UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Carla de Fátima Cordeiro

De Honório a Archanjo: Jorge Amado, questão racial e formação nacional

Campinas 2017

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia Ciências e Letras

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado composta pelos professores doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em de março de 2017, considerou a candidata Carla de Fátima Cordeiro aprovada.

Profa. Élide Rugai Bastos-UNICAMP Profa. Dra. Eliane Veras Soares – UFPE Profa. Dra. Maria Fernanda Lombardi Fernandes- Unifesp Prof. Dr. Marcelo Siqueira Ridenti- UNICAMP

Profa. Dr. Mario Augusto Medeiros da Silva -UNICAMP

A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

Para vovó Zizila.

Agradecimentos

Ao longo desses cinco anos este trabalho não teria se realizado sem o apoio de pessoas e instituições. Agradeço especialmente à Élide Rugai Bastos pela acolhida e por mostrar outros caminhos possíveis. À Célia Tolentino, com quem tudo começou e não teria chegado até aqui sem seu entusiasmo e provocações. A Andreas Hofbauer e Claude Lepine (em memória) por me incentivar a estudar a questão racial no Brasil. À Rita Chaves, Tania Macedo e Eliane Veras pelas orientações de pesquisa sobre Moçambique. À Gilda Portugal Gouveia, cujas discussões em suas aulas geraram bons frutos. Agradeço à Capes pelos quarenta e oito meses de bolsa, auxílio imprescindível para que eu realizasse a pesquisa. Ao programa PDSE/Capes (Programa Doutorado Sanduíche no Exterior), que tornou realidade a pesquisa em Moçambique, como também a prestatividade de seus técnicos em sanar dificuldades e dúvidas. Aos funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), em especial Sonia Cardoso e Daniel Cardoso da seção de pós-graduação, pela pronta atenção dispensada no auxílio de assuntos burocráticos e aos funcionários da biblioteca. À Escola Estadual Toufic Joulian, cuja gestação e execução deste trabalho foi concomitante ao meu ingresso na escola, pelo apoio dos funcionários, amizades e várias formas de incentivo. Em especial a Nice Mota, pela amizade e disposição em ajudar nas solicitações mais absurdas, Ieda Lopes, Cleuza Borges, Jonas Ferreira, Wagner Santos, Débora Bueno, Ruth Oliveira e Robson Andrade pela amizade e generosidade. Também agradeço aos alunos queridos, que serviram de inspiração e força. Aos grupos de estudos NUPE (Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão) e Baleia na Rede, que foram de fundamental importância para o desenvolvimento desta pesquisa e nos quais cumplicidades foram construídas. À Fundação Casa de Jorge Amado pela atenção e empenho para que a pesquisa se realizasse em seu acervo, com destaque para a presteza e o profissionalismo de Bruno Fraga, Marina Amorim, Karina Barbosa e Liliam Leal no auxílio na coleta de informações. Aos funcionários do AHM (Arquivo Histórico de Moçambique) pela disposição em ajudar, em especial a Antonio Sopa.

A Mario Augusto Medeiros da Silva e ao Marcelo Ridenti pela atenta leitura e elucidação de caminhos apresentados no exame de qualificação. À Eliane Veras e à Maria Fernanda Lombardi Fernandes por terem aceito o convite para compor a banca de defesa e as valiosas sugestões. À Moçambique que me deu tanto. Ao professor Francisco Noa pelo seu apoio e por ter acreditado na possibilidade dessa pesquisa mesmo em condições adversas. A Aureo Cuna e a Nataniel Ngomane pelas valiosas dicas. À Aissa Mithà Issak por quem a ideia das entrevistas se concretizou. Em especial à Dona Evangelina Medeiros (em memória), que abriu as portas de sua casa, a Carlos Carvalho, pela generosidade de apresentar seus amigos, que me receberam prontamente, e a Mota Lopes, pela disponibilidade e o auxílio em buscar fontes. A Luís Bernardo Honwana, José Pinto de Sá, Luís Carlos Patraquim, Antonio Sopa, Calane da Silva, Mia Couto, Sergio Vieira, Filomone Meigos, Marcelo Panguana, Ungulani Ba Ka Kosa, Joaquim Salvador e José Luis Cabaço, meu muito obrigado, reconhecimento e gratidão pelas memórias e reflexões compartilhadas. Aos amigos de hoje e sempre, de longe e de perto. À Rose Cerqueira, Lucia Helena Guerra, Farana Daud pelo apoio no cotidiano em Maputo. À Bruna Triana e Yssyssay Rodrigues por levar um pouquinho de Brasil para Moçambique. À Carmem Zimba e Lara Samuel por me fazer um pouco moçambicana. À Yara Ngomane pela recepção inicial. A Milton Papadakis pelo apoio além-mar. A César Santos, Nafissa Ismael, Fauzia Salimo, Romão Cossa, Denise Costa, Gabriela Almeida, Anna Persdotter, Fabio Provenzano e Lakshmi Resende pela companhia sempre agradável. Aos companheiros de jornada, que estão comigo desde Marilia, Erica Magi, Silvana Benevenuto, Alexandro Paixão, Natércia Silvestre e Odirlei Pereira (em memória). Em especial à Elisangela Santos (Lica) pela acolhedora amizade e cumplicidade; à Juliana Nicolau pelo companheirismo de sempre; à Silvana Ferreira Lima, pelo otimismo e perseverança que serviram de incentivo. Aos colegas de Unicamp Fernando Matias, Nara Roberta, Daniel Martins, Camila Teixeira pela amizade além dos estudos. Lidiane Maciel e Danilo Arnaut pelas dicas e orientações e à querida Vera Ceccarelo presente nas alegrias e nas preocupações. À Patricia Meira e Denise Meira pela acolhida soteropolitna. Ao bloco das crioulas, Jacqueline Jaceguai e Juliana Virgínio, pela força em todos os momentos. Às meninas Kelly Oliveira, Lu Babinski, Vanda Carvalho, Liliani Ferreira, Ana Paula Carvalho e Nalva Santana

pelas risadas diárias. Aos profissionais, Elizabeth, Maira e Alexandre dos Santos – como diz o ditado “corpo são, mente sã”. Para encerrar e primordialmente, a todos da minha família que me incentivaram em cada momento por mais difíceis que fossem, especialmente minha mãe, Heloisa, que nunca mediu esforços para que meus sonhos se realizassem, além de uma grande incentivadora da leitura e da escrita. Agradeço também ao meu pai Antonio Cordeiro e a minha irmã Patricia Cordeiro, principalmente porque que fizeram que a execução deste trabalho fosse minha única preocupação durante estadia em Maputo; minha irmã, além de tudo, foi uma leitora atenta deste trabalho. Lembro também dos meus tios Elizabeth, Roseli e Roberto Justiniano, exemplos de perseverança, e carinhosamente da minha avó Maria Basília Justiniano, a quem devo a existência de tudo. Kanimambo!

O que está em causa é o Homem. O Homem, as suas preocupações, as suas reivindicações e os seus ideais. Postos de que forma? Uns põem no gatilho, outros põe no papel. O poeta e o homem constituem uma unidade. Não há Homem político e o Homem poeta. (José Craveirinha)

Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado. (Guimarães Rosa)

O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. (Mia Couto)

Resumo Esta tese se propõe observar a questão racial no escritor Jorge Amado (1912-2001) por meio da relação entre trajetória, ambiência intelectual, circulação e texto literário e do estudo da recepção dos seus escritos pelos intelectuais de Moçambique com base no período entre a década de 1930 e meados de 1970. Um dos escritores mais famosos e amplamente divulgado no Brasil e no mundo, Amado, que tinha como objetivo fazer uma literatura popular, é notadamente conhecido como divulgador de uma interpretação da formação brasileira calcada na mestiçagem. Em um primeiro momento, é observado o contexto de produção de ideias e os diálogos travados pelo romancista referente à questão racial. Em seguida, observa-se suas criações literárias e o que essas dizem a respeito dos personagens negros, na tentativa de relacionar texto e contexto como uma unidade para apreender sua observação sobre essa questão. Em Moçambique, foi observada a recepção dos romances de Amado durante o período de atuação do movimento de resistência ao colonialismo português.

Palavras-chave: Jorge Amado; pensamento social; literatura e sociedade; questão racial; anticolonialismo; Moçambique.

Abstract

The present study proposes to observe the racial question in the work of the writer Jorge Amado (1912-2001) through the relation among trajectory, intellectual ambience, circulation and literary text and the study of the reception of his writings by the intellectuals of Mozambique in the 1930s and mid-1970s. One of the most famous writers and widely circulated in Brazil and around the world, Amado, whose aim was to make a popular literature, is well-known as a promoter of an interpretation of the Brazilian formation based on miscegenation. At first, the context of the production of his ideas and the dialogues concerning the racial question is observed. Then is noticed his literary creations and what they say about black characters, in an attempt to relate text and context as a unit to apprehend their observation on this question. In Mozambique, the reception of Amado's novels was observed during the period of resistance movement to Portuguese colonialism.

Key-words: Jorge Amado; social thought; literature and society; racial-issue; anticolonialism; Mozambique.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...... 14 Parte I- Desvendando contextos ...... 21 CAPITULO I – Os encontros dos anos 1930 ...... 22 De menino grapiúna ao rebelde dos anos 1930: primeiros passos ...... 22 O negro na formação da nação ...... 28 O país do carnaval: uma percepção da formação nacional ...... 31 Década de 1930: novos encontros e reconhecimento como romancista ...... 37 Encontro com o PCB e romance social ...... 37 Encontro com a questão racial ...... 45 Questão de raça, questão de classe...... 49 CAPITULO II – Antifascismo e olhar para o patriarcado ...... 63 Prestes e Castro Alves: biografar para não esquecer ...... 63 Antifascismo e democracia racial ...... 66 Questão de raça, questão de classe: uma tensão ...... 70 CAPITULO III – Bahia, régua e compasso: Brasil-Bahia-África ...... 76 Materialismo que não se limita: afastamento do PCB ...... 76 Amado com cravo e canela: pós-Gabriela ...... 82 O nacional desenvolvimentismo e ditadura militar ...... 86 África, anticolonialismo e o futuro do socialismo ...... 91 “Baiano é um estado de espirito” ...... 94 Questão de raça, um ideal de nação...... 104 Equilíbrio entre opostos? Gilberto Freyre e Jorge Amado...... 112 Parte II – Entre Honório e Arcanjo: ...... 120 O negro nas narrativas de Jorge Amado ...... 120 CAPÍTULO IV- Um olhar para a nação grapiúna: obras do ciclo do cacau ...... 121 Encontro da arte com o proletário: Cacau ...... 121 Sinhô Badaró: saga das roças de cacau ...... 127 O camarada Honório: Cacau ...... 136 O remorso de Damião: Terras do sem fim ...... 141

Os filhos da terra em São Jorge dos Ilhéus: Antonio Vitor, Raimunda e Joaquim ...... 149 A mulher e o homem negro rural ...... 153 CAPITULO V- Entre putas e vagabundos: romances sobre o povo ...... 157 O encontro com e negro e o proletário ...... 157 Crônica de uma cidade do interior ...... 161 Uma tese em forma de romance ...... 170 Ser negro ser proletário: Jubiabá ...... 175 “Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim”: Gabriela, cravo e canela ...... 183 “Todos pobres, pardos e paisanos” em Tenda dos milagres ...... 192 “Há de nascer, de crescer e se misturar...” ...... 199 Parte III- Jorge Amado, um espelho ...... 203 CAPITULO VI – Jorge Amado: Recepção em Moçambique ...... 204 Literatura e formação nacional ...... 206 A história que nos une: diálogos Brasil-Moçambique ...... 216 Balduíno vive aqui! ...... 222 Brasil, pra mim...... 232 Entre ser a-racial e a democracia racial ...... 237 Jorge Amado, nação e utopia ...... 241 CONCLUSÃO ...... 246 Das três a uma: Jorge Amado, personagens negros e um território que queria ser nação ...... 246 BIBLIOGRAFIA ...... 254

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INTRODUÇÃO

Durante o tempo dedicado ao estudo da questão racial e do pensamento social na literatura1, muitas vezes me foi sugerido que olhasse atentamente para Jorge Amado, pois havia a sugestão de serem as narrativas do escritor baiano um espaço em que o negro ganhava uma percepção diferente, com maior destaque do que normalmente é dado na literatura e opiniões que variam entre positivação e esteriotipação. Dado que o escritor foi um destacado militante comunista e possui uma extensa obra com números superlativos de vendagem e popularidade2, logo apareciam questões, como: “Até onde a compreensão marxista influenciou seus romances?”; “Existem rupturas ou linearidades sobre a percepção do negro?”; “Quem foram os seus interlocutores?”; “Quais eram suas preocupações ao tratar da questão racial?”; “Quem é o narrador amadiano?”; “Como Jorge Amado se tornou uma referência de um pensamento sobre o Brasil destacando a mestiçagem?”; entre tantas outras questões. Motivada por essas sugestões e questões, a tese De Honório a Archanjo: Jorge Amado, questão racial e formação nacional propõe apontar contextos intelectuais e processos sociais a respeito da discussão sobre a questão racial na obra do escritor e desdobra-se no estudo sobre a recepção dos escritos do romancista baiano pelos intelectuais de Moçambique no contexto de movimento anticolonial. Pretende-se, assim, desvendar o percurso do pensamento de Jorge Amado sobre a questão racial, por meio da relação entre trajetória, ambiência intelectual, circulação e texto literário. A orientação metodológica exige a reconstrução de parte do debate intelectual no qual se insere o objeto textual e da trajetória do autor no processo social mais amplo. Para observar a recepção e a circulação dos romances de Amado durante o período de atuação do movimento de resistência ao colonialismo português em Moçambique, foram considerados como fonte arquivos de jornais e revistas da época, entrevistas e depoimentos de intelectuais que atuaram no período entre 1945 e 1975.

1 Desde a iniciação cientifica, quando meu objeto de estudo era o escritor Jose Lins do Rego, Jorge Amado me era apresentado como uma contraposição ao escritor paraibano no tratamento da questão racial. A proposta inicial era fazer um estudo comparativo entre os dois escritores, mas devido a extensão da produção de Amado e a riqueza que apresentou as discussões detive somente nele. 2 O escritor é o um dos que mais vendeu livros no Brasil, é difícil calcular o número de livros vendidos segundo o editor, Alfredo Machado, até 1977 eram 4 milhões de exemplares no Brasil e 10 milhões no exterior, em 2001 segundo o jornal Folha de São Paulo eram 20,7 milhões de exemplares vendidos no país, sendo Capitães de areia o líder de vendas até hoje, segundo a Companhia das letras, a edição bolso tem 284.839 exemplares vendidos e a edição “normal” tem 628.519 exemplares circulando desde 2008, somando no total mais de cinco milhões de exemplares vendidos . Foram 45 livros, traduzidos para 49 idiomas, existindo também exemplares em braile e em formato de áudio livro. Em 2009, o projeto Conexões Itaú Cultural organizou o Mapeamento da Literatura Brasileira no Exterior com a pergunta: Quem são os autores nacionais mais lidos no exterior?, sendo Amado o quarto mais citado numa metodologia que priorizava trabalhos acadêmicos.

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Ao propor nesta pesquisa observar como a questão racial é abordada em Jorge Amado, temos ciência que se trata de um tema caro e amplamente debatido e estudado pelos meios acadêmicos no Brasil, chamando inclusive a atenção de estrangeiros3. O que é digno de nota é serem poucos os trabalhos que se dedicam a observar essa temática desde o romance de estreia de Amado, O país do carnaval (1931), até Subterrâneos da Liberdade (1954)4. O mais comum é encontrar estudos que abordam uma visão do negro/mestiço na extensão da obra do escritor, com enfoque especialmente na chamada segunda fase, que se inicia em 1958 com Gabriela, cravo e canela, quando o negro apreendido como mestiço vira protagonista da sua produção. Para análise, foram priorizadas as narrativas: Cacau (1933), Jubiabá (1935), Terras do sem fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela, cravo e canela (1958) e Tenda dos Milagres (1968), como também a atuação do escritor nas questões relativas à problemática racial, levando em consideração prioritariamente como fontes de pesquisa reportagens, entrevistas, depoimentos, discursos e algumas cartas5. No decorrer da trajetória do escritor baiano, notadamente ao chegar na fortuna crítica de Jubiabá, é recorrente a afirmação de pesquisadores, com destaque para Rita Chaves e Tânia Macedo6, sobre a influência que Jorge Amado em autores de países africanos no contexto do movimento anticolonial. Este fato implicou em um período de pesquisa em Moçambique, na capital Maputo. Esta parte da pesquisa não repousou na análise de romances, pois, como será demonstrado, a leitura de Jorge Amado funcionou no sentido de fomentar um ideal de país, influência muito maior que de ordem estética7. Assim, não encontramos somente escritores, mas uma geração de intelectuais

3 Entre outros lembro do italiano Giorgio Marotti (1975), o americano Gregory Rabassa (1965) e o inglês David Brookshaw (1983). No Brasil, Gustavo Rossi (2004) abordou essa questão nos romances da década de 1930 e Teófilo Queiroz (1975) trouxe uma interpretação da mulata nos romances amadianos. Komoe Gaston (1996) em sua dissertação abordou os elementos da África presentes nos textos de Jorge Amado. 4 Com exceção do Jubiabá que foi amplamente estudado devido as particularidades temáticas que serão abordadas no decorrer deste trabalho. 5 Como afirmou Antonio Dimas, Jorge Amado era um homem epistolar. No acervo da Fundação Casa de Jorge Amado existem mais de 50 mil correspondências do escritor que começaram a ser catalogadas, muitas delas com duas ou mais versões. Segundo a arquivista da Fundação, o escritor era muito cuidadoso com suas correspondências, que muitas vezes demandavam um longo processo, as cartas primeiro escritas manualmente, depois de datilografadas voltavam para as mãos do escritor com algumas sendo corrigidas novamente, datilografas e enfim enviadas para o destinatário. Ainda segundo funcionários da FCJA, o escritor vetou a publicação de suas correspondências, mas ao final da vida teria comentado com Myriam Fraga, ex-presidente da Fundação, falecida esse ano, que estas poderiam ser publicadas 50 anos após a sua morte. Quando perguntados sobre pesquisadores que tiveram acesso a algumas correspondências, esses funcionários afirmaram que suas pesquisas foram realizadas quando Amado e Zélia Gattai eram vivos e provavelmente autorizaram o acesso. 6 Dentre outros lembro de Carmem Secco, Edvaldo Bergamo, Cremilda de Araújo Medina e o escritor moçambicano Mia Couto. 7 Conforme me alertou o professor Aureo Cuna, características de Capitães de Areia estão presentes no conto Nós matamos o cão tinhoso (1964), obra inaugural da prosa moçambicana, escrita por Luís Bernardo Honwana, pela narrativa se tratar de um grupo de meninos que se reúnem para viver aventuras. Outro comentou sobre tal influencia

| 16 formada na sua maioria por filhos de colonos portugueses, como também, mestiços e assimilados que reivindicavam uma nacionalidade moçambicana inspirados pelos livros mais engajados do escritor. A proposta é conjugar narrativas, sua circulação e debates intelectuais referentes ao período que compreende desde a década de 1930 até meados da 1970. Diferentemente de boa parte dos trabalhos, o intuito é observar amplamente o desenvolvimento da temática sobre a questão racial nas obras do escritor considerado uma das maiores referências sobre o Brasil no exterior e que tomou para si a bandeira de luta contra o racismo. Outro objetivo é elucidar aspectos da circulação de ideias de esquerda em um nível transnacional em um país pouco estudado como Moçambique em um contexto de regime totalitário de direita, o salazarismo.

A tese foi estruturada em três partes. Na primeira, aborda o contexto de produção e atuação do escritor, partindo, no primeiro capítulo, dos primórdios com a Academia dos Rebeldes, seu diálogo com a “escola baiana” de estudos raciais e a preocupação em fazer uma literatura que fosse expressão do proletariado. O segundo capítulo, passa pelo auge da militância no PCB, militância antifascista, exílio na antiga URSS, momento em que o Brasil se apresenta como “solução” para o problema das raças pela UNESCO e quando o romancista apresenta uma percepção próxima da que o tornará famoso. Já o terceiro capitulo, foca no Jorge Amado mais famoso, sucesso de vendas, divulgador da Bahia no Brasil e do Brasil no exterior, ganhando status de intérprete da nacionalidade mestiça ao lado de Gilberto Freyre, mas, diferente deste, um ferrenho anticolonialista, influente politicamente e que volta seu olhar para África. Na segunda parte, chega-se às narrativas de Amado e sua recepção. Dentre a série de classificações pela crítica, na tentativa de encontrar coesão e unidade na obra do escritor baiano, a mais comum é a divisão em primeira e segunda fases: a primeira é marcada por um período de militância político-partidária no PCB, que se reflete diretamente na literatura; a segunda, no período pós-1958, tem como marco a publicação de Gabriela, cravo e canela, que narra a vida cotidiana do povo baiano. Existem outras divisões possíveis, mas a maioria delas assenta suas referências em um período de engajamento político-partidário e depois em um suposto descompromisso político do escritor. Neste trabalho, a divisão foi feita de um modo um pouco diferente do habitual.

foi Mota Lopes, pelo fato que a leitura do romance e a escrita do texto terem acontecido praticamente no mesmo momento.

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Os romances tomados para análise foram alocados em dois capítulos. No quarto capítulo, Cacau, Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus, que são livros em que o autor se dedica a narrar o chamado “ciclo do cacau”, das origens até a decadência. Em Cacau, Jorge Amado afirma na epigrafe: “Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?8”. No encerramento do ciclo, escreve: Em verdade este romance e o anterior, Terras do sem-fim, formam uma única história: a das terras do cacau no sul da Bahia. Nesses dois livros tentei fixar, com imparcialidade e paixão, o drama da economia cacaueira, a conquista da terra pelos coronéis feudais no princípio do século, a passagem das terras para as mãos ávidas dos exportadores nos dias de ontem. E se o drama da conquista feudal é épico e o da conquista imperialista é apenas mesquinho, não cabe a culpa ao romancista [...] Como se dará conta também de que a última parte deste livro é o começo de um novo romance que os homens do cacau estão vivendo dramaticamente, e que eu não sei quem escreverá9.

No livro Cacau nos é apresentado Honório, que, como todos os personagens negros rurais da narrativa amadiana, tem uma noção intuitiva da opressão de classe e é incapaz de superar sua condição de explorado. No quinto capítulo, são observados Jubiabá, Gabriela, cravo e canela e Tenda dos Milagres, que podem ser chamados de romance de costumes, dedicados a descrever o povo baiano, sua formação, origem e referências culturais. Nessas narrativas aparecem os famosos Antonio Balduíno, Gabriela e Pedro Archanjo, personagens citadinos. No primeiro momento da narrativa dessas obras, procura-se superar a dicotomia raça e classe; no segundo, as relações sociais tomam a frente do conflito de classe; e no terceiro, como síntese, as dicotomias de classe e raça, branco e negro, pobre e rico e conhecimento popular e erudito se fundem na figura de Archanjo. Nesses dois agrupamentos de romances, temos duas visões sobre a questão racial no Brasil. No primeiro momento, quando a história do ciclo monocultor cacaueiro é narrada, a questão racial muitas vezes se funde e confunde com a questão de classe, acreditando que sem a tomada de consciência social e sem explicitar o conflito a exploração social/racial não tem solução. No segundo momento, considerando Jubiabá como obra de transição, Amado passa para outra perspectiva do tema, tomando a cultura negra como centro e dando cada vez mais espaço para o mestiço, como eixo para a compreensão da questão. Não há conflito, nem superação, mas conciliação entre as partes representadas pela mestiçagem.

8 AMADO, Jorge. Cacau. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 10. 9 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. São Paulo: Martins, 19__, p. 11.

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Assim, Honório e Archanjo representam de certa forma a temporalidade que abarca este trabalho, como também a evolução, as contradições e as percepções sobre a questão racial presentes. Este trabalho termina com a observação sobre a recepção e a circulação da obra de Jorge Amado em Moçambique entre 1945, quando as primeiras obras do escritor chegam nesse território, até 1975, ano da independência do país. Com o objetivo de situar o leitor e elucidar algumas questões, essa parte inicia abordando a história da literatura moçambicana imbricada com a ideia de nação, observando também diálogos culturais e circulação de ideias entre Brasil e Moçambique naquele contexto, finalizando com observações sobre a relação entre Jorge Amado, mobilização anticolonial e formação nacional. A hipótese inicial repousou no argumento de que Jorge Amado influenciou a percepção dos escritores de Moçambique no que diz respeito à questão racial, negritude, mestiçagem, como também em relação à militância de esquerda. Embora algumas análises indiquem a influência dos romances desse autor sobre os escritores moçambicanos, o material coletado aponta outra face da questão. Isto é, são as primeiras obras de Jorge Amado, correspondentes a sua ligação com o Partido Comunista, que motivaram os intelectuais atuantes no período pré-independência a vislumbrar um ideal de nação.

Devido a inúmeras referências a fatos históricos e um diálogo constante com as discussões no presente vivido, muitas vezes os romances de Jorge Amado são tomados como documento sociológico ou como testemunho da verdade. Ao contrário dessa perspectiva, esta proposta de análise entende que a realidade está contida na obra, mas como uma realidade autônoma, cujo valor está impresso na forma que obteve para colocar os elementos extraliterários. O romance sempre comunica uma visão da realidade, sendo assim, não resulta, necessariamente, de fatos concretos: “[...] o sentimento de realidade na ficção pressupõe o dado real, mas não depende dele. Depende de princípios mediadores, geralmente ocultos, que estruturam a obra e graças aos quais se tornam coerentes as duas séries, a real e a fictícia”10. Desse modo, o trabalho literário tem uma realidade própria que é a realidade apreendida pelo romancista e o modo pela qual ele a representa. Ao utilizar a obra literária como forma de compreender as questões de uma época, estamos lançando mão de um recurso metodológico que Lukács11 utilizou para analisar as obras de Thomas Mann. Assim temos a preocupação de compreender a relação entre forma acabada

10 CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993, p.46. 11 LUKÁCS, Georg. Thomas Mann. Barcelona/México: Grijalbo, 1969.

| 19 na obra de arte e a realidade que lhe oferece plausibilidade, acreditando que o contexto em que as obras foram produzidas desvenda o ambiente social que serviu de base histórica para o autor expressar suas ideias e os textos literários em questão. Cabe observar que a análise do Pensamento Social na literatura não deve se basear somente no léxico do texto literário, pois, ao se deter na relação autor/obra, esse só dará conta da unidade interna da obra, não da relação entre a obra e o homem que a criou. Como aponta Goldmann, a análise sociológica consegue "destrinçar os elos necessários, vinculando-os a unidades coletivas cuja estruturação é muito mais fácil de apurar e elucidar"12. Também não é raro haver comentários a respeito da (falta de) qualidade literária em Jorge Amado, como forma de desqualificar uma possível análise dos romances em questão. Nesse sentido, Antonio Candido formula o conceito de “literatura empenhada” para descrever o caráter da literatura brasileira. Segundo sua observação da história literária brasileira, nossa literatura sempre foi profundamente empenhada na construção e na aquisição de uma consciência nacional, de forma que do ponto de vista histórico-sociológico é que indispensável seu estudo13. Mesmo não sendo de grande qualidade, é ela que nos exprime. As sociólogas Élide Rugai Bastos e Maria Arminda do Nascimento Arruda apontam que esse método analítico de Candido pode ser transferido para o estudo do pensamento social. Como afirma Bastos, frente ao questionamento de um estudioso estrangeiro: “Deixando de lado a sugestão, embutida no questionamento, sobre a ‘fraqueza teórica’ dos mesmos, o que ‘explicaria’ sua pouca importância, tentamos explicar-lhe que sem compreender tanto as ideias quanto o lugar desses intelectuais é impossível apreender o movimento geral da sociedade brasileira”14. Em Jorge Amado, procura-se observar o debate intelectual no qual ele se encontrava envolvido, como o negro é representado em seus romances, do início de sua carreira literária até o período que compreende seu auge como romancista, e sua repercussão em Moçambique durante o movimento de resistência ao colonialismo. Assim, na última parte, são observadas as condições sociais, ou seja, o contexto de circulação das obras naquele território, na tentativa de relacionar texto e contexto, pois o contexto demonstra o chão histórico que deve ser pensado em relação ao discurso, aos fatos políticos, às condições de sociabilidade, aos padrões de

12 GOLDMAN, Lucien. Sociologia do romance. : Paz e terra, 1967, p. 206. 13 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880). Rio de Janeiro: Ed. Ouro Sobre Azul, 2007. 14 BASTOS, Elide Rugai. Pensamento social e escola sociológica paulista. In: MICELI, Sergio (org.). O que ler na ciência social brasileira, 1970-2002, São Paulo, Sumaré, 2002, p. 183. Nesse mesmo sentido afirma Arruda (2004), “[...] a nossa cultura ‘nos exprime’ e, por isso, a sua revelação nos cabe e é a condição da nossa expressão, dos traços que nos especificam; a tarefa do intelectual brasileiro nutre-se do compromisso com a cultura do seu país, a despeito de reconhecer a sua dimensão acanhada” (p.108).

| 20 comportamento e aos aspectos econômicos e culturais característicos de determinada época e local na tentativa de integrá-los como uma unidade para apreender sua influência naquele período15. Considerando, assim, as ideias como forças sociais reflexivas, ou seja, formadas socialmente que têm repercussão na vida prática que, entre outras coisas, interferem e orientam condutas e a organização da vida social.

15 Proposta metodológica lançada por Quentin Skinner (2000).

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Parte I- Desvendando contextos

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CAPITULO I – Os encontros dos anos 1930

De menino grapiúna ao rebelde dos anos 1930: primeiros passos

Mesmo não sendo o objetivo principal deste trabalho a reconstrução biográfica de Jorge Amado e a obra O país do carnaval, anterior a Cacau (1933), tornam-se necessárias algumas observações para elucidar alguns elementos de uma produção que manteve relação imbricada com a memória e os debates intelectuais. Jorge Amado de Faria nasceu em de 1912, em uma fazenda em Itabuna, estado da Bahia. Filho de um comerciante sergipano que se mudou para o território baiano e lá se tornou Coronel João Amado de Faria, promissor fazendeiro de cacau. Amado foi alfabetizado na fazenda de seu pai e, em busca de uma educação formal, se instala em 1927 em Salvador, quando começa sua inserção nos meios intelectuais da cidade. Nesse ano publica seu primeiro texto, um poema, em uma revista importante da época, A Luva16, intitulado “Prosa ou Poesia”, que, segundo o próprio autor, era uma sátira a "um certo tipo de poesia modernista". Ainda em 1927, começou a trabalhar como repórter nos jornais Diário da Bahia (1927-1929) e O Imparcial (1927-1943)17. Esse ano é considerado decisivo pelo romancista, como ele mesmo afirmou em entrevista concedida a Antonio Espinosa em 1981: "[...] em 27 comecei a trabalhar em jornal e viver misturado com o povo da Bahia"18. A crítica a "um certo tipo de poesia modernista" nos remete a Academia dos Rebeldes, um breve movimento (1928-1930) que se opunha à Academia Baiana de Letras, composto de jovens artistas soteropolitanos que “procuravam ignorar o modernismo de importação da semana de Arte Moderna de São Paulo e suas ramificações e re-significações

16 Segundo Nelson Cadena (2012), a revista A Luva (1925-1931) de propriedade de Severo dos Anjos, era uma publicação alinhada com o governo, tinha uma linha editorial voltada para repercutir o impacto da inauguração de obras públicas e outros atos oficiais envolvendo autoridades do Estado ou dos municípios. E contava com grandes colaboradores: Raimundo Aguiar e o aquarelista Mario Paraguassu no design; Carlos Chiaccio, Anisio Melhor e Afrânio Peixoto com artigos e conferências. Contava ainda com charges regulares de Quintino Barbosa, Luís Freitas e Fábio Torres. 17 Sua contribuição ao jornal O Imparcial não foi ininterupta nesse período, trabalhou como repórter entre 1927- 1928 e retornou entre 1942 e 1945, quando manteve uma coluna diária na publicação intitulada Hora da Guerra, que fazia críticas ao Estado Novo. 18 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. In: Jorge Amado: seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Álvaro Cardoso Gomes. São Paulo: Abril, 1981, p. 9.

| 23 regionais”19. O mentor do grupo era o jornalista e poeta Pinheiro Viegas e dele faziam parte Sosígenes Costa, poeta, Walter da Silveira, crítico cultural, o etnólogo Edson Carneiro, Jorge Amado, entre outros. Mais de sessenta anos depois, Amado pondera sobre o objetivo e a importância desse grupo: "[...] com objetivo de varrer com toda literatura do passado [...] e iniciar nova era [...] para afastar das letras baianas da retórica, da oralidade balofa, da literatice, para dar-lhe conteúdo nacional e social na reescrita da língua falada pelos brasileiros [...] sentíamos brasileiros e baianos, vivíamos com o povo em intimidade”20. A Academia dos Rebeldes se insere no contexto de uma reação na capital baiana aos pressupostos da Semana de Arte Moderna de 1922. Além do grupo do qual Amado fazia parte, surgiram também os grupos Samba e o Arco e Flexa (escrito com x), que publicavam as revistas Samba e Arco e Flexa, respectivamente. A respeito dos dois grupos: A primeira, formada pelos poetas da baixinha, dividida entre as seduções parnasianas e as repercussões da modernidade na vida popular, adotou como figura intelectual orientadora o mesmo Pinheiro Viegas, poeta e agitador cultural que atuou junto aos Rebeldes; a segunda vertente reuniu os responsáveis pelas primeiras experiências modernistas na Bahia, incluindo Godofredo Filho que, sem pertencer aos quadros da revista, se integrou ao grupo de Arco & Flexa21.

Esses grupos estavam em certa consonância com outro movimento que surgiu em Pernambuco nesse mesmo momento e também como reação a Semana de 1922, capitaneado pelo sociólogo Gilberto Freyre, o Movimento Regionalista-Tradicionalista do Nordeste22, em

19 SEIXAS, Cid. Academia dos Rebeldes (sem causa?) - Revisitando uma proposta não esboçada. In: CANIATO, Benilde Justo; GUIMARÃES, Elisa. (Org.). Linhas e entrelinhas: Homenagem a Nelly Novaes Coelho. São Paulo: Editora Casemiro, 2003, v. 1, grifos do autor. 20 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que nunca escreverei. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 85. 21 SEIXAS, Cid. O gasto bordão (novamente): Oropa, França e Bahia. In: VII Congresso de estudos lingüísticos e literárias demandas da representação. Universidade Estadual de Feira de Santana, 2004. Feira de Santana, 2004, s/p. Ainda segundo Seixas (2004), Samba reunia jovens escritores hoje conhecidos como os “poetas da Baixinha”, designação difundida pelo fato dos seus integrantes se reunirem num café da rua transversal à Baixa dos Sapateiros, reunia pessoas de classes mais baixas. Já o grupo Arco & Flexa era composto pela chamada elite social e intelectual de Salvador. 22 O objetivo do Movimento Regionalista do Nordeste, renomeado mais tarde de Movimento Regionalista Tradicionalista do Nordeste, era resgatar os “verdadeiros” valores brasileiros baseando-se na tradição, que no contexto significava a manutenção da ordem social anterior: latifundiária, escravista e açucareira, pois segundo o sociólogo a universalidade do modernismo apagava os valores tradicionais e regionais. Em 1926, Freyre realizou o Congresso Regionalista do Recife, no qual se destacou a ideia de unificação econômica e cultural do Nordeste, a defesa dos antigos valores, a preservação arquitetônica das cidades, também do patrimônio histórico e artístico, festas e jogos, desse evento resulta o Manifesto Regionalista, que ganha sua versão definitiva em 1952, Manifesto Regionalista de 1926 (título de capa) uma síntese dos elementos básicos do regionalismo defendido e difundido por ele. Como apontou Chaguri (2007), no projeto estético regionalista a memória será o filtro que selecionará o que será lembrado, por meio dela serão unificados dramas da decadência nordestina, ou melhor, serão tratados como semelhantes tanto o drama dos senhores como dos trabalhadores, dos exploradores e explorados, ao promover tal aproximação e equalização dos conflitos, abre-se caminho para a recuperação do passado patriarcal como a autêntica tradição nacional. Para maiores detalhes sobre esse movimento indico o texto de Antonio Dimas (2003) Um Manifesto guloso e os livros As criaturas de Prometeu (2006) de Elide Rugai Bastos e A tradição

| 24 que o ponto de identificação mais latente seria a crítica a uma "cultura importada" e a proposta de revalorização dos elementos regionais e populares. Não por acaso, apesar de seus membros terem seguido orientações políticas diferentes, como veremos mais à frente, comumente são colocados como componentes de uma mesma classificação nos manuais de literatura, a literatura regionalista do Nordeste. Essas manifestações no campo cultural e artístico dos idos de 1920 não são registros de simples discussões estéticas, mas são, além disso, registros de uma sociedade em transformação nos âmbitos político e social. Elas se iniciam nessa década, mas se consolidam na década de 1930 e ecoam até a década de 1940. As tensões políticas e sociais vividas com a crise do poder oligárquico e agravadas com crise do café tiveram como consequência a Revolução de 1930, quando o poder oligárquico foi questionado, acabou a hegemonia política desse grupo, que acabou dando visibilidade à diversidade existente no país. Como apontou Antonio Candido em A Revolução de 30 e a Cultura, a década de 1930 foi essencial para a cultura, pois naquele momento a estética modernista se populariza e cristaliza. Antes, a literatura estava ligada a uma certa ideologia da permanência, observada principalmente na gramática formal e na norma escrita ligada à literatura portuguesa23. Nessa perspectiva, a Revolução atuou como uma espécie estimulante no âmbito da cultura, [...] catalisando elementos dispersos para dispô-los numa configuração nova. Neste sentido foi um marco histórico, daqueles que fazem sentir vivamente que houve um 'antes' diferente de um 'depois'. Em grande parte porque gerou um movimento de unificação cultural, projetando na escala da Nação fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões. A este aspecto integrador é preciso juntar outro, igualmente importante: o surgimento de condições para realizar, difundir e 'normalizar' uma série de aspirações, inovações, pressentimentos gerados no decênio de 1920, que tinha sido uma sementeira de grandes mudanças24.

Jorge Amado cita a Revolução de 1930 como decisiva na formação literária de sua geração: [...] que nos influenciou, sobretudo, foi a Revolução de 1930, um movimento que teve apoio popular e não um simples golpe de Estado [...] Sua influência foi tão grande que modificou, inclusive, o próprio Modernismo, que tinha feito re(des)coberta: o pensamento de Gilberto Freyre no contexto das manifestações culturais e literárias nordestinas (2010) de Moema Selma D' Andrea. 23 Segundo Arruda (2011), este decênio contou com alterações em todos os campos "[...] na poesia, no romance, na arquitetura, nas artes plásticas, na produção intelectual, na música popular e erudita, à exceção, apenas, da dramaturgia, cuja renovação aconteceu na década seguinte. Em uma dezena de anos, transpirou-se nova atmosfera, igualmente tributária da criação de instituições centrais ao desenvolvimento da cultura, como o são a universidade, as editoras, as reformas do ensino, as iniciativas culturais do Governo Getúlio Vargas, instalado em outubro de 1930, cuja política dominante será marcada por um reformismo modernizador, ainda que autoritário" (p. 192). 24 CANDIDO, Antonio. A Revolução de 30 e a Cultura, In: A Educação pela Noite e Outros Ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p.181.

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pelos filhos de papai das fazendas de café de São Paulo, que saiu dos salões da dona Olivia Penteado25. A literatura de 30 saiu sobretudo do Nordeste, mas não só dele, saiu também do sul com os gaúchos Erico Veríssimo e Dionélio Machado, por exemplo - e do norte com o paraense Dálcio Jurandir26.

Em meio à efervescência, nomes surgidos na cena intelectual no decênio anterior estrearam como destacados romancistas, naquela que foi nomeada como “segunda geração modernista” ou “romance social de 30”, composta na sua maioria de escritores advindos da região Nordeste; podemos citar como representantes, entre tantos: Jorge Amado, José Lins do Rego, Lúcio Cardoso, Cyro dos Anjos, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Érico Veríssimo, do Rio Grande do Sul. Esses escritores são produtores do que Candido considera como "romance por excelência", pois nesse estariam presentes os elementos pitorescos, o dado concreto, a vivência social e telúrica da região de origem. Romance fortemente marcado de neonaturalismo e de inspiração popular, visando aos dramas contidos em aspectos característicos do país: decadência da aristocracia rural de formação do proletariado (José Lins do Rego); poesia e luta do trabalhador (Jorge Amado, Armando Fontes); êxodo rural e cangaço (José Américo de Almeida, Raquel de Queiros, Graciliano Ramos); vida difícil das cidades em rápida transformação (Erico Veríssimo) [...] o importantíssimo caráter de movimento dessa fase do romance, que aparece como instrumento de pesquisa humana e social, no centro de um dos maiores sopros de radicalismo da nossa literatura”27.

Esses escritores, que tinham em comum o objetivo de descrever a realidade brasileira, foram bastante diversos na forma de abordar a temática28. Diferenças oriundas das posições/perspectivas que adotaram para observar a realidade brasileira em um país que encontrava em transição. É notável, nesse momento, como os intelectuais assumem de forma clara seu posicionamento político-ideológico e utilizam a criação artística como elemento para difusão desses ideais29.

25 É possível notar a adesão de Amado a uma interpretação sobre o movimento Modernista de 1922, a respeito da presença do elemento burguês na primeira fase. Nesse sentido, segundo José Luiz Lafetá (2000), o Modernismo deve ser encarado em duas fases, pelo projeto estético predominante na década de 1920, ligado às modificações operadas na linguagem, quando "não há no movimento uma aspiração que transborde os quadros da burguesia" (p. 27) e pelo projeto ideológico, predominante na década de 1930, que é ligado à visão de mundo de sua época, onde há um "recrudescimento da luta ideológica: fascismo, nazismo, comunismo, liberalismo medem suas forças em disputa ativa" (p. 28). Roberto Schwarz no ensaio A carroça, o bonde e o poeta modernista, também faz considerações sobre o aspecto conservador-burguês presente no movimento de 22. 26 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. Op. cit., p. 14. 27 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história e literatura. São Paulo: T. A. Queiroz, 2002, p. 28, grifos do autor. 28 Podemos tomar como exemplo desta diversidade, José Lins do Rego que se dedicou a descrever o ciclo da cana de açúcar dos primórdios até sua decadência enquanto Jorge Amado procurava escrever uma literatura que seria expressão do proletariado. 29 Nesse sentido Candido aponta uma "radicalização" nas posições políticas que resultou num polarização dos intelectuais entre fascismo e comunismo: "Muitas vezes o espiritualismo católico levou no Brasil dos anos 30 à simpatia pelas soluções políticas de direita, e mesmo fascistas, como foi o caso do integralismo, cujo fundador,

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O que observamos são diferentes tendências no Modernismo que se cristalizam em duas vertentes que se destacam por serem oriundas de orientações políticas que refletem diferentes entendimentos sobre o futuro do país naquele momento, integralismo e comunismo, uma com orientação mais à direita30 e outra, mais à esquerda. Em 1922, foi fundado o Partido Comunista Brasileiro (PCB), em que parte da intelectualidade brasileira entre as décadas de 1930 e 1950, como Caio Prado Junior, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Orígines Lessa, Oscar Niemeyer, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Patrícia Galvão, Carlos Scliar, Candido Portinari, entre tantos outros, militou e/ou foi filiado. No "modernismo do sul", aquela polarização foi representada por duas tendências: uma expressa pelo Movimento Verde-amarelo e pela Escola da Anta, identificados com o integralismo31, e outra representada pela poesia do Movimento Pau-Brasil e do Movimento Antropofágico, capitaneados por Oswald de Andrade32. A mesma divisão será observada entre os intelectuais nordestinos. Como chama atenção Ana Paula Palamartchuk, até o fim da Segunda Guerra Mundial o PCB atrai jovens

Plínio Salgado, modernista e participante do movimento estético renovador, aliou a doutrinação a uma atividade literária de certo interesse [...] Simetricamente, os anos 30 viram um grande interesse pelas correntes de esquerda, como se pôde ver no êxito da Aliança Nacional Libertadora e certo espírito genérico de radicalismo, que provocou as repressões posteriores ao levante de 1935 e serviu como uma das justificativas do golpe de 1937. Muita gente se interessou pela experiência da União Soviética, e as livrarias pululavam de livros a respeito, estrangeiros e nacionais." (1987, p. 188-189). Lafetá (2000), também aponta uma "agudização" da consciência política na literatura deste período. 30 Sobre a vertente mais conservadora do Modernismo, a tese de doutorado de André Botelho, Um ceticismo interessado: Ronald de Carvalho e sua obra dos anos 20 (2002) elucida elementos, esse constata que Carvalho procurava tornar nosso país mais familiar aos brasileiros, uma das pretensões do nosso modernismo, o que acabou contribuindo para a rotinização de uma ideologia autoritária de Estado que reverbera na Revolução de 1930 e se consolida no Estado Novo. 31 Em resposta ao nacionalismo do Pau Brasil, surgiu o grupo do Verdeamarelismo, formado por nomes como Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. Para esses, o ingresso do Brasil na modernidade implicava o rompimento radical com toda herança cultural "europeia afrancesada". Seu lema era: "Originalidade ou Morte!", o projeto cultural dos verde-amarelos tinha também sua contrapartida política: o autoritarismo aparecia como condição imprescindível para a independência cultural e política do país. Através do jornal Correio Paulistano que o grupo defendia suas ideias. Em 1927, esses artigos foram reunidos em uma coletânea com o título O Curupira e o Carão. Em maio de 1929, o grupo publicou o manifesto Nhengaçu Verde Amarelo, em que defendia a integração étnico-cultural sob o domínio da colonização portuguesa, o nacionalismo e o predomínio das instituições conservadoras. Na década de 1930, o grupo se bifurcou em dois movimentos distintos: o integralismo e o bandeirismo. Rompendo com o grupo de origem, Plínio Salgado fundou em 1932 a Ação Integralista Brasileira. 32 Publicado em 1924 no jornal O Correio da Manhã, com o título em clara referência a árvore nativa brasileira o Manifesto Pau Brasil coloca como objetivos: "A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos [...] Uma única luta - a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação" (s/p) reflete bem os objetivos não dos poemas do livro Poesia Pau Brasil como as ideias deste "modernismo progressista". Que foram veiculadas principalmente por meio da Revista Antropofagia (1928-1929). Segundo Carreri (2013), Oswald de Andrade atuou na produção e difusão da cultura comunista nos meios de imprensa, pelos periódicos OHP, na Revista Espírito Novo, Jornal A Platéia, Revista Problemas, apesar da repressão do Estado Novo.

| 27 intelectuais oriundos de famílias tradicionais decadentes de estados não centrais do Brasil, como Jorge Amado, da Bahia, Graciliano Ramos, de Alagoas, Rachel de Queiroz, do Ceará33. Essas adesões podem ser explicadas pelo fato de a Revolução de 1930 e a consequente ascensão de Getúlio Vargas ter desalojado setores tradicionais da centralidade política, o que favoreceu o aparecimento de organizações dispostas a contestar o novo Estado que se montava. Do mesmo modo que o governo pós-revolução passou a invocar a participação dos intelectuais como "construtores da nação"34, o PCB seduziu outro grupo apresentando uma alternativa ao poder posto. Mas não foi só com o pensamento de esquerda que os intelectuais da geração de 1930 do Nordeste se engajaram; como demonstrou Moema D'Andrea, existiam estreitas relações entre os "modernistas da ordem"35, o Modernismo Tradicionalista do Nordeste liderado por Gilberto Freyre e os relatos da adesão de José Lins do Rego ao integralismo36. Rio de Janeiro e São Paulo eram os centros onde a intelectualidade se reunia e debatia ideias sobre as orientações políticas e artísticas que circulavam naquele momento. Os pontos de encontro eram, em São Paulo, os salões do Departamento de Cultura37 e as livrarias: José Olympio (até 1934 tinha sede em São Paulo), a Garnier e a Católica (que depois muda o nome para Schmidt). A "Casa", como ficou conhecida a livraria da editora José Olympio, tinha

33 PALAMARTCHUCK, Ana Paula. Os novos bárbaros: escritores e o comunismo no Brasil (1928- 1948). Tese (Doutorado em História Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Campinas, 2003. 34 Situação que se inicia no Governo Provisório (1930-1934) e que se torna mais evidente após o golpe a partir de 1937. Neste primeiro momento a política cultural varguista envolveu a nomeação de intelectuais para postos de destaque e a criação de diversos órgãos capazes de atraí-los para junto do governo. Como exemplos, em 1930, o arquiteto Lúcio Costa foi indicado para a direção da Escola Nacional de Belas Artes. Manuel Bandeira foi convidado, em 1931, para presidir do Salão Nacional de Belas Artes. Em 1932, o escritor José Américo de Almeida assumiu a pasta da Viação e Obras Públicas. Gustavo Capanema foi nomeado em 1934 ministro da Educação e Saúde Pública, que por sua vez convidou o poeta Carlos Drummond de Andrade para chefiar seu gabinete. Mário de Andrade iria assumir, em 1935, a direção do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, entre outros. 35 D’ANDREA, Moema Selma. A tradição re(des)coberta: o pensamento de Gilberto Freyre no contexto das manifestações culturais e literárias nordestinas. Campinas: Editora UNICAMP, 2010. Expressão cunhada por Arnoni Prado para se referir a algumas expressões do Modernismo carioca e paulista de visão conservadora ligadas ao espiritualismo e ao Simbolismo e como afirma Candido (2002) "desta tendência brotaram sugestões decisivas para a criação de ideologias de direita, como o Integralismo, e certas orientações do pensamento católico" (p. 117). 36 Para José Castello (1961), foi com José Lins do Rego teria assimilado mais do que qualquer outro autor o espírito do regionalismo defendido por Gilberto Freyre. Ideia complementada por Almeida (1999) quando observa que enquanto Gilberto Freyre foi o sociólogo da decadência da sociedade patriarcal do Nordeste açucareiro, Rego pode ser considerado o seu romancista. Consta que o romancista paraibano foi entusiasta do integralismo durante seus anos em Maceió (1926-1935), em entrevista ao pesquisador Sávio de Almeida (2006), Moacir Pereira- principal liderança do integralismo alagoano - revela que Rego lhe apresentou o integralismo, o escritor ainda é apontado como articulador da visita de Plínio Salgado a Maceió em 1932, além de ter participado e discursado na fundação do Núcleo Integralista de Alagoas (1933). 37 Implementadas entre 1935 e 1938, segundo Roberto Barbato (2004), suas tarefas denotavam a criação de projetos de políticas culturais. Intelectuais ligados a Mário de Andrade cooperaram no sentido de viabilizar uma política de ação cultural e se propuseram a gerenciar os recursos destinados a esse fim, pela primeira vez os intelectuais deslocam suas ambições literárias para o plano da ação pública. Segundo seu levantamento, a experiência do Departamento de Cultura inaugura no país uma noção de política cultural.

| 28 um variado leque de escritores de várias orientações políticas, era um ponto notório de debate e efervescência intelectual.

O negro na formação da nação

Na década de 1930 também transparecem elementos marcantes para discussão sobre a questão do negro na sociedade brasileira. No século XIX, eventos como o fim do tráfico de escravos, em 1850, a abolição da escravatura, em 1888, e o advento da República, em 1889, trazem à tona, por parte da elite intelectual, a discussão em relação à formação da nossa identidade nacional. O objetivo dessa elite brasileira era constituir um país civilizado, capaz de superar seu atraso e contradições. A partir dessa discussão, a questão racial se converteu em tema central para a compreensão dos destinos da nação. Parte da elite adotou uma ideologia positivista, conservadora e racista, que negava o lugar dos negros na formação nacional. A mestiçagem, que até então era considerada negativa por teóricos como Nina Rodrigues e demais adeptos da escola italiana de criminologia, se tornou necessária por parte do discurso nacionalista no sentindo de promover o branqueamento da população. Influenciados por teóricos darwinistas sociais, como Gobineau, Agassiz e Le Bon38, que consideravam nossa base racial – constituída majoritariamente de negros e mulatos – um obstáculo para a formação da nação ideal, muitos intelectuais brasileiros viram na imigração europeia e na mestiçagem uma saída favorável para o surgimento de uma nação civilizada e moderna. Nas palavras de Giralda Seyferth, o mito do branqueamento, ou seja, as discussões sobre o processo de branqueamento39 da nação brasileira ganharam notoriedade na Primeira República (1889-1930):

38 Nas palavras de Nina Rodrigues (2008): “No trabalho que publicou em 1855, Gobineau já fazia um quadro bem negro da decadência dos mestiços sul-americanos. Mas em 1861, Quatrefages invocava, precisamente contra ele, o exemplo da América do Sul a favor do sucesso completo da mestiçagem e punha em relevo a intrepidez e a energia da empresa dos paulistas brasileiros. Mais tarde, em 1863, é Agassiz que por sua vez vê a mestiçagem como a causa fundamental da decadência miserável dos mestiços do Vale Amazônico. Sem ir mais longe, recentemente vemos Gustave Le Bon considerar as repúblicas sul-americanas como a prova incontestável da influência social desastrosa dos mestiços, ao passo que Keane os apresenta como a prova não menos conclusiva das vantagens da mestiçagem” (Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 59702008000400014). 39 Fato notório foi a participação do Brasil, único país latino-americano convidado, no I Congresso Internacional das Raças, em 1911. Neste evento, o professor de antropologia João Batista Lacerda, representando o governo brasileiro, apresentou um texto em francês com o título Sur les métis au Brésil (Sobre os mestiços no Brasil), falando sobre o processo de miscigenação e branqueamento brasileiro. Em seu texto estava sendo defendida a tese de branqueamento, mas não somente um clareamento físico, mas também moral e social, em um período de três

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A nação brasileira ideal deveria ser ocidental: uma civilização latina, de língua portuguesa e população branca plasmada na mestiçagem. Não é por outra razão que os principais dogmas do racismo vicejaram depois da Abolição e que os verbos conjugados para os imigrantes eram caldear, misturar, fundir, miscigenar (devidamente subsumidos à assimilação)! De fato, esperava-se a assimilação física dos europeus e o desaparecimento dos negros e mestiços mais escuros, num prazo que variava, conforme o autor, entre três gerações e três séculos40.

Entre os intelectuais, Euclides da Cunha, Silvio Romero e Oliveira Vianna se debruçaram sobre o tema do clareamento racial. Esse enfoque predomina até meados da década de 1920. Na mesma década, já se nota sinais de positivação da mestiçagem como elemento essencial da nossa cultura, mas é a partir da década de 1930 que essa mudança se consolida e a mestiçagem passa a ser valorizada. Como observa Lilia Schwarcz: “Cantada em verso e prosa, a miscigenação de grande mácula transformava-se em nossa mais sublime especificidade, sem que o tema fosse, de fato, enfrentado. Nesse movimento, o conflito virava sinal de identidade [...] passava a equivaler a uma grande representação nacional”41. A década de 1930 é um momento decisivo nessa discussão, pois, além do lançamento do notório livro de Gilberto Freyre, são publicadas as obras: O negro brasileiro (1934), O folclore negro no Brasil (1935) e As culturas negras no novo mundo (1937), de Arthur Ramos; Religiões negras (1936) e Negros bantos (1937), de Édison Carneiro; The negro in Bahia (1938), de Donald Pierson; O negro e o espírito guerreiro nas origens do Rio Grande do Sul (1937), de Dante de Laytano; entre outras. Também são realizados o I e o II Congresso Afro-Brasileiro (em 1934 e 1937), organizados por Gilberto Freyre e Édison Carneiro, respectivamente, que contaram com a participação de vários intelectuais (alguns estiveram presentes, outros enviaram trabalhos), incluindo José Lins do Rego, Jorge Amado42 e artistas participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, como: Lasar Segall, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Santa Rosa, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e tantos outros. Ainda nessa década, é fundada a Frente Negra Brasileira em 1931, organização de “homens de cor”, que tinha como objetivo combater o racismo e promover melhores condições para a população negra. A obra de Gilberto Freyre, especialmente Casa-Grande & Senzala, publicada em

gerações, ou seja, em meados dos anos 2000, o Brasil seria uma nação branca e moralmente regenerada. Ver mais em: SEYFERTH, Giralda. A antropologia e a teoria do branqueamento da raça no Brasil: a tese de João Batista Lacerda. In: Revista do Museu Paulista, vol. 30, 1985. 40SEYFERTH, Giralda. O beneplácito da desigualdade: uma breve digressão sobre racismo. In:______(et alii). Racismo no Brasil. São Paulo: Fundação Petrópolis, 2002, p. 37. 41 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil: uma história das teorias raciais em finais do século XIX. In: Afro- Ásia, n. 18, 1996, p. 98. 42 Os Congressos e a participação de Jorge Amado serão abordados com maiores detalhes ao longo da tese.

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1933, veio afirmar a tendência de positivar a formação brasileira43. Em seu livro mais famoso, Freyre afirma que a família patriarcal foi geradora de todas as relações sociais brasileiras e que devido ao seu caráter amistoso e confraternizador, herdado da tradição colonizadora portuguesa, esta afastou os riscos de ruptura social. Segundo essa perspectiva, no regime patriarcal, o conjunto casa-grande e senzala e a união entre o branco e o negro, que a princípio são polos antagônicos, se complementam e tendem a conciliar-se44. O conceito de cultura foi introduzido no meio intelectual superando até certo ponto o discurso racialista de Nina Rodrigues45, muito influente até então. Essa perspectiva, que via positivamente a união das “três raças”, o branco, o índio e o negro, se cristalizou no conceito de “democracia racial”, que se resume na ideia que a mistura entre os três povos gerou uma sociedade igualitária em todos os âmbitos. Como já observado, a criação artística estava ligada a esse momento de reconhecimento e valorização da cultura negra/mestiça, da mesma forma que Antonio Sergio Guimarães observa essa valorização da herança cultural negra na literatura regionalista: “[...] seus primeiros expoentes, seja na literatura regionalista, expressa por Jorge Amado, José Lins do Rego e outros, ou ainda na indústria cultural emergente erudita ou popular, encontrou um destino nacional comum na superação do racialismo e na valorização da herança cultural em uso pelos negros e caboclos brasileiros46. Podemos observá-la também no Modernismo, como notável exemplo Macunaíma (1928), em que Mário de Andrade mostrava um país de costumes e culturas misturados47. A partir deste breve contexto, é observável que a questão racial há muito é considerada um tema-chave para compreendermos a construção da nossa identidade nacional. Jorge Amado, que está começando sua atuação intelectual nesse contexto, entre o final de 1920

43 Casa-Grande & Senzala, especialmente, veio mostrar, de um modo conservador, a centralidade da escravidão na formação da sociedade brasileira. Como afirma Lilia Schwarcz: “nesse sentido, obra de Freyre não teria sido aceita exclusivamente pelo que não dizia. Ao contrário, sua popularidade vem da afirmação de que a questão racial é fundamental entre nós e que é preciso que levemos a sério a singularidade de nosso processo de socialização e formação” (1996, p. 99). 44 Nesse mesmo sentido Elide Rugai (2006) comenta que para Freyre é na “família patriarcal, simbolizada pela casa-grande e pelo sobrado, é o espaço onde ocorre a confluência das diferentes tendências socioculturais brasileiras, onde as mesmas se anulam e finalmente conciliam-se” (p.106). 45 Segundo Guimarães (2009), as teorias racialistas foram influentes até meados do século XX nas escolas de Direito e Medicina. 46 GUIMARAES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: FUSP e Editora 34, 1999, p. 64. 47 Nas palavras de Candido (2004) sobre a produção modernista: "O mulato e o negro são definitivamente incorporados como tema de estudo, inspiração, exemplo. O primitivismo é agora fonte de beleza e não empecilho a elaboração da cultura. Isso, na literatura, na pintura, na música, nas ciências do homem" (p. 120).

| 31 e início de 1930, não se mostra indiferente, principalmente no que se refere a articulação das diferentes culturas que compõe a nossa nacionalidade, como veremos no decorrer da tese.

O país do carnaval: uma percepção da formação nacional

Nessa ambiência, Jorge Amado estreia como romancista, influenciado pelo modernismo e seus desdobramentos, a Revolução de 1930 e o comunismo. Influências mais nítidas durante o período que compreende 1933-1954, quando irá combinar lado a lado militância política e criação literária48. Nesse meio tempo, a questão racial aumenta progressivamente sua importância. O ano de publicação da sua primeira incursão na literatura foi 1930, com a novela Lenita, escrita em colaboração com Dias da Costa (1907-1974) e Édison Carneiro (1912-1972), publicado pelo periódico O Jornal, mas que o próprio Amado e estudiosos49 não a consideram como obra de estreia. Passando a residir no Rio de Janeiro em 1930, com objetivo de estudar Direito na Universidade do Rio de Janeiro, Amado chega com seu livro de estreia na bagagem, O país do carnaval, publicado no ano seguinte. Pela faculdade que se inseriu nos meios intelectuais cariocas. Por intermédio de seu primo, Gilson Amado, conheceu Otavio de Farias (1908-1980), que atuou como uma espécie de mediador, enviando os originais de seu primeiro romance ao seu primeiro editor, Augusto Frederico Schmidt, proprietário da Livraria Schmidt50.

48Assis (1996) aponta a confluência três eventos na trajetória do então jovem contestador da Academia dos Rebeldes: "[...] a Semana de Arte Moderna, o levante do Forte de Copacabana e a fundação do PCB. No momento em que o país comemora o primeiro centenário da independência política e procura fazer um exame crítico de sua história, tais eventos condensam - e irradiam - todo um sentimento de negação do status quo político, artístico e social" (p. 20). 49 Para citar algumas críticas, o livro é considerado "pura abominação" por Medeiros de Albuquerque e "falsa e vazia" na opinião de Octávio de Faria. Alfredo Wagner de Almeida (1979) em sua extensa pesquisa sobre o campo intelectual no qual Jorge Amado se insere, faz uma ampla discussão sobre o que seria o "livro de estreia" e não considera Lenita por vários motivos, entre outros, os mais importantes seriam: 1) o fato de não ser uma obra individual, 2) as coletâneas e as editoras não a consideram e 3) a falta de reconhecimento desta no campo intelectual. Além do próprio romancista não a reconhecer afirmando: "Um subliterado não poderia tê-lo feito tão ruim, foi necessário que se juntassem três" (AMADO, 2011, p. 44). 50 Em fins dos anos 1920, Augusto Frederico Schmidt estreia nos meios literários cariocas e começa a frequentar o Centro Dom Vital que congregava a intelectualidade católica. Nesse círculo Schmidt promoveu e dirigiu a revista Literatura, que lhe outorgou nome e relações. A livraria que surgiu no começo em 1930 com o nome Católica, mas mudou o nome para Schmidt no ano seguinte. Segundo Sorá (2001), a atividade editorial de Schmidt entre 1930 e 1933, produziu um catálogo modelo para os anos 1930, publicando além de Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Rachel de Queiroz, Amando Fontes e Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre. Anos depois seu catalogo altera significantemente: “Essa mudança esteve estreitamente vinculada com a tomada de posição de Schmidt em apoio às propostas fascistas que Plínio Salgado começava a divulgar, uma alternativa entre outras abertas pelos ecos da abortada contra-revolução de 1932" (p. 140).

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Não deixa de ser interessante observar que a inserção de Amado no meio intelectual se dá a partir de um grupo cujos ideais político-ideológicos são bem diferentes dos que ele irá assumir dois anos depois. Grupo que, além de Gilson Amado e Otavio de Farias, contava com Almir de Andrade, Hélio Viana, Santiago Dantas, Américo Jacobina. Almeida aponta que o ponto de coesão desses intelectuais era a ligação com o pensamento católico do Centro Dom Vital. De fato, quase todos os membros se encaminham ao integralismo, defendendo concepções políticas e religiosas do chamado pensamento de direita, ligados à revista A Ordem e ao Centro Dom Vital. Sabe-se que Jorge Amado participou de algumas conferências desse grupo no Centro, que tinha como membros, ainda, Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde) e Agripino Grieco, dois críticos literários influentes da época51. Essa aproximação tem reflexos na sua criação literária. Publicado em setembro de 1931, O país do carnaval, tem uma boa recepção na opinião do autor, pois estreia com uma crítica elogiosa de Agripino Grieco52, e a primeira edição de mil exemplares logo se esgota, e dois anos depois é lançada uma segunda edição. Sobre a recepção do livro, é observável que as interpretações enfatizavam a consonância do livro com as ideias do grupo ao qual estava ligado, apagando possíveis diferenças como será observado nas críticas a seguir. Schmidt, editor e prefaciador da primeira edição, apontou graves defeitos no livro, que são ao mesmo tempo motivo de orgulho devido a "complexidade de problemas" que aborda, e enfatiza positivamente a saída encontrada pelo personagem: "Seu personagem principal, que contém todos os outros viu uma luz, quando ia acabar. No alto da montanha Cristo se iluminou para ele. Cristo é a chave e é a medida. Felizes os que veem por acaso essa iluminação”. Otavio de Farias também comenta sobre "pequenos defeitos", mas o considera um grande romance de "desespero diante da vida e do mundo"53.

51 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Rio de Janeiro: Campus, 1979. Ao ser questionado sobre sua proximidade com um grupo conservador: "[...] nunca fui inimigo de ninguém por ser seu adversário político[...] Na faculdade, eu conheci - e fiquei amigo de alguns - o pessoal que formava um grupo meio de direita. Alguns deles desembocaram depois no integralismo [...] foi através do Gilson que os conheci" (AMADO, 1981, p.15). 52 Em entrevista Jorge Amado destaca a crítica de Agripino Grieco sobre o livro, pois naquele momento Grieco era um afamado crítico literário por lançar novos nomes, num momento que a crítica era determinante no "sistema de produção, edição, propaganda, circulação e apreensão de ideias escritas [...] a tarefa dos críticos não se limitava à escrita de resenhas em suplementos de jornais. Na acumulação de poder que elevava a crítica a centro da cultura na virada da década, esse tipo de agentes se distinguia por meio da fundação e/ou direção de revistas literárias. Mais ainda, diante da escassez de editoras dispostas a correr riscos com novos autores, os próprios agentes reconhecidos como autoridades críticas fundaram livrarias-editoras. Os críticos monopolizaram todas as instâncias necessárias a um sistema de legitimação das apreciações pelas quais lançavam luz sobre um conjunto de escritores novos que, como José Lins do Rego, irromperam no cenário cultural como uma 'revelação' de que a literatura brasileira era possível (SORÁ, 2001, p. 132-133). 53 Ambas críticas retiradas da biografia: TÁTI, Miécio. Jorge Amado vida e obra. Belo Horizonte: Itatiaia, 1961, p. 57 e 64, respectivamente. Dentre críticas elogiosas na década de 1930 podemos citar ainda, a de Medeiros e

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O país do carnaval é um romance pouco abordado pelos estudiosos, na maioria das vezes sob o argumento de não haver uma identificação entre esse romance com os outros que estão por vir54, como também pelo fato de o autor preferir pensar sua produção a partir de Cacau, de 193355. Não é sem razão que esses argumentos são colocados, mas acredito que não deixa de ser um livro que introduz importantes elementos que marcarão sua produção literária, especialmente no tocante à questão racial. Para tanto, vale a pena uma olhada, mesmo que breve, nesse texto. Esse romance dialoga intensamente com a sociedade daquela época56, que vivia impasses e discutia as possibilidades de futuro. Na introdução o autor dá pistas: Diante da grandiosidade da natureza, o brasileiro pensou que isto aqui fosse circo. E virou palhaço... Este livro é um grito. Quase um pedido de socorro. É toda uma geração insatisfeita, que procura a sua finalidade. [...] A geração que chega combate as atitudes céticas. [...] Este livro tem um cenário triste: o Brasil. Natureza grandiosa que faz o homem de uma pequenez clássica. A sátira, no Brasil, só a praticam os papagaios. No Norte57, terra da promissão, há uma grande confusão de raças e de sentimentos. É a formação do povo. E dessa confusão está saindo uma raça doente e indolente. E todo dia a natureza surra, com o chicote do sol, o nortista tragicamente vencido. Este livro é como o Brasil de hoje. Sem um princípio filosófico, sem se bater por um partido. Nem comunista, nem fascista. Nem materialista, nem espiritualista. Este romance relata apenas a vida de homens que seguiram os mais diversos caminhos em busca do sentido da existência. Não posso bater-me por uma causa. Eu ainda sou um que procura...58.

Albuquerque, João Ribeiro, Marques Rebelo, Sosígenes Costa e Pedro Dantas, presentes na coletânea Jorge Amado: 30 anos de literatura (1961). 54 Eduardo Assis e José Castello encontraram maior identificação desse romance de estreia com o jovem Jorge Amado membro da Academia dos Rebeldes. Segundo Assis (1996): "O nome Academia dos Rebeldes é significativo e resume bem o caráter de revolta boemia presente em O país do carnaval e, de resto, características de determinadas parcelas da juventude daquele tempo. O repudio às injustiças sociais e à farsa democrática da República Velha dava tônica das discussões políticas do grupo. O reformismo liberal configurava o horizonte ideológico, a 'consciência possível' naquele instante." (1996, p.20). Já Portella (1961), observa que mesmo sendo um romance "menos consequente" essa produção deve ser considerada um "equacionamento prévio" que irá orientar os romances de motivação política. Ilana Goldstein (2000) no livro O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e Identidade Nacional, coloca esse livro como exceção ao conjunto da obra e Miécio Táti (1961) considera que é a partir de Cacau que Amado encontra com seu real estilo. 55 Amado: "[...] até a pouco tempo eu nunca consenti que o livro fosse traduzido [...] O País do Carnaval é o livro de um jovem de dezoito anos. Era a idade que eu tinha quando o escrevi. E todo o pessimismo que transparece neste romance é totalmente artificial. É uma atitude exclusivamente literária, ingenuamente literária. É uma máscara, uma roupa emprestada – um pouco como se vestíssemos uma capa de chuva num dia de sol porque achamos que o efeito é bonito [...] É uma exceção, porque creio que em todos outros livros meus personagens, meus heróis têm algo a ver comigo" (RAILLARD, 1990, p. 45-47). Durante esta entrevista concedida a Raillard em vários momentos cita Cacau e Suor como seus romances de estreia. 56 Na coletânea 100 anos de Jorge Amado (2012), alguns textos reforçam a ideia do contexto presente em O país do carnaval, segundo Arnaldo Niskier, os devaneios do intelectual Paulo Rigger, que morava em Paris e voltou a terra natal para questionar fatos políticos, morais e éticos, vividos na época. E Aleilton Fonseca aponta que o livro que foi uma espécie de bildungsroman – romance de iniciação de Jorge Amado na tentativa de fazer uma literatura não totalmente de invenção, mas de transformação direta de fatos vividos, observados e documentados em ficção, com um nítido interesse social. 57 É digno de nota que naquele momento a expressão Nordeste não havia se popularizado, quem divulga e populariza esta expressão é Gilberto Freyre a partir de 1925 no contexto do movimento regionalista. 58 AMADO, Jorge. O país do carnaval. São Paulo: Record, 1982, s/p, grifos meus.

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Na nota introdutória quem nos fala é o autor/intelectual Jorge Amado, então o que percebemos são as considerações de quem coloca como característica de sua geração a procura por um ideal em um país que não teria partidos e princípios, mas com alguma esperança. É notório que cita como problema a "confusão de raças e de sentimentos", que podemos deduzir que seria a mestiçagem, característica da formação do povo do norte e que dessa confusão sairia uma "raça doente e indolente" prejudicada ainda por fatores climáticos. Percebe-se, assim, uma adesão de Amado a um pensamento influenciado pelo darwinismo social sobre a inviabilidade de uma nação mestiça, muito em voga nas décadas anteriores e amplamente divulgada por intelectuais como Paulo Prado, Monteiro Lobato e Nina Rodrigues59. Uma concepção diferente da que irá defender alguns anos depois e completamente oposta à de trinta anos depois, quando a mistura do povo é positivada, festejada e se torna tema frequente tanto no seu discurso intelectual como na sua criação literária. Daí, talvez, a intenção do autor de relevar O país do carnaval como obra da juventude e uma produção inconsequente. A respeito do livro, o próprio título traz um elemento da cultura brasileira que será caro e bem visto pelas futuras narrativas amadianas, especialmente a partir de 1958, o carnaval. Esse tema será tratado como uma espécie de essência do povo brasileiro60, mas nesse primeiro momento representa o pessimismo, pois o carnaval se refere a bagunça, ao atraso e a falta de comprometimento com o futuro do país. O romance narra a história de Paulo Rigger, jovem filho de um rico fazendeiro de cacau que retorna ao Brasil depois de um tempo de estudos na Europa; ele vive dividido entre o pensamento liberal que aprendeu nos tempos de estudos e os valores da tradição patriarcal.

59 Muitos apontam semelhanças desta afirmação de Jorge Amado com o pensamento conservador de Paulo Prado influente porta-voz da aristocracia paulista, no seu livro Retratos do Brasil Prado afirma: “Afastada a questão de desigualdade, resta na transformação biológica dos elementos étnicos o problema da mestiçagem. Os americanos do Norte costumam dizer que Deus fez o branco, que Deus fez o negro, mas que o Diabo fez o mulato. É o ponto mais sensível do caso brasileiro. O que se chama de arianização do habitante do Brasil é um fato de observação diária. Já com um oitavo de sangue negro, a aparência africana se apaga por completo é o fenômeno do passing nos Estados Unidos. E assim na cruza contínua de nossa vida, desde a época colonial, o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se até a falsa aparência de ariano puro [...] Na promiscuidade do convívio, verificava-se que a escravidão foi sempre a imoralidade, a preguiça, o desprezo da dignidade humana, a incultura, o vício protegido pela lei, o desleixo nos costumes, o desperdício, a imprevidência, a subserviência ao chicote, o beija-mão ao poderoso — todas as falhas que inconfessáveis do caráter nacional" (p.137-139). Como também, semelhanças com as ideias de Monteiro Lobato, que atribuía ao Jeca Tatu, espécie degenerada em sua origem mestiça e adaptada ao ambiente natural, a responsabilidade pelos problemas do universo rural. O Jeca era indolente, incapaz de participação na política e na produção do trabalho no mundo moderno, portanto, incapaz de evolução e progresso e de Nina Rodrigues, influência que será abordada adiante. Dentre tantos que apontaram essas afinidades destacamos: Eduardo Assis (1996), Ilana Goldstein (2000). 60 Para tanto, surgirá analises da produção de Jorge Amado que tomam emprestado, com algumas adaptações, o conceito de carnavalização criado por Mikhail Bakhtin, como destaque para o texto de Roberto Da Matta, Dona Flor e seus dois maridos: um romance relacional in: A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rocco: Rio de Janeiro, 1997.

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Rigger chega ao país otimista, admirando o carnaval como festa do povo, com objetivo de viver seu país e seu povo, cuidar da fazenda de seu pai e ser um intelectual notável. Mas termina de forma pessimista, dois anos depois, retornando a Paris, fracassado, maldizendo sua terra natal e a festa popular, sem se sentir parte delas61. O que sobressai na obra é o pessimismo sobre o futuro do Brasil, um "beco sem saída ideológico", na expressão de Eduardo Assis62, característico da visão conservadora. Está presente na obra uma série de ideologias e preconceitos característica desse tipo de pensamento, que o prefácio já dá pistas. A questão racial é um exemplo do conservantismo63. É notável como as descrições de fenótipos raciais que serão comuns no decorrer de seus livros já aparecem nesse livro, em que em nenhum momento um personagem negro ou mulato passa despercebido. No início do livro, ao descrever o carnaval, é encontrada as descrições da paisagem e dos personagens, com negras gordas vendendo comida e mulatas voluptuosas com cor de canela que irão consagrar a obra de Amado. Rigger e seu grupo intelectual têm diálogos abordando o sentido negativo da "raça"; nas palavras do protagonista: "Mas eu acho que a natureza faz um enorme mal ao Brasil. O homem aqui parece preguiçoso, indolente.... Isso deve ser natureza. Tão majestosa faz mal...Vence, esmaga"64. O líder do grupo composto por intelectuais que o protagonista frequenta é um severo crítico do chamado "mulatismo"65, em nome de uma campanha que se dizia "pró-inteligência". Em outro trecho, é narrado o caso de um crítico literário mulato que fora flagrado recebendo dinheiro para que elogiasse certos textos. O grupo comenta:

61 Seguem-se dois trechos ilustrativos, o da chegada: "E Paulo Rigger tinha desejos de ir bem para o interior [...] a sentir de perto a alma desse povo que, afinal, era seu povo. O seu povo... [...] Em Paris, os brasileiros falavam mal da sua terra [...] Ele por contradição falava bem [...]. Agora, queria fazer uma ideia do Brasil [...] Meter-se-ia na política. Fundaria um jornal. Elevaria o nome do Brasil"(p. 19). E o da iminente partida: "Dois anos no Brasil...E, afinal, o que ganhara em voltar a Pátria? Todos os seus projetos tinham ruído. Não entrara na política, não fizera advocacia. Aqueles meses de jornalismo não lhe tinham dado nome [...] Que povo! Fez outro dia da revolução e meses depois quer combater essa revolução! Que carnaval!" (p. 137). 62 DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1996. 63 Almeida (1979) e Assis (1996) também alertaram sobre os elementos conservadores a respeito da questão racial onde a narrativa corrobora com as convicções do racismo cientifico sobre a mistura de raças. 64 AMADO, Jorge. O país do carnaval. Op. cit., p. 22, grifos meus. 65 No livro não fica claro o que seria esta expressão, mas um texto assinado por Alberto Ramos nos dá pista sobre ao que se referia o termo. Em primeiro lugar, ele nega qualquer relação do mulatismo com a etnia, mas em sua explicação existe uma clara relação entre mulatismo e a ideia de inferioridade racial, no caso, indígena: "[...] na acepção genérica em que o termo é tomado aqui o vocábulo, se entende e designa aquela espécie de tara indígena peculiar de boa parte do meio brasileiro e que se manifesta simultaneamente na ordem política, social e literária [...] em sua, pela ambição exclusiva do dinheiro, pela falta de ideal e desinteresse, de capacidade de servir e obedecer, de vontade de querer e poder; pela adoração apalermada da força bruta, que é característico dos povos fracos ou decadentes [...]" (Boletim de Ariel, nov/1933, p. 40).

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– Ora, a gente não deve ligar pra isso. Deve desculpar. Perdoar...Deve-se mesmo sempre perdoar na vida. Os homens superiores devem amar-se uns aos outros... [...] – Que nós devemos nos amar uns aos outros. E que nós devemos ter uma grande indiferença pelos outros homens, que não são nem podem ser iguais a nós.... Devemos perdoá-los sempre. Nada que eles façam de tolo, de ridículo nos deve causar surpresa...Eles são inferiores. Não sabem o que fazem...[...] – A gente não deve perdoar a imbecilidade. Não deve nem pode...Então eu hei de perdoar a burrice crassa daqueles mulatos que publicam uma revista que é uma afronta à gramática e às boas letras do país? – interrogava Ricardo Braz. –Eles não têm culpa. Não foram eles que se fizeram burros. [...] – Mas deviam compreender a sua mediocridade e não aparecer 66.

Outro momento em que a noção cientificista da ideia de raça aparece em um poema censurado de Rigger, pois, segundo os editores, "ofendia a moral brasileira" devido à "sinceridade": Eu canto a mulata dos freges de São Sebastião do Rio de Janeiro...

A mulata cor de canela, que tem tradições, que tem vaidade, que tem bondade, (essa bondade que faz com que ela abra as suas coxas morenas, fortes, serenas, para a satisfação dos instintos insatisfeitos, dos poetas pobres e dos estudantes vagabundos).

É entre as suas coxas sadias que repousa o futuro da Pátria. Daí sairá uma raça forte, triste, burra, indomável, mas profundamente grande, porque é grandemente natural, toda da sensualidade.

Por isso, cheirosa mulata, do meu Brasil africano (o Brasil é um pedaço d’África, que imigrou para a América), nunca deixes de abrir as coxas no instinto insatisfeito dos poetas pobres e dos estudantes vagabundos, nessas noites mornas do Brasil, quando há muitas estrelas no céu e muito desejo na terra67.

66 AMADO, Jorge. O país do carnaval. Op. cit., p. 80-81, grifos meus. 67 Idem, ibidem , p. 29-30, grifos meus.

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É observado na narrativa a utilização do conceito de raça em termos biológicos: os mulatos são considerados inferiores e pertencentes às raças rudimentares por natureza, e a eles é atribuído o atraso do país. No poema também chama atenção a observação sobre a presença de elementos africanos na cultura brasileira: “meu Brasil africano (o Brasil é um pedaço d’África, que imigrou para a América)”, argumento que será aprofundado nas futuras obras pelo escritor e seu narrador. Considerando que o texto literário tem uma realidade própria, que é a realidade apreendida pelo romancista, ele não resulta, necessariamente, nem em fatos concretos nem no posicionamento político-ideológico do autor. É digno de nota que nesse caso há indícios de confluência entre o pensamento do autor no momento e a narrativa do livro, pois na nota introdutória quem nos fala é o Jorge Amado intelectual e na narrativa estão expressos os elementos intra e extraliterários 68. Chama atenção em O país do carnaval como é solucionado o impasse do personagem principal: enquanto um personagem menor, José Lopes, acredita no comunismo como solução para os problemas, Rigger opta por uma saída individual, retornando à Europa e adotando uma espécie de espiritualismo, dizendo à multidão em meio ao carnaval frases como "Sai, diabo"69, pedindo distância das antes admiradas mulatas: "Vá para o diabo que a carregue" encerrando a narrativa com uma suplica frente ao Cristo Redentor: "Senhor, eu quero ser bom! Senhor, eu quero ser sereno..."70. Saída bem diferente do que observaremos nos anos seguintes.

Década de 1930: novos encontros e reconhecimento como romancista

Encontro com o PCB e romance social

68 Entendimento diferente tem Rossi (2009), este reconhece que a personalidade literária tem caráter singular, ou seja, não corresponde necessariamente à personalidade do autor, mas que O país do Carnaval ao ser aprendido como exótico ou conservador, a partir da nota introdutória traz associações enviesadas entre o pensamento do autor Jorge Amado e as ideologias conservadoras presentes no livro. 69 AMADO, Jorge. O país do carnaval. Op. cit., p. 188. 70 Idem, Ibidem, p, 189.

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Após O país do Carnaval, Amado escreve um livro intitulado Rui Barbosa número 2, em 1932, que não é publicado frente a críticas de colegas próximos, como Otavio de Farias e Gastão Cruls, para os quais o novo livro não acrescentaria nada em relação ao anterior71. O duênio 1932/1933 marca novos rumos na vida do jovem escritor. Com um primeiro livro publicado e morando no Rio de Janeiro, se insere no efervescente meio intelectual carioca. A partir de 1932, se torna colaborador regular do Boletim de Ariel, importante revista fundada por Gastão Cruls e Agripino Grieco, proprietários da Ariel Editora, e estabelece vínculos com importantes expoentes da vida intelectual, como Raul Boop, com quem divide casa durante um período, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, Carlos Lacerda e Vinicius de Moraes. Nesses anos, também viaja ao Alagoas, especialmente para encontrar Graciliano Ramos, e acaba conhecendo também Valdemar Cavalcanti, Aurélio Buarque de Hollanda, José Lins do Rego e reencontra Rachel de Queiroz, que havia lhe apresentado os ideais comunistas. Sua aproximação com escritores e intelectuais nordestinos traz um consequente afastamento do grupo conservador de Otavio de Faria e Augusto Schmidt. Nessa mesma época começam a ser traduzidos e editados romances comunistas no Brasil, dos quais Amado se torna leitor atento, como: da União Soviética, As aventuras de Julio Jurenito, de Ehrenburg; A derrota, de Fadeiev; O cimento, de Gladkov; A semana, de Lebedinski; Beco sem saída, de Vieressaief; Contos soviéticos, de Boris Pilniak; e escritos de Gorki. Da França, A condição humana e Os conquistadores, de Malraux; A nova Rússia, de Barbusse. Dos Estados Unidos, Judeus sem dinheiro, de Michael Gold; Petróleo e feriado romano, de Upton Sinclair; entre outros72. Em 1932, ainda na faculdade, Amado se junta à Juventude Comunista do PCB73, onde se engaja frequentando reuniões, palestras, comícios. Essa filiação político-partidária estará presente no seu próximo romance.

71 Os originais de Rui Barbosa nº 2 foram destruídos, que resulta a impossibilidade de qualquer apreciação crítica da obra. Nas palavras de Amado: "Assim, imediatamente – me achei o maior escritor do mundo! – escrevi outro livro, Rui Barbosa nº 2, que era na verdade a repetição de O país do Carnaval, mas onde já se viam as influências que eu recebia da esquerda [...]. Este livro refletia assim as duas linhas que se desenhavam: a linha católica, ligada aos círculos tomistas, que em grande parte foram desembocar no integralismo [...], e as correntes de esquerda que desembocaram no Partido Comunista. [...] Então escrevi este segundo livro, mas tive o bom senso de não publicá- lo. Pois foi justamente no momento em que as influências de esquerda foram fortes para mim, em que me aproximei da Juventude Comunista e comecei a militar” (RAILLARD, 1990, p. 47-48). 72 Editados respectivamente: Civilização Brasileira, Editora Sabrania, Editora Unitas, Editora Pax, os três seguintes pela Editora Cultura Brasileira e os dois últimos pela editora Pax. 73 Sobre o início na militância: "Entrei na Juventude Comunista e desempenhei um papel ativo dentro da universidade - na Faculdade de Direito, onde eu estudava com Carlos Lacerda, Ivan Pedro, Martins e dois ou três outros, éramos os principais líderes da esquerda" (RAILLARD, 1990, p. 49).

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Cacau marca o início do encontro dos romances de Jorge Amado com o pensamento marxista do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Obra considerada uma legítima representante do romance nordestino da década de 1930, é lançada no mesmo período que os livros: Caetés, de 1933, e São Bernardo, de 1934, de Graciliano Ramos (1892-1953); Menino de Engenho, de 1932, de José Lins do Rego (1901-1957); e O quinze, de 1930, de Rachel de Queiroz (1910- 2003). Esses romances tratam de dramas humanos em regiões não centrais do país, e Antonio Candido aponta como uma literatura de "ida ao povo". A publicação desse livro coloca Jorge Amado em um novo patamar, passa de revelação literária e se consolida como autor, como podemos ver em boa parte das críticas presentes na coletânea Jorge Amado: 30 anos de literatura74. Formando uma espécie de tríade da literatura nordestina ao lado de José Lins do Rego e Graciliano Ramos, devido aos pontos de contato tanto da trajetória pessoal – eram herdeiros de uma elite agrária decadente75 – como da temática, que a crítica atribui um caráter documental76. Como podemos observar na crítica de Roger Bastide, Jorge Amado, junto com "[...] José Lins do Rego e Graciliano Ramos, são de fato filhos ou descendentes de grandes e arruinados proprietários de bens de raiz e suas obras nada mais são do que a expressão de uma classe em decadência [...] que deve agora recuar diante de outra aristocracia, baseada no dinheiro e não mais na posse de terras e dos escravos". Mas observa uma singularidade em Jorge Amado, pois para este o povo teria autonomia, diferente do que acontece nos outros dois autores: O povo, sem dúvida, aparece nestes romances, servos, antigos, escravos alforriados que continuam apegados a seus senhores, bandidos correndo mundo, profetas nascidos da miséria do povo e invocando cataclismas... Mas, estes servos, estes negros libretos, estes bandidos ou estes profetas aparecem apenas ligados aos senhores decadentes, apanhados nas malhas que sobrevivem através de todas perturbações econômicas que prendem os brancos, os mulatos e os negros num movimento de degradação, a partir da degradação dos brancos77. .

74 Para Almeida (1979), um claro exemplo de reconhecimento de Jorge Amado como um escritor importante se deve a sua presença na coletânea Gente nova do Brasil. Veteranos e alguns mortos (1935), de Agripino Grieco. 75 Nesse sentido Candido (1987) aponta como diferencial dessa geração o fato de fazerem uma literatura de classe, já que não é possível desprender da origem, e não para a classe, característica do romance brasileiro anterior. 76 A literatura como documento sociológico foi uma discussão muito presente sobre a literatura dos idos dos anos 30 a exemplo do artigo "Sociologia e Literatura" de Gilberto Freyre, entusiasta do então novo romance: "O que principalmente passou a caracterizar o romance novo foi o seu tom de reportagem social e quase sociológica; a sua qualidade de documentos" (p.15), entre outros que apontaram esta característica podemos citar Agripino Grieco, Otto Maria Capeaux, Nelson Werneck Sodré, Flora Süssekind. 77BASTIDE, Roger. Sobre o romancista Jorge Amado. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: Povo e terra. 40 anos de literatura. São Paulo, Martins, 1972, p. 41.

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A originalidade de Jorge Amado residiria em ter rompido esse modelo e visto além da aristocracia decadente: [...] tem em si um tal dom de simpatia que irá tornar-se povo e, pela primeira vez, o povo irá poder expressar-se na literatura brasileira com personalidade própria [...] a grande revolução provocada por Jorge Amado e que seus críticos, aqueles que, por exemplo, lhe censuravam a falta de psicologia, não souberam ver [...] o naturalismo de Jorge Amado é o do proletariado nascente, que encontrou em nosso autor, ao mesmo tempo, sua expressão e sua encarnação78.

Essa observação de Bastide é importante, pois parece haver um lugar comum na crítica que na "ida ao povo" ninguém foi mais longe que Jorge Amado79, devido justamente a sua aproximação com a literatura proletária. Como podemos observar na consideração de Haroldo Bruno: A posição do romancista é a mesma, quer se trate de injunções sociais, quer de crises morais que arrastam ao misticismo, à vagabundagem, ao crime, ao desespero, à morte: posição de inconformado. Diferente, neste ponto, do Sr. Lins do Rego, pois os homens que vagam pelas suas páginas são quase todos uns tímidos, uns resignados, uns pessimistas, não tem força para lutar [...]. As personagens do Sr. Jorge Amado reagem de qualquer maneira, não se rendem à adversidade, ao fatalismo, à ruína, como as do Sr. José Lins do Rego80.

Após Cacau, é publicado Suor (1934), pela editora Ariel, romance que narra o cotidiano dos moradores de um cortiço localizado no Pelourinho, em Salvador. Esse livro encerra a tríade dos romances que Amado considera de aprendizagem e começa a trabalhar na editora José Olympio, na área de divulgação para imprensa81, que irá publicar seus próximos livros. Em meio à publicação desses romances, observamos Jorge Amado envolvido no debate intelectual tanto da questão racial, participando do I Congresso Afro-Brasileiro, como também no debate sobre a literatura engajada. Um exemplo desse último embate é o artigo de sua autoria publicado no jornal carioca Gazeta de Notícias, no qual se dedica a rebater críticas de Lucia Miguel Pereira e Tristão de Athayde, ambos representantes do grupo católico e críticos do romance de finalidade política: Ruiu a torre de marfim dos escritores de antes da guerra. O intelectual de hoje ou se compromete com o proletariado para a luta em reivindicação dos

78 BASTIDE, Roger. Sobre o romancista Jorge Amado. Op.cit., p. 42. 79 Compartilham desta mesma opinião: José Paulo Paes (1991), Eduardo Assis Duarte (1996) e Antonio Candido (1961). 80 BRUNO, Haroldo. O sentido da terra na obra de Jorge Amado. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: Povo e terra. 40 anos de literatura. São Paulo, Martins, 1972, p. 154. 81 Ao que parece seu poder de influência foi crescendo dentro da editora, segundo seu relato, anos depois começou a trabalhar na edição e influenciar na escolha de livros a serem publicados (RAILLARD, 1990).

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oprimidos ou defende com unhas e dentes a sociedade capitalista que agoniza. Desapareceu o homem sem partido. Hoje ele é tão raro como um animal pré- histórico. Desapareceu, por consequência, a literatura desinteressada. Os intelectuais que não estão de um lado estão de outro. Impossível existir o indiferente. Como impossível é existir um livro sem finalidade. Mesmo porque quem não está com o proletariado está contra ele"82.

Assim, se no início da década de 1930 o escritor tinha dúvidas se existia um romance proletário, nesse momento a questão estava respondida, com Amado apontando e defendendo a arte como forma de atuação política, mesmo reconhecendo os limites dessa literatura para o proletariado, que algumas vezes não atingia seu destinatário principal: O Suor foi grandemente apoiado pelos moços estudantes e trabalhadores. São esses meus leitores e me anima a continuar [...] nunca serei um escritor operário. Pequeno burguês com vícios de origem, não possuo a grande poesia, a grande pureza, a força, que hoje, no mundo, só tem o proletariado revolucionário. Os nossos livros pequenos burgueses que aderiram ao proletariado podem ser ingênuos ou falhos. Apesar de tudo eles falam uma nova linguagem nova e verdadeira83.

Em outros textos do mesmo período, entre Cacau e Jubiabá, Amado publica observações sobre a importância do engajamento:

Romancistas novos do Brasil. Revolucionários ou reacionários, nos seus livros vive um clamor, um grito que era desconhecido e que começa a ser ouvido [...]. Carrego comigo a acusação de romancista político e parcial. Confesso que me honro com isso. Sou dos que não acreditam na 'arte pela arte', no 'romance impolítico'. Hoje a situação é de tal modo trágica que aquele que não está de um lado está necessariamente de outro [...] nós somos essencialmente políticos84.

Publica também sobre o caráter pedagógico que essas produções devem ter: "Hoje não interessa mais a literatura pela literatura. Daí escritores e estilistas admiráveis não terem público. Pela simples razão de que não tem nada a ensinar. Ainda estão trancados na clássica torre de marfim"85. Reforça a ideia de que seu trabalho está a serviço de uma causa maior, militante e pedagógica, baseado em dados do real. Sobre seu próximo livro adianta:

Para um sujeito como eu que não tem nenhuma imaginação, o romance tem que ser tirado da vida real [...]. Agora mesmo estou amadurecendo um plano de livro sobre negros. Penso nesse livro desde 1927. Desde esse ano recolho material para esse livro. Já escrevi 3 romances antes dele. Porém já o comecei quatro vezes. Hoje ele está todo feito na minha cabeça, vejo os negros bebendo

82 AMADO, Jorge. Sobre romance internacional. Gazeta de notícias, Rio de Janeiro, 26/10/1934, p. 2. 83 Idem, Ibidem, p. 2. 84 AMADO, Jorge. Apontamentos sobre o moderno romance brasileiro. Lanterna verde, n. 1, maio de 1934, p. 49. 85 AMADO, Jorge. Vizinhança. Boletim de Ariel, n.1, outubro de 1934, p. 3.

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nos botequins e cantando macumbas. Mas como não sairá diferente o romance...Quanto estes pretos vivem andando em cima do papel o que irão fazer?86.

Como aponta Palamartchuk87, no início da década de 1930, na Europa, ocorre uma articulação do movimento antifascista, fato que contribuiu para o engajamento de autores e artistas ao comunismo que como já vimos teve ecos no meio intelectual brasileiro. Culminou também com uma mudança da política da Internacional Comunista, quando o discurso passou de "classe contra classe" para "frentes populares"88. No sentido dessa nova orientação, no Brasil foi fundada, em 1935, a ANL (Aliança Nacional Libertadora)89, que tinha como objetivo central combater o fascismo e o imperialismo90 com o lema “pão, terra e liberdade” e tinha apoio do PCB e de muitos intelectuais comunistas, como: , Brasil Gerson, Carlos Lacerda, Aníbal Machado, Santa Rosa e o próprio Jorge Amado91; entretanto, apenas dois meses depois da fundação, a ANL foi colocada na ilegalidade. A influência da ANL é notável na produção literária de Jorge Amado. Ele passa a reconhecer ainda mais o potencial de mobilização popular, algo que estará muito presente nos seus próximos romances: Jubiabá (1935), Mar Morto (1936) e Capitães de Areia (1937). Este coloca definitivamente o fazer literário como forma de luta: "E quando os homens atravessam uma época de política, uma época de lutas como a nossa, o romance que seja honesto, não pode deixar de ser uma arma de luta"92. O momento de publicação de Jubiabá (1935) é politicamente conturbado. O clima repressivo gerou um declínio de produção dos chamados romances proletários. Amado atrela a existência dessa literatura ao movimento político, especialmente a ANL:

86 AMADO, Jorge. Personagens. Lanterna verde, n. 2, fevereiro de 1935, p. 93. 87 PALAMARTCHUCK, Ana Paula. Ser intelectual, ser comunista: escritores brasileiros e o comunismo (1920- 1945), Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 1997. 88 Idealizada por Georgor Dimitrov e aprovada oficialmente em julho de 1935 no VII Congresso da Internacional Comunista, as frentes populares pressupunham ampliação das alianças comunistas na tentativa de derrotar o nazi fascismo. 89 Em oposição AIB (Ação Integralista Brasileira), fundada por Plínio Salgado em 1932 que estava associado ao integralismo e o fascismo e tinha como lema “Deus, Pátria e Família". 90 O primeiro manifesto público da ANL data de janeiro de 1935, o programa básico da organização tinha como pontos principais: suspensão do pagamento da dívida externa do país; nacionalização das empresas estrangeiras; a reforma agrária; proteção aos pequenos e médios proprietários, a garantia de amplas liberdades democráticas e a constituição de um governo popular. 91 É conhecida a atuação de Jorge Amado em 1935, quando o escritor Dionélio Machado foi preso em decorrência da sua ação militante na Aliança. Este antes de ser preso enviou manuscritos de um novo livro à Companhia Editora Nacional que na ocasião lançara o prêmio Machado de Assis, cuja premiação seria a publicação de um livro pela mesma. Frequentador assíduo da editora, Amado interveio no júri - composto por nomes como: Gastão Cruls, Monteiro Lobato, Agripino Grieco - para que o comunista Dionélio Machado ganhasse o prêmio como forma pressionar o governo Vargas que reforçara a censura e prendera vários intelectuais. 92AMADO, 1936, apud ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Rio de Janeiro: Campus, 1979, p.120.

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Com o surgimento da Aliança Nacional Libertadora toda essa literatura, que se iniciava, encontra o seu apoio num movimento de massas e pode atingir seu máximo. Com Prestes. O fracasso da insurreição de 35, a prisão de líderes revolucionários e de Prestes, vem paralisar essa literatura. Ainda produziu ela alguns livros, com a força que restava do movimento da Aliança. A implantação do Estado Novo em 1937 traz o suborno como arma política. A compra de uma literatura. Os escritores mais nobres silenciam, impedidos de falar. Outros se vendem. Outros ainda se limitam, abaixam a voz numa última tentativa de dizer alguma coisa93.

Apesar de ter se filiado oficialmente ao PCB somente em 1945, Amado enfrenta um período conturbado por sua ligação com a ANL. No início de 1936 é preso94, acusado de ter participado da Intentona Comunista95, mesmo momento em que outros intelectuais vivem na mesma situação, como Graciliano Ramos, Santa Rosa, Caio Prado Júnior, Di Cavalcanti, Hermes Lima, Eneida Castro Rabelo, Aporelly, Álvaro Moreyra, entre outros. Dois meses depois é solto, conclui o romance Mar Morto e, devido ao clima de repressão ideológica, realiza uma longa viagem por vários países da América Latina. Capitães de Areia foi publicado em setembro de 1937, próximo à implantação do Estado Novo96, que aconteceu em novembro do mesmo ano, quando seus romances são apreendidos e queimados em praça pública em São Paulo e Salvador devido ao caráter supostamente subversivo. Sua viagem aos países da América espanhola, com passagem nos Estados Unidos e Cuba, propicia a divulgação do seu trabalho como escritor e dá visibilidade a sua condição de perseguido político, lembrando que nesse momento seus livros começam a ser traduzidos. Que como observou Eduardo Assis Duarte foi fundamental para a divulgação internacional de seu trabalho: O engajamento abre para o escritor a ascensão a um plano internacional. Por um lado, os romances do tempo da utopia servem aos objetivos do movimento comunista; por outro, a condição de companheiro de viagem da revolução mundial vai descortinar para os textos um número cada vez maior de leitores97.

Popularidade crescente que o autor percebe em 1937:

93 AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança. Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 12, grifos meus. 94 Segundo o próprio escritor a prisão ocorreu em 1936, mas os biógrafos como Miécio Tati e Alfredo Wagner de Almeida colocam como data da prisão novembro de 1935. 95 A Intentona Comunista, foi uma tentativa fracassada de derrubar o governo Vargas promovida pelo PCB sob a liderança de Luís Carlos Prestes. Iniciou-se em Natal, no Rio Grande do Norte, onde os revolucionários chegaram a tomar o poder durante três dias. Depois se estendeu para Maranhão, Recife e por último para o Rio de Janeiro, no dia 27. Após derrotá-los, Vargas iniciou forte repressão aos envolvidos no movimento. Luís Carlos Prestes foi preso, bem como vários líderes sindicais, militares e intelectuais. 96 Estado Novo (1937-1945) é o período do governo Getúlio Vargas de forte cunho autoritário, cuja Constituição de 1937 dava amplos poderes ao presidente da República. 97 DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado, exílio e literatura. Aletria, Belo Horizonte, 2002, p. 227. Ridenti (2011) também buscou elucidar as relações de Amado com o círculo comunista internacional e suas reverberações, tema que será abordado mais a frente, pois teve maiores reflexos nos decênios seguintes.

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E o mundo já começa a se interessar pela literatura brasileira. Livros novos são traduzidos e agradam. Há poucos dias um escritor norte-americano, Samuel Putman, escrevia numa revista dos Estados Unidos um artigo onde de repente dizia uma coisa mais ou menos assim: 'Por mais incrível que pareça os melhores romances de massa que se fazem hoje no mundo são os brasileiros'. E citava a Erico Veríssimo e a mim98.

Nesse mesmo ano recebe o Prêmio Graça Aranha, o mais importante prêmio da literatura brasileira naquele momento, por Mar Morto, reforçando o lugar de artista reconhecido pelo público e pela crítica: colaborava com jornais e revistas de boa repercussão e consegue viver do seu trabalho literário99. De 1935 até início de 1940, encontra-se uma série de artigos escritos por Amado refletindo sobre as condições necessárias para que os produtores assegurarem a autonomia do oficio100, pois o Estado Novo havia imposto sérias sanções a sua atividade de escritor101, proibindo-o de ocupar cargos públicos, restringindo a circulação de seus trabalhos, queimando seus livros em praça pública, proibindo a exposição dos trabalhos em livrarias e a edição de suas obras. Como consequência, o escritor, que vinha publicando uma média de um livro por ano desde 1931, volta a publicar somente em 1941 com a biografia ABC de Castro Alves e no ano seguinte a primeira edição de Vida de Luís Carlos Prestes, que teve que ser publicada na Argentina.

98 AMADO apud TÁTI, Miécio. Jorge Amado vida e obra. Op.cit, p. 93. 99 Em entrevista ao Jornal de Noite de Porto Alegre afirma: "No ano passado [...] eu vivi sete meses exclusivamente a custa de livros" (AMADO apud TATI, p. 93). 100 Retomando estes textos, Amado queixa-se do preço dos livros e de qualidade das produções, inclusive as infantis, dos problemas na divulgação e a falta de medidas do Ministério da Educação e do Instituto Nacional do Livro que não colocavam estas questões em debate. Textos publicados nos periódicos O observador econômico e literário "Problemas do livro no brasileiro" em fevereiro de 1940 e no jornal Dom Casmurrro "Livro infantil", "Livros escolares" e "Divulgação do livro nacional" em outubro de 1939, setembro de 1939 e fevereiro de 1940, respectivamente. 101 Este período é marcado pela intima relação entre os intelectuais e o Estado, este promovia o aliciamento de produtores intelectuais para ocuparem cargos. Nomes mais progressistas ligados da vanguarda do movimento modernista como Carlos Drummond de Andrade, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Portinari, Mário de Andrade, trabalharam em funções ligadas ao Ministério da Educação. Já no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão que atuava no controle das comunicações, atuavam nomes como o de Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e Cândido Motta Filho, intelectuais conservadores ligados ao "modernismo da ordem". Como bem observa Monica Pimentel Velloso (1967), a função do intelectual era ser representante da consciência nacional e ao colocá-lo neste papel o objetivo era trazê-lo para o seio do Estado como forma de disciplinar e coordenar evitando surgimento de outros focos de oposição.

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Encontro com a questão racial

Para grande parte dos trabalhos sobre a obra amadiana, o que marca a trajetória intelectual do autor no início de carreira são os debates e as tomadas de posições no âmbito político-partidário, que refletem diretamente no âmbito estético: a adesão ao comunismo, as discussões modernismo/regionalismo e a escrita de romances que pretendiam ser expressão do proletariado. O que não deixa de ser importante, pois a opção estética e a política influenciaram, como veremos, diretamente a apreensão da questão racial. Não perdendo de vista que toda obra de arte concebida recebe influência do contexto, ou seja, dos fatos históricos e discussões da época. Como já comentado, a temática da questão racial se torna um campo de discussões notório na década de 1930; agora cabe observar como Jorge Amado se inseriu neste debate. Mas antes vale localizar o debate racial em um âmbito mais geral dentro do Partido Comunista. Chadarevian102 aponta que o problema racial foi de difícil reconhecimento no movimento comunista internacional. O tratamento marxista da questão racial veio nos primeiros congressos da Internacional Comunista por meio de Lênin. O primeiro trabalho exclusivo sobre a questão negra aparece no Congresso da III Internacional Comunista, em 1921, escrito pelo sul-africano David Ivon Jones. No ano seguinte, no IV Congresso da III Internacional Comunista, são lançadas as "Teses sobre a questão dos negros"103, mas somente a partir do sexto congresso da IC, em 1928, é que a opressão racial passa a ser reconhecida em um documento oficial como fenômeno mundial104, uma interpretação que reconhece os negros como vítimas do capitalismo e dos trabalhadores brancos. Já no Brasil, Chadarevian105 identifica dois períodos dessa discussão: o primeiro entre 1922-1933, marcado pelo desinteresse sobre o tema, e o segundo a partir de 1934, quando começam as críticas sobre a condição dos negros e indígenas. O que estaria por trás da ausência de discussão seria a falta no quadro teórico marxista da articulação entre exploração de classe e opressão de raça, como também a visão etapista do desenvolvimento brasileiro. Sendo assim,

102 CHADAREVIAN, Pedro Caldas. Raça, classe e revolução no Partido Comunista Brasileiro. Política & Sociedade, Florianópolis, volume 11, nº 20, p. 255-283, abril de 2012. 103 Em resumo, o documento associa luta da raça negra a luta contra o capitalismo e ao imperialismo sem uma interpretação especifica que explicasse a condição subordinada do negro na sociedade. Afirmando, entre outras coisas, que os povos negros que sofrem opressão do capitalismo e do imperialismo ao mesmo tempo, lembra que o inimigo dos negros e dos operários são os mesmos, que a questão dos negros é fundamental para a revolução comunista, fala em igualdade de raça, política e social, como também, em incentivar as trade unions contratar trabalhadores negros e a formação de sindicatos especiais. 104 Nesse sentido Chadarevian (2012), destaca os trabalhos de Gramsci e Mariátegui que foram utilizados para combater as ideias do racismo cientifico, que influenciavam muitos comunistas, ao avaliarem o problema racial como uma situação historicamente determinada associados a estruturas econômicas e sociais de cada país. 105 CHADAREVIAN, Pedro Caldas. Raça, classe e revolução no Partido Comunista Brasileiro. Op. cit.

| 46 o racismo era considerado um elemento adicional que caracterizava a estrutura semifeudal do país106. A mudança de orientação ocorre após reorientação dos PCs sobre as minorias oprimidas, paralelo a uma mudança no debate racial no país que estava ganhando cunho mais culturalista. A partir de 1931, surgem críticas marxistas sobre a questão racial e é fundada a Frente Negra Brasileira (FNB)107, que trouxe pela primeira vez reivindicações exclusivas da população negra. O PCB tenta aproximação com a FNB, distribuindo panfletos com assuntos diretamente relacionados a população negra, nos quais três elementos se destacam: crítica ao 13 de maio, refutação das teses do racismo cientifico e menção a valores específicos da cultura negra (religião e música, por exemplo). Esses elementos são observados claramente quando analisamos o periódico aliancista A manhã108. Observar a posição do jornal aliancista em relação ao debate racial vigente é importante, pois elucida importantes aspectos sobre essa discussão nos movimentos de esquerda dos anos 1930 e de que ponto de vista Jorge Amado observa a questão, lembrando que ele foi redator do jornal e militante da ANL. É digno de nota que por meio desses periódicos ocorriam debates e estes eram importantes propagadores de ideias das vertentes políticas, pois, se a esquerda tinha o A manhã, o jornal A Ofensiva era o representante da Ação Integralista Brasileira109. Em praticamente todas as edições do A manhã a temática racial é abordada. Nota- se um esforço por parte a Aliança Nacional Libertadora em mobilizar a população negra em

106 A primeira manifestação brasileira sobre a questão racial data de 1922. Respondendo a um documento enviado de Moscou que questionava sobre a questão racial no Brasil, Otavio Brandão, líder do partido, responde que existe negro no Brasil, mas não questão negra. Na primeira Conferencia Comunista Latino Americana (1929), os delegados brasileiros atentaram para o elevado grau de mestiçagem e a tendência ao branqueamento da população brasileira, destacando o número de não brancos ocupando cargos importantes e concluindo que não há preconceito de cor, mas de classe. A delegação brasileira recebeu uma série de críticas por esta postura, incluindo da sede central do PC. Chadarevian (2012) credita essa atitude conservadora a dois fatores: a posição social dos dirigentes do PCB, pois estes eram oriundos da elite e tinham uma clara influência da ideia de democracia racial e a debilidade do ainda nascente movimento negro no Brasil. 107 A Frente Negra Brasileira foi fundada em 1931, com a intenção de ser a maior organização de afro-brasileiros do país. Tinha projeto antirracista cujo principal ideal era a integração do negro como cidadão brasileiro à ordem social vigente. Em 1933, começou a circular seu jornal A voz da raça, importante difusor de suas ideias. O número de filiados é polêmico, algumas estimativas afirmam que a FNB reuniu no seu auge de 25 a 30.000 filiados outros falam entre 60 e 70 mil filiados, em 1936 quando se transformou em partido político, a entidade contava com mais de 60 delegações distribuídas no interior de São Paulo e em outros Estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco.. 108 Sobre o jornal A manhã, foi fundado por Pedro Motta Lima em 26 de abril de 1935, ligado ao Partido Comunista Brasileiro, apresentando-se como porta-voz da Aliança Nacional Libertadora (ANL) durou sete meses até 27 de novembro de 1935. 109Sobre esses periódicos, os integralistas criaram em 1935 um consórcio jornalístico denominado “Sigma – Jornais Reunidos”, subordinado à Secretaria Nacional de Propaganda, que englobava um conjunto de 88 jornais, dentre os quais estavam os jornais O Monitor Integralista, A Ofensiva, A Ação, O Integralista e a revista Anauê, publicações que cobriam todo o território nacional e também englobavam a Secretaria Nacional de Imprensa (SNI) e as Comissões de Imprensa. Já o PCB, tinha como veículos jornais, boletins sindicais e estudantis e conseguia manter três jornais diários: A manhã, no Rio; A plateia, em São Paulo e Folha do povo, em Recife.

| 47 prol da luta do trabalhador contra o fascismo e o imperialismo. Em uma das suas primeiras edições, o jornal mostra-se empenhado no esforço de levantar os problemas do negro no Brasil e não hesita em chamar nomes como Tristão de Athayde, Plínio Salgado e Oliveira Vianna de "sociólogos de classe" e de "última classe", por considerarem os negros como raça inferior, e Gobineau e Laponge, ideólogos do racismo cientifico, de "fósseis da ciência". O jornal afirma também que não pode haver confusão entre raça e cultura, mas não deixa de lado certas concepções evolucionistas em citações, como: "O negro pode, em relação ao branco, apresentar, uma 'cultura' inferior, que seja mesmo degradada..."110, além de exaltar a mistura de raças, que, segundo suas concepções, trouxe talentos para o Brasil, explicando que ao trazer o elemento mestiço e africano estaríamos enfrentando os nossos problemas raciais sem copiar modelos estrangeiros, no caso, os Estados Unidos de quem eram severos críticos. No mais, a publicação aposta na orientação da população negra de forma didática com a finalidade que ela olhe para história de escravidão como uma história de luta e resistência. Em editorial, afirma claramente o empenho da publicação "[...] no sentido de destruirmos, pelo menos despertar a consciência dos negros, os preconceitos que os reduzem a vida de escravos, disfarçados, tendo apenas no papel os mesmos direitos que os brancos, mas na realidade sendo banidos de todas as situações que representem vantagens materiais e morais"111. Por isso, em seus textos procurava exaltar figuras como a de Zumbi dos Palmares e de Luiza Mahin112, mãe do poeta Luiz da Gama, como exemplos, além de reafirmar amplamente a ideia que os negros estariam vivendo uma segunda escravidão. Nas páginas do jornal ainda estão presentes as organizações negras então recém- fundadas, como a Legião Negra do Brasil de São Paulo, que tinha como objetivo angariar fundos para auxiliar os "irmãos de raça" que ficaram inválidos ou doentes como consequência Revolução Constitucionalista de 1932, a Federação dos Negros, que apontava a união como caminho para emancipação e contra o fascismo, e a própria Frente Negra Brasileira113. Essas

110 A influência do africano na língua brasileira. A manhã, Rio de Janeiro, 02/05/1935. 111 A vida dos negros no Brasil, A manhã, Rio de Janeiro, 23/05/1935. 112 Se referem a Zumbi como um símbolo de resistência que serve de exemplo para toda população negra no sentido de buscar a emancipação. Nesse mesmo tom é lembrada Luiza Mahin, que teria sido rainha na Líbia e veio para o Brasil como escrava, quando alforriada teria auxiliado na Revolta do Malês e lutado pela abolição da escravidão, entretanto, existe pouco indícios da sua real biografia, se realmente foi rainha, se de fato participou da revolta dos Malês, Lima (2011) aponta a mitificação desta personagem que inclusive mereceu considerações de Arthur Ramos colocando-a, apesar de todas as dúvidas, como símbolo de luta da mulher negra. 113 Essa referência a Frente Negra Brasileira reforça a ideia que o movimento negro foi um nicho de disputa entre os integralistas e os comunistas. Sabe-se que integralistas tentaram arregimentar associados ligados a associações negras. Arlindo Veiga dos Santos, fundador da Frente Negra Brasileira e primeiro presidente do grupo, como também, outros integrantes demonstravam simpatias como o patrianovismo e o integralismo chegando até se filiar a organizações. Como mostra Maria Claudia Cardoso Ferreira (2005), Arlindo Veiga dos Santos aproveitou o lema, "Deus, Pátria e Família" dos integralistas e compôs o lema da FNB, "Deus, Pátria, Raça e Família'. Ainda

| 48 organizações são citadas especialmente quando o jornal se empenha na campanha contra a invasão da Abissínia, "o último império negro," que havia sido invadido pela Itália. A publicação, por várias edições, conclama os povos negros de todo mundo a não ficarem alheios a situação do território etíope; não deixa de ser interessante observar como a noção evolucionista de desenvolvimento cultural estava tão arraigada: a publicação se refere a esse povo africano como bárbaros que começavam a se civilizar. Nesse momento, se destaca a voz de Isaltino Veiga dos Santos114, militante negro, que escreve e é citado constantemente na publicação convocando a população de cor para militância. Assim nota-se um esforço de colocar a problemática racial como uma pauta de esquerda, no sentido de chamar a população de cor para a revolução e pensar sua inserção na sociedade. Para tanto, em 1935 escritores militantes do PCB se mostraram dispostos a construir retratos do negro na sociedade: além de Jorge Amado, com Jubiabá, Aderbal Jurema e Carlos Lacerda escreveram as Insurreições Negras e O quilombo de Manuel Congo, respectivamente. Ao mesmo tempo, observa-se uma dificuldade de superar certas premissas do pensamento ligado ao racismo cientificista115 e adentrar na realidade negra dado que os romances citados anteriormente foram escritos por brancos. Após contextualizar mais amplamente sobre a questão racial no início do capítulo e apresentar esse debate no PCB, no qual Amado se tornara um atuante militante em meados dos anos 1930, observaremos como o romancista se insere no debate. O que se percebe logo de início é que essa problemática nunca passou despercebida, tanto na atividade intelectual como em sua produção literária. De fato, ela começa tímida, sem muitos registros, e se desenvolve ao longo da sua carreira a ponto de se transformar em um tema central.

sobre as proximidades de projetos e concepções entre a FNB e a AIB, sugiro o artigo Petrônio Rodrigues O ‘messias’ negro: Arlindo Veiga dos Santos (1902-1978) (2006). Do mesmo modo que Chadarevian (2012), aponta tentativas do PCB de se aproximar dos frente-negristas. É valido também salientar que além da Frente Negra Brasileira, outras entidades surgiram no momento com o propósito de promover a integração do negro à sociedade, dentre as quais podemos citar o Clube Negro de Cultura Social (1932) e a Frente Negra Socialista (1932), dissidências da FNB em São Paulo; a Sociedade Flor do Abacate, no Rio de Janeiro, a Legião Negra (1934), em Uberlândia/MG, e a Sociedade Henrique Dias (1937), em Salvador. Mario Augusto Medeiros (2011) aborda em sua tese de doutoramento com maiores detalhes as relações travadas na FNB, eventuais conflitos e dissidências. 114 Afastado em 1933, Isaltino Veiga dos Santos junto com seu irmão Arlindo Veiga dos Santos foi um dos fundadores da Frente Negra Brasileira. Após afastamento, Isaltino se tornou colaborador do jornal pcbista A plateia e fundou a Federação Nacional dos Negros cujo objetivo seria levar os adeptos a ANL. Preso em novembro de 1935, por envolvimento com o comunismo ficou mais de um ano na cadeia, sendo solto somente depois de alegar que a serviço do integralismo estava infiltrado na organização comunista. Sua trajetória e a de seu irmão, cheia de contradições, inconsistências e acusações são interessantes objetos de estudo, pois elucidam a atuação do nascente movimento negro e suas lideranças nas correlações de forças políticas daquele momento. Para maiores detalhes indico os trabalhos de Petrônio Domingos (2006, 2007) e a dissertação de Maria Claudia Cardoso Ferreira (2005). 115 Chadervian (2012) afirma que teses de inferioridade biológica e cultural não foram influentes no PCB como foi nos países europeus. Não sei até onde essa afirmação é verdade, pois na análise de textos do jornal aliancista A manhã a concepção de inferioridade cultural dos povos negros se mostra muito presente.

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Questão de raça, questão de classe...

Amado comenta: "[...] o social me atingiu imediatamente, vendo as condições de vida dos trabalhadores da fazenda. A consciência do problema racial veio depois que eu vim pra capital". Páginas à frente, na mesma entrevista, o entrevistador aponta o ano de 1927, portanto antes da estreia como escritor, como crucial na vida do autor para pensar essa questão - pois além ser o ano que o escritor volta a viver em Salvador, acredito que outro fator que marca este ano como fundamental é o fato dele ter recebido seu primeiro título no candomblé: Ogã de Oxóssi, de pai Procópio do terreiro Ogunjá: Foi quando passei a viver misturado com o povo da Bahia que o problema racial começou a me afetar. Foi sobretudo a minha relação com o povo dos candomblés, vendo a perseguição terrível de que eram objetos os cultos afro- brasileiros. Mas eu nunca tive dúvidas: o problema racial é consequência do problema social116.

Apesar de esse depoimento ter sido concedido mais de cinquenta anos depois de sua estreia como romancista e alguns aspectos sobre a temática terem sido reconsiderados, três elementos podem ser destacados por terem acompanhado sua trajetória: seu interesse pela questão racial por meio da religiosidade afro-brasileira (candomblé), a abordagem da questão focando na população baiana e a afirmação que o problema racial é consequência da questão de classe. Em suas memórias, Navegação de Cabotagem, revela: Desde mocinho, rapazola cursando a vida popular baiana, inclusive nas casas- de-santo, nos terreiros de candomblé, com Édison Carneiro, Artur Ramos, Aydano do Couto Ferraz, foi me dado testemunhar a violência desmedida com que os poderosos do Estado e da Igreja tentaram aniquilar os valores culturais provenientes de África [...] Menino de quatorze anos comecei a trabalhar em jornal, a frequentar os terreiros, as feiras, os mercados, o cais dos saveiros, logo me alistei soldado na luta travada pelo povo dos candomblés contra a discriminação religiosa, a perseguição aos orixás, a violência desencadeada contra pais e mães-de-santo, iaôs, ekedes, ogans, babalaôs, obás [...] Tais misérias e a grandeza do povo da Bahia são a matéria-prima de meus romances, que os leia quem quiser saber como as coisas se passam117.

Em anos anteriores, Jorge Amado já havia dado testemunhos nesse mesmo sentido, apontando a influência direta dessa questão na construção dos romances:

116 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. Op. cit., p.6; p.10. 117AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que nunca escreverei. Op. cit. p. 66-67.

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Nós éramos muito ligados à vida popular. O Édison já começava seus estudos de etnografia, de antropologia social. Com ele e Artur Ramos, comecei a frequentar os candomblés. Outro dia, a Menininha do Gantois recordava que ela me conhece há mais de 50 anos, daí para lá...ela jovem mãe-de-santo, hoje está com 84 anos, devia ter uns trinta anos. Nessa época me tornei amigo do pai-de-santo Procópio. Foi ele quem me deu o primeiro título de candomblé, Ogan de Oxossi. Procópio foi o pai-de-santo que mais perseguição sofreu da polícia por causa da questão religiosa. A questão religiosa, racial, era muito mais intensa do que hoje...muito mais violenta. A polícia chegava, invadia, prendia. Eu marquei isso, primeiro em Jubiabá, depois em Tenda dos Milagres118.

Ao observar as citações acima, é notável que em fins da década de 1920, ainda na Bahia, Amado dialoga com intelectuais que trataram e publicaram importantes livros sobre a influência africana no Brasil: o colega de Academia dos Rebeldes, Édison Carneiro, e Arthur Ramos, considerado importante divulgador das ideias do médico-legista Antonio Nina Rodrigues. Também sua relação próxima com representantes das religiões afro-brasileiras da Bahia. Novamente se referindo aos colegas estudiosos baianos e a Nina Rodrigues como "grande mestre", Amado narra o primeiro encontro com uma figura que irá marcar sua inspiração literária sobre o negro: Édison Carneiro uma das forças da mais nova geração do Brasil, me leva a casa do professor Martiniano, um preto velho e sábio, que encontro vestido de camisa numa casa colonial e enorme, onde mora gente de toda espécie [...] Imagine uma parede coberta de retratos os mais diversos, emoldurados em conchas, ídolos negros por toda parte (como ele tentariam o meu amigo Arthur Ramos, que possui uma notável coleção). Aperto a sua mão e acompanho o meu querido Édison no respeito que ele trata o preto velho. Fico espantado com o muito que o preto velho sabe. Empresto-lhe Casa grande e senzala. Ele me conta como conheceu Nina Rodrigues, mostra lembranças do grande mestre e mostra como o deputado Homero Pires deturpou, por ignorância, o livro do mestre: 'Africanos no Brasil', que saiu há coisa de um ano com prefacio e notas daquele deputado.119

O primeiro registro de Jorge Amado falando sobre a temática racial data de 1932. No periódico Boletim de Ariel faz uma apreciação crítica do livro do colega Raul Bopp, Urucungo, texto que demonstra algumas preocupações do escritor sobre a presença do negro nas letras brasileiras. Amado afirma que Bopp escreveu a história dos negros escravizados, algo raro: De fato, não sei de poeta brasileiro, exceto Jorge de Lima, que tenha preocupado com o negro. Não falo preocupar-se no sentido de fazer versos sobre o negro. Isso Castro Alves fez com brilho extraordinário. Falo de fazer

118 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. Op. cit., p.11. 119 AMADO, Jorge. Rios e cidades. Gazeta de notícias, Rio de Janeiro, 24/11/1934, grifos meus.

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poesia negra como Raul Boop em Urucungo. Poesia com sentimento negro. Samba. Coco. Tragédia do negro que 'bate pilão a vida toda' [...] Faz agora a [poesia] do negro120.

Para Amado, não bastava fazer poesia sobre o negro: era preciso incorporar o sentimento do negro. Essa preocupação já despontava anos antes da publicação de Jubiabá e, como observamos, isso muito se deve aos diálogos que vinha estabelecendo com os colegas estudiosos africanistas. Chama atenção sua proximidade com Arthur Ramos (1903-1949). Ramos foi o principal responsável pelo resgate e difusão do trabalho intelectual de Nina Rodrigues121 na década de 1930 juntamente com outros intelectuais baianos, como Afrânio Peixoto (1876- 1947) e Anísio Teixeira (1900-1971). Estes formavam a conhecida "escola baiana", a qual o etnólogo Édison Carneiro também se filiará, apesar de algumas divergências. Nessa década, o grupo baiano se instala no Rio de Janeiro, onde Ramos ocupou a importante função de diretor da Biblioteca de Divulgação Científica e publicou seus livros pela Editora Civilização Brasileira, pela qual também editou livros de Édison Carneiro e reeditou publicações de Nina Rodrigues. Esse grupo de intelectuais foi nomeado por Arthur Ramos como "escola Nina Rodrigues", Mariza Correa aponta que por trás dessa revalorização estava em disputa a hegemonia no campo dos estudos raciais: "[...] uma operação de guerrilha, cujo objetivo parecia ser destronar a posição, que começava a ganhar foros de hegemonia, de Gilberto Freyre, no campo do estudo das relações raciais"122. À luz desse contexto, podemos situar Jorge Amado, que em meio a essa discussão, em artigo publicado no Boletim de Ariel, afirma: Faz-se necessário saber o que vale cientifica e literariamente a cidade do Salvador para avaliar o esforço heroico de Arthur Ramos. Homem de ciência

120 AMADO, Jorge. Raul Bopp, o macumbeiro. Boletim de Ariel, n. 3, dezembro de 1932, p. 73, colchete meu. 121 Retomando brevemente o pensamento de Rodrigues, este médico criminalista se colocou em oposição aos abolicionistas que inspirados pelo pensamento liberal procurava enfatizar da humanidade e a igualdade do negro. Nina Rodrigues (1862-1906) se dedicou a pesquisa para justificar cientificamente a inferioridade natural dos povos negros, como também, pontuar os efeitos patológicos da mestiçagem, utilizando como principal fonte de pesquisa as práticas culturais negras. Vale lembrar que Nina Rodrigues, maranhense de nascimento, consolidou sua carreira na Bahia. Província que se destacou como centro econômico, político e cultural na Colônia, mas que na República viu sua importância reduzir, um de seus "problemas" era ter uma população composta de grande maioria negra (provavelmente a região com maior porcentagem). Como já citado, a modernidade do Brasil enquanto nação era vislumbrada a partir a diluição da população negra. Pessimista assumido, a "solução" encontrada pelo médico legista, foi justificar que os negros da Bahia provêm dos negros superiores da África, os sudaneses. Beatriz Gois Dantas (1982) observa nesta análise de Rodrigues uma tentativa de se diferenciar da parte Sul do país, cuja população era de maioria bantu, considerada por ele muito inferior, mas sua presença era contrabalançada pela forte presença dos imigrantes europeus. Sobre Nina Rodrigues, “sua escola” e a instituição deste campo de estudo das relações raciais sugiro o livro Ilusões de Liberdade: a escola de Nina Rodrigues de Mariza Correa. 122 CORREA, Mariza. Antropólogos e antropólogas. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 166.

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que escreve boa prosa, tem continuado a obra de Nina Rodrigues sobre a raça negra no Brasil. Na Bahia lhe falta tudo exceto o material que desde a morte de Nina até o aparecimento de Arthur Ramos andou abandonado [...]; fotografando os negros e escrevendo coisas admiráveis que nos fazem acreditar que Nina Rodrigues encontrou seu sucessor.123

A citação acima dá indícios de um bom conhecimento de Amado a respeito dos estudos realizados por Ramos124, mesmo antes de este ser amplamente reconhecido, lembrando que esse artigo fora escrito em 1933, ano em que Arthur Ramos se instala no Rio e que só se torna reconhecido como discípulo de Rodrigues por volta de 1936. Há também evidências de concordância com as pesquisas de Ramos ao afirmar que estava "escrevendo coisas admiráveis". Rossi125 aponta em sua pesquisa sobre a questão racial em Jorge Amado que existem elementos para filiar o romancista ao "grupo baiano" com base em características outrora levantadas pela antropóloga Mariza Corrêa: a ênfase dos baianos na atuação política126 e a marca do trabalho em focar a "africanização" da Bahia. Acredito que não há elementos suficientes para tal afirmação, mas podemos chegar a algumas importantes conclusões: 1) a porta de entrada de Jorge Amado para a questão racial se dá por meio da sua inserção na luta pela descriminalização dos cultos afro-brasileiros; 2) havia um importante diálogo com seus conterrâneos que estudavam a questão do negro; 3) foi influenciado, pelo menos inicialmente, pelas teses do pensamento racista cientificista, notoriamente por Nina Rodrigues, que maldizia a mestiçagem, o que podemos observar na nota introdutória de O país do carnaval de 1931: "No Norte, terra da promissão, há uma grande confusão de raças e de sentimentos. É a formação do povo. E dessa confusão está saindo uma raça doente e indolente"127.

123 AMADO, Jorge. Dois ensaístas. Boletim de Ariel, n. 9, junho de 1933, p. 225. 124 Como discípulo de Nina Rodrigues, Ramos partiu dos princípios do seu mestre, mas não foi um mero repetidor de obra. Para ele não existiam "raças puras", como também, as diferenças não eram raciais, mas culturais. São três as críticas principais que faz as formulações de Rodrigues: 1) a tese das desigualdades raciais; 2) a tese da inferioridade e da degenerescência do mestiço brasileiro; 3) e a tese da responsabilidade penal atenuada dos negros, índios e mestiços brasileiros. Mas apesar de tentar negar a noção de raça acaba retomando, pois adota critérios raciais ao escalonar os negros segundo graus de inteligência associado a características físicas. 125 ROSSI, Luiz Gustavo de Freitas. As cores da revolução: a literatura de Jorge Amado nos anos 30. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2004. 126 Sobre a ênfase na política do grupo baiano, Correa (2003) argumentou que uma das consequências do II Congresso foi a criação no mesmo ano da União das Seitas Afro-Brasileiras, que tinha como objetivo a defesa da liberdade de culto. Não sei até onde esta atuação política poderia ser apontada como uma singularidade da "Escola Baiana", pois como bem observamos através das pesquisas de Beatriz Gois Dantas (1982) e de Moema D'Andrea (2010) por trás valorização da tradição, Gilberto Freyre tinha propósitos políticos ligados a velha ordem oligárquica e que a ideia de 'democracia racial' legitima ações políticas notadamente durante o governo Vargas como já apontado por Lilia Schwarcz (2001) e Antonio Sergio Guimarães (2002). O que podemos afirmar é que o 'grupo baiano' tinha um maior envolvimento político-partidário. 127 AMADO, Jorge. O país do carnaval. Op. cit., s/p, grifos meus.

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No contexto da luta pela hegemonia no campo das relações raciais, acontecem dois congressos afro-brasileiros, um em Pernambuco e outro na Bahia128, ambos com participação de Jorge Amado. Com algumas divergências129, a "escola baiana" e a "escola pernambucana" tinham em comum o objetivo de pensar o negro como fundamental na cultura brasileira. O I Congresso Afro-Brasileiro (1934), organizado por Gilberto Freyre, teve como presidente de honra o médico Ulisses Pernambucano, que trabalhava no Serviço de Higiene Mental, líder de um grupo do xangô no Recife e que se dedicou ao estudo científico dos cultos afro-brasileiros. Três anos mais tarde aconteceu o II Congresso Afro-Brasileiro (1937) em Salvador, organizado pelo etnólogo Édison Carneiro, com auxílio de Aydano Couto de Ferraz e Reginaldo Guimarães. Estes se empenharam em valorizar os estudos baianos e enfatizar o pioneirismo de Nina Rodrigues nos estudos afro-brasileiros. Os dois eventos tiveram em comum a presença majoritária de trabalhos que buscavam elementos da África no Brasil e a valorização da presença de populares, que, segundo relatos, foi maciça130. Do primeiro congresso resultaram duas publicações: Estudos afro-brasileiros, de 1935, e Novos estudos afro-brasileiros, de 1937, composto pelas atas do Congresso organizadas por Gilberto Freyre. Já os trabalhos do segundo congresso foram publicados na obra O negro no Brasil (1940), organizada por Édison Carneiro. Chama atenção nas duas primeiras publicações a boa quantidade de textos sobre pesquisas antropométricas, que indica a

128 Através das correspondências entre Edison Carneiro e Arthur Ramos de 10/01/1937, este fala sobre um terceiro congresso que aconteceria em São Paulo em 1939, sob organização de Mario de Andrade e Mario Pedrosa. Comenta ainda, sobre uma comissão formada pelo próprio Arthur Ramos, Jorge Amado, Roquette Pinto, Anibal Machado, Jacques Raimundo, Theodoro Sampaio e Renato Mendonça para organizar os próximos congressos. Esse terceiro congresso planejado não aconteceu, mas em 1950 houve o I Congresso do Negro Brasileiro, desta vez realizado pela militância do movimento negro, que pretendia ser um evento menos acadêmico e ter um caráter mais propositivo no sentido apresentar medidas práticas sobre a situação do negro. 129 Certa rivalidade pode ser observada entre os organizadores dos dois congressos nas correspondências trocadas por Édison Carneiro e Arthur Ramos antes da realização do II Congresso. Carneiro comenta: "O Congresso vai bem. O Mario de Andrade estará aqui desde o dia 6 estudando a música dos candomblés. Gilberto Freyre deu uma entrevista escangalhando o Congresso, falando em coisa improvisada, não sei o que mais". No mesmo mês, no periódico Boletim de Ariel, Freyre faz uma aparente crítica aos organizadores do próximo congresso: "O Congresso do Recife foi ainda, o mais independente dos congressos. Não recebeu nenhum favor de governo, não se associou a nenhum movimento político, a nenhuma doutrina religiosa, a nenhum partido [...] Deu novo feitio e novo sabor aos estudos afro-brasileiros, libertando-os do exclusivismo acadêmico ou cientificista das 'escolas' (jan/1936, p. 88-89). Waldir Freitas Oliveira (2004) estudioso das correspondências entre esses intelectuais fala sobre o II Congresso do ponto de vista dos baianos: "Naquela reunião pretenderam, de uma certa forma, mostrar aos pernambucanos que haviam realizado em Recife, em 1934, liderados por Gilberto Freyre, o I Congresso Afro- Brasileiro. Nós, em Salvador, tínhamos ideias próprias sobre o problema do negro. Isso porque não concordávamos, integralmente, com a concepção de Gilberto Freyre sobre a formação social do Brasil e com a sua teoria sobre relações raciais" (p. 127). 130 José Jorge Siqueira (2005) ao fazer análise dos trabalhos apresentados e das participações nesses congressos destaca a grande presença de populares, o apoio de grandes intelectuais nacionais e estrangeiros e a predominância de trabalhos com que abordam a questão da perspectiva culturalista (religião, culinária, música, etc.) muitas vezes com tom etnocêntrico, deixando de lado temas importantes como as relações e os dilemas étnico-sociais vividos naquele momento.

| 54 dificuldade de desvincular da concepção biologizante da noção de raça. Sobre essas publicações, Amado sai em defesa dos baianos: Os anais refletem e expõe as diferenças a marcarem os dois Congressos Afro- brasileiros [...] O primeiro Congresso foi esforço e compromisso dos intelectuais, a participação direta do povo negro quase não existiu, ficou reduzida à festa [...]. O Congresso da Bahia significou um passo adiante nos estudos sobre o negro brasileiro, foi tarefa dos intelectuais e do povo. A presença da África não se reduziu a tema para o estudo de eruditos, foi passo de dança, cantiga ritual, depoimento vivo131.

Os textos apresentados por Amado nesses congressos nos auxiliam a compreender como ele se insere no âmbito dos debates. No primeiro congresso, apresentou um simples texto, 'Biblioteca do povo' e 'coleção moderna', resultado de uma pesquisa em livros populares, nos quais se observa a influência do negro e mestiço na cultura popular:

Na Bahia o elemento popular é o negro e o mulato, as religiões africanas continuam a ter uma decisiva influência na massa, e assim sua literatura popular não pode deixar de ser diretamente influenciada pelo negro [...] Mesmo aquilo que não é negro nestas coleções, é escolhido pelo gosto negro do público que compra e lê esses folhetos132.

Em Salvador, homenageou figuras importantes dos candomblés baianos, mãe Aninha e Martiniano Eliseu Bonfim133, que, como já citado, foi um dos principais informantes de Nina Rodrigues. O texto é revelador e cita nomes que considera importantes no sentido de reconhecer, estudar e classificar a contribuição do negro à nacionalidade brasileira, como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Édison Carneiro, Manuel Querino e Gilberto Freyre. Reconhece o pioneirismo de Rodrigues, talvez por isso não são encontrados registros do escritor criticando diretamente o médico alagoano, e demonstra que lia intelectuais que positivavam a mestiçagem. Também expressa sua compreensão do problema racial brasileiro, a correspondência entre raça e classe, ou seja, a escravização do negro enquanto proletário, e também seu método e fonte de pesquisa: Há, porém, sobre todos esses nomes um nome a lembrar, a estudar, a louvar: o do Prof. Martiniano Eliseu do Bonfim, chefe de seita, a mais nobre e impressionante figura da raça negra no Brasil de hoje. Sua sinceridade, seu

131 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. Op. cit. p. 185-186. 132 AMADO, Jorge. 'Biblioteca do povo' e 'coleção moderna’. FREYRE, Gilberto (org.). Novos estudos afro- brasileiros. Trabalhos apresentados ao 1o Congresso Afro Brasileiro do Recife. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937, p. 262-263, grifos do autor. 133 Apesar não ter tido uma educação formal, Martiniano Eliseu Bonfim é tratado como professor por Edison Carneiro e segundo Jorge Amado foi "uma espécie de papa das religiões de origem africana" (2012, p. 186). Pelo seu notório saber foi informante fundamental nas pesquisas dos africanistas. Bonfim não era pai de santo, mas babalaô, um sacerdote com notável conhecimento da religião e poderes adivinhatórios.

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amor à sua raça, a sua dedicação, a sua inteligência, a sua cultura fazem deste chefe de seita um dos tipos representativos das melhores qualidades dos brasileiros [...] Há quase quatro anos um romancista que queria escrever um romance honesto sobre a raça negra no Brasil, subiu as escadas pobres que conduzia à escada pobre, morada do maior e mais respeitado nome das seitas africanas no Brasil e desde então a posição daquele romancista diante deste chefe de seita tem sido a da mais absoluta e comovida admiração [...] Sua figura se projeta sobre as figuras e os poetas negros no Brasil pela compreensão que dedicou a estas manifestações artísticas sobre a raça que já foi unanimemente escravizada como raça e hoje é quase exclusivamente totalmente escravizada como classe134.

A partir desse pequeno excerto, podemos ver que Amado falava de seu romance Jubiabá135. A polêmica no qual esteve envolvido devido ao título do romance elucida importantes aspectos da discussão racial no momento. O pai de santo baiano Severiano José de Abreu, conhecido como Jubiabá, acusou Amado de ter se aproveitado de sua história para escrever o romance. Em entrevista ao Diário da Noite afirma que "não praticava macumba, mas sim espiritismo" e caso encontrasse o romancista "o faria engolir o livro sem auxílio do clássico copo de água"136. Colocando sua fala no contexto, a declaração do pai de santo nos remonta ao preconceito e à perseguição às religiões afro-brasileiras naquele momento. Severiano recusa o título de feiticeiro, até porque feitiçaria era crime previsto na Constituição, afirmando que era espírita, algo menos malvisto. O jornal que documentou a polêmica recorreu a real fonte de pesquisa de Jorge Amado, o babalaô Martiniano Eliseu Bonfim. Interessante observar o comedimento das declarações de Bonfim, reforçando o momento de insegurança que os representantes das religiões afro- brasileiras viviam. Primeiro, o babalaô recusa conceder entrevista; logo em seguida, acusa Édison Carneiro, que atuou como intermediário para que a reportagem se realizasse, de traição e quando finalmente resolve falar é notável em suas declarações a tentativa de aproximação

134 AMADO, Jorge. Elogio a um chefe de seita. In: CARNEIRO, Edison. O negro no Brasil: trabalhos apresentados ao 2o Congresso Afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, p. 326. 135 Este texto teria sido escrito em fevereiro de 1935, porém, antes da publicação do romance. Segundo Vivaldo da Costa Lima (2004), Jorge Amado, em conversa pessoal, afirmou que ele se referia ao romance Jubiabá e afirma que o antropólogo baiano e o romancista comungaram da mesma fonte: "Nina Rodrigues e Jorge Amado tiveram, assim, com o intervalo de mais de quarenta anos, um, no 'moço de Lagos' que falava iorubá, o outro, no velho babalaô cheio de sabedoria e de compreensão humana, a palavra de segura informação, de ajuda confiável. E o pioneiro dos estudos antropológicos do negro no Brasil e o grande romancista brasileiro refletiram, dessa maneira, nas suas obras já clássicas, a cultura e o saber de um negro na Bahia" (p. 204). 136 Jubiabá, o famoso feiticeiro que Jorge Amado centralizou no seu livro, fala ao "Diário da noite" na Bahia. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 12/05/1936.

| 56 com os brancos (apesar de conhecido como "radical" por ser contra a presença brancos nos candomblés e por esse motivo ter parado de frequentar terreiros) 137:

Religião de pretos é igual a de branco [...] Branco não faz santo, não pinta, não faz promessa para ser feliz e também para fazer mal para os outros [...] Negro, tem também, seus dias: São Cosme e São Damião [...] Eu, porém, respeito as 'constituições' e sendo proibido pelas autoridades não faço. Mesmo agora, não há 'terreiro'138.

Jorge Amado, por sua vez, se mostra indignado frente a reivindicação de Severiano. Em uma declaração com superlativos, afirma: Meu personagem está humilhadíssimo [...] pretendi criar um tipo de macumbeiro que fosse um verdadeiro sacerdote da sua religião [...] A crítica, em mais de 70 artigos saídos até agora sobre meu livro, esteve unanime em afirmar que meu Jubiabá era um homem bom, honesto, decente [...] Pois, de repente, me aparece a história do mulato Severiano [...] durante dois meses que levei escrevendo o Jubiabá, não me recordei nenhuma vez do mulato Severiano Manuel de Abreu [...] no meu Jubiabá vários pais de santo deram tipo aquele tipo [...] Édison Carneiro, o grande estudioso das questões do negro brasileiro [...] também faz notar que muito diferem os dois sujeitos do mesmo nome. Severiano não é pai de santo se tomarmos essa palavra no sentido de um sacerdote das religiões negras. Ele é um cultor do baixo espiritismo. Os pais de santo são, geralmente, sujeitos sérios, honestíssimos, acreditando na sua religião. Severiano é um explorador da credulidade dos pobres e dos ricos da Bahia139.

Por meio da citação acima, também observamos Jorge Amado atento e preocupado com a repercussão e alcance de seu novo romance. E, embora grandemente pautada na observação do real, afirma que sua criação literária não correspondia necessariamente a realidade, como comumente é interpretada. Observando a declaração do escritor, notamos seu engajamento na causa de conferir status legal de religião ao candomblé, citando, inclusive, um respeitado estudioso da religião como foi Carneiro. Mas chama atenção, principalmente, como se refere a Jubiabá, o chamando de mulato de forma pejorativa e de devoto de um "baixo espiritismo140", se valendo da ideologia

137 Interessante que mesmo sendo contra a presença de brancos nos rituais, Bonfim foi um exímio colaborador dos estudiosos africanistas, além de presidente de honra do Congresso Afro-brasileiro de Salvador e colaborador na organização da União das Seitas Afro-brasileiras. 138 A liberdade de religião será agitada no próximo congresso negro na Bahia. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 29/05/1936, p. 3. 139 AMADO apud TATI, Miécio. Jorge Amado vida e obra. Op. cit., p. 80-81. 140 A expressão "baixo espiritismo" foi um recurso de hierarquização, que definiria os "maus" em oposição aos "bons" espíritas em discursos jurídicos e sociais. Arthur Ramos aponta continuidade entre rituais de procedência banto e as mesas de baixo espiritismo das camadas “atrasadas” da população carioca. Édison Carneiro trata do que chama de "candomblés de caboclo", forma sincrética, derivada da tradição banto, que, a partir do contato com o "baixo espiritismo", estaria se degenerando em charlatanismo. De um modo geral, os grupos associados a nações ioruba ou nagô foram tidos, em relação aos banto, como mais evoluídos e mais próximos das africanas. Na utilização da expressão "baixo espiritismo", que aparece sempre associada a análises sobre os destinos da tradição

| 57 que considera o mestiço como degenerado e dos princípios evolucionistas que aplicam a noção de superioridade ou de inferioridade biológica e cultural com base nos cultos dos povos de origem africana. O que observamos é Jorge Amado reivindicando um ideal de pureza141, ideias presentes nas pesquisas de Nina Rodrigues e em maior ou menor grau nas pesquisas dos estudiosos da "escola baiana", com quem mantém um fraternal contato. A declaração de Amado se torna ambígua quando a comparamos com um elogioso texto a Edgar Roquette Pinto142, seu vizinho na capital fluminense em meados de 1934. Na publicação no Boletim de Ariel, destaca sua admiração: "Nossa maior ambição era penetrar na casa de Roquette Pinto e conversar com o sábio [...] Me deu uma entrevista magnífica. Desde então tem sido meu mestre". Dá também pistas de seu conhecimento sobre as pesquisas que o antropólogo realizava no Museu Nacional ao apoiar a valorização do mulato que outrora era tratado como sinônimo de degenerescência: "Acreditando na nossa humanidade e acreditando em nosso mulato. Dizendo coisas acertadíssimas na maior simplicidade"143. Dessa ambiguidade, podemos concluir que a questão do negro estava bem assentada com base nas referências que tinha – o debate pcbista/aliancista e o contato com os estudiosos africanistas –; já o pensamento sobre o mestiço ainda não encontra fundamentação tão sólido. Retomando o jornal aliancista, Amado escreve alguns artigos que nos indica sobre sua inserção no debate racial e como relacionava essa questão com a militância comunista. Chama atenção que a primeira citação do seu nome no periódico144 trata de sua participação e de outros intelectuais no comício em lembrança ao dia 13 de maio (data da Abolição da escravidão): seu discurso versava sobre a importância de Zumbi dos Palmares como herói popular e clamava por liberdade religiosa para os negros, dois temas que aparecerão em seu

banto, se cruzam, portanto, dois temas: a degeneração da herança africana e o charlatanismo/curandeirismo. Giumbelli (2003) aponta ao analisar textos médicos da década de 1930, que estes procuravam patologizar o espiritismo o associando a doenças mentais. 141 Beatriz Gois Dantas em sua dissertação de mestrado, Vovô nagô e Papai branco: usos e abusos da África no Brasil, discutiu amplamente a noção de pureza nagô e a sua defesa pela escola Nina Rodrigues. 142 Tendo inicialmente realizado investigações sobre a temática indígena, Roquette Pinto nas décadas de 1920/1930 voltou-se para o estudo antropológico do mestiço. Como aponta Ventura (1996), ele foi um dos mais reconhecidos especialistas em questões raciais de sua época, indo contra o pessimismo ao acreditar no mestiço e apontar que a solução para os problemas do Brasil residia em criar condições de educação e saúde para essa parcela da população. 143 AMADO, Jorge. Vizinhança. Boletim de Ariel, n.1, outubro de 1934, p. 3, grifos meus. Sobre a questão do negro, Almeida (1979) aponta exclusivamente a influência de Roquette Pinto e Gilberto Freyre no que diz respeito a sua mudança de concepção sobre o assunto: "Em 1935, quando Jubiabá é publicado, Amado opunha-se às teorias que endossara em 1931, na oportunidade do livro de estreia. Encontrava-se bastante distanciado daquelas concepções que consideravam a miscigenação como uma degenerescência. No intervalo de quatro anos que separa o endosso da negação, Amado se aproximara de Roquette Pinto, o ‘vizinho’ dos textos biográficos, e de Gilberto Freire. Ambos empenhados em recolocar o tema da formação étnica do país em outros termos"(p. 121, grifos do autor). Mas como observamos, suas relações e influencias foram mais amplas e não existem maiores indícios de proximidade entre Freyre e Amado nesse momento. 144 A Aliança Nacional Libertadora realizou o maior comício popular. A manhã, Rio de Janeiro, 14/05/1935.

| 58 próximo romance. Dentre os textos de sua autoria, escreve sobre Lima Barreto145, escritor negro, o qual considerava legítimo escritor do povo que conservou a "consciência de classe", mas pouco reconhecido no meio intelectual. Também consta uma elogiosa crítica ao romance O moleque Ricardo, o qual Amado insere na lista de romance proletário. Na sua opinião, esse texto marcaria uma "conversão" de José Lins do Rego, que demonstrara maior afinidade com os conservadores integralistas: [...] a importância deste último romance de José Lins do Rego, é que marca um momento decisivo numa transformação 'política' do escritor. O seu novo romance serve a uma causa e é preciso notar que com isso o próprio romancista ganhou [...] Neste último livro ele conta a história do primeiro herói dos escravos dos outros, narra o começo da vitória de uma classe146.

Assim, os caminhos de Jorge Amado e José Lins do Rego parecem se reaproximar, pelo menos literariamente, pois dentro de suas peculiaridades os dois, no mesmo ano, publicam histórias que têm jovens negros como protagonistas, que vivem as agruras de uma sociedade que se industrializa. Lembrando que Jubiabá foi publicado meses depois de O moleque Ricardo e que trechos do primeiro foram publicados antecipadamente no periódico aliancista. O último artigo de sua autoria trata sobre o livro do cônsul Renato Mendonça, Influência africana no português do Brasil, e demonstra novamente proximidade com Arthur Ramos e Édison Carneiro, pois afirma no artigo que o livro é um estudo incompleto, apontando que, além de Mendonça, dois conterrâneos "têm a obrigação de fazer" um estudo mais completo sobre o assunto e adianta a intenção de Carneiro em elaborar um vocabulário nagô-português. Essa publicação nunca aconteceu, mas de fato foi uma intenção de Carneiro, pois, além do registro de Amado, o próprio comunica sua vontade em carta enviada a Arthur Ramos, na qual, inclusive, comenta a insistência de Amado para que tal livro fosse publicado: O meu amigo Jorge Amado ganhou. Afinal, sempre me decidi a escrever livro sobre negros que ele reclama insistentemente há coisa de três anos [...] Mandei ao Jorge Amado um projeto de esquema já agora modificado [...] Vou fazer o possível para não citar Marx. Si lhe dou todos esses pormenores sobre o monstrengo foi porque o Jorge Amado me falou no seu provável interesse por

145 AMADO, Jorge. Lima Barreto, escritor popular. A manhã, Rio de Janeiro, 02/07/1935. 146AMADO, Jorge. Cidades do Brasil. A manhã, Rio de Janeiro, 17/07/1935, grifos meus. O entusiasmo de Jorge Amado com José Lins do Rego e seu novo livro parece não ser recíproco, meses depois da crítica de Amado, Rego escreve no periódico Boletim de Ariel sobre Jubiabá acusando-o de exagerar a realidade, na contramão da ideia Amado sobre romance que "serve a uma causa". Nas palavras de José Lins do Rego: "Que ele faz, por exemplo, o molequinho Baldo entender de luta de classes, à página 39, ou quando uma menina tem fome de terra porque em casa não havia o que comer, o Jorge Amado interessado, mas interessado demais, quer torcer o caminho do outro, do que sabe ir às fontes da vida ao âmago das coisas. Para falar em miséria do povo brasileiro o romancista não precisa exagerar uma linha, nem puxar a melodrama. Basta exprimir a realidade” (nov/1935).

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esse livro, para a Biblioteca de Divulgação Cientifica. Será que esse interesse existe no mesmo?147.

Essa correspondência revela Amado na função de incentivador de Edison Carneiro148 como estudioso da questão do negro e articulador na relação entre Carneiro, que ainda residia em Salvador, e Arthur Ramos, que morava no Rio de Janeiro. É notória a aproximação do A manhã, que Jorge Amado era redator, com os dois intelectuais citados acima. Há textos com divulgação de palestras, referências e textos de Ramos, como também textos e referências a Carneiro, especialmente um artigo que chama atenção, por se inserir no já citado embate do campo das relações raciais e abordar uma visão materialista da questão racial. Chamado Explo ação do negro149, Carneiro faz a pergunta "[...] quais homens levaram 'a sério' a questão do negro no Brasil?" e responde "Nina Rodrigues, Arthur Ramos... E só.". Na sua percepção, só os dois fizeram do tema o principal objetivo de vida, procurando compreender e resolver os problemas da raça negra, diferente da "nova geração" composta por nomes como Manoel Querino, Gilberto Freyre e Roquette Pinto. O que diferenciava a geração antiga, na sua visão, era a "simpatia fraternal" com o oprimido indo além de uma compreensão cientifica. Na ânsia de defender seus pares, o etnólogo relega a um problema menor a influência da escola italiana de criminologia (Lombroso e Ferri) na obra de Nina Rodrigues e a influência de Freud em Ramos150. Afirma ainda que a geração de Freyre prioriza a exploração do negro, sendo Casa-Grande & Senzala uma "nostalgia mal disfarçada pela escravidão"151. Concluindo que o que faltava aos novos pesquisadores era se colocar no lugar, ou melhor, "sentir como um

147 CARNEIRO, Édison [Carta] 04.jan.936, Bahia [para]RAMOS, Arthur, Rio de Janeiro. 3 f. Carta a Arthur Ramos informando sobre o anda mento das pesquisas para o livro O fetichismo negro da Bahia e comunicando a descoberta de um caderno em escrita mussulmi e a tentativa de elaborar um vocabulário nagô- português. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299532.pdf 148 Édison Carneiro se dedicou a estudar os cultos de origem africana. Em 1936, publica o livro Religiões Negras e no ano seguinte Negros Bantus. Influenciado por Nina Rodrigues e Arthur Ramos, suas pesquisas buscavam aproximar elementos da África no Brasil, algo que encontrou nos terreiros de Angola contrariando Nina Rodrigues no que se refere a exclusividade sudanesa nos terreiros da Bahia. Carneiro através de seus estudos tenta conseguir legitimidade e trabalha na legalização dos cultos afro-brasileiros. Mas, como bem observa Beatriz Dantas (1982), este acaba se rendendo ao modelo interpretativo da superioridade cultural, pois tanto em sua pesquisa como nas de Rodrigues os nagôs servem de modelo de superioridade. 149 Reprodução do título em sua grafia original. 150 Mesmo relegando neste texto a um elemento secundário, Edison Carneiro faz crítica aos fundamentos teóricos dos colegas, isso se deve a concepção materialista que lhe orientava naquele momento. Meses antes em texto a publicação Boletim de Ariel afirma: "Não servia, para o caso do negro brasileiro, a escola antropológica de Nina Rodrigues, como também não serve a psicanálise do mestre Freud, mesmo através de um discípulo como o sr. Arthur Ramos. Somente a concepção materialista da história pode resolver de uma vez por todas, a questão [...] Somente o estudo das transformações econômicas a que a raça negra se submeteu e se submete ainda [...] pode levar a interpretação exata das concepções religiosas dos negros [...] [No entanto] me parece dos mais sérios e dos mais honestos". Em: Notas sobre O negro brasileiro, p. 185, 07/04/1935. 151 CARNEIRO, Édison. Explo ação do negro. A manhã, Rio de Janeiro, 14/11/1935.

| 60 negro" e que sua esperança era surgir algum intelectual negro152 que "interprete as aspirações a autodeterminação à liberdade". Além da defesa da "escola baiana", chama atenção no artigo de Carneiro a presença de discurso mais radical que o então presente naquele momento no PCB, pois cita a autodeterminação da população negra como forma para conquistar a liberdade, que de fato foi uma das diretrizes que o PC tomou em relação à questão das minorias. Mas, como aponta Chadarevian153, esse discurso se abranda na ANL e a menção ao direito de autodeterminação desaparece, como é observado no discurso do jornal aliancista ao valorizar a mestiçagem e ao apoiar a inserção do negro na sociedade. A Édison Carneiro é atribuída, quando não a primeira, uma das primeiras análises marxistas da questão negra brasileira, apresentada no I Congresso Afro-Brasileiro, em 1934. O texto é próximo do artigo publicado um ano depois no jornal da ANL e sua intervenção no Congresso começa com uma crítica ao processo de abolição da escravatura, relacionada, segundo ele, à “[...] necessidade do trabalho assalariado, que produz mais-valia absoluta, e onde a exploração do trabalhador pode ser levada ao extremo – veio mudar somente a forma de exploração e de domínio”. No novo regime, os negros continuam sendo escravos e sofrem a “opressão racial dos homens brancos (dos senhores do capital) e o desprezo dos próprios proletários brancos”154. Esse raciocínio demonstra que o etnólogo estava bem-informado sobre a política comunista para a questão negra, reconhecendo a questão racial como algo além da opressão de classe. No final da intervenção, aponta o papel progressista dos comunistas para a questão negra, mencionando o direito de autodeterminação, e afirma que o socialismo é a melhor solução para superar o racismo: Os negros conscientes, que adaptaram, bem ou mal, à super-estrutura política da sociedade brasileira, sabem perfeitamente que os seus interesses imediatos e futuros não são em nada diversos dos do proletariado em geral [...] Somente a sociedade comunista, que reconhece as raças oprimidas até mesmo o direito de se organizar em Estado independente, conseguira realiza-la [...] acabando, de uma vez por todas, com a exploração do homem pelo homem155.

Chama atenção que, mesmo pretendendo um discurso progressista, Carneiro acaba caindo em um discurso que ele mesmo crítica, presente na obra de Freyre, ao apontar uma

152 Em sua tese de doutorado, Rossi (2011) levanta hipótese que ao citar "grande intelectual negro" Edison Carneiro poderia estar referindo a si mesmo, pois "Édison parece não ter desprezado a possibilidade de se projetar como um tipo de liderança dos direitos e da liberdade dos 'irmãos de cor' [...] (p. 185, grifo do autor). 153 CHADAREVIAN, Pedro Caldas. Raça, classe e revolução no Partido Comunista Brasileiro. Op. cit. 154 CARNEIRO, Édison. Situação do negro no Brasil. In: FREYRE, Gilberto [org.] Estudos Afro-Brasileiro: trabalhos apresentados ao 1° Congresso Afro-Brasileiro do Recife. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1935, p. 237. 155 CARNEIRO, Édison. Situação do negro no Brasil. Op. cit., p. 238.

| 61 melhor situação do negro no sistema econômico anterior, insinuando que este foi lançado forçosamente a uma incômoda liberdade: "Desligado da fazenda de café ou do engenho de açúcar, onde, apesar dos pesares, sempre achava uma lasca de jabá com farinha e cama com varas pra dormir, o negro se viu forçado a sofrer as flutuações do mercado"156. Esse trecho demonstra mais uma vez que mesmo na tentativa de avançar e se desvincular de um certo discurso tido como conservador não era uma tarefa fácil. Carneiro ainda afirma: "Sabe-se que o negro tem fornecido um grande contingente para as fileiras do Partido Comunista do Brasil"157. Mesmo não havendo maiores evidências e dados sobre uma possível atuação do PCB junto a organizações negras, como terreiros de candomblés158, o que se pode deduzir dessa afirmação, relacionando-a ao texto, é um esforço de aproximação das pautas dos movimentos. É observável nesse momento em que o povo é chamado à militância por intermédio das frentes populares a tentativa de aliança entre a militância comunista e a luta contra a opressão racial. Na Bahia, esse esforço ganha contornos singulares, provavelmente por terem em comum, tanto o PCB como as religiões de matriz afro-brasileira, a constante repressão do poder instituído. Membros da ANL, Jorge Amado e Edison Carneiro atuaram como intelectuais "quase orgânicos"159 das religiões afro-brasileiras no sentido de dar visibilidade e lutar pela legalização desses cultos. Outro fato que aponta uma estreita relação entre a "escola baiana" e o PCB é o II Congresso Afro-Brasileiro ter sido organizado pelos pcbistas Édison Carneiro e Aydano do Couto160. Os textos de Jorge Amado, observados junto aos de Édison Carneiro, nos dão uma noção do alinhamento da militância comunista com a questão racial. Ambos citam em seus

156 CARNEIRO, Édison. Situação do negro no Brasil. Op. cit., p. 237. 157 Idem, Ibidem, p. 238. 158 Ruth Landes (apud DANTAS, 1982) fez importantes considerações sobre a relação candomblés e comunistas, afirmando que os negros eram considerados comunistas simplesmente porque estavam ligados a intelectuais comunistas: "Os negros no Rio não eram conhecidos como comunistas; eram mais temidos como feiticeiros e glorificados como malandros, pois eram muito pobres. Mas na Bahia eram levados a sério de todas as maneiras - e, se os intelectuais eram comunistas, por que não o seriam os negros com quem se ligavam? [...] negros e os intelectuais estavam sendo os bodes expiatórios das dificuldades do governo” (Landes, 1967, p. 70-71). Dantas (s/d) complementa essa ideia ao observar nessa acusação uma nova tentativa de repressão dos cultos afro- brasileiros, dado que as celebrações "mais africanizadas" se encontravam foram do alcance da polícia devido a legitimidade cientifica que haviam ganhado, já consideradas religião, não constituíam infrações às leis. Sendo assim, se a repressão e o controle antes se dava exclusivamente baseada em argumentos científicos este discurso é reelaborado numa linguagem política que permitia o Estado atuar de forma arbitraria sem tirar a legitimidade conseguida através dos intelectuais. Essa reconfiguração do discurso "autorizou" a utilização da repressão policial não só contra os terreiros, mas também, contra os intelectuais que os estudava. 159 Jefferson Bacelar (2008) trabalha com esta formulação ao discutir a influência dos intelectuais baianos na revalorização dos cultos de matriz afro. 160Lembrando que o jornalista Aydano do Couto Ferraz (1914-1985) foi membro da Academia dos Rebeldes e dedicado militante do PCB, trabalhando em várias publicações do partido nas décadas de 1940 e 1950.

| 62 textos uma preocupação com o sentir ou sentimento do negro e indicam que se os intelectuais querem trabalhar a questão do negro têm que dar conta disso. Também há a ideia de segunda escravidão, ou seja, a situação do negro não mudou muito no pós- escravidão, pois este saiu de uma servidão para cair em outra, a escravidão do capital. Assim, é observado Jorge Amado muito ativo na cena intelectual no que se refere à questão racial, tema pouco observado na sua trajetória na década de 1930, dando a aparência que somente a militância político-partidária foi o centro de sua atuação naquele momento. Mas se percebe um intelectual influente nos bastidores desse campo, seja dialogando, participando de congressos, mediando contatos e incentivando novas publicações dos integrantes da escola baiana161, seja falando em nome destes e endossando suas ideias sobre a questão negra brasileira, acompanhado de um olhar marxista sobre o tema que é melhor observado na sua produção artística. Um contato e influência que, como veremos, estará presente ao longo da carreira do autor, especialmente a de Arthur Ramos, mas que será suprimido, fato que atribuo à sua adesão a intepretação freyreana da formação brasileira acompanhada de severas críticas a estudiosos que inspiraram Nina Rodrigues.

161 Também é possível observar além das várias referências a estes estudiosos em diversos textos, Amado resenhando trabalhos de Ramos e Carneiro. Cf. Amado, J. Dois Ensaístas. Boletim de Ariel, nº 9, janeiro de 1933 e O jovem Feiticeiro. Boletim de Ariel, nº 3, dezembro de 1936.

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CAPITULO II – Antifascismo e olhar para o patriarcado

Desde o final da década de 1930 até 1941, Amado trabalhou em dois periódicos, Dom Casmurro e Diretrizes, no primeiro como redator-chefe. Observando essas duas publicações, dá para se ter uma noção das restrições políticas que o escritor sofria: a interrupção da publicação de trechos de ABC de Castro Alves foram justificadas pelo motivo que estaria viajando para acompanhar a produção do filme Mar Morto; a série de viagens pelo continente americano é noticiada como forma de justificar algumas ausências. Obviamente, sua condição de perseguido político não é citada. Também é possível notar as mudanças nos planos de lançamento de livros: Dom Casmurro propagandeia a breve publicação de Agonia da noite, que acontece somente em 1953, como segundo volume da trilogia Subterrâneos da liberdade, e publica trechos de Sinhô Badaró, que virá a público em 1943 e 1944 como Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus.

Prestes e Castro Alves: biografar para não esquecer

O início dos anos 1940 na biografia de Jorge Amado é marcado por um maior empenho na militância antifascista1, exílio na Argentina e no Uruguai e duas publicações de aspectos biográficos: ABC de Castro Alves (1941) e O cavaleiro da esperança: vida de Luís Carlos Prestes (1942). Utilizando a forma popular da literatura de cordel, Amado publica uma biografia sobre o poeta Castro Alves em 1941, figura com quem tinha grande identificação. Foi publicada incialmente por partes na revista Diretrizes até o momento que a publicação foi censurada. Quando posto em circulação, o livro foi censurado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), restando apenas versões clandestinas. Castro Alves é o autor de “Navio negreiro”, poema abolicionista, e ficou conhecido também por suas posições republicanas. ABC de Castro Alves é uma espécie de tributo ao “poeta dos escravos”, considerado por Amado aquele que deu voz aos negros quando não

1 Não deixa de ser interessante notar que nesse momento o escritor e Gilberto Freyre estão do mesmo lado, ambos sofriam sanções do Estado Novo. Segundo noticiado pelo Diretrizes: “[...] os dois estão unidos num mesmo objetivo: combater o fascismo com a inteligência com a palavra, com o exemplo de bravura” (p.17). A convite da União de Escritores Baianos, Freyre visitou Salvador onde recebeu um prêmio, realizou um discurso e duas conferências. Na ocasião, Jorge Amado o teria recebido com um elogioso artigo e um almoço em sua casa.

| 64 podiam se manifestar. Essa obra vem na esteira da ideia que a arte tem função social. Na nota introdutória da produção seguinte, escreve: Falei primeiro do Poeta, aquele que fez a Abolição e a República. Queria apresentar ao povo o seu Poeta na sua inteireza. E ao mesmo tempo queria ver se, com o exemplo de Castro Alves, era possível salvar uns restos de dignidade e de honra na degradação por que está passando parte da literatura brasileira, dia a dia se entregando às forças da reação. E quis que o povo soubesse que existem artistas que nunca se entregaram, nunca se venderam, que lutaram sempre, longe deles os mesquinhos interesses. Por isso falei de Castro Alves, artista do povo, social, político interessado, revolucionário. E, por isso mesmo, genial. Ao entregá-lo ao carinho do povo, quis também deixar marcada a sua tradição literária para os escritores novos que surgem no Brasil e que se encontram, nesse triste momento, diante de forças intelectuais em decomposição, vencidas ou pelo medo ou pelo suborno, pregando a volta às formas caducas e reacionárias da ‘arte pela arte’, afastando criminosamente a literatura do povo2.

Na citação acima, é notável a crítica aos intelectuais, que não foram poucos, que trabalhavam para o governo Vargas. O Estado Novo tinha como uma de suas estratégias de legitimação a cooptação de intelectuais. Algo que o escritor não tolerava: “A implantação do Estado Novo em 1937 traz o suborno como arma política. A compra de uma literatura. Os escritores mais nobres silenciam, impedidos de falar. Outros se vendem. Outros ainda se limitam, abaixam a voz numa última tentativa de dizer alguma coisa”3. Na mesma linha é publicado O cavaleiro da esperança: vida de Luís Carlos Prestes, tributo ao líder a ANL preso desde 1936, como forma de pressionar sua soltura. Publicado inicialmente na Argentina, onde se exilara, a primeira versão em português é publicada três anos depois, em 1945. No prefácio da edição brasileira se denomina como “[...] o escritor brasileiro que mais restrições sofreu do Estado Novo”4. Com toda liberdade que uma biografia romanceada possibilita, não deixa de ser interessante observar que na introdução de O cavaleiro da esperança Amado coloca Luís Carlos Prestes na mesma linhagem que o personagem folclórico Negrinho do Pastoreio, no que diz respeito à luta pela liberdade na região sul do país: Nasceram mulheres, nasceram homens e esses traziam o sangue do Negrinho do Pastoreio não nas mãos mas no coração, como um desejo de vingança e de justiça. E o desejo de libertar os homens do chicote dos senhores, dos donos da vida e da morte [...] Nessas terras do sul, amiga, nasceu Luiz Carlos Prestes.

2 AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança. Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 11, grifos meus. 3Idem, Ibidem, p. 12. 4AMADO, Amado. O cavaleiro da esperança. São Paulo: Cia das letras. 2011, s/p. No prefácio da primeira edição em português, Amado ainda escreveu que na clandestinidade o livro era tratado pelos mais diversos nomes, Vida de São luís, Vida do Rei Luís, Travessuras de Luisinho, contrabandeadas pela militância, as páginas chegavam aqui vezes datilografadas ou até fotografadas uma a uma, o que valorizou ainda mais os exemplares que circulavam.

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E seu nascimento marca o instante em que começa o fim do tempo dos tiranos. Seu nascimento é a prova de que a raça dos esmagados já tinha adquirido suficiente força para derrubar os tiranos e ganhar a liberdade. Porque essa raça já tinha tanta forca e tamanha necessidade que, por fim, havia produzido o Herói. O Negrinho do Pastoreio, bandeira de escravos, desapareceu nesse dia 3 de janeiro de 1898 da frente dos seus homens. Porque outra bandeira surgira, bandeira dos homens livres. No momento em que ele nasce começa uma nova época para todos os escravos do Brasil. Com ele chega o momento da luta final, o terrível e maravilhoso momento da última batalha5.

Apresentando assim ideias que já estavam presentes em escritos da década anterior, a escravidão havia deixado de ser somente a negra, era de todos político-economicamente oprimidos e caberia a Prestes liderar a segunda abolição. Na mesma produção, Amado mostra seu entusiasmo com outra figura da intelectualidade brasileira marginalizada, Lima Barreto. No texto faz questão de nomeá-lo várias vezes mulato – pelo provável motivo que esse termo relativo à cor de pele ajudaria a elucidar a situação social do escritor, como também lembrar que Barreto seria um legítimo representante do povo brasileiro, diferente da maioria dos intelectuais que insistiam em não sair da “torre de marfim”: O mulato Lima Barreto, o genial e enternecido romancista da cidade do Rio de Janeiro, seus subúrbios, seus mulatos, suas ruas pobres, seus criouléus, o jornalismo e o funcionalismo, esse mulato de gênio, só uma vez transpôs as portas da Academia. Nesse momento podre do Brasil, a voz de Lima Barreto, isolada, sabotada, porém temida e poderosa, é a melhor prova de que o grito que vem do povo começa a ter a força de uma revolução, porque já transformava em arte o seu lamento e, do coração do escritor, esse lamento saía feito revolta. Nenhum vulto da literatura brasileira do passado, além de Castro Alves e Euclides da Cunha, tem a força popular desse mulato carioca [...] Lima Barreto resultava de tudo isso e da miséria em que vivia o povo brasileiro, como Coelho Neto resultava da vida pacata, cômoda, das camadas governantes, dos fazendeiros de café não querendo saber como vivia a gente do país6.

Lembro que elogios nesse mesmo sentido já haviam sido tecidos anteriormente. No jornal A manhã (1935), Amado escreve que havia achado no interior do Rio de Janeiro um time chamado Lima Barreto football club, fato que seria uma das provas do apelo popular do escritor, injustiçado e esquecido pelos meios intelectuais. Os romances Terras do sem fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944) marcam seu retorno a narrativas sobre sua terra natal. O decênio de 1940 ainda registrou o passeio do escritor por outros dois gêneros narrativos: um trabalho de caráter etnográfico, Bahia de Todos os

5AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança. Op. cit., p. 16-17. 6 Idem, Ibidem, p. 81-82.

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Santos (1944)7, e um texto teatral que trazia novamente Castro Alves como personagem central, Amor de soldado (1947). Publicou ainda Seara Vermelha em 1946, dedicado a Prestes, com frases deste, Castro Alves e Engels como epígrafes, considerado um de seus romances mais engajados, traduzidos e editados no exterior. Uma atividade desse decênio que merece destaque foi sua participação, em 1945, como presidente da delegação baiana e vice-presidente do Congresso dos Escritores no Rio de Janeiro, demonstração pública contra o Estado Novo. Durante o encontro, foi redigido um manifesto exigindo o estabelecimento de um regime democrático de governo, com garantia de liberdade de expressão, e a regulamentação dos direitos autorais, que permitiria a profissionalização dos homens e mulheres de letras, tema que se tornou uma das suas pautas enquanto deputado da Constituinte naquele mesmo ano. Ao final desse decênio de intensa atividade produtiva, foi declarada novamente a ilegalidade do PCB pelo governo de Dutra. Em 1948, o mandato de Amado é cassado; com isso, exila-se inicialmente em Paris, viajando por boa parte da Europa comunista, fato que parece ter contribuído substancialmente para divulgação e popularização internacional de suas obras8.

Antifascismo e democracia racial

Eleito deputado pelo PCB por São Paulo em 1945, Jorge Amado foi o terceiro mais votado para a Assembleia Nacional Constituinte, sob a propaganda de “romancista do povo”. Além de apresentar propostas no sentido de fortalecer os direitos autorais, durante o mandato

7 Livro que teve sucessivas atualizações cuja versão definitiva só ficou pronta em 1986. 8 Duarte (2002), Sotana (2011) e Ridenti (2011) buscaram desvendar as relações e os desdobramentos deste último exilio (1948-1952) de Jorge Amado na Europa. Decidido em conjunto com a direção partidária do PCB, o intuito era denunciar no exterior o governo antidemocrático de Dutra, aproveitando a visibilidade internacional do escritor. Em Paris, se tornou um dos principais líderes do movimento mundial pela paz, mas logo é expulso junto com outros artistas latino-americanos indo morar em Praga. Durante o exilio, Amado e Zélia Gattai tiveram contado com artistas renomados e dirigentes do PC internacional, seu prestigio neste círculo era enorme sendo matéria de capa e tendo o romance Seara vermelha publicado na Les lettres francaises (publicação comunista francesa), além de ter editado em francês os livros Mar morto e O cavaleiro da esperança em 1949, São Jorge dos Ilhéus, Capitães de areia e Cacau, nos anos seguintes. Nas células comunistas suas obras integravam as bibliotecas, segundo Ridenti “a experiência no exterior [...] influenciava também a própria obra dos autores, como Jorge Amado de Os subterrâneos da liberdade. Seu exilio teria implicações para introdução no Brasil do realismo socialista nos moldes do que era então compreendido na Europa” (p. 172). Ainda segundo o sociólogo, se durante esse período sua produção literária entrou em ritmo lento, em compensação, sua atuação militante ganhou maior visibilidade que ampliou a difusão de seus livros que foram traduzidos em várias línguas, o que, consequentemente, permitiu que se tornasse o escritor brasileiro mais conhecido de todo mundo. Ideia compartilhada por Duarte (2006), que analisou os dois períodos exilio, esse afirma que em conjunto com uma escrita acessível, a atuação política teve papel amplificador auxiliando suas narrativas ganharem notoriedade em escala internacional.

| 67 reafirmou seu compromisso na defesa das religiões de matriz africana como autor da lei, ainda hoje em vigor, que assegura o direito à liberdade de culto religioso. Não deixa de ser interessante a narrativa do intelectual sobre o empenho para que seu notório projeto de lei fosse aprovado anos depois de seu rompimento com o partido, revelando um olhar mais crítico sobre a instituição. Apadrinhado por Luís Carlos Prestes e com apoio do secretário-geral do partido, o projeto foi levado adiante na surdina, sem a assinatura de deputados ligados ao PCB – segundo consta, grande parte dos membros do Partido não sabia da sua existência: [...] chamando a atenção do secretário-geral do Partido [sobre a popularidade que] poderia obter junto ao povo se tomasse a si a defesa das religiões populares, assim conseguimos o aval do dirigente máximo para a ementa. Se eu houvesse levado à bancada ou ao conjunto da direção, jamais teria obtido autorização para apresentá-la: sendo a religião o ópio do povo, droga ainda maior era o candomblé, barbaria primitiva, incompatível com o socialismo, nossa meta. Quanto a mim, na opinião de vários camaradas, escritor imoral, não passava de um pequeno-burguês portador de sérios desvios ideológicos [...] Fosse da bancada a emenda nasceria morta”9.

Assim, Amado teria recolhido a assinatura de deputados de diversos partidos, incluindo Luís Viana Filho, autor de O negro na Bahia, e Gilberto Freyre, que teria comentado “Por que não pensei nisso? ”10. Chama atenção que nesse decênio começa a haver reflexões sobre o negro na literatura de um ponto de vista mais geral e o reconhecimento de Jorge Amado como aquele que colocou o negro na literatura de forma positiva. Como observado no texto de Humberto Bastos, O negro na literatura brasileira, em que afirma: “Trata-se sem dúvida da melhor contribuição para colocar o negro na verdadeira posição dentro da nossa literatura. Negro com independência, negro com vida própria, com personalidade, o Antonio Balduíno [...] não se pode deixar de reconhecer que o negro do romance do escritor baiano é, realmente, brasileiro11” e no de Abelardo Fernando Montenegro: “José Lins do Rego, Jorge Amado e outros franqueiam a entrada do negro em suas obras, apresentando-nos as condições econômicas e sociais em que ele se encontra. Assim, uma das tendências de nossa literatura é a de não esquecer o negro como componente de nossa sociedade12”. Antonio Candido fez uma importante observação sobre o

9 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que nunca escreverei. Op. cit., p. 67, colchete meus. 10 Apesar de uma atuação considerada exemplar, o escritor descreve esta fase como infeliz na sua vida, pois a intensa atividade política o impedia de fazer o que mais gostava: “Foi um tempo muito pouco alegre de minha vida, porque eu não tenho nenhuma vocação parlamentar, não gostava de ser parlamentar...e não estava escrevendo, que era o que queria fazer” (Amado, 1987, p. 23). 11 O negro na literatura brasileira. Dom Casmurro, 30/12/1939, p. 7. 12 MONTENEGRO, Abelardo Fernando. O negro em face da ciência, da arte e da literatura. Dom Casmurro, 14/12/1940, p. 7.

| 68 olhar narrativo: “Os pretos e os trabalhadores dos seus livros são descritos por um homem de outra cor, de outra classe” e que mesmo com algumas deformações, que considerou necessárias, “O sr. Jorge Amado trouxe os negros da Bahia para a arte e deu existência estética, isto é, permanente à sua humanidade. Arte é estilo, e estilo é convenção13”. Além desses, o editorial da Dom Casmurro o intitula de “poeta do cais e dos negros da Baía14”. Um dos poucos registros que encontramos de Amado sobre questão racial nesse decênio é uma reportagem do antropólogo Roger Bastide que entrevistou o romancista, reforçando ainda mais a ideia do escritor como porta-voz da população de cor. Bastide afirma que Jubiabá trouxe o problema do negro e traçou a evolução da raça para a classe, instigando- o a refletir a relação democracia e estética, e que por meio da conversa com o autor baiano chega à conclusão que a emancipação do povo não pode se realizar em detrimento da cultura nativa, substituindo-a por ideais pequeno-burguês. O povo deve ser integrado, não excluído15. Após o primeiro exílio, Amado retorna ao Brasil em 1942, quando enfrenta sua terceira prisão, desta vez por menagem, com a condição que não saísse de Salvador16. Retoma sua colaboração ao jornal oposicionista O Imparcial, com a coluna “Hora da guerra”, “uma pequena trincheira”, segundo o autor, pois crê “que nenhum escritor possa, no momento presente, manter-se nos limites de sua obra de criação, se o romancista, o poeta, o cientista”17. Dentre os vários textos publicados nessa coluna até 1944, um chama especial atenção. Intitulado “Hitler contra Zumbi dos Palmares”, em que cita pesquisas de Arthur Ramos, pois exporiam a situação do negro e do mulato sobre a ordem nazista, fala do destino que estaria reservado a essa parcela da população caso houvesse uma vitória nazista, pois Hitler “sempre considerou o Brasil um ‘miserável país de mestiços’ que devia ser civilizado pelos ‘cultos arianos nazistas’”18. O interessante é que pela primeira vez nota-se Amado levantando a bandeira da mestiçagem, reconhecendo esta como elemento singular da nacionalidade brasileiro: “Fomos sempre exemplo de democrática isenção de preconceito raça. Foi necessário que medrasse aqui a semente do nazismo no capim verde do integralismo, para que os

13 CANDIDO, Antonio. Poesia, documento e história. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit., p. 174. 14 Jorge Amado poeta dos cais e dos pretos da Baía. Dom Casmurro, 01/06/1940, p. 24. 15 BASTIDE, Roger. Itinerário da democracia – encontro com Jorge Amado. O jornal, 23/04/1944, p. 4. Na série de reportagens que refletiu sobre a democracia brasileira com Freyre e Amado, Bastide pensava que a democracia não poderia ser reduzida a direitos e liberdades civis, deveria também incluir a estética e a cultura miscigenada. 16 Mas como se pode observar, mesmo preso ele se deslocou de Salvador para o Rio de Janeiro em 1945 para participar do Congresso de Escritores. 17 AMADO, Jorge. Hora da guerra: a Segunda Guerra mundial vista da Bahia. São Paulo: Cia. das letras, 2008, p. 27. 18 Idem, ibidem., p. 63.

| 69 preconceitos raciais viessem à tona num país como o nosso de forte miscigenação”19. No mesmo texto nega a existência do racismo no país e o trata como se fosse um fenômeno trazido de fora: “[...] negros e mulatos do Brasil, junto com brasileiros brancos que nunca cultivaram as diferenças e os preconceitos raciais, querem provar ao monstro ariano e nazi que não nasceram para ser escravos”20. Amado demonstra novamente que endossa as ideias de Arthur Ramos: ambos refutavam as teses arianas de superioridade racial. Ramos nesse momento fazia denúncias sobre o uso indevido da antropologia para fundamentar tais teses e apresentava o Brasil como exemplo no mundo no que se refere a questão racial, além de manifestar um certo temor que o racismo chegasse ao Brasil. Entre 1935 e 1943, publicou quatro manifestos e uma série de artigos contra o nazismo, em favor das Forças Aliadas, e ainda divulgou as possíveis contribuições das ciências sociais no pós-guerra em dois livros, Guerra e relações de raça (1943) e As Ciências Sociais e os problemas de após-guerra (1944), nos quais conclama os intelectuais a tomarem posição contra o fascismo:

A nossa guerra é também uma luta ideológica. Já não somos meros expectadores desse choque de ideias do nosso século, que está abalando o mundo nos seus fundamentos. Somos atores conscientes e preparados para o embate. Nenhum sábio, nenhum artista, nenhum intelectual, poderá mais isolar-se no recesso do seu gabinete, ou nos desvãos julgados inatingíveis do seu mundo interior 21.

Ramos, que viria a se tornar idealizador do projeto da Unesco contra o racismo no fim da década de 1940, acreditava que o Brasil fosse um “laboratório de civilização”, uma vez que teria oferecido "a solução mais científica e mais humana para o problema, tão agudo entre outros povos, da mistura de raças e de culturas"22, mesmo reconhecendo as desigualdades sociais entre pretos e brancos e a existência do preconceito de cor. Em 1949, ano de sua morte, escreveu em defesa da mestiçagem: A experiência da ‘mistura de raças’ nos trópicos não revelou qualquer desvantagem quanto ao resultado dessas misturas. Quando o produto mestiço apresenta inferioridades, são elas ligadas não ao fenômeno da mistura, mas a outros fatores deficitários do meio, tais como, entre outros, as diferenças de vida e educação, a miséria econômica, vícios ou lacunas alimentares”23.

19 AMADO, Jorge. Hora da guerra. Op. cit., p. 64, grifos meus. 20 Idem, Ibidem, p. 66. 21 RAMOS, Arthur. Guerra e relações de raça. Rio de Janeiro: Departamento Editorial da União Nacional dos Estudantes, 1943, p. 09. 22 Idem, Ibidem, p. 179. 23 RAMOS, Arthur. A mestiçagem no Brasil. Maceió: EdUFAL, 2004, p. 10.

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Após assumir a direção do Departamento de Ciências Sociais da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), o antropólogo baiano delineou um plano de trabalho no qual estavam previstos estudos sociológicos e antropológicos no Brasil, em sintonia com as crescentes preocupações da agência internacional com os problemas do racismo e as dificuldades vividas pelos países subdesenvolvidos, e considerava ser necessário um projeto contra o analfabetismo e outro sobre o negro e o indígena.

Questão de raça, questão de classe: uma tensão

Ainda no decênio de 1940, a capital carioca foi o centro de atuação do Teatro Experimental do Negro (TEN), movimento político-cultural fundado por Abdias Nascimento em 1944, que tinha por objetivo trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, através da educação, cultura e arte, e também aproximar intelectuais do movimento negro em busca da associação entre trabalho acadêmico e intervenção política com a intenção de oferecer alternativas para a redução das desigualdades sociais existentes entre brancos e negros. O TEN procurou resgatar em um novo patamar a luta política dos negros da década anterior, cuja referência mais importante havia sido a Frente Negra Brasileira (1931-1937)24. No início, o TEN constituiu-se como movimento que atuava no âmbito da cultura, ampliando seu campo de ação com a democratização do país. Sua fundação se refere à necessidade percebida pelos negros de dialogar com a produção intelectual que os discutia e com o momento político peculiar para suas manifestações críticas, o fim do Estado Novo. O grupo, nas suas montagens teatrais, procurava estimular a criação de novos textos que servissem aos seus propósitos cuja temática deveria estar ligada à situação do negro. A falta de resposta à altura de suas expectativas fez com que a princípio Abdias do Nascimento encenasse textos estrangeiros, como de Eugene O'Neill, Todos os filhos de Deus têm asas (1946), e outras adaptações. Neste mesmo ano, durante as comemorações de seu segundo aniversário do grupo, entre as peças encenadas está O remorso do negro Damião, texto

24 É importante apontar que TEN não era o único grupo na luta antirracista, segundo levantamento de Domingues (2007) esse junto com o UHC (União dos Homens de Cor) foram os que adquiriram mais visibilidade. Entre tantos, articulou-se o Conselho Nacional das Mulheres Negras, em 1950; em Minas Gerais, foi criado o Grêmio Literário Cruz e Souza, em 1943; e a Associação José do Patrocínio, em 1951; em São Paulo, surgiram a Associação do Negro Brasileiro, em 1945, a Frente Negra Trabalhista e a Associação Cultural do Negro, em 1954 e no Rio de Janeiro, em 1944, surgiu o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, que defendeu a convocação da Assembleia Constituinte, a Anistia e o fim do preconceito racial. É importante assinalar também que, a imprensa negra ganhou novo impulso, com a publicação de diversos jornais: Alvorada (1945), O Novo Horizonte (1946), Notícias de Ébano (1957), O Mutirão (1958), Níger (1960), União (1947), Redenção (1950) e A Voz da Negritude (1952). Registrou-se, ainda, o aparecimento da revista Senzala (1946), em São Paulo.

| 71 adaptado do romance de Jorge Amado, Terras do sem fim, por Graça Mello e interpretado por Agnaldo Camargo, mostrando que o sofrimento do personagem negro não passou despercebido. Se observamos no decênio de 1930, houve uma tentativa de aproximação entre o PCB e o movimento negro, sendo que na Bahia houve uma clara união de pautas entre comunistas e membros das religiões de matriz africana, em São Paulo e no Rio de Janeiro dos anos 1950 esta relação parece marcada por tensões mais explicitas25. No PCB, entre os anos 1940 até metade de 1960, a visão etapista marca a percepção da questão racial. A publicação baiana Seiva, cuja direção era composta por universitários simpáticos ao partido, sob a fachada de revista literária, foi uma das poucas que sobreviveu a repressão estado-novista. Um de seus números dedicado à questão racial, no qual merece atenção especial um texto de Leôncio Basbaum, que fez a crítica dos estudos das relações raciais no Brasil, afirmando que eles se prendiam somente a descrição de rituais religiosos e estudos da antropologia física, apontando a necessidade de colocar o preconceito no centro da análise e que a solução estaria na criação de políticas para reerguer o negro e combater o preconceito, uma análise considerada precursora no contexto e próxima da opinião do movimento negro26. Intelectuais como Caio Prado Junior e Werneck Sodré abordavam em suas análises a falta de consciência política do negro, colocando-os de forma secundária nos acontecimentos do país. A exceção foi Clovis Moura, que publicou artigos destacando a importância dos quilombos como forma de resistência política e cultural; contudo, Moura rompe com o partido, pois resistem em publicar sua principal obra sobre a escravidão sob o pretexto de haver pouca relação com a miséria e a exploração. A leitura do problema racial ficou limitada aos preceitos teóricos do marxismo-leninismo, em que a superação do problema racial não necessita de uma ação especifica, mas da liquidação dos traços feudais que alimentam a exploração27. Lembrando que na Assembleia Constituinte em 1946, o senador Hamilton Nogueira da UDN apresentou um projeto de lei antidiscriminação, que pretendia incluir na Constituição

25 É importante apontar que decênio anterior, como demostrado nesse trabalho no momento da ANL e por Jéssica Graham (2014), houve tentativa de aproximação, mas a relação PCB e FNB teve conflitos, considerando-se até como concorrentes, pois o partido via no movimento negro um potencial revolucionário num nicho que faltava explorar, a população negra. Havia acusação por parte do PC que a Frente Negra era “reformista”, assim, o surgimento do movimento negro urbano organizado forçou a mudança da doutrina racial dentro do Partido, para além das orientações do PC central, devido sucesso do FNB e suas conexões integralistas. 26 Cf. CHADAREVIAN, Pedro Caldas. Raça, classe e revolução no Partido Comunista Brasileiro. Op. cit. 27 Cf. Idem, ibidem. De acordo com esta concepção etapista da evolução econômica dos países, o Brasil se encontraria em um estágio semifeudal, no qual predominavam estruturas sociais, políticas e econômicas que entravavam o pleno desenvolvimento das forças produtivas. A análise pcbista da questão racial enquadrava-se nesta visão, na medida em que o racismo era entendido como reminiscência de uma estrutura social antiga, que impedia a ascensão social do negro.

| 72 a igualdade de todos perante a lei “sem distinção de raça e de cor28”, ideia formulada na Convenção Nacional do Negro (1945)29. Na votação, o Partido Comunista Brasileiro se opôs ao projeto alegando, segundo Abdias do Nascimento, que a lei iria contra “o conceito amplo de democracia30”. Chama atenção que o único deputado negro daquela Assembleia, Claudino José da Silva, do PCB do Rio de Janeiro, apoiou o projeto, mas afirmou que a emenda do colega era “restritiva no que concerne aos demais problemas sociais e de classe31” e por orientação partidária acaba votando contra, o que não significa que o problema do negro não afligia o deputado, um indicio disso é em que uma das sessões da Constituinte seu discurso tratou da questão racial e a superação desse problema. Sendo assim, fica aparente a falta de melhor reconhecimento de parte da militância de esquerda sobre as questões do negro o que acabava afastando ambos movimentos e gerando uma série de tensões. Abdias do Nascimento, líder do TEN, como outras lideranças do movimento negro, foi militante integralista32. Nascimento tentou aproximação com grupos de esquerda, contudo essas aproximações foram marcadas por conflitos. Nesse momento, é perceptível que a polarização ideológica, direta x esquerda, estava presente no movimento negro. Em texto presente no jornal do TEN, Quilombo, são apontadas discordâncias com Solano Trindade, militante negro e pcbista sobre a maneira como este enxergaria a questão racial subordinada à questão de classe. Em 1950, Trindade fundou o Teatro Popular Brasileiro, projeto conjunto com Édison Carneiro, uma iniciativa que foi considerada por alguns uma contraposição ao projeto do TEN. Em outro momento, no mesmo periódico, um artigo de Péricles Leal critica os comunistas chamando-os de extremistas e os associando a uma tentativa de cooptação do movimento negro. Polêmica que também esteve

28 Anais da Assembleia Nacional Constituinte, Vol. XXII, p. 410. 29 Da convenção saíram dois objetivos: 1) a discriminação racial e o preconceito deviam ser crimes previstos em lei e 2) a criação de um sistema nacional de bolsas de estudos para estudantes negros nas universidades e no ensino secundário. A primeira lei antidiscriminatória do país, batizada de Afonso Arinos, aprovada no Congresso Nacional em 1951. 30 NASCIMENTO, Abdias do. Depoimento. In: UCHOA, Pedro Celso e RAMOS, Jovelino (orgs.). Memórias do exílio, São Paulo, Livramento, 1978, p. 33. 31 Anais da Assembleia Nacional Constituinte, Vol. XXII, p. 411.Sobre a atuação do deputado negro indico a monografia de Juliano Medeiros (2013), Das profundezas da história: um comunista negro na Assembleia Constituinte de 1946. A ata mostra que Jorge Amado não estava presente na seção. 32 Como bem argumentado por Sentinelo (2010), um fator de muitos militantes antirracistas terem aderido ao integralismo se deve ao fato que havia na AIB a propaganda de um nacionalismo interracial, que considerava também os imigrantes, com exceção dos japoneses e judeus, e aproximava das teses de Gilberto Freyre. Era uma ideologia que romantizava a cultura tupi, a mistura racial e a contribuição dos negros para a sociedade brasileira. Como vimos, no decênio de 1930 os grupos negros se tornam um grupo político cobiçado pelas diferentes vertentes, o tema Abissínia reverberou entre os afro-brasileiros e o PCB encontrou nessa causa a possibilidade de diminuir a influência do integralismo neste grupo. E de fato, a invasão da Abissínia levou segmentos do movimento negro a se aproximarem dos antifascistas e começarem a fazer crítica ao integralismo.

| 73 presente no I Congresso Negro: em uma das sessões, Costa Pinto, Édison Carneiro33, vinculados ao Partido Comunista Brasileiro, e pessoas associadas a eles são acusadas de tentar sabotar o projeto do ativismo negro proposto no Congresso pelo fato de ambos terem feito parte do grupo de idealizadores da “Declaração dos ‘cientistas’”, documento que foi o “pomo da discórdia” no final do evento. O I Congresso do Negro Brasileiro foi realizado em 1950 no Rio de Janeiro34, com organização de Abdias Nascimento e auxílio de Édison Carneiro e Guerreiro Ramos. Segundo Nascimento, “os brasileiros de cor tomam a inciativa de reabrir os estudos, as pesquisas e as discussões levantadas por vários intelectuais, principalmente pelos promotores dos I e II Congressos Afro-Brasileiros do Recife e da Bahia [...] não apenas com a preocupação estritamente cientifica, porém aliando a face acadêmica [...] o senso dinâmico e normativo que conduz a resultados práticos” destacando a união de esforços para tal “das mais lúcidas inteligências e ricas culturas, instituições as mais representativas, como é o caso da Unesco, no sentido de dotar o mundo de um clima de segurança, de paz e liberdade pela via da compreensão e fraternidade entre os homens e os povos, acima das divisões e rivalidades motivadas por questões de origens raciais”35. Nascimento afirmava que os dois Congressos anteriores tinham sido demasiadamente acadêmicos e descritivos, nos quais o negro foi “objeto de estudo” e os trabalhos destacavam o lado mais vistoso e ornamental da vida negra, como a música, a capoeira e a religiosidade. No seu entendimento era necessário propor, ao lado das análises, medidas práticas e objetivas. Ainda segundo Nascimento, no evento duas correntes se destacaram: uma formada pelo “povo negro” e outra pelos “homens da ciência” 36. Houve uma tentativa por parte dos intelectuais de aprovar a “Declaração dos ‘cientistas’” como documento final do congresso,

33 Esse é provavelmente um dos momentos de cisão e tensão que Carneiro vivenciou com o movimento negro brasileiro, como apontou Rossi (2011) em sua tese de doutoramento, fator que produziu um distanciamento simbólico significativo do etnólogo para com os projetos, os destinos, as conquistas e memórias do movimento. 34 Realizado na ABI (Associação Brasileira de Imprensa), de 26 de agosto a 4 de setembro de 1950. 35 NASCIMENTO, Abdias. O negro revoltado. São Paulo: Nova Fronteira, 1982, p. 67. Não deixa de ser interessante que no prefácio da segunda edição dos anais do congresso escrita 30 anos depois, Nascimento demonstra arrependimento pelo caráter conciliador do seu discurso naquele momento, cujo trechos foram citados acima, pois teria apoiado “a posição dos brancos liberais” e que de certa forma a homenagem a Nina Rodrigues no evento foi uma forma de endossar suas ideias e conclui que a história veio revelar as ideias racistas presentes nos dois Congressos Afro-Brasileiros anteriores. 36 Lembrando que “os cientistas” organizaram no ano anterior a Conferencia do Negro Brasileiro, preparativo para o Congresso, já adiantava a possibilidade choque com a militância negra que organizadora. Os organizadores da conferencia buscaram marcar o caráter cientifico do encontro, a proposta de reunião estaria “afastada [...] de qualquer ligação com ideologia ou partidos políticos”, focada em temas acadêmicos: “exclusivamente com estudos dos problemas de antropologia e sociologia relacionada ao negro”, e que seriam convidados todos os intelectuais e artistas que estivessem preocupados com o desenvolvimento da temática, entre os quais: Gilberto Freyre, Villa Lobos, Alceu Amoroso Lima, Renato Mendonça. Quilombo, Rio de Janeiro, dezembro de 1948. nº 1, p. 3;

| 74 um texto que se aproximava dos de Amado e Ramos, já citados37, assinada por nomes como Guerreiro Ramos, Édison Carneiro, Costa Pinto, Darcy Ribeiro, mas foi recusado sob o argumento que o povo negro não poderia se deixar manipular pelos que julgavam ser autoridades no assunto, fazendo com que os resultados do Congresso fossem “domesticados e desvirtuados”. Podemos colocar o renascimento do movimento negro organizado no contexto de surgimento e estabelecimento do projeto Unesco, pois mesmo não tendo recebido seu financiamento, seus principais intelectuais – Abdias do Nascimento, Édison Carneiro e Guerreiro Ramos – influenciaram, ainda que indiretamente, o desenho do projeto, sua realização no Rio de Janeiro e como tais estudos foram recebidos e divulgados38. Como também pesquisadores ligados ao projeto de pesquisa da ONU apontam a influência que o TEN teria exercido nas suas pesquisas, a exemplo de Charles Wagley, Roger Bastide, Costa Pinto, os quais, inclusive, participaram do Congresso do Negro Brasileiro apresentando teses ou dando pareceres. Outra observação válida é que os trabalhos de intelectuais como Roger Bastide e Florestan Fernandes, que buscavam por meio de seus estudos elucidar o preconceito racial no Brasil, descreviam nos seus textos teóricos o que os militantes do movimento negro já tentavam superar na prática. Em linhas gerais, como resultado, o projeto Unesco serviu para contrapor as autoridades de Gilberto Freyre, Arthur Ramos e Donald Pierson, trazendo a lume novas autoridades no que diz respeito à questão racial brasileira, como Roger Bastide, Florestan Fernandes, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira e René Ribeiro. A constatação da existência do preconceito racial no Brasil fora uma das suas mais importantes descobertas, desfazendo assim, no âmbito do discurso cientifico, o mito da democracia racial. Lembro que no momento de surgimento do TEN e o desenvolvimento do projeto UNESCO, Jorge Amado estava às voltas com a questão político-partidária e no ano que aconteceu o Congresso Negro se encontrava exilado na Europa, o que explicaria a ausência de Amado nessas discussões e no Congresso, uma presença que seria esperada, pois além da presença nesse ambiente de um colega de quem era um grande apoiador e incentivador, Édison

37 Na “Declaração dos ‘cientistas’”, entre outras coisas, estes repudiavam “o acirramento de ódios e rivalidades injustificáveis entre os homens, com o ressurgimento racismo” e afirmavam que embora o negro brasileiro “ainda conserve reminiscências africanas em certas atitudes sociais, já constitui fundamentalmente brasileiro, parte da cultura nacional do Brasil” (NASCIMENTO, 1982, p. 399). Ou seja, diluir era a palavra, o que se percebe é a preocupação com um possível “racismo às avessas” que para muitos era o que significava o discurso de valorização da negritude. Como afirmou Barbosa (2013), a posição dos cientistas foi considerada uma afronta à posição teórica e política a respeito da negritude defendida pelos organizadores do Congresso. 38 Cf. MAIO, Marcos Chor. Uma Polêmica Esquecida: Costa Pinto, Guerreiro Ramos e o Tema das Relações Raciais. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 1, p. 1997.

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Carneiro, o escritor havia participado dos dois Congressos Afro-Brasileiros e uma adaptação de seu texto havia sido encenada pelo TEN. Pode-se observar ainda que uma das reivindicações do movimento naquele momento, muito presente no jornal Quilombo, a liberdade de culto religiosa39, foi proposta pelo deputado Jorge Amado e aprovada. É interessante observar que naquele momento a relação do romancista baiano com Abdias do Nascimento, que como veremos será marcada por divergências e polêmicas sobre a questão racial, se aproximou ao vermos uma adaptação de sua obra encenada pelo TEN. Cabe ainda ressaltar desse período é que além de reafirmar seu compromisso na defesa do candomblé ao apresentar projeto de lei enquanto deputado que garantia a liberdade de culto, o escritor manifesta publicamente ideias que o tornarão famoso nos decênios seguintes e que serão transpostos para sua criação literária: a positivação da miscigenação como singularidade do brasileiro, a consequente ausência de preconceito racial e o povo como a alegria, a festa, e mensageiro da que considerava a verdadeira cultura brasileira.

39 Vide os textos: Quilombo, 2003, p. 60,65;110;116. Artigos que indicam que apesar de haver uma legislação esta não foi colocada em prática absolutamente, Edison Carneiro afirma “O texto constitucional não tem clareza, embora seja claro como a luz do dia o princípio democrático que lhe serve de base [...] qualquer beleguim da polícia se acha com o direito de intervir numa cerimônia religiosa, para semear o terror entre os crentes [...] essa violência já se tornou um hábito sem que contra ela se eleve sequer uma voz de protesto” (2003 [1950], p. 65).

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CAPITULO III – Bahia, régua e compasso: Brasil- Bahia-África

Materialismo que não se limita: afastamento do PCB

Laureado com o Prêmio Internacional Stalin em 1951, pelo livro publicado no mesmo ano, O mundo da paz1, Jorge Amado relata nele suas impressões sobre as viagens pelos países da extinta URSS2 como militante mundial pela paz. Volta ao Brasil em 1952, com os originais da trilogia Os subterrâneos da liberdade, Os ásperos tempos, Agonias da Noite e A luz no túnel3, em mãos, romances que retratam episódios ocorridos durante o Estado Novo e a resistência do Partido Comunista Brasileiro durante o período, que são publicados dois anos depois. São nos primeiros anos da década de 1950 que Amado teria tomado conhecimento das atrocidades cometidas pelo regime soviético, portanto antes XX Congresso da PCUS em 1956, em que Kruschev denuncia pela primeira vez os crimes de Josef Stalin. O rompimento ainda hoje gera comentários entre biógrafos, estudiosos e militantes, em grande parte por não ter havido um desligamento oficial. É digno de nota que muitos consideram que o desligamento se deu após o congresso, mas em entrevista a Geneton Moraes Neto, ao ser questionado se foi a denúncia do secretário-geral que trouxe o primeiro impacto, Amado afirma: “O choque veio já antes da denúncia, porque eu vinha sabendo das coisas. Mas é evidente que a denúncia de Kruschev trouxe coisas de que eu não fazia a mínima ideia”4. O afastamento do escritor não foi brusco como normalmente se narra, prova disso é que em 6 de outubro de 1956, o redator do Voz operária, João Batista de Lima e Silva5,

1 Único livro que o escritor nunca autorizou reedições por razões que compreenderemos nos próximos parágrafos. 2 Relatos de duas viagens compõem o livro. Jorge Amado e sua esposa Zélia Gattai conheceram pela primeira vez o território soviético como convidados da União dos Escritores Soviéticos, entre dezembro de 1948 e janeiro de 1949. Já morando na Tchecoslováquia, tornaram a viajar para URSS em 1951, com objetivo de gozar um período de férias em Moscou, a ideia da viagem partiu do romancista russo Ilya Erenburg que sugeriu o repouso por achar Jorge Amado abatido pelo trabalho de redação de Os subterrâneos da liberdade. Uma terceira viagem aconteceu em 1952 para receber o Prêmio Stálin da Paz que fora concedido em dezembro do ano anterior. 3 Livros que marcam o auge a literatura de militância político partidária, Táti (1961) considera que no ciclo que começou com São Jorge dos Ilhéus a solução política de Os subterrâneos da liberdade foi a mais previsível, pois os personagens não se tornaram revolucionários eles eram resultado de uma evolução. 4 AMADO, Jorge. As confissões do ex-comunista Jorge Amado: diante da tv, ele assiste, espantado, ao fim do socialismo (de resto, declara: “meu último ídolo é Stálin”. “Escrevo muito mal”. “Sou Uma Negação Como Contista”): entrevista. [1990]. Paris. Entrevista concedida a Geneton Moraes Neto. Disponível em: http://www.geneton.com.br/archives/000365.html. 5 SILVA, João Batista de Lima e. Não se pode adiar uma discussão que já se iniciou em todas as cabeças. Voz operária, 06/10/1956, p. 3.

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publicou um texto apontando a necessidade de uma discussão pelo PCB e intelectuais comunistas sobre as notícias que vieram à tona no XX Congresso. No mesmo dia o escritor baiano escreve um texto endossando a posição do colega. Entre outras coisas, diz: [...] devemos discutir, profunda e livremente, tudo o que comove e agita o movimento democrático e comunista internacional, mas que devemos, sobretudo, discutir os tremendos reflexos do culto à personalidade entre nós [...] Nisso todos temos responsabilidade, humildemente, que devemos vir, como homens honrados que somos, perante o povo brasileiro com ele discutir e dele – finalmente – algo aprender [...] Sinto a lama e o sangue em torno de mim, mas por cima deles enxergo a luz do novo humanismo que desejamos acesa e que foi quase submergida pela onda dos crimes e dos erros. Confio que não exista homem honrado entre nós que deseje ou tente impedir essa discussão indispensável e que tanto tarda6.

O fato é que depois desse texto, o até então querido romancista, foi execrado por alguns militantes comunistas que não economizaram críticas e expuseram algumas feridas, colocando em xeque a qualidade do escritor e apontando a diferença entre os “reais” militantes e o intelectual. Antunes Valdir chega a afirmar que faltava autocrítica ao escritor: E o camarada Jorge Amado, que, de volta após longas férias na Tchecoslováquia, e outros países socialistas, escreve todo um artigo, com sangue, lama e tudo o mais, sem uma única palavrinha de autocritica daquele seu ‘Mundo da paz’ um monumento nacional ao culto da personalidade [...] que, para ler até o fim só mesmo por tarefa. E não explica nada aos seus admiradores e leitores [...] sobre essa brusca mudança de opinião quanto as cores – antes tudo azul com bolinhas cor de rosa – e agora, tudo preto, negro, profunda escuridão. Será que um escritor comunista não deve explicação aos seus leitores [...] Sobre os erros do camarada Jorge, o qual afinal de contas já não é criança para ser ludibriada com fotografias de capa de revista. Ou será autocritica contra o culto de personalidade o camarada Jorge Amado?7

O jornalista Celius Aulicus foi outro que demonstrou sua indignação: [...] o que de fato me entristeceu, o que me revoltou mesmo, o que me levou a sala da decepção, foi a página marcada por Jorge Amado e Pedro Mota Lima [...] quanto ao de Jorge Amado julga não exagerar e empregar o adjetivo ‘revoltante’ para qualificar seu palavreado. Então é ele, o autor daquela ‘seleção do Reader Digest’ às avessas que se chama O mundo da paz o a monstruosa deformação de acontecimentos históricos e tipos humanos a que deu o nome de Subterrâneos da liberdade, que nos vem, agora, dizer cobras e lagartos dos que se metiam na ‘lama e no crime’ como se estivesse limpo de todas as máculas?8

Já Anita Moreira afirmou:

6 AMADO, Jorge. Carta de Jorge Amado a J.B. de Lima e Silva. Imprensa popular, 10/10/1956, p. 3. Nomes como Dalcídio Jurandir, Pedro Mota Lima, Moacir Werneck de Castro, Santos Moraes e Antônio Bulhões também publicaram artigos nesta direção. 7 ANTUNES, Valdir. Sobre a questão da responsabilidade individual e coletiva no culto da personalidade entre nós. Imprensa popular, 21/12/1956, p. 5. 8 AULICUS, Celius. Para começo de conversa, prato feito não serve. Imprensa popular, 04/11/1956, p. 10.

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Referiu-se Jorge Amado a ‘um mar de lama’. A terminologia não faz honra ao escritor de pouca linguística é verdade, mas de grandes e belos recursos poéticos. A generalização envolve pessoas que deram vida, sonhos, conforto, inteligência tudo pela classe operaria, enquanto o companheiro se locupletava em dezenas de viagens, tanto que é o único escritor brasileiro que vive do produto das suas obras vendidas no campo do socialismo9.

Outro fato que indica um afastamento e não um rompimento é o texto publicado no Voz operária em novembro de 1957. Nele Amado saúda o aniversário da Revolução Russa e afirma que estávamos na “era da nova civilização socialista10”. O texto aparece ao lado dos de Carlos Marighela e Luís Carlos Prestes em uma provável demonstração que seu prestígio não estava de todo abalado dentro do partido. Na percepção do historiador Muniz Ferreira, as relações entre Amado e PCB entre 1956 e 1964, com base na publicação pcbista Novos Rumos, "[...] foram marcadas por aproximações e afastamentos, convergências e desencontros"11. Mais do que isso, percebe-se que a figura do romancista era necessária ao partido no sentido de dar credibilidade12 e apoio em certas ocasiões, participando de eventos, assinando manifestos, como o pela defesa da posse de João Goulart, saudando os participantes do Congresso Mundial e pelo Desarmamento geral pela Paz (ocorrido em Moscou em 1962), manifestando apoio a Revolução Cubana e aos candidatos do PCB do Rio de Janeiro e Bahia nas eleições de 1962. Os pontos de estremecimento foram no ano anterior, por causa das críticas de Jacob Gorender a sua nova fase literária e, principalmente, pelo apoio do romancista a Juracy Magalhães, candidato conservador indicado para primeiro-ministro, descrita pelo jornal como “chocante atitude de Jorge Amado”13. Logo após esse fato, a expulsão do romancista pelo partido foi dada como certa por algumas publicações14, mas no ano seguinte há uma aparente reconciliação. A crítica literária Eneida afirma: “Claro que em certos momentos divergimos de Jorge Amado politicamente.

9 MOREIRA, Anita. Encontrar o caminho brasileiro. Imprensa popular, 04/11/1956, p. 4. 10 AMADO, Jorge. Saudação. Voz operária, 09/11/1957, p. 5. 11FERREIRA, Muniz. As interações de Jorge Amado e o PCB pós 1956, 2016. Disponível em: http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=283:as-interacoes-entre-jorge-amado-e- o-pcb-pos-1956&catid=1:historia-do-pcb. Acesso em: 20/07/2016. 12 Ao contrário do que se poderia imaginar, a eleição de Jorge Amado na ABL foi vista com bons olhos pela publicação atribuindo ao escritor características que mais gostava, “homem simples” e “homem do povo”. 13 Chocante atitude de Jorge Amado. Novos rumos, 15 a 21 de setembro de 1961, s/p. O escritor teria enviado um telegrama ao então governador da Bahia, Juracy Magalhães, pedindo para que ele aceitasse o cargo de primeiro- ministro caso fosse convidado. Acontece que Magalhães, quando deputado federal, havia votado a favor da cassação de parlamentares do PCB. 14 Jorge Amado expulso de “Novos Rumos”. Diário de Pernambuco, 15/10/1961. Jorge Amado expulso, a palavra ‘burrice’ ofendeu os comunistas. O globo, 15/10/1961, p. 6.

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Mas é impossível deixar de amá-lo pelas suas qualidades de escritor, pela sua obra e pelas qualidades de homem, errando muitas vezes, mas muitas vezes acertando15”. É digno de nota que no fim de 1958, Amado se posiciona na polêmica que envolvia o escritor Boris Pasternak, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, que renunciou ao prêmio por pressão do regime soviético, defendendo romancista russo e a autonomia da arte e criticando o regime soviético: Sua expulsão da união dos Escritores Soviéticos demonstra que os elementos esquemáticos, sectários e dogmáticos ainda dominam aquele organismo, tentando impedir a criação literária e impor uma escola única como a stalinista. Hoje, entretanto, isto é impossível. A tendência cada vez mais forte no sentido do confronto das diversas escolas, sem que a literatura e arte não podem desenvolver-se16.

No aniversário de 40 anos de Revolução Russa, Amado realizou uma viagem para Ásia em companhia de Pablo Neruda. O poeta em suas memórias registou suas impressões sobre o escritor e sua atuação política: A verdade é que as revelações sobre a época stalinista haviam quebrantado o ânimo de Jorge Amado. Somos velhos amigos, compartilhamos anos de desterro, sempre nos tínhamos identificado numa convicção e esperança comuns [...] Seu mestre, Luís Carlos Prestes, passou cerca de quinze anos de vida preso. São coisas de que não se pode esquecer e que endurecem a alma. Eu justificava ante mim mesmo, sem compartilhá-lo, o sectarismo de Jorge [...] parece ter começado ali, a bordo daquele barco [...] uma etapa diferente de sua vida. Desde então ficou mais tranquilo, foi muito mais sóbrio em suas atitudes e em suas declarações. Não creio que perdesse sua fé revolucionária, mas se reconcentrou mais em sua obra e tirou dela o caráter político direto que penultimamente a caracterizou. Como se revelasse o epicurista que existe nele, pôs-se a escrever seus melhores livros, a começar por Gabriela, cravo e canela, obra-prima transbordante de sensualidade e alegria17.

Desde quanto se torna deputado, em 1945, encontram-se registros de Amado declarando seu descontentamento com o partido devido ao excesso de atividades que lhe eram atribuídas impedindo que desenvolvesse o trabalho de escritor. Sua última viagem pelo PC foi em fins de 1955, mas continuou participando de eventos como é notável pela publicação Novos Rumos. Outro sinal de arrefecimento da militância foi o trabalho como diretor da revista cultural Para todos (1956-1958) ao lado de nomes como Oscar Niemeyer e Werneck de Castro no conselho editorial, quando anuncia que não haveria espaço para qualquer sectarismo político, “igrejinha”, na publicação:

15 ENEIDA. Jorge Amado. Novos rumos, 20 a 30 de agosto de 1962, p. 3. 16 Jorge Amado (Prêmio Stalin): Felicito Boris Pasternak. Última Hora, 30/10/1958, p. 3. 17 NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. São Paulo: Difel, 1983, p. 237.

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[...] era um trabalho no âmbito cultural, e ainda por cima em franca oposição às posições sectárias e estreitas do Partido; por exemplo, durante a revolução húngara, Para todos tomou uma posição que não correspondia à oficial do Partido [...] havia uma divisão profunda entre os escritores comunistas e os não comunistas, homens de grande valor cujas posições democráticas eram discutíveis como Carlos Drummond de Andrade e de Erico Verissimo, que eram violentamente atacados [...] recomecei meu trabalho literário e comecei a escrever Gabriela18.

Nesse desejo de conciliação, oito meses após a homenagem à Revolução Russa, foi publicado Gabriela, cravo e canela. Como citou Neruda, o afastamento refletiu-se diretamente na criação literária e inaugurou um novo patamar na carreira do escritor. Com essa nova empreitada, ambientes intelectuais que antes eram hostis se abrem. Somente no ano seguinte da publicação é coroado com quatro prêmios: prêmio Machado de Assis, prêmio Luísa Claudio de Souza, prêmio Paula Brito e prêmio Carmen Dolores Barbosa. Em 1961, ano da publicação de Os velhos marinheiros, composto pelos contos “A morte e a morte de Quincas Berro D’água” e “O capitão de longo curso”, é agraciado com o título de Personalidade Literária do ano, recebendo o Prêmio Jabuti oferecido pela Câmara Brasileira do Livro. Além da publicação de Gabriela, cravo e canela, sua eleição em abril de 1961 para Academia Brasileira de Letras é outro marco, pois reforçava o momento de revisão daquele que quando jovem foi da Academia dos Rebeldes, ou seja, contra o academicismo literário, fato que foi lembrando no seu discurso de posse: Tomamos de nossas armas ainda imperfeitas e partimos contra tudo quanto nos parecia representação daquele passado, inclusive a Academia Brasileira. Só o tempo e a vida podem ensinar ser a Academia em sua continuidade conjugação de passado, presente e futuro. Se um jovem, ao iniciar-se na vida e na literatura, disser compreender e aceitar tal verdade será quase certamente um oportunista, um carreirista, um pobre diabo19.

No mais, seu discurso reforçou a função social da sua literatura, o de fazer romance do povo e para o povo: “[...] tentando fazer de minha obra arma de sua batalha contra a opressão e pela liberdade, contra a miséria e subdesenvolvimento e pelo progresso e pela fartura, contra a tristeza e o pessimismo, pela alegria e confiança no futuro. Segundo a lição da literatura baiana, fiz de minha vida e de minha obra uma coisa única, unidade do homem e do escritor, aprendida na estrela maior do céu baiano, o poeta Castro Alves, estrela matutina da liberdade,

18 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit., p. 215. 19 AMADO, Jorge. Discurso de posse na academia brasileira de letras. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: Povo e terra. Op. cit., p.4.

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estrela vespertina dos ais de amor20”. Se insere na tradição romanesca de José de Alencar, lembra do impacto que foi a publicação de Casa-grande & Senzala e dos colegas africanistas, Édison Carneiro, Arthur Ramos e outros intérpretes da realidade brasileira, como Arinos de Melo Franco e Sergio Buarque de Holanda, finaliza lembrando dos terreiros de candomblé e de seus famosos personagens, como Lívia, Guma, Antonio Balduíno, Jubiabá, Gabriela. O discurso de recepção, proferido por Magalhães Junior, fez uma revisão da carreira do romancista e logo reconhece a existência de duas fases: a primeira marcada pelas intenções ideológicas em conjunto com uma poesia que desnuviava um pouco esse viés e exalta a nova fase e bandeira do romancista, o povo da Bahia: “A vossa pura baianidade, Sr. Jorge Amado, é o segredo da vossa universalidade21”. Indica ainda, uma espécie de campanha que se inicia naquele momento para o romancista ser agraciado com o prêmio Nobel de Literatura, reconhecimento que na opinião de muitos ficou faltando na sua carreira. Em 1967, a União Brasileira dos Escritores (UBE) o indicou ao prêmio, contra a sua vontade, mas no ano seguinte aceitou a indicação com a condição que o escritor português Ferreira de Castro também o fosse. Segundo Antonio Olinto, sua candidatura foi mantida entre os anos 70 e 8022. Pode-se dizer que o ingresso na ABL foi importante para ambas as partes, pois serviu ao autor como forma de institucionalização e reconhecimento entre os pares e para a Academia uma sinalização de modernização e diversidade, por ter em seus quadros um “escritor de esquerda” e autor brasileiro de maior popularidade nacional e internacional23. Interessante observar que a tão citada mudança de perspectiva na sua obra normalmente era negada ou relativizada pelo escritor, afirmando que o que dava unidade aos seus romances era a fidelidade ao povo: “Eu acho que não há nenhuma ruptura em minha obra.

20 AMADO, Jorge. Discurso de posse na academia brasileira de letras. Op. cit., p. 9. 21 MAGALHAES JUNIOR, R. Discurso de recepção, na Academia Brasileira, na posse de Jorge Amado. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: Povo e terra. Op. cit., p. 220. 22 Por sua vez, Amado apontou o descaso da academia sueca com a língua portuguesa, por nomes como Erico Verissimo, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira de Castro e Luandino Vieira não terem sido laureados. A falta deste prêmio na galeria do escritor reverbera até hoje, sendo constante nas entrevistas que me foram concedidas em Moçambique. Mais recentemente, Pilar del Rio, esposa do primeiro Nobel de Literatura de língua portuguesa, José Saramago em 1998, revelou que o escritor acreditava que o primeiro prêmio da nossa língua deveria ter sido concedido a Jorge Amado e que os dois escritores fizeram um pacto de compartilhar o prêmio, mas na altura o escritor baiano se encontrava debilitado e não pôde comparecer. 23 Argumentação semelhante apresentou Almeida (1979). Um texto do jornal Diário Carioca não poupou críticas ao romancista e a Academia, afirmando apenas a ABL se beneficiou por ter em suas fileiras um escritor de renome internacional e questiona o escritor: “[...] para que desejaria a precária, a ilusória, a materialista gloria acadêmica? Só há uma explicação: vaidade [...] Jorge Amado academizando, selando seu compromisso com as classes sociais que ele acusou em seus romances proletários” (Jorge: a vitória sem grandeza. Diário carioca, 30/03/1961, p. 6). Dias depois o romancista responde no mesmo jornal: “Mas tudo na vida obedece a formalidades e se eu sou socialista não quer dizer, que ignoro o mundo formal que me rodeia” (Jorge, o imortal supérfluo. Diário carioca. 08/04/1966).

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Há uma evolução, você evolui, vai evoluindo [...] Eu acho que há uma unidade do primeiro ao último livro, que é dada pela posição do autor [...] é uma posição do autor ao lado do povo, que é a mesma de minha obra24”. A frase “Meu materialismo não me limita” é o exemplo máximo da sua percepção sobre um suposto descomprometimento político da sua obra e um possível conflito na relação entre sua concepção política e a religião. Frase primeiramente atribuída ao protagonista de Tenda do Milagres, Pedro Archanjo, se torna uma espécie de mote do romancista. Sempre que abordado sobre o tema, usava argumentação similar: “Eu sou materialista, mas meu materialismo não me limita [...] Eu não poderia escrever sobre a Bahia, ter a pretensão de ser um romancista da Bahia se não conhecesse realmente por dentro, como eu conheço, os candomblés, que é a religião do povo da Bahia”25. Declarações desta natureza marcam o novo momento do romancista, na qual suas falas e atitudes tendiam a ser mais conciliadoras e relativizadoras. Atitude diferente do intelectual dos decênios anteriores.

Amado com cravo e canela: pós-Gabriela

Apesar da negativa de Jorge Amado sobre a possível divisão de sua produção e a afirmação de que foi a crítica de esquerda que construiu a teoria que sua produção seria dividida em duas partes, antes de Gabriela e pós-Gabriela, o fato é que números superlativos foram inaugurados com a publicação de Gabriela, cravo e canela. Traz para o escritor um nível de profissionalização e popularidade nunca antes visto na literatura brasileira26. Fruto não só da nova abordagem da mesma temática, mas de todo um contexto político, econômico e social. Em 1956, Amado já era tido como escritor melhor pago pelo Folha da Manhã, traduzido em 28 idiomas, com cerca de 200 edições no exterior e mais de 5 milhões de

24 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. Op. cit., p 29. Digo normalmente porque é nesse sentido que vão a maior parte das suas declarações, porém em 1966 fala em outra fase: “Agora é outra fase, outro momento [...] Não sou um alienado, a minha nova fase literária serve para penetrar na alma do povo: novos tipos, bem brasileiros” O homem amado. Realidade, 1966, p. 54. 25 Idem, Ibidem, p. 11. Entre tantas, também é citado na entrevista a Alice Raillard (1996) e em entrevista a revista Tempo (1971) de Moçambique, como também, que não havia deixado de lado o engajamento de lado, mas que as armas eram outras. 26 Um exemplo de sua popularidade é o interesse que a vida privada e o cotidiano do romancista e sua família atraem. Por exemplo, notas sobre uma suposta luta corporal com o crítico Otto Maria Capeaux, o fato de ter quebrado o pé, comentários os vestidos de Zélia Gattai e uma reportagem do Cruzeiro, principal revista da época, dedicada a sua filha, Paloma Amado, destacando sua inteligência.

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exemplares vendidos27. Quatro anos depois, portanto depois do grande sucesso de Gabriela, revela a revista Cruzeiro – em um inquérito realizado com vários escritores com a pergunta “Vale a pena ser escritor no Brasil?” – que vivia de literatura desde 1944 e se mostra otimista com a profissão e a profissionalização da escrita: “Hoje, pode-se viver de literatura no Brasil e somos vários que vivemos de nossos direitos autorais [...] É preciso que ele faça da literatura o centro da sua vida, seu trabalho cotidiano. E, além disso, mais um pequeno detalhe, que sua literatura interesse ao público28”. Para o escritor baiano, a questão da remuneração do escritor sempre foi muito importante, como vimos em seu mandato como deputado a questão dos direitos autorais foi uma de suas bandeiras; fora isso, em seus registros memorialísticos e correspondências é comum tratar dessa questão, cobrando, inclusive, a editora do PCB por direitos nunca recebidos por O mundo da paz29. Depois de ter seus primeiros livros editados pela Schmidt, Amado passou para a José Olympio e, depois, para a Editora Martins30, na qual ficou por quase trinta e cinco anos. A partir de 1975, passou a ser editado pela Record, mudança que incluiu uma campanha publicitária bem estruturada 31; o proprietário da editora, Alfredo Machado, é apontado como um dos principais responsáveis e incentivadores da promoção e transformação da obra amadiana em filmes, novelas, peças de teatro, entre outros meios de mídia32. O que se observa é um escritor que procurava passar a imagem e acaba sendo reconhecido como aquele que fez da escrita sua profissão, processo que já era observado em

27 Como vivem e trabalham os nossos escritores?. Folha da manhã, 08/04/1956, p. 5. 28 Vale a pena ser escritor no Brasil?. Cruzeiro, 17/12/1960, s/p. Jorge Amado recebia proventos de direitos autorais inclusive da URSS, onde esse direito era reconhecido. 29 Antonio Dimas (2012) registou essa questão ao analisar as correspondências entre o romancista e seus editores. Como citado, a importância da remuneração nunca foi tabu para Jorge Amado, exemplo disso é que na ocasião que Sartre recusa o Prêmio Nobel de Literatura, o escritor afirma em entrevista que não teria condições de tal, pois entre outras coisas precisava do dinheiro, como também, afirmava que a motivação financeira o levava a vender os direitos da sua obra. 30 Hallewell (2015) argumenta que os lucros gerados pelas vendas do romancista foram de grande importância para a política editorial da Martins, pois sem esses dificilmente a editora poderia ter especializado seu catalogo em literatura brasileira. 31 José de Barros Martins promoveu a liquidação de sua editora em 1974, negociando os mais valiosos contratos de publicação com a Editora Record. Numa disputa que envolveu 8 editoras, desde de 2008 suas obras passaram a ser editadas pela Companhia das Letras. 32 Machado é descrito pelo jornal O estado de São Paulo em 1977, como o homem de negócios que modificou o panorama literário do país, seu tino comercial chama atenção ao falar de Jorge Amado no dia de lançamento do romance Tieta do agreste (1977), afirmou que já havia vendido 150 mil exemplares do livro para livrarias e já pensava numa segunda edição de 50 mil exemplares que seriam vendidos no esquema de promoção: “Vocês podem ver uma coisa, não importa o preço do livro (160 cruzeiros), o tamanho do livro (600 páginas) e a espera na fila de até uma hora para conseguir seu autografo: o certo que o leitor veio e aí está prestigiando o maior escritor brasileiro [...] O lançamento foi feito visando ao púbico [classe média] mesmo e não aos iniciados. Por isso resolvemos realiza-lo em uma grande loja e não oferecemos o tradicional coquetel” (No Rio, Jorge Amado autografa mil livros em seis horas,17/08/1977, colchete meu).

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idos dos anos 1930 e se estabelece nos anos de 196033. O sucesso de Gabriela, cravo de canela foi acompanhado pari passu pela grande impressa: os números das vendas, sucessivos recordes de tiragem e as cifras obtidas pelos direitos de filmagem para a televisão e o cinema34. Entre Gabriela e Tenda dos Milagres foram publicados Os velhos marinheiros, em 1961, Os pastores da noite, em 1964, e o grande sucesso de 1966, Dona Flor e seus dois maridos, com 75 mil exemplares de tiragem inicial. Romance que conta com uma extensa fortuna crítica e versões para televisão e para o cinema, narra a inusitada história de uma jovem cozinheira que vive dividida entre o boêmio Vadinho, de quem era viúva, e o marido, o correto farmacêutico Teodoro. Mas é interessante observar que o sucesso de público que conheceu a partir desse período não repercutiu em aceitação por parte da crítica nacional e pelos meios acadêmicos, que normalmente apontavam a superficialidade, a repetição da mesma forma, a linguagem – uso de palavrões e a gramática nem sempre correta –, como também a imagem fantasiosa que passava do país dado à grande repercussão internacional35. Normalmente a crítica dá pouca importância a participação política de Jorge Amado entre os decênios de 1960 e 1970, chegando a afirmar que na chamada segunda fase o escritor deixou a política de lado. O que se nota é justamente o contrário, com o escritor manifestando opiniões e mantendo diálogo com importantes figuras políticas do período, seja de situação ou de oposição, apoiando ou criticando políticos e políticas. O que muda é que, com a carreira de escritor consolidada, os artigos que consistiam muito da sua produção nos decênios anteriores, sendo grande fonte de polêmicas e debates, diminuem significantemente e as entrevistas passam a maior fonte de expressão de seu pensamento. A mudança é notável também na sua autodescrição que reflete, consequentemente, na divulgação da sua imagem. Em 1958, teria afirmado: “Sou apenas um baiano romântico e

33 Um processo que continuou e se aprimorou nas décadas seguintes. Em 1987, foi criada a Fundação Casa de Jorge Amado, localizada no Pelourinho em Salvador, que para Goldstein (2000) institucionalizou a imagem do autor e fez parte de uma estratégia de marketing pessoal que tende a silenciar ou minimizar aspectos de sua trajetória e formação intelectual como forma de produzir uma maior proximidade do grande público. 34 Como a negociação dos direitos de reprodução do romance à empresa americana Metro-Goldwyn-Mayer, cujos lucros permitiram o autor comprar a Casa do Rio Vermelho, sua famosa residência na capital baiana hoje transformada em um belo museu em sua lembrança e de Zélia Gattai. É bem divulgada uma citação do escritor afirmando que com o dinheiro do “imperialismo americano” comprara sua casa, menos divulgada é o escritor comentando em Navegação de Cabotagem que tentara pelo menos duas vezes, sem sucesso, reaver os direitos de filmagem, em sua fala destaca o nome de mercadoria dado pela empresa americana a sua produção. 35 Eduardo Assis Duarte, um dos pioneiros, junto com Alfredo Wagner Berno de Almeida, se dedicou ao estudo sistemático da produção do romancista. Assis sempre levantou a discussão sobre o desprezo do meio acadêmico por Jorge Amado e credita isso ao elitismo da universidade brasileira, que desprezaria sua literatura devido ao amplo apelo popular.

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sensual36”, dizendo ao jornal Diário de Notícias37 que romântico para acabar com o sofrimento do povo e sensual talvez por causa do tropicalismo, presente nos brasileiros em geral, complementando, mais tarde, sem menor cerimônia, que era o “romancista de putas e vagabundos”, reforçando ainda mais sua ligação com a vida popular baiana38. É comum a crítica apontar que a partir de 1958 Amado se torna “artista da mestiçagem”, “intérprete do Brasil”, entre outras nomenclaturas e termos que sugerem o romancista também como pensador social39. O que se percebe é que esse reconhecimento não foi imediato, pois dentre os comentários publicados naquele momento não foi encontrado nenhum que se refere ao escritor com esses termos. Sugiro que essa concepção foi construída especialmente depois da publicação de Tenda dos Milagres. Amado sempre manifestou o desejo de fazer uma literatura do e para o povo. Na ambiência cultural dos anos 1960, manifesta o desejo de ser um intérprete deste, como observamos no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras: “[...] à fidelidade mantida para com meu povo, com quem aprendi tudo quanto sei e de quem desejei ser intérprete40”. Uma interpretação que será calcada na mestiçagem, na democracia racial e na singularidade do povo baiano.

36 Não foi encontrado o registro de 1958 com o escritor citando esta frase, que será repetida várias vezes pelo romancista e seus críticos. O primeiro registro que encontrei desta citação foi em 1967 num evento para escritores. 37 Jorge Amado: sempre fui contra os ricos e os que detém o poder. Diário de notícias. 15/09/1967, p. 5. 38 Afirma: “Antes, eu buscava o herói, o líder, o dirigente político [...] cada vez eu estou mais perto do povo, do povo mais pobre, do povo miserável, explorado e oprimido. Cada vez, eu procuro mais o anti-herói...os vagabundos, as prostitutas, os bêbados” (AMADO, 1987, p. 29). 39 Dentre tantos citamos a dissertação de Ilana Goldstein (2000), Carolina Calixto (2011) e os textos do chamado “Caderno de leitura” (2008/2009) lançado pela editora Companhia das Letras como material de apoio voltado para professores que difunde amplamente essa ideia, é composto por textos de críticos literários, especialistas na obra de Jorge Amado, religiosidade afro-brasileira e questão racial. O mais próximo disso que encontrei no jornal Última hora que chama o escritor de “interprete do povo da Bahia” em uma nota de 1961, na ocasião esse manda um telegrama para Kubistchek felicitando pela escolha do estado da Bahia para sediar a Petrobrás. 40 Retomando Ridenti (2005), esse afirma que a partir do final dos anos de 1950 vários artistas compartilharam do que chama de “estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária” e faz a ressalva que não havia total identidade entre eles, alguns podiam ser rivais, ter obras diferenciadas, etc., mas em comum: “Todos eles valorizam a brasilidade arraigada no homem simples do povo [...], denunciam as desigualdades sociais, buscam desvendar ‘a realidade do Brasil’”. Apesar de não apontar Jorge Amado, que vive uma tensa relação com a esquerda, acredito que podemos colocá-lo entre esses, pois suas preocupações e aspirações vão nesse sentido, ao afirmar: “Desejo ser um intérprete do povo. A minha literatura é isso”. E também fala que “o caminho é o da autenticidade brasileira”, isto é, o país deveria “construir um caminho próprio para seu desenvolvimento, aprendendo com os demais que possuem problemas idênticos, mas buscando [...] encontrar soluções realmente brasileiras”. Pois, além da exaltação do povo, colocava a singularidade da brasilidade na miscigenação, como uma força inovadora que servia de exemplo para o mundo.

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O nacional desenvolvimentismo e ditadura militar

Retomando o contexto, nos anos 1950, o perfil da sociedade brasileira passou rapidamente de agrário-exportador a industrial. Consolidou-se uma sociedade urbano-industrial sustentada por uma política desenvolvimentista. O segundo governo Vargas41 teve como desafio a defesa de um programa de industrialização voltado para a criação de um capitalismo de cunho nacionalista, cabendo ao Estado um papel estratégico e ativo em que desenvolvimentismo e nacionalismo se entrelaçavam e a cidadania política seria ampliada na medida que a modernização econômica promovesse a independência nacional42. Juscelino Kubistchek apostou no avanço da política de industrialização que articulava a economia nacional ao capital estrangeiro. O otimismo era uma faceta desse momento, a política desenvolvimentista trouxe um novo estilo de vida, difundido pelas revistas, pelo cinema e pela TV, introduzida no país nessa década. Se por um lado uma parcela dos setores médios tinha o desejo de consumo e estilo de vida inspirados nos padrões sobretudo norte-americanos, pelo outro, em certos segmentos, surgiu o desejo de transformar a realidade do país e construir uma nação realmente independente. Uma intelectualidade de esquerda que buscava no passado uma cultura popular que servisse de inspiração para construir uma nova nação moderna43. Esse contexto certamente auxiliou na divulgação das obras de Jorge Amado, pois houve o fortalecimento do mercado editorial nacional44, a ampliação significativa do público e

41 Nos anos 1970, na ocasião do aniversário de queda do Estado Novo o romancista parece rever também a imagem do estadista que tanto o perseguiu: “Guardei ele pessoalmente a imagem de homem inteligente e agradável. Politicamente, creio que sua personalidade, rica e contraditória, já a exigir estudo sério, imparcial, liberto de sectarismo” (Um escrito insuflando os índios?, 1975, p. 12). 42 Segundo Pécaut (1990), o nacionalismo daquele momento era diferente dos da década de 1920-1930, que buscava construir uma nação. Esse já reconhecia a existência de um povo e via como sujeito político e ligava a sua mobilização a serviço da soberania nacional. 43 Para Ridenti (2000), tanto na sociedade quanto na intelectualidade havia uma convergência entre política, cultura, vida pública e privada. Esses foram os anos da consolidação do Cinema Novo, que consagraria diretores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade. No teatro, foi o tempo em que deslancharam os grupos Arena e Oficina, com Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e José Celso Martinez Corrêa. No terreno da literatura, chegaram às livrarias obras imediatamente clássicas como Grande sertão: veredas e Corpo de baile, de Guimarães Rosa, Laços de família, de Clarice Lispector, O encontro marcado, de , Duas águas, de João Cabral de Melo Neto e Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso. Nos estudos brasileiros houve os lançamentos de obras como Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda – também organizador da História geral da civilização brasileira –, Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado, Os donos do poder, de Raymundo Faoro, e Ordem e progresso, de Gilberto Freyre. E na música temos a bossa nova. 44 Segundo levantamento apresentado por Marisa de Mello (2012), a indústria gráfica cresceu 143% na década de 1950. Em 1959, a isenção de impostos sobre o livro e subsídios para a indústria de papel nacional elevaram a produção de livros.

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do alcance de sua produção, além das traduções, e das versões para o cinema e das adaptações para a televisão45. O otimismo a respeito do Brasil no governo Kubitschek foi notado pela crítica na forma e no conteúdo de Gabriela, cravo e canela46. O autor reconhece a influência do contexto: “[...] governo de Juscelino, democrático, desenvolvimentista, a fundação de Brasília e o crescimento industrial, reinavam o otimismo e a confiança entre a população, nunca mais aconteceu47”. Segundo suas próprias palavras, a relação com o estadista era de “mútua simpatia48”. Dias antes da inauguração da capital federal, o escritor se manifesta publicamente a favor argumentando que constitui obra importante para o nosso progresso. Amado fez uma reflexão sobre o contexto nacional, sintetizando o seu olhar sobre questões como desenvolvimento e nacionalismo: “ O Brasil vive um momento profundo e belo de sua vida: quando o povo toma consciência real dos problemas do país, consciência também de sua força e de suas imensas possibilidades [...] Não apenas no que se refere ao crescimento da indústria, às estradas rasgadas na selva, à luta, em suma, contra o subdesenvolvimento, que, de caso de polícia, passou a assunto governamental, mas, também, mudou o homem brasileiro, mais maduro, de um patriotismo consciente, nacionalista49.

Além de tudo, o jornal Diário Carioca coloca o romancista baiano no grupo dos “continuístas”, ou seja, aqueles que eram a favor da continuidade do governo JK50. A reserva de Amado com Kubitschek era o fato que o presidente e outros progressistas “lambiam as botas do ditador de Portugal” 51 e que o mérito de Jânio Quadros foi romper com tal dependência que chama de histórica. No breve governo Jânio Quadros, reconhecendo a personalidade excêntrica do estadista, Jorge Amado teve uma significativa influência. Quadros o convidou para ser

45 Sobre as adaptações de seus romances Amado (2012) afirmava que que qualquer adaptação é uma violência contra a produção original e aponta três motivos pelos quais as autorizava: 1) nas adaptações sempre fica alguma mensagem da obra original; 2) o maior alcance de público; 3) razões financeiras, pois vivia exclusivamente de direitos autorais. 46 Alice Raillard (1990) questiona Amado sobre um paralelo feito por Juarez da Gama Batista (1971) entre Brasília e o romance por apresentarem um o contexto histórico e sociológico comum e Brasília representar naquele momento um símbolo do recentramento do Brasil, favorecendo um sentimento de unidade nacional. Jorge Amado responde: “[...] não houve um encontro intencional [...] naquele momento havia um certo sentimento de orgulho nacional no Brasil, apesar das críticas de que Brasília foi alvo e que persistem ainda hoje [...]. Uma grande efervescência em todos os setores. Foi neste clima que escrevi Gabriela, e, de uma certa maneira, é verdade, o livro corresponde à realidade deste clima. Houve uma confluência de coisas” (p. 273-274). 47 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. Op. cit., p. 306. 48 Idem, ibidem, p. 221. 49 AMADO, Jorge. “Sartre e Simone Beauvoir no Brasil”. Diário Carioca. Rio de Janeiro. 28/08/1960 50 O que se tratava de uma manobra, num momento que não havia reeleição. 51 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. Op. cit., p. 265.

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embaixador do Brasil na República Árabe Unida, união política entre o Egito e a Síria, mas declinou o convite, optando por fazer parte da comissão de literatura do Conselho Nacional de Cultura52. Como aponta o jornal Correio da manhã, “pondo de lado os conhecedores do assunto” que já trabalhavam no Itamaraty, Amado colocou um dos seus na presidência do recém-criado Instituto Afro-Asiático. Ainda segundo a publicação, Quadros teria “resolvido nomear para dirigir referido Instituto um recomendado do ex-futuro embaixador comunista Jorge Amado, de nome Eduardo Portela, crítico literário de uma de nossas folhas”53. Portela dirigiu o instituto entre 1961 e 1964. Como observamos, apesar do menor viés político-partidário ter lhe aberto portas antes fechadas, Amado é visto como comunista pela publicação, que fez uma clara oposição a possível nomeação do romancista com embaixador, restrições no mesmo sentido que também foram manifestadas pelos jornais conservadores, como O Globo54. De qualquer forma, é notável sobre a atuação política de Jorge Amado, que sai de uma situação “nas margens”55 para atuar em meio às principais figuras da política nacional dos anos de 1950 e 1960. Nesse momento, o escritor mantinha uma relação íntima e cordial com o poder, situação que mesmo quando deputado federal não usufruía56. Acusado ora pela esquerda, ora pela direita, é notável que as palavras do escritor valiam ouro, ou seja, davam legitimidade seja qual fosse o assunto, ora sendo apropriada por um lado, ora por outro. O que não se pode dizer é que Jorge Amado deixou de estar comprometido com as questões de seu tempo. Amado se posicionou contra o golpe militar de 1964. Fez um relato memorialístico do dia: Desperto com a notícia, nem por esperada menos infeliz: os gorilas tomaram

52 Que tinha como objetivo disseminar, popularizar e democratizar as políticas para a cultura. 53 Instituto Afro-asiático, Correio da manhã, 17/06/1961, p. 6 54 Observo que o jornal O Globo, que sempre respeitou o escritor Jorge Amado, não poupava críticas ao intelectual comunista. A publicação apoiou a cassação de seu mandato na Constituinte colocando como notícia de capa e afirmando: “[...] sempre que tomava parte nos debates do plenário fazia a serviço da causa dos traidores da pátria, sem poupar enxovalhadas à dignidade nacional, nem esforços a sua inteligência por desenvolver a dialética ensinada pelo gênio integrante do comunismo” (Ofensas contra o Brasil no exterior, 20/05/1948, p. 1), no mesmo ano ganhou as seguintes manchetes “Detrator da pátria por ordem de Moscou!” (20/08/1948) e Traição e injuria (16/10/1948), em seu retorno ao Brasil publica a seguinte chamada “Chega hoje ao Rio, depois de quatro anos a serviço do totalitarismo vermelho, o Sr. Jorge Amado” (12/05/1952, p. 16). A oposição a sua indicação como embaixador foi justificada da seguinte forma pelo editorial: “ Estamos dispostos a engolir, com resignação cívica, vários sapos [...] Mas essa de nomear um comunista – escritor dos mais brilhantes, homem generoso e afável, mas comunista notório- embaixador do Brasil com acesso aos códigos e documentos secretos com os quais guardamos a segurança nacional e defendemos o nosso direito de viver livre e democraticamente, é demais! (O último embaixador, 20/02/1961, p.1). 55 Com a esquerda muitas vezes na clandestinidade. 56 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Revolta e conciliação: Um estudo sobre a trajetória intelectual de Jorge Amado. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Museu Nacional, 1978.

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das armas, depuseram o governo João Goulart. [...] Os telefonemas se sucedem, sabemos de prisões, casas invadidas, estamos preparados, Zélia e eu, para o que der e vier, quem veio foi Wilson Lins, ideólogo dos milicos. Ao ouvir o anúncio do nome do visitante, Zélia se arma em guerra, comentando para arrefecer-lhe o ânimo: Wilson vem nos ver porque é nosso amigo [...] Conversamos literatura e outras baboseiras, como se os acontecimentos não tivessem acontecido. Ao despedir-se, Wilson recomenda: qualquer coisa, me telefonem em seguida, se eu não estiver Anita saberá onde me encontrar. Wilson Lins: nunca falhou [...] Não vou concorrer para que os milicos restrinjam a minha vida, não modificarei meus hábitos57.

O que observamos é o escritor apreensivo com a situação política do país e recorrendo a relações pessoais. Parte de críticos e da esquerda em geral consideram que Amado teve uma relação distanciada de oposição. Ele não adotou uma postura veemente de protesto e revolta diante da situação, como outrora vimos contra o nazifascismo e a ditadura do Estado Novo. Durante esse período, Jorge Amado se afirmava como de esquerda e apoiador das suas causas: Hoje continuo homem de esquerda, mas quero pensar com minha cabeça. Não vejo possibilidade de socialismo sem democracia. A crise dos países socialistas é essa: eles têm socialismo, mas não democracia [...] Hoje, se me pedem, assino quantos manifestos de protesto quiserem, mas depois de ter assinado, e só depois, para não me chamarem de covarde, digo claramente: ‘Meninos, assim está tudo errado’. Eu posso falar, fui preso 11 vezes e tive que sair duas vezes do país58.

Se manifestou contra um projeto do governo Médici sobre censura prévia junto com Érico Verissimo. Os dois escritores mais lidos e de maior público naquele momento utilizaram do poder de influência e publicam manifesto afirmando que não aceitariam qualquer censura de seus livros em qualquer instância e, caso fosse necessário, publicariam fora do Brasil. Ainda sobre a censura, o escritor afirmou que não considerava esse período uma “catástrofe cultural”, apesar de ter sido “detestável” em diversos pontos59, pois importantes obras foram publicadas, como as de Ferreira Gullar e Érico Verissimo, e complementa: “O que a censura pode é impedir a publicação, nada mais60”. No mais, uma série de reportagens a partir de 1975 apontam como romancista desaprovava o regime militar, defendendo a anistia dos presos políticos e o retorno da democracia61.

57 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. Op. cit., p. 31. 58 O homem amado. Op. cit., p. 54. 59 Amado (1990) aponta como único ponto positivo do governo militar a política externa mais consciente do interesse dos brasileiros, pois teria se afastado da submissão absoluta dos Estados Unidos. 60 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit., p. 224. 61CALIXTO, Carolina Fernandes. Jorge Amado e a esquerda: entre a memória e a história (1964-1985). Perseu, ano 6, 2012, p. 33-58. Neste artigo, a historiadora fez levantamento de títulos de artigos de jornais trataram da

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Suas declarações e tomada de posições sobre a ditadura militar, acredito que resumem bem seu posicionamento a partir dos anos 1960. Um escritor que não escolhe vertentes políticas, com relações e opiniões baseadas em afinidades pessoais que o permitiram manter polêmicos vínculos com figuras políticas conservadoras como José Sarney e Antonio Carlos Magalhães62. Daí declarações da seguinte natureza: “Nunca tive inimigo por ele pensar, política ou literariamente, diferente de mim63” e “Sou adversário do regime, mas adversários também apertam-se as mãos64”. A última frase dá título a uma reportagem publicada no Jornal do Brasil, que oferece bom panorama das posições políticas do escritor, marcadas pela relativização dos fatos, registros de afinidades pessoais, ora irritando a esquerda, ora a direita. Amado foi a Brasília para uma exposição que comemorava seus 50 anos de carreira, na qual foi saudado então pelo presidente, último do Regime Militar, João Figueiredo. Frente a críticas, na reportagem afirmou que era um ato de boa educação, lembrou da relação afetuosa com Euclides Figueiredo e a amizade com Guilherme Figueiredo, pai e irmão do presidente, e diz que “algo mudou” no governo Figueiredo, pois foi o que assinou a anistia. Declarou ainda que o governo ditatorial foi até Geisel, um “homem de coragem e autoridade, que acabou com a tortura e os presos políticos”. Criticou também a polarização direita e esquerda afirmando que preferia votar em pessoas do que em partidos. Ao final da reportagem se declara socialista, pois “o socialismo significa a evolução do homem” e que “provavelmente” votaria no PT por ser algo novo e uma possibilidade de representação dos operários. Em sua declaração sobre o então novo partido, parecia ainda acreditar na organização do operariado (para chegar no socialismo?): “Não sei, até hoje, se é um bem ou mal. Porque se quiser assumir o papel de comandar o proletariado segundo seus princípios, vai fazer o mesmo que os outros. Mas é um fato novo, palpável”.

posição política de Amado: “Exigido de Falcão um fim à censura”, “Jorge Amado defende luta dos estudantes e anistia geral”, “Jorge Amado pede abertura política e cultural no país”, “Jorge Amado espera o retorno da democracia com Figueiredo”, “Jorge Amado chega falando em democracia e constituinte”, “Jorge Amado veio ver amigos e defende PCB legal”. 62 Esses dois políticos da região Nordeste têm em comum a pratica política mandonista, iniciaram suas carreiras pela UDN, comandaram grupos que se perpetuam/perpetuaram por várias décadas no poder e a posse de meios de comunicação. 63 O homem amado. Realidade, 1966, p. 54. 64 Jorge Amado: Sou adversário do regime, mas adversários também apertam-se as mãos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21/07/1982. A notícia mereceu a capa do jornal com a manchete: “Jorge confia em João e vota no PT”.

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África, anticolonialismo e o futuro do socialismo

O que se observa nos anos 1960 é uma reaproximação de Jorge Amado com a questão racial, voltando a atuar mais ativamente por intermédio do povo dos candomblés, agregado a uma posição anticolonialista que o aproximara de intelectuais africanos em conjunto com uma política externa que passou a enxergar a África como um território a ser melhor considerado. Nos decênios de 1950 e 1960, a postura brasileira diante da questão colonial normalmente era atrelada à retórica dos laços tradicionais de amizade, baseados na condição de ex-colônia e na herança cultural lusitana. No governo Juscelino Kubitschek, ao mesmo tempo que aparecia, protagonizado por Gilberto Freyre, a defesa de uma comunidade luso-tropical, surgiam vozes em apoio à independência dos povos coloniais por parte de intelectuais. A atitude do presidente pode ser considerada ambígua, pois ao mesmo tempo que manifestava apoio irrestrito a Portugal, reconhecia o movimento anticolonial como um dos mais importantes naquele momento e rechaçou publicamente o que ficou conhecido “massacre de Shapperville65” na África do Sul66. A percepção de que a África poderia representar um espaço privilegiado para a política externa brasileira emerge na década de 1960, no governo Jânio Quadros. Assim esse continente se tornou um importante espaço na nossa política exterior; o presidente buscava propagar a imagem de harmonia racial para lançar a possibilidade de o Brasil ser a liderança internacional no continente africano67 como alternativa aos Estados Unidos. Daí vemos o convite a Jorge Amado para ser embaixador no Egito e a criação do Instituto Afro-asiático, que

65 Ocorrido dia 21 de março de 1960. Na ocasião, o governo brasileiro tirou a representação diplomática da África do Sul. Em seus trabalhos, Jocélio Santos (2005) e Claudio de Oliveira Ribeiro (2007) abordaram a política externa do governo Kubitschek em relação ao continente africano. Outros trabalhos que abordam o tema: Letícia Pinheiro, “Ação e omissão: a ambiguidade da política brasileira frente ao processo de descolonização africana, 1946-1960”, (Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1988) e Pio Penna Filho, “O Brasil e a descolonização da África nos anos Kubitschek (1956-1961): ensaio de mudança”, (Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 1994) do ponto de vista da ambiguidade, já Dávila em Hotel trópico (2011) aponta que o presidente endossava absolutamente o regime português. 66 Uma ambiguidade que se explica pelo contexto, como apontou Dávila (2011) na década de 1960 na esteira da independência das colônias africanas e a deflagração das guerras pela descolonização nas colônias portuguesas, Portugal começou uma árdua campanha para reduzir a oposição ao seu regime (com veremos mais a frente que foi o IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros com participação de Jorge Amado) o que colocou um dilema para alguns brasileiros: qual parte da raiz deveriam apoiar, a portuguesa ou a africana? 67 Segundo Quadros “Nosso país de se tornar um ele, a ponte da África e o Oriente [...] podemos dar às nações do continente negro um exemplo de ausência total de preconceito racial junto com uma prova bem-sucedida de progresso, sem solapar os princípios da liberdade” (APUD Dávila, 2011, p. 51).

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tinha como objetivo justamente fomentar estudos destinados a incrementar a relação do Brasil com o mundo afro-asiático. Uma posição que Amado toma claramente é a pela independência das colônias africanas. Também é notável sua maior aproximação com intelectuais portugueses e africanos anticolonialistas de países de língua portuguesa e francesa. Em suas memórias, o autor demonstra sua frustação com a falta de apoio de políticos a descolonização africana, além de condicionar seu apoio à reeleição de Kubitschek a uma tomada de posição contra a reação portuguesa aos movimentos de independência, entre outros itens. É importante observar que, a partir da década de 1960, notícias sobre a África tiveram maior espaço em jornais diários, em plena Ditadura Militar houve as visitas de intelectuais anticolonialistas, um dos principais líderes do movimento negritude e presidente do Senegal Léopold Senghor68, que em 1964 recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia, e de Gabriel D’Arbousier69, em 1966, por convite de Jorge Amado. Intelectuais que o escritor estabeleceu primeiramente contato por meio do Partido Comunista Francês. Como observaremos com maiores detalhes na última parte deste trabalho, o escritor era persona non grata em território português por suas posições políticas, o comunismo, o antisalazarismo70 e anticolonialismo, mas em 1966 consegue entrar no país para uma sessão de autógrafos71. Convém lembrar que alguns livros de Amado, especialmente Capitães de Areia e

68 Segundo Dávila (2011), Senghor chega ao Brasil na tentativa de convencer o país a se tornar um intermediário na independência das colônias portuguesas, em seus discursos se esforçou em amenizar a influência de Portugal para inverter o discurso da democracia racial e do lusotropicalismo e propôs o termo latinidade, como adaptação de negritude para América Latina apontando um espirito universal de valores latinos, que agregaria as nações independentes de língua portuguesa. Seu sobrinho embaixador no Brasil, Henri Senghor, deu apoio logístico aos ativistas em defesa da descolonização que atuavam no Rio de Janeiro, estudantes de colônias portuguesas (representantes dos movimentos anticoloniais da Guiné Bissau, Cabo Verde, Angola) viajam com passaportes senegaleses para o Brasil. Léopold Senghor teria sido a primeira liderança a falar em nome dos países de língua portuguesa. Vale notar que Jocélio dos Santos (2005), aponta que o poeta e presidente senegalês em vários momentos do seu discurso, apela para os exemplos e argumentos utilizados por Gilberto Freyre para explicar a mestiçagem pré-existente entre os portugueses e a contribuição dos três elementos culturais na formação da sociedade brasileira e destaca a ressonância de valores similares presentes na poesia senegalesa e brasileira num discurso meramente diplomático, para Dávila (2011) seu discurso representou a posição ambígua do presidente que não queria bater de frente com os políticos brasileiros, mas aproveitava em reuniões privadas para defender a descolonização. 69 D’Arbousier, senegalês representante de seu país na Assembleia das Nações Unidas, além de vice-presidente e secretário-geral do Movimento Democrático Africano, lutava pelas independências na África, aparentemente teve maior proximidade com o romancista. O intelectual africano propunha que as fronteiras pós-independência das colônias fossem traçadas de acordo com as composições étnicas, o que como sabemos acabou não acontecendo. O romancista baiano, que teria lido em primeira mão os rascunhos de suas memórias, o descreve com características que estimava e que estariam presentes no Brasil: “[...] a figura da mãe, a doçura e a força, o tio feiticeiro na intimidade dos orixás, uma atmosfera entre a realidade e o sonho, a cultura europeia e a africana, a mistura, o sincretismo, a mestiçagem, a poesia (AMADO,2012, p. 412)”. 70 Posição que defendia publicamente desde quando era deputado na Constituinte em 1945. 71 Com a condição que sua estadia não fosse divulgada em veículos de comunicação. Decisão que não deixa de ser

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Jubiabá, influenciaram a escola literária neorrealista em terras lusitanas, que reverbera em suas colônias como veremos no caso de Moçambique. O escritor aponta o dia 25 de abril de 1974, data da queda do regime salazarista, como uma das maiores alegrias de sua vida72 e a consequente descolonização: “A descolonização, sem dúvida, foi a maior e mais profunda conquista do 25 de abril [...] veio criar condições propícias da independência pelas antigas colônias africanas73”, reconhecendo a atuação das guerrilhas nacionais na luta pela independência. Meses depois da Revolução dos Cravos, em depoimento, afirma que o único futuro digno possível para as colônias africanas era a independência completa sem restrições, dirigidas pelos movimentos revolucionários negros74. Interessante observar que luta armada que condenava no Brasil, no mundo Ocidental em geral e no regime soviético com o argumento que naquele momento as “armas são outras”, eram bem vistas e consideradas legitimas pelo romancista no caso do continente africano na luta pela emancipação política. Chama atenção que Jorge Amado, em pelo menos duas ocasiões para o jornal O Globo, mesmo enxergando traços de autoritarismo75, cita sua crença em um promissor futuro socialista nos jovens países do continente africano, especialmente em Angola: “Acho muito difícil impor uma ditadura stalinista num daqueles países. Os negrinhos são formidáveis76”. Conclusão que parece chegado após sua primeira visita em 1979 ao território angolano e que demonstra uma visão idealizada da África. Sobre o diálogo de Jorge Amado com intelectuais de países de língua portuguesa do continente africano, chama atenção, no seu periódico Para todos, a presença de dois textos assinados por Buanga Tele77, pseudônimo de Mario Pinto de Andrade, intelectual e nacionalista angolano. No primeiro texto, intitulado “O que é Luso tropicalismo?78”, Andrade afirma que Gilberto Freyre não era um vendido como o acusavam, mas que sua tese tinha um vício de base, pois não houve na África casamento entre culturas, mas sim uma relação entre cultura dominante e cultura dominada. No segundo texto, “Poesia negra de expressão portuguesa”, traz

surpreendente, pois seu livro Pastores da noite (1964) havia sido proibido de circular. Silva Pais, diretor da PIDE, escreveu uma provocadora justificativa: "Aquele brasileiro está aburguesado, tendo sido afastado do PCB, e o filho dele vai casar com uma senhora portuguesa, filha de família nacionalista e abastada". 72 Carta reproduzida pelo jornal português O país de Lisboa em 29/07/1977. 73 Jorge e a revolução de abril em Portugal. Folha de São Paulo, 26/04/1980. 74 Os intelectuais e os problemas de Portugal e da África. O planalto, Lisboa, 23/07/1974. 75 Estando em Angola o romancista fica sabendo de elementos de doutrinação partidária, pois a produção televisiva Gabriela, cravo e canela era exibida pela rede nacional, antes e depois da projeção havia apresentações com conteúdo ideológico socialista. 76 Jorge Amado: Sou adversário do regime, mas adversários também apertam-se as mãos. Op. cit. 77 Segundo consta, Mario de Andrade utilizava vários pseudônimos para criticar o regime político português 78 TELE, Buanga. O que é luso tropicalismo?. Para todos. 25/05/1956, p.14.

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trechos da produção poética das colônias. Representando Moçambique, um trecho de um poema de Noémia de Sousa, que, segundo o ensaísta, “traz sempre uma dádiva maravilhosa em cada mão” e “um veneno de lua que a dor injetou nas suas veias”, chamado Patrão: Quem morre no cais Todos os dias – todos os dias Para voltar a ressuscitar numa canção E quem é escravo nas plantações de sizal E de algodão Por esse Moçambique além79.

Não foram encontrados registros do escritor falando de Moçambique80 no contexto anticolonial; o que se sabe é que ele teve algum conhecimento por meio do relato do filho do poeta José Craveirinha, e, talvez, por esse texto de Noémia de Sousa. O fato é que o escritor foi muito mais próximo da intelectualidade angolana e um pouco da cabo-verdiana81, com relação afetuosa com Luandino Vieira e Agostinho Neto82.

“Baiano é um estado de espirito”

Jorge Amado participou do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, ocorrido na Universidade da Bahia em agosto de 1959, o qual podemos colocar no contexto do projeto Unesco, pois, apesar de Portugal ter tido com o evento objetivo de legitimar o regime colonialista do país – Marcelo Caetano, ex-ministro do Ultramar do regime salazarista, então reitor da Universidade de Lisboa, foi presidente da comissão organizadora da participação portuguesa –, os intelectuais baianos, que contaram com o apoio da agência da ONU, buscaram dar outro viés ao evento, como afirmou Vivaldo da Costa Lima: “Foi um Congresso de muita

79 Idem. Poesia negra de expressão portuguesa. Para todos, s/p, 1956. Neste poema enxergo influência da prosa de Jorge Amado, pois como será notável no último capítulo a referência ao cais na obra da poetisa normalmente remete aos romances de Amado 80 Uma breve referência a Maputo é feita no texto Apartheid, o anti-humanismo de 1983, cujo tema é o regime segregacionista da África do Sul. Na ocasião, aviões sul africanos haviam violando o espaço aéreo e acabaram bombardeando o território moçambicano. 81 Visitou Cabo Verde em 1986. 82 O escritor considerava Angola um lugar especial, que mesmo antes de conhecer já apontava em 1961 proximidade com a Bahia (Cf. De ‘Gabriela’ saem as preocupações da minha obra Jorge Amado”. Estado da Bahia, 11/05/1961). Além disso, o escritor foi prefaciador do primeiro livro de Agostinho Neto publicado no Brasil em 1975, no qual afirma que eram poemas “belos profundos, africanos, poemas de guerra escritos por um homem que ama a paz” e que a publicação destes no Brasil era uma forma de “contribuir para Angola independente, democrática e socialista.”. O escritor visitou Angola justamente para encontrar o poeta-presidente Agostinho Neto, mas não o encontrou, pois este havia viajado para URSS para fazer um tratamento de saúde onde acaba falecendo. Jorge Amado teria declarado ao Jornal de Angola em 1980 que desejava visitar o país há muito tempo, mas sempre se recusou devido à vigência do hediondo regime fascista português. No mesmo artigo, o intelectual conclama os países africanos e o Brasil a se solidarizarem com a construção de uma nova sociedade em Angola (Cf. CALIXTO, 2011, p. 145).

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repercussão, porque foi um congresso político. Pois, naquele tempo, Salazar ainda era o presidente de Portugal, houve então uma pressão muito grande dos portugueses sobre a cultura brasileira e, aqui, a esquerda brasileira estava naturalmente mobilizada contra esses movimentos colonialistas, tudo isso83”. Em uma das sessões do evento, chamada “Língua”, o romancista apoiou que se introduzisse o estudo das línguas africanas no currículo da Faculdade de Filosofia. Conforme registram os arquivos do evento: O Sr. Jorge Amado – invocando sua recente admissão como obá de Candomblé junta a sua voz à do Relator e aparteantes que se seguiram no sentido de que efetivamente seja criada a cadeira de iorubá84 na Universidade da Bahia. Acredita que o Magnífico reitor da Universidade da Bahia, que é realmente magnífico, terá sensibilidade bastante para atender a esta sugestão tão oportuna85.

Na programação do Congresso constou uma festa no terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá86, onde pouco tempo antes Amado havia sido alçado à condição de Obá Arolu87. Coube ao romancista saudar os convidados em nome do terreiro e de sua Ialorixá Senhora, um discurso de extrema importância, pois colocou com todas as letras sua percepção da questão

83 FARIAS, Edson; RODRIGUES, Fernando. Encontro entre ciências sociais e candomblé baiano: produção científica e engajamento político-cultural: entrevista com Vivaldo da Costa Lima. Sociedade e estado, Brasília, abril/2009, p. 266. Segundo consta, o objetivo do colóquio foi “o estudo da civilização de língua portuguesa em todas as épocas e lugares que se tenha manifestado” abrindo assim uma expectativa de diálogo entre intelectuais com divergências ideológicas, especialmente sobre o regime português. Segundo Maria Maia Ribeiro (2003), o evento foi uma manifestação do regime salazarista que reafirmou a tese de unidade territorial portuguesa, na tentativa de legitimar o colonialismo e o discurso lusotropicalista. Outro fator que chamou atenção, foi a ausência de intelectuais das colônias da África e da Ásia. 84 A reivindicação obteve êxito e com ela veio uma descoberta: “[...] me lembro de um professor de iorubá na Bahia [...] havíamos conseguido que a universidade criasse uma cadeira de ioruba e que trouxesse um professor de fora. Ele me dizia que as palavras haviam adquirido outros significados; que aqui eram usadas palavras que haviam desaparecido totalmente na África. E outras diferenças muito mais radicais [relativo ao culto do candomblé]” (RAILLARD, 1990, p. 88, colchete meu). 85 SANTOS, Gilda. A volta de Jorge Amando celebrando seu centenário de nascimento (e ainda o Colóquio de 1959...) Disponível em: http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/ressonancias/pesquisa/ufrj/16-a-volta-de-jorge- amado-celebrando-seu-centenario-de-nascimento-e-ainda-o-coloquio-de-1959/. 86 Para esclarecer os coloquistas sobre o que presenciariam, Vivaldo da Costa Lima escreveu o texto chamado “Uma festa de Xangô no Opô Afonjá”, distribuído na ocasião. Disponível em: http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n2_3_p5.pdf. 87 Junto com Dorival Caymmi e Caribé, Jorge Amado foi escolhido um dos 12 obás do terreiro, mais especificamente Obá Arolu, uma função que formava o corpo executivo e dava voz e voto no grupo, os doze obás auxiliavam na administração do terreiro. Amado descreve mãe Senhora como aquela que “mandava e desmandava na Bahia” e pela declaração de Antonio Olinto observamos que esta tinha uma percepção aguçada e que a presença de intelectuais e políticos era uma forma de “proteger” a religião: “Foi mãe Senhora que nos convidou. Ela começou a ver, a sentir, que o Candomblé era um ato cultural também. Principalmente. Então, ela começou a ter não só o pessoal normal da religião, mas alguns intelectuais. Estávamos lá: Jorge, eu, Carybé, Caymmi. Ele estava mais ligado, eu e Jorge [Amado] estávamos dentro daquele princípio de mãe Senhora de que devia haver intelectuais que eram da religião. E com isso nós entramos. Frequentei lá o tempo todo”. Disponível em: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3231498-EI6581,00- Antonio+Olinto+Caymmi+era+inteiramente+do+Axe.html

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racial brasileira, exaltando a singularidade da baianidade, que seria a miscigenação: “Nós, baianos da antiga e profunda mestiçagem, filhos do mistério e da beleza desta cidade negra do Salvador da Bahia, guardiães de sua pureza e incentivadores do seu progresso, somos orgulhosos deste templo e seu significado”; como exemplo, cita o um negro, um mestiço e um branco/estrangeiro envolvidos no candomblé: “Aqui passaram e estudaram Martiniano Bonfim, babalaô da casa, nosso Édison Carneiro, o feiticeiro Pierre Verger, e hoje nós, homens de cultura, somos os defensores do seu segredo e de sua grandeza88”. Interessante observar que não era de qualquer pureza que o baiano seria guardião. A viagem de Pierre Verger à África para resgatar as origens do candomblé e criar um terreiro de “pureza absoluta” não foi bem vista pelo escritor, que afirmou: “Há pureza somente nos sonhos destes homens tão dignos, tão instruídos, tão extravagantes89”, considerando que a religião do futuro seria a umbanda, pois é a mistura, a mescla, de várias religiões. No caso trata- se da “pureza nagô” uma discussão que remete ao decênio de 1930, quando, inspirados pelas teorizações de Nina Rodrigues, intelectuais baianos conhecidos como africanistas, postulam que os nagôs, etnia predominante na Bahia, são tidos como superiores, mais inteligentes e mais fortes. Daí um grande orgulho descender deles e justificar a superioridade dos negros baianos. O próprio terreiro Ilê Axé Opô Afonjá era tido como o “mais fiel à pureza nagô90”. Além disso, Amado utiliza o conceito atribuído a Freyre de democracia racial91: [...]eu vos peço, nesta casa, respeito e humildade. Respeito ao povo negro, a nós, mestiços baianos nascidos na democracia racial brasileira – a meu ver a mais nobre e bela experiência de convivência racial do mundo porque resulta da fusão de todas as raças e de uma vida nova e bela – que, vencendo todas as dificuldades de violências, conservamos essas fontes de nossa cultura, vivas e frescas, com todo o seu poder, vitoriosas92.

88 AMADO, Jorge. A festa para o IV Colóquio Luso-brasileiro e o discurso de Jorge Amado para mãe Senhora. In: SANTOS, Deoscoredes Maximiliano dos (Mestre Didi). História de um terreiro Nagô. São Paulo: Max Lemond, 1988, p. 24-25. 89 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit., p. 90. 90 Nesse sentido Lisa Castillo (2010) aponta mesmo tido como “puro”, esse terreiro manteve desde a sua fundação relações com a escrita textual, tanto pela produção escrita de seus membros, quanto com etnografias, sendo o babalaô Martiniano Bonfim figura central na aproximação entre o terreiro e a etnografia. Lembro também, Beatriz Gois Dantas (1982) que fez um importante estudo sobre a percepção de pureza. 91 Segundo Guimarães (2002), este termo teria sido forjado por um crítico das formulações freyreanas, Florestan Fernandes. Freyre usa a expressão democracia racial somente em 1962 na defesa da colonização portuguesa na África e criticar o conceito de negritude que vinha influenciando militantes do movimento negro brasileiro. Acrescenta ainda, que enquanto a ideia de democracia racial permaneceu relativamente consensual, seja como tendência ou ideal de sociedade brasileira, o antropólogo se manteve longe da discussão, mas com as guerras de libertação no continente africano, as reivindicações dos movimentos pelas reformas sociais e o movimento negritude adotou o conceito de democracia racial ou étnica como símbolo da cultura lusotropical, passou a utilizar o termo. 92 AMADO, Jorge. A festa para o IV Colóquio Luso-brasileiro e o discurso de Jorge Amado para mãe Senhora. Op. cit., p. 25, grifos meus.

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Como era comum ao abordar a temática racial, cita o passado de resistência a escravidão como exemplo: Os escravos venceram no tempo dos senhores de escravos, e hoje Xangô reina sobre a Bahia, pese aos múltiplos e terríveis métodos empregados para apagá- lo de nossa memória [...] guardamos a lembrança dos tempos de opressão, quando vossos ancestrais – nossos opressores de então – quiseram roubar nossa riqueza maior, os bens da cultura que possuíamos, para impor-nos amores possíveis93.

E introduz uma elaboração que usará frequentemente sobre o Brasil ter “umbigo na África”: Sim, é necessário que se saiba e se proclame nosso orgulho baiano e brasileiro das raízes africanas sobre as quais estamos plantados. Nossa comunidade [...] tem seu umbigo na África, e hoje, seja Xangô servido, estende-se pelos mais diversos países [...] Repito para que se ouça e guarde, nosso umbigo é africano, dele nasce nossa arte, nossa literatura, na cor da pele de uma Machado de Assis e no conteúdo de um Jorge de Lima. Africano é nosso umbigo e a ele está presa a nossa alma94.

Termina reafirmando qual seria a originalidade do povo brasileiro e que a nossa força veio do sangue escravo, como já havia afirmado outras vezes: “somos resultantes da mistura de escravos e senhores, mas foi no seio dramático das escravas que sorvemos a seiva da vida. Por isso somos fortes e o nosso dia é o dia de amanhã95”. Pode-se concluir que o pensamento que torna Jorge Amado mais famoso estava sendo gestado na década anterior, quando o intelectual já falava de miscigenação, de “isenção de preconceito de raça”, da relação entre o povo e festa no Brasil. Na ocasião da repercussão pós XX Congresso do Partido Comunista, falou que faltou aos comunistas aprender algo com o povo brasileiro. O que chama atenção nesse discurso é o otimismo, a esperança no dia de amanhã. No seu discurso, Zumbi dos Palmares é trocado por Xangô e a igualdade social e a luta de classes foram substituídas pela harmoniosa convivência entre os diferentes. Uma das novidades da interpretação de Gilberto Freyre estava em considerar a miscigenação como um fato singular da nação, que para ele era um sinônimo de tolerância e cordialidade entre as diferentes raças. No discurso nacionalista da década de 1930, o negro desaparece, vira mestiço, e o fato de o Brasil ser um país mestiço vira sinônimo de igualdade racial. Nesse modelo pautado pela versão oficial, a desigualdade e a violência são desprezadas em nome de um ideal de uma “nova raça” brasileira.

93 MADO, Jorge. A festa para o IV Colóquio Luso-brasileiro e o discurso de Jorge Amado para mãe Senhora. Op. cit., p. 26. 94 Idem, ibidem. 95 Idem, ibidem, p. 26-27.

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Além dos espaços intelectuais, nesse decênio, o mestiço ganha os meios oficiais. A feijoada, que até então era considerada “comida de escravos”, vira prato oficial, carregado de representações simbólicas da mestiçagem; o arroz e o feijão representam os dois segmentos fundadores da sociedade, a couve, o verde das matas e a laranja, a cor do nosso ouro96. O governo de Getúlio Vargas usou o crescente fascínio do Brasil branco com elementos afro-brasileiros: a capoeira, reprimida pela polícia durante o século XIX e considerada crime até 1937, foi oficializada como prática esportiva nacional; o samba sai da marginalidade, as escolas de samba e seus desfiles passam a ser reconhecidos pelo governo em 1935. O mesmo governo cria como nova data cívica, entre outras, o dia da Raça (para celebrar a tolerância existente em nosso país)97. O futebol foi sendo associado aos negros, principalmente a partir de 1933, com a profissionalização dos jogadores, e eles começam a ser aceitos nos clubes. Nessa mesma época, Nossa Senhora Conceição de Aparecida, mestiça, foi escolhida como padroeira do Brasil e considerada com legítima representante da nossa nacionalidade. A figura do malandro também ganha força como a representação do mestiço que recusa trabalhos fixos, só temporários. Várias canções da época representavam o espírito do malandro, bem-humorado e bom de bola, que é o precursor da expressão assumida nos anos 1950: “jeitinho brasileiro”. O que se observa é a revitalização desse discurso na Bahia a partir do decênio de 1950 e vemos a fala de Jorge Amado bem alinhada com um contexto em que uma interpretação da negritude e baianidade são conceitos que dialogam, pois a Bahia deixa de ser pensada como melting pot e se fixa a ideia de que ali se encontra o verdadeiro estado negro. Neste momento, ocorreu na Bahia uma reelaboração das políticas direcionadas às manifestações afro-brasileiras. Com a industrialização, o discurso da modernidade enfatizando o desenvolvimento foi visto também na perspectiva de renovação cultural. Durante a Ditadura Militar, houve a criação de órgãos governamentais destinados a regulamentar e a organizar a produção e a distribuição cultural pelo território brasileiro. Foi elaborada uma política nacional de cultura que tinha como objetivo a codificação e o controle sobre o processo cultural. Foi criado o Conselho Federal de Cultura (CFC)98, substituindo o Conselho Nacional de Cultura, que

96 Cf. SCHWARCZ, Lilia. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001. 97 Cf. SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1989. 98 Conselho que tinha como objetivos: formular a política cultural nacional; articular-se com os órgãos estaduais e municipais; estimular a criação de Conselhos Estaduais de Cultura; reconhecer instituições culturais; manter atualizado o registro das instituições culturais; conceder auxílios e subvenções; promover campanhas nacionais e realizar intercâmbios internacionais. Foi formado por intelectuais de reconhecida importância e projeção nacional como: Gilberto Freyre, Adonias Filho, Afonso Arinos, Ariano Suassuna, Armando Schnoor, Arthur Reis, Augusto

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incentivou a criação de centros de folclore, casas de cultura e tombamento de monumentos. Na Bahia, essa política levou à apropriação de elementos cotidianos da cultura afro para construir uma imagem de baianidade singular e exótica. Mestiçagem, democracia racial, o popular, e por mais contraditório que possa parecer, a pureza são os termos chave. O reforço do mito de “paraíso racial” visava afastar qualquer forma de polarização étnica, buscando tornar a cultura negra como um símbolo do “ser baiano”. Assim, os baianos se definiriam como herdeiros da mais autentica África, um discurso que, como vimos, começa na década 1930, mas que ganha maior força e uma busca reconhecimento nacional a partir de 1950 e atinge seu auge nos anos 1970 e 1980, nos quais intelectuais e agentes políticos99 atuaram para tal com o turismo100, ajudando a propagar esse discurso nacional e internacionalmente, e com o Pelourinho101 como espaço-símbolo, lembrando que a Fundação Casa de Jorge Amado foi inaugurada em 1987 nessa região e teve papel na revitalização desse espaço, um processo que demandou o desalojamento de centenas de famílias pobres que ali viviam102.

Meyer, Cassiano Ricardo, Clarival Valladares, Djacir Lima Menezes, Gustavo Corção, Hélio Viana, João Guimarães Rosa, José Cândido de Andrade Muricy, Josué Montello, D. Marcos Barbosa, Manuel Diegues Junior, Moysés Vellinho, Otávio de Faria, Pedro Calmon, Rachel de Queiroz, Raymundo de Castro Maia, Roberto Burle Marx, Rodrigo Mello Franco. Uma de suas principais atribuições era elaborar um Plano Nacional de Cultura, houve ainda durante o regime a implantação do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) e do Conselho Nacional de Cinema (Concine), a reformulação da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), a expansão do Serviço Nacional de Teatro (SNT), a criação da Fundação Nacional de Arte (Funarte) e o lançamento da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. 99 Antonio Carlos Magalhães é considerado o político embaixador da baianidade. ACM foi prefeito de Salvador, deputado estadual, deputado federal, duas vezes senador e três vezes governador pela Bahia em mais 50 anos de carreira política. Segundo Osmundo Pinho (1996), o político alcançou seus objetivos por sua característica de político midiático, grande parte por ter sido proprietário da Rede Bahia, empresa que inclui emissoras de rádio, jornais, gráficas e emissoras de TV afiliada da Rede Globo no estado, o alinhamento dos meios de comunicação de massa locais ao discurso de baianidade, consolidou o projeto identitário de uma baianidade turística. A permanência no poder do seu grupo político único foi também determinante para a legitimação desta identidade. 100 O Regime Militar incentivou o desenvolvimento das regiões através do turismo interno e externo. A Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) criada em 1966 foi utilizada pelos militares para divulgar uma imagem positiva do Brasil no exterior, segundo Santos Filho (2008) foi criado “um material iconográfico de alto padrão gráfico, acompanhado de uma folheteria especifica para a exportação do imaginário brasileiro, lastreada no conjunto de um discurso ufanista”. Na Bahia, a associação da cultura local ao turismo é iniciada em 1971, com a criação da Bahiatursa e Emtursa no primeiro governo de Antônio Carlos Magalhães, que segundo Pinho (1996) vai ser desenvolvida de fato durante toda a década de 90, com a criação da Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia em 1995, até o ano de 2006, sob a condução administrativa do mesmo grupo político. 101 A primeira investida com foco na afirmação de uma identidade baiana voltada para a atividade turística foi a reforma do Centro Histórico de Salvador nos anos 1980, notadamente o Pelourinho, que seria a “representação da ‘verdadeira’ Bahia, e esta sua característica, tem sido reiteradamente estimulada e analisada, quase sempre do ponto de vista da conservação dos valores tipicamente ‘baianos’” (PINHO, 1998/1999, p. 261-262). Sendo que nesse espaço que remete a valorização da cultura afro-baiana, a memória da colonização portuguesa não deve e nem será esquecida, pois se trata de conjunto arquitetônico colonial barroco português. 102 O silêncio do romancista, que se colocava como defensor dessa população, a respeito dessa desapropriação foi notado. Em 1985 o centro histórico de Salvador foi reconhecido pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, no sentido de preservar e revitalizar a região a Prefeitura de Salvador contratou a arquiteta italiana Lina Bo Bardi para desenvolver um projeto de reabilitação que que procurasse preservar as relações sociais e a cultura existentes. Porém em 1991, comandado por Antônio Carlos Magalhães, começou o chamado "Programa de Recuperação do

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Como falar desse país da Bahia, desse povo mestiço antigo, forjado em longa e difícil caminhada, num caldeirão de misturas, como falar dessa cidade ‘situada no Oriente do mundo’ [...] onde as culturas se amalgamam, as cores se confundiram para criar uma nova cor, inédita, onde nações se misturaram num leito de amor sem medidas, como escrever sobre a vida ardente e mágica da Bahia sem ser parte integrante dessa vida, como? 103.

Como vemos na citação acima de Jorge Amado, no discurso da baianidade, a Bahia constituía uma nação com características singulares no que se refere a aspectos culturais: “[...] ‘não era só a paisagem. Não era só a arquitetura. Não era só o mar nem as terras. Era a gente e o viver da Bahia’[...] A docilidade, o ritmo, a sensualidade, a malandragem, a capoeira e a culinária seriam tanto os elementos básicos desse contraste quanto o que imprimiria as características próprias do ‘jeito baiano’104. Amado ainda citava a Bahia como a capital de todas das Áfricas e como o lugar em que se iniciara a formação da sociedade brasileira com as seguintes características: “mestiça, pacifica e fraterna105”. O candomblé, que em décadas anteriores era reprimido, passa a ser exaltado, se tornando uma espécie de “marca registrada” do estado e os discursos sobre a presença de elementos do continente africano no Brasil voltam à tona. Nesse sentido, Jocélio Santos afirma: Nessas reinterpretações havia uma absorção da imagem de uma Bahia mística, com a sua antiguidade histórica, a sua beleza arquitetônica e natural e, principalmente, a sua originalidade cultural, pois os signos do candomblé, basicamente os orixás e suas insígnias, passavam a ser veículos de informação sobre a autêntica representação de origem africana na sociedade brasileira. Representação essa que estaria a honrar a pureza106.

Centro Histórico de Salvador" que mudou a orientação inicial do projeto de Bo Bardi focando o interesse deste espaço no potencial turístico e econômico, entre 1992 a 1995 deu-se início à primeira das etapas de um processo que expulsou grande parte dos moradores de baixa renda, nas palavras do grupo Olodum: “[...] nós travamos nos últimos 10 anos uma grande luta para que o Pelourinho/Maciel fosse recuperado, mas o nosso principal objetivo era a recuperação humana, era a recuperação social e a recuperação cultural [...] a maioria das pessoas que moravam ali e que estão morando em bairros distantes ou mesmo no Rua 28 de Setembro - uma rua próxima - sistematicamente voltam. Elas estão lá andando, vendendo, brigando, porque aquela é a área onde aprenderam a fazer tudo, a andar, a beber, a comer, a usar drogas, a brigar com a polícia, a ver os soldados da polícia representando o Estado [...] Só que as casas agora são da Benetton, do Boticário, brevemente o Mc Donald´s e de uma série de organizações e de instituições que tradicionalmente renegam a população negra até mesmo no papel de consumidor" (RODRIGUES, 1995, p. 82-87). 103 AMADO, Jorge. Carta a uma leitora sobre romance e personagens. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: Povo e terra. 40 anos de literatura. São Paulo, Martins, 1972, p. 24. 104 SANTOS, Jocélio Teles dos. O poder da cultura e a cultura do poder: a disputa simbólica da herança negra no Brasil. Salvador: EdUFBA, 2005, p. 66. 105 Bahia, capital de todas as Áfricas. [S.I.], [1988]. 3f. (FCJA J/O.ma.tdi 038 A494) 106 SANTOS, Teles dos. O poder da cultura e a cultura do poder: a disputa simbólica da herança negra no Brasil. Op. cit., p. 88. Em sua tese de doutorado, o antropólogo lembra ainda que referências ao universo religioso negro podiam ser verificadas em textos tanto de empresas privadas, como em produções artísticas de baianos e não- baianos como: Edu Lobo, Vinicius de Moraes, Ary Barroso, Dorival Caymmi; na produção cinematográfica através de filmes como Bahia de todos os santos, de Trigueirinho Neto (1960), O pagador de promessas, de

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Não restam dúvidas que o intelectual Jorge Amado ajudou na elaboração e na divulgação do discurso político-ideológico da baianidade ou da “ideia de Bahia”, como prefere Osmundo Pinho107. Como apontou Goldstein108, o “fator baianidade” se torna o principal critério de julgamento do escritor, que em resenhas, comentários, críticas e artigos se limitava a exaltar tais atributos. E muito antes desse discurso se popularizar, na década de 1970109, já falava em tais termos (vide o discurso do IV Colóquio Luso-Brasileiro de 1958). Amado foi uma espécie de líder dos que formavam uma elite intelectual, econômica e política, autorreferente e produtora dessa ideia, composta por nomes como Pierre Verger, Mestre Didi, Carybé, Floriano Teixeira, Calasans Neto, Mário Cravo, Dorival Caymmi que supostamente representavam e eram os guardiães do verdadeiro espírito do povo baiano em sua arte. Sendo assim, a cultura era negra cada vez mais mestiça, mas seus principais protetores e divulgadores eram brancos. Observa-se o romancista mobilizando e articulando intelectuais, uma atuação semelhante a que fazia na década de 1930 com os intelectuais baianos africanistas, só que agora com maior influência política e intelectual. Acredito que podemos apontar os intelectuais divulgadores do discurso da baianidade como continuadores da chamada “escola baiana”, tendo

Anselmo Duarte (1962), Barravento, de Glauber Rocha (1962), e A grande feira, de Roberto Pires (1962). E que, embora o governador Antônio Carlos Magalhães (no período 1970-1974) reconheceu o candomblé como uma religião, muitos terreiros mantinham-se subordinados a uma autorização legal da Delegacia de Jogos e Costumes (o rompimento com essa dependência só veio só viria no governo de Roberto Santos, através do Decreto n. 25.095 de 15 de janeiro de 1976). A cooptação da religião pelas instâncias públicas gera questionamento, o jornal Movimento, perguntava se o candomblé estava diante do progresso, sacrilégio, retrocesso ou destruição. Argumentando que o governo tirou os candomblés da tutela policial, mas como salvá-lo das pressões econômicas, do turismo e do comércio? E afirma que a partir da instalação da Petrobrás na Bahia, em 1954, e do primeiro departamento de turismo do estado, o candomblé passou a ser elemento de especulação econômica e cultural iniciando uma guerra que um dia vence o mais forte que a religião passou a ser vendida com o aval dos profetizadores da baianidade: “Veio a época em que era chique vir à Bahia assistir ao ritual, a princípio, é certo, com algum nojo. De simples incursões clandestinas de brancos endinheirados, as visitas se tornaram públicas. Passou a ser elegante fazer ebós abertamente, e depois o importante era ter um título honorífico. Como um exemplo dramático do envolvimento pela sociedade de consumo, Waldeloir cita uma das mais famosas mães-de-santo da Bahia, Olga de Alaketo. Sua formação ocorreu dentro da sociedade moderna e não de acordo com os padrões tradicionais, como foi a de Mãe Menininha do Gantois. A vida de Olga de Alaketo tem duas faces: a do templo e a da sociedade. Diz o etnógrafo. Olga vive em boates, Menininha nunca viu uma. E, no caso do Gantois, ela não tem culpa por ter sido transformada em produto de consumo por Jorge Amado ou Dorival Caymmi. Hoje, visitar Menininha é igualmente chique” (Candomblé: progresso ou sacrilégio, 1975, p. 12). 107 PINHO, Osmundo S. de Araújo. A Bahia no Fundamental: Notas para uma Interpretação Do Discurso Ideológico Da Baianidade. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 36, fevereiro/1998. Pinho trabalha com a ideia que algumas narrativas de Amado, como Jubiabá e Dona Flor e seus dois maridos, são representativas da tradição narrativa que consagra o modelo ideológico-discursivo de “ideia de Bahia” com o Pelourinho sendo símbolo. 108 GOLDSTEIN, Ilana. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo: SENAC, 2000. 109 Em jornais do início da década de 1970 aparecem chamadas do tipo “Na Bahia de Jorge Amado, o Brasil é mais Brasil”, “Quem quiser saber da Bahia de Jorge Amado tem que ir lá”.

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Jorge Amado como principal representante, com ênfase nos elementos da cultura, sem maiores necessidades de legitimação científica e ligados a um outro grupo político, lembrando que o grupo da década de 1930 tinha ligação com o PCB e o novo não tinha vinculação explicita, mas contava com o apoio grupo político de Antonio Carlos Magalhães. Na década de 1970, o romancista sai em defesa da então nova geração baiana, concordando com o cineasta Cacá Diegues que haveria a “patrulha ideológica” de uma elite cultural que condenava toda produção que não era considerada revolucionária. Jorge Amado denuncia o preconceito contra artistas como Glauber Rocha, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que faziam cultura popular, e aponta o “ser baiano” como fonte dessa discriminação: “Nós, da Bahia principalmente, somos vítimas da agressão desses elitistas, porque nascemos numa cultura popular muito densa. Quase basta ser baiano para levar pau [...] Queriam destruir os meninos como se eles não tivessem realizado uma obra extraordinária, revolucionária110”. No documentário Bahia, por exemplo (1969), composto pelos relatos dos “mestres da baianidade”, além do romancista, Carybé, Mário Cravo Jr, Augusto Jenner, Glauber Rocha, Hansen Bahia e a mãe de santo Olga de Alaketu, Amado pontua sua “ideia de Bahia”, afirmando que a originalidade e o mais importante na Bahia é que a literatura e arte vinha do povo e que a mistura de raças foi uma grande conquista: “[..] coisa, ao meu ver, extraordinária que é a mistura de raças, que é a nossa grande conquista, também grande contribuição para o humanismo, para cultura mundial a solução justa e certa que nós soubemos dar e que estamos dando ao problema racial, ou seja, através de mestiçagem”. Ao ser questionado se o candomblé seria um obstáculo místico ao desenvolvimento social e econômico do negro, responde: Eu sou materialista [...] apesar que também não sou absolutamente dogmático, e creio que em certas condições esta aura mística pode ser um elemento de grande força até revolucionária [...] No tempo da escravidão, no tempo em que ele suportou a mais dura das formas de opressão, a escravidão como forma de vida e de economia, o candomblé seguido da capoeira, também serve de elemento trazido por ele da África, serviram como instrumento de luta para manter a sua fisionomia cultural para se manter capaz de reagir contra a escravidão.

No mesmo ano do lançamento do documentário e de Tenda dos Milagres, Amado recebe com grande entusiasmo A casa da água111, de Antonio Olinto, afirmando que era o grande romance brasileiro sobre a África e reforçando sua percepção sobre a nacionalidade brasileira: “dessa ligação tão profunda e fundamental, desse sangue cruzado e misturado, dessa

110 Jorge Amado concorda que elitismo cultural criou no país a “patrulha ideológica”. Jornal do Brasil, 06/11/1978. 111 Romance que narra o retorno de uma família de negros brasileiros para a África de origem e mostra que o negro que retorna à África não é mais africano, a experiência no Brasil marcou-o definitivamente.

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intercomunicação de cultura que fazem do Brasil um país africano, porque do lado de lá do Atlântico vieram os temperos de nossa cor e de nossa sensibilidade112”. É perceptível que Jorge Amado vai amadurecendo o que podemos chamar de uma das narrativas que ajudou a inventar a Bahia, o livro Bahia de todos os santos, publicado originalmente em 1944. Nele, as máximas da sua percepção de baianidade são afirmadas constantemente; dentre tantos, cito o trecho: Existe uma cultura baiana com características próprias, originais? Creio que sim. Aqui toda cultura nasce do povo, poderoso na Bahia é o povo, dele se alimentam artistas e escritores [...] Essa ligação com o povo e com seus problemas é marca fundamental da cultura baiana que influencia toda cultura brasileira da qual é célula mater. Sendo a cidade negra por excelência, com uma grande população de cor, é aquela onde menos existe, em nosso país, o preconceito racial. O que não quer dizer que seja inteiramente inexistente. A mistura de sangue é muito grande e em sã consciência pouca gente poderá negar o avô negro mais ou menos remoto. A influência do negro sente-se em toda parte [...] Um povo bom, amigo de cores berrantes, ruidoso, manso e amável, de admiração fácil, acolhedor e democrata [...] o povo mais doce do Brasil113.

O que se percebe nesse momento é o surgimento de uma relação imbricada entre criador, suas criaturas e espaço geográfico114, fomentada ainda hoje pelo poder público e pelos que zelam pela imagem do romancista. O universo criado pelo escritor serviu de enredo de escola de samba, tema de coleção de grife de roupa, sem falar nas inúmeras adaptações da obra para a televisão e para o cinema e, também, como inspiração para a criação de um projeto turístico que previa a construção de um parque temático que recriaria ambientes e personagens. Além disso, seu nome foi usado para vender desde de imóveis até material escolar no estado115. Uma relação tão íntima e inesperável que se tornou legitima a pergunta: “Jorge Amado criou a Bahia ou a Bahia criou Jorge Amado?116”. O que sabemos é que a imagem que o escritor promoveu da Bahia é a que prevalece ainda hoje nos discursos mais populares e vendida para o exterior117.

112 AMADO, Jorge. In ALBUQUERQUE, João Lins de. Antônio Olinto – memórias póstumas de um imortal. São Paulo: Editora de Cultura, 2009. p. 259. 113 AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 23-24, grifos meus. 114 Além do famoso Pelourinho na capital baiana, chamo ainda atenção em relação ao caso de Ilhéus, em sua dissertação de mestrado Isis Lima (2012) observa como sua representação literária desta cidade no interior da Bahia ajudou a reinventar e a revalorizar o patrimônio histórico-cultural ilheense. 115 Levantamento feito por Goldstein (2000). 116 Pergunta feita por Cleise Mendes na ocasião dos 80 anos do escritor. 117 Lembro aqui que que muitas vozes questionam esta versão. Dentre tantos, os trabalhos já citados aqui de Jocélio dos Santos, e, especialmente, vários textos de Osmundo Pinho apontam nesse sentido. Como também, os movimentos sociais, como o negro representados especialmente pelos blocos afro (Olodum, Ilê Aiyê, Timbalada, Malê de Debalê) e em defesa da religiosidade afro-brasileira.

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Questão de raça, um ideal de nação...

A diferença entre o discurso do processo de formação nacional dos anos 1930 e o dos anos 1970 é que o primeiro era voltado para reforço da nacionalidade brasileira e o segundo se voltou para valorização das raízes africanas, fato que se deve a fatores da conjuntura interna e externa: maior circulação de ideias e consequente proximidade entre os negros de todo o mundo, o desenvolvimento da difusão da cultura de massa, a derrocada do sistema de “substituição de importações” do pós-guerra e a necessidade de expandir mercado. Entre 1930 e começo dos anos 1960, elementos simbólicos da cultura negra foram de alguma forma reconhecidos e integrados na construção da imagem da nacionalidade mestiça e vozes da militância negra se levantam e se fazem ouvir. A Ditadura Militar persegue o movimento negro e sua voz é pouco ouvida118. Podemos ver também o governo militar divulgando a mestiçagem e a democracia racial como símbolos nacionais. Evidência disso foi a solenidade comemorativa ao Dia Universal contra a Discriminação, em 21 de março de 1969119, promovida pelo Ministério das Relações Exteriores. No evento, o sociólogo Manoel Diegues Júnior apresentou o texto “Razões Brasileiras contra a Discriminação Social”, que recorreu ao trecho bíblico “Não há judeu, nem grego, não servo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos somos um em Cristo” para explicar a diversidade étnica e a convivência pacifica entre povos tão diferentes dentro do mesmo território. Na Assembleia Geral das Nações Unidas do mesmo ano, ficou decidido que o ano de 1971 seria o Ano Internacional contra o Racismo e a Discriminação Racial e a instituição convidou seus Estados membros a adotar e/ou reforçar medidas contra a discriminação racial. A resposta brasileira foi o lançamento, por meio da Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos, de um selo comemorativo com tiragem de um milhão de exemplares, mostrando quatro elos de corrente unidas representando a união das quatro raças humanas120.

118 Com a instauração da ditadura militar, o TEN foi perdendo força, sendo praticamente extinto em 1968, quando Abdias do Nascimento partiu para o autoexílio nos Estados Unidos. Em fins da década de 1970, há uma nova ascensão dos movimentos negros como MNU (Movimento Negro Unificado), porém Karin Kossling (2008), ao analisar a documentação do Deops/SP observa que justamente no final dessa década e início da década de 1980 a vigilância do regime aos movimentos negros é intensa. 119 A data foi escolhia em lembrança ao “Massacre de Shaperville”, ocorrido em 1960 na cidade de Joannesburgo, capital da África do Sul, 20 mil negros protestavam contra a lei do passe, que os obrigava a portar cartões de identificação especificando os locais por onde eles podiam circular. Morreram 69 pessoas e cerca de 180 ficaram feridas. 120 Cf. SANTOS, Jocélio Teles dos. O poder da cultura e a cultura do poder. Op. cit.

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A atitude do governo brasileiro reforçava a negação da existência de segregação racial no Brasil, a quarta “raça” seria a amarela, cujo representantes seriam os orientais. Sendo assim, o discurso oficial reconhecia que as desigualdades raciais são decorrentes das diferenças sociais, a mestiçagem seria o que temos de positivo e singular e a democracia racial uma realidade. Enquanto isso, alguns intelectuais o movimento negro se referiam a essa formulação como mito, opondo a ideologia oficial do estado e ao lusotropicalismo121. Nesse sentido, Amado adota um discurso muito próximo do estatal, frisando a desigualdade social: “[...] o problema racial é consequência do problema social. Não existe problema racial isolado do contexto social. Se você isolar, vai errar na apreciação do problema e na busca de soluções. A solução não é você botar os pretos e brancos a se matarem entre si122”. Na reportagem para revista moçambicana Tempo, afirma, sem maiores explicações, que existe racistas, não racismo no Brasil e para Raillard diz que o povo não é racista, mas a elite seria123. Jorge Amado afirma que não foi incomodado pela ditadura militar, seus livros não foram censurados, mas teve restrições em jornais e revistas124. Podemos argumentar que essa “tranquilidade” se deve ao reconhecimento internacional do romancista e uma censura poderia gerar má impressão e/ou o regime pode ter compreendido que suas publicações eram uma espécie de propaganda positiva125. Sobre a questão racial, o que se observa é que seu discurso repousa nos mesmos termos, o que muda são algumas palavras. Sendo assim, a partir dos anos 1960 suas entrevistas e discursos sobre o tema são muito parecidos:

121 Influenciado pelo movimento negro internacional, especialmente o négritude que tinha como proposta negar a política de assimilação à cultura europeia que os povos negros vinham sofrendo valorizando o orgulho racial e as raízes africanas que tinha como referencias intelectuais como: Aimé Césaire, Léon Damas e Léopold Sédar Senghor. O movimento se opunha a ideologia oficial do Estado brasileiro que visava a assimilação, a democracia racial e o lusotropicalismo. 122 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. Op. cit., p. 10. Chamo atenção para interessante dissertação sobre Wilson Simonal, o historiador Gustavo Alonso fez uma análise sobre negação do racismo em algumas personalidades negras do período. Este revela que negros famosos como Fio Maravilha, Pelé e próprio Simonal, sofreram duras críticas pela esquerda por negarem o preconceito racial colocando a questão no problema de classes como o fez Jorge Amado. Apontado que o personagem Pavoroso, o Preto que Ri, criação do cartunista Henfil faz uma crítica a esse tipo de atitude pelos negros. 123 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit. 124 Sobre a influência da Ditadura Militar em sua vida, Amado (1981) afirma que muitos amigos se foram exilados e seu irmão perdeu o emprego. Soube que foi realizado interrogatórios sobre ele e que um capítulo de um livro seu, publicado em uma revista, saiu cortado com espaços em branco. Ao ser questionado pela publicação Pasquim qual seria o motivo de ter sofrido censura afirmou: “É incomodo dizer mas é preciso admitir que sou hoje um escritor popular no Brasil e não é fácil tocar em certos nomes” (Quarenta e cinco anos escrevendo, vinte novelas publicadas. Para que? Para quem, Jorge Amado? Pasquim, 11 a 17/03/1977, p, 15.) 125 Argumentos também defendidos por Calixto (2012).

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– Se a maioria dos bens a maioria dos bens de cultura brasileiros foram trazidos por escravos de suas terras distantes, como se explica que todos os negros, aqui, ainda estejam em situação de inferioridade? – Você ainda não entende bem o Brasil, se já entendesse saberia que no Brasil há racistas – até na Bahia há racistas – mas não há racismo. A filosofia do povo brasileiro é anti-racista. Quanto à posição dos negros ser ainda inferior é um problema de classe e não de raça, recorde-se que há menos de um século os negros eram escravos126.

Apesar de haver vários comentários em sentido contrário, pelas afirmações citadas acima e tantos outros ao longo de sua carreira, não sei até onde pode-se afirmar que Amado lutou contra o racismo em conjunto com o movimento negro organizado, já que mal reconhecia a existência desse127. Sua preocupação passa a ser explicar a Bahia, como modelo para pensar o Brasil e com ela vem a valorização e a assimilação da matriz negra. Para o romancista, a mestiçagem era uma forma de suplantar práticas racistas e afirmava que as considerava segregacionistas; as ideias de valorização do negro e da negritude eram uma espécie de moda. Em manuscrito datado de 1975, o escritor demonstra todo seu descontentamento com a apresentação brasileira no Segundo Festival de Arte Negra, ocorrido em Lagos, na Nigéria, afirmando que tanto nesse como no primeiro, ocorrido no Senegal128, houve uma distorção da cultura brasileira ao não demonstrar sua faceta mestiça e que a verdadeira presença da cultura da África e dos negros no Brasil foi deixada de fora, pois a organização brasileira teria adotado uma posição falsa e racista ao mostrar “gente da cor mais negra possível e obras de arte feitas por artistas também mais negros possíveis”129. Da mesma forma, considerava o discurso dos negros norte-americanos radical, apontando como o extremo oposto do Brasil: “[...] a filosofia de vida ianque é racista [...] Exatamente o contrário do Brasil, onde existem [...] centenas de milhares, talvez milhões de racistas, mas onde a filosofia de vida é antirracista [...] Digo o povo, não incluo as chamadas

126Jorge Amado: filho de Oxóssi continua materialista. Tempo. Maputo, 13/06/1971. 127 Nesse sentido Rita Godet (2014) afirma Jorge Amado foi um dos principais protagonistas da luta contra o racismo. Calixto (2011) aponta que o autor ia ao encontro do discurso da negritude e que apesar de sua interpretação de democracia racial não ser a mesma que a utilizada pelo movimento, Amado era bem visto pela comunidade negra. Mas como se observa o movimento negro pregava justamente o que o escritor era contra: “O movimento negro organizado ‘africanizou-se’. A partir daquele instante, as lides contra o racismo tinham como uma das premissas a promoção de uma identidade étnica específica do negro. O discurso tanto da negritude quanto do resgate das raízes ancestrais norteou o comportamento da militância. Houve a incorporação do padrão de beleza, da indumentária e da culinária africana” (DOMINGUES, 2007, p. 116). 128 Jorge Amado afirma que este evento ocorrido na capital Dakar em 1966 foi igual ao segundo que deu espaço aos negros não aos mestiços. Segundo o levantamento de Dávila (2011) a história foi diferente, Henri Senghor tentou colocar na comitiva representantes do TEN, sem sucesso. Mas conseguiu publicar num jornal do país africano um texto de Abdias do Nascimento denunciando a falácia do discurso da democracia racial. 129 Presença da África [Segundo Festival Internacional de Artes Negras]. [S.I.], jan. 1975. 4f.

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elites130”. Na sua percepção a mestiçagem era o oposto do racismo: “[...] não existe nenhuma outra solução verdadeira além da mistura, além da miscigenação, da mestiçagem. O mais é racismo, evidente ou mascarado é racismo131”. Sugerindo essa como uma solução universal para o problema da discriminação racial. Uma outra observação digna de nota é a mudança do discurso do autor: se antes suas narrativas eram sobre eles, demonstrando até um certo incômodo sobre132, vemos que nesse momento ele se inclui como “legitimo baiano”, sendo assim, mestiço: Sou um velho brasileiro, de sangues indígenas – minha mãe era uma pequena índia cheia de sabedoria –, africano e português, quem sabe de sangue judeu, de sangue árabe [...] Os sangues se misturaram e cada vez mais se misturam no Brasil e essa é a nossa honra e esse é o nosso orgulho [...] Bahia é a mistura de Lisboa e de Luanda133”.

Como já mencionado anteriormente, como embaixador da baianidade no mundo e Brasil afora, Amado colocou sua produção literária a serviço de tal, criando uma identificação entre o discurso literário e o extraliterário134, em que o escritor se confunde e funde com suas personagens, que por sua vez ajudam a fomentar uma “ideia de Bahia”135.

130 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. Op. cit., p. 381. 131 A flor e a poesia nascem da mistura. [S.I.], [19--]. 4f. 132 Em começo de carreira afirmava: “Pequeno burguês com vícios de origem, não possuo a grande poesia, a grande pureza, a força, que hoje, no mundo, só tem o proletariado revolucionário [...] eles falam uma nova linguagem nova e verdadeira” (AMADO, Jorge. Sobre romance internacional. Op. cit., p. 2). 133 Discurso ao receber o título de Doutor Honoris Causa em Língua e Literatura pela Università degli Studi di Bari, Itália. [S.I.], [1990]. 6f.. Trouxe esse trecho de 1990 por ser mais elucidativo, o que não significa que nas décadas que se detém a analise desse trabalho ele não tenha feito afirmações em tal sentido, como segue em 1971: “Quanto a mim quis apenas fixar, se possível, dentro do termo de minhas limitações, homem nascido de tanta mistura e de como ele povoou democraticamente sua nação para nela construir sem preconceitos” (AMADO, 1972, p. 28, grifos meus). Em um momento em suas memórias fala que é “branco baiano” (2012, p. 380) para se diferenciar dos outros em um evento nos Estados Unidos. 134 Como observou Ilana Goldstein (2000) no discurso literário e extraliterário de Jorge Amado, a mestiçagem entre portugueses e africanos era uma espécie de eixo catalizador de outras características do Brasil, entre as quais o otimismo e a garra do povo, mesmo em meio à miséria e ao sofrimento; a predominância da amizade e da solidariedade nas relações cotidianas, a valorização da festa e a riqueza e a originalidade de nossa cultura popular. 135 Um claro exemplo de como a inter-relação Bahia, Jorge Amado e seus personagens ainda é fomentada pela instituição que zela o seu nome, a Fundação Casa de Jorge Amado (FCJA), foi que logo que o pugilista baiano Robson Conceição ganhou a medalha olímpica de ouro, a instituição publicou em uma rede social uma homenagem ao atleta, sua foto acompanhada do emblemático parágrafo inicial do romance Jubiabá: "O negro Antonio Balduíno lutava contra Ergin, o alemão, 'campeão da Europa central', sob os olhos do povo, sentado nos bancos do Largo da Sé. Pretos, brancos e mulatos torciam por Balduíno que, ao final, sagrou-se vencedor”. O mesmo aconteceu ao fim dos Jogos Olímpicos, para homenagear todas as conquistas do estado (além de Conceição, o canoísta Isaquias Queiroz e o técnico da seleção brasileira de futebol), recorreu a um trecho de Bahia de todos os santos: “Baiano é um estado de espírito: Baiano quer dizer quem nasce na Bahia, quem teve este alto privilégio, mas quer dizer também um estado, significa certa concepção de vida, quase filosofia, determinada forma de humanismo. Eis porque homens e mulheres nascidos em outras plagas, por vezes em distantes plagas, se reconhecem baianos apenas atingem a fímbria desse mar de saveiros, as agruras desse sertão de vaquejadas e de milagres, os rastros desse povo de toda resistência e de toda a gentileza. E como os baianos podem ser reconhecidos, pois de logo se pode distinguir o verdadeiro do falso. Aqui entre nós: tem gente há vinte anos tenta

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Esse jogo ficção e realidade será constante. O escritor trata suas personagens como se elas tivessem vida própria e esse elemento está presente em Tenda dos Milagres (1969), cuja orelha da segunda edição foi assinada pelo poeta e sociólogo Fausto Pena, personagem fictício. Livro dileto de Jorge Amado, é considerado pelo próprio autor um romance de tese, uma declaração de princípios antirracista que tinha como objetivo falar da formação da nacionalidade brasileira136”. Em entrevistas afirmava que o livro reflete exatamente seu pensamento, autorizando, assim, a correspondência autor/personagem, no caso, o protagonista Pedro Archanjo137. O que se observa é um criador orgulhoso de sua produção, que, como nos romances do decênio de 1930, tinha como objetivo a denúncia138 afirmando que era um livro revolucionário sobre a luta do povo brasileiro contra o racismo. Assim, o Tenda se tornou uma espécie de referência autorizada do pensamento de Amado sobre a formação da nação. Partindo da premissa que autor e obra literária são correspondentes, se torna comum ver análises tratando o romancista como um intérprete do Brasil, quase um cientista social, geralmente o relacionando a outro intelectual nordestino, Gilberto Freyre139 devido a defesa e a exaltação da mestiçagem como elemento central na formação da nacionalidade brasileira. Cada vez mais se dava destaque a influência freyreana em detrimento da comunista. Claro exemplo é que o antropólogo Charles Wagley, ao anunciar no jornal The New York Times o lançamento de Sobrados e Mucambos nos EUA, em 1963, afirmava que Gabriela, cravo e canela não poderia ter sido escrita antes das obras de Freyre. Da mesma forma, no momento da publicação de Tenda dos Milagres nesse mesmo país, em 1971, Amado chega como divulgador do ideal de democracia racial140, aquele que projetava positivamente a imagem do Brasil interna e externamente.

obter seu passaporte de baiano e jamais consegue, pois não é fácil preencher as condições e como diz o moço Caymmi, nosso poeta, ‘quem não tem balangandãs não vai ao Bonfim’”. 136 Cf. RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit. 137 Em entrevista para a revista Tempo afirma: “Leia um livro meu chamado Tenda dos Milagres, entenderá”. Como também, era comum citar falas de Pedro Archanjo, personagem principal do romance, como a clássica “meu materialismo não me limita”. Pode-se colocar Archanjo como alter-ego de Amado, pois era o personagem que o autor mais se identificava aproximando suas trajetórias como afirmou para um jornal português: “Pedro Archanjo reflete o homem que faz um determinado caminho, que não abandona o seu povo, sua gente, ele se torna um homem ilustre, mas continua no Candomblé, quando tem que lutar contra o delegado de polícia (Salve Jorge!. Programe, 31/10/1981, p. 6-7.)”. 138 É importante que a literatura atual denuncie a existência dos problemas e contribua para que sejam superados. (“Não sou papel carbono” (Entrevista concedida a Carlos Soullé do Amaral). Veja. 17/09/1969, p.6.) 139 Dentre tantos, lembro os trabalhos de Calixto (2011), Goldstein (2000) e Schwarz (2008). 140 Na ocasião, sua obra foi objeto de estudo na Universidade Estadual da Pensilvânia, segundo o Jornal do Brasil, Jorge Amado teria declarado a imprensa americana: “Meu país é uma democracia racial, embora politicamente tenha conhecido ditaduras” (10/09/1971, p. 15), no mesmo sentido O globo anunciou “Jorge Amado fala em Nova York da nossa ‘democracia racial’” (10/09/1971, p. 4).

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É importante salientar novamente que a percepção de Jorge Amado e Gilberto Freyre sobre a formação nacional não era bem recebida pelo movimento negro nem por uma intelectualidade que naquele momento buscavam desconstruir o mito da democracia racial141. Ao receber o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Degli Studi de Bari, na Itália, Amado comentou: “Disseram também que tenho a paixão da mestiçagem, e dizem-no com raiva racista. Honro-me infinitamente de ser um romancista da nação mulata do Brasil. Creio que, querendo ofender-me, esses críticos me exaltaram e definiram142”. No livro O genocídio negro brasileiro, de 1978, ano do renascimento do movimento negro organizado143, Abdias do Nascimento aponta Jorge Amado como aquele que falsamente valorizou a cultura africana e aponta a folclorização, a esteriotipação dos personagens e a comercialização desta cultura na sua obra144. No início dos anos 1980, o então deputado federal, novamente dirigiu críticas as obras do romancista afirmando que elas reproduziam o racismo à brasileira145. O escritor não se manifestou naquele momento, mas a Assembleia Legislativa do Estado Bahia, presidida por Luís Eduardo Magalhães, filho de ACM, teria tomado as dores chamando o militante negro de “profissional de negritude”, defensor de uma “ideologia insana” e “ideólogo do ódio”146. Mais uma demonstração da imbricação entre a ideologia oficial fomentada pelo poder público e a imagem que o romancista promovia tanto no discurso intelectual como no literário. Lembrando que, nos anos 1980, a militância negra no Brasil tomou um rumo no sentido de se reconhecer pertencente a uma diáspora africana, buscando redefinir como negras práticas culturais que antes eram pensadas como misturadas, mestiças ou afro-brasileira. Em contrapartida, muitos intelectuais, como Jorge Amado, atribuíam essa atitude à influência estrangeira, principalmente a norte-americana.

141 “Como lutar contra o racismo se o racismo ‘não existia’?”, segundo pesquisa de Verena Alberti e Amilcar Araújo Pereira (2005), que colheram relatos de militantes do movimento negro, essa era a principal pergunta que se apresentava na década de 1970. Além disso, esses relataram experiências de rompimento com o mito da democracia racial. 142 Discurso ao receber o título de Doutor Honoris Causa em Língua e Literatura pela Università degli Studi di Bari, Itália. [S.I.], [1990]. 6f. 143 Ano de fundação do MNU, quando as reivindicações negras voltam a cena política. 144 Sua crítica se amplia a tradição baiana de estudos e abordagem da questão racial desde Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro passando por Amado e Pierre Verger, chegando em Waldir Freitas Oliveira. 145 Deputado volta a criticar Jorge Amado. O estado de São Paulo, 23/11/1983. 146 Segundo o jornal o Estado de São Paulo, artistas, escritores e um prefeito de Salvador saíram em defesa do escritor em 13/11/1983. Chama tenção que o jornal destaca a posição do militante negro e dias depois (27/11/1983) publica um texto intitulado Jorge Amado, racismo em xeque com uma espécie de resposta de Nascimento, afirmando que admira a pessoa, mas critica o escritor citando estudos que apontam o viés racista de sua obra e ainda questiona a ausência de negros na Assembleia Legislativa baiana, estado “majoritariamente negro” e encerra lembrando da produção antirracista de outro baiano, Guerreiro Ramos (Resposta aos racistas da Bahia. Também disponível em: http://www.abdias.com.br/atuacao_parlamentar/deputado_discursos.htm).

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Provavelmente motivado por essas críticas e em meio a esse debate, é na década de 1980 que foram encontradas declarações do escritor com maior veemência sobre sua percepção da questão racial: “Eu me movo dentro de um mundo afro-brasileiro. Apenas ele é afro- brasileiro, não africano. Digo isso porque no momento está muito em moda ser africano [...] faço parte da mistura que se processou aqui [...] Aqui na Bahia estou preso à contingência afro- baiana [...] Eu me criei nesse ambiente. A vida baiana é minha vida147”. Demonstrando que tinha ciência das críticas que sofria por parte de militantes do movimento negro entre outros, afirma: Considero que todos eles são extremamente positivos, desde que representem uma afirmação dos bens dos bens trazidos pelos negros à formação da cultura brasileira. Eles só se tornam negativos quando se opõem à identidade brasileira. Mas, quando eles querem a todo custo ser africanos, esta é a meu ver uma forma de racismo [...] é algo superficial, visto que a realidade é muito mais forte. E a realidade é o sincretismo no patrimônio cultural e religioso, e é a mistura das raças. E cada vez mais148.

Em Navegação de cabotagem, em um dos poucos comentários sem data, o romancista parece ter mandado uma crítica na medida para Nascimento: “Os radicais da negritude nacional são mulatos brasileiros, uns mais escuros, outros mais claros, cujo único ideal é serem negros norte-americanos, de preferência ricos149”. Nos anos 1990, Amado concede uma entrevista criticando os “radicais da negritude”, reproduzindo o trecho citado anteriormente e afirmando que esses grupos tentam impedir a liberdade de criação. Ao ser perguntado sobre as medidas de ação afirmativa, no sentido de positivar a negritude, se essas seriam racistas ou não, o escritor não responde diretamente, mas afirma “[...] não pode, ao recriar a vida, falsear a realidade, o que aconteceria se os descendentes dos negros no Brasil surgissem nas páginas dos livros, nos palcos do teatro, nos vídeos da televisão, exercendo ofícios que habitualmente não exercem. A ascensão social do negro no Brasil começou muito recentemente150”. As opiniões e polêmicas entre Jorge Amado e Abdias do Nascimento cristalizam as divergências que existiam naquele momento sobre a questão racial brasileira. Trajetórias intelectuais que em certo momento - idos dos anos 1940, com o surgimento do TEN151 - pareciam se aproximar. Lembrando que Nascimento dirigia suas críticas diretamente a Amado,

147 “Há uma única linha de unidade em meus livros, que é a fidelidade ao povo”. O estado de São Paulo, 17/05/1981, p.5. 148 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit., p. 93. 149 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. Op. cit., p. 217. 150 Jorge Amado crítica “radicais da negritude”. O estado de são Paulo, 18/12/1994. 151 Quando a instituição encenou uma peça baseada em Terras do sem fim.

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mas não foram encontrados registros do romancista citando o militante negro. Assim, observa-se que a desigualdade em qualquer âmbito, seja social, seja racial, passa a ser minimizada no discurso do escritor. Ele reconhece as dificuldades do povo, como a pobreza, mas parece que acredita que podem ser suplantadas no âmbito da cultura e com sentimentos como amor, esperança e coragem: [...] quero dizer amor por essa terra que é nossa, por esse chão tão sofrido e tão belo e por esse povo tão extraordinário, esse povo mestiço. Nós somos o único país mestiço do mundo. Saímos completamente dos padrões. Todos esses horrores, toda miséria, toda essa infinita pobreza…tudo isso terá fim. Nós temos construído e continuaremos a construir tanto uma civilização, quanto uma cultura original. E digo aos jovens que devem confiar, que devem ter confiança nesse povo e apoiar esse povo, vivendo de uma forma ardente a vida152.

Um fator que chama atenção na elaboração do romancista é a ausência pouco aprofundada do indígena na sua percepção de formação nacional e a lembrança do árabe e do japonês como formadores da cultura nacional153. Com um pensamento arquitetado com base na concepção que a miscigenação trouxe conciliação, o discurso do romancista se torna insistente, dado que em praticamente todas suas entrevistas o tema era abordado154. Que quando observado mais atentamente parece um tanto quanto confuso. Pois repousa na ideia de ausência de preconceito racial: “O povo brasileiro é a negação do racismo155”, mas que também afirmava que sua ligação com o candomblé não era por motivos religiosos, mas pela militância antirracista. Em certas ocasiões, diferenciava racismo de práticas racistas; em outras, citava o preconceito de cor da elite nacional, sem dar maiores explicações ou exemplos. Algo que torna mais difícil a compreensão, considerando que Amado ainda afirmava que o preconceito racial era decorrente do problema de classe156. Noto também, que além de uma adesão a percepção freyreana, outro argumento que estava presente nos discursos de Amado, de forma menos aprofundada, era a formulação de Léopold Senghor sobre a latinidade, como já citado, uma vez no Brasil, em 1964, o intelectual senegalês fez discursos conclamando o Brasil pela latinidade como fosse uma manifestação dos

152 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. Op. cit., p. 34. 153 Em seus manuscritos a presença do índio é sempre citada, mas não desenvolvida como O Brasil mestiço. [S.I.], 1982. 2f, Presença da África [Segundo Festival Internacional de Artes Negras]. [S.I.], jan. 1975. 4f. 154 Que Goldstein chama de “samba de uma nota só” devido a insistência. Noto que também que nesse momento o escritor quase não concedia entrevistas pessoalmente, sendo as perguntas enviadas e respondidas manualmente o que contribuía para que perguntas similares tivessem respostas praticamente iguais. 155 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit., p. 93. 156 Cf. Salve Jorge!. Programe. Op. cit e AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. Op. cit.

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países de língua portuguesa, notadamente as colônias, similar ao que representava negritude na África e propunha um intercâmbio entre ambas: O que é notável, no caso do Brasil, é que acolhendo todos os sangues do mundo, como aluviões férteis, vós os submetestes ao cadinho da latinidade, realizando uma simbiose superior aos elementos que a compõem, essa simbiose que se chama o Homem Brasileiro. E este homem vós o fizestes melhor do que instituído: vós o educastes. Porque não há desenvolvimento sem quadros motores que pensem, criem e dirijam [...] E nossa negritude é aberta aos pólens de todas as civilizações, e, em primeiro lugar, ao pólen da latinidade157.

Em sentido próximo, no manuscrito Bahia, capital de todas as Áfricas e também no seu Discurso Honoris Causa na Universidade de Bari afirma “Nós, brasileiros ao mesmo tempo latinos e a africanos, a Bahia é Lisboa e Luanda, mas acrescento que nosso umbigo é na África158”. Em linhas gerais, o que se nota nas declarações do romancista a partir daquele momento é que elas oscilavam entre a negação do racismo e um relativo reconhecimento da sua existência e a miscigenação como a fonte de cura para todos os males. Amado se torna uma espécie de porta voz dessa interpretação da questão racial brasileira, ganhando status de autoridade sobre o assunto sendo sempre solicitado em entrevistas e discursos que falasse sobre o tema.

Equilíbrio entre opostos? Gilberto Freyre e Jorge Amado

Equilíbrio entre opostos, equilíbrio de antagônicos e outros termos afins são uma das bases do modelo explicativo freyreano, que desenvolve especialmente em Casa-grande & senzala159 o conceito que gravita em torno da ideia que, no Brasil, os opostos, senhor x escravo, branco x negros, casa-grande x senzala, graças a capacidade colonizadora dos portugueses, tenderam-se a confraternizar, criando uma bela civilização nos trópicos, daí a utilização do “&” no título indicando conjunção entre elementos aparentemente opostos.

157 SENGHOR, Léopold. Discurso proferido na sessão de 23 de setembro de 1964, publicado no DCN de 24 de setembro de 1964, p. 559-560. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/visitantes/serie-estrangeira/decada-1960- 69/pdf/Leopold%20Senghor_230964.pdf 158 Grifos meus. 159 Cito Casa grande & senzala (2003): “A força, ou antes, a potencialidade da cultura brasileira parecemos residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados [...] Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se veem mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completarmos num todo, não será com o sacrifício de um elemento ao outro” (p. 418, grifos meus). Segundo Elide Rugai Bastos (2013), Freyre introduziu esse conceito por influência do filosofo inglês Herbert Spencer.

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A princípio podemos pensar Jorge Amado e Gilberto Freyre como parecidos, ambos intelectuais nordestinos advindos de uma certa elite, destacados no contexto da efervescência cultural dos anos 1930. Mas eles vão aparentemente se distanciando seja pela defesa da “escola baiana” e da “escola pernambucana” de estudo das questões raciais, respectivamente, seja pelas orientações políticas, o primeiro mais à esquerda; o segundo mais à direita. Um escritor procurou escrever uma literatura de apelo popular; o outro é um sociólogo que interpretou e positivou a formação do nosso povo do ponto de vista da casa-grande, mas ambos, ao final, irão entrar em acordo sobre formação da nacionalidade brasileira. Jorge Amado fez discursos em termos muito próximos aos do freyreano, como vemos no excerto abaixo, em que está implícita a ideia de equilíbrio entre opostos que reverberou na democracia racial que formou o povo baiano: No caso da Bahia, qual a marca fundamental? Eu vos diria, Senhora, que essa marca é a mistura. Aqui tudo se misturou, num amálgama colossal, sangues, raças, religiões, costumes, negros, brancos, índios e mamelucos, ricos e pobres, e mulatos com mulatas, mestiços com mestiças e foi surgindo essa cor de pele e essa consciência democrática, a condição cordial e a doçura, o prazer sensual de cada instante e de todas as minucias [...] as contradições encontram o caminho da convivência160.

Durante o percurso elaborado por esta tese, foram observados momentos de afastamento e diálogo entre os dois intelectuais. O que se percebe é uma relação cordial, de respeito e reconhecimento mútuo profissionalmente161, que não poupam certas críticas e com algumas marcas da já notória vaidade do sociólogo162. Em suas memórias, Amado cita duas vezes a vaidade de Freyre, em uma delas diz: “Ligam-me a Gilberto Freyre estima e admiração, mas não fui vassalo de sua corte mas tive plena consciência da significação de Casa-grande & Senzala [...] e a proclamei a quatro ventos: em suas páginas aprendemos como somos brasileiros, mais que um livro foi uma revolução163”. Ainda afirma que as divergências políticas os afastaram. Na década de 1950, enquanto o baiano

160 AMADO, Jorge. Carta a uma leitora sobre romance e personagens. Op. cit., p. 28, grifos meus. 161 Interessante observar que Gilberto Freyre sempre cita Amado como amigo, mas o contrário não acontece. Não consta nos registros um relacionamento próximo entre os dois, mas sim encontros profissionais e declarações elogiosas. 162 Goldstein (2000) aponta que na construção da imagem Amado adotou uma postura mais rebelde e humilde, fazia questão de enfatizar sua origem popular, ligado a “putas e vagabundos”. A antropóloga ainda aponta a cumplicidade do romancista com seus biógrafos que enfatizava “passos sacralizadores” de sua biografia, como também, a seleção de informações divulgadas e o marketing que envolveram a construção do sucesso do romancista. 163 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. Op. cit., p. 48.

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intensificou sua militância de esquerda, o pernambucano se aproximava da direita como ideólogo do regime salazarista. Ao que tudo indica, houve um breve diálogo entre os intelectuais nos anos 1950. Um fato que exemplifica o ápice do sectarismo político do escritor baiano, que Freyre fez questão de contar, mas que Amado, por razões óbvias, nunca mencionou em sua biografia: o romancista teria convidado o sociólogo em nome do governo soviético para realizar na URSS uma viagem nos moldes da que fez na África colonial portuguesa, fato narrado duas vezes: [...] recebo do escritor Jorge Amado longa e afetuosa carta, trazida a Apipucos por portador de confiança, em que o autor de Capitães da Areia, laureado agora em Stalingrado, me transmite convites da China e da Rússia Soviéticas e das Repúblicas Socialistas da Europa para visitar tais países onde – assegura- me o admirado escritor, com a sua autoridade máxima – seria eu acolhido com o maior prazer [...] Dado meu interesse em observar relações entre raças dentro das novas repúblicas socialistas, especialmente na União Soviética que vem seguindo neste particular política corajosa e – paradoxalmente – cristã, são países que tenho obrigação quase profissional – pois sou um quase profissional da Antropologia e da Sociologia, embora me considere principalmente escritor – de conhecer. São, portanto, convites, esses, que posso vir a aceitar. Mas só nas mesmas condições em que aceitei o do Ministro do Ultramar da República Portuguesa. Isto é, com inteira independência [...] Acentuo, porém, que os convites dessas repúblicas socialistas e da União Indiana, chegando-me às mãos no momento justo em que alguns devotos das chamadas ‘esquerdas’, tanto no Brasil como em Portugal e na Índia, acusam- me, nos seus delírios de carolice política, de ‘vendido ao fascista Salazar’ ou a ‘serviço do decadente Portugal’, parecem comprometer ou prejudicar tais críticas em suas raízes164.

Em outro relato, de 1958, afirmou:

Estive para ir à União Soviética: meu amigo Jorge Amado, que muito admiro – assim como admiro ao também ‘vermelho’ Astrogildo Pereira – por seu talento e pó sua coragem de confessar-se comunista à la russe, chegou a escrever-me em têrmos positivos sôbre o assunto. Mas como comecei a receber insistentes pedidos para assinar manifestos políticos pró-Paz e contra isto ou contra aquilo, a todos recusando minha assinatura, associei tais pedidos ao convite para aquela viagem; e passei a desinteressar-me do assunto165.

Esse fato elucida três elementos: 1) um cientista procurando provar sua “neutralidade”, 2) o prestígio de seu trabalho sociológico e 3) acima das divergências ideológicas, a necessidade de “estudos científicos” para legitimação de diferentes povos.

164 FREYRE, Gilberto. Um Brasileiro em terras portuguesas: introdução a uma possível luso-tropicologia acompanhada de conferências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. 438p. (Documentos Brasileiros, 76). Disponível em: www.fgf.org. 165 Idem. Freyre da Casa Grande. Visão. São Paulo, 28 fev. 1958, p. 18-21.

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Pelo lado do sociólogo, uma nota publicada pelo site da Fundação Gilberto Freyre narra: Em 1973, Gilberto Freyre descobriu que na enciclopédia Século XX, dirigida pelo ex-governador Carlos Lacerda, recebeu verbete mais curto que o de Jorge Amado. Não gostou, o que levou Lacerda a escrever, explicando que 'a importância dada a um autor não se mede pelo número de linhas. As 24 linhas que lhe são dedicadas são excedidas em 8 linhas pelo verbete de Jorge Amado porque a lista de obras de Jorge é mais numerosa do que a sua. Em nenhuma linha está dito que ele escreveu obra fundamental. No verbete Gilberto Freyre está dito: 'Renovador do estudo da sociedade no Brasil com Casa Grande & Senzala, obra fundamental da sociologia brasileira' [Em uma observação no fim da carta, Lacerda fala do acordo entre Stalin e Hitler em 1938: ] ' Não me dou com o Jorge desde os tempos do pacto teuto-soviético'166.

Profissionalmente, Freyre sempre foi crítico do engajamento político das narrativas amadianas dos decênios de 1930 e 1940, mas, mesmo assim, as considerava documentos sociológicos, preferindo José Lins do Rego167. Repetidas vezes, Amado elogiou a obra mais famosa do sociólogo pernambucano. Na ocasião de 25 anos da obra, escreveu evidenciando a inovação na forma e no conteúdo: O abalo produzido na opinião pública por Casa-Grande & Senzala foi decisivo. Uma época começava no Brasil, o aparecimento de tal livro era a melhor das provas. [...] De súbito, eis que um escritor admirável, dono de uma língua envolvente, brasileira, sensual, quente e íntima do leitor, surge e prova que tudo aquilo era rematada besteira, que um livro de pesquisa e estudo pode ser lido com prazer, pode ser saboreado como um poema, pode ser literatura da melhor, além de realmente ensinar e fazer pensar [...] veio abrir caminhos para que se iniciassem os mais variados estudos, para que outros fôssem retomados, levantando problemas, dúvidas, discussões. Basta lembrar os estudos afro-brasileiros, olhados com receio e desprêzo, esquecidos os trabalhos de Nina Rodrigues e Manuel Quirino168.

No ano seguinte, Gilberto Freyre saúda Gabriela, cravo e canela: Não tenho perguntas a fazer, neste momento, a Jorge Amado. Aqui estou para lhe trazer a minha admiração: uma admiração que com o tempo só tem feito crescer; e que agora está quente como nunca, enriquecida de combustível novo: acabo de ler Gabriela, Cravo e Canela. É um livro em que se afirma a plena maturidade criadora de um escritor que mal saído da adolescência já era uma força de renovação das letras brasileiras169.

166 Lacerda encara a vaidade do mestre. Disponível em: www.fgf.org, colchetes meus. 167 Algo será melhor notado na próxima parte nos capítulos que tratam da recepção dos romances de Amado. 168 AMADO, Jorge. Casa Grande & Senzala e a revolução cultural. In: AMADO, Gilberto et al. Gilberto Freyre - sua ciência, sua filosofia, sua arte: ensaios sobre o autor de "Casa-Grande & Senzala" e sua influência na moderna cultura do Brasil, comemorativos do 25º aniversário da publicação deste seu livro. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1962. Dentre outros momentos lembro: Navegação de Cabotagem (2012), Conversando com Jorge Amado (1990) e em seus discurso de posse para a ABL. 169 FREYRE, Gilberto. Uma meia-raça talvez necessária. Diário de Pernambuco. Recife, 22/11/1959, p. 4.

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Assim, houve uma troca de elogios em termos parecidos, pois se o livro mais notório do sociólogo foi tratado pelo romancista como revolução, o sociólogo trata o romance de maior repercussão do escritor baiano como renovação. Freyre nota uma aproximação, apesar das diferenças:

Jorge continua um revolucionário, um inovador, um renovador. Da minha parte, creio continuar antes um revolucionário que um conservador, embora reconheça ser justa a discriminação de alguns críticos quanto ao meu modo de ser revolucionário; o de um revolucionário, desde jovem, com alguma coisa de conservador [...] Sendo assim contraditório, posso sentir afinidades com um Jorge Amado, por um lado, e, por outro, com o mais conservador dos políticos ou dos acadêmicos170”.

Em uma entrevista quase 25 anos depois, Freyre sustenta tais afinidades e coloca Amado na lista dos que – igual a ele – desenvolveram conteúdos com genialidade e criatividade no Brasil171. Talvez em uma tentativa de diferenciação, chama atenção que mesmo muito tempo depois de ter se afastado do partido, o sociólogo sempre trata Amado como comunista, de esquerda, ou com outras palavras afins. No dia do Golpe Militar de 1964, Freyre escreve defendendo a pluralidade partidária e cita amigos de todos os partidos com Jorge Amado sendo seu amigo comunista “[...] minha velha e até hoje inalterada amizade com o escritor comunista – honesta e desassombradamente comunista- Jorge Amado172”, mas que não o via como um líder intelectual do partido ou desta vertente política. Já os elogios de Amado a Freyre, além de considerar revolucionaria as formulações presentes em Casa-Grande & Senzala, se assentam numa das características que esse mais valorizava em si mesmo e na sua obra a partir dos anos 1960: a ausência de sectarismos. Atribui como característica positiva da obra sociólogo a ausência de comprometimento ideológico e que usa “todas” ideologias quando necessário e é isso que o faria “extremamente brasileiro”173. Dadas as considerações anteriores, o grande ponto de acordo entre os dois intelectuais se dá sobre a formação da nacionalidade brasileira, especialmente em relação ao negro e o papel da mestiçagem como essencial nesse processo. Para elucidar melhor, recorro a duas entrevistas concedidas em 1981 e 1983.

170 Idem, ibidem, grifos meus. 171 D’ANDREA, Moema Selma. A tradição re(des)coberta. Op. cit. 172 FREYRE, Gilberto. Excessos que a dignidade pernambucana repele. Diário de Pernambuco, 29/03/1964, p. 4. 173 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit., p. 94-95.

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Antonio Espinosa pergunta ao romancista: “A solução é fazê-los dormir uns com os outros?”. Amado responde: “Exato. Não há outra solução para o problema de raça no mundo senão a mistura. Não há outra e, se tiver, que me apresente...quero ver!174”. No cinquentenário de Casa-Grande & Senzala, Moema D’Andrea pergunta a Freyre: “[...] No prefácio à primeira edição da obra, o senhor diz: ‘A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala’ [...] o senhor ainda continua afirmando que a miscigenação foi fator diluidor da dominação do senhor de escravos, ou reformulou, de alguma maneira essa tese?”, o sociólogo responde: “Sustento a tese. E sustento a tese muito animado para isso”. Termina citando aprovação de um historiador britânico, e a entrevistadora continua: Quer dizer, nesse caso os outros deveriam imitar?”. O sociólogo afirma: “Sim, imitar por países que tenham problemas semelhantes ao Brasil175”. Assim, observamos que para ambos a mistura é solução para o Brasil e para o mundo. O ideário regionalista e nacionalista também parece ser um forte elo entre eles e suas obras. Os dois procuraram evidenciar a singularidade da região, que representariam o Brasil mais autêntico, rechaçando ideias que consideravam importadas, especialmente consideravam que havia a importação do racismo norte americano por parte de alguns brasileiros. Alguns trabalhos apontam Amado como o maior divulgador das ideias freyreanas, pois as popularizou em suas obras176. Pode-se dizer que, em parte, é verdade e ele pode ser considerado até um continuador, pois Freyre morre em 1987 e é a partir da década de 1980 que vemos com maior frequência o romancista em suas declarações e discursos, especialmente internacionais, reafirmando as mesmas ideias sobre a formação e a singularidade brasileira. Mas também não podemos negar outros fatores que ajudam na divulgação: um autor não consegue fazer isso sozinho sem uma ampla rede de apoio que deseja que tal imagem do país seja reafirmada e propagada. São comuns também comparações entre as percepções do pensador social e o romancista177. No geral, elas repousam na ideia de que, como adepto de certas ideias de

174 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. Op. cit. p. 10. 175 D’ANDREA, Moema Selma. A tradição re(des)coberta. Op. cit., p. 231-232. 176 Dentre alguns lembro os de Carolina Calixto (2009), Ilana Goldstein (2000), Lilia Schwarcz (2008/2009) e Marly Tooge (2009). 177 Não podemos esquecer que são duas atividades profissionais diferentes por isso a comparação deve tomar os devidos cuidados, pois enquanto cientista Freyre procurou dar fundamentos para sistematizar suas teses, Amado como escritor não tinha essa preocupação tanto que não sua explica uma série de contradições em seu discurso.

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esquerda, Amado, ao contrário de Freyre, reconheceria a existência da desigualdade social. Amado partiria do ponto de vista dos dominados, sendo estes os principais agentes na construção da nacionalidade, reconhecendo o passado de luta e os confrontos do presente enfrentados pela população negra/mestiça178. Outra ideia frequente nesse tipo de diferenciação se resume na palavra utopia, que na construção do universo romanesco, em que a sociabilidade entre opostos é explorada, Jorge Amado revelaria “mitos, tabus e desejos de parte significativa dos brasileiros179”. Percebo que Jorge Amado ameniza a desigualdade social em seu discurso, como se essa fosse superada ou se tornasse insignificante à medida que a mistura fosse avançando, mas isso não é claro em seu discurso. Concordo que a diferença significativa é que o escritor reconhecia no negro uma capacidade de resistência, herdado da luta contra a escravidão; sendo assim, o período escravista é mitificado na figura de Zumbi dos Palmares: O negro não se deixou transformar em animal, não abdicou de seus bens de cultura, de seu mundo de assombrações e historias, de deuses e costumes. Tudo isso lhe serviu para manter-se homem e muitas vezes herói nas epopeias dos quilombos. Zumbi é o herói nascido do escravo rebelde e do livre orixá, levantado para recuperar a liberdade180.

O que podemos observar tanto em Freyre como em Amado é que ao colocar a centralidade nas relações sociais construídas horizontalmente, ou seja, não são construídas debaixo para cima ou vice-versa, a influência econômica e política é praticamente excluída. Assim, no plano social, todos seriam iguais e o fundamental seria o contato e a interação, sendo a hierarquia construída com base na afeição nas relações pessoais. Como citado, é recorrente relacionar a obra amadiana com utopia, ou seja, é como se Amado escrevesse sobre uma sociedade ideal, daí seu grande apelo popular. Como se pode observar, para Jorge Amado a democracia racial, por meio da mestiçagem, foi tomada como algo que estava em curso ou totalmente realizada, a exemplo da declaração: “[..] ninguém impedirá a mistura no Brasil, a miscigenação continuará e será cada vez maior, criando uma nação cada vez mais mestiça. Este é o fato mais importante da questão da nação e da cultura brasileiras181”. Percebo que a maneira que a obra do escritor foi apropriada pelos meios culturais de massa é que se disseminou essa ideia de sonho, utopia, descrevendo o mundo que nós

178 Ordep Serra (1995) e Jeferson Bacelar (2001) fazem observação neste sentido. 179 Novamente me refiro aos trabalhos de Carolina Calixto (2009), Ilana Goldstein (2000), Lilia Schwarcz (2008/2009). 180 AMADO, Jorge. Carta a uma leitora sobre romance e personagens. Op. cit., p. 25-26. 181 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit., p. 94.

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brasileiros muitas vezes preferimos acreditar que vivemos, algo que será melhor notado quando se observa recepção de suas obras a partir de 1958.

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Parte II – Entre Honório e Arcanjo: O negro nas narrativas de Jorge Amado

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CAPÍTULO IV- Um olhar para a nação grapiúna: obras do ciclo do cacau

Tomando a acepção de Lukács, para quem toda obra toma posição diante os problemas concretos da vida e de um momento histórico, acredita-se que ao buscar a historicidade revelam-se aspectos que ajudam na sua compreensão1. Assim, no primeiro momento procuramos apreender Jorge Amado num âmbito mais geral como intelectual brasileiro: o romance social da década de 1930, a inserção na militância comunista, sua participação no debate da questão racial, a defesa da religiosidade brasileira e por fim sua aproximação com Gilberto Freyre e uma interpretação do Brasil. A partir da apresentação das questões que ele se envolveu e das relações que travou, observamos um intelectual muito ativo e atento aos acontecimentos do seu tempo. Esse conjunto de relações, experiências, práticas e conhecimentos foi revertido para literatura. Assim, as maneiras de apreender o negro ganham um pano de fundo mais amplo.

Encontro da arte com o proletário: Cacau

Caderno de aprendiz de romancista2, segundo o próprio autor, a publicação de Cacau representou rompimento definitivo de Jorge Ama com o grupo conservador responsável pela publicação de O pais do carnaval (1931). No texto "Dois ensaístas" de 1933, Amado afirma "[...] sou dos que estão muito longe de Octavio de Faria em matéria de ideologia"3. Faria por sua vez lamenta a mudança de Amado "talento não pode ser perdido assim, cujos compromissos anteriores não podem se esvair desse modo"4. Cacau é considerado um marco pela crítica, o único dos romances iniciais que resiste a uma análise mais exigente e marco definitivo da mudança de rumo da obra amadiana5. Mesmo sendo um romance que pode se considerar de menor significância, ele é o primeiro que

1 LUKACS, Georg. Narrar ou descrever? In: Ensaios sobre Literatura. RJ: Civilização Brasileira, 1965. 2 Como considera o próprio autor: "Evidentemente, eu não tinha nenhuma experiência de vida, nem literária, suficiente para pegar aquele tema, que eu retomei depois em Terras do Sem Fim. Cacau, O país do carnaval e Suor, que escrevi a seguir, eu considero hoje como cadernos de um aprendiz de romancista" (1981, p. 16- 17). Uma ideia também presente na crítica como podemos observar em José Paulo Paes (1991) e Eduardo Assis Duarte (1996) que se referem a Cacau com o termo alemão Bildungsroman, romance de aprendizagem. 3 AMADO, Jorge. Dois ensaístas. Boletim de Ariel, n. 9, junho de 1933, p. 225. 4 FARIAS, Octávio. Jorge Amado e Amando Fontes. Boletim de Ariel, n.1, outubro de 1933, p. 7. 5 Dentre alguns que proferiram críticas nesse sentido lembro: Eduardo Portella (1971) e José Paulo Paes (1991).

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o escritor coloca a causa da classe trabalhadora em destaque e se o autor atingiu seu intento é o tema grande parte dos comentários na ocasião da estreia. Publicado em 1933 pela Ariel Editora com capa e ilustrações de Santa Rosa, foi o primeiro livro de Amado censurado: logo que sai a obra é aprendida pela polícia carioca em razão de um suposto caráter subversivo6, fato que acabou atiçando a curiosidade do público. A primeira edição de dois mil exemplares se esgota em 40 dias, dando sequência a outra tiragem de três mil exemplares com igual êxito, além de ter sido publicado em russo no ano seguinte junto com Suor (1934). Cacau, além do encontro com o romance proletário7, inicia também uma série de narrativas amadianas que têm como tema o universo das fazendas de cacau. Os romances Terras do Sem Fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela, Cravo e Canela (1958), o memorialístico O menino grapiúna (1981), Tocaia Grande (1984) e A Descoberta da América pelos Turcos (1994) também tratam da zona cacaueira. Cacau, Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus, objetos de análise neste trabalho, são conhecidos como romances do "ciclo do cacau" em razão da temática abordada, pela relação com a memória do autor e a narrativa dos dramas humanos envolvidos, desde a conquista até a decadência desta monocultura. No momento de lançamento do primeiro livro com essa temática, nota-se um interesse da literatura brasileira pela classe trabalhadora nascente8 e a discussão sobre a possibilidade do romance proletário. É tido como primeiro romance proletário O gororoba (1931), de Lauro Palhano, em que o engenheiro mecânico Juvêncio Campos narra sua experiência como técnico da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Nessa linha

6 Segundo consta a proibição durou apenas 24 horas, graças intervenção de Oswaldo Aranha, então Ministro do Exterior: "A apreensão durou pouco tempo, pois o Oswaldo Aranha, que eu tinha conhecido num trabalho jornalístico, interveio e mandou liberar. A apreensão repercutiu muito na imprensa e os 2 mil exemplares venderam-se em quarenta dias [...] daí em diante, meu público só fez crescer" (AMADO, 1981, p. 17). 7 Segundo Jose Paulo Paes (1991) em De 'Cacau' a 'Gabriela': um percurso pastoral, Cacau é o livro que inaugura uma série de romances de engajamento político do autor, sendo um romance característico dos anos 30, momento em que a radicalização político-ideológica repercute no Brasil sob forma de anseio por reformas político-sociais de base. Em que se reforça a polarização entre direita e esquerda "Esta representa pelas várias correntes do pensamento conservador, sobretudo a reação católica e o Integralismo de Plínio Salgado; aquela, pelo partido de Luís Carlos Prestes, o mais radical dos chefes do Tenentismo, ou seja, o Partido Comunista, de que Jorge Amado seria, dessa época até meados da década de 50, o expoente intelectual" (p.11). 8 Interessante notar que a preocupação com o proletariado não era uma preocupação exclusiva da esquerda, ao fazer levantamento em livros e boletins e propaganda partidária da Ação Integralista Brasileira, entre 1935 e 1936, Alfredo Wagner de Almeida (1979) observa uma preocupação com o proletariado nacional em relação aos "estrangeiros" como podemos observar nesta citação de Victor Pujol (1935): "As fábricas no Brasil são, em geral, montadas por capitães estrangeiros e tem seus lucros perfeitamente assegurados pela proteção aduaneira [...] o operário brasileiro, que mal ganha para o alimento da mulher e dos filhos, contribui, sem o saber, para a existências nababesca de burgueses ociosos e de damas devassas que na Europa levam a vida dissoluta [...] A questão social deve ser resolvida não apenas pela classe proletária, mas pela cooperação de todas as classes” (apud ALMEIDA, p. 127, grifos meus).

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também temos Os Corumbas (1933), de Amando Fontes, que narra a vida de uma família do interior sergipano nas tecelagens de Aracaju; o romance de Patrícia Galvão (), Parque industrial- romance proletário (1933), narrativa do ponto de vista da mulher, descreve a vida e a luta dos operários e o livro de Oswald de Andrade, Serafim Ponte Grande (1933)9. Sobre um possível ponto de identificação entre as diversas obras discutidas como romances proletários, Palamartchuk10 aponta que nelas os personagens são investidos da missão histórica de realizar uma transformação social, a revolução e a construção do socialismo11. A questão sobre o que seria ou não um romance proletário é uma discussão em que Jorge Amado estava envolvido na época, como podemos observar em alguns de seus textos publicados no periódico Boletim Ariel. Em um primeiro texto de 1933, Amado reconhece O gororoba como um romance proletário: "traz um vastíssimo documentário, um material imenso sobre a vida dos operários amazonenses e sobre os marítimos"12, mas não enxerga o mesmo em Os Corumbas, devido a narrativa se centrar na vida de uma família especifica. Em um artigo chega a pontuar algumas características do que considera ser o romance proletário: "A literatura proletária é uma literatura de luta e de revolta. E de movimento de massa. Sem herói nem heróis de primeiro plano. Sem enredo e sem senso de imoralidade. Fixando vidas miseráveis sem piedade mas com revolta"13. Sobre a apreciação crítica do então novo livro de Amado, o caráter documental, já frisado em O país do Carnaval, foi observado nas críticas de Sosígenes Costa: "a realidade é flagrantíssima"; de Alfredo Schmidt: "um forte documento do que somos hoje"; de Heitor Marçal: "biografia de uma geração atribulada"14; entre outras. É uma característica retomada e reforçada neste novo livro, já que o leitor logo na nota introdutória é apresentado a um livro com "mínimo de literatura" e "máximo de realidade"15, além de ser indagado: "Será um romance

9 Como é possível observar 1933 é um ano marcado por publicação consideradas comunistas, pois, além desses romances é publicado uma importante obra das ciências sociais Evolução política do Brasil e outros estudos- ensaio de interpretação materialistas da história do Brasil de Caio Prado Junior. 10 PALAMARTCHUCK, Ana Paula. Os novos bárbaros: escritores e o comunismo no Brasil (1928- 1948). Tese (Doutorado em História Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Campinas, 2003. 11 Podemos acompanhar um pouco mais da discussão crítica sobre se e o que seriam romances proletários, no artigo de Luís Gonçalves Bueno de Camargo. Romance proletário em Rachel de Queiroz ou vendo o lado de fora pelo lado de dentro. In: Letras, Curitiba, n.47, p. 19-38. 1997, uma discussão que abrange muitos outros romances. 12 AMADO, Jorge. O gororoba. Boletim de Ariel, n.3, dezembro de 1933, p. 71. 13 AMADO, Jorge. P.S. Boletim de Ariel, n. 11, agosto de 1933, p. 292. 14 As três críticas foram retiradas da coletânea Jorge Amado: 30 anos de literatura. São Paulo, Martins, 1961, p. 60 e 65 respectivamente. 15 Importante observar nessas duas afirmações características comuns atribuídas aos primeiros romances da geração de 1930, como Gilberto Freyre afirma essas obras tinham "tom de reportagem social e quase sociológica". Flora Süssenkind (1994) afirma essa característica "Nos anos trinta, 'sociologizam-se' a discussão e a produção ficcional do país" (p. 157).

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proletário?". Assim, se na nota introdutória do seu primeiro livro afirmava que estava à procura ("Não posso bater-me por uma causa. Eu ainda sou um que procura..."), nesse segundo livro, mesmo com alguma dúvida, sinaliza uma tomada de posição. Cacau é um sucesso de crítica. As afirmações e a pergunta da breve nota introdutória – “Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?"16 - parecem gerar mais respostas e considerações, levantando maiores comentários, que o conteúdo do romance. Chamam atenção as considerações de Murilo Mendes, que se propõe a responder à pergunta: "Será um romance proletário?". Ele afirma que, devido às circunstâncias histórico- sociais, não existe uma mentalidade proletária no Brasil. Faz ainda contraposição entre este livro e o de Pagu, Parque Industrial, afirmando que este último seria uma reportagem simples "[...] impressionista, pequeno-burguesa, feita por uma pessoa que está com vontade de dar o salto mas não deu [...] pouca coisa se fica sabendo" ao passo que a obra amadiana, mesmo não sendo um romance proletário, seria de fato uma obra literária sobre a vida dos trabalhadores e sobre a visão real do problema "não sacrifica o interesse humano do drama o pitoresco"17. Jorge de Lima, na ocasião de lançamento, aponta o caráter honesto e afirma que Jorge Amado fez um romance proletário: "Fez um romance proletário, sim. Foi quem primeiro o fez, e com honestidade e sem literatura ruim". E o aponta como uma novidade "bem diferente do marasmo literário e que vivemos [...] Não sou a favor de chamar de romance russo. Cacau nasceu na Bahia. A força do livro é que é universal mesmo com carimbo e selo do Nordeste"18. Anos depois, Roger Bastide também aponta o caráter universal do romance, justamente pela adesão ao marxismo: "fazendo do proprietário baiano o exemplo particular de um fenômeno muito mais geral, da exploração do homem pelo homem [...] a situação social do Nordeste, embora conservando seu sabor exótico, tornava-se 'comunicável' aos 'outros'". Mas percebe-se em Bastide uma tentativa de amenizar o cunho político militante da produção amadiana daquele momento: "Não viram, ou não compreenderam que seu marxismo era mais que uma ideologia política. É também, essencialmente, um procedimento artístico – o processo através do qual o humor se destaca do singular, para atingir o universal..."19.

16 AMADO, Jorge. Cacau. 2010, s/p. 17 MENDES, Murilo. Nota sobre 'Cacau'. Boletim de Ariel, n. 12, setembro de 1933, p.73. 18 MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. São Paulo, Martins, 1961, p. 66-67. 19 BASTIDE, Roger. Sobre o romancista Jorge Amado. In: MARTINS, José de Barros (org.). Op. cit., p. 54.

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Em meio à polêmica sobre um suposto romance proletário, outro destaque comum recai no caráter documental, "máximo de realidade", presente no romance. Agripino Grieco20, na ocasião do lançamento, se refere a Cacau como um estudo histórico-descritivo, documentário, inquérito. Como Grieco, Bastide aponta o romance como: "'documento' sociológico, mais do que romance propriamente dito, descrição dos trabalhadores rurais, embrutecidos por um impiedoso sistema de produção que não lhes deixa outra figa a não ser o álcool, a sexualidade, a violência"21. Em críticas posteriores, vale destacar as que debruçaram na análise desse romance especificamente, como a de José Paulo Paes, que considera Cacau um romance proletário por articular em conjunto duas características: ser um romance de aprendizagem e ter tom idílico- pastoral por inversão22. Eduardo Assis Duarte o considera como a obra que consagra o surgimento do chamado romance proletário. Apesar de reconhecer que naquele momento o que havia era um proletariado em formação e um "lumpesinato urbano e rural ao lado das massas de trabalhadores do campo, despojados (nos dois casos) dos mínimos direitos de cidadania próprios à ordem burguesa", acredita que estava presente em Amado um romance de características peculiares: "confluência de certas posturas ficcionais do modernismo com o empenho realista em voltar-se para a existência das multidões oprimidas no trabalho. Dupla marca de um texto preocupado em fazer do povo o principal personagem.". Sendo assim, seria uma literatura para o proletariado e não do proletariado23.

20 GRIECO, Agripino.1933. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Rio de Janeiro: Campus, 1979. 21 BASTIDE, Roger. Sobre o romancista Jorge Amado. Op. cit., p. 45. 22 PAES, José Paulo. De Cacau a Gabriela, um percurso pastoral. Op. cit.. Idílico-pastoral, termo cunhado por Mikhail Baktin, é conceito do qual Paes lança mão para compreender o percurso literário de Jorge Amado entre 1933 e 1958. Este termo se refere a uma forma de ligação entre tempo e espaço, ou seja, um cronotopo, em Cacau os elementos do idílico estariam na relação amorosa entre o protagonista e a filha do patrão e o pastoral pela história se passar no campo (fazenda Fraternidade). 23DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1996, p. 30. Duarte lança mão da argumentação de Trotsky para justificar porque os romances de Jorge Amado podem ser considerados romance proletário. No livro Literatura e Revolução (1924), o teórico do Partido Comunista russo admite a necessidade de uma literatura que atendesse as necessidades de uma classe operária utilizando o exemplo do escritor Demyan Biedny, militante do partido comunista, mas considerado um artista "menor", um "folhetinista": "[...] não procurou novas formas. Usa, ostensivamente, as velhas formas canonizadas. Mas, na sua obra, elas renascem e ressurgem, como um incomparável mecanismo de transmissão das ideias bolcheviques [...] Se se afasta da noção metafísica de cultura proletária, para focalizar as coisas do ponto de vista do que o proletariado lê, do que ele precisa, do que o apaixona e o impele à ação, do que eleva o seu nível cultural e por aí mesmo prepara o terreno para uma nova arte, a obra de Demyan Biedny é, realmente, proletária, uma obra popular, isto é, vitalmente necessária a um povo que se levanta. Se não é poesia autêntica, é alguma coisa maior que isso” (p.184, grifos do autor). A descrição da obra de Biedny é como o romance proletário vai se manifestar no Brasil e em outros países que não tinham de fato uma classe trabalhadora: uma literatura a serviço dos trabalhadores e da revolução. É digno de nota que em páginas anteriores do texto A arte e a cultura proletárias, Trotsky, elabora sobre a relação entre intelligentsia da classe operária e a classe operaria, para este a relação entre

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Alfredo Wagner de Almeida já havia apontado para essa mesma característica. Para o estudioso, Jorge Amado fez romance proletário e não literatura de proletários fomentando um romance com características singulares: "[...] a descrição da maneira de viver, das lutas e das perspectivas políticas do proletariado, cumprindo, porém, a função, qual seja, a de propagandeá-la junto a camadas sociais tidas como importantes para o movimento político a que o autor se liga"24 e aponta que, além dos trabalhadores, os estudantes são um grupo para o qual os livros são dirigidos, pois eles seriam importantes "aliados políticos". Assim, Cacau é um "romance do romance proletário", no qual o autor se refugia na interrogação da nota de introdução e tenta solucionar na narrativa o problema da sua origem, ao colocar um narrador- operário de origem pequeno-burguesa. Por ser um romance para o proletariado em razão das circunstâncias histórico- sociais – - não existiam no Brasil daquele momento relações de trabalho propriamente capitalistas –, José de Souza Martins, afirma que não considera o livro um romance proletário, pois [...] o capitalismo verdadeiramente salarial enreda o trabalhador numa trama contraditória de transformações e repetições, mudanças de permanências, anuncia a possibilidade de superação do poder iníquo, mas o atrela ao poder do passado, anuncia a promessa de uma sociedade nova, mas propõe o repetitivo suor do rosto como preço a pagar por uma práxis de transformação25.

Por ser um romance inspirado nas lembranças de infância e terem se dedicado a escrever um conjunto de romances que se dedicam a narrar a vida dos que viviam da agricultura monocultora, constantemente há uma comparação entre as produções de José Lins do Rego e Jorge Amado. Süssekind26 aponta que ambos se dedicaram a documentar as transformações dos valores patriarcais, mas, enquanto Rego faz de forma saudosista, Amado tenta se apropriar dessa história. José Mauricio de Almeida27 fez comparações entre Cacau e o contemporâneo Menino de Engenho, de Rego. Para o crítico, enquanto o autor baiano buscou captar a lógica

os dois era essencial, não no sentido de criar uma nova cultura, mas ajudar num sentido mais concreto: "[...] ajudar, de forma sistemática, planificada e, certamente, critica, as massas atrasadas a assimilar os elementos indispensáveis da cultura já existentes. Não se pode criar uma cultura de classe à revelia da classe" (p. 167-169). Uma relação que observamos que os intelectuais tentam criar aqui Brasil. 24 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Op. cit., p. 113. 25 MARTINS, José de Souza. O marxismo nas roças de cacau. In: AMADO, Jorge. Cacau. Op. cit. p. 169. 26 SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua história: o naturalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 1994. 27 ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

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dos trabalhadores alugados, o autor paraibano captou o olhar do patriarcado rural e que o romance de José Lins do Rego obteve melhor êxito. Como é notável, a crítica de Cacau ficou essencialmente centrada na provocativa nota introdutória.

Sinhô Badaró: saga das roças de cacau

Dez anos depois de Cacau, no ano que o Partido Comunista Brasileiro é colocado na clandestinidade e após seis anos de proibições de venda e publicação de seus livros, Jorge Amado publica Terras do sem fim (1943). Dois momentos de uma realização única, as obras Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus foram pensadas como volume único intitulado Sinhô Badaró28, como indica trechos publicados no jornal Diretrizes. Em meio a discussões sobre um possível fim da estética modernista, presente nos números da Dom Casmurro29, na década de 1940 são publicadas as obras que Candido considera as melhores dessa geração, incluindo Terras do sem fim, pois existiu uma preocupação mais exigente com a forma30. Apesar de somente Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus terem sido pensados e escritos por Jorge Amado como uma sequência, acredito que há uma certa identificação entre esses e Cacau, mesmo sendo diferente dos outros dois, por causa da qualidade estética e da forma como é abordada a mesma temática31. Inspirado em dados biográficos32, Terras do sem fim não é o romance mais popular de Jorge Amado, mas parece ser unânime a opinião que é

28 Uma ideia que parece ter permanecido mesmo depois da mudança de título para Terras do sem fim. 29 A publicação Dom Casmurro demostra certa preocupação em relação aos rumos da literatura naquela década, dentre algumas reportagens se destaca uma entrevista com o crítico literário Agripino Grieco, que afirmava que o modernismo havia morrido, ultrapassado por uma nova fase literária, que os melhores escritores eram os da década anterior. 30 Além de Amado, considera que foram publicados os melhores romances de José Lins do Rego e Carlos Drummond de Andrade. Candido (2002) acredita que houve um abandono da linha modernista acompanhada de uma queda na qualidade do romance e uma separação entre a preocupação estética e a preocupação político-social, os escritores políticos se tornavam cada vez mais sectários seguindo a direção propagandística e panfletária. 31 Nesse mesmo sentido, Portella nomeia esses romances como da "motivação telúrica" pois a "circunstancia de que os dramas humanos que aí se agitam são condicionados pelas diversas de ambição financeira com vistas à exploração do cacau, intransponíveis atritos entre fazendeiros e exploradores. Mas que em Terras do Sem Fim e seu continuador São Jorge dos Ilhéus movimentam [...] é a temática da terra em todas as suas implicações político- sociais. Daí a nitidez do fundo natural, a presença física da terra. A luta pela conquista da terra, daquela 'terra adubada com sangue', é o tema centríco, o drama nuclear destes romances"31 (p. 79). Sobre a inclusão de Cacau neste ciclo de romances, Cyro de Mattos (1961) chama a atenção este romance representa o arranque necessário para a realização dos outros dois livros. Para tanto, personagens e situações do primeiro livro reaparecem nos posteriores. 32 “Meu pai plantou essa fazenda da Auricida – aliás, a saga que está contada em Terras do sem fim [...] Meus tios, irmãos da minha mãe, foram também homens que que lutaram pela posse da terra” (AMADO, 1987, p. 5-6).

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seu melhor romance, a obra-prima33, constatação averiguada desde seu lançamento. Segundo Sergio Milliet, “Estamos diante não só da obra prima de Jorge Amado, mas ainda de um dos romances mais importantes de nossa literatura”34. As críticas de Jorge Medauar e Almeida Fischer, no periódico Dom Casmurro, o citam como sendo “obra pujante, forte, em que põe a prova seu talento e seu folego de romancista verdadeiro com seguros e inequívocos conhecimentos de tipos, alma e ambientes humanos”35 e “livro magnifico” 36; no jornal Diretrizes, Prudente de Morais37 cita como um dos maiores romances dos últimos tempos; Afrânio Coutinho diz: “não me lembro de livro, na moderna literatura brasileira, que revele maior força de elaboração, maior intensidade dramática, mais vida e colorido [...] o mais bem realizado vive a sua época, não se encarcerou na torre de marfim”38 e Dalcídio Jurandir39 afirma que é o início do caminho de Jorge Amado ao verdadeiro romance. Dentre outras críticas que se destacam está a de Roger Bastide40, que considera esse romance entre o épico e o histórico, marcando o retorno de Jorge Amado a literatura regionalista, e a de Antonio Candido que afirma que o livro é “primeiro índice de uma maturidade que se anuncia cheia de força”41. Além de destacar a qualidade da obra e apontar como o melhor romance até aquele momento, as críticas também aclamaram a chegada do autor à maturidade, o valor histórico, como também, a característica épica da narrativa e uma menor preocupação doutrinária42. Táti reforçou a ausência do conteúdo político-partidário, acrescentando que mesmo assim existe uma força revolucionária presente, “que deriva, por sem dúvidas, das gritantes injustiças sociais que por ela se patenteiam”43.

33 Como Almeida (1979) adverte, obra prima não deve ser entendida como mais a consumida, ou seja, best seller. Como veremos, o reconhecimento de Terras do sem fim se assentará no elogio ao aperfeiçoamento da técnica literária por parte do autor. 34 MILLIET, Sergio. Diário crítico vol. II, São Paulo: Edusp/Martins, 1944, p. 226. 35 MEDACAR, Jorge. Terras do sem fim. Dom Casmurro, novembro de 1943, p. 6. 36 ALMEIDA FISCHER. Guerrilha literárias e outras coisas. Dom Casmurro, julho de 1944, p. 6. 37 Conversa com o crítico Prudente de Morais Neto. Diretrizes, janeiro de 1944, p. 17. 38 COUTINHO, Afrânio. Terras do sem fim. Diretrizes, julho de 1947, p. 19. 39 JURANDIR, Dalcídio. Romances em 42. Diretrizes, dezembro de 1943, p. 18. 40 BASTIDE, Roger. Jorge Amado e o romance poético. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit., p. 193-196. 41 CANDIDO, Antonio. Poesia, documento e história. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit., p. 171. 42 Vide: Roger Bastide, Paulo Dantas, Antonio Candido, Haroldo Bruno, Gilberto Freyre. Mesmo com menor conteúdo ideológico, a militância antifascista é lembrada na epigrafe, ao dedicar o livro a “D. Shostakovich compositor e poeta de Leningrado. 43 TÁTI, Miécio. Jorge Amado vida e obra. Op. cit., p. 123.

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Na década de 1940 estreia um dos maiores críticos do romancista baiano, Álvaro Lins, que sobre a qualidade do romance parece ter sido exceção: afirmou que esse livro junto com Jubiabá eram suas duas melhores produções, mas que o bom e o péssimo se encontram unidos, pois o caráter épico de Terras do sem fim soa ultrapassado e aponta uma serie de defeitos que precisariam de ser superados: Todos nós temos o interesse no aperfeiçoamento de sua obra, aprofundamento de sua visão, maior complexidade, mais capacidade psicológica, mais concentração e densidade, menos gosto pela palavra em si mesmo, melhor sentido da construção literária e do estilo, menos sentimentalismo, mais senso crítico, fidelidade aos temas que conhece com mais segurança, coragem para colocar de lado os que não são propícios ao próprio temperamento, vigilância contra os efeitos fáceis, sobretudo o falso romance, mais estudo ao lado dos dons de observação, eis alguns problemas que entrego ao exame a à meditação ao Sr. Jorge Amado44.

Como no ano de publicação Jubiabá (1935), Jorge Amado e José Lins Rego têm romances publicados contemporaneamente com características semelhantes, o que, consequentemente, trouxe novas comparações. Duas delas, as de Haroldo Bruno e Álvaro Lins45, fazem contraponto entre esperança do primeiro e o pessimismo do segundo, pois, segundo Lins, enquanto Amado narra o início de uma sociedade nova, Rego retrata personagens de uma sociedade em decadência. Mesma comparação foi feita por Gilberto Freyre, que no mesmo texto trata de Fogo Morto e Terras do sem fim, ressaltando a qualidade das obras e a força histórica: “Não há dúvida, porém, que são ambos, nestes dois últimos livros, cronistas, memorialistas, quase historiadores sociais disfarçados de romancistas”46, afirmando que falta a pureza de José Lins em Amado, mas que este é mais rico em dramaticidade. Outra observação entre narrativas que algumas vezes se apresenta é a comparação entre Terras do Sem Fim e Cacau. Para Assis, o primeiro apresenta uma estrutura mais elaborada, evolui da dicotomia bem (trabalhadores) x mal (coronéis) para uma postura mais complexa47. A crítica norte-americana Sandra Dixon, que num ensaio compara as duas obras, afirma que a semelhança entre ambos reside na constante aparição da violência, tanto vertical,

44 LINS, Álvaro. Romance interior. Correio da manhã, 02/12/1943, p. 2. 45 MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit. 46 FREYRE, Gilberto. Dois livros. MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit., p. 188. 47 DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Op. cit.

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a opressão hierárquica, quanto horizontal, entre amigos e parentes, sendo que Cacau enfatiza o primeiro tipo e Terras do sem fim permeia o segundo tipo48. Uma das palavras que define a recepção crítica do romance e, consequentemente, a sua qualidade é síntese, ou seja, o equilíbrio entre a polêmica e o lirismo, como apontado por Pinheiro de Lemos49, entre documento e poesia, citado por Candido, em que o ponto alto primeiro seria Cacau e auge do lirismo estaria em Mar Morto, ou entre o local e o universal, como apontado pelo editorial do periódico Diretrizes50. Wilson Martins e Haroldo Bruno também apontam o caráter universal. Nesse mesmo sentido, Gilberto Freyre afirma que Terras do sem fim narra um grande drama humano, o da conquista de terras, o drama do cacau, sem comprometer o caráter universal, uma universalidade que foi alcançada, segundo Antônio Candido51, em razão da isenção artística ao superar o esquema do romance proletário. A tiragem inicial do romance foi um sucesso, fato que abriu circuitos do mercado literário para o relançamento da produção anterior pela Martins Editora52. Sendo assim, a publicação de Terra do sem fim consolida o sucesso do escritor, pois a partir de 1944/1945 as tiragens de seus livros são as maiores que um escritor brasileiro tem até então. O prestígio do romance foi notável a ponto de ter sido escolhido juntamente com os romances de Oswald de Andrade, Marco zero, e Fogo Morto, de José Lins do Rego, para representarem o Brasil num concurso de romances interamericanos, mas Terras do sem fim é retirado da disputa, pois antes do resultado final consegue um editor para publicação nos EUA53. Além do território norte- americano, o público francês teve acesso a Terras do sem fim (Terre violente) em 1946, tendo obtido boa recepção crítica, com resenhas assinadas por Maurice Nadeau e Guy Leclerc. Doze anos depois, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus e Seara Vermelha (1945) são publicados em volume único na União Soviética, com direito a prefácio de um dos escritores favoritos de Jorge Amado, Ilya Erenburg54, que afirma que esses romances o ajudaram a descobrir o Brasil e defende a literatura a serviço do povo e que a obra de Amado

48 DIXON, Sandra. Bitter harvest: violent oppression in Cacau e Terras do sem fim. In: BROWER, Keith; FITZ, Earl; MARTINEZ-VIDAL, Enrique (orgs.). Jorge Amado: new critical essays. Routledge: New York, 2001. 49 PINHEIRO DE LEMOS. Vida literária – Terras do Sem fim. Dom Casmurro, novembro de 1943, p. 6. 50 Terras do sem fim. Diretrizes, novembro de 1943, p. 16. 51Todos são textos presentes na coletânea crítica: Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit. 52 Tiragem inicial de 10 mil exemplares, que foi sucedida outra de 20 mil exemplares. 53 A publicação de Terras do sem fim (The violent land) em 1945, iniciou uma longa relação de Jorge Amado com Alfred Knopf, editor no norte-americano, esse romance inaugurou a coleção latino-americana da Knopf. Para maiores detalhes ver o artigo de Antonio Dimas (2012), que analisa as correspondências do autor com seu editor. 54 ERENBURG, Ilya. Trilogia de Jorge Amado. Fundamentos, n. 39, 1955, p. 11 -15.

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comprovaria a possibilidade de se fazer romance social sem recorrer aos maniqueísmos e simplificações. O retorno ao mundo rural uma década depois parece contraditória em relação ao projeto de literatura do ponto de vista do oprimido lançado em Cacau. A mudança de ponto de vista da narrativa foi observada, pois saiu do trabalhador e foi para o drama dos supostos senhores da terra, algo que Candido percebeu com simpatia, segundo sua percepção o narrador endossa as atitudes dos patriarcas no sentido psicológico, não moral; o romance foi escrito do ponto de vista histórico, não do proletariado. Mais recentemente, José Mauricio Gomes de Almeida55 endossa a tese de Candido, afirmando que por ser uma narrativa construída em moldes realistas, a fatalidade épica da conquista das terras é responsável por barbaridades, daí a simpatia do autor com os proprietários de terra. Em Terras, não se pode negar a influência da formulação pcbista, mas também não devemos perder de vista um certo olhar memorialístico56 que o narrador imprime no texto e o próprio gênero narrativo, que se aproxima da saga, exalta o heroísmo dos fundadores57. A defesa dos fundadores se torna nítido na nota introdutória da publicação seguinte, São Jorge dos Ilhéus, de 1944, quando o inimigo comum é o capitalista da indústria agroexportadora: “E se o drama da conquista feudal é épico, o da conquista imperialista é apenas mesquinho, não cabe culpa ao romancista. Diz Joaquim que a etapa que está por vir será plena de heroísmo, beleza e poesia, e eu o creio”58. Indicando que o tempo do protagonismo comunista não estava distante. Se Terras do sem fim narra a conquista das terras do cacau, São Jorge dos Ilhéus descreve a derrocada dessa monocultura. Diferente da anterior, essa narrativa “dá nome às coisas”, ou seja, se em Terras do sem fim chama atenção o caráter ambíguo da personalidade dos desbravadores da terra, nesse segundo momento o inimigo é declarado, o capitalista da indústria agroexportadora que se desdobra no conflito entre comunistas e capitalistas. A grandeza de Terras do sem fim esmagou São Jorge dos Ilhéus, livro de qualidade estética nitidamente inferior, fato que ressoou na repercussão e, consequentemente,

55 ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Op. cit. 56 Além dos dados biográficos do escritor, o caráter memorialístico de Terras do sem fim é revelado no memorialístico O menino grapiúna, quando a correlação entre personagens reais e fictícios são narradas. 57 Eduardo Assis Duarte (1995) chama atenção de que, apesar do menor proselitismo ideológico, a tese pcbista do etapismo está presente no romance, os senhores da terra são considerados senhores feudais e suas conquistas e batalhas têm ares medievais. 58 AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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entre a crítica especializada59, sendo considerado um trabalho menor. Tanto que a coletânea crítica de 30 anos de produção do autor destina pouco espaço para esse romance. A nova produção afetou o que chamavam de “nova fase” de Amado que seria caracterizada pelo melhor domínio de técnicas literárias e menor sectarismo político. Fato que não aconteceu. Sergio Milliet e Álvaro Lins apontaram que em São Jorge dos Ilhéus ressurgia antigas deficiências que pareciam sepultadas. Segundo Milliet: Jorge Amado vem marcando sua carreira literária de avanços e recuos desnorteantes. Saltos para frente a que sucedem passos para trás inesperados. Sua evolução não se processa harmoniosamente muito embora o progresso seja visível e enorme de Suor e Cacau a São Jorge dos Ilhéus. Ainda é cedo para frisar com segurança as características de sua personalidade literária, mas parece que nela predomina irreprimível vontade de folhetim socializante, de reportagem apressada com intenções sócias. Essa linha predeterminada vê-se pontuada entretanto de desvios poéticos do mais alto valor e que explodem obras primas quando o escritor esquece seus esquemas preconcebidos. Ou os domina realmente. Assim depois de Cacau e Suor temos Jubiabá e depois Capitães de Areia, o Abc de Castro Alves. Terras do sem fim parecia apontar uma orientação definitiva e uma maturidade admirável. Mas surge agora São Jorge dos Ilhéus e voltamos com o novo romance as soluções antigas60.

Lins, como de costume, criticou severamente a falta experiência literária do autor: O principal problema do Sr. Jorge Amado é o da sua ignorância, o da falta de contato com a cultura, o da sua inexperiência literária [...] Pois será possível que o Sr. Jorge Amado não disponha sequer de um dicionário, no qual encontraria indicado que ‘inacreditável’ é um adjetivo e não um advérbio? Pois será possível a um escritor ignorar o que seja advérbio e o que seja adjetivo? [...] Não é só que seja adverbio o que o Sr. Jorge Amado precisa aprender e saber para se tornar um verdadeiro escritor61.

Para Lins: “Um livro mal escrito e mal construído não tem significação nem para literatura nem para a política. E ser um escritor revolucionário não consiste apenas em colocar operários como personagens e trata-los com sentimentalismo superficial e vago...”62. Milliet ainda complementa que as propostas socializantes à maneira dos folhetins contribuiu para a perda dos valores estéticos da obra de arte e chama o livro de reportagem. Táti e Duarte acreditam o mesmo que Milliet; para o primeiro, é o romance mais carregado de intenções

59 Sobre São Jorge dos Ilhéus, o autor afirma: “[...] sofreu o impacto causado por Terras do sem fim, que tem uma temática violenta [...] Tem um certo sopro romântico que São Jorge dos Ilhéus não tem. São Jorge dos Ilhéus é um romance de luta comercial, mais mesquinha, sem grandeza: a luta para apoderar-se dos mercados de cacau, expulsar os coronéis das terras que eles conquistaram e passaram para as mãos dos agroexportadores [...] É pois um livro que não tem a mesma força de sedução, digamos, pois os elementos são outros, menos românticos” (AMADO, 1990, p. 159). 60 MILLIET, Sergio. Diários críticos vol. I, São Paulo: Edusp/Martins, 1944, p. 146. 61 LINS, Álvaro. Problemas de um romancista (parte II). Correio da manhã, 12/10/1945, p. 2. 62 LINS, Álvaro. Problemas de um romancista (parte II). Op. cit.

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políticas até aquele momento, no qual o escritor perde a força habitual, banalizando-se ao confundir literatura com o abc político e complementa: “não se furta, o Autor a patentear a sua antipatia ideológica pelos homens de negócio que substituíram os coronéis no domínio do cacau”63. Já para o segundo, a obra “às vezes resvala no facilitário-apressado das soluções demagógicas ou de certas concessões populescas”64. Mesmo com as constatações negativas, é quase impossível separar as duas produções, Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus. Pois os dois livros condensam as fases históricas vividas durante o ciclo do cacau e semelhanças composicionais ligam os dois romances, mas o último não consegue manter o nível de elaboração do primeiro. O que chama atenção em relação às obras do decênio anterior é a mudança do narrador também apontada pelos críticos com diversas justificativas. Em São Jorge dos Ilhéus o futuro socialista liderado pelo partido comunista aparece como uma real possibilidade. Táti afirma que o foco deixa de ser o proletariado em geral e se torna o proletário comunista militante, coincidindo com o momento em que o PC mostra sua face publica nas manifestações de rua, quase dez anos após a primeira vez, em 1935, como também a origem de classe não é mais um obstáculo, o intelectual pode ser um militante comunista se bem orientado. Duarte argumentou que o texto trata do mandonismo, mas de um mandonismo apequenado que narra a segunda fase do etapismo: a aliança com a burguesia nacional como forma de combate ao vilão maior, formado pelo capital estrangeiro, e mostra a possibilidade de um futuro socialista. O crítico português Fernando Cristóvão observa que em São Jorge dos Ilhéus e Seara Vermelha a vanguarda dirigente da classe operária seria o partido comunista fazendo sua glorificação, o objetivo era a instalação do socialismo e a supressão das classes65. A diferença fundamental entre as narrativas dos anos 1930, as do decênio de 1940 e as de 1950 é que anteriormente uma rígida divisão de classes dava o tom e nas décadas posteriores o Partido Comunista aparece como força civilizadora e organizadora da vida social, a realidade passar a ser vista a partir de diferenças éticas e morais entre os comunistas e os não comunistas66.

63 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Op. cit., p. 129 64 DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Op. cit., p. 153. 65 CRISTOVAO, Fernando. Jubiabá, ou a pedagogia da revolução. Centenário de Jorge Amado, Lisboa: CLEÙL, 2012. 66 Gustavo Rossi (2008) aponta que essa alteração se devia a mudança de percepção do autor e do PCB: [...] parece significativo que Amado se esforçasse em mostrar um partido comunista capaz de representar não apenas determinada classe social, mas especialmente os interesses do Brasil como nação e de seu povo como um todo. Aliás, um cenário eleitoral em que o próprio Jorge Amado se candidatou e foi eleito deputado federal pelo PCB

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A produção entre 1944 e 1946 (até Seara Vermelha) pode ser vista como decrescente entre os críticos, um recuo para o romance de tese. Sobre esse período, anos mais tarde Freyre observou: “[...] há dois ou três Jorges Amados e não um só. O de Terras do Sem Fim é um. O de Seara Vermelha é outro. Um me parece fortemente literário. Outro não. De um desses outros podem ser aproximados autores marginalmente literários, mas não sociologicamente desprezíveis 67”. Como a crítica de Cacau, novamente a correspondência com o romance de realidade vem à tona, inclusive em trabalhos mais recentes, como o de Antônio Pereira Sousa, Tensões do tempo (2001), e o posfácio da última edição de São Jorge dos Ilhéus escrita por Antônio Sergio Guimarães. O primeiro faz a relação entre o processo histórico e a narrativa; o segundo chama o romancista de “sociólogo amador”, num momento que não haveria a profissionalização da sociologia e em que o socialismo cientifico teria sido levado a sério, concordando com Freyre que Amado trata de tipos sociais mais que personagens68. No ano da publicação de São Jorge dos Ilhéus, Florestan Fernandes publica um interessante artigo problematizando o chamado romance social, primeiro questionando esta nomenclatura: Parece-nos que há um equívoco no emprego da expressão, demasiada simplista em sua essência devido a um certo esquematismo com que vulgarmente representamos a literatura brasileira em particular e a literatura em geral. E este está mais relacionado à hierarquização ou divisão dos autores em ‘escolas’, do que ao próprio conteúdo de suas obras69.

Afirmando que todo romance seria romance social, pois tem raízes históricas: Estaríamos, pois, em qualquer romance, diante de um romance social. Social por causa de um certo ambiente existencial, por causa das relações dos personagens e sua posição naquele ambiente, sua reação aos valores nele implicados etc.; mas isto não serve para caracterizar um romance70.

Sem citar diretamente Jorge Amado, faz considerações sobre o mal-uso de termos que normalmente eram atribuídos a suas obras, “romance de tese”, “romance interessado” ou engajado: Há outro tipo de romance que pode ser chamado também de romance social e de São Paulo, tendo como slogan o ‘romancista do povo’ e não dos ‘proletários ROSSI, Gustavo. A militância política na obra de Jorge Amado (p. 30). 67 FREYRE, Gilberto. Gilberto Freyre aos 70 anos. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1970, p.14. 68 GUIMARÃES, Antonio Sergio. História e sociologia no “romance novo” de Jorge Amado. In: AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Outro que aponta que Amado trabalhou com retratos de um certo tipo social especialmente em São Jorge dos Ilhéus foi Miécio Táti (1961). 69 FERNANDES, Florestan. O ‘romance social’ no Brasil. Folha da manhã, 27 de abril de 1944. 70 Idem, ibidem.

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que no Brasil não produziu nenhum rebento notável; é o romance interessado, o romance-tese, que se põe a serviço de alguma ideologia. O romancista toma ao mesmo tempo uma posição e desenvolve um tema, com a intenção de, pelo menos, fazer o seu público pensar sobre aqueles problemas. Erroneamente chamou-se a esta tendência de ‘populista’, ligando o aspecto propriamente doutrinário à condição dos personagens dos romances71. E complementa:

De modo que ficou mais ou menos estabelecido que a repercussão das transformações das sociedades ocidentais nas esferas do romance, fosse a manifestação de uma tendência social e que o romancista servia-se do romance para chamar a atenção dos governos para os problemas das massas, já que não era para apresentar o sofrimento como o sentido profundo da vida, como na solução dostoiewskiana... E dúplice confusão se fez: 1) esqueceu-se que nas primeiras manifestações do romance sua principal preocupação foi a burguesia vitoriosa e suas reivindicações; 2) que nem sempre o autor desenvolve um tema ou toma uma atitude que se poderia chamar ideológica, apenas focaliza a vida dos personagens das classes que constituem o centro da cena, não se importando se são humildes ou pertencem às últimas camadas da classe burguesa72.

Fernandes afirma que essa confusão aconteceu no Brasil com os autores da geração de 1930: “Parece-nos que essa confusão se faz no Brasil ao se caracterizar como romance social a obra de José Lins do Rego, Jorge Amado, José Américo, etc., etc... Eles têm de social aquele ambiente existencial a que pertencem os indivíduos e ao qual já nos referimos acima: pouco importa que sejam humildes ou não” 73. E conclui que a caracterização do romance brasileiro deve ser procurada na relação entre o desenvolvimento do nosso romance e suas conexões com a vida social. Não deixa de ser interessante que, no mesmo número, o sociólogo publicou outro texto intitulado ‘O romance político contemporâneo’, em que aponta o romance A queda de Paris, de Ilya Erenburg, como um verdadeiro romance histórico e até como uma reportagem: “O romance contemporâneo, tentando sobretudo reunir muito material e principalmente material humano, torna secundária e sem importância essa questão de categorias. É uma reportagem, e uma reportagem pode ser ao mesmo tempo tudo isso”74. Essas características foram atribuídas por Antonio Candido e Gilberto Freyre, por exemplo, aos livros de Amado.

71 FERNANDES, Florestan. O ‘romance social’ no Brasil. Op.cit. 72 Idem, ibidem. 73 Idem, ibidem. 74 FERNANDES, Florestan. O romance político contemporâneo. Folha da manhã, 27 de abril de 1944.

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O camarada Honório: Cacau

Narrado em primeira pessoa, Cacau traz a história de José Cordeiro, vulgo Sergipano, que viveu nas fazendas de cacau do sul da Bahia. Filho de dono de fábrica, caracterizado como um bom capitalista, se torna órfão de pai ainda criança, fato que dá brecha para que seu ganancioso tio tire proveito e deixe sua família na pobreza. Cordeiro, que começa trabalhando como operário na fábrica que pertenceu a seu pai, devido a um desentendimento com o tio, é demitido, decidindo assim tentar a sorte como trabalhador alugado nas roças de cacau. A história contada se baseia nas memórias do narrador, que tenta dar o máximo de veracidade ao ocorrido, como também convencer o leitor da sua condição de trabalhador humilde como qualquer outro apesar da origem abastada, como vermos no trecho a seguir: Não é um livro bonito, de fraseado, sem repetição de palavras. É verdade que eu hoje sou operário tipografo, leio muito, aprendi alguma coisa. Mas, assim mesmo, o meu vocabulário continua reduzido e os meus camaradas de serviço também me chamam de Sergipano, apesar de eu me chamar José Cordeiro. Demais não tive preocupação literária ao compor essas páginas. Procurei contar a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau 75.

Em resumo, quem nos apresenta a "vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia" é um narrador branco de origem pequeno burguesa que se mostra um esclarecido crítico e questionador da péssima condição da vida dos trabalhadores. Assim, esse narrador se encontra divido entre tentar convencer que é pertencente à classe trabalhadora e é tão explorado quanto os outros – por exemplo: "Nós ganhávamos três mil e quinhentos por dia e parecíamos satisfeitos. Ríamos e pilheriávamos [...] Éramos quase todos analfabetos"76 – e demonstrar que tinha clareza do que estava acontecendo, se afastando dessa condição: "eu, descendente de família rica, estava mais perto dos trabalhadores do que ele [Algemiro] que vinha de gerações e gerações de escravos"77. Como já apontado78, é uma narrativa de caráter pedagógico, que tem como objetivo divulgar os ideais pcbistas na tentativa de fazer um romance proletário. Para lograr seu objetivo, o narrador procurar "dar voz" ao trabalhador, mas como no país não existia de fato um proletariado, coloca um protagonista de origem social superior que se proletariza.

75 AMADO, Jorge. Cacau. Op. cit., p. 140. 76 Idem, Ibidem, p. 14 77 Idem, Ibidem, p. 64, colchetes meus. 78 Eduardo Assis (1996) e Palamartchuck (1997), apontam o caráter missionário pedagógico presente neste romance e em Jubiabá.

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Deste ponto de vista são observados os negros e as relações raciais. É digno de nota que a questão racial não é um tema que tem centralidade nas três narrativas abordadas neste capítulo, mas o olhar narrativo nos dá importantes pistas de uma percepção sobre o negro no ambiente rural em uma sociedade que moderniza. A primeira referência ao negro em Cacau se remete a origem patriarcal da família do narrador-personagem; de Virgulina, sabemos somente que era uma "preta centenária que criara mamãe e nos criava agora"79. Responsável por contar aterrorizantes histórias. Nas páginas seguintes aparecem alguns trabalhadores que encontra a caminho da fazenda em Ilhéus, como 98, descrito como "preto e nu da cintura para cima"80, que lhe sugere trabalhar nas roças de cacau devido à falta de emprego. Instalado na fazenda Fraternidade, Sergipano divide habitação com três companheiros: Honório81, João Grilo e Colodino. Honório é o primeiro personagem negro que a obra amadiana descreve. Apresentado no romance anterior como: "um negro gigantesco, musculoso, despido da cintura para cima [...] mascando fumo negro entre os dentes alvíssimos"82, cujo vigor físico é contraposto ao do personagem principal "Rigger a apertou nos seus braços de supercivilizado ela pensou voluptuosamente nos músculos de Honório e na estrutura agigantada"83. Observa- se assim, a oposição entre civilização, que podemos também entender como cultura, do branco e a força física dos negros, uma das constatações do racismo cientifico. Em Cacau, a descrição física de Honório se altera, caracterizada como mais decadente: "[...] um riso alvar, com seus dentes brancos magníficos, que contrastavam com o rosto negro e os lábios grossos"84. Sofria de impaulismo crônico, não andava direito e era "gigantesco, os dentes brancos sempre a rirem na boca negra"85. Mas apesar das limitações era considerado um "grande trabalhador" que intrigava o narrador: Assim mesmo partia as seis horas da manhã para podar as roças, depois de comer um prato de feijão com carne-seca. Era um tipo curioso daquele Honório. Preto, forte, alto, brigão, estava na fazenda há quase dez anos. Um

79AMADO, Jorge. Cacau. Op. cit., p. 20. 80 Idem, ibidem, p. 33. 81 Honório é um personagem caro ao autor. Em seu livro memorialístico O menino grapiúna (1981) Amado tece as seguintes considerações: "Honório, um gigante negro que se repete nos meus livros, a partir de Cacau? Diante de Honório todos tremiam, constava que já liquidara não sei quantos posso garantir que era de uma bondade sem limites, de uma delicadeza sem igual" (p. 29-30). 82 AMADO, Jorge. O país do carnaval. Op. cit., p. 54. 83 Idem, Ibidem, p. 55, grifos meus. 84 AMADO, Jorge. Cacau. Op. cit., p. 13, grifos meus. 85 Idem, Ibidem, p. 48.

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bom camarada, capaz de sacrificar pelos outros. Apesar dele dever muito, o coronel o conservava86. E aos poucos fui sabendo a história daquele preto gigantesco, de olhos mansos de cordeiro, dentes risonhos e grossas mãos de assassino87.

Grapiúna, Honório nasceu no auge da lavoura cacaueira, depois que seu pai fora assassinado se tornou jagunço: Criou-se assim. Quantos matara, não sabia. Viera depois o saneamento das roças de cacau. As mortes diminuíram, mas, que esperança!, não acabaram [...] Honório era técnico em tocaias e o coronel Misael tinha inúmeros inimigos...não sei se o coronel sentia remorsos. Honório não. Tinha consciência limpa e clara como água da fonte. Era bom camarada e nós o estimávamos muito [...] Preguiçoso, raro o dia que Algemiro não reclamava com ele. Honório olhava-o como os olhos mansos88.

O que se percebe é a simpatia do narrador com o personagem, que mesmo antes da sua "tomada de consciência" é tratado como camarada, nome utilizado pelos comunistas para referir aos iguais. Em ambos os romances, O país do carnaval e Cacau, "ser civilizado" não seria um atributo do personagem, este é descrito com traços de primitivismo e infantilidade, sua força física e astúcia para montar tocaias é acompanhada de inocência tipicamente infantil, daquele que não teria noção do que está fazendo, diferente do coronel, seu patrão. Tudo isso combinado com uma limitação intelectual nata que o impedia de ter uma educação formal: [...] há vários anos andava às voltas com a carta de abc, mas não conseguiu passar das vogais. Ele queria saber ler para comprar as histórias [...] João Grilo, a quem se chamava de doutor, sabia dessas histórias e as recitava para nosso encanto. Honório pretendia ainda saber o abc. Colodino bancava o professor. Mas aquilo não entrava na cabeça do gigante89.

Apesar de suas limitações, ele é o único trabalhador que se beneficia da lógica coronelista/paternalista e obtém "vantagens" devido sua habilidade ímpar e cumplicidade ao seu patrão: [...] quando a gente estava sem saldo ele ia ao coronel, o facão jacaré na mão, e pedia, com voz súplice, quente. O coronel gritava, chamava-o de mandrião, mas Honório nunca voltou de mãos limpas [...] Um dia se negara a despachar o saco de Honório, dizendo que eram ordens do coronel que estava na cidade. O preto não se alterou. Pulou no balcão da vendola e pesou ele mesmo o seu

86 AMADO, Jorge. Cacau. Op. cit., p.14, grifos meus 87 Idem, Ibidem, p. 50. 88 Idem, ibidem, p. 51, grifos meus. 89 Idem, ibidem, p. 52.

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feijão e a sua carne. E depois torceu com as suas tremendas mãos pretas o alvo e afilado nariz de João Vermelho. Nós riamos como perdidos90.

Para o narrador comprometido, esse ser humano inocente tem uma noção intuitiva da exploração e da luta de classes, como observamos na frase atribuída a Honório: "Um dia mato esses coronéis todos e a gente divide isso"91. No decorrer da história, a narrativa vai atribuindo cada vez mais consciência social aos personagens-trabalhadores e com Honório não é diferente, como no trecho que questiona: "O amor seria feito só para os ricos?". O até então feliz e descompromissado personagem começa a questionar "[...] dizia alto o que dizíamos para nós mesmos: - Merda de vida"92. Ganho de consciência que atingirá seu auge no fim do livro. No capítulo sugestivamente chamado "Consciência de Classe", Honório é chamado pelo coronel para matar o colega fugitivo Colodino, ele aparentemente aceita a oferta, mas acaba ajudando na fuga do companheiro de alojamento sob a seguinte justificativa: "Mas eu não queimei o bruto porque ele era alugado como a gente. Matá coroné é bom, mas trabaiadô não mato. Não sou traído...". Na interpretação do narrador: "Só muito tempo depois soube que o gesto de Honório não se chamava generosidade. Tinha um nome mais bonito: consciência de classe"93. Assim, observamos uma transformação de Honório no decorrer da narrativa, de matador de aluguel inconsequente, preso na sua inocência, em um homem que recusa a matar o companheiro em nome de uma suposta consciência de classe. Na narrativa nota-se uma observação mais direta sobre a questão racial. João Grilo, descrito como: "mulato magro, que sabia anedotas"94, contava histórias e fazia contas, colocava em números a exploração sofrida. Grilo, "mulatíssimo"- nas palavras do narrador - mas que não se reconhecia como tal "vivia a vida de mulato pachola"95, ou seja, cheio de si, não perdia a oportunidade de apontar sua "superioridade" frente a Honório: Isso é porque você é negro, Honório. Nós branco é que sabe...Eu, doutor, João Nabuco da Silveira Nascimento, vulgo João Grilo... - E você o que é, moleque? - Mas sou branco, que dúvida. Se eu fosse um preto um minuto só, me suicidava com uma corda96.

90 AMADO, Jorge. Cacau. Op. cit., p. 51-52. 91 Idem, Ibidem, p. 54. 92 Idem, Ibidem, p. 79. 93 Idem, Ibidem, p. 138, grifos meus. 94 Idem, Ibidem, p. 48. 95 Idem, Ibidem, p. 38. 96 Idem, Ibidem, p. 52-53, grifos meus.

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Em outro dialogo, Honório comenta:

- Não gosto de cinema. Gosto de circo. Grilo replicava: - Você não nega que é negro. Pois eu gosto. Isso é feito nas Oropas. - Coisa das estranjas... E Honório esticava o beiço num gesto de pouco-caso. Depois interrogava: - Como é que eles anda? - Ô nego burro. Tu não vê que tem um home lá atrás do pano que é a sombra dele que aparece? 97.

Assim, a narrativa mostra a cor da pele como um forte argumento de distinção social. Mas, na condição de explorados, ela faz pouca ou nenhuma diferença, pois na frente da filha do coronel todos se apequenam, inclusive Grilo: Honório amolava o facão. - E você, seu negro, continua muito preguiçoso? Honório espiava com os olhos mansos e sorria: - Nunca fui... Tem furtado muito João Grilo? - Não sei fazer contas...98.

Nessa obra amadiana percebe-se claramente a influência da interpretação pcbista, muitos apontaram que a tendência binária99 da obra ao colocar em polos opostos rico/pobre, bom/mau, proletário/burguês, amor/ódio, vale o mesmo para brancos/negros, se os ricos são alvos os pobres são mulatos ou negros100. Observamos então, nesta polarização baseada na luta de classes que a cor da pele está envolvida e a população de cor está do lado mais fraco. Como também, a ideia de segunda escravidão, os trabalhadores das fazendas de cacau são chamados de alugados, nome reminiscente do período escravista, como os escravos de ganho eram chamados. Elementos que serão desenvolvidos em outras narrativas já aparecem em Cacau, como uma referência ao pai de santo Jubiabá, personagem do próximo romance a ser analisado, e elementos da cultura negra, como as canções de "macumba" cantadas por Honório durante a colheita. Interessante observar na história de Cacau que os dois personagens com potencial e consciência de que a mudança social era necessária, Colodino e Cordeiro, partem para o Rio

97 AMADO, Jorge. Cacau. Op. cit., p. 62. 98 Idem, Ibidem, p. 99. 99 Entre tantos, lembro a primeira crítica de Octávio de Faria no Boletim de Ariel que aponta essa característica. 100 Com exceção de Mariá, filho do coronel proprietário da fazenda Fraternidade, a narrativa não denomina os brancos, mas como já havia comentado a narrativa não perde a oportunidade de descrever apontar os negros e mulatos. Fato também apontado por José de Souza Martins (2010).

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de Janeiro, onde se tornam militantes comunistas. Já Honório continua envolvido nas teias das relações patriarcais baseadas no favor, apesar de desmoralizado devido a sua recusa, não foi expulso da fazenda e continuou usufruindo da mesma condição em função da relação com o coronel, ou seja, sua consciência social continuou sendo intuitiva e não existe caminho para que ela se desenvolva. O que se percebe de fato é que o negro tem pouco espaço, mas diferente do que muitos apontaram não passa despercebido. Afirmar que o negro e o mestiço aparecem nos mesmos termos que o romance de estreia soa exagerado, até porque elementos da cultura são introduzidos. O que se observa em Cacau, nas descrições desses personagens, especialmente Honório, é que longe de ser proletário e mais próximo de um remanescente do período escravista, o narrador enxerga nele elementos potencial para transformação social.

O remorso de Damião: Terras do sem fim

Em Terras do sem fim é narrada a disputa pela conquista do território de Sequeiro Grande a fim de ser utilizado na lavoura cacaueira. Narrado em terceira pessoa, a história se passa no início do século XX, num período anterior à história de Cacau. Como bem observou Duarte, o passado é revivido “não apenas como um tempo perdido ou espaço nostálgico de fantasia e do mito, mas sobretudo como pré-história do momento atual, elo vivo de um processo em andamento”101. Se valendo do discurso indireto livre, o romance intercala nas falas dos personagens os diversos discursos inserindo pontos de vista contrastantes. O conflito entre os irmãos Badaró e o coronel Horácio da Silveira na tentativa de ampliar o território para o plantio orienta o romance. A violência permeia a história, coronéis e seus aliados lançam mão de todo tipo de estratégia, desde coerção até assassinatos e manobras jurídicas, na disputa por mais terras. A ação dramática se passa na atual região de Ilhéus quando regida por relações de produção e sociabilidade vinculadas às oligarquias, ou seja, uma hierarquia política calcada no poder dos grandes latifundiários e pela atividade econômica de exportação de matéria-prima. Como pano de fundo da história da oligarquia cacaueira, a vida de aventureiros, jagunços, advogados, prostitutas, trabalhadores pobres e toda sorte de agregados se cruzam na ânsia de fazer fortuna com os “frutos de ouro”.

101 DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Op. cit., p. 122-123.

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O personagem mais aclamado do romance é o jagunço negro Damião. Mesmo com a maior profundidade dramática dada ao personagem, é quase impossível não aproximá-lo de Honório. Como observamos os trechos abaixo sobre Damião: Homem de confiança, certeiro na pontaria, devotado como cão de caça [...] sua fama corre, há muito que está além de Palestina, de Ferradas e de Tabocas. Dos botequins de Ilhéus, onde comentavam seus feitos, ele viajara nos equinos navios até a capital e um jornal da Bahia já publicara seu nome em letra redonda. Como era um jornal da oposição falava muito mal dele, chamava-o de nomes feios. Como ele riu, Damião riu também, seu largo riso inocente, os dentes brancos e perfeitos brilhando na enorme boca negra [...] É verdade, Sinhô, sim. Não se de cabra mais certeiro na pontaria que esse negro que tá aqui- e riu novamente com satisfação. [...] leu a notícia para Damião que só a compreendeu pela metade, havia muitos termos demasiado difíceis para ele. Mas se foi satisfeito porque Sinhô Badaró gritara para dentro102.

As circunstâncias que geram reflexões dos personagens são praticamente as mesmas, envolvem uma tomada de consciência frente à encomenda de um assassinato. No desenrolar da narrativa, a família Badaró decide matar o posseiro Firmo, Damião, convocado para executar o serviço, hesita pela primeira vez na vida: Mas hoje há alguma coisa que o impede de aceitar [...] Se antes alguém lhe dissesse que era terrível esperar homens na 'tocaia' para matá-los, ele não acreditaria, pois seu coração era inocente e livre de toda maldade. As crianças da fazenda adoravam o negro Damião que servia de cavalo para as mais pequenas, que ia buscar jacas mole nas grandes jaqueiras, cachos de banana- ouro nos bananais onde viviam as cobras, que selava cavalos mansos para os maiorzinhos passearem, que levava todos para banho no rio e ele ensinava a nadar. As crianças o adoravam, para elas ninguém era melhor que o negro Damião103.

A reflexão de Damião se inicia depois que ouve um comentário de seu patrão, que, segundo a narrativa, "[...] era como um deus para Damião. Respeitava-o mais que Jeremias, o feiticeiro que o tinha 'curado' de bala e de mordida de cobra104”. Sinhô Badaró questiona: ‘Tu acha bom matar gente? Tu não sente nada? Nada por dentro?’ Damião nunca pensou que se pudesse sentir nada. E hoje ele sente, as palavras do coronel estão sobre seu peito com um peso impossível de arrancar, mesmo por um negro forte como Damião. Ele sempre odiou a dor física105. Damião nem sabe quantos matou. Sabe que foram mais que cinco porque até cinco ele sabe contar e contou106.

102 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. São Paulo: Martins, 19__, p. 46-47, grifos meus. 103 Idem, Ibidem, p.47- 48, grifos meus. 104 Idem, Ibidem, p. 51. 105 Idem, Ibidem, p. 48, grifos meus. 106 Idem, Ibidem, p. 49-50, grifos meus.

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Até então, Damião era uma pessoa inocente que não via maldade no que fazia, trabalhava desde menino como jagunço. O remorso toma conta do personagem, pois pela primeira vez na vida se deu conta que matava pessoas. Seu pensamento se fixara na esposa do lavrador, Teresa, uma mulher bonita, branca "como folha de papel” de ar virginal e pensa: "Mas que faz ali Teresa? É branca, rosto branco de dona Teresa?107". A loucura de Damião se deveu ao impasse entre “trair” os Badarós, que o acolheram, ou matar a família de Firmo. Damião erra o alvo, fato que foi o estopim de uma guerra entre as famílias protagonistas. A falha foi atribuída à obra de feitiçaria e marcou o início de sua desgraça: " [...] 'foi coisa de feiticeiro’. Assim diz o romance, assim eles o dizem hoje também [...] A praga do negro Jeremias era distribuída, naquele tempo das lutas, pelas estradas, de fazenda em fazenda, na voz do negro Damião, magro e sujo, doido e manso choramingando pelos caminhos do cacau"108. Interessante observar que a crise de Damião é contada pelo narrador onisciente, sendo assim, somente o narrador e o leitor sabem o que realmente se passava com o personagem. Na voz dos outros personagens, foi tudo por conta de algum fato sobrenatural, reforçando ainda mais a ideia que naquela sociedade era impossível para uma pessoa dentro daquela condição ter juízo próprio. Na situação do jagunço, o mandonismo109 é apresentado na sua forma mais perversa, ser servil seria algo tão entranhado que errar o alvo foi considerado por ele uma traição ao patrão e foi através desse fato que descobrira que “era apenas um 'jagunço' [...] ele não tinha que fazer110”, ou seja, não tinha margem para tomar suas próprias decisões. Damião é o personagem submisso que mesmo acreditando que era errado o que fazia não passa pela sua consciência recusar o trabalho. O erro o inutiliza, cai em desgraça, desacreditado e termina a vida rogando pragas e delírios pelo povoado. Assis Duarte complementa: “A relação de mando/obediência possui também um forte aspecto de devoção111, pois o jagunço se sente ‘preso pelo coração’ aos desígnios dos Badarós. Desta forma, a perda do juízo concede um sentido trágico ao servilismo a que está submetido o personagem112”. É

107 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Op. cit., p. 51. 108 Idem, Ibidem, p. 165. 109 Como bem apontou Eduardo Assis Duarte (1996). 110 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Op. cit., p. 54. 111 Ao analisar o romance Tollental (1997) aponta que Damião não tem consciência da dominação de classe, sua culpa é cristã baseado no pecado. 112 DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Op. cit., p. 142, grifo do autor.

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interessante notar que é uma espécie de devoção que ele também sente pela mulher de Firmo, que o tratara como humano em certa ocasião, conversando e oferecendo bebida, diferente das outras pessoas do povoado. Como antes observado, Damião foi o personagem mais notável do romance pela crítica. Ilya Erenburg, Aluísio Medeiros e Álvaro Lins apontaram a riqueza do personagem. O editorial do periódico Diretrizes destacou o personagem e o compara com Podsnap de Charles Dickens. Lembrando que o drama do personagem foi encenado pelo Teatro Experimental do Negro. Considerado o verdadeiro dono da mata de Sequeiro Grande, Jeremias foi um respeitado feiticeiro, acusado de ser responsável pelo remorso de Damião e outras desgraças que ocorreriam na “terra adubada de sangue”, como também aquele que auxiliava na cura de doenças e outras necessidades da população. Sua descrição é mistura de mistério com degradação física: "Quantos anos terá esse negro Jeremias, de carapinha branca, de olhos que já perderam o brilho, quase cegos, de corpo curvado, seco de carnes de rosto retalhado de rugas, de boca sem um só dente, e cuja voz é apenas um murmúrio que é necessário adivinhar?113". Reminiscente do período escravista, sua prática religiosa se aproxima da umbanda, pois mesclava elementos africanos e indígenas, é narrada como uma forma de resistência: Vinha de um engenho de açúcar onde o senhor mandar chicotear as suas costas escravas. Durante muitos anos tivera tatuada nas espáduas a marca do chicote. Mas mesmo quando desapareceu, mesmo quando alguém lhe disse que a abolição dos escravos havia sido decretada, ele não quis sair da mata [...] Só não havia perdido a lembrança dos deuses negros que seus antepassados haviam trazido da África e que ele não quiser substituir pelos deuses católicos dos senhores de engenho [...] Misturou aos seus deuses negros alguns dos deuses indígenas e invocava uns e a outros nos dias em que alguém ia lhe pedir114.

No caso de Jeremias, podemos ver que na narrativa a utilização de elementos culturais africanos como forma de libertação e resistência à ganância dos brancos, ideia difundida em Jubiabá. Mas Jeremias sucumbe e morre ao saber da invasão da mata que era sua morada. A realidade desse ex-escravo é diferente da dos negros que vivem presos em relações similares a do período histórico anterior. A história do romance é povoada por negros e mulatos em posições subalternas, fazendo parte da paisagem das lavouras cacaueiras e das casas-grandes, com o narrador olhando a movimentação desses no cotidiano, a exemplo dos

113 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Op. cit., p. 84. 114 Idem, Ibidem, p. 85.

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trechos: "Os negros trabalham nas barcaças, resolvendo o cacau mole"115; "Só quando ele voltou as negras ascenderam as lâmpadas de querosene"116; "E chegou o jantar servido pelas negras que olhavam desconfiadas para Ester"117 ; "Viriato mulato sarará que viera do sertão, propõe uma aposta"118; "As negras serviam as infindáveis sobremesas [...] Felícia entrava com a bandeja de café"119; "Os trabalhadores da roça partiam todas as manhãs para as roças [...] cantando tristes canções: ‘Vida de negro é difícil, É difícil como o que...’ [...] Eram, em geral, homens calados, de poucas palavras, de idade quase indefinida, negros e mulatos, de quando em vez loiro contrastando com os outros Sinhô e Juca os conheciam todos e Don'Ana também. Aquele espetáculo de repetia diariamente"120. Os trechos citados passam a impressão que a escravidão negra continuava mesmo tendo sido abolida há pelo menos trinta anos. Se para os homens não havia muito mais do que vida nas roças de cacau como forma de sustento, para as mulheres o destino se mostrava mais cruel; as que não se casavam ou eram "crias" da casa-grande viravam "mulheres da vida", ou seja, caiam na prostituição: "Mulheres de caras machucadas, mulatas, negras, uma que outra branca. Nas pernas e nos braços, por vezes nos rostos, marcas de feridas. Havia no ar um cheiro de álcool misturado com perfume barato. Uma mulata cuja cabeleira despenteada subia enorme para o alto andou junto do cadáver"121. Em outro trecho afirma "Negro tem filha é mesmo pra cama de branco..."122. Terras do sem fim começa narrando a história de Antônio Vitor, "caboclo, alto e magro, de músculo salientes e grandes mãos calosas. Tem vinte anos e seu coração está cheio de saudade”123, que se casará com Raimunda. A trajetória do casal que será narrada nos dois livros, versa sobre a ascensão do homem pobre "livre" nas terras do cacau. O baiano Antonio Vitor deixa a noiva para trás em troca da promessa de riqueza fácil: Antônio Vitor dormia com sorriso nos lábios, sonhava talvez com uma fortuna conquistada sem esforço nas terras de Ilhéus, com sua volta à Estância, em busca de Ivone. Sorria feliz. O comandante parou, olhou o mulato que sonhava. Virou-se para o imediato: - Tá rindo, vê? Vai rir menos quando estiver na mata... Empurrou com o pé a cabeça de Antônio Vitor, murmurou:

115 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Op. cit., p. 36, grifo do autor. 116 Idem, Ibidem, p. 37. 117 Idem, Ibidem, p. 38. 118 Idem, ibidem, p. 60. 119 Idem, Ibidem. 120 Idem, ibidem, p. 150. 121 Idem, Ibidem, p. 91. 122 Idem, Ibidem, p. 94. 123 Idem, Ibidem, p. 13.

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- Me dão pena... [...] Por vezes me sinto como o comandante de um daqueles navios negreiros do tempo da escravidão... Como o imediato não respondesse, ele explicou: - Daqueles que em vez de mercadorias traziam negros para serem escravos... [...] - Que diferença há?124.

Como observado no trecho acima, a comparação entre a relação de trabalho nas fazendas de cacau com a escravidão negra do período anterior está presente. Em outro trecho um personagem anônimo diz: "Eu era menino no tempo da escravidão...Meu pai foi escravo, minha mãe também...Mas não era mais ruim que hoje... As coisas não mudou, foi tudo palavra...”125. Para tanto, o local onde os fazendeiros escolhiam os trabalhadores era chamado de "mercado de escravos". A fatalidade ocorrida com Damião foi a chance de ascensão de Antonio Vitor126, que se torna homem de confiança dos Badarós após salvar um dos membros do clã de uma tocaia. Como bem observado por Tollendal127, com esse fato a personagem muda, a condição de jagunço o desumaniza, se torna um personagem que simplesmente compõem o cenário das ações, seu drama e ponto de vista é colocado de lado e só volta a ser abordado em São Jorge dos Ilhéus. Raimunda, como parece ser uma norma entre os personagens de cor amadianos, também é descrita como degradada fisicamente: "forte e decidida como um homem [...] os pés grandes, muito mais negros que o rosto mulato, afundando na lama picada". Afilhada de Don'Ana Badaró, era filha de Risoleta, cozinheira da casa-grande: "uma negra linda, de ancas roliças e carne dura. Ninguém sabia quem era o pai de Raimunda que nascera mulata clara de cabelos lisos"128. Insinuando que era irmã de Juca, Sinhô e Don'Ana Badaró por parte de pai. Interessante observar que o fenótipo da mulata, que representará a brasilidade e se tornará positivo nos futuros romances de Jorge Amado, nesse momento é negativo. A feiura do rosto de traços mestiços da personagem prenomeada de “mulatinha” será constantemente

124 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Op. cit., p. 27. 125 Idem, ibidem, p. 71. 126 Como apontou Tollendal (1997), Damião e Antonio Vitor são personagens da decadência, incapazes de qualquer realização, marcados negativamente e sem traços de heroísmo. Trabalhadores sob proteção da classe dominante, ou seja, jagunços, que foram recompensados pela servilidade. 127 TOLLENTAL, Eduardo José. Arte revolucionaria, forma revolucionaria: a literatura política de Jorge Amado e Alejo Carpentier. Tese (Doutorado em Teoria Literária). Instituto de estudos da linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997. 128 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Op. cit., p. 63-64.

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reafirmada e como observamos no parágrafo acima contrapõe a beleza da mãe negra. O que diferencia Raimunda são os traços da personalidade que a aproximam de um homem, característica que no futuro será de grande valia. Segundo a narrativa, o interesse de Antonio Vitor por Raimunda não era por sua beleza, reforçando negativamente as feições mestiças: "Ele queria um corpo que esquentasse o dele nas longas noites de chuva dos meses de inverno, de maio a setembro, a estação das águas [...] A cara dela talvez não seja uma beleza, mas Antonio Vitor tem na cabeça é o seu corpo forte, de nádegas grandes, de seios rijos, de roliças coxas". Juca Badaró questionava: "[...] que vira de bonito naquela cara fechada de mulata"129. O que marca o mulato é a capacidade física. A narração do momento em que Antonio Vitor resolve casar com Raimunda expõe a relação de dependência com a família Badaró: Se padrinho Sinhô deixar, eu quero sim... [...] Que foi? Juca riu de novo: - Disse que só queria uma coisa. Que tu deixasse ele casar com Raimunda. Ora, já se viu...Tem cada uma...Vou dar terra ao desgraçado e ele prefere essa bruxa horrorosa... Eu prometi que tu ia consentir... Sinhô Badaró não fez objeções: - E quando ele casar fica com a terra também. Quando tu for em Ilhéus dê ordem a Genaro pra registrar no cartório. É um mulato bom...E Raimunda também tem o direito, prometi o pai que não deixaria deserdada quando ela fosse casar. Dou o meu consentimento. [...] - É engraçado... Raimunda e Don'Ana são da mesma idade, mamaram as duas no peito da Risoleta...Cresceram juntas, era bom que casassem juntas...130.

Raimunda se casa no mesmo dia que “irmã de leite” Don'Ana. Nascidas no mesmo ano, a relação assimétrica que tinha com sua madrinha/irmã é explorada pela narrativa. A narrativa intercala a descrição dos dois casamentos para opor as diferentes realidades. Enquanto para o casal da casa-grande é utilizado o termo casamento e benção, para o casal de lavradores é usado o termo ligar "para a vida e para morte". No mais: Antonio Vitor calçava umas botinas negras que o incomodavam muitíssimo, Raimunda tinha aquele rosto zangado de sempre. E, à noite, por mais que Don'Ana dissesse que eles não deveriam trabalhar naquele dia, ela ficou na cozinha ajudando e ele serviu bebida aos convidados, capengando um pouco devido às botinas novas131.

129 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Op. cit., p. 66, grifos meus. 130 Idem, Ibidem, p. 182-183. 131 Idem, Ibidem, p. 194.

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Há uma crítica narrativa sobre as relações paternalistas no tocante ao tratamento com Raimunda, mas não deixa de se referir a essa como “mulatinha”, afirmando que a personagem passou a infância das sobras de Don'Ana: "dona Filomena, que era uma mulher religiosa e boa, costumava dizer que Don'Ana havia tomado a mãe de Raimunda e por isso os Badarós tinha que dar algo à mulatinha"132, e que a própria mãe tinha preferência pela “filha” branca, para Raimunda restava os serviços domésticos, "mas na casa-grande também lhe ensinaram costura e bordado, lhe ensinaram a ler as primeiras letras, a assinar o nome e a fazer contas de somar e diminuir. Os Badarós acreditavam estar pagando a dívida133". Depois da morte da mãe, passa a viver na casa-grande sob proteção da senhora Badaró, que "protegeu sempre a mulatinha quando viveu"134, mas depois da sua morte vive igual as outras “crias da casa”. Assim, Raimunda cresceu com desejos irrealizados, sem bonecas ou brinquedos, surras injustas e sobras de Don’Ana, numa família que até os irmãos duvidavam da sua humanidade: [...] lavar, remendar roupa, buscar água no rio, fazer os doces. Só nas festas Don’Ana lhe regalava um corte de fazenda ...[...] Ela não tinha ordenado, para que precisava ela de dinheiro se tinha de tudo na casa dos Badarós? [...] É que ele mesmo não se dava conta que Raimunda pudesse ter nenhum desejo [...] Raimunda tinha uma cara séria e zangada, fechada para todos. Juca, que não deixava passar mulher perto dele, fosse mulher da vida ou mulher casada na cidade, fossem as mulatinhas na roça, mesmo as negras, nunca se metera com Raimunda, talvez a achasse feia, o nariz chato contrastando com o rosto quase claro. Era zangada, a própria Don'Ana o notava e em geral, na fazenda, diziam que Raimunda era 'ruim', não era de bom coração. Parecia não estimar ninguém, vivia sua vida calada, trabalhando como quatro, recebendo o que lhe davam com um agradecimento murmurado. Assim crescera e se fizera moça. [...] Raimunda nunca há de deixar a gente. Ela tem aquela cara fechada mas gosta da gente... E se enternecia de repente, lembrando-se de Risoleta e nesses dias dava sempre um vestido velho à mulata, ou uma prata de dois mil-réis. Mas essas conversas sobre Raimunda eram raras, os Badarós nem sempre tinham tempo de se preocupar com o futuro da 'irmã de criação' 135.

Uma história que terá desfecho no romance São Jorge dos Ilhéus, e será observada nas páginas seguintes136.

132 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Op. cit., p. 64. 133 Idem, Ibidem, p. 65, grifos meus. 134 Idem, Ibidem, p. 65. 135 Idem, Ibidem, p. 65 – 66, grifos meus. 136 Chama atenção que os personagens Antonio Vitor e Raimunda foram observados pela crítica ou por trabalhos realizados sobre Terras do sem fim, especialmente Raimunda, que foi citada em um breve comentário de Tollendal sobre a personagem e seu casamento.

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Os filhos da terra em São Jorge dos Ilhéus: Antonio Vitor, Raimunda e Joaquim

Em São Jorge dos Ilhéus é possível observar o início de uma nova ordem econômica. Nesse livro, os mesmos coronéis, que exploraram as terras de Ilhéus com o sangue de seus jagunços, trabalhadores e adversários, aparecem como presas fáceis, ou melhor, “crianças tímidas”, frente os interesses daqueles que representam o capitalismo imperialista: as firmas agroexportadoras. Um romance em que, devido à preocupação histórica, na ânsia de descrever a realidade, o contexto histórico é explicado de forma detalhada e toma longas páginas do livro. A epígrafe explicita a tentativa de imparcialidade que cede a paixão, especialmente nas últimas páginas do romance: "Nesses dois livros tentei fixar, com imparcialidade e paixão, o drama da economia açucareira [...] E se o drama da conquista feudal é épico e o da conquista imperialista é apenas mesquinho, não cabe culpa ao romancista137”. Com o fracasso dos filhos/netos da aristocracia cacaueira, na perspectiva da narrativa os trabalhadores seriam os verdadeiros herdeiros da saga dos coronéis. Sendo assim, os heróis desse romance são os membros do Partido Comunista. Embora não sejam seus protagonistas, eles são tidos como os mais íntegros, valentes e enaltecidos pelo narrador. Assim, acompanhamos uma mudança no narrador, que na obra anterior muitas vezes era um observador apurado dos desmandos patriarcais e da dependência gerada por essas relações. No momento em que se vê frente ao avanço do capital estrangeiro, muda de perspectiva, enxergando muitas vezes as relações do período anterior mais humanizadas se comparadas ao tempo que estava chegando. Mais de vinte anos do fim da narrativa de Terras do sem fim se passaram; nesse tempo, Antonio Vitor e Raimunda138 eram um próspero casal de lavradores que tinha a mesma quantidade de terras que o agora decadente casal Don'Ana e João Magalhães. A prosperidade trouxe divergências entre um homem deslumbrado que fora para Ilhéus fazer riqueza e a mulher “cria da casa-grande” com os pés no chão. Na narrativa de São Jorge dos Ilhéus o casal

137 AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 11. 138 Sobre o casal, na percepção de Assis (1996), eles adotam a visão de mundo dos que os exploram, sua ascensão tipifica os mecanismos da família patriarcal brasileira sendo exemplo dos estudos de Gilberto Freyre e a decadência se deve ao deslumbramento ingênuo. Não resta dúvidas que a ascensão de ambos muito se deve a fidelidade a família da casa grande, mas o olhar narrativo sobre Raimunda e a relação dependência sempre foi crítico. Nélio Reis apontou a superioridade de Raimunda em relação a Antonio Vitor, o amor dessa a terra sem prensar em lucros “querendo-a bem porque a terra é boa, muito melhor que a dos homens na sua cubiça de mando (sic)”.

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humaniza-se, ou seja, o narrador expõe suas opiniões; na produção anterior o que sabemos deles vem da voz do narrador onisciente que os observa na relação com os Badarós. Nesse momento que ganham voz, mal saberiam se expressar segundo o olhar narrativo: Vai chover, Antonho! Nunca soube dizer Antonio, trocando o i por um h. - Vai chover hoje mesmo. Antonio riu, bateu no ombro dela com a mão calosa, Raimunda riu também, evidentemente eles queriam dar maiores sinais de alegria mas não sabiam como. Ficaram mesmo parados, rindo um para o outro aquele riso desconfiado e tímido139.

E novamente, com um narrador mais simpático, considerando-os mais autênticos donos da terra e com mais tino para os negócios que os reais herdeiros, são colocados em oposição aos ex-patrões, como na ocasião que celebravam 25 anos de casamento: "O capitão e Don'Ana tinham naquele dia, atenções especiais um para o outro [...] Ela tinha uma expressão doce de felicidade. Antonio Vitor e Raimunda sentiam que possuíam os mesmos motivos para o idêntico gesto de alegria, mas não sabiam fazer e voltaram pela estrada, à noite, calados e sérios, apartando um ao outro, sem palavras"140. O narrador não perde a oportunidade de criticar a atitude dos herdeiros. Antonio Vitor e Felícia, um do lado dos Badarós e outro de Horácio, choraram a morte de seus patrões “como crianças”, enquanto os familiares disputavam herança e/ou demonstravam suas inabilidades de gerir a terra e superar as relações do período anterior: Reclamara com Raimunda, como se ainda fosse sinhazinha de antigamente e a outra cria da casa. Hoje eram quase iguais, colhendo uma e outra quase a mesma quantidade de cacau [...] vive num outro mundo que é bem mais formoso que o atual, um mundo os negócios de cacau se resolviam a bala nas estradas, e não, como agora, nos escritórios comerciais, entre telefonemas e telegramas141.

Por meio das descrições do trato com os empregados, podemos notar as contradições do narrador amadiano, que procura elucidar desde Terras do sem fim, com Raimunda, o “bom”142 trato dos patriarcas com suas crias e o desprezo dos filhos com os fiéis empregados, o que também se percebe na família Horácio: “negra Felícia, único ser que [Horácio] tratara com bondade [...] Silveirinha sentou-se, Felícia foi em busca de um prato para

139 AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. Op.cit., p. 72. 140 Idem, Ibidem, p. 73. 141 Idem, Ibidem, p. 98. 142 São narradas situações que a esposa do patriarca Marcelino é mais sensível no trato com Raimunda que seus filhos, na crença que estava fazendo justiça.

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o 'doutorzinho'. Ela o queria, tinha-o visto nascer, quando Ester morrera fora ela quem tomara conta do menino e quem o criara. Para ela Silveirinha também a estimava, porém como se gosta de um cão, com distância"143. O elogio da narrativa aos desbravadores144 se reforça no desenvolver da história do casal de lavradores. O deslumbramento de Vitor, que junto com outros coronéis agiam como donos da terra, é desaprovado e visto de forma moralista pelo narrador; já o comedimento de Raimunda, personagem que pertencia ao momento anterior, pois recusava e desconfiava de todas novidades que surgiam, como o fogão de ferro, a cama de mola, a casa de alvenaria ou a alta do cacau, sendo comparada a uma árvore145, é vista com simpatia. Novamente, a vida dos trabalhadores das fazendas, na sua maioria negros e mulatos, também é narrada como uma vida sem grandes possibilidades. Como Varapau e Florindo, que como escravos cativos, pensam na fuga. A narrativa sobre Florindo se aproxima de tantos outros personagens negros aqui abordados: O negro Florindo é forte como um elefante bom como um menino. Só sabe rir e cantar, não sabe mesmo fazer outra coisa [...] a voz do negro Florindo relata a vida desses negros, mulatos e brancos curvados na roça146. Só Florindo não tem opinião, para ele tudo é igual, tudo é bom e alegre. E o negro ri sua gargalhada clara147.

O sonho de ser "livre" de Florindo e Varapau acaba se realizando com a baixa do cacau. Varapau vai além, se tornando um dos líderes comunistas da multidão de miseráveis: "A ele devia o militante, em grande parte, a possibilidade da manifestação que atravessou as ruas de Itabuna, pedindo comida e condução [...] o Varapau encontrava finalmente alguma coisa em que empregar a sua inquieta personalidade"148. Assim, novamente veremos o narrador amadiano colocando que a saída para o homem de cor seria a mobilização trabalhista, nela os traços instintivos da personalidade encontram morada. Já para a mulher resta a prostituição, como Rita, musa da região, em que os traços do rosto mestiço são destacados:

143 AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. Op. cit., p. 193. 144 Fato também notado por Cyro de Mattos (2013), os sobreviventes da fase heroica da conquista retornam neste livro com a simpatia do ficcionista, onde a decadência física e material do coronel Horácio é acompanhada pari passu. 145 A exemplo da citação: “Parecia ali uma arvore daquela terra, plantada ali com profundas raízes, seus pés abertos e negros [...] uma árvore da terra mais que uma mulher. Arvore daquela terra dele, plantada por ele s, vinte e sete anos misturados com ela, dormindo em cima dela, comendo em cima dela, parindo e amando em cima dela. Plantados na terra as arvores começam a envelhecer" (AMADO, 2010, p. 84-85). 146 AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. Op. cit., p. 102. 147 Idem, Ibidem, p. 105. 148 Idem, Ibidem, p. 310.

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Todos dizem que ela é bonita, alguns afirmam que é a moça mais bonita das roças de cacau. Talvez bonita seja um exagero. Seu corpo é benfeito, esguio, corpo de cabrocha, mas o rosto não é belo, o nariz grande, os olhos miúdos e excitantes. Pés de homem [...] mãos crespas. Mas os seios eram duros, o ventre liso, as coxas roliças149.

Antonio Vitor e Raimunda tiveram dois filhos, Rosa, "mulata de cara risonha como Antonio Vitor [...] conversadeira como ele, cheia de relações pela roça e fazendas vizinhas" e Joaquim, parecido com Raimunda: "o mesmo rosto fechado e enérgico, a mesma bondade escondida sob uma capa de resmungos e palavras murmuradas, a mesma obstinação150". O destino dos filhos do casal é diferente: enquanto Joaquim, que opta pela resistência, e se transforma em militante comunista, Rosa consegue um bom casamento dentro de suas possibilidades, um homem igual ao pai, capataz de confiança de um grande coronel da região. Joaquim se destaca no fim do romance, parece ser um revolucionário nato, crítico do comportamento do pais desde menino – acreditava que eles pagavam pouco aos trabalhadores temporários e por isso sai de casa –, com uma coragem supostamente herdada dos Badaró: "[...] aqueles modos bruscos que o faziam um pouco parecido também com os Badarós. Aliás, talvez nas veias de Joaquim corresse algum sangue dos Badarós, já que falavam que Raimunda era filha do velho Marcelino Badaró151”. Pouco se saberá dele, além de que era um homem devotado ao Partido Comunista: Joaquim ama várias coisas no mundo, ama aquela velha Raimunda, que parece uma árvore e vive curvada sobre a terra, plantando e colhendo cacau. Ama, apesar de tudo, o cabloco Antonio Vitor, que o expulsou de casa e não compreende nada. Ama Jandira, uma mulatinha copeira na casa do gringo Asfora, que passeia com ele na praia nas noites de lua. Amar o mar de Ilhéus nas noites do cais, de conversas nas pontes com os estivadores. Ama os motores dos ônibus e dos caminhões, ama as árvores do cacau que foram a visão da sua infância. Mas ama de modo diferente seu partido. O partido é seu lar, sua escola, sua razão de vida152.

Chama atenção que, a partir do momento que a mobilização comunista é colocada em destaque, o narrador insinua em diversas ocasiões que o sangue que corre nas veias do personagem é o dos desbravadores: Talvez aquela aguda sensibilidade viera do velho Badaró que dormira, segundo contavam em Ilhéus, com sua avó. Talvez viesse de um avô mais remoto, um daqueles holandeses que emigraram para Sergipe após a derrota em Pernambuco e que mesclaram seu sangue com os dos negros e mestiços do estado, fazendo com que alguns homens fossem altos como o mulato

149 AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. Op. cit., p. 156, grifos meus. 150 Idem, Ibidem, p. 81. 151 Idem, Ibidem, p. 83. 152 Idem, Ibidem, p. 142, grifos meus.

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Antonio Vitor. Talvez viesse de algum negro fazedor de música, algum negro saudoso da África153.

Sendo assim, Raimunda e Joaquim seriam um positivo resultado da mistura entre o sangue Badaró, que os deu personalidade forte, realista e capacidade de iniciativa, com o sangue negro, que os deu capacidade de resistência. O narrador atribui ao personagem sua consciência, uma interpretação comunista do desenvolvimento brasileiro, quando o último grande coronel morre, Joaquim comenta: era “o fim do feudalismo'"154. Apesar da miséria geral e a situação caótica para o narrador, a esperança comunista prevalecia na liderança de Joaquim: “[...] apesar dos cangaceiros e dos profetas, apesar da ignorância dos camponeses, na sua maioria analfabetos, apesar das mortes por fome que se sucediam, Joaquim ia reunindo os homens, já vinha gente de longe para ouvi-lo. Falavam nele de fazenda em fazenda, de bando em bando"155. Mas, mesmo com as palavras de esperança que o Partido Comunista e Joaquim traziam, a última página do romance é dedicada a resistência de Raimunda, com a família endividada essa morre pela terra que a criou: "[...] ela caiu de bruços sobre a terra [...]Virou-lhe o rosto, ela sorria, sim, ela sorria! Da terra chegava um cheiro bom e forte, terra boa para o cacau. Não ia entregar a sua terra. Não, Munda, não entregaria!"156. Retomando a essência original do romance que era a narrativa da decadência, mas com aspecto de heroísmo dado a atitude da personagem.

A mulher e o homem negro rural

Chama atenção que diferente de Cacau157 e Terras do sem fim, em São Jorge dos Ilhéus o negro mereceu algumas considerações por parte da crítica, mesmo muitas vezes confundido e/ou fundindo o escritor com o narrador. Segundo Táti, no trato com o povo negro o escritor dá mais lugar a inspiração poética, são apresentados de forma rude e primitiva,

153 AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. Op. cit., p. 142. 154 Idem, Ibidem, p. 283. 155 Idem, Ibidem, p. 303. 156 Idem, Ibidem, p. 268. 157 Sobre o negro ou a percepção da temática racial em Cacau encontramos poucas reflexões, dentre elas as de Rossi (2004), que conclui que o negro tanto nesse romance como em Suor aparece imerso na identidade proletária, sem elementos que o particularize. Já Teixeira Sobrinho (2012) pontua que nos dois romances – Cacau e Suor – o negro é condicionado a pano de fundo e que neles, juntamente com O país do carnaval, está presente a mesma noção biologizante da raça.

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entrelaçando fantasia com realidade, indicando uma certa benevolência com esses personagens, tenta reformá-los politicamente, pondo-os no caminho da revolução: “todas as crendices se transformam, numa força superior às teorias, força atávica, mitos que a inteligência do escritor não tenta repelir, ao contrário, recebe-os com prazer, assimila-os, aceita-os inclusive como personagens, ativas e presentes”158. Já Almeida afirma Jorge Amado tenta romper com preceitos da década anterior: [ ...] se coloca numa atitude redefinitória, quando nega o ‘determinismo racial’ em que a ‘preguiça’ era associada à miscigenação, uma ‘raça impura, mestiça em que o sangue do escravo e do índio permeou a pureza do branco colonizador’ criando ‘tipos biológicos’ incompatíveis com o trabalho regular. Esta representação, contestada pelo autor, foi dominante em amplos setores da intelectualidade em outros períodos [...] Amado partilha ainda de visões subjacentes ao campo cultural anterior, de forma inconsciente, reproduzindo mecanicamente elementos destas visões hoje consideradas etnocêntricas [...] A visão progressista da participação política dos ‘trabalhadores’, enfatizado nos livros de Amado, coexiste com aspectos de uma representação reacionária que se insinuam na narrativa, a despeito da vontade do autor159.

Antonio Sérgio Guimarães chamou atenção para distinção étnica presente nos romances amandianos, os ricos são brancos e os pobres são negros ou mulatos: “Os alugados são sempre negros ou mulatos e assim tratados seguidas vezes – ‘o negro Florindo’, ‘o mulato Varapau’ – ou propositadamente chamados apenas de ‘negro’ [...] Mas Jorge, ao mesmo tempo, renega e se contrapõe frontalmente ao racismo implícito na referência racial, e por duas vezes no romance faz questão de deixar claro, planetariamente, que é a condição social e não racial que iria criar solidariedade entre os trabalhadores”160. São pertinentes as observações sobre os personagens negros nos romances de Jorge Amado, como a onipresença de elementos culturais que orientam seus comportamentos, um olhar benevolente com aqueles que agiriam por instinto, a prenomeação étnica desses, a organização trabalhadora como forma de redenção e superação, entre outros. Mas essas análises, ao fazerem a correspondência entre texto literário e autor, ao final sentem a necessidade de, quando não defender, justificar as descrições dos personagens de cor feitas pelas narrativas161.

158 TÁTI, Miécio. Estilo e Revolução no romance de Jorge Amado. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: Povo e terra. 40 anos de literatura. São Paulo: Martins, 1972, p. 134-135. 159 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Revolta e conciliação: Um estudo sobre a trajetória intelectual de Jorge Amado. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Museu Nacional, 1978, p. 130. 160 GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. História e sociologia no “romance novo” de Jorge Amado. In: AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p 338. 161 Lembrando que se considera a obra literária como fruto da relação dialética entre elementos internos, texto, e elementos externos, contexto e como é elaborado por Leopoldo Waizbort inspirado nas formulações de Auerbach:

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Retomando, nas narrativas amadianas, desde o início, percebe-se uma tendência a estereotipar as personagens negras, como já havia chamado atenção em O país do carnaval, apontando sempre características referentes a cor da pele: negro, preto, mulato claro, cor de cravo, entre outras e características fenotípicas: forte, dentes brancos, não muito inteligente, bom coração, olhar manso, preguiçoso, beiços largos, etc. A respeito de estereótipos e sua função de reforçar uma situação de inferioridade, recorro as palavras de Giralda Seyfert: De fato, para reforçar a posição social inferior dos negros, deforma-se o conceito de herança biológica e as diferenças de raça são utilizadas para separar as pessoas, designar seu lugar na sociedade; diferenças fenotípicas funcionam como signos de inferioridade social. Assim, as anedotas que situam o negro na posição de ladrão, marginal, analfabeto, irracional, animal etc. não são inocentes expressões de jocosidade e têm o poder de reforçar os estereótipos, os estigmas da raça [...]162.

Considerando a maior profundidade dramática dada ao personagem Damião, é quase impossível não o aproximar do personagem Honório. Ambos eram jagunços desde sempre, temidos homens de confiança do coronel, descritos pelo narrador como fiéis, sem maldade, com certa deficiência intelectual e características que os aproximam de um animal. A diferença entre a narrativas de Cacau e a de Terras do sem fim é que enquanto Damião toma consciência por meio um comentário de seu superior, a quem respeitava e não conseguia negar o pedido, a tomada de consciência de Honório foi intuitiva, mesmo sem articular exatamente as palavras, no seu raciocínio não deveria matar um igual. O final também é diferente: enquanto o primeiro enlouquece, o segundo retorna ao posto de homem de confiança do coronel. De qualquer forma, observa-se que o narrador não atribui senso crítico a esses homens negros. Os negros vivem num beco sem saída. No período histórico em que passa Cacau e Terra do Sem Fim não resta ao homem negro nenhuma saída a não ser a loucura ou a morte, como observamos no caso de Damião e de Jeremias, pois a emancipação do negro na percepção do narrador se daria ao se unir na luta dos trabalhadores. Quando a sociedade começa um processo de industrialização, uma esperança aparece na figura dos mestiços Varapau e, especialmente, Joaquim, que se tornam militantes do Partido Comunista e conduzem o início de uma aparente revolução. A revolta, tida como uma característica típica do negro, que começa instintiva e desarticulada e termina organizada. Não

“[...] não se trata de uma realidade dada de antemão, a literatura estaria a expor, mas sim uma realidade que é exposta na literatura” (WAIZBORT, 2002, p. 239, grifo do autor). 162 SEYFERT, Giralda. A invenção da raça e o poder discricionário dos estereótipos. In: Anuário Antropológico/ 93. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995, p. 200-201.

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podemos negar que a mistura está presente na grande liderança de Joaquim: o narrador atribui suas grandes qualidades ao fato de ser mestiço brasileiro, ou seja, uniu a resistência do negro advindo da África com a capacidade de iniciativa do europeu. Resistência, especialmente física, que enxerga em Raimunda, personagem que desvela os meandros da dominação patriarcal, mas que não resta a ela e a Antonio Vitor outro destino senão a morte em nome da terra.

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CAPITULO V- Entre putas e vagabundos: romances sobre o povo

O encontro com e negro e o proletário

Jubiabá, publicado em 1935 pela editora José Olympio, com ilustrações de Santa Rosa, inaugura uma nova etapa na carreira de Jorge Amado163, por representar um salto qualitativo na sua produção, por trazer o reconhecimento definitivo como escritor e também por condensar os dois debates no qual o escritor estava diretamente envolvido naquele momento, o negro na sociedade brasileira e o engajamento político de esquerda. O ambiente de repressão política refletiu diretamente na vida de Amado. Ele foi preso nesse período em duas ocasiões, suas obras sofreram restrição de publicação, de circulação e de criação literária. Seus próximos romances, Mar Morto (1936) e Capitães de Areia (1937), mesmo que como Cacau foram classificados ou tratados como romance proletário, como observa Almeida164 por meio do levantamento das críticas proferidas no momento da publicação, ou como romance de formação proletário, como prefere Duarte165, têm um caráter engajado menos evidente166. Retomando Jubiabá, sua publicação foi bem-sucedida, tanto que a editora decidiu reeditar seus livros anteriores. Foi traduzido para catorze idiomas, virou radionovela em 1946 e ganhou adaptações teatrais nas décadas de 1960 e 1970. Nelson Pereira dos Santos dirigiu em 1985 uma adaptação do romance para o cinema e a TV. Esse romance projetou Jorge Amado internacionalmente: em 1938 foi traduzido para o francês, pela editora Galliamard, com o título Bahia de tous les Saints, e outras obras suas começam a ser traduzidas para outras línguas como o espanhol e o russo. A publicação desse romance coincide com a publicação de outro grande destaque nas letras brasileiras, O moleque Ricardo167, de José Lins do Rego, publicado meses antes. Ambas

163 Vários críticos consideram que a partir de Jubiabá começa um segundo ciclo da obra de Jorge Amado, como: Antonio Candido, Sergio Milliet, Roger Bastide e Álvaro Lins. 164 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Revolta e conciliação. Op. cit. 165 DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Op. cit. 166 Candido (1961) aponta que entre os dois romances Jorge Amado faz uma espécie de movimento indo poesia lírica em Mar morto para a denúncia social em Capitães de Areia, movimento que encontrará sua síntese na década seguinte em Terras do sem fim. 167 A trajetória de Ricardo termina no romance seguinte Usina (1936). Uma análise desse personagem está presente na minha dissertação de mestrado Pelos olhos do menino de engenho: os personagens negros na obra de José Lins do Rego (2010).

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as obras têm como protagonistas negros em um momento que os estudos sobre a questão racial ganharam destaque. A diferença entre ambos os heróis é que Balduíno triunfa ao enfrentar a greve, já Ricardo sai derrotado depois da experiência de greve na cidade. Por isso, Balduíno muitas vezes é considerado o primeiro herói negro da literatura brasileira168. Outra aproximação que encontramos é de Jubiabá com Macunaíma, muito possivelmente pela inovação presente nas obras. Rubem Braga outrora afirmou que o herói de Jorge Amado está mais próximo do herói de Mario de Andrade que de Ricardo169; nesse sentido, Érico Veríssimo chamou Balduíno de "herói sem caráter", subtítulo do livro de Mário de Andrade170. Jubiabá conta com uma grande fortuna crítica, inclusive em outros países, como França, Portugal e países da África de língua portuguesa, como Moçambique e Angola – nestes, a história do menino negro que adere à causa dos trabalhadores irá inspirar os movimentos nacionalistas na luta contra o colonialismo171. Abordaremos esse assunto mais adiante neste trabalho. As críticas, na ocasião da estreia, destacam dois elementos: a afirmação de esse ser o melhor livro de Amado e o caráter de novidade da obra. João Lira Filho afirma que "Jubiabá é a melhor afirmação do seu autor, que nele realiza o seu destino na nossa literatura [...] romancista preferido para quem queira se por em dia com as virtudes fundamentais daqueles que constituem as classes oprimidas"172. Em seu editorial, o A manhã destaca a progressão de Amado: "[...] está progredindo mais e que desse seu último romance vai uma grande distância dos anteriores"173. O mesmo constata Oliveira Franco Sobrinho, para quem Jubiabá seria o nosso maior romance moderno.

168 Na ocasião do lançamento, José João de Albuquerque (1935) enxergou uma aproximação entre ambos, afirmando que os livros "[...] contém a semente da reabilitação dos espoliados, contém o germe do combate ao imperialismo, ao fascismo, ao hitlerismo e a todos fomentadores de guerra e escravidão". João Medeiros (1935) apontou os dois escritores como os maiores valores da geração. Já Telmo Vergara (1935) acreditava que os dois escritores formam bem-sucedidos, apesar do final, que considerou falso, de Antonio Balduíno. 169 BRAGA, Rubem. Jubiabá parece uma enchente e uma banda de música. Revista acadêmica, 1935. 170 MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit. 171 Como veremos no caso de Moçambique no último capítulo deste trabalho. No mais, Rita Chaves (2005), Carmem Secco (2006), Tânia Macedo (2006) já documentaram a aproximação de Jorge Amado com autores da África de língua portuguesa. Álvaro Salerma (1982) aponta que seus primeiros romances chegaram no início dos anos trinta em terras portuguesas e sua forte influência no movimento neorrealista português tema que a pesquisa de Edvaldo Bergamo (2008) aborda. Interessante também, a pesquisa de Eduardo José Tollendal (1997) sobre as aproximações da literatura engajada e sobre o negro do romancista baiano e do escritor cubano Alejo Carpentier. Todos marcam como fundamental a publicação de Jubiabá. 172 LYRA FILHO, João. Jubiabá livraria. A manhã, Rio de Janeiro, 13/11/1935. 173 Jubiabá, o novo romance de Jorge Amado. A manhã, Rio de Janeiro, 21/11/1935.

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Para um autor que começa com a intenção de dar testemunho da realidade, ao agregar poesia e elementos da cultura popular – ABCs, folhetos de cordel, causos da tradição oral, entre outros – chama atenção da crítica. João Medeiros fala do livro como "poema escrito em prosa"174; Jaime de Barros, no jornal Diário da Noite, aponta Amado como um dos maiores romancistas brasileiros e que "o realismo palpitante [...] não prejudicou o sentimento poético que encontramos em todas suas páginas"175; Dante Costa aponta a intensidade lírica: "A dor se reveste de lirismo [...]"176. Dias da Costa aponta a "grande força poética e um tom velado de surdina, que ficarão sempre afinados, onde quer que homens curvados para o chão, mas que não desanimaram, de um dia erguer as cabeças"177. Já Almeida Salles, considera o romance uma odisseia, comparando a saga de Balduíno com a de Homero, opinião compartilhada por Octavio Tarquínio de Souza, que ainda acrescenta que as preferências ideológicas não tiram a riqueza das personagens: "as preferências ideológicas do seu autor não conseguiram mutilar nas criaturas que nele vivem e sofrem o que é essencial ao homem, no esplendor e na miséria de sua condição”178. Um claro sinal da importância que o livro ganhou no momento de sua publicação é que o primeiro artigo do Boletim de Ariel, revista literária mais importante da época, do mês de novembro de 1935, é dedicado a Jubiabá, tarefa atribuída a Lucia Miguel Pereira, com quem o romancista travou intensos debates a respeito da presença do engajamento político na literatura. Como Octavio Tarquínio, a crítica destaca a grandeza do romance devido a menor preocupação ideológica de Amado: "Livro sem raciocínio – a não ser o do autor que de vez enquanto não se contém e pede a palavra para uma explicaçãozinha – livro de instinto e sensibilidade [...] Mas, com tudo isso, livro pujante, cheio de movimento de ternura e de poesia [...]"179 e o classifica como "romance de verdade". Na mesma crítica ao olhar militante, se dirige a observação de José Lins do Rego: "Para falar em miséria do povo brasileiro o romancista não precisa exagerar uma linha, nem puxar a melodrama. Basta exprimir a realidade"180. Outro elemento que não poderia ter deixado de chamar atenção na ocasião de lançamento é o aparecimento de um romance sobre o negro articulado com a luta de classes. O jornal Gazeta de Notícias cita o livro como o maior sucesso literário do ano e que "Toda Bahia

174 MEDEIROS, João Paulo de. Jubiabá. A manhã, Rio de Janeiro, 24/11/1935. 175 BARROS, Jayme. Espelho dos livros. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 10/11/1935. 176 COSTA, Dante. O romance 'Jubiabá'. Boletim de Ariel, n.3, dezembro de 1935, p. 71. 177 DIAS DA COSTA. Oswaldo. O mundo de Jubiabá. Boletim de Ariel, n.4, janeiro de 1936, p. 161. 178 MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit., p. 102. 179 PEREIRA, Lucia Miguel. Jubiabá. Boletim de Ariel, n.2, novembro-outubro de 1935, p. 29-30. 180 REGO, José Lins. Jubiabá. Boletim de Ariel, n.2, novembro-outubro de 1935, p. 29.

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negra de macumbas, de festas religiosas, o Senhor do Bonfim das Feiras, dos saveiros, está neste livro onde é estudada a vida dos negros brasileiros"181. No decênio de 1940, Álvaro Lins fez considerações sobre o romance, afirmando que é o primeiro de Jorge Amado que merece tal título, que mostra excelentes aspectos da existência do negro, mas a elaboração do romance deixa a desejar182. Dentre as críticas internacionais, destaca-se a elogiosa do escritor francês Albert Camus, na ocasião do lançamento do livro em francês, que enquadra o romance no "gênero 'cartão postal'" e que o tema do romance seria a liberdade: "[...] é a luta contra a servidão de um negro, miserável e analfabeto, e esta exigência de liberdade que ele sente dentro de si"183. Andre Gide, a quem se tem acesso por meio dos diários de Sergio Milliet, afirma: "Não posso interessar-me por essa narrativa linear, isto é, sem espessura, unicamente discursiva, embora admita a presença de qualidades de apresentação, aliás vulgares"184. Para o crítico brasileiro, escapou ao escritor francês a força primária de Jorge Amado. Em fins dos anos 1970, Jubiabá ganha a análise do líder negro Abdias do Nascimento, que aponta o olhar do branco e critica a erotização, a descrição estereotipada e folclorizada dos costumes negros que tem repercussão na vida prática, pois seria uma forma de manipular e manufaturar a cultura negra. Como já citado, a partir dos anos 1940 Jorge Amado ganha um maior reconhecimento, apontado como aquele que representa a população de cor na literatura. Nascimento inaugura uma outra percepção da obra do escritor baiano185. Assim, diferente de Cacau, São Jorge dos Ilhéus ou outras obras que são classificadas pela ênfase na temática político-partidária percebemos que Jubiabá foi um romance que ficou, por parte da crítica, menos preso a nomenclaturas e obteve mais destaque pelas discussões que trouxe à tona, o negro, a cultura popular e o proletário ganhando destaque internacional.

181 O novo romance de Jorge Amado, Gazeta de notícias, Rio de Janeiro, 10/1935. Edgard Cavalheiro (1935) chamou o livro de "romance do negro, o primeiro grande romance proletário brasileiro (s/p)"181. No mais, críticas presente na coletânea Jorge Amado: 30 anos de literatura (1961) apontam esse aspecto como as de Humberto Bastos, Lemos Brito, Reinaldo Moura, Josué de Castro e Jayme Barros no Diário da noite comentou que o escritor "[...] representa no romance o centro da vida dos negros brasileiros (1935, p.8)"181. 182 LINS, Álvaro. Problemas de um romancista. Correio da manhã, 05/10/1945, p. 2. 183 Publicado originalmente no jornal Alger Republican (09/04/1939) e reproduzido pela Folha de São Paulo cinquenta anos depois (Albert Camus, leu, gostou e elogiou Jorge Amado. Folha de São Paulo: São Paulo, 18/11/1989). 184 MILLIET, Sérgio. Diário crítico. São Paulo: EDUSP/ Martins Fontes, 1981, p. 265. 185 NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

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Crônica de uma cidade do interior

Vinte e três anos depois de Jubiabá foi publicado Gabriela, cravo e canela o romance de Jorge Amado com maior sucesso de público no país, criando novas referências para o mercado editorial brasileiro. Lançado em agosto de 1958, com capa de Clovis Graciano, junto com um disco composto por trechos do livro e uma saudação a Bahia narrados por Jorge Amado, com fundo musical composto por Dorival Caymmi chamado “Canto de amor à Bahia e quatro acalantos de Gabriela cravo e canela”, teve tiragem inicial de 20 mil exemplares que se esgotaram em duas semanas e até dezembro do mesmo ano já havia atingido a marca de mais de 50 mil cópias vendidas186. Um êxito acompanhado de perto pela imprensa nacional, que noticiava cada novo recorde de tiragem e vendas dos direitos de tradução e de filmagem, chamando especial atenção o frenesi criado para a escolha da atriz que protagonizaria Gabriela em sua primeira versão para a TV em 1960. Em artigo, o jornal Diário de Notícias fazia a pergunta: “Num país em que pouco se lê, e em que livro está custando os olhos da cara, é impressionante a procura de Gabriela. Por que isso?187”. Não resta dúvidas que com o romance o escritor atingiu um público mais amplo e indistinto, a publicação Semanário, na ocasião do lançamento do livro, trouxe uma série de depoimentos de pessoas de várias profissões, indicando origem social distintas, que leram os mais variados romances de Jorge Amado desde Capitães de Areia até Subterrâneos da liberdade elogiando os livros escritor. A maior medida da repercussão e sucesso de Gabriela é como ele se fez presente no cotidiano. O nome Gabriela se popularizou. O jornal Última Hora noticiava: “Gabriela em penca”188, devido ao grande número de registros de nascimento com esse nome. A personagem inspirou fantasias de carnaval, nome de restaurantes e bebidas, revista em quadrinhos, entre outros. Provavelmente a cidade de Ilhéus nunca mais voltou a ser a mesma após o romance; entre outros fatos, o poeta Jorge Medauar sofreu uma tentativa de assassinato por ter escrito um artigo apontado o nome da moradora da cidade que teria inspirado o romance, história que teve

186 O romance só foi desbancado da liderança de vendas por Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus publicado em agosto de 1960. A escritora denunciou em entrevistas coletivas após o evento (fato relembrado pelo jornal Folha de São Paulo em 1977) que Jorge Amado organizador do II Festival de Escritores, realizado no Rio de Janeiro em 1961, boicotou a venda de Quarto de Despejo para favorecer Gabriela, Cravo e Canela, pois fixou a cota de vendas do seu livro em 3 mil exemplares enquanto o de Jesus somente 50 exemplares. 187 Diário de Notícias. Rio de Janeiro. 13/11/1959 188 Gabriela em penca. Última hora, 31/08/1959, p. 3.

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ampla cobertura jornalística, com direito a manifestação dos dois lados da história189 e interferência do romancista, que por sua vez, como no caso de Jubiabá, afirmou que não temia ameaças e que seus personagens não eram reais: “‘Minha Gabriela é personagem de ficção e não se identifica com nenhum tipo existente na vida real’ disse o escritor, que lamentou as complicações em que se viu metido seu xará e conterrâneo Medauar190”. Além disso, o então presidente República, Juscelino Kubistchek, teria ficado sensibilizado sobre situação do porto da cidade ao ler o romance191 e promoveu melhorias: “[...] Ministro Távora disse que assinou contratos para construção de 6 barreiras no vale Itajaí-Açu em santa Catarina [...] e contratos no valor de CR$ 383 milhões para o aparelhamento do porto de Ilhéus que virá concretizar e o ‘sonho de Gabriela’ (alusão ao romance Gabriela, cravo e canela de Jorge Amado)192”. Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior já indicava novidade no título pela forma textual proposta – a crônica –, que tem como marca a narrativa de fatos cotidianos. Algo bem diferente dos romances anteriores, que falavam sobre ser expressão da realidade, veracidade, entre outros termos. Também não há a preocupação de dar tom heroico193 aos feitos da primeira protagonista dos romances de Jorge Amado. A ampliação na repercussão nacional se confirmou internacionalmente: Gabriela, cravo e canela é o romance com maior número de traduções, para mais de trinta idiomas. Teve edições em Cuba, ficou entre os 25 romances mais vendidos em 1962 nos Estados Unidos e, segundo o escritor, uma nota oficial do serviço editorial soviético datada de 1967 o informara que era o livro estrangeiro mais solicitado pelos russos194. Tudo indica que com esse romance a literatura de Jorge Amado conquistou o mercado norte-americano, pois era tido como um exemplo de rejeição à doutrina russa. Esse

189 Poeta Medauar: “Eu não temo tocaias!”. “Gabriela: “De outra ele não escapa!”. Última hora, 01/04/1960, p. 2. A repercussão foi tamanha que foi parar nas páginas do jornal norte americano New York times, ao que me parece essa história também serviu de promoção para Medauar que ao lançar seus livros sempre contava sobre o ocorrido. 190 Jornalista-poeta agredido pela pseudo-“Gabriela”. Última hora, 02/04/1960, p. 2. 191 O Jornal do Brasil do dia 02/04/1959 trouxe uma declaração do deputado Viera de Mello: “Ao ler o romance famoso Gabriela, cravo e canela, de autoria de Jorge Amado, o presidente Juscelino Kubistchek, que já conhecia o problema, em virtude de algumas informações minhas, a certa altura afirmou: ‘Se era possível que já em 1925 o porto de Ilhéus se constituía um problema para a região cacaueira...’ E prometeu que visitaria Ilhéus, onde assinará os decretos de encampação”. 192 O ministro da viação prometeu auxiliar a prefeitura. Folha de São Paulo, 22/11/1961, p. 4. 193 Segundo o romancista essa é única mudança séria em sua obra: “Antes, eu buscava o herói, o líder, o dirigente político [...] Cada vez, eu procuro mais o anti-herói... os vagabundos, as prostitutas, os bêbados (AMADO, 1981, p. 29). ” 194 Segundo Renard Perez (1961, 1971), em 1961 a primeira edição do romance em russo foi teve tiragem de 100 mil exemplares e na Tchecoslováquia de 146 mil livros, além de já haver tido edições na Bulgária e na Hungria. Segundo lhe informara o tradutor russo Kalugin era uma surpresa: “[...] o livro está sendo tão best seller [...] num momento em que o país se encontra voltado para problemas tão fascinantes como o da sua conquista do espaço” (PEREZ, Renard. Gabriela em russo. Última hora, 08/08/1961).

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aspecto foi levantado pela crítica do jornal New York Times: “Gabriela representa sem dúvida a liberação artística do Senhor Amado de um longo período de compromisso ideológico com a ortodoxia comunista195”. Segundo levantamento de Marly Tooge, após o sucesso de Gabriela, a menção à Bahia como lugar turístico começava a surgir na mídia americana. Como ficou exemplificado no The New York Times de 11 de abril de 1965, que noticiava que Salvador estava sendo redescoberta pelos turistas, e complementa: “As imagens do paraíso tropical e da mulata sensual eram palatáveis e de fácil assimilação, posto que já existentes e outrora bem aceitas196”. No Brasil, como era de se esperar, o romance conta com uma extensa fortuna crítica197. Mas a recepção da crítica não foi tão entusiasmada quanto a do público. O que logo chama atenção é que nomes que há muitos anos não faziam observações sobre os livros do romancista baiano, como Tristão de Athayde e Menotti Del Picchia, voltaram a fazer apreciação. Boa parte das discussões gravitaram em apontar continuidades e rompimentos, ou seja, assinalam as modificações e apontam sobrevivências e resquícios de momentos anteriores. Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde) e Sergio Milliet destacaram o caráter não engajado da obra: “[...] uma das características de sua obra prima, é, precisamente não ser uma obra enquadrada dentro dos moldes rígidos do realismo socialista, o que mostra que a paixão de Boris Pasternak, está produzindo seus frutos198.

195 ONÍS, Juan de. The town’s story is the land’s. The New York Times, 16/09/1962. Gabriela e Dona Flor foram os romances amadianos que obtiveram melhor recepção nos Estados Unidos. Na análise da tradução de Gabriela nos Estados Unidos, Correia (2003) observa que aquele período representou um momento da construção de um discurso colonialista sobre os países latino-americanos devido a preocupação estadunidense com a revolução cubana. A necessidade de conhecer o Brasil e seus vizinhos centrava-se neste aspecto da revolução cubana e sua repercussão nos países latinos. A revolução estava se processando no ano de lançamento de Gabriela, sendo assim, o romance foi lido com a carga do movimento cubano no cenário americano e preparado desde então para ser best seller. O romance constituía-se na leitura da cultura baiana, evidentemente brasileira, empreendida pelo editor Alfred Knopf, e deveria cumprir o papel social relevante na elaboração das imagens culturais da Bahia. O que de fato percebe-se nas críticas são as descrições da beleza e da sensualidade da mulher baiana, em detrimento de outros elementos temáticos, ou seja, como “uma filha impulsiva da natureza”, segundo o próprio NYT ou “A café au lait Gabriela é tão doce e picante quanto o título deste romance brasileiro campeão de vendas sugere” – segundo o Los Angeles Times, de 28 de outubro de 1962. 196 Cf. TOOGE, Marly D’Amaro Blasques. Traduzindo o Brazil: o país mestiço de Jorge Amado. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 99. 197 Devido a imensa quantidade de críticas e comentários nas mais variadas publicações de todo país, priorizei apresentar as de maior relevância, seja pelo reconhecimento do comentador nos meios intelectuais seja pela repercussão e elementos levantados pela análise. Para maior aprofundamento duas dissertações se dedicaram exclusivamente a esse tema: Do pé ao corpo da página: a recepção crítica de Gabriela, cravo e canela (2008) de Alzira Tude de Sá e Revisitações a Gabriela: Uma experiência de leitura da recepção crítica do romance de Renata Souza do Nascimento de 2005. 198 LIMA, Alceu Amoroso. Gabriela e o crepúsculo dos coronéis. Folha da manhã, 30/08/1959, p. 3.

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No mais, Alceu de Amoroso Lima, como grande parte dos críticos observam, aponta que é uma obra madura, mas discorda da moralidade e da filosofia de vida que o livro reflete. Outro intelectual ligado a grupos conservadores que faz crítica elogiosa ao romance foi Menotti del Picchia, apontando como fascinante a narrativa e que seria “romance mesmo, não pesquisa literária ou ensaio transcendental199”. Como Tristão de Athayde, na percepção José Carlos Oliveira a diferença do então novo romance residia no ângulo que a história era abordada. Acrescenta ainda que Gabriela nada mais era que a adoção das novas orientações dos PCs e tinha os mesmos defeitos de O país do carnaval, Cacau e Suor, criticando a linguagem e a prolixidade de Amado200. Roberto Pontual foi outro que afirmou que o romance era somente a variação do mesmo tema, sem evolução do ponto de vista formal201. Já Wilson Martins apontou que a partir de Gabriela, cravo e canela Jorge Amado fez uma escolha definitiva – deixar “[...] a heresia partidária para resguardar a ortodoxia da literatura202” – e que sua eleição para Academia Brasileira de Letra era a indicação que havia aceitado as regras convencionais da literatura burguesa. Em outra ocasião afirma que o romance é resultado de uma evolução que substitui e sintetiza Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus e aponta também uma crítica que será comum a seus romances, a prolixidade203. Além desses, o editorial do O Estado de São Paulo aponta uma atitude literária menos presa a teorias204, no mesmo jornal Luís Martins indica modificações, não nas convicções políticas ou ideológicas do escritor, mas na forma de fazer romance indicando maturidade no estilo e na técnica, evolução sentida em Terras do sem fim, onde não é o heroísmo, mas o amor que distingue os homens205. Um dos maiores críticos do romance foi Paulo Dantas, que acreditava que o leitor dos romances como Jubiabá ficaria frustrado, faltava o instintivo das obras da juventude: “Não fosse Jorge Amado um romancista tão marcado, tão poderoso no sentimento grapiúna, este Gabriela, cravo e canela por certo agradaria mais206”. Dantas, na Revista Brasiliense, de orientação pcbista, fez considerações similares às anteriores e rebate Wilson Martins,

199 PICCHIA, Menotti Del. Jorge Amado, cravo e canela. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit., p. 272. 200 OLIVEIRA, Jose Carlos. Um romance que não é. Jornal do Brasil, 26/04/1959, p. 4. 201 PONTUAL, Roberto. Gabriela. Diário de notícias, 03/05/1959, p. 3. 202 MARTINS, Wilson. Marinheiro e secretários. O estado de São Paulo, 03/08/ 1961, p. 2. 203 Idem. Clove e cinnamon. O estado de São Paulo, 06/10/ 1962. 204 Vida intelectual- Gabriela, cravo e canela. O estado de São Paulo, 03/08/ 1958. 205 MARTINS, Luis. Gabriela, cravo e canela. O estado de São Paulo, 30/08/ 1958. 206 DANTAS, Paulo. Gabriela, cravo e canela. A gazeta, 06/08/1958.

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apontando que não ocorreu um amadurecimento e sim uma acomodação, que vê como um aspecto negativo, pois implicou em perda de qualidades primitivas e autênticas207. Jacob Gorender, em outra publicação de esquerda, a revista Novos Rumos, afirmou que considerava a nova fase do escritor composta por três caraterísticas: o abandono da inspiração revolucionária, a centralização dos interesses no tratamento de temas e personagens com uma visão amoralista e carnavalesca e a queda no nível artístico, elementos que em Gabriela se encontram em estágio inicial. Não critica o romance em si, considera uma narrativa movimentada e alegre do mesmo nível que Jubiabá, Terras do sem fim e Seara vermelha, mas acredita que o romancista perdeu algo ao se afastar da luta dos trabalhadores; complementa ainda que Amado não superou o esquematismo ideológico, só assumiu a sátira pequeno burguesa, ligeira e superficial, em que o amoralismo se tornou uma saída208. Como Dantas, muitos apontaram a volta à literatura regionalista, classificação de que havia sido afastado209. Adonias Filho e Cavalcanti Proença observaram o retorno ao regional em detrimento do discurso político210. Nesse mesmo sentido, Maria de Lourdes Teixeira afirmou que a obsessão política limitava os recursos como romancista e que no então novo livro Jorge Amado estava em plena posse de todos seus recursos como romancista211. Como observado, esse romance é normalmente pensado em relação a Terras do sem fim, ou por esse com São Jorge dos Ilhéus, como se fossem volume único, ou seja, a produção entre 1944 e 1956 é deixada de lado, por causa do viés regionalista e das narrativas se passarem na zona cacaueira, do engajamento político menos evidente ou até mesmo da comparação entre a qualidade entre Gabriela e a produção anterior. Nelson Werneck Sodré considerou que Gabriela foi um “avanço extraordinário” em relação aos dois romances antes citados anteriormente e representa a emancipação da obra de Amado, conjugando o local com o universal212. Sodré apontou o elemento que unia a obra amadiana até aquele momento, a presença da poética lírica213.

207 DANTAS, Paulo. Os caminhos de Jorge Amado. Revista brasiliense, n.37, 1961. 208 GORENDER, Jacob. As novas tendências na obra de Jorge Amado. Novos rumos, 03/08/1961. 209 Segundo Almeida (1978), Amado havia sido retirado da classificação de autor regionalista pelos manuais de literatura e pelos pares. 210 MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit., p. 251 e p. 255. Joel Pontes (1961), também apontam a presença de características regionalistas, e acrescenta que Amado não inova, continua o melhor da sua obra. 211 TEIXEIRA, Maria de Lourdes. O vento do mar aberto. Folha de manhã, 10/08/1958, p. 3. 212 SODRE, Nelson Werneck. Gabriela, Cravo e Canela. Última Hora, Rio de Janeiro, 16/08/1958. 213 Várias críticas destacaram esse aspecto, como as de João Clímaco Bezerra, Rubio Brasiliano, Divo Marino, Antonio Carlos Villaça e Esdras do Nascimento. Afrânio Coutinho afirmou que língua, caracterização, enredo,

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Importante lembrar que essa coletânea crítica Jorge Amado, 30 anos de literatura e o trabalho de Miéci Táti foram publicadas 1961, dois importantes instrumentos e referências de pesquisa. Gabriela, cravo e canela mereceu apreciação de importantes escritores, como José Américo de Almeida, autor do romance considerado fundador do regionalismo de 1930, que elogia o romance bem construído pelo fato de o autor não criar tipos. Retomando escritores contemporâneos de Amado, o poeta Manoel Bandeira, no jornal Folha de São Paulo, fez uma crítica afirmando que Jorge Amado venceu os preconceitos ideológicos e agradou a elite com Gabriela, cravo e canela, coloca Terras do sem fim como mais importante, mas Gabriela tem “o sabor forte de especiaria”, e também não acredita numa ruptura ideológica: “[...] Jorge é, com comunismo e tudo, amado mesmo214”. Outro poeta, Carlos Drummond de Andrade, escreveu uma divertida crônica sobre como seria caso os problemas sociais presentes nos romances contemporâneos fossem resolvidas pelos políticos como aconteceu com o romance de Amado215. E Vinicius de Moraes o apontou como melhor romance e novela da literatura brasileira216. O cineasta Glauber Rocha escreveu dois artigos em defesa de Jorge Amado, rebatendo as críticas que lhe eram proferidas e afirma também que Terras e Gabriela são seus melhores romances, afirmando que o escritor faz romance de costumes217. A questão moral e certos aspectos da personagem feminina218 veem à tona sem maiores problematizações. Pigmaleão, no jornal Última Hora, considerou a criação de Gabriela

narrativa e lirismo se harmonizaram no romance. No jornal Diário de Notícias, Medauar e Eneida apontaram este aspecto. Henrique Pongetti, Maria de Lourdes Teixeira e Jose Roberto Teixeira Leite também o destacaram, sendo que só o ultimo apontou como algo negativo, um excesso. 214 BANDEIRA, Manoel. Na academia. Folha de São Paulo, 13/04/1961, p.2. 215 MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit., p. 216 MORAES, Vinicius. A morte e a morte de Quincas Berro D’Agua. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 40 anos de literatura. Op. cit. 217 ROCHA, Glauber. Cravo e canela (ou Jorge diretor de cena). Diário de notícias, 09/05/1960; ROCHA, Glauber. Gabriela I (ou Rififi à moda do cacau). Diário de notícias, 24/04/1960. 218 Gabriela inaugura uma série de famosas protagonistas dos romances amadianos: Dona Flor, Tieta, Teresa Batista. O escritor confessa que foi uma crítica de Sergio Milliet sobre as personagens femininas em Terras do sem fim que o impulsionou escrever Gabriela, cravo e canela: “[...] creio que houve da minha parte, talvez inconscientemente, uma preocupação de dar a mulher um papel mais importante, para compensar um pouco a dupla exploração que ela sofre no Brasil” (O Estado de São Paulo, 17/05/1981, p. 6), a condição de pobre e a condição de mulher. Lembrando que naquele mesmo momento Álvaro Lins no Correio da manhã também as criticou: “Um tema, em que muito insiste o Sr..Jorge Amado, mas que deveria afastar, é o tema do amor. Oscila aí entre a extrema brutalidade e o frouxo pieguismo. Parece ter conhecimento muito limitado das almas femininas. A dos seus sentimentos amorosos. Esta é sua fraqueza mais ostensiva” (02/12/1943, p.2). Ou seja, considerações semelhantes de dois dos críticos mais importantes do momento, o que se pode deduzir que apesar de em entrevistas Jorge Amado sempre ter feito questão de afirmar que era indiferente aos críticos de sua obra, na prática não tão indiferente.

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importante, pois as “personagens femininas tinham notórias deficiências219”. A moral da protagonista, instintiva para uns e amoral para outros, foi apontada por Elsie Lessa, Raul Lima e Natércia Freire: “ingenuidade de flor e bicho, tem a sua banda podre que não lhe contamina a bondade alegre, inconsciente e sensual220”, “amoral inocente, a pecadora sem malícia221”, “bonita e ignorante de uma moral que não lhe ensinaram222”. Lúcia Benedetti afirmou: “Gabriela espalhando sua beleza selvagem, o seu pensar primitivo [...] é toda instinto. Segue os impulsos da natureza. É comovedora, na sua dedicação de animal domesticado [...] moça humilde, passiva [...]223”. Eneida proferiu características similares, como: instinto livre, simplicidades, pureza, insubordinação224. Roger Bastide, por sua vez, afirma que o papel da mulher nos romances de Amado corresponde ao lugar que elas ocupam na sociedade patriarcal: “a ‘pobreza sentimental’ ou a ‘naturalidade sexual das mulheres de Jorge Amado, seu caráter ‘primário’ e ‘instintivos’ [...] correspondem a uma realidade e não a uma falta de penetração psicológica por parte de nosso escritor225”. Uma opinião muito divulgada pela imprensa nacional foi a do filosofo francês Jean- Paul Sartre, que em visita ao país apontou em conferencia no Rio de Janeiro que Gabriela, cravo e canela era uma tentativa bem-sucedida de literatura popular226. A presença do humor foi apontada pelo russo Yuri Kalugin227, por Portella228 e por Bastide229 como forma de crítica burguesa; o biografo Miécio Táti enfatizou a mudança na forma praticando um gênero nunca antes explorado em sua obra, o romance de costumes: “romance picaresco, anedota que se desenvolve em meio a lances divertidos e plenos de humanidade, mais risos do que lágrimas, espirito ágil de narrador bem-humorado230”, acrescenta ainda, que elementos que estavam dispersos na obra pregressa, Gabriela sistematiza. A efervescência dos anos 1950 e o otimismo desse decênio têm reflexos no romance, segundo Juarez da Gama Batista, que compara a construção narrativa com a construção da capital federal, Brasília: “[...] mal tocam elas no chão das coisas subalternas,

219 PIGMALEÃO, Gabriela, cravo e canela. Última hora, 23/08/1958, p. 9. 220 LESSA, Elsie. Gabriela, cravo e canela. O globo, 28/08/1958, p. 1. 221 MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit., p. 268. 222 Idem, ibidem, p. 272. 223 BENEDETTI, Lucia. Gabriela, cravo e canela. Última hora, 24/11/1958, p. 4. 224 ENEIDA. Gabriela, cravo e canela. Diário de notícias, 17/08/1958, p. 2. 225 BASTIDE, Roger. Sobre o romancista Jorge Amado. Op. cit, p. 59. 226 Conferencia de Sartre: Cuba, literatura e nacionalismo. Última hora, 27/08/1960, p. 2. 227 MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: 30 anos de literatura. Op. cit. 228 PORTELLA, Eduardo. Retorno de Jorge Amado. O livro e a perspectiva, 1958. 229 BASTIDE, Roger. Sobre o romancista Jorge Amado. Op. cit. 230 TÁTI, Miécio. Jorge Amado vida e obra. Op. cit., p. 160.

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sujeitas a lei da gravidade. Aquela vaporosa espontaneidade tem qualquer coisa de uma pose distinta e admirável [...] a contemporaneidade das duas indica um critério de influencias que assinalam, distintamente a vocação de um instante histórico, do ponto de vista artístico231”. Em trabalho mais recente, José Paulo Paes considerou os romances Cacau e Gabriela momentos de tomada de correção de rumos. O crítico vê uma linearidade nas obras do ciclo do cacau, Gabriela, assim como Terras do Sem fim e São Jorge dos Ilhéus, tem embrião em Cacau, mas, pensando a obra amadiana, elas se encontram em polos opostos, em que “o engajamento monódico recua para os fundos de quadro, sob a forma de um populismo entre sentimental e folclórico232”. Gabriela assentou a clássica divisão da produção de Amado em duas fases233. Alfredo Bosi apontou para mudança na forma de seus romances, considerando o romance Gabriela, cravo e canela como o marco inicial da uma última fase literária do escritor, que representa o abandono dos esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 1930 e 1940, em que “o populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de se passar por arte revolucionária234”. Classificando Jorge Amado como cronista de tensão mínima, de leitura fácil e que de devido a isso atingiu grande êxito de público, ainda inclui Gabriela no conjunto das “crônicas amaneiradas de costumes provincianos [...] e tudo se dissolve no pitoresco, no ‘saboroso’ no ‘gorduroso’ no ‘apimentado do regional’235”. Assim, nota-se pela crítica em geral, logo após a publicação, que ela se atentou em apontar possíveis novidades, como a primeira protagonista feminina, a utilização do humor, entre outros, sem deixar de observar que, por trás da história da retirante, a narrativa tratava da disputa entre dois modelos, o agrário-exportador e o coronelismo. E também, com a ampliação da recepção, e, consequentemente, a circulação dos seus romances, as críticas que apontam aspectos negativos da produção de Amado ganham espaço. O pós-Gabriela consolida o que Assis Duarte chamou de “crítica dos erros”, que vinha desde os anos de 1940 e se tornam comum nas avaliações da obra literária de Jorge

231 BATISTA, Juarez da Gama. Gabriela, seu cravo, sua canela. In: Jorge Amado: povo e terra 40 anos de literatura. São Paulo: Martins, 1971, p. 91. 232 PAES, José Paulo. De Cacau a Gabriela, um percurso pastoral. Salvador: FCJA, 1991, p. 9. Ideias também presentes no posfácio da última edição do romance, escrita por esse autor “Arte de mestre”. 233 Assis Brasil (1976), Assis Duarte (1996), Cyro Mattos (2013) e José Castello (2008) proferiram critica apontando a divisão em duas fases, a primeira do romance ideológico e a segunda com menor engajamento. Chamo atenção também daqueles que apontam três momentos distintos de produção no escritor, Antonio Olinto (1958), Roger Bastide (1971), Haroldo Bruno (1975). Eduardo Portella (1971) a divide em cinco tempos, em comum todos reconhecem o elemento picaresco da última fase. 234 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 456. 235 Idem, ibidem, p. 457.

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Amado dos 1960 e 1970236. Consolidando a imagem de um escritor amado pelo público e querido pelos meios de comunicação de massa, mas tratado com severas reservas pela crítica especializada. O que se percebe que com Gabriela é que o romancista descobre uma fórmula que o torna best-seller que irá se aprofundar e solidificar nos anos seguintes com Quincas Berro D’Agua e Dona Flor e seus dois maridos237. Como bem apontado por Alzira Tude de Sá ao estudar a recepção do romance, atualmente a perspectiva de abordagem da leitura de Gabriela, cravo e canela desenvolvida pelo meio acadêmico saiu do julgamento do valor literário da obra para outras possibilidades de leitura com ênfase no aspecto sócio antropológico, notadamente sobre gênero238. Em linhas gerais, sobre a recepção de Gabriela, cravo e canela, é observado que a protagonista se tornou maior que o romance, a morena “cor de cravo e cheiro de canela” povoou e ainda povoa o imaginário do país por conta de suas versões midiáticas – uma boa dimensão desse fato é que uma das mais famosas cenas, reproduzida nas versões da rede Globo, na qual a protagonista sobe no telhado para pegar uma pipa, não existe no romance239. Algo que também pode ser observado na análise das capas desse romance, pois a partir de 1975 o enfoque da

236Duarte (1991) aponta nessas percepções a influência do crítico literário Álvaro Lins que até 1945 colocava ênfase no que faltava nas obras do escritor baiano. Segundo Ivia Alves (2001), Lins “se tornou a mais importante ‘autoridade assumindo relações de poder entre a literatura e o público, capazes de abater ou erguer um escritor. Ocupando um período da cena crítica dos anos trinta ao início de cinquenta, tornou-se o crítico mais respeitado (e....talvez temido) da sua geração” (p. 10) estariam na mesma perspectiva de análise sobre Jorge Amado, além de Bosi, Assis Brasil, Wilson Martins e Walnice Galvão. Antonio Candido, José Aderaldo Castello e Massaud Moises, ainda que apontassem falhas, inseriram Amado no cânone da literatura brasileira. 237 Para Walnice Nogueira Galvão (1976), Jorge Amado vai “aguçando seus instrumentos para pior” (p. 15), com livros cada vez maiores, consequentemente mais caros, enredos repetitivos, com menor elaboração artística e a recorrente formula que reforça a mitologia baiana através da comida, religiosidade, etc. 238 SÁ, Alzira Queiróz Gondim Tude de. Do pé ao corpo da página: a recepção crítica de Gabriela, cravo e canela. Dissertação (Pós-graduação em estudos da linguagem), Universidade do estado da Bahia (UNEB), Salvador, Bahia, 2008. As personagens romanescas de Jorge Amado se tornam relevantes, por suscitar reflexões acerca da representação da mulher na literatura brasileira, uma pesquisa no portal de teses e dissertações da Capes fornece uma boa dimensão dessa importância. Dentre vários trabalhos cito: a dissertação Gabriela e as outras (a representação da mulher em Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado) de 1992, Rosana Maria Ribeiro Patrício recorreu a algumas formulações acerca dos valores patriarcais que delimitam o papel da mulher na sociedade brasileira para analisar o universo feminino representado no romance; Ana Aline Moraes de Oliveira em De Ofenísia a Gabriela: a superação de um arquétipo (1996) fez uma leitura do romance utilizando as teorias feministas para abordar a questão arquetípica da sujeição através das figuras femininas representadas no romance desde Ofenísia até Gabriela; já Antonio Jonas Dias Filho (1998) em Fulôs, Ritas, Gabrielas, gringólogas e garotas de programa; falas, práticas, textos e imagens em torno de negras, mestiças, que apontam para a construção da identidade nacional a partir da sensualidade atribuída à mulher brasileira, através da leitura de obras literárias, dentre elas Gabriela, cravo e canela, procurou mostrar que as construções em torno de mulheres negras e mestiças contribui para alimentar o imaginário de turistas estrangeiros e estreitar a rede do que ele denomina de “Circuito do Turismo Sexual de Salvador”. 239 Lembrando que a terceira e última versão televisiva de Gabriela é de 2012, quando foi lançada também uma nova edição popular do romance pela Companhia da Letras.

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ilustração inicial passou a ser a mulher mestiça e a forma do seu corpo, ênfase dada pela mídia240. A estreia na televisão brasileira da novela Gabriela se constituiu em um marco significativo da recepção amadiana, o que não só favoreceu a divulgação da produção literária de Amado, como apontou para uma nova forma de mediação entre o livro e o leitor241, em que os meios de comunicação de massa têm um papel fundamental.

Uma tese em forma de romance

Publicada um pouco mais de dez após Gabriela e vinte e quatro anos depois de Jubiabá, Tenda dos Milagres foi considerada pelo romancista uma espécie de obra revisada e ampliada do último, escrita em apenas quatro meses, entre março julho de 1969, diferente da narrativa da trajetória do herói negro, que demandou um processo de anos242. Como Gabriela, Tenda dos Milagres foi apropriado por diferentes mídias e meios de expressão artísticos. Destaca-se a elogiada adaptação da obra feita para o cinema por Nelson Pereira dos Santos243, que ganhou o prêmio principal do X Festival de Cinema Brasileiro em 1977, e pela observação dos jornais da época parece ter tido maior repercussão

240 Inspirado na imagem da atriz Sonia Braga, a Gabriela da ficção, diferente das primeiras capas de Clovis Graciano que ilustra o casal protagonista sendo observado pela janela por uma personagem. Como apontou Caldas (2009), “o capista preocupa-se com um suposto leitor, um leitor virtual, imaginado por intermédio da pesquisa de identificação do público-alvo [...] A capa, então, funciona como um rótulo, sendo utilizada para atrair e informar o consumidor sobre o que existe na obra literária e o discurso nela contido, consequentemente, influenciará no processo decisório do consumidor (p. 45- 55)” que em sua análise das capas de Gabriela também constata as diferenças entre as ilustrações nas diferentes edições e afirma que Jorge Amado na maioria das vezes não tomava conhecimento do layout dado pelas editoras. 241 Especialmente a segunda versão televisiva de 1975 na Rede Globo. Tania Pellegrini (s/d) aponta que a partir dos anos 70, se desenvolve significantemente a indústria cultural no Brasil, surgindo um intercâmbio entre mercado e mídia, favorecendo tanto a montagem de peças teatrais, como a adaptação para televisão de sucessos literários, o que, segundo a autora, que “se não ajuda a despertar uma sensibilidade propriamente literária, é eficiente estratégia de estímulo ao consumo do livro, da peça, "bens culturais" equivalentes aos inúmeros produtos vendidos nos intervalos comerciais da televisão ou do rádio. O importante é que um desperta o interesse pelo outro e, nessa troca de códigos, o leitor/espectador vai formando um tipo de percepção muito mais ligado à imagem, mais imediata (num período em que a televisão aumenta seu poder), que à palavra escrita” (http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio33.html). Essa segunda adaptação foi analisada por Maria Arminda do Nascimento no ensaio Por detrás das plumas e dos “paillettés”; reflexões sobre Gabriela (1976), que no mesmo sentido que Pellegrini considerou que a escolha do romance se enquadra numa tendência da Rede Globo de buscar, como fonte de inspiração das telenovelas, obras já conhecidas da literatura brasileira, podendo tal “fenômeno” ser explicado pela configuração da indústria cultural, que se consolida a partir dos anos 1960. 242 Sobre Jubiabá em 1934 afirmou: “Há quase quatro anos um romancista que queria escrever um romance honesto sobre a raça negra no Brasil [...]” (AMADO, Jorge. Elogio a um chefe de seita. Op. cit.) 243 Adaptação favorita do escritor, segundo o Jorge Amado, os direitos autorais do filme foram vendidos para Pereira dos Santos por um valor simbólico por ter gostado da proposta do cineasta.

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que o livro. A obra também foi adaptada para a TV, numa minissérie da Rede Globo em 1985. Um exemplo da popularidade que os personagens do romancista alcançaram é que nas chamadas dos jornais na ocasião do lançamento do romance são Dona Flor (com os dois maridos), Gabriela, Quincas e Vasco que convidam o público a conhecer Pedro Archanjo, protagonista de Tenda dos Milagres. Neste romance, mais do que em qualquer outro, os personagens têm inspiração clara em pessoas reais, como Archanjo, que seria inspirado no sociólogo Manuel Querino, e Nilo Argolo em Nina Rodrigues. Popularidades surgem na sua esteira, Idálzio Tavares, que inspirou o personagem Idálzio Taveira, aproveitou para lançar um livro no mesmo ano244, o rábula Cosme de Farias, que inspirou o personagem defensor dos pobres João Romão, ganhou destaque na imprensa, como também um drinque que aparece no romance conhecido como “xixi de anjo” ganha as páginas dos jornais. Se compararmos com a repercussão de dois romances anteriores, Gabriela, cravo e canela e Dona Flor e seus dois maridos, que pareciam ter selado definitivamente a mudança de rumos da literatura de Jorge Amado, Tenda do Milagres trouxe certa surpresa e uma repercussão significantemente menor. Tenda veio a lume entre outubro/novembro de 1969, com ilustrações de Jenner Augusto. Segundo o jornal carioca Tribuna da imprensa, uma revista carioca tinha contrato com Jorge Amado para publicar trechos do livro antecipadamente, mas por razões que a publicação aponta como óbvias não foi possível. Uma indicação da atuação da censura do regime militar, lembrando que o romance foi publicado após o decreto do AI-5, em dezembro de 1968, que, entre outras medidas, endureceu a censura à imprensa, o que poderia justificar a escassez de textos sobre a percepção inicial da obra245. O romance foi apontado pelo crítico Heitor Martins como o livro mais representativo da literatura brasileira entre o final da década de 1960 e início dos anos 1970. E pelo romance Jorge Amado ganhou o Prêmio Juca Pato de intelectual do ano de 1970, concedido pela União Brasileira dos Escritores. Mas nada que se comparasse a repercussão e popularidade

244 Personagem de Jorge Amado lança livro em São Paulo. Diário da noite, 04/12/1969. 245 Um decreto de janeiro de 1970 instituiu a censura prévia aos jornais e revistas (Decreto-Lei n.1.077/70). O controle sobre a imprensa já havia sido regulamentado pela Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, a Lei de Imprensa, que e restringia a liberdade de expressão. No entanto, a situação se tornou mais crítica com a edição do AI-5, bem como com a do Decreto-Lei nº 898, denominado Lei de Segurança Nacional (LSN), de 29 de setembro de 1969, complementada no ano seguinte pelo Decreto-Lei nº 1.077/70. Lembrando que o decreto previa censura aos livros, mas como citado na primeira parte desse trabalho, Jorge Amado e Erico Verissimo capitanearam um movimento contra essa determinação que levou o governo a recuar e a publicar uma nova Instrução para a Portaria 11-B, a Instrução número 1-70 de 24 de fevereiro de 1970 que explicita que "estão isentas de verificação prévia as publicações e exteriorizações de caráter estritamente filosófico, científico, técnico e didático, bem como as que não versarem sobre temas referentes ao sexo, moralidade pública e bons costumes".

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anteriores. O Jornal do Brasil de 09/04/1970 anunciou Tenda dos milagres como “Um dos maiores desastres da história editorial do Brasil, 10 mil exemplares vendidos até abril” e o Correio da manhã questionava: “Afinal, o que há Jorge Amado?”, afirmando que o melhor de sua obra teria ficado em Os velhos marinheiros, denunciando, por meio de levantamento com livreiros, o encalhe do romance e parece ter chegado ao cerne da questão: “o fato é que o público de Tenda dos Milagres não é o público que devorou os outros romance de Amado246”. A temática de pouco apelo popular, onde reside a originalidade do romance, é outra justificativa plausível da menor repercussão nacional e internacional247. Como apontado por Antonio Olinto, Tenda é um romance de tese, a questão racial vem em primeiro plano, a defesa da mestiçagem racial e cultural como símbolo da nossa nacionalidade: Toda a existencialidade baiana, ou afro-baiana, de uma raça que se forma, de uma civilização mestiça, é parte integrante de cada capítulo desse romance e de cada momento da presença de seus personagens [...] Existirá preconceito racial no Brasil? Esta é a pergunta que está sob as camadas de Tenda dos Milagres. O brasileiro comum, que nunca tenha reparado muito em que somos várias raças juntas, dirá que não248.

Como apontou a revista Veja249, os jornais O Estado de São Paulo250 e o Diário do Paraná, o livro trazia a contribuição brasileira para o problema das raças através da miscigenação: “Pedro Archanjo, simboliza a ascensão da cultura popular e da arte negra - propõe o amor entre as raças como forma superior de civilização brasileira251”. Chama atenção que a interpretação do enredo foi dupla: para alguns se tratava de uma denúncia sobre a falácia da democracia racial, para outros tratava da defesa da harmonia racial. Esta última interpretação era a dominante, ou seja, a defesa da democracia racial como o melhor caminho, uma postura considerada antirracista, demostrando, assim, que boa parte da intelectualidade acreditava na realidade da democracia racial. Em sua interpretação, Heitor Martins apontou que Jorge Amado reafirma que existe preconceito racial no Brasil e parecia que o autor não teria aceitado a ideia que já vivíamos

246 Afinal, o que há Jorge Amado. Correio da manhã, 18/04/1970, p. 4. 247 Segundo levantamento de Marly Tooge (2009), o editor americano de Jorge Amado expressou dúvidas e pessimismo quanto à aceitação da obra pelo público leitor americano, por se tratar de um tema especificamente brasileiro: “[...] o presente livro que será realmente ‘grego’ para o leitor americano. Em primeiro lugar, O que ele deve ter, é claro, é um glossário, que nós achamos que você pode fornecer e sobre o qual a Jane [Garrett] lhe escreverá (KNOPF para SHELBY em 25 de agosto de 1970). Ainda segundo Tooge, Tent of Miracles foi publicado em 1971 e o destaque dado pelos jornais e revistas americanas foi bem menor do que aquele dispensado a Dona Flor. 248 OLINTO, Antonio. A tenda, sua magia e uma revolução na literatura (parte II). O globo, 08/01/1970, p. 12. 249 O romance de Jorge. Veja, 03/09/1969, p.76. 250 Jorge Amado volta a falar da Bahia. O estado de São Paulo, p.2, 19/03/1972. 251 Diário do Paraná, 02/11/1969, p.2.

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numa democracia racial, havendo na história de Arcanjo a confrontação entre negros e brancos: “Jorge Amado parece não aceitar totalmente a ideia de democracia racial brasileira [...] (a sátira da vida intelectual e a reafirmação que existe preconceito racial no Brasil) o que há de mais notável em Tenda dos Milagres252”. Da mesma forma, o editorial do O Estado de São Paulo afirmava que o romance era antirracista e atacava o preconceito racial. Para Wilson Martins, o romance defendia a democracia racial como a nossa autentica forma de existir: “O tema do romance é, fundamentalmente, a sátira ao preconceito de cor alimentado por alguns elementos da sociedade baiana, ou, menos que isso, por alguns indivíduos isolados numa sociedade cuja composição torna o preconceito não absurdo nem revoltante, mas simplesmente ridículo253”. O americano Gregory Rabassa, responsável pela crítica publicada no The New York Times, teve uma percepção diferente, afirmando que o romance destacava a falácia da democracia racial como mito: O ritmo selvagem e brincalhão que nós esperamos [encontrar] agora em Amado é usado aqui, entretanto, para esvaziar um dos mitos mais exaltados no Brasil, aquele da harmonia racial. Mesmo uma olhada incidental nas ideologias do século XIX que sobreviveram no Brasil revelará a mácula de Gobineau, e elas geralmente mostram uma virulência mais violenta ainda254. Essa interpretação, que afirma que predominava em Tenda não era a defesa da harmonia e sim a denúncia do preconceito racial, aproxima o escritor dos seus romances das décadas anteriores a 1950, que defendiam uma causa. Nesse sentido o jornal Diário da manhã o colocou na linha de Jubiabá e Capitães de areia255. Uma característica dos romances iniciais que estão presentes em Tenda dos Milagres é a intervenção do autor/narrador expressando seu ponto de vista, fato apontado por Martins: “o narrador até as aparentes intromissões do autor”. Zilde Maranhão afirma que “o narrador sublime, as vezes desaparece debaixo das intenções que criam muito pouco”, algo que o editor americano Alfred Knopf também notou: “ele traça uma linha muito fina, eu acho, entre

252 MARTINS, Heitor. Romance brasileiro em 1970: Tenda dos milagres. O estado de São Paulo, 14/03/1970. 253 MARTINS, Wilson. A comédia baiana. O estado de São Paulo, 24/03/1970, p. 4. 254 RABASSA, Gregory. Tent of miracle. The New York times, 24/10/1971. O estudioso do negro nos romances brasileiros ainda lembrou do contemporâneo A casa da agua (1969) de Olinto publicado na Inglaterra, mas que faltava a esse o protesto presente em Tenda. Ao que tudo indica o romance teve uma certa repercussão nos EUA, como já citado não foi tão popular como Gabriela e Dona Flor, mas mereceu considerações de jornais como Sacramento Bee (1971) que afirmou que o livro demonstra que o dinheiro define a cor da pele no Brasil, o The Washington post (1971) afirmou que estava longe de ser um bom romance, mas o crítico Davis gostou do texto, por ser engraçado e que o autor nos faz acreditar que no mundo que ele criou. No Los Angeles times (1971), Tenda é apresentado como tributo a Bahia e que Jorge Amado após a morte de Guimarães Rosa seria o único escritor brasileiro internacionalmente reconhecido. 255 Tenda dos milagres. Diário da manhã, 11/09/1973. O português jornal do Comercio na ocasião do lançamento do romance em Portugal em 1973 fez um comentário similar.

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fato e ficção, e embora, no meu ponto de vista, ele não deixe clara a identidade do narrador, parece-me que é claramente o próprio Jorge256”. Como pontos negativos foram observados a extensão do romance e a prolixidade, características que já haviam sido apontadas em Gabriela, tornando a leitura cansativa, como afirmaram Heitor Martins e Zilde Maranhão. Das críticas puramente elogiosas recebeu a de Antonio Olinto, entusiasta da obra amadiana, que mereceu três partes no jornal O Globo, intitulada de “A tenda, sua magia e uma revolução na literatura”, que como o próprio título sugere, afirma que produção foi uma revolução do ponto de vista da linguagem, tal como foi Grande sertão: veredas, e que ocorreu uma total identificação entre romancista e seu assunto, o escritor e a linguagem, o narrador e a língua257. Outra consideração que merece atenção foi a de Atila Nunes, notório umbandista, que afirmou em sua coluna “Gira da Umbanda” que como Rabassa acreditava que o romance fazia uma denúncia da realidade racial brasileira:

O nome Jorge Amado é a maior credencial para os que desejam conhecer mais a fundo a realidade negra no Brasil. Aquele que pratica umbanda, ou qualquer outro culto de origem africana, precisa ler Tenda do Milagres, uma das maiores publicações (senão a maior) de Jorge Amado [...] retrata a verdade nua e crua sobre o negro no Brasil258.

Com um enredo imbricado com a realidade, João José Reis, no posfácio da última edição do romance, faz um interessante texto o relacionando com personagens e fatos históricos verídicos envolvidos na positivação da questão racial brasileira via mestiçagem259. Em resumo, Tenda dos milagres é uma declaração de princípios. É o livro paradigmático de Jorge Amado na apresentação da relação erudito e popular e o elogio a mestiçagem260. Mas também que por juntar as características principais de dois momentos da sua produção, a defesa de um ideal combinado com o artificio do humor. Sendo assim, além de um romance de tese, é um romance-síntese.

256 Cf. TOOGE, Marly D’Amaro Blasques. Traduzindo o Brazil: o país mestiço de Jorge Amado. Op. cit., p. 120. 257 OLINTO, Antonio. A tenda, sua magia e uma revolução na literatura I. O globo, 08/01/1970, p. 12; OLINTO, Antonio. A tenda, sua magia e uma revolução na literatura II. O globo, 09/01/1970, p. 12; OLINTO, Antonio. A tenda, sua magia e uma revolução na literatura III. O globo, 10/01/1970, p. 12. 258 NUNES, Atila. Coluna gira da Umbanda. Correio da manhã, 16/01/1970, p. 5. 259 REIS, João José. Raça, política e história na tenda de Jorge. In: AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. São Paulo: Companhia das letras, 2008. 260 Como também observou Goldstein (2000).

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Ser negro ser proletário: Jubiabá

Jubiabá começa sem nota introdutória que direcione ou provoque o leitor como em O país do carnaval, Cacau, São Jorge dos Ilhéus e Terras do sem fim. A longa trajetória do herói proletário Antonio Balduíno começa a ser narrada em uma luta de boxe, em que o protagonista enfrenta o alemão Ergin e a aflita plateia multiétnica é apresentada: "Pretos, brancos e mulatos torciam todos pelo negro Antonio Balduíno, que já derrubara o adversário duas vezes" 261. Luta que ganha contornos de batalha entre raças, pois a origem étnica dos lutadores é sempre enfatizada: "Negro fêmea! Mulher com calça! Aí loiro! Dá nele."262. A narrativa desse romance, mais que Cacau, se aproxima da tradição do Bildungsroman, ou melhor, do romance de aprendizagem263. Lukács, que formulou esse conceito para tratar da narrativa do livro de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, trata da “[..] reconciliação do indivíduo problemático, guiado pelo ideal vivenciado, com a realidade social concreta. Essa reconciliação não pode nem deve ser uma acomodação, ou uma harmonia existente desde o início”264. A trajetória de Balduíno é narrada desde a infância pobre e rebelde na favela de Salvador, que recusa entre outras possibilidades a vida de malandro, e se transforma em líder/herói proletário. Narrado em terceira pessoa e utilizando o discurso indireto livre, ou seja, o narrador dá voz as personagens de modo que a história da formação do herói negro ganha maior credibilidade. Passado, presente e futuro do protagonista são elucidados para compreender sua formação. Antonio Balduíno, descrito como ambicioso e questionador desde a infância, logo cedo fica órfão de pai e mãe, seu sonho era morar na cidade e aos oito anos já era líder dos meninos do morro Capa Negro. A origem escrava e o espírito de rebelião estavam no "sangue" e são enfatizadas pela narrativa, seu pai fora jagunço de Antonio Conselheiro e a tia que o criara "era conversadora e envolvente. Os vizinhos vinham conversar com ela, ouvir história que ela contava, histórias de assombrações, contos de fadas e casos de escravidão"265.

261AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 11, grifos meus. 262 Idem, ibidem. p. 12. 263 Eduardo Assis (1994) dedicou um artigo a esse tema, ao comparar a narrativa de ambos acaba nomeando o livro de Amado como “romance de formação proletária”, pois acredita que a história de Jubiabá utiliza a estilização proletária se valendo da forma burguesa, o romance. 264 LUKACS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Companhia das letras, 2009, p. 138. 265 AMADO, Jorge. Jubiabá. Op. cit., p. 19.

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A princípio Baldo, como fica conhecido, tem uma descrição próxima de Honório, personagem de Cacau, pessoa que agia intuitivamente, de forma primitiva e riso fácil: "Andava solto pelo morro e ainda não amava nem odiava. Era puro como um animal e tinha por única lei os instintos. Descia as ladeiras do morro em louca disparada, montava cavalos de cabo de vassoura, era de pouca conversa, mas de largo sorriso"266. Ainda na infância, conhece o pai de santo Jubiabá, tido como "patriarca dos negros e mulatos"267 do morro, descrito pela primeira vez pelo olhar do menino:

[...] feiticeiro negro que vinha, a carapinha branca, o corpo curvo e seco, apoiado num bastão, andando devagarinho. Antonio Balduíno não sabia o que pensar de Jubiabá. Respeitava-o, mas com um respeito diferente do que tinha pelo padre Silvinho, por sua tia Luiza, pelo Lourenço da venda, por Zé Camarão e mesmo pelas figuras lendárias de Virgulino Lampião e Eddie Pollo. Jubiabá passava encolhido pelos becos do morro, os homens o ouviam com respeito, recebia cumprimento de todos, e em sua porta paravam, de vez em quando, automóveis de luxo. Um dia um menino disse a Balduíno que Jubiabá virava lobisomem. Outro afirmou que ele tinha diabo preso numa garrafa268. Jubiabá será uma espécie de mentor de Balduíno, ensinando-o e conscientizando-o da vida de opressão que os negros viviam. A figura do pai de santo encontra como contraponto o personagem Zé Camarão, descrito como malandro, desordeiro que viva de pequenos golpes: "mulato alto e amarelado, eternamente gingando o corpo, que criara fama desde que desarmara dois marinheiros com alguns golpes de capoeira"269. Jubiabá e Zé Camarão são os únicos negros considerados livres. O objetivo de Baldo se torna claro no início do romance: não ser escravo. Logo cedo, tinha alguma noção do que seria a exploração capitalista, pois entre as duas carreiras possíveis na sua condição, a "malandragem, desordeiro, ladrão" ou "a escravidão das fábricas, do campo, dos ofícios proletários"270, preferia a primeira:

Coisa que o negrinho Balduíno aprendeu desde cedo no exemplo diário dos maiores. Como nas casas ricas tinha a tradição do tio, pai ou avô, engenheiro celebre, discursador de sucesso, político sagaz, no morro onde morava tanto negro, tanto mulato, havia a tradição da escravidão ao senhor branco e rico. E essa era a única tradição. Porque a da liberdade nas florestas da África já a haviam esquecido e raros a recordavam, e esses raros eram exterminados e perseguidos. No morro só Jubiabá conservava, mas isto Antonio Balduíno

266AMADO, Jorge. Jubiabá. Op. cit., p.18, grifos meus. 267Idem, Ibidem, p.22. 268Idem, Ibidem, p. 21. 269Idem, Ibidem, p. 23. 270Idem, Ibidem, p. 30.

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ainda não sabia. Raros eram os homens livres do morro: Jubiabá, Zé Camarão. Mas ambos eram perseguidos: um por ser macumbeiro, outro por malandragem. Antonio Balduíno aprendeu muito nas histórias heroicas que contavam ao povo do morro e esqueceu a tradição de servir. Resolveu ser do número dos livres, dos que depois teriam abc e modinhas e serviriam de exemplo aos homens negros, brancos e mulatos, que se escravizavam sem remédio. Foi no morro do Capa Nego que Antonio Balduíno resolveu lutar. Tudo que fez depois foi devido às histórias que ouviu nas noites de lua, na porta de sua tia. Aquelas historias, aquelas cantigas tinham sido feitas para mostrar aos homens o exemplo dos que se revoltam. Mas os homens não compreendiam ou já estavam muito escravizados. Porém alguns ouviam e entendiam. Antonio Balduíno foi destes que entenderam271.

Balduíno se espelha em Jubiabá e Zé Camarão. Mas se a princípio prefere ser malandro, ao conhecer a história do povo negro através de Jubiabá, ele deseja se tornar herói e ter sua trajetória narrada de um ABC. O narrador não perde a oportunidade por meio da voz de algum personagem de fazer a equivalência entre a história da escravidão negra e a exploração de classe. Ao pai de santo cabe apresentar o conhecimento tradicional e a história da cultura negra: Ocês não sabe por que esse morro chama do Capa Negro? Ah! Ocês não sabe... Pois é que porque esse morro era fazenda desse sinhô. E ele era malvado. Gostava que negro fizesse filho em negra para ele ganhar escravo. E quando negro não fazia filho ele mandava capar negro... [...] Negro que ele capou era avô, bisavô de nós... Ele procura nãos pensando que ainda somos escravo dele. Mas negro não é mais escravo...Negro ainda é escravo e branco também - atalhou um homem magro que trabalhava no cais-, todo pobre é ainda escravo. Escravidão ainda não acabou...Os negros, os mulatos, os brancos baixaram a cabeça. Só Antonio Balduíno ficou com a cabeça erguida. Ele não ia ser escravo [...] Respeitava-o [Jubiabá] porque ele sabia tudo e solucionava todas as questões entre os homens do morro. E curava todas as doenças e fazia feitiços fortes e era livre, não tinha patrão nem horário de trabalho272. A saída Balduíno do morro acontece no início da adolescência com doença de sua tia. O morador da travessa com o sugestivo nome de Zumbi dos Palmares, experimenta a vida de servidão pela primeira vez, pois morava na casa de um comendador, trabalhando como uma espécie de criado da família realizando afazeres domésticos. Nesse momento surge o amor platônico por Lindinalva que o acompanhará por todo romance. A personalidade insubmissa do protagonista logo aparece, é expulso da escola por promover traquinagens, não suportava a vida que se assemelhava a escravidão e os desaforos da governanta racista que fazia comentários: "Negro é uma raça que só serve para escravo.

271AMADO, Jorge. Jubiabá. Op. cit., p. 35, grifos meus. 272 Idem, Ibidem, p. 42-43, grifos meus.

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Negro não nasceu para saber" ou "Negro é raça ruim [...] negro não é gente"273. Seu único laço com o morro eram as visitas de Jubiabá, que em uma das ocasiões conta a história de Zumbi dos Palmares e da escravidão negra: Zumbi dos Palmares era um negro escravo. Negro escravo apanhava muito... Zumbi também apanhava. Porque lá negro não era escravo, negro era livre, negro vivia no mato trabalhando e dançando. [...] Os brancos iam lá buscar o negro. Enganavam negro que era tolo, que nunca tinha visto branco e não sabia da maldade dele. Branco só queria dinheiro e pegava negro para ser escravo. Trazia negro e dava negro com chicote. Foi assim com Zumbi dos Palmares. Mas ele era um negro valente e sabia mais que os outros. Um dia fugiu, juntou um bando de negro e ficou livre que nem na terra dele. Aí foi fugindo mais negro e ficou livre que nem a terra dele. Ai foi fugindo mais negro indo pra junto de Zumbi. Foi ficando uma cidade grande, de negros. E os negros começaram a se vingar dos brancos. Então os brancos mandaram soldados pra matar os negros fugidos. Mas soldado não se aguentava com os negros. Foi mais soldado. E os negros deram no soldado [...] Zumbi dos Palmares era um negro valente e bom. Se naquele tempo tivesse vinte igual a ele, negro não tinha sido escravo274.

Zumbi se torna o herói preferido de Baldo, nesse momento mais do que nunca o narrador atribui sua consciência ao protagonista afirmando: "O sentido de raça e raça oprimida ele o adquirira as custas das histórias do morro e o conservava latente. Tinha também Zé Camarão [...]". As humilhações na casa do comendador trazem à tona a revolta: "Com as surras Antonio Balduíno aprendera a ser dissimulado. Agora fumava escondido, dizia palavrões em voz baixa, mentia descaradamente275. E na primeira oportunidade de ter um emprego fixo, Baldo se viu "obrigado" a fugir da rica casa. Morando nas ruas da capital baiana, Baldo vive o seu reinado na companhia dos personagens que serão conhecidos em Capitães de Areia, "[...] o negro Balduíno é o imperador da cidade negra da Bahia. Um imperador de quinze anos, risonho e vagabundo. Talvez nem o próprio Balduíno saiba"276. Crescido, assumia o papel de malandro inspirado em Zé Camarão, vagando pela cidade de bar em bar, escrevendo sambas e se envolvendo em brigas. A cultura negra e seus rituais têm espaço para longas descrições no romance, são tratadas as perseguições aos candomblés, descrições de rituais, músicas, sambas e ABCs, que

273AMADO, Jorge. Jubiabá. Op. cit., p. 55. 274Idem, Ibidem, p. 57-58. 275Idem, Ibidem, p. 58. 276 Idem, Ibidem, p. 62.

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servem de pano de fundo na narrativa da trajetória de Baldo. O capítulo “Macumba”277 mostra com riqueza de detalhes os rituais afro-brasileiros, destacando os elementos sincréticos:

No altar católico que estava num canto da sala, Oxóssi era são Jorge, Xangô, são Jerônimo, Omulu, são Roque; e Oxalá, o Senhor do Bonfim - que é o mais milagroso dos santos da cidade negra da Bahia de Todos os Santos e do pai- de-santo Jubiabá. É o que tem mais festa bonita, pois a sua festa é toda como se fosse candomblé e macumba278.

Em um momento de desolação após perder uma luta de boxe, o protagonista busca força nos elementos da cultura africana e na história do povo negro:

Eram sons de batuque que desciam de todos os morros, sons que do outro lado do mar haviam sido guerreiros, batuques que ressoavam para anunciar combates e caçadas. Hoje eram sons de suplicas, vozes escravas pedindo socorro, religiões de negros de mãos estendidas para os céus. Alguns daqueles pretos que já tinham a carapinha branca guardavam nas costas marcas de chicote. Hoje as macumbas e os candomblés enviavam aqueles sons perdidos. Era como que uma mensagem a todos os negros, negros que na África ainda combatiam e caçavam, ou negros que na gemiam sobre o chicote branco. Sons de batuque que vinham do morro. Se dirigiam também angustiosos e confusos, sons religiosos, sons guerreiros, sons de escravos, a Antonio Balduíno que estava estendido na areia do cais. Os sons lhe entravam pelos ouvidos e buliam com o ódio surdo que vivia dentro dele. Antonio Balduíno se rojava na areia desesperado. Nunca tivera uma angustia tamanha. Ódio que se revolvia dentro dele. Via filas de negros, via aquele marcado nas costas que ele conhecera na casa de Jubiabá. Via mãos calosas batendo no chão, via negras terem filhos mulatos de senhores brancos. Via Zumbi dos Palmares transformar batuques de escravos em batuques de guerreiros. Via Jubiabá, nobre e sereno, dizendo conceitos ao povo escravo. Via a si próprio se levantando contra o homem branco. Mas ele perdera a luta, tomara uma surra de Miguez, como um vendido279.

Assim começa a guinada do herói negro. Seu primeiro contato com o trabalho assalariado e a exploração do proletariado é nas plantações de fumo, quando trabalha na lavoura e observa a rotina das trabalhadoras da fábrica de charuto. Nesse exato momento começa a refletir sobre a condição do pobre, afirmando: "A vida de pobre é vida desgraçada...Pobre é mesmo que escravo"280. As mulheres negras na narrativa têm pouco destaque, normalmente descritas como mulatas ou mulatinhas que atraem o protagonista e algumas negras que constituem a paisagem

277 Para um conhecimento mais aprofundado de como este rico tema aparece em Jubiabá sugiro os artigos Leonardo Dallacqua de Carvalho (2001) e de Florence Dravet (2014). 278 AMADO, Jorge. Jubiabá, Op. cit. p.101. 279 Idem, Ibidem, p. 127-128. 280Idem, Ibidem, p. 189.

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urbana como baianas, lavadeiras e vendedoras de quitutes. Rosa Rosendá é uma exceção até porque faz um interessante contraponto com a alva e virginal Lindinalva. Rosendá, que trabalhava como atração principal de um circo é descrita como uma mulher sensual e ambiciosa: Mulata despachada aquela, muito capaz de ir às fuças de qualquer um. Falava difícil, contava casos de morros no Rio, morro da Favela, morro do Salgueiro, descrevia as festas e os clubes de lá, o Ameno Jasmineiro, as Caprichosas da Estopa, o Lírio do Amor. Tinha um jeito elegante de rebolar as ancas quando caminhava, coisa mesmo de carioca. A verdade é que Antonio Balduíno gosta da negra. Ela é cheia de besteiras, de vaidades, se furtando sempre na hora em que Antonio Balduíno pensa que a tem nas mãos, mas ele está gostando dela um pedaço281.

Toda violência de Balduíno é dispensada a personagem: "Negra sem-vergonha aquela! Que era gostosa era mesmo, mas ele não era homem para ser enganado assim. Sempre se gabara de largar suas amantes e Rosendá queria brincar com ele [...] Ela merecia uma surra. Não vale a pena um homem matar outro por causa de uma vagabunda como Rosendá"282. Diferente das transgressões cometidas pelo protagonista, que são justificadas pela sua origem e situação econômico-social, a atitude violenta do herói dispensada a essa personagem são justificados pela sua provocante personalidade: "Ela bem que merecia uma surra...Mulata vaidosa! Queria ir de colar para a festa, o pescoço enfeitado de contas azuis [...] Aquela negra sabia ser mulher. Em cima da cama não havia coisa melhor. Mas fora dali era besta, cheia de chiquês e dengues. Uma negra dengosa. Gostava que lhe catasse, cafuné [...] Nem café Rosendá faz direito"283. Nesse processo de tomada de consciência, Balduíno inicia uma reflexão de suas raízes e termina escrevendo um abc exaltando Zumbi dos Palmares, que passou a ser vendido para populares. No melhor estilo herói romântico, em nome do amor por Lindinalva, Antonio Balduíno se escraviza, ou seja, trabalha como assalariado. Em seu leito de morte, Lindinalva pede que ele cuidasse do seu filho. Assim, Baldo assume o papel de pai e trabalhador: "Ia ter uma profissão, ia ser escravo da hora, dos capatazes, dos guindastes e dos navios. Mas se não o fizesse só lhe restaria entrar pelo caminho do mar [...] Os guindastes fazem escravos, matam os homens, são inimigos dos negros e aliados dos ricos. O mar faz libertos. Será um mergulho

281 AMADO, Jorge. Jubiabá. Op. cit., p. 221-222. 282 Idem, Ibidem, p. 235. 283 Idem, Ibidem, p. 254-255.

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só e terá tempo para soltar uma gargalhada. Mas Lindinalva acariciou e pediu que lhe tomasse conta do seu filho"284. A proletarização traz a redenção ao protagonista, que agindo intuitivamente se envolve na greve: "Gritara porque amava gritar, vaiar a polícia, jogar pedra em soldado. Hoje ele precisa de gritar novamente, como no tempo em que corria solto pela rua e não via os guindastes inimigos prontos a lhe rebentar a cabeça"285. Na tentativa de se tornar diretor do sindicato, enfrenta insultos raciais: Devem saber que ele é um negro valente. Mas um homem loiro, que mastiga um cigarro e que amanheceu bêbedo, se atravessa na sua frente: - Tu vai fazer greve, negro? Tudo por culpa da princesa Isabel. Onde já se viu negro valer de nada? Agora o que é que se vê? Negro faz até greve, deixa os bondes parados. Devia entrar tudo no chicote, que negro só serve para escravo...vai pra tua greve, negro. Os burros não viram essa cambada? Vá embora antes que eu te cuspa, filho do cão...286.

Insultos suficientes para que pela primeira vez na narrativa o personagem associe a exploração de classe a de raça, lembrando que das outras vezes o papel é atribuído ao narrador onisciente ou a algum outro personagem: "A greve é dos condutores de bondes, dos operários das oficinas de força e luz, da Companhia Telefônica. Tem até muito espanhol entre eles, muito branco mais alvo que aquele. Mas todo pobre agora já virou negro, é o que explica Jubiabá"287. Assim, somente depois de aderir à ética do trabalho é que Balduíno reencontra o caminho da liberdade, que só tivera igual na infância: "Antonio Balduíno sempre tivera um grande desprezo pelos que trabalham. E preferiria entrar pelo caminho do mar, se suicidar numa noite no cais, do que trabalhar [...] Mas agora o negro olhava com respeito os trabalhadores. Eles podiam deixar de ser escravos [...] Antonio Balduíno também descobriu isto e foi como se nascesse de novo"288. Sua conversão combina elementos da cultura negra com a condição de trabalhador:

[...] Zumbi dos Palmares, negro valente que morreu para não ser escravo, é Zumbi que brilha no céu e vê o negro Antonio Balduíno lutando para que Gustavinho não seja escravo [...] Ele agora sabe porque luta. E vai assim depressa para avisar todos os negros que estão na macumba de pai Jubiabá. Vai avisar a todos: o Gordo, a Joaquim, a Zé Camarão, a Jubiabá. Ele não compreende por que Jubiabá ainda não lhe ensinara a greve, Jubiabá que

284 AMADO, Jorge. Jubiabá. Op. cit., p. 277. 285Idem, Ibidem, p. 279 286 Idem, Ibidem, p. 281 287 Idem, Ibidem, p.281. 288 Idem, Ibidem, p. 284 grifos meus.

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sabia tudo. Zumbi dos Palmares, que é o planeta Vênus, pisca para ele no céu289.

E tenta convencer os seus do melhor caminho. Durante um rito de candomblé sua vocação como liderança na religião também é descoberta, sendo nomeado ogã290:

Meu povo, vocês não sabe nada...Estou pensando na minha cabeça que vocês não sabem nada...Vocês precisam ver a greve, ir para. Negro faz greve, não é mais escravo. Que adianta negro rezar, negro vir cantar para Oxossi. Uma vez os policiais fecharam a festa de Oxalá quando ele era Oxalafã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi para cadeia. Vocês se alembram, sim. O que é que negro pode fazer? Negro não pode fazer nada, nem dançar para santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro pode tudo, negro pode fazer o que quiser. Negro faz greve, pára tudo, pára guindastes, pára bondes, cadê luz? Só tem estrelas. Negro é a luz, é os bondes. Negro e branco pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. É só não querer, não é mais escravo. Meu povo, vamos para a greve, vamos brigar para não ter mais fome. Os outros já estão lá. E Antonio Balduíno sai sem ver os que o acompanham. O Gordo vai com ele, Joaquim e Zé Camarão, também. Jubiabá estende as mãos e dias: - Exu pegou ele...291.

Percebe-se na narrativa a tentativa de equilibrar as duas perspectivas, a de classe e a de raça, mas acaba pendendo para a primeira, pois Jubiabá falava que os negros não deviam ser escravos, mas não sabia que o caminho para libertação estaria na greve; a descoberta de Balduíno o coloca em pé de igualdade com seu mestre, com a descoberta este recupera "sua garganta de animal livre"292 que antes só tivera quando menino no morro do Capa Negro:

Antonio Balduíno vai para a casa de Jubiabá. Agora olha o pai-de-santo de igual para igual. E lhe diz que descobriu o que os abc ensinavam, que achou o caminho certo. Os ricos tinham secado o olho da piedade. Mas eles podem, na hora que quiserem, secar o olho da ruindade. E Jubiabá, o feiticeiro, se inclina diante dele como se ele fosse Oxalufã, Oxalá velho, o maior dos santos293.

Para reencontrar sua "essência animal", Baldo não nega, mas relativiza os valores da cultura negra, colocando-a a serviço da luta dos trabalhadores. Inspirado na figura mítica de Zumbi dos Palmares, adere aos saberes apreendidos na mobilização trabalhista para se tornar herói.

289 AMADO, Jorge. Jubiabá. Op. cit., p. 289, grifos meus. 290 Sacerdote escolhido pelo orixá para estar lúcido durante todos os trabalhos, responsável pelos cânticos e tocar atabaques nos rituais de umbanda e candomblé. 291 AMADO, Jorge. Jubiabá, op. cit., p. 290. 292 Idem, Ibidem, p. 321. 293 Idem, Ibidem, p. 318, grifos meus.

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A discussão sobre qual legado prevalece no romance gerou algumas interpretações294. O que percebo na narrativa é a tentativa de mediar e apontar igual importância das duas, pois ao mesmo momento que adere a luta trabalhista – Baldo procura informar os seus da situação de exploração capitalista –, lhe é atribuído o título de ogã, importante figura no candomblé, mas na tentativa de fazer uma literatura pedagógica acaba prevalecendo a importância da luta de classes295 a ponto do pai de santo Jubiabá curvar aos seus pés. A divisão do mundo em pares de opostos também é observada em Jubiabá: rico x pobre, cidade alta x cidade baixa, olho da ruindade x olho da piedade. Somente a polarização inicial brancos x negros se resolve ao final do romance quando o protagonista percebe que não é a etnia que os separa, mas a situação social. Nessa obra, fronteiras começam a ser dissolvidas, no caso, o ódio étnico-racial é suplantado pela diferença de classe e o sincretismo religioso está presente296. Ao tentar condensar dois debates, a questão do negro e a desigualdade social, pode-se considerar uma transição até chegar a exaltação na nacionalidade mestiça297. O olhar para a formação cultural brasileira se inicia neste romance será retomada anos depois em Gabriela, cravo e canela.

“Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim”: Gabriela, cravo e canela

A narrativa Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior inicia com o narrador onisciente afirmando que se trata de uma história de amor. Logo no segundo parágrafo é narrado um assassinato, um crime de honra (um rico fazendeiro matara sua mulher

294 Roger Bastide (1972) considerou que em Jubiabá há uma boa interpenetração entre os elementos da negritude e do marxismo, nessa mesma linha Gustavo Rossi (2004) acredita que ressignifica o universo mítico e lendário da cultura afro-brasileira utilizando-a a serviço da militância. Já Duarte (1996) e Tollendal (1997), apontam que Balduíno ao aderir a militância abandona os elementos da cultura negra. 295 Eneida Leal Cunha (1997) e Humberto Bastos (1967) também creditam na preponderância da classe em relação a raça. 296 GOLDSTEIN, Ilana. O Brasil best seller de Jorge Amado. Op. cit. 297 Sobre a mestiçagem, tema que vários trabalhos vão se dedicar a apreender e compreender na obra de Jorge Amado, alguns já arriscam a falar dessa temática em Jubiabá, pois esse romance marca o começo na obra de Amado de uma abordagem que observa atentamente e valoriza elementos da cultura baiana. Acredito que não haja elementos para tanto, mas, para Tollendal (1997), a exaltação da nacionalidade mestiça é uma constante deste romance, "[...] o cidadão brasileiro que tem orgulho da raça – que se empolga com o negro, quando este dribla o destino e dá sinais de eficiência na nossa luta de afirmação frente ao estrangeiro –, certamente se empolgará com a narração da luta de boxe entre Baldo e o alemão Ergin, que abre a narrativa". Teixeira Sobrinho (2012) coloca a história de Balduíno como um passo anterior para que a exaltação do mestiço apareça nos romances seguintes, "a mestiçagem pode figurar em um plano maior que o de um painel dos párias sociais, revelando-se significante e significado da realidade baiana – movimento que se inicia em Mar morto, se prolonga em Capitães da areia e se consolida, após longo período de latência, em Os pastores da noite".

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e o amante), que na ótica do narrador contrapunha ao acelerado progresso econômico de Ilhéus em idos de 1925, ou seja, havia uma evolução econômica, mas os hábitos e os costumes não acompanhavam esse progresso: “[...] abriam-se ruas, importavam-se automóveis, construíram palacetes, rasgavam-se as estradas, publicava-se jornais, fundava-se clubes, transformava-se Ilhéus. Mais lentamente os hábitos dos homens. Assim acontece sempre, em todas as sociedades298”. É basicamente sobre isso que versa o romance, a história de amor entre o comerciante Nacib e a retirante Gabriela acompanhado de várias outras histórias que buscavam retratar a vida cotidiana da cidade Ilhéus e tem como pano de fundo um tema bem conhecido do autor: a disputa entre os coronéis do cacau e os empresários da indústria agroexportadora299. O narrador bem informado, que olha para o passado de forma bem-humorada, logo busca apresentar as contradições envolvidas nesse processo, a exemplo do narrado no prólogo e na apresentação das duas partes que compõe o romance. Todo enredo é esboçado no início das partes. Na primeira parte são narradas “aventuras e desventuras de um bom brasileiro (nascido na Síria) ” e “um remoto passado”, que ao mesmo tempo era “um recente passado” com “leis inflexíveis” e “manobras políticas300”. Já na segunda parte apresenta “alegria & tristezas”, “casamentos & descasamentos”, “suspiros de amor & uivos de ciúme”, “capoeiristas & chef de cuisine301”, entre outras relações. Oposições ligadas pelo símbolo &, uma conjunção aditiva, demonstrando que os opostos tendem a se conciliar, argumento que também está posto no romance entre os dois personagens principais. A caracterização étnica desses personagens é logo apresentada: “mulata Gabriela” e “árabe Nacib”. Num tempo em que, segundo a narrativa, a palavra progresso era a mais ouvida e a preocupação com a safra era o centro das atenções: “[...] mais do que qualquer outro acontecimento, foi a história dessa doida paixão o centro de toda a vida da cidade naquele tempo, quando o impetuoso progresso e as novidades da civilização transformavam a fisionomia de Ilhéus302". Nesse extenso romance, as opiniões do narrador são repetidas constantemente, mas diferente do que acontece nos livros anteriores, como Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus,

298 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 299 Como afirmou José Paulo Paes (1991) a história de Nacib e Gabriela na cidade de Ilhéus acompanha a repercussão na vida social da decadência do poder dos coronéis em três momentos: antes, durante e depois do casamento. 300 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit, p. 11. 301 Idem, ibidem, p. 133. 302 Idem, ibidem, p. 18.

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suas estratégias são mais variadas, suas críticas algumas vezes vêm através da fala dos personagens ou com toque de humor debochado. A exemplo do trecho sobre o processo de naturalização de Nacib: Processo rápido de naturalização que o respeitável tabelião praticava, com a perfeita consciência de dever cumprido, por uns quantos mil reis. Não tendo alma de explorador cobrava barato, colocando a operação legal ao alcance de todos, fazendo desses filhos de imigrantes, quando não os próprios imigrantes vindos trabalhar em nossa terra, autênticos cidadãos brasileiros, vendendo- lhes boas e válidas certidões de nascimento303.

Uma das novidades de Gabriela residia está no fato de ser a primeira protagonista feminina de Jorge Amado e uma das poucas protagonistas mulatas304 na literatura brasileira. Sobre ela nos debruçaremos nos parágrafos a seguir, mas não se pode perder de vista os outros personagens negros povoam o romance. O narrador afirma que “Muita coisa recordava ainda o velho Ilhéus de antes. Não o do tempo dos engenhos, das pobres plantações de café, dos senhores nobres, dos negros escravos, da casa ilustre dos Ávilas. Desse passado remoto sobravam apenas vagas lembranças [...]”305, mas pela própria narrativa se percebe os negros em funções, atividades e posições sociais muito próximas às do período escravocrata como:

Negras vendiam mingau e cuscuz, milho cozido e bolos de tapioca [...] O coronel Ribeirinho, proprietário da fazenda Princesa da Serra, cuja riqueza não afetara sua simplicidade bonachona, quase sempre já ali se encontrava quando, às cinco da manhã, Maria de São Jorge, formosa negra especialista em mingau e cuscuz de puba, descia o morro, o tabuleiro sobre a cabeça, vestida com a saia colorida de chitão e a bata engomada e decotada a mostrar metade dos seios rijos. Quantas vezes não a ajudara o coronel a baixar a lata de mingau, a arrumar o tabuleiro, os olhos no decote da bata306.

Como é recorrente nos romances amadianos, as descrições físicas estereotipadas vem à tona, especialmente quando Nacib procura uma cozinheira para seu restaurante em uma feira. Primeiro encontra "Uma negra gorda, um torso na cabeça, colares e pulseiras, torceu o nariz”, que responde: “Trabalhar pra patrão? “Deus me livre...307". As mulheres da feira são descritas como “Mulatas e negras, empregadas nas casas ricas [...] Os colares sobre os peitos

303 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit., p. 38. 304 Dentre eles podemos citar, Clara dos Anjos de Lima Barreto que tudo indica ser de 1922, mas publicado em 1948; O cortiço (1890) de Aluísio de Azevedo, A escrava Isaura (1875) de Bernardo de Guimarães 305 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit., p. 21. 306 Idem, ibidem, p. 23-24. 307 Idem, ibidem, p. 56.

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negros, as pulseiras nos braços mulatos, uma tentação! [...] As negrinhas compravam por metade do preço, pelo duplo valor308". Ou seja, mulheres voluptuosas, empregadas domésticas, algumas vezes amantes de homens poderosos quando não prostitutas, chamadas de rapariga no romance. Como observado nas relações que mantinha o coronel Coriolano um dos pioneiros desbravadores das terras do cacau: [...] sua alegria na vida, essas cabrochas, mulatinhas no verdor dos anos, que o tratavam como se ele fosse um rei [...] Quase sempre era a mulher quem o abandonava, farta daquela vida de cativa, de escrava bem alimentada e bem- vestida. Algumas iam parar casa de prostituição, outras voltavam para as roças, uma viajara para a Bahia, levada por um caixeiro-viajante. Por vezes, no entanto, era o coronel quem se fartava, precisava carne nova. Descobria, quase sempre em sua própria fazenda ou nos povoados, uma cabloquinha simpática, mandava a anterior ir embora309.

O coronel mantinha Glória como amante, praticamente presa dentro de uma casa, uma propriedade sua, um comportamento considerado atrasado: “Gloria era de utilidade pública, necessidade social, elevando a nível superior a vida sexual dessa cidade de Ilhéus, tão feudal ainda, apesar do propalado e inegável progresso310. Descrita com “rosto moreno queimado”, sedutora, não era feliz: "Na janela Gloria suspirava, quase um gemido. Ânsia, tristeza, indignação misturavam-se nesse suspiro a morrer na praça311". O lugar onde Nacib encontra Gabriela era conhecido como “mercado de escravos”, numa clara referência ao período escravista, mas que naquele momento era onde ficavam sertanejos recém-chegados fugidos da seca. Chama atenção que os dois invertidos, segundo termo da narrativa, ou seja, homossexuais assumidos da cidade, eram negros: um conhecido como Machadinho, “o mulato Machadinho, sempre limpo e bem-arrumado, lavadeira de profissão, em cujas mãos delicadas as famílias entregavam os ternos de linha, de brim branco HJ, as camisas finas, os colarinhos duros”; o outro é conhecido Miss Pirangi, “um negro medonho, servente na pensão de Caetano, cujo vulto era visto à noite na praia, em busca viciosa. Os moleques atiravam-lhe pedras,

308 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit, p.57. 309 Idem, ibidem, p. 97, grifos meus. 310 Idem, ibidem, p. 127. 311 Idem, ibidem, p. 84.

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gritavam-lhe o apelido: 'Miss Pirangi! Miss Pirangi!'312”. Ambos são citados pelo personagem Nhô-Galo como sugestão para assumir a cozinha do Bar Vesúvio313. Um personagem de cor que tem algum destaque é o menino Tuísca, cujo nome vem inseparável da palavra negrinho, uma espécie de moleque de recados, faz tudo, engraxate, vendedor de jornal e de doces, portador das novidades da cidade e que servia para tudo e a todos e se torna companheiro inseparável de Gabriela. Segundo consta, ele e sua irmã sustentavam a casa, pois sua mãe Raimunda sofria de reumatismo. O circo era o sonho de Tuísca, que durante o período em que ele se encontrava na cidade deixa suas funções "fazendo-se indispensável e íntimo314" no picadeiro. A primeira descrição de Gabriela é como uma mulher sensual, de beleza natural, “o corpo esguio, o rosto sorridente, mordendo uma goiaba315", "era de natural risonha e brincalhona, trocava graças até com o negro Fagundes, distribuía sorrisos e obtinha de todos o que quisesse316". Com alguma limitação intelectual, “parecia uma demente perdida nos caminhos317” e decidida que não se prendia ou sujeitava a vontade de nenhum homem: "Vou ficar na cidade, não quero mais viver no mato. Vou me contratar cozinheira, de lavadeira ou para arrumar casa dos outros [...] Já andei de empregada em casa de gente rica, aprendi a cozinhar318”. No “mercado de escravos”, cheio de dúvidas, Nacib leva Gabriela para trabalhar na cozinha de seu bar. O trecho que primeiro encontro dos dois é elucidativo:

Virou as costas, ia saindo, ouviu a voz atrás dele, arrastada e quente: - Que moço, bonito! Parou. Não se lembrava de ninguém achá-lo bonito, à exceção da velha Zoraia, sua mãe, nos dias de infância. Foi quase um choque. - Espere. Voltou a examina-la, era forte, por que não experimentá-la? - Sabe mesmo cozinhar? - O moço me leva e vai ver... Se não soubesse cozinhar, serviria ao menos para arrumar a casa, lavar a roupa.

312 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit,, p. 71. 313 Ana Luiza Antunes (2009) em sua tese de doutorado sobre os homossexuais em Jorge Amado nota que na brevíssima representação, pela voz de outra personagem e pela descrição do narrador, não poupa os dois de crítica: um é “lavadeira”, no feminino; outro é “medonho”, dedicando-se à procura de quem satisfaça o seu “vício” à noite, na praia, onde os moleques o apedrejam, embora certamente muitos sejam seus parceiros sexuais. E que ambos se assemelham aos personagens Franz e Medonho, do romance Suor. 314 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit, p.139. 315 Idem, ibidem, p. 77. 316 Idem, ibidem, p.78. 317 Idem, ibidem, p. 76. 318 Idem, ibidem, p. 77.

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- Quanto quer ganhar? - O moço é que sabe. O que quiser pagar... - Vamos ver primeiro o que você sabe fazer. Depois acertamos o ordenado. Lhe serve? - Pra mim, o que o moço disser, tá bom. - Então pegue a sua trouxa. Ela riu novamente, mostrando os dentes brancos, limados. Ele estava cansado, já começava a achar que tinha feito uma besteira. Ficara com pena da sertaneja, ia levar um trambolho para casa. Mas era tarde para arrepender-se. Se pelo menos soubesse lavar... [...] - Como é mesmo seu nome? - Gabriela, pra servir o senhor319.

O aspecto sedutor e servil da protagonista salta aos olhos, como também a atitude do comerciante árabe, que a trata como uma espécie de mercadoria que alguma serventia teria. A atração de Nacib pela retirante surge depois que esta toma banho, tornando-se, enfim, Gabriela, cravo e canela: [...] os cabelos longos, espalhados nos ombros. Depois de lavados e penteados tinham-se transformado em cabeleira solta, negra e encaracolada [...] Um rasgão na saia mostrava um pedaço de coxa cor de canela, os seios subiam e desciam levemente a ritmo do sono, o rosto sorridente [...] como tanta boniteza se escondera sob a poeira dos caminhos? Caído o braço roliço, o rosto moreno sorrindo no sono, ali, adormecida na cadeira, parecia um quadro. Quantos anos teria? Corpo de mulher jovem, feições de menina [...] Dela vinha um perfume de cravo, dos cabelos talvez, quem sabe do cangote320.

Os comentários sobre Gabriela se espalhavam, o narrador comenta: "Morena e tanto, essa sua empregada [...] E de cor queimada que ele gostava321". Os clientes do bar por sua vez diziam: "Pra mesa e pra cama, hein, seu turco...322". Gabriela, por sua vez, parecia alheia a tudo, achava tudo bom, não importava de ser vista seminua, não fazia questão de receber salário pelo serviço, mantinha um relacionamento com Nacib, que chamava de “moço bonito”, e se relacionava com alguns clientes do bar: Estava contente com o que possuía, os vestidos de chita, as chinelas, os brincos, o broche, uma pulseira, dos sapatos não gostava, apertavam-lhe os pés. Contente com o quintal, a cozinha e seu fogão, o quartinho onde dormia, a alegria cotidiana do bar com aqueles moços bonitos - o professor Josué, seu Tonico, seu Ari - e aqueles homens delicados - seu Felipe, o Doutor, o

319 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit., p.108-109, grifos meus. 320 Idem, ibidem, p. 117, grifos meus. 321 Idem, ibidem, p.118. 322 Idem, ibidem, p. 123.

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Capitão-, contente com o negrinho Tuísca seu amigo, com seu gato conquistado ao morro323.

A personalidade infantilizada de Gabriela a faz se aproximar de Tuísca, que lhe contava as novidades da cidade e juntos nutriam admiração pelo circo: Imediatamente pôs-se a dançar, tinha a dança dentro de si, os pés criando passos, o corpo solto, as mãos batendo o ritmo. Gabriela olhava, com ela era igual, não se conteve. Abandonou tabuleiros e panelas, salgados e doces, a mão a suspender a saia. Dançavam agora os dois, o negrinho e a mulata, sob o sol do quintal. Nada mais existia no mundo. Em certo momento Tuísca parou, ficou apenas a bater as mãos sobre um tacho vazio, emborcado. Gabriela volteava, a saia voando, os braços indo e vindo, o corpo a dividir-se e a juntar-se, as ancas a rebolar, a boca a sorrir324.

O próprio narrador reconhece os traços infantis de sua personalidade: "Ela sorria para uns e outros, parecia criança não fossem as ancas soltas325". Como também o ótimo negócio que Nacib havia feito: "Nunca fizera negócio tão vantajoso como ao contratar Gabriela no 'mercado de escravos'. Quem diria ser ela tão competente cozinheira, quem diria esconder- se sob trapos sujos tanta graça e formosura, corpo tão quente, braços de carinho, perfume de cravo a tontear?326”. O conflito entre Gabriela e Nacib começa quando o assunto casamento vem à tona, trazido por outra personagem, D. Arminda, que insistia na necessidade de formalizar a união. Nesse momento, observa-se que a narrativa atribui à protagonista uma autoconsciência que pelas descrições anteriores parecia impossível: Não pensava em casamento apesar da sugestão de Dona Arminda ‘Seu Nacib é pra casar com moça direita, de família, de representação. Por que havia de casar comigo? Precisa não. - e você não tem vontade de ser uma senhora, mandar numa casa, sair de braço com seu marido, vestir do bom e do melhor, ter representação? ...Gosto não... [...] De casar com seu Nacib, era até capaz de gostar. Ficar a vida cozinhando para ele...[...] Mas qual, seu Nacib tem mais que fazer. Não vai querer casar não, dona Arminda. Nem que ele fosse maluco327"

Páginas a frente o narrador mistura claramente o pensamento da personagem com o seu juízo sobre o assunto: Pensar, para quê? Valia a pena não...Seu Nacib era para casar com moça distinta, toda nos trinques, calçando sapato, meia de seda, usando perfume.

323 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit, p. 165. 324 Idem, ibidem, p. 140. 325 Idem, ibidem, p. 141. 326 Idem, ibidem, p. 148. 327 Idem, ibidem, p. 163-164.

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Moça donzela, sem vicio de homem. Gabriela servia para cozinhar, a casa arrumar, a roupa lavar, com homem deitar. Não velho e feio, não por dinheiro. Por gostar de deitar. Clemente na estrada, Nhozinho na roça, Zé Carmo também. Na cidade Bebinho, moço estudante, casa tão rica! Vinha mansinho, na ponta dos dedos, com medo da mãe. Primeiro de todos, ela era menina, foi mesmo seu tio. Ela era menina, de noite seu tio, velho e doente328.

Os aspectos sociais, como a cor da pele, e morais são colocados como impedimento para Nacib: [...] com Gabriela, cozinheira, mulata, sem família, sem cabaço, encontrada no ‘mercado de escravo’? Casamento era com senhorita prendada, de família conhecida, de enxoval preparado, de boa educação, de recatada virgindade. Que diria seu tio, sua tia metida a sebo, sua irmã, seu cunhado engenheiro- agrônomo de boa família?329

Anteriormente comparada a um gato selvagem que se domesticara de maneira singular, com o casamento Gabriela é comparada a um pássaro preso: “Corpo formoso, alma de passarinho. Será que tem alma? [...] Alma de criança, talvez [...] – De criança? Pode ser. De passarinho? Besteira Josué. Gabriela é boa, generosa, impulsiva, pura. Dela podem-se enumerar qualidades e defeitos, explicá-la jamais. Faz o que ama, recusa-se ao que não lhe agrada330”. Ou seja, Gabriela era puro instinto. O casamento deu uma nova identidade a protagonista: “Gabriela da Silva, de vinte e um anos, de prendas domesticas, nascida em Ilhéus, ali registrada331”, que logo recusa: -Por que seu Nacib? Sou seu marido, não seu patrão...[...] Você é uma senhora, de posses, de representações. - Sou não, seu Nacib. Sou só Gabriela. - Vou te educar. – Tomou-a nos braços, levou-a pra cama - Moço bonito...332.

Sendo assim, a relação do casal é mostrada a todo momento como entre desiguais e que mesmo diante de uma possibilidade Gabriela se recusa a “sair do seu lugar”, continuando a andar descalço, fazendo trabalhos domésticos, sendo cozinheira do restaurante, tendo vários homens e considerando o marido como seu dono. O desfecho da história é um acordo de conveniências. Flagrada na cama com outro homem, Gabriela desperta a ira de Nacib e leva uma surra que a personagem considerou justa. O casamento é anulado e de senhora Saad a protagonista volta a ser simplesmente Gabriela,

328 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit, p. 165, grifos meus. 329 Idem, ibidem, p. 180. 330 Idem, ibidem, p. 282. 331 Idem, ibidem, p. 201. 332 Idem, ibidem, p. 212.

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recolocando as coisas em seu “devido lugar”. O argumento apresentado para anulação do casamento foi que a personagem nunca passou de uma rapariga. A relação de submissão retoma o equilíbrio, Gabriela volta a morar na casa ao lado, cozinheira do bar, faxineira da casa e amante de Nacib:

Voltaram as relações dos primeiros tempos, o patrão e a cozinheira, ela muito despachada e alegre, a arrumar a casa, a cantar, a vir ao restaurante preparar os pratos do almoço, a descer ao bar na hora do aperitivo para anunciar o menu de mesa em mesa, obtendo fregueses para o andar de cima. Quando o movimento terminava, por volta de uma e meia da tarde, Nacib sentava-se a almoçar, servido por Gabriela. Como antigamente. Ela rodava em torno da mesa, trazia-lhe a comida, abria a garrafa de cerveja. Comia depois com o único garçom [...]333.

Segundo a narrativa, para a moralista sociedade ilheense era como se nada tivesse acontecido, afinal “rapariga de casa montada tem um pouco o direito a divertir-se. Não fora casada, não tinha maior importância334". O que se observa em Gabriela não são características muito diferentes das atribuídas a outros personagens negros amadianos: o comportamento instintivo, a sexualidade aflorada e uma aparente limitação intelectual. O que destaca Gabriela é que, por causa da sensualidade, ela transita socialmente, agradando ricos e pobres, pretos e brancos, brasileiros e estrangeiros. Mas não sabemos exatamente o que a personagem realmente aspira no romance, no começo afirma querer ser cozinheira e no decorrer da história agradar Nacib, desde que não conflitasse com seus instintos. É o primeiro romance de Jorge Amado que a mulher é o centro da narrativa e sua sensualidade é assinalada de maneira positiva, mas mesmo assim atrelada ao instinto animal. Lembrando que as personagens mulatas observadas neste trabalho tiveram seus atributos físicos destacados, corpo bonito e/ou forte, mas o rosto não acompanhava a beleza do corpo devido a traços típicos do fenótipo negro, como o “nariz chato”, por exemplo, utilizando a expressão “rosto mulato” como sinônimo de feiura335.

333 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Op. cit, p. 316. 334 Idem, ibidem, p. 286. 335 Duarte (1997), que faz uma análise mais ampla de obras de Jorge Amado, afirma a novidade da protagonista feminina e seu apelo sexual, mas que: “[...] No entanto, sua obra está lastreada em várias figurações anteriores de um feminino que tinha sempre destacada sua força – Linda, em Suor; Lívia, em Mar Morto; Mariana, em Subterrâneos da Liberdade ou denunciada a condição de objeto sexual – Maria do Espírito Santo, em Suor; as três irmãs prostituídas, em Terras do sem Fim; Marta, em Seara Vermelha” entre essas mulheres também podemos acrescentar Raimunda de Terras do Sem fim e São Jorge dos Ilhéus.

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Na personagem Gabriela está o ideal do “bom selvagem”, isto é, a bondade intrínseca, naturalidade dos instintos. Na narrativa a personagem em momento algum pensa em desvincular de Nacib e em alguns momentos de reflexão sobre a sua condição social observamos o narrador atribuindo sua consciência à personagem336. Diferente da narrativa sobre Pedro Archanjo protagonista de Tenda do Milagres.

“Todos pobres, pardos e paisanos” em Tenda dos milagres

Tenda dos milagres, como os romances iniciais, logo nas epígrafes, informa a que veio com citações de três intelectuais baianos. Versos do poeta Gregório de Matos sobre a Bahia, do intelectual abolicionista Manuel Querino337, que seria inspiração para criação do protagonista, exaltando a qualidade do solo e do mestiço brasileiro e, por fim, uma citação do escritor James Amado falando de Matos e a postura engajada do artista. Além de uma descrição de Archanjo: "Pardo, paisano e pobre – tirado a sabichão e a porreta338" e uma referência ao pintor Carybé “Iaba é uma diaba sem rabo339” que indicaria a ausência de limites entre o real e o imaginário. A narrativa logo nos apresenta o Pelourinho em Salvador, lugar onde desenrola da história, uma paisagem cheia de referências a cultura negra, com orixás, afoxés, capoeiristas, a

336 Como afirmou José Paulo Paes (2001): “Salta aos olhos, no caráter de Gabriela, um forte traço de infantilidade que chega por vezes a beira do retardamento mental. Todavia, o fato de estar acompanhado de uma sexualidade amadurecida, segura de si, faz com que a verossimilhança ceda, no caso, seus direitos à coerência simbólica. Na sua feliz animalidade, que não conhece outro limite para o desejo que não seja a ânsia de plenitude, própria e alheia, ela é o sexo no grau máximo, pastoral, de naturalidade. Daí também nesse domínio a sua lógica de bom selvagem seja não menos subversiva do código estabelecido” (p. 49). Chamo atenção que as interpretações da protagonista são diversas: alguns consideram que Gabriela encarnaria a ânsia de independência e de liberdade social da mulher. 337 Manoel Querino (1851-1923) teve uma trajetória similar ao Archanjo, segundo consta, ambos tiveram uma com perda precoce dos pais, origem humilde, cor negra, autodidatismo e passagem pelo Liceu de Artes e Ofícios. Querino seria uma voz destoante entre os cientistas do início do século XX, foi um pensador da mestiçagem em seu livro O colono africano trata o africano como “colonizador”, e não apenas como elemento passivo, mão-de- obra escrava e aponta o seu papel civilizador, sua atuação como elemento que cria e promove civilização. Entre textos a seu respeito indico: “Intelectuais negros e modernidade no Brasil”. Centre for Brazilian Studies. University of Oxford. Working Paper, n°52, 2003; “Manoel Querino e a formação do ‘pensamento negro’ no Brasil, entre 1890 e 1920”. Trabalho apresentando ao 28° Encontro Nacional da ANPOCS, Caxambu-MG, (mimeo), 2004; e “Intelectuais negros e formas de integração nacional”, Estudos Avançados,2004, vol.18 de Antonio Sergio Guimarães e de Ari Lima, “A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro”. Afro-Ásia. n°25/26,2001; 338 AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. São Paulo: Martins Editora, l9__. A descrição citada, segundo a narrativa, estava na ficha da polícia. 339 Iaba no roteiro de Caybé é fruto de uma feitiçaria feita por uma mulher para fazer um homem mullherengo sofrer, achando que seu amado sofreu o bastante manda Iaba ir embora, mas esta apaixonada se recusa partir virando humana.

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"universidade livre, na criação do povo nasce a arte340", a reitoria desta universidade ficava na Tenda dos milagres cujo reitor era Pedro Archanjo com auxílio de Lídio Corró “[...] a Tenda dos Milagres se transforma no coração, no centro vital de toda aquela parte da cidade, onde se processa, potente e intensa, a vida popular, e que se estende na Praça da Sé e do Terreiro Bom Jesus às portas do Carmos e a Santo Antonio, englobando o Pelourinho [...] A Tenda dos Milagres é uma espécie de Senado, a reunir os notáveis da pobreza, assembleia numerosa e essencial341" bem próximo ficava o lugar que se opunha a esse ambiente de conhecimento popular, a Faculdade de Medicina: "[...] nela igualmente se ensina a curar doenças, a cuidar de enfermos [...] da retórica ao soneto e suspeitas teorias342". O narrador na maior parte do livro é o personagem Fausto Pena, que, como em Gabriela, cravo e canela, nos subtítulos já adianta o enredo; outras vezes aparece um narrador onisciente. A narrativa começa no presente (1968) com o narrador poeta-sociólogo contratado por um renomado pesquisador norte-americano, professor da Universidade de Columbia e prêmio Nobel pela contribuição nas ciências sociais e humanas, James Levenson, que descobre que Archanjo escreveu quatro livros. O fato de ser sociólogo dá credibilidade ao narrador tecer inúmeras críticas a ciência nacional e a elite de nosso país, que teria dificuldade de reconhecer a cultura popular e sua origem negra, mas que aceitava o que um estrangeiro falava sem parcimônia343. Quando Levenson chega ao Brasil, repercutiu sua declaração ao chegar no aeroporto: "’Estou na pátria de Archanjo, sinto-me feliz’ [...] Quem é esse tal de Pedro Archanjo, do qual nunca se ouviu falar344". O pesquisador norte-americano havia publicado parte da obra de Archanjo na enciclopédia sobre a vida dos povos da África, da Ásia e da América Latina, porém o posfácio de Levenson tinha algumas inconsistências, pois Archanjo foi promovido a membro da Congregação da Faculdade de Medicina onde teria realizado pesquisas e publicado livros.

340 AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. Op. cit., p. 9. 341 Idem, Ibidem, p. 70. 342 Idem, Ibidem, p. 10. 343 Levenson chega no Brasil com status de celebridade e se vê “obrigado” a deixar a objetividade cientifica de lado, a narrativa debochada afirma: "Sistemático, recusara convites de academias, institutos, grêmios, conselhos culturais, professores - tudo isso tinha de sobra em Nova Iorque e estava farto, mas aquele sol do Brasil quando voltaria a tê-lo? Nas praias jogou até futebol e foi fotografado atirando a gol, embora mulheres fossem sem dúvida seu esporte predileto. Estabeleceu intimidade com ótimos exemplares nacionais, praia e nas boites" (p. 18). Como também, cita a falta de reconhecimento de cientistas nacionais como Ramos que teria tentado dar destaque e publicar as obras de Archanjo, o papel de Fausto Pena é ignorado e o comentário de Sergio Milliet teria colocado Archanjo ao lado de nomes de peso do movimento modernista como Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Raul Bopp. 344 AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. Op. cit., p. 18.

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Após a pesquisa com tutoria de Levenson, a importância Archanjo é reconhecida nacional e internacionalmente. Segundo Pena: Em nada concorri para a divulgação dos livros de Archanjo nos Estados Unidos, mas considero tal divulgação uma vitória do pensamento progressista, tendo sido o baiano, como foi, um libertário, sem ideologia, é certo, mas de incomparável paixão popular, bandeira de luta contra o racismo, o preconceito, a miséria e a tristeza345.

Também por meio de sua percepção, Pedro Archanjo é descrito como "um mulato pardo, jovem e forte, metido em roupa escura, posudo - eis Archanjo, recém nomeado bedel da faculdade de Medicina da Bahia. Achei por bem não enviar a outra foto, onde mestre Pedro, já velho e descuidado, um trapo, é visto em companhia de duvidosas mulheres, empinando o copo, em evidente esbórnia346". Já revelando a dupla vida do baiano. Depois da apresentação, a narrativa retorna ao passado, alternando passado e presente, começando com a morte e o enterro do popular que parecia uma festa: "Mestre Archanjo era bom de garfo, de garfo e copo [...] ouvir Archanjo era privilegio dos pobres [...] Não vinham pela morte de Pedro Archanjo, sábio autor de livros sobre a miscigenação, talvez definitivos, e, sim, pela morte de Ojuobá, os olhos de Xangô, um pai daquele povo347”. Assim, a narrativa sempre procura mostrar Archanjo como um homem do povo, aquele que condensava os saberes tradicionais com o da mais avançada ciência da sua época: [...] debatera teorias, polemizara com os sábios da época, negara a pseudociência oficial, contra ela levantando para destruí-la. Os demais tinham vindo para despedir um velho tio de muita sabedoria e esperteza, de bom conselho e experiência, conversador de fama, bebedor de marca, mulherengo até o fim, prodigo fazedor de filhos, preferido dos orixás, confidente dos segredos, um velho tio do maior respeito, quase um feiticeiro, Ojuobá348.

A defesa insistente e enfática da mestiçagem faz de Tenda dos Milagres um romance de tese. O livro é cheio de fatos verídicos e referências a pessoas que realmente existiram. Como é comum nos romances amadianos, a defesa da ideia principal é repetida à exaustão e não seria exagero afirmar que esse é o mais insistente dos analisados nesta tese. Archanjo atuava na defesa dos cultos afro-brasileiros, escrevendo artigos e puxava afoxés e blocos quando esses eram proibidos. Era filho de Exu, seguido de Xangô e de perto

345 AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. Op. cit., p. 12. 346 Idem, Ibidem, p. 13. 347 Idem, Ibidem, p. 25. 348 Idem, Ibidem, p. 32

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Ogum e depois Iemanjá, e também fora ordenado Ojuobá349, os olhos de Xangô. Como bedel da Faculdade de Medicina, era admirado por alunos e funcionários em geral, pois condensava segundo o narrador, características do povo baiano em geral “solicito e gentil, jamais humilde, reverente ou adulador350”, mas tinha como adversário o professor Nilo Argolo, catedrático e mentor cientifico da Faculdade de Medicina que escrevia teses contrárias a miscigenação considerando-a como degenerescência:

A degenerescência psíquica e mental dos povos mestiços- o exemplo da Bahia’ [...] 'Maior fator de nosso atraso, de nossa inferioridade, constituem os mestiços uma sub-raça incapaz'. Quanto aos negros, na opinião do professor Argolo, não tinham ainda atingido a condição humana: 'em parte do mundo puderam os negros, constituir Estado com um mínimo de civilização?'351.

Enquanto Argolo escreveu "A degenerescência psíquica e mental dos povos mestiços- o exemplo da Bahia", Archanjo apresentou "Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas", em que afirmava que não havia uma família sequer sem mistura de sangue na Bahia, uma revelação que lhe custa o emprego e a prisão. Archanjo seria um herói, pois rompeu com uma tradição: Houve, no primeiro quartel do século, no burgo da Bahia, uma luta de ideias e princípios entre certos professores da Faculdade, entronizados nas cátedras de medicina e de psiquiatria, e os mestres daquela universidade vital do chamado Pelourinho muitos dos quais só se deram conta dos fatos- e ainda assim em termos restritos- quando a polícia foi chama para intervir e interveio [...] É licito afirmar ter sido Pedro Archanjo , quem, com seus livros quase anônimos, com sua luta contra a pseudociência oficial, pôs fim a tão melancólica fase da gloriosa Escola. O debate em torno da questão racial arrancou a Faculdade da retórica barata e da teoria suspeita e reintegrou o interesse cientifico, na especulação honrada e original, no trato da matéria352.

A frase inicial do seu primeiro livro era: "É mestiça a face do povo brasileiro e é mestiça a sua cultura353". A princípio, a base dos escritos de Archanjo vem do conhecimento empírico, mas ao tomar conhecimento dos estudos de Argolo o bedel se detém em textos acadêmicos, de Franz Boas a Lombroso, para comprovar a veracidade das suas elaborações. Assim resolve as contradições entre homem do povo e da ciência: "Foi Pedro Archanjo e Ojubá

349 Título de honra concedido a pessoas que se tornavam altos sacerdotes no culto de Xangô em África ou no candomblé. 350 AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. Op. cit., p. 73 351 Idem, Ibidem, p. 72. 352 Idem, Ibidem, p. 102. 353 Idem, Ibidem, p. 98.

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ao mesmo tempo. Nem se dividiu em dois, com hora marcada para um e outro, o sábio e o homem [...] Foi mestre Archanjo Ojuobá, um só e inteiro354". Além da indistinção entre o popular e o erudito, são constantes os exemplos sobre o valor da mestiçagem racial e cultural, esta como fundamental para o povo baiano, sendo Argolo e seu grupo exceção. Na Bahia, em torno das festas como carnaval e ternos, acontecia uma espécie de confraternização, frequentado por pessoas de diferentes cultos, cores e origens sociais: “No Terno da Estrela D'Alva, brancos, negros e mulatos dançavam indiferentes às teorias dos catedráticos, Kirsi ou Dedé, qualquer das duas pode ser a estrela do reisado, o povo aplaudirá com o mesmo entusiasmo, não há primeira nem segunda, muito menos superior e inferior355". Os relacionamentos de Archanjo são outro exemplo dessa confraternização. Conhece a sueca chamada de finlandesa Kirsi, que se torna sua amante. Apesar das barreiras de língua, eles têm um filho que representaria o valor do mestiço, segundo o personagem “[...] se for homem, será o mais inteligente e forte, Rei da Escandinávia ou Presidente do Brasil [...] se nascer mulher, nenhuma outra vai com ela poder se comparar em formosura e porte356” e o narrador complementa "Foi na Bahia, onde a mistura se processa357", ao se despedir com “menino cor de bronze” na barriga a personagem afirma “'Não há no mundo gente melhor do que vocês, povo mais civilizado do que o povo mulato da Bahia’358”. Nas comemorações de seu centenário, Pedro Archanjo ganha nome de rua, de escola, uma série de reportagens em jornal. Uma polêmica recai na proposta de realizar um seminário de estudos na Faculdade de Filosofia com o tema: "A democracia racial brasileira e o apartheid – afirmação e negação do racismo", em que um dos organizadores afirma que a maior contribuição brasileira para a humanidade foi a miscigenação, mas devido ao caráter supostamente subversivo no lugar do evento organizam um concurso de redação chamado "Prêmio Pedro Archanjo" cuja recompensa seria uma passagem para Portugal. Essa comemoração é utilizada pela narrativa para criticar a hipocrisia dos políticos e dos intelectuais do país que não valorizam o elemento nacional, a censura da Ditadura Militar, como também, as ideias antirracistas do movimento Panteras Negras dos EUA e o radicalismo das posições de esquerda. Durante o ensaio de uma peça de teatro em homenagem ao

354 AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. Op. cit., p. 141. 355 Idem, Ibidem, p. 74. 356 Idem, Ibidem, p. 57. 357 Idem, Ibidem, p. 57. 358 Idem, Ibidem, p. 72.

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protagonista, que foi censurada, procuraram descrever Archanjo como: “Uma espécie de professor Nilo Argolo às avessas. Negro de um lado, branco de outro, proibida qualquer mistura e convivência, em luta mortal. Jamais consegui saber onde o violento líder da negritude nacional situava os mulatos” e também “[...] Pedro Archanjo grevista, de pé contra patrões, trustes e a polícia; fazia da luta de classes o centro do espetáculo 'O problema racial, camaradas, é consequência do problema de classes' – explicava, citando autores, calmo, sem exaltar-se'. No Brasil, camaradas, negros e mulatos são discriminados na sua condição de proletários: branco pobre é negro sujo, mulato rico é branco puro' 359”. A narrativa concorda com a supremacia da questão de classes sobre as raças, a existência do preconceito de cor, mas que a solução deste deveria vir do povo, sem sectarismos através da mistura. Além de tudo, Archanjo também foi atuante na causa dos trabalhadores, apesar de nunca ter sido um. No personagem havia uma certa recusa ao mundo do trabalho, faltava no emprego, saia mais cedo, não cumpria suas obrigações, mas envolve na greve dos transportes atuando nos sindicatos e acaba demitido do emprego de entregador de contas de luz: “[...] ele não fazia o mando, por obrigação, para cumprir tarefa de grupo ou organismo partidário. Fazia- o por achar justo e divertido360", Sobre a preponderância da questão de classe em relação a questão de cor, esse assunto é abordado através da história de Tadeu Canhoto, filho de Pedro Archanjo, descrito como: "magro e forte, a pele trigueira, o rosto fino, aberto e franco, os cabelos lisos e negros, luzidos, os olhos vivos, as mãos de dedos longos, a boca sensual, belo e sedutor361". De uma inteligência única, forma-se em engenharia e se apaixona por uma moça pertencente a alta sociedade baiana, que recusa a união. O racismo foi algo que ressentiu Archanjo, mas a personagem Zabela de origem aristocrática que teria um pensamento “avançado” por ter vivido na Europa afirma: Brancos? Mestre Pedro, não me venha com brancuras na Bahia. Não me faça rir, que não posso, as dores me cortam. Quantas vezes já lhe disse que branco puro na Bahia é como açúcar de engenho: tudo mascavo. Isso no Recôncavo, quanto mais no Sertão [...] Você esquece que vivi a maior parte de minha vida em Paris? Se eu tivesse uma filha, mestre Pedro, ela casava com quem quisesse [...] Ouça um segredo, mestre Pedro: na cama não há como um bom negro362.

359 AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. Op. cit., p 119. 360 Idem, Ibidem, p. 219. 361 Idem, Ibidem, p. 99. 362 Idem, Ibidem, p. 174, grifos meus.

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Aliás, o vigor sexual dos negros e dos mulatos é propalada por todo romance, o protagonista seria um exemplo de tal, sedutor de mulheres dos mais variados tipos, como também, não há personagem que não se renda ao encanto das mulatas, especialmente os estrangeiros, como a sedutora Ana Mercedes “negra e solta cabeleira às extraordinárias unhas dos pés pintadas em branco363” que se torna amante Levenson e não merece elogios do narrador- sociólogo que afirmava ser apaixonado pela personagem: “reles putinha, jornalista de araque, poetisa de merda364”, “fêmea irresistível” cuja maior característica era mentir para atingir seu objetivo que era ascender profissionalmente e para isso seduzia quem fosse necessário e a misteriosa Rosa de Oxalá "negra azulada, macia rosa, o perfume e o som da voz, tudo velado e grave365", desejada por muitos inclusive pelos irmãos Lídio e Archanjo. Retomando a história de Canhoto, quando a mãe da noiva nota que o futuro genro ascendendo na carreira de engenheiro passa chama-lo de “moreno queimando”, indicando o clareamento social. O casamento foi um tributo a mestiçagem: "O frade, em duro português de quebrar pedra, louvou a comunhão dos corações amantes, abençoada união de raças, sangue e culturas diferentes. O juiz não fez por menos. Orador brilhante, sonetista com espaço nos jornais, em tiradas líricas exaltou o amor que se coloca acima das diferenças de raça e classe para criar mundos de beleza366". Se Rigger lá no primeiro romance de Jorge Amado O pais do carnaval termina como um estranho no carnaval, Archanjo termina com “pobres, pardos e paisanos” desfilando na festa em sua homenagem considerada a mais autentica de todas lembranças. De fato, o romance, na maioria das vezes, faz o que propõe defender – a positivação da mestiçagem em oposição às teorias racialistas367. Como bem apontou Ordep Serra, o mulato representaria a encarnação da vitória sobre o racismo, mas é digno de nota que a narrativa cai em contradição na descrição estereotipada de personagens mestiços como Ana Mercedes368, em que o narrador não mede palavras para descrever seu caráter duvidoso e a sensualidade a flor

363 AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. Op. cit., p. 16 364 Idem, Ibidem, p. 15 365 Idem, Ibidem, p. 65 366 Idem, Ibidem, p. 190, grifos meus. 367 Não deixa de ser interessante a análise de Zilá Bernd (2004) que afirma que Tenda dos milagres apresenta um paradoxo, ao mesmo tempo que defende a ideologia da mestiçagem que representa o apagamento das especificidades culturais, mas também está presente no enredo do romance a crioulidade, ou seja, o reconhecimento da diversidade de formas culturais e identidades. 368 Como bem apontou Teófilo Queiroz (1982). Serra (1995) argumenta que isso se deve a superficialidade da narrativa que a impede de transcender preconceitos e fugir de estereótipos. Aponta ainda, as narrativas de Jorge Amado com uma linguagem ideologicamente viciada.

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da pele, lembrando que em páginas do livro a promiscuidade e o comportamento sexual animalizado do negro é negado e atribuído a uma elaboração racista369. Archanjo é a síntese na sua figura todas as contradições se diluem. Do candomblé, grevista, boêmio, sedutor, grande intelectual e exímio entendedor do povo. É uma ponte entre dois mundos, maior do que qualquer cientista. As tensões presentes nos dois romances anteriores aqui apresentados, entre raça e classe e a relação entre os diferentes, é resolvida através da mestiçagem especialmente como ela se processa na Bahia.

“Há de nascer, de crescer e se misturar...”

Apesar da grande diferença de espaço destinado ao negro nos romances apresentados nesses dois capítulos, é possível notar algumas continuidades e rupturas do narrador amadiano. No capítulo IV, são personagens negros rurais que vivem e/ou sobrevivem na lavoura cacaueira. O tipo social preferido é o jagunço: Antonio Vitor, Damião e Honório, que, devido à condição social, vivem entre explorados e exploradores, apresentando alguma possibilidade de crítica. Em Cacau e São Jorge dos Ilhéus, o que se percebe é um narrador que na tentativa de passar seu ideário político-ideológico faz uma literatura de caráter pedagógico e empresta sua consciência aos personagens. Terras do Sem fim é uma exceção, pois a intenção é narrar e não descrever370 os dramas da lavoura cacaueira. Daí a grandeza de Damião, o narrador não procura dar uma saída ao personagem dentro das suas convicções. Mas, no geral, os personagens de cor dos três primeiros romances e o protagonista de Jubiabá são descritos de forma similar, inocentes, limitados intelectualmente a ponto de não terem educação formal e com espírito animal predominante. A revolta é algo instintivo e é por meio do aprendizado informal que vão desenvolvendo consciência, indicando o endosso de certas ideias do pensamento evolucionista sobre o caráter primitivo dos povos advindos da

369 Como já citado, Lídio Corró e Pedro Archanjo compartilhavam a paixão por Rosa de Oxalá. O protagonista justifica o fato de não se relacionar com Oxalá da seguinte forma: “Rosa, nós não somos os bonecos da marmota, temos honra e sentimento. Rosa, nós não somos degenerados em promiscuidade imunda, uns animais ou, pior, uns criminosos. Sim, Rosa, exatamente isso: 'Mestiços degenerados em sórdida, em imunda promiscuidade', foi o que escreveu um professor de medicina, um doutor, um catedrático. Mas é mentira, Rosa, é calúnia desse sabe tudo que não sabe nada" (p. 67). 370 Como apontou Lucáks (1965), participar (descrever) e observar (narrar) não é casual, pois deriva da posição a princípio assumida pelo escritor “a narração distingue e ordena, a descrição nivela todas as coisas”, sendo a primeira uma forma mais rica.

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África. Também é atribuído um caráter duvidoso aos homens mulatos, o cheio de si Algemiro, em Cacau, e o malandro Zé Camarão, de Jubiabá. O que fica latente é a diferente saída das personagens em destaque. Honório e Damião continuam com sua consciência de classe intuitiva, um morando na fazenda à mercê do coronel e o outro fica louco. Já Antonio Balduíno consegue dar um passo além, mas para isso saiu da vida acomodada de malandro se tornando operário e descobrindo a liberdade através greve371. Mas é notável que, quando esse narrador olha mais atentamente a casa-grande e seus empregados, nota e crítica os desmandos patriarcais inclusive o racismo, mas num ambiente rural não há muito que fazer. As diferentes conclusões nos remontam a influência do pensamento marxista do PCB na época, a respeito do proletariado em formação, sua impossibilidade de existência e a superação da sua condição no campo em Cacau, Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus. Como também a crença na força da mobilização popular através das lutas organizadas, como sindicatos e greves, está presente inicialmente em Jubiabá372, pois, como observado no romance, com a revisão do passado escravista na figura de Zumbi dos Palmares é evocada como exemplo para os negros se mobilizarem, a escravidão negra é rememorada como história de luta e resistência, e também a ideia que os negros, agora junto com os brancos, estariam vivendo uma segunda escravidão, ou seja, todos pretos pobres e brancos pobres estavam escravizados, por isso deveriam se unir contra a situação social de classe explorada. Somente uma tomada de consciência popular quanto a sua capacidade de luta poderia alterar a ordem, premissa exemplarmente simbolizada em Antonio Balduíno, de Jubiabá, mas também em sujeitos como Varapau e Joaquim de São Jorge dos Ilhéus, o último, operário filho de agricultores e militante do Partido Comunista, é o avanço do pensamento dos pais, que ascenderam as custas da cega fidelidade a casa grande. Entretanto, entre uma década e outra, percebe-se uma evolução na orientação revolucionária e o partido entra em cena como elemento organizador da revolução e essa aconteceria de forma plena quando a luta proletária

371Eduardo Assis Duarte (1996) também observou essa diferença entre Honório e Balduíno: "[...] a utopia coletivista não é colocada nos pensamentos de Balduíno, como foi nos de Honório (Cacau). Balduíno deu um passo, cumpriu uma etapa e agora se sente irmão dos trabalhadores" (p. 113). 372 Interpretação diferente tem Duarte (1996, 1994) em sua análise deste romance acredita que não há influência da ANL, pois segundo sua percepção essa "situavam-se muito mais entre as preocupações da classe média politizada e das lideranças de oposição ao varguismo do que entre as das massas" (p. 111). E acrescenta que o fato do romance não aprofundar a possibilidade de um levante armado no Brasil, no momento em que a cúpula do Partido Comunista trabalhava nesse sentido, demonstra que os objetivos da organização não estão no roteiro da obra literária e que a política está presente em Jubiabá, mas não para favorecer os objetivos do partido.

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se aliasse a burguesia, que também deveria conscientizar-se de sua dependência e exploração pelo capital internacional, para, então, desempenhar um papel de liderança na revolução que se anunciava. Em resumo, a visão narrativa do negro está estritamente atrelada a percepção comunista da questão racial. Com marcas de uma descrição do negro atrelada ao século anterior, com exceção do herói Balduíno, todos são marcados pela decadência ou degeneração física. Em Jubiabá existe um esforço de rompimento ao apontar o negro como oprimido socialmente e oprimido etnicamente ao apresentar a valorização da cultura negra como elemento para se chegar a emancipação, mas o trabalho como força civilizadora acaba se sobrepondo. Ao deixar de lado o olhar marcado pela luta de classe, almejando a busca de possíveis caminhos, atrelado a vitória da classe trabalhadora, o narrador amadiano passa a centrar seu olhar nas relações sociais. Diferente de Jubiabá, em Tenda, o trabalho não atua como força civilizadora, Archanjo não se proletariza, nem sindicaliza ou se filia a partido para lutar e alcançar o seu ideal, inclusive, ele recusa o mundo do trabalho formal. Um narrador branco, observando a população de cor373, manteve características semelhantes: o alvo de suas críticas passa ser o atraso da elite nacional. Um forte argumento em Gabriela, cravo e canela é o descompasso entre o avanço capitalista e a persistente mentalidade rural das elites. Também faz uma literatura pedagógica em Tenda dos Milagres, para mostrar as falácias das teorias racialistas do século XIX e o progresso que representa a mestiçagem. Em um processo que inicia timidamente em Jubiabá, se consolida em Gabriela e atinge seu auge Tenda é no povo e como ele se organiza que está a verdade. Gabriela não é um romance de grandes intenções pedagógicas como é comum nos romances de Jorge Amado aqui analisados, mas demonstra a possibilidade de conciliação entre os diferentes, representada pela união entre a retirante e o comerciante. Nessa observação do ponto de vista das relações, o autoritarismo e os desmandos, incluindo o racismo, não passam despercebidos, mas o humor ou a intervenção de algum personagem “sabido374” é o artificio utilizado para dar leveza ou soluções a essas passagens. Da mesma forma que a polarização social sai de cena, sai a polarização racial, os personagens centrais não são nem brancos, nem negros, como também, o caráter é híbrido. E

373 O personagem deixa de ser prenomeado somente como negro (a), negrinho (a), mulato (a), mulatinho (a) e ganha uma gama infindáveis de cores para designar o mestiço, por volta de 40 diferenciações. 374 Entra em cena um personagem estrangeiro ou com vivencia no exterior, como Kirsi e Zabela de Tenda dos Milagres ou o sabe-tudo, estudioso da cidade como Josué em Gabriela, cravo e canela.

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se num primeiro momento os relacionamentos interraciais são impossíveis, num segundo são considerados os ideais375. A descrição dos personagens continua nos mesmos termos, a sensualidade aflorada das várias mulatas, que com exceção de Raimunda, todas são ou tem um comportamento associado a prostituição, seja por imposição das condições econômicas seja pelo comportamento instintivo que tem como objetivo saciar os desejos. Da mesma forma que a tomada de consciência crítica vem de fora, em Gabriela a personagem Arminda tenta convencê- la de todas as formas que deveria e poderia ser “igual as outras mulheres”, mas esta se recusa e o conflito central é resolvido com qual retomando seu lugar de origem. Como formulou Candido, num primeiro momento as narrativas de Jorge Amado faziam um movimento entre documento e poesia, na tríade que compõe três dos seus romances mais famosos, Gabriela, cravo e canela, Dona flor e seus dois maridos376 e Tenda dos milagres. Elas fazem um movimento pendular no sentido de tentar equilibrar antagônicos e captar a essência da formação nacional. Num primeiro momento, a conciliação se torna possível por um acordo entre as partes; no momento seguinte, a resolução vem através do realismo fantástico e finalmente encontra o equilíbrio na figura de Pedro Archanjo. Em Tenda dos milagres a figura de Pedro Archanjo é a síntese dessa trajetória quando todas as barreiras e antagonismos são ultrapassados e superados por meio da mestiçagem. O avanço da mestiçagem produziria um efeito positivo, especialmente no que diz respeito à formação de uma cultura original, síntese de diferentes culturas. Assim, o preconceito relativo à herança cultural africana teria seu fim quando a miscigenação se completasse e o Brasil encontraria sua “verdadeira” cultura.

375 No primeiro momento o amor de Balduíno por Lindinalva, Damião e Teresa são possíveis na idealização dos personagens. Já no segundo momento Gabriela e Archanjo, também frutos da mistura tem festejados relacionamento amorosos com Nacib e Kirsi respectivamente. 376 Nesse sentido concordo com DaMatta (1985) que a história de Dona Flor representaria a aceitação plena da ambiguidade, mas que ela se resolve na história de Archanjo.

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Parte III- Jorge Amado, um espelho

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CAPITULO VI – Jorge Amado: Recepção em Moçambique

Partindo do contexto de produção e, consequente, dos debates travados por Jorge Amado a respeito da questão racial, passando por como os negros são observados em suas narrativas. Agora, cruzamos mares e chegamos na costa do oceano Índico, em Moçambique. Das duas partes anteriores destaco as seguintes ideias que são importantes no sentido de dar chão histórico a este capítulo: a importância que a África adquiriu do ponto de vista das relações exteriores a partir do governo JK, na breve administração de Jânio Quadros e na ditadura militar; a importância desse continente para Jorge Amado, evocando seu papel na formação nacional e colocando a Bahia como espaço privilegiado, no Brasil e no mundo, de manifestação da cultura africana, assumindo, também, uma postura anticolonialista. Na sua literatura, em meados do decênio de 1930, a herança da cultura africana é tida como fundamental para resistência e superação do status quo, articulando raça e classe, e nos anos 1960, defende a herança cultural africana como fundamental para a formação do Brasil, mas subsumida na cultura nacional. Durante a execução deste trabalho, especialmente quando se trata da recepção de Jubiabá, é recorrente a afirmação de pesquisadores, como Rita Chaves, Carmem Secco, Tânia Macedo, Edvaldo Bergamo e Cremilda de Araújo Medina, sobre a aproximação e a inspiração de Jorge Amado em autores de países africanos que foram colônia de Portugal, especialmente Angola, e, como vimos, o escritor teve um diálogo próximo e já reconhecido com importantes artistas anticolonialistas daquele país. Em 2008, na ocasião da reedição das obras de Jorge Amado pela editora Companhia das Letras, o escritor moçambicano Mia Couto escreveu um ensaio chamado Sonhar em casa, que sem especificar um território afirmou que Jorge Amado foi o escritor que maior influência teve na gênese da literatura dos países de língua portuguesa na África, auxiliando a vislumbrar uma nação. Seguindo essas pistas, parte trabalho se desdobrou em uma pesquisa em Moçambique, na capital Maputo. Devo notar que as relações entre Brasil e Angola estão melhor elucidadas, levando em conta que essa foi a maior colônia de Portugal na África, sendo a economia rica em razão da extração de diamante e petróleo, criando assim um assentamento colonial considerado de

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maior importância1. Muitas vezes Moçambique fica com comentários pontuais ou gerais junto com as outras antigas colônias, o que indica que muito há de ser desvendado sobre esse país e sua relação com Brasil2, algo que ficou evidente no percurso para realização desta pesquisa. A ideia inicial repousava em apontar uma influência significativa dos romances de Jorge Amado, desde os iniciais, como Cacau até Tenda dos milagres, na percepção dos escritores moçambicanos a respeito da questão racial, notadamente na relação militância de esquerda e negritude e a mestiçagem. Chegando em Moçambique, meu objeto de estudo foi recebido com alguma desconfiança, não sobre a influência do escritor, mas se realmente encontraria materiais significativos. Uma mudança de percurso foi necessária. Orientada por conversas com moçambicanos estudiosos da literatura de seu país, o foco foi essencialmente o período colonial e o material primordial foram as entrevistas concedidas por aqueles que atuaram no movimento anticolonial, encontros nos quais era recebida com uma agradável surpresa por trazer um tema que consideravam tão antigo que trazia boas e difíceis lembranças. Acredito que neste capítulo estão presentes algumas contribuições de diálogos culturais entre Brasil e Moçambique no contexto anticolonial e também um interessante resgate da memória daquele momento. Para verificar o alcance da ficção amadiana entre os intelectuais atuantes no movimento nacionalista moçambicano, se torna necessário apresentar o contexto do surgimento literatura moçambicana, que acaba, por consequência, abordando também história desse país independente há pouco mais de 40 anos, como também apresentar em que contextos aconteceram as aproximações entre Brasil e Moçambique para por fim chegar em Jorge Amado e sua influência.

1 Um indicativo dessa proximidade mostra Dávila (2011), que aponta que quando o Brasil ficou independente em 1822, colonos portugueses em Angola propuseram a união entre os países, levando Portugal a escrever no tratado de independência uma clausula que proibia o Brasil de tomar posse das colônias. 2 Obviamente devemos levar em consideração os elementos da colonização moçambicana que contribuíram para isso. Os territórios da costa índica africana que hoje correspondem à República de Moçambique foram prioritariamente vistos por Portugal, até o século XVIII, como pontos de apoio para a rota da Índia, até o primeiro esse século, até então o comércio de africanos escravizados era pouco significativo, o incremento do tráfico da África ocidental, em especial o Brasil, levou a procura desta mão-de-obra nas costas de Moçambique. O regime escravocrata, proibido oficialmente em 1807, persistiu oficialmente nas colônias portuguesas até abril de 1878, o tráfico a partir de Moçambique atingiria o seu máximo na primeira metade do século XIX beneficiando- se do fato que a atenção dos britânicos, após a ilegalização desse comércio, concentrava-se principalmente no controle das rotas atlântica. Dez anos após a abolição da escravatura, o governo colonial transformou Moçambique de uma colónia que vivia da extração de recursos naturais para um lugar que deveria produzir bens para seu consumo e exportação para a metrópole. O que estabeleceu uma administração efetiva, motivada também por pressões internacionais, como a Conferencia de Berlim (1884/1885), em que países como Alemanha, Inglaterra e Holanda buscavam ampliar seus territórios na África.

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Literatura e formação nacional

Colônia de Portugal entre meados do século XVI até 1975, os primeiros homens de letras moçambicanos atuaram entre 1908 e 1940, momento que Portugal implantou a chamada política de assimilação, que se resumia a dar o status de “civilizado” a uma parcela da população, transformando-a em uma pequena burguesia que defendesse em território africano os interesses de Portugal. Como afirma Jose Luís Cabaço, “o objetivo sempre foi o de criar uma pequena elite de africanos que servisse e não competisse. Esses africanos não-indígenas deveriam, em troca de alguns pequenos privilégios, constituir-se como intermediários entre dominador e dominado, se possível colaboradores ‘reconhecidos’”3. Os assimilados seriam a prova do sucesso da “missão civilizadora” portuguesa. A língua foi um dos principais instrumentos dessa “civilização”: o deixar a condição de indígena4 para se transformar em ‘africano-português’ implicava na ruptura com o universo social e linguístico herdado e optar por outro imposto. Somente era dado o acesso à educação a parcela assimilada da população, não com o objetivo de integrar os estudantes aos valores europeus, mas implantar o sentimento de submissão face ao europeu. O foco era treinar africanos para servirem na administração colonial em serviços que exigiam menor qualificação (escriturários, enfermeiros, professores de escolas rurais). Mas, ao se darem que conta que eram um grupo socialmente marginalizado e que nunca teriam os mesmos direitos que os nativos portugueses, as primeiras organizações intelectuais aparecem com o objetivo de organizar e reivindicar direitos de cidadania.

3 CABAÇO, José Luís. Moçambique, identidades, colonialismo e identificação. Tese (Doutorado em Antropologia). Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo: São Paulo, 2007, p.164, grifos do autor. 4 Assimilado a princípio era todo aquele “indivíduo de raça [negra] ou dela descendente que se distingue dos homens de sua raça”. O decreto-lei de 1954 explica claramente esta condição, os indígenas eram "os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido e vivendo habitualmente nelas [colônias], não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses". Já os critérios para se tornar assimilado eram: “a) Ter mais de 18 anos; b) Falar correctamente a língua portuguesa; c) Exercer profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para o sustento próprio e das pessoas de família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para o mesmo fim; d) Ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses; e) Não ter sido notado como refractário ao serviço militar nem dado como desertor.” Sendo assim, para ser assimilado o cidadão tinha que provar que havia abandonado os hábitos nativos e adquirido os europeus, notando que ser assimilado era uma condição que poderia ser retirada a qualquer momento, transformando-se em um importante elemento de dominação desta camada social: “a cidadania concedida ou reconhecida nos termos dos artigos [...] poderá ser revogada por decisão do juiz de direito da comarca, mediante justificação promovida pela competente autoridade administrativa”. Disponível em: https://dre.tretas.org/pdfs/1954/05/20/dre-285117.pdf. Estima-se que 0,8% da população se beneficiou desta condição.

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Nesse contexto surge o periódico O africano (1908-1920)5, dos irmãos José e João Albasini6, que em 1918 retorna com o nome de O brado africano (1918-1974). Nele estão as primeiras manifestações de afirmação cultural africana no território de Moçambique. Esses jornais se inserem em um contexto de várias publicações de caráter reivindicatório surgidas na África subsaariana, que mantinham diálogo com intelectuais da diáspora africana nas Américas e nas metrópoles europeias7. O primeiro e único número de O africano traça as linhas programáticas do Grêmio Africano de Lourenço Marques (GALM). Suas reivindicações concentravam-se nas denúncias das medidas discriminatórias, das injustiças e na exigência do reconhecimento dos direitos dos negros:

Através de O africano e do protagonismo de João Albasini e de o O Brado africano, na sua fase mais combativa [...] estes homens de letras, imersos num processo colonial em ascensão, produziram um corpo de ideias que, embora contraditórias e descontinuas [...] representaram a primeira forma coletiva de estar com o seu tempo8. Pela primeira vez deixou-se clara a oposição entre as duas visões, a do colonizador e a do colonizado. Notando que nesse momento ainda não é questionada a tutela portuguesa e nem a utilização do português como língua oficial – não deixando de notar que O africano foi publicado metade em português e a outra parte em ronga9. Nesse momento o discurso oposicionista é marcado pela ambiguidade, pois a crítica não repousa no colonialismo em si, mas na incapacidade portuguesa de civilizar de acordo com os preceitos da razão iluminista. As reivindicações tinham como objetivo central dar cidadania portuguesa para todos os negros. Influenciados pelo pensamento liberal e racionalista europeu e sustentado por alguns princípios do pan-africanismo, esses intelectuais discursavam a favor da sua integração na universalidade e no universo civilizacional das Luzes, ao mesmo tempo que reclamavam seu pertencimento a um outro espaço, a África.

5 Essas publicações acompanham as idas e vindas das orientações ideológicas no território moçambicano, combinando momentos progressistas e conservadores, depois do primeiro número em 1908, O africano foi vendido para igreja católica e retorna em 1918 com o nome de O brado africano, por vários motivos na década de 1930, entre eles o reforço da censura do Estado Novo, este muda a orientação perdendo seu caráter reivindicativo, mas retorna com as características anteriores nos anos pós 2ª Guerra Mundial. 6 João Albasini é frequentemente considerado o autor da primeira obra moçambicana, O livro da dor, publicado postumamente em 1925. 7 No texto João Albasani e o olhar estrábico de O africano (2012), Cesar Braga Pinto aponta detalhadamente quais seriam estas influências. 8 MENDONCA, Fátima. Dos confrontos ideológicos na Imprensa de Moçambique. In: ______João Albasini e as luzes de Nwandzengele: jornalismo e política em Moçambique 1908-1922. Lisboa: Alcance Editores, 2012, p. 21. 9 Língua do sul de Moçambique. Notando que o fato de ser bilíngue a publicação indica qual seria seu público, tanto os colonizadores portugueses, como também, os nativos, dado o alto índice de analfabetismo, seria possível a leitura em voz alta dos alfabetizados para os não alfabetizados, ou seja, os indígenas.

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Sendo assim, a literatura em Moçambique nasce atrelada à política colonial de assimilação e é desse estrato social que surgem as primeiras figuras das letras moçambicanas. Do grupo de jornalistas ligados ao O brado africano destaca-se, nos anos 1930, Rui Noronha (1909-1943), escritor que deixou uma série de poemas que já apontam uma raiz nacionalista, influenciado pela estética da terceira geração do Romantismo português. Entre 1949 (ano das eleições para a presidência da república em Portugal durante o Estado Novo) e 1964 (quando intelectuais acusados de ligação com a Frelimo10 foram presos) – lembrando que em 1957 começam os processos de independência no continente africano – aparece uma intelligentsia opositora do colonialismo português. Em meio a uma repressão que se acirrava cada vez mais e inspirados pelos recém- nascidos movimentos de independência, surgiram publicações como Jornal da Mocidade Portuguesa, Itinerário, O Brado Africano e Msaho11, que deram suporte material para um movimento político-cultural em fins dos anos 1940, cujas características eram a recusa absoluta da situação colonial, a defesa de direitos civis e a criação de um espaço cultural próprio. Essa geração, surgida na esteira do V Congresso Pan-Africano e influenciada pelas manifestações modernistas dos continentes europeu e americano, trouxe a modernidade para as letras e artes moçambicanas, característica que ecoará nas gerações posteriores. O antifascismo e o anticolonialismo foram panos de fundo que inspiraram ideológica e esteticamente essa geração:

[...] há esta maturidade ideológica – há a preocupação, por exemplo, com a causa Palestina. O envolvimento de alguns deles no apoio à candidatura progressista do general Norton de Matos, em Portugal, nas eleições de 1948, que teria o apoio da oposição, demonstra o arrojo e a maturidade ideológica dessa geração [...] eles transformam em grande tema o espaço onde estão. São seres humanos que preenchem esse mesmo espaço. Então começamos a verificar os negros, os africanos, a tornarem-se os protagonistas da nova literatura que, entretanto, emergia12.

10 Frelimo- Frente de Libertação de Moçambique, movimento de libertação fundado em 1962 da união de três grupos, União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO), a Mozambique African National Union (MANU), e a União Nacional Africana de Moçambique Independente (UNAMI). 11 Iniciativa de volume único, considerada um marco segundo Noa (2015) “Claramente era quase que uma declaração de guerra cultural, se quisermos, em relação àquilo que era a cultura dominante, a cultura do colonizador” (s/p). Contou com a colaboração de Noémia Sousa, Alberto Lacerda, Augusto dos Santos Abranches, Cordeiro de Brito, Virgílio de Lemos, Ruy Guerra, entre outros. 12 NOA, Francisco. Surge et ambula: (des)construção da literatura moçambicana (Entrevista concedida a Eliane Veras Soares e Remo Mutzenberg). Estudos de Sociologia, v. 20, n. 2, 2014, s/p. Disponível em:http://www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/index.

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Diferente de Mendonça13, que considera que a literatura de caráter sistemático tem sua primeira geração entre 1925/1945-1947, mesmo esta tendo como característica manifestações literárias ligadas a estilos e hábitos da metrópole portuguesa, Francisco Noa14 considera que a literatura moçambicana como sistema surge na década de 1940, uma geração que, além de engajada em questões locais e universais, têm em comum serem oriundos do jornalismo e advindos de famílias brancas ou mestiças. Observamos assim que a evolução da literatura moçambicana acompanha o processo de independência, ou seja, estética e política caminham lado a lado, combinando seus valores com os valores do colonizador. Está presente nessa geração o sentido de pertencer a alguma coisa, fazendo uma literatura preocupada com consciência de nação. Podemos dizer que a literatura propriamente moçambicana nasce empenhada, tomando de empréstimo o conceito cunhado por Antônio Candido, pois como a literatura brasileira, a literatura de Moçambique nas suas origens estava empenhada na construção e na aquisição de uma consciência nacional. Nos textos da geração que ficou conhecida como Itinerário – em referência ao jornal homônimo – aparece pela primeira vez o adjetivo moçambicano (quando todos eram obrigados a identificarem como portugueses). Assim, no momento em que a sociedade começa a reivindicar o reconhecimento das diferentes especificidades, na literatura, com destaque para Noémia de Sousa e José Craveirinha15, está presente a reinvindicação de uma identidade racial e social e, consequentemente, o questionamento dos poderes instituídos. Na percepção de Francisco Noa: [...] a literatura moçambicana, não surge em contraposição à literatura portuguesa, mas sim em contraposição à literatura colonial. Que a literatura colonial exatamente fazia o inverso do que essas literaturas vão fazer [...] era claramente uma inversão do foco, e era uma inversão no sentido da economia textual dos espaços – é certo que a literatura colonial inaugura a representação da África, inaugura a representação dos africanos, mas sempre numa perspectiva hegemônica e de subalternização. O que rompe com isso, e é, digamos, a principal marca da literatura moçambicana em relação à literatura colonial, é que os protagonistas passam a ser os africanos que, de uma condição animalesca e bestializada, adquirem cidadania e dignidade literárias. [...] Há toda uma reivindicação, sobretudo com a Negritude, no caso da Noémia de Sousa. No caso do José Craveirinha, há toda uma reivindicação exatamente na afirmação desses valores negros. [...] Então temos esta primeira geração, que podemos chamar a geração que funda e fundamenta a literatura moçambicana, que é esta geração do Itinerário16.

13 MENDONCA, Fátima. Literatura moçambicana- a história e as escritas, Maputo: Faculdade de Letras/Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, 1988. 14 NOA, Francisco. Surge et ambula: (des)construção da literatura moçambicana. Op. cit., s/p. 15 Craveirinha é apontado como primeiro a apresentar o espaço geográfico moçambicano em termos de nação. 16 NOA, Francisco. Surge et ambula: (des)construção da literatura moçambicana. Op. cit., s/p.

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Assim, ao buscar exaltar e descrever a origem dando voz aos marginalizados, diferente da literatura colonial, que partia do olhar externo, do branco colonizador, que não raras vezes era escrita por ideólogos do regime português17, a literatura moçambicana nasce em oposição a literatura colonial, aos valores do colonizador, mas não em oposição a literatura portuguesa em geral. Exemplo disso é o fato que dessa nova literatura se identificar, em parte, com o neorrealismo português. É encontrado nos textos dessa geração a utopia, apresentando um ideal de nação que se buscou consolidar após a independência: A literatura, portanto, é premonitória não só dos movimentos de libertação, mas também das independências. Portanto há uma antecipação aqui, pela sensibilidade, pela imaginação, e a utopia vai ser uma imagem de marca desta literatura, desta poesia, que nos mostra exatamente que virá sempre um futuro melhor, em que a exploração irá acabar, a colonização irá acabar, e que haverá uma literatura própria. Portanto eles têm esta consciência de que estão a construir uma literatura própria, e que ela se vai afirmar exatamente num Estado independente18.

É digno de nota que a forma predominante nesse momento da literatura moçambicana é a poesia19; será apenas a partir da década de 1960 a prosa começa a sobressair. Os anos pós-1964 são marcados pela intensificação da luta de libertação e, em contrapartida, pelo acirramento da opressão colonial, fato que reflete diretamente na produção literária. Em 1964, Nós matamos o cão tinhoso, livro de contos escrito por Luís Bernardo Honwana, é um marco por ser uma prosa que aborda diretamente as relações sociais opressivas na sociedade colonial, ao lado de Portagem, de Orlando Mendes, romance publicado em 1965. Em 1964 vários artistas são presos; entre tantos, o próprio Honwana, Rui Nogar, José Craveirinha, e o pintor Malangatana Valente, sob a acusação de participarem da organização da Frelimo na região sul do país. Mendonça aponta três linhas de produção no período pós-1964. Entre 1964-1985: 1) na literatura produzida em zonas libertadas é visível o reflexo direto da ação ideológica da

17 Segundo Pires Laranjeira (1995) é subjacente a literatura colonial a defesa da portugalidade. Para uma melhor compreensão do papel desta literatura em Moçambique recomendo o livro de Francisco Noa, Império, Mito e miopia: Moçambique como invenção literária (2002). 18 NOA, Francisco. Surge et ambula: (des)construção da literatura moçambicana. Op. cit., s/p. 19 Na percepção de Mendonça (1985), na primeira geração a poesia era predominante, pois alargava o destinatário dos textos escritos e devido sua forma podia recriar formas tradicionais populares de expressão cultural. Chabal (1994) argumenta que o texto poético escapava com mais facilidade da censura colonial.

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Frelimo, notadamente pela publicação do primeiro caderno de Poesia de combate20, livro em que militantes da luta armada escreviam poemas no sentido de afirmar ideologicamente a libertação nacional. É quando se destacam os nomes: Marcelino dos Santos, Sergio Viera, Fernando Ganhão, Armando Guebuza e Jorge Rabelo; 2) a literatura produzida nas cidades é feita por intelectuais que assumem posição de distanciamento do poder colonial. Publicações como A tribuna e A voz de Moçambique têm um grupo diverso de colaboradores, que abordam diversos temas; 3) uma literatura produzida no sentido de afirmar o poder colonial utilizando os princípios do lusotropicalismo; escritores como Eduardo Paixão, Agostinho Caramelo, Cartaxo e Trindade, Rodrigues Júnior e Guilherme de Melo ganham destaque nessa época21. Sobre o lusotropicalismo, ideologia cunhada pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre22, apesar de não ser o tema deste trabalho, vale algumas palavras. Em traços gerais, o lusotropicalismo postulava sobre a especial capacidade de adaptação dos portugueses aos trópicos. A aptidão do português para se relacionar com as terras e os povos dos trópicos e sua plasticidade intrínseca resultariam da sua origem étnica híbrida, do longo contato com mouros e judeus na Península Ibérica, nos primeiros séculos da nacionalidade, e manifesta-se sobretudo por meio da miscigenação e da interpenetração de culturas. O Estado Novo português, nos anos 1930 e 1940, ignorou a tese de Gilberto Freyre, por causa da importância que conferia à mestiçagem, à interpenetração de culturas, à herança árabe e africana na gênese do povo português. Face a pressão internacional, Portugal passa a integrar a ONU (Organização da Nações Unidas) em 1955 e as ideias do pensador brasileiro, na década de 1950, passam a ter uma recepção favorável no seio do regime salazarista, inclusive sendo utilizada como ideologia

20 Publicado em três volumes, 1971, 1977, 1980. 21 Mendonça (1988) considera que mesmo nascida artificialmente, como instrumento de propaganda do Estado português, esta literatura dificilmente ela pode ser declarada como literatura moçambicana a não ser pelo que representa historicamente. Sobre essa discussão há quem se refira a esta produção como “literatura feita em Moçambique”, não literatura moçambicana. 22 Termo cunhado por Gilberto Freyre, a partir de uma série de conferencias proferidas na Europa o sociólogo publicou o livro O mundo que o português criou (1937) onde essas ideias foram primeiramente apresentadas. Chama atenção que praticamente no mesmo momento que Freyre o sociólogo Marvin Harris visitou Moçambique, enquanto o brasileiro passou em 1952 o americano visitou em 1956, contudo, têm percepções diferentes, pois o trabalho forçado e o regime de indigenato não sensibilizam o intelectual brasileiro. Freyre afirmava que a segregação racial em Moçambique só acontecia em alguns âmbitos isolados, segundo levantamento de Macagno (1999), um exemplo de “caso isolado” citado por Freyre foi de um luxuoso hotel de Lourenço Marques, que aceitava como hospedes anglo-saxões e boers e não era admitida a presença de pessoas de cor, “nem como hóspedes nem simplesmente como visitantes, por mais cultos, por mais finos, por mais gentis que sejam essas pessoas”. E aponta que em vários aspectos o trabalho de Harris, então jovem cientista participante do projeto UNESCO, foi pioneiro ao inaugurar um tipo de crítica ao colonialismo português, que seria continuado e aprofundado em princípios dos anos 60 por nomes como Perry Anderson e James Duffy.

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e propaganda internacional do governo. Em 1951, Freyre, como parte da propaganda do governo português, visita as colônias portuguesas. Em Moçambique, na Ilha de Moçambique, que então fazia parte do estado independente da Zambézia, o sociólogo se entusiasmou com o que para ele seria um dos mais bem-sucedidos exemplos de sua formulação em seu percurso africano, onde encontrou evidências da “tolerância” que caracterizaria os portugueses. Sobre as repercussões dessas ideias em Moçambique, segundo a tese de doutoramento de Cabaço e algumas entrevistas realizadas, parece que não houve grande entusiasmo: “E se é certo que o ‘luso-tropicalismo’ influenciou a literatura cabo-verdiana em busca de uma identidade, o mesmo não sucedeu nas outras colônias portuguesas, igualmente influenciadas pela produção literária brasileira, mas, com muito raras exceções ignorando ou contrapondo-se à visão harmônica e à democracia racial de Gilberto Freyre”23. Ainda sobre a visita de Freyre a Moçambique, é interessante observar nas palavras do escritor Virgílio Lemos sobre seu diálogo com o sociólogo pernambucano a tentativa de esclarecer a verdadeira realidade moçambicana e mostrar os anseios de uma juventude engajada contra o colonialismo: Sobre aquele período dos anos 50 – importante porque é o período da criação do Msaho -, foi o momento em que eu conheci o Gilberto Freyre autor de Casa Grande & Senzala e Aventura e Rotina. Ele visitou Moçambique a convite de Salazar, para que falasse de suas teses, do luso-tropicalismo. Para mim, ele era o antropólogo de Casa Grande & Senzala [...] Conseguimos ‘tintar’ a Pide [...] Eu disse ao Gilberto Freyre que nós não éramos provincianos, ou não éramos aquele mesmo tipo de provincianos dos pernambucanos que ele falava. Éramos abertos a outras literaturas, outras músicas e artes. Tínhamos um certo interesse em conhecer jovens brasileiros da altura, e não apenas Jorges Amados – dizia eu na altura, embora tivéssemos amado Os capitães de areia, e mais tarde, Gabriela cravo e canela. Na altura falei-lhe na exploração do trabalho nas plantações em Moçambique [...] Disse ainda ao Gilberto Freyre – precisamente falávamos de um problema de identidade -, que nós não corríamos qualquer risco de perder a nossa identidade porque era uma identidade que se buscava, esta culturalmente mestiça, crioula. Interessava- nos, na altura, estar dentro do movimento internacional das ideias [...] nós queríamos poder ter a liberdade de ler e viajar, exprimir os nossos pensamentos [...] éramos um outro, contra o sistema, o ‘Portugal’ já contra o colonialismo e contra a ditadura. Éramos também os anti-apartheid24

23 CABAÇO, José Luís. Moçambique, identidades, colonialismo e identificação. Op. cit., p.291. 24LEMOS, Virgílio. Entrevista. In: LABAN, Michel. Moçambique: encontro com escritores. Lisboa: Fundação Engenheiro Antonio de Almeida, 1998, p.365-366, grifos do autor.

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O ideal da imagem da nação que deu certo e que se unifica quando se torna independente, bandeira levantada e descrita pela geração Itinerário, será amplamente utilizado pelo movimento de libertação nacional: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Kulungano são pertencentes a essa literatura que se estrutura em torno a moçambicanidade, apesar de terem sido escritas num período anterior à ação organizada do movimento, ela capta as possibilidades, anuncia-o, profetiza-o, da corpo e espaço a um imaginário que condições objetivas viriam a tornar real25.

Mendonça chama atenção para o papel fundamental da Frelimo- fundada em 1962 - que ao tomar emprestado o ideal da moçambicanidade fez com que pessoas oriundas de diferentes regiões e diferentes dialetos se definissem como cidadãos de um mesmo país, unindo- as com o objetivo único de lutar pela independência: [...] o elemento que consideramos determinante para uma efectiva aproximação ao conceito de moçambicanidade em Literatura: é Movimento de Libertação Nacional forjador, por excelência do conceito de moçambicanidade e através dele a própria nação começa a construir. Pretender isola-lo, ignorá-lo quando se tenta caracteriza ou pelo menos problematizar os traços de uma literatura com caráter nacional e diferenciada das outras que se estruturam a partir do mesmo material linguístico, é não ter ainda o caráter complexo, contraditório e dramático da formação das nações africanas e no nosso caso da nação moçambicana26. Noa aponta o caráter perverso que adquiriu esse discurso da unidade nacional, pois significou a tentativa de apagamento e de negação das diferenças em todos os níveis. Em nome da unidade nacional, surgiu uma perspectiva monolítica da nação, sob cultura única, ou seja, a supressão das identidades étnicas e o estabelecimento do português como língua oficial27. O escritor João Paulo Borges Coelho, faz também uma análise crítica da relação entre poder instituído e construção da identidade nacional: De facto, a luta de libertação permitiu, a partir da diversidade dos grupos étnico-culturais do território, construir um denominador comum de moçambicanidade mais assertivo que o fator negativo constituído pela ocupação colonial, e olhar o futuro de outra maneira, ao mesmo tempo que legitimou a Frelimo como única formulação política organizada, fada para dirigir sozinha os destinos do novo país [...] Estas duas finalidades paralelas - identidade e legitimidade do poder - estão afinal profundamente interligadas [...] O reforço identitário, homogeneizado, vai portanto de par com o reforço do poder28.

25MENDONCA, Fátima. Literatura moçambicana- a história e as escritas, Maputo: Faculdade de Letras/Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, 1988, p. 22 26Idem, Ibidem, p. 52. 27 Cf. NOA, Francisco. Surge et ambula: (des)construção da literatura moçambicana. Op. cit., s/p. 28BORGES COELHO, João Paulo. Memorias das guerras moçambicanas. Conferência proferida no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, 05/07/ 2007, p. 3-4.

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Tomando para si o discurso da formação da identidade baseada na supressão das diferenças, como veremos a formulação da moçambicanidade pela Frente de Libertação Nacional se dará um modo muito diferente da vislumbrada pelos precursores na literatura. É notável que as artes, especialmente a literatura, que até então fazia denúncia do poder instituído, nos anos após a independência, são tomadas por aqueles que fazem defesa da revolução. São lançados os outros dois volumes do caderno Poesia de Combate (1977, 1980), composto por poesias de propaganda ideológica, com baixa qualidade literária, que no terceiro volume apresenta Mia Couto, nome que se consolida na literatura anos depois. Mendonça aponta a antologia A palavra é lume aceso (1983), compilação de textos publicados na revista Tempo, como importante, pois destacam-se vozes da nova poesia moçambicana, com maior qualidade estética, como Couto e Luís Carlos Patraquim. Nos anos 1980 a atividade literária ganhou maior autonomia; em 1982 é criada a AEMO (Associação de Escritores Moçambicanos), que se torna uma instituição aglutinadora: poetas e escritores foram lançados pelo selo dessa instituição que se tornou também um importante espaço de discussão. Fátima Mendonça aponta a importância da entidade frente a situação do letramento no país: A criação de uma organização com vocação para promover o contacto entre escritores, veio despoletar uma nova dinâmica na vida literária do país. Paralelamente à criação de núcleos em três cidades - Lichinga, Nampula e Beira [...] a AEMO tem desenvolvido[...] uma acção de divulgação literária, adequada à situação dramática de analfabetismo (reduzido a 73%) [em 1975 estimava-se que havia 5% de alfabetizados em Moçambique], à fraca actividade editorial e à nula importação de livros para os circuitos comerciais29.

No primeiro número da revista da associação, nomeada de Charrua, lançada em 1984, estão presentes em dois de seus textos as preocupações de uma literatura que sempre acompanhou e certas vezes antecipou os processos históricos do país. Aníbal Aleluia e Marcelo Panguana em seus textos questionam “O que escrever? ”; para Aleluia, os novos textos deveriam ter o caráter de antes da independência: “Compete, portanto, ao escritor contribuir para a solução dos problemas do país [...] denunciar a mentira; combater as injustiças, dignificar o Homem”30. Já Panguana, se centra na necessidade da reformulação da linguagem, dando conta o novo momento histórico “[...] o escritor não se limita só a ‘interiorizar’ os novos tempos. Há

29 MENDONCA, Fátima. Literatura moçambicana dez anos depois. Revista Charrua, agosto/1985, p. 18. 30 ALELUIA, Aníbal. Escrever o quê ?. Revista Charrua, agosto/1984, p. 5.

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que escrevê-los também. O que não deixa de constituir um exercício duplo e penoso. Escrever? Sim. Mas de que forma e para quem? Havia o povo... havia o analfabetismo”31. Outra iniciativa nascida em 1987 foi revista Forja, também editada pela AEMO, que fez divulgação literária e traz em seus números questões da dinâmica local x universal na literatura de Moçambique. No segundo número está presente um interessante texto de João Belo Zita, chamado Literatura africana: a crítica literária32, que faz considerações sobre a literatura africana como um todo, apontando a necessidade de autonomia desta em relação ao Ocidente, como também uma maior cooperação para melhor circulação dessas obras. Já no prefácio do número seguinte está presente uma pergunta cara até hoje aos intelectuais das letras moçambicanas: “O que define a moçambicanidade literária?”. Composta por nomes como: Ungulani Ba Ka Khosa, Mia Couto33, Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, Heliodoro Baptista, Suleiman Cassamo, Aldino Muianga, Marcelo Panguana, Filimone Meigos, o fato é que a geração da Charrua34 tem como marca a afirmação de subjetividades, melhor qualidade estética e diversidade temática. Anos depois surgem outros nomes atualmente reconhecidos desta literatura como Paulina Chiziane e João Paulo Borges Coelho. Sobre a mais recente geração da literatura de Moçambique, há notáveis iniciativas, como o movimento literário Kuphaluxa, que promove interessantes iniciativas literárias, como saraus, e eventos, como “40 anos de independência – Caminhos da escrita”, que contou com o apoio do Centro Cultural Brasil Moçambique (CCBM) e um jovem grupo de escritores ligados a própria AEMO, como Lucilio Manjate, Osvaldo das Neves, Jorge de Oliveira, Aurélio Manuel Furdela, entre outros.

31 PANGUANA, Marcelo. Reformulação da linguagem. Revista Charrua, agosto/1984, p. 6. 32 ZITA, João Belo. Literatura africana: a crítica literária. Revista Charrua, agosto/1988. 33 Gilberto Matusse (1988) dedicou sua dissertação de mestrado a verificar a imagem de moçambicanidade presente em Craveirinha, Ungulani Ba Ka Khosa e Mia Couto. Sobre os dois últimos, os mais destacados escritores da geração, Matusse conclui que estes expressam a moçambicanidade ao se aproximarem da tradição oral africana, para isso se inspiraram em modelos de narrativa hispano-americana contemporânea, por essa apresentar características em comum como: terem sido criadas em situações coloniais, construírem universo fantásticos, retratarem experiências insólitas e utilizarem o desregramento da linguagem como técnica para abordar uma realidade complexa, afastando assim dos modelos do cânone europeu que a geração anterior procurava se aproximar. 34 Nesse sentido é interessante o trabalho de Cremilde Medina (1987) que fez uma viagem a Moçambique em que dialogou com a então jovem geração Charrua.

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A história que nos une: diálogos Brasil-Moçambique

As primeiras relações literárias entre Brasil e Moçambique datam do século XIX, quando o poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), por perseguições políticas, opta pelo exílio na Ilha de Moçambique, então capital do país, onde se casa com a filha de um comerciante de escravos. Gonzaga integra o primeiro núcleo de poetas e escritores em territorio moçambicano35. Um século depois, na década de 1940, por meio de intelectuais que se manifestavam contra a dominação colonial e buscavam tanto afirmação tanto individual como coletiva, a literatura da África de língua portuguesa passa a ter contato com literaturas estrangeiras, especialmente a brasileira, como fonte de inspiração, identificação e de certa forma legitimação. Nesse momento, o chamado romance social e o neorrealismo português ganham destaque com os brasileiros Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Verissimo e os portugueses ligados ao periódico Presença36, José Régio, Miguel Torga, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Fernando Namora, Carlos de Oliveira. Essa influência também será encontrada em outros territórios, como em Angola, com o movimento Mensagem37, e em Cabo Verde, com o movimento da Claridade38. Retomando Moçambique, emerge um grupo composto por nomes como: Noémia Sousa, Ricardo Rangel, José Craveirinha, Rui Nogar, João da Fonseca Amaral, Rui Knopfli, o pintor Antonio Bronze e Rui Guerra, o cineasta do ‘cinema novo’ brasileiro. Uma combinação de atitudes - estéticas e políticas - a adopção de diferentes modelos de correntes filiadas na Modernidade inspiradas nas experiências afro-americanas, negritudianas, do negrismo brasileiro ou do neo-realismo, deu origem a uma consciente produção cultural que se dissemina através desta imprensa39.

35 É digno de nota que outro poeta brasileiro, Gregório de Mattos, se exila em território africano, na costa Atlântica em Angola, onde também colabora na criação de um núcleo literário. 36 A revista literária Presença (1927-1940), se destacou na cultura literária portuguesa do século XX, como a afirmação de uma geração revolucionária que defendeu a arte e a liberdade do artista. Esta revista foi um veículo de divulgação, em Portugal, das literaturas estrangeiras. Normalmente a Geração Presença é caracterizada como conservadora no nível estético e no plano ideológico, pois privilegiou o psicologismo, o individualismo, ao invés, dos problemas sociais. 37 Publicação da década de 1950, surgida em Luanda pelo Movimento de Novos Intelectuais de Angola. 38 Surgido na década de 1930, este movimento literário cabo-verdiano marcou a chegada do modernismo no país. O movimento Claridade que tinha uma revista de mesmo nome foi extremamente influenciada pelo regionalismo brasileiro es as ideias do sociólogo Gilberto Freyre, alguns textos apontam esta influência, entre tantos cito: Revista Claridade e a ficção regionalista brasileira de 30. Estudos de literatura africana contemporânea. Bauru: Canal 6 Editora, 2012 e SALLA, Thiago. A revista Claridade e o discurso freyreano: regionalismo e aproximação entre a elite letrada cabo-verdiana e a metrópole portuguesa nos anos 1930. Via Atlântica, São Paulo, n. 25, 103- 117, julho/2014. 39MENDONCA, Fátima. Dos confrontos ideológicos na Imprensa de Moçambique. op. cit., p. 24.

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Além dos artistas citados acima, podemos incluir Orlando Mendes. Eles vão assumir claramente grande identificação ideológica e estética com o que era produzido na Europa e nas Américas. Nesse sentido, certas publicações tiveram papel fundamental na divulgação dessas ideias. O já citado jornal Itinerário, lançado em 1941, que tinha como subtítulo “Publicação Mensal de Letras, Arte, Ciência e Critica”, tem um papel central. A princípio divulgando maciçamente os elementos estéticos do neorrealismo do grupo Presença, difundindo o ambiente cultural português ao reproduzir resenhas e notas da revista Vértice40.

A colaboração de Augusto dos Santos Abranches41 parece ter um papel central tanto na redefinição dos rumos do jornal como na divulgação e circulação de romances brasileiros na então Lourenço Marques, atual Maputo. A partir de 1944, o periódico tem colaborações de brasileiros como Gedeão Coutinho, Édison Carneiro e José Lins do Rego. Abranches manteve um intenso contato cultural com um grupo intelectual de Florianópolis, fundadores da Revista Sul (1948). Salim Miguel, membro fundador do grupo Sul, afirma que Abranches foi o primeiro intelectual do continente africano a manter contato com o grupo por volta de 1950/1951. A revista chegou a publicar poemas de Noémia Souza e textos de Orlando Mendes; em contrapartida, o grupo florianopolitano enviava exemplares de livros brasileiros para o outro lado do Atlântico. Para driblar a censura da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado – da ditadura salazarista), o grupo enviava livros de cem em cem páginas e retiravam a capa: “Nós mandávamos daqui, para eles, as mais recentes edições de autores brasileiros; eles gostavam muito de Jorge Amado, mas gostavam mais do Graciliano Ramos. O Augusto dos Santos Abranches, por exemplo, conhecia mais literatura brasileira do que muitos autores brasileiros”42. Abranches, em carta para Miguel, aponta seu conhecimento de literatura brasileira: Permita-me uma vaidadezinha: pelo que me diz, daqui devemos conhecer um pouco melhor o Brasil, pois não estamos reduzidos apenas a Machado de Assis. Movimentos e nomes correspondentes a Jorge Amado, Graciliano

40 Revista cultura e arte, fundada em 1942, integrada ao movimento neorrealista, foi um instrumento de resistência à ditadura do Estado Novo. Lembrando que Jorge Amado exerceu grande influência entre os intelectuais que participaram desta revista, como observamos na citação de José Gaspar Simões (1962) na ocasião da comemoração dos 50 anos do escritor: “Nos anos heroicos do neo-realismo imita-se se rebuço o Jubiabá e os Capitães de Areia. Essa ficção entre lírica de declamatória em que os elementos realistas figuravam à luz de uma interpretação idealista das virtudes do povo provocou entre nós um entusiasmo de leitores deslumbrados” (p. 13). Edvaldo Bergamo (2008) dedicou a elucidar essa influência na sua tese de doutorado. 41 Augusto dos Santos Abranches chegou em Moçambique entre 1943/1944 vindo de Portugal onde atuou no movimento neorrealista, em 1955 parte para o Brasil onde falece em 1963. 42 MIGUEL, Salim. Eglê Malheiros, Salim Miguel e o intercâmbio entre as duas margens do Atlântico: entrevista. Crioula, n. 4, Novembro/2008, p. 16.

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Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, etc., são-nos absolutamente familiares, como o são Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Raul Bopp, etc., pois que não quero citar essa admirável e minha Cecília Meireles, por não consentir que ela seja apenas vossa. Na crítica, admiramos Mário de Andrade (e também o poeta e o contista) tão vivo ainda, Álvaro Lins e Sérgio Milliet. Tantos nomes que poderia citar!43.

Além da divulgação dos ideais modernistas, esse periódico também atuou como intermediário na tentativa de articulação do PCP (Partido Comunista Português) e na divulgação de ideias marxistas entre os intelectuais dessa geração das artes moçambicana. Um exemplo é Cassiano Caldas, funcionário da Caminhos de Ferro, cuja atividade clandestina no Partido Comunista Português em Moçambique coincide com sua passagem pelo Itinerário, entre 1944 e 1950. Caldas esteve ligado à tentativa de constituição do MUD juvenil44 em Lourenço Marques, reunião que participaram nomes como João Mendes, Henrique Beirão, Noémia Sousa, Ricardo Rangel, Dolores Lopes, Adélia Costa, Sofia Pomba Guerra, o advogado Santa Rita, Aníbal Aleluia, Abner Sansão Muthemba. Outro nome levantado por Mendonça45, que circulou por esse meio, é o de Pedro Soares, destacado dirigente do PCP, que esteve em território moçambicano entre 1947 e 1950. Outro membro das fileiras do partido comunista português que deixou grande influência na intelectualidade – como é notável nas entrevistas concedidas para este trabalho – foi Cansado Gonçalves, que chegou em Lourenço Marques em 1952 e atuou como professor do Liceu Salazar. Em entrevista a Rita Chaves e Omar Thomaz, José Craveirinha reconhece a importância desses nomes: Muitos portugueses antifascistas influenciaram a nossa formação. Posso citar o Cansado Gonçalves, o Cassiano Caldas, o Augusto dos Santos Abranches. E não podemos esquecer que o Rui Nogar, um dos poetas moçambicanos que se formou nesse ambiente, também era branco. Outro nome de moçambicano aparentemente branco é o do João Mendes, um grande nacionalista que andou sempre metido com a gente em muitas confusões46.

Em outro momento fala sobre Abranches:

Teve um papel com certo destaque porque havia a referência dele ter se revelado em Portugal. Principalmente ele orientava-nos [...] em relação aos

43 MIGUEL, Salim. Eglê Malheiros, Salim Miguel e o intercâmbio entre as duas margens do Atlântico. op. cit,. p. 58. 44 O MUD (Movimento de Unidade Democrática) foi uma organização política ligada ao PCP que surgiu em oposição ao Estado Novo, no contexto do final da Segunda Guerra Mundial. 45 Cf. MENDONCA, Fátima. Dos confrontos ideológicos na Imprensa de Moçambique. Op.cit.. 46 CRAVEIRINHA, José. Entrevista. Scripta, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, 2003, p. 423.

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livros que pareciam [...] Ele trabalhava na livraria Spanos47 [...] lá íamos comprar O cruzeiro. Essa livraria importava livros não só portugueses, e publicações do Brasil. Ele é que nos vendia livros que a Polícia tinha no index para serem apreendidos48.

Ainda sobre as publicações utilizadas como referência para este trabalho, nos últimos anos de regime colonial em Moçambique, existiu um núcleo que funcionava nos limites da censura e se firmou contra o poder instituído: as publicações A voz de Moçambique (1959- 1975), a revista semanal Tempo (1970-2008) e a revista literária Caliban (1973). A voz de Moçambique, fundado em 1959 pela Associação dos Naturais de Moçambique, dirigida por Engenheiro Homero Branco, com objetivos direcionados para a ideia de desenvolvimento econômico e social do país, reivindicava qualidade na educação, denunciava as condições de vida nas zonas periféricas da cidade e teve como colaboradores: Adrião Rodrigues, Eugenio Lisboa, Fernão de Magalhães, Rui Knopfli e Luís Carlos Patraquim. Nessa publicação Lisboa e Knopfli apontaram a inovação que era o livro Nós matamos o cão tinhoso (1964), de Luís Bernardo Honwana. Em crônica não assinada, afirmavam que o livro foi “um dos acontecimentos mais significativos na incipiente vida literária moçambicana”49. A revista Tempo foi fundada por um grupo de jornalistas como Areosa Pena, Ribeiro Pacheco, Mota Lopes, chefe de redação, Rui Cartaxana, diretor e o fotografo Ricardo Rangel, profissionais advindos de outros jornais, que não aceitavam os mecanismos internos de censura dessas publicações. As preocupações iniciais da publicação iam ao encontro com os interesses da classe média colonial, que andava contrariada com a política econômica do Estado Novo, que priorizava as grandes corporações. Composto por um grupo heterogêneo de oposicionistas, desde os descontentes que não levantavam a bandeira da independência até anticolonialistas como Mota Lopes e Rangel, por exemplo, que tinham relação com a Frelimo. Entre 1972 e 1974, a publicação sofre maior censura e é designada uma chefia de redação conservadora. Logo após a Revolução dos Cravos em Portugal, em abril de 1974, parte do corpo editorial assume seu apoio a Frelimo. Em relação às artes, a página Artes e Letras, iniciada por Rui Knopfli, foi prosseguida por Luís Carlos Patraquim, Calane da Silva, Gulamo Khan, Nelson Saúte. Segundo Mendonça, “Instituída como uma referência histórica a revista Tempo forneceu

47 Enquanto Craveirinha afirmava que Abranches trabalhava na livraria Spanos, outros afirmam que este trabalhou na livraria Minerva Central, de qualquer forma essas duas livrarias junto com a Académica tiveram este papel de trazer livros então proibidos pela censura. 48 CRAVEIRINHA, José. Entrevista. In: LABAN, Michel. Moçambique: encontro com escritores. Lisboa: Fundação Engenheiro Antonio de Almeida, 1998, p.83. 49 MENDONCA, Fátima. Dos confrontos ideológicos na Imprensa de Moçambique. Op. cit, p. 36.

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o modelo de jornalismo de intervenção que ainda hoje subsiste e pode explicar a vitalidade que a imprensa mantém em Moçambique”50. Os últimos redutos de expressão de atitudes que revelavam claramente oposição ou desconforto ao regime colonial nos últimos anos do colonialismo foram as páginas literárias nas quais a censura encontrava maior dificuldade de ação; a poesia era o único discurso audível que fazia oposição ao colonialismo, nesse contexto entram as publicações Caliban e Paralelo 20. É importante ter em mente que esses suplementos dedicados exclusivamente à literatura, com exceção da Itinerário, tiveram breve duração, com alguns poucos números e uma maior preocupação de divulgar a produção literária local. Em Paralelo 20 encontramos algumas reflexões teóricas e a resenha de alguns livros, incluindo A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, considerada a obra inaugural do romance social do nordeste, trinta anos após ser lançada. Sobre a Itinerário, dos anos que me foi possibilitado o acesso (1941-1946), percebe-se a reprodução da ambiência intelectual portuguesa, com a reprodução de artigos de autores portugueses dessa época; em um dos primeiros exemplares um artigo defende a unidade luso-afro-brasileira, trocas intelectuais e literárias evocando as ideias lusotropicalistas freyreanas. No ano seguinte aparece um elogioso texto sobre Jorge Amado, fazendo um panorama das características de suas obras que tinham sido publicadas até aquele momento, apontando-o como “querubim brasileiro” que “[...] não faz literatura por fazer, não lhe interessam temas bonitos, complicados e indiferentes. Nos seus livros há sempre um fundo de inconformismo”51 e que a liberdade seria a grande paixão do escritor. Em outro artigo, sobre o panorama literário brasileiro, a geração de 1930 que considera a “humanização” uma característica desse grupo, dividida entre espiritualistas e materialistas, sendo Amado colocado no último grupo “[...] realista e defensor dos direitos humanos [...] o miserável é elevado ao posto de gente a quem as ‘birras’ da sociedade impediram de ir mais longe”52, concluindo com uma simpatia indisfarçável ao grupo que chama de intermediário: Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Marques Rebelo, Erico Verissimo, entre outros. Ao abordar a gênese dessas publicações, demonstramos o chão histórico dos intelectuais entrevistados e pesquisados para este trabalho, a grande maioria são oriundos destas

50 MENDONCA, Fátima. Dos confrontos ideológicos na Imprensa de Moçambique. Op.cit., p. 40. 51 ROSADO, A. A paixão de Jorge Amado. Itinerário. Maputo, Moçambique, 21/05/1942, p. 2. 52 FERREIRA, Rodrigues. Panorama literário brasileiro. Itinerário. Maputo, Moçambique, 31/03/1944, p. 2.

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publicações, que se inspiraram e divulgaram não só a literatura, mas também a música brasileira em Moçambique como forma de resistência ao sistema político então vigente. A Tempo e A voz de Moçambique serão observadas mais atentamente à frente, pois a divulgação do Brasil foi feita de forma mais ampla dessas publicações53. Assim, nota-se os mais destacados escritores geração regionalista de 1930 de alguma forma chegaram em Moçambique, seja por intermédio de Abranches, seja pelo partido comunista, como vimos, mas também é importante notar os esforços do editor português Francisco Lyon de Castro54, proprietário da editora Europa-América. Além das influências citadas acima, não devemos perder de vista a ampliação no diálogo entre Brasil e Moçambique em fim dos anos 1950, como já citado. O continente africano se torna interessante para Brasil, desejoso de ampliar sua influência externa, tanto que o presidente Jânio Quadros abrira um consulado no país e enquanto o Rio de Janeiro concentrava o poder político, Salvador foi eleito como ponto de conexão Brasil-África, sendo Jorge Amado, Eduardo Portella e Antonio Olinto parte dos intelectuais que apoiavam e influenciavam esta política55. Durante a ditadura militar, o Brasil chegava pelas páginas da revista O Cruzeiro, que funcionava como propaganda, da mesma forma que uma empresa ligada ao regime (Varig) patrocina uma viagem da revista semanal mais importante do país, a Tempo, com objetivo de fomentar o turismo, a música brasileira chega às rádios56 e o Santos Futebol Clube, com Pelé, realiza uma excursão pela África em 1969, em 12 países, incluindo Moçambique, lembrando que o esporte também era utilizado como propaganda pelo governo. Fatores que em conjunto com a literatura regionalista, especialmente Jorge Amado, sem sombra de dúvidas ajudaram na construção do imaginário do que era o Brasil naquele país.

53 Sobre a imprensa na criação a moçambicanidade indico o texto “Imprensa e percursos literários moçambicanos” presente no livro Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas Moçambique (2007) de Tania Macedo e Vera Maquêa. 54 Influencia que nas colônias merece ser melhor estudada, fundador da editora Publicações Europa-América em 1945, se propôs, além da atividade editorial, realizar a importação de livros e publicações periódicas estrangeiras, a maior parte delas era apreendida nos serviços dos Correios. Por sua atividade foi preso algumas vezes, acusado de importar publicações de natureza política subversiva e contrárias ao regime vigente. Militante antifascista, ligado ao PC, Castro se tornou amigo pessoal e editor das obras de Amado em Portugal como podemos ver em Navegação de cabotagem (2012), o editor foi um dos organizadores do jantar para o escritor baiano no aeroporto da Portela, quando este foi proibido de entrar no país. 55 Como apresentado no capítulo V, em que foi demonstrado como o discurso baianidade foi articulado considerando a Bahia como a mais autentica manifestação das raízes africanas no Brasil. 56 Segundo consta, haviam quatro estações de rádio sendo que uma delas dedicada a música brasileira, associada à resistência ao regime português.

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Balduíno vive aqui!

Depois de uma abordagem mais geral, chegamos em Jorge Amado. É sabido que o Brasil foi uma referência central entre os intelectuais moçambicanos a partir da década de 1940 até os anos que precedem a independência. Como é possível observar nas citações acima, falar de Brasil e sua influência naquele momento implicava em citar Jorge Amado. Na literatura as referências a Amado começam na geração Itinerário, com Rui Knopfli, um pouco mais velho, Virgílio de Lemos, Rui Nogar, Orlando Mendes, Fonseca Amaral, Marcelino dos Santos, Noémia de Sousa e José Craveirinha, quando o chamado romance regionalista de 1930 chamou atenção deles ao narrar e denunciar as mazelas do povo brasileiro. Alguns tomaram essa literatura como fonte de inspiração para fazer uma poesia de cunho nacionalista que denunciava os desmandos do colonialismo português. Na obra da poetisa Noémia de Sousa e do poeta José Craveirinha encontramos as maiores aproximações com Jorge Amado. Ambos teriam chegado à obra do escritor pela mesma fonte, o português Cassiano Caldas, ligado ao Partido Comunista português. Nas palavras de Sousa57: “[...] Quem teve certa influência foi o Cassiano Caldas, a mim e ao José Craveirinha, livros de neo-realistas, a revista Vértice, os livros proibidos de Jorge Amado que me abriram para outro gênero de coisas. O primeiro livro que conhecemos através dele foi Jubiabá”58. Craveirinha afirma: “As primeiras aulas de política, de ideologia, de afirmação ideológica, foram com ele. E orientando-nos o que o que é que deveríamos ler, os autores que nos marcavam, aqueles do neo-realismo português [...] Brasileiros também. O Jorge Amado quando apareceu encontrou-nos receptivos59. Lembrando que em meados da década de 1940 muitas dessas obras chegam clandestinamente nas colônias por causa da censura do governo ditatorial de Salazar, especialmente os livros de Jorge Amado, que naquele momento se encontrava envolvido na militância no Partido Comunista. Vivendo exilado na Europa, ganhou o Prêmio Stalin Internacional da Paz em 1951. Nesse momento, escreveu seus romances considerados mais

57 Por sua ligação com o PCP, Noémia de Sousa foi presa em 1949. Segundo relatos, teria recebido um bilhete de Cassiano Caldas e ao ser repreendida pela polícia engoliu o papel. 58 SOUSA, Noémia de. Entrevista. In: LABAN, Michel. Moçambique: encontro com escritores. Op. cit., p. 243. 59 CRAVEIRINHA, José. Entrevista. In: LABAN, Michel. Moçambique: encontro com escritores. Op. cit., p. 115.

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engajados: O mundo da paz (1951) e a trilogia Os subterrâneos da Liberdade (1954).Noémia de Sousa (1926-2002)60 tem um poema intitulado “Poema a Jorge Amado”: O cais... O cais é um cais como muitos cais do mundo... As estrelas também são iguais às que se acendem nas noites baianas de mistério e macumba... (Que importa, afinal, que as gentes sejam moçambicanas ou brasileiras, brancas ou negras?) Jorge Amado, vem! Aqui, nesta povoação africana o povo é o mesmo também é irmão do povo marinheiro da Baía, companheiro de Jorge Amado amigo do povo, da justiça e da liberdade!

Não tenhas receio, vem! Vem contar-nos mais uma vez tuas histórias maravilhosas, teus ABC’s de heróis, de mártires, de santos, de poetas do povo! Senta-se entre nós e não deixes que pare a tua voz! Fala de todos e, cuidado! não fique ninguém esquecido: nem Zumbi dos Palmares, escravo fugido,

lutando, com seus irmãos, pela liberdade; nem o negro Antônio Balduíno, alegre, solto, valente, sambeiro e brigão; nem Castro Alves, o nosso poeta amado; nem Luís Prestes, cavaleiro da esperança; nem o Negrinho do Pastoreio, nem os contos sem igual das terras do cacau - terra mártir em sangue adubada – essa terra que deu ao mundo a gente revoltada de Lucas Arvoredo e Lampião! Ah não deixes que pare a tua voz, Irmão Jorge Amado! Fala, fala, fala, que o cais é o mesmo Mesmas as estrelas, a lua, E igual à gente da cidade de Jubiabá - onde à noite o mar tem mais magia,

Enfeitiçado pelo corpo belo de Iemanjá -, Vê! Igual à tua É esta gente que rodeia! Senão, olha bem para nós,

60 Os poemas de Noémia de Sousa não datados, sabe-se escreveu durante o curto período de 1948 a 1951. Em 1951, se exila em Portugal devido a pressão política e somente em 2001 é publicado seu primeiro livro, a coletânea Sangue negro, que reúne dezenas de poemas publicados naquele período pela imprensa moçambicana e estrangeira que se supõe que foram escritos entre 1949 e 1950, alguns deles no Brasil como vimos na publicação coordenada por Jorge Amado Para todos e segundo Salim Miguel também na revista Sul.

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Olha bem!61.

Nele, aponta a identificação das histórias do escritor baiano com as histórias do povo negro moçambicano, se referindo ao Brasil e a Jorge Amado como irmãos. No texto faz claras referências aos romances Jubiabá (1935) e São Jorge dos Ilhéus (1942), cita também Castro Alves - Amado publicou um livro em sua lembrança em 1941 - ABC de Castro Alves e Luís Carlos Prestes (Cavaleiro da esperança) cujo um livro em sua homenagem fora publicado em 1942. O verso “[...] não deixes que pare a tua voz” chama atenção se referindo a Amado, devemos lembrar que o escritor partiu para seu último exilio em 1948 e o poema foi escrito entre 1949/1950. No mais, vemos neste e no poema seguinte que para poetisa as histórias do escritor baiano são ligadas a justiça e a liberdade. Ao ser perguntada sobre o título do poema, disse: “Isto é por causa dos livros do Jorge Amado: há um livro, que eu já não me lembro, acho que S. Jorge de Ilhéus, que diz: ‘Vem minha morena sentar-se no cais’, ou não sei o que, que eu já não me lembro, ‘que eu vou te contar uma história’ ou é Jubiabá? E eu fiquei muito impressionada com Jorge Amado”62.

Em outro poema, intitulado "Poema de João”, existem referências a Amado:

João era jovem como nós

João tinhas os olhos despertos, os ouvidos bem abertos, as mãos estendidas para frente, a cabeça projectada para amanhã, a boca a gritar ‘não’ eternamente... João era jovem como nós

João amava a arte, a leitura, amava a Poesia de Jorge Amado, amava os livros que tinham alma e carne, que respiravam vida, luta, suor, esperança... João sonhara com Zambezes de livros derramando cultura para a humanidade, para os jovens nossos irmãos, João lutou para que todos tivessem livros... João amava a leitura João era pai, era mãe e irmão das multidões. João era sangue e suor das multidões e sofria e era feliz com as multidões. Sorria o mesmo sorriso cansado das raparigas saindo das lojas, Sofria coma passividade das mamanas do mudende, Gemia com os negros amarrados ao cais, Sentia o sol picando como piteiras aos meios dias dos pachiças, Arengava com os chinas nas bancas do bazar,

61 SOUSA, Noémia de. Sangue negro. Maputo: AEMO, 2001, p. 136 -138. 62 SOUSA, Noémia de. Entrevista. LABAN, Michel. Moçambique: encontro com escritores. Op. cit., p. 307.

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Vendia com os monhés o verde desbotado das hortaliças, Chorava com Maria Anderson spiritual vindo de Harlém Bamboleava-se com as marimbas dos muchopes aos domingos, Gritava com os revoltados seu grito de sangue, Era feliz como a lua branca como mandioca, Cantava com os xibalos suas canções saudosas de tudo, E esperava com a mesma ansiedade de todos Pelas madrugadas deslumbrantes que têm uma boca e cantam! João era sangue e suor das multidões

João e Moçambique confundiam-se. João não seria João sem Moçambique. João era como que um coqueiro, uma palmeira, um pedação de rocha, um lago Niassa, uma montanha, um Incomáti, uma mata, uma maçaleira, uma praia, um Maputo ou um Indico... João era parte integrante e profundo de Moçambique. João e Moçambique confundiam-se E João era jovem como nós. João queria viver, queria conquistar a vida. E por isso odiava as jaulas e os homens que as fizeram Porque João era livre, João era uma águia e nascera para voar. Ah, João odiava as jaulas e os homens que as fizeram E João era jovem como nós,

E porque João era jovem como nós, e tinha os olhos bem despertos, e amava a Arte, a Poesia e Jorge Amado, era sangue e suor das multidões, e se confundia com Moçambique...e era uma águia que nascera para voar, e odiava as jaulas e os homens que as fizeram, e porque João era jovem e ardente como nós, ah, por isso tudo, perdemos João. Perdemos João!

Ah, por isso perdemos João, por isso gritamos noite e dia por João, por João que nos roubaram.

E perguntamos: Mas por que nos levaram João, João que era jovem e ardente como nós João sedento da vida João que era irmão de todos nós? Por que nos roubaram João Que nos falava de esperanças e madrugadas, João tinha olhar de abraço de irmão, João de palavra forte e dura como uma lança, João que tinha sempre alojamento para qualquer de nós, João que era nossa mãe e nosso pai, João que seria Cristo por nós,

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João que nós amávamos e amamos, João que é tão nosso? Oh por que nos roubaram João?

E ninguém responde, Friamente ninguém responde.

Mas nós sabemos, do fundo de tudo, Porque nos levaram João... João tão nosso irmão!

Mas que importa? Que importa? Julgam que o roubaram, mas João está conosco, está nos outros que virão está nos que já estão vindo, porque João não é só, João é multidão, João é sangue e suor de multidões, E João, sendo João, também é Joaquim, José, Abdula, Fang, é Mussumbuluco, é Mascarenhas Omar, Yutang, Fabião... João é multidão, sangue e suor de multidão...

E que poderá levar José, Joaquim, Abdula, Fang, Mussumbuluco, Mascarenhas, Omar, Fabião? Quem poderá levar-nos todos e fechar-nos todos numa jaula?

Ah, roubaram-nos João, Mas João somos nós todos, Por isso João nos abandonou... E João não “era”, “é” e “será”, Porque João somos nós, nós somos multidão, e multidão, - quem pode levar multidão e fecha-la numa jaula63.

Nesse poema, relaciona características de João, no caso, João Mendes64, militante do Movimento de Libertação Nacional (MLN) e um dos primeiros presos políticos pelo sistema português, com características que encontrava nos livros de Amado como alma, luta, suor e esperança. O que é notável é que os escritos do autor inspiravam a ação militante, chamando para a luta e resistência. Não deixa de ser digno de nota que a ideia de Moçambique como nação e um movimento de libertação bem organizado não existiam no momento em que esses textos foram escritos. Sendo assim, o que está descrito no primeiro poema se encontrava no plano da utopia.

63 SOUSA, Noémia de. Sangue negro. Op. cit., p. 116, grifos meus. 64 Segundo Nelson Saúte (2001), graças a Mendes a poetisa Noémia passou a conviver com outros escritores da sua geração, sua atuação foi notória no sentido de congregar a intelligentsia moçambicana que começava a construir a resistência ao colonialismo lusitano, propondo diálogos entre artistas da Polana, a cidade de cimento e da Mafalala, o caniço.

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Como afirmou Fatima Mendonça e Luís Bernardo Honwana65, essa literatura profetizava a nação. Quando questionada sobre o idealismo presente nos seus textos, Noémia de Sousa: “A maior parte deles [jovens] não, mas, por exemplo, Craveirinha, Ricardo Rangel, eu, Dolores López [...] com um bocado de receio, porque essas coisas já eram bocado complicadas, nós já queríamos uma independência, nesta altura”66, se valendo da ideia da arte como forma de atuação política, uma das características marcantes desta geração. Na produção de José Craveirinha (1922-2003) não encontramos referências diretas a Jorge Amado67, mas ele sempre citava com grande entusiasmo sua importância, que chegou em Moçambique num contexto mais geral de influência da cultura brasileira, como o samba e a revista Cruzeiro: Parecia que estávamos a espera que ele aparecesse. Veio ao encontro da nossa maneira de ser. Não eram livros brasileiros, eram livros também nossos. Há aqui uma distinção a fazer: quando eu disse que eram dois mundos, entre a cidade do cimento e o caniço, eram de facto dois mundos diferentes. Daquele lado – o do caniço – todas as vivencias, as reações, até certas coincidências no pronunciar das palavras era o Brasil, e depois o gosto, a preponderância da dança, por exemplo, o samba. O samba era nosso. Ninguém lembrava que era brasileiro [...] Faziam-se serenatas, cantando samba, com um músico inesquecível [...] o Daíco. O grupo era chefiado por ele, depois tinha acompanhantes [...] São figuras de romance. Zagueta era também uma figura de romance. E se eu tivesse talento do Jorge Amado, escrevia outro Jubiabá, mas sendo como figura principal e como título, Zagueta68.

Como Noémia de Sousa, o poeta reforça essa ideia de identificação entre as histórias contadas por Jorge Amado e a história do seu país, ou seja, a identificação com uma narrativa que assumira a nacionalidade mestiça em um país que fora colonizado por Portugal:

E, então, enveredávamos por uma literatura 'errada': Graciliano Ramos e por aí afora Tínhamos nossas preferências e, na nossa escolha, pendíamos desde o Alencar... A nossa literatura tinha reflexos da literatura brasileira. Então quando chegou o Jorge Amado, estávamos em casa. Jorge Amado marcou- nos muito por causa daquela maneira de expor as histórias. E muitas situações existiam aqui. Ele tinha aqui um público. Havia aqui a polícia

65 HONWANA, Luís Bernardo. A difícil gestão dos mitos fundadores. 22/08/2015. Palestra proferida na AEMO (Associação dos escritores moçambicanos). 66 SOUSA, Noémia de. Entrevista. LABAN, Michel. Moçambique: encontro com escritores. Op. cit., p. 307. 67Luís Bernardo Honwana (2015) aponta influência de Jorge Amado no estilo da escrita de Craveirinha: “O grande Craveirinha, em muitos textos jornalísticos, especialmente quando escrevia sobre a sua Mafalala, aparecia-nos com a cadência, a construção frásica e o estilo de Jorge Amado”. 68 CRAVEIRINHA, José. Entrevista. In: LABAN, Michel. Moçambique: encontro com escritores. Lisboa: Fundação Engenheiro Antonio de Almeida, 1998, p. 114. Zagueta foi um pugilista mulato que morava no subúrbio de Lourenço Marques, Mafalala, descrito por Craveirinha como boémio e grande dançarino de marrabenta e tinha duas parceiras de dança que disputavam entre si, a negra, Isabel e a mulata, Amélia.

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política, a PIDE. Quando eles fizeram uma invasão à casa, puseram-se a revistar tudo e levaram o que quiseram levar. Ainda me lembro. Levaram uma mala e carregaram os livros, meus livros. Levaram os livros e a mala até hoje como reféns políticos. Depois de eles irem-se embora, é que minha mulher disse: ‘E o Jorge Amado? Onde estava o Jorge Amado?’ Nessa altura, já estavam atrás do Jorge Amado69.

Podemos apontar que parte da profunda identificação de ambos escritores com Jorge Amado se deve a origem mestiça70 de ambos, uma questão identitária relevante, em um sistema declaradamente racista. Lourenço Marques era uma cidade dividida entre o cimento, onde moravam os brancos, e o caniço, onde viviam os negros. Esses intelectuais faziam trânsito entre os meios intelectualizados e os mais populares. Ambos foram membros atuantes da Associação Africana, composta majoritariamente por mulatos e alguns negros – segundo Cassiano Caldas71, somente um negro era membro. Segundo Craveirinha, presidente da associação na década de 1950, ela dava voz às classes marginalizadas ao trabalhar com a valorização da cultura negra e mestiça, cujas manifestações eram desvalorizadas pelos próprios e sofriam fortes censuras do governo colonial: “as pessoas sentiam-se diminuídas em comer pratos típicos e havia aquela conotação vexatória ‘comida de preto’. Foi de facto um período muito importante, em que as mulatas começaram a usar tecidos de capulana sem se sentirem diminuídas na rua. A primeira vez que há um movimento para revalorização da nossa dança e da nossa música [...]”72. Em textos da década 1960/70, Craveirinha se torna um entusiasta na divulgação da marrabenta, dança nascida no subúrbio de Lourenço Marques, como representativa do mulato e consequentemente de Moçambique, pois nela estaria representada os três segmentos étnicos

69 CRAVEIRINHA, José. Entrevista. Scripta, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, p. 415, 2003. Entrevista concedida a Rita Chaves e Omar Thomaz. 70 Craveirinha, nascido em Lourenço Marques era filho de pai português e mãe moçambicana da etnia ronga, o poeta dizia que tinha nascido duas vezes: a primeira no dia do parto e a segunda no dia em que tomou consciência de que era mestiço. E desde que descobriu que era mestiço, passou a exibir poeticamente a sua identificação preferencial com a cultura herdada do lado materno. Questão étnica complexa, não existem muitos estudo sobre a mestiçagem em Moçambique, um texto que aborda este tema é o de Gabriel Mithá Ribeiro, “É Pena Seres Mulato!”: Ensaio sobre relações raciais, Cadernos de Estudos Africanos [Online], 23 | 2012, Disponível em: http://cea.revues.org/583http://cea.revues.org/583, e de Eduardo Medeiros: Os Sino-moçambicanos da Beira. Mestiçagens Várias Cadernos de Estudos Africanos [Online], 13/14 | 2007, URL : http://cea.revues.org/494. 71 CALDAS, Cassiano. Entrevista. In: MATEUS, Dalila Cabrita. Memórias do Colonialismo e da Guerra. Leya: Lisboa, 2006 72 SAÚTE, Nelson. Os habitantes da memória: entrevista com os escritores de moçambicanos. Maputo: Embaixada de Portugal/ Centro cultural português, 1998, p. 118. 72 CRAVERINHA, José. Autodidacta na primeira pessoa [12/06/1983]. Maputo: Jornal Notícias. Entrevista concedida a Gulamo Khan, p. 19.

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da população: o branco, o mulato e o negro. Cabaço73 enxerga nestes textos uma afinidade teórica (não declarada) com Gilberto Freyre no que se refere a ideia de miscigenação cultural, mas é importante notar que também a mestiçagem foi a saída encontrada por Jorge Amado já naquela altura. Através do relato de Stelio Craveirinha, filho do poeta, sabe-se que os dois escritores tiveram contato, inclusive que Amado através marinheiros chegou a mandar uma carta a José Craveirinha, mas esta foi recolhida por agentes da PIDE antes de chegar em suas mãos74. É notável que o poder instituído reconhece Craveirinha como uma liderança político-cultural, visto as insistentes tentativas por parte do governo colonial de isolar o poeta, este é preso três vezes: em 1949, na mesma ocasião de Noémia Souza por ligação ao MUD, em 1952, sob acusação de tentativa imigração ilegal para África do Sul e em 1965, ficando cinco anos na cadeia, como também, há uma série de relatos de interceptação de cartas enviadas a ele de intelectuais moçambicanos e estrangeiros. Para uma maior noção de como os livros de Jorge Amado eram considerados perigosos, segundo Calane da Silva na ocasião da prisão da primeira prisão de Craveirinha junto com Noémia Souza em 1949, em comunicado oficial da PIDE publicado no jornal Notícias (10/1949)75, na lista de contravenções que estes teriam cometido uma delas era “liam livros de Jorge Amado”76. Assim, podemos observar que Jorge Amado chega a Moçambique primordialmente por portugueses ligados ao Partido Comunista em meados da década de 194077, e estes intelectuais têm grande identificação com a sua obra, a respeito da questão racial, notadamente em relação militância de esquerda combinada com a valorização da negritude e da nacionalidade, como também, a mestiçagem ao narrar uma sociedade multirracial em suas obras.

73 CABAÇO, José Luís. José Craveirinha um poeta cidadão. In: CRAVEIRINHA, José. O folclore moçambicano e suas tendências. Maputo: Alcance, 2009 74 Como já citado na introdução, não é permitido o acesso as correspondências de Jorge Amado. Mas os funcionários gentilmente verificaram se entre as correspondências em processo de catalogação existiam de intelectuais moçambicanos como Craveirinha, Souza e Calane da Silva, outro que me informou que trocou cartas com o escritor, mas nada foi encontrado ainda. 75 Infelizmente o jornal desta data não foi localizado nos dois acervos disponíveis do Jornal Notícias, o Arquivo Historio Nacional e na Biblioteca Nacional de Moçambique. 76 Entrevista Calane da Silva, concedia a Carla de Fatima Cordeiro, em Maputo, 24/08/2015. 77 Patraquim (2015) relatou que em entrevista concedida a ele, o escritor português Cardoso Pires, que trabalhou como embarcadiço nas décadas de quarenta e cinquenta, afirmou que levava livros de Jorge Amado para membros do PCP moradores de Lourenço Marques, as primeiras foram por volta de 1944 e 1945 data que coincide justamente com a chegada dos primeiros membros do PCP em Maputo.

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Sobre os romances do escritor baiano e polícia política do Estado português (PIDE), é de conhecimento geral que Jorge Amado78 e seus romances não eram presença gratas em território lusitano. Uma série de documentos disponibilizados pela Fundação Mário Soares79, na base de dados Casa Comum demonstram a censura prévia e autos de apreensão de obras amadianas, como também, o empenho do português Francisco Lyon de Castro, proprietário da editora Europa América, para que estas obras circulassem em Portugal e suas províncias. Entre as obras censuradas estão O país do carnaval, Cacau, Suor, Mar Morto, Capitães de Areia, São Jorge dos Ilhéus, Os pastores da noite e restrições a termos e expressões de Gabriela, cravo e canela e Dona Flor e seus dois maridos. Chama atenção o tempo que Lyon de Castro se dedicou para tentar liberar o romance Mar Morto da censura, esse envia uma série de cartas ao Diretor dos Serviços de Censura, utilizando as mais variadas argumentações numa delas evocando os princípios do lusotropicalismo “[...] com Jubiabá [que era autorizado], é uma das obras nas quais mais ricamente se exprime a interpenetração do mundo luso-afro-brasileiro, a simpatia por mestiços e negros, o caldeamento e o poético folclore negro” (26/12/1960). No fim, é autorizada a publicação. Sobre Moçambique, especificamente, documentos relatam a proibição da circulação de São Jorge dos Ilhéus em 29/06/1970 e um auto de apreensão desta mesma obra na Livraria Acadêmica datada de 1961. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) se instala nas colônias em 1950, quando estas ganham status de província, sobre a ação desta e a circulação dos romances de Jorge Amado em Moçambique, parece haver uma unanimidade em afirmar sobre: a ignorância de seus agentes80; que a patrulha não era tão exigente em Moçambique em termos intelectuais como em Portugal ou até em Angola81; e que sua ação era voltada com maior rigor para os segmentos sociais não-brancos. Além do intermédio de Lyon de Castro, editor responsável pela publicação de parte das obras regionalistas que circulavam, como citado anteriormente, ao que tudo indica, os livros

78 Em 1953, Jorge Amado de passagem por Lisboa foi proibido sair do aeroporto, como forma de recepcionar o escritor, intelectuais portugueses organizaram jantar no próprio aeroporto. 79 Disponíveis em: http://casacomum.org/cc/ 80 Um dos casos que servem de exemplo sobre a falta de conhecimento dos agentes da PIDE citado por Mota Lopes para este trabalho é que no cineclube de Lourenço Marques passava filmes de Glauber Rocha e Eisenstein sem maiores problemas. Porém, antes de serem reproduzidos para o público estes eram exibidos para os censores, no caso do O encouraçado potemkin (1925), exibido aos agentes por ele e Rui Nogar, na clássica cena em que os marinheiros hasteiam a bandeira vermelha comunista os agentes perguntaram o que aquilo significava, Nogar prontamente respondeu que era a bandeira dos piratas e o filme foi exibido sem maiores problemas. 81Vários entrevistados reagiram com surpresa quando informava da existência de auto de apreensão da PIDE referente a livros em Moçambique. Como afirma Mia Couto (2005), “Jorge Amado era interdito em Portugal. Mas as autoridades coloniais portuguesas acreditavam que em Moçambique ninguém lia. Para eles o livro era semente sem chão” (p. 105).

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de Amado, romances russos e outros materiais, como pôsteres de Che Guevara, chegavam por meio de marinheiros, que os repassavam para membros do PCP e para donos das livrarias em Lourenço Marques82, com destaque para a livraria Minerva Central, cujo proprietário ligava para os clientes avisando quais livros proibidos haviam chegado. Segundo relatos de Mota Lopes, Carlos Carvalho e Cabaço, não passava pela cabeça dos agentes do regime português que jovens filhos de colonos, que supostamente eram beneficiários, poderiam se articular contra o colonialismo. Enquanto os intelectuais negros e mestiços, como Craveirinha, Noémia Souza, Malangatana, Ricardo Rangel, Luís Bernardo Honwana, tinham ficha acusados de “atividades subversivas”. Dos primeiros, o único que chegou a ter ficha na polícia foi Carlos Carvalho, por ter passado um poema com conteúdo considerado subversivo a seus alunos chamado Lágrima Preta de Antônio Gideão, que versa sobre a igualdade de negros e brancos. Como também, os filhos de colonos tinham maiores oportunidades, como ir morar na Europa onde trabalhavam para os órgãos de informação da Frelimo. Como se conhece através de textos, cartas e artigos, Jorge Amado atuou ativamente no debate sobre a questão racial e passou a dar maior atenção ao negro e suas manifestações culturais em seus romances a partir de Jubiabá (1935), livro que teve uma expressiva repercussão internacional, é o primeiro do autor a chegar em Moçambique. Nas palavras de Noa: [...] Jubiabá, com todos os seus ingredientes, tinha obviamente um impacto muito grande no escritor africano. Porque era uma realidade na qual eles se reconheciam e em que essas personagens eram protagonistas, em que essas personagens tinham um lugar central na história, o que já não acontecia, por exemplo, no romance colonial – aqui, essas personagens não tinham voz sequer, não existiam, tinham um papel decorativo, simplesmente, na narrativa, ou então havia uma depreciação na forma como eram representadas. Então eles acabam por se reencontrar, quer no Brasil, quer em Portugal83.

Além do aspecto apontado por Noa, não deixa de chamar atenção o impacto da recepção de Jubiabá em Moçambique, especialmente se fizermos um contraponto com o primeiro romance moçambicano, Portagem, de Orlando Mendes, escrito na década de 1950 e publicado em 1965. O livro narra a trajetória do mestiço João Xilim, filho de mãe negra,

82 Segundo Calane da Silva (2015), uma companhia Brasil-estadunidense chamada Llodys Cia Marítima trazia muito desses livros. Outro lugar importante de acesso as obras consideradas proibidas foi a Casa dos Estudantes do Império, para aqueles que estudaram em Portugal, criada com o objetivo de “cuidar” dos estudantes oriundos das colônias, esse local se tornou importante para o surgimento de lideranças do movimento anticolonial na África. 83 NOA, Francisco. Surge et ambula: (des)construção da literatura moçambicana. Op. cit., s/p.

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empregada e pai branco, patrão. Na sociedade colonial, o personagem busca a afirmação da sua identidade e vive uma série de desventuras, sentindo-se marginalizado e discriminado por brancos e negros. A narrativa chega ao fim sem que seja expressa uma saída para tal conflito. Como apontado por João Camilo Manusse, enquanto a narrativa de Xilim é decadente, a de Antonio Balduíno é crescente, finalizada com o triunfo do herói que encontra na luta de classes a saída do problema racial84. Indicando diferentes percepções sobre a questão racial, especialmente sobre a mistura étnica, nas duas sociedades.

Brasil, pra mim...

Da geração que podemos chamar de fundadores, José Craveirinha atua como uma figura tutelar para as novas gerações, o que é confirmado por Luís Bernardo Honwana, que considera Craveirinha um dos principais alimentadores do mito que se criou em torno de Jorge Amado e o Brasil. Craveirinha relata que andava por Lourenço Marques nomeando seus moradores com personagens dos romances do escritor baiano. Honwana, José Mota Lopes, José Luís Cabaço, Calane da Silva, entre outros fazem parte da geração seguinte, geração composta por poucos assimilados, mestiços e filhos de colonos portugueses. Além de Jubiabá, outra obra que marca essa geração é Capitães de Areia85 e a trilogia Os subterrâneos da liberdade. Segundo Honwana, Amado foi o “santo padroeiro” daquela época. Ao unir projeto estético ao projeto político teria sido aceito sem restrições por essa pequena intelectualidade. Honwana, jornalista na época, junto com Mota Lopes, Ricardo Rangel, fotojornalista contemporâneo de Craveirinha, Rui Nogar e algumas vezes Craveirinha formavam o grupo chamado “capitães de areia”, em uma referência à obra homônima de Jorge Amado, pois, segundo Mota Lopes, ao final da noite de trabalho eles iam para Rua Araújo, “rua do pecado”, famosa pela boemia e prostituição, onde ouviam histórias daquelas pessoas. Expressões dos romances Amado também foram adotadas por eles no cotidiano, a exemplo de “derrubar na areia”86, do romance Capitães de Areia.

84 MANUSSE, José Camilo. Estratégias técnico-narrativas na representação do herói em Portagem e Jubiabá. Ecos, nº 01, janeiro/2004, p. 62-69. 85 Um resquício desta influência nos dias de hoje é que a leitura desse romance é exigida nos exames de admissão (equivalente ao nosso vestibular) nas universidades. 86 A expressão “derrubar” utilizada no romance, refere-se as relações sexuais forçadas, estupro, que os meninos de rua cometiam com a mulheres que andavam pela praia a noite. Na fala de Mota Lopes, ela aparece no sentido de manter relações sexuais.

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Quarenta anos depois, Honwana tem uma visão mais crítica, lembrando que mesmo sendo colegas no Liceu Salazar, as observações de Mota Lopes são de alguém que vivia no cimento e as do autor de Nós matamos o cão tinhoso eram de alguém que viveu no caniço, um dos poucos alunos negros do liceu, pertencente a uma classe média que até alguns anos atrás procurava se integrar ao “mundo que o português criou”, mas que a partir daquele contexto procurava afirmação da sua própria cultura: Aqui falou-se muito, por exemplo, do Capitães de Areia, houve até uma grupo que se intitulava, não eram miúdos ou coisa alguma, eram pessoas que frequentavam o subúrbio, pessoas que se auto marginalizavam dentro da sociedade colonial, quer dizer, muito deles eram brancos, mas tinham certo trato com os subúrbios [...] conviviam com a gente nos subúrbios que chamavam de cidade de areia por oposição a cidade de cimento, que é esta daqui, cidade de asfalto, eu vivia lá [...] Então, quer dizer, as pessoas brancas, que porventura lá iam, eram os capitães de areia, alguns deles até para se distinguir chamavam marechais de areia. Haviam essas brincadeiras...87

A leitura de Subterrâneos da liberdade foi muito disseminada entre aqueles que se tornariam da alta patente da Frelimo, como Armando Guebuza, Joaquim Chissano, Samora Machel – ex-presidentes de Moçambique – Marcelino dos Santos e Sérgio Viera, que afirmou que foi um “autêntico clarim para as nossas ideias de revolta e luta”88. Estritamente proibida, segundo Mota Lopes e Calane da Silva, essa trilogia funcionava como um manual prático de guerrilha, de como pichar as paredes, como agir quando algum colega se atrasasse para uma reunião. Sobre Jorge Amado, afirma Mota Lopes: Foi uma influência que aproximava e simbolicamente unia vivências e que, portanto, se reflectia numa grande identificação. Uma identificação intelectual que, sendo também política e afectiva, era a base em que assentava a sua capacidade de influenciar[...] quando falamos da influência de Jorge Amado, isso tende de certo modo a projectá-lo no passado, nas estórias das nossas vidas, na História do nosso país89.

Sendo assim, falar de Jorge Amado é muito mais do que ouvir sobre a identificação com os seus romances, é ouvir histórias da geração que viveu às voltas com a questão da nacionalidade, como relatou o jornalista José Pinto de Sá90; esses intelectuais tinham a

87 HONWANA, Luís a Bernardo, entrevista concedia Carla de Fátima Cordeiro, Maputo, 18/11/2015. 88 Entrevista Sérgio Vieira, concedida a Carla de Fátima Cordeiro, 30/11/2015. 89 MOTA LOPES, José. Jorge Amado, escritor africano [depoimento]. Agosto/2015, (texto cedido pelo autor). 90 Entrevista José Pinto de Sá, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Maputo, 10/10/2015.

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nacionalidade portuguesa, mas não conheciam Portugal e não se identificavam com os valores da cultura portuguesa. Diferente da geração anterior, que havia tido uma aproximação com o PCP, inclusive houve a tentativa de criar uma célula do partido em Lourenço Marques, na geração seguinte essa afirmação e identificação ideológica parecia não carecer de preocupação91. O objetivo era se mobilizar contra o colonialismo que naquele momento era quase sinônimo de se mobilizar contra o racismo; para tanto, perguntar sobre a opção pelo movimento nacionalista é primeiramente ouvir relatos que remetem à infância ou à adolescência sobre algum caso de racismo, ou melhor, a percepção da existência deste. Analisar os números dos primeiros anos da revista Tempo, especialmente entre 1970 e 1972, então chefiada por Mota Lopes e Ricardo Rangel, nos dá uma boa noção da ambiência cultural brasileira que chegava em Moçambique. Como já citado, essa publicação era voltada para pequena parcela população que compreendia a classe média liberal. Entre 1971 e 1972, uma série de reportagens sobre e no Brasil foram realizadas a maioria delas com patrocínio da empresa de aviação Varig92, num contexto que como vimos o governo militar tentava promover o Brasil como destino turístico, outras pela correspondente da publicação no Brasil, a jornalista Teresa Sá Nogueira. No segundo ano de existência da revista, temos uma entrevista de Jorge Amado destacada já na capa, realizada por Sá Nogueira, que revela todo fascínio que o escritor baiano exercia naquela intelectualidade. Anteriormente a entrevista houve uma certa polêmica envolvendo o escritor. Uma reportagem do fim de 1970 tem a seguinte chamada: “Teresa Sá Nogueira: foi preciso insultar Jorge Amado”93, com o subtítulo “Jorge Amado: com sucesso na barriga?”. Na entrevista concedia a Mota Lopes, a jornalista acusa Amado de burguês por causa

91 Segundo Sergio Vieira (2010), o Partido Comunista Português, não chegou aos negros e mestiços, somente um moçambicano negro aderiu ao PCP. Os mestiços como Ricardo Rangel, Noémia de Sousa, Craveirinha entre outros, como antes citado, tiveram uma breve experiência em Moçambique com o MUD juvenil. Nas atividades culturais também havia compartimentação da cor, os brancos iam para Associação dos Naturais e os negros e mestiços iam para o Centro e para Associação Africana. Nas décadas anteriores, 1920/1930, houve greves em Moçambique orientadas pelo Partido Comunista, mas esse sequer dava aos operários negros o status de pessoa, ganhavam menos, eram menosprezados pelos operários brancos, para tanto, os negros eram chamados para substituir os brancos durante a greve na Caminhos de Ferro (HONWANA, 2015; MENDONÇA, 2014). Sendo assim, a princípio, o comunismo era considera uma proposta que não comtemplaria o caso de Moçambique. Em 1977, dois anos após a independência, em um contexto que envolvia Guerra Fria e oposição do país ao regime de segregação racial (apartheid) adotada pelos vizinhos, a Frente da Libertação de Moçambique (Frelimo) se tornou um partido de orientação marxista-leninista. 92 Lembrando que com a ascensão da empresa se deu com a ditadura militar, propriedade de um aliado do governo militar, Ruben Berta, o governo do General Castelo Branco revogou as concessões de linhas aéreas da Panair do Brasil, dando a Varig o monopólio dos vôos aéreos internacionais do Brasil 93 Teresa Sá Nogueira: foi preciso insultar Jorge Amado. Tempo, Maputo, 08/11/1970, p. 19- 21.

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da recusa deste em recebê-la e afirma que o romancista só aceitou conceder a entrevista após mandar uma desaforada carta falando que ela e Moçambique haviam lido seus primeiros romances e que pelo conteúdo esperava uma pessoa simpática e acessível. O impasse se revolveu no dia seguinte quando Amado mandou um motorista buscá-la na redação do jornal para o qual trabalhava. Segundo seu relato, este agiu friamente durante o encontro reagindo positivamente somente quando comentou sobre Castro Soromenho94. A entrevista foi publicada em um jornal português não identificado. Dentro dos seus termos, ou seja, com perguntas enviadas previamente e respostas manuscritas95, Amado concede outra entrevista seis meses depois, segundo Mota Lopes, boa parte do texto foi censurado pela PIDE96 e o escritor enviou um bilhete através de Teresa Sá, comentando que era um prazer falar com os amigos de Moçambique, mas que naquela altura não falava sobre o Partido Comunista, pois “muitos camaradas ainda estavam sendo perseguidos”97 e um jornal português que publicou a mesma entrevista apresenta outro indicativo de diálogo ou tentativa de dialogar com intelectuais moçambicanos por parte do romancista, pois mandou um bilhete pedido aos jornalistas o endereço do artista plástico Malangatana Valente que havia lhe enviado uma gravura. Com o sugestivo título “Jorge Amado: filho de Oxóssi continua materialista”, as acusações anteriores se transformam em elogios: afável, esperto, atento, lúcido, bem-humorado. A burocrática entrevista – naquela altura ele pouco lembrava o intelectual dos anos 1930/40, concedia algumas poucas entrevistas, publicava um livro a cada dois anos por contrato e escrevia em raras ocasiões para jornais – é justificada da seguinte maneira: “[...] um monumento baiano, personalidade nacional, é um homem de meia idade, muito rico, realizado, aceite pela sociedade. Tem um nome a defender. É um futuro Premio Nobel” 98. Importante não perder de vista que a entrevista acontece depois do acirramento da censura ditadura militar, com a AI-5 em vigor, portanto alguns temas que eram interessantes aos moçambicanos, justamente os que os atraía na obra de Amado, não puderam ser

94 Nascido em Moçambique o jornalista e escritor Castro Soromenho (1878 –1944), viveu boa parte de sua vida em Angola, passando Portugal e Brasil, onde faleceu. Por intermédio de Jorge Amado que o descreveu como “um grande escritor e um cidadão exemplar", é publicado o romance póstumo A Chaga no Brasil. 95 O que havia se tornado uma prática do romancista que certa vez afirmou “[...] acontece seguidamente o repórter estar interessado em transmitir suas opiniões e não as minha” (Meus livros são a favor do povo e contra a opressão, Folha de São Paulo, 18/08/1977, p.33). 96 Como indicativo da censura, a entrevista foi concedida ao mesmo tempo para jornalista moçambicana e a um jornal português que apresenta uma versão mais extensa da mesma (“Não acredito que chegue um tempo em que a literatura seja relíquia do passado”. Diário Popular, 03/06/1971). 97 Entrevista com José Mota Lopes, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Matola, 22/08/2015. 98Jorge Amado: filho de Oxóssi continua materialista. Tempo. Maputo, 13/06/1971, p. 39.

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desenvolvidos, combinando com uma já consolidada mudança na orientação de sua obra, Tenda dos Milagres de 1969 é o exemplo acabado. Na entrevista, fala sobre a literatura engajada: “Qualquer escritor de nossos países tem de refletir a realidade de seus povos, mesmo que não tenha nenhum engajamento político. Ninguém é obrigado a ser político, mas os escritores devem ser parte de seu povo, a sua voz, sua face”99. Comenta sobre a mudança nos seus livros, afirmando que o que mudou foram as armas de combate que naquele momento estariam mais complexas e eficazes, menos primárias, é reticente ao falar sobre a diferença entre a ditadura Vargas e ditadura militar e revela seu desejo de conhecer a África. Quando questionado sobre a situação de inferioridade social que os negros brasileiros viviam, frente a um comentário da jornalista que afirma que muito disso se devia a condição de escravizados que estes viveram no Brasil, Amado recusa o argumento: Todos os escravos negros contribuíram para a formação da cultura nacional brasileira [...] Você ainda não entende bem o Brasil, se já entendesse saberia que no Brasil há racistas – até na Bahia há racistas - mas não há racismo. A filosofia de vida do povo brasileiro é anti-racista. Quando à posição dos negros ser ainda socialmente ainda inferior, é um problema de classe e não de raça. Recorde-se que há menos de um século os negros eram escravos100.

Pela citação acima, demonstra que não havia abandonado certas concepções marxistas. Também cita Ilya Erenburg como a leitura que mais marcou sua vida, a vitória de Allende e o interesse pela literatura chilena e também que Tenda dos milagres é o livro que resolve uma possível oposição entre materialismo e religiosidade. Na série de entrevistas e reportagens com brasileiros e sobre o Brasil, foram realizadas entrevistas com artistas, como Caetano Veloso, Gal Costa, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, e reportagens com outros considerados de apelo mais popular, como Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria, Juca Chaves, Pelé, Zagallo, além da cobertura do carnaval no Rio de Janeiro. O fato é que certa cultura brasileira fazia contraponto à cultura portuguesa, por exemplo, na capa da edição em que Chico Buarque é entrevistado vem em destaque: “Amália não, Chico sim!, em referência a Amália Rodrigues, cantora portuguesa de fado. Mas também haviam figuras brasileiras não simpáticas para a publicação, como Roberto Carlos, que seria um representante da juventude alienada, Pelé e Wilson Simonal.

99 Jorge Amado: filho de Oxóssi continua materialista. Op. cit., p. 39. 100 Idem, Ibidem, p. 40.

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Jorge Amado é uma referência. Na entrevista de Caetano Veloso é noticiado que o escritor baiano considera seu conterrâneo o maior poeta baiano depois de Castro Alves e na entrevista de Vinicius de Moraes, este é perguntado se conheceu Jorge Amado nos anos 1930: “É, não conhecia, especialmente os problemas sociais do norte e do nordeste. Vim pela primeira vez a Salvador em 42 e Jorge tinha publicado pouco até essa altura. Tudo quando eu conhecia era sob ângulo literário. Quando cheguei aqui e vi as casas de habitação coletiva, a pobreza...” 101. Na entrevista de Pelé, Amado também chega a ser citado. Como demonstração de censura da PIDE, na revista Tempo muitas vezes as páginas da revista vinham em branco; posteriormente, essas folhas foram substituídas por fotografias de Rangel. Mas é interessante notar que não havia impedimentos de noticiar os desmandos de outros governos autoritários pelo mundo como do Brasil, observável nas entrevistas com os artistas brasileiros em que a ditadura militar é citada, há também uma reportagem é dedicada ao desaparecimento do jornalista Rubens Paiva e outra falando sobre o silêncio do cineasta Glauber Rocha, além de notícias sobre a Grécia, Chile, Argentina, Paraguai, a questão Palestina, como também, suas simpatias não são escondidas aos comunistas, Pablo Picasso, Neruda e o líder cubano Fidel Castro. Em outras publicações moçambicanas, foi localizada uma crítica elogiosa do português Julião Quintinha sobre Gabriela, cravo e canela, publicada em Maputo no jornal Diário da Manhã na ocasião de seu lançamento em Portugal102. Na publicação A voz de Moçambique103, foi encontrada uma única citação a Jorge Amado, de 27/12/1964, anunciando o título de seu próximo livro, que seria publicado um ano depois, Dona Flor e seus dois maridos. Mas observo que são obras que tiveram pouca repercussão no país.

Entre ser a-racial e a democracia racial

Chama atenção nas publicações moçambicanas daquele momento uma preocupação com a questão racial. Como no periódico A voz de Moçambique, publicação da Associação dos Naturais de Moçambique, cujos membros eram majoritariamente brancos naturais da colônia, e também na Tempo.

101 Vinicius de Moraes, o poeta. Tempo, Maputo, p. 35. 102 QUINTINHA, Julião. Um notável romance brasileiro: Gabriela, cravo e canela romance de Jorge Amado. Diário da manhã (Maputo), 04/04/1961. 103 Essa publicação surgiu com um viés conservador, mas a partir da década de 1960 seu corpo editorial passa a ser composto por intelectuais opositores ou somente críticos do regime colonial.

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Na Tempo, o Brasil é tido como um “país irmão”, o racismo é abordado em entrevistas, como se vê na entrevista de Jorge Amado. O escritor nega a existência de racismo no Brasil, se valendo da concepção de um certo marxismo ao afirmar que a desigualdade entre brancos e negros é um problema de classe. A mesma questão é colocada para Caetano Veloso, que minimiza o problema e apela para miscigenação: Tem racismo no Brasil: Claro que há. Muito sutil. Talvez não seja uma força activa muito grande, mas no fundo, tem sempre peso [...] Acontece que nem é um problema de sangue negro, que o pessoal aqui nem sabe desse negócio. É que se a pessoa tem aspecto social de classe mais pobre, de descendente de escravo, de tudo isso, que é uma questão de tradição social brasileira [...] Agora isso não quer dizer que aqui não haja um relaxamento muito maior [...] sem agressão. Não tenho visto negro...mas tem visto por aí uns mulatos de cabelo duro, uns milionários mulatos de cabelo duro, com muita brilhantina para alisar. É complicado, isso aí104.

Pelé, quando questionado sobre o sofrimento do povo negro e a existência do racismo no Brasil, nega: “Eu acho que não, tenho quase certeza que não, porque há alguns anos atrás eu nunca mais senti isso, mas há pessoas que senti isso, mas há pessoas que sentiram, no tempo da escravidão, então você vê que houve melhoras, enquanto em outros lugares não houve nenhumas melhoras [...] eu acho que não, não existe” 105. São também apresentados textos sobre o racismo americano, como na resenha crítica do filme Advinha quem vem para jantar (1967)106, protagonizado por Sidney Poltier, que é tido como mistificação do problema racial americano; em outro texto, ponta o fracasso do movimento negro norte-americano de via pacifista após a morte de Martin Luther King, apontando que o legado que os Panteras Negras deixaram demonstrava a ineficiência do sistema capitalista americano em integrar os negros107. Transformada em uma espécie de porta-voz da Frelimo, meses após a independência é apresentado na revista um editorial sobre a problemática racial em Moçambique. O texto conta o caso de um casal estrangeiro formado por mulher negra e homem branco que trabalharam no país onde viveram situações de discriminação e explica as condições históricas para isso: Ficou a imagem que vos olhou quando entraram na Cervejaria: preta com branco é puta, se for preto com branca tem de ser rico ou doutor. Ficou isso que vai levar tempo para acabar [...] O racismo tem tantas formas. Esta é uma delas. E aponta o compromisso do movimento em acabar com a

104 Vem aí o mano Caetano. Tempo, Maputo, 18/04/1971, p. 31 105 Pelé e os meninos. Tempo, Maputo, p. 29. 106 Adivinha quem vem para jantar: um enredo frágil e bastante discutível. Tempo, Maputo, 11/03/1970. 107 A posição das organizações negras nos Estados Unidos. Tempo, Maputo, 10/01/1971, p. 10-11.

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discriminação: ‘Há poucos partidos no mundo que têm combatido o racismo tão bem como a Frelimo’108.

Trajetória similar aparece no A voz de Moçambique, que chega a publicar um texto de Florestan Fernandes, intitulado O drama do negro e do mulato em uma sociedade em transformação109, que traz elementos para compreender a questão racial brasileira e procura desfazer o mito da democracia racial. Em anos anteriores, 1965 e 1966, foi publicado um texto de Albert Einstein110 em que o cientista aponta como situação dos negros se deve a motivos históricos e que a superação do racismo passa pela educação e outro artigo intitulado O orgulho racial: contra a unidade humana111, que critica e argumenta contra os princípios do racismo cientifico. Pouco antes da independência, a concepção frelimista da questão racial é apresentada em editorial com o sugestivo título Para uma sociedade a-racial, em que cita o Brasil, entre as potências mundiais: “em primeiro lugar temos que constatar que independentemente da ideologia das classes no poder são multi-raciais os países mais desenvolvidos do mundo hoje: os Estados Unidos, a URSS, o Canadá, o Brasil, os países da Europa Ocidental são países onde coexistem diversas raças e simultaneamente de uma alta taxa de crescimento econômico” 112. Apesar de a diversidade racial ser fator de progresso social e econômico, o editorial argumenta que raça/cor são conceitos utilizados para acentuar as diferenças sociais. Por isso, a proposta da Frelimo era que em vez de haver uma sociedade multirracial era melhor haver uma sociedade a-racial, em que os homens esquecem da raça para que ela não pese nas relações sociais e econômicas e, por este motivo, Moçambique seria um exemplo para os países vizinhos, que viviam sob o apartheid. Ou seja, em Moçambique houve a imposição de uma nação onde não havia elementos para tal unidade como aconteceu no Brasil, mas por vias diferentes. Assim, a ideologia a-racial e a democracia racial são duas faces da mesma moeda no sentido de tentar suplantar as diferenças em busca de uma harmoniosa convivência entre os diferentes. Em seus últimos números, um mês antes da independência, é expressa pela publicação certa frustação sobre a falta de apoio da grande imprensa brasileira em relação à

108 Raça e cor. Tempo, Maputo, 10/04/1975, p. 28. 109FLORESTAN, Fernandes. O drama do negro e do mulato em uma sociedade em transformação. In: A voz de Moçambique, Maputo, 31/05/1969, p. 4-5;11. 110 EINSTEIN, Albert. A questão negra. In: A voz de Moçambique, Maputo, 07/11/1965, p.8. 111 COSTA, Silvio. O orgulho racial: contra a unidade humana. In: A voz de Moçambique, Maputo, 01/01/1966, p.8. 112 Para uma sociedade a-racial. A voz de Moçambique, Maputo, 06/09/1974, p.2.

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independência de Moçambique, pois Estado de São Paulo, Cruzeiro, Manchete, Jornal do Brasil e O Globo estariam a serviço do regime militar e seriam “fantoche lusitano”, ou seja, a favor do colonialismo. Vitor Tomas narra: “Nós próprios (eu e a Teresa Sá Nogueira), seis meses antes da denúncia universal dos massacres de Wiriamo113, entregamos à revista Veja, de S. Paulo, um dossier de provas e testemunhos desse hediondo crime praticado pelos fascistas de Portugal, seus irmãos ideológicos e companheiros de interesses comuns”. O único apoio parecia ser de algumas figuras do meio acadêmico baiano: Conhecemos admiramos e jamais esqueceremos muitos brasileiros que desde a primeira hora estiveram a nosso lado, contra todas as ameaças. Nomes como Vivaldo da Costa Lima, Guilherme e Yeda Sousa Castro, Walmir, do centro de Estudos afro-orientais da Universidade Federal da Bahia e o seu idealizador Agostinho da Silva e ainda o falecido Reitor dessa universidade Edgar Santos. Homens que estudam, amam e compreendem a problemática africana e que, por isso, tão perseguidos tem sido nesse Brasil que interesseiramente se ‘afirma’, a cada dia que passa, mais ‘africano’ e mais ‘negro’114.

Interessante observar que a afirmação de Tomas sobre o Brasil estar se tornando cada vez mais “negro” e “africano”, ia para o extremo oposto que Jorge Amado postulava naquele momento. Mas como foi observado no capítulo cinco deste trabalho e no início deste capítulo, havia o interesse que a África estivesse mais presente no Brasil. O que se observa nessas publicações é que didaticamente procuravam orientar seu público, formado majoritariamente pela classe média branca colonial, que vivia em um sistema político com racismo enraizado, sobre os equívocos do racismo cientifico. Ambas publicações também procuraram demonstrar a falácia do discurso não racista brasileiro, mito da democracia racial, como também as falhas do sistema norte-americano, justamente por serem sistemas que de diferentes maneiras acentuariam as diferenças entre raças num momento em que o discurso moçambicano, propagado pela Frelimo, apostava na submersão das diferenças raciais e/ou étnicas para formar uma nação.

113 O governo português até hoje não reconhece a existência deste e outros massacres. Segundo consta, em 16 de dezembro de 1972 tropas portuguesas, a mando do Estado, mataram pelo menos 385 pessoas, sem contabilizar os que foram assassinados nos três dias seguintes a invasão e durante interrogatórios, dados levantados pelo historiador Mustafah Dhada. Wiriamu não foi exceção, houveram outros assassinatos em massa promovidos pelo regime colonial, o cineasta brasileiro Ruy Guerra documentou a memória sobre massacre de Mueda ocorrido em 1960, em 1971 aconteceu uma chacina em Mucumbura, província de Tete, e em 1974 ocorreu o ultimo massacre em Inhaminga na região de Beira, que morreram pelo 200 pessoas, muitas mediante tortura pendurados pelos pés durante os interrogatórios, queimadas vivas sem distinção de idade ou gênero. 114 Brasil-Moçambique. A voz de Moçambique, Maputo, 23/05/1975, p.11.

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Jorge Amado, nação e utopia

Em meados dos anos 1980, poucos anos após a independência, em visita a Moçambique, Cremilde Medina escreveu: Há quem encontre grandes barreiras na integração cultural. Atingir a plenitude da mestiçagem parece ainda uma realidade distante da África. Os moçambicanos olham para o Brasil, nesse sentido e idealizam: vocês conseguiram. Dizem eles que esta, a do Brasil é uma independência realizada, uma nação unificada, uma cultura-síntese. E vai dizer que não115.

O fato é que o Brasil, foi uma espécie de farol, um exemplo de como Moçambique podia ser uma nação, pois teria nascido de condições até certo ponto parecidas. Como diz Honwana: “O Brasil que era tão como nós, vinha nas musiquinhas que ouvíamos pelo rádio de válvulas (que trabalhava ligado à bateria de automóvel). Mais tarde, no tempo da Hora Nativa ou da Voz de Moçambique, pelo rádio portátil”116, enquanto as expressões culturais propriamente moçambicanas, como literatura, música e dança, circulavam clandestinamente, como afirma Calane da Silva: O Brasil funcionou de uma maneira muito interessante. Havia, da parte do governo português, uma maneira de amolecer um pouco os nossos corações: pondo música brasileira. Eu uma vez dei uma explicação interessante: nós, negros e mestiços, rejeitávamos a totalidade da cultura portuguesa - no sentido de que ela queria impor-nos o fado na cabeça! [...] Por outro lado não nos deixavam esgrimir publicamente as culturas de que nós éramos originários, seja elas macuas ou rongas – a minha, neste caso, aqui do Sul era ronga. E então parece-me que a cultura e a música brasileira entravam aqui perfeitamente. Portanto davam uma no cravo e outra na ferradura, encaixavam-se perfeitamente a esta miscigenação. Ia aliviando tensões. Ora, bem, ao nível da literatura: nós outros já sabíamos ler e tínhamos acesso a literatura através desses tais livros passados clandestinamente. Aí foi muito bom, foi muito benéfico, sobretudo o Jorge Amado porque nos trouxe também a leitura da sociedade a nível suburbano um bocado parecida. Os tipos humanos que aparecem lá são muito parecidos com nossos tipos humanos suburbanos das prostitutas, dos bêbados, etc. Encaixava-se. E víamos que aquilo podia ser dito, que a realidade podia ser contada, então se se conta lá, porque é que nós não podemos contar daqui? É engraçado, eu lhe ofereci Dos meninos da malanga e ele mandou-me uma carta bonita a referir este aspecto!117.

115 MEDINA, Cremilde de Araújo. Sonha mamana África. São Paulo: Epopeia, 1987, p. 55. 116 HONWANA, Luís Bernardo. Jorge Amado [depoimento], novembro/2015, p. 1 (texto cedido pelo autor). 117 SILVA, Calane. Entrevista. In: LABAN, Michel. Moçambique: encontro com escritores. Lisboa: Fundação Engenheiro Antonio de Almeida, 1998, p. 773-774.

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As obras de Jorge Amado se encaixavam perfeitamente naquele contexto, pois, como afirmou Luís Carlos Patraquim, elas passavam a ideia de presença e resistência, como observamos nos relatos de Honwana: Víamos naquilo que liamos o nosso próprio futuro [...] um modelo daquilo que poderia ser o Moçambique independente [...] a questão racial (não sei como) ficaria resolvida e os grandes heróis [de Jorge Amado] até os víamos aqui na nossa sociedade118. Os livros de Jorge Amado apenas vieram trazer nomes, cheiros, sons e figuras para povoar o Brasil imaginado que, na falta de melhores referências, era a possibilidade que tínhamos de ser outra coisa [...] O Brasil, para nós o país da liberdade, da democracia racial e da igualdade. O país do resgate do homem negro que a América dos blues, com todo o seu swing e os seus heróis do boxe lamentava ainda não ser119.

A democracia racial era vista como o futuro ideal para Moçambique, uma possiblidade para se chegar a tão sonhada igualdade social e racial. Como já dito sobre a cultura brasileira em geral, trazer o Brasil de Jorge Amado era uma forma de negar os valores coloniais, seja através da linguagem que rompia com os padrões formais: “Ele é um dos muito poucos escritores ou, mais genericamente, um dos raros intelectuais que foram capazes de usar a língua portuguesa para ultrapassar o peso dominante da ideologia eurocêntrica na sua forma mais insidiosa e colectivamente mais profunda que é uma sempre-presente e manipuladora herança colonial”120, seja por ser um exemplo de literatura mais ligada a sua terra e a sua gente e que olhava para o povo positivamente, como Cabaço diz a respeito de Jubiabá: [...] foi o primeiro romance que eu li em que os personagens centrais, Antônio Balduíno, seu companheiro o Gordo, o pai de santo Jubiabá e outros, eram biológica e culturalmente negros. Até então, só conhecia o negro como personagem literário nas páginas da literatura colonial de Moçambique [...] Jubiabá foi uma revelação dentro da revelação que representava já a obra de Jorge Amado. Nela descobríamos essa outra África tão distante e tão próxima, tão diversa e tão familiar. Reconhecíamos Moçambique na capacidade de sobrevivência dos deserdados, na interlocução quotidiana com o mundo dos espíritos, na riqueza. Antonio Balduíno representava para mim e outros amigos e colegas o negro moçambicano, livre e inconformado, exemplo do resistente solitário ao autoritarismo colonial121.

118 Entrevista com Luís Bernardo Honwana, concedia a Carla de Fatima Cordeiro, Maputo, 18/11/205. 119 HOWNANA, Luis Bernardo. Jorge Amado [depoimento]. Op. cit., p.1. 120 MOTA LOPES, José. Jorge Amado, escritor africano [depoimento]. Agosto/2015, p. 4 (texto cedido pelo autor). 121 CABAÇO, José Luís. Cavaleiro da esperança (testemunho de um reencontro). In: SANTOS, Flavio Gonçalves dos; RODRIGUES, Inara de Oliveira, BRICHTA, Laila (orgs.). 100 anos de Jorge Amado: história, literatura e cultura. Op. cit., p. 237-238.

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Amado inspirara uma saída para a questão racial e nacional enquanto eles não criavam suas próprias. Utilizando uma expressão de Mia Couto, sua literatura permitiu que os moçambicanos sonhassem em casa, “num momento histórico em que nos faltava ser nação”122, no sentido de fomentar o imaginário coletivo com a ideia de um país possível, sendo o exemplo de colônia de Portugal que deu certo, mesmo naquele momento já conheciam algumas falhas deste ideal: Não tinha ainda ideias sobre como se poderia conquistar a independência de Moçambique e vencer as desigualdades sociais e raciais gritantes que afligiam a colônia, mas o Brasil que nos chegava nas páginas dos seus escritores e de revistas como Cruzeiro e Manchete propunha-se aos nossos olhos como um salto em frente, como um caminho para romper o trágico imobilismo social em que se vivia, como um pais do futuro, simbolizado em Brasília123.

Outro elemento apontado é a africanidade presente em Jorge Amado. Uma característica que o escritor sempre apontava no Brasil é a presença da África; em certa ocasião, em Portugal, Jorge Amado disse a Calane da Silva que a “cultura brasileira é mestiça e o umbigo está na África [...] é a África que marca profundamente tudo aquilo”124, expressão também encontrada em seus manuscritos entrevistas. Como observaremos nas citações abaixo, de José Luís Cabaço e Mia Couto, havia uma identificação Brasil/África que hoje eles observam como uma utopia que foi necessária: [...] elementos de africanidade e pela forca vital dos personagens que afloravam nos textos de seus escritores inspirava e reforçava os sonhos que alimentavam nossa ânsia de liberdade. Construí, naquela época, a imagem mítica de um Brasil alegre e pujante de vitalidade no qual, mau-grado as desigualdades sociais e a persistência de preconceitos, se edificava uma sociedade rica de humanidade125. Mia Couto aponta um triângulo formado por Jorge Amado, África e Brasil:

Era um Brasil todo inteiro que regressava a África. Havia pois uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho qua nunca antes souberamos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado autor que nos chegava mas era um espaço mágico onde nos renascíamos criadores de histórias e produtores de felicidade [...] Os negros, mulatos e brancos brasileiros eram-nos próximos porque os seus deuses falavam, cantavam e dançavam como as nossas divindades126.

122 COUTO, Mia. Sonhar em casa. In: ______. E se Obama fosse africano?; Companhia das letras: São Paulo, 2009, p. 58. 123 CABAÇO, José Luís. Cavaleiro da esperança (testemunho de um reencontro). Op. cit., p. 239. 124 Entrevista Calane da Silva, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, em Maputo, 24/08/2015. 125 CABAÇO, José Luís. Cavaleiro da esperança (testemunho de um reencontro). Op. cit., p. 239. 126COUTO, Mia. Sonhar em casa. Op. cit., p. 58.

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Outros em seus relatos também apontam esse elemento utópico, mítico, a respeito do Brasil, muito fomentado pelas propagandas, como afirmam Calane da Silva e Luís Bernardo Honwana, que alegam que especialmente para a população não branca, o Brasil vinha “muito embrulhado” na propaganda que faziam, pátria do multirracialismo, que o Nordeste seria uma espécie de república negra, Zumbi dos Palmares, algo que foi necessário, pois apontava caminhos: “mas nós sabíamos que a realidade não era aquilo que nós pintávamos, de qualquer maneira era uma alternativa ideológica”127; nesse mesmo sentido segue a fala de Cabaço, “[...] éramos nos quem construíamos o mito: íamos colher, nesse Brasil imaginado, elementos da utopia que precisávamos construir”128. Honwana complementa que em Jorge Amado encontrava uma utopia que não havia nos textos teóricos: “Víamos, particularmente no ciclo inicial do Jorge Amado, aqueles primeiros livros [...] uma proposta ideológica, quer dizer, o indivíduo assumir as suas cores e havia aqueles de nós víamos com simpatia, o mundo novo, toda essa questão da utopia, a gente não encontrava essa utopia nos textos doutrinários”129. Chama atenção também que a imagem de escritor popular que havia no Brasil a respeito de Jorge Amado também aparece Moçambique. Como outrora afirmou Mia Couto, havia uma divisão entre Graciliano Ramos, que “revelava o osso e a pedra da nação brasileira”, e Jorge Amado, que “exaltava a sensualidade e a festa”130. O poeta Luis Carlos Patraquim manifesta sua preferência por Graciliano Ramos e afirma que sua produção era reconhecida como de “melhor qualidade” e, por isso, menos acessível, assim como a produção de Carlos Drummond de Andrade. Sobre Erico Verissimo, em relatos, José Mota Lopes e Luís Bernardo Honwana afirmaram que o escritor gaúcho não era querido pelos membros do movimento anticolonial, pois a leitura de seus romances era associada aos defensores do regime colonial. Sendo assim, enquanto Moçambique não achava seu próprio caminho, o Brasil e muito da imagem fomentada por Jorge Amado serviram de inspiração para a colônia, que naquele momento tinha anseios de se tornar um país, com cultura e identidade próprias. A socióloga Eliane Veras apresenta provocativas indagações sobre a relação Brasil- África-Jorge Amado e aponta como hipótese que o entusiasmo com os romances de Amado se deve ao que chama de “estrutura de sentimento da mestiçagem harmoniosa” presente no

127 Entrevista Calane da Silva, concedia a Carla de Fatima Cordeiro, em Maputo, 24/08/2015. 128 CABAÇO, José Luís. Cavaleiro da esperança (testemunho de um reencontro). Op. cit., p. 240. 129HONWANA, Luís Bernardo, entrevista concedia Carla de Fátima Cordeiro, Maputo, 18/11/2015. 130 COUTO, Mia. Sonhar em casa. In: ______. E se Obama fosse africano?; Companhia das letras: São Paulo, 2009, p. 56.

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imaginário brasileiro a partir da década de 1930131. No caso de Moçambique132, acredito que em parte seja verdade, não tanto pelos romances, mas por toda uma imagem que chega através das revistas semanais, música, ideias lusotropicalistas, etc. É preciso ter em mente que os romances de Amado que chegaram no contexto pré- independência são aqueles da chamada primeira fase, quando seu entusiasmo com a mestiçagem não era manifestado. Os livros a partir de Gabriela cravo e canela não geraram tanta comoção. O que trazia Amado para tão perto, antes da mestiçagem, era a apresentação de sociedade multirracial na qual negros, brancos e mestiços conviviam e construíram juntos um país e a possibilidade de conseguir por meio da mobilização o sonho tão almejado, no caso, a independência, sem abandonar suas próprias referências culturais. O caminho trilhado por Moçambique, liderado pela Frente de Libertação, na tentativa de consolidar uma nação foi o da negação das diferenças, ou seja, apagar qualquer rastro de tribalismo ou regionalismo – “Matar da tribo para fazer a nação” era o lema. Toda e qualquer forma associativa foi fechada no pós-independência, incluindo a Associação dos Naturais de Moçambique, e, consequentemente, seu veículo de informação, A voz de Moçambique, a Associação Africana e sua publicação, O Brado africano, ficando a revista Tempo, que atuava como propagadora dos ideais do novo governo. Como Peter Fry apontou, a retórica do não racismo foi adotada “no sentido de construir uma confiança possível entre pessoas de diversas cores e origens”133, uma nação que negava toda herança colonial portuguesa que utilizou das diferenças étnicas para dominação134, e também fazendo um contraponto a política de segregação racial dos países vizinhos. Como demonstração do não racismo, a equipe de governo do primeiro presidente, Samora Machel, era composta por membros de todos segmentos raciais, inclusive brancos filhos de colonos. O fato é que, ainda hoje, é discutida a existência ou não de uma certa unidade, a ponto de ser chamado de nação, nesse território tão diverso que chamamos Moçambique.

131 SOARES, Eliane Veras (2011); Literatura e estruturas de sentimento: fluxos entre Brasil e África. Sociedade e Estado, n. 26, 2011, p. 95-112. 132 Mestiçagem é um tema cheio de reticências e tabus na sociedade moçambicana. O escritor Mia Couto muito tem escrito sobre mestiçagem em África/Moçambique, que entendo ser diferente da perspectiva de Freyre, Couto não trata da mestiçagem no sentido biologizante, mas no sentido de opor contra essencialismos e reconhecer que diversas matrizes que formaram a cultura africana/moçambicana. 133 FRY, Peter. Pontos de vista sobre a descolonização em Moçambique. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 26, n. 76, 2011, p. 207-211, p. 211. 134 Na ficção, em dois livros são narrados exemplos dessa estratégia e seus dramas, Ualalapi (1987) de Ungulani Ba Ka Khosa e Mulheres de Cinza (2015) de Mia Couto.

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CONCLUSÃO

Das três a uma: Jorge Amado, personagens negros e um território que queria ser nação

“Quase oitenta e dois anos de vida, a maioria deles dedicada à luta contra o racismo...” é essa afirmação que Jorge Amado fez no documentário de João Moreira Salles (1995). No trajeto desta pesquisa fomos percebendo que a questão racial, especialmente o viés do papel do negro e da África na formação nacional, foi adquirindo maior importância tanto na atuação intelectual como na sua produção literária do escritor. Em mais de 40 anos de carreira foram notados rompimentos, continuidades e ambiguidades. De início, percebe-se a adesão de Amado a um pensamento influenciado pelo darwinismo social sobre a inviabilidade de uma nação mestiça muito em voga no período pós- abolição e amplamente divulgado por intelectuais como Paulo Prado, Monteiro Lobato e Nina Rodrigues. Filiado ao Partido Comunista e influenciado pela efervescência cultural do decênio de 1930, se firmou como um dos próceres do chamado romance social, colocando como objetivo de sua literatura a "ida ao povo", ou melhor, um projeto de literatura que fosse a expressão deste. Algo que não mudou durante sua carreira, mas sua percepção de como atingir e o que era seu público se altera significantemente. Amado publica observações sobre a importância do engajamento e critica os que vivem na “torre de marfim”. Reforça a ideia de que seu trabalho está a serviço de uma causa maior, militante e pedagógica, com base em dados do real; assim, o povo deveria ser orientado e a criação literária estaria a esse serviço. Ao mesmo tempo que se aproximara do PCB, o escritor trava um importante dialogo com estudiosos da Bahia, como Arthur Ramos e Édison Carneiro, sobre a questão racial. Todos eles se debruçaram sobre a religiosidade afro-brasileira na tentativa de localizar reminiscências da África no Brasil e a presença do negro na formação nacional. Nesse momento, Amado reconhece a presença de importantes elementos da cultura negra no Brasil, notadamente o candomblé, mas atrelada à concepção pcbista. Sendo assim, a supremacia do problema social frente à questão racial, apontando a necessidade de uma “segunda abolição”, ou seja, a libertação da condição proletário.

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Sobre o mulato/mestiço pouco é comentado; se refere a Lima Barreto e a um pai de santo, seu desafeto, pela cor de pele de forma pejorativa, faz um breve elogio a Roquette Pinto, como aquele que acreditava no mulato e reconhece Gilberto Freyre como estudioso da questão racial via mestiçagem. Notamos seu engajamento à causa de conferir status legal de religião ao candomblé, que culmina na aprovação, no decênio de 1940, de um projeto de lei de sua autoria sobre a liberdade de culto e após seu retorno ao Brasil, na década de 1950, é nomeado como Obá Arolu pelo tradicional terreiro Ilê Opó Afonjá. Mesmo tendo revisto boa parte das suas concepções dos decênios anteriores (1930/1940), chama atenção que uma concepção muito difundida pelos estudiosos baianos acompanhará Amado por sua vida: a superioridade da etnia iorubá-nagô e seus cultos, que, segundo consta, compõe a maior parte da população baiana e a constante reafirmação das reminiscências da África no Brasil, especialmente na Bahia, argumentos que são alicerces do discurso da baianidade. Nos anos 1940, em meio a atuação como deputado da Constituinte e exilio na Europa, o autor escreve para a coluna Hora da guerra, reafirmando os mesmos valores a respeito da função social da arte e do artista, como aquele que não pode ficar indiferente às questões do seu tempo, na qual um dos textos foi dedicado à questão racial, em que, pela primeira vez, apresenta a mestiçagem como elemento singular e primordial da nacionalidade brasileira e uma consequente ausência de preconceito racial, sugerindo que esse preconceito fosse algo trazido do exterior, uma ameaça ariana. Quando ainda era próximo de Arthur Ramos, que na ocasião era chefe da missão da Unesco, projeto que buscou no Brasil pistas para solucionar os problemas de discriminação racial no mundo no contexto do fim da segunda Guerra Mundial e na crítica ao racismo nazista. Nota-se que o afastamento do PCB ajudou a assentar sua percepção sobre a formação da sociedade brasileira, e, consequentemente, da questão racial. Se afirmando constante e veementemente como de esquerda, comunista, materialista e outros termos afins, a democracia que não aconteceu nos países da URSS seria possível no Brasil, mas uma democracia racial nos termos de Gilberto Freyre. A reminiscência da África no Brasil, na percepção do romancista, se dava por intermédio do mestiço, o negro com o português, contando ainda com o indígena e depois o árabe e o japonês, formando o verdadeiro Brasil. Se anteriormente a briga que comprava era em relação à função engajada da literatura, a defesa dessa concepção de formação nacional

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passa a ser a sua bandeira, se opondo a concepção do movimento negro organizado com trocas de acusação de racismo por ambas as partes. Para Amado, a valorização da cultura negra pregada pelo movimento negritude era uma prática racista, enquanto para os militantes negros o não reconhecimento da matriz negra, somente da mestiça, caracterizava a discriminação racial. Na esteira de uma revalorização da matriz africana e de uma política externa nacional, que lançava olhos para o continente africano, Amado atua em defesa da descolonização dos países africanos, dialogando notadamente com intelectuais de colônias francesas e angolanos, acreditando que o futuro do socialismo estava na África. Misturar, fundir e miscigenar eram as palavras para Jorge Amado. Assim observamos que a postura conservadora o acompanhou durante a carreira, partindo do olhar do branco a respeito do negro, muitas vezes em direto confronto com os interesses dessa parcela da população. Se muitas vezes as determinações pcbistas eram tutelares no que se refere ao negro, não é diferente o discurso ideológico que se forma em torno da baianidade, quando intelectuais procedentes de uma elite econômica e cultural são os responsáveis pela difusão de elementos específicos da cultura negra – religião, música, dança, pintura –, transformados em marcas da nacionalidade mestiça em que o negro aparece como um ornamento, não o aceitando como ator político e relegando as desigualdades econômicas. Não deixando de destacar a personalidade agregadora do romancista, que manteve contato amistoso com figuras políticas das diversas tendências e em todos os momentos articulava intelectuais. Em um primeiro momento, com os intelectuais baianos que vivam no Rio de Janeiro no decênio de 1930, como Arthur Ramos e Édison Carneiro, e depois com os que “representavam” a cultura baiana, como Calazans, Carybé e Dorival Caymmi. Manteve diálogo com intelectuais destacados do mundo inteiro, chamando atenção a relação com os anticolonialistas, como os senegaleses Senghor, D’ Aboussier, o português Mário Soares, os angolanos Mário de Andrade, Luandino Vieira e Agostinho Neto e os moçambicanos José Craveirinha, Calane da Silva, entre outros. Lembro ainda que traz a lume dois negros intelectuais que se debruçaram sobre questão racial frequentemente esquecidos, Édison Carneiro e Manuel Querino, que, como afirmou Guimarães, não conseguiram o devido reconhecimento “como ‘homens de ciência’ ou ‘cientistas’, mas apenas como autodidatas, curiosos ou jornalistas [...] lugares possíveis para intelectuais negros, até os anos 1940135”.

135 GUIMARAES, Antonio Sergio. Manoel Querino e a formação do ‘pensamento negro’ no Brasil, entre 1890 e 1920”. Trabalho apresentando ao 28° Encontro Nacional da ANPOCS, Caxambu-MG, 2004, s/p.

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O que se percebe é que o autor troca de panfleto: antes apostava todas suas fichas na superação das desigualdades de classe, e, consequentemente, no advento de uma sociedade socialista; depois, a mestiçagem se torna a chave para a emancipação, sendo o Brasil um exemplo na superação das desigualdades, não percebendo (ou preferindo não perceber) a relação entre democracia racial e racismo. Assim, a tendência conciliadora do brasileiro, sem se envolver em conflitos, é representada na mestiçagem, que seria o nosso ponto positivo e exemplo para o mundo: “A violência ocasional e súbita, até a crueldade, podem ter lugar no Brasil, como em toda parte. Mas o ódio não. O Brasil continuará ser o que é enquanto mantivermos este caminho tão brasileiro136”. Sua formulação, em vários momentos, apresenta ambiguidades, pois ia da negação veemente de existência de preconceito racial no Brasil – “O povo brasileiro é a negação do racismo137” – a afirmação que sua ligação com o candomblé era pela militância antirracista. Em outras ocasiões diferenciava, sem esclarecer exatamente como, racismo de práticas racistas, afirmando que o preconceito de cor estava presente somente na elite nacional. Somado ao fato que durante toda sua carreira afirmou que a problemática racial era decorrente do problema de classe. Em suma, no discurso de Jorge Amado não está presente a valorização da negritude em si, mas a defesa e a exaltação da contribuição cultural negra na constituição da nacionalidade brasileira, nacionalidade que na sua percepção se caracteriza primordialmente pela mescla de várias culturas, notadamente a branca e a negra. Como Gilberto Freyre, Jorge Amado passa a colocar ênfase na interação social e chega à conclusão que no Brasil o conflito é mediado pelas relações pessoais e é justamente isso que daria um caráter diferente a nossa sociedade, encobrindo assim a natureza autoritária das relações como se não existissem grupos sociais, classes sociais e interesses sociais diferentes. Amado nunca deixou o viés ideológico de sua obra, mas sim o alterou. Para tanto, no segundo momento da sua carreira, após Gabriela, cravo e canela, o que muda é a forma: deixa de lado o realismo para adotar o realismo fantástico138, como forma de resolver suas histórias, e o humor, para aliviar as tensões.

136 Jorge Amado em Lisboa numa visita breve. Diário de Lisboa, 20/01/1966. 137 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Op. cit., p. 93. 138 Lembro que das narrativas priorizadas por este trabalho nenhum utiliza deste artificio, mas entre Gabriela, cravo e canela e Tenda dos milagres duas histórias se encaixam nesta classificação: A morte e a morte de Quincas Berro D’agua (1961) e Dona flor e seus dois maridos (1966).

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Sobre a recepção crítica dos romances de Jorge Amado, com exceção de Terras do sem fim, eles nunca sobreviveram a uma exigente analise estética. Mas suscitaram discussões sobre nomenclaturas, processos históricos e ideias que defendiam. Enquanto sua produção é vinculada aos ideais pcbistas a observação tem um alcance mais restrito e os defeitos menos realçados, centrando-se nas discussões levantadas, mas a partir da década de 1940, com críticas que enfatizavam o valor estético, tendência que se consolidou nos anos 1960 e 1970, começa o que Eduardo Assis chama de “crítica da falta”, ou seja, os apontamentos dos defeitos na obra do romancista são constantes, mas não deixam de existir aqueles com críticas meramente elogiosas139. O que se tornou determinante para ampliação da recepção, circulação e divulgação das obras do romancista, o tornando popular, foi a apropriação das suas obras pela indústria cultural em um contexto de amplo desenvolvimento econômico.

Quem é o narrador dos romances de Jorge Amado140?

O narrador, sem exceção, é branco que observa seus personagens de um ponto de vista superior, se considera superior seja moral, econômica, intelectual ou socialmente e, mais que tudo, busca passar uma mensagem, por isso não deixa nada subentendido. A proposta do romancista era escrever uma literatura do povo e para o povo, mas seu narrador não pertence as camadas populares, ainda que no âmbito do discurso não lhe faltasse vontade, pela forma que escreve as histórias e descreve suas personagens isso não acontece. Na única tentativa de fazer do narrador um igual, ou seja, pertencente as camadas populares, Cordeiro, de Cacau, não obteve êxito pecando pelo artificialismo. A partir desse momento, o narrador onisciente, que nos romances apresentados se torna cada vez mais intruso, agregado ao discurso indireto livre, vira sua fórmula narrativa, pois sabe os antecedentes, as

139 Segundo Alves (2001), ao lado dos defeitos estariam Alfredo Bosi, Assis Brasil, Wilson Martins e Walnice Galvão, dos elogios Roger Bastide, que incluo também, Eduardo Portella e Antonio Olinto. Jean Roche (1987) coloca os críticos do escritor em três grupos: os censores que apontam somente aspectos negativos, seja pelo conteúdo ou pela temática, que surgem especialmente depois de Gabriela, cravo e canela; os moderados que contrabalançam as obras da juventude e da maturidade, defeitos e qualidades e os incensadores que seriam Roger Bastide e os bajuladores normalmente militantes comunistas do mundo inteiro. 140 No texto Narrar ou descrever?, Georg Lukács (1965) aponta que o estilo, ou seja, o modo de representar a realidade surge da necessidade histórico-social. Assim, podemos dizer que o modo como é interpretada e representada a realidade se reflete na forma, que é derivada do momento histórico do narrador social. Este é o narrador que, contido na obra literária, fala sobre o seu tempo e vai além do autor para representar o seu segmento social e suas perspectivas históricas e ideológicas. É o narrador social que expressa uma visão de mundo que é resultado da sociedade que forma uma geração ou uma camada social. Portanto, quem fala para nós não é somente escritor, mas todo um contexto, a geração da época em que foi escrito o livro, o narrador social que se reveste de suas personagens.

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entrelinhas, os pressupostos, o futuro e as consequências das ações das personagens, se intromete e faz considerações sobre vida, modos e morais141. Um narrador que não deixa de ser ambíguo, pois ao dar tom épico, ou seja, ao exaltar os feitos heroicos dos desbravadores da terra, nas narrativas Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus abandona em certos momentos a intenção de olhar para os menos favorecidos e justifica a violência dos coronéis, cuja finalidade seria mais nobre que da indústria agroexportadora, colocando, inclusive, a classe trabalhadora como herdeira dos primeiros. Neste trabalho foram analisados o romance que inspirou movimento anticoloniais, Jubiabá, o livro considerado o melhor trabalho pela crítica, Terras do sem fim, o maior sucesso, Gabriela, cravo e canela142, e o romance preferido do escritor, Tenda dos milagres, publicados em momentos diferentes da carreira. Foram analisados, ainda, Cacau e São Jorge dos Ilhéus romances que tratam do ciclo do cacau. O narrador amadiano acompanha pari passu a trajetória do autor e o pensamento sobre o negro, desvelando alguns aspectos. Detentor do pensamento selvagem, a percepção do narrador associa o negro ao primitivismo; o negro só poderia viver no estado primitivo, apresentando assim uma visão preconceituosa, quando o progresso avança é o negro que fica no meio do caminho rogando pragas. A solução pode ser a morte, a loucura, mas não o socialismo. No trato do povo negro é observada uma ênfase na inspiração poética e também o entrelaçamento entre fantasia e realidade, indicando um olhar benevolente a esses personagens, pois os aceita como são. Alguns tenta reformar politicamente, pondo-os no caminho da revolução143, mas a partir de 1958 não sente mais a necessidade disso. O mulato é a encarnação da vitória sobre o racismo, mas reafirma preconceitos, não foge de estereótipos: os personagens negros são marcados pelo sentimentalismo e pela intuição. A exceção é Pedro Archanjo, que supera o intuitivo para escrever de forma comprovável cientificamente um manual em defesa da mestiçagem.

141 Como afirmou Friedman (2002) sobre o discurso indireto livre: “[...] um ponto de vista totalmente ilimitado […] A estória pode ser vista de um ou de todos os ângulos, à vontade: de um vantajoso e como que divino ponto além do tempo e do espaço, do centro, da periferia ou frontalmente. Não há nada que impeça o autor de alternar de um a outro muito e pouco”(p. 173). Walnice Galvão (1976), chamou atenção que o discurso indireto livre respalda a irresponsabilidade nos escritos de Jorge Amado, pois aparece uma voz misteriosa não se sabe de onde que resolve as mais variadas situações. 142 Como já citado Capitães de areia ainda é o romance campeão de vendas no país pelo motivo que é uma obra exigida em exames de vestibular e adotado em escolas de todo país, mas como observamos aqui é inegável o grande apelo popular de Gabriela. 143 Como outrora apontou Táti (1972), “todas as crendices se transformam, numa força superior às teorias, força atávica, mitos que a inteligência do escritor não tenta repelir, ao contrário, recebe-os com prazer, assimila-os, aceita-os inclusive como personagens, ativas e presentes (p. 135) ”.

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A utopia que nos une?

A noção de utopia norteia uma percepção da recepção de Jorge Amado, a esperança calcada na harmonia trazida pela mestiçagem, o teria feito amplamente divulgado e bem-aceito pelo grande público: “[...] seus romances nos leva a discutir a possibilidade de nós, brasileiros, nós sonharmos como capazes de eventualmente dar uma contribuição ao mundo na construção de tempos melhores [...] talvez apenas um milagre cheio de riscos, mas merecedor de alguma atenção: a mestiçagem cultural144”. Utopia que Machado encontra desde de Jubiabá145, uma possível solução no âmbito da cultura. Eduardo Assis, em outros termos, percebe desde o início da produção do escritor baiano, com exceção de O país do carnaval, que a esperança e a utopia que movem seus personagens: “A construção romanesca liga-se [...] ao impulso utópico, que projeta o personagem na busca – ou na consecução – de um destino afirmativo e, mesmo, glorioso146”, ou seja, uma solução política. “Será esse o mundo que todos nós brasileiros gostaríamos de viver147?” pergunta Roberto da DaMatta sobre os livros de Jorge Amado e sua resposta é sim devido ao sucesso de público dos seus livros. Acredito que, na primeira parte da sua produção, sim, os personagens são movidos em busca de uma sociedade igualitária. Mas, em um segundo momento, não, a sociedade ideal é dada como realizada não há rompimentos nem busca de uma outra saída. O que temos é a imagem que essas narrativas passam uma mensagem utópica muito condicionada pelo modo como elas foram apropriadas pelos meios de comunicação. Utopia também foi uma palavra muito ouvida em Moçambique quando se fala em Jorge Amado. Havia uma grande identificação com o Brasil: “Muito orgulhamos, lá no nosso Moçambique, de habitar aquelas páginas que estão no armorial de todas as literaturas148”. Quando a independência parecia ainda distante e à medida que essa possiblidade se tornava real, seus romances passavam uma imagem de Brasil que fomenta um ideal de nação que quando seu próprio caminho foi trilhado o escritor não era mais necessário, pois foram percebendo fissuras no modelo brasileiro de relações raciais, contradições ideológicas do

144 MACHADO, Ana Maria. Romântico, sedutor e anarquista: como e por que ler Jorge Amado hoje. São Paulo: Objetiva, 2006, p. 132. Ilana Goldstein (2008) e Lilia Schwartz (2008) também argumentam sobre este aspecto. 145 Que não estaria presente nos romances Seara vermelha, São Jorge dos Ilhéus e Terras do sem fim. 146 DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Op. cit., p. 250. 147 DA MATTA, Roberto. Dona Flor e seus dois maridos: um romance relacional in: A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rocco: Rio de Janeiro, 1997. 148 SAUTE, Nelson. Khanimambo!. Jornal de letras, artes e ideias, 19/07 a 01/08, 1995.

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Partido Comunista e especialmente a necessidade de se contrapor ao apartheid, política de estado sul-africana. No discurso oficial, Moçambique é a-racial, ou seja, as diferenças étnicas são negadas, por isso, talvez, a leitura de Jorge Amado aparece como algo distante. A necessidade de reconhecer a existência de uma sociedade multirracial/multicultural é vista como necessária149, mas o tema mestiçagem é tratado com ressalvas e reticências. A exemplo da declaração de Luís Bernardo Honwana em conversa sobre o mestiço em Jorge Amado e outros escritores: O mestiço é o negro palatável, é um negro que é aceitável [...] é o tipo que faz síntese [...] continuamos na confrontação entre o eu e o outro e essa confrontação não tem mediação possível, porque a gente recusa o esforço de mediação entre o eu e o outro [...] encontra situações intermedias e essa que a gente levanta como bandeira, isso significa negação, significa não aceitação, significa impossibilidade...150”.

Nota-se que com o tempo e a tomada de outros rumos, os moçambicanos chegaram outras leituras da obra do escritor e até um certo incômodo: “O escândalo é termos de concluir que mesmo na pena de escritores com tão marcada consciência social, se continua a consagrar a ideia de a ‘normalidade’ ser branca. Negro é ‘incidental’. E por isso se assinala151”. Em conversa com Amado, Howana questionou o motivo da caracterização racial dos personagens de cor - em uma sociedade que supostamente não havia distinção racial -; por sua vez, o conciliador escritor: “[...] foi cortez comigo. Tirou-me do embaraço com alguma piada, quiz saber de Moçambique, ofereceu-me um livro autografado e acho que disse por simpatia, quando nos despedimos que ‘a luta continua’...152." Sim, a luta continua...

149 Presente especialmente nas entrevistas de Francisco Noa (2014), Calane da Silva e José Pinto de Sá e no texto de Borges Coelho (2007). 150 Entrevista com Luís Bernardo Honwana, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Maputo, 18/11/205. 151 HONWANA, Luís Bernardo. Jorge Amado [depoimento], novembro/2015, (texto cedido pelo autor). 152 Idem, ibidem, grifos do autor.

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BIBLIOGRAFIA

1) Fontes e acervos consultados

Acervo digital Folha de São Paulo, Folha da Manhã e Folha da Noite (Brasil)

Acervo digital O Estado de São Paulo (Brasil)

Acervo digital O globo (Brasil)

Acervo digital Revista Veja (Brasil)

Arquivo digital da Biblioteca Nacional (Brasil)

Arquivo Histórico de Moçambique (Moçambique)

Biblioteca da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique)

Biblioteca do Instituto Camões (Moçambique)

Biblioteca Nacional de Moçambique (Moçambique)

Fundação Casa de Jorge Amado (Brasil)

Portal digital Casa Comum (Portugal)

Entrevista Calane da Silva, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, em Maputo, 24/08/2015.

Entrevista Carlos Carvalho, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Matola, 13/07/2015, 28/07/2015, 22/08/2015.

Entrevista com José Mota Lopes, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Matola, 22/08/2015.

Entrevista com Luís Bernardo Honwana, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Maputo, 18/11/205.

Entrevista Evangelina Medeiros, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Matola, 28/07/2015.

Entrevista Filemone Meigos, concedida a Carla de Fátima Cordeiro, Maputo, 29/07/2015.

Entrevista Joaquim Salvador, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Maputo, 07/08/2015.

Entrevista José Pinto de Sá, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Maputo, 10/10/2015.

Entrevista Luís Carlos Patraquim, concedia a Carla de Fátima Cordeiro, Maputo, 11/09/2015

Entrevista Sérgio Vieira, concedida a Carla de Fátima Cordeiro, 30/11/2015.

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2) Bibliografia de Jorge Amado a) Livros

AMADO, Jorge. ABC de Castro Alves. São Paulo: Martins Editora [1941] 19__.

AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos. São Paulo: Companhia das Letras, [1986] 2010.

AMADO, Jorge. Cacau. São Paulo: Companhia das Letras, [1933] 2010.

AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. São Paulo: Companhia das Letras, [1958] 2012.

AMADO, Jorge. Hora da guerra: a Segunda Guerra Mundial vista da Bahia. São Paulo: Companhia das letras, 2008.

AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Companhia das Letras, [1935] 2012.

AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que nunca escreverei. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança. Rio de Janeiro: Record, [1942] 1987.

AMADO, Jorge. O menino grapiúna. São Paulo: Companhia das Letras, [1981] 2010.

AMADO, Jorge. O país do carnaval. Rio de Janeiro: Record, [1932]1982.

AMADO, Jorge. O país do carnaval. São Paulo: Companhia das Letras, [1932] 2011.

AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. São Paulo: Companhia das Letras, [1944] 2010.

AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. São Paulo: Martins Editora, [1969] l9__.

AMADO, Jorge. Terras do sem fim. São Paulo: Martins, [1943] 19__.

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Barros (org.). Jorge Amado: Povo e terra. 40 anos de literatura. São Paulo, Martins, 1972.

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AMADO, Jorge. In ALBUQUERQUE, João Lins de. Antônio Olinto – memórias póstumas de um imortal. São Paulo: Editora de Cultura, 2009.

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b) Entrevistas

“Não acredito que chegue um tempo em que a literatura seja relíquia do passado”. Diário Popular, 03/06/1971.

“Não sou papel carbono” (Entrevista concedida a Carlos Soullé do Amaral). Veja. 17/09/1969.

“O 25 de abril foi uma das maiores alegrias da minha vida”. O país, Lisboa, 29/07/1977.

As confissões do ex-comunista Jorge Amado: diante da tv, ele assiste, espantado, ao fim do socialismo (de resto, declara: “meu último ídolo é Stálin”. “Escrevo muito mal”. “Sou Uma Negação Como Contista”): entrevista. [1990]. Paris. Entrevista concedida a Geneton Moraes Neto. Disponível em: http://www.geneton.com.br/archives/000365.html

É preciso viver ardentemente. In: Jorge Amado: seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Álvaro Cardoso Gomes. São Paulo: Abril, 1981, p. 3-34. Entrevista concedida a Antônio Roberto Espinosa.

Entrevista com Jorge Amado. O semanário, 27/11 a 04/12 de 1958, p. 13.

Jorge Amado concorda que elitismo cultural criou no país a “patrulha ideológica”. Jornal do Brasil, 06/11/1978.

Jorge Amado: filho de Oxóssi continua materialista. Tempo. Maputo, 13/06/1971, p. 37-42.

Jorge Amado: sempre fui contra os ricos e os que detém o poder. Diário de notícias. 15/09/1967, p. 5.

Quarenta e cinco anos escrevendo, vinte novelas publicadas. Para que? Para quem, Jorge Amado? Pasquim, 11 a 17/03/1977, p, 15.)

Romance é recriação da vida, história profunda do homem sobre a terra: entrevista. Diário de notícias (Porto Alegre), 02/08/1970.

Jorge Amado (Prêmio Stalin): Felicito Boris Pasternak. Última Hora, 30/10/1958, p. 3.

Jorge Amado em Lisboa numa visita breve. Diário de Lisboa, 20/01/1966.

d) Discursos e manuscritos

A festa para o IV Colóquio Luso-brasileiro e o discurso de Jorge Amado para mãe Senhora. In: SANTOS, Deoscoredes Maximiliano dos (Mestre Didi). História de um terreiro Nagô. São Paulo: Max Lemond, 1988.

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A flor e a poesia nascem da mistura. [S.I.], [19--]. 4f.

Apartheid, o anti-humanismo. Bahia, maio 1983. 2f.

Bahia, capital de todas as Áfricas. [S.I.], [1988]. 3f.

Discurso ao receber o título de Doutor Honoris Causa em Língua e Literatura pela Università degli Studi di Bari, Itália. [S.I.], [1990]. 6f.

Discurso ao receber o título de Doutor Honoris Causa pela Université Lumière Lyon 2, França. [S.l.], 20 maio 1987. 3f.

Discurso de posse na academia brasileira de letras. In: MARTINS, José de Barros (org.). Jorge Amado: Povo e terra. São Paulo, Martins, 1972, p. 3-36.

O Brasil mestiço. [S.I.], 1982. 2f.

Presença da África [Segundo Festival Internacional de Artes Negras. Janeiro/1975. 4f

3) Bibliografia geral a) Cartas e artigos em jornais e revistas

A Aliança Nacional Libertadora realizou o maior comício popular. A manhã, Rio de Janeiro, 14/05/1935.

A influência do africano na língua brasileira. A manhã, Rio de Janeiro, 02/05/1935.

A liberdade de religião será agitada no próximo congresso negro na Bahia. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 29/05/1936.

A posição das organizações negras nos Estados Unidos. Tempo: Maputo, 10/01/1971, p. 10-11.

A vida dos negros no Brasil, A manhã, Rio de Janeiro, 23/05/1935.

Adivinha quem vem para jantar: um enredo frágil e bastante discutível. Tempo, Maputo, 11/03/1970.

Afinal, o que há Jorge Amado. Correio da manhã, 18/04/1970, p. 4.

Albert Camus, leu, gostou e elogiou Jorge Amado. Folha de São Paulo: São Paulo, 18/11/1989.

ALBURQUEQUE, João José Paes de. Três romances. A manhã, Rio de Janeiro, 10/11/1935.

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Amado, autor e a obra. Diário de São Paulo, 01/10/1972.MASINA, Lea Silva dos Santos. Tenda dos milagres. Universitário, outubro/1985.

ANTUNES, Valdir. Sobre a questão da responsabilidade individual e coletiva no culto da personalidade entre nós. Voz operaria, 21/12/1956, p. 5.

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AULICUS, Celius. Para começo de conversa, prato feito não serve. Imprensa popular, 04/11/1956, p. 10.

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BARROS, Jayme. Espelho dos livros. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 13/11/1935.

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CARNEIRO, Édison [Carta] 30.nov.1936, Bahia [para] RAMOS, Arthur, Rio de Janeiro. 4 f . Carta a Arthur Ramos agradecendo o apoio dado à publicação do seu livro Religiões negras e indagando sobre os direitos autorais de Novos estudos afro-brasileiros. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299541.pdf

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