes, d’aumônes, de mortifications, de confessions, de communions, de pélérinages, de Messes, & qu’elles se font assez souvents dans la bonne foi & sans aucun mauvais dessein. Mais, j’ai mieux aimé en juger avec quelque sorte de sévérité, en vûe d’en faire concevoir du dégôut, & des les excuse, estimant avec S. Augustin, qu’on ne se trompe jamais plus sûrement que quand on se trompe pour trop aimer la vérité, & pour trop haïr la fausseté (...) J’ai rapporté les Superstitions dans toute leur étendue, lorsque j’ai jugé que cela ne pourroit avoir de mauvaises suites, & qu’il étoit en quelque façon nécessaire de n’en rien retrancher, pour les mieux faire comprendre. Mais, j’en ai souvent caché sous des points & de Et coetera , certains mots, certains caractères, certains signes, certaines circonstances, dont elle doivent être revêtues pour produir les effets qu’on en espére, parce que j’ai eu crainte d’enseigner le mal en voulant le combattre .140

Neste caso, em sua posição “etnológica” intracultural, Thiers se retrata como pedagogo e pai, mas também tem algo do inquisidor medievo-renascentista em sua desconfiança das impostures demoníacas contrabandeadas através de atos de boa fé 141 .

Eis finalmente um ponto fundamental. Nesse entrecruzamento entre o popular e o savant temos um jogo de ocultamentos, de dissimulações: uma verdadeira comédia

138 Trata-se na verdade, de dois livros diferentes, reunidos na última edição póstuma de 1744: 1) Traité des superstitions selon l’Ecriture sainte, les décrets des conciles et les sentimens des saints Pères et des théologiens , par M. Jean-Baptiste Thiers, Paris, A. Dezallier, 1679, 1 vol.; revisto e aumentado na edição de 1697, desta vez em 2 vols.; 3° éd., Paris, 1712, 2 vols.; 2) Traité des superstitions qui regardent les sacremens selon l’Ecriture sainte, etc ., Paris, J. de Nully, 1703-1704, 2 vols.; 3) Traité des superstitions qui regardent les sacremens selon l’Ecriture sainte, etc. , Paris, Cie des libraires, 1741, 4 vols.; reedição, Avignon, L. Chambeau, 1777, 4 vols. 139 François Lebrun, “Le ‘ Traité des Superstitions ’ de Jean-Baptiste Thiers. Contribution à l’ethnographie de la France du XVII e” in Annales de Bretagne et des pays de l’Ouest , Tome 83, n° 3, 1976, pp. 443-465. 140 Jean-Baptiste THIERS , Traité des superstitions qui regardent les sacremens selon l’Ecriture sainte, etc. , Avignon, L. Chambeau, 1777, Vol. I, pp. viii-ix. 141 Carlo GINZBURG , “O inquisidor como antropólogo: Uma analogia e as suas implicações” in Carlo GINZBURG , Enrico CASTELNUOVO & Carlo PONI , A Micro-História e Outros Ensaios , Difel & Bertrand Brasil, 1991, pp. 203-214. 228 de erros 142 . A superioridade da presunção etnográfica conduz o especialista, o representante da “retirada” 143 , a separar claramente seu conhecimento savant em relação ao do “vulgaire ignorant ”: o vulgo erra , o sábio corrige 144 .

Não considerando o “conhecimento popular” algo que precisa, a princípio, ser corrigido, o narrador de Dos Coxos não corrige nada do que afirmado pelo “conhecido provérbio”: um de seus heróis, Plutarco, já não atestara, aliás, um dito semelhante?145 Entretanto, muito embora, como seus contemporâneos, faça uso “literário” do provérbio (ele está citado no texto de um ensaio, em meio a uma série de discussões de ordem humanística), o narrador canibaliza-o na estrutura confessional do exemplum . Saindo do registro citacional clássico (registro que o

142 “John Aubrey é um exemplo óbvio. Sua atitude era a de que ‘os velhos costumes e fábulas das mulheres velhas são coisas grosseiras: mas ainda assim não se deve descartá-las totalmente: pode haver certa verdade e utilidade a se extrair delas. Além disso, é um prazer considerar os erros que envolveram épocas anteriores: como também o presente’ [John Aubrey, “Remains” in Three prose works , Fontwell, 1972, p. 132]. Os clérigos eruditos do final do século XVII e início do século XVIII viam a cultura popular numa perspectiva semelhante. Eles coletavam informações sobre costumes e ‘superstições’, desaprovavam grande parte do que coletavam, mas mesmo assim continuavam a coletar.” (Peter BURKE , Cultura Popular na Idade Moderna , Cia das Letras, 2010, p. 371). 143 Na expressão de Peter Burke: “Em 1500, a cultura popular era uma cultura de todos: uma segunda cultura para os instruídos e a única cultura para todos os outros. Em 1800, porém, na maior parte da Europa, o clero, a nobreza, os comerciantes, os profissionais liberais – e suas mulheres – haviam abandonado a cultura popular às classes baixas, das quais agora estavam mais do que nunca separados por profundas diferenças de concepção de mundo. Um sintoma dessa retirada é a modificação do sentido da palavra ‘povo’, usada com menor frequência do que antes para designar ‘todo mundo’ ou ‘gente respeitável’, e com maior frequência para designar ‘gente simples’. (...) Essa separação entre a cultura de classe alta e a cultura de classe baixa pode ser vista com extrema clareza naquelas partes da Europa onde a imitação da corte significou que as classes superiores locais adotaram uma língua literalmente diferente da do povo. (...) Não foi apenas a língua das pessoas comuns que foi rejeitada pelas classes superiores, e sim toda a sua cultura.” (BURKE , Cultura Popular na Idade Moderna , p. 356 e p. 358). 144 Laurent Joubert, um dos médicos de Henrique de Navarra, publicará em 1578, chez Simon Millanges (primeiro editor dos Ensaios ), a primeira edição dos Erreurs populaires , obra que se tornou clássica no que dizia respeito ao seu ofício, já anunciando essa mudança. Para Joubert, a existência do erro humano só se justifica se pensamos o homem não numa ontologia que valoriza a descoberta sempre inata da verdade (segundo ele, uma doutrina de fundo platônico), mas sim na paulatina e consciente acumulação do saber, que poderá ser bom ou ruim dependendo da qualidade do ensino e dos mestres (logo, ainda segundo ele, uma doutrina de fundo aristotélico). Sendo assim, a finalidade pedagógica de seu tratado é imbuída de forte sabor paternalista, onde o “vulgaire ignorant ” precisa ser posto “en un meilleur chemin ”: pois o ignorante “ne le fait malicieusement, ou en intention de nuire”, sendo “le devoir des Medecins de luy dissuader ces fausses opinions & procedure, & l’instruire de faire mieux ce que luy concerne ”. Prefácio a Marguerite de Navarra in Laurent JOUBERT , Erreurs populaires au fait de la Medecine et regime de santé corrigés par M. Laur. Joubert . Bordeaux, Simon Millanges, 1578. [BNF 8- T21- 41, edição digital NUMM- 54036]. Note-se que a palavra “ corrigés” faz parte do título na folha de rosto. 145 Ver nota 123. 229 protegeria de eventuais constrangimentos), não só não suprime o conhecimento de origem vulgar (proverbial), não só o atesta com uma citação erudita, como vai mais além, afirmando que o experimentou carnalmente e para seu próprio regozijo: no final das contas, dá ao leitor – como corporificação de uma sabedoria (proverbial) imprecisa, somada a uma atestação de saber clássico (Plutarco) –, uma experiência de laboratório feita consigo mesmo. Estratégia, de certo modo arriscada, pois, por conta da philautia , isso poderia ser considerado inconfessável ou de mau tom .

[B] Não servem esses exemplos para o que eu dizia no início – que frequentemente nossas razões antecipam o fato e têm tão infinita a extensão de sua jurisdição que julgam e se exercem mesmo na inanidade e na inexistência? Além da flexibilidade de nossa fantasia em forjar razões para toda espécie de sonhos, nossa imaginação presta-se com igual facilidade a acolher impressões da falsidade por aparências bem frívolas. Pois, pela simples autoridade do uso antigo e conhecido desse provérbio, outrora pus-me a crer que recebera mais prazer de uma mulher porque ela era defeituosa, e coloquei isso na lista de suas graças.

O trecho, porém, pode ser entendido em três sentidos diferentes:

1). A experiência de um indivíduo que, “pela simples autoridade e do uso antigo” de um provérbio, decidiu averiguar sua veracidade; 2). Uma experiência sexual ímpar, mas casual (e que se revelou misteriosamente superior apesar da mulher ser “defeituosa”), pôde finalmente ser explicada através do provérbio; 3). Por influência do provérbio (que agiu na “flexibilidade da nossa fantasia em forjar razões para toda espécie de sonhos”), o intercurso sexual com a mulher “defeituosa” tornou-se (“acolhendo impressões da falsidade por [conta de] aparências bem frívolas”) uma experiência sexual superior (“nossas razões antecipam o fato”).

Trata-se, pois, de uma ambiguidade de leitura que reproduz, em certo sentido, tanto a dinâmica oracular e misteriosa do provérbio quanto sua polivalência e sua flexibilidade (adaptável a contextos e interpretações diversas e conflitantes). Neste sentido, o trecho negocia, nas suas imbricações entre confessional e sabedoria popular, com uma densidade informacional que é característica, não exatamente da estrutura formal dos provérbios, mas de seu uso: no sentido destes, muitas vezes, servirem como veículos impessoais para formas pessoais de comunicação 146 . “Não

146 “Like other forms of folklore, proverbs may serve as impersonal vehicles for personal communication. A parent may well use a proverb to direct a child’s action or thought, but by 230 se sabe quem”, “eles”, os “mais sábios”, “ vox Populi, vox Dei ” são os sujeitos nessa sintaxe proverbial, que também representa, em larga margem, a dinâmica de imprecisão dos rumores. A perícope, então, flutua entre o impreciso, genérico e anônimo do proverbial e o certo e veraz, embora subjetivo, da expressão confessional do narrador (que, por sua vez, exige indireta e paradoxalmente uma série de atos de fé da parte do leitor para tornar sua narrativa crível e sustentável). No entanto, toda essa estrutura se desdobra ainda uma vez, a partir da dimensão casuística proveniente novamente do mundo clássico, na medida em que a experiência confessional do narrador – que, a se crer nele, não parte de nenhum pressuposto senão o de sua própria experiência de vida – acaba sendo corroborada pela “filosofia antiga”, retoricamente apresentada no trecho de modo a parecer uma referência totalmente casual :

[B][B][B] Eu teria dito que o movimento desconjuntado da manca acrescenta à atividade sexual algum prazer novo e um auge de doçura aos que o experimentam, mas acabo de saber [je viens d’apprendre] que a própria filosofia antiga já decidiu sobre isso: ela diz que, como as pernas e as coxas das mancas, por causa de sua imperfeição, não recebem o alimento que lhes é devido, advém que as partes genitais, que ficam acima, são mais cheias, mais nutridas e vigorosas.

Efetivamente, o “acabo de saber” desdobra o confessional ao mesmo tempo em intimidade , mas também em imprecisão ; e o fato da “filosofia antiga” não ter nome (não é uma citação, como seria esperado no contexto dos Ensaios 147 ) realimenta

using a proverb, the parental imperative is externalized and removed somewhat from individual parent. The guilt or responsibility for directing the child is projected on to the anonymous past, the anonymous folk. A child knows that the proverb used by the scolding parent was not made up by that parent. It is a proverb form the cultural past whose voice speaks truth in traditional terms. It is the ‘One’, the ‘Elders’, or the ‘They’ in ‘They say’, who direct. The parent is but the instrument through which the proverb speaks to the audience.” (E. OJO AREWA & Alan DUNDES “Proverbs and the Ethnography of Speaking Folklore” in American Anthropologist , New Series, Vol. 66 n° 6, Part 2: The Ethnography of Communication (Dec., 1964), p. 70. 147 Trata-se de uma seção do Livro X dos Problemata do Pseudo-Aristóteles: “Por que é que os homens de cabelos espessos e os pássaros com penas grossas são concupiscentes [ λάγνοι ]? É porque eles são naturalmente quentes e úmidos? Essas características são necessárias para o intercurso sexual, pois o calor causa excreção, e a umidade é a forma que toma a excreção. Homens coxos são concupiscentes pela mesma razão que os pássaros; pois, devido às deficiências das pernas, o alimento chega até embaixo apenas em pequenas quantidades, mas viaja até a região superior do corpo em grandes quantidades, e lá se converte em sêmen.” (X, 24 – 893 b 10). Cf. Problemata , translated by E. S. FOSTER in David ROSS , ed., The Works of Aristotle , Vol. VII, Clarendon Press, 1927. Duas outras passagens aristotélicas fazem referência a este tema: o Problema IV, 31 (880 a 35); e o capítulo VI da Physiognomica (806 b 18). A edição 231 ainda mais o circuito, invocando sua autoridade objetiva a partir da valorização de um dispositivo explicitamente subjetivo : “eu teria dito” (verdade do sujeito), “mas a própria filosofia antiga já decidiu” (verdade da ciência) – quer dizer, decidiu a mesma coisa que “eu” (verdade da ciência re-energizando a verdade do sujeito) 148 .

Seja como for, a perícope da coxa inverteu, sutilmente e por completo, a perspectiva deambulatória que marcara a diegese das perícopes exemplares. A logística da viagem e do devaneio continua marcada aqui: “dizem na Itália”, “a rainha das amazonas”, ressoando em negociação contínua com termos estruturados em função do movimento : “braços”, “pernas”, “outros membros”, “movimento desconjuntado” “manca”, “exercício”, “sedentário”, “balanço e tremor” “coches”, “inanidade”. Mas se antes o narrador permanecia de fora , com o olhar “etnográfico” devassador e superior, protegido da poluição supersticiosa por demolidores dispositivos céticos, aqui ele entra em sua própria perícope, toma conta do espaço diegético de sua própria narrativa, aproveitando-se do ambiente extático criado pela “flexibilidade da fantasia”, reforçando um ambiente onírico (“forjando razões para toda espécie de sonhos”) onde ele mesmo se instala, em carne e osso: a sexualidade (não a teórica, mas a concreta, o sexo mesmo, a descrição do sexo) é a marca maior da sua corporificação textual. O corpo da coxa, disforme (e, em certo sentido, grotesco), mas miraculoso , permite a instituição do gozo e, com ele, a implosão da “lógica de retirada” 149 criada pelo ceticismo – lógica que dá o tom de todas as outras perícopes exemplares. O corpo da mulher coxa permite, dentro da lógica teatral e da dialética das impostures que proliferaram nas perícopes exemplares do ensaio, uma cena de transformações entre o popular (proverbial), o supersticioso (não necessariamente popular)150 e o savant (cético): embora a saleté não esteja explicitamente presente em sua descrição, e o elemento cômico possa apenas ser pressentido como um efeito involuntário, esse corpo, capturado em “movimento desconjuntado”, com as “partes genitais cheias, nutridas e vigorosas”, se deixa definir como grotesco, fundamento da noção bakhtiniana de carnavalização (o conceito operacional que justamente, permite o curto-circuito entre todas essas distinções):

O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto nem acabado: está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo de Villey dá uma numeração errada desta passagem (“X, 26”), no que foi seguida pelas Œuvres complètes editadas por Thibaudet & Rat. 148 Ninguém poderia imaginar, claro, que “ele” poderia ter lido antes na “filosofia antiga” o que acredita ou sustenta ser uma descoberta do seu próprio self ... 149 Cf. nota 143. 150 O supersticioso entra nesta equação por conta, evidentemente, da dimensão oracular que é própria ao provérbio. 232

constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele. (...) Por isso o papel essencial é entregue no corpo grotesco àquelas partes, e lugares, onde se ultrapassa, atravessa os seus próprios limites, põe em campo um outro (ou segundo) corpo; o ventre e o falo; essas são as partes do corpo que constituem o objeto predileto de um exagero positivo, de uma hiperbolização; elas podem mesmo separar- se do corpo, levar uma vida independente, pois sobrepujam o restante do corpo, relegado ao segundo plano 151 .

O aristocrata, submergindo no mar proverbial, encontra finalmente um ancoradouro estável, está em paz com as dicotomias (impostas entre seu self e o mundo) e com os impasses teóricos e sociais revelados pelo texto, ao absorver, com prazer literal, uma sabedoria inesperada e partilhada com o mundo inteiro, independente de ordem, formação e classe. O que esperar desta derradeira movimentação do nosso viajante? O repouso, claro. A página final de Dos Coxos é uma verdadeira catarse de calmaria, harmonia e quietação. Nas perícopes “Das pernas e sapatos” (CA, III, 376) e na das “Fantasias de Carnéades e de Esopo” (CA, III, 376-377), se de certa forma nelas ainda se conservam expressões que remetem à dinâmica do deslocamento, não há mais qualquer resquício de exemplum pessoal. Tudo voltou a ser economia citacional das mais clássicas e eruditas, tal como nos primeiros ensaios de Montaigne [A]: Tasso, Suetônio, Germânico, Terâmenes, Virgílio, Clitômaco, Carnéades, Hércules, Esopo, formam um lugar neutro, verdadeira explicitação filosófica de um “entre-coisas” ontológico:

[B][B][B] Não há nada tão maleável e errático quanto nosso entendimento: é o sapato de Terâmenes, adequado para todos os pés. E ele é dúplice e diverso, e dúplices e diversas as matérias. ‘Dá-me uma dracma de prata, dizia a Antígono um filósofo cínico. – Isso não é presente de rei, respondeu ele. – Então dá-me um talento. – Isso não é presente para um cínico’ (CA, III, 376)

Lugar seguro aonde o sábio equipolente finalmente chega depois de percorrer o longo e tortuoso caminho das superstições e das impostures . Ele não despreza os saberes que adquiriu (“ Ogni medaglia ha il suo riverso ”, admite ainda em um outro provérbio italiano), mas exaurido pelo carnavalesco, ele (espírito dotado da “capacidade de todas as coisas”) sabe que, “por despeito e por emulação”, sendo “imoderado em tudo”, não poderia não ser, enquanto homem, mais “capaz de coisa alguma” – muito simbolicamente, se esgotando junto com seu próprio texto:

151 Mikhail BAKHTIN , A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (or. 1965), Hucitec & Ed. UnB, 2008, p. 277. 233

[B] Assim aconteceu na escola filosófica: o orgulho dos que atribuíam ao espírito humano a capacidade de todas as coisas causou em outros, por despeito e por emulação, essa ideia de que ele não é capaz de coisa alguma. Uns fundamentam na ignorância esse mesmo extremismo que outros fundamentam na ciência – para que não se possa negar que o homem é imoderado em tudo e que ele não tem outra barreira que não a da dificuldade e incapacidade de ir além.

E, com a “ impuissance d’aller outre [incapacidade de ir além]”, o narrador fecha o ensaio – e eu, minha exposição. Conclusão

OMO DISSE NO PREFÁCIO, este texto tem um caráter exploratório e intuitivo, Ce não parti de uma hipótese geral de trabalho para chegar ao seu final. Na verdade, foram diversas hipóteses e diversas tentativas, diversas idas e vindas. Não abandonei ideias porque forçosamente percebi que não dariam em nada: eu as abandonei por conta da própria evolução das minhas questões em relação à pesquisa. A tese, na verdade, evoluiu dentro do desenvolvimento dos meus interesses nesses quatro anos, tornou-se o reflexo do que estive tentando estudar – às vezes de modo complementar, às vezes de modo desinteressado e desconexo: do interesse pela bruxaria (inicial) até o interesse pelo folclore (atual), passando pelo fait divers e pela pastoral, nas linhas gerais; mas também a magia antiga, o vampirismo, a monstruosidade, o detetivesco, o excremencial, as secreções corporais, a melancolia etc. Invoco a Terra como testemunha. Ela dará fé. Mal ou bem, os quatro primeiros capítulos, que não mudaram muito da época da composição até hoje, foram escritos numa cronologia que, descontando-se as correções retrospectivas das gralhas, certa adequação formal de conjunto e com uma inversão (o capítulo 4 foi escrito antes do capítulo 2), cristalizam esses tempos diversos da pesquisa, dão uma ideia geral dessas fases. Por isso, não se tratava de mera retórica quando disse, no prefácio, que não fazia ideia de onde o texto iria dar 1.

No meu entender, o texto montaignista é uma espécie de Matrix , que pode ser lido de infinitas e diversas maneiras (talvez uma bobagem dizer isso, pois assim é com qualquer coisa, exceto talvez, para o bem do paciente, com as bulas de remédio). Mas sempre que me volto para os Ensaios , meu objetivo é, fundamentalmente, me exercitar – ou m’essayer , se quiserem um termo mais apropriado ao nosso contexto. Sendo assim, minha proposta, embora não seja formalmente a mais indicada ou correta no escopo de uma tese , foi sempre seguir livremente o funcionamento de Dos Coxos , a partir das intuições das minhas leituras alhures, vendo como o texto se comportava em relação a elas, se essas leituras produziriam algum efeito concreto

1 As duas partes do capítulo 5 as escrevi na fase final, mas o capítulo 4 estava pronto há quase dois anos – foi com muito custo que consegui relê-lo para finalmente integrá-lo aqui. A releitura acabou sendo proveitosa porque foi a partir dela que retomei o interesse pelo fait divers e montei a sequência descrita na parte 5-1.

235 sobre ele. Tentei vê-lo como um produto relativamente independente do conjunto dos Ensaios (meu exercício de anatomia, como disse antes), embora tendo sempre no horizonte que ele é fruto, como os demais, de estratégias textuais muito precisas, de negociações entre as diversas instâncias da sua concepção (temporal/editorial) e a dinâmica de valorização autoral. Em Dos Coxos , porém, contrariamente a muitos outros capítulos compósitos do Livro I (em que temos um funcionamento complexo entre [A], [B] e [C]), a voz autoral é mais estática, menos distendida no tempo – no sentido de ser praticamente publicado por [B] (os acréscimos [C] são poucos). De todo modo, os índices contraditórios são menos pronunciados aqui do que, por exemplo, em Sobre Versos de Virgílio – objeto da minha primeira investigação montaignista (ou pseudo-montaignista, para ser mais franco e coerente). Mas, da mesma forma que em Sobre Versos de Virgílio , ainda que usando um arsenal teórico diferente, outras nomenclaturas e outros pontos de vista, tentei destacar em Dos Coxos esse funcionamento geral do narrador como um “ser extático”, que se utiliza de dispositivos céticos como base para uma verdadeira “projeção astral” deambulatória 2: com esse dispositivo, podemos observá-lo entrando em todos os lugares “sem se poluir”, experimentando sensações inauditas ou que lhe são proibidas (por questões de classe, gênero ou religião) e voltando sempre à estabilidade de seu self sem que o leitor jamais perceba estar fazendo parte do seu jogo: ao contrário, imaginando (“dupement ”, se existisse o termo em francês) o autor sempre como “sábio”, “estoico”, “epicurista”, “amigo” e assim por diante.

De fato, em 2008 eu fazia uma reflexão geral sobre os Ensaios com termos muito similares (coisa que me dei conta agora, relendo o texto da época):

(...) Como resultado dessas estratégias de leitura, passa-se completamente despercebida a estrutura tripartite e profundamente teatral que está na base da constituição dos Ensaios : a evolução de seus atores principais – Michel Eyquem , Michel Sire de Montaigne Chevalier de l’Ordre du Roy et Gentilhomme ordinaire de sa Chambre e Michel de Montaigne – em seres essencialmente narrativos , progressivamente cônscios do universo de negociações e agenciamentos possíveis que a sofisticação do récit lhes oferece diante do mundo real.

A melhor explicação possível para o que entendo aqui por “ser narrativo” é aquela que o personagem Morpheus (vivido por Laurence

2 Introduzi brevemente esse assunto quando analisei o primeiro fait divers do capítulo 5-1 (mais particularmente na nota 39).

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Fishburne) dá a Neo (Keanu Reeves) sobre os softwares-agentes no filme Matrix , dos irmãos Wachowski : um sentient program 3.

Como numa espécie de Matrix renascentista, os Ensaios permitem às suas dramatis personae – novamente, Michel Eyquem, Michel Sire de Montaigne Chevalier de l’Ordre du Roy et Gentilhomme ordinaire de sa Chambre e Michel de Montaigne –, desenvolver um curioso mundo de ação virtual, em que se torna possível experimentar (como em certas tradições monásticas orientais) todo um universo de sensações, condutas e liberdades sem se poluir: quer dizer, sem colocar em xeque as conquistas da ascensão social familiar dos Eyquem, as boas relações com o status quo , a acumulação de bens, as seguranças do gênero, da propriedade privada, da religião, mesmo criticando solenemente, ou furtivamente, todas as suas bases. [Na análise que fiz de “Sobre Versos de Virgílio”, Ensaios III, V] , a experiência narrativa da diversidade sexual, por exemplo, não implica na feminização ou na homossexualização do Sire de Montaigne – mas ela está lá, como uma experiência “real” e “possível”, embora passível de ser negada imediatamente, se necessário, como mera... literatura.

Como se vê, em lugar de “ser extático” usei na ocasião a expressão “ser narrativo”: as expressões tentando lidar com problemas similares ainda que vistos de modo independente nos dois ensaios. No final das contas, talvez essa noção “extática” (ou “senciente”) do narrador de Dos Coxos (e de Sobre Versos de Virgílio ) seja mesmo minha pequena e modesta contribuição aos estudos montaignistas. Ao menos do pouco que conheço a respeito.

Por outro lado, não cumpri algumas das promessas assumidas nos primeiros capítulos. Disse que iria abordar o ensaio na perspectiva paysane e do ponto de vista

3 “Morpheus : The Matrix is a system, Neo. That system is our enemy. But when you're inside, you look around. What do you see. Business men, teachers, lawyers, carpenters. The very minds of the people we are trying to save. But until we do, these people are still a part of that system, and that makes them our enemy. You have to understand, most of these people are not ready to be unplugged. And many of them are so inert, so hopelessly dependent on the system that they will fight to protect it. Were you listening to me Neo, or were you looking at the woman in the red dress? Neo : I was... Morpheus : Look again. [surge o Agente Smith apontando uma arma para a cabeça de Neo] Freeze it! Neo : This...this isn't the Matrix? Morpheus : No. It's another training program designed to teach you one thing. If you are not one of us, you are one of them. Neo : What are they? Morpheus : Sentient programs. They can move in and out of any software still hard wired to their system. That means that anyone we haven't unplugged is potentially an agent. Inside the Matrix, they are everyone and they are no one. We are survived by hiding from them, by running from them. But they are the gatekeepers. They are guarding all the doors. They are holding all the keys, which means that sooner or later, someone is going to have to fight them.” (Larry & Andy Wachowski, The Matrix . Warner Bros. Pictures, 1999).

237 do fait divers . Tais instâncias ficarão indicadas, porém, como perspectiva de desenvolvimento. O fait divers está esboçado nos substratos das perícopes, e, tal como deixei mais ou menos insinuado aqui e ali, o contexto paysan é uma dimensão que daria liga aos faits divers descritos nas perícopes exemplares: eles sempre se passam na campagne , nunca na cidade. Não tenho condições de continuar esta argumentação agora, o fait divers faz parte de um momento anterior dos meus interesses – mesmo se, concretamente, mas sem ser explícito, eu tenha pensado as perícopes como uma espécie de noticiário “jornalístico” comentado . Para usar a terminologia que empreguei antes, um “noticiário do apocalipse”, embora longe da “imprensa marrom” dos prodígios e dos canards sangrentos: um noticiário apocalíptico humanista , sofisticado como convém a um narrador tão distinto e complexo. Deixo a vocês leitores a possibilidade de ampliar a leitura do ensaio nesta direção – que, por ora, ficará em aberto 4.

Na verdade, o que realmente não gostaria de deixar de lado aqui sem ao menos esboçar uma pincelada é esta perspectiva em que atribuí uma faceta farmacológica para o ceticismo do narrador de Dos Coxos – esboçada aqui e ali no texto da tese. Na verdade, sem me dar conta disso no início, pensei o uso do ceticismo pelo narrador numa logística francamente mágica, no sentido de contrafeitiço (que, aliás, é uma das dimensões intrínsecas do conceito de pharmakon ). Como vimos mais acima, na análise do ensaio partimos de uma noção paradisíaca da perícope inicial para uma leitura de crise, apocalíptica por assim dizer, de solapamento de suas próprias estruturas edênicas iniciais, de poluição e contaminação de toda sua ecologia pastoral preliminar. Se essa contaminação foi implementada pelo movimento dos exempla , seria interessante ver o que exatamente nos exempla , em cada caso particular, se constitui como catalisador dessa contaminação e, no sentido inverso, que elementos seriam seus purificadores potenciais. Seja como for, as perícopes mostram enredos onde todo esse mundo “incerto e expansivo” de crenças e valores está sempre em funcionamento – por onde quer que o narrador passe ou devaneie, independentemente do que ele pensa e diz. O fato do narrador parecer se considerar fora desse universo, ao assumir suas diversas personae céticas (jurídicas, filosóficas, religiosas), realmente importa muito pouco. Pois ao assumir essas personae , ele indiretamente se declara dentro desse universo. Neste caso, o ceticismo poderia ser visto aqui como algo mais abrangente que um dispositivo (ou estratégia) apenas intelectual.

4 Efetivamente, acho que vou retomá-la na minha pesquisa de Pós-doutorado.

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A crítica normalmente vê no ceticismo montaignista, com boas razões, claro, uma dimensão epistemológica e uma dimensão político-religiosa. Mas, no caso de Dos Coxos , o ceticismo é também, como tentei acentuar, uma proteção contra as superstições. É uma proteção que toma a forma verbal de um amuleto, um defixio . É esta proteção que permite ao narrador cumprir suas missões narrativas, viajar, entrar no território das superstições e se manter à parte e a salvo: a característica deambulatória das perícopes exemplares reforça esse aspecto, pois nos contos folclóricos, como sabemos, quando surge um amuleto, um objeto mágico, é porque o herói está a ponto de ingressar em sinistros e nauseabundos submundos. Um trecho de Dos Coxos é particularmente rico nestas nuances:

[B][B][B] Gera-se muito abuso no mundo [C][C][C] – ou para dizê-lo mais ousadamente, todos os abusos do mundo são gerados – [B][B][B] pelo fato de nos ensinarem a hesitarmos em professar nossa ignorância, [C][C][C] e de sermos obrigados a aceitar tudo o que não podemos refutar. [B][B][B] Falamos de todas as coisas como preceito e sentença. [B][B][B] O estilo [o procedimento judicial] em Roma determinava que mesmo aquilo que uma testemunha depunha por haver visto com os próprios olhos e o que um juiz decidia por sua mais segura ciência fosse formulado neste modo de falar: “parece-me” [Il me semble] . Fazem-me detestar as coisas verossímeis quando as expõem como infalíveis. Gosto destas palavras, que abrandam e moderam a temeridade de nossas asserções [propositions]: “talvez” [a l’avanture], “de certo modo” [aucunement], “algum” [quelque], “dizem” [on dict], “acho” [je pense], e outras semelhantes. E, se tivesse precisado educar crianças, tanto lhes teria posto nos lábios este modo de responder [C][C][C] inquiridor, não resolutivo: [B] “O que isto quer dizer?” [Qu’est-ce à dire ?], “não estou entendendo” [je ne l’entens pas], “poderia ser: é verdade?” [il pourroit estre : est-il vray ?], que elas teriam conservado aos sessenta anos o jeito de aprendizes ao invés de aos dez anos fazerem papel de doutores, como fazem. Quem quiser sarar [guerir] da ignorância tem de confessá-la. [C][C][C] Íris é filha de Taumante. A admiração [admiration] é fundamento de toda a filosofia; a investigação, sua progressão, a ignorância, seu final [bout] . [B][B][B] Mas em verdade há uma ignorância forte e generosa que em honra e coragem nada fica a dever à ciência [C][C][C] ignorância que para concebê-la não há menos ciência do que para conceber a ciência.5

5 [B] Le stile à Rome portoit, que cela mesme, qu’un tesmoin deposoit, pour l’avoir veu de ses yeux, et ce qu’un juge ordonnoit de sa plus certaine science, estoit conceu en cette forme de parler. Il me semble. On me faict haïr les choses vray-semblables, quand on me les plante pour infaillibles. J’aime ces mots, qui amollissent et moderent la temerité de nos propositions : A l’avanture, Aucunement, Quelque, On dict, Je pense, et semblables : Et si j’eusse eu à dresser des enfans, je leur eusse tant mis en la bouche, cette façon de respondre : [C] enquestente,

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Trata-se, a princípio de demolir o “verossímil”, de mostrar que a razão humana é falha – donde a plena justificativa dos operadores céticos:

[B][B][B] (...) mesmo aquilo que uma testemunha depunha por haver visto com os próprios olhos e o que um juiz decidia por sua mais segura ciência fosse formulado neste modo de falar: “Parece-me”. Fazem-me detestar as coisas verossímeis quando as expõem como infalíveis.

Nesta perícope, gostaria de por em relevo esta afirmação bastante categórica lançada pelo narrador – que, curiosamente, abusa do conectivo lógico “é” em vez de dispositivos céticos que ele mesmo indicara mais acima (como “talvez” ou “pode ser”)6: “[C] L’admiration est fondement de toute philosophie: l’inquisition, [é] le progrez: l’ignorance, [é] le bout .7” Para piorar, esta afirmação vem antecedida por uma outra (misteriosa) frase [C] “ Iris est fille de Thaumantis ”. Os escólios editoriais, neste caso, são pouco esclarecedores 8. Lawrence Kritzman interpreta o conjunto dessas frases [C] no contexto da duperie , valorizando a posição do narrador como uma crítica à deficiência dos testemunhos vulgares diante dos fatos incompreensíveis 9. Richard Regosin, que também analisa a passagem, vai no mesmo sentido 10 . A filiação mitológica entre Íris e Taumante, por sua vez, é feita

non resolutive : [B] Qu’est-ce à dire ? Je ne l’entens pas ; Il pourroit estre : Est-il vray ? qu’ils eussent plustost gardé la forme d'apprentis à soixante ans, que de representer les docteurs à dix ans : comme ils font. Qui veut guerir de l’ignorance, il faut la confesser. [C] Iris est fille de Thaumantis. L’admiration est fondement de toute philosophie : l’inquisition, le progrez : l’ignorance, le bout. [B] Voire dea, il y a quelque ignorance forte et genereuse, qui ne doit rien en honneur et en courage à la science : [C] Ignorance pour laquelle concevoir, il n'y a pas moins de science, qu'à concevoir la science. (VS, 1030). 6 Operadores, bom lembrar, reputados, pelo próprio narrador, como adequados a qualquer contexto de asserção. 7 O verbo “ser” está elidido, mas é claramente o conectivo principal. 8 A edição de Villey apenas reforça o sentido afirmando que “le nom du Centaure Thaumas, père d’Iris, signifie ‘étonnement’, ‘admiration’.” (VS, 1030). Costhek Abilio acrescenta à nota de VS: “Iris é mensageira dos deuses e portanto o que disser é verdade” (CA, III, 369, n. 18). Segundo Thibaudet & Rat, a frase vem de Platão ( Teeteto , 155 d), com a particularidade que Montaigne “emploie le genitif Thaumantis pour le nominatif Thaumas ” ( Œuvres Complètes , p. 1662); 9 “By falling to read visual signs with deep understanding, humanity is prone to find greatness in that which is most distant and incomprehensible. To witness a miracle ultimately produces a situation in which the viewer looks but does not really quite understand. Montaigne’s writerly testimony bears witness to the monstrosity of our judgment and the strangeness of our reason, its ‘erreur et estonnement’.” (Lawrence KRITZMAN, The Fabulous Imagination. On Montaigne Essays , Columbia University Press, 2009, p. 59) 10 Richard REGOSIN , Montaigne’s Unruly Brood , University of California Press, 1996, p. 172.

240 originalmente por Hesíodo 11 , mas é efetivamente com Platão, no Teeteto (155 d), a partir de um trocadilho entre Θαύμας [espanto , substantivo, e Espanto , personagem mitológico] e o verbo θαυμάζειν [ser tomado de espanto], que encontramos o sentido pleno da expressão 12 . No entanto, pelo contexto e pelo vocabulário de Dos Coxos , a frase foi muito provavelmente tirada de uma passagem do Tratado do Riso de Laurent Joubert:

Hesiode auteur des fabuleuses invancions et divin Philosophe, voulant signifier que l’admiracion des effets de nature angeandre inquisicion et an fin [“enfim”] congnoissance des causes, ha feint [“ficcionou”] ingenieusemant que Iris etoit la filhe de Thaumas: pour demontrer que qui ne seroit epris d’un ebahissemant et curieus desir, jamais ne

11 “Espanto [ Θαύμας ] à filha do Oceano de profundo fluir | desposou, Ambarina. Ela pariu ligeira Íris | e Harpias de belos cabelos (...)” (HESÍODO , Teogonia , vv. 265-266, tradução Jaa TORRANO , Iluminuras,1991, p. 121). 12 É uma passagem longa mas importante e vale a pena retomá-la com o texto completo: “ [154 d] Sócrates : Então, se eu e tu fôssemos uns sábios espantosos e tivéssemos descoberto tudo sobre a mente, partindo da nossa riqueza, havíamos de nos pôr imediatamente à prova, um ao outro lançando-nos os dois à luta, ao estilo dos sofistas [e] atirando argumentos um ao outro. Como porém somos gente simples, vamos primeiro querer ver como são as coisas; se naquilo que estamos a pensar concordam uma com a outra , ou não, de nenhuma maneira. Teeteto : Quanto a mim, era isso mesmo o que eu queria. Sócrates : Também eu. E, sendo assim, dado que temos muito tempo livre, vamos analisar tudo de novo, [155 a] sem sermos capciosos, mas submetendo-nos, na realidade, nós próprios a um exame, para considerarmos até que ponto estão em nós estas visões? Examinando a primeira delas, diremos, como penso, que nunca nada se torna maior ou mais pequeno nem em tamanho, nem em número, enquanto for igual a si mesmo. Não é assim? Teeteto : É. Sócrates : Em segundo lugar, algo a que nada se acrescenta, nem se retira, não aumenta nem diminui, mas é sempre igual. Teeteto: Exatamente. [b] Sócrates : Em terceiro, não acontece que aquilo que primeiro não era, mas depois é, não poderá ser sem ter sido e vindo a ser? Teeteto : Parece que sim. Sócrates : Penso que estes três pontos, sobre os quais concordamos, lutam entre si na nossa alma, quando falamos sobre os dados ou, quando afirmamos que eu tenho uma certa idade, não cresço, nem me acontece o contrário; neste ano sou maior que tu, que agora és jovem; depois serei mais pequeno, sem ter diminuído de tamanho, por tu teres crescido. [c] De fato, dou depois aquilo que não era antes, não me tendo tornado; pois, sem vir a ser, é impossível que tenha sido, e, sem ter perdido tamanho, não poderia tornar-me mais pequeno. Também milhares de milhares de outros casos são assim, se admitirmos estas coisas. De fato, suponho que me segues, Teeteto. Pelo menos pareces-me não estar atrapalhado com isto. Teeteto : Pelos deuses, Sócrates, como me espanto muitíssimo com o fato de ser assim e, por vezes, quando verdadeiramente olho para isso fico tonto. [d] Sócrates : Efetivamente, meu amigo Teodoro parece não ter adivinhado mal a tua natureza. Pois o que estás a passar, o maravilhares-te, é mais de um filósofo. De fato, não há outro princípio da filosofia que não este, e parece que aquele que disse que Íris é filha de Taumante não fez mal a genealogia. (...)” (PLATÃO , Teeteto , trad. de Adriana NOGUEIRA e Marcelo BOERI , Calouste Gulbenkian, 2010, pp. 210-212).

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s’anquerroit [“interrogaria”] et par consequant il n’invanteroit [“inventaria”] rien .13

Não é à toa que esse mito – articulando espanto , inquirição e invenção – esteja sendo invocado num tratado sobre o riso . Quase todos os teóricos da novela do século XVI estariam de acordo com Joubert porque, para eles, o espanto é também a causa do riso, bem como a causa da novidade 14 :

[Diferentemente dos acontecimentos ordinários e quotidianos], podemos concluir que, entre todas as coisas, somente aquelas que procedem da sorte ou do acaso conduzem ao espanto [maraviglia] , e que elas produzem este efeito com tanto mais força na medida em que se distanciam do modo como ocorrem habitualmente. Mas comparando estas coisas entre si, diremos que aquela que engana [inganna] nosso entendimento é muito mais espantosa [maravigliosa] que a outra: como se aparecesse nela uma força viva que subjugasse [distrugga] o discernimento e o raciocínio. (...) Devemos tirar dessas duas fontes as ações para as novelas. É preciso deixar claro que nem todas as ações que são assim nos convém, dado que somente a ação ridícula [ridicola] é nosso objeto, de maneira que toda ação espantosa que não for causa de riso deverá ser deixada de lado. (BONCIANI , Lezione , 169) 15 .

Mas ainda que seja certo que todas as ações ridículas [ridicula] são tiradas das coisas enumeradas acima, no capítulo dos ridículos, se não se colocar ao lado o espanto [admiratio] , elas não poderão cumprir seu trabalho. (...) Pois mesmo se [depois de introduzi-la numa cena] a feiura perdura, ela não deleitará mais, pelo fato de não ter mais nada de novo, o espanto [admiratio] que havia levado ao riso, cessa. É por essa razão que, nos próprios ridículos, o espanto não pode ser separado do riso [risu] . (...) Horácio dizia que o espanto era colado ao riso e que a causa do espanto era a novidade, afirmando ‘que eu não achei bom duas ou três vezes’, querendo dizer [que não é] bom [senão quando acontece] raramente . Pois as coisas que são raras são chamadas, por isso, de novas. (...) Por essa razão eu me perguntarei sempre porque Cícero, que tratou plenamente dos ridículos, não tenha feito uma referência sequer ao espanto, que é a causa do riso; seria

13 Laurent JOUBERT , Prologue au Traité du ris , Paris, Nicolas Chesneau, 1579, Slaktine Reprints, 1973, p. 1. 14 A relação entre o riso e o espanto é discutida no Problema XXXV, 6, do Pseudo-Aristóteles. Nuccio ORDINE (org.), “Théorie de la nouvelle et théorie du rire au XVIe siècle” in Traités sur la nouvelle à la Renaissance. Bonciani, Bargagli, Sansovino , J. Vrin & Nino Aragno Editore, 2002. 15 Francesco BONCIANI , “Lezione sopra il comporre delle novelle” [1574] in Nuccio ORDINE (org.), Traités sur la nouvelle à la Renaissance. Bonciani, Bargagli, Sansovino , J. Vrin & Nino Aragno Editore, 2002, p. 173.

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preciso que ele se lembrasse, já que o riso não pode nunca ser excitado sem o espanto. (MAGGI , De ridiculis , p. 98) 16 .

Ora, as coisas que suscitam verdadeiramente o riso são, em primeiro lugar, as coisas novas, imprevistas, leves e divertidas, tendo certa vivacidade e harmonia com o resto. (...) E tais coisas são apresentadas como novas e produzem, através de sua novidade, um espanto repentino. (FRANCASTOR , De admiratione et Ecstasi et risu , p. 118) 17 .

Neste ínterim, ao invocar um mito que faz parte da lógica do riso e da novidade dos teóricos do século XVI (boa parte deles, teóricos também da novella ), a palavra “bout ” ganha aqui uma dimensão bem mais complexa. Os intérpretes que analisaram o mito no texto de Dos Coxos não consideraram a passagem, ao que tudo indica, como parte da frase [B] anterior, considerando a adição [C] (começando em “Íris” e terminando em “ bout ”) como um conjunto finito e completo em si mesmo; no que, aliás, em outros casos, poderiam ter razão. No entanto, são as couches [B] que fornecem sentido ao trecho; as couches [C], neste caso, no que estão em sintonia com seu sentido primário de complementaridade editorial, são apenas um reforço do sentido geral já estabelecido por [B]:

[B][B][B] Quem quiser sarar [guerir] da ignorância tem de confessá-la. [C][C][C] Íris é filha de Taumante. A admiração [admiration] é fundamento de toda a filosofia; a investigação, sua progressão, a ignorância, seu final [bout]. [B][B][B] Mas em verdade há uma ignorância forte e generosa que em honra e coragem nada fica a dever à ciência [C][C][C] ignorância que para concebê-la não há menos ciência do que para conceber a ciência.

Isto está muito claro quando observamos espacialmente o texto: a sequência [B]- [C]-[B]-[C] é totalmente lógica e simétrica; a frase [B] inicial foi dividida ao meio, cada metade recebendo uma adição [C] em seu final. Assim, trata-se de uma mesma frase , compósita, que, neste caso, precisa ser lida em conjunto.

Efetivamente, se lermos a frase [C] (“ Iris ... bout ”) não em si mesma mas como complemento de uma ideia exposta inicialmente por [B], o trecho inteiro valorizará a ciência (filosofia) como filha do espanto , correlação das mais clássicas; mas também valorizará – numa leitura de gradação quantitativa, por assim dizer –

16 Apud Nuccio ORDINE (org.), “Théorie de la nouvelle et théorie du rire au XVIe siècle” in Traités sur la nouvelle à la Renaissance. Bonciani, Bargagli, Sansovino , J. Vrin & Nino Aragno Editore, 2002, p. 85. 17 Apud Nuccio ORDINE (org.), “Théorie de la nouvelle et théorie du rire au XVIe siècle” in Traités sur la nouvelle à la Renaissance , p. 88.

243 espanto com investigação e ignorância na mesma simbiose. O que me parece ser, neste caso, uma novidade .

Para isso, poderíamos invocar os operadores céticos, que não estavam em primeiro plano aqui, como dispositivos “desconstrutores” gerais. “[C] L’admiration est fondement de toute philosophie: l’inquisition,[é] le progrez: l’ignorance, [é] le bout .” : se a “filosofia” permanece como pretenso corolário lógico da sentença, temos de desconfiar se essa frase categórica (“é isso”, “é aquilo”) não precisaria ser matizada com um “talvez” ou um “pode ser”. Quando em uso, tal como nos aconselha o próprio narrador, esses operadores poderiam perfeitamente impor, à leitura do trecho, uma escala diferente: “[C] A admiração talvez seja o fundamento de toda Filosofia; a inquisição talvez seja seu progresso; a ignorância talvez seja seu final” 18 . Neste caso, poderíamos entender a ignorância como o fim da filosofia (quer dizer, o “ bout ” como derrocada , que é a leitura mais direta); mas “talvez ” também como o esgotamento da própria filosofia (o “ bout ” como processo final , ontológico e/ou epistemológico) 19 . Se, nela, a estrutura “espanto-filosofia-investigação- ignorância” está num decrescendo valorativo, o leitor deve “desconfiar ” se esta curva decrescente ou regressiva não “poderia ser ” vista, por outro lado, como uma progressão “hermética” (ou “mística”): cujo fim (não a finalidade, mas o final) “seria ” o conhecimento sem conhecimento , isto é, uma ignorância de valor positivo (hermeticamente falando). Lendo novamente o trecho, ele revelará uma possibilidade de interpretação muito diferente da inicial:

[B][B][B] Quem quiser sarar [guerir] da ignorância tem de confessá-la. [C][C][C] Íris é filha de Taumante. A admiração [admiration] é fundamento de toda a filosofia; a investigação, sua progressão, a ignorância, seu final [bout]. ...

E, efetivamente, se recuperarmos a frase original [B] que compunha a continuação do trecho, reforçada no mesmo sentido e contexto pela adição [C] correspondente, esta estrutura, em princípio regressiva, se re-energiza finalmente em docta ignorantia :

[B][B][B] Quem quiser sarar [guerir] da ignorância tem de confessá-la. [C][C][C] Íris é filha de Taumante. A admiração [admiration] é fundamento de toda a filosofia; a investigação, sua progressão, a ignorância, seu final

18 Pois, segundo o narrador, temos de ter sempre em mente, qualquer que seja a situação, os operadores que justamente nos ajudam a minar as certezas da “verdade” irrefutável. 19 Atente-se que estou tendo o cuidado de não confundir “bout” e “but”, embora os empregos respectivos ainda sejam pouco claros no século XVI.

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[bout]. [B][B][B] Mas em verdade há uma ignorância forte e generosa que em honra e coragem nada fica a dever à ciência [C][C][C] ignorância que para concebê-la não há menos ciência do que para conceber a ciência.

Evidentemente, os termos da perícope, em si, não são a princípio místicos, mas uma aproximação com uma passagem de Nicolau de Cusa pode servir para alinhavar sua posição numa lógica que valoriza o esgotamento do discurso diante da “verdade”:

É necessário, no entanto, que aquele que quer atingir o sentido [do que vou dizer] eleve o intelecto para lá da força das palavras, mais do que insista nas propriedades dos vocábulos que não podem adaptar-se convenientemente a tão elevados mistério intelectuais. Os exemplos [que der aqui] é necessário utilizá-los, como guias, de modo transcendente, abandonando as coisas sensíveis, para que o leitor se eleve facilmente ao simples plano intelectual. 20

Esta interpretação “teológico-negativa ” da perícope, advinda de certo tom cético, ganha ainda mais força se a considerarmos em sinergia com a página final do ensaio.

[B] Assim aconteceu na escola filosófica: o orgulho dos que atribuíam ao espírito humano a capacidade de todas as coisas causou em outros, por despeito e por emulação, essa ideia de que ele não é capaz de coisa alguma. Uns fundamentam na ignorância esse mesmo extremismo que outros fundamentam na ciência – para que não se possa negar que o homem é imoderado em tudo e que ele não tem outra barreira que não a da dificuldade e incapacidade de ir além.

Pois as deficiências dos discursos e dos testemunhos, dimensões frequentemente invocadas pelo narrador para revelar o caráter absurdo de diversas situações diegéticas das perícopes, se resolvem apenas naquilo que chamei de “ontologia do entre-coisas” dos parágrafos finais de Dos Coxos . Nesse “entre-coisas” do rei e do cínico, da dracma e do talento, o discurso se esgota numa piada, da qual um termo de frase só adquire sentido na medida em que se completa com outro membro de frase que é seu sentido oposto, que por sua vez perde seu sentido ao atribuir sentido ao membro de frase anterior. As questões em torno de discursos e testemunhos (as “detestáveis” coisas “infalíveis” dadas como certas, as superstições, as duperies ) se resolvem ali, como eu disse antes, num plano altamente intelectual e estático (em contraste direto com a dimensão exemplar deambulatória e confessional das perícopes anteriores): e se resolvem através da invocação desta espécie de lugar

20 Nicolau de CUSA , A Douta Ignorância (1440), cap. II, 8, Calouste Gulbenkian, p. 6.

245 neutro do próprio discurso, que existe quase que exclusivamente na própria operação discursiva, “dúplice e diversa”, como brincadeira ou jogo de palavras:

[B][B][B] Não há nada tão maleável e errático quanto nosso entendimento: é o sapato de Terâmenes, adequado para todos os pés. E ele é dúplice e diverso, e dúplices e diversas as matérias. ‘Dá-me uma dracma de prata, dizia a Antígono um filósofo cínico. – Isso não é presente de rei, respondeu ele. – Então dá-me um talento. – Isso não é presente para um cínico’ (CA, III, 376)

Por outro lado, mesmo se retomarmos nosso trecho sobre Íris e Taumante de um modo um pouco menos especulativo, ainda assim a operação deixaria descortinar sutilmente o circuito da imposture e da duperie (o reino por excelência dos ignorantes e supersticiosos), que foram tão importantes na caracterização das perícopes exemplares. Simplesmente porque, se associarmos a invocação de Íris e Taumante com os textos de Joubert e com os dos teóricos do riso e da novela, vemos surgir novamente, através dos dois personagens míticos, “espanto” e “discurso”, os vínculos possíveis entre o “verdadeiro” (como a filosofia e a esfera da justiça) e o “ conteur ” (ou o novelesco, se quiserem): existe uma verdade da ignorância, uma verdade da duperie , e como “não há menos ciência [nesta ignorância] do que para conceber a ciência ”, [B] passa então ironicamente à... perícope da sentença de Coras!

[B][B][B] Quem quiser sarar [guerir] da ignorância tem de confessá-la. [C][C][C] Íris é filha de Taumante. A admiração [admiration] é fundamento de toda a filosofia; a investigação, sua progressão, a ignorância, seu final [bout]. [B][B][B] Mas em verdade há uma ignorância forte e generosa que em honra e coragem nada fica a dever à ciência [C[C[C][C ]]] ignorância que para concebê-la não há menos ciência do que para conceber a ciência. [B][B][B] Vi em minha infância [i.e., antes da morte do pai] um processo que Coras, conselheiro de Toulouse, mandou imprimir, de um acontecimento estranho: dois homens que se passavam um pelo outro. Lembra-me (e não me lembro de outra coisa mais) que me pareceu que Coras julgara a impostura [imposture] daquele que considerou culpado como tão espantosa e excedendo tanto nosso conhecimento (e o dele que era juiz) que considerei muito ousada a sentença que o condenara a ser enforcado.

Em outras palavras, podemos entender o espanto, na perícope de Íris e Taumante, como um acréscimo [C] que reformula a opinião a respeito da “ignorância produtiva” (uma questão para [B]) não apenas em relação à ciência, mas também como propedêutica e motor do delectare .

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No entanto, olhando mais de perto ainda, os operadores céticos também servem para “conservar a juventude” e curar a ignorância.

[B] Gosto destas palavras, que abrandam e moderam a temeridade de nossas asserções [propositions]: “talvez” [a l’avanture], “de certo modo” [aucunement], “algum” [quelque], “dizem” [on dict], “acho” [je pense], e outras semelhantes. E, se tivesse precisado educar crianças, tanto lhes teria posto nos lábios este modo de responder [C][C][C] inquiridor, não resolutivo: [B][B][B] “O que isto quer dizer?” [Qu’est-ce à dire ?], “não estou entendendo” [je ne l’entens pas], “poderia ser: é verdade?” [il pourroit estre : est-il vray ?], que elas teriam conservado aos sessenta anos o jeito de aprendizes ao invés de aos dez anos fazerem papel de doutores, como fazem.

O processo de cura é catártico (“ il faut la confesser ”) e esse jogo quase psicanalítico entre confissão , cura (termos que aparecem incisivamente neste momento de Dos Coxos ) e conservação da juventude , apesar de irônico, se deixa capturar por uma lógica muito similar ao do circuito mágico antigo. A enunciação dos operadores céticos está em conexão direta com um contexto de sofrimento e da geração do mal :

[B][B][B] Gera-se muito abuso no mundo [C][C][C] – ou para dizê-lo mais ousadamente, todos os abusos do mundo são gerados – [B][B][B] pelo fato de nos ensinarem a hesitarmos em professar nossa ignorância, [C][C][C] e de sermos obrigados a aceitar tudo o que não podemos refutar.

É, pois, uma perspectiva essencialmente gnóstica (e, de certo modo, milenarista, pois implica numa retórica da salvação). O “professar nossa ignorância”, é uma atividade cerceada, porém, por “eles”, anônimos (professores ?, pais ?, o tecido social ?) que, por meio desse controle, perpetram um mal concreto – mal que, aliás, será enfrentado pelo narrador (o viajante cético que se depara com a massa anônima dos “eles”) em todas as perícopes, exemplares ou não. Neste caso, a ignorância , como se vê, embora filtrada pelo verbo “professar” (o que lhe fornece a dinâmica específica, catártica, do confessional), é algo paradoxalmente benéfico – por oposição, tal como discutimos acima, a uma leitura mais apressada, que a consideraria simplesmente o oposto da verdade (filosofia, ciência).

Por outro lado, essa situação de acuo do narrador (que se posiciona em relação a “eles”) leva a uma reação , que é cristalizada na sequência do texto pela enunciação concreta e literal dos operadores céticos. Se retomarmos novamente o trecho em questão, veremos perfeitamente que os operadores céticos (em negrito) aparecem no

247 contexto da cura da ignorância, mas podem ser tomados em uma logística mais ativa que passiva:

[B][B][B] Gera-se muito abuso no mundo [C][C][C] – ou para dizê-lo mais ousadamente, todos os abusos do mundo são gerados – [B][B][B] pelo fato de nos ensinarem a hesitarmos em professar nossa ignorância, [C][C][C] e de sermos obrigados a aceitar tudo o que não podemos refutar. [B][B][B] Falamos de todas as coisas como preceito e sentença. [B][B][B] O estilo [o procedimento judicial] em Roma determinava que mesmo aquilo que uma testemunha depunha por haver visto com os próprios olhos e o que um juiz decidia por sua mais segura ciência fosse formulado neste modo de falar: “parece-me” [IlIl me semblesemble]. Fazem-me detestar as coisas verossímeis quando as expõem como infalíveis. Gosto destas palavras, que abrandam e moderam a temeridade de nossas asserções [propositions]: “talvez” [aaaa l’avanturel’avanture] , “de certo modo” [aaaaucunementucunementucunement], “algum” [qqqquelqueuelqueuelque], “dizem” [oooonn dictdict], “acho” [jjjjee pensepense], e outras semelhantes. E, se tivesse precisado educar crianças, tanto lhes teria posto nos lábios este modo de responder [C][C][C] inquiridor, não resolutivo: [B] “O que isto quer dizer?” [Qu’estQu’estQu’est----cece à dire ???]? , “não estou entendendo” [jjjjee ne l’entens paspas], “poderia ser: é verdade?” [iiiill pourroit estre : eeesteststst----ilil vray ???]? , que elas teriam conservado aos sessenta anos o jeito de aprendizes ao invés de aos dez anos fazerem papel de doutores, como fazem. Quem quiser sarar [guerir] da ignorância tem de confessá-la. [C][C][C] Íris é filha de Taumante. A admiração [admiration] é fundamento de toda a filosofia; a investigação, sua progressão, a ignorância, seu final [bout] . [B][B][B] Mas em verdade há uma ignorância forte e generosa que em honra e coragem nada fica a dever à ciência [C][C][C] ignorância que para concebê-la não há menos ciência do que para conceber a ciência.21

Quer dizer, os operadores surgem não apenas no contexto passivo do remédio mas também no contexto ativo do combate . São, por assim dizer, as armas do narrador

21 [B] Le stile à Rome portoit, que cela mesme, qu’un tesmoin deposoit, pour l’avoir veu de ses yeux, et ce qu’un juge ordonnoit de sa plus certaine science, estoit conceu en cette forme de parler. Il me semble. On me faict haïr les choses vray-semblables, quand on me les plante pour infaillibles. J’aime ces mots, qui amollissent et moderent la temerité de nos propositions : A l’avanture, Aucunement, Quelque, On dict, Je pense, et semblables : Et si j’eusse eu à dresser des enfans, je leur eusse tant mis en la bouche, cette façon de respondre : [C] enquestente, non resolutive : [B] Qu’est-ce à dire ? Je ne l’entens pas ; Il pourroit estre : Est-il vray ? qu’ils eussent plustost gardé la forme d'apprentis à soixante ans, que de representer les docteurs à dix ans : comme ils font. Qui veut guerir de l’ignorance, il faut la confesser. [C] Iris est fille de Thaumantis. L’admiration est fondement de toute philosophie : l’inquisition, le progrez : l’ignorance, le bout. [B] Voire dea, il y a quelque ignorance forte et genereuse, qui ne doit rien en honneur et en courage à la science : [C] Ignorance pour laquelle concevoir, il n'y a pas moins de science, qu'à concevoir la science. (VS, 1030).

248 contra “eles”. E inimigos assim (anônimos, sorrateiros e ubíquos) são equivalentes a potestades: estão em todo lugar. Seu poder mais característico é o que permite criar, a partir da imposture , da duperie e da ignorância , as ilusões que se corporificam nas superstições. Neste caso, podemos retomar a referência a Taumante como novo ponto de partida. Sabemos que o verbo θαυμάζειν é importante no circuito da duperie , pois uma longa tradição filosófica nos reporta aos criadores de espanto , expressão com que Platão caracteriza os goetes (magos) na República 22 : são eles que praticam as artes “thaumatopoéticas”, quer dizer, criam ilusões, mudam a aparência de seu corpo ou dos objetos. Trata-se, evidentemente, de um termo genérico – indo da descrição técnica de especialistas nas artes mágicas até o circuito algo circense de indivíduos que entretêm o público com prestidigitações e coisas similares 23 . Por outro lado, a tradição patrística, monástica e demonológica liga a duperie às ações e maquinações do diabo – e Descartes faz jus a ambas, ao nomear, nas Meditações , seu prestidigitador epistemológico fundamental como um trompeur . De um modo geral, é o que se trata em Dos Coxos : vemos lá todas essas espécies de prestidigitações, ligadas ou não ao demoníaco, algumas vezes cômicas, outras não necessariamente, insufladas por uma duperie rizomática que alimenta e se alimenta desse circuito: ventríloquos apocalípticos, feiticeiros, juízes idiotas estão todos, mal ou bem, funcionando na órbita da imposture e da falsificação. Circuito da superstição, para o narrador de Dos Coxos , é circuito da ignorância.

22 “Como, também o mesmo objeto se nos afigura quebrado ou reto, quando visto dentro ou fora da água, côncavo ou convexo, por efeito da ilusão visual produzida pelas cores, evidentemente todo distúrbio desta natureza reside ele mesmo em nossa alma. É graça a esta vulnerabilidade [παθήματι ] de nossa natureza que a arte da pintura de sombras não deixa por tentar alguma espécie de magia [γοητείας ], e assim também a prestidigitação [θαυματοποιία ] e todas as outras habilidades desse gênero.” (Platão, República X, 602 d e ss). 23 “Magicians or goetes are for Plato above all persons who create illusions; they are persons who practice wonder-working ( thaumatopoiia ); persons who can change their own appearance or the appearance of objects ( goetes as creators of illusions: Republic 584a8–9, 602c10–d4; goetes able to change their form: Euthydemus 288b8, Republic 380d1–383a5; goetes and thaumatopoiia : Sophist 234e7–235b6). Since Plato is interested in the relationship between appearance and reality, it is natural that he should appeal to the illusion-creating side of magic to illustrate the difference between appearance and reality. It would be wrong to conclude that the illusion- creating side of magic was more important than the spell-casting. What Plato’s references to magic-working do show is that a good deal of magic consisted in public performance. Magicians were not necessarily obscure figures, consulted only in back alleys; they might well be flamboyant theatrical personalities, eager to perform in front of an audience. Not all wonder-workers or thaumatopoioi would have been classified as magicians or goetes . Thaumatopoiia or thaumatourgia encompasses a wide range of activities, from the acts of the acrobat and juggler to the performance of conjuring tricks. It is the persons who create illusions, whether by mechanical means or by sleight of hand, who are the more likely to be called goetes . The settings in which wonder-workers and magicians performed will have ranged from drinking parties or symposia, to public crossroads, marketplaces, and even the theater.”

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Uma ignorância ruim, uma ignorância douta (que faz ciência , independentemente do que podemos entender por “ciência”): mas boa ou ruim, douta ou não, a ignorância é plenamente capaz de “construir mundos”. Neste sentido, a perícope de Iris e Taumante, portanto, reforça mais uma vez a condição “criativa”, poética , do thaumazein , em tudo o que a antecedeu e em tudo o que sucederá.

Indo mais além, observando as funções dos personagens descritas por Propp como características do conto maravilhoso, podemos destacar na leitura que fizemos de Dos Coxos diversos conjuntos das mesmas situações-tipo: o herói-buscador aceita ou decide reagir ; o herói deixa a casa ; o herói é submetido a uma prova, a um questionário, a um ataque, que o preparam para receber um meio ou um auxiliar mágico ; o herói reage diante das ações do futuro doador (liberta um prisioneiro, poupa alguém que suplica, efetua a partilha e reconcilia os contendores) ; o herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura ; o herói é perseguido ; o herói chega incógnito à sua casa ou a outro país ; o herói recebe nova aparência ; o herói regressa 24 .

Vemos que, efetivamente, todos esses elementos estão presentes, às vezes de modo difuso, outras vezes de modo claro e distinto, nas perícopes que tratamos anteriormente. Para completar o quadro dessas situações-tipo no ensaio, faltaria, a princípio, apenas o auxiliar mágico : contudo, ainda que de modo discreto, ele também está presente em Dos Coxos . Os operadores céticos foram invocados por [B] sem qualquer referência a Íris e Taumante (que é, como vimos acima, uma adição [C]). No Exemplar de Bordeaux , “Montaigne [C]” corrigiu o texto de próprio punho, mas ao acrescentar a frase [C] “Íris é filha de Taumante”, colocou também todas as expressões e frases que indicam esses operadores céticos em maiúsculas (correção estranhamente não seguida por Villey, logo, não levada em consideração por Costhek Abilio). No contexto em que estão, esses operadores foram não só personificados como claramente hipostasiados – no que podemos extrair consequências de ordem quase místicas:

24 Vladimir Propp, Morfologia do Conto Maravilhoso , Forense Universitária, 2006², cap. 3.

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No fac-símile do Exemplar de Bordeaux 25 , acima, vemos perfeitamente a adição [C] com a frase sobre Íris e Taumante (escrita à mão, à direita) e as rasuras sobre as iniciais de cada um dos operadores.

25 Em 1593, um exemplar dos Ensaios com dezenas de adições e correções manuscritas feitas por Montaigne foi levado, juntamente com os restos mortais do autor, para o convento dos

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E são exatamente estes operadores céticos que [B] usaria se “tivesse podido educar crianças” (quer dizer, se fosse um paidagogos ). Os mesmos operadores céticos que as teriam conservado , mesmo aos sessenta anos , com o jeito de aprendizes (quer dizer, com jeito de ensaístas , no sentido primal do termo que é o dos Ensaios 26 ) – ao invés de, como de ordinário, aos dez anos fazerem já papel de doutores 27 . Em outras palavras, os operadores céticos manteriam as crianças puras e protegidas de um mal difuso (da ignorância? da falsa ciência? da própria ciência?). Logo, além de funcionar como commodity 28 , os operadores céticos têm não apenas um papel intelectual no discurso como também se deixariam entender como personificações de entidades protetoras , que por intermédio do sábio equipolente (o paidagogos que conhece e domina os segredos dos operadores) têm por função curar [“guerir ”] da ignorância todo aquele que souber confessá-la .

Logo, temos também funções de pureza , proteção , conservação , atribuídas a operadores céticos do discurso – funções que, no final das contas, podem se referir tanto a uma linguagem médica quanto a uma linguagem esotérica (pois a retórica dos pharmaka , como vimos no capítulo anterior ao comentar o heléboro e a cicuta,

Feuillants de Saint-Antoine, em Bordeaux. E lá ficou guardado por décadas. Foi “redescoberto” no começo do século XIX. Este misto de impresso e manuscrito ganhará o nome de Exemplar de Bordeaux , e o que vemos aqui é um fac-símile de uma das páginas, e a letra é do próprio Montaigne. 26 Das definições contemporâneas a Montaigne, os críticos modernos geralmente guardam quatro possibilidades para o termo “ essai ”: a) Tentativa; b) Experimentação; c) Ação de degustar; d) Obra do aprendiz. Cf. Marie-Luce DEMONET , Michel de Montaigne. Les Essai s. p. 6. 27 Há um recurso irônico na retórica pedagógica, pois indiretamente as frases não fazem senão apontar a criança no leitor . 28 Na medida em que o narrador vende a ideia de que os operadores são instrumentos infalíveis para o intelecto.

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é comum a ambas). Por outro lado, a retórica pedagógica, fundamental e explícita aqui, reforça ainda mais essa dinâmica esotérica, pois é extremamente importante em diversos contextos iniciatórios herméticos e gnósticos. Nos Papiros Gregos Mágicos 29 , por exemplo, muitas vezes o fiel é retratado como criança:

A iniciação chamada Mônada foi plenamente anunciada a você, criança [τέκνον ] / Agora eu passarei também a você, criança [τέκνον ], as práticas de uso deste livro sagrado (...) 30 .

Uma linguagem de proteção hermético-esotérica, por sua vez, tende a introduzir seres sobrenaturais como intercessores diretos no mundo natural. Nos PGM, uma constelação de nomes, muitas vezes reconhecíveis dentro do patrimônio religioso eclético de fundo hebraico (mas grafados em grego koiné como, por exemplo, anjos formados com o sufixo em –ηλ , como Ἐ̣μανουήλ e Οὐριήλ ), são frequentemente invocados como fiadores e agentes diante das mais diversas situações, normalmente associados a palíndromos e outras palavras mágicas misteriosas (equivalentes ao famoso ABRACADABRA ): compõem-se com eles amuletos contra divindades ruins, claro, mas também encantamentos de invisibilidade, ou outros para causar a separação de um ente querido e casado, para destravar a genitália feminina, dispositivos anticonceptivos, e assim por diante.

Comparemos, por exemplo, os operadores céticos (os Il me semble , os Aucunement , os Quelque ) de Dos Coxos mostrados acima com estes pharmaka de proteção ou de malefício.

29 Coletâneas de encantamentos, fórmulas e textos mágicos greco-romanos e egípcios datados dos séculos II a.C.- V d.C.. Para o contexto ver Hans Dieter BETZ , ed., The Greek magical Papyri in Translation , Chicago University Press, 1992². 30 PGM XIII, 230-231 in BETZ , ed., The Greek magical Papyri in Translation , p. 179. Essa retórica pedagógica, claro, não é estranha ao cristianismo oficial, pois também foi frequentemente capturada por ele e transformada numa teologia de fundo paternalista. Era o objetivo, por exemplo, do Paidagogos de Clemente de Alexandria “Clement [de Alexandria] favors a positive valuation of infants and children (…), consistently exhorting his readers to imagine themselves as children in relation to God. This metaphoric relation permits Clement not only to speak about radical power differences between divine and human realms, but also provides a model whereby he can depict how divine and human realms are connected at all.” (Denise BUELL , Making Christians, Clement of Alexandria and the Rhetoric of Legitimacy , Princeton University Press, 1999, p. 117.

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PGM XLIII. 1-27 (texto grego em TLG-E) in H. D. Betz (ed.), The Greek Magical Papyri in Translation , Chicago Press, 1992², p. 281.

1 [αβλανα]θαναλβα Ἐ̣μανουήλ [ablana]thanalba Emanouel [βλα]ναθαναλβα Ἀσουήλ [bla]nathanalba Asouel λαναθαναλβα Μαρμαρήλ lanathanalba Marmarel αναθαναλβα Μελχιήλ anathnalba Melchiel 5 ναθαναλβα Οὐριήλ nathanalba Ouriel αθαναλβα <Θ>ουριήλ athanalba Thouriel θαναλβα Μαρμαριώθ thanalba Marmariaoth αναλβα Ἀθαναήλ analba Athanael ναλβα Ἀθ̣ανήλ nalba Athanel 10 αλβα αωη.. alba aoe λβα Σαβαώθ lba Sabaoth βα Ἀδωναί ba Adonai α Ἐλωαί a Eloai

αβ̣ω̣... abo… 15 σεσεγγεν sesengen σφραγγης sphranges Μιχαήλ, Michael Σα[βαώ]θ Sa[bao]th λ̣απαπα̣ lapapa 20 [ ] [ ] Γαβριήλ, Gabriel Σουριήλ, Souriel Ῥαφαήλ· Raphael [δ]ια̣φύλαξον Σοφία[ν,] protejam Sophia 25 ἣν ἔτεκεν Θεονεί- que guardou Theonei-lla λλα, ἀπὸ παντὸς de todo calafrio ῥίγους καὶ πυρετοῦ, ἤδη, ταχύ. e febre, agora, e já.

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PGM VII. 579-590 (texto grego em TLG-E) Texto traduzido a partir da versão em inglês feita por Morton Smith © in H. D. Betz (ed.), The Greek Magical Papyri in Translation , Chicago Press, 1992², pp. 134.

<Φυλακτήριον> σωματοφύλαξ πρὸς δαίμονας, πρὸς φαντάσματα, 580 πρὸς πᾶσαν νόσον καὶ πάθος· ἐπιγραφόμενον ἐπὶ χρυσέου πετάλου ἢ ἀργυρέου ἢ κασσιτερίνου ἢ εἰς ἱερατικὸν χάρτην φορού- μενον σφραγιστικῶς ἐστιν. ἔστιν γὰρ δυνάμεως ὄνομα τοῦ μεγάλου θεοῦ καὶ σφραγίς. ἔστιν δέ, ὡς ὑπόκειται· Κμῆφις· χφυρις· ἰαεω Ἰάω αεη Ἰάω οω Αἰών, ἰαεω βαφρενε- 585 μουν οθιλαρικριφιαευεαι φιρκιρα λιθανυομε νερφαβω- εαι. τα[ῦ]τα τὰ ὀνόματα, τὸν δὲ χαρακτῆρα οὕτως· ἔστω ὁ δράκων οὐροβόρος, τὰ δὲ ὀνόματα μέσον τοῦ δράκοντος καὶ οἱ χαρακτῆρες οὕτως, ὡς ὑπόκειται· . τὸ δὲ σχῆμα ὅλον οὕτως, ὡς ὑπόκειται, ὅτι· ‘διαφύλασσέ μου τὸ σῶμα, τὴν 590 ψυχὴν ὁλόκληρον ἐμοῦ, τοῦ δεῖνα.’ [*][*][*] καὶ τελέσας φόρει. [*][*][*] 589 a ’διαφ[ύλασσέ μου] τ ὸ σῶμα, [τ ὴν] ψ[υ -] b 589 χὴν [ὁλόκλη]ρον ἐμοῦ το[ῦ δε]ῖνα’. 589 c κοινά.

Filactério. Protetor de corpo contra os demônios [daímonas ], contra os fantasmas 580 [phantásmata ], contra toda doença [nóson ] e sofrimento [páthos ]. Para ser escrito numa folha de ouro ou prata ou estanho ou sobre papiro hierático. Quando vestido, age poderosamente – pois é o nome de poder do grande deus e [seu] selo – e é como segue: “ KMĒPHIS CHPHYRIS IAE Ō IAŌ AE Ē IAŌ O Ō AIŌN, IAE Ō BAPHRENE - 585 MOUN OTHILARIKRIPHIAEUEAI PHIRKIRA LITHANYOME NERPHAB Ō- EAI ”. São estes os nomes, estes os caracteres: a serpente que devora a própria cauda [ourobóros ], os nomes inscritos dentro da serpente e os caracteres seguintes: . A figura completa é assim como segue abaixo, com [as palavras mágicas]: “Proteja meu corpo 590 e minha [de Fulano] alma inteira”. E quando o tiver consagrado, use-o.

589 a ’διαφ[ύλασσέ μου] τ ὸ σῶμα, [τ ὴν] ψ[υ -] 589 b χὴν [ὁλόκλη]ρον ἐμοῦ το[ῦ δε]ῖνα’. 589 c κοινά.

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PGM XII. 365-375 (texto grego em TLG-E) Texto traduzido a partir da versão em inglês feita por R. F. Hock © in H. D. Betz (ed.), The Greek Magical Papyri in Translation , Chicago Press, 1992², pp. 166.

365 <Διακοπός.> εἰς ταρίχου ὄστρακον ἐπίγραψον χαλκῷ γραφείῳ λόγον καὶ ἐπιδίωκε καὶ θές, ὅπου εἰσίν, ὅπου ὑποστρέφονται, ἐπιλέγων ἅμα καὶ τὸν λόγον· ‘ἐπικαλοῦμαί σε τὸν ἐπὶ κενῷ πνεύματι δεινόν, ἀόρατον, μέγαν θεόν, τὸν πατάξαντα γῆν καὶ σείοντα τὸν κόσμον, ὁ φιλῶν ταραχὰς καὶ μισῶν εὐσταθείας καὶ σκορπίζων 370 τὰς νεφέλας ἀπ' ἀλ[λ]ήλων, Ἰαια Ἰακούβ ιαι, Ἰὼ Ἐρβήθ, Ἰὼ Πακερβήθ, Ἰὼ Βολχοσήθ, βασδουμα, Παταθνάξ, αποψς οσεσρω αταφ θαβραου ηω θαθθαβρα βωραρα αροβρειθα, Βολχοσήθ, κοκκολοιπτολη ραμβιθνιψ, δότε τῷ δεῖνα τῆς δεῖνα μάχην, πόλεμον, καὶ τῷ δεῖνα τῆς δεῖνα ἀηδίαν, ἔχθραν, ὡς εἶχον Τυφῶν καὶ Ὄσιρις. (εἰ δὲ ἀνήρ ἐστιν καὶ γυνή· ‘ὡς εἶχον Τυφῶν καὶ Ἶσις’.) ἰσχυρὲ Τυφῶν, μεγαλο- 375 δύναμε, τὰς σὰς δυνάμεις ἀποτέλει.’

365 Fórmula mágica para causar separação. Numa vasilha para peixe, inscreva uma fórmula [lógon ] com um estilete de bronze, recite-a mais tarde e ponha onde eles [suas vítimas] estão, por onde eles normalmente voltam, repetindo ao mesmo tempo esta fórmula: “Eu o invoco, deus, você que está no ar vazio, que é terrível, invisível, e grande, você que aflige a terra e que sacode o cosmos, que ama o distúrbio e odeia a estabilidade 370 e separa as nuvens umas das outras, IAIA IAKOUB IAI IŌ ERB ĒTH , IŌ PAKERB ĒTH , IŌ BOLCHOS ĒTH , BASDOUMA , PATATHNAX , APOPSS OSESR Ō ATAPH THABRAOU ĒŌ THATHTHABRA BŌRARA AROBREITHA , BOLCHOS ĒTH , KOKKOLOIPTOL Ē RAMBITHNIPS : dê a ele [Fulano], filho de [Fulana], conflito, guerra; e a ele [Fulano], filho de [Fulana], ódio, inimizade, tal como Typhôn fez a Osíris (se se tratar de marido e mulher, “tal como fizeram Typhôn e Isis”). Forte Typhôn, 375 muito poderoso, execute seus atos poderosos”.

256

Se considerarmos a perícope de Íris e Taumante juntamente com esses textos (e eles são legião), quer dizer, entendendo-a dentro de circuitos mágicos de proteção, veremos logo de cara a importância da hipóstases: nos PGM as entidades intercessoras (como, por exemplo, no PGM XII, 365-375 acima, em maiúsculas, Iaia Iakoub Iai I ō Erb ēth, I ō Pakerb ēth, I ō Bolchos ēth etc.) precisam ser enunciadas com destaque, tal como em [C] (em maiúsculas, como personificações ou voces magicae ) estão enunciados os operadores céticos. E veremos pedidos: de ordem médica, sexual, material ou espiritual, no caso dos papiros; invocações em forma de interrogações que apontam para os limites da linguagem e da possibilidade de conhecimento (com claras consequências na formação pedagógica do homem) no caso da perícope. Interrogações e limites que circunscrevem um domínio intelectual, claro, mas que poderiam ser entendidos num circuito mais amplo e dinâmico, definindo-se nas margens protetoras do filactério: afinal, poderíamos mandar gravar numa medalha a frase Qu’est-ce à dire? (ou Est-il vray? ou Je ne l’entens pas ) e pendurá-la no pescoço – assim como certo sábio do século XVI fizera com Que sçay-je?, o mais famoso de todos os operadores céticos?...

Seria demais desenvolver esses aspectos deliciosamente delirantes em Dos Coxos ? Entender os operadores céticos como pharmaka intelectuais, que permitem proteger o corpo e o self do narrador e daqueles que porventura aceitem suas opiniões e venham a segui-lo, por entre as sendas topográficas, jurídicas, filosóficas, religiosas, do ensaio? O texto nos permitiria sustentar especulações espetaculares dessa natureza, sem dúvida. Mas terei de deixar isso para outra ocasião. Tenho de por um ponto final neste trabalho.

Gostaria, pois, de terminar com um lembrete. Minha atividade comparativista não teve, evidentemente, a pretensão de descobrir qualquer “verdade final” no texto. O uso de afirmações categóricas (com verbos às vezes no indicativo presente, por exemplo) são aqui meramente dispositivos retóricos de construção do discurso. O trabalho foi todo voltado para quebrar a casca dos parágrafos e perícopes e perceber neles possibilidades de leitura, que estarão sempre em aberto. Depois de todo esse exercício solitário, o verdadeiro trabalho começa agora: reler Dos Coxos livremente, deixar que as ideias boas reverberem e criem corpo, deixar que as más ideias naufraguem por si só.

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