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Mariana Clara de Andrade

MEDIDAS COMERCIAIS AMBIENTAIS COM EFEITOS EXTRATERRITORIAIS: ESTUDO CONFORME O DIREITO INTERNACIONAL GERAL E O REGIME JURÍDICO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Direito e Relações Internacionais Orientador: Prof. Arno Dal Ri Júnior, Ph.D Coorientador: Prof. Dr. Paulo Potiara de Alcântara Veloso

Florianópolis 2017

Para Lucas e Maia, na esperança de que essas linhas ajudem, ainda que timidamente, a construir-lhes um futuro mais sustentável

AGRADECIMENTOS

Como é o caso em boa parte dos agradecimentos dos trabalhos de conclusão de curso, ainda que não necessariamente adotando essa metodologia expressamente, tentei dividir meu apreço em dois grupos de pessoas: aqueles que contribuíram majoritariamente para o meu desenvolvimento acadêmico, e aqueles que contribuíram majoritariamente para a minha sanidade mental. Percebi claramente, contudo, que a fronteira entre esses dois grupos não é, absolutamente, impermeável, de modo que o que se tem é um constante exercício extrajurisdicional da competência (primária) de cada uma dessas pessoas. Em primeiro lugar, teoricamente no primeiro grupo, mas provando que no fundo o que se tem é uma grande cross-fertilization de contribuições, meus pais, acadêmicos sem cujo apoio e amor eu não teria chegado até aqui, e sem cuja influência eu certamente não teria desenvolvido o pensamento crítico que tento esboçar nas linhas deste trabalho. Pela amizade incondicional, fundamental nessa jornada, agradeço às minhas queridas Diana, Helena, Isabela, Naiana, Nicole e Priscila, que redefiniram meu conceito de amizade e cuja companhia me faz falta todo dia. Agradeço ainda à Nadine, Bel, Gabi e Téci, que compartilham comigo quase a minha vida até aqui. Pelos vários anos de trabalho e experiências conjuntas, e por ser responsável por grande parte de quem eu sou intelectual, acadêmica e pessoalmente, agradeço ao Lucas Lima. Sua contribuição e influência na minha vida não pode sequer ser listada, e talvez seu enquadramento em uma ou outra categoria seja o mais improvável. Também situado nessa zona transfronteiriça entre acadêmico e o círculo pessoal, e exercendo poderes em um território que não se limita ao espaço físico da 313, agradeço à equipe do ius gentium (e um perdido do ius commune). Pelas inúmeras discussões frutíferas e infrutíferas, pelas fofocas internacionais (e também as CCJtianas) e horas perdidas fazendo nada, pelos cafés no La Bohème, da máquina e da cafeteira, mas também pelo intercâmbio estimulante de ideias e pelo trabalho em grupo sensacional, nomeadamente: Gustavo, Fernanda, Taciano (PassiOnu), Felipe Berger, Felipe Pante, Chiara, Arthur Dalmarco, Carol Lacerda, Guilherme Agustini. Vocês são o meu dream-team, e eu nunca imaginei que a falta de produtividade da 313 pudesse ser tão importante na minha vida. Dentre esses, porém, um especial agradecimento ao Gustavo Carnesella, meu amigo há 7 anos, e um amigo com quem

trabalhar foi também um prazer (e um eventual quiz sobre bandeiras e capitais). Agradeço ainda meu orientador pelos últimos 7 anos de trabalho conjunto, pelas oportunidades únicas das quais pouquíssimos estudantes podem desfrutar, pelos ensinamentos, pelos conselhos, pelas conversas e pela orientação valiosa. Certamente, a conclusão deste curso de Mestrado não teria se concretizado sem a sua interferência (esta última dentro dos limites consentidos pelo direito internacional). Por fim, e mais firmemente no território acadêmico, não posso deixar de agradecer à minha banca de qualificação, particularmente, novamente, meu orientador, e às profas. Aline Beltrame de Moura e Cristiane Derani, por seus valiosos comentários, grande parte dos quais incorporei (ou tentei incorporar), e que certamente enriqueceram meu trabalho de maneira significativa.

RESUMO

A relação entre meio ambiente e comércio no âmbito do direito internacional é passível de controvérsias jurídica por diversos aspectos. Um deles, foco da presente dissertação, é a proteção de bens ambientais por meio de medidas restritivas ao comércio internacional que tenham impacto extraterritorial. O direito internacional público, de modo geral, veda o exercício extraterritorial das competências do Estado, motivo pelo qual o tema se torna controverso. No âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), a questão não se encontra diretamente regulada pelos acordos nem foi esclarecida pelo seu Órgão de Solução de Controvérsias. Apenas um julgado emanado pelo Órgão de Apelação da organização (o caso US – Shrimp) fornece elementos concretos para o esclarecimento da questão, mas não a exaure. Este trabalho se propõe, portanto, a analisar os limites desses efeitos extraterritoriais, amplamente entendidos, para a sua conformação com os princípios relevantes de direito internacional geral e o sistema da OMC. Para tanto, o primeiro capítulo parte do estudo de conceitos e princípios relevantes de direito internacional geral; o segundo capítulo analisa as normas e a jurisprudência da OMC pertinentes ao debate; enquanto o terceiro capítulo propõe uma sistematização metodológica para a averiguação casuística de medidas comerciais ambientais com efeitos extraterritoriais conforme os dois sistemas analisados, que não podem ser considerados em separado, mas, ao contrário, como uma unidade.

Palavras-chave: Organização Mundial do Comércio; Extraterritorialidade; Medidas Comerciais; Medidas Ambientais; Direito Internacional Público.

ABSTRACT

The relationship between environment and trade according to international law is subject to many controversies. Among such controversies, and the object of the present dissertation, is the protection of the environment by means of trade restrictive measures and which amount to an extraterritorial impact. Generally speaking, public international law does not permit the extraterritorial exercise of the competencies of a State, hence the debate on this topic. Within the legal system of the World Trade Organization (WTO), the issue is not directly regulated by its agreements, nor has it been resolved by its Dispute Settlement Body. Only one decision issued by its Appellate Body (the US – Shrimp case) provides elements for the clarification of the matter. This work proposes, therefore, to analyze the limits of the aforementioned extraterritorial effects, understood in a broad manner, according to its conformation with the relevant principles of international law and the WTO system. In order to do so, the first chapter describes relevant concepts and principles of general international law; the second chapter studies the pertinent rules and caselaw of the WTO; while the third chapter proposes a methodological systematization of a procedure for assessing, on a case-by-case basis, the conformity of environmental trade restrictive measures with extraterritorial effects with the two systems, which cannot be considered separately but, instead, in unity.

Keywords: World Trade Organization; Extraterritoriality; Trade restrictive measures; Environmental Measures; Public International Law.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas CDI – Comissão de Direito Internacional CE – Comunidades Europeias CIJ – Corte Internacional de Justiça CITES – Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção CJUE – Corte de Justiça da União Europeia CPJI – Corte Permanente de Justiça Internacional CVDT – Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados DPCIA – Dolphin Protection Consumer Information Act EC – European Communities ESC – Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos Sobre Solução de Controvérsias ETP – Eastern Tropical Pacific ETS – European Emissions Trading System GATT – Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio MEAs – Acordos Multilaterais Ambientais MSC – Mecanismo de Solução de Controvérsias MSC/OMC - Mecanismo de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio PPMs – Métodos de Processo e Produção pr-PPMs - Métodos de Processo e Produção relativos ao produto (“product-related”) npr-PPMs - Métodos de Processo e Produção não relativos ao produto (“non-product-related”) SPS – Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias OMC – Organização Mundial do Comércio ONU – Organização das Nações Unidas OAp – Órgão de Apelação NMF – Nação Mais Favorecida TED – turtle excluder devide TBT – Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio TN – Tratamento Nacional UE – União Europeia

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...... 17 2 DEFININDO CONCEITOS: LIMITES E CONTORNOS DA JURISDIÇÃO EXTRATERRITORIAL CONFORME O DIREITO INTERNACIONAL E SIGNIFICAÇÃO DE MEDIDAS COMERCIAIS AMBIENTAIS...... 23 2.1 JURISDIÇÃO EXTRATERRITORIAL: A ANÁLISE DA COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL (CDI) E SUAS REGRAS BÁSICAS DE APLICAÇÃO SEGUNDO O DIREITO INTERNACIONAL ...... 24 2.1.1 Princípios que regem o exercício da jurisdição extraterritorial ...... 32 2.1.2 O caso Lotus e o desenvolvimento jurisprudencial do conceito de jurisdição extraterritorial ...... 39 2.2 A DOUTRINA DOS EFEITOS (EFFECTS DOCTRINE) ...... 48 2.3 ESPÉCIE DO GÊNERO: MEDIDAS COMERCIAIS AMBIENTAIS COM EFEITO EXTRATERRITORIAL ...... 59 2.3.1 Medidas restritivas ao comércio: abordagem da competência prescritiva do Estado ...... 59 2.3.2 Medidas de cunho ambiental: delimitando a especificidade do escopo da regulação ...... 64 2.3.2.1 US – Reformulated gasoline (1996) ...... 69 2.3.2.3 US – Tuna II (2014) ...... 73 2.3.3 Medidas comerciais com efeitos extraterritoriais ...... 75 2.3.3.1 US – Shrimp (1998) ...... 76 2.3.3.2 EC – Seal Products (2014) ...... 78 2.3.3.3 A controvérsia sobre o European Emissions Trading System ....79 2.3.4 Aplicabilidade dos princípios sobre jurisdição extraterritorial às medidas ambientais restritivas ao comércio ...... 81 3 EXTRATERRITORIALIDADE NO REGIME JURÍDICO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO ...... 83 3.1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS PRINCIPAIS NORMAS DO SISTEMA JURÍDICO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE COMÉRCIO ...... 85

3.1.1 O direito da OMC enquanto lex specialis face ao direito internacional e a vedação ao “isolamento clínico” ...... 93 3.2 REGULAÇÃO NORMATIVA: DIRETRIZES JURÍDICAS PARA A ANÁLISE DO TRATAMENTO DE MEDIDAS COM ALCANCE EXTRATERRITORIAL ...... 101 3.3 APONTAMENTOS TEÓRICOS: A CONTROVÉRSIA DOUTRINÁRIA ...... 131 4 NEXO SUFICIENTE E INTERFERÊNCIA REGULATÓRIA: AVALIANDO OS DOIS VIESES DA EXTRATERRITORIALIDADE ...... 145 4.1 NEXO SUFICIENTE ...... 146 4.1.1 O conceito de nexo suficiente ...... 147 4.1.2 Unilateralismo x multilateralismo: MEAs como indicador de “nexo suficiente” ...... 151 4.1.3 Obrigações erga omnes, a proteção dos global commons e o critério do nexo suficiente ...... 164 4.2 POSSIBILIDADE REGULATÓRIA ...... 175 4.2.1 O caso da regulação dos PPMs e a proteção ambiental ...... 177 4.2.2 Os princípios da não intervenção e da proporcionalidade e sua aplicação à competência prescritiva do Estado ...... 185 4.2.2.1 O princípio da não intervenção ...... 186 4.2.2.2 O princípio da proporcionalidade e sua aplicação à extraterritorialidade ...... 192 4.3 SISTEMATIZAÇÃO DA METODOLOGIA SUGERIDA ..... 205 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 209 6 REFERÊNCIAS ...... 216

17

1 INTRODUÇÃO

Ainda que uma parte significativa dos esforços para a proteção ambiental no planeta sejam tomadas no âmbito interno dos Estados, a premissa fática do problema que motiva esta dissertação é a de que tal proteção, para ser perquirida de forma efetiva, não deve ser limitada a tais fronteiras. Por outro lado, a premissa jurídica do mesmo problema é a de que medidas com efeitos extraterritoriais tomadas por Estados não são permitidas de per se conforme o direito internacional – e deste confronto de premissas fática e jurídica emerge a problemática aqui abordada. A partir disso, discute-se no presente trabalho se os atos advindos do que será chamado de competência prescritiva do Estado (i.e., a competência soberana do Estado em emanar atos normativos, amplamente entendidos) são compatíveis com o direito internacional geral e, concomitantemente, com o direito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Nesse sentido, uma diferenciação semântica deve ser feita, apenas para fins metodológicos: chamar-se-á de extraterritorial os efeitos ou atos que perpassem as fronteiras do Estado que emana a medida; chamar-se-á extrajurisdicional os atos do Estado que não estiverem conforme as normas de direito internacional. Estando o comércio internacional diretamente relacionado com diversos aspectos de impacto ambiental, Estados impõem medidas comerciais restritivas visando à proteção do meio ambiente. É verdade que a proteção ambiental pode ser buscada também dentro do âmbito do território nacional; contudo, particularmente no atual contexto de globalização – e, especificamente no escopo deste trabalho, no contexto 18

de um sistema multilateral de comércio, é difícil restringir-se a esses limites. Esse movimento desperta uma série de questões no contexto do sistema multilateral de comércio, dentre os quais o conflito de normas de direito internacional ambiental e acordos multilaterais de comércio internacional e a emanação de medidas discriminatórias ou injustificadamente restritivas com escopos alegadamente verdes. Outro problema envolve um debate discutido no âmbito do direito internacional geral: os limites jurisdicionais de um Estado ao emanar medidas que potencialmente causam efeitos fora de seu território, ou mesmo no território de outros Estados. Ao visar à proteção de um determinado bem ambiental, tais como espécies de animais ou mesmo a atmosfera, um ato legislativo de um Estado – que, conforme os princípios de direito internacional, em princípio, apenas pode ser aplicável no território desse mesmo Estado – pode ter implicações extraterritoriais. Isso é o que será chamado, neste trabalho, de efeito ou alcance extraterritorial. O termo efeito pode ser entendido, para os propósitos desta pesquisa, de maneira ampla: desde a simples reverberação mercadológica de uma política em outro Estado, ainda que de forma indireta, até a interferência em assuntos internos de outro Estado. O direito da OMC não regula a possibilidade de alcance extraterritorial de medidas comerciais. Nenhum dispositivo no interior dos inúmeros acordos abrangidos pelo guarda-chuva da organização trata diretamente sobre eventuais limitações territoriais de medidas comerciais. No máximo, como será abordado, pode-se falar na possibilidade de uma limitação jurisdicional inerente à redação e/ou 19

objeto e escopo das disposições relevantes. Paralelamente, poucas também são as disposições nos acordos parte do sistema que versam sobre medidas protetivas ao meio ambiente. Deste modo, sendo o direito da OMC parte do espectro normativo mais amplo do direito internacional público, deve-se levar em consideração também normas relevantes no âmbito deste último para a análise da questão – os dois “sistemas” devem ser lidos em consonância e presumidos compatíveis entre si. De igual maneira, recai como papel da casuística – i.e., do Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC (MSC/OMC) –, por meio do exercício interpretativo, verificar se essas medidas de fato são compatíveis com o regime normativo do sistema multilateral de comércio. Contudo, até o presente momento, a problemática, ainda que relevante tanto do ponto de vista da lex specialis da OMC quanto do ponto de vista do direito internacional geral, não suscitou grandes argumentações no MSC/OMC. Apenas um caso após a instituição da OMC (a disputa US – Shrimp) tratou diretamente do conflito. Outro contencioso, o caso EC – Seal, também suscitou o debate, mas sua resolução pelo Órgão de Apelação não envolveu uma discussão aprofundada do tema. Deste modo, dada a ausência de normas e jurisprudência conclusiva sobre o assunto, o problema permanece em aberto. Nesse cenário, o objetivo principal do presente estudo é o de compreender as normas aplicáveis à questão proposta, delimitar os limites segundo os quais a competência prescritiva de um Estado pode ser exercida no que tange medidas comerciais de proteção ambiental com possíveis efeitos extraterritoriais e, por fim, esboçar um 20

procedimento sugerido com elementos relevantes para a verificação da compatibilidade, no contexto da Organização Mundial do Comércio, de medidas comerciais ambientais com efeitos extraterritoriais e o direito internacional e o direito da OMC. O estudo foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica (particularmente doutrina relevante e relatórios da Organização das Nações Unidas sobre o tema) e documental (tratados, acordos e jurisprudência pertinente ao tema). Dado o número restrito de casos concretos que possam respaldar com maior concretude uma metodologia dedutiva, parte-se de uma metodologia indutiva, para, ao fim do trabalho, buscar a elaboração dessa sistemática. O direito internacional possui princípios que indicam a possibilidade de exercício extraterritorial das competências do Estado. Por tal motivo, e tendo em vista que o direito da OMC não é um sistema autocontido descolado do sistema de direito internacional geral, o primeiro capítulo centra a análise no estudo dos princípios de direito internacional que regem as normas de jurisdição das competências do Estado. Tendo em vista o escopo bastante específico do presente trabalho – a compatibilidade de medidas comerciais ambientais com efeitos extraterritoriais com o direito internacional e o direito da OMC – , faz-se necessário, também no primeiro capítulo, delimitar o que se entende por cada um dos termos específicos dessa expressão, demonstrando-se assim os limites da pesquisa. A partir da descrição das normas de direito internacional geral relevantes à matéria, segue-se para o estudo da problemática conforme o direito da OMC – o que envolve não apenas os acordos relevantes à 21

matéria, mas também a sua jurisprudência. Como mencionado, ainda que medidas comerciais com escopo ambientais sejam crescentemente concebidas, apenas em um caso (US – Shrimp) o MSC/OMC tratou diretamente do assunto, introduzindo o critério do nexo suficiente entre o Estado regulador e o bem protegido. O terceiro capítulo, por sua vez, buscará unir as premissas de direito internacional geral e as considerações relevantes do direito da OMC para propor uma regra geral aplicável à problemática para que, conforme o caso concreto, possa-se averiguar se uma medida com efeitos extraterritoriais configura um exercício extrajurisdicional da competência prescritiva do Estado. Com este trabalho, espera-se contribuir para o esclarecimento do conceito de nexo suficiente utilizado pelo Órgão de Apelação da OMC enquanto confrontado com princípios e normas relevantes de direito internacional, bem como propor uma possível metodologia futura de modo a balancear a discricionariedade inerente ao órgão judicial com elementos de previsibilidade e segurança tão caros a qualquer ordem jurídica. Finalmente, um esclarecimento técnico faz-se necessário: para uma apresentação textual não poluída e que também privilegie a possibilidade do recurso das notas explicativas, escolheu-se fazer uso do sistema autor-data disposto pelas normas da Academia Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), mas inserindo as referências em notas de rodapé. Tal escolha foi feita porque, conforme as NBR 6023:2002 (Informação e documentação - Referências – Elaboração) e NBR 10520:2002 (Informação e documentação - Citações em documentos – 22

Apresentação), a opção do sistema numérico, com notas de referência, não permite a utilização concomitante de notas de rodapé explicativas. 23

2 DEFININDO CONCEITOS: LIMITES E CONTORNOS DA JURISDIÇÃO EXTRATERRITORIAL CONFORME O DIREITO INTERNACIONAL E SIGNIFICAÇÃO DE MEDIDAS COMERCIAIS AMBIENTAIS

A complexidade normativa do direito internacional, por vezes, não permite que regras jurídicas sejam analisadas, para a resolução de um problema concreto específico, sem que conceitos doutrinários não positivados sejam inicialmente visitados e esmiuçados. No presente caso, o conceito que necessita detalhamento antes de um maior aprofundamento nas normas jurídicas aplicáveis ao tema é, primordialmente, a ideia de jurisdição extraterritorial, cuja compreensão será fundamental para que se possa explanar o que aqui se é referido como medidas comerciais ambientais com alcance extraterritorial. O objetivo principal deste primeiro capítulo é delimitar com a maior precisão possível todas as variáveis que estão envolvidas no problema apresentado pela Introdução. Em termos de âmbito normativo abarcado, têm-se dois regimes (que não são autônomos entre si, como será abordado com maior detalhamento no Capítulo 2): o direito internacional geral e o direito da Organização Mundial do Comércio. Regras jurídicas estabelecidas por ambos regimes jurídicos relacionam- se entre si e devem ser levadas em consideração para o estudo proposto. Assim, em um primeiro momento, será analisado o conceito de jurisdição extraterritorial conforme construído pelo direito internacional clássico, particularmente sua doutrina e jurisprudência. Em um segundo momento, será analisada a contribuição de uma doutrina que terá particular relevância para a compreensão do tema na forma 24

como aqui é analisado, a chamada doutrina dos efeitos. Finalmente, buscando afunilar de maneira suficientemente clara as principais variáveis que o problema propõe, especificar-se-á, inclusive a partir de uma breve descrição de casos práticos relevantes, o âmbito específico aqui estudado: medidas restritivas ao comércio internacional com escopo ambiental e cuja aplicação tenha efeitos ou alcance extraterritorial.

2.1 JURISDIÇÃO EXTRATERRITORIAL: A ANÁLISE DA COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL (CDI) E SUAS REGRAS BÁSICAS DE APLICAÇÃO SEGUNDO O DIREITO INTERNACIONAL

Ainda que o problema aqui proposto esteja circunscrito pelo específico âmbito jurídico-normativo da Organização Mundial do Comércio, regime de direito lex specialis por excelência1, uma noção fundamental de sua formulação remonta aos ensinamentos do direito internacional público: aquela de jurisdição extraterritorial. Por tal motivo, parte deste primeiro capítulo é dedicado ao esclarecimento deste conceito, de acordo com ponderações provenientes da doutrina e da jurisprudência. Primeiramente, contudo, cabe diferenciar o que se entende por jurisdição de uma Corte em direito internacional e jurisdição de um Estado. De maneira ampla, jurisdição “é uma forma de poder jurídico

1 Cf. Capítulo 3. 25

ou competência”2. Por um lado, a jurisdição de uma corte diz respeito à sua competência para julgar um determinado caso, dado que, no direito internacional, ausente uma autoridade superior de poder jurisdicional, é necessário consentimento de alguma maneira para o exercício dessa função. Por outro lado, a jurisdição de um Estado diz respeito ao poder deste de exercer suas funções soberanas. Esse poder, como será posteriormente detalhado, é absoluto dentro das fronteiras do Estado; contudo, fora de seu território, seus limites tornam-se mais turvos3. Apenas o segundo tipo de jurisdição, i.e., aquela de um Estado, será de interesse para esta pesquisa4. A controvérsia sobre os limites da jurisdição de um Estado, seja com relação ao seu poder legiferante, executório ou jurisdicional, interliga-se diretamente às prerrogativas de soberania deste Estado. Nas palavras de Malcolm Shaw, [j]urisdição concerne o poder de um Estado sob o direito internacional de regular ou causar impacto sobre pessoas, propriedades e circunstâncias e reflete os princípios básicos da soberania do Estado, igualdade entre Estados e não intervenção

2 CAPPS; EVANS; KONSTADINIDIS, 2003, p. xix. Do original: “‘Jurisdiction’ is a form of legal power or competence”. 3 Sobre o tema, Sir Franklin Berman escreve: “[…] simply by virtue of the fact that ‘jurisdiction’ in this sense refers to claims by one State to exercise powers which are likely to impinge on the rights or interests of other States, the fundamental presupposition is that all jurisdictional claims require a basis in international law; the mere assertion of a right by one State is not enough from the point of view of international law unless (or, as the case may be, until) it is accepted by others” (BERMAN, 2003, p. 3). 4 Para um detalhamento específico do tema e suas ramificações específicas em diversas áreas do direito internacional, cf. CAPPS; EVANS; KONSTADINIDIS, 2003. 26

em assuntos internos. A jurisdição é uma característica vital e, de fato, central da soberania Estatal, por ser um exercício de autoridade que pode alterar, criar ou extinguir relações e obrigações jurídicas.5 A aplicabilidade prática do conceito de jurisdição extraterritorial, por sua vez, instigou a Comissão de Direito Internacional (CDI), parte integrante da Sexta Comissão (Jurídica) da Organização das Nações Unidas6 (ONU), a elaborar um relatório sobre o tema em 2006. A CDI representa um marco autoritativo no esclarecimento de questões controversas de direito internacional, muitas vezes esclarecendo o conteúdo costumeiro de determinados temas a

5 SHAW, 2008, p. 645, notas de rodapé suprimidas. Do original: “Jurisdiction concerns the power of the state under international law to regulate or otherwise impact upon people, property and circumstances and reflects the basic principles of state sovereignty, equality of states and non-interference in domestic affairs. Jurisdiction is a vital and indeed central feature of state sovereignty, for it is an exercise of authority which may alter or create or terminate legal relationships and obligations. It may be achieved by means of legislative, executive or judicial action”. 6 Sobre a Sexta Comissão e a Comissão de Direito Internacional da ONU: “A Sexta Comissão (Legal) é o principal fórum para considerações de questões legais na Assembleia Geral. Muitos instrumentos internacionais, incluindo uma série de tratados internacionais, foram adotados na Assembleia Geral com base na recomendação da Comissão. A Comissão de Direito Internacional foi estabelecida pela Assembleia Geral em 1948, com a missão de dar seguimento ao desenvolvimento progressivo e à codificação do direito internacional sob o artigo 13(1)(a) da Carta das Nações Unidas. Como um corpo jurídico especializado, sua tarefa é preparar projetos de convenções sobre temas que ainda não tenham sido regulamentados pela legislação internacional, e codificar as regras do direito internacional nos campos onde já existe uma prática do Estado. O trabalho da Comissão conduziu à aprovação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Ele também elaborou a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) e a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969), entre outros”. Fonte: < https://nacoesunidas.org/acao/direito- internacional/>. Acesso em 26.12.2016. 27

partir da prática dos Estados7, motivo pelo qual suas definições são utilizadas como elemento central para esta pesquisa, ainda que o relatório em particular ao qual se refere neste tema não tenha sido transformado em direito positivado. Diante de sua importância, utiliza- se a definição de jurisdição extraterritorial delineada pelos trabalhos da Comissão de Direito Internacional. Nesse relatório, a CDI explica ainda que o exercício da jurisdição internacional, atualmente, é um fenômeno que ganha força como consequência de diversos movimentos, dentre os quais o crescente movimento de pessoas para além das fronteiras de seus Estados de origem e a globalização da economia mundial8. A metodologia da Comissão partiu da elucidação de três aspectos particulares do conceito de jurisdição extraterritorial: jurisdição, extraterritorialidade e direito aplicável9. Em primeiro lugar, jurisdição seria “o poder soberano ou autoridade de um Estado. Mais especificamente, a jurisdição de um Estado pode ser dividida em três categorias: prescritiva, adjudicativa e executória”10. Cada uma dessas categorias equivale, respectivamente, ao poder legiferante, jurisdicional e executório do Estado. De modo sintético, a competência prescritiva envolve o poder de emanar normas de um Estado; a competência

7 SHAW, 2008, p. 121. 8 ONU, 2006-A, p. 517. 9 ONU, 2006-A, p. 517 10 Do original: “The jurisdiction of a State may be understood as generally referring to the sovereign power or authority of a State. More specifically, the jurisdiction of a State may be divided into three categories, namely, prescriptive jurisdiction adjudicative jurisdiction and enforcement jurisdiction”. (ONU, 2006-A, p. 517) 28

adjudicativa envolve o poder de submeter pessoas ou coisas a um processo judicial; a competência executória diz respeito ao poder de assegurar a observância de normas jurídicas e decisões judiciais11. Cabe esclarecer que a competência prescritiva envolve não apenas a competência essencialmente legislativa do Estado: pode-se entender também por competência prescritiva o poder de tomar decisões em âmbito interno12. Assim, decisões judiciais (e não propriamente a função jurisdicional exercida pelo Estado) também se encontram abarcadas pela competência prescritiva. Em segundo lugar, a noção de extraterritorialidade em relação a um Estado é definida pelo relatório da CDI como

abrangendo a área para além de seu território, incluindo sua terra, águas internas e mar territorial, assim como o espaço aéreo adjacente. A área além do território de um Estado pode estar dentro do território de outro Estado ou pode estar fora da jurisdição territorial de qualquer Estado,

11 Colangelo assim descreve tais competências: “Roughly speaking, prescriptive jurisdiction is the power to make and apply law to persons or things. This type of jurisdiction is typically (though not always) associated with legislatures as opposed to courts, and for this reason is sometimes referred to, somewhat imprecisely, as ‘legislative jurisdiction.’ Adjudicative jurisdiction, on the other hand, is the power to subject persons or things to judicial process and, accordingly, is generally associated with courts. An example is personal jurisdiction or a court’s power over the persons before it. Another example is a court’s subject-matter jurisdiction, which is self-evidently a court’s power over the subject matter of a lawsuit. Special rules govern the exercise of each type of adjudicative jurisdiction, but they are all concerned with the same basic question of when and how the court may assert power. A final category is enforcement jurisdiction, or the power ‘to induce or compel compliance or to punish noncompliance’ with the law” (COLANGELO, 2014, pp. 1310-1311, notas de rodapé suprimidas). 12 CRAWFORD, J., 2012, p. 456. 29

especificamente o mar aberto e espaço aéreo adjacente e o espaço sideral.13 Finalmente, com relação ao direito aplicável, “a noção de jurisdição extraterritorial pode ser entendida como se referindo ao exercício de jurisdição de um Estado com relação ao seu direito interno em seu próprio interesse ao invés da aplicação de direito estrangeiro ou direito internacional”14. Cabe ressaltar, portanto, a diferença existente entre o conceito de extraterritorialidade e jurisdição extraterritorial ou exercício extrajurisdicional da competência do Estado. Para fins do presente trabalho, o adjetivo extraterritorial será apresentado conjuntamente com termos como medida, regulação, normativa, inter alia, sempre que tais elementos tiverem repercussões fora do Estado que os emanou, e sua juridicidade não necessariamente for ilícita.

13 Do original: “The notion of extraterritoriality may be understood in relation to a State as encompassing the area beyond its territory, including its land, internal waters and territorial sea, as well as the adjacent airspace. The area beyond the territory of a State may fall within the territory of another State or may be outside the territorial jurisdiction of any State, namely the high seas and adjacent airspace, as well as outer space” (ONU, 2006-A, p. 230, notas de rodapé suprimidas). 14 Do original: “As regards the applicable law, the notion of extraterritorial jurisdiction may be understood as referring to the exercise of jurisdiction by a State with respect to its national law in its own national interest rather than the the application of foreign law or international law”. E ainda: “A State’s application of foreign law or international law rather than its own national law would therefore be excluded from the scope of this topic since these situations would not constitute the exercise of extraterritorial jurisdiction by a State in relation to its national law based on its national interests” (ONU, 2006-A, p. 518). 30

Por outro lado, o exercício da jurisdição extraterritorial ou extrajurisdicionalidade refere-se à imposição de algum tipo de competência estatal (no presente caso, a competência prescritiva) fora do território. A jurisdição extraterritorial, como será abordado adiante, só é permitida no direito internacional quando da observância de alguns princípios, alguns dos quais consolidados, outros ainda controversos. Segundo a CDI, o exercício da jurisdição internacional (extraterritorial) por parte dos Estados é mais comum em determinados campos do direito interno; particularmente, direito criminal e direito comercial15. Para os fins desta dissertação, o termo jurisdição extraterritorial ou extrajurisdicionalidade será utilizado como sinônimo de exercício impróprio (ou incompatível com normas de direito internacional geral) da competência prescritiva do Estado com relação ao direito internacional. Como regra geral, o direito internacional determina que a jurisdição de um Estado é territorial e este não pode exercer seus poderes (sua jurisdição, seja prescritiva, adjudicativa ou executória) fora de seu território na ausência de uma regra que o permita fazê-lo16. De

15 ONU, 2006-A, p. 517. 16 ONU, 2006-A, p. 520. Essa lógica foi introduzida pela primeira vez na decisão da Corte Permanente de Justiça Internacional do caso Lotus, em que se estatuiu: “Now the first and foremost restriction imposed by international law upon a State is that – failing the existence of a permissive rule to the contrary – it may not exercise its power in any form in the territory of another State. In this sense jurisdiction is certainly territorial; it cannot be exercised by a State outside its territory except by virtue of a permissive rule derived from international custom or from a convention.” (ONU, 2006-A, p. 521). Essas regras, grosso modo, são os princípios que governam a extraterritorialidade excepcional dos poderes do Estado, tais como o princípio da nacionalidade e da universalidade (cf. ONU, 2006-A, pp. 521 e ss.). 31

modo não distinto, a conformidade dessas medidas com o regime normativo da Organização Mundial do Comércio é controversa. Não havendo especificação com relação a essa questão dentro do arcabouço jurídico da OMC, a questão permanece aberta para discussão. Cabe ressaltar que essa regra tem sido relativizada com o desenvolvimento do direito internacional. Segundo Crawford, se há um princípio cardinal que emerge nesse contexto é o da “genuína conexão entre o objeto da jurisdição e a base territorial ou interesses razoáveis do Estado em questão”17. Segundo Mann, no âmbito do direito internacional público, as consequências de um exercício para além da jurisdição do Estado podem ser de duas formas, já que tal exercício seria contrário às normas e princípios estabelecidos. Em primeiro lugar, uma vez que tal exercício é contrário ao direito internacional, eventuais normas emanadas por um Estado e que afetam outro Estado poderiam ser ignoradas fora do território do Estado regulador. Em segundo lugar, o exercício irregular da jurisdição de um Estado poderia acarretar a ocorrência de um efetivo ilícito internacional, incluindo a possibilidade de o Estado demandar ressarcimento por eventuais prejuízos sofridos18. Essas duas consequências ajudam a entender a necessidade de uma maior definição nos limites e juridicidade de medidas que eventualmente possam remontar ao status de extraterritoriais.

17 CRAWFORD, J., 2012, p. 457. Do original: “If there is a cardinal principle emerging, it is that of genuine connection between the subject-matter of jurisdiction and the territorial base or reasonable interests of the state in question”. 18 Cf. MANN, 1964, p. 11 e ss.. 32

Nesse contexto, são essencialmente as normas (princípios e costumes, dada a ausência de positivação sobre o tema) de direito internacional público que conferem elementos norteadores para se determinar o alcance da jurisdição prescritiva de um Estado, e segundo as quais se pode averiguar se uma norma de direito interno excede ou não tais determinações.

2.1.1 Princípios que regem o exercício da jurisdição extraterritorial

As competências prescritiva, adjudicativa e executória de um Estado, como mencionado, são prerrogativas provenientes de sua soberania. Assim sendo, o exercício dessas competências costuma ser determinado pelo seu próprio direito interno. Apesar disso, no contexto da comunidade internacional, considerando-se que a aplicação dessas prerrogativas pode infligir diretamente o interesse de outros Estados soberanos, a licitude do exercício da jurisdição de cada nação é regulada pelo direito internacional19. Para tanto, alguns princípios foram desenvolvidos com a prática internacional e regem a temática. A compreensão da lógica por trás dessas normas é fundamental para o entendimento global da matéria, seja no contexto do direito internacional público, seja nos seus ramos específicos.

19 ONU, 2006-A, p. 518. 33

O princípio básico que rege a jurisdição de um Estado em direito internacional é o da jurisdição doméstica20. Em outras palavras, existe a “presunção de que a jurisdição (em todas as suas formas legais) é territorial, e não pode ser exercida extraterritorialmente sem que haja alguma base específica dentro do direito internacional”21. É uma decorrência da soberania dos Estados que, dentro de suas próprias fronteiras, cada ente soberano tenha supremacia interna sobre a regência de seus interesses22. Essa regra desdobra-se em duas consequências lógicas: a primeira é a de que, sendo soberano dentro de seu próprio território, o Estado não está sujeito ao exercício de competências provenientes de outro Estado. Em segundo lugar, por esse mesmo motivo, um Estado não pode exercer suas competências sobre o território de outro Estado. Neste trabalho, dar-se-á ênfase às regras que envolvem a jurisdição prescritiva do Estado23. Mavroidis sintetiza as regras básicas da alocação da jurisdição prescritiva de um Estado conforme o direito internacional a partir de duas bases primordiais: a territorialidade e a nacionalidade. A partir disso, assim resume o autor:

20 Cf. SHAW, 2008, pp. 647 e ss.. 21 CRAWFORD, J., 2012, p. 456. Do original: “The starting-point in this part of the law is the presumption that jurisdiction (in all its forms) is territorial, and may not be exercised extra-territorially without some specific basis in international law”. 22 SHAW, 2008, P. 647. Os princípios territorial e de nacionalidade são, segundo James Crawford (2012, p. 486), as duas bases para a jurisdição prescritiva de todos os ramos, ainda que sua aplicabilidade seja complementada por outros princípios em alguns ramos em particular. 23 Cf. subtópico 2.3.1 desta dissertação. 34

(a) As regras aplicam-se nas situações em que: (i) Não se trata nem do campo da ‘jurisdição universal’ (definida como aqueles casos em que todas as nações têm o direito de intervir, e.g. terrorismo); (ii) Nem há uma solução que tenha sido negociada (acordo internacional) (b) Um Estado pode licitamente exercer sua jurisdição prescritiva: (iii) Em todas as atividades que ocorrerem em seu próprio território (princípio da territorialidade) (iv) Sobre seus nacionais, mesmo por atos e omissões ocorridos fora de seu território (princípio da nacionalidade)24. A complexidade da questão advém, particularmente, de gaps ou obscuridades que revolvem alguns desses critérios doutrinariamente apregoados. Como mencionado, cada Estado é soberano para determinar os limites internos de sua própria jurisdição e cabe ao direito internacional balizar tais normas. Os princípios específicos que norteiam a licitude do exercício da jurisdição extraterritorial encontram relativo consenso na doutrina de direito internacional, ainda que com algumas variações específicas25. Utilizar-se-á a classificação oferecida pela Comissão de Direito Internacional em seu já mencionado Relatório de 2006.

24 MAVROIDIS, 2014, p. 3, grifo acrescido. Do original: “(a) The rules apply in situations where: (i) we are neither in the realm of ‘universal jurisdiction’ (defined as cases where all nations have right to intervene, e.g. terrorism); (ii) nor has a bargaining solution (international agreement) been negotiated; (b) A state can lawfully exercise prescriptive jurisdiction: (iii)on all activities occurring in its own territory (territoriality principle); (iv)over its nationals, even for acts, omissions committed outside its territory (nationality principle)”. 25 Cf., e.g., James Crawford (2012, p. 645 e ss.) e Shaw (2008, pp. 456 e ss.). 35

A CDI divide as regras gerais sobre jurisdição extraterritorial em quatro princípios: i. Princípio da Territorialidade; ii. Princípio da Nacionalidade; iii. Princípio da Personalidade Passiva; iv. Princípio da Proteção26. O princípio da territorialidade foi subdividido, no trabalho da CDI, em princípio da territorialidade objetiva e doutrina dos efeitos27. O primeiro diz respeito à jurisdição territorial propriamente dita, ou seja, à ideia de que o Estado tem jurisdição sobre seu próprio território e fora de seu território quando um “elemento constitutivo da conduta a ser regulada aconteceu dentro de seu território”28. A doutrina dos efeitos, por sua vez, defende a aplicabilidade da jurisdição extraterritorial quando o Estado regulador sofre efeitos negativos da conduta que está

26 ONU, 2006-A, pp. 534-535. Cabe ressaltar que essa divisão é utilizada por alguns autores, particularmente Crawford (2012) e Shaw (2008), como específica do ramo do direito criminal. Para a jurisdição extraterritorial civil, Shaw (2008, p. 652), por um lado, afirma não existir um direito internacional costumeiro prescrevendo normas relativas a jurisdição adjudicativa em matéria civil. Crawford (2012, p. 471), por sua vez, afirma que “there is in principle no great diff erence between the problems created by assertion of civil and criminal jurisdiction over aliens” e que “there is little by way of limitation on a state’s exercise of civil jurisdiction in what are eff ectively private law matters”. Cumpre anotar, por fim, que, com relação à jurisdição criminal, Shaw (2008, p. 668) reconhece ainda, além dos princípios elencados pela CDI, a existência do princípio da universalidade. 27 ONU, 2006-A, p. 534. 28 ONU, 2006-A, p. 521. Do original: “The objective territoriality principle may be understood as referring to the jurisdiction that a State may exercise with respect to persons, property or acts outside its territory when a constitutive element of the conduct sought to be regulated occurred in the territory of the State”. 36

regulando29. Essa abordagem tem uma relevância particular nos casos de Estados que regulam medidas comerciais com base nos métodos de processo e produção de bens, quando realizados de maneira mais favorável ao meio ambiente, e será explanada no tópico a seguir do presente capítulo. O princípio da nacionalidade refere-se à jurisdição de um Estado fora de seu território, mas sobre seus nacionais (pessoas jurídicas ou físicas), corporações, aeronaves e embarcações30. O princípio da personalidade passiva permite a jurisdição de um Estado sobre condutas ocorridas fora de seu território e que afetem seus nacionais. A CDI explica que esse princípio, originalmente controverso dentre a prática dos Estados, tem ganhado maior aceitação nos últimos anos31. Finalmente, o princípio da universalidade relaciona-se com uma ideia de justiça universal perante a comunidade internacional. Em temas que sejam de interesse dessa última, este princípio preconiza a jurisdição de qualquer Estado sobre alguns crimes, mesmo que não haja qualquer relação do agente passivo ou ativo. Existe uma conexão com o

29 James Crawford (2012, p. 462) esclarece: “In addition, it has been suggested that there exists a further head of prescriptive jurisdiction, the so-called ‘effects doctrine’. This may gain traction where an extra-territorial offence causes some harmful effect in the prescribing state, without actually meeting the criteria of territorial jurisdiction or representing an interest sufficiently vital to the internal or external security of the state in question to justify invoking the protective principle”. 30 ONU, 2006-A, p. 522. 31 ONU, 2006-A, p. 522. 37

caráter do crime, e não propriamente com o nexo causal entre este e o Estado32. Crawford ressalta, contudo, que os dois princípios consolidados que são comuns a todas as áreas da jurisdição prescritiva (civil, criminal, inter alia) são tão-somente os princípios da territorialidade e da nacionalidade33. Para além desses princípios, Crawford escreve que atos extraterritoriais podem também ser objeto de jurisdição prescritiva, desde que observados os seguintes princípios gerais:

(1) Deve haver uma conexão real e não meramente plausível entre o objeto e o fonte da jurisdição (para além de eventuais casos de jurisdição universal) (2) O princípio da não intervenção na jurisdição territorial de outros Estados deve ser observado, particularmente no contexto da execução. (3) Elementos de acomodação, mutualidade e proporcionalidade devem ser devidamente considerados. Assim, nacionais residentes no estrangeiro não devem ser constrangidos a violar o direito de seu local de residência. (4) Esses princípios básicos não são aplicáveis ou não são utilmente aplicáveis a (a) certos casos de jurisdição concorrente e (b) crimes contra o direito internacional no âmbito da jurisdição universal. Nessas áreas normas especiais têm-se desenvolvido. Regimes especiais também são aplicáveis ao alto mar, plataforma continental,

32 CRAWFORD, J., 2012, p. 467. 33 O autor escreve: “As a general rule, however, it remains true that if a state wishes to avoid international criticism over its exercise of extra-territorial jurisdiction, it is better to base the prescriptive elements on territoriality or nationality” (CRAWFORD, J., 2012, p. 486). 38

zona econômica exclusiva, espaço sideral e Antártida. (5) A jurisdição é comumente concorrente e não há hierarquia de bases para jurisdição. No entanto, uma área de exclusividade pode ser estabelecida por tratado, no caso de ofensas cometidas a bordo de uma aeronave em voo.34 Apesar de sua razoabilidade, a enumeração de princípios gerais sobre a jurisdição de atos extraterritoriais proposta pela CDI não foi juridicamente consolidada pelo direito internacional. Para além dos quatro princípios anteriormente explicitados e reconhecidos pela Comissão, não existem parâmetros vinculantes nesse sentido. Outro referencial autoritativo com relação ao exercício extraterritorial de competências do Estado é o julgado do caso Lotus, a seguir analisado, e, ainda assim, nem de longe desprovido de controvérsia.

34 Do original: “(1) There should be a real and not colourable connection between the subject-matter and the source of the jurisdiction (leaving aside cases of universal jurisdiction). (2) The principle of non-intervention in the territorial jurisdiction of other states should be observed, notably in an enforcement context. (3) Elements of accommodation, mutuality, and proportionality should be duly taken into account. Thus nationals resident abroad should not be constrained to violate the law of their place of residence. (4) These basic principles do not apply or do not apply very helpfully to (a) certain cases of concurrent jurisdiction, and (b) crimes against international law within the ambit of universal jurisdiction. In these areas special rules have evolved. Special regimes also apply to the high seas, continental shelf, EEZ, outer space, and Antarctica. (5) Jurisdiction is often concurrent and there is no hierarchy of bases for jurisdiction. However, an area of exclusivity may be established by treaty, as in the case of offences committed on board aircraft in flight” (CRAWFORD, J., 2012, p. 486, notas de rodapé suprimidas). 39

2.1.2 O caso Lotus e o desenvolvimento jurisprudencial do conceito de jurisdição extraterritorial

O caso paradigmático relativo à matéria da jurisdição extraterritorial de um Estado é o já mencionado caso Lotus, julgado pela Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI) em 1927. Segundo a CDI, “a decisão da CPJI no caso Lotus pode ser vista como o ponto de partida para a consideração das regras de direito internacional governando o exercício extraterritorial de jurisdição por um Estado”35. No contencioso em questão, a Turquia reivindicava o direito de julgar um nacional francês, que estava em uma embarcação francesa, pela morte de nacionais turcos em uma embarcação turca. O incidente envolveu a colisão das duas embarcações em alto-mar (águas internacionais), sendo que a embarcação francesa já havia anteriormente chegado em Istambul36. Assim, em realidade, tratava-se de ato originado em território francês (embarcação francesa) e cujos efeitos foram sentidos em território turco (embarcação turca)37.

Com a escusa de uma (necessária) transcrição de longa extensão, assim decidiu a Corte: A primeira e mais importante restrição imposta pelo direito internacional sobre um Estado é que – na ausência de uma regra

35 ONU, 2006-A, p. 520. Do original: “The decision of the Permanent Court of International Justice in the Lotus case may be regarded as the starting point for the consideration of the rules of international law governing the extraterritorial exercise of jurisdiction by a State”. 36 ONU, 2006-A, pp. 520-521. 37 PARRISH, 2008, p. 15. 40

permissiva em sentido contrário – tal Estado não poderá exercer seu poder de qualquer maneira no território de outro Estado. Nesse sentido, a jurisdição é certamente territorial; não pode ser exercida por um Estado fora do seu território exceto no caso de uma regra permissiva derivada de um costume ou convenção internacional. Isso não significa, contudo, que o direito internacional proíbe um Estado de exercer jurisdição em seu próprio território, com relação a qualquer caso ligado a atos que tenham ocorrido em território estrangeiro, e sobre o qual não incida alguma regra permissiva de direito internacional. Tal proibição seria apenas possível se o direito internacional contivesse uma proibição geral aos Estados de estender a aplicação de suas leis e a jurisdição de suas cortes para pessoas, propriedades e atos fora de seu território, e se, como uma exceção a essa proibição geral, permitisse aos Estados de assim procederem em alguns casos específicos. Contudo, este certamente não é o caso no direito internacional presentemente. Longe de determinar uma proibição geral no sentido de que Estados não possam estender a aplicação de suas leis e a jurisdição de suas cortes a pessoas, propriedades e atos fora de seu território, o direito internacional os deixa uma grande margem de discricionariedade que é limitada apenas em alguns casos por regras proibitivas; com relação a outros casos, cada Estado permanece livre para adotar os princípios que entendem melhor aplicáveis.38

38 CPJI, 1927 p. 19, grifo acrescido. Do original: “Now the first and foremost restriction imposed by international law upon a State is that-failing the existence of a permissive rule to the contrary-it may not exercise its power in any form in the territory of another State. In this sense jurisdiction is certainly territorial ; it cannot be exercised by a State outside its territory except by 41

A primeira parte do julgado se refere ao âmbito da jurisdição executória do Estado, enquanto a segunda parte se refere ao âmbito da sua jurisdição prescritiva39. Segundo Parrish, foi com o caso Lotus que a CPJI “abriu o caminho estabelecendo uma presunção em favor da jurisdição legislativa de uma nação, mesmo sobre uma conduta que ocorresse em território estrangeiro”40. A rationale desse trecho pode ser resumida na ideia de que, quando se trata de jurisdição prescritiva, o que não é proibido pelo direito internacional, por ele está permitido41. Desde que a execução

virtue of a permissive rule derived from international custom or from a convention. It does not, however, follow that international law prohibits a State from exercising jurisdiction in its own territory, in respect of any case which relates to acts which have taken place abroad, and in which it cannot rely on some permissive rule of international law. Such a view would only be tenable if international law contained a general prohibition to States to extend the application of their laws and the jurisdiction of their courts to persons, property and acts 'outside their territory, and if, as an exception to this general prohibition, it allowed States to do so in certain specific cases. But this is certainly not the case under international law as it stands at present. Far from laying down a general prohibition to the effect that States may not extend the application of their laws and the jurisdiction of their courts to persons, property and acts outside their territory, it leaves them in this respect a wide measure of discretion which is only limited in certain cases by prohibitive rules; as regards other cases, every State remains free to adopt the principles which it regards as best and most suitable”. 39 RYNGAERT, 2015, p. 31. 40 PARRISH, 2008, p. 15, notas de rodapé suprimidas. Do original: “The precursor to the effects test appeared in the 1920s. The Permanent Court of International Justice in the famous Lotus case set the groundwork by establishing a presumption in favor of a nation’s legislative jurisdiction, even over conduct occurring abroad”. 41 Assim resume Ryngaert (2015, p. 29): “Under public international law, two approaches could logically be taken to the question of jurisdiction. Either one allows States to exercise jurisdiction as they see fit, unless there is a prohibitive rule to the contrary, or one prohibits States from exercising jurisdiction as they 42

(“enforcement”) das normas de um Estado fosse realizada em âmbito interno, haveria ampla discricionariedade (territorial) para a criação regular pessoas, propriedade e atos fora de seu território na ausência de uma regra proibitiva de direito internacional42. É essa lógica que tanto é contestada pela doutrina, e por vezes mesmo por ocasião de julgamentos de Cortes internacionais. Depois do caso Lotus, outros casos seguiram a mesma linha, particularmente no âmbito do direito anglo-saxão43. Nem por isso, contudo, sua influência é destituída de controvérsia. Ryngaert afirma que aquele julgamento é constantemente criticado e considerado obsoleto. Apesar disso, seu peso autoritativo permanece, ainda que mesmo seu caráter de precedente seja contestado, por ser a única decisão de uma corte internacional a tratar diretamente sobre o tema da jurisdição extraterritorial44. Segundo Ryngaert, ainda que o entendimento do caso Lotus seja considerado um princípio permissivo de jurisdição prescritiva

see fit, unless there is a permissive rule to the contrary. The first approach was taken by the Permanent Court of International Justice (PCIJ) in the 1927 Lotus case (section 2.1). The second approach, which purportedly reflects customary international law, has been taken by most States and the majority of the doctrine. Under this approach, States are not authorized to exercise their jurisdiction, unless they can rely on such permissive principles as the territoriality, personality, protective, and universality principles (section 2.2)”. 42 RYNGAERT, 2015, p. 32. 43 Dentre os quais o caso Alcoa, American Banana, International Shoe Co. v. Washington (PARRISH, 2008, p. 16). 44 RYNGAERT, 2015, p. 34. O autor escreve ainda: “1984, Kuijper stated that “insufficient research has been done so far to decide with any degree of certainty whether or not the Lotus decision has been set aside by subsequent developments in international customary law.” This statement probably still holds true today” (RYNGAERT, 2015, p. 34). 43

extraterritorial, o costume internacional (baseado na prática efetiva dos Estados) vai de encontro a essa lógica jurídica45. A exemplo da discordância sobre a rationale do teste Lotus, uma opinião dissidente que contém elementos que contestam o entendimento do caso é aquela proferida pelo juiz Sir Gerald Fitzmaurice no caso Barcelona Traction, de 1970, já no contexto da Corte Internacional de Justiça (CIJ), predecessora da CPJI. Em sua opinião, pode-se ler:

É verdade que, sob as presentes condições, o direito internacional não impõe aos Estados regras sólidas e evidentes delimitando esferas da jurisdição nacional em tais assuntos [...] mas os permite uma ampla discricionariedade no tema. Apesar disso, o direito internacional (a) postula a existência de limites [...]; e (b) determina que todo Estado tem uma obrigação de exercer moderação e comedimento com relação à extensão da jurisdição assumida pelas cortes em casos que possuem um elemento estrangeiro, assim como de evitar uma invasão indevida em uma jurisdição mais apropriada, ou mais apropriadamente exercível, por outro Estado.46

45 RYNGAERT, 2015, p. 34. 46 CIJ, 1970, p. 105. Do original: “It is true that, under present conditions, international law does not impose hard and fast rules on States delimiting spheres of national jurisdiction in such matters (and there are of course others- for instance in the fields of shipping, "anti-trust" legislation, etc.), but leaves to States a wide discretion in the matter. It does however (a) postulate the existence of limits-though in any given case it may be for the tribunal to indicate what these are for the purposes of that case; and (b) involve for every State an obligation to exercise moderation and restraint as to the extent of the jurisdiction assumed by its courts in cases having a foreign element, and to avoid undue encroachment on a jurisdiction more properly appertaining to, or more appropriately exercisable by, another State”. 44

Em sentido semelhante, com relação à opinião consultiva do caso Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons, desafiando a aplicabilidade contemporânea do princípio Lotus sobre jurisdição extraterritorial já em 1996, o juiz Bedjaoui, então presidente da CIJ, declarou:

Seria exagerar a importância da decisão da Corte Permanente [de Justiça Internacional no caso Lotus] e distorcer seu escopo divorciá-la do particular contexto, judicial e temporal, em que ela foi tomada. Sem dúvida, essa decisão expressou o espírito daqueles tempos, o espírito de uma sociedade internacional que continha ainda poucas instituições e que era governada por um direito internacional de coexistência estrita, em si um reflexo do vigor do princípio da soberania dos Estados. (grifo acrescido)47 O juiz procede o raciocínio, argumentando que a sociedade contemporânea atual é bastante diversa daquela, e o positivismo exacerbado presente no início do século XIX já não encontra mais respaldo48. Assim, a opinião da Corte no caso Nuclear Weapons seria “muito mais prudente do que sua predecessora no caso Lotus ao afirmar

47 Do original: “The Court's decision in the "Lotus" case, which some people will inevitably resurrect, should be understood to be of very limited application in the particular context of the question which is the subject of this Advisory Opinion. It would be to exaggerate the importance of that decision of the Permanent Court and to distort its scope were it to be divorced from the particular context, both judicial and temporal, in which it was taken. No doubt this decision expressed the spirit of the times, the spirit of an international society which as yet had few institutions and was governed by an international law of strict coexistence, itself a reflection of the vigour of the principle of State sovereignty”.(CIJ, 1996-B, p. 270). 48 CIJ, 1996-B, pp. 270 e ss. 45

hoje que o que não está expressamente proibido pelo direito internacional não está, portanto, autorizado”49.50 Como mencionado, a rationale fundamental do caso Lotus reside na não existência de uma proibição – o que, de fato, remonta a uma lógica de soberania dos Estados e um “positivismo jurídico exacerbado”. Apesar de uma mitigação desse paradigma, é de se ressaltar a estreita relação entre a regulação da extrajurisdicionalidade das competências do Estado e o princípio da não intervenção, corolário daquela mesma soberania. O que o juiz Bedjaoui afirma em sua opinião pode ser ilustrado, por exemplo, com a força que tem ganhado, nas últimas décadas, o embate da doutrina do Responsibility to Protect (R2P)51

49 CIJ, 1996-B, pp. 271. Do original: “Thus the Court, in this Opinion, is far more circumspect than its predecessor in the "Lotus" case in asserting today that what is not expressly prohibited by international law is not therefore authorized”. 50 Outra passagem que indica a controvérsia sobre o approach do caso Lotus cuja menção é válida é aquela do juiz Van den Wyngaert, no caso República Democrática do Congo v. Bélgica, julgado em 2002 pela CIJ. Ao expressar seu voto com relação à jurisdição universal para crimes de guerra e crimes contra a humanidade e sua contabilidade com o “Teste Lotus” (“The leading case on the question of extraterritorial jurisdiction is the 1927 "Lotus" case”), o juiz declarou: “It has often been argued, not without reason, that the ‘Lotus’ test is too liberal and that, given the growing complexity of contemporary international intercourse, a more restrictive approach should be adopted today” (CIJ, 2002, p. 169). No contexto da doutrina, ademais, F.A. Mann, em seu Curso da Haia sobre jurisdição internacional, menciona o célebre trecho do caso Barcelona Traction de maneira bastante crítica, para então introduzir sua própria opinião sobre o tema: “This was said in that disastrous case which failed in the International Court of Justice on the most technical of grounds [...]” (MANN, 1984, p. 27). 51 Responsibility to Protect, segundo Crawford (2008, p. 755): “In essence, it is intended to permit (and even require) international action in the face of the 46

contra os princípios da soberania e da não intervenção. Veja-se que este último não é sequer da mesma ordem jurídica que uma “ausência de proibição” – é, ao contrário, um desafio a um princípio concretamente assentado na ordem jurídica internacional, e que, inclusive, fornece diretrizes para o direito internacional pós-Segunda Guerra Mundial52. Essa constatação tem duas implicações de importância. Primeiramente, mais relacionada com a rationale fundamental do caso Lotus, é a de que a soberania dos Estados, outrora inabalável numa ordem internacional em que estes eram seus sujeitos centrais (e, praticamente, únicos), sofreu alterações e flexibilizações desde o julgado do caso Lotus em 1927. Nesse sentido, o trecho acima escrito pelo juiz Bedjaoui é bastante elucidativo. A segunda constatação, mais específica para a nossa temática, relaciona-se com as causas dessa “flexibilização” da soberania estatal. É

most serious human rights abuses or international crimes, in cases where a state fails in its duty to protect its own citizens”. O autor ressalta que esse termo surgiu em 2001, com um estudo da International Commission on Intervention and State Sovereignt (ICISS). Sobre o tema, cf. Crawford (2008, pp. 755 e ss.); ICISS (International Commission on Intervention and State Sovereignty). The Responsibility to Protect: Report of the International Commission on Intervention and State Sovereignty. Ottawa: The International Development Research Centre, 2001 ; COOPER, R. et al. (Eds.) Responsibility to Protect: The Global Moral Compact for the 21st Century.New York: Palgrave Macmillan US, 2009. 52 Cf., e.g, Artigo 2 da Carta da ONU e os princípios ali enumerados, dentre os quais o Artigo 2.1 (“A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros”) e o Artigo 2.4 (“Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”). Disponível em: . Acesso 31.12.2016. 47

verdade que no caso da R2P, esta se relaciona com o (e opõe-se ao) conceito de soberania estatal de maneira muito distinta que a jurisdição prescritiva com alcance extraterritorial, tanto em termos de impacto quanto em termos de justificativa jurídica (a doutrina do R2P envolve muito mais do que uma aplicabilidade jurisdicional extraterritorial, mas o próprio uso da força, proibição de valor jus cogens no direito internacional53). Apesar disso, o elemento central da noção de soberania em questão em ambos os casos é o da não intervenção54. O exercício extraterritorial de qualquer das competências do Estado remonta a interferência no âmbito de outro Estado, ainda que essa interferência seja permitida pelo direito internacional. Como Shaw elucida, quando esse exercício se dá com base em princípios clássicos de jurisdição do direito internacional (e.g., territorialidade e nacionalidade), não costuma haver muita controvérsia55. Contudo, em casos menos evidentes, particularmente com relação à aplicabilidade da doutrina dos efeitos, a permissibilidade de medidas com alcance extraterritorial é mais contestada, particularmente por ser uma ameaça mais evidente à soberania estatal.

53 Cf. ICISS, 2001, p. 13. 54 Sobre soberania e o princípio da não intervenção, cf. CRAWFORD, 2012, p. 447 e ss. 55 SHAW, 2008, p. 688. 48

2.2 A DOUTRINA DOS EFEITOS (EFFECTS DOCTRINE)

A doutrina dos efeitos é uma abordagem específica do princípio da territorialidade. Diferentemente dos demais princípios de jurisdição extraterritorial enumerados pela CDI, relaciona-se não com a conduta propriamente dita do Estado que emana a medida ou de seus subordinados, mas com os efeitos que determinada conduta realizada fora de seu território pode acarretar dentro de seu território. Mais do que os outros princípios de direito internacional que regem a temática aqui abordada, essa doutrina merece especial enfoque não apenas pela sua controvérsia, mas porque pode servir de justificativa jurídica para medidas ambientais com alcance extraterritorial restritivas ao comércio internacional. O alcance dessa doutrina pode ser melhor compreendido a partir do estudo de suas origens. O contexto, segundo Parrish, foi o de um direito internacional mais liberal e contrário a presunções positivísticas e territoriais; assim como mais realista no sentido de um Estado que deveria buscar seus interesses internos para além de suas fronteiras56. Em âmbito internacional, Parrish explica que “o precursor do teste dos efeitos [Effects test] apareceu em 1920”, com o caso Lotus. Cabe relembrar um trecho particular da decisão do caso Lotus:

Isso não significa, contudo, que o direito internacional proíbe um Estado de exercer jurisdição em seu próprio território, com relação a qualquer caso ligado a atos que tenham ocorrido

56 PARRISH, 2008. P. 14. 49

em território estrangeiro, e sobre o qual não incida alguma regra permissiva de direito internacional57. Esse trecho significou a abertura para o que posteriormente iria se desenvolver na doutrina dos efeitos. Não se fala propriamente na possibilidade de exercer jurisdição extraterritorial prescritiva no caso de uma determinada conduta causar efeitos no território de um país, mas foi esse contencioso que delineou uma verdadeira presunção de territorialidade58, a ser desenvolvida no teste dos efeitos. A origem propriamente dita da doutrina dos efeitos está no direito da concorrência. Coppel explica que, diante do regime clássico do princípio da territorialidade no direito internacional, a doutrina surgiu como uma resposta à prática de violação de normas de concorrência e antitruste realizadas por companhias. Ocorria que a atuação de algumas companhias violava tais normas, produzindo efeitos anticompetitivos em outros Estados, sem efetivamente estar em tais Estados59. Assim, o argumento comumente utilizado para a justificação do uso da doutrina nesse ramo é a de que, confiando-se apenas no princípio da territorialidade, empresas estrangeiras causando efeitos anticompetitivos conseguiriam esquivar-se de responsabilização unicamente devido ao fato de não estarem fisicamente localizadas no território do Estado prejudicado60.

57 Id. nota 39. 58 PARRISH, 2008, p. 18. 59 COPPEL, 1993, p. 73. 60 COPPEL, 1993, p. 75. O autor critica esse argumento, o qual ele chama de “evasion argument”: “The evasion argument presupposes the very question which must be answered, that is, whether foreign companies are subject to competition legislation. It is illogical to argue that foreign companies must be 50

Com postulados mais bem delineados no sentido de uma teoria de efeitos, o leading case nesse sentido parece ter sido o caso Alcoa (US v. Aluminum Co. of America) (1945)61, julgado em uma Corte interna estadunidense. Nesse litígio, foi a partir de uma referência ao caso Lotus que o juiz Learned Hand determinou que a legislação interna dos Estados Unidos na matéria deveria ser aplicada aos acordos concluídos fora do território dos Estados Unidos, mas que afetassem importações desse país62. A declaração clássica da doutrina dos efeitos foi proclamada nesse contencioso, cuja decisão estatuiu que “qualquer Estado pode impor responsabilidade, mesmo sobre pessoas que não são seus subordinados, por condutas ocorridas fora de suas fronteiras e que tenham consequências dentro dessas fronteiras”63. Ademais, o juiz Hand adotou o seguinte teste (teste dos efeitos ou teste dos efeitos e intenções):

i. Deve haver tanto uma intenção de atingir quanto um efeito sobre as importações e exportações dos Estados Unidos para a aplicação do Sherman Act [regulamentação antitruste cuja aplicabilidade estava sob análise]

subject to the antitrust laws because otherwise it would be a simple matter for them to evade those laws. If they are not subject to those laws there can be no question of evasion. The proposition that they must be subject to the laws has not yet been proved, so as yet they are evading nothing” (COPPEL, 1993, p. 76). 61 METZGER, 1967, p. 1015. 62 SUFRIN, 2003, p. 107. 63 US v. ALUMINUM CO. OF AMERICA apud SHAW, 2008, p. 689. Assim transcreve Malcolm Shaw, acima traduzido: “any state may impose liabilities, even upon persons not within its allegiance, for conduct outside its borders that has consequences within its borders which the state reprehends”. 51

ii. Se houver um efeito sem intenção, então não há jurisdição do Sherman Act devido às “complicações internacionais passíveis de surgimento”, o que, por sua vez, torna “seguro assumir que o Congresso certamente não teve a intenção de que o Ato tivesse jurisdição”. iii. E se houver intenção sem efeito, arguiu-se que o Sherman Act não se aplicaria. Contudo, ao mesmo tempo, arguiu-se que não há necessidade de haver uma real intenção de violar o direito antitruste. Na realidade, um estrangeiro pode violar essas leis sem completamente compreendê- las ou, em uma situação extrema, sequer conhecendo a sua existência64. A aplicabilidade dessa doutrina, contudo, foi desde o início controversa65, e pode-se inferir que esse debate remonta ao fato de que ela representa uma ameaça à soberania estatal mais do que as outras justificativas de direito internacional para o exercício de jurisdição extraterritorial. Isso porque os conceitos envolvidos na doutrina dos efeitos (“consequência”, “intenção”, “relação”) são bastante indeterminados. A máxima do caso Alcoa é bastante liberal nesse

64 ALCOA apud SAMIE, 1982, p. 29, notas de rodapé suprimidas, grifo acrescido. Do original: “i) There must be both an intent to and an effect on United States imports or exports for application of the Sherman Act; ii) If there is an effect but no intent, then there is no Sherman Act jurisdiction because of the "international complications likely to arise" which in turn make it "safe to assume that Congress certainly did not intend the Act to cover them." iii) And if there is an intent but no effect, it was held that the Sherman Act does not apply. But at the same time, however, it had been stated that there need be no actual intent to violate the antitrust laws. In fact, a foreigner might violate these laws without fully understanding them or, in an extreme situation, without even knowing they exist” 65 SUFRIN, 2003, p. 107. 52

sentido, e foi acompanhada no sistema interno dos Estados Unidos por um crescendo de medidas que a levaram a cabo66. Talvez devido à crescente oposição de países estrangeiros contra a aplicação dessa doutrina, a abordagem foi sendo gradualmente modificada. Um dos elementos mais marcantes nesse abrandamento, além do teste dos efeitos acima descrito, foi a introdução de uma exigência de razoabilidade com relação a interesses de outras nações67. Crawford afirma que essa doutrina é amplamente utilizada pelos Estados Unidos e pela União Europeia68. Particularmente nos Estados Unidos, ela tem especial força, e é aplicada com maior ênfase na área de regulação antitruste69, sendo tida como uma forma de expandir a hegemonia estadunidense por meio de uma legitimação da atividade legislativa de seu Congresso70. De fato, no âmbito do mecanismo de solução de controvérsias da OMC, ainda que não diretamente invocada pelas alegações estadunidenses, a doutrina dos efeitos parece ter suas repercussões nas medidas comerciais tomadas pelos Estados Unidos71.

66 PARRISH, 2007, p. 17. 67 SHAW, 2008, p. 690. 68 CRAWFORD, J., 2012, p. 463. 69 SHAW, 2008, p. 688. 70 PARRISH, 2008, p. 18. 71No caso US – Shrimp, os Estados Unidos alegam, em conjunto com a ausência de limitação jurisdicional no contexto do Artigo XX(g) e (b) do GATT, o fato de que muitos tratados do sistema multilateral de comércio envolvem ramificações extraterritoriais entre os seus Estados-membros (WT/DS58/R, pp. 88 e ss.). No caso US – Tuna, ao contra-arrazoar alegações de incompatibilidade de suas medidas por aplicação extraterritorial de regimes internos, os Estados Unidos alegaram que “[t]rade measures by nature had effects outside a contracting party's territory; for example, the Note Ad Article III reflected this 53

Parrish72 indica, contudo, que os problemas criados por essa abordagem, conjuntamente com os problemas da aplicação de leis para além das fronteiras do Estado em questão, têm sido “imprudentemente subestimados”73. Segundo o autor, essa abordagem abre espaço para uma atividade extrajurisdicional sem limites, especialmente considerando que “tudo afeta tudo”, dando, assim, licença para, praticamente, uma jurisdição universal74. Parte da crítica que se faz à doutrina dos efeitos advém de algumas obscuridades em sua aplicabilidade, possivelmente devido, primeiramente, às origens políticas a que ela remonta e, em segundo lugar, devido à ausência de jurisprudência internacional que possa clarificar algumas dessas incertezas. Uma primeira dificuldade seria, por exemplo, identificar até que ponto uma determinada normativa efetivamente regula (de maneira vinculante) uma conduta realizada em território estrangeiro nem sempre é tão evidente75. Parte do argumento levantado por Parrish de que “tudo afeta tudo”, por outro lado, serve de

point in referring to applying a contracting party's requirements at the time or point of importation (that is, before the goods enter that contracting party's customs territory)” (DS21/R, p. 17, para. 3.49). Cf. Capítulo 4 desta dissertação. 72 Não só este autor apresenta suas dúvidas com relação ao que ele chama de Effects test: também alguns outros scholars citados por Austen L. Parrish adotam a mesma visão. Cf. PARRISH, 2008, pp. 23 e ss. (notas de rodapé). 73 PARRISH, 2008, p. 22. 74 PARRISH, 2008, p. 23. 75 Sobre o tema cf., e.g., HOWSE; REGAN, 2000, pp. 26 e ss.; Capítulo 4 desta dissertação. 54

justificativa estadunidense ao afirmar-se que medidas comerciais, por sua natureza, possuem efeitos extraterritoriais76. Em sentido semelhante, por exemplo, advogam Regan e Howse77, os quais escrevem especificamente com base no sistema jurídico da OMC. Os autores contestam um sentido muito amplo do termo “extraterritorialidade”: por vezes, a noção de “extraterritorialidade é utilizada livremente para denotar qualquer tentativa de influenciar uma conduta em um país estrangeiro que caia sob a jurisdição regulatória daquele país”78. Para os autores, não é qualquer prescrição emanada por um Estado que se traduz em exercício de jurisdição prescritiva extraterritorial, porque, em muitos casos, a conduta não está de forma alguma vinculada a tal prescrição. De acordo com algumas restrições comerciais impostas internamente, por exemplo, “se um determinado produto pode ser importado depende do que ocorreu previamente fora de sua fronteira. Mas nada que tenha

76 No caso US – Tuna, e.g.: “The United States replied that there was nothing in Article XX to support assertions that the United States legislation was extraterritorial. These measures simply specified the products that could be marketed in the territory of the United States. Trade measures by nature had effects outside a contracting party's territory; for example, the Note Ad Article III reflected this point in referring to applying a contracting party's requirements at the time or point of importation (that is, before the goods enter that contracting party's customs territory)” (DS58/R, p. 17, para. 3.49). 77 HOWSE; REGAN, 2000. 78 HOWSE; REGAN, 2000, p. 274. Do original: “Sometimes, however, ‘extra- territoriality’ is used loosely to denote any attempt to influence conduct in a foreign country that falls under the regulatory jurisdiction of that country”. 55

acontecido fora de sua fronteira atrai, por si só, qualquer sanção civil ou criminal”79. Todos esses questionamentos acabam voltando-se ao próprio conceito de poder de jurisdição de um Estado. Como mencionado no início deste capítulo, Shaw, por exemplo, entende que tal capacidade compreende “o poder de um Estado sob o direito internacional de regular ou causar impacto sobre pessoas”80. A possibilidade de uma normativa de um Estado causar impacto, de uma maneira amplamente entendida, sobre pessoas é bastante abrangente, de modo que tal abordagem tornaria a questão ainda mais delicada. Ademais, determinar em que medida uma determinada ação produz “efeitos” relevantes em território nacional para fins de que o Estado possa emanar uma norma ou exercer seu poder jurisdicional não é uma tarefa simples. Alguns requerimentos podem ser encontrados em julgamentos de Cortes internas, particularmente estadunidenses, e em estudos realizados naquele país. Samie menciona, por exemplo, a utilização de princípios provenientes do direito criminal também nos efeitos da atividade econômica estrangeira, buscando-se a existência de um nexo positivo entre causa e efeito, e a necessidade de que esse efeito

79 HOWSE; REGAN, 2000, p. 274. Do original: “To be sure, whether a particular product may be imported depends on what has previously happened to it outside the border. But nothing that has happened outside the border attracts, by itself, any criminal or civil sanctions”. Cabe o esclarecimento de que os autores tratam especificamente de medidas restritivas ao comércio baseadas em métodos produtivos, tópico a ser explorado com maior detalhamento no Capítulo 3. 80 Id. nota 5, grifo acrescido. 56

seja “substancial”81. Evidentemente, o conceito de “substancial” permanece igualmente amplo e passível de controvérsia. Uma possível determinação de limites da possibilidade de causar impacto, produzir efeitos de modo aplicável a medidas comerciais ambientais será perquirida no Capítulo 4, a partir, também, do direito da OMC aplicável. Uma última observação é a de que o respaldo teórico mais significativo para essa controvérsia foi dado pelo Restatement of Foreign Relations (Third), documento periodicamente produzido pelo American Law Institute. A CDI, efetivamente, reconheceu a existência da doutrina no âmbito do princípio da territorialidade, mas não a considerou como um princípio, propriamente dito, a ser observado. Ademais, se considerado que os princípios explanados no report da CDI aplicabilidade dessa doutrina encontram forte respaldo em uma prática uniforme dos Estados82, no sentido de um direito costumeiro por trás desses princípios, a existência de forte controvérsia, como demonstrado, acerca da aplicabilidade da doutrina dos efeitos, enfraquece significativamente a possibilidade de invocá-la enquanto argumento

81 “The Restatement recognizes that to admit "effects" as a basis of jurisdiction without any qualification as to degree would be to permit well-established principles of international jurisdiction to be overturned by a sidewind [which, it may be added has blown consistently from one direction only]. It attempts, therefore, to introduce a more positive nexus between cause and effect by requiring that the effects be substantial” (The Hague Report apud SAMIE, 1982, p. 25-16). 82 Em seu relatório, a CDI afirma: “The topic “Extraterritorial jurisdiction” is in an advanced stage in terms of State practice, and is concrete. Although there appears to be a strong need for codification in this field, some may question whether the practice is sufficiently uniform or widespread to support a codification effort at this time. However, recent developments in this regard indicate that practice may be converging towards a more uniform view of the law” (CDI, 2006, p. 517). 57

justificativo de um exercício extrajurisdicional da competência prescritiva do Estado. Nas palavras de Lowe, referindo-se ao suporte recebido pela doutrina americana à época em que o debate sobre o tema estava mais aceso, “direito costumeiro internacional é gerado por prática dos Estados, não por doutrina (...)”83. Não se toma aqui posição com relação específica à conformidade da doutrina dos efeitos com o direito internacional, ou com relação à sua legitimidade. Porém, entende-se pela inexistência de prática suficiente ou respaldo autoritativo para que se possa aplica-la sem suscitar controvérsia. Além disso, sua aplicabilidade mais clara,

83 Do trecho original: “The opinion of Advocate General Darmon unequivocally upheld the validity of the "effects" jurisdiction after an examination of doctrinal writing and US practice in support of the "effects" doctrine, and concluded that its exercise in this case was consistent with international comity. But customary international law is generated by State practice, not by doctrine, and non-US practice is discussed only briefly” (LOWE, 1989, p. 10). O autor acrescenta ainda: “In particular, the practice of twenty countries in adopting "blocking" statutes to counter the extraterritorial claims of other States (primarily the USA), which might have been thought to weaken or modify the contention that the "effects" doctrine was a permissible basis of jurisdiction in international law, was dismissed on dubious grounds as irrelevant to the question in the present case. Similarly, the conclusion that international law allows all jurisdictional claims not expressly prohibited, while supported by one possible interpretation of the decision of the Permanent Court of International Justice in The Lotus case P.C.I.J. Ser. A no. 10 (1927), would not have been borne out by an examination of State practice, had this been undertaken” (LOWE, 1989, p. 10). Essas considerações servem a respaldar a posição esposada por este trabalho no sentido de que, ainda que a doutrina dos efeitos conte com algum reconhecimento internacional sobre sua aplicabilidade, a ausência de prática uniforme (e mesmo aceitação ampla enquanto opinio juris, elemento fundamental para a existência de uma norma que possa ser considerada costume internacional), impede a possibilidade de aplicação incontroversa da abordagem como justificativa para a criação de medidas comerciais ambientais com efeitos extraterritoriais. 58

apesar de ter também sido invocada em outros ramos do direito internacional84, encontra-se no âmbito do direito da concorrência, i.e., fora do espectro de estudo deste trabalho. Assim, fosse utilizado tal argumento como sustento de uma medida comercial ambiental com efeitos extraterritoriais – ou seja, se a doutrina dos efeitos fosse invocada de modo a justificar uma medida comercial protetiva do meio ambiente tendo por base tão-somente a existência de efeitos que a produção de um determinado produto tem dentro do território do Estado regulador, mas partindo-se do pressuposto que, sem a utilização dessa abordagem, a medida seria ilícita perante o direito internacional –, tal respaldo jurídico seria bastante frágil. Ao contrário, o que se defenderá ao longo dos próximos capítulos, como será demonstrado, é que medidas de tal natureza não são, de per se, contrárias ao direito internacional ou ao direito da OMC, desde que observados alguns requisitos. Por tal motivo, ainda que a doutrina dos efeitos tenha reconhecida relevância para os propósitos desta pesquisa (motivo pelo qual dedicou-se um tópico apenas para o esclarecimento da questão), não será feito uso desta para a análise jurídica aqui realizada.

84 A CDI afirma que a doutrina dos efeitos também tem sido invocada no âmbito do direito criminal (CDI, 2006, p. 517). 59

2.3 ESPÉCIE DO GÊNERO: MEDIDAS COMERCIAIS AMBIENTAIS COM EFEITO EXTRATERRITORIAL

A jurisdição extraterritorial de um Estado pode se manifestar em diversos ramos e de diversas maneiras. O objeto da presente pesquisa, contudo, é bastante específico: averiguar a compatibilidade de medidas restritivas ao comércio internacional (ou medidas comerciais) com escopo ambiental e cujos efeitos têm (controverso) alcance extraterritorial. Portanto, para uma apropriada delimitação, os subtópicos a seguir buscam elucidar o que se entende por cada uma dessas especificações. A conjunção dos três fatores elencados neste tópico (medidas restritivas, medidas com escopo ambiental e medidas com alcance extraterritorial) levará à determinação de conclusões específicas para o problema aqui analisado. Inicialmente, cabe ressaltar que, embora a determinação “medida comercial” envolva um campo jurídico-internacionalista muito amplo, entende-se aqui comercial como relativo ao direito da OMC. Ademais, como já mencionado, a competência sob enfoque é tão- somente aquela prescritiva, conforme descrito no primeiro tópico deste capítulo.

2.3.1 Medidas restritivas ao comércio: abordagem da competência prescritiva do Estado O direito do comércio internacional é formado por duas “vertentes”: aquela formada pelos acordos bilaterais ou regionais de comércio, tais como o North American Free Trade Agreement 60

(NAFTA) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul), e aquela formada pelo sistema multilateral de comércio85. Esta última é regida, essencialmente, pelo arcabouço jurídico da Organização Mundial do Comércio, e é o âmbito em que se insere esta pesquisa. A OMC tem por objetivo primordial a liberalização do comércio internacional, ou, em outras palavras, a mitigação das barreiras tarifárias e não tarifárias a esse sistema. Diante disso, para a compreensão do que é abarcado pela ideia de medidas restritivas ao comércio internacional, é necessário entender do que se tratam tais barreiras. Assim que o sistema multilateral de comércio foi concebido, à época do sistema do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT, do inglês General Agreement on Tariffs and Trade)86, o objetivo primordial daquele acordo era a redução gradativa das tarifas aplicadas à importação e exportação de produtos, assim como de outros elementos tarifários aplicados após a entrada de tais produtos na fronteira do país contratante. O sistema GATT inaugurou, desta forma, uma sucessão de rodadas de negociação87 entre diversos países88, as quais buscavam precisamente delimitar as novas perspectivas referentes

85 VAN DEN BOSSCHE, 2005, p. 39. 86 Sobre o tema, cf. IRWIN; MAVROIDIS; SYKES, 2008; VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 78 e ss.; VAN GRASSTEK, 2013, p. 3 e ss.. 87 Tais foram as rodadas: Genebra (1947), Annecy (1949), Torquay (1951), Dillon Round (1960-1961), Kennedy Round (1964-1967), Tokyo Round (1973- 1979) e Uruguay Round (1986-1994). 88Na primeira rodada, em 1947, 23 países estavam presentes. O sistema foi ganhando gradual apoio e participação internacional, sendo que a atual Rodada de Doha, inaugurada em 2001, conta com mais de 150 participantes (HOEKMAN; MAVROIDIS, 2007, p. 9). 61

ao já descrito movimento de liberalização do comércio internacional. A primeira delas, em 1947, Genebra, e tinha por objetivo primordial, assim como as quatro rodadas subsequentes, a redução ou eliminação de tarifas alfandegárias em prol da circulação de bens. As barreiras tarifárias incluem precipuamente encargos aduaneiros, impostos no momento da importação de determinado produto, estando a entrada desse produto em um mercado condicionada ao pagamento desse valor89. Servem a três propósitos diferentes, para Van den Bossche: fonte de receita aos governos, proteção de indústrias domésticas e uma valorização de determinado setor com a alocação premeditada desses encargos (por exemplo, uma menor taxação sobre máquinas industriais em comparação a cosméticos)90. Em regra, o estabelecimento desses encargos, desde que maneira não discriminatória entre membros distintos da OMC (afinal, a não discriminação é o fundamento primordial da instituição), é permitida pelo direito da OMC91. Com o avanço das negociações no sistema multilateral de comércio, verificou-se que a mitigação de barreiras tarifárias não era suficiente para uma ampla liberalização do comércio internacional.

89 Nos termos de Van den Bossche: “customs duty, or tariff, is a financial charge, in the form of a tax, imposed on products at the time of, and/or because of, their importation. Market access is conditional upon the payment of the customs duty.” (2005, p. 377). 90 VAN DEN BOSSCHE, 2005, p. 379 91 VAN DEN BOSSCHE, 2005, p. 380. Ele esclarece ainda que, ainda que não proibidos pelo direito da OMC, por constituírem evidente barreira ao comércio, são objeto de constante negociação visando à sua redução, de maneira inclusive positivada pelo Artigo XXVIII bis do GATT/94. 62

Assim, de 1964 em diante (Rodada Kennedy), as negociações também passaram a abranger tópicos relativos a barreiras não tarifárias. Esses novos objetivos deram azo à busca por um sistema mais complexo do que o texto do GATT, o qual não dispunha de arcabouço satisfatório para a diminuição desses outros obstáculos92. As barreiras não tarifárias incluem restrições quantitativas ao comércio de produtos e quaisquer outras formas de limitação à entrada de produtos ou serviços no mercado interno, como, por exemplo, regulamentos e padrões técnicos, medidas sanitárias e fitossanitárias, subsídios diretos e indiretos, etc. O sistema jurídico formado pela OMC prevê um complexo arcabouço de regulações sobre a incidência tanto de barreiras tarifárias quanto não tarifárias, inclusive permitindo exceções a proibições básicas dos acordos do chamado “guarda-chuva” da instituição93. Assim sendo, ainda que a organização busque a mitigação dessas barreiras, sua proibição não é uma regra apriorística em qualquer situação. Nesse sentido, Mavroidis explica que os “membros da OMC detêm soberania sobre a determinação de suas políticas domésticas, desde que tais instrumentos não sejam utilizados com fins protecionistas”94. Nesse contexto, uma medida restritiva ao comércio internacional costuma tomar a forma de uma norma ou, por vezes, uma

92 VAN DEN BOSSCHE, 2005, p. 82. 93 Um panorama geral das regras básicas relevantes da instituição será apresentado no próximo capítulo desta dissertação. 94 MAVROIDIS, 2014, p. 1. Do original: “WTO Members retain sovereignty over the design of domestic policies, as long as such instruments are not used for protectionist purposes: by ‘domestic policies’ we understand ‘behind the border policies’, e.g. policies that apply to both domestic as well as imported goods that have been cleared through customs; national health-, tax-, competition-, employment policies etc. come under the ambit of this term”. 63

decisão judicial, emanada no âmbito do direito interno de um Estado e que, de alguma maneira, introduz alguma barreira ao comércio internacional, seja por meio de tarifas ou não. Para os fins deste trabalho, as medidas restritivas tomadas em consideração serão apenas aquelas que, excepcionada a controvérsia sobre seu alcance extraterritorial, são juridicamente compatíveis com os acordos da OMC. A título exemplificativo, podemos citar uma tarifa alfandegária imposta dentro dos níveis acordados pelo sistema de concessões da organização95. O ato de emanar medidas restritivas está compreendido pela competência prescritiva do Estado. Essa competência, como já elaborado, envolve não apenas atos normativos emanados pela função legislativa de um Estado, mas também suas decisões judiciais. A Organização Mundial do Comércio, em particular, trata de igual maneira decisões judiciais e normas de direito interno quando contestados perante o seu Mecanismo de Solução de Controvérsias (MSC). Uma decisão pode ser contestada perante o MSC como medida incompatível com o regime jurídico do sistema multilateral de comércio, da mesma forma que qualquer norma emanada.

95 O Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias (HS), introduzido em 1985 a fim de uniformizar as concessões tarifárias. Esse sistema foi amplamente recebido pelos membros da OMC, ao ser integrado pelo Artigo II do GATT/94, e classifica mercadorias por um quadro de nomenclaturas, de modo que as tarifas aduaneiras deverão respeitar os limites acordados pelos países nesse acordo.' 64

2.3.2 Medidas de cunho ambiental: delimitando a especificidade do escopo da regulação Medidas comerciais têm sido um dos meios utilizados para promover a proteção ambiental. A relação entre os dois temas é direta e reconhecida no âmbito do direito internacional, de modo que uma série de instrumentos internacionais ambientais (ou convenções internacionais ambientais, MEAs, do inglês Multilateral Environmental Agreements) designaram possíveis medidas comerciais para a consecução de seus objetivos, tais como o combate às mudanças climáticas96 e a preservação de espécies ameaçadas de extinção97. Atualmente, existem mais de 250 MEAs regulando questões ambientais, das quais cerca de 20 incluem provisões envolvendo restrições comerciais para a proteção ambiental98. Reconhecendo a importância dessa interação, inclusive, o Secretariado da OMC mantém um registro de todas essas convenções e medidas a elas relativas – a WTO Matrix on Trade-Related Measures Pursuant to Selected Multilateral

96 A exemplo do Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio, que em seu Artigo 4 dispõe: “ARTIGO 4 (Controle do Comércio com Não-Partes) 1. Dentro de um ano a contar da data de entrada em vigor deste Protocolo, as Partes deverão proibir a importação de substâncias controladas de qualquer Estado que não seja parte deste Protocolo” (BRASIL, 1990). 97 Proeminentemente, a Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), que em seu Artigo III determina que “1. Todo comércio de espécimes de espécies incluídas no anexo I se realizará de conformidade com as disposições deste artigo” (BRASIL, 1975). 98 Fonte: OMC. WTO Matrix on Trade-Related Measures Pursuant to Selected Multilateral Environmental Agreements (MEAs). Disponível em: < https://www.wto.org/english/tratop_e/envir_e/envir_matrix_e.htm >. Acesso em 12.07.2016. 65

Environmental Agreements. Ademais, na agenda da atual Rodada de Doha, um dos itens de discussão é precisamente a relação entre obrigações comerciais contidas em MEAs99. Para serem consideradas compatíveis com o sistema multilateral de comércio, medidas restritivas ao comércio com escopo ambiental podem ser tomadas pelos países-membros da OMC, mas devem estar em consonância com suas regras. O preâmbulo do Acordo Constitutivo da Organização prevê uma série de questões potencialmente conflitantes com a Organização, dentre as quais, relevante para o escopo desta pesquisa, a proteção ambiental. O texto assim dispõe, já em seu primeiro recital: As Partes do presente Acordo, [...] Reconhecendo que as suas relações na esfera da atividade comercial e econômica devem objetivar a elevação dos níveis de vida, o pleno emprego e um volume considerável e em constante elevação de receitas reais e demanda efetiva, o aumento da produção e do comércio de bens e de Serviços, permitindo ao mesmo tempo a utilização ótima dos recursos mundiais em conformidade com o

99 O tópico que trata sobre Comércio e Meio Ambiente na Declaração Ministerial de Doha de pronto determina, em seu parágrafo 31, três áreas de negociação relativas ao tema, a serem perquiridas nas sessões especiais de negociação da CTE, sendo a primeira delas a relação entre as normas da OMC e disposições relativas ao comércio presentes em acordos multilaterais ambientais (MEAs): “31. With a view to enhancing the mutual supportiveness of trade and environment, we agree to negotiations, without prejudging their outcome, on: (i) the relationship between existing WTO rules and specific trade obligations set out in multilateral environmental agreements (MEAs). The negotiations shall be limited in scope to the applicability of such existing WTO rules as among parties to the MEA in question. The negotiations shall not prejudice the WTO rights of any Member that is not a party to the MEA in question” (OMC, WT/MIN(01)/DEC/1, pp. 6-7, para. 31). 66

objetivo de um desenvolvimento sustentável e buscando proteger e preservar o meio ambiente e incrementar os meios para fazê-lo, de maneira compatível com suas respectivas necessidades e interesses segundo os diferentes níveis de desenvolvimento econômico, [...]100

Portanto, a relação entre a utilização de medidas relativas ao comércio internacional e a proteção ambiental é expressamente reconhecida pelo preâmbulo do Acordo Constitutivo da Organização. Esse reconhecimento veio apenas com a instituição da OMC, em 1995, ainda que já na época do sistema GATT questões conexas ao meio ambiente eram reguladas pelo Acordo Geral101. Apesar disso, Charnovitz ressalta que o fato de que a política internacional sobre ‘comércio e meio ambiente’ esteja mais coerente e construtiva agora do que nas décadas de 1980 e 1990 não significa que o nível de progresso seja suficiente ou que os problemas relacionados tenham sido resolvidos. Problemas ambientais serão sempre um desafio em um planeta em que unidades governamentais não exatamente correspondem em seus ecossistemas. Em outras palavras, enquanto as políticas de um país puderem impor externalidades em outros, e enquanto os preços no mercado não forem totalmente um reflexo dos custos ambientais de produção, haverá a necessidade de governança ambiental para lidar com os conflitos ambientais que irão inevitavelmente emergir.102

100 MDIC, Acordo da OMC, p. 01, grifo acrescido. 101 Sobre o tema, cf. DAL RI; DE ANDRADE, 2016. 102 Do original: “Of course, the fact that international policy on the ‘trade and environment’ is more coherent and constructive now than it was in the 1980s and 1990s does not mean that this level of progress is sufficient or that the underlying problems have been solved. Environmental problems will always be 67

Uma vasta gama de medidas comerciais visando à proteção ambiental pode ser enumerada. Alguns exemplos são a concessão de subsídios para a produção de bens de modo ecológico ou mesmo relativos à produção de bens relativos a questões ambientais, como painéis solares, a imposição de um regime tarifário específico que diferencie produtos ecologicamente corretos ou não; a imposição de um embargo contra produtos com determinadas características que não se adequem a padrões ecológicos impostos pelo Estado regulador; a imposição de um regime de certificação (labelling) conforme as características físicas ou de produção de um determinado bem103; dentre diversas outras possibilidades. Ainda que todos esses exemplos estejam diretamente conectados com o regime jurídico da OMC e seu amplo arcabouço jurídico relativo aos mais diversos aspectos da regulação comercial, nem todas essas medidas necessariamente implicarão efeitos extraterritoriais. O alcance extraterritorial dessas medidas, nas palavras da CDI, relaciona-se com o fato de que “o Estado pode se ver tentado a regular condutas ou situações que potencialmente causem danos

a challenge on a planet where governmental units do not exactly match ecosystems. Another way of saying this is that so long as the policies in one country can impose externalities on others, and so long as prices in the market are not fully reflective of environmental costs, there will be a need for international governance to manage the transborder conflicts that will inevitably ensue” (CHARNOVITZ, 2008, p. 238). 103 Essas medidas envolvem a controvérsia matéria de regulação dos métodos de processo e produção (PPMs), a ser abordada na seção 4.2.1 desta Dissertação. 68

ambientais em seu próprio território ou a nível global, as quais podem ocorrer em alto-mar ou no território de outro Estado”104. Na mesma linha, Dunoff, em seu artigo sobre o uso de medidas comerciais para a proteção de global commons105, denominou de “barreiras ao comércio” ou “barreiras ambientais ao comércio” [green trade barrier] aquelas “restrições, taxas a produtos ou meios de produção, e outras restrições sobre a livre circulação de produtos através das fronteiras nacionais e que foram concebidas para servir a propósitos ambientais”106. A forma com a qual Dunoff conceitua “barreiras ambientais ao comércio” é pontual, e servirá aqui como norteador para o conceito de medidas comerciais ambientais. Para uma melhor delimitação do conteúdo aqui entendido pela noção de medidas comerciais com esse escopo ambiental, três casos levados ao contencioso do sistema OMC serão brevemente narrados abaixo. A decisão final do OAp também será resumida, para uma melhor compreensão da prática do MSC/OMC nesse sentido; contudo, ressalta-se que tais decisões não são diretamente pertinentes ao problema aqui analisado.

104 ONU, 2006-A, p. 523. Do original: “With regard to environmental law, A State may be tempted to regulate conduct or situations possibly producing harmful environmental effects on its own territory or at the global level, which occur in the high seas or in the territory of another State”. 105 Sobre o tema, cf. Capítulo 3. 106 Do original: “For purposes of this paper, the terms "trade barrier" and "green trade barrier" refer to import or export restrictions, taxes on products or means of production, and other restrictions on the free flow of goods across national borders designed to serve environmental purposes” (DUNOFF, 1992, p. 1408). 69

Esses contenciosos foram escolhidos por se tratarem de litígios clássicos, sempre mencionados quando se trata do debate comércio internacional versus meio ambiente. Ademais, são interessantes devido ao fato de que dois deles envolvem as Exceções Gerais do Artigo XX do GATT107, enquanto o terceiro é particularmente pertinente por envolver os chamados métodos de processo e produção (PPMs), ambos tópicos a serem revisitados pelo próximo capítulo. Importa esclarecer que esses casos não envolvem propriamente medidas com efeitos extraterritoriais. Ainda assim, a descrição desses contenciosos serve a elucidar no que consiste uma medida restritiva ao comércio internacional com intentos ambientais. Ademais, esclarece-se que a descrição de cada um desses quatro litígios não envolve a análise jurídica das medidas em questão; trata-se apenas de uma exposição exemplificativa de medidas restritivas ao comércio internacional e tomadas com intuito alegadamente ambiental.

2.3.2.1 US – Reformulated gasoline (1996108) Em 1990, os Estados Unidos impuseram medidas baseadas no seu Clean Air Act (CAA), cujo objetivo seria controlar a poluição advinda de gasolina manufaturada dentro do país ou para lá importada. O CAA estabeleceu dois programas de controle de poluentes, um dos quais proibia a venda de gasolina convencional em determinadas áreas que fossem consideradas mais poluídas. Nessas áreas, apenas a chamada

107 Sobre o Artigo XX do GATT, cf. Capítulo 3 108 Data de circulação do relatório do OAp 70

gasolina reformulada poderia ser vendida. O outro programa permitia a venda de gasolina convencional nas demais áreas dos Estados Unidos109. A gasolina reformulada tratava-se de um combustível que deveria obedecer à especificação de uma redução de gases tóxicos e compostos voláteis em 15%. Trata-se, assim, de uma controvérsia envolvendo barreiras não tarifárias incidentes em momento posterior à entrada do produto no mercado interno estadunidense. O objeto de análise em sede de apelo foi apenas a aplicabilidade do Artigo XX(g) do GATT, uma vez que os Estados Unidos não contestaram a decisão do painel de que as medidas seriam incompatíveis com o Artigo III.4 (Cláusula do Tratamento Nacional) do mesmo acordo. O Órgão de Apelação entendeu que a alínea (g) do acordo seria aplicável ao caso; porém as medidas não se encaixariam nos requerimentos do caput do Artigo XX (i.e., não se tratar de uma discriminação arbitrária ou injustificada), por não ter considerado da mesma maneira o impacto físico e de custos para as refinarias estrangeiras da forma como o fez para as refinarias nacionais110. Interessante notar que, ao final do seu relatório nesse caso, o OAp ressaltou que sua decisão não significaria a impossibilidade de qualquer membro da OMC de tomar medidas para proteger o meio ambiente. Em suas palavras, entender o contrário seria

ignorar o fato de que o Artigo XX do GATT contém provisões designadas a permitir que interesses estatais importantes – incluindo a proteção da saúde humana, assim como a

109 WT/DS2/AB/R, p. 4. 110 WT/DS2/AB/R, pp. 27 e ss. 71

conservação de recursos naturais exauríveis – encontrem expressão. [...] Membros da OMC tem uma ampla autonomia para determinar suas próprias medidas ambientais (incluindo sua relação com o comércio), seus objetivos ambientais a legislação ambiental que eles emanam e implementam. No que concerne à OMC, essa autonomia é limitada apenas pela necessidade de se respeitar o GATT e os demais acordos abrangidos111. O relatório do caso US – Reformulated gasoline foi o primeiro emitido pelo Órgão de Apelação, motivo pelo qual, particularmente, esse esclarecimento deixa claro, desde o início da prática do OAp, que medidas estatais com escopo ambiental, a priori, são aceitas pelo sistema OMC, desde que atentas às limitações desse regime jurídico.

2.3.2.2Brazil – Retreaded Tyres (2007) Trata-se de uma disputa levada ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC pelas Comunidades Europeias (CE), devido ao fato de o Brasil ter interditado as importações de pneus reformados, proibindo a concessão de licenças para pneus reformados. Pneus reformados são produzidos a partir do material usado de um outro pneu;

111 Do original: “That would be to ignore the fact that Article XX of the General Agreement contains provisions designed to permit important state interests - including the protection of human health, as well as the conservation of exhaustible natural resources - to find expression. [...] WTO Members have a large measure of autonomy to determine their own policies on the environment (including its relationship with trade), their environmental objectives and the environmental legislation they enact and implement. So far as concerns the WTO, that autonomy is circumscribed only by the need to respect the requirements of the General Agreement and the other covered agreements” (WT/DS2/AB/R, pp. 29-30). 72

esse procedimento só pode ser realizado uma vez para veículos de uso particular. Assim sendo, pneus reformados são distintos (inclusive dentro da nomenclatura internacional do Harmonized System) de pneus novos e pneus usados. O Brasil centrou sua defesa na exceção prevista pelo Artigo XX (b) do GATT, que protege medidas contrárias ao GATT quando “necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais”112, argumentando que a medida fora desenhada para reduzir os volumes de resíduos de pneus. Em síntese, o problema da importação de pneus reformados residia na dificuldade em gerir os resíduos ao término de sua vida útil, particularmente porque referidos produtos possuem vida útil muito inferior àquela dos pneus novos. Tanto a incineração quanto os aterros são destinações extremamente nocivas ao meio ambiente; mesmo as opções de reciclagem eram limitadas no caso dos pneus (produtos especialmente complexos). O OAp entendeu, em síntese, que a medida em questão efetivamente se enquadraria nos termos do Artigo XX(b) do GATT, estando justificada por aquela cláusula. No entanto, com relação às importações provenientes do Mercosul, o OAp entendeu que seria uma discriminação arbitrária. Finalmente, com relação aos pneus importados com base em liminares judiciais, também esse elemento foi considerado discriminação arbitrária ou injustificada. Nesse sentido, o OAp entendeu válidas as medidas impostas pelo Brasil em consonância com o Artigo XX, mas deveria adequar os

112 MDIC, GATT 1947, p. 30. 73

tratamentos tidos por discriminatórios (Mercosul e eventuais decisões judiciais permitindo importações de pneus usados para matéria prima de pneus reformados) à mesma restrição.

2.3.2.3 US – Tuna II (2014) Essa disputa envolve algumas medidas adotadas pelos Estados Unidos relativamente à importação, comercialização e venda de atum e produtos de atum, notadamente relativas ao estabelecimento de critérios para a concessão de um rótulo para atum e produtos de atum que certificaria que nenhum golfinho foi morto ou sofreu graves danos quando da captura do peixe – o chamado rótulo dolphin-safe. Essas medidas foram contestadas pelo México em outubro de 2008, quando se iniciou o procedimento no MSC/OMC. Diferentemente dos litígios anteriormente citados, o caso US – Tuna II baseia-se na alegação de inconsistências das medidas em questão com o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT), que envolve disposições relativas essencialmente a barreiras não tarifárias. Os elementos centrais dessas disposições tratam de critérios estabelecidos pelo Dolphin Protection Consumer Information Act (DPCIA), para o enquadramento da atividade, os quais englobam a localização da área de pesca (particularmente se dentro ou fora da área do Eastern Tropical Pacific – ETP, uma região onde é comum a associação de golfinhos e atum e na qual, portanto, a possibilidade de incidentes contra golfinhos quando da pesca de atum seria maior), o tipo de rede de captura, o tipo de interação entre atum e golfinho naquele 74

caso (considerando que pode haver relação de mutualismo entre as duas espécies) e o nível de dano causado a golfinhos113. Os objetivos declarados pelos Estados Unidos com as medidas em questão seriam, primeiramente, o de informar corretamente o consumidor acerca da prejudicialidade do produto a golfinhos, e, também, como consequência dessa informação e, possivelmente, do desestímulo do mercado aos produtos prejudiciais, reduzir o número de embarcações que fazem uso do método114. O OAp, neste caso, determinou que as medidas em questão seriam incompatíveis com o Artigo 2.1 do Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT)115, que consagra, dentro do TBT, as cláusulas NMF e TN, inclusive também tendo por parâmetro o tratamento dado a produtos similares.

113 WT/DS381/R, para. 2.1-2.8. 114 Segundo os Estados Unidos: “The US dolphin-safe labelling provisions are to fulfil a legitimate objective within the meaning of Article 2.2 of the TBT Agreement. The objectives of the US dolphin-safe labelling provisions are (1) ensuring that consumers are not misled or deceived about whether tuna products contain tuna that was caught in a manner that adversely affects dolphins; and (2) to the extent that consumers choose not to purchase tuna without the dolphin-safe label, the US provisions ensure that the US market is not used to encourage fishing fleets to catch tuna in a manner that adversely affects dolphins” (WT/DS381/R, p. 31, para. 4.88). Ademais, os Estados Unidos alegam que “In fact, the demand for tuna products that do not contain tuna that was caught by setting on dolphins is what prompted the US fleet to abandon this fishing technique, as well as what may have prompted Ecuador's fleet to abandon this technique in recent years. Ecuador's fleet continues to fish in the ETP, employing techniques other than setting on dolphins to catch tuna, including yellowfin tuna” (WT/DS381/R, p. 32, para. 4.93). 115 Assim dispõe: “Os Membros assegurarão, a respeito de regulamentos técnicos, que os produtos importados do território de qualquer Membro recebam tratamento não menos favorável que aquele concedido aos produtos similares de origem nacional e a produtos similares originários de qualquer outro país” (MDIC, TBT, Artigo 2.1). 75

O OAp, assim, entendeu que as medidas estadunidenses seriam “não calibradas” por não terem os Estados Unidos demonstrado razoabilidade nos diferentes tratamentos dos métodos de pesca em áreas diferentes do oceano. Como esse tratamento diferencial constitui uma modificação das condições de acesso ao mercado estadunidense em detrimento dos produtos de atum mexicanos, as medidas não seriam apropriadamente imparciais, o que configura uma afronta ao Artigo 2.1 do TBT. Portanto, mais uma vez, não se trata de uma recusa de medidas com escopo ambiental pelos parâmetros da OMC, mas da ausência de uma ação “calibrada” que vise à mitigação do tratamento discriminatório transvestido de intentos ambientais.

Diante desse breve esboço, medidas restritivas ao comércio internacional com intento ambiental podem ser definidas, portanto, como medidas circunscritas no âmbito jurídico do sistema multilateral de comércio (sendo com este compatíveis ou não) e cujo objetivo declarado seja a proteção do meio ambiente. Se efetivamente a medida foi tomada ou aplicada com tal intento, e não se trata de uma discriminação arbitrária ou injustificada ao comércio internacional, foge ao escopo do presente estudo.

2.3.3 Medidas comerciais com efeitos extraterritoriais Como já mencionado, uma medida com efeitos/alcance extraterritorial, para fins deste trabalho, compreende a ideia de que, de alguma maneira, algo relativo à sua regulação perpasse os limites do Estado regulador. Essa extraterritorialidade pode envolver sejam os efeitos, diretos ou indiretos, da medida, seja o bem protegido pela sua 76

regulação. Três casos concretos (US – Shrimp, EC – Seal producs e o quadro normativo referente a medidas de aviação tomadas pela União Europeia, não levado ao contencioso da OMC) foram selecionados para a ilustração desse campo específico. Dois deles foram selecionados por serem os únicos a terem levantado, no contencioso da OMC, diretamente a questão de extraterritorialidade, e o terceiro por, ainda que não tenha sido levado ao MSC, suscitar o debate de maneira pertinente e contemporânea. Esses três casos, bem como as decisões emanadas pelo painel e Órgão de Apelação nos casos US – Shrimp e EC – Seal products, serão retomados e abordados ao final do próximo capítulo, para então serem analisados com maior detalhamento à luz do complexo de normas jurídicas específicas relevantes do sistema OMC. Por esse mesmo motivo, assim como o subtópico anterior, aqui não se adentra no mérito jurídico da questão.

2.3.3.1 US – Shrimp (1998) Este caso foi levado ao contencioso da OMC contra um banimento imposto pelos Estados Unidos à importação de certos camarões e produtos de camarões provenientes da Índia, Malásia, Paquistão e Tailândia. Inexistindo acordo, em 1997, os mesmos reclamantes requereram o estabelecimento de um painel ao OSC. Referido banimento determinou a proibição de importação de camarão capturado de modo potencialmente prejudicial a tartarugas 77

marinhas116, a não ser que o país envolvido recebesse uma certificação do Congresso de que suas taxas de morte incidental seriam semelhantes às dos Estados Unidos, ou que o modo de pesca seria inofensivo a esses animais117. Os países atingidos por esse banimento foram aqueles que efetuavam a pesca de camarão no Caribe e na região do Atlântico ocidental118. A controvérsia sobre uma possível aplicação extraterritorial da medida centra-se no fato de que, para permitir a entrada de produtos de camarão em território estadunidense, era a produção de tais produtos, ocorrida fora de seu território, que estava sendo questionada.

116 O banimento teve início com a conclusão de pesquisas estadunidenses que indicaram que a maior causa de morte de tartarugas marinhas seria incidental à atividade de captura de camarões. Como parte de um programa de redução de morte de tartarugas, foi desenvolvido um tipo especial de rede, denominado TED (turtle excluder devices), que permite a captura de camarões ao fundo da rede enquanto direciona tartarugas marinhas para fora da rede. Cf. WT/DS58/R, p. 3, para. 2.5. 117 WT/DS58/R, p. 4, para. 2.8. 118 “In 1991, the United States issued guidelines ("1991 Guidelines") for assessing the comparability of foreign regulatory programmes with the US programme. To be found comparable a foreign nation's programme had to include, inter alia, a commitment to require all shrimp trawl vessels to use TEDs at all times (or reduce tow times for vessels under 25 feet), or, alternatively, a commitment to engage in a statistically reliable and verifiable scientific programme to reduce the mortality of sea turtles associated with shrimp fishing. Foreign nations were given three years for the complete phase- in of a comparable programme. The 1991 Guidelines also determined that the scope of Section 609 was limited to the wider Caribbean/western Atlantic region, and more specifically to the following countries: Mexico, Belize, Guatemala, Honduras, Nicaragua, Costa Rica, Panama, Colombia, Venezuela, Trinidad and Tobago, Guyana, Suriname, French Guyana, and Brazil. It was also determined that the import restriction did not apply to aquaculture shrimp, whose harvesting does not adversely affect sea turtles” (WT/DS58/R, p. 4, para, 2.8) 78

2.3.3.2 EC – Seal Products (2014) A disputa iniciou-se devido a uma proibição imposta pela União Europeia (UE) sobre a proibição do comércio de produtos derivados de caça às focas dentro de seu território, e foi decidido pelo Órgão de Apelação (OAp) em 2014. Na prática, estes produtos são principalmente caçados fora do território da UE, o que traria uma consequência indireta sobre a caça em outros Estados (em particular, a Noruega e o Canadá, partes reclamantes da disputa) e, portanto, originando efeitos extraterritoriais. O exercício da jurisdição prescritiva da União Europeia para além de seus limites territoriais, contudo, não foi objeto da reclamação dos países demandantes119. O OAp observou que, de fato, “o Regime de Focas da UE foi concebido para lidar com atividades ocorrentes 'dentro e fora da Comunidade' e com preocupações de 'cidadãos e consumidores' nos Estados-membros da União Europeia com relação ao bem-estar das focas”120 – dando a entender que a normativa caracterizaria um regulamento com efeitos extraterritoriais. No entanto, como os participantes da controvérsia não levantaram esta questão em suas respectivas alegações, o OAp concluiu que, “embora reconhecendo a importância sistêmica da questão de saber se existe uma limitação de competência implícita no artigo XX(a), e, em caso afirmativo, a

119 WT/DS400/AB/R, para. 5.173, p. 141. 120 Do original: “As set out in the preamble of the Basic Regulation, the EU Seal Regime is designed to address seal hunting activities occurring "within and outside the Community" and the seal welfare concerns of "citizens and consumers" in EU member States” (OMC, WT/DS400/AB/R, para. 5.173, p. 141). 79

natureza ou a extensão dessa limitação, decidimos neste caso não prosseguir a apreciação desta questão”121. Portanto, apesar do fato de que os reclamantes não parecerem encontrar relevância na discussão a fim de levantá-la como argumento jurídico, o OAp reconheceu a importância do assunto e sugeriu que ele ainda carece de clareza.

2.3.3.3 A controvérsia sobre o European Emissions Trading System122 Por fim, este último caso, ainda que não tenha se convertido em um contencioso no âmbito da Organização Mundial do Comércio, merece menção pela potencialidade, assinalada por alguns scholars de direito internacional123, de ter sua juridicidade questionada perante a Organização. O European Emissions Trading System (ETS) é um sistema de mercado de carbono que opera em 31 países e que funciona desde 2005,

121 Do original: “Accordingly, while recognizing the systemic importance of the question of whether there is an implied jurisdictional limitation in Article XX(a), and, if so, the nature or extent of that limitation, we have decided in this case not to examine this question further” (OMC, WT/DS400/AB/R, para. 5.173, p. 141). 122 Cabe mencionar ainda a existência de uma normativa posterior emanada também pela União Europeia e com fundamentos fáticos semelhantes ao Sistema ETS, qual seja o Regulamento 2015/757, que instituiu regulações sobre emissões produzidos em trajetos marítimos, inclusive fora do território da UE. Sobre o tema, cf. DOBSON; RYNGART, 2015. 123 Cf., e.g: DOBSON; RYNGAERT, 2015 ; LESTER, Simon. The EU Emissions Trading Scheme under WTO Rules. In: World Trade Law Blog. Disponível em: . Acesso em 01.01.2017; HARTMANN, Jacques. The European Emissions Trading System and Extraterritorial Jurisdiction. In: EJIL! Talk. Disponível em: . Acesso em 01.01.2017. 80

incluindo todos os 28 Estados-membro da União Europeia e mais Islândia, Noruega e Lichtenstein124. Em síntese, ele estabelece um limite para o total de emissões de gases potencialmente prejudiciais à atmosfera e, a partir desse número, uma quantidade estabelecida de emissões é concedida (por venda ou atribuição) a determinadas companhias por meio de créditos125. Em 2008, a UE resolveu incluir nesse programa emissões de todos os voos provenientes ou cujo destino era o seu território126. O ponto crítico nesse novo programa é que, além de ser aplicado a empresas aéreas não-europeias, as emissões contabilizadas para os fins do programa incluíam o trajeto do voo do seu início ao fim127. O possível exercício extraterritorial da jurisdição prescritiva da UE tem, portanto, dois elementos: a implicação de empresas aéreas que, em princípio, não estariam submissas à legislação da União Europeia e a tomada de fatos ocorridos fora do território da UE para a consideração de medidas comerciais.

124 Fonte: . Acesso em 01.01.2017. 125 Assim estabelece o Artigo 1 da Diretiva 2003/87/EC, que institui o ETS: “Article 1 - Subject matter: This Directive establishes a scheme for greenhouse gas emission allowance trading within the Community (hereinafter referred to as the ‘Community scheme’) in order to promote reductions of greenhouse gas emissions in a cost-effective and economically efficient manner” (UE, 2003). 126 A Diretiva 2003/87/EC foi emendada em 2008 pela Diretiva 2008/101/EC, e, assim, seu Título II passou a regular diretamente as emissões provenientes da aviação civil: “Article 3b - Aviation activities: By 2 August 2009, the Commission shall, in accordance with the regulatory procedure referred to in Article 23(2), develop guidelines on the detailed interpretation of the aviation activities listed in Annex I” (UE, 2008). 127 KULOVESI, 2015, p. 6. 81

Esses três casos, dois dos quais envolvem diretamente questões ambientais, serão utilizados como ilustração para o estudo jurídico específico do sistema OMC, o qual, por ser parte do direito internacional como um todo, deve incorporar suas normas, pelo menos até o ponto em que não colidam com seu próprio sistema normativo, lex specialis face àquele.

2.3.4 Aplicabilidade dos princípios sobre jurisdição extraterritorial às medidas ambientais restritivas ao comércio A partir das considerações delineadas no subtópico anterior, algumas ponderações são necessárias com relação aos princípios supramencionados. Como referido, apenas dois dos quatro princípios (territorialidade e nacionalidade) são comuns a todas as áreas jurídicas. Os princípios da personalidade passiva e da justiça universal são aplicáveis apenas no contexto do direito criminal, de modo que sua explanação foi necessária para a compreensão global da disciplina da extraterritorialidade em direito internacional, mas não será retomada no desenvolver deste trabalho. O princípio da nacionalidade, por sua vez, também acaba despiciendo aos propósitos aqui delineados. As medidas com alcance extraterritorial a serem analisadas não envolvem a regulação de atividades de nacionais (pessoas jurídicas ou físicas) do Estado regulador localizados fora de seu território. O exercício da competência prescritiva do Estado por meio de medidas comerciais terá alcance extraterritorial para efeitos do presente estudo somente pelo fato de que 82

tais medidas possuem incidência direta ou indireta em produtos ou atividades comerciais ou bens ambientais localizados fora do território do Estado regulador. Assim sendo, o princípio efetivamente relevante para esta pesquisa é o princípio da territorialidade, assim como a doutrina dos efeitos. Essa doutrina, contudo, é controversa, e, de igual maneira, não figura diretamente enquanto argumento jurídico nos litígios da OMC. Sua relação com o problema aqui descrito é inconteste, uma vez que se trata essencialmente dos efeitos sentidos pelo Estado regulador por atividades ocorridas fora do seu território que o fator que costuma motivar a criação de normas regulatórias nesses casos. Contudo, considerando o debate em torno da sua legitimidade, torna-se pantanoso respaldar um raciocínio jurídico que analise a licitude de medidas jurídicas conforme os fundamentos da doutrina dos efeitos. Diante desse quadro, o capítulo a seguir irá verificar, conforme premissas do princípio da territorialidade, a compatibilidade de medidas extraterritoriais com o direito da OMC, particularmente a partir de dispositivos aplicáveis a medidas com escopo ambiental.

83

3 EXTRATERRITORIALIDADE NO REGIME JURÍDICO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO

O conceito de jurisdição extraterritorial não foi, até o momento, analisado com maior profundidade pelo mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Também por esse motivo, parte do capítulo anterior foi concentrada na definição do termo conforme construída pelo direito internacional geral. O direito da Organização Mundial do Comércio é bastante especializado, de modo que pode ser considerado como lex specialis (ou, como será detalhado no subtópico a seguir, um regime autocontido) face ao direito internacional geral. A máxima amplamente aceita sobre o confronto entre lex generalis (no caso, direito internacional geral) e lex specialis é a de que esta derroga aquela128. A OMC, pela sua já mencionada especialização, é considerada como um regime lex specialis, cujas normas podem, em algumas circunstâncias, derrogar o direito internacional geral129. Isso não significa, contudo, que ambos os sistemas sejam autônomos ou incompatíveis, e é o que se busca se demonstrar no tópico 3.1 deste capítulo. O direito internacional geral pode, dentre outras

128 Cf. KOSKENIEMMI, 2004. 129 Cf. Artigo 55 do Projeto de Artigos sobre Responsabilidade Internacional dos Estados por Ato Internacionalmente Ilícito elaborado pela Comissão de Direito Internacional (CDI) em 2001. Sobre a interação do regime jurídica da OMC com o direito internacional, cf. PAUWELYN, 2001; MARCEAU, 1999; CAMERON; GRAY, 2001; DAL RI JÚNIOR; DE ANDRADE, 2016. 84

funções, suprir lacunas para a compreensão de conceitos que não foram bem determinados pelo regime da OMC. A partir disso, tendo em mente a interação das considerações capítulo anterior com o direito da OMC, será analisado o direito da OMC propriamente dito. Diante da complexidade da matéria, uma introdução sobre a lógica do sistema multilateral de comércio deverá ser realizada, para que se possa adentrar nas especificidades do tema aqui abordado. Primeiramente, um breve repasse sobre as principais normas jurídicas da OMC será realizado; em seguida, será exposto, de modo igualmente sintético, a forma como o sistema OMC pode interagir com outras normas de direito internacional. Evidentemente, ambos os tópicos serão abordados de maneira concisa, uma vez que não é objetivo do presente trabalho o aprofundamento nas normas da OMC ou na sua interação com outros regimes de direito internacional130.

130 Para aprofundamento neste tema, recomenda-se a leitura de particularmente os seguintes trabalhos constantes das referências bibliográficas deste artigo: LINDROOS E MEHLING (2006), PULKOSWKI E SIMMA (2006), KOSKENNIEMI (2004). O último trabalho, em particular, é parte de uma série de estudos acerca do fenômeno da fragmentação internacional, dirigidos por Martti Koskenniemi dentro da Comissão de Direito Internacional da ONU. 85

3.1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS PRINCIPAIS NORMAS DO SISTEMA JURÍDICO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE COMÉRCIO

O sistema multilateral de comércio fundamenta-se em algumas regras primordiais, as quais nortearam (e norteiam) as disposições do texto do GATT, texto assinado originalmente em 1947 e incorporado ao sistema da OMC em 1994, bem como os específicos acordos multilaterais sobre comércio de bens e serviços dentro do sistema131. O sistema normativo da OMC repousa sobre uma grande quantidade de acordos sobre comércio e serviços, que devem ser incorporados por todos os membros da OMC ao acederem à Organização132. O Acordo Constitutivo da OMC traz consigo uma lista de quatro anexos, nos quais configuram as obrigações e direitos dos seus membros133. O Anexo 1 enumera os Acordos de Comércio Multilaterais (relativos à comercialização de bens, de serviços e relativos à propriedade intelectual, e dentre os quais figura o GATT), enquanto o

131 Sobre a gênese do Sistema GATT, cf. IRWIN; MAVROIDIS; SYKES, 2008. Sobre a transição do Sistema GATT para a Organização Mundial do Comércio, cf. VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 78 e ss. ; VAN GRASSTEK, 2013, pp. 39- 73. 132 Acordos multilaterais é o termo utilizado em contraposição a acordos plurilaterais, também no âmbito da OMC, cuja aceitação pelos membros é facultativa. Cf. Artigo II.3 do Acordo Constitutivo da OMC. 133 HOEKMAN E MAVROIDIS, 2007, p. 20. 86

Anexo 4 traz os Acordos de Comércio Plurilaterais134. O Anexo 2 traz o Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos Sobre Solução de Controvérsias (o ESC), que dispõe questões procedimentais relativas ao mecanismo de solução de controvérsias do sistema (MSC). Finalmente, o Anexo 3 consolida o Mecanismo de Exame de Políticas Comerciais, que estabelece as normas procedimentais para a notificação e a supervisão das políticas e normas comerciais de cada um dos membros da Organização135. Diante da grande complexidade normativa desse sistema, e tendo em consideração que, para os fins desta pesquisa, o acordo de maior interesse é o GATT, esclarece-se que o estudo da extraterritorialidade de medidas ambientais na OMC centrar-se-á nesse acordo. Isso não significa, porém, que outros acordos multilaterais vigentes na Organização podem ter impacto sobre eventuais medidas que envolvam o tema136. A pedra fundamental do sistema de liberalização do comércio internacional é o princípio de não discriminação, que, no contexto da OMC, subdivide-se em duas obrigações, a serem explicadas abaixo com maior detalhamento: a obrigação do tratamento da Nação Mais Favorecida (NMF) e a obrigação do Tratamento Nacional (TN). Todas

134 Acordos multilaterais é o termo utilizado em contraposição a acordos plurilaterais, também no âmbito da OMC, cuja aceitação pelos membros é facultativa. Cf. Artigo II.3 do Acordo Constitutivo da OMC. 135 VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 94 e ss. 136 A título exemplificativo, o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT) relaciona-se diretamente com medidas baseadas em métodos de processo e produção (PPMs) ambientais. Contudo, sendo o escopo deste trabalho mais restrito, um estudo mais aprofundado das disposições do TBT foge ao tema. 87

as demais normas do sistema guiam-se pela lógica de mitigação máxima de barreiras ao comércio, consubstanciada na ideia de não discriminação tanto na relação de mercado interno-mercado externo, quanto entre os demais países membros da Organização137. Em síntese, a cláusula NMF, consubstanciada particularmente no Artigo I.1 do GATT138, tem por objetivo eliminar qualquer tratamento diferencial entre membros da OMC com relação a uma mercadoria de mesmo caráter. Se algum tipo de vantagem é acordado entre os países A e B com relação a um produto X, todos os demais países contratantes terão direito à mesma vantagem. Essa vantagem se dá, particularmente, no tocante a encargos e direitos aduaneiros139, especialmente no contexto do GATT, mas não se restringe a tratamentos tarifários. Logicamente, essa norma é uma via de mão dupla, e se algum

137 Nesse sentido, Horn e Mavroidis corroboram: “Indeed, from a legal perspective, the GATT/WTO is basically an agreement on nondiscrimination, with significant exemptions allowed in the form of Preferential Trading Agreements (PTAs), and contingent protection, for instance” (2001, p. 233). 138 Assim dispõe o Artigo I.1 do GATT, o qual consolida a cláusula NMF no contexto do comércio de produtos: “Qualquer vantagem, favor, imunidade ou privilégio concedido por uma Parte Contratante em relação a um produto originário de ou destinado a qualquer outro país, será imediata e incondicionalmente estendido ao produtor similar, originário do território de cada uma das outras Partes Contratantes ou ao mesmo destinado. Este dispositivo se refere aos direitos aduaneiros e encargos de toda a natureza que gravem a importação ou a exportação, ou a elas se relacionem, aos que recaiam sobre as transferências internacionais de fundos para pagamento de importações e exportações, digam respeito ao método de arrecadação desses direitos e encargos ou ao conjunto de regulamentos ou formalidades estabelecidos em conexão com a importação e exportação bem como aos assuntos incluídos nos §§ 2 e 4 do art. III.” (MDIC, GATT-47) 139 Cf. Artigo II.2 do GATT. 88

país acredita estar recebendo um tratamento desfavorável em relação a outro, também irá invocar a afronta à NMF. Em Canada - Autos, o Órgão de Apelação do Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC (OAp) esclareceu que o intuito dessa cláusula é “proibir a discriminação entre produtos similares originados de ou destinados a países distintos”140. Por sua vez, ainda no contexto do pilar da não discriminação, a cláusula do Tratamento Nacional, consagrada no Artigo III do GATT141, impede a discriminação entre os produtos similares nacionais e importados a partir do momento em que estes ingressam no mercado doméstico (ou seja, o dispositivo se refere às chamadas medidas internas, e não as de fronteira). Em outras palavras, essa cláusula previne o uso de medidas internas (tarifárias ou não) como mecanismos protecionistas, não podendo ser aplicados a produtos importados ou nacionais “de modo a proteger a produção nacional”142. Essas duas cláusulas, expressas fundamentalmente no texto do GATT, reproduzem-se também em diversos outros acordos da

140 No original: “is to prohibit discrimination among like products originating in or destined for different countries”. Disponível em: . Acesso em 21.08.2014 141 Conforme preconiza o texto do Artigo III.1 do GATT: “As Partes Contratantes reconhecem que os impostos e outros tributos internos, assim como leis, regulamentos e exigências relacionadas com a venda, oferta para venda, compra, transporte, distribuição ou utilização de produtos no mercado interno e as regulamentações sobre medidas quantitativas internas que exijam a mistura, a transformação ou utilização de produtos, em quantidade e proporções especificadas, não devem ser aplicados a produtos importados ou nacionais, de modo a proteger a produção nacional”. (MDIC, GATT/47) 142 MDIC, GATT/47, Artigo III.1. 89

Organização, tais como o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS), o Acordo Sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT), dentre outros. Isso é reflexo justamente do fato de que tais princípios, como mencionado anteriormente, fundamentam a lógica do sistema como um todo. Às normas principais normas da OMC opõem-se uma série de exceções previstas também pelos seus acordos. Muito embora o sistema multilateral de comércio internacional tenha sido instituído a partir da premissa de que a intensificação das relações comerciais por meio da redução de barreiras ao comércio tem por consequência a prosperidade143, muitas vezes as obrigações estabelecidas por essa lógica vão de encontro a outros objetivos e interesses também perquiridos por esses membros. Não alheios a essa realidade, tanto o texto original do GATT quanto o sistema OMC estabeleceram exceções a suas obrigações. Essas exceções dispõem acerca de situações de emergência econômica e balança de pagamento, segurança, desenvolvimento econômico, valores históricos e culturais, dentre diversas outras144. Dentro do arcabouço normativo referente ao comércio de produtos, a disposição mais abrangente está estabelecida pelo Artigo XX do GATT.

143 STOLL E SCHORKOPF, 2006, p. 33. Os autores esclarecem, contudo, que essas premissas não levam em consideração a distribuição dessa prosperidade, mas sim a prosperidade da sociedade como um todo. 144 VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 597-598. 90

Tratar-se-á, aqui, apenas das disposições deste artigo, por ser esse mais genérico e particularmente relevante ao presente trabalho145. O Artigo XX do GATT, denominado Exceções Gerais, trata de hipóteses nas quais obrigações acordadas pelos signatários do GATT podem ser escusadas. Há, contudo, uma ressalva (cuja especificação textual seja talvez desnecessária, mas cuja aplicabilidade prática revela- se marcante) à possibilidade de adoção de medidas referentes a essas hipóteses: as medidas podem estar sob a tutela das exceções gerais do Artigo XX “[d]esde que essas medidas não sejam aplicadas de forma a constituir quer um meio de discriminação arbitrária, ou injustificada, entre os países onde existem as mesmas condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio internacional”146. O rol das hipóteses em questão é taxativo147, estando enumerado em sete alíneas, e tem por intento a proteção de alguns valores sociais, como a moralidade pública (alínea a), a saúde das pessoas e dos animais e preservação dos vegetais (alínea b), conservação

145 Para uma descrição mais aprofundada do sistema de exceções da OMC, cf. STOLL E SCHORKOPF, 20005, pp. 56 e ss. e VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 597 e ss.. 146 MDIC, GATT/47, Artigo XX. 147 Conforme o painel do caso US – Section 337 concluiu: “The Panel noted that Article XX is entitled "General Exceptions" and that the central phrase in the introductory clause reads: "nothing in this Agreement shall be construed to prevent the adoption or enforcement ... of measures...". Article XX(d) thus providesfor a limited and conditional exception from obligations under other provisions. The Panel therefore concluded that Article XX(d) applies only to measures inconsistent with another provision of the General Agreement, and that, consequently, the application of Section 337 has to be examined first in the light of Article III:4. If any inconsistencies with Article III:4 were found, the Panel would then examine whether they could be justified under Article XX(d)”. (L/6439 - 36S/345, para. 5.9). 91

de tesouros nacionais de valor artístico, histórico ou arqueológico (alínea f), dentre outras hipóteses. Essas hipóteses, de redação notoriamente ampla, são a principal possibilidade de escape de obrigações de comércio internacional quando uma medida por um Membro é considerada inconsistente com as normas do GATT/94. Duas alíneas do Artigo XX são relacionadas com medidas restritivas ao comércio com escopo ambiental:

Artigo XX Exceções gerais Desde que essas medidas não sejam aplicadas de forma a constituir quer um meio de discriminação arbitrária, ou injustificada, entre os países onde existem as mesmas condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio internacional, disposição alguma do presente capítulo será interpretada como impedindo a adoção ou aplicação, por qualquer Parte Contratante, das medidas: [...] (b) necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais; [...] (g) relativas à conservação dos recursos naturais esgotáveis, se tais medidas forem aplicadas conjuntamente com restrições à produção ou ao consumo nacionais;148

Essas alíneas costumam ser invocadas pelos países demandados nos litígios que envolvem medidas com motivações alegadamente ambientais, e suas respectivas redações estão no centro do

148 MDIC, GATT/47. 92

debate sobre o exercício extrajurisdicional da competência prescritiva do Estado em matéria de comércio internacional. O Artigo XX possui uma metodologia de aplicação bastante específica, que foi determinada pelo Órgão de Apelação no caso US – Gasoline149, um dos primeiros litígios a ser levado ao MSC/OMC. Para examinar se uma medida, incompatível com uma ou mais disposições do GATT, pode ser justificada por meio de uma das exceções previstas nesse artigo, é necessário, primeiramente, examinar se tal medida encaixa-se em uma das alíneas específicas listadas pelo Artigo e, em seguida, se observa os requerimentos do chapeau do Artigo. Apenas na hipótese de a medida devidamente passar na primeira etapa (alíneas), poder-se-á prosseguir para a verificação dos requerimentos da segunda etapa (chapeau). Cada provisão do Artigo XX (i.e., chapeau e alíneas respectivas) possui um método de verificação específico, desenvolvido a partir da casuística pelo MSC/OMC. Como será detalhado no próximo capítulo, a subsunção dos dispositivos a cada caso concreto envolve, basicamente, um balanceamento entre a necessidade de restrição ao comércio internacional devido à proteção de um valor social (“societal value”) e a busca pela máxima liberalização do sistema multilateral de comércio. Esse balanceamento, por sua vez, é muitas vezes verificado por meio da consideração de acordos internacionais externos ao sistema OMC, os quais podem atestar a legitimidade dos valores perquiridos pela medida em análise.

149 Versão reduzida do título original United States — Standards for Reformulated and Conventional Gasoline (WT/DS2). 93

3.1.1 O direito da OMC enquanto lex specialis face ao direito internacional e a vedação ao “isolamento clínico”

Considerando ser a OMC um regime composto de normas detalhadas e específicas, dotado de um mecanismo de resolução de litígios próprio, bem como de remédios para a violação destas normas, daí advém a discussão doutrinária sobre se a organização configuraria um sistema autocontido150. Essa lógica poderia ser corroborada pela vaga interação do direito criado no âmbito da OMC com as demais normas de direito internacional geral, particularmente dentro do seu mecanismo de resolução de litígios. James Crawford assim define um regime autocontido151:

150 Pauwelyn assim esboça a questão: “Some authors have argued in this respect that WTO law is a ‘self-contained regime’in the sense of ‘a certain category of subsystems, namely those embracing, in principle, a full (exhaustive and definite) set of secondary rules . . . which is intended to exclude more or less totally the application of the general legal consequences of wrongful acts’. James Crawford, for example, submits that the DSU is, in terms of state responsibility, an example where it is ‘clear from the language of a treaty or other text that only the consequences specified flow’. Kuijper also expressed the view that ‘[t]he intention to move further towards a self-contained system certainly underlies the WTO Agreement and its Dispute Settlement Understanding, but it remains to be seen how the WTO Members will make it function’. Other authors, in contrast, argue that general international law remedies are still relevant also in WTO dispute settlement” (PAUWELYN, 2003, p. 39, notas de rodapé suprimidas). 151 A origem do termo, conforme explicam Simma e Pulkoswski, remonta ao caso S.S Wimbledon, levado à Corte Permanente de Justiça Internacional, em que o tribunal analisou provisõe do Tratado de Versailles vis-à-vis provisões alemãs sobre o Canal Kiel. Mais recentemente, lembram ainda os autores, a Corte Internacional de Justiça utilizou-se desse conceito no caso Tehran Hostages, ao examinar as normas específicas das relações diplomáticas em 94

em um sentido amplo, um regime autocontido é um pouco mais do que um formato forte de lex specialis, pelo qual uma ‘série de tratados geográfica ou funcionalmente limitada’ pretende derrogar as normas secundárias de direito internacional que sustentam o sistema como um todo. Mais estritamente, contudo, tais regimes podem representar um aparato de subsistemas que tratam de um determinado problema de direito internacional de maneira distinta da qual tal problema poderia ser normalmente tratado152. O autor indica, ainda, alguns elementos que levam ao entendimento de que o sistema da OMC poderia ser considerado como um regime autocontido, particularmente o seu detalhado sistema normativo e o seu órgão jurisdicional compulsório153. Koskenniemi, no relatório do grupo de estudos sobre Fragmentação do Direito Internacional conduzido pela Comissão de Direito Internacional, define um regime autocontido como um sistema que perpassa um mero agregado de normas substanciais, no qual normas primárias especiais (direitos, deveres e poderes) entrelaçam-se com normas secundárias especiais (a criação e mudança dessas normas primárias, a resolução dos litígios e as reações a atos antijurídicos) 154.

detrimento das disposições gerais de responsabilidade de Estados (SIMMA; PUKOWSKI, 2006, p. 491). 152 Do original: “Thus, in a broad sense, a self-contained regime is little more than a strong form of lex specialis, by which a “geographically or functionally limited treaty series” attempts to contract out of the secondary rules of international law that underpin the system as a whole. More narrowly, however, such regimes may represent comprehensive sub-systems that cover a particular international law problem in a different manner from how it might be otherwise dealt with” (CRAWFORD, 2013, para. 387). 153 CRAWFORD, 2013, para. 388. 154 KOSKENIEMMI, 2004, p. 8 95

Deve-se esclarecer, contudo, que as definições do conceito de regime autocontido supracitadas não excluem a interação desses regimes com o direito internacional geral. Com efeito, Simma e Pulkowski esclarecem que a noção de regime autocontido como um sistema plenamente isolado e autônomo é errônea155. Treves considera que contribui para esse equívoco a especialização de campos com normas e estruturas específicas, e seus operadores que, ao focarem naquela área, desfamiliarizam-se dos conceitos gerais de direito internacional156. Pauwelyn157, por sua vez, defende que, ainda que sejam consideradas parte de um ramo do direito internacional público (e um ramo especializado, que em certa medida inclusive constitui lex specialis em face de algumas – não todas – as normas de direito internacional), as normas da OMC não podem ser vistas como um sistema à parte do direito internacional. De modo não distinto, o próprio Órgão de Apelação da OMC entendeu, no primeiro caso levado à sua apreciação na recente história da Organização, pelo não isolamento do sistema OMC do direito internacional público. No caso US – Reformulated Gasoline, o OAp entendeu que, ao se autorizar o uso do direito consuetudinário internacional, “o GATT [ou o próprio direito da OMC] não pode ser lido

155 Os autores consideram: “First, the notion of ‘self-contained regimes’ has been misconceived as an argument in favour of entirely autonomous legal subsystems. Social systems cannot exist in splendid isolation from their environment.” (SIMMA; PULKOWSKI, 2006, p. 492). 156 TREVES, 2009, p. 216. 157 PAUWELYN, 2001, p. 539. 96

em isolamento clínico do direito internacional público”158. Essa leitura foi consolidada a partir da interpretação do Artigo 3.2 do ESC, que assim dispõe:

2. O sistema de solução de controvérsia da OMC é elemento essencial para trazer segurança e previsibilidade ao sistema multilateral de comércio. Os Membros reconhecem que esse sistema é útil para preservar direitos e obrigações dos Membros dentro dos parâmetros dos acordos abrangidos e para esclarecer as disposições vigentes dos referidos acordos em conformidade com as normas correntes de interpretação do direito internacional público. As recomendações e decisões do OSC não poderão promover o aumento ou a diminuição dos direitos e obrigações definidos nos acordos abrangidos.159 Este trecho, em sua redação original, faz menção expressa às normas costumeiras sobre interpretação do direito internacional público (em vez de “normas correntes de interpretação do direito internacional público”, uma tradução que talvez não reflita o intento original da provisão)160. O Artigo 3.2 é frequentemente invocado pelo OAp em seus

158 No original: “The ‘general rule of interpretation’ set out above has been relied upon by all of the participants and third participants, although not always in relation to the same issue. That general rule of interpretation has attained the status of a rule of customary or general international law. As such, it forms part of the ‘customary rules of interpretation of public international law’ which the Appellate Body has been directed, by Article 3(2) of the DSU, to apply in seeking to clarify the provisions of the General Agreement and the other ‘covered agreements’ of the Marrakesh Agreement Establishing the World Trade Organization (the ‘WTO Agreement’). That direction reflects a measure of recognition that the General Agreement is not to be read in clinical isolation from public international law.” (WT/DS2/AB/R, 1996, p. 17). 159 MDIC, ESC, grifo acrescido. 160 No original: “2. The dispute settlement system of the WTO is a central element in providing security and predictability to the multilateral trading 97

julgados quando o órgão deseja fazer uso da metodologia interpretativa positivada pela Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados (CVDT)161, particularmente por ser tal Convenção considerada a positivação das normas costumeiras de interpretação162. Há, contudo, divergências doutrinárias acerca da sua extensão também com relação a outros tipos de normas de direito internacional enquanto parte da OMC. A CVDT, norma que reconhecidamente positiva as normas costumeiras de interpretação do direito internacional, dispõe, em seu Artigo 31.3, que “Serão levados em consideração, juntamente com o contexto: (...) c) quaisquer regras pertinentes de Direito Internacional

system. The Members recognize that it serves to preserve the rights and obligations of Members under the covered agreements, and to clarify the existing provisions of those agreements in accordance with customary rules of interpretation of public international law. Recommendations and rulings of the DSB cannot add to or diminish the rights and obligations provided in the covered agreements” (grifo acrescido). Nas duas demais versões oficiais, em francês e espanhol, a parte destaca-se lê, respectivamente: “[...]Les Membres reconnaissent qu'il a pour objet de préserver les droits et les obligations résultant pour les Membres des accords visés, et de clarifier les dispositions existantes de ces accords conformément aux règles coutumières d'interprétation du droit international public. [...]” e “[...] Los Miembros reconocen que ese sistema sirve para preservar los derechos y obligaciones de los Miembros en el marco de los acuerdos abarcados y para aclarar las disposiciones vigentes de dichos acuerdos de conformidad con las normas usuales de interpretación del derecho internacional público”. Fonte: . Acesso em 26/09/2014. 161 Cameron e Gray afirmam ter havido uma aceitação tácita da aplicação da CVDT para a interpretação por meio do Artigo 3.2 do ESC (2001, p. 253). Os autores lembram ainda que as normas da convenção podem ser usadas para interpretação inclusive com relação a países litigantes no MSC não membros da CVDT, pois suas provisões representam uma codificação do direito costumeiro internacional e, portanto, são vinculantes a todos os Estados, conforme ressaltou o OAp em Japan –Taxes (CAMERON E GRAY, 2001, p. 254). 162 Esse foi o entendimento consolidado pelo OAp no caso US – Reformulated gasoline (WT/DS2/AB/R, p. 17) 98

aplicáveis às relações entre as partes”163. Assim, o parágrafo (c) é claro ao dispor que quaisquer regras de Direito Internacional aplicáveis às relações entre as partes devem ser levadas em consideração quando da interpretação de um texto de direito internacional. Por conseguinte, a própria Convenção já recorrentemente utilizada como suporte interpretativo pelo MSC da OMC indica, expressamente, a possibilidade de interação com quaisquer normas de direito internacional geral. Em outras palavras, se tratados fora do âmbito do sistema OMC também são aplicáveis à relação discutida, ou mesmo se princípios ou o costume internacional são passíveis de serem invocados, tais elementos devem ser analisados pelo MSC/OMC quando da resolução de um litígio. A aplicabilidade dessas demais normas, particularmente outros acordos internacionais, enquanto fonte de direito à interpretação das obrigações da OMC não parece ser objeto de controvérsia, mesmo porque de tal recurso já lançou mão o próprio OAp em diversos casos. Contudo, a análise das obrigações assumidas fora da OMC pelo MSC e sua possível vinculação pelo Órgão de Solução de Controvérsias é o objeto de maior debate doutrinário. Essa discussão acerca da interação das obrigações da OMC com o direito externo remonta à separação conceitual entre o direito aplicável e a competência (do inglês, “jurisdiction”) do MSC, recorrentemente tratada pelos autores que se debruçam sobre esse debate164. Para Bartels, a competência do MSC/OMC está descrita e

163 MDIC, ESC. 164 Cf., e.g., PAUWELYN, 2003, p. 441 e ss.; LINDROOS; MEHLING, 2006, p. 860 e ss.; BARTELS, 2001, p. 501 e ss.; TREVES, 2009, p. 240. 99

limitada no Artigo 1.1 do ESC165, de modo que o direito vinculante analisado por painéis e pelo OAp é aquele disposto pelos acordos abrangidos. No entanto, segundo o autor, para o exercício dessa competência, nada impede que outras fontes de direito internacional sejam consideradas como direito aplicável166. Em outras palavras, essa leitura não se confunde com a sugestão de que o Órgão de Solução de Controvérsias teria poder para vincular as partes litigantes a conformar-se às disposições do referido acordo externo, e.g. uma convenção em matéria ambiental. A exoneração das obrigações para com o GATT/94 não traria a obrigação de uma parte de impor restrições ao comércio determinadas por referida convenção. Marceau167, por sua vez, também contra essa tendência de “isolamento clínico” já mencionada, propõe que o MSC pode utilizar-se de demais normas de direito internacional para interpretar as disposições da OMC – mesmo porque é desta forma que dispõe o já mencionado Artigo 31.3(c) da Convenção de Viena de 1969. A autora

165 Assim dispõe o Artigo 1.1 do ESC: “As regras e procedimentos do presente Entendimento se aplicam às controvérsias pleiteadas conforme as disposições sobre consultas e solução de controvérsias dos acordos enumerados no Apêndice 1 do presente Entendimento (denominados no presente Entendimento "acordos abrangidos"). As regras e procedimentos deste Entendimento se aplicam igualmente às consultas e solução de controvérsias entre Membros relativas a seus direitos ou obrigações ao amparo do Acordo Constitutivo da Organização Mundial de Comércio (denominada no presente Entendimento "Acordo Constitutivo da OMC") e do presente Entendimento, considerados isoladamente ou em conjunto com quaisquer dos outros acordos abrangidos” (MDIC, ESC). 166 BARTELS, 2001, p. 503 e ss.. 167 Cf. MARCEAU, 1999. 100

defende que essa interpretação deve levar em consideração normas externas ao direito da OMC “no limite necessário para dispor da matéria em análise”168. Marceau é enfática ao limitar essa interação à mera interpretação das obrigações da OMC, considerando que “a OMC não é uma corte de jurisdição geral”169. O ESC de fato não traz uma vedação expressa com relação às normas e ao direito que pode ser apreciado pelo MSC nem invocado pelas partes. Apesar disso, todo o texto do Entendimento pauta-se nos direitos e obrigações dispostos pelos acordos abrangidos, constantemente vinculando tanto os grupos especiais como o próprio OSC diretamente a esses textos170. Infere-se uma espécie de prevalência de tais normas sobre outras quando da sua adjudicação dentro do

168 No original: “The implication is that their role is limited to interpreting the non-WTO rule to the extent necessary to dispose of the matter at hand” (MARCEAU, 1999, p. 134). 169 No original: “The WTO is not a court of general jurisdiction” (MARCEAU, 1999, p. 109). Em síntese, a autora defende que “While non-WTO legal rules may be used when interpreting and applying WTO provisions, the specific and circumscribed mandate and jurisdiction of WTO adjudicating bodies does not extend so far as to permit them to enforce independent rights and obligations embodied in public international law” (MARCEAU, 1999, p. 107). 170 Cf., e.g., além dos artigos já citados, o Artigo 3.4 (“As recomendações ou decisões formuladas pelo OSC terão por objetivo encontrar solução satisfatória para a matéria em questão, de acordo com os direitos e obrigações emanados pelo presente Entendimento e pelos acordos abrangidos”) e o Artigo 3.5 ("Todas as soluções das questões formalmente pleiteadas ao amparo das disposições sobre consultas e solução de controvérsias, incluindo os laudos arbitrais, deverão ser compatíveis com aqueles acordos e não deverão anular ou prejudicar os benefícios de qualquer Membro em virtude daqueles acordos, nem impedir a consecução de qualquer objetivo daqueles acordos") (MDIC, ESC). 101

sistema OMC171, ainda que elas possam ser levadas em consideração enquanto direito aplicável. De todo modo, não obstante o debate sobre a possibilidade de implementação de obrigações não constantes em acordos abrangidos da OMC, é incontroverso que, tanto o direito internacional costumeiro, quanto tratados de direito internacional externos ao direito do sistema multilateral de comércio podem ser levados em consideração para a interpretação das disposições dos acordos da Organização.

3.2 REGULAÇÃO NORMATIVA: DIRETRIZES JURÍDICAS PARA A ANÁLISE DO TRATAMENTO DE MEDIDAS COM ALCANCE EXTRATERRITORIAL

O conteúdo dos acordos que fazem parte do guarda-chuva da Organização Mundial do Comércio não trata diretamente da questão de medidas com possível alcance extraterritorial172. Assim, é por meio do

171 Pauwelyn (2003, p. 491) apresenta opinião divergente. 172 Weiss (2012, p. 465) explica que, apesar da ideia de permissibilidade de medidas unilaterais para a proteção do meio ambiente ter sido sugerida no contexto de negociações da OMC, particularmente pelos Estados Unidos, decidiu-se por adotar uma abordagem mais reticente. Isso se deu especialmente porque, segundo o autor, boa parte dos países em desenvolvimento julgou as exceções já previstas nos acordos suficiente: “In the WTO, the United States at first even supported the idea that unilateral trade measures might be necessary for the implementation of environmental policies. However, several other WTO members opposed the permissibility of the extra-territorial application of environmental laws and regulations, fearing disguised protectionism, while endorsing the accommodation of environmental concerns in the WTO framework. In contrast, many developing countries deemed the exceptions available in the GATT, together with those under the Agreements on Technical 102

MSC/OMC (e, previamente, nos painéis do sistema GATT) que se busca, a partir das controvérsias surgidas que envolvem o tema, esclarecer a questão. Uma consequência importante que se infere dessa ausência de regulação explícita sobre a questão da territorialidade conforme o direito da OMC é que uma medida não será incompatível com esse regime jurídico apenas por ser extraterritorial. Como mencionado no tópico anterior, o MSC/OMC é competente apenas por incompatibilidades com relação ao direito da própria Organização. Isso não significa que a extrajurisdicionalidade não pode ser analisada no caso concreto, mas tal análise deve restringir-se às obrigações da OMC. Disso decorre que uma medida restritiva ao comércio internacional que em princípio esteja adequada aos acordos da OMC, mas cujo Estado afetado por essa medida julgue-se vítima de um exercício extrajurisdicional da competência prescritiva de outro Estado, não poderá ser levada ao MSC/OMC: tal controvérsia, em princípio, deverá ser analisada na jurisdição de outra corte competente. É, a priori, a situação presente no caso do regime da aviação imposto pela União Europeia. Nesse caso, o exercício extrajurisdicional das medidas impostas pela UE não foi contestado no âmbito de incompatibilidades com os acordos da OMC. Não obstante, a utilização desse exemplo, como será demonstrado, mostra-se pertinente presente estudo.

Barriers to Trade (TBT) and on the Application of Sanitary and Phytosanitary Measures (SPS), to be sufficient). [...] However, these efforts resulted in an unsatisfying report which merely re-stated a commitment to Principle 12 of the Rio Declaration.” (WEISS, 2012, p. 465, notas de rodapé suprimidas). 103

O problema da extraterritorialidade emerge, conforme esclarece Weiss, a partir do conflito entre a tentativa de liberalização do comércio por parte do sistema multilateral e as iniciativas domésticas dos Estados-membros desse sistema para defender outros objetivos, dentre os quais a proteção do meio ambiente173. À medida que o debate sobre a imposição de medidas com possível alcance extraterritorial refere-se essencialmente à proteção desses chamados valores sociais, o estudo jurídico acerca da compatibilidade jurídica de possíveis normas extraterritoriais com o direito da OMC costuma envolver a análise das exceções gerais do Artigo XX e eventuais limitações inerentes à sua redação original174. O primeiro caso a envolver essa discussão foi levado ao sistema GATT. Trata-se da disputa United States - Restrictions on imports of Tuna (DS21/R - 39S/155), em 1991, que surgiu a partir de uma reclamação do México contra um banimento a produtos de atum

173 WEISS, 2012, p. 465. 174 Bartels, ao falar sobre as propostas de interpretação das alíneas do Artigo XX, escreve que “With the exception of the first category, all of these proposals raise the question whether Article XX can apply to measures with the express objective of regulating a matter located outside of that Member’s territory: in other words, extraterritorial trade measures. The following will therefore address first the issue of extraterritoriality, then the argument that trade measures are not properly to be considered extraterritorial measures, and finally some limitations on the use of extraterritorial trade measures resulting from the particular features of the WTO dispute settlement system” (BARTELS, 2002, p. 358). O autor escreve ainda: “Most discussion of Article XX in the context of extraterritorial measures has concentrated on whether the “important state interests”24 protected by Article XX (e.g. the protection of “public morals”, “human life or health” or “natural resources”) are subject to what the Appellate Body in Shrimp called a “jurisdictional limitation”” (BARTELS, 2002, p. 358). 104

imposto pelos Estados Unidos. Referido embargo teria respaldo em medidas de conservação a golfinhos175. Naquele caso, os Estados Unidos arguiram que suas medidas não teriam efeitos extraterritoriais, pois os golfinhos seriam uma espécie altamente migratória176. O painel concluiu, naquela ocasião, que permitir a adoção de medidas cujo objetivo fosse o controle da produção ou consumo de um recurso natural localizado fora da jurisdição do Estado que promulga tal norma seria o equivalente a permitir que “cada parte contratante unilateralmente determine as políticas de conservação a serem seguidas”177. Assim, para os painelistas daquele caso, as exceções das alíneas não abarcariam medidas tomadas de modo a implicar a imposição unilateral de políticas estadunidenses aos demais Estados do sistema multilateral de comércio, ainda que potencialmente se adequassem às hipóteses previstas no rol do Artigo XX. Apesar de se reconhecer a importância jurídica do contencioso tuna/dolphin da época do sistema GATT178, opta-se por não aprofundar

175 Para maior detalhamento dos aspectos factuais e jurídicos do caso, cf. GATT, DS21/R. 176 Cf. GATT, DS21/R, p. 17, para. 3.49 e ss.. 177 Do original: “The Panel considered that if the extrajurisdictional interpretation of Article XX(g) suggested by the United States were accepted, each contracting party could unilaterally determine the conservation policies from which other contracting parties could not deviate without jeopardizing their rights under the General Agreement. The considerations that led the Panel to reject an extrajurisdictional application of Article XX(b) therefore apply also to Article XX(g)” (GATT, DS21/R, p. 37). 178 Sobre a relevância do caso US – Tuna (GATT) ao tema, Young escreve: “The Panel in that dispute famously brought into question the extrajurisdictional application of measures necessary for the protection of life and health. Although the US had denied that the trade measures were extraterritorial, instead arguing that they ‘simply specified the products that 105

aqui o estudo na rationale desse caso, por dois motivos particulares. Primeiramente, como mencionado, esse contencioso foi levado à apreciação de um painel na época de vigência do sistema GATT, e seu relatório nunca foi adotado179. Em segundo lugar, apesar de sua relevância histórica180, não foi um relatório circulado no âmbito do MSC/OMC, e sim de um painel do sistema GATT de modo que, ainda que tenha valor para a discussão da matéria, não fornece parâmetros jurídicos vinculantes. De todo modo, o fundamento da decisão foi retomado posteriormente, no âmbito da OMC, pelo grupo especial que julgou o caso US – Shrimp. Assim, a extraterritorialidade foi levada para a apreciação do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC com maior minúcia no julgado US – Shrimp, cujo relatório do OAp circulou em 1998. Este

could be marketed in the territory of the United States’, and a second Panel subsequently retracted the first Panel’s position on territory and jurisdiction, the seeds were sown that trade measures could be seen to involve extraterritorial jurisdiction” (YOUNG, 2017, p. 9). 179 No sistema GATT, as decisões dos painéis só seriam adotadas na ausência de manifestação contrária expressa de qualquer dos signatários do Acordo. Após a instituição da OMC, o consenso negativo instaurou um sistema em que as decisões só não são adotadas se todos os países manifestam expressamente sua contrariedade. Conforme Hoekman e Mavroidis: “Under the WTO, it is virtually impossible to block the formation of dispute settlement panels, the adoption of panel reports and the authorization to retaliate, whereas this was possible under the GATT” (2007, p. 29). A jurisprudência do sistema anterior, contudo, continuou a ser referida pelos novos casos trazidos no sistema de solução de controvérsias da OMC. 180 O caso US – Tuna (ou Tuna/Dolphin) teve desdobramentos que se alastraram também no contencioso da OMC (cf. WT/DS381), e é um dos landmark cases na discussão relativa à dicotomia liberalização do comércio v. meio ambiente e PPMs. Sobre o tema, cf., inter alia,, CHARNOVITZ, 2002 ; DE ANDRADE, 2015 ; HOWSE; REGAN, 2000 ; OECD, 1997. 106

caso foi levado ao contencioso da OMC após a realização de consultas inexistosas entre Índia, Malásia, Paquistão e Tailândia e os Estados Unidos, referentemente ao banimento da importação de certos camarões e produtos de camarões daqueles países. O banimento teve início com a conclusão de pesquisas estadunidenses que indicaram que a maior causa de morte de tartarugas marinhas seria incidental à atividade de captura de camarões. Como parte de um programa de redução de morte de tartarugas, foi desenvolvido um tipo especial de rede, à qual vinha acoplado um dispositivo denominado TED (turtle excluder device), que permite a captura de camarões ao fundo da malha enquanto direciona tartarugas marinhas para fora da rede181. Dentre outros elementos, a medida foi acusada de violar injustificadamente a soberania dos Estados atingidos, ao impor um método específico para a captura de camarões para os países exportadores do produto. Índia, Malásia e Paquistão, apesar de concordarem com a importância de medidas de conservação de tartarugas marinhas182, indicaram possuírem seus próprios mecanismos para esse fim, de modo ser desarrazoada a imposição do método TED para a importação de produtos de camarão. A defesa dos Estados Unidos pautou-se primordialmente na escusa das alíneas (b) e (g) do Artigo XX183. Em contrapartida à defesa

181 Cf. WT/DS58/R, p. 3, para. 2.5. 182 Cf. WT/DS58/R, pp. 10 e ss. 183Ademais, apesar de discordarem da violação aos Artigos I e XIII, pois as medidas não eram discriminatórias quanto à origem dos produtos, os Estados 107

estadunidense, os reclamantes indicavam haver uma limitação jurisdicional inerente ao Artigo XX, pois nenhuma das alíneas em questão autorizaria um membro a tomar medidas para a conservação de animais plantas ou recursos localizados dentro da jurisdição de outro membro. Invocaram no mesmo sentido os princípios da soberania dos Estados e da não intervenção, consagrados pela Carta da ONU184. Os Estados Unidos contra-arrazoaram, alegando a inexistência de referida limitação jurisdicional inerente às alíneas em questão. Esse caso envolve os chamados métodos de processo e produção (PPMs – no caso US-Shrimp, a determinação da necessidade

Unidos não contestaram o fato de as restrições serem uma violação ao Artigo XI. (WT/DS58/R, p. 70, para. 3.143). 184 Índia, Malásia e Paquistão alegaram: “Article XX did not expressly limit its coverage to the humans, animals or plants located within the jurisdiction of the Member taking the measure. Nor did Article XX(b) expressly permit a Member to take measures concerning humans, animals or plants located within the jurisdiction of another Member. The language of Article XX(b), when construed in accordance with its ordinary meaning, was ambiguous on this point. However, the terms of a treaty were not to be interpreted in a vacuum. Rather, pursuant to Article 31(c) of the Vienna Convention, "relevant rules of international law applicable in the relations between the parties" shall be taken into account together with the context of the terms. Rules of international law applicable in relations between the parties included Articles 1.2, 2.1 and 2.7 of the Charter of the United Nations, which recognized the sovereign equality of states and the principle of non-interference in the internal affairs of another state. In light of these general rules of international law, it should be presumed that Article XX(b) did not extend to measures taken by one Member that affected the life or health of the people, animals and plants within the jurisdiction of another Member, absent specific treaty language to the contrary. Regarding Article XX(g), India, Pakistan and Thailand further argued that the language of that provision was silent as to whether the exception covered only exhaustible natural resources located within the jurisdiction of the Member enacting the measure, or whether it extended to all natural resources, wherever located”. (WT/DS58/R, p. 74, para. 3.157). 108

do uso de TEDs para a captura de camarões), tema que recorrentemente figura no debate acerca da extraterritorialidade de medidas na OMC. Isso porque, ao impor restrições ao comércio conforme a forma como o produto foi capturado, cultivado ou concebido, há uma interferência – ainda que indireta – sobre a escolha dessa forma de produção para além das fronteiras do país regulador. Os argumentos trazidos pelas partes exploraram relativos à extrajurisdicionalidade das medidas estadunidenses, em síntese, três pontos específicos: a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES185) enquanto fundamento jurídico para o escopo da medida comercial186, o caráter unilateral da medida e a intepretação histórica do chapeau e alíneas do Artigo XX. A CITES, da qual todas as partes litigantes eram parte, foi constantemente referida no litígio, principalmente no tocante à questão da abrangência jurisdicional das medidas em disputa. Em síntese, nesse aspecto, os Estados Unidos defendiam que a convenção indicava a obrigação dos países signatários em agir para a proteção dos animais nela listados de maneira global – portanto, também fora do território do país que emanasse as medidas protetivas. Assim, a convenção legitimava a tentativa unilateral dos Estados Unidos de proteger tartarugas marinhas, ainda que estas não estivessem unicamente

185 Do inglês Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora 186 Para a realização dessa hermenêutica, tanto as partes quanto os julgadores lançaram mão da CVDT, Artigo 31, de modo a realizar uma leitura do Acordo da OMC inserida no contexto do direito internacional geral. Cf. WT/DS58/R, p. 74, para. 3.157 e ss ; WT/DS58/AB/R, p. 41, para. 114 e ss.. 109

localizadas dentro de seu território. Por outro lado, as partes reclamantes alegavam que a medida estava voltada para a comercialização de camarões, os quais não eram objetos da referida convenção187. A alegação de que as medidas seriam unilaterais envolve a ideia de que, segundo os reclamantes, os Estados Unidos estariam impondo seu próprio regime de conservação de tartarugas e ignorando os esforços próprios dos membros atingidos para a consecução do mesmo fim. Nesse sentido, a sustentação do governo indiano argumentou que, tendo suas próprias medidas internas para a proteção de tartarugas marinhas, a medida estadunidense seria excessiva, em uma forma de impor sua própria agenda a países terceiros, o que constituiria uma “interferência inaceitável em políticas dentro da jurisdição soberana da Índia”188. Malásia, Paquistão e Tailândia, por sua vez, argumentaram que o requerimento específico do uso de TEDs quando da pesca de tartarugas seria despiciendo, e detalharam seus próprios programas de

187 Cf. WT/DS58/R, p. 75, paras. 3.161 e ss. 188 Do original: “India considered that since it had adequate measures in place to protect and preserve endangered species of sea turtles, there was no need for the United States to impose its own agenda on third parties through the use of far-reaching, extraterritorial measures such as the one imposed by Section 609. This action constituted an unacceptable interference in policies within India's sovereign jurisdiction” (WT/DS58/R, p. 11, para. 3.6). O governo indiano considerou ainda que as medidas estadunidenses seria unilaterais e injustificadas: “While India shared the US concern over the plight of sea turtles and considered it important to ensure their survival, the importance of this goal did not justify the United States taking unilateral actions that infringed upon India' sovereign right to formulate its own environmental and conservation policies” (WT/DS58/R, p. 11, para. 3.6). 110

conservação desses animais189, no esforço de demonstrar que outras medidas poderiam ser tomadas para a consecução do mesmo fim. Por fim, discutiu-se a intenção histórica (o drafting history) da redação do chapeau e alíneas do Artigo XX190. Segundo os reclamantes, a intenção original do Artigo XX(b) era proteger eventuais leis sanitárias de reclamações perante o GATT, enquanto a intenção original do Artigo XX(g) era permitir um membro do Acordo de impor limites à exportação de recursos naturais dentro de sua jurisdição191. A Malásia, por exemplo, argumentou que o Artigo XX deveria ser lido em consonância com as normas de direito internacional que regulam o direito de jurisdição, conforme o Artigo 3.2 do ESC192. Por esses elementos, inferir-se-ia que o escopo das alíneas em debate claramente não seria voltado à proteção de bens fora da jurisdição do país que emanasse as medidas restritivas. Os Estados Unidos, em sua defesa, argumentaram que essa interpretação do escopo das alíneas seria incompleta, porque nenhuma das duas alíneas sob análise menciona a localização dos “animais” e “recursos naturais” em questão. Ademais, mesmo que esse argumento fosse levado a cabo, a proteção de tartarugas marinhas sequer estaria restrita à sua jurisdição: em verdade, elas eram um recurso de interesse global193.

189 Cf. WT/DS58/R, pp. 11 e ss., paras. 3.7 e ss. 190 Esse argumento foi construído conforme as prerrogativas do Artigo 32 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Cf. WT/DS58/R, p. 81, paras. 3.176 e ss. 191 WT/DS58/R, pp. 81 e 83, paras. 3.176 e 3.181. 192 WT/DS58/R, p. 75, para. 3.158. 193 Cf. WT/DS58/R, pp. 84-86, paras. 3.184-3.189. 111

Os Estados Unidos argumentaram ainda que Índia, Paquistão e Tailândia estariam “confundindo a aplicação extrajurisdicional das normas de um país com a aplicação das normas de um país, dentro de sua própria jurisdição, com o objetivo de proteger recursos localizados fora de sua jurisdição”, uma vez que “os países permanecem livres para utilizar quaisquer métodos que considerem apropriados para a captura de camarões”194. É interessante ressaltar que não se trata de uma invocação da doutrina dos efeitos – mesmo porque, dada a controvérsia doutrinária dessa corrente, talvez não fosse a melhor estratégia jurídica lançar mão dessa justificativa. Ao invés, a defesa estadunidense reconhece que sua medida tem por objetivo a proteção de bens localizados fora de seu território, mas não concorda que isso seria extrajurisdicionalidade de sua competência legislativa. Com relação à aplicabilidade de outras normas relevantes de direito internacional, os Estados Unidos argumentaram que os princípios que regem a jurisdição em direito internacional não seriam relevantes para a leitura dos dispositivos controversos, pois “o texto não menciona quaisquer limitações baseadas na jurisdição em que pessoas, animais ou

194 Do original: “The United States believed that India, Pakistan and Thailand also confused the extrajurisdictional application of a country’s laws with the application by a country of its laws, within its own jurisdiction, in order to protect resources located outside its jurisdiction. In determining that shrimp was produced in a manner that undermined the conservation of sea turtles, the United States did not require any country to follow the US conservation policy nor did the United States undermine the sovereignty of other nations. Countries remained free to use any methods they considered appropriate in harvesting shrimp” (WT/DS58/R, p. 75, para. 3.165). 112

outros recursos naturais a serem protegidos ou conservados devem estar localizados”195. O relatório do painel detalha um minucioso embate factual e probatório entre os países litigantes, no sentido de averiguar a suficiência ou insuficiência dos programas adotados por cada uma das nações para a proteção das tartarugas marinhas196. Por fim, o painel concluiu pela incompatibilidade das medidas estadunidenses, dentre outros fatores, por “minarem” o sistema multilateral de comércio ao afetarem diretamente a política de outros governos. Seguindo os mesmos preceitos do que decidira o painel em US – Tuna, o relatório do painel de US – Shrimp concluiu que a necessidade de se adequar à legislação interna de cada país restringiria irremediavelmente a lógica da liberalização do comércio internacional197.

195 “The United States stressed the limited purpose for examining general principles of international law in the resolution of this dispute. The Panel's terms of reference were to examine the complainants' claim in light of the obligations of the United States under the "relevant provisions of the covered agreements", in this case the provisions of GATT 1994. The relevant provisions of GATT 1994, in particular Article XX, did not incorporate general rules of international law. Thus, general rules of international law were only relevant in so far as they served as aids to interpreting the text of the GATT, pursuant to Article 31(3)(c) of the Vienna Convention. However, as already explained, Articles XX(g) and (b) were clear on their face. The text did not mention any limitations based on the jurisdiction in which the persons, animals or other natural resources to be conserved or protected were located. In fact, the term "jurisdiction" was not even used in Article XX. In short, the complainants asked the Panel not to use rules of international law to interpret any particular language in Article XX, but rather asked the Panel to redraft Article XX by incorporating an entirely new limitation based on complainants' purported rules of international law” (WT/DS58/R, p. 79, para. 3.173). 196 Cf. WT/DS58/R, pp. 13-26. 197 Assim discorreu o painel: “In our view, if an interpretation of the chapeau of Article XX were to be followed which would allow a Member to adopt measures 113

O painel ressaltou, contudo, que essa leitura não adentrava no mérito da alegada suposta aplicabilidade extrajurisdicional do direito estadunidense, uma vez que “[m]uitas medidas governamentais podem ter efeito fora da jurisdição do governo que as toma”198. O que se considerou foi que tais medidas constituiriam uma ameaça ao sistema multilateral de comércio. Em outras palavras, o painel refutou que o eventual alcance extrajurisdicional dos efeitos de uma norma de um Estado sejam equivalentes à aplicação extraterritorial dessa norma. O relatório do painel, levado à revisão do OAp, foi, todavia, substancialmente modificado, particularmente o entendimento de que tais medidas minariam o escopo do sistema multilateral de comércio. Para o órgão de segunda instância, a medida, ao encaixar-se em uma das alíneas do Artigo XX (como de fato ocorre no caso em questão), não poderia ser considerada como “minando o sistema multilateral de

conditioning access to its market for a given product upon the adoption by the exporting Members of certain policies, including conservation policies, GATT 1994 and the WTO Agreement could no longer serve as a multilateral framework for trade among Members as security and predictability of trade relations under those agreements would be threatened. This follows because, if one WTO Member were allowed to adopt such measures, then other Members would also have the right to adopt similar measures on the same subject but with differing, or even conflicting, requirements. If that happened, it would be impossible for exporting Members to comply at the same time with multiple conflicting policy requirements. […]” (WT/DS58/R, pp. 286-287, para. 7.45). 198 Do original: “However, we note that we are not basing our finding on an extra-jurisdictional application of US law. Many domestic governmental measures can have an effect outside the jurisdiction of the government which takes them. What we found above was that a measure cannot be considered as falling within the scope of Article XX if it operates so as to affect other governments' policies in a way that threatens the multilateral trading system, as described in paragraph 7.45 above” WT/DS58/R, p. 289, para. 7.51). 114

comércio”199. O Artigo XX, ao permitir a adoção de medidas contrárias às disposições do GATT para a implementação de políticas internas dos Estados membros, legitima que as partes contratantes desviem das normas do sistema em prol dos valores enumerados pelas alíneas. Apesar dessa modificação, ainda assim o OAp considerou a medida incompatível com o Artigo XX do GATT. A conclusão do Órgão de Apelação foi a de que, em realidade, a aplicação efetiva da medida (e não a medida em si), por meio das Diretivas de 1996, seria injustificável ao impor que “todos os outros países exportadores” deveriam adotar “essencialmente a mesma” (e não meramente comparável) política regulatória que aquela aplicada às redes de captura de camarões no território estadunidense, estabelecendo um padrão rígido e inflexível200. Portanto, os Estados Unidos não levariam em consideração outras medidas que poderiam ser adotadas para a conservação de tartarugas marinhas201.202

199 Segundo o OAp, a origem do julgamento errôneo do painel nesse sentido deve-se à sua falha em seguir a correta metodologia interpretativa do Artigo XX e alíneas (primeiramente, partindo-se das alíneas para, apenas em seguida, verificar a aplicabilidade do caput ao caso). Cf. WT/DS58/AB/R, p. 43, para. 117 e ss.. 200 Conforme o OAp: “The actual application of the measure, through the implementation of the 1996 Guidelines and the regulatory practice of administrators, requires other WTO Members to adopt a regulatory program that is not merely comparable, but rather essentially the same, as that applied to the United States shrimp trawl vessels” (WT/DS58/AB/R, p. 64, para. 163). 201 WT/DS58/AB/R, p. 63-64, para. 161-162. 202 Aqui, cabe ressaltar também ter sido proibida a importação de camarões capturados com redes que utilizavam TEDs, mas cuja captura se deu em águas “não certificadas” pelos Estados Unidos, o que corroborou o entendimento de que a aplicação da medida dar-se-ia de maneira abusiva: “The resulting situation is difficult to reconcile with the declared policy objective of protecting and conserving sea turtles. This suggests to us that this measure, in its 115

Outro aspecto nesse litígio é de particular interesse: a proteção das tartarugas marinhas por meio de uma medida comercial com impacto internacional envolve a averiguação do interesse jurídico em se tutelar tais animais. Um dos argumentos trazidos pelos Estados Unidos nesse sentido foi o de que tartarugas marinhas seriam um recurso natural compartilhado globalmente, uma vez que a maior parte das espécies protegidas pela medida passavam por águas não apenas sujeitas à jurisdição estadunidense, mas também de outros países203. Além disso, alegaram que tais animais servem importantes funções aos ecossistemas que habitam204, e que, portanto, “[e]sforços de apenas uma nação para proteger tartarugas marinhas não teriam sucesso a menos que outras nações em cujas águas tais espécies também ocorram tomassem medidas análogas”205. Ademais, baseando-se amplamente nas disposições da

application, is more concerned with effectively influencing WTO Members to adopt essentially the same comprehensive regulatory regime as that applied by the United States to its domestic shrimp trawlers, even though many of those Members may be differently situated.” (WT/DS58/AB/R, p. 65, para. 165.) 203 “The United States submitted that sea turtles were a shared global resource. All species of sea turtles except the flatback (which was restricted to waters around Australia) regularly spent all or part of their lives in waters subject to US jurisdiction in the Atlantic and Pacific Oceans and the Caribbean Sea. Sea turtles being highly migratory creatures, moving in and out of a variety of ocean and coastal habitats, the species found in US waters swam across vast expanses of the high seas and through waters under the jurisdiction of many other countries” (WT/DS58/R, p. 26, para. 3.36). 204 WT/DS58/R, p. 26, para. 3.36. 205 Do original: “Efforts by one nation to protect sea turtles would not succeed unless other nations in whose waters these species also occurred took comparable measures” (WT/DS58/R, p. 26, para. 3.36). 116

CITES, o OAp reconheceu que a proteção de recursos naturais vivos (no caso, tartarugas marinhas) é uma preocupação global importante206. A passagem mais relevante para este estudo, presente no caso US – Shrimp, foi proferida no contexto do julgamento de se tartarugas marinhas poderiam ser classificadas como “recurso natural exaurível” para fins do Artigo XX(g), e tratou da relação entre tartarugas marinhas, uma espécie naturalmente migratória, e os Estados Unidos:

As espécies de tartarugas marinhas aqui em questão, i.e., aquelas abarcadas pela Seção 609 [legislação estadunidense envolvida no litígio], são conhecidas por circularem pelas águas sob jurisdição dos Estados Unidos. Evidentemente, não se afirma que toda a população dessas espécies migra para, ou atravessam, em algum momento, as águas sob jurisdição dos Estados Unidos. Nem o apelante, nem qualquer dos apelados invoca quaisquer direitos de propriedade exclusiva sobre as tartarugas marinhas, ao menos não enquanto estas nadam livremente por seu habitat natural – os oceanos. Nós não consideramos a questão de se há uma limitação jurisdicional implícita no Artigo XX(g), e, caso haja, qual a natureza ou extensão dessa limitação. Nós observamos apenas que, nas circunstâncias específicas do caso em questão, existe um nexo suficiente entre as populações marinhas migratórias e ameaçadas de extinção envolvidas e os Estados Unidos para os propósitos do Artigo XX(g).207

206 WT/DS58/AB/R, p. 67, para. 168 e ss.. 207 Do original: “The sea turtle species here at stake, i.e., covered by Section 609, are all known to occur in waters over which the United States exercises jurisdiction.119 Of course, it is not claimed that all populations of these species migrate to, or traverse, at one time or another, waters subject to United States jurisdiction. Neither the appellant nor any of the appellees claims any rights of exclusive ownership over the sea turtles, at least not while they are swimming 117

Como mencionado, esse trecho não se encontra em uma seção específica sobre a análise da extraterritorialidade da medida – como o OAp observa, o julgamento “não considera a questão de se há uma limitação jurisdicional intrínseca ao Artigo XX(g) e, caso haja, a natureza ou extensão dessa limitação”208. Não surpreendente, portanto, é o fato de que tal passagem não clarifica o argumento da jurisdição limitada do Artigo XX(g). A questão, portanto, permanece aberta para esclarecimento. Ainda assim, o caso US – Shrimp parece ter fornecido o parâmetro mais concreto até o momento sobre medidas restritivas ao comércio com efeitos extraterritoriais baseadas em políticas ambientais e, por tal motivo, servirá de embasamento para as considerações sobre o tratamento jurídico do tema no âmbito da OMC. A rationale utilizada pelo OAp em sua decisão pode servir de base para inferir-se que deve haver “nexo suficiente” para que uma medida comercial restritiva com propósitos ambientais seja escusada pelo Artigo XX(g) do GATT. Seria, portanto, uma espécie de parâmetro fundamental à legalidade de medidas com efeitos extraterritoriais no regime da OMC. Outra disputa a envolver o tema da extraterritorialidade – apesar de, novamente, tal tema não ter sido apreciado pelo MSC/OMC –

freely in their natural habitat -- the oceans. […]. We note only that in the specific circumstances of the case before us, there is a sufficient nexus between the migratory and endangered marine populations involved and the United States for purposes of Article XX(g)” (WT/DS58/AB/R, p. 50). 208 Do original: “We do not pass upon the question of whether there is an implied jurisdictional limitation in Article XX(g), and if so, the nature or extent of that limitation” (WT/DS58/AB/R, p. 50). 118

é o caso EC – Seals, contencioso que também envolve a discussão acerca de PPMs. O litígio foi levado ao MSC/OMC pelo Canadá e pela Noruega com base em normativas da União Europeia sobre a importação de “produtos derivados ou obtidos diretamente de focas, processados ou não processados, incluindo carne, óleo, gordura, órgãos, pele com pelos tingidos ou naturais, assim como artigos (tais como roupas e acessórios e cápsulas de Omega-3) feitos de pele ou óleo”209. A disputa envolveu dispositivos presentes no Regulamento n. 1007/2009210 (“Regulamento Principal) e Regulamento 737/2010211 (“Regulamento de Implementação”)212. Ao conjunto desses dois textos jurídicos, o painel chamou de “regime de focas”. O regulamento principal assim determinava, no 15º recital de seu preâmbulo:

O presente regulamento estabelece regras harmonizadas para a colocação no mercado de produtos derivados da foca. Por conseguinte, não prejudica outras regras comunitárias ou nacionais relativas à caça da foca213.

209 Do original: “This dispute concerns products, either processed or unprocessed, deriving or obtained from seals, including meat, oil, blubber, organs, raw fur skins and tanned fur skins, as well as articles (such as clothing and accessories, and omega-3 capsules) made from fur skins and oil” (WT/DS58/R, p. 16, para. 2.6). 210 Regulamento (CE), n. 1007/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009, relativo ao comércio de produtos derivados da foca. 211 Regulamento (CE) n. 737/2010, que estabelece as normas de execução do Regulamento (CE) n. 1007/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo ao comércio de produtos derivados da foca. 212 UE, 2009-B. 213 UE, 2009-B, p. 03. 119

O Artigo 3º.1 do regulamento em questão, por sua vez, estabeleceu que, dentre outras determinações,

[a] colocação no mercado de produtos derivados da foca só é permitida caso se trate de produtos derivados de focas caçadas por métodos tradicionais pelas comunidades inuítes e outras comunidades indígenas e que contribuem para a sua subsistência. Estas condições aplicam-se no momento ou no local de importação dos produtos importados214. Posteriormente, o regulamento foi complementado com sua Implementação (Regulamento 737/2010), de modo que também a seguinte situação passou a ser permitida215:

Os produtos derivados da foca para uso pessoal dos viajantes ou das suas famílias apenas podem ser importados se preencherem uma das seguintes condições: 1. Fazem parte da indumentária dos viajantes ou são transportados à mão ou na sua bagagem pessoal; 2. Fazem parte dos bens pessoais de uma pessoa singular que transfere a sua residência habitual de um país terceiro para a União; 3. São adquiridos num país terceiro por viajantes de passagem e posteriormente importados por esses viajantes, sob reserva da apresentação por esses viajantes às autoridades aduaneiras à chegada ao território da União, dos seguintes documentos: [...]216

214 UE, 2009-B, p. 03. 215 Cf. HOWSE; LANGILLE, 2012, pp. 384-385. 216 EU, 2010, p. 2, grifo acrescido. 120

Esse segundo rol de exceções, para além dos produtos de foca produzidos por comunidades inuítes, permite que produtos de foca comprados fora do território da UE possam ser trazidos ao território por viajantes, desde que para fins não comerciais e que o objetivo do regulamento não seja comprometido217. Assim como o caso US – Shrimp, o caso do regime de focas envolve a análise jurídica dos PPMs de um determinado produto. A proibição de importação de produtos derivados de foca, com as exceções acima descritas, envolve diretamente o método de processo e produção realizado no país que exporta tal produto. Mais uma vez, a controvérsia recai sobre se esse tipo de regulação, que incide (ainda que indiretamente) sobre a conduta dos produtores externos ao país regulador, seria uma forma de exercício extrajurisdicional da capacidade prescritiva do Estado. No caso Seal, o debate sobre a extrajurisdicionalidade das medidas da UE insere-se na discussão sobre a possibilidade de proteger a “moralidade pública” fora do território do país que emana a normativa. Tal moral pública é um dos valores societais enumerados pelo Artigo XX do GATT – mais especificamente, encontra-se listado na alínea (a). O Órgão de Apelação considerou tão-somente, sobre o alegado exercício extrajurisdicional das medidas da União Europeia, que o “o Regime de Focas da UE foi concebido para lidar com atividades ocorrentes 'dentro e fora da Comunidade' e com preocupações de 'cidadãos e consumidores' nos Estados-membros da União Europeia com

217 Cf. HOWSE; LANGILLE, 2012, p. 385. 121

relação ao bem-estar das focas”218. Apesar disso, o OAp “(...) apesar de reconhecer a importância sistêmica da questão de se há uma limitação jurisdicional implícita ao Artigo XX(a) e, caso positivo, a natureza e a extensão de tal limitação (...)”, decidiu não apreciar o tópico219. Isso porque, além de não ter sido objeto da reclamação das partes litigantes, a questão, levantada durante uma audiência oral, não foi objeto de controvérsia: as partes estavam de acordo que “há um nexo suficiente entre as preocupações relativas à moralidade pública e as atividades expressas pela medida, de um lado, e a União Europeia, de outro lado”220. A vaga construção acima colacionada, particularmente a ênfase dada à concepção da medida de modo a “lidar com atividades ocorrentes ‘dentro e fora da Comunidade’” pode dar a entender a inclinação do OAp a considerar que a medida poderia ter efeitos extraterritoriais contrapostos aos interesses dos cidadãos residentes dentro do território da União. Em outras palavras, que a medida, ao lidar

218 Do original: “As set out in the preamble of the Basic Regulation, the EU Seal Regime is designed to address seal hunting activities occurring "within and outside the Community" and the seal welfare concerns of "citizens and consumers" in EU member States” (OMC, WT/DS400/AB/R, para. 5.173, p. 141). 219 Do original: “Accordingly, while recognizing the systemic importance of the question of whether there is an implied jurisdictional limitation in Article XX(a), and, if so, the nature or extent of that limitation (…)” (WT/DS400/AB/R, p. 141, para. 5.173). 220 Do original: “In response to questioning at the oral hearing, the participants expressed their agreement that there is a sufficient nexus between the public moral concerns and activities addressed by the measure, on the one hand, and the European Union, on the other hand” (WT/DS400/AB/R, p. 141, para. 5.173, nota de rodapé 1191). 122

com atividades realizadas fora do território da União Europeia, teria efeitos extrajurisdicionais. Ressalte-se que o Órgão de Apelação não se pronunciou sobre a questão diante do acordo das partes no sentido de que uma análise sobre esse tópico não seria necessária. Contudo, o “nexo suficiente” sobre o qual as partes acordaram, pode-se arguir, é bastante vago. Haveria um nexo suficiente entre a preocupação expressa e a União Europeia – ou seja, há nexo suficiente entre o objetivo da medida e o Membro regulador. No entanto, poder-se-ia arguir a existência de um ímpeto regulatório extrajurisdicional, ao interferir em atividades realizadas fora do território da União Europeia – e, sobre isso, as partes não se pronunciaram. De todo modo, Young afirma que a mera ausência de manifestação das partes com relação a um suposto exercício extrajurisdicional advindo da medida comunitária demonstraria, de per se, a inexistência de uma limitação inerente presente na redação do Artigo XX(a)221. Apesar de não ter sido objeto de análise do OAp, a questão da extrajurisdicionalidade foi objeto de comento por parte de alguns doutrinadores. Barbara Cooreman, por exemplo, defende que a exceção referente à proteção da moralidade pública “faria pouco sentido se as preocupações morais em questão pudessem apenas relacionar-se com atividades domésticas”222, e argui que a redação do Artigo XX(a) não

221 YOUNG, 2017, p. 12. 222 Do original: “The public morals exception of Article XX(a) would indeed make little sense if the moral concerns in question could only relate to domestic activities: as it is inherent that trade measures have an effect on activities 123

permite uma restrição territorial dessa proteção. A autora ressalta, contudo, primeiramente, a necessidade de se demonstrar que os cidadãos do Estado regulador possuem interesse com relação à atividade a ser regulada e, em segundo lugar, que a medida é necessária para a consecução da proteção em questão223. No contexto da exceção da moralidade pública, Cooreman defende estar particularmente envolvida a definição do conceito desse bem social224. Tal definição não é particularmente relevante a problemática aqui estudada, mas a lógica utilizada pela autora poderia ser transladada para as alíneas (b) e (g) do Artigo XX, concernentes à proteção ambiental. A ideia defendida por Cooreman é que a definição desse conceito perpassa necessariamente pela análise da aceitação internacional da ideia de moralidade pública. A questão que se coloca, portanto, é: determinado valor moral concerne apenas ao Estado legislador ou também ao Estado afetado pela medida? Qual a relevância dessa abrangência? Para a autora, um valor moral legítimo deve refletir a opinião pública dos consumidores do país regulador, sem que haja necessidade de consenso global com relação a tal valor225.

occurring abroad, cases where moral harm results from those activities should be covered by the public morals exception” (COOREMAN, 2015, p. 09). 223 COOREMAN, 2015, p. 9. Por fim, segundo a autora, é necessária, para a justificação da alínea (a) do Artigo XX, “[…] the good faith conditions of the chapeau must have been complied with, as for any measure seeking justification under Article XX” (COOREMAN, 2015, p. 09). 224 COOREMAN, 2015, p. 9. 225 Para um esclarecimento mais completo da metodologia de análise do conceito de moralidade pública pela autora, cf. COOREMAN, 2015, pp. 11 e ss.. A autora escreve: “The argument that states would abuse the public morals exception if public morals can be determined unilaterally, needs to be rebutted 124

A partir disso, numa leitura literal das alíneas (b) e (g) do Artigo XX, uma abordagem possível seria indagar a abrangência dos conceitos de “preservação dos vegetais” e “conservação dos recursos naturais esgotáveis”, respectivamente, conforme realizado no caso US – Shrimp pelos litigantes. Existe uma limitação inerente de tais termos à jurisdição sob a qual se encontram? Esse é o questionamento que o MSC/OMC tem se esquivado a responder, e que será novamente mencionado no tópico subsequente. Por outro lado, assumindo que exista uma limitação jurisdicional inerente (no sentido de que as medidas restritivas não podem proteger bens localizados fora do território do Estado regulador), a análise sobre a compatibilidade dessas medidas deve ser feita sob a ótica do princípio da territorialidade. Nesse sentido, Howse e Langille argumentam que a permissão da importação de produtos de foca comprados no exterior e que não sejam reinseridos no comércio dentro da UE seria uma forma de estabelecer “níveis desejáveis ou aceitáveis de extraterritorialidade na regulação da UE”226. Os autores escrevem:

Tomados em conjunto, a exceção da importação do viajante e a não aplicabilidade da regulação para transbordo [exceção do Artigo 4.3] asseguram que sejam aplicadas sanções legais

by a stringent assessment of the evidentiary proof of existence of actual public morals, as well as the necessity test” (COOREMAN, 2015, p. 11). 226 Do original: “By permitting importation of goods purchased abroad by travelers that are not brought into the stream of commerce within the EU, the regulation thus makes a legitimate distinction, grounded in an understanding of the desirable or acceptable degrees of extraterritoriality in EU regulation” (HOWSE; LANGILLE, 2012, p. 385). 125

apenas onde produtos de foca sejam vendidos ou destinados para venda dentro da União Europeia, ainda que a intervenção regulatória seja impulsionada por eventos que ocorram fora da União Europeia (i.e., o abate cruel de focas). Isso reflete o espírito e a letra do princípio da territorialidade conforme entendido pelo direito da União Europeia, baseado na interpretação do direito internacional costumeiro da Corte de Justiça da União Europeia.227 Com essa colocação, os autores defendem que a medida estaria de acordo com o princípio da territorialidade, nos moldes definidos pela Corte de Justiça da União Europeia (CJUE). Em outras palavras, segundo Howse e Langille, para a CJUE a aplicação de sanções legais para atividades ocorridas fora do território da UE é permitida, mas apenas quando referida aplicação se dá dentro do território da UE228.

227 Do original: “Taken together, the traveler’s importation exception and the non-applicability of the regulation to transshipment, ensure that only where seal products are sold or destined for sale within the European Union are legal sanctions applied, even though the regulatory intervention is prompted by events that take place outside the European Union (i.e., the cruel slaughter of seals). This reflects the spirit and letter of the territoriality principle as it is understood in EU law, based upon the European Court of Justice’s interpretation of customary international law” (HOWSE; LANGILLE, 2012, p. 385, notas de rodapé suprimidas”). 228 HOWSE, LANGILLE, 2012, p. 386, nota 139. Ainda segundo os autores: “In theory, this would allow the EU to ban transshipment within the letter of the territoriality principle, as the goods would be turned back at the borders of the EU; but the effect would be to prohibit purchases and sales of seal products outside the territory of the EU, by precluding the goods from reaching the non- EU destination where the processing or ultimate consumption takes place and thus making their sale in that non-EU jurisdiction impossible or at least considerably more costly, if not prohibitively so (as alternative shipping routes would have to be found). This would seem to go some distance in undermining 126

A CJUE realizou essa leitura também no caso da aviação, cuja controvérsia é pertinente ao presente estudo, ainda que não tenha sido levada para o MSC/OMC. Como mencionado no capítulo anterior, o ponto crítico do caso da aviação envolve o fato que a UE, ao regulamentar o sistema de crédito de emissões de carbono de voos que tenham origem ou finalizem em seu território, contabiliza também as emissões de carbono realizadas fora do território da União229. O comentário da Advogada-Geral da União Europeia defendeu a posição de que a ausência de obrigatoriedade de aplicação da medida para atividades realizadas fora do território da UE seria inequívoco no sentido do não exercício extraterritorial da faculdade legislativa da União230. Ainda, ressaltou que, “[d]o ponto de vista do direito internacional, o decisivo é que a respectiva situação apresente um

the spirit of the territoriality principle, and would not be justified by the noninstrumental purpose of protecting public morals within the EU” (HOWSE, LANGILLE, 2012, p. 386, nota 139). 229 Assim define a Diretiva 2008/101/CE: “Emissões atribuídas à aviação”, as emissões de todos os voos abrangidos pelas actividades de aviação enumeradas no Anexo I com partida de um aeródromo situado no território de um Estado- Membro e de todos os voos com chegada a um aeródromo situado no território de um Estado-Membro provenientes de um país terceiro” (UE, 2009-A, p. 06). 230 Segundo a Advogada-Geral, “147. O facto de o cálculo dos direitos de emissão a devolver ter por base a distância total percorrida por um voo em particular não confere às disposições da Directiva 2008/101 qualquer carácter extraterritorial. De facto, é inegável que, deste modo, são parcialmente tidos em consideração acontecimentos ocorridos em alto mar ou no território de países terceiros. Isto pode indirectamente incentivar as companhias aéreas a, ao sobrevoarem o alto mar ou o território de países terceiros, adoptarem um determinado comportamento, em especial, consumir o menos possível de combustível e emitir o menos possível de gases com efeito de estufa. No entanto, não se verifica uma regulamentação concreta da sua conduta no espaço aéreo fora da União Europeia”. Cf. UE, 2011, pp. e ss. 127

nexo suficiente com o Estado ou a organização internacional em causa”231. No caso do sistema ETS da aviação, esse nexo consistiria no princípio da territorialidade232. O julgamento da CJUE buscou no direito internacional costumeiro a resposta para a controvérsia em questão, analisando particularmente os princípios da territorialidade e da soberania conforme o direito internacional consuetudinário233. A transcrição, conquanto longa, faz-se necessária:

A esse respeito, ao prever um critério de aplicabilidade da Directiva 2008/101 aos operadores de aeronaves registadas num Estado‑ Membro ou num Estado terceiro, baseado no facto de essas aeronaves efectuarem voos com chegada ou com partida num aeródromo situado no território de um dos Estados‑Membros, a Directiva 2008/101, na medida em que estende à aviação a aplicação do regime previsto na Directiva 2003/87, não viola o princípio da territorialidade nem a soberania dos Estados terceiros, com proveniência dos quais ou com destino aos quais estes voos são efectuados, sobre o espaço aéreo que cobre o seu território, uma vez que as referidas aeronaves se encontram fisicamente no território de um dos Estados‑ Membros da União e estão, assim sujeitas, por esse motivo, à plena jurisdição da União. [...] Além disso, o facto de, no âmbito da aplicação da regulamentação da União em matéria de ambiente, certos elementos que contribuem para a

231 UE, 2011, pp. 13811, para. 149. 232 UE, 2011, pp. 13812 e ss.. 233 Cf. CJUE, 2011, pp. 13885 e ss, para. 103 e ss.. 128

poluição do ar, do mar ou do território terrestre dos Estados‑Membros terem a sua origem em acontecimentos parcialmente ocorridos fora desse território não é susceptível de, à luz dos princípios do direito internacional consuetudinário que podem ser invocados no processo principal, pôr em causa a plena aplicabilidade do direito da União no referido território [...]. Daí decorre que a União era competente, à luz dos princípios do direito internacional consuetudinário que podem ser invocados no âmbito do processo principal, para adoptar a Directiva 2008/101, na medida em que a mesma estende a todos os voos com partida ou com chegada num aeródromo situado no território de um Estado‑Membro o regime de comércio de licenças de emissão previsto na Directiva 2003/87234. A especialidade das normas da União Europeia e seu aparato jurídico altamente institucionalizado a inserem como um regime lex specialis perante o direito internacional235. Não obstante, seguindo a lógica descrita na primeira seção deste capítulo, a CJUE buscou, no direito internacional, elementos para a análise do litígio sob sua apreciação236.

234 CJUE, 2011, pp. 13892 e ss., grifo acrescido. O acórdão menciona ainda a aplicabilidade do Protocolo de Quioto ao caso (cf. UE, 2011, p. 13893). 235 Cf. SIMMA; PULKOWSKI, 2006 ; CRAWFORD; 2013, para. 390-391. 236 Sobre o tema, Simma e Pulkowski escrevem: “Tribunals established under a special legal subsystem – such as WTO panels or the European Court of Justice – generally follow the reverse order of examination. They are primarily concerned with the content of ‘their’ special law. Only in a second step, if this special regime proves insufficient to resolve a case, is resort had to general international rules. [...] Without the ‘omnipresence of “general law”’ a special legal subsystem may, as Georges Abi-Saab put it, mutate into ‘a legal Frankenstein’ that ‘no longer partakes in the same basis of legitimacy and 129

Em síntese, segundo o acórdão proferido pela CJUE, o fato de que as aeronaves estão dentro do território da UE (“uma vez que as referidas aeronaves se encontram fisicamente no território de um dos Estados-Membros da União e estão, assim sujeitas, por esse motivo, à plena jurisdição da União”), quando da aplicabilidade da Diretiva 2008/101, torna indiscutível que a norma não extrapola o princípio da territorialidade. A rationale utilizada pelo OAp no caso US – Shrimp não parece seguir a mesma linha. Ainda que o acórdão da CJUE mencione a existência de uma motivação para a Diretiva da UE (i.e., o Protocolo de Quito e a Convenção-Quadro), o que poderia, de certa forma, corresponder à ideia de nexo suficiente, para considerar que a medida não viola os princípios da soberania e da territorialidade, a referida Corte tão-somente afirma que as aeronaves estão dentro do território da UE. Não obstante, cabe mencionar o comentário de Bartels no sentido de que, mesmo seguindo a rationale utilizada pelo OAp em US – Shrimp, não haveria um problema com relação à extraterritorialidade da medida no caso do programa ETS de aviação civil da UE. Isso porque, segundo o autor, a “atmosfera”, bem tutelado pelas medidas em questão, compreende um nexo jurisdicional indubitavelmente

formal standards of pertinence’. Even the European Court of Justice has asserted that principles of general international law are applicable residually within the context of EC law, and has indicated its willingness to defer to the interpretation of an international agreement by a court established under such an agreement" (SIMMA; PULKOWSKI, 2006, pp. 482 e 492, notas de rodapé suprimidas). 130

relacionado com os interesses da União Europeia – haveria um nexo até maior do que aquele entre os Estados Unidos e a natureza migratória das tartarugas marinhas em US – Shrimp237. Ainda que essa afirmação pareça evidente, para que, por ocasião de uma disputa jurídica perante o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, ela pudesse ser respaldada, esse “nexo suficiente” entre a atmosfera e os interesses da UE deveria ser devidamente demonstrado, particularmente considerando que a medida também envolve emissões realizadas em trechos fora do território da União. Ainda que se parta do pressuposto de que a “atmosfera” seja indivisível globalmente, essa afirmação, para fins jurídicos, não pode ser meramente tautológica. A partir desse ponto, torna-se relevante o estudo do que se chamam global commons, tópico a ser desenvolvido no próximo capítulo. Se é verdade que a atmosfera e as mudanças climáticas perfazem evidente interesse global, por que o mesmo não pode ser dito tão claramente a respeito da biosfera e os elementos que a compõem – e.g., as tartarugas marinhas? Alguns autores, empenhados em dar respostas a questionamentos como esses, desenvolveram suas próprias

237 BARTELS, 2012, p. 15. Segundo o autor, “The ‘atmosphere’ that the EU seeks to protect has, if anything, an even closer ‘jurisdictional nexus’ to the EU. As Advocate General Kokott said in the her Opinion in the ATAA case, ‘[i]t is well known that air pollution knows no boundaries and that greenhouse gases contribute towards climate change worldwide irrespective of where they are emitted; they can have effects on the environment and climate in every State and association of States, including the European Union”. 131

metodologias e justificativas ou críticas para as medidas brevemente analisadas neste tópico.

3.3 APONTAMENTOS TEÓRICOS: A CONTROVÉRSIA DOUTRINÁRIA

O capítulo anterior tratou do conceito de jurisdição extraterritorial conforme o direito internacional público. A partir daquele conceito, e tomando por base os casos detalhados na seção anterior, esta seção descreve e problematiza alguns posicionamentos teóricos sobre a controversa aplicação extraterritorial da competência prescritiva do Estado nos casos em questão. Nas palavras de Joanne Scott, “existe incerteza e desacordo sobre o que conta, e o que deveria contar, como conexão territorial para os propósitos de distinguir entre o exercício de jurisdição territorial ou extraterritorial”238. A definição conceitual utilizada para a aplicação dessa lógica é fundamental, de modo que a doutrina é divergente particularmente em algumas nuances da ideia. Tendo em vista o estrito escopo desta pesquisa, em contraposição à amplitude do tema extraterritorialidade propriamente dito, os autores a seguir foram selecionados, dentre tantos outros que tratam do tema de forma mais ampla, por abordarem com maior particularidade o exercício extrajurisdicional da competência prescritiva

238 Do original: “There is uncertainty and disagreement about what counts, and what should count, as a territorial connection for the purpose of distinguishing between the exercise of territorial and extraterritorial jurisdiction” (SCOTT, 2014, p. 89). 132

no âmbito do comércio internacional por meio de medidas ambientais ou, ainda mais diretamente relacionado com este estudo, por tratarem diretamente dos casos aqui mencionados. Nesse sentido, Joanne Scott traz uma interessante diferenciação entre uma medida extraterritorial e o que ela chama de extensão territorial de uma medida. Para a autora, uma medida é “considerada como extraterritorial quando impõe obrigações a pessoas que não gozam de uma conexão territorial relevante para com o Estado regulador”. Por outro lado, no caso de uma medida que dê lugar a tal extensão territorial, é a sua aplicação que é “impulsionada por uma conexão territorial, mas ao aplicar a medida, o regulador deve, juridicamente, levar em consideração condutas ou circunstâncias que aconteçam fora do território”239. No caso da Diretiva europeia sobre emissões do setor de aviação, por exemplo, a autora defende não se tratar de aplicação extraterritorial da competência prescritiva da UE, mas sim de uma mera extensão territorial da medida, uma vez que o ímpeto motivador da medida está localizado dentro de seu território. Ademais, o legislador “deve juridicamente tomar em consideração a conduta e as circunstâncias que ocorrem fora do Estado”, e o faz em três níveis: para determinar o limite do abono de cada empresa aérea, a UE deve contabilizar também as emissões que ocorrem fora de seu território; a UE pode decidir isentar países dessas medidas se tais países adotam suas

239 Do original, sobre o conceito de extensão territorial: “The application of a measure is triggered by a territorial connection but in applying the measure the regulator is required, as a matter of law, to take into account conduct or circumstances abroad” (SCOTT, 2014, p. 90). 133

próprias medidas contra mudanças climáticas; e a UE deve considerar revisar a diretiva da aviação se houver consenso internacional sobre a redução de emissões aéreas240. Em síntese, segundo a autora, não há uma intervenção internacional de cunho extraterritorial; há, por outro lado, uma observação, para fins jurídicos, de fatos que ocorrem fora do território da UE241. A autora considera que a União Europeia utiliza a prática da extensão territorial com o fim de “provocar diferentes tipos de mudança jurídica ou de comportamento”, para “incentivar um alto nível da parte dos atores de países terceiros”242, para “moldar a organização, operação e governança de empresas, incluindo estrangeiras que desejem prover serviços dentro da UE”243, dentre outras razões244. Esses objetivos,

240 SCOTT, 2014, p. 97. 241 A autora discorre ainda sobre os fins que motivam esse tipo de regulamentação especificamente parte da União Europeia, dentre os quais particularmente a tentativa de executar padrões internacionais (international standards) e regular mudanças comportamentais ou jurídicas para uma “melhor performance”: “More subtle incentives may also be put in place by EU law in a bid to promote broader regulatory change. For example, countrylevel, as opposed to transaction-level compliance, may be rewarded with one-stop-shop access to the EU’s internal market, thus obviating the need to seek permission twenty-seven times from the relevant authorities of individual Member States” (SCOTT, 2014, pp. 110 e ss.). 242 Do original: “The EU engages in the practice of territorial extension to prompt or provoke different types of legal or behavioral change.Most obviously, territorial extension is used by the EU to incentivize a high level of performance on the part of third country actors, with their performance being judged by reference to an individual transaction or by reference to a group of transactions, aggregated at the level of a third country or firm” (SCOTT, 2014, p. 106-107). 243 Do original: “The EU also deploys territorial extension to shape the organization, operation and governance of firms, including foreign firms wishing to provide services within the EU” (SCOTT, 2014, p. 106). 134

contudo, não configuram um exercício extrajurisdicional da competência prescritiva da União Europeia. Todas as motivações do que Scott nomeia “extensão territorial”, de fato, podem não ser consideradas uma “obrigação” no sentido mais estrito do termo. Contudo, a abordagem de Scott pode ser questionada ao se considerar a tentativa de influenciar condutas ocorridas fora do território do Estado regulador como ato extrajurisdicional. Howse e Langille seguem uma linha semelhante quando comentam o caso EC – Seal products e mencionam que a regulação respeita o princípio da territorialidade ainda que a intervenção regulatória seja impulsionada por eventos fora da União Europeia245. Ainda, Howse e Regan também vão na mesma toada em conhecido artigo sobre PPMs; os autores apresentam, por outro lado, um ponto de vista mais realista. Os autores entendem que, no caso de PPMs, não se fala em regulação de condutas que ocorrem fora do Estado regulador:

De fato, se um determinado produto pode ser importado depende do que previamente aconteceu fora de seu território. Contudo, nada do que aconteça fora da fronteira atrai, por si só, qualquer sanção criminal ou civil. Produtores estrangeiros podem utilizar qualquer processo produtivo que desejaram, e utilizá-lo com impunidade. A única coisa que eles não podem fazer é trazer produtos concebidos com diversos métodos para dentro do país regulador.246

244 Cf. SCOTT, 2014, pp. 106 e ss.. 245 Cf. tópico anterior. 246 Do original: “To be sure, whether a particular product may be imported depends upon what has previously happened to it outside the border. But 135

Lorand Bartels, por sua vez, critica a opinião defendida por Howse e Regan de que a mera influência mercadológica de uma regulação comercial no método produtivo estrangeiro não pode ser considerada exercício extrajurisdicional de jurisdição prescritiva do Estado, particularmente por “erroneamente assumir que um exercício de jurisdição legislativa seja apenas problemática quando executada por meio de sanção”247. Para o autor, o fator a ser observado é se a norma em questão tem um “efeito prático inadmissível em pessoas no exterior”248. A ideia de efeito prático, evidentemente, é bastante

nothing that has happened outside the border attracts, by itself, any criminal or civil sanction. Foreign producers may use whatever processes they want, and use them with impunity. The only thing they cannot do is bring products produced with certain processes into the country” (HOWSE; REGAN, 2000, p. 274). 247 Do original: “Specifically, it wrongly assumes that an exercise of legislative jurisdiction is only problematic when it is enforced by means of sanctions, it takes an unduly narrow view of legislative jurisdiction, and it ignores the practice of panels and the Appellate Body. These issues will now be addressed in turn” (BARTELS, 2002, p. 377). 248 Do original: “But, to stress the point, the existence or otherwise of enforcement measures is not the critical question; what is relevant is whether the legislation has an impermissible practical effect on persons abroad” (BARTELS, 2002, p. 378). O autor desenvolve sua crítica no seguinte sentido: “In other words, it is the practical effect of extraterritorial legislation on private persons that renders it potentially excessive. As in this example, this illegitimate effect usually results from the application, or threat of application, of criminal or civil sanctions in the territory of the regulating State. It may however also result from the application of non-judicial enforcement measures, such as the “denial of the right to engage in export or import transactions … and comparable denial of opportunities normally open to the person against whom enforcement is directed”. But, to stress the point, the existence or otherwise of enforcement measures is not the critical question; what is relevant is whether the legislation has an impermissible practical effect on persons abroad. This is a question properly addressed in the context of analysing whether trade 136

sensível, de modo que a nuance entre uma influência coercitiva e um mero efeito factual pode não ser tão evidente na prática. Em termos de comércio internacional, parece lógico que quaisquer medidas comerciais irão refletir em território estrangeiro, invariavelmente249. Em sentido análogo, Mullen, ao comentar a decisão da CJUE no caso da aviação, afirma que o fato de que o ETS não diretamente regular a forma como cada empresa aérea opera não retira as suas implicações de longo alcance dentro e fora do território da UE250. Ainda que a sanção se dê apenas no território da União Europeia, o sistema impõe obrigações e multas com relação a atividades que ocorrem fora desse território. Bartels escreve particularmente no contexto da discussão sobre a aplicação da extraterritorialidade ao Artigo XX do GATT251. Segundo o autor, a maior parte do debate envolvendo as Exceções

measures constitute an exercise of extraterritorial legislative jurisdiction.” (BARTELS, 2002, pp. 378-379, notas de rodapé suprimidas). 249 Sobre isso, Bartels escreve: “As far as this question is concerned, we need to recall the conventional definition of legislative jurisdiction as a State’s power to “make its law applicable to the activities, relations, or status of persons, or the interests of persons in things”. In determining when the exercise of jurisdiction is properly to be considered extraterritorial, it is obvious that a line needs to be drawn somewhere. It would empty this concept of all meaning to read it broadly in a world in which, practically all domestic legislation — and particularly economic legislation—will have some impact on “activities, persons or things” located abroad. The question, then, is where to draw the line, and then on which side of this line trade measures are properly to be situated” (BARTELS, 2002, p. 379, notas de rodapé suprimidas). 250 MULLEN, 2013, p. 792. Em síntese, a autora defende a necessidade de ação multilateral para devidamente lidar com a questão, ao invés da imposição unilateral de uma metodologia de contagem de emissões carbônicas, por mais louvável que a iniciativa seja. 251 Cf. BARTELS, 2002. 137

Gerais do GATT diz respeito à ideia de “limitação jurisdicional” desenvolvida pelo OAp no caso US – Shrimp, o que

normalmente significa perguntar-se se o Artigo XX é aplicável apenas a medidas protetivas de bens localizados dentro do território do importador, ou se também seria extensível a medidas protetivas de coisas localizadas no território de outros membros, ou mesmo fora da jurisdição territorial de qualquer Membro.252 No contexto do Artigo XX, Bartels chama atenção para o método interpretativo indicado pelo Artigo 31.3(c) da CVDT, o qual, como já mencionado253, propõe a interpretação de tratados com base em uma leitura sistêmica das normas de direito internacional aplicáveis. Nesse estudo, contudo, o autor ressalta que uma determinada obrigação de um membro pode ser levada em consideração, mas isso não implica necessariamente o direito de um membro de executar essa obrigação na forma de medidas comerciais254. Como exemplo, o autor cita uma obrigação erga omnes de proteger um global common255, mas tal obrigação não permite a imposição de contramedidas ou demanda de reparação de um dano causado a esse bem256. Assim, Bartels sugere que, ao invés de fazer uso do Artigo 31.3(c) com base em tratados de direito “material” (tais como Acordos Multilaterais Ambientais – MEAS – ou tratados de direitos humanos), seja feito uso das normas de costume internacional sobre o exercício de jurisdição legislativa, i.e.,

252 Do original: “This has usually meant asking whether Article XX applies only to measures protecting things located within the territory of the importer, or whether it also extends to measures protecting things located within the territory of other Members, or, indeed, outside of the territorial jurisdiction of any Member” (BARTELS, 2002, p. 358). 253 Cf. Seção 3.1 deste Capítulo. 254 BARTELS, 2002, p. 361. 255 Cf. Capítulo 4. 256 BARTELS, 2002, p. 362. 138

os princípios apresentados no Capítulo 2. Assim, o que Bartels sugere é a utilização de um “legítimo interesse estatal, determinado conforme as normas de direito público internacional, para justificar, ou tornar razoável, que um Estado exerça jurisdição legislativa”257. Bartels defende essa lógica no contexto dos direitos humanos, respaldado, dentre outros argumentos jurídicos, pelas disposições da Carta da ONU – algumas das quais, cabe ressaltar, são reconhecidas como costume internacional. A aplicação de sua metodologia – i.e., possibilidade de legislação extrajurisdicional com base em um “legítimo interesse estatal” – seria possível por meio da existência de MEAs que sejam ao menos comuns aos países envolvidos em um eventual litígio poderá auxiliar na determinação da legitimidade (ou de sua ausência) de uma medida com efeitos extraterritoriais – retornando-se, assim, ao conceito de nexo suficiente. Por fim, cabe uma breve referência a uma observação feita por Young, e que se coliga com o princípio da não intervenção a ser discutido no tópico subsequente. É verdade que parte da motivação inerente a medidas comerciais ambientais com efeitos extraterritoriais é estimular os países afetos a adequar seus métodos produtivos e suas políticas ambientais a padrões “superiores”258. No entanto, a autora defende que, independentemente da questão da extrajurisdicionalidade dessas medidas, um dos efeitos práticos é que esses países reguladores – que, normalmente, são países desenvolvidos e que, conforme a própria lógica do princípio das Responsabilidades Comuns Mas

257 Do original: “With these considerations in mind, we may propose a reformulation of Mann’s question as follows: does there exist a legitimate state interest, determined in accordance with the rules of public international law, to justify, or make it reasonable for, a State to exercise legislative jurisdiction?” (BARTELS, 2002, p. 374). 258 Relembra-se aqui as motivações por trás da União Europeia no caso EC – Aviation enumeradas por Mullen (cf. Seção 3.3 desta Dissertação). 139

Diferenciadas259, deveriam arcar com uma fração maior da responsabilidade por mudanças climáticas e outras questões ambientais – acabam por deslocar o ônus da proteção ambiental para países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos260. Em suas palavras,

(...) ainda que os efeitos do aquecimento global sejam sentidos em todo o globo, os históricos, e atualmente principais, contribuintes provêm de um número limitado de países. Isso coloca em evidência o potencial de que medidas comerciais podem ser tomadas unilateralmente pelos próprios Estados que estão historicamente associados com as causas das mudanças climáticas (os países ocidentais, industrializados e desenvolvidos), com efeitos comerciais adversos para países em desenvolvimento.261

259 Esse princípio advém do reconhecimento do fato de que os Estados contribuem de forma diferente para o impacto ambiental global. Isso, contudo, não isenta a ideia de responsabilidade comum da sociedade internacional. Por um lado, reconhece-se a responsabilidade comum dos recursos naturais, seja no âmbito bilateral, local ou até mesmo global. Por outro lado, reconhece-se que outros fatores devem ser sopesados na consideração dessa responsabilidade, tais como a contribuição histórica para a degradação ambiental, bem como a possibilidade econômica e as necessidades de desenvolvimento de cada país de tomar parte nas medidas protetivas ao meio ambiente. Tal diretiva é expressa no Princípio 7 da Declaração do Rio: “Os Estados irão cooperar, em espírito de parceria global, para a conservação, proteção e restauração da saúde e da integridade do ecossistema terrestre. Considerando as diversas contribuições para a degradação do meio ambiente global, os Estados têm responsabilidades comuns, porém diferenciadas. Os países desenvolvidos reconhecem a responsabilidade que lhes cabe na busca internacional do desenvolvimento sustentável, tendo em vista as pressões exercidas por suas sociedades sobre o meio ambiente global e as tecnologias e recursos financeiros que controlam” (ONU, 1992, p. 2). Sobre o tema, cf. SANDS et al., 2012, pp. 233 e ss.. 260 YOUNG, 2017, p. 14. 261 Do original: “(...) while the effects of global warming are manifested worldwide, the historic and current major contributors come from a more limited number of countries. This places into sharp relief the potential that trade measures may be unilaterally adopted by the very states that are 140

Evidentemente, essa questão não se restringe ao âmbito de medidas comerciais ambientais, mas a toda a lógica normativa internacional. Esse problema reforça a necessidade de ação multilateral, em detrimento de medidas unilaterais, ainda que conforme padrões internacionais. Não se discute o fato de que são muitas vezes os países desenvolvidos que se encontram na vanguarda da discussão ambiental. A título exemplificativo, no próprio contexto do GATT, foram os países componentes do EFTA (European Free Trade Agreement) que propuseram a reativação do adormecido EMIT (Group on Environmental Measures and International Trade), em 1990262. O EMIT passou então a servir como fórum de discussão para questões ambientais relativas ao comércio internacional263, e assim permaneceu

historically associated with the causes of climate change (the western, industrialized, developed states), with adverse trade effects for developing countries. Even more ethically fraught is the potential that adverse effects will be felt disproportionately by indigenous peoples and other marginalized communities within states” (YOUNG, 2017, p. 17). 262 Conforme o documento datado de 03.12.1990: “(...) DECLARE that priority attention should be devoted to interlinkages between trade policy and environmental policy, and for that purpose requires the CONTRACTING PARTIES to: (a) undertake a study on the relationships between environmental policies and the rules of the multilateral trading system; (b) consider the implications of preparatory work for the 1992 United Nations Conference on Environment and Development, and the possibility of submitting a GATT contribution to that Conference; (c) convene in 1991 the GATT Working Group on Environmental Measures and International Trade under an updated mandate to be decided by the Council of the GATT, in order to provide Contracting Parties with a forum for these issues” (GATT, MTN.TNC/W/47, 1990, pp. 1-2). 263 OMC, 2004, p. 13. Ressalta-se, conforme o presidente do EMIT pronunciou em relatório datado de 1994: “The Group was not established as a negotiating forum. It has been a widely shared view that it would be premature to adopt a 141

até a instituição da Organização Mundial do Comércio, em 1994, quando transfigurou-se no atual Comitê de Comércio e Meio Ambiente Ambiente (Committee on Trade and Environment – CTE). De igual maneira, não se discute a utilidade de medidas comerciais impostas nos termos aqui estudados (ainda que sua legitimidade, adotando-se um third world law approach, seja discutível). Esse esforço é inegavelmente louvável. Contudo, como será ressaltado no capítulo a seguir, deve-se prestigiar ações multilaterais e intercâmbio e incentivo entre esses grupos de Estados, em um trabalho “horizontal”, em detrimento de medidas com efeito “vertical”. Essas considerações, contudo, não possuem natureza jurídica e, não obstante a relevância do ponto de vista levantado por Young, o enfoque aqui conferido (que busca restringir-se ao âmbito jurídico) não permite espaço para a discussão dessa problemática. Assim, da leitura desses autores associada ao estudo dos três casos relatados no tópico anterior, pode-se concluir que uma medida pode ter implicações extraterritoriais em dois níveis. O primeiro, aparentemente mais defensável juridicamente por meio da ideia do “legítimo interesse” de um Estado, é que tal medida pode estar voltada à proteção de um bem ambiental localizado fora do território do Estado regulador; o segundo é a regulação, direta ou indireta, de uma atividade realizada fora do território do Estado regulador.

prescriptive approach until the dimensions of any problems that might exist have been more clearly identified, particularly with respect to the significance of the trade effects that are involved. The Group has therefore viewed its role as one of examining and analysing the issues covered by its agenda” (GATT, L/7402, 1994, p. 2). 142

Particularmente no primeiro nível, a ideia do nexo suficiente permanece central, e o debate no contexto da OMC essencialmente gira em torno da averiguação de uma eventual limitação territorial inerente às alíneas do Artigo XX. O segundo nível, como mencionado, é mais controverso. Enquanto alguns autores defendem que a mera influência de medidas comerciais, sem o elemento vinculante, sobre atividades realizadas em outros países não configura extraterritorialidade (notadamente Howse e Regan e Scott), outros autores discordam dessa perspectiva (tais como Mullen e Bartels). A solução para esse dilema parece ser a razoabilidade e, de fato, no caso US – Shrimp, foi a ausência de “razoabilidade” na sua aplicação (ou, em termos tecnicamente mais precisos, ação multilateral) que condenou as medidas estadunidenses ao status de “injustificadamente discriminatórias”264. Conforme as palavras do OAp, o fato de os Estados Unidos estarem “mais preocupados em efetivamente influenciar os membros da OMC a adotarem essencialmente o mesmo regime regulatório” que o seu foi o ponto nevrálgico do problema. Ademais, pode-se inferir que essa intenção aproximaria a medida de efeitos extrajurisdicionais não compatíveis com as normas e princípios de direito internacional sobre territorialidade, ainda que tal não tenha sido expressamente dito pelo OAp. A priori, efetivamente, há um nexo suficiente para a atividade regulatória em todos os três litígios. Em realidade, a mitigação dos

264 Cf. WT/DS58/AB/R, p. 72, para. 176. 143

efeitos das mudanças climáticas, ainda que por fatos ocorridos fora de seu território, parece ser a motivação que concerne, com maior evidência, os interesses globais. Isso se dá, possivelmente, pelo fato de existir um quadro normativo de reconhecimento global sobre a necessidade de lidar com mudanças climáticas e emissões de carbono. Não obstante, a solução mais adequada para os três litígios, contudo, conforme defendido pelo OAp no caso US – Shrimp e por diversos autores no caso da aviação, é a negociação multilateral dos bens ambientais em questão. No caso da aviação, o mais adequado seria um acordo multilateral, e não apenas imposto pela União Europeia, que regulamentasse o mercado de carbono em escala global. Evidentemente, reconhece-se que temas técnicos e diretamente relacionados ao nível de desenvolvimento de um país com relação ao estabelecimento de padrões tal como é o caso da regulação de carbono a nível internacional configura uma dificuldade crucial para a conclusão de tais tratados. De todo modo, ainda que a Diretiva preveja um regime diferenciado para países que tenham um sistema próprio de redução de impacto da aviação nas alterações climáticas265, o regime de concessão de licenças imposto pela UE é unilateral no sentido de implementar um mecanismo previsto pelo seu legislador interno, e não acordado internacionalmente. Essas constatações levam à consideração de que a conclusão de MEAs é de extrema relevância, também em dois níveis: primeiramente, para o reconhecimento de um determinado bem jurídico

265 Cf. Artigo 25º da Diretiva 2003/87 e Artigo 25º-A da Diretiva 2008/101. 144

como sendo suficientemente conexo aos interesses de um Estado regulador (ou, mais do que isso, aos interesses da comunidade internacional). O reconhecimento de um bem jurídico como bem comum global, contudo, nem sempre é tão evidente, de modo que esse conceito merece um estudo mais detalhado, a ser realizado no próximo capítulo. Em segundo lugar, a criação de MEAs para o tratamento de questões ambientais é fundamental para o reconhecimento de que uma medida não é unilateral. Por tal motivo, o próximo capítulo irá desenvolver um tópico específico com relação à relevância de MEAs para o direito da OMC, e, mais especificamente, para a questão de medidas com possíveis efeitos extraterritoriais dentro desse âmbito jurídico. Esses desdobramentos serão analisados no próximo capítulo enquanto inseridos no contexto das duas facetas do caráter extraterritorial que medidas comerciais ambientais podem assumir: a proteção de um bem localizado fora do território do Estado regulador e/ou a interferência, direta ou indireta, em atividades que se desenvolvem fora desse mesmo território. 145

4 NEXO SUFICIENTE E INTERFERÊNCIA REGULATÓRIA: AVALIANDO OS DOIS VIESES DA EXTRATERRITORIALIDADE

As considerações delineadas a partir da decisão do OAp em US-Shrimp, associadas ao exame das circunstâncias fáticas que envolvem os três casos-paradigma permitiram ressaltar duas facetas de uma eventual extraterritorialidade de medidas comerciais ambientais: a primeira, relativa ao objetivo da medida, caso o bem protegido esteja fora do território do Estado regulador, e a segunda, relativa ao efeito comercial causado pela medida, que pode impactar atividades produtivas ou serviços prestados também fora do território do Estado regulador. Assim sendo, propõem-se, neste capítulo, duas etapas respectivas a esses dois vieses para a determinação da adequação da medida comercial com o regime da OMC. A ideia defendida aqui é a de que, para uma verificação da compatibilidade da medida com o regime da OMC, seguindo-se os parâmetros estabelecidos pelo caso US – Shrimp, deve haver um “nexo suficiente” entre o bem tutelado e o Estado regulador. A Defende-se a possibilidade de imposição de medidas comerciais com o fim de proteção de bens localizados fora do território do Estado regulador – em outras palavras, o nexo suficiente pode estar presente ainda que o bem ambiental específico protegido pela medida não se encontre na jurisdição territorial desse Estado. Assim, o primeiro viés relaciona-se diretamente com a existência desse nexo suficiente. A averiguação desse nexo suficiente, contudo, não é sempre evidente, mesmo por se tratar de um conceito cuja absoluta determinação não é possível, e talvez sequer desejável – a 146

margem para interpretação tem também sua importância prática. Portanto, no contexto do debate aqui analisado, parte-se de um esclarecimento semântico do termo “nexo” para se propor dois tópicos que podem se relacionar diretamente com a verificação da existência de tal liame: primeiramente, os acordos multilaterais ambientais (MEAs), e a forma com que tais acordos podem auxiliar nessa determinação; em segundo lugar, a possibilidade de proteção do global commons e a sua relação com as obrigações erga omnes no direito internacional. O segundo viés da extraterritorialidade das medidas comerciais voltadas ao meio ambiente será analisado por meio do critério da “possibilidade regulatória”. A abordagem proposta para a leitura desse aspecto partirá de considerações doutrinárias, e a retomada do direito internacional geral também se faz necessária.

4.1 NEXO SUFICIENTE

O primeiro elemento a ser examinado e aprofundado é o próprio conceito de nexo suficiente introduzido pelo OAp. Em seu julgado, o órgão não entrou em maiores especificações sobre o que seria a ideia de nexo suficiente. É verdade que esse conceito não poderia ser delimitado de tal maneira a estreitá-lo a determinados casos específicos. Alguns conceitos jurídicos devem ser deixados a certa margem de discricionariedade, como é o caso dos chamados conceitos jurídicos indeterminados. Contudo, deve-se buscar o máximo possível de determinação desses conceitos, sob pena de maior incerteza jurídica. Assim, visa-se a um equilíbrio ótimo entre a definição e a margem de discricionariedade de conceitos jurídicos amplamente 147

entendidos como abertos, ou vagos266. A aplicação prática dessas noções é melhor delimitada por meio da jurisprudência que, portanto, deve ser consistente em um sentido coerente. Portanto, a ausência de definição do termo nexo suficiente conforme o caso US – Shrimp denota, por si só, a talvez intencional vagueza do OAp ao mencioná-lo. Não obstante, nas linhas a seguir, tentar-se-á estabelecer alguns parâmetros para a interpretação desse conceito para que, em seguida, possa-se detalhar os dois critérios sugeridos para a averiguação desse nexo suficiente na casuística relativa a medidas comerciais ambientais com efeito extraterritorial.

4.1.1 O conceito de nexo suficiente Uma conceituação de nexo suficiente encontra elucidação na doutrina clássica – alguns autores tratam do tema quando se debruçam em trabalhos específicos sobre a jurisdição extraterritorial. Dentre estes, destaca-se Frederick A. Mann, que estudou o tópico com particular detalhamento em dois trabalhos, ambos no contexto do curso da Academia de Direito Internacional da Haia (Recueil des Cours)267. Mann, ao buscar por um princípio geral que defina a extensão e os limites da jurisdição de um Estado, revolve-se à ideia de “conexão suficiente” entre os fatos envolvidos e o sistema jurídico que se propõe a regulá-los. O autor, contudo, escreveu que “nem todo contato próximo

266 Cf. Peeters (2013). 267 Mann (1964) e Mann (1984). 148

será juridicamente aceitável” – em outras palavras, não é o simples fato de que existe uma conexão relevante entre o fato e o interesse do Estado que irá legitimar sua jurisdição268. Sua conclusão foi a de que

um Estado tem jurisdição (legislativa) se seu contato com um cenário fático é tão próximo, tão substancial, tão direto, tão significativo, que a legislação em relação a ele está em harmonia com o direito internacional e seus vários aspectos (incluindo a prática dos Estados, os princípios da não interferência e reciprocidade e as demandas da interdependência). Um interesse meramente político, econômico, comercial ou social não constitui, de per se, uma conexão suficiente. Se outro Estado possui um contato igualmente próximo, ou mais próximo, não é necessariamente uma questão irrelevante, mas não pode ser decisiva quando a probabilidade da jurisdição concorrente for concedida.269 Essa explicação recebeu o nome de conexão significativa270. Mann, de fato, foi o primeiro a propor que tal conceito fosse adotado de maneira normativa271. Da leitura desse trecho, pode-se inferir que, para ele, a conexão a ser verificada entre o objeto protegido / a atividade

268 MANN, 1964, p. 47. 269 Do original: “The conclusion, then, is that a State has (legislative) jurisdiction, if its contact with a given set of facts is so close, so substantial, so direct, so weighty, that legislation in respect of them is in harmony with international law and its various aspects (including the practice of States, the principles of noninterference and reciprocity and the demands of inter- dependence). A merely political, economic, commercial or social interest does not in itself constitute a sufficient connection. Whether another State has an equally close or a closer, or perhaps the closest, contact, is not necessarily an irrelevant question, but cannot be decisive where the probability of concurrent jurisdiction is conceded” (MANN, 1964, p. 49, grifo acrescido). 270 Essa alcunha foi dada às formulações por outro autor alemão Meessen. Cf. MANN, 1984, p. 28 ; BARTELS, 2002, p. 370. 271 BARTELS, 2002, p. 371. 149

desempenhada e a regulação estatal deve ser significativa no sentido não somente factual, mas também jurídico272. A arguição de que o interesse deve ser justificado de maneira que se mostra compatível com o direito internacional é clara nesse sentido. Cabe relembrar, ainda, um dos princípios gerais sobre a jurisdição prescritiva sobre atos extraterritoriais enumerados por Crawford273: “deve haver uma conexão real e não meramente plausível entre o objeto e a fonte da jurisdição”274. Essa formulação, apesar de ter sido concebida pelo autor particularmente no contexto da jurisdição criminal275, assemelha-se à ideia geral de um nexo suficiente – no caso, real e não meramente plausível – entre o objeto da norma e o Estado regulador. Mann afirma que, na verificação da conexão jurídica entre o Estado e o objeto, deve haver ainda um elemento de razoabilidade276. Esse elemento de razoabilidade, por sua vez, não é mais evidente do que a própria noção de nexo suficiente, e, segundo o autor, deve ser sopesado conforme critérios específicos a cada ramo do direito277.

272 Cf. BARTELS, 2002, p. 371. 273 Cf. Capítulo 2.1.1. 274 Do original: “There should be a real and not colourable connection between the subject-matter and the source of the jurisdiction (leaving aside cases of universal jurisdiction)” (CRAWFORD, 2012, p. 487). 275 Cf. CRAWFORD, 2012, p. 487, nota 224. 276 “In each case the overriding question is: does there exist a sufficiently close legal connection to justify, or make it reasonable for, a State to exercise legislative jurisdiction?” (MANN, 1984, p. 29). 277 MANN, 1984, p. 29. 150

Assim, considera-se pertinente o entendimento de Mann no sentido de que a conexão entre Estado e objeto não pode ser baseada em um mero interesse, mas deve ser jurídica – podendo ser um interesse jurídico. O exercício a ser feito, então, é tentar identificar quais possíveis elementos podem atestar a juridicidade dessa relação. No âmbito do direito internacional, essa ligação é mais evidentemente respaldada por meio de acordos multilaterais. Confiar a existência de um interesse jurídico legítimo em convenções multilaterais é a saída mais adequada para a verificação do nexo suficiente entre o Estado regulador e o bem protegido, já que se presume a existência de um acordo internacional. Assim, e.g., a proteção de tartarugas marinhas de determinada espécie pode ser atestada pela conclusão da CITES; a proteção da camada de ozônio poder ser atestada pelo Protocolo de Montreal, inter alia. Em algumas situações, no entanto, a aplicação de uma convenção internacional ao caso não é tão evidente. É o caso, por exemplo, de medidas que visem à proteção de outros animais migratórios ou recursos naturais, presentes inclusive em alto mar, mas que não possuem um acordo internacional específico que os tutele. Nesse contexto, a solução sugerida é indagar-se se o bem em questão atinge o status do que se chama global common. O desdobramento dessa verificação é que, havendo um nexo que se julgue juridicamente relevante ou suficiente entre Estado e objeto, a atividade ocorrida fora do território, a princípio, poderá ser impactada por medidas comerciais. Evidentemente, esse impacto não pode infringir o princípio da não intervenção de maneira contundente, e um eventual efeito extraterritorial deve ser lidado de maneira razoável, e 151

aí nasce a segunda dificuldade explorada por este capítulo, desenvolvida no tópico 4.2. Antes, contudo, cabe detalhar como Acordos Multilaterais Ambientais e o conceito dos global commons podem ajudar na verificação do critério do nexo suficiente.

4.1.2 Unilateralismo x multilateralismo: MEAs como indicador de “nexo suficiente” Acordos Multilaterais Ambientais (MEAs, do inglês Multilateral Environmental Agreements) são convenções amplamente reconhecidas como o meio mais efetivo de regulamentar a proteção ambiental278. Seus textos delineiam objetivos e obrigações que por vezes se relacionam com as normas de livre mercado, ao eventualmente estabelecer obrigações comerciais no intuito de promover a proteção ambiental, inclusive criando alguns conflitos entre o sistema multilateral de comércio e o direito internacional ambiental. Exemplos de acordos ambientais potencialmente conflitantes com o direito da OMC são, além da CITES já citada no contexto do caso US – Shrimp, o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio (1987)279 e a Convenção de Basiléia para o Controle dos Movimentos

278 Cf. SAMPSON, 2005, p. 129; KISS E SHELTON, 2007, p. 78. 279 “O documento assinado pelos Países Parte impôs obrigações específicas, em especial a progressiva redução da produção e consumo das Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio (SDOs) até sua total eliminação. Atualmente, o Protocolo de Montreal é o único acordo ambiental multilateral cuja adoção é universal: 197 estados assumiram o compromisso de proteger a camada de 152

Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e sua Disposição (1989)280,281 os quais diretamente impõem obrigações de banimento da importação de certos produtos, inclusive de países que não são signatários282. MEAs são fontes de direito internacional que podem ou não possuir força vinculante. Não obstante a conclusão de acordos internacionais que provejam disposições de proteção ambiental serve como indicador de que uma determinada matéria é efetivamente de interesse de um Estado, um grupo de Estados ou mesmo da comunidade internacional. Esse tipo de acordo internacional, portanto, mitiga a imposição de medidas unilaterais ambientais, estas entendidas como ações (no caso presente, com fins ambientais) que partem da iniciativa de um Estado sem a negociação perante outros Estados interessados.

ozônio” (Fonte: http://www.mma.gov.br/clima/protecao-da-camada-de- ozonio/convencao-de-viena-e-protocolo-de-montreal. Acesso em 18.09.2017). 280 “A Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito, foi concluída em Basileia, Suíça, em 22 de março de 1989. Ao aderir à convenção, o governo brasileiro adotou um instrumento que considerava positivo, uma vez que estabelece mecanismos internacionais de controle desses movimentos, baseados no princípio do consentimento prévio e explícito para a importação, exportação e o trânsito de resíduos perigosos. A convenção procura coibir o tráfico ilegal e prevê a intensificação da cooperação internacional para a gestão ambientalmente adequada desses resíduos” (Fonte: http://www.mma.gov.br/cidades-sustentaveis/residuos-perigosos/convencao-de- basileia. Acesso em 18.09.2017). 281 O Secretariado da OMC é responsável por organizar e periodicamente revisar uma relação de MEAs potencialmente conflitantes com obrigações do sistema multilateral de comércio – cf. WTO Matrix on Trade-Related Measures Pursuant to Selected Multilateral Environmental Agreements (MEAs). Disponível em: . Acesso em 02.03.2017. Sobre o assunto, cf. ainda MARCEAU, 2001. 282 MARCEAU, 2001, p. 1096. 153

Conforme o Princípio 12 da Declaração do Rio predispõe, “[d]evem ser evitadas ações unilaterais283 para o tratamento dos desafios internacionais fora da jurisdição do país importador”284. Cabe ressaltar ainda que esse mesmo princípio determina que “[a]s medidas internacionais relativas a problemas ambientais transfronteiriços ou globais deve, na medida do possível, basear-se no consenso internacional”285. Curiosamente, segundo Young, a formulação do Princípio 12 da Declaração do Rio teria sido influenciada pela disputa US – Tuna na era GATT286, a qual, como mencionado287, representa um marco na discussão acerca da extraterritorialidade. Especificamente no âmbito da OMC, também a ação multilateral é privilegiada, em detrimento de medidas unilaterais. No caso US – Shrimp, um dos motivos pelos quais a medida estadunidense foi julgada incompatível com os requerimentos do chapeau do Artigo XX pelo Órgão de Apelação foi a ausência de negociação séria por parte dos Estados Unidos com os demais países interessados288. No mesmo

283 Sobre unilateralismo e territorialidade, cf. HOWSE; REGAN, 2001. 284 ONU, 1992, p. 4, referência acrescida. 285 ONU, 1992, p. 4. 286 YOUNG, 2017, p. 8. 287 Cf. Seção 3.2. 288 Assim concluiu o Órgão de Apelação no caso em comento: “Another aspect of the application of Section 609 that bears heavily in any appraisal of justifiable or unjustifiable discrimination is the failure of the United States to engage the appellees, as well as other Members exporting shrimp to the United States, in serious, across-the-board negotiations with the objective of concluding bilateral or multilateral agreements for the protection and conservation of sea turtles, before enforcing the import prohibition against the shrimp exports of those other Members” (WT/DS381/AB/R, p. 65, para. 166). Cf. ainda parágrafos 171 e ss. do mesmo report. Merece destaque ainda a 154

caso, o OAp considerou a existência de outros cursos de ação ao invés dos “procedimentos unilaterais e não consensuais do embargo sob a Seção 609 [regulação que impôs o embargo]” e que “uma proibição à importação é, ordinariamente, a ‘arma’ mais pesada no arsenal de medidas comerciais de um Membro”289. No contexto das medidas baseadas em métodos de processo e produção ambientais, cuja relevância para o presente estudo será melhor explicada na Seção 4.2.1, Holzer explana que

[a] aceitação de medidas extraterritoriais no regime da OMC depende largamente de seu status enquanto medidas unilaterais ou multilaterais. Medidas baseadas em PPMs [métodos de processo e produção, a serem examinados a seguir] que exercem jurisdição extraterritorial podem ser aplicadas por um país por sua própria iniciativa ou com autorização ou prescrição de um acordo internacional assinado por uma diversidade de outros países.290

seguinte nota de rodapé: “While the United States is a party to CITES, it did not make any attempt to raise the issue of sea turtle mortality due to shrimp trawling in the CITES Standing Committee as a subject requiring concerted action by states. In this context, we note that the United States, for example, has not signed the Convention on the Conservation of Migratory Species of Wild Animals or UNCLOS, and has not ratified the Convention on Biological Diversity” (WT/DS58/AB/R, p. 70, nota 174). 289 Do original: “The Inter-American Convention thus provides convincing demonstration that an alternative course of action was reasonably open to the United States for securing the legitimate policy goal of its measure, a course of action other than the unilateral and non-consensual procedures of the import prohibition under Section 609. It is relevant to observe that an import prohibition is, ordinarily, the heaviest "weapon" in a Member's armoury of trade measures” (WT/DS381/AB/R, p. 70, para. 171). 290 Do original: “acceptability of extraterritorial measures under WTO law largely depends on their status as unilateral or multilateral measures. PPM [process and production methods, which will be addressed in the following 155

O segundo caso, segundo a autora, constitui uma hipótese de medida multilateral, enquanto medidas unilaterais são “menos desejáveis do que medidas multilaterais aplicadas extraterritorialmente, tomadas por consenso e aprovadas por uma organização internacional com participação quase universal”291. Apesar de inserida no contexto específico de regulamentação baseada em PPMs, essa lógica é válida para qualquer medida comercial restritiva com escopo ambiental e que tenha efeitos extraterritoriais. Assim, defende-se a utilização de MEAs como elemento de mitigação de ações unilaterais por parte do Estado regulador e, ao mesmo, como elemento demonstrativo da existência de um nexo suficiente entre o tal país e o bem protegido. Em outras palavras, essas convenções não apenas atestam a legitimidade política do intento da regulação, particularmente quando a medida comercial é tomada com base em suas disposições, mas serve a respaldar juridicamente o nexo suficiente entre o objetivo perquirido e a medida emanada, uma vez que o Estado está comprometido, por meio de instrumentos internacionais, para com a proteção do bem ambiental em questão. A título ilustrativo, suponha-se que, no caso US – Shrimp, os Estados Unidos não fossem parte de nenhuma convenção internacional

topic] measures that exercise extraterritorial jurisdiction can be applied by a country on its own initiative or with authorization or prescription from an international agreement signed by a multitude of countries” (HOLZER, 2014, p. 161). 291 Do original: “less desirable than extraterritorially applied multilateral measures taken by consensus and approved by an international organization with quasi-universal participation” (HOLZER, 2014, p. 161). 156

de proteção às tartarugas marinhas. A imposição de um embargo com base na maneira com a qual os camarões foram capturados para a proteção de tartarugas marinhas fora de sua jurisdição não seria absolutamente descartável a priori por falta de nexo entre o bem tutelado (as tartarugas marinhas) e os Estados Unidos; mas, de fato, estando tais animais fora das águas dentro de sua jurisdição, seria mais difícil justificar um interesse jurídico. Cabe explicar, contudo, que a relação entre MEAs e o direito da OMC não é totalmente clara. Além dos problemas relativos à interação de obrigações ambientais advindas desses acordos e obrigações comerciais provenientes do sistema multilateral de comércio, como mencionado no Capítulo 2292, não está isento de controvérsia o limite segundo o qual o MSC pode tomar em consideração obrigações externas ao direito da OMC, conforme explanado no Capítulo 3293. Alguns autores indicam que, conquanto a jurisdição do MSC possa a priori ser limitada pelos acordos abrangidos, a apreciação de MEAS não pode ser descartada dos contenciosos. Um membro da OMC pode, por exemplo, justificar uma medida restritiva ao comércio como tomada em cumprimento à finalidade de um MEA que tenha concluído. Nesses casos, conforme Marceau afirma, “o MEA ainda constitui uma ‘norma relevante de Direito Internacional’ [nos termos do Artigo 31.3(c) da

292 Cf. Capítulo 2, Seção 2.3.3 293 Cf. Capítulo 3, Seção 3.1.1 157

CVDT], a qual, em alguns casos, um painel será obrigado a levar em consideração”294. Até o momento, o MSC não tratou de nenhuma disputa que envolvesse um conflito de obrigações dispostas por MEAs e Acordos da OMC propriamente ditos295, de modo que alguns autores propõem formas de lidar com esse possível embate. Marceau, por exemplo, sugere a possibilidade de que, no contexto do GATT, a utilização de MEAs sirva como fundamento às exceções do Artigo XX296. A autora sugere, inclusive, que uma medida tomada em observância às disposições de um MEA esteja presumidamente de acordo com os requerimentos do mencionado artigo297. Para evitar eventuais conflitos entre países em razão de uma limitação comercial imposta por um MEA, Sampson298, por sua vez, propõe que os países interessados negociem e

294 No original: “Nonetheless, that MEA may still constitute a "relevant rule of international law" that, in some circumstances, a panel will be obliged to take into account when interpreting and applying the provisions of Article XX for the benefit of a particular WTO Member” (MARCEAU, 2001, p. 1098). 295 CONRAD, 2013, p. 129 296 MARCEAU, 2001, pp. 1096-1097 297 MARCEAU, 2001, p. 1097. Conforme Eckersley escreve, ao abordar o posicionamento de alguns países nas negociações acerca da interação de MEAs com o sistema OMC, a Suíça apresenta proposta análoga. Segundo a autora, para a Suíça, “the WTO should determine questions concerning arbitrary or unjustifiable discrimination and disguised protection, and the relevant MEA should be given “the sole responsibility of determining environmental objectives and for choosing the means, instruments, mechanisms and measures necessary to achieve these objectives” (ECKERSLEY, 2004, p. 44). A limitação dessa leitura, contudo, está no fato de abranger apenas obrigações relativas ao GATT ou outros acordos que tenham disposições escusatórias semelhantes, uma vez que as exceções do Artigo XX não podem derrogar obrigações previstas em outros acordos da OMC. 298 SAMPSON, 2005, p. 129. 158

delimitem amplamente os objetivos dessa regulação, de modo que uma eventual ilegalidade seja lidada a partir de um mecanismo desse próprio acordo, e não deixada à interpretação do MSC/OMC. Evidentemente, o autor considera que, para tanto, é necessário que o MEA seja cuidadosamente redigido. Foge ao objetivo aqui dirimir essas questões – que, por si só, são dignas de uma monografia. O que se busca é fazer uso da incontroversa possibilidade de utilização de MEAs para efeitos interpretativos das disposições dos acordos abrangidos da OMC. Ainda que a possibilidade de se invocar obrigações provenientes de MEAs no âmbito do mecanismo de solução de controvérsias da OMC seja passível de debate, é possível fazer uso de disposições presentes nos referidos acordos para averiguar a aplicabilidade de obrigações do sistema multilateral de comércio, tal como, como sugerido por Marceau, as exceções do Artigo XX ou a existência de “discriminação arbitrária ou injustificada” ou “restrição disfarçada ao comércio internacional”. Nesse sentido, propõe-se aqui, particularmente, a possibilidade de uso de MEAs para a interpretação da existência do nexo suficiente entre o Estado regulador e o bem ambiental objeto da medida comercial. Argumenta-se que fazer uso de MEAs para fins interpretativos configura um recurso juridicamente incontroverso, não apenas como consequência do célebre obter dictum do Órgão de Apelação de que o “GATT não deve ser lido em isolamento clínico” do direito internacional geral, como detalhado na Seção 3.1.1, mas também da jurisprudência do próprio mecanismo de solução de controvérsias da 159

organização299. Com efeito, a prática do MSC/OMC corrobora a importância de MEAs para a verificação da relevância de um tema à prática legislativa de um Estado. No caso US – Shrimp, a medida estadunidense foi considerada discriminatória uma vez que os Estados Unidos se dispuseram a negociar com apenas alguns dos países potencialmente interessados na imposição da política de conservação300. No caso EC – Aviation, o preâmbulo da Diretiva 2008/101 motiva, em seu 8º recital, a sua diretiva ainda no intento de mitigar os efeitos das alterações climáticas por meio da redução de emissões de gases que contribuem ao efeito estufa por meio da aviação, e, para tanto, refere-se explicitamente ao Protocolo de Quioto301. A referência a esse acordo internacional sem dúvida auxilia na legitimação do nexo causal entre a proteção da atmosfera e a União Europeia, ao corroborar que

299 Essa possibilidade é também defendida por Young (2017, p. 17). 300 Cf., inter alia, para. 172 do relatório: “Clearly, the United States negotiated seriously with some, but not with other Members (including the appellees), that export shrimp to the United States. The effect is plainly discriminatory and, in our view, unjustifiable. The unjustifiable nature of this discrimination emerges clearly when we consider the cumulative effects of the failure of the United States to pursue negotiations for establishing consensual means of protection and conservation of the living marine resources here involved, notwithstanding the explicit statutory direction in Section 609 itself to initiate negotiations as soon as possible for the development of bilateral and multilateral agreements. The principal consequence of this failure may be seen in the resulting unilateralism evident in the application of Section 609” (WT/DS58/AB/R, p. 70, para. 171). 301 Lê-se no 8º recital: “O Protocolo de Quioto da CQNUAC, aprovado em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2002/358/CE do Conselho (2), exige que os países desenvolvidos se comprometam a procurar limitar ou reduzir as emissões de gases com efeito de estufa não controlados pelo Protocolo de Montreal provenientes dos transportes aéreos, por intermédio da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI)” (UE, 2009-A, p. 2). 160

esse interesse é uma obrigação assumida pela organização internacional e pela comunidade internacional. É verdade que a interferência sobre a regulação da aviação perante a soberania de outros Estados ainda deveria ser analisada conforme o direito internacional, mas a existência de convenções internacionais é fundamental para demonstrar a existência de uma ação multilateral nesse sentido, e não apenas afeta à União Europeia. Ademais, a utilização de MEAs não se restringe à interpretação de disposições do GATT. Cabe relembrar que o princípio da não discriminação foi inicialmente esboçado nos Artigos I e III do GATT (Cláusulas da Nação-Mais-Favorecida e Tratamento Nacional, respectivamente), mas, no atual sistema da OMC, encontram-se refletidas em quase todos os acordos multilaterais do guarda-chuva da Organização. Assim, por exemplo, no contexto do Acordo Sobre Barreiras Técnicas ao Comércio, MEAs também poderão ser levadas em consideração para a análise de disposições tais como seu Artigo 2.2, que dispõe:

2.2.Os Membros assegurarão que os regulamentos técnicos não sejam elaborados, adotados ou aplicados com a finalidade ou o efeito de criar obstáculos técnicos ao comércio internacional. Para este fim, os regulamentos técnicos não serão mais restritivos ao comércio do que o necessário para realizar um objetivo legítimo tendo em conta os riscos que a não realização criaria. Tais objetivos legítimos são, inter alia, imperativos de segurança nacional, a prevenção de práticas enganosas, a proteção da saúde ou segurança humana, da saúde ou vida animal ou vegetal ou do meio ambiente. Ao avaliar tais riscos, os elementos pertinentes a serem levados em consideração são, inter alia, a informação técnica e científica disponível, a tecnologia de 161

processamento conexa ou os usos finais a que se destinam os produtos.302 Em realidade, tanto o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT) quando o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS) possuem como objetivos, dentre outros, privilegiar ações multilaterais na imposição de medidas regulatórias em seus respectivos âmbitos de aplicação303. Para padronização internacional buscada por esses acordos, em ambos os textos, é previsto que a harmonização internacional de padrões técnicos e fitossanitários deverá se dar a partir de normas, guias e recomendações internacionais, quando existirem304, e as medidas compatíveis com tais normas internacionais “presumir-se-ão como necessárias”305. Também com o fim de

302 MDIC, TBT, Artigo 2.2. 303 Dispõem os preâmbulos dos textos, respectivamente: “Reconhecendo a importante contribuição que as normas internacionais e os sistemas de avaliação de conformidade podem dar a este respeito por meio do aumento da eficiência da produção e por facilitar o curso do comércio internacional” (MDIC, TBT) e “Tomando nota de que as medidas sanitárias e fitossanitárias são frequentemente aplicadas com base em acordos ou protocolos bilaterais; Desejando o estabelecimento de um arcabouço multilateral de regras e disciplinas para orientar a elaboração, adoção e aplicação de medidas sanitárias e fitossanitárias com vistas a reduzir guias e recomendações internacionais” (MDIC, SPS). 304 MDIC, SPS, Artigo 3.1; TBT, Artigo 2.6 305 MDIC, SPS, Artigo 3.2. Ainda, o Artigo 3.3 do SPS dispõe que “[o]s Membros podem introduzir ou manter medidas sanitárias e fitossanitárias que resultem em nível mais elevado de proteção sanitária ou fitossanitária do que se alcançaria com medidas baseadas em normas, guias ou recomendações internacionais competentes, se houver uma justificação científica, ou como conseqüência do nível de proteção sanitária ou fitossanitária que um Membro determine ser apropriado, de acordo com as disposições relevantes dos parágrafos 1 a 8 do Artigo 52. Não obstante o acima descrito, todas as medidas que resultem em nível de proteção sanitária ou fitossanitária diferente daquele 162

harmonizar os padrões entre os países-membros, buscar-se-á estabelecer a equivalência de padrões de países distintos através de acordos bilaterais e multilaterais306. Cabe ressaltar que essas regulamentações são relevantes a medidas comerciais baseadas em métodos de processo e produção ambientais, pois esses acordos autorizam restrições comerciais fundadas em padrões internacionalmente reconhecidos, critérios científicos, dentre outras situações. Dentre essas medidas restritivas, podem envolver a chamada eco-rotulagem307, diferenciando produtos ecologicamente sustentáveis por meio de rótulos informativos acerca de características e impactos ambientais e sanitários dos produtos. Pode-se arguir que esse tipo de medida tem efeitos extraterritoriais por condicionar a produção de bens conforme padrões impostos pelo país regulador. O objetivo desses acordos envolve mitigar a controvérsia sob esse ponto de vista, de modo que se busca, tanto quanto possível, a uma uniformização de padrões técnicos, sanitários e fitossanitários. É verdade que o conceito de regulamento técnico, normas, padrões internacionais, etc., conforme determinado pelo TBT e o SPS, não é muito abrangente308. Contudo, as disposições e os preâmbulos

que seria alcançado pela utilização de medidas baseadas em normas, guias ou recomendações internacionais não serão incompatíveis com qualquer outra disposição do presente Acordo” (MDIC, SPS). 306 MDIC, SPS Art. 4.1 e 4.2. 307 Do termo em inglês eco-labelling, Sobre o tema, cf. BERNASCONI- OSTERWALDER et al., 2006, p. 203; TEISL, ROE E HICKS, 2002, p. 339- 340. 308 A título exemplificativo, o Órgão de Apelação no caso US – Tuna (2012, WT/DS381/AB/R) realizou uma extensa análise sobre a classificação de padrões de rotulagem invocados pelos Estados Unidos e México para fins de 163

desses dois acordos ressaltam o escopo da OMC, de modo geral, em privilegiar medidas multilaterais em detrimento de padrões unilaterais. E, de igual maneira, MEAs podem servir a indicar outros elementos contidos nas disposições de ambos acordos, e.g., se uma medida tem por finalidade ou efeito “criar obstáculos técnicos ao comércio internacional” visa a um “objetivo legítimo” nos termos do Artigo 2.2 do TBT. Desta forma, a primeira proposição aqui realizada é que, ao verificar o nexo entre o Estado que emana a medida extraterritorial e o bem tutelado, deve-se buscar a existência de tratados internacionais que legitimem o seu interesse jurídico nesse sentido. Esse procedimento não apenas serve a verificar a boa-fé do Estado para com o direito internacional, ao se dispor a cumprir obrigações (ou determinações de natureza de soft law) internacionais, mas também atesta a sua relação direta com a proteção do bem ambiental em questão, para além de uma mera declaração unilateral nesse sentido. Contudo, há de se ponderar a possibilidade de que, eventualmente, algum bem ambiental não tenha sido objeto de uma ação multilateral positivada pelo direito internacional. Em outras palavras, é possível que um Estado se disponha a regular unilateralmente um bem ambiental, sem que isso necessariamente configure uma violação do direito internacional ou do sistema OMC. Ressalta-se que o Princípio 12

aplicação do TBT, particularmente sobre o conceito de “norma internacional pertinente” conforme o Artigo 2.4 do Acordo (WT/DS381/AB/R, pp 131 e ss.). Sobre o tema, cf. CROWLEY; HOWSE, 2014, p. 338 e ss.; SHAFFER, 2013, p. 6 e ss.. 164

da Declaração do Rio não veda a utilização desse tipo de ação; determina apenas a preferência para ações tomadas multilateralmente. Assim, ainda que o interesse ambiental alegado como objetivo da medida imposta não esteja resguardado por um MEA, é possível haver nexo suficiente entre este e o Estado regulador. A segunda hipótese defendida neste trabalho no âmbito da averiguação do nexo suficiente é a existência de um interesse jurídico global relativo à proteção desse recurso natural: tal é o caso dos global commons.

4.1.3 Obrigações erga omnes, a proteção dos global commons e o critério do nexo suficiente Enquanto a emanação de normas protetivas a recursos e bens ambientais dentro do próprio território do Estado regulador não apresenta, a priori, problemas do ponto de vista do direito internacional, a proteção de bens localizados fora desse território não encontra a mesma clareza. Por isso, no caso US – Shrimp, as partes reclamantes buscaram derruir a possibilidade dos Estados Unidos de emanar medidas cujo objetivo fosse a proteção de espécies que não estivessem completamente sob sua jurisdição. O OAp, ao analisar tais argumentos e confrontá-los com disposições da CITES, concluiu haver um nexo suficiente entre as espécies de tartarugas marinhas afetas à medida e os Estados Unidos. Contudo, alguns bens ambientais não estão especificamente tutelados por convenções internacionais da mesma maneira do que as tartarugas marinhas daquele litígio, de modo que nem sempre a referência a MEAs pode ser realizada para a conclusão acerca da conexão entre o Estado regulador e o bem protegido. 165

O direito de modo geral, assim como o direito internacional, estabelece que a possibilidade de reclamar danos ou atos ilícitos (no caso da OMC, a mera violação a um acordo já prevê possibilidade de reclamação) costuma ser reservada aos sujeitos interessados, ou lesados pelo ato ilícito309. Contudo, bens jurídicos como a camada de ozônio e as mudanças climáticas não apresentam elementos indicativos tão evidentes de quais Estados poderiam figurar como reclamantes de uma disputa internacional (por exemplo, na Corte Internacional de Justiça), já que os danos não são visivelmente atribuíveis a uma determinada nação em particular. Portanto, não obstante a existência de uma obrigação internacional por parte dos Estados no sentido de assegurar-se que as atividades ocorridas dentro de seu território não causem impacto no território de outros Estados310, na ausência de um dano concreto (o que implica também a necessidade de um nexo evidente, o que, em escala global, pode não ser tão simples), o regime tradicional de responsabilização internacional não é facilmente aplicável311.

309 Cf. ONU, 2008-B, p. 117, Artigo 42; BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 232. 310 Nesse sentido reconheceu a Corte Internacional de Justiça na Opinião Consultiva do caso Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons: “The existence of the general obligation of States to ensure that activities within their jurisdiction and control respect the environment of other States or of areas beyond national control is now part of the corpus of international law relating to the environment” (CIJ, 1996-A, pp. 241-242). 311 Cf. Draft articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts (ONU, 2008-B, 2001), particularmente o Artigo 36, que dispõe: “1. The State responsible for an internationally wrongful act is under an obligation to compensate for the damage caused thereby, insofar as such damage is not made 166

Por outro lado, algumas obrigações podem ser devidas à comunidade internacional como um todo. Segundo a Comissão de Direito Internacional, obrigações erga omnes são regras costumeiras cuja observância interessa a toda a comunidade internacional312. Dessas obrigações decorre não apenas a legitimidade ativa perante um tribunal internacional, mas o próprio fato de que todos os Estados da comunidade internacional se veem na condição de interessados na consecução daquela obrigação313. A definição jurídica de alguns recursos naturais e dos bens ambientais confrontada com a noção de obrigações erga omnes é o elemento central do presente tópico. A partir dessa delimitação, é possível determinar com maior clareza a jurisdição à qual um determinado recurso se submete. No contexto de interesse jurídico compartilhado por mais de um Estado com relação à preservação de um bem ambiental, dois conceitos são de pertinente menção para áreas e bens localizados além do território dos Estados: os recursos naturais compartilhados (shared natural resources) e os global commons (também chamados de

good by restitution”. Nos comentários ao projeto de artigos, a própria CDI reconhece: “In cases where compensation has been awarded or agreed following an internationally wrongful act that causes or threatens environmental damage, payments have been directed to reimbursing the injured State for expenses reasonably incurred in preventing or remedying pollution, or to providing compensation for a reduction in the value of polluted property. However, environmental damage will often extend beyond that which can be readily quantified in terms of clean-up costs or property devaluation. Damage to such environmental values (biodiversity, amenity, etc.—sometimes referred to as “nonuse values”) is, as a matter of principle, no less real and compensable than damage to property, though it may be difficult to quantify.” (ONU, 2008-B, p. 101, notas de rodapé suprimidas). 312 ONU, 2008-B, p. 126, Artigo 48.1(b). 313 BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 131. 167

propriedade comum, ou common property314). Global commons são áreas que estão além da jurisdição de qualquer Estado e não podem ter sua propriedade reivindicada por nenhum destes, tais como o mar aberto e a atmosfera315. Os recursos naturais compartilhados, por sua vez, são uma categoria intermediária entre os global commons e os recursos sob a jurisdição de um único país: são compartilhados por mais de um Estado, não estando fora da jurisdição de qualquer nação316. Apesar de relevante menção, a ideia de recursos naturais compartilhados foge ao escopo do presente problema, uma vez que, estando dentro da jurisdição de mais de um Estado, suscita outros tipos de problemáticas que não aquelas de recursos naturais que estejam situados para além do território de um determinado Estado. Desta forma, o enfoque aqui será dado aos chamados global commons ou propriedade comum317.

314 Birnie, Boyle e Redgwell referem-se a esses recursos como propriedade comum (common property) perante o direito internacional, estando abertos para uso legítimo e razoável por todos os Estados (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 195). 315 DUNOFF, 1992, p. 1408; FITZMAURICE, 1996, p. 305. 316 BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 192. 317 Birnie, Boyle e Redgwell ressaltam a diferença entre as noções de propriedade comum (common property) e herança comum (common heritage): “The common-property doctrine is not to be confused with the more recent ‘common heritage’ concept, a specialized regime applied to certain mineral resources, nor with ‘shared natural resources’, where, as indicated above, rights are shared by a limited number of states” (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 195) ; “Although the term ‘common heritage’ is frequently used loosely by environmentalists to refer either to all the living and non-living resources of nature or to the global environment as an ecological entity, for legal purposes the term is currently confined to the narrow meaning attributed to it in two conventions, namely, the 1979 Moon Treaty and the 1982 168

A doutrina da propriedade comum estende-se aos recursos viventes nessas áreas, de modo que, em geral, seres vivos que habitam essas regiões podem ser abarcados como parte dessa jurisdição318; pássaros e outras espécies que migram nesses ambientais também assim são considerados319. Portanto, assim como o acesso a essas áreas é livre por qualquer nação, estando apenas regulamentado em pontos específicos pelo direito internacional, também a exploração dos recursos ali existentes o é, e a proteção a esses recursos não pode ser efetivada sem a cooperação de todos os Estados que deles fazem uso320. Conquanto a exploração dos recursos presentes em áreas de propriedade comum (daqui em diante referidos de maneira genérica como global commons) não possa, em princípio, ser restringida (ainda que seu uso deva ser realizado de maneira razoável321), a regulação do

UNCLOS” (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 197). Dobson e Ryngaert, por sua vez, adicionam a essa classificação ainda a ideia de common concern (“A common concern can be characterized as a type of common interest that takes the form of a ‘problem’, targeting specific ‘processes’ or ‘protective action’. This characteristic distinguishes common concerns from the linked concepts of the ‘common heritage of mankind’ and the ‘global commons’”), e defendem ser este o fundamento de regulamentações protetivas do meio ambiente para além das fronteiras do Estado, também intimamente ligados com obrigações erga omnes – Cf. DOBSON; RYNGAERT, 2017, pp. 301. Escolheu-se, contudo, permanecer com a noção de global common ao invés de global concern pois, como pontuam os autores, “[a]s the common concern is a newly evolving concept, its precise legal consequences are yet to crystallize in legal doctrine” (DOBSON; RYNGAERT, 2017, pp. 302). 318 Note-se, contudo, que boa parte dos recursos marinhos viventes não fazem mais parte da propriedade comum. Cf. caso Iceland Fisheries; BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 195. 319 BIRNIE, BOYLE, REDGWELL, 2009, p. 195. 320 BIRNIE, BOYLE, REDGWELL, 2009, p. 195. 321 Cf. caso Iceland Fisheries ; BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 195. 169

comércio de recursos obtidos nessa região não representa uma limitação a esse acesso. Considerando a extensão dos global commons, tanto em termos territoriais quanto em termos ecológicos, defende-se a ideia de que a obrigação de proteger os global commons seria de natureza erga omnes322. Respalda essa premissa a abordagem da CDI com relação à proteção da atmosfera, que pode ser verificada no relatório de sua 68ª sessão (2016). No preâmbulo dos draft guidelines propostos pela Comissão, reconhece-se que “o transporte a dispersão da poluição e substâncias degradantes ocorre dentro da atmosfera” e que, portanto “a proteção da atmosfera contra a poluição e degradação atmosféricas é uma preocupação urgente da comunidade internacional como um todo”323. Esse documento inclui ainda, em suas guidelines, a obrigação de due diligence para tomar “medidas apropriadas, em concordância

322 Em uma abordagem recente sobre o tópico, Dobson e Ryngaert (2017, p. 300 e ss.) também defenderam a ideia de common concern e sua relação com obrigações erga omnes como fundamento de uma obrigação comum para todos os Estados. No mesmo sentido advogaram Malgosia Fitzmaurize (cf. FITZMAURICE, 1996) e James Crawford enquanto Rapporteur especial da CDI no tópico sobre Responsabilidade dos Estados (cf. CRAWFORD, 2000, p. 99). Cabe ressaltar, contudo, que seus posicionamentos baseavam-se amplamente em antigas redações do projeto de artigos da CDI sobre responsabilidade internacional dos Estados. Não obstante, ainda que o contexto internacional positivo tenha mudado com a retirada dos dispositivos que versavam sobre o tema na íntegra do texto, a rationale de ambos autores ainda é aplicável e esposada pelo presente trabalho. 323 Do original: “Bearing in mind that the transport and dispersion of polluting and degrading substances occur within the atmosphere, Recognizing therefore that the protection of the atmosphere from atmospheric pollution and atmospheric degradation is a pressing concern of the international community as a whole, […]” (ONU, 2016, p. 283). 170

com normas aplicáveis de direito internacional, para a prevenção, redução e controle da poluição atmosférica e degradação atmosférica”324. Evidentemente, a obrigação de “due diligence em se tomar medidas apropriadas” configura uma determinação de natureza ampla325. De todo modo, independentemente da forma como é interpretada, essa disposição corrobora o reconhecimento pela CDI da obrigação de todos os Estados com relação à proteção atmosférica. Esse documento, contudo, não tem natureza vinculante, e não resultou em uma resolução da Assembleia Geral ou outra formulação de natureza mais concreta. Não obstante, reiterando o já mencionado papel formativo da CDI com relação ao direito internacional, tais guidelines e seus preâmbulos servem de suporte à inferência de que a proteção atmosférica é uma preocupação comum e, assim o sendo, uma obrigação

324 Do original: “Guideline 3 Obligation to protect the atmosphere: States have the obligation to protect the atmosphere by exercising due diligence in taking appropriate measures, in accordance with applicable rules of international law, to prevent, reduce or control atmospheric pollution and atmospheric degradation” (ONU, 2016, p. 284). 325 O mesmo documento, porém, especifica que essa guideline envolve a obrigação do Estado em dispensar o maior esforço possível de acordo com suas capacidades de controlar as atividades, inclusive de entidades privadas, e que due diligence envolve um dever de vigilância e prevenção – a falta para com essa obrigação se dá no caso de sua negligência em tomar todas as medidas necessárias: “Due diligence is an obligation to make best possible efforts in accordance with the capabilities of the State controlling the activities. Therefore, even where significant adverse effects materialize, that does not automatically constitute a failure of due diligence. Such failure is limited to the State’s negligence to meet its obligation to take all appropriate measures to prevent, reduce or control human activities where these activities have or are likely to have significant adverse effects. The States’ obligation “to ensure” does not require the achievement of a certain result (obligation of result) but only requires the best available efforts so as not to cause significant adverse effects (obligation of conduct).[...] Due diligence implies a duty of vigilance and prevention. (ONU, 2016, p. 287, notas de rodapé suprimidas). 171

erga omnes326. E, na mesma linha, sendo a atmosfera um global common, não é desarrazoado fazer a mesma inferência com relação aos demais global commons e os recursos neles presentes. Essa assunção traz diversos desdobramentos, tais como a possibilidade de qualquer Estado interessado, sem necessariamente ser uma vítima direta do dano ao global common, reclamar perante uma jurisdição competente. O ponto de interesse aqui, contudo, é relevância de uma obrigação dessa natureza quando se considera o nexo causal entre um Estado que emana uma medida protetiva ao meio ambiente e o interesse tutelado. Se a proteção aos global commons é considerada interesse comum a toda a comunidade internacional, um Estado que emana uma medida comercial protetiva a um global common encontrará nesse conceito o nexo suficiente exigido pelo Órgão de Apelação. Essa situação, contudo, é bastante incipiente em termos regulatórios: até que ponto pode um Estado regular elementos envolvendo esses bens comuns? E como é possível delimitar os recursos que podem estar sujeitos à jurisdição global?327. No mesmo sentido,

326 Cabe ressaltar, porém, que a CDI expressamente deixa de lado a questão de se a obrigação de proteger a atmosfera é uma obrigação erga omnes ou não: “As presently formulated, the draft guideline is without prejudice to whether or not the obligation to protect the atmosphere is an erga omnes obligation in the sense of article 48 of the articles on responsibility of States for internationally wrongful acts, a matter on which there are different views. While there is support for recognizing that the obligations pertaining to the protection of the atmosphere from transboundary atmospheric pollution of global significance and global atmospheric degradation are obligations erga omnes, there is also support for the view that the legal consequences of such a recognition are not yet fully clear in the context of the present topic” (ONU, 2016, pp. 286-287). 327 RANGANATHAN, 2016, p. 693. 172

Sands et al. observam que para “recursos naturais compartilhados tais como o alto mar e a atmosfera, frequentemente será difícil, se não impossível, estabelecer uma linha clara entre recursos naturais sobre os quais um Estado tem e não tem soberania ou exercício de seus direitos soberanos”328. Os global commons clássicos (atmosfera, alto mar e espaço sideral), inclusive os bens ambientais localizados dentro de sua abrangência, são tutelados por meio de algumas convenções internacionais tais como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, do inglês United Nations Framework Convention on Climate Change) e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Não obstante, medidas comerciais ambientais nem sempre serão impostas como decorrência da observância das obrigações impostas por esses acordos ou MEAs em geral. Também problemático é o fato de que algumas dessas convenções, dentre as quais a própria UNFCCC, delimita a sua o seu esquema de redução de gases por meio de um sistema territorial, especialmente tendo em consideração o Princípio das Responsabilidades Comuns mas Diferenciadas. Todos esses fatores demonstram que, por vezes, não será possível a imposição de medidas comerciais ambientais com base em acordos multilaterais. Assim, sua regulação terá uma natureza unilateral no sentido de que o seu objetivo foi determinado por uma norma interna do Estado sem respaldo direto em convenções internacionais.

328 Do original: “For ‘shared natural resources’ such as the high seas and atmosphere, it will often be difficult, if not impossible, to draw a clear line between natural resources over which a state does and does not have sovereignty or exercise sovereign rights” (SANDS et al., 2012, p. 193). 173

Como descrito no tópico anterior, o Princípio 12 da Declaração do Rio e o direito internacional ambiental, de forma geral, priorizam a proteção ambiental por meio de ação multilateral, e não unilateral. Apesar disso, o segundo tipo de ação não é proibida pelo direito internacional; nesse caso, uma possível forma de verificar o nexo exigido pelo OAp é se o bem tutelado constitui um global common. Dunoff, ao tratar da possibilidade de utilização de medidas comerciais para a proteção de global commons, propõe um balanceamento entre os três interesses primários do sistema multilateral de comércio: eficiência econômica, soberania e harmonia política internacional. Ele sugere, então, que esses três interesses sejam sopesados com o interesse de se preservar os global commons329. O teste que o autor propõe, nesse sentido, envolve “a natureza e a força do interesse ambiental sendo protegido, se a medida favorece produtos domésticos sobre estrangeiros ou apresenta discriminação entre nações estrangeiras, e se a medida é relativa e proporcional ao objetivo ambiental”330. A sugestão do autor é pertinente, e tal não poderia ser diferente: sua abordagem traduz em poucos fatores os principais pressupostos do sistema OMC. O segundo elemento trazido pelo autor (averiguação de possível tratamento diferencial conforme a

329 DUNOFF, 1992, p. 1409. 330 Do original: “To do so, I propose, a balancing test that involves examination of several factors: the nature and strength of the environmental interest being protected, whether the measure favors domestic over foreign products, or discriminates among foreign nations, and whether the measure is related to and proportionate to the environmental goal” (DUNOFF, 1992, p. 1409). 174

nacionalidade do produto) reflete basicamente a aplicação das cláusulas de não discriminação, enquanto o primeiro e o terceiro refletem, em uma metodologia um pouco diversa, a lógica do Artigo XX, chapeau e alíneas. Cabe ressaltar que esse trabalho foi escrito em 1992 – portanto, a anterioridade ao estabelecimento do sistema OMC e, igualmente, à determinação da metodologia de averiguação da compatibilidade de uma medida com o Artigo XX, a qual foi delineada pelo OAp no caso US – Gasoline, em 1996331, demonstra que sua sistematização não era evidente. A proposição de Dunoff evita uma imposição arbitrária de medidas discriminatórias disfarçadas e assegura que o nexo suficiente entre o global common e a medida imposta seja respeitado. A partir dessas considerações, o segundo fator proposto para a averiguação do nexo suficiente entre uma medida que tutele bens ambientais localizados fora do território do Estado regulador é determinar se o objetivo perquirido recai sob o interesse de tal Estado por ser um global common ou porque sua consecução traduz-se em uma obrigação erga omes. Para essa análise, as considerações de Dunoff são bastante relevantes. A título exemplificativo, a importação de um determinado produto cuja fabricação tenha alto impacto na camada de ozônio pode ser restringida segundo esse critério. As obrigações constantes da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, em princípio, não poderiam ser invocadas no contexto específico de uma medida

331 Sobre o two-tier test estabelecido pelo OAp para a aplicação do Artigo XX do GATT, cf. DS/AB/R/2, para. 6.20 e ss., e VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 602 e ss. 175

comercial. Ademais, alguns autores sugerem ainda que obrigações de due diligence para a prevenção de questões ambientais tais como mudanças climáticas podem ir além das obrigações contidas em acordos como o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris332. A preservação da atmosfera, assim, é um interesse global e uma obrigação erga omnes; portanto, o nexo suficiente estaria verificado. Evidentemente, na prática, a análise desse balanceamento seria muito mais complexa, devendo levar em consideração diversos fatores regulatórios e, eventualmente, amplos elementos probatórios, como no caso US – Shrimp. Não apenas isso, ainda que o nexo suficiente fosse constatado, a ideia de balanceamento de uma medida e um objetivo envolve ainda outra faceta, como explanado anteriormente: a não interferência nas atividades realizadas para além do território do Estado regulador.

4.2 POSSIBILIDADE REGULATÓRIA

O critério do nexo suficiente foi vagamente introduzido pelo OAp mas, apesar dessa vagueza, é aqui considerado como central à verificação da compatibilidade de uma medida de alcance extraterritorial com o regime da OMC devido ao fato de ser o parâmetro mais concreto relativo ao tema aqui analisado. Esse critério ajuda a delimitar a extensão com que bens jurídicos cuja tutela perpassa as fronteiras do

332 Cf. DOBSON; RYNGAERT, 2017, p. 304. 176

Estado legislador podem ser regulados. Um problema ulterior à questão do nexo entre a medida e o bem protegido surge, contudo, quando essa tutela envolve impacto em atividades localizadas fora desse Estado, tais como no caso US – Shrimp, em que, ainda que se considere que tartarugas marinhas migratórias tenham nexo suficiente com os Estados Unidos, seria, indubitavelmente, uma afronta ao princípio da territorialidade a regulação, por meio de legislação doméstica, da forma como se pescam camarões em países terceiros. Questão diversa, contudo, é a regulação da possibilidade de importação de (i.e., a imposição de um embargo a) produtos de camarão que não atendam às exigências ambientais estadunidenses. Os dois tipos de regulação, de fato, causam impacto, direto ou indireto, na atividade de pesca desse produto – contudo, qual a linha que divide a extrajurisdicionalidade do primeiro caso da (possível) conformação jurisdicional do segundo caso? Em outras palavras, qual o impacto que uma norma doméstica pode ter sobre atividades desempenhadas fora do território do Estado que emana essa norma? Para responder a essa pergunta, utiliza-se como instrumento hermenêutico principal os princípios da não intervenção e da proporcionalidade em direito internacional. Antes, contudo, considera-se central para a compreensão ampla da problemática uma explanação mais detalhada dos já mencionados PPMs, uma vez que a atividade produtiva do bem com relação ao qual se impõe a regulação aparece em todos os casos que foram levados à OMC aqui estudados333.

333 Relembra-se que o caso da aviação, que envolve a regulação de serviços e não de produtos, não chegou a ser levado ao contencioso da OMC. 177

4.2.1 O caso da regulação dos PPMs e a proteção ambiental A expressão “PPMs” surgiu pelo Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (o já mencionado TBT), texto abrangido pelo sistema GATT, anteriormente ainda à instituição da OMC, em 1979334. O conceito de PPMs diz respeito, como o nome sugere, aos métodos de produção e processamento a que determinado produto é submetido, e não, propriamente, ao produto em si e suas características inerentes. Esse conceito é relevante ao presente problema, pois grande parte da controvérsia acerca da extrajurisdicionalidade de medidas comerciais ambientais envolve a regulação de PPMs, beneficiando o comércio de produtos advindos de métodos ecologicamente favoráveis. As medidas de PPMs são, portanto, medidas de restrição ao comércio internacional que têm por base regulamentadora elementos relacionados aos métodos e processos produtivos de um determinado produto. No contexto da OMC, o Estado-membro estabelece uma medida que de alguma maneira reflete no comércio internacional e nos acordos da organização a partir da forma como um produto é produzido, e não somente o produto em si. Os métodos de produção e processamento podem ou não repercutir nas características finais do produto em questão. Nas palavras de Conrad, “alguns PPMs são incorporados no produto final devido ao impacto físico que lhe causam, e outros PPMs são não-incorporados no

334 CHARNOVITZ, 2002, p. 64 178

sentido de não deixarem quaisquer traços físicos sobre ou dentro da mercadoria”335. Esse critério enseja uma divisão de suma importância na problemática sob análise: caso haja uma repercussão nas características físicas do produto final que tenha sido originada a partir, tão somente, da diferença dos métodos produtivos, tem-se os chamados pr-PPMs (do inglês product-related Process and Production Methods); caso contrário, denominam-se npr-PPMs (non-product-related PPMs)336. Em termos ambientais, na primeira categoria (pr-PPMs), como o nome sugere, o impacto ambiental é incorporado pelo produto. O método ao qual o produto é submetido traz consequências diretas às suas características físicas, e tem por escopo externalidades de consumo. A segunda categoria (npr-PPMs) retrata PPMs que não trazem consequências diretas ao produto final, e dirigem-se a externalidades relativas ao momento de produção (cultivo de plantas, criação de

335 No original: “In other words, some PPMs are incorporated in the end- product by means of the physical impact they exert on it, and other PPMs are unincorporated in the sense that they do not leave any physical traces on or in the merchandise” (CONRAD, 2013, p. 28). 336 Charnovitz apresenta uma crítica com relação à simplicidade dessa distinção, particularmente pois, em sua visão, todos os PPMs de alguma maneira afetam o produto (2002, pp. 65-67). Crowley e Howse (notadamente Robert Howse, como ele pontua em alguns outros trabalhos de sua autoria) também apresentam uma crítica, não à taxonomia, mas aos conceitos atribuídos pela doutrina às duas categorias. Para os autores, o entendimento de que “não relacionados ao produto” relaciona-se à ideia de não envolver características físicas é incorreto; para eles, “relacionar-se ao produto” significa apenas que o PPM está inserido no contexto de comércio de produtos, e não em outra categoria. Está, assim, regulamentado pelo GATT, TBT, SPS e outros acordos sobre comércio de produtos, e não, e.g., no GATS ou no TRIPS. Como eles ressaltam, na análise do caso US – Tuna II, “in determining whether the US measure was a technical regulation, the AB never even considered the notion that ‘characteristic’ might mean physical characteristic”, corroborando a sua interpretação. Cf. CROWLEY; HOWSE, 2014, pp. 325-327. 179

animais, exploração de recursos naturais, produção ou manufatura de produtos)337. As medidas regulatórias baseadas em PPMs ambientais338 podem ser tomadas de diversas formas, tais como rótulos que indicam a origem sustentável de um produto (eco-labels), banimentos (embargos) e restrições à importação de produtos inadequados a parâmetros de PPMs impostos por um país, taxas impostas a produtos fora de tais padrões ambientais339. Todas essas medidas constituem restrições comerciais, a priori vedadas pelo sistema multilateral de comércio, e que são impostas sob o pretexto de proteção ambiental. Ademais, conforme Charnovitz esclarece:

O uso de PPMs ambientais é controverso por duas razões principais. Primeiramente, um PPM pode restringir o comércio ou torná-lo mais difícil ou custoso para um exportador enviá-lo a um mercado internacional. Em segundo lugar, PPMs são um sinal de países importadores a países exportadores a propósito das práticas ambientais e normas que o país importador considera que o país exportador deve manter.340

337 OECD, 1997, p. 11 338 As chamadas medidas de PPMs ambientais são, no presente contexto, medidas relacionadas à forma de produção de determinado produto, e que impõem alguma restrição ao comércio internacional a partir de critérios de proteção ao meio ambiente. A partir disso, parte-se à análise de tais medidas dentro do arcabouço dos acordos da OMC, buscando compreender, assim, a problemática normativa envolvida. 339 OECD, 1997, p. 09. Para uma breve análise comparativa dessas alternativas, cf. CONRAD, 2013, pp. 452 e ss. 340 No original: “The use of environmental PPMs is controversial for two main reasons. First, a PPM can restrict trade or make it harder and costlier for an exporter to supply a foreign market. Second, PPMs are a signal from importing 180

Conforme Read considera, a busca por uma regulação de PPMs é também advinda do sucesso do sistema de liberalização multilateral do comércio, que levou a um “crescente foco em questões qualitativas mais sofisticadas relativas às escolhas do consumidor acerca de modos alternativos de produção, em oposição a questões quantitativas relacionadas à oferta de produtos e preços”341. Nesse sentido, as normas impostas pelo Acordo Sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (o já mencionado TBT) são de particular relevância ao tema de PPMs. O objetivo do TBT é “assegurar que os regulamentos técnicos e as normas (...) e procedimentos para avaliação de conformidade com regulamentos técnicos e normas não criem obstáculos desnecessários ao comércio internacional”342. Tais regulamentos técnicos e normas dizem respeito a padrões de produção com relação aos seus níveis de segurança, qualidade, eficiência produtiva, dentre outros fatores. A título exemplificativo, um dos órgãos responsáveis pela avaliação desses padrões no Brasil é o INMETRO, através das chamadas avaliações de conformidade343.

countries to exporting countries about the environmental practices and laws that the importing country thinks the exporting country should have” (CHARNOVITZ, 2002, p. 62). 341 No original: “The desire to regulate trade based upon PPMs is arguably a direct consequence of the success of multilateral trade liberalisation, notably in the leading industrialised countries. Liberalisation has led to an increasing focus on more sophisticated qualitative issues relating to consumer choice regarding alternative modes of production as opposed to quantitative issues related to product supply and prices.” (READ, 2004, p. 125). 342 MDIC, TBT. 343 Fonte: INMETRO. Avaliação da Conformidade. Disponível em: . Acesso em: 18 dez. 2016. 181

Cada país tem a liberalidade de estabelecer seus próprios critérios com relação a tais padrões, e essa liberalidade é reconhecida pelo preâmbulo do TBT. Contudo, tais critérios podem acabar por criar barreiras ao comércio internacional, e, visando a mitigar a ocorrência dessas barreiras técnicas, as partes do sistema multilateral de comércio internacional negociaram o Acordo TBT, em busca de uma padronização internacional de regulamentos técnicos e normas344. Apesar disso, tal padronização não é um procedimento simples, particularmente dado que os países têm liberdade soberana para regulamentar seus métodos produtivos, bem como a ingerência de seus recursos naturais – ainda que tal ingerência tenha efeitos globais, como é o impacto transfronteiriço dos danos ambientais345, particularmente aqueles afetos aos global commons. Não suficiente, para o estabelecimento desses padrões seria necessário amplo estudo científico,

344 Wolfrum, Stoll e Seibert-Fohr elucidam, sobre a função da OMC quanto à criação de acordos técnicos: “The WTO does not itself develop and administer such international standards itself, mainly for practical reasons because it lacks the necessary resources. It is not an international standardising organization. Instead, the TBT Agreement, in a move towards closer cooperation between and among international organizations, refers — in various provisions — to international standards and conformity assessment procedures as vehicles of integration. At the same time, such reference has a significant impact on international standardization bodies. The reference substantially increases their actual importance because their previous non-binding international standards now enjoy a normative value. In such manner, both the WTO and the international standardization community reinforce each other” (2007, p. 173, notas de rodapé suprimidas). 345 KISS; SHELTON, 2007, pp. 44 e ss.. 182

e divergências sobre critérios para essas avaliações entre os países seriam constantes346. No mesmo sentido, cabe anotar que os padrões ambientais não estão disciplinados de maneira uniforme nos diversos países-membros da OMC, de modo que, por consequência, medidas voltadas à proteção ambiental, por natureza, serão incompatíveis nos mercados distintos. Justamente por esse motivo, é comum que as restrições ao mercado internacional visando à proteção ambiental tenham origem em resoluções e estudos internos, criando reflexos no mercado internacional. Outro problema relativo à padronização internacional de PPMs diz respeito à crítica à existência de um “eco-imperialismo”347. Isso porque, na medida em que são os países desenvolvidos os detentores de meios mais próximos da sustentabilidade (tanto pelo

346 A OCDE (1997, pp. 14 e 17, notas de rodapé suprimidas), em seu relatório sobre PPMs, esclarece: “Experience has shown that countries affected, particularly when they apply different domestic requirements, raise issues such as the scientific basis for the PPM requirements and the priority of scientific evaluation over political choices or whether it is justified to apply the precautionary principle in the evaluation process. (…) The harmonisation of non-product-related PPM requirements is highly problematic and may be undesirable where the PPMs in question have no transboundary or global environmental effects. While strict non-product-related PPM requirements may have positive benefits for sustainable development by removing some of the hidden costs of environmentally unsound practices, demands for harmonisation of non-product-related requirements may be difficult to justify because it is generally accepted that a county's solution to domestic environmental problems should be based on its own policy decisions and evaluations, reflecting its own economic conditions and social preferences. Harmonisation of non-product- related PPM requirements may even be undesirable to the extent that it masks comparative advantage”. 347 CHARNOVITZ, 2002, p. 70. 183

desenvolvimento tecnológico, quanto pelos recursos financeiros para tanto), não é raro que se identifique a imposição de medidas protetivas do meio ambiente como uma forma de dominação comercial dos países mais industrializados348. Esse argumento retoma a problemática descrita por Young, abordada no Capítulo 3.3. Assim sendo, a regulação de PPMs ambientais é controversa por diversos motivos. Contudo, a particular crítica para efeitos do problema aqui analisado é o fato de que, conforme consideram alguns autores, de certa maneira, ao determinar barreiras ao comércio em face de um determinado método produtivo, o país que determina a restrição está impondo tal método produtivo a outro país, caracterizando aplicação extraterritorial de uma norma349. Bernasconi-Osterwalder et al. explicam que [c]ríticos associam restrições ao comércio baseados em PPMs com extraterritorialidade porque, em sua leitura, o país que emana essas medidas está determinando ao produtores dos países exportadores como eles devem produzir ou cultivar seus bens, condicionando o acesso ao mercado no uso do PPM.350 Essa leitura da questão presume ainda que, mesmo que o dano ambiental tenha, reconhecidamente, impactos transfronteiriços ou mesmo diretos ao território do país regulador, a imposição dessas

348 Cf. READ, 2005, p. 243. 349 HOWSE; REGAN, 2000, p. 275 e ss 350 Do original: “Critics associate PPM-based trade restrictions with extraterritoriality and sometimes illegality because, in their view, the country enacting the PPM-based measure is telling producers in exporting countries how to produce or harvest their goods, by conditioning market access on the PPM used” (BERNASCONI-OSTERWALDER et al., 2006, p. 239). 184

medidas ao comércio internacional (e, portanto, a produtores externos) pode ser considerada como uma medida unilateral de caráter extraterritorial. A controvérsia dos PPMs relaciona-se também, em certa medida, com o debate sobre a doutrina dos efeitos. Como mencionado no capítulo inicial, essa corrente justifica a regulação de atividades ocorridas fora do território do Estado com base na ideia de que, sendo os efeitos dessa atividade sentidos dentro desse território, o princípio da territorialidade estaria sendo observado. É tal a rationale por vezes utilizada para respaldar as críticas relacionadas à regulação de PPMs: as externalidades ambientais advindas da atividade (i.e., os seus efeitos) são sentidas dentro do território de um país; assim sendo, esse país tem jurisdição para emanar medidas que visem à mitigação dessas externalidades. Evidentemente, esse problema é particularmente visível quando se trata de externalidades ambientais que infringem diretamente na conservação dos global commons. A questão aqui envolvida, portanto, dá-se em momento posterior à justificação do nexo causal entre o bem ambiental tutelado, dentro ou fora do território do Estado regulador. Trata-se, como mencionado, do questionamento acerca da possibilidade de interferência regulatória de um Estado nas atividades realizadas no âmbito de outro Estado. A extensão prática da prerrogativa prescritiva será analisada a seguir por meio de dois princípios de direito internacional: não intervenção e proporcionalidade.

185

4.2.2 Os princípios da não intervenção e da proporcionalidade e sua aplicação à competência prescritiva do Estado

O Artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça estabelece, como fonte de direito internacional, a possibilidade de utilização de princípios de direito, sejam estes princípios gerais de direito (normalmente provenientes do direito interno e transladados ao direito internacional), seja princípios propriamente de direito internacional351. A utilização desses princípios costuma ocorrer no caso da ausência de norma expressa de direito internacional sobre um determinado tema352. Assim, diante da insuficiência normativa do

351 “Para determinar a proveniência exata desses princípios, é necessário voltarmo-nos para os trabalhos preparatórios do artigo 38º do Estatuto do TPJI. Em 1920, os redatores desta disposição fizeram questão em não ficar aquém dos redatores do artigo 7º, al. 2, da Convenção XII de Haia – 1907, sobre o Tribunal Internacional de Presas – que atribuía a este Tribunal o poder de decidir, se fosse caso disso, ‘de acordo com os princípios gerais da justiça e da equidade’. Fórmula incondicional que acabava por habilitar os juízes a ‘fazerem o direito’, conforme a própria expressão do seu relator. É para evitar a consagração de qualquer poder ‘criador’ ou ‘normativo’ desta natureza que o artigo 38º exige que se trate de princípios gerais já ‘reconhecidos pelas nações civilizadas’. (DIHN, DAILLIER, PELLET, 2003, p. 356). Sobre o tema, cf. ainda GAJA, Giorgio. General Principles of Law. Max Planck Encyclopedia of Public International Law ; PELLET, Alain. Article 38. In: ZIMMERMANN, Andreas; TOMUSCHAT, Christian; OELLERS-FRAHM, Karin (Org.). The Statute of the International Court of Justice: A Commentary. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 677-792 ; THIRLAY, Hugh. The sources of international law. In: SHAW, Malcolm. International Law. 3rd. ed. Oxford: Oxford University Press, 2003. 352 O objetivo da previsão do Artigo 38.1(c) do Estatuto da CIJ era evitar non liquet sem dar à Corte a possibilidade de legislar. Era uma tentativa de dar uma fórmula aos Estados do que por meio da doutrina. (PELLET, p. 765). Sobre o tema, assim escreve Pellet: “They are subsidiary in the sense that the Court Will usually only resort to them for filling a gap in the treaty or customary rules 186

direito internacional e do direito da OMC sobre o tema sobre o qual se debruça este trabalho, propõe-se a utilização combinada de dois princípios particularmente relevantes: o princípio da não intervenção e o princípio da proporcionalidade. O conteúdo e a aplicabilidade desses dois princípios ao problema aqui analisado será brevemente analisado, uma vez que seus respectivos estudos poderiam individualmente resultar em dissertações próprias.

4.2.2.1O princípio da não intervenção353 O princípio da não intervenção em direito internacional possui uma abrangência bastante ampla, de modo que a alegação de sua violação é bastante recorrente354. É um dos princípios implicitamente listados na Carta das Nações Unidas, particularmente por ser um corolário do princípio da soberania e igualdade dos Estados355. Sua utilização mais proeminente costuma ser no campo dos conflitos armados e do uso da força. Nesse contexto, a Corte Internacional de

available to settle a particular dispute, and, what is even more apparent, will decline to invoke them when such other rules exist” (PELLET, 2006, p. 780) ; “The indisputable reluctance of the Court to resort to general principles of law can be easily understood: they are difficult to handle and it is a fact that the provision of Art. 38, para. 1 (c), ‘conflicts with the voluntaristic point of view’, which certainly increases the risk that parties will be less inclined to accept the judgement”. (PELLET, 2006, p. 782). 353 Esse princípio geral também é conhecido como princípio da não- interferência. Contudo, para fins metodológicos, este trabalho refere-se ao princípio apenas quando fala em intervenção, denominando interferência a ideia ampla de impacto regulatório causado pelo exercício da competência prescritiva de um Estado nas atividades realizadas sob jurisdição de outro Estado. 354 KUNIG, 2015, p. 2. 355 JAMNEJAD; WOOD, 2009, p. 347. 187

Justiça, no caso Atividades Militares e Paramilitares dentro e contra o Nicarágua, definiu-o da seguinte maneira356:

Uma intervenção proibida deve, em concordância, [com o exposto anteriormente no julgamento] ser aquela que trate de matérias sobre as quais cada Estado está autorizado, pelo princípio da soberania estatal, a decidir livremente. [...] A intervenção é ilícita quando faz uso de métodos de coerção em relação a tais escolhas, as quais devem permanecer livres. [...]357 Há, segundo essa passagem, uma proibição de intervenção quando a matéria regulada for de competência exclusiva da jurisdição doméstica de outro Estado e/ou quando o elemento da coerção for utilizado. Evidentemente, essa definição foi realizada num contexto factual muito específico e um tanto diverso do aqui abordado, uma vez que o caso Nicarágua envolveu precipuamente o exame acerca da intervenção armada e financiamento de grupos paramilitares. De todo modo, a passagem acima traz os dois elementos que normalmente são identificados em uma intervenção ilícita: a intervenção propriamente dita de um Estado nos assuntos de outro, e o fato de que tal intervenção incida sobre assuntos de livre ingerência dos Estados358.

356 Cf. KUNIG, 2015, p. 2 357 Do original: “A prohibited intervention must accordingly be one bearing on matters in which each State is permitted, by the principle of State sovereignty to decide freely. One of these is the choice of a political, economic, social and cultural system, and the formulation of foreign policy. Intervention is wrongful when it uses methods of coercion in regard to such choices, which must remain free ones. […]” (CIJ, 1986, p. 198, para. 205). 358 JAMNEKAD; WOOD, 2009, p. 347. 188

O problema primordial envolvendo esse princípio, contudo, é o fato de o termo intervenção ser um conceito jurídico indeterminado, dotado de vagueza semântica. Assim, alguns autores se referem ainda ao elemento da coercitividade para esclarecer melhor a ideia de não intervenção359. Na clássica obra Oppenheim’s International Law, por exemplo, critica-se uma abordagem muito aberta da proibição da intervenção, e define-se esta como “uma forma de interferência por um Estado nos assuntos, internos ou externos, de outro; e intervenção pode afetar tais assuntos direta ou indiretamente”360, mas ressaltando o elemento de força ou ditatorial imposto pelo direito internacional361. Em sentido análogo, a Resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral das Nações Unidas362 (AGNU – Declaração sobre a Inadmissibilidade da Intervenção nos Assuntos Domésticos dos Estados e a Proteção de sua Independência e Soberania)363 determinou que

1. Nenhum Estado tem o direito de intervir, direta ou indiretamente, por qualquer razão, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro

359JAMNEKAD; WOOD, 2009, p. 347 ; KUNIG, 2015, pp. 2 e ss.. 360 Do original: “Intervention is thus a formo f interference by one state in the affairs, internal or external, of another; and intervention may affect those affairs either directly or indirectly” (JENNINGS; WATSON, 1992, p. 430). 361 Segundo a obra, intervenção, em direito internacional, “has a stricter meaning, according to which intervention is forcible or dictatorial interference by a state in the affairs of another state, calculated to impose certain conduct or consequences on that other state” (JENNINGS; WATTS, 1992, p. 430); e ainda “It must be enphasised that to constitute intervention the interference must be forcible or dictatorial, or otherwise coercice, in effect depriving the state intervened against control over the matter in question” ((JENNINGS; WATTS, 1992, p. 430). 362 Apesar de resolução da AGNU não terem força vinculante, mas constituírem soft law, suas determinações podem ser consideradas como autoritativas. 363 Cf. JENNINGS; WATSON, 1992, p. 430. 189

Estado. Consequentemente, intervenção armada e quaisquer outras formas de interferência ou tentativas de ameaça contra a personalidade do Estado ou contra seus elementos políticos, econômicos e culturais estão condenados. 2. Nenhum Estado pode usar ou encorajar o uso de medidas econômicas, políticas ou de qualquer outro tipo para coagir outro Estado de forma a obter deste a subordinação do exercício de seus direitos soberanos ou assegurar deste vantagens de qualquer tipo. [...]364 Segundo essa resolução, a imposição de medidas econômicas, dentre outras, deve estar associada ao elemento da coerção para ser proibida conforme o princípio da não intervenção. Contudo, a aplicabilidade desse princípio no ramo do direito internacional econômico é controversa, particularmente pela dificuldade em se determinar quando uma medida comercial passa a ser coercitiva365.

364 Do original: “1. No State has the right to intervene, directly or indirectly, for any reason whatever, in the internal or external affairs of any other State. Consequently, armed intervention and all other forms of interference or attempted threats against the personality of the State or against its political, economic and cultural elements, are condemned. 2.No State may use or encourage the use of economic, political or any other type of measures to coerce another State in order to obtain from it the subordination of the exercise of its sovereign rights or to secure from it advantages of any kind. […]” (ONU, 1965). 365 Segundo Oppeinheim’s International Law, contudo, “[i]t must be emphasized that to constitute intervention the interference must be forcible or dictatorial, or otherwise coercive, in effect depriving the state intervened against of control over the matter in question. Interference pure and simple is not intervention. There are many acts which a state performs which touch the affairs of another state, […] but these do not constitute intervention. Similarly, a state may, without thereby committing an act of intervention (although it might be in breach of some other international obligation, for example under treaties such as the General Agreement on Tariffs and Trade which promote freedom of trade), sever diplomatic relations with another state, discontinue 190

Para a resposta dessa questão, adota-se uma leitura consolidada da resolução da AGNU associada à necessidade do elemento coercitivo para a configuração da intervenção dos assuntos internos de outro Estado, seguindo a perspectiva de que para a configuração de coerção não é suficiente o mero intento de motivar a mudança de regime ou políticas normativas de outro país366. Assim, ausente tal elemento coercitivo, não se pode falar em interferência econômica indevida. Mann traz uma interessante ponderação que pode auxiliar essa perspectiva sobre os limites regulatórios de um Estado em matéria comercial:

Em resumo, nenhum Estado pode diretamente exercer jurisdição em países estrangeiros, mas não há qualquer norma jurídica que o impeça de fazê- lo indiretamente, por meio da determinação de normas a seus próprios sujeitos em seu próprio território, desde que tais normas possam ser implementadas sem a violação do direito societário ou outro ramo de outro Estado soberano ou de obrigações contratuais e desde que nenhuma pressão indevida seja imposta a estrangeiros a fim

exports to it or a programme of aid, or organise a boycott of its products. […] Although such measures may, at least indirectly and in part, be intended not only as a mark of displeasure but also to persuade the other state to pursue, or discontinue, a particular course of conduct, such pressure falls short of being dictatorial and does not amount to intervention” (JENNINGS; WATTS, 1992, p. 434, notas de rodapé suprimidas, grifo acrescido). 366 Evidentemente, a devida explanação detalhada dos motivos para tal escolha, assim como um apropriado estudo da doutrina relevante na matéria, seriam suficientes para uma dissertação por si só. Dado o escopo específico deste trabalho, não se adentra nesse tópico com a profundidade que seria possível. 191

de promover a execução de normas jurídicas às quais eles não estão sujeitos.367 Dessa forma, a perspectiva aqui sugerida é a de que a análise da extensão regulatória de um Estado com relação às atividades realizadas em outro Estado, ou fora de sua jurisdição de modo geral, deve, em um primeiro momento, considerar a existência do elemento coercitivo dos impactos dessa medida. Conforme Mann e Oppenheim, esse elemento coercitivo não abarca a imposição de normas cujo objetivo seja influenciar a modificação do quadro regulatório ou do exercício de sua atividade produtiva de demais países. Isso significa que a fabricação interna de um determinado produto no país atingido pode sofrer influências mercadológicas da medida, mas não pode ser influenciada de tal maneira que haja uma invasão nas competências soberanas desse Estado. Medidas restritivas ao comércio com escopo protetivo ao meio ambiente, tais como exemplificadas particularmente nos casos US – Tuna, US – Shrimp e EC – Seal products, não recaem no contexto da interferência proibida pelo direito internacional, particularmente porque buscam controlar, dentro de suas fronteiras, produtos provenientes de atividades realizadas em qualquer nação.

367 Do original: “In short no State can directly exercise jurisdiction in foreign countries, but there is no legal rule which precludes it from doing so indirectly by giving directions to its own subjects in their own territory, provided they can be implemented without violation of the corporate or other law of the foreign sovereign or of contractual obligations and provided that no undue pressure is brought upon foreigners to enforce compliance with legal rules to which they are not subject” (MANN, 1984, p. 79). 192

4.2.2.2O princípio da proporcionalidade e sua aplicação à extraterritorialidade Apesar de, a priori, medidas restritivas ao comércio com escopo ambiental não violarem o princípio da não intervenção, como demonstrado acima, isso não significa que tais medidas não remontem a um exercício extrajurisdicional da competência prescritiva do Estado. Ainda que não configurem uma interferência coercitiva nos assuntos internos de outro Estado, pode ocorrer que algumas medidas comerciais sejam excessivamente pesarosas ao sistema multilateral de comércio ou ao país afetado em relação ao fim almejado. Portanto, o segundo princípio sugerido para a análise dos limites da competência estatal nessa matéria é o da proporcionalidade. O princípio da proporcionalidade, assim como o princípio da não intervenção, possui um âmbito muito amplo em direito internacional, e a metodologia de sua aplicação pode variar conforme o campo específico em que é utilizado. Sua definição mais simplificada, contudo, pode ser escrita como a determinação de que “uma resposta ou ação deve ser comedida com o objetivo antevisto a ser atingido”368. Em direito internacional, essa ideia é aplicada especialmente ao contexto da legítima defesa e das contramedidas, institutos aos quais a proporcionalidade confere limites369. O princípio da proporcionalidade, nesses casos, costuma servir de baliza para a verificação de que uma

368 NEWTON; MAY, 2014, p. 16. 369 DESMEDT, 2001, p. 444. 193

ação, normalmente proibida pelo direito internacional, tenha sua ilicitude precluída desde que aplicada com razoabilidade370. Assim, a utilização do princípio da proporcionalidade nos diversos ramos do direito auxilia no balanceamento de interesses que às vezes podem entrar em conflito371. Como demonstrado anteriormente, o conflito principal do problema da extraterritorialidade de medidas comerciais com escopo ambiental é determinar a extensão da possibilidade de inferência regulatória dessas normas conforme o direito internacional, considerando a ausência de consenso com relação a teorias tais como a doutrina dos efeitos. A aplicação do princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de direito e em sua forma mais elaborada372, costuma ser sistematizada em três elementos (ou etapas): adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito373. A ideia genérica, aplicada ao sistema multilateral de comércio, pode ser sintetizada no entendimento

370 Sobre as causas de preclusão da ilicitude em Direito Internacional, cf. SHAW, 2008, pp. 793 e ss. ; ONU, 2008-B. 371 Sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade no direito da OMC, cf. ANDENAS; ZLEPTING, 2007 e DESMEDT, 2001. 372 ANDENAS; ZLEPTING, 2007, p. 74. 373 Essa subdivisão remonta ao direito público germânico, final do século XIX, quando a Corte Suprema Administrativa da Prússia desenvolveu com maior profundidade elementos do princípio (EMILIOU, 1996, p. 23. Esse teste de três etapas é também utilizado no direito da União Europeia (DESMEDT, 2001, p. 444; cf. ainda EMILIOU, 1996, pp. 115 e ss.). Também faz uso dessa subdivisão para o estudo do princípio no âmbito da OMC RUOZZI (2009) – a autora explica que “[l]e test elaboré par l’Organe d’appel dans l’affaire du Boeuf coréen presente certains éléments d’affinité avec le test d’origine allemande, traditionellement suivi par la CJCE” (RUOZZI, 2009, p. 479). Para um estudo aprofundado desses três critérios conforme desenvolvidos pelo direito europeu e direito comunitário europeu, cf. EMILIOU, 1996. 194

de que, para a consecução de um fim legítimo (no caso do Artigo XX, e.g., os valores sociais enumerados pelas alíneas), é cabível a imposição de medidas comerciais restritivas, desde que a restrição em questão seja relevante e proporcional ao fim perquirido. A utilização do princípio da proporcionalidade no contexto de medidas extraterritoriais já foi defendida por vários autores374. A ideia arguida é a de que o Estado que invoca a jurisdição, além do nexo suficiente, deve usar sua competência de modo comedido, proporcional ao fim que deseja atingir375. No entanto, a elaboração de uma metodologia mais concreta ainda se mostra pendente na doutrina. A seguir, demonstrar-se-á que os três elementos do princípio da proporcionalidade não são completamente alheios à prática e arcabouço normativo do sistema OMC376. Assim, uma vez constatado o nexo entre o bem protegido (localizado fora do território do país regular – e.g., tartarugas marinhas) e o Estado regulador, sugere-se, após a verificação de que a medida não interfere de modo ilícito conforme o

374 Cf, e.g., DOBSON; RYNGAERT, 2017; UE, 2011, p. 05; BARTELS, 2002, p. 370; OHLER, 2015, p. 06. 375 Ohler esclarece: “Additionally, the principle of proportionality must be respected whenever a State claims to have jurisdiction in a given matter. As concerns jurisdiction to prescribe, the measure may not go beyond what is actually necessary to reach the end which, as such, is considered legal under a given extraterritorial link. In State practice, however, this principle is handled rather vaguely, granting the legislating State a wide margin of discretion” (OHLER, 2015, p. 6). 376 Para uma análise mais detalhada sobre o princípio da proporcionalidade no contexto da OMC, cf. ROUZZI, 2009. A autora analisa a aplicabilidade do princípio no sistema, “tout em gardant à l’esprit le fait que dans ce système le terme « proportionalité » n’est jamais utilisé – et leurs relations avec le concept tripartite suscité” (ROUZZI, 2009, p. 476). 195

princípio da não intervenção, a aplicação do princípio da proporcionalidade seguindo esses três elementos. O primeiro critério, adequação, relaciona-se com a exigência de uma conexão entre a medida adotada e o fim perquirido. Assim, em termos de medidas restritivas ao comércio, deve-se primeiro indagar qual o objetivo da medida (e.g., proteção a tartarugas marinhas, informação ao consumidor, mitigação das mudanças climáticas). A partir disso, deve-se verificar se a medida em questão efetivamente se relaciona com esse fim. Aplicada a medidas comerciais, o critério da adequação pode servir como forma de barrar medidas com escopo protecionista377. No âmbito de medidas comerciais com escopo ambiental, portanto, o teste da adequação analisa, sem necessariamente entrar no mérito da extraterritorialidade da regulação, se o bem ambiental alegadamente objetivado efetivamente pode ser protegido por meio dessa norma. O segundo elemento, a necessidade, está relacionado com um elemento comparativo: ainda que uma medida seja adequada a um determinado fim, podem haver outras medidas igualmente adequadas. Nesse caso, deve prevalecer a aplicação da medida que foi menos opressiva ao elemento com que se está balanceado o fim perquirido (no nosso estudo, deve prevalecer a medida protetiva que menos afete as obrigações do sistema multilateral de comércio). Quando uma medida

377 ANDENAS, ZLEPTING, 2007, p. 74. 196

for “indevidamente opressiva”378 em relação a outras possibilidades que se apresentam, o teste da necessidade não terá sido atingido. A averiguação da necessidade de uso de uma medida comercial com escopo ambiental, portanto, possivelmente irá adentrar no mérito da extraterritorialidade. A necessidade de uma medida poderá ser balizada, por exemplo, entre a medida sub judice e outras medidas invocadas pelos Estados afetados partes da controvérsia. Esse tipo de exercício já é realizado pelo MSC/OMC em contextos como a análise de algumas alíneas do Artigo XX e disposições do Artigo 2.2 do TBT379. A redação deste último, inclusive, é explícita ao mencionar que um regulamento técnico (i.e., uma barreira de natureza não tarifária) poderá ser aplicado desde que não seja “mais restritivos ao comércio do que o necessário para realizar um objetivo legítimo tendo em conta os riscos que a não realização criaria”380. Nesse dispositivo, encontram-se implícitos os critérios da adequação (“para

378 Do original, “unduly oppressive” (cf. EMILIOU, 1996, p. 26). O autor esclarece, ainda, com base na tradição germânica do princípio da proporcionalidade: “For the application of this concept [necessity principle], it is necessary that there should be a choice among several suitable means to achieve the desired end. In the absence of choice, the question of milder means does not arise” (EMILIOU, 1996, p. 29). 379 O Artigo 2.2 TBT possui uma redação semelhante à do Artigo XX; não se trata, contudo, de um dispositivo a estabelecer exceções às determinações do Acordo: “Os Membros Assegurarão que os regulamentos técnicos não sejam elaborados, adotados ou aplicados com a finalidade ou o efeito de criar obstáculos técnicos ao comércio internacional. Para este fim, os regulamentos técnicos não serão mais restritivos ao comércio do que o necessário para realizar um objetivo legítimo, tendo em conta os riscos que a não realização criaria. Tais objetivos legítimos são, inter alia, [...]” (TBT, MDIC). Para a análise do do critério da necessidade no âmbito do TBT, cf. WT/DS381/R e WT/DS381/AB/R, p. 116, para 301 e ss.). 380 MDIC, TBT. 197

realizar um objetivo legítimo”) e da necessidade (“mais restritivos ao comércio do que o necessário”)381. No caso US – Tuna II, disputa relacionada ao caso US – Tuna e que foi levada ao MSC/OMC, o OAp examinou especificamente medidas estadunidenses com base em PPMs ambientais conforme o Artigo 2.2 do TBT. Nesse caso, o órgão inclusive realizou uma breve análise do significado da palavra necessário no contexto do dispositivo em questão:

O OAp já notou previamente que a palavra “necessário” refere-se a uma gradação de necessidade, dependendo da conexão com a qual é utilizada. No contexto do Artigo 2.2, a verificação da “necessidade” envolve uma análise relacional da restritividade ao comércio por parte do regulamento técnico, o grau de contribuição que ocasiona para com a consecução do objetivo legítimo e os riscos criados pela não observância do regulamento técnico.382

381 No mesmo sentido escreve Ruozzi (2009, p. 477). A autora defende, particularmente, que a ideia de necessidade pode ser encontrada nas alíneas (a), (b) e (g) do Artigo XX (“[...] seules les misures nécessaires à la realization des buts vises dans ces derniers sons admises”). 382 Do original: “The Appellate Body has previously noted that the word "necessary" refers to a range of degrees of necessity, depending on the connection in which it is used. In the context of Article 2.2, the assessment of "necessity" involves a relational analysis of the trade-restrictiveness of the technical regulation, the degree of contribution that it makes to the achievement of a legitimate objective, and the risks non-fulfilment would create.” (WT/DS381/AB/R, p. 121, para. 318). Além dessa consideração, o OAp considerou, porém, que “[a]t one end of this continuum lies 'necessary' understood as 'indispensable'; at the other end, is 'necessary' taken to mean as 'making a contribution to.'" (Appellate Body Report, Korea – Various Measures on Beef, para. 161)” (WT/DS381, p. 121, nota 642). Sobre a necessidade / indispensabilidade de uma medida, cf. CROWLEY; HOWSE, 2014, p. 355). 198

O OAp considerou ainda que a utilização do comparativo “mais restritivo que o necessário” é um elemento indicativo de que, para a verificação da necessidade de uma medida conforme o Artigo 2.2 do TBT, uma comparação entre a medida em questão e possíveis alternativas pode ser realizada.383 No contexto do GATT, também a metodologia de aplicação das Exceções Gerais do Artigo XX assemelha-se aos critérios da adequação e necessidade do princípio da proporcionalidade. Para que uma medida observe os requerimentos da alínea (b) do Artigo XX, ela deverá ter por objetivo a proteção da vida ou saúde humana, animal ou vegetal e, além disso, ser necessária para a consecução desse objetivo. De maneira sintética, se houver outras opções razoáveis e menos restritivas ao comércio internacional do que aquela utilizada pelo Estado

383 Com maior detalhamento, no contexto do Artigo 2.2 do TBT, assim determinou o OAp: “319. What has to be assessed for "necessity" is the trade- restrictiveness of the measure at issue. We recall that the Appellate Body has understood the word "restriction" as something that restricts someone or something, a limitation on action, a limiting condition or regulation. Accordingly, it found, in the context of Article XI:2(a) of the GATT 1994, that the word "restriction" refers generally to something that has a limiting effect. As used in Article 2.2 in conjunction with the word "trade", the term means something having a limiting effect on trade. We recall that Article 2.2 does not prohibit measures that have any trade-restrictive effect. It refers to "unnecessary obstacles" to trade and thus allows for some trade-restrictiveness; more specifically, Article 2.2 stipulates that technical regulations shall not be "more trade-restrictive than necessary to fulfil a legitimate objective". Article 2.2 is thus concerned with restrictions on international trade that exceed what is necessary to achieve the degree of contribution that a technical regulation makes to the achievement of a legitimate objective” (WT/DS381/AB/R, p. 122, para. 319, notas de rodapé suprimidas). Na análise do mesmo dispositivo, o OAp considera também a quem cabe o ônus da prova para a demonstração da existência de alternativas menos restritivas ao comércio internacional (cf. WT/DS381/AB/R, para 323 e ss.). 199

regulador, tal medida não poderá ser considerada necessária para efeitos da alínea (b)384. A alínea (g), por sua vez, apresenta uma metodologia diversa devido à ausência do vocábulo necessária em sua redação. Após considerar se a medida tem por objetivo a conservação de recursos naturais exauríveis, não se procede à verificação de se a medida é necessária para tal objetivo. A exigência da alínea (g), nesse sentido, é mais frouxa, devendo estar apenas relacionada a tal conservação. Por fim, como exige a redação dessa hipótese, a medida deve ser aplicada em conjunto com restrições também no consumo e produção domésticos385. A verificação da adequação e necessidade de uma medida restritiva à proteção ambiental (“objetivo legítimo” conforme TBT ou subsunção às alíneas e chapeau do Artigo XX), assim, não é novidade ao MSC/OMC. Portanto, a aplicação desses critérios no âmbito da verificação específica do aspecto jurisdicional de uma medida mostra-se conveniente, e passível de desenvolvimento casuístico. Esses dois critérios, então, seriam introdutórios ao terceiro elemento da proporcionalidade na verificação da extensão regulatória lícita de uma medida protetiva ao meio ambiente. O último critério, proporcionalidade em sentido estrito, é o mais sensível para os propósitos aqui sugeridos. Pela análise dessa

384 Para um maior detalhamento da metodologia do Artigo XX(b), cf. VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 603 e ss. 385 Para um maior detalhamento da metodologia do Artigo XX(g), cf. VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 610 e ss. 200

etapa, verifica-se se “a seriedade da intervenção e a gravidade das razões que a justificam estão em proporção adequada entre si”386. Aqui, não basta que uma medida seja adequada e até mesmo necessária à conservação de um determinado bem, inclusive em comparação com outras medidas disponíveis para aplicação. Se ela for desproporcional em relação ao interesse envolvido – i.e., se para a proteção do meio ambiente ela for muito onerosa à soberania do Estado afetado pela medida – o critério não terá sido observado387. Cabe aqui anotar que o caso extremo de incidência da proporcionalidade em sentido estrito seria a infração do princípio da não intervenção em direito internacional. Contudo, considerando uma aplicação desse princípio conforme o subtópico anterior, uma medida que infringisse essa proibição sequer poderia ser analisada, pois, antes mesmo de estar em desconformidade com a interpretação de jurisdicionalidade aqui sugerida, estaria infringindo uma norma fundamental de direito internacional ao impor coercitivamente medidas comerciais a um outro Estado. Assim, o teste da proporcionalidade em sentido estrito exige uma maior sensibilidade do que a análise de elementos coercitivos. Propõe-se que o critério da proporcionalidade em sentido estrito seria a melhor forma de averiguar a extensão com a qual um Estado pode

386 Do original: “The principle of proportionality strictu sensu (Proportionalität) requires that ‘the seriousness of the intervention and the gravity of the reasons justifying it are in adequate proportion to one another’”. (BVerfGE apud EMILIOU, 1996, p. 32) 387 Ruozzi, ademais, explica que a aplicação do terceiro critério do princípio da proporcionalidade “implique nécessairement la mise em discussion du niveau de protection poursuivi par les États” (RUOZZI, 2009, p. 476). 201

legislar sobre a proteção ambiental quando essa proteção incide sobre a atividade econômica ou a produção de outro Estado a partir da casuística. Em todos os três casos descritos no capítulo anterior, a motivação regulatória das medidas envolvia influenciar os demais países – ou mesmo a comunidade internacional – a adotar políticas ambientais mais favoráveis ao bem em questão. No caso US – Shrimp, por exemplo, parte da defesa dos Estados Unidos foi pautada na alegação de que as medidas tomadas pelos países reclamantes não eram suficientes para a proteção das tartarugas marinhas388. A proporcionalidade em sentido estrito não figura, direta ou indiretamente, na redação dos Artigos XX e alíneas do GATT ou 2.2 do TBT. Contudo, o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS)389 possui um artigo, e um dispositivo em particular, que se aproxima dessa ideia390. O Artigo 5 do SPS estabelece diretrizes para a “avaliação do risco e determinação do nível adequado da proteção

388 No relatório do painel: “According to the United States, such measures were of some value when taken in conjunction with other measures that protected older sea turtles, such as the required use of TEDs. However, certain nations, and in particular India, Malaysia and Pakistan, had not yet adopted effective measures to protect older sea turtles. One reason the governments maintained such measures could be that the measures protecting eggs and hatchlings appeared, on first blush, to produce impressive results” (WT/DS58/R, p. 15, para. 3.22). 389 O SPS é um acordo que regula medidas sanitárias e fitossanitárias, elaboradas com a finalidade de proteção da saúde humana, animal ou vegetal, que tenham implicação sobre o comércio internacional, conforme dispõem os Artigos 1.1 e 2.1 de seu texto. Há, contudo, a necessidade de que as medidas adotadas nesse sentido sejam respaldadas em critérios científicos suficientes. 390 ANDENAS; ZLEPTING, 2007, p. 83 202

sanitária e fitossanitária”, e, em síntese, estabelece linhas para que a avaliação das medidas sanitárias e fitossanitárias (i.e., restrições ao comércio de natureza não tarifária) sejam tomadas em consonância com uma adequada avaliação de risco391. A partir disso, o Artigo 5.4 desse acordo determina que os “Membros devem, ao determinarem o nível adequado de proteção sanitária e fitossanitária, levar em consideração o objetivo de reduzir ao mínimo os efeitos negativos ao comércio”392. Assim, o SPS (acordo que pode, inclusive, envolver questões ambientais393) figura um exemplo da forma como o princípio da proporcionalidade em sentido estrito é reconhecido, ainda que indiretamente, pelo sistema OMC. O objetivo de minimizar efeitos negativos ao comércio não foi analisado pelo OAp394, mas a determinação em se estabelecer um “nível adequado de proteção” foi reconhecida pelo mesmo órgão395. Considerando as normas relevantes conjuntamente com a prática existente, particularmente porque pertinentes a questões

391 MDIC, SPS. 392 MDIC, SPS. 393 A relevância dos PPMs no âmbito do SPS, por exemplo, é expressamente reconhecida pelo Artigo 5.2 , quando este estabelece que serão considerados os processos e métodos de produção pertinentes à proteção sanitária e fitossanitária. 394 OMC, WTO Analytical Index: SPS. 395 “206. The Panel in EC — Hormones held that Article 5.4 does not impose any obligation upon the Members (and is more of a hortatory provision), but it still has to be taken into account when interpreting the other provisions of the SPS Agreement: “Guided by the wording of Article 5.4, in particular the words ‘should’ (not ‘shall’) and ‘objective’, we consider that this provision of the SPS Agreement does not impose an obligation. However, this objective of minimizing negative trade effects has nonetheless to be taken into account in the interpretation of other provisions of the SPS Agreement.” (OMC, Analytical Index: SPS). 203

ambientais, verifica-se ser possível a aplicação do princípio da proporcionalidade e suas subdivisões no âmbito da averiguação da extrajurisdicionalidade de medidas protetivas ao meio ambiente. A proporcionalidade como definida acima e aplicada ao direito da OMC relaciona-se intimamente com o critério da necessidade presente em diversas alíneas do Artigo XX do GATT, dentre os quais o Artigo XX(b)396. No âmbito do caput do mesmo artigo, a proporcionalidade relaciona-se com a aplicação da medida – esta não pode ser aplicada de maneira a constituir uma discriminação arbitrária ou injustificada, ainda que se adeque ao critério da necessidade397. No caso US – Shrimp, por exemplo, a medida estadunidense, em sua aplicação, foi julgada constituindo uma discriminação injustificada, dentre outros motivos, por exigir que o programa regulatório protetivo a tartarugas marinhas fosse essencialmente o mesmo que aquele adotado pelos Estados Unidos. Assim, a aplicação do caput do Artigo XX pode requerer a incidência, quando um Estado invoca as Exceções Gerais para a justificativa de uma medida comercial, do uso de alguma forma de análise de proporcionalidade398.

396 Emily Crawford esclarece: “Proportionality in the WTO jurisprudence mainly centres on the balancing of trade versus non-trade values and interests. Case-law in the WTO has frequently focused on the public policy exceptions under Article XX, namely for the protection of human, animal, or plant life or health and conservation of exhaustible natural resources” (CRAWFORD, E., 2015, p. 5). 397 Cf. VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 618 e ss.. 398 Isso é particularmente relevante no caso de medidas comerciais cuja justificativa não passe pelo teste de necessidade imposto por algumas das alíneas do Artigo XX, tais como a alínea (g). Sobre o tema, assim escreveu o OAp no caso US – Gasoline: “The Panel noted that some of the subparagraphs 204

De fato, como demonstrado acima, as premissas básicas da proporcionalidade são aplicadas pelo OAp quando este pondera a subsunção das Exceções Gerais a uma medida contrária às disposições do GATT; os dois principais casos levados à OMC relativos a medidas extraterritoriais envolvem exceções gerais. Apesar disso, medidas comerciais com escopo ambiental nem sempre estarão restritas às disposições do GATT – e, considerando que o Artigo XX escusa apenas medidas que violem o Acordo Geral, a análise de normas de direito interno dessa natureza poderá ser realizada no âmbito, por exemplo, do TBT. Assim, por meio da utilização do princípio da proporcionalidade, será possível averiguar se uma medida com efeitos extraterritoriais é razoável na aplicação dessa extraterritorialidade, independentemente do acordo envolvido nessa análise.

of Article XX state that the measure must be ‘‘necessary’’ or ‘‘essential’’ to the achievement of the policy purpose set out in the provision (cf. subparagraphs (a), (b), (d) and (j)) while subparagraph (g) refers only to measures ‘‘relating to’’ the conservation of exhaustible natural resources. This suggests that Article XX(g) does not only cover measures that are necessary or essential for the conservation of exhaustible natural resources but a wider range of measures. However, as the preamble of Article XX indicates, the purpose of including Article XX(g) in the General Agreement was not to widen the scope for measures serving trade policy purposes but merely to ensure that the commitments under the General Agreement do not hinder the pursuit of policies aimed at the conservation of exhaustible natural resources. The Panel concluded for these reasons that, while a trade measure did not have to be necessary or essential to the conservation of an exhaustible natural resource, it had to be primarily aimed at the conservation of an exhaustible natural resource to be considered as ‘‘relating to’’ conservation within the meaning of Article XX(g)” (WT/DS2/AB/R apud VAN DEN BOSSCHE). Sobre as metodologias específicas de cada alínea, cf. VAN DEN BOSSCHE, 2005, pp. 602 e ss.. Sobre as diferentes abordagens do OAp com relação às alíneas e o teste necessidade, cf.,CRAWFORD, E., 2015, p. 05. 205

4.3 SISTEMATIZAÇÃO DA METODOLOGIA SUGERIDA

Partindo das definições conceituais e parâmetros normativos realizados no Capítulo 2 e dos estudos de casos conforme o direito da OMC apresentados no Capítulo 3, o presente capítulo partiu das seguintes premissas: i. Uma medida protetiva ao meio ambiente pode ser considerada como extraterritorial (i.e., tendo efeitos extraterritoriais) quando o bem ambiental por ela protegido encontrar-se fora do Estado que a emana, e/ou quando as atividades atingidas por suas determinações forem realizadas também fora desse território. ii. A extraterritorialidade de uma medida comercial entendida dessa maneira não significa a sua antijuridicidade perante o direito internacional ou o direito da OMC, desde que haja um nexo causal entre o Estado regulador e o bem protegido, e que a medida não seja excessiva em termos de interferência regulatória nos Estados por ela afetados.

A exigência do nexo causal, como visto, parte do julgado US – Shrimp, que, apesar de não diretamente tratar do aspecto extraterritorial da medida estadunidense protetiva a tartarugas marinhas, ressaltou a existência de uma conexão entre as espécies tuteladas e os Estados Unidos. Essa verificação se deu, naquele caso concreto, por meio da análise de MEAs relevantes ao tema. Por esse motivo, assim como pelo fato de que MEAs são instrumentos centrais na mitigação da tomada de medidas unilaterais para a proteção do meio ambiente, tais acordos perfazem importantes parâmetros para a verificação da 206

legitimidade de um Estado em preservar um determinado bem ambiental. Assim, em um primeiro momento, é necessário partir da averiguação do nexo causal entre o Estado regulador e o bem ambiental tutelado pela medida. Não se discute aqui a interdependência dos ecossistemas globais; contudo, comprovar o interesse legítimo (e jurídico) na proteção de um rio interior localizado em um país que não divide fronteira com o país regulador, por exemplo, parece uma empreitada ardilosa. Uma medida comercial que visasse a tal proteção por meio de interferência (latu sensu) econômica não parece ser proporcional (latu sensu). Medidas protetivas ao meio ambiente muitas vezes envolvem algum efeito sobre atividades ocorridas fora do território do Estado regulador e cujas externalidades não são diretamente sentidas pela importação do produto – é o caso da regulação de medidas baseadas em npr-PPMs. Outro exemplo é o caso EC – Aviation, que contabiliza emissões de carbono realizadas fora do território da União Europeia. Esse tipo de regulação, contudo, possui arguivelmente efeitos extraterritoriais. Portanto, em um segundo momento, examina-se o que aqui se chama de possibilidade regulatória ou limite da extensão regulatória naquele caso concreto. Para isso, sugere-se, para se adequar ao direito internacional e ao direito da OMC, a medida não contrarie o princípio da não intervenção e que a medida se adeque aos três elementos do princípio da proporcionalidade, i.e., adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Particularmente, ao se analisar se uma medida extraterritorial é também extrajurisdicional, defende-se uma 207

aplicação do princípio da proporcionalidade de modo a ponderar se a interferência (não coercitiva) ocasionada pela medida é razoável em relação ao bem ambiental que se deseja proteger. Dos critérios enumerados acima, o mais sensível para essa averiguação é o da proporcionalidade em sentido estrito. Evidentemente, uma interferência excessiva no sistema econômico de países terceiros possivelmente seria contrária ao próprio princípio da não proibição. Não sendo este o caso, todavia, a verificação de se uma medida possui uma interferência razoável, proporcional (em sentido estrito) ao fim perquirido, exige um desenvolvimento na análise casuística, que leve em consideração elementos tais como referências probatórias e a situação econômica do país afetado. A metodologia aqui apresentada pode ser sistematizada conforme o seguinte esquema, cuja verificação deve ser realizada de maneira sucessiva:

208

Evidentemente, o estabelecimento de uma abordagem específica (ou, por outro lado, a abertura para uma margem de discricionariedade) a cada um dos elementos do princípio da proporcionalidade cabe ao MSC/OMC, e, particularmente, ao Órgão de Apelação. Apenas com a casuística e a verificação das limitações dos casos concretos seria possível aplicar na prática a sugestão aqui realizada com maior concretude. De todo modo, a pesquisa aqui apresentada buscou abarcar, seguindo os três casos-referência, elementos em comum que pudessem ser utilizados em qualquer hipótese de medida extraterritorial, a partir das definições estabelecidas no Capítulo 2. 209

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Talvez seja lugar-comum a afirmação de que o meio ambiente não tem fronteiras, tampouco as devem conhecer os esforços regulatórios para a sua proteção. Não obstante, os princípios sobre os quais se pauta o direito internacional – particularmente, no contexto do presente tema, aqueles da soberania e a não intervenção – acabam, por vezes, constituindo obstáculos para a adoção de políticas abrangentes para a tutela ambiental. Nesse sentido, medidas restritivas ao comércio internacional com escopo ambiental podem, para além das demais controvérsias que suscitam (e.g., protecionismo disfarçado, tratamento discriminatório de facto ou de jure entre países), revolver também o debate sobre os limites jurisdicionais de um Estado quando da imposição de políticas conservatórias por meio de normas comerciais. Nesse âmbito, dois regimes jurídicos mostram-se pertinentes e interligados, de modo que o estudo de ambos, simultaneamente, faz-se necessário: o direito internacional geral e o arcabouço jurídico da Organização Mundial do Comércio. Esta última, apesar de ser definida como um sistema lex specialis com relação ao primeiro, dele não pode ser separada, não podendo ser lida em “isolamento clínico” – como bem consignou já o primeiro julgado do Órgão de Apelação da OMC, em 1996. Diante desse quadro, e tendo em mente particularmente que a OMC não possui normas ou julgados que esclareçam a questão de maneira suficiente, partiu-se de conceitos classicamente definidos pelo direito internacional geral, em especial a noção de jurisdição 210

extraterritorial conforme a definição da CDI, bem como dos princípios gerais que regem a jurisdição dos Estados, para formular uma metodologia pretensamente mais clara sobre o tema. O caso US – Shrimp, ainda que um tanto esclarecedor, não se mostrou suficiente para o exaurimento do problema. Não obstante, o critério do nexo suficiente entre o Estado regulador e o bem protegido por ele estabelecido é valioso, e vai, conforme demonstrado, perfeitamente ao encontro da doutrina clássica do direito internacional sobre as normas de jurisdição. Esse critério foi utilizado, após o estudo dos conceitos clássicos de direito internacional geral aplicáveis, como ponto de partida para a proposição de uma metodologia que não fosse nem demasiado restritiva de modo, nem excessivamente ampla. O simples critério do nexo suficiente, contudo, demandava maior detalhamento; particularmente, identificou-se a necessidade de determinação de critérios mais concretos para a averiguação casuística da existência de tal liame. No caso US – Shrimp, as disposições da CITES, um acordo multilateral ambiental que envolvia todos os Estados-parte no litígio, foram utilizadas para corroborar o “nexo suficiente” entre os Estados Unidos e o interesse tutelado medida em questão. Não apenas por essa rationale, mas também pelo próprio fato de que MEAs (ou acordos internacionais em geral) são por excelência a forma de tratamento multilateral de questões ambientais, em detrimento da adoção de políticas unilaterais, constatou-se que o primeiro passo a ser seguido para a averiguação da existência do nexo suficiente é verificar a existência de acordos internacionais que atestem que o Estado tem efetivo interesse no bem-objeto da medida comercial em disputa, e 211

toma ações multilaterais nesse sentido. Esse exercício, no âmbito da Organização Mundial do Comércio não apenas é permitido (conforme, particularmente, a lógica da interpretação sistêmica consolidada pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados), mas é determinado pelo Entendimento sobre o Mecanismo de Solução de Controvérsias, em seu Artigo 3.2, quando este indica que as disposições dos acordos abrangidos devem ser analisadas “em conformidade com as normas correntes de interpretação do direito internacional público”. Um interesse legítimo de um Estado na proteção de um bem ambiental pode ser inferido, como dito, por meio da existência de MEAs àquele respeito. Contudo, nem sempre tais acordos compreendem os bens ambientais que o Estado pode desejar tutelar, ou não necessariamente o Estado em questão será signatário de MEAs relevantes. Nesse caso, a segunda solução sugerida por este trabalho é verificar se o bem ambiental em questão está compreendido pelo conceito de global common, cuja proteção, defende-se, é entendida como uma obrigação erga omnes. A sugestão de melhores critérios para a averiguação do nexo suficiente, contudo, não contemplava a inteireza da problemática em questão. Parte da controvérsia reside não apenas no fato de que o bem protegido pode não estar inteiramente dentro do território (i.e., sujeito à jurisdição territorial) do Estado regulador, mas também no alcance que os efeitos da regulação per se podem acarretar no processo produtivo de outro Estado. O que se demonstrou, contudo, particularmente a partir do princípio da não intervenção, é que o simples fato de que uma norma possa ter influências mercadológicas em outro Estado não configura exercício extrajurisdicional do Estado regulador. Uma leitura conjunta 212

dos princípios que regem a jurisdição em direito internacional (que é basicamente um corolário da soberania dos Estados) e do princípio da não intervenção concede as bases para essa interpretação. Por fim, não é suficiente que a medida não seja contrária ao princípio da não intervenção. Um determinado nível de interferência é permitido; mesmo porque normas de direito interno de um país acabam sempre repercutindo, ao menos indiretamente, em aspectos internos de outros países. Apesar disso, sugere-se aqui que a interferência deverá, acima de tudo, ser proporcional, conforme os três elementos da proporcionalidade descritos no Capítulo 4: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. O trabalho do Órgão de Apelação para o esclarecimento do problema aqui proposto é tímido. As partes envolvidas nos litígios que envolveram a discussão do tema, de igual maneira, não se mostraram particularmente interessadas em tal elucidação. Isso pode ser explicado pelo fato de que o direito da Organização Mundial do Comércio – e, consequentemente, os litígios levados a seu mecanismo de resolução de controvérsias – é altamente técnico e revolve elementos ligados a uma série de outros fatores. A interpretação jurídica dos acordos abrangidos normalmente centra-se em questões diretamente reguladas pelos dispositivos de tais acordos. Não se descarta que, eventualmente, o OAp ou um painel seja instado a, mais diretamente, posicionar-se sobre a extraterritorialidade de medidas restritivas ao comércio – até mesmo com escopo não necessariamente ambiental. Contudo, ainda que o OAp reconheça a relevância da questão, enquanto ela não for central à disputa, não deve haver um pronunciamento mais claro sobre o tema. Essa “centralidade” 213

poderá se dar tanto pela ênfase das partes litigantes na necessidade de esclarecimento do tema (o que, contudo, não foi suficiente no caso US – Shrimp, em que tanto os reclamantes quanto o reclamado voltaram boa parte de suas alegações à suposta extrajurisdicionalidade inerente da redação do Artigo XX) ou por um caráter coercitivo mais forte da medida que for disputada. Esse caráter mais forte, por sua vez, poderá residir, por exemplo, num efeito comercial extraterritorial mais sensível ao país afetado, ou numa eventual medida que regule com maior contundência PPMs de outro país. Se por um lado a função jurisdicional do MSC/OMC não tem sido explorada à sua máxima potência para balizar a ação do Estado em emanar medidas protetivas ao meio ambiente, por outro lado verifica-se que a competência prescritiva estatal possui todos os elementos necessários para, dentro dos limites do direito da OMC, introduzir restrições comerciais que visem à proteção ambiental. Seja qual for o âmbito comercial de interesse no sistema multilateral de comércio, parece razoável afirmar que tais medidas serão aceitas e compatíveis com esse regime jurídico se forem impostas de maneira não discriminatória. Essa possibilidade aumenta suas chances caso o Estado regulador demonstre amplos esforços em demonstrar uma ação multilateral nesse sentido, ainda que não resguardada necessariamente por um MEA. No caso US – Shrimp, por exemplo, uma negociação multilateral e uma ação conjunta para a proteção das tartarugas marinhas com os países interessados advinda da iniciativa estadunidense poderia ter mitigado a ideia de que seu objetivo era impor seus métodos protetivos a outros países. 214

Todas essas considerações foram realizadas num âmbito de pesquisa bastante específico, conforme delimitado no Capítulo 2. Frisa- se, não obstante, que a possibilidade jurídica de imposição de medidas comerciais ambientais com efeitos extraterritoriais, no entanto, não deve ser a maneira proeminente de lidar com questões ambientais, evidentemente. Nesse sentido, o presente trabalho ressalta a concordância com a colocação de Young, descrita no Capítulo 3.3, de que medidas do gênero, apesar de contribuirem para lidar com questões ambientais, acarretam efeitos adversos para países que, em realidade, não são os contribuintes primários da degradação do meio ambiente. Mais especificamente, tendo-se em conta que tais medidas provavelmente emanarão de países desenvolvidos, ressalta-se que o foco do esforço para a proteção ambiental global não deve ser no sentido de impor aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento um ônus de lidar com questões ambientais cuja origem muitas vezes se deve mais à ação dos daqueles do que destes últimos. Independentemente de considerações econômicas, morais ou políticas acerca da melhor forma de abordar questões ambientais em âmbito internacional, a conclusão alcançada por este trabalho (que busca se limitar ao âmbito jurídico) é a de que medidas ambientais restritivas ao comércio internacional e que tenham efeitos ou alcance extraterritorial não necessariamente serão contrárias ao direito da Organização Mundial do Comércio ou aos princípios de direito internacional público. A avaliação, contudo, deverá ser casuística, e a interação ambiente versus comércio internacional pode ser traiçoeira. As duas facetas da extraterritorialidade, como aqui explanado, são apenas um setor dentre as diversas problemáticas incidentes dessa relação. 215

Evidentemente, a análise acerca da extrajurisdicionalidade de uma medida não preclui todos os demais testes jurídicos aos quais uma medida dessa natureza poderá e/ou deverá ser submetida quando confrontada no âmbito das normas da OMC. Acordos como o GATT e o TBT possuem, como é sabido, diversas implicações nesse âmbito – o próprio Artigo XX e alíneas do GATT constitui, por si só, um exercício cuja análise requer um balanceamento minucioso entre as premissas do sistema multilateral de comércio e os bens visados por medidas ambientais. A extraterritorialidade de tais medidas é, portanto, apenas um desses aspectos; contudo, não necessariamente será um óbice jurídico.

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