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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

GILBERTO ALVES FAVERY

O IDIOMATISMO MUSICAL DE DOM UM ROMÃO:

UM DOS ALICERCES DA LINGUAGEM DO SAMBAJAZZ NA

BATERIA

Campinas

2018

GILBERTO ALVES FAVERY

O IDIOMATISMO MUSICAL DE DOM UM ROMÃO: UM DOS ALICERCES DA LINGUAGEM DO SAMBAJAZZ NA BATERIA

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Música, na área de Música: Teoria, Criação e Prática.

Orientador: Prof. Dr. Fernando Augusto de Almeida Hashimoto

Este exemplar corresponde à versão final de Dissertação defendida pelo aluno Gilberto Alves Favery e orientado pelo Prof. Dr. Fernando Augusto de Almeida Hashimoto.

Campinas

2018

COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

GILBERTO ALVES FAVERY

ORIENTADOR: FERNANDO AUGUSTO DE ALMEIDA HASHIMOTO

MEMBROS:

1. PROF. DR. FERNANDO AUGUSTO DE ALMEIDA HASHIMOTO

2. PROF. DR. AFONSO CLAUDIO SEGUNDO DE FIGUEIREDO

3. PROF. DR. LEANDRO BARSALINI i

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Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros da Comissão Examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 24/08/2018

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Para Dinian e Julia, com todo meu amor.

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Diógenes Marins Favery (in memorian) e Thaisa Maria Alves Favery, meus irmãos Gigi, Junior e Cecília e nossa grande amiga Juraci pelo amplo apoio irrestrito desde sempre. Ao orientador Prof. Dr. Fernando Hashimoto pelo apoio, confiança e orientações precisas. A Dino Barioni pelo apoio de sempre, e, em especial com a ajuda nas transcrições das músicas; a Guilherme Marques, destacado baterista e motivador da minha vida na academia; a Dhieego Andrade e Mauricio Figueiredo, colegas de mestrado e grande incentivadores. Aos grandes músicos e mestres Afonso Claudio, André Tandeta, Casey Scheuerell, , Chico Batera, Dudu Portes, Lauro Lellis, Lica Cecato, Pascoal Meirelles, Pedro Mauricio Sidoia, Raul de Souza, Nenê, Zé Eduardo Nazario e Tarik de Souza, pelas orientações e entrevistas imprescindíveis no trabalho; em especial a ajuda do músico Jorge Pescara que favoreceu o contato com o produtor, jornalista e crítico musical Arnaldo DeSouteiro, nos concedendo uma extensa e rica entrevista, imprescindível para o levantamento biográfico de Dom Um Romão. Muitíssimo obrigado Arnaldo DeSouteiro! Ao mestre e amigo Bob Wyatt, pelos ensinamentos, apoio e a oportunidade de trabalhar ao seu lado no âmbito acadêmico. Aos professores da Unicamp Manuel Falleiros e Leandro Barsalini pelas contribuições preciosas nas bancas de qualificação e defesa. v Aos professores e pesquisadores: Celso Mojola, Dinho Gonçalves, Emilio Mendonça, Fabio i Bergamini, Hélio Cunha, José Alexandre Carvalho, José Roberto Zan, Leandro Lui, Paulo Tiné, Roberto Saltini, Rubinho Barsotti e Vinícius Barros pelos ensinamentos e inspiração. Aos amigos e músicos: Christiano Rocha, Caio Dohogne, Diego Gil, Helio Ishitani, João Carlos Fávaro, Laura Scheuerell, Marcelo Sampaio, Sergio Lyra e Tato Andreatta. Aos músicos que tocam no meu quinteto: Jarbas Barbosa, Zéli Silva, Dino Barioni, Vitor Alcantara, Ogair Junior, Leo Mitrulis e Robertinho Carvalho. Aos alunos que participaram desse processo comigo: Amaury Filho, Erick Araújo, Davi Boruszewski, Jonathan Mauger e Victor Alencar. Às revisoras Gabriela Nakagawa, Thaisa Maria Alves Favery e Dinian Kfouri, pelas precisas ideias e revisões. À CAPES, Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo financiamento desta pesquisa entre setembro de 2017 a agosto de 2018. Obrigado a todos que contribuíram de forma direta e/ou indireta para a confecção deste trabalho.

RESUMO

Esse presente trabalho investiga os traços idiomáticos característicos da performance do baterista e percussionista Dom Um Romão (1925-2005), observado no período da música brasileira referente ao estilo denominado sambajazz (década de 1960), quando ainda Romão atuava essencialmente como baterista dentro desse contexto musical. O mapeamento do cruzamento de dados advindos de entrevistas, em conjunto com a análise musical de transcrições de faixas selecionadas de dois álbuns referenciais dessa fase, ambos lançados em 1964: O Som do saxofonista J. T. Meirelles, e Dom Um, primeiro álbum solo de Romão, nos permitiu identificar procedimentos idiomáticos recorrentes com uma abordagem bastante peculiar na bateria, conferindo a Dom Um Romão significativa representatividade dentro da segunda geração da bateria brasileira.

Palavras Chaves: Dom Um Romão, percussão, prática interpretativa, bateria, música brasileira.

ABSTRACT

The present work investigates the idiomatic characteristics of the drummer and percussionist Dom Um Romão’s (1925-2005) performance, focused in the period of Brazilian music named sambajazz (1960's), when Romão acted essentially as a drummer within this musical context. The mapping of data raised by the cross-referencing between the interviews performed and the musical analysis of transcripts from selected tracks from the two reference from this period, both released in 1964: O Som, by J. T. Meirelles, and Dom Um, the first solo by Romão, allowed us to identify recurrent idiomatic procedures with a very peculiar approach in the drumset, giving Dom Um Romão a significant representation within the second generation of the Brazilian drumming.

Key words: Dom Um Romão, percussion, interpretive study, drum set, brazilian music.

Índice de Ilustrações Figura 1. álbum: Canção do Amor Demais...... 35 Figura 2. Beco das Garrafas...... 39 Figura 3. Sexteto Bossa Rio no Bottle’s no Beco das Garrafas...... 42 Figura 4. Sergio Mendes com o Sexteto Bossa Rio no Festival da do Carnegie Hall...... 46 Figura 5. Músicos no embarque para o Festival da Bossa Nova no Carnegie Hall...... 47 Figura 6. Capa do álbum: Bossa Nova at Carnegie Hall (1962) Ao vivo no Carnegie Hall..49 Figura 7. Copa Trio com cantando no Bottle´s, no Beco das Garrafas...... 51 Figura 8. Capa do disco Flora é M.P.M. (1964)...... 54 Figura 9. Capa do álbum de : Esquema Novo (1963)...... 61 Figura 10. Capa do álbum Caymmi Visita Tom (1964)...... 62 Figura 11. Capa do CD O Som dos Catedráticos de , 1964...... 64 Figura 12. Capa do álbum O Som de 1964, do grupo Meirelles e os Copa 5...... 65 Figura 13. Foto do Meirelles e os Copa 5 no Beco das Garrafas...... 67 Figura 14. Capa do álbum Dom Um (1964) ...... 70 Figura 15. Gravação do disco solo de Dom Um Romão: Dom Um (1964)...... 72 Figura 16. Fotos de Dom Um Romão no Beco das Garrafas...... 95 Figura 17. Dom Um Romão na gravação do álbum solo: Dom Um (1964)...... 95 Figura 18. Fábrica americana Leed (1923) produzindo peles (empachamento)...... 96 Figura 19. Fábrica americana Leed (1923) montagem das peles de couro animal (calfskin) em aros...... 96 Figura 20. Reconhecidos na foto: A dupla Miéle e Bôscoli...... 99 Figura 21a. Procedimento da raspadeira: preparação do toque...... 110 i Figura 21b. Procedimento da raspadeira: apojatura no tambor...... 110 Figura 21c. Procedimento da raspadeira: toque principal no aro da caixa...... 110 x Figura 22. Notação musical de bateria adotada para esse trabalho...... 111 Figura 23. Introdução de Telefone...... 114 Figura 24. Trecho final da introdução da faixa Telefone...... 117 Figura 25. Trecho da parte (A) e (A`) da faixa Telefone...... 120 Figura 26. Solo de bateria em 20 compassos da faixa Telefone...... 122 Figura 27. Recorte dos compassos 15 e 16 do improviso de bateria em Telefone...... 123 Figura 28. Associação da frase de repinique e “raspadeira” em Telefone...... 125 Figura 29. Associações mão esquerda de Romão com melodia e rítmica do em Birimbau...... 129 Figura 30. Análise motívica e interação da mão esquerda em Birimbau ...... 132 Figura 31. Trecho transcrito da música Birimbau, compasso 13 ao 20...... 133 Figura 32. Ocorrência da “raspadeira”, improviso de piano em Nordeste...... 136 Figura 33a. Variação do procedimento de raspadeira - foto 1...... 137 Figura 33b. Variação do procedimento de raspadeira - foto 2...... 137 Figura 33c. Variação do procedimento da raspadeira - foto 3...... 137 Figura 33d. Variação do procedimento da raspadeira - foto 4...... 137 Figura 34. Relação das intervenções de bateria com a rítmica do improviso de piano em Nordeste...... 139 Figura 35. Ocorrência da “raspadeira” no improviso de saxofone em Nordeste...... 141 Figura 36. Ocorrência da “raspadeira” no improviso de piano em Blue Bottle´s...... 143 Figura 37. Ocorrência da “raspadeira” no improviso de trompete em Blue Bottle´s ...... 146

Figura 38. Compassos 1 ao 4 do 2° chorus do solo de piano na música À Vontade Mesmo...... 148 Figura 39. Padrão tradicional do telecoteco (extraído do livro do Sergio Gomes)...... 161 Figura 40. Transcrição da introdução de Zambeze...... 164 Figura 41. Transcrição da parte (A) 8 compassos de Zambeze...... 165 Figura 42. Parte (B) de Zambeze: compasso 17 ao 24...... 166 Figura 43. Parte (B) de Zambeze: compasso 25 e 26...... 170 Figura 44. Parte (B) de Zambeze: compasso 26 em comparação ao padrão do repinique...173 Figura 45. Segunda exposição do tema parte (A) e (B) de Zambeze...... 175 Figura 46. Segunda exposição do tema parte (A) e (B) de Zambeze ...... 177 Figura 47. Segunda exposição do tema parte (C) e Codeta de Zambeze...... 177 Figura 48. Ocorrências rítmicas em Zambeze: padrão tradicional do telecoteco, variações e improvisação observados na exposição do tema...... 183 Figura 49. Identificação em Zambeze dos padrões de telecoteco, variações e divisões de improvisação em caráter de redução rítmica...... 184 Figura 50. Atividade rítmica da mão esquerda distribuída na bateria em Zambeze ...... 186 Figura 51. Exemplo de classificação motívica dos compassos 7 ao 12 de Zambeze...... 188 Figura 52. Relação da melodia e atividade rítmica exercida pela mão esquerda em Zambeze ...... 190 Figura 53. Relação da melodia e atividade rítmica exercida pela mão esquerda em Zambeze ...... 193 Figura 54. Introdução de : associação da melodia e a rítmica exercida pela mão esquerda...... 196 Figura 55. Transcrição de Vivo Sonhando: melodia e bateria parte (A1)...... 198 x Figura 56. Transcrição de Vivo Sonhando: melodia e bateria parte (A2)...... 200 Figura 57. Transcrição da parte de bateria de Vivo Sonhando...... 202

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

CAPÍTULO 1: BIOGRAFIA ...... 25 1.1 Início: Vida Profissional ...... 25 1.2 Bossa Nova e Sambajazz ...... 30

1.2.1 Marco da Bossa Nova: , Canção do Amor Demais .... 35

1.2.2 Beco das Garrafas: Reduto da Bossa Nova e do Sambajazz ...... 38

1.2.3 Festival da Bossa Nova no Carnegie Hall (1962) ...... 45

1.2.4 Elis Regina e – A convite de Dom Um Romão ...... 51 1.3 Importantes Gravações no Brasil de 1963 a 1965 ...... 59

1.3.1 Samba Esquema Novo (1963) ...... 60

1.3.2 Caymmi Visita Tom (1964) ...... 62

1.3.3 O Som dos Catedráticos (1964) ...... 64

1.3.4 O Som (1964) ...... 65

1.3.5 Dom Um (1964) ...... 70 1.4 Fase Americana (1965) ...... 79 1.5 Fase Europeia (década de 80 e 90) ...... 84 1.6 Retorno ao Brasil (fim da década de 1990 até 2005) ...... 86

CAPÍTULO 2: ESTUDO INTERPRETATIVO ...... 92 2.1 Configurações da bateria de Dom Um Romão ...... 93 2.2 Interação Musical ...... 101 2.3 A “raspadeira” ...... 105

2.3.1 Telefone ...... 113

2.3.2 Birimbau ...... 128

2.3.3 Nordeste ...... 135

2.3.4 Blues Bottle’s ...... 142

2.3.5 Demais Considerações Sobre a Raspadeira ...... 147 2.4 Atividade rítmica da mão esquerda em: exposição temática e na improvisação..149

2.4.1 Zambeze ...... 162

2.4.2 Vivo Sonhando ...... 195

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 207

BIBLIOGRAFIA ...... 213

ANEXO I – EXEMPLOS DE ÁUDIO EM MP3 ...... 224

ANEXO II – DISCOGRAFIA GERAL ...... 225

ANEXO III – INVENTÁRIO IDIOMÁTICO DE DOM UM ROMÃO ...... 244

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INTRODUÇÃO

Os ritmos brasileiros assim como os conhecemos hoje em dia, tiveram sua gênese advinda do papel rítmico que os instrumentos de percussão desempenhavam dentro dos contextos de ritos religiosos, festas, costumes e danças. Distintas populações e povos, como os indígenas, os africanos e os europeus, foram postos em contato a partir da colonização do Brasil, sofrendo uma miscigenação étnica e cultural ao longo dos anos gerando o entrelaçamento de diversos fatores sociais, políticos, culturais e religiosos. Como resultado direto, surgiram novos costumes relacionados às suas respectivas manifestações culturais e, por consequência desse processo, no que tange a música, uma multiplicidade de novos ritmos e melodias se originaram no Brasil, os quais aos poucos foram sendo incorporados na música popular brasileira.

O desenvolvimento da linguagem musical da bateria brasileira teve seu início propriamente dito no século XX, quando a mesma passou a ser associada à música popular praticada no país, através do processo de emulação das vozes dos instrumentos de percussão na bateria - fator que contribuiu para o desenvolvimento do idiomatismo do samba na bateria. 1 O pesquisador Hélio Cunha (2014), em seu trabalho sobre linguagem e interpretação do 3 samba, abordou os aspectos rítmicos, fraseológicos e interpretativos do estilo, contextualizando-os sobre o desenvolvimento e a evolução da bateria no Brasil. Cunha faz a eco a Barsalini (2009) quando ressalta em sua pesquisa que a entrada da bateria em nosso país ocorreu inicialmente em associação musical com as bands, no começo dos anos 20, e, com o passar do tempo, foi se estabelecendo a conexão com a percussão brasileira. Entretanto, Cunha ressaltou um aspecto importante para a nossa pesquisa; foi a partir da ascensão do sambajazz, que houve um desenvolvimento de uma abordagem própria para a bateria, passando a ser tratada como um instrumento único:

No início tratava-se de um instrumento de percussão múltipla com bumbo, caixa clara e prato a dois. Ao longo do século, na medida em que se desenvolveu no contexto da música popular, passou a ser abordado como um instrumento único. No Brasil, assim como em outros lugares do mundo, a bateria foi inserida no contexto musical das jazz bands. Com o passar dos anos, passou também a ser utilizada no contexto musical da nossa música a partir da execução da percussão, sendo ainda

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abordado como instrumento múltiplo. A partir de meados do século XX, o instrumento começa a ganhar uma abordagem própria no contexto do sambajazz e aos poucos também passa a ser abordado como um instrumento único (CUNHA, 2014, p. 13).

Embora estudos que tratem da linguagem musical da bateria brasileira já façam parte da realidade da academia em nosso país, ainda há muito para avançar, e mesmo que a percussão popular brasileira seja reconhecida mundialmente, há uma grande lacuna nos estudos a respeito desse assunto. O mesmo ocorre com a percussão erudita brasileira, como atesta o pesquisador e professor Fernando Hashimoto:

Apesar da percussão popular brasileira ser respeitada e admirada no mundo todo, não acontece o mesmo com a percussão de concerto, ou erudita. O material histórico e documental é falho e escasso. Há poucos registros sobre sua história e poucos estudos sobre a produção de música para percussão no país. Esse primeiro espanto, com o tempo se transformou em indignação e em senso de obrigação pessoal que sinto na manutenção da história e da valorização da percussão sinfônica brasileira (HASHIMOTO, 2003, p. 8).

1 A pesquisa sobre performance em geral no Brasil é recente. A historiografia da 4 linguagem da percussão e bateria vem sendo investigada e construída ao longo dos últimos dez anos. Cabe a nós, pesquisadores da música brasileira, a identificação dos seus principais “atores” dentro desse processo, para que dessa forma, consigamos legitimar e posicionar a contribuição de cada músico com seus respectivos traços idiomáticos característicos para o desenvolvimento da linguagem do seu instrumento, possibilitando assim um entendimento do passado, e suas consequências no presente no que tange a performance musical, e no caso da pesquisa desenvolvida nessa dissertação, em específico, no âmbito da bateria e da percussão brasileira. Pensamento este que vem de encontro ao que expressou o pesquisador Aquino (2014) em sua pesquisa:

Busca-se desta forma contribuir para preencher a lacuna referente ao estudo das trajetórias dos bateristas ligados à consolidação do instrumento no Brasil. Tal interesse se justifica a partir da importância da música popular na formação de uma identidade nacional. Conforme Vianna (1995), tanto uma quanto a outra se constituíram simultaneamente e mutuamente. Além disso, destacamos que a noção

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de “brasilidade” está relacionada, entre outros elementos, a expressões afro- brasileiras, o que na música remete-nos ao universo da percussão, do qual a bateria faz parte. Desta forma, entendemos que estudar a bateria e a percussão no Brasil é, também, estudar o Brasil através da bateria e da percussão. Feitas estas constatações, busca-se apreender tanto o âmbito das práticas quanto o das estruturas musicais. (AQUINO, 2014, p. 16).

Entre as pesquisas desenvolvidas no Brasil, ou ainda em curso, podemos citar diversos trabalhos acadêmicos acerca do mundo da percussão e da bateria brasileira, como por exemplo, os trabalhos de Barsalini, (2009), Bergamini (2014), Barros (2015), Casacio (2012), Cunha (2014), Marques (2013), Damasceno (2016), realizadas dentro do grupo de estudo que investiga a “Percussão Brasileira” na Unicamp, coordenados pelo professor Fernando Hashimoto. Tais pesquisas investigaram bateristas e percussionistas que desenvolveram uma linguagem idiomática no instrumento, contribuindo de forma significativa para evolução da mesma. O presente trabalho está em diálogo direto com todas essas pesquisas já realizadas. Para citar alguns importantes bateristas já estudados, temos: Luciano Perrone (1908-2001), (1941), (1934-1990), Milton Banana (1935-1998), João Batista Pimentel (1930), mais conhecido como Juquinha, Hélcio Milito (1931-2014), Oscar 1 Bolão (1954) e Marcio Bahia (1958). Entretanto, até hoje, não há ainda nenhum estudo 5 sistemático sobre a performance do baterista e percussionista Dom Um Romão (1925-2005), gerando dessa forma uma lacuna dentro do grupo de bateristas ao qual Romão está inserido e que pertenceram à “segunda geração da bateria brasileira” (BARSALINI, 2009), entre eles, alguns citados acima e de grande destaque como: Edison Machado, Milton Banana e Hélcio Milito. Esses bateristas encontraram no sambajazz o ambiente musical oportuno para experimentar uma nova forma de se tocar o samba na bateria, com mais liberdade, criatividade, interação musical, e, nesse sentido, com tal abordagem diferenciada, determinaram uma quebra de paradigma em relação à primeira geração de bateristas, que teve como o seu maior representante o pioneiro Luciano Perrone (MARQUES, 2013).

Idiomaticamente, na bateria, um dos principais procedimentos de performance distintivos em relação a prática musical corrente da primeira geração da bateria brasileira - mais especificamente na condução de samba -, foi a função atribuída ao “prato”. Em termos técnicos na bateria, as mudanças começaram a se processar justamente quando o “prato”

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passou a desempenhar a condução rítmica no samba, transformando-se a partir de então no grande responsável pela manutenção do tempo em um contexto de prática musical coletiva, bem como a do próprio baterista em sua relação com o instrumento. Outro aspecto pode ser ressaltado nesse contexto; o “prato” estabeleceu um papel de elemento de sustentação e de ligação da atividade fraseológica exercida pelas outras vozes rítmicas da bateria quando aplicada nos tambores, caixa, bumbo e pratos de ataque. Tal procedimento de performance é justamente o ponto de mudança em relação aos bateristas da primeira geração (até 1950), em que a condução rítmica era essencialmente feita na caixa e nos tambores (samba batucado), sendo o “prato” da bateria utilizado apenas para sinalizar convenções e não para conduzir o ritmo (BARSALINI, 2009, p. 3).

Com uma carreira estabelecida na cidade do , onde nasceu, cresceu e atuou profissionalmente até os seus 40 anos, Dom Um Romão participou do movimento musical da bossa nova e do sambajazz (década de 1960), e teve uma constante atuação no Beco das Garrafas1, reduto onde esses dois gêneros musicais eram intensamente praticados.

Em 1965, com a ditadura militar instaurada no Brasil, Romão se mudou 1 definitivamente para os Estados Unidos, e no exterior foi um dos bateristas brasileiros que 6 mais gravou discos, sendo superado em termos quantitativos apenas por Airto Moreira, que também migrou para os Estados Unidos em 1968. No fim da década de 70, Romão se transferiu para a Suíça, mas manteve ainda durante algum tempo laços de negócios nos Estados Unidos, deixando em atividade o seu estúdio Black Beans na cidade de Nova Jersey. Em 1999, Romão de passagem pelo Brasil, fez shows, workshops, concedeu entrevistas para revistas e televisão e gravou mais três discos autorais com o produtor carioca Arnaldo

1 O Beco das Garrafas se situava na Rua Rua Duvivier, no bairro de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro e era formado por quatro pequenas boates amontoadas uma ao lado da outra: Little Club, Baccara, Bottle´s e Ma Griffe. Reduto de instrumentistas que se encontravam para realizar jams sessions, O Beco foi o quartel general da bossa nova e do sambajazz. Ruy Castro traçou um paralelo interessante em seu livro: Chega de Saudade (1990): o “Beco das Garrafas esteve para a Bossa Nova assim como o Minton´s Playhouse, o clube da Rua 118, no Harlem, em Nova York nos EUA, esteve para o bebop no começo dos anos 40” (CASTRO, 1990, p. 287).

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DeSouteiro antes de seu falecimento2, aos 79 anos de idade, no dia 26 de julho de 2005 na cidade do Rio de Janeiro, uma semana antes de completar 80 anos de idade.

Dom Um Romão gravou com instrumentistas e cantores renomados na década de 60, tanto brasileiros quanto americanos, como: Antônio Carlos Jobim, Frank Sinatra, , , , Sergio Mendes, Tony Bennet, João Donato, Eumir Deodato, Cannonbal Aderley, J.T. Meirelles, Jorge Ben, Elizete Cardoso, entre outros. Sua discografia por si só já o credenciaria para um olhar investigativo sobre a sua densa e eclética obra, entretanto, mais do que isso, o baterista participou de importantes movimentos musicais tanto no Brasil como nos Estados Unidos, lhe conferindo um valor de grande representatividade dentro do mundo da música, para citar alguns: 1) foi contemporâneo da consolidação do samba como linguagem musical indentitária nacional nas décadas de 30 e 40 (VIANNA, 1995); 2) contribui para o desenvolvimento dos padrões de condução rítmica da bossa nova na bateria (ao lado de Milton Banana e Juquinha), com participação em gravações importantes, com destaque para o álbum Canção do Amor Demais (1958) de Elizete Cardoso, na faixa Chega de Saudade ao lado de João Gilberto (álbum este que é considerado pela crítica musical e pesquisadores como o precursor do movimento da 1 bossa nova no país); 3) participou do importante Festival da Bossa Nova no Carnegie Hall 7 (Nova Iorque) em 1962, com o sexteto Bossa Rio do pianista Sergio Mendes, quando a bossa nova conquistou os americanos e posteriormente o mundo, rompendo as fronteiras territoriais da música brasileira como nunca houvera acontecido antes; 4) foi um dos bateristas mais ativos do Beco das Garrafas, colaborando diretamente na solidificação do estilo que corria paralelo a bossa nova, o sambajazz, na década de 60 (CHICO BATERA, 2016), um dos aspectos que essa pesquisa traz para a discussão; 5) Romão participou do início do movimento fusion3 da música norte americana, como membro de um dos principais grupos

2 Informação proveniente do site: . Acesso em 03/2018. 3 Fusion ou Jazz-rock como também é chamado, é uma forma musical de caráter popular em que a improvisação do jazz moderno é acompanhada pelas linhas de baixo, estilos de percussão e instrumentação provenientes do rock, com forte ênfase em instrumentos eletrônicos e ritmos de dança. A partir da década de 1960 as melodias de jazz também começaram a incluir os ritmos de rock em sua composição, músicos como o trompetista , o baterista Tony Williams, o guitarrista John McLaughlin, o saxofonista e os tecladistas

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dessa vertente na época, o , quando então, em substituição a Airto Moreira que havia gravado o primeiro álbum da banda, seguiu em seu lugar no grupo como percussionista, permanecendo até 1976, contabilizando quatro álbuns gravados, sendo um ao vivo e três em estúdio. Enfim, uma história musical qualitativa e quantitativamente rica, mas Romão foi além, e foi ao lado de Airto Moreira, um dos responsáveis por introduzir o berimbau e outras percussões de mão em contextos jazzísticos nos EUA, mais especificamente ao fusion na década de 1970. O próprio Airto Moreira admitiu em entrevista concedida à Modern Drummer (revista americana especializada em bateria), ter sido influenciado por Dom Um Romão (MODERN DRUMMER, 2000, ed. junho, p. 71).

Enfim, poderíamos investigar vários aspectos da carreira de Dom Um Romão, sua história musical descrita brevemente até aqui demonstra versatilidade e representatividade musical, entretanto, estabelecemos um recorte para essa investigação que se concentra em um ponto específico de sua carreira, a fase pertinente à década de 60, período do auge do sambajazz que colocou em evidência o idiomatismo característico de Dom Um Romão, numa abordagem musical mais livre e criativa de se tocar o samba na bateria.

1 Durante a década de 60, importantes acontecimentos musicais ocorreram no 8 Brasil, mais especificamente no eixo Rio-São Paulo, mas foi em terras cariocas que a bossa nova nasceu, ganhou força e projeção. Em paralelo, mas não distante desse novo estilo musical que estava ligado essencialmente à canção, instrumentistas mais jovens e amantes do jazz, buscavam por uma música mais livre que permitisse a esses músicos mostrarem as suas habilidades de improvisar. Em alguns locais do Rio de Janeiro aconteciam encontros musicais denominados no jargão popular dos músicos de “canjas”, ou ainda jam sessions. Uma das “canjas” mais famosas teve a sua origem aos domingos à tarde no bairro de Copacabana, no bar Little Club. Um pouco depois, em associação com os bares vizinhos Bottle´s, Ma Griffe e Bacara que também passaram a adotar uma programação musical, a região ganhou o nome de

Joe Zawinul, , Larry Young e são grandes representantes da música fusion americana dessa época e que se perpetuam até os dias de hoje, ainda com alguns desses nomes citados em plena atividade como Chick Corea, Herbie Hancock, John MacLaughlin. Disponível em: < https://www.britannica.com/art/jazz-rock>. Acesso em 04/04/2018.

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Beco das Garrafas (RAFFAELLI, 2008, p. 3). Conforme comentamos anteriormente, esses jovens músicos expressavam um sentimento a favor de uma maior liberdade de expressão, e nesse sentido, a improvisação era justamente um dos aspectos mais valorizados nesses encontros. A combinação do ritmo do samba com os elementos precípuos do jazz deu origem ao sambajazz. Importante ressaltar que a expressão “sambajazz” que definiu esse estilo de música acima descrito e praticado na década de 1960, foi um termo cunhado por críticos, jornalistas e pesquisadores posteriormente a esse período, em sua contemporaneidade, o sambajazz recebeu outros rótulos tais como: “samba nova concepção”, “samba novo”, “jazz- samba”, “música popular moderna”, entre outros (DESOUTEIRO, 2016).

O pesquisador Marques em seu trabalho sobre o baterista Airto Moreira contextualizou essa fase do sambajazz:

Amplamente difundida sob o rótulo de sambajazz, esta música instrumental dos anos sessenta foi responsável pela exposição de instrumentistas importantes, cuja atuação nesta época estabeleceria novos padrões de execução musical, tidos então como “modernos” e inovadores em relação às práticas correntes. Foi neste contexto do sambajazz que uma importante geração de bateristas brasileiros se tornou evidente, 1 ao estabelecer novos paradigmas na execução do instrumento no Brasil. Capitaneados pelo baterista Edison Machado (1934-1990), bateristas como Dom Um 9 Romão, Milton Banana, Hélcio Milito, entre outros, tornaram-se um contraponto aos bateristas mais antigos, representados pela figura central do pioneiro Luciano Perrone (1908-2001) (MARQUES, 2013, p. 1).

O cruzamento de dados advindos das entrevistas e de material já publicado, em conjunto com a análise musical de transcrições de faixas selecionadas de dois álbuns ambos lançados em 1964: O Som de J.T. Meirelles e Dom Um, (primeiro trabalho solo de Romão), nos permitiram identificar os elementos musicais recorrentes que caracterizam o idiomatismo de Romão na bateria. Esses dois álbuns escolhidos como objetos de nossa investigação, são apontados como obras representativas do estilo sambajazz (SARAIVA, 2007, p. 11) e Dom Um Romão gravou ambos no ano de 1964, antes de deixar o país rumo aos Estados Unidos.

O sambajazz, conforme já comentado anteriormente, foi praticado inicialmente em jams sessions, com uma abordagem musical que favorecia a parte instrumental, uma espécie de “música dos músicos”. O estilo ganhou espaço ao migrar para bares, teatros e

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festivais de jazz, o que chamou a atenção das gravadoras da época que começaram a produzir discos nesse sentido. O sambajazz teve seu auge num espaço de tempo relativamente curto quando comparado a outros movimentos musicais já ocorridos no mundo. Entretanto, a intensidade e o alcance atingidos com essa nova forma de tocar o samba proposto pelos músicos que cultuavam essa vertente, marcaram definitivamente a nossa música. As modificações foram decisivas na quebra de paradigmas de comportamento no que tange ao papel do baterista frente aos outros instrumentistas de um grupo, abrindo novos caminhos para o idiomatismo da bateria brasileira, essencialmente em relação à condução rítmica e a improvisação. É dentro de toda essa perspectiva musical que iniciaremos nossa investigação acerca do baterista Dom Um Romão.

A metodologia utilizada no trabalho está balizada em dois aspectos: no primeiro, buscamos as informações advindas das entrevistas semiestruturadas, associadas à interpretação dos dados obtidos através das análises musicais das transcrições das faixas selecionadas de nosso recorte musical, as quais evidenciam o idiomatismo característico de Dom Um Romão na bateria. O segundo é a leitura de textos que tratam de estudos interpretativos (performance) relacionados a bateria e a seção rítmica como um todo, em 2 especial a assuntos como métrica, idiomatismo do samba e relações de interação musical 0 (improvisação), estabelecendo dessa forma a fundamentação teórica apropriada para a pesquisa.

Dessa maneira, a dissertação está dividida em dois capítulos: levantamento biográfico e estudo interpretativo.

O levantamento biográfico buscou, primordialmente através de um trabalho de campo em associação ao material já existente, proveniente de artigos, livros, pesquisas e entrevistas feitas no passado com o próprio músico e também com informações disponíveis no meio eletrônico, a reconstrução da história profissional de Dom Um Romão. Importante frisar que encontramos algumas dificuldades em nossa pesquisa na obtenção de fontes primárias devido ao falecimento de Dom Um Romão em 2005. Outro aspecto desfavorável, diz respeito ao fato de Romão ter saído do Brasil há muito tempo, mais precisamente no ano de 1965, estabelecendo um distanciamento do ambiente musical brasileiro e dos amigos, restringindo dessa forma possíveis conexões favoráveis a fontes de informação sobre a sua carreira.

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Contudo, foi possível encontrarmos algumas fontes primárias e secundárias capazes de proporcionar uma coleta de dados satisfatória para uma concisa descrição biográfica. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com músicos, críticos, escritores e produtores que estão inseridos no contexto do sambajazz e que apresentavam alguma ligação com Romão. Identificamos nomes como Arnaldo DeSouteiro (jornalista, crítico de jazz e o último produtor de Romão de 1997 a 2005), Jorge Pescara (contrabaixista que tocou e gravou com Romão no final de sua carreira), André Tandeta (baterista), Chico Batera (baterista), Dudu Portes (baterista), Nenê (baterista), Pascoal Meirelles (baterista), (baterista), Zé Eduardo Nazário (baterista) e Tárik de Souza (escritor e crítico de jazz). Apoiamo-nos também no trabalho do inglês Paul Thompson, A Voz do Passado (1978) para preparação, catalogação e interpretação de dados provenientes das entrevistas feitas com os nomes acima citados.

Sobre a documentação já existente, encontramos matérias e entrevistas concedidas pelo próprio Dom Um Romão para revistas especializadas americanas (Modern Drummer Magazine) e brasileiras (Revista Batera e Modern Drummer - Edição Brasileira); para programas de televisão (Programa Ensaio com Fernando Faro, realizada em 1999); citações 2 em livros: Tem Mais Samba (2003) de Tarik de Souza; dissertações de mestrado de Barsalini 1 (2009), Casacio (2012), Marques (2013), Cunha (2014), Barros (2015), Damasceno (2016), artigos acadêmicos, encartes de álbuns (LP), resenhas e vários meios eletrônicos. Todas as fontes citadas acima, em conjunto com os dados provenientes das entrevistas, contribuíram para que pudéssemos, dentro de um critério cronológico e de relevância histórica musical, pertinente à nossa pesquisa, reconstruir uma adequada biografia de Dom Um Romão. Optamos por detalhar um pouco mais o contexto histórico pertinente aos acontecimentos profissionais da vida de Romão no período compreendido entre o fim da década de 50 e meados da década de 60, mais especificamente o ano de 1964, quando então foram gravados ainda no Brasil, importantes trabalhos da discografia do baterista inseridos no período da bossa nova e do sambajazz. Este período que se inicia nos anos 60 carrega importantes discussões acerca desses dois gêneros musicais, se fazendo necessária a criação de subcapítulos que pudessem dar ênfase às semelhanças e diferenças entre a bossa nova e o sambajazz e à influência de Dom Um Romão sobre elas.

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Seguimos então, evidenciando os relatos históricos musicais mais relevantes da carreira de Romão, através dos seguintes subcapítulos: Marco da Bossa Nova; Beco das Garrafas, Festival da Bossa Nova no Carnegie Hall; Importantes Gravações no Brasil de 1963 a 1965 (com os álbuns Samba Esquema Novo (1963); Caymmi Visita Jobim (1964); O Som dos Catedráticos (1964); Dom Um (1964); O Som (1964)); Elis Regina; Flora Purim; Fase Musical Americana; Fase Musical Europeia e, por fim, O Retorno ao Brasil. Colocamos a discografia completa de Dom Um Romão nos anexos desse trabalho para facilitar a consulta e também para que as pessoas possam conhecer a magnitude da obra desse músico. Para finalizar, construímos um inventário idiomático, com as análises completas de todas as músicas abordadas em nossa discussão musical, apontando todos os procedimentos idiomáticos característicos encontrados acerca da linguagem de Dom Um Romão na bateria.

O estudo interpretativo é o aspecto central dessa pesquisa, pois se trata do processo investigativo da performance de um instrumentista, em que a análise do material musical é primordial, e nesse sentido, envolve diversos aspectos. Dessa forma, dividimos esse capítulo em quatro partes, começando pelas “configurações da bateria de Dom Um Romão”, em que pontuamos algumas premissas importantes, entre elas os aspectos relacionados à 2 sonoridade, que inclui a configuração (informações pertinentes ao set up: material que 2 compõe o instrumento, pratos e peles) e afinação da bateria. Na sequencia discutimos aspectos da “interação musical”, dialogando com alguns trabalhos de pesquisadores sobre o assunto de performance, entre eles, o importante trabalho da pesquisadora Ingrid Monson (1996) em que discutiu as relações intrínsecas e extrínsecas envolvidas no ato da performance, características muito presentes no contexto do sambajazz, já que estamos falando de música instrumental brasileira ligada à improvisação. As outras duas partes desse capítulo são justamente a apresentação dos procedimentos idiomáticos recorrentes característicos de Romão, reconhecidos em sua performance e identificados através de uma escuta seletiva com parâmetros na peculiaridade. São eles: 1) a “raspadeira”4; e 2) atividade rítmica da mão

4 Raspadeira é um nome de cunho popular dado pelos próprios músicos, e que faz alusão ao ato de raspar para executar o toque. Tecnicamente consiste em uma apojatura no aro do tambor com a nota principal executada no aro de caixa. O efeito sonoro é similar e sugestivo a um naipe de tamborim de escola de samba, quando tocado

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esquerda exercida sobre uma base estável, observadas em exposição temática e na improvisação.

Com relação à fundamentação teórica, os capítulos que envolvem a estrutura rítmica - no que tange a conceitos fundamentais como métrica e agrupamento - foram utilizados o trabalho de Lerdahl e Jackendoff, A Generative Theory of Tonal Music (1983); para conceituação de pulso e métrica, consultamos The Rhythmic Structure of Music (1960), dos autores Grosvenor Cooper e Leonard Meyer; para análise rítmica, nos apoiamos no autor Jan LaRue, Guidelines For Style Analysis (1992); e ainda sobre alguns conceitos rítmicos, consultamos o trabalho de Carlos Sandroni, Feitiço Decente (2001) e de Gerhard Kubik, Angolan Traits in Black Music (1979). Para conceitos de forma, estrutura musical e motivos rítmicos, nos fundamentamos respectivamente nos livros de Schoenberg, Fundamentos da Composição Musical (1967), Leon Stein, Structure And Style (1962) e de Terry O´Mahoney: Motivic Drumset Soloing (2004); para modelos de transcrição de solos em contextos jazzísticos, utilizamos os livros de John Riley, The Art of Bob Drumming (1994) e The Jazz Drummers Workshop (2004). No que se refere aos assuntos pertinentes aos ritmos brasileiros, nos apoiamos nos livros de Sergio Gomes em Novos Caminhos da Bateria Brasileira (2008), 2 Oscar Bolão em O Batuque é um privilégio (2003), Edgard Rocca em Ritmos Brasileiros e 3 seus Instrumentos de Percussão (1986) e por fim, Guilherme Gonçalves e Odilon Costa em O Batuque Carioca (2000). Para assuntos relativos à improvisação e as suas relações de interação entre os músicos, consultamos os trabalhos de Jason Stanyek e Fabio Oliveira em Nuances of Continual Variation in the Brazilian Pagode Song “Sorriso Aberto” (2011), Paul Berliner em Thinking in Jazz (1994), e Ingrid Monson em Saying Something (1996). Para discussões acerca de estudos de performance musical, consultamos os trabalhos de Alfred Schutz em seu artigo Making Music Together (1964).

por vários percussionistas e que a resultante gera um som que se remete ao rudimento chamado de Flams. Esse procedimento musical de performance executado por Romão, já foi descrito por alguns bateristas como: Oscar Bolão, e mais recentemente por Pascoal Meirelles. Em entrevista realizada para essa pesquisa em 06/2016, Meirelles cita o nome “raspadeira”, e diz ter visto o próprio Dom Um executando ao vivo esse toque diferenciado e inovador para a época. Ele conclui seu depoimento a respeito desse assunto apontando que a “raspadeira”, se trata de uma marca característica idiomática da performance de Dom Um Romão (MEIRELLES, 2016).

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A estrutura das duas partes que compõe a análise musical propriamente dita possui sempre o mesmo caráter: introduzimos o assunto e em sequência, apresentamos e discutimos os dados musicais pertinentes àquele procedimento, finalizando sempre com uma conclusão complementada, com contextualizações advindas das entrevistas. Sendo assim, decidimos expor os procedimentos musicais de forma ampla e fornecendo as considerações finais a cada subcapítulo permitindo ao leitor uma compreensão mais fluída do texto

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Capítulo 1: Biografia 1.1 Início: Vida Profissional Dom Um Romão nasceu no dia três de agosto de 1925, no Rio de Janeiro e cresceu na zona sul da cidade, no bairro da Gávea. Seu pai, Joaquim Romão, num ato de reverência à tradição religiosa dos santos Cosme e Damião5 - representados por uma imagem com dois homens e uma criança entre eles, chamada de DoUm - batizou seu filho recém- nascido de DoUm. Entretanto os padres da época não permitiram o registro dessa forma, alegando ser “coisa de macumbeiro”, obrigando então Joaquim Romão a modificar o nome de para Dom Um Romão, que assim ficou6.

O contato de Romão com a música veio desde muito cedo, conforme ele mesmo atesta em entrevista realizada para a revista americana Modern Drummer em 1990:

Em casa, costumava ouvir mais música brasileira, mas ouvia também música clássica e jazz. Além do meu pai, todos os meus tios tocavam algum instrumento. Toda minha família era muito musical e todos podiam tocar instrumentos de percussão, então quando eu era criança o primeiro instrumento que eu toquei foi percussão, nessa época eu tinha 8 anos de idade (ROMÃO, apud. MODERN 2 7 DRUMMER, 1990) . 5

Joaquim Romão também baterista e percussionista, foi um grande incentivador do filho em relação à música, sendo praticamente o seu primeiro professor, como revelou o próprio Dom Um Romão. Joaquim tocou em orquestras e gafieiras organizadas em Clubes de tradição da cidade como o Carioca Esporte Clube e no Clube Musical, chegando inclusive a

5 Ao pesquisarmos a tradição religiosa de Cosme e Damião, encontramos referências a uma imagem de um terceiro santo menor agregado entre os dois santos maiores que são Cosme e Damião, ao qual é atribuído o nome de “DOU”, mais popularmente chamado de “DOUM”, que significa o primeiro filho nascido após um parto gêmeo. Entretanto há diferenças nas atribuições dos significados entre a Umbanda, Catolicismo e Candomblé. 6 Depoimento de Dom Um Romão ao programa Ensaio da TV Cultura exibido em 1999. 7 Entrevista realizada com o próprio Dom Um Romão, concedida a Frank Colon para a revista americana Modern Drummer de novembro de 1990.

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ser líder do grupo Tuna Gavelandia8. O jovem Romão, na época com 16 anos, ajudava seu pai a carregar e a montar seu instrumento. Nos intervalos das apresentações da banda de seu pai, Romão sentava na bateria e junto aos outros meninos que estavam por perto na mesma situação, tocavam no intervalo das apresentações. A partir desse momento, começava para Dom Um Romão um contato mais frequente com o instrumento (MODERN DRUMMER, 1990, ed. nov. p. 58).

Em depoimento ao apresentador Fernando Faro no programa Ensaio da TV Cultura (1999), Romão fala sobre essa fase inicial de sua vida na música, do contato com o seu pai e também com outros bateristas da época:

“Eu comecei quando eu tinha 16 anos, já tocava bateria, já ia pra ali pra aqui, papai me ensinou muita coisa, depois aprendi também com os bateristas: Mesquita e Anestauro Américo que trabalhou no Copacabana Palace, eu vivia lá e trabalhei muito com eles” (ROMÃO, apud. Faro,1990).

No início de sua carreira, por volta de 1940, o jovem baterista costumava gravar o 2 disco anual dos enredos das escolas que iriam desfilar no carnaval daquele ano, 6 conforme ele próprio revelou em entrevista à já citada Modern Drummer (1990). A partir do momento em que o processo de gravação no Brasil ofereceu a possiblidade do registro de áudio em pistas diferentes, Romão costumava gravar todos os instrumentos de percussão, e, segundo ele mesmo, se considerava mais um “percussionista baterista” que realmente mergulhou mais intensamente na bateria do samba:

Todos os anos eu fazia parte da banda que gravava os álbuns de Carnaval contendo as músicas das principais escolas de samba que abrangiam as diferentes categorias musicais para os desfiles. Eu fazia a percussão e também a bateria, assim que gravar por cima foi possível, eu era o único músico que colocava todas as percussões nesses

8 Informação proveniente do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, acervo disponível em: < http://memoria.bn.br/pdf/030015/per030015_1935_00105.pdf>. Exemplar proveniente de 06 de janeiro de 1935, n.6, pag. 21. Acesso em 20/03/2017.

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discos. E gravava os três surdos, caixas, vários pandeiros, quatro tamborins, ganzás, agogôs, chocalhos entre outros instrumentos, tudo num só dia. Eu acho que eu sou muito mais um percussionista baterista – um sambista principalmente. Eu realmente mergulhei na bateria do samba – o samba cruzado (MODERN DRUMMER, op. cit., p. 60) 9.

No final da década de 1940, Dom Um Romão começou a tocar em bares e gafieiras, teve trabalhos fixos em importantes casas da noite carioca, como a boate Vogue10, que se situava no limite do bairro de Copacabana e do Leme no Rio de Janeiro, local frequentado pela alta sociedade (políticos, empresários e artistas), como a tradicional família Guinle, com quem Romão possuía um relacionamento de amizade11. Outra casa noturna de destaque desse período foi o Sacha’s Bar12 no Leme, propriedade de Carlos Machado em parceria com o pianista turco Sacha Rubin (s/d), e Romão também fez residência no Sacha’s, tocando com músicos profissionais de destaque na época, como Murilinho de Almeida, o

2 9 Tradução livre do autor: Every year, I was part of the band that put out the official Carnaval album, containing the songs from de major “escolas de samba”, which would then compete in various musical categories during 7 the big Carnaval parade. I did the percussion, as well as the drums. As soon as overdubbing became possible for us, many times I was the only one doing the percussion on these records. I would do three surdos, some caixas, a couple of pandeiros, four tamborins, some whistles, a couple of a-go-gos, a bunch of xocalhos, and some other things-all in one day. I think I´m very much a Brazilian trap drummer-a sambista all the way. I´m really into samba drumming, samba cruzado. 10 Foi fundada em 1946 por Max Stukart, barão nobre austríaco cujo pai foi chefe de polícia da Áustria Imperial, em parceria com Dom Duarte Atalaia, nobre português, dono do prédio. Era o início de uma era: em pouco tempo, a boate revolucionou a vida noturna carioca. Para abrilhantá-la, foram buscar na Europa duas figuras que se tornaram lendárias no Rio. A primeira, o pianista Sacha Rubin, e a segunda, o chefe de cozinha Gregoire Belinzanski, um russo que introduziu três pratos clássicos na cozinha brasileira: o estrogonofe, o frango à Kiev e o picadinho à brasileira. Teve como maior estrela dentre as suas inúmeras atrações o negro norte-americano Louis Colle. Era uma casa eclética, em que se apresentavam frequentemente Silvio Caldas, Ângela Maria, Josephine Premisse, Leny Eversong, Edu da Gaita. No final da noite chegavam com seu tio, o delegado Melo Morais, Antônio Maria e cantora Elisete Cardoso. Havia os bebuns típicos, como Valter Quadros, editor de "O Sombra". E playboys internacionais, como Ali Khan. Havia os maîtres Costa e Milton. A Vogue não era mero local de recreação, mas ponto obrigatório de troca de informações, em que se confabulavam sobre operações cambiais, financeiras, advocacia administrativa e prevaricação. No dia 14 de agosto de 1956, acabou-se a era Vogue. Um incêndio consumiu o prédio. Nele, morreram o jornalista Raul Martins e Warren Hayes, um jovem cantor norte-americano, ainda estudante em Nova York e que fora contratado pelo Barão para uma rápida temporada no Vogue. (NASSIF, O Vogue, e o fim de uma era, Folha de São Paulo, 2005). 11 Informação proveniente da entrevista concedida por Arnaldo DeSouteiro ao autor em 06/2016 no Rio de Janeiro. 12 Carlos Machado, arrendatário do Casablanca, resolveu fundar uma nova boate na Rua Padre Antonio Vieira, com o pianista Sacha Rubin como sócio, nasceu o Sacha', bem próximo ao Vogue. Informação proveniente do site: . Acesso em 02/03/2018.

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cantor oficial do Sacha’s. Interpretando músicas de Cole Porter no disco Seven to Seven no Sacha’s (1958) pela gravadora Sinter, Romão gravou esse álbum com a participação do próprio Sacha Rubin no piano, Cipó (1922-1992) no sax tenor e Szigetti no baixo acústico. A boate Au bon Gourmet foi outra importante casa noturna onde Romão trabalhou. Inaugurada em 1956 pelo Barão de Stuckart, ex-proprietário da boate Vogue, o Au bon Gourmet oferecia atrações internacionais e mantinha fixo o quarteto do pianista Zé Maria, com K-Ximbinho no clarinete, Dom Um Romão na bateria e Egídio no contrabaixo (SARAIVA, 2007, p. 30-31).

Entretanto, foram nos anos 50, por volta de seus 25 anos de idade, que Dom Um Romão conseguiu um trabalho mais estável na profissão quando foi contratado pela orquestra de danças da Rádio Tupi13. Paralelo ao trabalho na Rádio Tupi, Romão continuou gravando com vários músicos, como a cantora Stellinha Egg, o pianista João Donato e o saxofonista tenorista e arranjador Maestro Cipó, seu amigo e com quem inclusive viria a gravar um disco em 1959, Melodias Favoritas da Tela pela gravadora Sinter. O disco inclui standards de jazz, um dos poucos trabalhos que se tem registro de Romão tocando esse estilo14.

Em 1955, sob a iniciativa do baixista Manuel Gusmão, na companhia do próprio Romão e do pianista Toninho, nasceu o Copa Trio, que se tornaria na década seguinte um dos 2 mais importantes trios de destaque do Beco das Garrafas, ao lado do Tamba Trio15. Durante 8

13 Publicado pelo jornalista Marcelo Pinheiro e disponível em: < http://brasileiros.com.br/colunas-e-blogs/Cinco grandes álbuns da MPB/ blog quintessência>. Acesso em 13/022017. 14 Informação proveniente do site: < https://www.discogs.com/Maestro-Cip%C3%B3-featuring-Dom-Um- Romao-Melodias-Favoritas-Da-Tela/release/9855497>. Acesso em 23/02/2018. 15 O Tamba Trio foi um conjunto musical formado no Rio de Janeiro na década de 1960. Composto originalmente por Luiz Eça (piano, vocal e arranjos), Bebeto Castilho (contrabaixo, flauta, sax e vocal) e Hélcio Milito (bateria, percussão e vocal). O trio acompanhou diversas cantoras, entre elas: Maysa e depois a numa temporada na boate Manhattan, atuando ao lado de Luiz Carlos Vinhas(piano) e (violão). Atuou também no Beco das Garrafas e foi um dos grupos que começou o movimento do sambajazz no reduto da Bossa Nova e do Sambajazz, no começo dos anos 60. A partir de 1967, com a entrada do baixista Dório Ferreira, Bebeto passaria a atuar apenas como flautista, transformando assim o trio no quarteto Tamba 4. Dois anos depois, com a saída de Luiz Eça, que formaria o seu grupo "A Sagrada Família", o pianista Laércio de Freitas entrou em seu lugar. O quarteto duraria até 1970. O Tamba Trio retornou com os três integrantes originais só em 1971, gravando dois discos pela gravadora RCA. Em 1976 começou mais um hiato e, quatro anos depois, o grupo voltou, fazendo apresentações e gravando o LP "Tamba Trio 20 Anos de Sucessos", lançado em 1982. A partir de 1989, o baterista Rubens Ohana, que já participara do Tamba Trio, reintegrou-se ao conjunto, substituindo Hélcio Milito. O grupo continuou até 1992, quando faleceu Luiz Eça. O trio também acompanhou os cantores , , Nara Leão, Sylvia Telles, , João Bosco e Simone, entre outros. Informação proveniente de: dissertação de mestrado de Lucas Casacio: Hélcio

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um encontro entre (1938), pianista de Rio Claro (interior de São Paulo), e Dom Um Romão em São Paulo, acompanhado da cantora Flora Purim, então sua esposa na época, no bar Baiúca no centro da cidade, surgiu o convite de Romão para que Salvador ingressasse no Copa Trio, substituindo o pianista Toninho que iria deixar o grupo.

Em entrevista para a extinta revista e site Brasileiros, do jornalista e pesquisador Marcelo Pinheiro, Dom Salvador revela detalhes sobre esse encontro que resultou no convite para ingressar no Copa Trio:

“Muito tímido, nunca me oferecia para tocar em jams, mas acabei dando uma canja no bar Baiúca, em uma noite em que estavam lá a cantora Flora Purim e o baterista Dom Um Romão, casados na época. Eles faziam uma temporada em São Paulo, e ficaram super entusiasmados quando me viram tocar. A Flora me chamou e disse: ‘Se você quiser morar no Rio, meu marido tem um conjunto, o Copa Trio, e o pianista está saindo”. Em 15 dias, eu estava morando lá. Uma virada na minha vida. “Não sei o que seria de mim se não fosse esse encontro e o convite de Dom Um e Flora” (SALVADOR, apud. PINHEIRO, 2012)16.

O Copa Trio tocou por um bom tempo quase que todas as noites no Beco das 2 Garrafas e também em programas de TV e de rádio da época. Infelizmente, o Trio não chegou 9 a registrar oficialmente um álbum próprio, se concentraram mais em gravar com artistas, lançá-los e acompanhá-los ao longo de seus quase dez anos de existência. Pode-se dizer que foram muito bem sucedidos nessa empreitada, pois tiveram participações de Elis Regina, Jorge Ben, Flora Purim e o grupo vocal Quarteto em Cy. Existe somente um único registro fonográfico do Copa Trio, gravado no ano de 1964, em formato de coletânea, produzido em um concerto beneficente no teatro do Jornal O Globo. O evento foi gravado ao vivo com a participação dos seguintes artistas: Luiz Henrique, Os Cariocas, Rosana Toledo, Jorge Ben e o

Milito: levantamento histórico e estudo interpretativo - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012; outra fonte consultada disponível em: . Acesso em 14/05/2017. 16 Entrevista dada incialmente a extinta revista e site Brasileiros do jornalista e crítico musical Marcelo Pinheiro. Trecho reescritos atualmente no endereço: < http://showlivre.com/blog/a-evolucao-da-musica-brasileira-no- piano-de-dom-salvador> Acesso em 07/06/2018.

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Tamba Trio. O álbum intitula-se, É Tempo de Música Moderna17, lançado pela gravadora Philips em 1964 com o registro da faixa: Meu Fraco é Café Forte do pianista Dom Salvador18.

Arnaldo DeSouteiro19 revelou em entrevista ao autor que cogitou promover uma gravação do já extinto Copa Trio por volta dos anos 1999-2000, no que poderia ser uma reedição do grupo depois de quase 40 anos em relação à primeira formação. Seria então o primeiro álbum solo do Copa Trio. Infelizmente, essa ideia não foi adiante por alguns problemas de logística dos músicos. Dom Um Romão faleceu em 2005, encerrando a possiblidade de um registro fonográfico daquele que foi um dos trios de destaque da bossa nova e principalmente do sambajazz, ao lado de outros importantes trios de sambajazz como Tamba Trio, Tema 3D, Tenório Jr., entre alguns outros que contribuíram para a consolidação de um gênero musical que mudou a maneira dos músicos tocarem a música instrumental corrente da época (MARQUES, 2013).

1.2 Bossa Nova e Sambajazz 3

A cena musical do fim dos anos 50 e começo dos anos 60 era muito intensa, a 0 febre dos trios tomou conta do eixo Rio-São Paulo. Vários trios de sambajazz tiveram a oportunidade de registrarem seus trabalhos com composições próprias ou releituras, como aponta o pesquisador José Domingos Raffaelli20 em seu artigo: A História do Sambajazz

17 Gravação disponível no em: . Acesso em 7/08/2017. 18Informação proveniente do site Brazilliance, do editor Andreas Dünnewald. Disponível em: < https://brazilliance.wordpress.com/category/copa-trio/>. Acesso em 4/03/ 2017. 19 Entrevista concedida por Arnaldo DeSouteiro ao autor em 06/2016 no Rio de Janeiro. DeSouteiro é jornalista, produtor musical, historiador de jazz e de música brasileira. Foi membro da IAJE, International Association of Jazz Educators, importante associação americana dos educadores do jazz dos EUA que foi extinta em 2009. DeSouteiro produziu os últimos três discos de Dom Um Romão, a partir de 1999, quando então o músico passou a trabalhar frequentemente no Brasil, mudando em definitivo para o país no início dos anos 2000. 20 José Domingos Raffaelli (1936-2014) foi crítico de música, considerado um dos nomes mais importantes do Brasil na análise e difusão do jazz. Entusiasta da música instrumental, Raffaelli soube valorizar e apontar novas tendências. Segundo a Associação Brasileira de Imprensa, foi dele o primeiro artigo sobre a bossa nova publicado em jornal (Última hora), em 1959. Como jornalista especializado em jazz, atuou no GLOBO, de 1987

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(2008). O pesquisador listou alguns álbuns importantes lançados no mercado na formação instrumental de trio (baixo, bateria e piano). Para citar os trios cariocas que eram habitués do Beco das Garrafas e que lançaram seus trabalhos próprios, destacamos: Tamba Trio (LP´s: Tamba Trio, Avanço e Tempo), Sambalanço Trio (LP: Sambalanço Trio), Milton Banana Trio (LP´s: Samba é isso - vol. 4, Balançando e Vê), Salvador Trio (LP´s: Salvador Trio e Rio 65 Trio), Tenório Junior Trio (LP: Embalo), Bossa Três (LP: Bossa Três em Forma), Jorge Autuori Trio (LP´s: Vols. 1 & 2), Primo Trio (LP: Sambossa), além do Embalo Trio, Bossa Jazz Trio e Trio Tema 3D (RAFFAELLI, 2008).

O escritor Ruy Castro em seu livro Chega de Saudade (1990), também contextualizou a importância com que essa formação instrumental de grupo - contrabaixo acústico, bateria e piano - se estabeleceu na noite carioca e paulista. Sobre os trios de destaque que empurraram a música instrumental em São Paulo, Castro cita alguns nomes dentre tantos: Sambalanço Trio, Zimbo Trio, Manfredo Fest, Trio Trio, Jongo Trio, Sansa Trio e Sambrasa Trio. A ascensão dos trios instrumentais segundo Castro foi decisiva para a maior divulgação do jazz e da música instrumental brasileira, criando na época, um cenário muito favorável para a carreira de muitos instrumentistas: 3

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Eles, os trios, tiveram o seu momento de glória e contribuíram para que se ouvisse música instrumental como nunca no Brasil. [...] Os músicos, por seu turno, nunca se viram com um melhor mercado de trabalho (CASTRO, 1990, p. 377).

A partir de 1958, “a bossa nova conquistou imediatamente a juventude brasileira, promovendo uma radical transformação melódico-harmônico-rítmica na nossa música

a 2002. Escreveu também para o Jornal do Brasil (de 1972 a 87) e "O tempo", de Belo Horizonte, entre os anos 2002 e 2003, além de colaborar com diversas publicações nacionais e revistas estrangeiras. Raffaelli também teve longa carreira no rádio, produzindo programas e debates. Sua dedicação ao jazz lhe rendeu prêmios como o concedido pela International Association of Jazz Educators (IAJE), em 1999, como o melhor crítico desse gênero musical fora dos EUA, e outro pelo Centro Cultural San Martin, de Buenos Aires, em 1989. Em 1976, venceu um concurso de abrangência internacional da revista americana Down Beat, uma das maiores publicações dedicadas ao jazz. Disponível em: . Acesso em 10/03/2018.

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popular, inaugurando um período diferente da MPB.” (RAFFAELLI, 2008). Jovens músicos aprendiam a tocar violão, imitavam João Gilberto, ouviam seus discos e cantavam baixinho. Entretanto, existiam outros que queriam algo mais enérgico, que se interessavam por , saxofones, trompetes, contrabaixo, baterias, e ouviam o que de mais moderno se fazia no jazz americano, mas sem excluir o samba do contexto. Numa analogia, podemos traçar um paralelo de significação, em que a bossa nova está para o cool jazz21, assim como o sambajazz está para o hard bop22 (EVANGELISTA, 2005)23.

J.T. Meirelles, saxofonista e arranjador, um dos principais músicos dessa seara e que liderou o importante grupo Meireles e os Copa 5, com Dom Um Romão na bateria afirmou:

O sambajazz era uma maneira jazzística de tocar samba, já se tocava samba de maneira jazzística antes, nos anos 50, mas depois chegou uma turma nova, com uma mistura diferente, com mais influência do jazz moderno. Nós ouvíamos todos os discos da gravadora Blue Note e assimilávamos aquilo (MEIRELLES, apud. EVANGELISTA, 2005).

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21 O cool jazz nasce com o disco de Miles Davis, Birth of the Cool, de 1949, embora tenha no sax tenorista Lester Young um dos precursores desse estilo. O cool representou uma reação mais cerebral e camerística à tórrida sintaxe do bebop. Entre os expoentes do cool jazz encontram-se Gerry Mulligan, com seu destacado quarteto sem piano, Stan Getz, Chet Baker e Lennie Tristano. Embora mais introspectivo e contido, seria equivocado generalizar e associar o cool jazz com uma espécie de jazz "frio", sem swing ou sem alma. Pode-se encontrar nas gravações cool, ritmos ágeis, solos intensos e sincopas que nada deixam a dever ao bebop. É interessante notar que o mesmo Miles Davis que fundou o cool jazz ainda iria impulsionar outras revoluções estéticas nas décadas que se seguiriam. Disponível em: . Acesso em 07/06/2018. 22 O hard bop também descrito como ou uma extensão do bebop ou uma revolta contra o cool jazz, desenvolveu- se nos anos 50. O estilo desprezou as melodias tecnicamente exigentes do bebop, mas o fez sem abandonar a intensidade, mantendo a pulsação rítmica do bebop e ao mesmo tempo incluindo influência do blues e do gospel. And The Jazz Messengers foram, durante décadas, os expoentes mais conhecido desse estilo e muitos músicos foram criados na chamada "Universidade de Blakey". Nos primeiros grupos de Blakey estiveram o pianista Horace Silver, o trompetista Clifford Brown e o saxofonista Lou Donaldson. Clifford Brown também dividiu a liderança de um grupo com que é considerado um dos melhores quintetos da história do jazz. Vários álbuns desses grupos estão à venda atualmente e todos são recomendados. Miles Davis também gravou vários álbuns nesse estilo durante o começo dos anos 50. Vale citar ainda como expressões do hard bop, o organista Jimmy Smith e o sax tenor Stanley Turrentine (SABATELLA, apud. BRANDT, p.17-18). Informação proveniente de: . Acesso em 08/06/2018. 23 Informação proveniente de resenha feita pelo jornalista Ronaldo Evangelista para o Jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0601200512.htm>. Acesso em 24/05/2017.

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O crítico e produtor Zuza Homem de Melo tem opinião semelhante sobre essa discussão e ainda acrescenta a qualificação do termo “gênero” ao sambajazz:

"É uma música instrumental brasileira que adotou o improviso de forma mais declarada, com mais proximidade da linguagem do bebop. Todos os músicos daquela geração tinham uma ligação com o jazz e entendiam a linguagem do estilo. O interesse deles pela improvisação foi à mola propulsora do sambajazz." Mais do que simplesmente "bossa nova instrumental", como às vezes é definido superficialmente, o sambajazz era um gênero próprio, com características e peculiaridades. Instrumental, bem mais pesada que a bossa nova, muito improvisada, era música desenvolvida em jam sessions em lugares como os bares do minúsculo Beco das Garrafas, em Copacabana, ou a boate Baiuca, no centro de São Paulo (EVANGELISTA, op. cit., 2005).

Ainda sobre contextualizações acerca desse assunto, vale citar uma resenha do crítico musical Bernardo Oliveira, feita para a revista online de crítica musical: Camarilha dos Quatro24, em que o jornalista evidencia as diferenças estilísticas dos dois gêneros musicais em discussão, bossa nova e sambajazz:

3 3 E embora o célebre Beco das Garrafas concentrasse boa parte dos artistas ligados aos dois movimentos, existem diferenças radicais entre eles. Por exemplo, considerando a economia do instrumental e da interpretação um fator precípuo na constituição formal da bossa nova, evita-se a confusão entre ela e o sambajazz. Pois economia não designa adequadamente a música de Dom Salvador, Tenório Jr., Raul de Souza, , Airto Moreira, , Pedro Paulo, entre outros. Pelo contrário. Edison Machado até cunhou um termo distintivo, o “samba no prato”, para designar o som que produziam: muitas vezes barulhento, dinâmico, aberto aos improvisos, lembrava mais os ataques da Orquestra Tabajara, do que as sutilezas harmônicas dos arranjos de Tom Jobim e Roberto Menescal. Portanto, o sambajazz não é “filho indireto da bossa nova”, mas uma espécie de desenvolvimento de vertentes instrumentais da música brasileira [...] Trata-se, portanto, de depreender o ingrediente secreto que diferencia o sambajazz da bossa nova, o torna uma corrente autônoma, e até mesmo contrária, embora contígua em muitos aspectos (sentir-se à vontade no paradoxo é fundamental para compreender o mundo, dizia o geógrafo Milton Santos..) (OLIVEIRA, apud. CAMARILHA DOS QUATRO, 2008).

24 Disponível em: . Acessado em 26/02/2017.

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Nesse paralelo acima traçado por Bernardo Oliveira, o autor apontou as diferenças estilísticas dos dois gêneros em questão, e, embora eles tenham sido contemporâneos e contíguos em muitos aspectos, na verdade possuem um caráter antagônico em termos estético- musicais. Oliveira conclui a sua análise afirmando que o sambajazz é uma espécie de desenvolvimento de vertentes instrumentais da música brasileira.

A pesquisadora Joana Martins Saraiva em seu trabalho “A Invenção do Sambajazz” (2007), listou álbuns que a gravadora Dubas relançou a partir de 2005 e que tem esse caráter de representatividade estilística, apesar de existirem outros pesquisadores que afirmam que esse flerte do samba com o jazz já vinha de muito antes. Nesse sentido Rafaelli traz importantes informações de dados musicais históricos que podem corroborar com aqueles que defendem que a fusão do jazz com o samba é anterior à década de 60:

A semente que germinou essa fusão foi plantada em abril de 1953 pelo Laurindo Almeida e o saxofonista quando gravaram o seminal disco Brasiliense, em . Nesse disco experimental, o violonista brasileiro e o saxofonista de jazz apresentaram uma novidade revolucionária: as improvisações de Shank tocando repertório brasileiro em linguagem jazzística. Em grande forma, Shank adaptou-se 3 inteiramente ao contexto, assentando as bases do que na década seguinte chamariam de jazz samba, mas no Brasil ficou conhecido por sambajazz. O impacto daquele 4 disco em nosso meio musical foi extraordinário, abrindo as portas para um estilo até então inimaginável. Curiosamente, na época um conhecido saxofonista brasileiro declarou enfaticamente que era impossível improvisar sobre música brasileira, porém, posteriormente, ele adotou a improvisação jazzística na temática brasileira dos seus discos (RAFFAELLI, 2008).

Acerca das importantes gravações que determinaram tendências e influenciaram os músicos dessa geração, Raffaelli ainda ressalta:

Outro fator importante precursor do sambajazz no Brasil foi o revolucionário disco Hi-Fi da Turma da Gafieira (1957), com Altamiro Carrilho (flauta), Zé Bodega e Maestro Cipó (saxes-tenor), Raul de Souza (trombone), Sivuca (acordeão), (violão), José Marinho (baixo) e Edison Machado (bateria). Além das improvisações nos solos, a atuação de Edison Machado incorporou uma inovação que causou surpresa, desagrado e controvérsia entre os renitentes cultores do samba: ele utilizou os pratos da bateria em seus estimulantes acompanhamentos, algo totalmente inédito e inconcebível para os músicos da época (ibidem).

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A despeito de qual período o sambajazz se originou e de quem poderia possivelmente levar o crédito desse feito, o importante foi que uma nova forma de se tocar o samba se desenvolveu, mudando as práticas musicais correntes da época, influenciando a música instrumental como um todo. Dom Um Romão está inserido exatamente dentro desse contexto musical, participando concomitante e ativamente da ascensão da bossa nova e do sambajazz.

A seguir, apresentamos um breve relato da história do álbum que foi considerado como marco inaugural da Bossa Nova e que Dom Um Romão teve a sua participação ao lado do baterista Juquinha em Canção do Amor Demais (1958) de Elizete Cardoso, gravando a faixa Chega de Saudade.

1.2.1 Marco da Bossa Nova: Elizete Cardoso, Canção do Amor Demais

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Figura 1. Álbum: Canção do Amor Demais (1958) Fonte: . Acesso em 6/02/2017

No ano de 1957, Dom Um Romão fez parte da Orquestra do Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado do Rio de Janeiro, e, em comemoração aos 50 anos de

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existência do Sindicato, a gravadora Sinter registrou a Orquestra de Danças25 (1957), o segundo álbum da Orquestra. Romão nesse disco dividiu a cadeira da bateria com os veteranos bateristas Hildofredo Correia e Paulinho Magalhães, acumulando experiência para o que viria adiante. No ano seguinte, em 1958, veio o convite para gravar com a cantora Elizete Cardoso o disco Canção do Amor Demais (Figura 1), com músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Esse álbum é considerado o marco referencial do início da bossa nova, já que a batida do violão de João Gilberto - um dos traços característicos marcantes do estilo - aliado a batida leve de bateria estaria pela primeira vez em um registro oficial de uma gravação do estilo.

O pesquisador Ricardo Cravo Albin descreve o pano de fundo que envolveu a concepção desse álbum em seu livro O Livro de Ouro da MPB (2003):

O primeiro encontro dos três mosqueteiros da Bossa Nova: Tom Jobim, Vinicius e João se dariam na boemia noturna. Alias, ao mudar-se para o Rio, em 1957 já com a sua carreira em andamento, Joao Gilberto começou a frequentar a boate Plaza, ponto de encontro de músicos que idealizavam uma nova concepção musical que viria desembocar na Bossa Nova. No ano seguinte, João foi convidado para fazer o 3 acompanhamento ao violão das hoje históricas duas faixas do LP Canção do Amor Demais, em que Elizete Cardoso cantava doze músicas da nova dupla, Vinicius e 6 Tom. Uma dessas era Chega de Saudade, que a seguir viria a tomar forma definitiva na voz do próprio Joao Gilberto, na gravação de um compacto cujo outro lado era Bim Bom, de sua autoria (ALBIN, 2003).

Já citado anteriormente, esse álbum é considerado como um dos precursores da bossa nova e a participação de Dom Um Romão foi crucial para a concepção do padrão rítmico de condução elaborada para esse trabalho, se utilizando muitas vezes da vassourinha (no Brasil também chamado de escovinha)26, percutindo-as na caixa com as suas cerdas, enquanto empregava uma marcação leve com os pés no bumbo e no chimbal da bateria.

25 Disponível em: . Acesso em 23/02/2016. 26 Vassourinha (trad. Inglês) ou escovinha (termo brasileiro), s.f., Pl. Plural de “escovinha”, diminutivo de “escova”. Conjunto de fios de arame finos, com o mesmo comprimento (em média 4,5 polegadas), amarrados ou

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Romão não gravou o disco inteiro, o posto foi dividido com o baterista Juquinha, um dos principais bateristas da bossa nova ao lado de Milton Banana. Romão gravou apenas duas faixas e uma delas foi justamente a faixa Chega de Saudade, que mais tarde seria regravada pelo próprio João Gilberto e alcançaria sucesso mundial como uma das músicas mais representativas do estilo. Analisando tecnicamente e musicalmente as performances de Dom Um Romão e de Juquinha, existem diferenças evidentes entre elas, conforme o próprio Arnaldo DeSouteiro apontou em seu depoimento: “Na faixa Chega de Saudade, fica claro o estilo do Dom Um, nas frases e na força de sua batida, completamente diferente do estilo do baterista Juquinha que era sempre bem mais leve” (DESOUTEIRO, 2016). DeSouteiro, que trabalhou com Romão de 1996 a 2005, foi questionado pelo autor dessa pesquisa sobre a ausência de créditos de participação de Dom Um Romão no referido álbum, e, de como esse fato poderia gerar dúvidas quanto à veracidade da presença do baterista nessa faixa, ao que DeSouteiro esclareceu:

Sempre soube que o Dom Um havia participado desse disco, ele próprio me falou disso várias vezes e tinha muito orgulho de tal participação num disco histórico. O Juquinha também participou do álbum, que obviamente não foi gravado num único 3 dia. Mas na faixa Chega de Saudade fica claro o estilo do Dom Um Romão, nas 7 viradas e na pegada completamente diferente do estilo do Juquinha que era sempre bem mais light. Você fala que na ficha técnica do disco não aparece o nome, mas o LP nunca foi editado com a ficha técnica... nenhum músico foi citado, somente na primeira edição em CD é que aparece uma ficha com músicos que provavelmente teriam participado do disco. Porém, antes disso, ao fazer a compilação A Trip To para a Verve, eu havia colocado a faixa Chega de Saudade, na gravação da Elizeth, com a ficha técnica correta, que obviamente, inclui o Dom Um (ibidem).

fixados numa das extremidades de modo que na extremidade livre as pontas tendam a se afastar, tomando a forma de um ângulo que se abre como um leque ou abano. São utilizadas para percutir instrumentos de pele (sobretudo caixa e pratos) pelos bateristas. Essa técnica de execução, substituindo as baquetas tradicionais, teve origem com os instrumentistas de jazz, na procura de uma percussão mais suave e de uma fricção leve da pel’ para acompanhar as frases musicais. S. Prokofieff [sic] usa escovinhas no prato suspenso em Pedro e o Lobo (1936). Na música popular brasileira podem ser usadas percutindo o casco de timbas com uma das mãos enquanto a outra percute a pele. Conhecidas também como vassourinha são chamadas de brushes, ‘rhythm brushes ou wire brushes [ingl.], spazzola, spazzole, spazzolino, scovolo, scovolo de fil ou scovolo de ferro [ital.], brosse en fil de metal, balai ou balai métallique [fr.], stahlbürste, drahtbürste, jazzbesen, besen e besin [alem.], escovillas [espan.] e metëlochka [russo]. Ver também rute. (FRUNGILLO, 2003, p. 120).

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Ao reconstruirmos a história musical de Dom Um Romão, fica claro que a gravação do álbum Canção do Amor Demais (1964) representou para o músico um importante feito em termos discográficos; portas foram abertas, principalmente com Tom Jobim que o chamou mais tarde para a gravação de dois álbuns produzidos em 1967 nos EUA: A Certain Mr. Jobim pela Warnes Bros., e Wave pela gravadora A&M Records/CTI Records, trabalhos que tiveram bastante repercussão e ajudaram a projetar mais o nome de Dom Um Romão no mercado americano.

Abordaremos a seguir, os relatos históricos musicais que envolveram o célebre Beco das Garrafas. Nome atribuído a uma viela que abrigava algumas casas noturnas, localizada no bairro de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro, que teve seu auge entre o fim da década de 1950 até meados da outra (1960), simbolizando nesse período o reduto da música de qualidade da noite carioca, associado principalmente aos estilos musicais da bossa nova e do sambajazz.

1.2.2 Beco das Garrafas: Reduto da Bossa Nova e do Sambajazz 3 8 O Beco das Garrafas (Figura 2) surgiu em meados dos anos 50 na cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Copacabana, localizado numa rua sem saída - um beco propriamente dito - entre os números 21 e 37 da Rua Duvivier. Sobre a origem do nome, não se tem a plena certeza, mas existe a história comentada pelo escritor Ruy Castro em seu livro Chega de Saudade (Castro, 1990, p.285) que relaciona o barulho produzido pela música dos bares e dos frequentadores na madrugada, com o protesto dos moradores da vizinhança que jogavam garrafas do alto dos edifícios, e, talvez seja por essa razão que Sérgio Porto27 apelidou de

27 Sérgio Marcus Rangel Porto (11 de janeiro, 1923 em Rio de Janeiro - 30 de setembro de 1968) foi um colunista brasileiro, escritor, radialista e compositor. Ele era mais conhecido por seu pseudônimo Stanislaw Ponte Preta. Sergio começou sua carreira jornalística no final de 1940, trabalhando em publicações como revistas e jornais Sombra e Manchete Hora, Tribuna da Imprensa e Diário Carioca. No mesmo período, Tomás Santa Rosa também atuou em vários jornais e boletins informativos como um ilustrador. Foi então que o personagem Stanislaw Ponte Preta e suas crônicas satíricas e críticas nasceu, uma criação de Sergio juntamente com Santa Rosa – primeiro ilustrador do personagem – inspirado pelo personagem Serafim Ponte Grande por Andrade. O Porto também contribuiu para a produção de publicações musicais e escreveu espetáculos musicais para

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“Beco das Garrafadas”, depois abreviado para Beco das Garrafas. Os bares estavam literalmente alocados um ao lado do outro, e sem muito espaço, as quatro casas que compunham o Beco das Garrafas se estabeleceram em apenas 100 metros. Havia o bar Ma Griffe, chamado de inferninho, o único que no início havia prostituição; o bar Bottle's e Baccarat, templos da Bossa Nova (onde Dolores Duran cantava e foi ouvida pela cantora americana Ella Fitzgerald em sua passagem pelo Brasil); e o Little Club, o pioneiro dos chamados pocket shows28, sob o comando da produção da jovem dupla Miéle e Bôscoli29. O Bottle´s e o Little Club eram propriedades de dois irmãos italianos, Alberico e Giovanni Campana que também trabalhavam de garçom do próprio estabelecimento (CASTRO, 1990, p. 285).

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Figura 2. Beco das Garrafas - Fonte: . Acesso em 6/02/2017

discotecas, além de compor a música "Samba do Crioulo Doido" para teatro de revistas. Disponível em: < http://dicionariompb.com.br/sergio-porto/dados-artisticos>. Acesso em 03/05/2018. 28 Apesar de não ter limite de tempo, definimos Pocket Show como uma apresentação curta, em média 40 a 60 minutos, ou, em caso de bandas com muitos membros, uma apresentação com número reduzido de músicos ou mesmo um ensaio aberto para convidados. 29 Shows de curta duração produzidos pela dupla Miéle e Bôscoli no Little Club. Eles introduziram no Brasil um novo conceito de show: o da pobreza de luxe (CASTRO, 1990, p. 285).

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O baterista Chico Batera, em entrevista concedida ao autor, comentou que o Beco das Garrafas foi realmente um polo musical de intenso trabalho da noite carioca dos anos 50 e 60, e que essa época foi realmente o único período em que a música exercida em boates no Rio de Janeiro deu algum dinheiro digno para os músicos. No começo, apenas a boate Ma Grife oferecia música ao vivo, as outras duas casas vizinhas eram bares comuns e uma delas, o Little Club se destacou dentro do Beco nos anos seguintes, oferecendo uma programação musical de distinta qualidade. Seus proprietários, os irmãos Alberico e Geovani Campana foram percebendo que aos domingos, no fim de tarde, acontecia uma jam session ali em frente aos bares, no calçadão, e que a rua parava por conta disso. Esses encontros eram frequentados em sua maioria por músicos amadores e alguns profissionais. Percebendo toda essa grande movimentação de amantes da música e de músicos, e na possibilidade de um ganho financeiro maior, os dois irmãos italianos decidiram ampliar os negócios e compraram o bar ao lado do já existente Little Club, inaugurando rapidamente o Bottle’s bar. O Tamba Trio, em início de carreira com Bebeto, Hélcio Milito e Luizinho Eça, foi a atração principal durante algum tempo no Little Club. Dom Um Romão começava, nesse momento, a tocar no bar ao lado, o Bottle’s, com o seu Copa Trio (CHICO BATERA, 2016). 4 Raffaelli também comenta acerca do cenário musical que se estabelecia ali no 0 Beco das Garrafas nos anos 60, comparando-o com a Rua 52 em Nova Iorque, onde uma espécie de polo musical efervescente reunia os grandes músicos de jazz que se apresentavam diariamente:

Enquanto isso, as noites no lendário Beco das Garrafas, em Copacabana, atraíam plateias de jovens ávidos em ouvir a nova música. Os quatro clubes daquele logradouro (Little Club, Bottle's, Bacará e Ma Griffe) lotavam todas as noites. Nesse particular, o Beco das Garrafas foi à versão nacional da Rua 52, em Nova Iorque, que nos anos 40 foi o polo efervescente onde tocavam os grandes jazz mens da época. Toda a noite acontecia algo novo no Beco, fosse uma nova composição, um arranjo mais elaborado, o aparecimento de um músico ou cantor de talento, e o ambiente fervilhava até alta madrugada (RAFFAELLI, 2008).

A história de Dom Um Romão nos anos 60 se confunde em parte com a própria história do Beco das Garrafas. Romão era uma espécie de “capitão” desse logradouro, tinha

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influência nos trabalhos, e lançou com o seu Copa Trio, cantores como Elis Regina, Flora Purim, Jorge Ben; acompanhou grupos vocais como o Quarteto em Cy, enfim, Romão contribuiu de forma direta na programação musical que acontecia no Beco das Garrafas. O Copa Trio, seu grupo inicial, mais tarde se transformou em Copa 5 com o ingresso de Pedro Paulo no trompete e de J.T. Meirelles, saxofonista tenorista e arranjador, que passou então a dirigir musicalmente o quinteto. Chico Batera também comentou essa fase, contextualizando e apontando Romão como um músico de “proa” da música da bossa nova e do sambajazz:

Eu o conheci no Beco Das Garrafas, ele namorava a Flora Purim, ele já era líder no Botlle´s, um bar no Beco, o “cabeça” era ele, ouvia-se sempre falar no trio do Dom Um Romão. Eu sei que ali no Beco, mesmo que não fosse o nome dele no grupo, era ele que ajeitava as coisas. Negócio de grana, discussões, enfim, essas coisas, têm muita coisa para cuidar, eu me lembro do Dom Um Romão ser sempre uma figura de proa. O Edison Machado, já era um cara tão considerado quanto ele, o Milton Banana também, já tinha fama internacional, já tinham gravado bastante (CHICO BATERA, 2016).

Segundo Chico Batera, Romão agregava em sua personalidade características de 4 liderança, era uma pessoa inquieta, e tinha uma visão de negócios, conforme já comentado 1 anteriormente, ele era próximo do milionário Jorge Guinle30, amizade feita na boate Vogue

30 Filho de Carlos e Gilda, Jorginho Guinle pertenceu à poderosa família Guinle. A fortuna colossal dos Guinle teve como origem os lucros advindos de um armazém de produtos importados fundado pelo patriarca (seu avó), Eduardo Palassin Guinle (1846-1912), no centro do Rio, em 1870. Do comércio batizado como Aux Tuileries, administrado por Eduardo em parceria com seu sócio, Candido Gaffrée (1844-1919), os negócios se ramificaram na construção de estradas e ferrovias e no setor imobiliário. Em 1888, a dupla de empresários deu o passo que os tornaria fabulosamente ricos: conseguiu a concessão para reformar e administrar o Porto de Santos, a caminho de se transformar no escoadouro de toda a produção de café do país. . Durante 92 anos, a família abasteceu seus cofres com o dinheiro advindo da exploração comercial do porto. Além do Palácio Laranjeiras, a família Guinle legou à cidade monumentos como a sede do Parque da Cidade, na Gávea, o casarão da Ilha de Brocoió, na Baía de Guanabara, o Hospital Gaffrée e Guinle na Tijuca, e o mais emblemático de todos os hotéis Copacabana Palace que foi construído em 1923. Era considerado um playboy na melhor essência do termo, ou seja, um homem culto, requintado, bem relacionado e que se orgulhava de nunca ter trabalhado na vida. Além de ter sido um dos playboys mais famosos da história, Jorginho era um grande estudioso de jazz e, em 1953, publicou Jazz Panorama, o primeiro livro sobre jazz escrito no Brasil e reeditado pela editora José Olympio. Em 1997, publicou pela editora Globo Um século de boa vida, contendo suas memórias. Morreu aos 88 anos no Rio de Janeiro na suíte 153 do hotel Copacabana Palace, - onde morou por vários anos após perder todo o seu patrimônio -, decorrente de um aneurisma na veia aorta. Morrer no Copacabana Palace foi o último desejo

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em Copacabana. Com isso o baterista ajudou a trazer para o Beco das Garrafas a presença de pessoas da alta sociedade carioca que valorizaram a frequência do lugar.

Outro músico importante na carreira de Dom Um Romão foi o pianista e arranjador de Niterói, Sérgio Mendes. Com Mendes, Romão gravou em 1961 o disco Dance Moderno pela gravadora Philips, além da participação no II Festival Sul-Americano de Jazz, em Punta Del Leste, Uruguai, integrando o Sexteto Bossa Rio (Figura 3), formado por Paulo Moura (sax), Pedro Paulo (trompete), Octávio Bailly Jr. (contrabaixo), Dom Um Romão (bateria) e Durval Ferreira (violão).

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Figura 3. Sexteto Bossa Rio no Bottle’s no Beco das Garrafas esq. para dir.: Dom Um Romão, Sergio Mendes, Paulo Moura, Durval Ferreira e Pedro Paulo Fonte: . Acesso em 6/02/2017

daquele que foi considerado o último playboy brasileiro. Disponível em , e . Acesso em 17/03/2018.

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O Sexteto Bossa Rio com esta formação mencionada fez residência no Beco das Garrafas, possibilitando o entrosamento necessário para o que seria o auge do grupo: a participação ao lado de um time de músicos brasileiros no importante Festival da Bossa Nova no Carnegie Hall em Nova Iorque no ano de 1962, onde a bossa nova foi apresentada oficialmente pela primeira vez nos EUA, com uma grande repercussão da imprensa americana. Muitos músicos brasileiros permaneceram nos Estados Unidos após o grande sucesso do festival, gravando discos e fazendo shows. Alguns voltaram ao Brasil, mas o evento serviu de trampolim para que músicos como: Tom Jobim, João Gilberto, Sergio Mendes, Milton Banana, Luiz Bonfá, Luiz Henrique, e o próprio Dom Um Romão, abrissem um mercado nos Estados Unidos. O Beco das Garrafas sentiria mais adiante o desfalque desses grandes músicos em sua programação, mesmo que grande parte deles tenha voltado ao Brasil, as suas carreiras já estavam traçadas na conquista do mercado estrangeiro, e o Beco não seria mais o mesmo sem as suas principais atrações que o consagraram.

O clima festivo do Beco das Garrafas não durou por muito tempo e foram vários os fatores que contribuíram para o seu fim em 1966, dentre eles o mencionado desfalque de 31 suas principais atrações; a atenção voltada para o espetáculo de protesto: Show Opinião em 4 32 dezembro de 1964; o surgimento de novos bares como o Zicartola ; o programa de televisão 3 O Fino da Bossa; os festivais da canção no Maracanãzinho, e por fim a abertura do Canecão, que comportava num dia só muito mais gente que todos os bares do Beco das Garrafas juntos durante uma semana inteira de bom movimento33. Em 1964, quando Elis Regina fez sua estreia no Beco das Garrafas com o Copa Trio a convite de Dom Um Romão, com uma

31 O Show Opinião foi uma grande inovação em termos de espetáculo musical e teatral para a época (1965) e causou grande impacto, tanto artístico quanto político, como forma de protestar contra a situação política do país (Klafke, Mariana Figueiró, 2013). 32 O Zicartola foi um restaurante aberto na cidade do Rio de Janeiro pelo compositor e sambista Angenor de Oliveira, o Cartola, e sua mulher Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica. Foi ponto de encontro de sambistas de destaque na cultura brasileira, como Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Aracy de Almeida, e grandes nomes da bossa nova, como Carlos Lyra e Nara Leão. Também foi palco do lançamento de . https://pt.wikipedia.org/wiki/Zicartola. Acesso em 2/02/2018. 33 Informação proveniente da coluna de Renan França para o jornal o Globo em matéria: “Depois de 40 anos fechado, Beco das Garrafas renasce em Copacabana”. Leia mais em: < https://oglobo.globo.com/rio/depois-de- 40-anos-fechado-beco-das-garrafas-renasce-emcopacabana-14511353#ixzz4gdwL7wsJ>. Acesso em 10/05/2017.

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extensa temporada no Little Club, vários artistas que se apresentavam no Beco já não estavam mais por lá. A própria Elis, após seu sucesso no Beco das Garrafas, quando conquistou um público assíduo, foi levada pelo empresário Marcos Lázaro para São Paulo34 a fim de assinar um contrário milionário com a TV Record.

Entre os instrumentistas que tocaram no Beco das Garrafas podemos destacar: Airto Moreira (1941), Baden Powell (1937-200), Bebeto Castilho (1939), Chico Batera (1943), Dom Salvador (1938), Dom Um Romão (1925-2005), Durval Ferreira (1935-2007), Edison Machado (1934-1990), João Palma (1941-2016), Hélcio Milito (1931-2014), Luís Carlos Vinhas (1949-2001), Mauricio Einhorn (1932), Manuel Gusmão (1934-2006), Milton Banana (1935-1998), Paulo Moura (1932-2010), Pedro Paulo (1939), Sergio Mendes (1941), Tenório Jr (1941-1976), Tião Neto (1931-2001), Wilson das Neves (1936-2017). Entre os cantores estão Alaíde Costa (1935), Elis Regina (1945-1982), Claudette Soares (1937), Dolores Duran (1930-1959), Dóris Monteiro (1934), Johnny Alf (1929-2010), Jorge Ben (1942), Leny Andrade (1943), Marisa Gata Mansa (1938-2003), (1937-2012), Sylvia Telles (1934-1966) e (1939-200).

Além de representar o grande palco de lançamento e consolidação das carreiras de 4 grandes nomes da música brasileira, da bossa nova e do sambajazz, vale ressaltar o último e 4 importante aspecto a considerar sobre “O Beco das Garrafas”: foi nele que nasceram os pocket shows da dupla Miéle & Bôscoli e também do dançarino, coreógrafo e cantor Lennie Dale, que foram uma espécie de movimento precursor dos “musicais” na cidade do Rio de Janeiro. Veja a citação abaixo trazida do livro Chega de Saudade (1990) de Ruy Castro em que o autor enaltece a importância do Beco das Garrafas para a música carioca e descreve o pioneirismo das atividades da dupla Miéle & Bôscoli:

Em 1961, de dentro do Beco para fora, essas boates eram, pela ordem, o Little Club, o Baccara, o Bottle´s Bar e o Ma Griffe. Dos quatro, só o Ma Griffe se dedicava

34 Informação proveniente do Blog do Luis Nassif Online, em matéria feita por J.A. Botelho: O Beco das Garrafas e a Bossa Nova. Disponível em: . Acesso em 10/05/2017.

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primordialmente a prostituição, embora também contivesse um piano que, no passado recente, chegara a estar a cargo de Newton Mendonça. As outras três apresentavam simplesmente a melhor música que se podia ouvir ao sul da baia de Guanabara. Duas delas Little Club e Bottle´s eram dos mesmos proprietários, os italianos Giovanni e Alberico Campana, sempre dispostos a patrocinar jovens talentos, desde que eles mantivessem as suas casas cheias, o que não era nada difícil. As duas boates comportavam, estourando, sessenta pessoas cada uma, se estas não usassem paletós com ombreiras e havia muito mais gente do que isso interessada em ver, todas as noites, os pocket shows produzidos pela nova dupla Miéle e Bôscoli. Eles introduziram no Brasil um novo conceito de show: o de pobreza de luxe. Assim como Miéle, que, dois anos antes, tinha apenas uma calça, mas era uma calça de smoking, os shows do Beco tinham grande música, a cargo de artistas que brevemente o dinheiro não poderia comprar, mas todo o resto era de marré deci. A começar pela produção. Miéle e Bôscoli criavam o show, arregimentavam os artistas, escreviam o roteiro, faziam a iluminação (com um único spot e canudos de papel higiénico), projetavam os slides, cuidavam do som (com a ajuda de Chico Pereira) e dirigiam o espetáculo — sem receber por isso e ainda achando ótimo (CASTRO, 1990, p. 285).

A seguir pontuaremos os principais eventos histórico-musicais que envolveram o importante festival da bossa nova em Nova Iorque nos EUA em 1962, realizado no prestigiado espaço dedicado à música de qualidade da época, o Carnegie Hall, e que Dom Um Romão marcou a sua presença com o grupo do pianista Sergio Mendes, fazendo parte desse importante acontecimento musical que significou uma espécie de abertura do mercado 4 americano para a bossa nova brasileira. 5

1.2.3 Festival da Bossa Nova no Carnegie Hall (1962)

Em 1961, dois fatos importantes deram um impulso à música brasileira nos EUA: o primeiro acontecimento está relacionado com os conjuntos American Jazz Festival e o com o trompetista e seu quarteto. Os músicos americanos já com carreira estabelecida, quando na ocasião tocaram no Brasil, conheceram a bossa nova, e, ao retornarem aos Estados Unidos, Gillespie, o trombonista Curtis Fuller, os saxofonistas Coleman Hawkins e Zoot Sims, o flautista Herbie Mann e o pianista Lalo Schifrin, influenciados pelo o que viram e ouviram, gravaram seus respectivos novos álbuns solos com temas em padrões rítmicos de bossa nova. A segunda circunstância que também contribuiu significativamente para o aumento do interesse do mercado americano na música brasileira está relacionada com a grande repercussão do disco Jazz Samba (1962) do saxofonista Stan Getz, trabalho que foi registrado em março de 1962, junto ao quarteto do guitarrista Charlie

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Byrd, e que na época vendeu um milhão e seiscentas mil cópias na primeira semana (RAFFAELLI, 2008).

Foi nesse contexto musical, onde o interesse pela música brasileira (bossa nova) era crescente nos EUA, que no dia 21 de novembro do ano de 1962, Sidney Frey, então presidente da gravadora americana Audio Fidelity35, organizou um concerto trazendo a bossa nova para solo americano em parceira com o governo brasileiro (através do Itamaraty), realizado no templo cultural americano da música em Nova Iorque, o Carnegie Hall (Figura 4).

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Figura 4. Sergio Mendes com o Sexteto Bossa Rio no Festival da Bossa Nova no Carnegie Hall - Nova Iorque (1962) - esq./dir.: Sergio Mendes, Octavio Bailly, Durval Ferreira, Pedro Paulo e Paulo Moura. Fonte: < http://cincomeiasete.blogspot.com/2013/05/bossa-nova-desafinou-nos-eua.html>. Acesso em 6/02/2017

35 Fundada em aproximadamente em 1955 por Sidney Frey, a gravadora lançou o seu primeiro disco comercial estereofônico em novembro de 1957, muito antes de qualquer grande gravadora da época. A Audio Fidelity tornou-se parte da Audio Fidelity Records, Inc. em 1964 e da Audiofidelity Enterprises, Inc.em 1970. Os últimos lançamentos conhecidos da empresa foram em 1984. Em 1997 ela foi comprada pela Colliers Media, que por sua vez foi adquirida pela Margate Enterprises LLC em 2005. O nome Audio Fidelity Records foi licenciado para a Morada Enterprises, que atualmente lança CDs sob o rótulo de Audio Fidelity. O catálogo histórico da Audio Fidelity está sendo lançado pela gravadora da Margate Entertainment, Max Cat Records. Informação proveniente do site: . Acesso em 09/08/2017.

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O Festival da Bossa Nova no Carnegie Hall começou a ser planejado alguns meses antes, quando então Frey veio ao Brasil e conheceu de perto o Beco das Garrafas e os seus principais artistas que por lá se apresentavam. Sua ideia inicial era apenas a apresentação de Tom Jobim e João Gilberto, entretanto o chefe da gravadora Audio Fidelity acabou reunindo um time de músicos bem diversificado, aumentando significativamente o tamanho do evento.

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Figura 5. Músicos no embarque para o Festival da Bossa Nova no Carnegie Hall (1962) – na frente, esq. p/dir.: 7 Agostinho dos Santos, Sergio Mendes, Vinícius de Moraes, Pedro Paulo, Dom Um Romão e Normando Santos; atrás, esq. p/dir.: Paulo Moura, Durval Ferreira, Octavio Bailly Jr, Roberto Menescal e Chico Feitosa (atrás de Dom Um Romão) Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/galeria/fotos/1960-1970. Acesso em 6/02/2017

Os músicos brasileiros selecionados para se apresentarem no Carnegie Hall (Figura 5) na época com pouco mais de vinte anos de idade, estavam quase todos em início de suas carreiras, exceto alguns que já possuíam algum prestígio, como Tom Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Oscar Castro Neves, Dom Um Romão, Milton Banana e Sergio Mendes, outros ainda eram totalmente desconhecidos do público americano como: Agostinho dos Santos, Ana Lúcia, Bola Sete, Carlos Lyra, Carmen Santos, Chico Feitosa, Normando Santos, Roberto Menescal e Sérgio Ricardo. A despeito da maior ou menor representatividade em suas respectivas carreiras, todos os artistas tiveram uma boa participação no evento.

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Na plateia do Carnegie Hall, que foi tomada por mais de três mil pessoas, alguns músicos americanos de destaque do cenário do jazz americano marcaram a sua presença. Vale citar o cantor , os trompetistas Dizzy Gillespie e Miles Davis, os saxofonistas Gerry Mulligan e e o flautista Herbie Mann, que logo após o festival lançaram no mercado trabalhos com a participação de músicos brasileiros.

O álbum Bossa Nova at Carnegie Hall foi lançado no Brasil pela gravadora americana Audio Fidelity em 1962, e relançado em 1974 pela gravadora Chantecler. No repertório, vale destacar algumas músicas que se tornariam clássicos do repertório brasileiro de bossa nova: Samba de Uma Nota Só, tocada no festival em versão instrumental pelo sexteto de Sérgio Mendes; Carlos Lyra com Influência do Jazz; Agostinho dos Santos e Luiz Bonfá com Manhã de Carnaval e e Roberto Menescal com O Barquinho. Todos os cantores citados foram acompanhados pelo quarteto do violonista, arranjador e compositor Oscar Castro Neves, que teve uma participação intensa no festival, atuando com a sua banda como base musical para os diversos artistas que ali se apresentaram, à exceção da apresentação de um dos criadores da bossa nova, o baiano João Gilberto que interpretou a canção Outra Vez de Tom Jobim, com o seu violão, acompanhado por Milton Banana na 4 bateria. Infelizmente não houve registro do áudio de Tom Jobim nesse álbum, embora sua 8 participação tenha sido muito importante, tanto no aspecto musical, quanto na parte executiva do festival36.

36 Informações disponíveis em: < http://laplayamusic.blogspot.com/2014/07/bossa-nova-at-carnegie-hall- 1962.html>. Acesso em 10/12/2017.

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Figura 6. Capa do álbum: Bossa Nova at Carnegie Hall (1962) lançado pela gravadora Audio Fidelity Fonte:< www.discogs.com>. Acesso em 6/02/2017

Encontramos na contracapa desse álbum - Bossa Nova at Carnegie Hall - (Figura 6) a resenha dos dois únicos jornalistas brasileiros que estiveram presentes naquela noite no Carnegie Hall: Walter Silva (Picapau) pela radio Bandeirantes de São Paulo e Sylvio Tullio Cardoso do jornal carioca O Globo. Vale destacar as considerações de Cardoso sobre o show em que o jornalista, mesmo que de uma forma breve, traça um panorama preciso das 4 performances dos brasileiros, destacando a atuação de Luiz Bonfá e de Agostinho dos Santos: 9

O grande sucesso da noite foi sem dúvida a dupla Agostinho dos Santos & Luiz Bonfá, que "roubaram" literalmente a noite com seu pot-pourri de temas de "Orfeu do Carnaval". É verdade que ao lado de Agostinho, Bonfá, Sérgio Mendes, Cláudio Miranda, João Gilberto, Sérgio Ricardo e Oscar Castro Neves atuaram vários artistas, que eram, na época, praticamente amadores. Mas separar profissionais de sem i- amadores seria abalar o espírito deste disco, que é preliminarmente um documentário. Trata-se sem dúvida dum LP histórico, um microssulco onde está registrada a estreia da moderna música brasileira - a música que, segundo Paul Winter, é uma das poucas que evolui e se renova atualmente numa das mais famosas salas de concerto do mundo. Como documento, "Bossa Nova at Carnegie Hall" é, sem dúvida, um lançamento único. A nosso ver, sua edição - que demorou, mas veio - era absolutamente indispensável, porque só com ela vamos poder provar que o show, ao contrário do que muitos propalaram, foi um magnífico, um enorme sucesso (CARDOSO, 1962).

Após o festival da bossa nova no Carnegie Hall (1962), ainda no mesmo ano, sob o efeito da excelente repercussão do evento, o pianista Sergio Mendes recebeu o convite do

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saxofonista Cannonball Adderley para gravar o álbum Cannonball Adderley with Sergio Mendes & The Bossa Rio Sextet, e contou com Dom Um Romão na bateria. O mercado americano nesse momento se expandia como nunca antes para a música brasileira, Tom Jobim, Oscar Castro Neves e João Gilberto aproveitaram esse momento e também construíram suas respectivas carreiras nos EUA.

Sergio Mendes, em especial, com o seu grupo Brasil 65, conseguiu se estabelecer consistentemente em solo americano e na remontagem de seu trabalho, um ano mais tarde, mudando então o nome para Brasil 66, contou com Dom Um Romão na bateria.

O supracitado jornalista e crítico musical, José Domingos Rafaelli (1936-2014) em seu artigo A História do Sambajazz (2008), reitera a importância do festival da bossa nova realizado no Carnegie Hall, destacando a participação de músicos brasileiros que conforme comentamos acima, se estabeleceram nos EUA, registrando seus próprios álbuns e participando também em gravações com músicos americanos de destaque na época:

Vários músicos, cantores e conjuntos brasileiros apresentaram-se no evento, 5 aumentando o interesse dos americanos pela bossa nova. O concerto foi registrado pela gravadora Audio Fidelity no disco Bossa Nova at Carnegie Hall (1962). As 0 emissoras de rádio americanas começaram a produzir discos de bossa nova initerruptamente. Começa a partir de então uma abertura não oficial de um mercado internacional de trabalho para nossos músicos e cantores em terras americanas. Paralelamente, músicos e cantores americanos gravaram uma enxurrada de discos de bossa nova, vários com participações de artistas brasileiros, incluindo: Sérgio Mendes, Tião Neto, Hélcio Milito, Dom Um Romão, Chico Batera entre outros (ibidem).

Passado a euforia do festival da bossa nova no Carnegie Hall, a vida musical seguiu como antes para os músicos e artistas que após o evento retornaram ao Brasil, mais especificamente para aqueles que já tinham suas carreiras iniciadas e que costumavam se apresentar habitualmente no Beco das Garrafas e nas outras casas do bairro de Copacabana no Rio de Janeiro. A atividade musical do Beco não era mais a mesma observada entre o fim da década de 50 até bem pouco tempo antes da realização do festival (1962), conforme já comentamos anteriormente no subcapítulo que tratou brevemente de sua história. Houve um considerável desfalque na programação musical do Beco das Garrafas; suas grandes estrelas,

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como Sergio Mendes, Luiz Bonfá, Tom Jobim entre outros que ficaram nos EUA não estavam mais por lá, entretanto a bossa nova, o sambajazz, enfim, a música de qualidade carioca ainda era ouvida naquele logradouro, e foi justamente lá, através do convite de Dom Um Romão com o seu Copa Trio, que Elis Regina deu os seus primeiros passos de sua carreira musical na noite carioca, passando a cantar no Bottle´s, fato que se repetiu com a namorada de Romão na época, a cantora Flora Purim, culminando inclusive com a gravação de seu primeiro álbum solo com a ajuda de Romão nesse processo, participando intensamente do álbum Flora é MPM (1965), como músico e produtor executivo.

A seguir, pontuaremos brevemente os relatos musicais acerca dos principais acontecimentos que envolveram essa parte da história de Dom Um Romão ligado a Elis Regina e a Flora Purim.

1.2.4 Elis Regina e Flora Purim – A convite de Dom Um Romão

Elis Regina 5 1

Figura 7. Copa Trio com Elis Regina cantando no Bottle´s, no Beco das Garrafas na foto da esq. p/ dir.: Elis Regina, Dom Salvador, Manuel Gusmão e Dom Um Romão. Fonte:< https://jornalggn.com.br/blog/jota-a- botelho/o-beco-das-garrafas-e-a-bossa-nova-por-jota-a-botelho>. Acesso em 6/02/2017

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Em 1964, o Copa Trio (Figura 7) que já contava com Dom Salvador ao piano em substituição a Toninho, o pianista original, participou de shows importantes, destacando a primeira apresentação da novata cantora, ainda menor de idade, Elis Regina em sua estreia na boate Bottle's. O pesquisador Mateus de Andrade Pacheco37 cita em seu trabalho sobre Elis Regina, uma entrevista concedida ao jornal Última Hora (21/07/1974), em que a cantora afirma que foi de Dom Um Romão, o convite recebido para cantar no Beco das Garrafas:

No fim de 64, fui chamada pelo Dom Um para o Beco das Garrafas para cantar com um conjunto dele. Não era bem uma crooner, mas uma cantora nova que eles estavam precisando para fazer o show. Aí começou o negócio que eu já estava esperando há um tempo: fazer uma música que eu achava coerente com todas as coisas que eu gostava. Uma música que harmonicamente fosse rica, que tivesse coisas a serem ditas, que tivesse certo sentimento de duração, que perdurasse um pouco mais que um programa de televisão (PACHECO, 2009).

Elis Regina começou no Bottle’s, mas também cantou na casa ao lado, o Little Club, e em depoimento concedido por Ronaldo Bôscoli e Miéle, registrado em vídeo38, Miéle afirma que a cantora, ainda menor de idade, tinha que se esconder quando o juizado de 5 menores chegava para a fiscalização, e que a sua precocidade aliada à vontade de cantar era 2 algo admirável. A temporada no Beco das Garrafas durou aproximadamente um ano, e em 1965, Elis Regina assinou contrato com a TV Record para estrear o que seria um dos programas musicais de grande importância da televisão brasileira: O Fino da Bossa. O programa não só ajudou a própria carreira da cantora e de seu parceiro, o novato cantor , recém-chegado dos festivais de música popular da própria Record, mas também impulsionou vários novos artistas em suas respectivas carreiras dando início na televisão brasileira à produção de programas musicais voltados para um público consumidor de música, dessa forma aquecendo o debate sobre o papel da música popular brasileira conforme a

37 Informação proveniente da dissertação do pesquisador Mateus de Andrade Pacheco: Elis de todos os palcos: embriaguez que se fez canção. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade de Brasília. 2009, p. 31. 38 Disponível em: < https://www.facebook.com/analisandoelisregina/videos/1044192138958344/>. Acesso em 15/04/2017.

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pesquisadora Andrea Maria Vizzotto Alcantara cita em sua pesquisa sobre o novo programa de TV:

O Fino da Bossa foi transmitido, entre 1965 e 1967. Em 1966, o programa passou a ser chamado de O Fino, por questões contratuais, pois o “proprietário” do nome “O Fino da Bossa”, Horácio Berlinck se desligaria do programa. Depois, esse recorte também marca a ascensão da trajetória artística desses dois artistas, suas participações nos festivais de música e o debate sobre a música popular brasileira, que suscita novas questões e posicionamentos a partir do golpe militar de 1964 e também pelo crescente desenvolvimento dos meios de comunicação. Assim, o período engloba momentos importantes para a política e a cultura brasileira (ALCÂNTARA LOPES, 2010).

Em relação à Elis Regina, podemos entender que novamente o Beco das Garrafas teve o papel de forjar artistas para o mercado musical, uma espécie de estágio inicial, uma preparação para algo maior que estaria por vir. De uma forma geral, isso aconteceu para a grande maioria dos cantores e músicos que por lá passaram, e não foi diferente com Elis Regina; o encontro do talento com a oportunidade foi fundamental para a cantora, e essa oportunidade veio através do convite que Dom Um Romão fez a ela, conforme a mesma 5 revelou na entrevista citada anteriormente. 3

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Flora Purim

Figura 8. Capa do disco Flora é M.P.M. (1964) Fonte:< www.discogs.com>. Acesso em 6/02/2017

Flora Purim nasceu em 06 de março de 1942 no Rio de Janeiro, filha do romeno Naum Purim (violinista amador) com a pernambucana Rachel (pianista também amadora). 5 Teve por parte do pai a influência da música clássica, e por parte da mãe, a do jazz, 4 conhecendo jazzistas como: Art Tatum, Erroll Garner, Oscar Peterson e Thelonious Monk. Dos quatro aos doze anos estudou piano clássico, aos quatorze começou a tocar violão e estudar com Oscar Castro Neves. Cantou ainda na adolescência ao lado da irmã Yana em um conjunto vocal que tinha Luiz Eça - ainda no começo de carreira - como arranjador. Casou-se com o psicanalista Ary Band, tiveram uma filha, e por algum tempo a música ficou apenas como um passa tempo até a sua separação, quando então conheceu e se apaixonou por Dom Um Romão ao vê-lo em ação no Beco das Garrafas (DESOUTEIRO, 2007)39.

39 Informação proveniente do site do jornalista Arnaldo DeSouteiro publicado em 06/2007. Disponível em: . Acesso em 18/02/2017.

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Flora Purim contou a Charles Gavin40, baterista e produtor musical, em entrevista para o seu programa de televisão pelo Canal Brasil, O Som do Vinil, que quando criança costumava ouvir a Rádio Nacional em sua casa, e gostava das vozes e do jeito que alguns cantores interpretavam as músicas, citando Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Ivon Cury e Cauby Peixoto. Purim revelou que foi depois de conhecer o disco da cantora Elizete Cardoso, Canção do Amor Demais (1958), que a relação com a música em sua vida começou a ficar mais forte. Segundo Flora Purim contou a Gavin, foi através desse álbum que ela foi se ambientando com a bossa nova, e, seis anos mais tarde ela estreava no Bottle’s Bar, no Beco das Garrafas, a convite de Dom Um Romão (seu namorado na época), para cantar com o Copa Trio. Sobre esse fato Purim comenta:

[...] foi o Dom Um Romão, eu namorei e vivi com ele três anos. Ele tocava no Bottle’s Bar. Dom Um falou com o Giovane que era o dono do Bottle’s Bar para me dar uma oportunidade. Eu tocava violão em casa, praticava. Aí ele conseguiu que eu fosse crooner do trio. Não cantava o tempo todo, apenas quatro músicas. E comecei a cantar lá no Bottle’s Bar, que era frequentado por muitos músicos (FLORA, apud. GAVIN, 2008). 5 5 Nessa mesma época, Purim ganhou experiência trabalhando com a Orquestra do Maestro Cipó, e Romão, com a intenção de impulsionar a carreira da namorada, pediu ao

40 Charles Gavin é produtor, músico, pesquisador e apresentador, nascido em São Paulo, 1960. Foi membro (baterista) dos Titãs de 1985 a 2010, período em que gravou dezesseis discos e cinco dvd´s com a banda. Produziu Samba Esquema Noise (1994), primeiro trabalho do grupo pernambucano Mundo Livre S/A. Desde 1999 desenvolve projetos de reedições de álbuns emblemáticos da música brasileira, contabilizando mais de quatrocentos títulos relançados pelas próprias gravadoras. Remixou os discos Estudando o Samba e Correio da Estação do Brás de Tom Zé para a coleção Dois Momentos (2000). Coordenou a produção e remixou as gravações dos principais discos de para a caixa de cd´s (box) Todo Caetano (2002). Idealizou e produziu a edição dos livros Bossa Nova & Outras Bossas: a arte e o design das capas dos LPs e 300 Discos importantes da música brasileira, ambos patrocinados pela Petrobrás. Produziu e apresentou o programa Quintessência na Rádio Eldorado (SP), entre 2007 e 2009. Dirigiu e produziu O Pirulito da Ciência, dvd e cd de Tom Zé, lançado pela Biscoito Fino em 2010. Coordenou a produção de Valle Tudo (2011), caixa de cd´s (box) contendo toda a discografia de na gravadora EMI/Odeon. Atualmente apresenta e dirige O Som do Vinil, programa que investiga e resgata histórias de bastidores de álbuns clássicos da música nacional, exibido pelo Canal Brasil, em sua sexta temporada. Escreveu o roteiro e dirigiu a série - A casa da bossa nova - documentário sobre a história da gravadora independente Elenco de Aloysio de Oliveira, também para o Canal Brasil. Disponível em: < http://charlesgavin.blogspot.com/p/biografia.html>. Acesso em 7/07/2018.

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amigo, o cronista Sérgio Porto, figura bastante influente dentro da gravadora RCA Victor que conseguisse um contrato para ela; e assim, em Setembro de 64, sob a produção de Dom Um Romão, iniciou-se a gravação do álbum Flora é MPM (Figura 8).

O álbum contou com arranjadores experientes da época como o Maestro Cipó, Luiz Eça, Waltel Branco, Osmar Milito e Paulo Moura. Para a sessão rítmica Romão convocou seus colegas do Copa Trio: o pianista Dom Salvador (ainda chamado de Salvador Filho) e o baixista Manuel Gusmão. Nos sopros, participaram: Paulo Moura e Jorge Ferreira da Silva (flauta também), ambos no sax-alto; Cipó e Meirelles nos tenores; Netinho, Sandoval e Aurino Ferreira tocaram barítono; nos trompetes, Pedro Paulo, Hamilton e Formiga; nos trombones Norato, Raul de Souza, Sandoval, Macaxeira e Armando Palla; na percussão Jorge Arena e Rubens Bassini; e por fim, Rosinha de Valença no violão (DESOUTEIRO, 2007).

No repertório do LP, estão presentes cinco temas da peça Pobre Menina Rica, de Lyra & Vinicius: Cartão de Visita, Sabe Você, Maria Moita, Samba do Carioca, Primavera; três canções de Edu Lobo, Definitivamente, Reza, Borandá; duas parcerias de Menescal & Bôscoli, A Morte de Um Deus de Sal, Nem O Mar Sabia; e uma composição de Waldyr Gama, Se Fosse Com Você. O supracitado Arnaldo DeSouteiro foi o responsável pela 5 reedição do álbum Flora é M.P.M. em 2001, pela gravadora BMG, em comemoração aos 100 6 anos da gravadora RCA. O produtor foi solicitado para escolher os álbuns mais representativos desse período e relançá-los no mercado brasileiro. DeSouteiro afirma que “em termos discográficos, Flora É M.P.M. representa o marco inicial de tão brilhante trajetória da cantora”. Sobre as suas impressões acerca desse álbum, ele considera:

Basta o primeiro fraseado de Flora Purim, na introdução da faixa de abertura Morte de Um Deus de Sal deste disco de estreia Flora É M.P.M., para comprovar que Flora Purim cantava de um modo completamente diferente de todas as outras cantoras da época. Quase nenhuma influência nem mesmo das intérpretes que admirava, como Sylvia Telles, Alaíde Costa e Maysa. Nada da inexpressividade de Nara Leão, equivocadamente considerada “musa” da bossa nova por quem ainda hoje tenta vender a ideia de um “movimento nascido nos apartamentos de Copacabana”, ao invés de entender (e aceitar) a bossa como criação espontânea do baiano João Gilberto. Ou seja: Flora realmente já fazia, em setembro de 1964, data da gravação deste Flora É M.P.M., a Música Popular Moderna originária da sigla estampada no título do hoje histórico (ibidem).

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Fica evidente que Dom Um Romão teve um papel fundamental no início da carreira da cantora Flora Purim. Ele foi o responsável por introduzir a namorada na noite carioca, propiciando-lhe a experiência de trabalhar em diferentes situações musicais; primeiro cantando com o Copa Trio no Beco das Garrafas - num ambiente onde bons músicos trabalhavam – e em seguida com a gravação de seu primeiro álbum solo Flora é M.P.M., com um time de músicos de destaque da época. Dessa forma, Purim chegou aos EUA com alguma bagagem musical e um ótimo cartão de visita (Flora é M.P.M.), e não demorou muito para Purim encontrar músicos de destaque do cenário musical americano, tocando e gravando com nomes como: Chick Corea, , Carlos Santana, Duke Pearson, Cannonball Adderley e Lee Oskar. Tamanha exposição levou Flora Purim a ser apontada em 1974 pelos críticos da revista Down Beat, como a melhor cantora revelação, e, ainda no mesmo ano, ela ganharia por escolha dos leitores da mesma revista, o posto de melhor cantora de jazz do mundo, repetindo esse feito ainda por mais cinco vezes em sua carreira (ibidem).

Procuramos até este momento, ao descrever os correlatos-históricos que envolveram Dom Um Romão, pontuar de que maneira ele esteve inserido nos fatos revelados.

O que podemos depreender de tudo o que encontramos e processamos em nossa investigação, 5 é que Romão, além ter tocado intensamente com os melhores músicos de sua época, em bares, 7 turnês, programas de TV, orquestras de rádios, shows em teatro, festivais de jazz (Brasil, Uruguai e nos EUA), gravações de vários álbuns importantes, é que ele possuía qualidades extramusicais, tal característica confirmada pelo baterista Chico Batera em seu depoimento ao autor. Romão tinha inciativa, se relacionava bem com a alta sociedade carioca, era um líder nato, tinha ambição, característica tal revelada por ele mesmo quando disse ao jornalista Fernando Faro41(1927-2016) em entrevista para o programa na TV Cultura Ensaio de 1999: “eu fui embora porque queria ser famoso” (ROMÃO, apud. FARO, 1999).

41 Fernando Abílio de Faro dos Santos nasceu em Aracaju, 21 de junho de 1927 e faleceu em São Paulo, no dia 25 de abril de 2016. Foi um jornalista, produtor musical e diretor de televisão. Estreou na TV no início da década de 1950, na TV Paulista, onde foi diretor, escreveu teleteatros e produziu shows e programas de TV para artistas como Chico Buarque, , Caetano Veloso, Elis Regina e . Seu trabalho mais representativo foi o programa Ensaio na TV Cultura de São Paulo. Este programa possuía um formato único no qual apenas o entrevistado aparecia, mesclando respostas a perguntas do entrevistador (as quais não eram ouvidas e feitas pelo próprio Faro) e performances. Além de Ensaio, Faro idealizou programas como Móbile, Hora da Bossa, TV

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Antes de deixar o Brasil em 1965, Dom Um Romão participou de importantes gravações ao lado de grandes instrumentistas que tiveram suas respectivas carreiras musicais estabelecidas inicialmente no Brasil, e alguns posteriormente até fora do país, todos com qualidades musicais indiscutíveis. Estamos falando de nomes como Jorge Ben, Dorival Caymmi, Sergio Mendes, Eumir Deodato, Dom Salvador, Luiz Bonfá, Tom Jobim, J.T. Meirelles entre alguns outros. E é exatamente sobre alguns desses trabalhos que iremos tratar no próximo subcapítulo, ressaltando e contextualizando a relevância de alguns dentro do período do sambajazz e que, segundo a pesquisadora Joana Martins Saraiva, vários estão inclusos na lista dos álbuns relançados por gravadoras aqui no Brasil a partir de 2001, os quais possuem representatividade dentro do estilo sambajazz, em especial, O Som (1964) e Dom Um (1964), nosso objeto de estudo. Veja abaixo as considerações de Saraiva acerca desse fato:

Nos últimos anos, mais precisamente de 2001 pra cá, vários discos de sambajazz ou jazzsamba foram lançados no mercado, como coletâneas e compilações ou mesmo reedições de antigos LPS. Alguns destes vieram à tona como parte das comemorações de “100 anos” de determinados selos como a série Odeon 100 anos (EMI) e RCA 100 5 anos de música (BMG); outros como “raridades” (Columbia Raridades - SONY), “clássicos” (RCA Essencial Classics), ou “masters” ( Masters). Também 8 são indícios de uma onda de interesse pelo chamado sambajazz uma série de shows nos últimos anos de artistas “consagrados”, mas injustamente “esquecidos” aqui, como as participações do Meirelles e os Copa 5 nos últimos festivais da Tim, ou as diferentes apresentações de Dom Salvador, Raul de Souza, Dom Um Romão, Julio Barbosa, entre outros, seja em festivais de jazz e música instrumental ou em shows isolados em importantes palcos da cidade e do país. Modismo passageiro ou não, ou uma simples estratégia de marketing das grandes distribuidoras, esse interesse pelo sambajazz está não apenas neste movimento de “redescoberta” de músicas e músicos que fizeram parte de um “passado” indevidamente “esquecido”, como também na classificação e caracterização de grupos atuais enquanto categoria definidora de um “gênero” musical (SARAIVA, 2007, p. 8).

Vanguarda e Divino Maravilhoso em suas passagens por emissoras como TV Tupi, TV Excelsior, Rede Globo, Rede Bandeirantes e TV Record. Em 2007, para comemorar os 80 anos de Faro, a Fundação Padre Anchieta lançou sua biografia, "Baixo - Fernando Faro", cujo título é uma referência ao termo que ele usava para chamar qualquer um à sua volta: "Ô, baixo!" e também ao apelido que lhe foi dado por Cassiano Gabus Mendes pela sua altura que era 1,65 e pela fala tranquila. Faro morreu em 25 de abril de 2016, aos 88 anos, vítima de uma infecção pulmonar após ficar internado por 3 meses. Foi sepultado no Cemitério do Araçá. Informação proveniente do http://dicionariompb.com.br/fernando-faro/biografia. Acesso em 30/03/2018.

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A gravadora Dubas manteve uma estratégia similar à adotada pelas grandes gravadoras da época - EMI, BMG, SONY -, quando lançou o CDs Sambajazz/Batida Diferente e Jazzsamba/Copacabana, ambos em 2004. Sambajazz/Batida Diferente é uma coletânea de 14 faixas de antigos discos que relembram o contexto musical do Beco das Garrafas, trazendo de volta o clima musical daquela fase vivida no bairro Copacabana no Rio de Janeiro (ibidem, p. 18-23). Há nesse CD a afirmação do caráter comum distintivo do gênero, em que a gravadora tenta passar o conceito de obras-primas instrumentais com a sofisticação do jazz e a alegria rítmica do samba. A Dubas fez outros lançamentos com remasterizações completas de alguns daqueles discos que haviam entrado apenas com uma ou duas músicas naquelas coletâneas, como o disco O Som (2001/1964) e Dom Um (2004/1964)” (ibidem, p. 2).

Levando em conta a afirmação do caráter de gênero musical que o sambajazz estabeleceu em sua respectiva época, conforme discutimos no parágrafo anterior, focaremos no período de seu auge, que compreende entre os anos de 1963 a 1965 no Brasil, e pontuaremos adiante algumas gravações que Dom Um Romão participou e que entendemos como representativas desse contexto musical. 5

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1.3 Importantes Gravações no Brasil de 1963 a 1965

Abordaremos aqui os relatos histórico-musicais que envolveram alguns álbuns gravados por Dom Um Romão no período que compreende entre os anos de 1963 a 1965 no Rio de Janeiro, com instrumentistas e cantores nacionais, os quais, ainda em início de carreira, apresentavam uma qualidade musical diferenciada dentro do cenário artístico da época. Para trazer tais fonogramas para a discussão, adotamos alguns critérios para elencá-los; o primeiro a ser considerado inclui a participação de Romão exclusivamente como baterista, tocando os ritmos de bossa nova e de samba na bateria (sambajazz). Tais fonogramas registraram as últimas gravações do baterista no Brasil tocando os estilos citados acima, pois a partir de sua mudança para os EUA, a percussão passaria aos poucos a se tornar o seu instrumento principal de expressão artística, relegando de certa forma a bateria a um segundo plano a partir daquele momento de sua carreira, o que foi confirmado quando Romão ingressou em

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uma das bandas de música fusion de grande proeminência da época, o Weather Report (1972- 1976). Com o grupo, Romão gravou quatro álbuns e se estabeleceu definitivamente como um percussionista de destaque no mercado americano. Outro critério utilizado na escolha dos fonogramas para nossa discussão nesse subcapitulo, é que identificamos na totalidade dos discos trazidos para a discussão, sendo instrumental ou não, a presença das características idiomáticas de performance distintivas de Romão as quais estão amplamente ligadas ao contexto musical do sambajazz, são elas: a) a “raspadeira”; b) samba no prato; c) atividade rítmica da mão esquerda emulando as vozes dos instrumentos de percussão na bateria, em exposição temática e na improvisação, associadas a uma base de condução estável; d) interação musical com o solista; e) solos de bateria42. Dessa forma, vamos à discussão dos álbuns a seguir.

1.3.1 Samba Esquema Novo (1963)

Em 1963, Jorge Ben (1945), que aos 21 anos de idade já havia gravado como vocalista do conjunto do organista Zé Maria em 1962, começou a cantar com o Copa 6 Trio no Beco das Garrafas, mais precisamente na boate Bottle´s, originando a partir desse 0 encontro o Copa Quatro. No mesmo ano (1963), por indicação de Manuel Gusmão (baixista do Copa Trio) aos diretores da gravadora Philips, foi lançado o primeiro LP de Jorge Ben, o Samba Esquema Novo (Figura 9), com a produção de Armando Pittigliani e que incluiu sucessos tocados e que são regravados até os dias de hoje como: , Balança a Pema, Chove Chuva, Por Causa de Você Menina, e A Tamba. A bateria de Dom Um Romão está presente no álbum, ele era integrante do Meirelles e Os Copa 5 que era formado por Luiz Carlos Vinhas no piano, Manuel Gusmão no baixo, Pedro Paulo no trompete, o próprio Dom Um e o saxofonista J.T. Meirelles.

42 Tais características idiomáticas de Romão, apontadas como distintivas e elencadas aqui serão devidamente discutidas no capítulo de análise interpretativa.

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Figura 9. Capa do álbum de Jorge Ben: Samba Esquema Novo (1963), gravado pelo Copa Trio com os arranjos de J.T. Meirelles. Fonte:< www.discogs.com> Acesso em 6/02/2017

Os Copa 5 deram suporte ao Babulina43 em oito das 12 faixas do álbum Samba Esquema Novo com os arranjos construídos numa roupagem ao estilo sambajazz. Desse disco, são arranjos de J. T. Meirelles as faixas Ualá, Ualalá, Vem Morena, Menina Rosa, Por Causa de Você Menina e Mas que Nada. A faixa Mas que Nada, levou Jorge Ben ao reconhecimento 6 nos EUA e na Europa a partir de 1965, devido ao amplo sucesso da versão gravada por Sergio 1 Mendes & Brasil 66 e também das releituras de Miriam Makeba, Dizzy Gillespie e Odell Brown. Nesse disco, há ainda quatro músicas arranjadas pelo prestigiado maestro Lindolfo Gaya e que foram executadas por sua orquestra; são elas: Menina Bonita Não Chora, Quero Esquecer Você, É só Sambar e Balança Pema. Ainda duas músicas de grande sucesso foram orquestradas pelo pianista Luiz Carlos Vinhas, a Chove Chuva e A Tamba. E, numa última participação, temos uma releitura de Tim Dom Dom, de Codó e João Carlos Monteiro que foi arranjada por Carlos Monteiro de Souza44.

43 Apelido de Jorge Ben, em referência à sua pronúncia equivocada da canção Bop A Lena, de Ronnie Self. 44 Cinco grandes álbuns da MPB, artigo escrito por Marcelo Pinheiro, jornalista e crítico musical, escrevia para o extinto site e revista Brasileiros desde 2009. Atualmente é editor da publicação. Pesquisador da produção musical brasileira escreve sobre álbuns obscuros, mas fundamentais no blog Quintessência. Disponível em: < http://www.brasileiros.com.br/colunas-e-blogs>. Acesso em 6/02/2017.

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Em entrevista concedida em 1997 ao baterista Zé Eduardo Nazário, Dom Um Romão lembrou a fase em que Jorge Ben entrou para o Copa Trio na primeira metade dos anos 1960, mudando o nome de Copa Trio para os Copa Quatro:

“Ficamos (o Copa Trio e Jorge) bastante tempo ali, com aquele showzinho. Como eu também trabalhava no Sacha’s, eu trazia o pessoal da sociedade para se comunicar conosco e participar daquela festividade da Bossa Nova. Foi uma época que surgiu muita gente. Depois, o Meirelles (o maestro J.T. Meirelles) vinha dar canja e havia o Little Club, que era só jazz, uma porta depois da nossa, e era do mesmo dono, o Giovanni (na verdade, dos irmãos Giovanni e Alberico Campana). Tocávamos jazz no Little Club; já no Bottle’s, era aquela música brasileira com ‘Seu Jorge Ben’ tocando, no banquinho, aquele ‘mas, que nada! ’. Foi ali que surgiu esse ‘gueto’ e foi formidável! Uma época muito boa. Era o Beco das Garrafas, onde rolava de tudo” (NAZARIO, 1997).

1.3.2 Caymmi Visita Tom (1964)

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Figura 10. Capa do álbum Caymmi Visita Tom (1964) Fonte: . Acesso em 6/02/2017

O álbum Caymmi Visita Tom (Figura 10) foi registrado em 1963 pelo produtor Aloysio de Oliveira e lançado pela Elenco, gravadora que foi montada no mesmo ano pelo produtor em uma espécie de resposta à Odeon que dispensou vários artistas com quem ele tinha estreita relação. Aloysio de Oliveira acumulou uma experiência de mais de 30 anos de

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trabalhos como diretor artístico nas gravadoras Odeon e Philips, tendo lançado trabalhos de grande destaque, como o de João Gilberto em 1958 com o álbum Chega de Saudade. Na Elenco, além de importantes artistas da MPB, a gravadora ficou conhecida especialmente por apresentar um conceito diferenciado de imagem para as capas dos LPs, uma nova abordagem para o mercado de discos nos anos 60. Aloísio de Oliveira prestou serviços nos Estúdios Disney nos anos 40 e foi pensando no valor que os norte-americanos davam à imagem e, sobretudo, ao marketing, que fez da Elenco uma gravadora à frente de sua época45. Na parte musical, a Elenco promovia aproximação entre os artistas, e, a partir disso, registrava o momento musical decorrente desses encontros. Foi nesse espírito que o álbum Caymmi Visita Tom (1964) foi produzido; Aloysio de Oliveira reuniu Tom Jobim, recentemente retornado dos EUA, com Dorival Caymmi e a sua família de músicos: Dori, Danilo e a filha Nana. Para a sessão rítmica, Oliveira chamou o baixista Sérgio Barroso e Dom Um Romão para dividir a bateria com Edison Machado. As três faixas de maior sucesso desse álbum, ...Das Rosas, Só Tinha que Ser com Você e Saudades da Bahia, são justamente as composições que Dom Um Romão gravou tocando bateria46.

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45 Informação proveniente do site Clique Music. Disponível em: . Acesso em 03/2018. 46 Informação proveniente do site do professor e pesquisador Luis Américo Lisboa Junior. Disponível em: . Acesso em 03/2018:

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1.3.3 O Som dos Catedráticos (1964)

Figura 11. Capa do álbum O Som dos Catedráticos (1964) de Eumir Deodato Fonte: . Acesso em 6/02/2017

Em 1964, Dom Um Romão gravou um álbum representativo da carreira do então jovem pianista Eumir Deodato, O Som dos Catedráticos, pela gravadora carioca Ubatuqui. O 6 trabalho foi concebido com padrões rítmicos mais estáveis, com pouca variação e com solos 4 de órgão, o que se assemelha bastante ao estilo do pianista Walter Wanderley, com quem Romão também gravaria em 1967 nos EUA, dois álbuns. Todos os arranjos do disco são de Eumir Deodato e, embora seu órgão e piano estejam na frente da mixagem, o grupo é percebido nitidamente na mixagem. Na instrumentação se destaca o trombone de Raul De Souza e Edson Maciel, o violão de Neco e Geraldo Vespar, a bateria de Dom Um Romao e Wilson das Neves, no contrabaixo acústico contou com Luiz Marinho e Sergio Barroso, na percussão Rubens Bassini e Jorge Arena e em alguns faixas, a presença do saxofone barítono de Alberto Gonçalves e Aurino Ferreira, Maestro Cipó tocou saxofone tenor e Maurílio Santos trompete47. A maioria dos ritmos está em padrões ritmicos de sambajazz ou bossa, com destaque para as linhas de teclado de Eumir Deodato. Os títulos incluem Os Grilos,

47 Informações provenientes do site: . Acesso em 03/2018.

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Muito A Vontade, Imenso Amor, Gente, Tempinho Bom e Ainda Mais Lindo. Nesse ponto de sua carreira, com uma maturidade musical já reconhecida, tendo colecionado em sua bagagem alguns álbuns gravados e shows feitos aqui no Brasil e nos EUA, Dom Um Romão despertava a atenção de músicos e produtores das gravadoras, e foi nesse contexto que, em 1964, Romão registrou pela gravadora Philips, através do produtor Armando Pittigliani, dois álbuns de grande representatividade dentro do sambajazz: O Som com o grupo J.T. Meirelles e os Copa Cinco, e Dom Um, seu primeiro álbum solo, que serão discutidos a seguir. Vamos ao O Som!

1.3.4 O Som (1964)

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Figura 12. Capa do álbum O Som (1964) Fonte: www.discogs.com. Acesso em 6/02/2017

João Theodoro Meirelles (1940-2008), saxofonista, produtor e arranjador, mais conhecido como J. T. Meirelles foi um dos alicerces na construção do estilo que hoje é denominado sambajazz. Meirelles teve grande representatividade no Beco das Garrafas, juntamente com uma geração de instrumentistas de destaque formada por Edison Machado, Hélcio Milito, Milton Banana, Sérgio Mendes, Luiz Carlos Vinhas, Luiz Eça, Dom Salvador, Tenório Jr., Raul de Souza, Dom Salvador, Paulo Moura, entre outros.

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Em 1964, no mesmo ano em que escreveria o arranjo do sucesso Mas que Nada, de Jorge Ben, Meirelles reuniu os músicos: Manuel Gusmão (baixo), Luiz Carlos Vinhas (piano), Dom Um Romão (bateria), Pedro Paulo (trompete), e formou o conjunto Meirelles e os Copa 5 (Figura 13). Com essa formação, ele produziu o álbum já supracitado: O Som (Figura 12), e mais tarde ao lado do baterista Edison Machado que substituiu Dom Um Romão nos Copa 5, o álbum solo do baterista: Edison Machado É Samba Novo (1963). Esses dois trabalhos representaram uma espécie de guinada desses instrumentistas em relação à bossa nova (SARAIVA, 2007). Há quem diga que o álbum O Som é um dos discos que mais representa o sambajazz, uma espécie de marco definidor do estilo, como o crítico musical Marco Antonio Barbosa comenta em sua resenha48:

Poucos álbuns podem ser creditados como “marcos iniciais” exatos deste ou daquele gênero. Mas já parece haver um consenso que este O Som, disco de estreia do grupo Meirelles & Os Copa 5, é a "pedra de Rosetta" do sambajazz, fusão da fluidez jazzística com o drive rítmico do samba - um som único, elegante, juntando o melhor de dois mundos. E que - também por ser filho indireto da bossa nova - transformou-se em um dos estilos de música brasileira mais apreciada mundo afora. Em grande parte, por causa deste disco (BARBOSA, 2003). 6

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48 Resenha escrita em 2003 pelo crítico musical Marco Antonio Barbosa para o site Clique Music sobre o relançamento do álbum O Som, pela gravadora Dubas. Informação proveniente no site: . Acesso realizado em 04/04/2016.

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Figura 13. Foto do Meirelles e os Copa 5 no Beco das Garrafas, da esq. para dir.: Pedro Paulo, Toninho Oliveira, Manuel Gusmão, Dom Um Romão e J.T. Meirelles Fonte: https://jornalggn.com.br/blog/jota-a-botelho/o-beco-das-garrafas-e-a-bossa-nova-por-jota-a- botelho>. Acesso em 6/02/2017

Sobre o álbum O Som, em suas seis faixas - compostas na totalidade por J.T. Meirelles -, o saxofonista e arranjador sintetizou uma liberdade harmônica com espaço para improvisação e um favorecimento às estruturas do arranjo. O pesquisador e crítico musical Bernardo Oliveira, em resenha na ocasião do relançamento de O Som (2003), pela gravadora 6 Dubas, evidenciou os elementos musicais presentes nesse trabalho, traçando um paralelo com 7 o jazz e as suas vertentes, em relação ao “sambajazz”, os quais influenciaram amplamente os músicos inseridos na década de 60:

O Som faz algo mais do que a mera síntese: ele cria um vocabulário de tramas, texturas e dinâmicas que, por sua variedade, se distancia da regularidade com que se construía o arranjo dos discos de bossa nova (os de primeira hora, claro…). E ai, percebe-se mais uma diferença: enquanto a bossa era influenciada pela suavidade enxuta do cool jazz, o sambajazz estava mais “antenado” no bebop e no hard bop de Miles, Coltrane, Mingus… O enfoque é, obviamente, mais concentrado nas cores e no improviso do que na canção propriamente (OLIVEIRA, 2008).

Oliveira conclui suas considerações comentando as características de performance desempenhada pelo grupo, ressaltando seu caráter mais livre em comparação às práticas correntes da época (década de 1960):

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Na cozinha, por exemplo, o diálogo entre Dom um Romão e Manuel Gusmão ocorre pelas variações contínuas, mesmo quando se trata de repetir o tema principal. O piano de Vinhas cria desenhos melódicos e harmônicos com uma liberdade jamais experimentada pelos bossa-novistas, variando do balanço marcado até as dissonâncias mais inesperadas. Meirelles e Pedro Paulo também variam conforme o clima, ora promovendo estabilidade aos temas, ora criando solos mais agressivos e “expressionistas” (como, por exemplo, no primeiro solo de Meirelles em Solitude). Esta combinação de inflexões apolíneas e dionisíacas, criada por músicos conscientes das possibilidades de seus respectivos instrumentos, confere ao sambajazz uma singularidade inalienável na história da música feita no Brasil (ibidem).

Sobre a performance de Dom Um Romão no álbum O Som (1964), percebemos que há uma equilíbrio entre as distintas partes das músicas com relação ao arranjo de bateria no que diz respeito a concepção de padrões rítmicos de condução do samba, sonoridade, preparações (fraseado), andamento, dinâmica, enfim, encontramos em Romão um baterista maduro, com uma forma peculiar de tocar, colocando suas ideias através de seus traços característicos de performance na linguagem do samba, participando do discurso musical, mas sempre respeitando o arranjo. Por se tratar de um disco representativo do sambajazz, conforme já mencionamos anteriormente nesse trabalho (BARBOSA, apud. SARAIVA, 6 2007, p. 10), O Som representa o encontro do ritmo de samba com a improvisação, e, nesse 8 sentido, um aspecto importante merece ser discutido. A fraseologia utilizada pelos solistas em seus improvisos possuem uma recorrência de figuras rítmicas de tercinas e suas subdivisões – influência do jazz americano (bebop) -, apoiadas em padrões de condução rítmica orientados essencialmente por figuras em semicolcheias contínuas ou com agrupamentos de colcheias, o que provocou muitas vezes em nosso entendimento, algum grau de tensão rítmica. Diante desse aspecto, podemos discutir brevemente uma situação presente em nossa música brasileira, cuja origem vem desde o início do século XX e que também foi observada no estilo do sambajazz, já que elementos musicais de duas vertentes estilísticas diferentes foram postos em contato. Trazemos dessa forma os conceitos de hibridação (CANCLINI, 2008) e fricção de musicalidades (PIEDADE, 2005), contextualizados por Barsalini (2009) em seu trabalho sobre o baterista Edison Machado, em que o pesquisador aponta tal problemática;

A partir da perspectiva da inserção da bateria na música brasileira e sua relação com o samba, veremos em que medida determinada produção musical representou diferentes

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níveis de conflito entre o local e o estrangeiro. De acordo com a intensidade desses conflitos, proporcionada não somente pelo contexto histórico em que ocorreram, mas principalmente pelo nível de consciência dos agentes mediadores (em nosso caso, os bateristas) e sua singular manipulação do instrumento, poderemos identificar momentos de hibridação musical (CANCLINI, 2008) e de fricção de musicalidades (PIEDADE, apud. BARSALINI, 2009, p. 16).

O musicólogo Acácio Piedade, compreendendo que a música instrumental brasileira apresenta uma desigualdade inerente em seu cerne, abandonou em seu discurso as ideias do conceito de hibridação de Canclini (2009) representados por: transmissão, assimilação ou aculturação, as quais se derivariam em uma síntese e adotou a ideia de que há uma interação contínua em que “as fronteiras musical-simbólicas não são atravessadas, mas são objetos de uma manipulação que reafirma as diferenças”. (PIEDADE, apud. BARSALINI, 2009, p. 7). Dessa forma, a ideia de “fusão” é substituída por “fricção”, apontando um permanente conflito que expõe desigualdades entre musicalidades distintas que não se complementam. Sua relação não assumiria um caráter construtivo, e sim de tensão (ibidem). Nesse sentido, Barsalini faz eco a Piedade afirmando que:

6 9 Em nosso entendimento, a inserção da bateria na música brasileira, um instrumento tipicamente norte-americano, cujas referências de desenvolvimento técnico-musical estão intimamente conectadas ao desenvolvimento do jazz, traz consigo uma significativa representação simbólica de um contato que pode ser entendido como hibridação. No entanto, por reconhecermos que esse processo alterna em seu decorrer “idas e vindas, marchas e contramarchas”, supomos haver aí um estado constante de tensão que se manifesta na própria música brasileira, ora minimizada e ora exposta em maior grau. Nestes momentos em que a tensão aflora, preferimos substituir o conceito de hibridação pela fricção de musicalidades (BARSALINI, 2009).

Talvez a falta de espaço da mídia que um disco em 78 rpm possuía na época, restringindo em média cada faixa a três minutos de áudio, tenha limitado a questão da improvisação, e, consequentemente o desenvolvimento de aspectos ligados a esse processo, em especial a interação musical. Entendemos que o sambajazz praticado intensamente na década de 1960, passou por um processo de acomodação idiomática, alcançando um equilíbrio ideal principalmente quando os improvisadores passaram a adotar referências

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fraseológicas advindas do choro, tornando a semicolcheia como um elemento permanente da “teia rítmica” de subdivisão essencial.

1.3.5 Dom Um (1964)

Figura 14. Capa do álbum Dom Um (1964) Fonte: . Acesso em 6/02/2017 7 0

É este fantástico baterista que a Companhia Brasileira de Discos apresenta aos discófilos brasileiros no primeiro LP gravado sob o seu nome. Dom Um já havia – é verdade – dado provas de seu talento e sua técnica em vários LPs nossos, entre eles, O Som, de Meireles, e o famoso Cannonball´s Bossa Nova, gravado em Nova Iorque em 1962, dias depois de Dom Um haver brilhado no palco do Carnegie Hall, com o primitivo Sexteto Bossa Rio, de Sérgio Mendes, no celebre show, Bossa Nova at Carnegie Hall. Mas é realmente neste LP onde ele tem, pela primeira vez, a oportunidade de se projetar artisticamente com a liberdade e a desenvoltura que sempre desejou. Auxiliado por arranjadores de talento e musicalidade de um Paulo Moura, um Waltel Branco, um Meireles e um Cipó, Dom Um realizou, sem dúvida, o disco que o estabilizará definitivamente como uma das grandes expressões da nossa moderna música popular. A Philips – etiqueta que se orgulha de haver lançado os grandes valores da bossa nova – serve novamente de veículo para que mais um legítimo talento da moderna música brasileira seja perpetuado para sempre no microssulco. Com vocês, pois, a arte, a velocidade, a técnica o “balanço” e o inconfundível “carioquismo” deste notável Dom Um Romão (PITTIGLIANI, 1964) 49.

49 Texto da contracapa do álbum Dom Um (1964) escrito pelo produtor do disco Armando Pittigliani. Álbum lançado na época em formato vinil pela gravadora Philips.

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Embora o texto acima de Armando Pittigliani, importante produtor da gravadora Philips na época, - escrito na contracapa desse álbum - carrega impressões e julgamentos bastante pessoais acerca da performance de Romão em seu álbum solo, Dom Um (1964), ao mesmo tempo nos fornece um panorama preciso da carreira do baterista até aquele momento, apontando os seus principais trabalhos realizados que agregaram representatividade e bagagem na trajetória musical do baterista, o credenciando nesse sentido a realizar aquela que seria a sua primeira gravação com ampla liberdade de expressão no instrumento que ele (Romão) tanto desejava. Pittigliani termina suas considerações apontando Dom Um Romão como uma das grandes expressões da “moderna música popular” da época, ressaltando e valorizando no baterista características de performance como: velocidade, técnica, “balanço” e “carioquismo”. Vale comentar em particular esses dois últimos atributos conferidos a Romão por Pittigliani: “balanço” e “carioquismo”; os quais denotam em nosso entendimento um traço marcante do idiomatismo de Romão na bateria, que é o seu swing do samba, o qual o produtor associa a uma peculiaridade intrínseca do músico carioca.

Com a produção artística do próprio Pittigliani (Figura 15), Romão em consenso com o seu produtor, chamou um time de peso entre músicos e arranjadores, e registrou na 7 época um álbum que se tornaria referência do estilo sambajazz para a crítica especializada. 1 Assim como o baterista Edison Machado, Romão lançou apenas um álbum de carreira no Brasil na década de 60, vindo a gravar outro trabalho próprio somente em 1973, quando já morava nos EUA, já que logo no ano seguinte (1965) do lançamento do álbum Dom Um (1964), Romão se mudou em definitivo para a América do norte, abandonando de certa forma a sua carreira solo no Brasil enquanto baterista.

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Figura 15. Gravação do disco solo de Dom Um Romão: Dom Um (1964). Na imagem, Armando Pittigliani e Dom Um Romão - Fonte: . Acesso em 6/02/2017

Romão em sua estreia como artista solo teve a chance de gravar um disco exatamente como queria e é possível perceber em sua performance em Dom Um uma peculiaridade nos padrões de condução rítmica somado a uma consistente interação musical com os solistas. Muito embora os improvisos ainda fossem curtos devido a limitação física 7 dos discos de 78 rpm., da mesma forma que observamos em O Som de J.T. Meirelles, o que se 2 ouve em relação à questão da improvisação é algo com mais liberdade em relação à prática corrente da época.

Com composições de Tom Jobim, Baden Powell, Roberto Menescal, Orlann Divo e Roberto Jorge, e arranjos de Waltel Blanco, J.T. Meirelles e Paulo Moura, o álbum de estreia de Romão (Figura 15) contou com a participação de cerca de 20 músicos: K-Ximbinho (clarinete), Cipó (sax alto), Chaim Levak (piano), Zé Bodega (sax), Juarez Araújo (saxofone tenor), Maurílio da Silva Santos (trompete), Manuel Gusmão (baixo), Toninho Oliveira (piano), Pedro Paulo (trompete), Rubens Bassini (percussão), Jorge Arena (percussão),

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Hamilton Cruz (sax), José Delphino Filho (voz), Macaxeira (trombone baixo) e Edson Maciel (trombone)50.

O álbum possui um caráter essencialmente instrumental com12 temas de autoria de compositores e arranjadores de destaque na época, com espaço para improvisação de bateria, piano, baixo e sopros, exceto em duas faixas que contam com a participação do cantor José Delphino Filho: Consolação (composição de Baden Powell e Vinicius de Moraes) cantada na parte final, e na faixa Zambeze, (música de Orlann Divo e Roberto Jorge), com a presença de scats51 vocais apoiando o tema.

Na parte rítmica, o álbum Dom Um apresenta temas em sambajazz e bossa nova em diferentes andamentos e dinâmicas, com densos arranjos de metais exercendo ataques fortes e contraponto de vozes. Percebemos algumas outras referências externas a esses dois estilos citados e que estão presentes em duas músicas com fórmulas de compassos diferentes ao tradicional 2/4 do samba. Provavelmente, Romão foi influenciado na época pela música de Moacir Santos e Dave Brubeck antes de trazer para o estúdio as versões de arranjos para Africa, de Waltel Branco, a qual possui fórmula de compassos em 5/4, assim como em Take 5 de Brubeck, e para Jangal, de Orlann Divo e Rubens Bassini, faixa em que Romão se utiliza 7 de tambores na concepção do acompanhamento rítmico dos temas das diferentes partes 3 estruturais da música, fugindo do tradicional caixa-bumbo-chimbal-prato de condução, assim como fez Gene Krupa, baterista norte americano na gravação de Sing Sing Sing de Louis Prima (1937), com a orquestra de Benny Goodman, quebrando dessa forma paradigmas idiomáticos de condução rítmica de jazz para época (KORALL, 1990, p. 69-70).

50 Informação proveniente de duas fontes: SARAIVA, Joana Martins, A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos 1960. Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 109-p. RJ, 2007; artigo do jornalista e produtor Tiago Ferreira publicado no dia 26/11/2013. Disponível em: . Acesso em 29/03/2017. 51 Scat vocal: É a utilização de sons vocais como onomatopeias, com o objetivo de imitar instrumentos musicais. Esta técnica é comum em canções a capella, mas também pode ser utilizado em arranjos de lead vocal. Experimente cantar uma melodia só com sons tipo – Dah, dah, com a harmonia aberta. Informação disponível em: https://adorando.com.br/harmonia-vocal/. Acesso em 10/03/2017.

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Samba Nagô é a sexta faixa do álbum Dom Um, uma composição de João Mello e Marso Vanarro e possuiu em toda quase toda a sua extensão um denso arranjo de metais desde a sua introdução até o fim da música. Na parte rítmica, temos um afro-samba, variando momentos entre fórmulas de compasso em 2/4 e 3/4 na exposição temática, o que denota um aspecto de diferenciação para a época. Não temos seções de improviso de instrumentos melódicos em Samba Nagô, entretanto, há um diálogo constante da bateria de Romão com a percussão de Rubens Bassini e Jorge Arena, tendo o seu ponto alto numa espécie de seção de improviso rítmico, onde Romão mantem o padrão de “levada” de afro-samba junto com a percussão, citando inclusive o padrão rítmico do samba cruzado (samba batucado).

Na faixa seguinte, Diz Que Fui Por Aí, de Hortênsio Rocha e o consagrado compositor Zé Keti, encontramos mais um samba com andamento médio, com um intenso arranjo de metais de Waltel Branco com um único improviso exercido pelo piano de Chaim Levak. Na faixa Birimbau (Capoeira), também de João Mello e Clodoaldo Brito e arranjo do Maestro Cipó, observamos os metais trabalhando densamente por toda a música, com partes bem delimitadas e contrastantes em ritmo de capoeira, alternando momentos de dinâmica que vai de piano a fortíssimo. Vivo Sonhando, música de Tom Jobim, possui um andamento mais 7 acelerado, com Paulo Moura e Hamilton Cruz como solistas. Em Zona Sul, composição do 4 cantor e compositor Luiz Henrique Rosa e A. Soares, Dom Um Romão valoriza os improvisos de J. T. Meirelles (sax), Toninho Oliveira (piano) e Pedro Paulo (trompete), dando liberdade para os músicos transitarem da bossa nova para o jazz 52. Na faixa Zambeze, de Orlann Divo e Roberto Jorge, Romão deixa sua marca registrada com a aplicação de divisões rítmicas características do samba, distribuídas por toda a bateria, valorizando a raspadeira entre o aro de tons e da caixa.

Já em Telefone, música dos parceiros Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, Romão mostra um equilíbrio entre os ataques desferidos nos pratos juntos com os metais, com

52 Informação proveniente do site Na Mira do Groove. Resenha do pesquisador, crítico e jornalista de música, Tiago Ferreira: O disco solo de estreia do baterista brasileiro que passeou por diversos elementos jazzísticos, Disponível em: . Acesso em 04/05/2017.

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as levadas e o seu fraseado preenchendo os espaços deixados propositalmente para a bateria desempenhar. Há dois solos de bateria em momentos diferentes que traduzem bem o idiomatismo de Dom Um Romão, com uma ampla aplicação de sua fraseologia característica do samba pela bateria, executados pelos procedimentos idiomáticos da “raspadeira”; distribuição de padrões de telecoteco tradicional, variado, invertido, rítmicas de improvisação complementando com frases de passagens de um nível técnico e fraseológico avançado.

Em Dom Um Sete (composição de Waltel Branco), temos mais um arranjo de samba com fórmula de compasso diferente do tradicional 2/4. Dessa vez temos um 7/4 em grande parte da música, alternando em alguns momentos para 4/2, o que para época caracterizava algo novo em relação à prática musical corrente. Por fim, a música Fica Mal Com Deus de Geraldo Vandré, originalmente em ritmo de baião, se transformou nesse disco em bossa samba, com denso arranjo de metais em toda a música, finalizando com um solo coletivo em fade out em caráter de duelo polifônico.

Por conta da alta demanda de trabalho nessa fase musical (1964), Dom Um Romão não teve como divulgar devidamente esse álbum, não houve um show de lançamento muito menos uma turnê apresentando o repertório desse álbum. Romão na época estava 7 tocando intensamente com o seu grupo, o Copa Trio, em shows inclusive fora do Rio de 5 Janeiro, como na oportunidade da participação no programa Fino da Bossa53, em que Elis Regina e Jair Rodrigues apresentavam na TV Record em São Paulo no teatro Paramount em 1964. Entretanto, sem o devido reconhecimento na época, o álbum Dom Um possui uma representatividade estilística conforme a crítica especializada passou a afirmar a partir dos anos 2000, tanto que foi incluído na lista de álbuns importantes do estilo relançados pela

53 Há 45 anos estreava na TV Record, o programa: O Fino da Bossa. Apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, acompanhados na maior parte das edições pelo Zimbo Trio, o programa recebia, ao vivo no palco, convidados como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi e Os Cariocas. Produzido e dirigido por Manoel Carlos e Nilton Travesso, a atração ficou no ar três anos com grande sucesso, entre 1965 e 1967. O Fino da Bossa marcou não somente a história da televisão brasileira, como também ajudou a difundir e redefinir os rumos da música popular brasileira. Disponível em: . Acesso em 03/2018.

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gravadora Dubas a partir de 2001, conforme cita a pesquisadora Joana Martins Saraiva em sua pesquisa (SARAIVA, 2007, p. 9).

Vale trazer a outra parte do texto da contracapa do álbum Dom Um (1964) escrito por Armando Pittigliani, em que o produtor comenta o momento da carreira do amigo baterista, quando ressalta novamente os seus atributos musicais, o posicionando como um baterista inovador e influente de seu tempo:

Alguém já o chamou de “o Mefistófeles da Bateria”, não apenas pela sua fisionomia angulosa, que lembra realmente o terrível personagem da ópera de Boito, mas também pela sua diabólica ação aos tambores. Dom Um – que tem um Romão no sobrenome e que nasceu no Rio a 3 de agosto de 1925 – é, sem duvida, uma das instituições do moderno samba carioca. Quando se pensa em organizar um festival de jazz&bossa nova, quando se cogita em qualquer coisa que se relacione com música moderna, um dos nomes trazidos à coleção, de saída, é o seu. Desde as legendárias jam sessions, que eram levadas a efeito dominicalmente na boate Little Club, em meados da década de 50, que Dom Um é um elemento indispensável no “décor” da nossa “nouvelle vague” musical, um importante ponto de referência no panorama do jazz e da bossa nova. Tanto num gênero como noutro, sua influência em todos os bateristas jovens, surgidos daquela época para cá, é marcante. Não há realmente um baterista jovem que não tenha um pouquinho de Dom Um no seu jogo de pratos, na sua acentuação do grande bombo, na marcação do contratempo no 7 prato-de-pé e, sobretudo naquele contraritmo, com a baqueta esquerda cruzada sobre a caixa, que é, diga-se de passagem, um dos fortes do fabuloso “drummer”. Dom 6 Um é figurino pelo qual cortaram – e ainda cortam – todos os ritmistas da nova geração (PITTIGLIANI, 1964).

Pittigliani ressalta na citação acima, dois aspectos importantes em seus comentários sobre Romão; um deles aponta atributos específicos do idiomatismo do baterista, em que estabelece um panorama de seus traços característicos que denotam peculiaridade. Nesse sentido, Pittigliani teceu considerações que agregam um sentido destacado na performance do baterista, com expressões tais como: “sua diabólica ação aos tambores”, “no seu jogo de pratos”, “na sua acentuação do grande bombo”, “na marcação do contratempo no prato-de-pé” e, “sobretudo naquele contraritmo”, “com a baqueta esquerda cruzada sobre a caixa”, “que é, diga-se de passagem, um dos fortes do fabuloso drummer”. Nesse último comentário em especial, Pittigliani está se referindo a “raspadeira”, o qual vincula esse procedimento de performance como marca registrada do idiomatismo de Romão na bateria o qual será devidamente discutido adiante no capítulo do estudo interpretativo.

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O segundo aspecto evidenciado por Pittigliani em seus comentários diz respeito aos atributos de Romão numa perspectiva “macro”, posicionando o seu artista como uma referência para os bateristas de sua época, bem como para as novas gerações, afirmando categoricamente: “é sem duvida uma das instituições do moderno samba carioca, um importante ponto de referência no panorama do jazz e da bossa nova”. “Tanto num gênero como noutro, sua influência em todos os bateristas jovens, surgidos daquela época para cá, é marcante. Não há realmente um baterista jovem que não tenha um pouquinho de Dom Um”. Com tais comentários, fica evidente a grande admiração do produtor pelo amigo baterista, por outro lado todas as considerações que Pittigliani confere a Romão no que tange a sua performance musical, mostram coerência com o que encontramos em nossa análise musical realizada no recorte musical que determinamos para esse trabalho. Outro aspecto interessante observado nos comentários é relacionado à expressão: “moderno samba carioca”. Parece que o produtor aponta um sentido de associação de modernidade com a prática do sambajazz, o qual propiciou uma nova forma de se tocar o samba na bateria na década de 60, mudando a prática musical corrente dos bateristas da época consequentemente ganhando status de moderno. 7 Conforme comentamos anteriormente, a gravadora Dubas a partir de 2001, 7 remasterizou e relançou trabalhos de referência do período do sambajazz, o que chamou a atenção novamente para o estilo musical praticado no Beco das Garrafas na década de 60, e reascendeu o interesse de músicos e pesquisadores pela música instrumental praticada naquele tempo. Dentre alguns álbuns relançados pela Dubas além do próprio álbum Dom Um (1964), nosso objeto de estudo e discutido nesse subcapítulo, que teve o seu relançamento em 2004, destacamos ainda os discos: O Novo Som (2001/1965) de Meirelles e os Copa Cinco 5, Embalo (2004/1964) de Tenório Jr, Você Ainda Não Ouviu Nada (2002/1964) de Sergio Mendes e Bossa Rio (SARAIVA, 2007).

Em matéria para o jornal Folha de São Paulo (2005), acerca do relançamento do álbum Dom Um pela gravadora Dubas em 2004, o jornalista Ronaldo Evangelista em uma breve resenha comentou sobre a sonoridade alcançada na época com esse álbum, traçando um paralelo com outros trabalhos produzidos no mesmo período no Brasil:

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A sonoridade se remete a discos como: O LP, de Os Cobras, Embalo, de Tenório Jr, e de Edison Machado, Edison Machado É Samba Novo, com diferentes instrumentos e instrumentistas, revezando-se nos solos, sobre arranjos que privilegiam as complexidades harmônicas e melódicas das composições e suas variações rítmicas. A personalidade de Dom Um, com seus tempos divididos entre a caixa e o prato, o samba e o jazz, surge inspirando toda uma Big Band (EVANGELISTA, 2005).

Evangelista ainda contextualizou em suas considerações, características idiomáticas individuais da “trinca baterística” de destaque da época da bossa nova e do sambajazz (década de 60), traçando um paralelo entre os bateristas Edison Machado, o próprio Dom Um Romão e Milton Banana, agregando um juízo de valor representativo acerca dos atributos qualitativos da contribuição que Romão exerceu em sua performance frente aos seus pares da época, fazendo coro com o texto da contracapa do álbum Dom Um escrito por Pittigliani o qual abrimos esse subcapitulo, evidenciando as mesmas virtudes técnicas mencionadas como: precisão, velocidade e firmeza, aliadas a uma batida afro-brasileira balanceada:

7 Se Edison Machado era conhecido por fazer “samba no prato” e Milton Banana foi o inventor da batida da bossa, sossegada, Dom Um é a precisão e a firmeza, com sua 8 batida rápida, no contratempo, e sua levada afro-brasileira. “Entre improvisações surgem solos de bateria em estéreo54 mostrando a arte, a velocidade, a técnica, o balanço e a inconfundível música do “notável” Dom Um, como diz a contracapa original55 (ibidem).

Em 1965, Dom Um Romão mudou em definitivo para os EUA, começando a partir de então um momento de sua carreira denominada como “fase americana” (DESOUTEIRO, 2016). Pontuaremos no próximo subcapítulo os principais eventos musicais provenientes dessa fase e que estiveram amplamente associados ao contato com diferentes

54 Característica técnica de edição de mixagem presente nesse disco onde o pan (lados direito e esquerdo), ou seja, o direcionamento sonoro para um dos lados direito ou esquerdo é promovido propositalmente, criando com isso uma espécie de efeito sonoro que realça partes musicais, inserido especificamente nesse caso no momento do solo de bateria presente na música Telefone (Dom Um). 55 Evangelista está se referindo ao texto da contracapa do álbum Dom Um (1964), escrito pelo produtor desse álbum Armando Pittigliani.

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estilos musicais daquele praticados no Brasil por Romão em solo americano, como o jazz e o recente fusion. Vale ainda ressaltar um aspecto interessante relativo a essa fase americana de Romão; para que o músico pudesse se firmar nos EUA e conquistar o seu espaço na cena musical local, ele passou aos poucos a tocar mais percussão do que bateria, fato que culminou com a sua entrada no Weather Report (1972), justamente tocando instrumentos de percussão, o que de certa forma marcou o início de uma fase na vida musical de Dom Um Romão em que a partir desse ponto a percussão se tornaria o seu principal instrumento de expressão artística.

1.4 Fase Americana (1965)

Norman Granz, empresário da cantora norte americana de jazz Ella Fitzgerald, em turnê pelo Brasil na década de 60, conheceu Dom Um Romão ao visitar o Beco das Garrafas no Rio de Janeiro. A partir desse encontro, Granz e Romão iniciaram uma amizade e o empresário deu a Romão o valor em dinheiro de uma passagem aérea para os EUA, convidando o músico a tentar a sua vida musical na América. Em 1965, Dom Um Romão partiu para os Estados Unidos, e logo após a sua chegada começou trabalhar com o 7 saxofonista Stan Getz e a cantora brasileira que já morava por lá: Astrud Gilberto 9 (DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA, 2017)56.

Com residência fixa estabelecida na América (1965), Romão se manteve tocando com Astrud Gilberto por alguns anos, participando de shows nos EUA e também na Europa. Em 1967, gravou com a própria Astrud Gilberto dois discos pela gravadora : Look to the Rainbow e Beech Samba. Entretanto, a sua primeira gravação enquanto residente em solo americano foi no ano de sua chegada ao país (1965), mais precisamente em Nova Iorque, a convite do pianista e seu amigo João Donato, registrando o álbum O Novo Som do Brasil, com arranjos de Claus Ogerman pela gravadora RCA. No ano seguinte, em 1966, Romão volta aos estúdios agora para gravar outro álbum, o Finding a New Friend, pela

56 Informações provenientes do Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Disponível em: . Acesso em 20/08/2017.

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gravadora Fontana, resultado do encontro de Oscar Brown Jr. (com quem costumava tocar em Chicago) com o amigo, cantor e violonista Luiz Henrique, parceiro musical desde o Brasil, tendo gravado com ele um ano antes, ainda no Brasil, o seu primeiro disco solo pela gravadora Philips: A Bossa Moderna de Luiz Henrique (1964)57.

Em de 1967, Tom Jobim gravou nos EUA em parceria com o cantor Frank Sinatra no estúdio United Western Recorders em - Los Angeles (CA,) o álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim pela gravadora Verve. O álbum foi indicado ao 10° Grammy Awards58 na categoria “álbum do ano”, e contou com Sinatra interpretando três standards americanos, gravados pelo baterista norte americano (1934)59, e mais sete composições do próprio Jobim em ritmo de bossa nova, cantadas por Frank Sinatra e gravadas então por Dom Um Romão na bateria. Jobim, além de tocar piano e violão nesse álbum, registrou alguns vocais sob os arranjos de Claus Orgerman, e deixou para a história da música mundial ao lado de Frank Sinatra, o registro do encontro de dois dos mais

8 57 Informação proveniente do site do jornalista Arnaldo DeSouteiro publicado em 28/05/20O7. Disponível em: 0 https://jazzstation-oblogdearnaldodesouteiros.blogspot.com/search?q=luiz+henrique. Acesso em 18/02/2017. 58Grammy Award, ou simplesmente Grammy, é um prêmio concedido pela para reconhecer o sucesso na indústria da música, com uma cerimônia de apresentação anual, apresenta performance s de artistas proeminentes e a distribuição dos prêmios que passarem por uma comissão julgadora. O Grammy detém estrutura de reconhecimento da indústria da música como o de outros prêmios nesse sentido, como: o Oscar (filme), o Emmy Awards (televisão) e o Tony Awards (teatro). A primeira cerimônia do Grammy Awards foi realizada em 4 de maio de 1959, para homenagear e respeitar as realizações musicais de artistas para o ano de 1958. Após a cerimônia de 2011, a Academia revisou muitas categorias do Grammy Award para 2012. 59 Colin Bailey nasceu em Swindon, Inglaterra, em 1934. Excursionou com Winnefred Atwell de 1952-1956, e se apresentou no London Palladium para a Rainha Elizabeth (1952); morou na Austrália de 1958 até o início dos anos 1960, tocando na banda de funcionários do Channel 9 TV. Em Sydney, Bailey tocou com Bryce Rohde e o Australian Jazz Quartet. Quando o Australian Jazz Quartet visitou os EUA, Bailey foi contratado por Vince Guaraldi. Este trio tocou com Jimmy Witherspoon , e Gene Ammons. Em 1962 eles gravaram o álbum Jazz Impressions of Black Orpheus, que incluiu o hit Cast Your Fate To The Wind . Em 1963 mudou-se para Los Angeles para tocar com o Trio. Bailey trabalhou com Clare Fischer de 1963 a 1964, com (por 14 anos, e fez 14 registros) e Miles Davis (1963); excursionou em todo o mundo com Benny Goodmanem e . Em 1967 ele gravou com Frank Sinatra e Tom Jobim, também tocou com Chet Baker, Ray Brown, João Gilberto e Blossom Dearie (1975). Em 1970, Bailey se tornou um cidadão americano e por seis anos foi o baterista substituto de Ed Shaughnessy em The Tonight Show Band. Bailey mudou-se para o Texas em 1979 e se tornou membro do corpo docente da North Texas State University por dois anos. Seus trabalhos posteriores incluem nomes como: Richie Cole , Jimmy Rowles , Red Mitchell , Stefan Scaggiari , Joe Pass (novamente), Ron Affif , Weslia Whitfield e . Sua última turnê foi com Joe Williams em 1998. Na área didática Colin Bailey lançou três livros de destaque: Bass Drum Control (1964), The Art of Drum Phrasing (1998) e Bass Drum Control Solos (2002), todos editados pela Hal Leonard.

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proeminentes músicos em suas respectivas áreas de atuação. Tal acontecimento musical foi reconhecido pelo público através da repercussão mundial que o álbum alcançou, levando a batida de bossa nova de Romão a ser ouvida por milhares de pessoas em todo o mundo (ibidem, 2017).

No mesmo ano de 1967, Romão gravou mais dois álbuns com Tom Jobim: A Certain Mr. Jobim pela Reprise Records e Wave pela A&M Records/ CTI Records, encorpando ainda mais a sua discografia. Vale citar ainda também no ano de 1967, a sua participação em dois trabalhos produzidos pela gravadora Verve Records, o Batucada e Kee Ka Roo do pianista e organista Walter Wanderley que também passou a morar nos EUA nessa época (DESOUTEIRO, 2007).

Entre o intervalo do término do grupo Brasil 65 em 1968, e a montagem do novo Brasil 66, Romão foi chamado por Mendes para gravar o álbum Sergio Mendes Favorite Things (1968), pela gravadora Atlantic. Nesse mesmo ano (1968), agora já como integrante do grupo Brasil 66, Romão gravou o álbum que teve uma ótima repercussão na mídia: Fool On The Hill, pela A&M Records e partiu logo após em turnê pelos Estados Unidos e Europa com o Brasil 66. De volta aos EUA, a convite do amigo guitarrista Luiz Bonfá, Romão participou 8 da gravação de duas faixas do LP The Movie Song Album (1968), do cantor Tony Bennet que 1 viria a se tornar mais tarde referência de voz americana no mesmo estilo que Frank Sinatra trilhou (ibidem).

Romão desligou-se do grupo Brasil 66 de Sergio Mendes em 1969. As gravações de estúdio se tornaram mais frequentes nesse período para ele, e com isso, chegou mais um convite, dessa vez do pianista de jazz americano Vince Guaraldi para gravar o seu novo álbum: Alma Ville (1969), pela gravadora Warner Bros em ritmo de bossa nova60. Em 1970, Romão registrou mais um álbum com o amigo pianista João Donato, A Bad Donato, pela gravadora Blue Thumb Records, que foi relançado no Brasil pela gravadora Dubas em 2001 no movimento de relançamentos de álbuns do período do sambajazz, sendo eleito em 2007 o

60 Disponível em: . Acesso em 18/02/2018.

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76º melhor dentre os 100 Maiores Discos da Música Brasileira, segundo a revista Rolling Stone brasileira.

Em 1971, Airto Moreira61 já reunia bastante prestígio no cenário musical americano ao lançar seu segundo disco solo: Seeds On The Ground, pela gravadora Buddah Records, quando então convidou Dom Um Romão para participar tocando percussão. A reaproximação dos dois músicos brasileiros rendeu ainda no ano de 1971, a indicação de Moreira para que Romão ingressasse como percussionista no grupo Weather Report62 em seu lugar63. Airto Moreira gravou o primeiro álbum da banda Weather Report (1971) pela gravadora Columbia – CBS, mas não poderia fazer os shows de estrada desse disco em função do convite de Miles Davis para ingressar em sua nova banda. Dessa forma, Romão seguiu no Weather Report, saiu em turnê de shows, e, no período em que integrou a banda (1972-1974), gravou quatro álbuns: I Sing the Body Eletric (1972), Live in Tokyo (1972), Sweetnighter (1973), Mysterious Traveler (1974), lhe rendendo um destaque no movimento inicial do fusion64 americano (ibidem).

Em 1973, Dom Um Romão lançou mais um disco autoral, o Braun-Blek-Blue, pela gravadora Happy Bird, e no mesmo ano seguiu viajem com a banda de jazz rock 8 2

61 Airto Moreira relatou em entrevista para revista Jazzwise (1999) como foi à indicação de Dom Um Romão para entrar no grupo Weather Report em substituição ao seu lugar. Airto Moreira revelou que perguntou a ele, se o mesmo conhecia algum percussionista que pudesse tocar no mesmo estilo. Moreira indicou Dom Um Romão e Zawinul concordou de imediato. Airto comentou nessa entrevista: “Então, de certa forma, eu retribui por ser uma inspiração para mim no início da minha carreira. Paguei pelos licks que eu aprendi com ele no Rio". Disponível em: . Acesso em 03/2018 62 “O Weather Report foi para o jazz o que o mundo do rock chamaria em 1970 de um “supergrupo”. Mas diferentemente da maioria dos supergrupos de rock, eles não permaneceram atuantes apenas por 15 anos, eles mais do que suplantaram as expectativas praticamente definindo o que seria o jazz rock durante toda a sua atividade” (Tradução do autor). Weather Report started out as the jazz equivalent as the of what the rock world in 1970 as calling a “supergroup”. But unllike most of the rock supergroups, this one not only Kept going for a good 15 years, it more than lived up to its billing, practically defining the state of the jazz rock art throughout out almost all of its run. (All Music Guide to jazz, 3rd edition 1998). 63 Disponível em: . Acesso em 18/02/2018. 64 É um gênero musical que consiste na mistura do jazz com outros gêneros, particularmente rock 'n roll, , . O estilo começou com músicos de jazz que misturam as formas e técnicas de jazz aos instrumentos elétricos do rock aliados à estrutura rítmica da música popular afro-americana, tais como a soul music e o rhythm and blues.

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americano Blood, Sweat and Tears em turnê mundial, gravando com eles o disco Mirror Image no ano seguinte (1974) pela Columbia Records65.

Paralelamente a todas as gravações e shows com todas as bandas e músicos citados, Romão lançou respectivamente em 1974 e 1975, mais dois álbuns solo: Dom Um Romão e Spirit of the Time, ambos pela gravadora Muse Records. Ainda em 1974, em sua passagem temporária pelo Brasil, registrou com seu amigo baterista carioca Jadir de Castro, os discos Dom Um & Jadir De Castro - Batucada Século 21(1974) e Dom Um & Jadir De Castro- Samba's School, Volume 2(1974), ambos pela gravadora Sideral.

Após quatro anos de permanência no Weather Report, entre gravações e shows em todo o mundo, tendo inclusive tocado no Brasil com o grupo no Festival de Jazz no Rio de Janeiro realizado em 1972, Romão deixou o Weather Report para dar continuidade a sua carreira solo. Em 1976 o músico gravou o LP Hotmosphere pela Pablo Records, contando com participações especiais de cantores e instrumentistas como Célia Vaz, Gloria Oliveira e Julie Janiero nos vocais, Ricardo Peixoto e Sivuca nos violões, o amigo Dom Salvador no piano, Alan Rubin e Claudio Roditi no trompete, entre outros músicos norte-americanos. Sobre o álbum Hotmosphere (1976), o escritor e compositor Vitor Guima comentou em sua 8 resenha: “transita entre o samba e o jazz, com a presença de trechos em que a influência da 3 música regional brasileira fica evidente”66. Guima em suas considerações aponta o início de um processo musical em que Romão passa a incluir em sua música outros ritmos distintos daquele que o consagrou como baterista referência do sambajazz, pois temos em Hotmosphere, faixas em ritmos de baião, ijexá e candomblé, o que pode ser uma possível influência da música de , Edu Lobo, Dorival Caymmi e de seu amigo, o acordeonista e guitarrista Sivuca (1930-2006).

65 Disponível em: < https://www.discogs.com/artist/21056-Dom-Um- Romao?filter_anv=0&subtype=Production&type=Credits>. Acesso em 18/02/2018. 66 Resenha feita pelo cineasta, escritor e compositor, Vítor Guima. Escreve sobre Discos Escondidos em seu blog. Disponível em: . Acesso em 17/02/2018.

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No fim dos anos 70, Dom Um Romão começa a viajar frequentemente para a Europa, e passa a gravar e tocar em festivais de jazz com o seu Dom Um Romão Quintet, atuando como percussionista e eventualmente como baterista. Vale citar sua participação tocando percussão com o grupo suíço OM do baterista suíço Fredy Studer, resultando no disco OM With Dom Um Romao, gravado em 1978 pela Japo Records.

No próximo subcapítulo apresentaremos o que o produtor Arnaldo DeSouteiro chama de “fase europeia” da vida de Dom Um Romão. As informações obtidas acerca desse período (fase europeia), bem como a do seu retorno ao Brasil (próximo subcapítulo), são provenientes do próprio produtor e de alguns poucos sites encontrados nos meios eletrônicos, o que pela dificuldade de comprovação das fontes, acreditamos não serem as mais confiáveis, portanto, dessa forma, nos baseamos quase que exclusivamente nos relatos histórico-musicais advindos do próprio DeSouteiro, certo de que as informações divulgadas ou fornecidas a nós através daquele que foi o seu último produtor e profundo conhecedor da história de vida de Romão, são as mais fiéis e seguras possíveis.

8 1.5 Fase Europeia (década de 80 e 90) 4

Em 1977, Romão transferiu sua residência para a cidade de Lucerne na Suíça, mas ainda manteve o seu estúdio Black Beans em atividade em Nova Jersey (EUA) (DESOUTEIRO, 2016). O Black Beans se tornou um ponto de encontro de vários músicos da cena musical local, o espaço também era uma espécie de escola de música e Romão ministrava aulas de percussão, bateria brasileira e dirigia uma pequena escola de samba (MEIRELLES, 2016). Com a sua mudança para a Europa, foi inevitável o fechamento do estúdio, o que aconteceu alguns anos depois. Sobre o Black Beans, e da importância de Dom Um Romão no contexto musical daquela época (fim da década de 70), o percussionista Bobby

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Sanabria67, na ocasião da morte de Romão, comentou em depoimento ao blog: World Central Music:

“Eu me lembro bem de seu estúdio em Nova Iorque, era um espaço de ensaio, uma espécie de loft chamado“ Black Beans ”. Era de fato um local de encontro para passar um tempo com boa música. Dom tinha uma máquina que, acredito, era para fazer sapatos a qual ele guardava perto do palco. Era uma roda gigantesca e ele a utilizava como um instrumento de percussão. Isso foi durante o auge da cena do estúdio em Nova York, o que era muito excitante. Dom armazenava todos o seus instrumentos de percussão lá, e, se ele te conhecia, você poderia pegar emprestado o que fosse necessário. Ele foi um grande percussionista e baterista brasileiro, e, junto a Airto, ele foi responsável por mostrar em geral as pessoas, a percepção das possibilidades de “cor” com a percussão brasileira bem como a ascensão dela sendo utilizada em grupos direcionados a música de fusão ”(SANABRIA, Bobby, apud. World Music Central News Department, 2005)68.

Em sua fase Europeia, no ano de 1985, Romão atuou como percussionista de seu próprio quinteto, integrado também por Izio Gross (piano), Wilson D' Oliveira (sax-tenor), Hal Thurmond (bateria) e Norbert Domling (baixo); e com essa formação tocou no I Festival de Jazz de Lisboa, em Portugal. O Dom Um Romão Quintet ainda acompanhou alguns artistas 8 norte-americanos de diferentes estilos musicais, vale citar o cantor Tony Bennett com quem já 5

67 Bobby Sanabria é baterista e percussionista americano de ascendência porto-riquenha, especializado em jazz, ritmos latinos e latin-jazz. Foi indicado ao Grammy por sete vezes com seu trabalho solo. Sanabria é líder do Quarteto Aché, do Sexteto Ibiano, do Ascensión e de seu Multiverse Big Band. Já escreveu para as revistas: Modern Drummer, DRUM! , Traps e Highlights In Percussion. Compôs trilhas para os documentários From Mambo To Hip Hop - A South Bronx Tale (2007) e Some Girls (2017). Atualmente ensina a Orquestra de Jazz Afro-Cubana na Manhattan e na New School of Jazz and Contemporary Music. Disponível em: . Acesso em 24/04/2018. 68 Trad. “I remember well his studio/rehearsal space/loft/club in called “Black Beans.” It was indeed a gathering place for great music and times. Dom had a machine that I believe was for making shoes that he stored near the stage there. It had a gigantic wheel and Dom utilized it as a percussion instrument. This was during the heyday of the loft scene in New York City which was very exciting. Dom stored all of his percussion gear there and if he knew you, you could borrow whatever you needed. He was a great all around Brazilian percussionist and drum set player and along with Airto he was responsible for the general public becoming aware of the for “color” with Brazilian percussion and the rise of it being utilized in fusion oriented groups.” Informação proveniente do site: . Acesso em 7/07/2018.

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tinha gravado nos 60 a convite de Luiz Bonfá, e o popular artista americano Robert Palmer, numa turnê fruto da gravação do álbum Heavy Nova (1988) pela gravadora EMI (DESOUTEIRO, 2016).

Romão esteve algumas vezes no Brasil na década de 90, em que participou de shows e gravações, vale destacar em 1992, sua apresentação no projeto Som das Ondas, realizado na Praia do Arpoador (RJ). No ano seguinte (1993), de passagem pelos EUA, o baterista registrou mais um trabalho autoral, o álbum Saudades pela gravadora Walter Lily Acoustics. O título do álbum já fazia alusão ao estado emocional de Romão que ensaiava uma possível volta ao Brasil. De 1994 a 1998, o músico alternou residência entre Europa, EUA e passagens pelo Brasil, mantendo uma intensa atividade de gravação. Nesse período merece destacar os álbuns gravados com músicos americanos e europeus: Fredy Studer e Christy Doran, Half A Lifetime (1994) pela Unit Records; , Kofi (1995) pela Blue Note e com Peter Scharli, April Works (1996) pela Unit Record (ibidem).

No ano de 1997, Romão veio ao Brasil passar férias e conheceu aquele que seria o seu último produtor musical, Arnaldo DeSouteiro. Com DeSouteiro Romão realizou shows, workshops, gravou CDs enquanto artista principal e também como convidado especial em 8 trabalhos de instrumentistas e cantores que mencionaremos no próximo subcapítulo. Tais 6 relatos histórico-musicais foram contados a nós pelo próprio produtor através de uma longa entrevista, com a complementação de informações advindas de seu próprio blog: Jazz Station - Arnaldo DeSouteiro's Blog (Jazz, Bossa & Beyond).

1.6 Retorno ao Brasil (fim da década de 1990 até 2005)

As constantes visitas ao Brasil e o início da parceria profissional com o produtor musical carioca Arnaldo DeSouteiro, foram fatos que contribuíram a partir de 1997, para uma permanência maior de Dom Um Romão no país. DeSouteiro conta que o músico veio ao Rio de Janeiro em 1997 passar as férias, e que na oportunidade, assistindo a um show da cantora

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Ithamara Koorax acompanhado pelo grupo instrumental , na Sala Funarte no Rio de Janeiro, reencontrou-se com Romão no camarim do teatro69. Como DeSouteiro buscava dar um novo impulso ao seu selo JSR, propôs a parceria profissional ao músico que aceitou de imediato. Romão já demonstrava vontade de tratar a sua carreira de uma forma diferente do que já havia feito anteriormente, conforme nos revelou o próprio DeSouteiro acerca desse fato: “Eu gravei aqueles discos para as gravadoras: Muse, Pablo e para a ECM sem sair em excursão, nunca me preocupei com divulgação, gravava por gravar, mas quero fazer algo diferente agora” (DESOUTEIRO, 2007).

Três dias depois desse reencontro entre DeSouteiro e Romão, a dupla foi para o estúdio gravar algumas faixas para o CD Serenade in Blue (2000) da cantora Ithamara Koorax. Paralelamente, DeSouteiro e Toninho Barbosa, “o Van Gelder70 brasileiro” segundo opinião do produtor (DESOUTEIRO, 2007), começaram a fazer o novo trabalho solo de estreia de Romão na gravadora JSR, sendo então o primeiro disco do baterista gravado no Brasil desde o supracitado LP Dom Um, de 1964. Convidaram para a gravação de Rhythm Traveller (1998), velhos amigos músicos de Romão, entre eles o baterista Jadir de Castro,

Gegê, Laudir de Oliveira, e também alguns novos amigos, entre eles: Fabio Fonseca, Nelson 8 Ângelo, Marcelo Salazar e Pingarilho (ibidem). 7

Artistas e músicos, sabendo da presença de Dom Um Romão na cidade do Rio de Janeiro, começaram a chamá-lo para gravações, dentre eles, vale citar o cantor Marcelo D2, fã de Romão e que na época estava lançando o seu primeiro álbum solo, o CD Eu tiro é Onda (1998), trabalho que teve na época uma boa repercussão na mídia. Ainda no período das gravações do álbum Rhythm Traveller (1998), DeSouteiro, através da produtora carioca

69 O registro em vídeo desse encontro pode ser acessado no endereço: . Acessado em 07/2016. 70 Rudolph Van Gelder (1924 - 2016): foi um engenheiro de gravação americano especializado em jazz. Considerado como um dos engenheiros de gravação mais importante do jazz pela crítica especializada, Van Gelder gravou os principais artistas de jazz de sua época em álbuns reconhecidos como clássicos. Ele trabalhou com algumas gravadoras, mas principalmente com a Blue Note Records. O Nova Iorque Times citou que Gelder é detentor de créditos como engenheiro de gravação de álbuns clássicos dentro do jazz como: A Love Supreme (1965) de John Coltrane, Walkin (1957) de Miles Davis, Maiden Voyage (1966) de Herbie Hancock, Saxophone Colossus (1956) de Sonny Rollins e Song forMy Father(1965) de Horace Silver. Disponível em: . Acesso em 03/04/2018.

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Federica Boccardo71, agendou um show no Teatro Laura Alvim, no projeto “Quintas Acústicas”. Foram duas sessões com lotação esgotada e com a presença de vários músicos, jornalistas e críticos na plateia, como a do escritor e jornalista Tárik de Souza (ibidem).

O álbum Rhythm Traveller (1998) alcançou um sucesso imediato na Inglaterra e DeSouteiro, aproveitando a oportunidade, organizou uma turnê europeia em fevereiro de 1998 com Dom Um Romão. Os shows começaram no bar Jazz Café em Londres na Inglaterra, foram duas noites com sucesso de público para ver o baterista com seu octeto formado por brasileiros e ingleses. Após a turnê, Romão voltou para a sua casa na Suíça, mas no final de 1998, o jornalista e crítico de música Carlos Calado, conseguiu agendar datas no SESC de São Paulo, trazendo através de DeSouteiro, Dom Um Romão de volta ao Brasil. No ano de 1999, foi montado um novo grupo para o baterista com músicos mais jovens como a carioca Paula Faour nos teclados e Jorge Pescara no contrabaixo, e com essa formação, Romão gravou o programa Ensaio, na TV Cultura (Fernando Faro), no qual ele pode tocar e contar sobre a sua trajetória na música. Na mesma época, ainda em São Paulo, o baterista realizou um workshop no Teatro da Cultura Inglesa, com a presença de muitos fãs e bateristas profissionais. Em sequencia, Romão foi para o Rio de Janeiro cumprir a agenda na casa de shows Mistura Fina. 8 Segundo DeSouteiro, devido à ótima repercussão desse show, o músico permaneceu por mais 8 tempo no Brasil, incluindo a gravação do CD Street Angels (1999), um projeto para o selo inglês Mr. Bongo, produzido também por DeSouteiro. Após cumprir toda essa agenda no Brasil, Romão retornou para a Europa, mas em janeiro de 2000 voltou ao Rio de Janeiro, para

71 Federica Lanz Boccardo foi uma renomada produtora cultural que faleceu em 5 de maio de 2017 na cidade do Rio de Janeiro. Trabalhou como assistente especial da presidência na Funarte e também na produtora Dueto, responsável por trazer grandes artistas para o Brasil. Ajudou o produtor Arnaldo DeSouteiro a trazer Eumir Deodato para se apresentar como convidado especial no primeiro show de Bjork no Brasil, realizado no Rio, no Free Jazz Festival, em 1996. Também com DeSouteiro programou Dom Um Romão para shows no Brasil em 1997 e 1998 no Rio de Janeiro e em São Paulo: na Casa de Cultura Laura Alvim (Rio de Janeiro), onde atuava como programadora musical; no projeto SESC Instrumental em São Paulo e também o programa "Ensaio", de Fernando Faro, na TV Cultura. Não obtivemos informações acerca de sua data e loca de nascimento. Fonte consultada: Arnaldo DeSouteiro, disponível em: < https://www.facebook.com/search/top/?q=Federica%20Boccardo>. Acesso em 14/05/2018.

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começar a produção do que seria o seu penúltimo trabalho autoral: o CD Lake of Perseverance (2001). Acerca desse álbum, DeSouteiro conta:

Um êxito sem precedentes em sua carreira, gerando vários singles e remixes que viraram hits no cenário do “dancefloor jazz”. Naquele ano, Dom Um ficou em segundo lugar como percussionista na eleição promovida entre os leitores da Downbeat, com 169 votos (atrás apenas de , que falecera meses antes), e em sétimo lugar entre os bateristas (à frente de Steve Gadd) (ibidem).

Na época, Tárik de Souza publicou no Jornal do Brasil72 uma resenha sobre o trabalho, em que valoriza a carreira de Dom Um Romão, comentando que embora o músico já se encontrasse em uma idade avançada, continuava a produzir incessantemente:

O resultado é um disco que respinga energia... a audácia do solista e do produtor resultam em descobertas e invenções que suplantam de longe as discrepâncias... Numa idade em que muitos já se aposentaram cheios de glória, Dom Um Romão continua na linha de frente aperfeiçoando o imperfeito. (SOUZA, 2001, p. 233). 8

9 Ainda sobre a repercussão de Lake of Perseverance, em dezembro de 2001, a revista americana especializada em jazz Down Beat indicou Dom Um Romão como vencedor na categoria “beyond group”, ganhando novamente destaque no mercado americano (DESOUTEIRO, 2016).

Em 2002, no Rio de Janeiro, Romão atuou no CD Teu Nome é Pixinguinha, de Marcelo Vianna, lançado no mesmo ano pelo selo carioca Biscoito Fino73. Nessa época Dom Um Romão passa a permanecer mais tempo no Brasil e a sua produção discográfica e suas participações em shows cresciam numa proporção substancial. DeSouteiro conta que

72 Resenha feita pelo jornalista, escritor e critico musical Tárik de Souza no Jornal de Brasil em 27/02/2001 e que se tornou um capítulo em seu livro Tem Mais Samba (2003). 73 Informações provenientes do site Dicionário da MPB. Disponível no endereço eletrônico: . Acesso em 22/07/2016.

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trabalhou intensamente com o baterista nessa fase final de sua vida, desde shows como Piraquê, o Candem Town Jazz Festival em Londres, até produções de mais discos como Nu Jazz Meets Brazil (2002); Cool Bossa Struttin (2002), trabalho solo da pianista Paula Faour com Manoel Gusmão no baixo (antigo companheiro de Romão no Copa Trio); (2003) de Ithamara Koorax; Histórias e Sonhos (2003) de Carlos Pingarilho; Grooves in the Temple (2005) do baixista Jorge Pescara, que foi gravado pouco tempo antes da morte do baterista; o álbum solo de Marcelo Salazar The Tropical Lounge Project (2005), lançado um mês após a morte de Romão; Ithamara Koorax All Around the World (2014), lançado recentemente, e ainda projetos inéditos, que poderão ser lançados com os músicos Jadir de Castro, Lou Volpe e outros jovens músicos ingleses (DESOUTEIRO, 2007).

Dom Um Romão foi ativo até o dia de sua morte que ocorreu no dia 26 de julho de 2005, decorrente de um derrame cerebral durante uma sessão de gravação no Rio de Janeiro com o pianista Ricardo Leão, uma semana antes de completar seus 80 anos de idade (DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA, 2017).

Para encerrarmos esse capítulo, pedimos licença para reproduzimos na integra tamanha citação de Arnaldo DeSouteiro, publicada em seu blog na ocasião da morte de Dom 9 Um Romão, em que o produtor resume de forma precisa a carreira musical daquele que, ao 0 lado de Airto Moreira, detém o status de baterista e percussionista brasileiro com carreira internacional largamente representativa:

O mito merecia um filme (que começou a ser feito em 1999) ou pelo menos um livro – porém se deu por satisfeito e emocionou-se às lágrimas quando soube que Tárik de Souza lhe dedicara um capítulo no Tem Mais Samba (2003). Afinal, que outro músico brasileiro esteve em atividade durante tão longo período? Quem foi de Dircinha & Linda Batista a Marcelo D2 e DJ Seiji, passando por Jorge Ben, Tom Jobim, Sinatra, Tony Bennett e Robert Palmer? De Stellinha Egg e Elizeth a Urszula Dudziak e Helen Merrill, passando por Elis, Flora, Astrud, Carmen McRae e Ithamara Koorax? De Herbie Mann e Meirelles a Cannonball e Stanley Turrentine, passando por Yussef Lateef, David Newman e Bobby Watson? De Bonfá e Luiz Henrique a Sergio Mendes e Weather Report, passando pelo Blood Sweat & Tears? A lista é interminável, e não parou de crescer nos últimos anos. [...] E se, repito, não há como resumir aqui a trajetória ímpar do intrépido craque, resta a opção de relembrar momentos marcantes. Das primeiras atuações profissionais, ainda adolescente, em cabarés da Lapa nos anos 40, à aclamação no Shibuya Philharmonic Hall de Tóquio com o Weather Report em 72, passando pelas noitadas no Beco das Garrafas, os programas nas TVs Record e Excelsior em São Paulo nos anos 60, o célebre concerto de bossa nova no Carnegie Hall em 62 (integrando o Bossa Rio de

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Sergio Mendes), até chegar ao ponto máximo de adoração no Jazz Café de Londres em 98, meca da cena acid-jazz. É dele a bateria na gravação de Mas Que Nada do LP de estreia de Jorge Ben, Samba Esquema Novo e nos dois seguintes também. No antológico Caymmi visita Tom (1964), no primeiro disco do Copa 5: O Som, no primeiro de Flora Purim: Flora é M.P.M., e em tantos outros registros da bossa. No estouro mundial de Fool on the Hill remodelado pelo Brasil 66 de Sergio Mendes, do qual fez parte até 1970. Tanto no encontro histórico de Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim em 67, sob a regência de Claus Ogerman, como nos outros discos: A Certain Mr. Jobim, The Wonderful World of A.C. Jobim e Wave gravados com Tom nos EUA, Dom Um Romão desmonta a tese dos que o acusavam, por inveja, claro, de ser um baterista “barulhento”, excessivamente “jazzíficado” devido à influência de Elvin Jones, que ele soube reprocessar e aplicar no samba. Sua atuação é sutilíssima, suave, sem cair na monotonia, cheia de balanço insinuante. Quando era preciso vigor, também lá estava ele a postos, indicação perfeita tanto para a bossa “telecotecada” de Walter Wanderley como para acabar de incendiar petardos “funkyados” do nível de A Bad Donato, gravado em 70, em Los Angeles, logo após desligar-se de Sergio Mendes e antes de rumar para Nova Iorque a fim de ingressar no Weather Report. A essas alturas, algum leitor mais desconfiado pode achar que estamos misturando datas. Afinal, parece impossível alguém estar em tantos lugares, com tantas pessoas, ao mesmo tempo. Para Dom Um, usando uma de suas expressões preferidas: “era mole” (DESOUTEIRO, 2007).

Diante da história musical de Dom Um Romão, acima pontuada de uma forma concisa, mas com um devido atributo de valor, referenciada por DeSouteiro, encerramos o capítulo biográfico ciente de que não abordamos por completo a rica história musical de 9 Romão, já que encontramos em nossa investigação uma intensa produção artística, conforme 1 os relatos da citação de DeSouteiro acima corroboram.

Com presença marcante em vários movimentos musicais importantes como o samba (1945-1955), a bossa nova (1955-1965), o sambajazz (1960-1965), o sambalanço (1963-1965), o fusion americano (1970-1976); fica clara a importância da atuação de Romão no cenário da música popular brasileira, bem como justifica a premência da pesquisa sobre a sua obra, na busca de entendermos melhor os caminhos trilhados pela bateria brasileira, e, embora não seja o foco desse trabalho, também lançamos um olhar sobre a trajetória de um instrumentista brasileiro que ganhou o mundo com a sua música. Salientamos que temos a consciência que esse levantamento histórico musical de Romão é um processo que não se esgota aqui, e sim, de um esforço inicial que esperamos desdobrar em futuras pesquisas.

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Capítulo 2: Estudo Interpretativo

Antes de começarmos a análise musical propriamente dita, julgamos necessário discorrer sobre alguns aspectos importantes que envolvem a questão da sonoridade da bateria de Dom Um Romão. Discutiremos as prováveis configurações de seu instrumento relacionadas à sua performance ao vivo, bem como no que se refere a gravação dos dois discos em estúdio: Dom Um e O Som, ambos de 1964 e objetos de análise da nossa pesquisa. Informações desta natureza poderiam ser fielmente obtidas com o próprio Dom Um Romão, mas como sabemos, ele faleceu em 2005, circunstância tal que nos direcionou a procurar informações provenientes de outras fontes. Nesse processo, não encontramos referências acerca desse assunto nas entrevistas realizadas com o próprio músico para revistas especializadas e programas de televisão, tão pouco em catálogos de fabricantes de equipamentos de bateria que pudessem ter apoiado Romão nesse sentido, portanto, prospectamos análises sonoras através da escuta dos discos, com o foco na percepção da afinação dos tambores em associação com a investigação visual, a partir das fotos encontradas nos meios eletrônicos e encarte de discos. Observamos indícios sobre as medidas dos tambores e seu material de fabricação, os tipos de peles montadas nos tambores, bem como os 9 modelos de pratos com as suas medidas e quantidades, e, por último, a disposição das peças 2 da bateria que Dom Um Romão utilizava para tocar.

Finalizaremos essa introdução ao presente capítulo discutindo aspectos associados à performance, mais especificamente no que diz respeito a “interação” musical no contexto de improvisação, que foi justamente um dos pontos que favoreceu uma mudança nas práticas musicais correntes na década de 60, e consequentemente uma alteração do status do baterista de músico acompanhante (baterista ritmista) para uma posição de músico participativo (“baterista melódico”), reposicionando dessa forma o padrão interpretativo dos bateristas da segunda geração da bateria brasileira (BARSALINI, 2009).

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2.1 Configurações da bateria de Dom Um Romão

A configuração de bateria utilizada pelos bateristas americanos em formação de trios tradicionais de jazz (piano, baixo e bateria) nos EUA, foi praticamente a mesma adotada pelo baterista Dom Um Romão para gravar e tocar em shows na época do sambajazz na década de 60 no Brasil. Romão dispunha das seguintes peças na montagem de sua bateria: bumbo, caixa, um tambor (tom tom) menor em frente a caixa, um tambor de chão (surdo), chimbal e dois pratos que exerciam essencialmente a função de pontuar e conduzir o ritmo, um dos principais aspectos diferenciais do sambajazz em relação a performance aplicada nas peças da bateria.

A pesquisadora Joana Martins Saraiva, em seu trabalho A invenção do sambajazz (2007), discutiu a instrumentação característica em que o estilo (sambajazz) se desenvolveu, e que era constituída pela base de: piano, baixo e bateria, “a qual às vezes aparece acrescida de violão e percussão e instrumentos de sopro – saxofone, trombone, trompete, flauta, como solistas ou em arranjos em naipes” (SARAIVA, 2007, p. 15), similar às formações instrumentais que Romão costumava trabalhar no Copa Trio, com o grupo J.T. Meirelles e os Copa 5, na gravação dos álbuns: Dom Um (1964) e O Som (1964). Apesar das fotos 9 selecionadas para nossa análise não terem registrado ângulos favoráveis para constatação 3 visual da marca da bateria, e mais especificamente, de detalhes pertinentes a peças da bateria como a caixa da bateria e aos modelos e marca de pratos, podemos prospectar algumas considerações a respeito.

Analisando as fotos a seguir representadas pelas Figuras 16 e 17, com Dom Um Romão tocando no Beco das Garrafas e também durante a gravação de seu disco solo em estúdio (Dom Um) respectivamente, pode-se deduzir que o bumbo da bateria (maple ou mahogany)74 aparenta ter entre 20 e 22 polegadas de diâmetro por 14 ou 16 polegadas de

74 Madeiras normalmente usada pelas fábricas de bateria para confeccionar tambores nessa época (1960). Informação proveniente de CANGANY, Harry. The Great American Drum And The Companies That Made Them, 1920-1969. New Jersey, USA: Modern Drummer Publications, Inc. Ed: Rick Van Horn, 1996.

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profundidade; a caixa da bateria poderia ser manufaturada em madeira75 (maple ou mahogany) ou metal (níquel ou bronze), e usualmente possuía as medidas de 14 polegadas de diâmetro por 5¹/² polegadas de profundidade; o primeiro tambor (tom tom) que está posicionado à frente da caixa da bateria, provavelmente é feito de madeira, com dimensões de 13 polegadas de diâmetro por 9 ou 10 polegadas de profundidade, e é perceptível que esse tambor não possui o aro em sua parte inferior, portanto não tem a pele de resposta, o que confere uma característica com pouca sustentação sonora; o surdo de “chão” possui provavelmente 16 polegadas de diâmetro por 14 polegadas de profundidade. As medidas descritas acima são especificações comuns e padronizadas pelas fábricas de bateria americanas, brasileiras e inglesas da década de 1950 e 196076, entretanto é importante frisar que tais modelos dessas baterias vinham com pele de resposta de fábrica e a decisão de retirá- la (situação observada na foto de Dom Um Romão, Figura 16, foto à esquerda), é pessoal e cabe ao músico proceder ou não dessa forma frente a diversas situações que possam ter ocorrido, resultando dessa forma na retirada da pele de “resposta”. Podemos incluir situações para a retirada da pele de reposta tais como: a pele de “resposta” furou, parafuso de afinação espanado (usualmente mais de três), aro entortado, ou então a questão sonora como decisiva nessa situação, na busca por uma sonoridade mais controlada, sem a ressonância que 9 naturalmente a pele de “resposta” (afinada corretamente) confere ao tambor, aumentando 4 consequentemente o seu decay77.

75 Pela análise das fotos examinadas em nossa discussão, temos a impressão de que a caixa seja feita de madeira. 76 Trad. A maioria dos cascos de madeira feitos entre 1956 e o início dos anos 60 são feitos de três camadas de mahogany sem acabamento com poplar, com aros de reforço em maple. Lá por meados dos anos 60, uma seladora branca começou a ser usada nos interiores dos cascos, substituída mais tarde por uma seladora incolor. Finalmente, os cascos passaram a ser feitos com seladora incolor sem aros de reforço. Em muitos casos, a data de fabricação era impressa no interior dos cascos (CANGANY, 1996, p. 29). Most of wood shells from 1956 to the early 1960 are made with three plies of unfinished mahogany and poplar and are fiftted with maple reinforcing hoops. Towards the end of the `60s an off –white sealer coat began to be used on the insides of the shells, followed later by a clear coat. Finally the shells, followed later by a clear coat no reinforcing rings. 77 Decay é uma palavra em inglês que significa redução, cair, no contexto musical está associado com a duração do som, ou seja, o quanto o som dura após ser produzido, em nosso caso do contexto da bateria, após ser percutido.

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Figura 16. Fotos de Dom Um Romão no Beco das Garrafas, usando uma bateria na configuração usual dos trios de jazz dos anos de 1960 - Fonte: . Acesso em 6/02/2017

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Figura 17. Dom Um Romão durante a gravação do seu primeiro álbum solo: Dom Um (1964) Fonte: Acesso em 6/02/2017

As peles comumente usadas nos tambores da bateria da década de 60 tinham uma superfície porosa e eram chamadas de calfskin nos EUA, ou simplesmente de “pele de couro” no Brasil. Produzidas através de um processo artesanal, num método de confecção denominado de “empachamento”, consistia em fixar o couro animal em aros de madeira ou metal, começando com uma hidratação do couro, seguido do ajuste e secagem do material à base de calor (PORTES, 2018)78. Veja na Figura 18 abaixo e Figura 19 a seguir o processo de

78 Entrevista concedida pelo baterista Dudu Portes sobre o assunto e também dados provenientes da revista americana Modern Drummer. Disponível em: . Acesso em 20/02/2018.

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empachamento e fixação das peles de bateria sendo produzidas na fábrica americana Leed em 1923.

Figura 18. Peles de couro animal (calfskin) sendo produzidas na fábrica americana Leed (1923) Fonte: The Great American Drums and The Companies That Made Them, 1920-1969 Harry Cangany, 1996, p.59

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Figura 19. Peles de couro animal (calfskin) montagem em aros na fábrica americana Leed (1923) Fonte: The Great American Drums and The Companies That Made Them, 1920-1969 Harry Cangany, 1996, p. 59

A oscilação climática era um fator que interferia na tensão das peles de origem animal (empachadas), contraindo-as no calor e dilatando-as no frio, provocando então uma alteração na afinação do tambor, o que era um problema para os bateristas dessa época

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(década de 60). Os americanos Chuck Evans e Remo Belli79 começaram a fabricar a primeira geração de peles sintéticas para bateria na década de 50. Entretanto, mesmo nos Estados Unidos, a sua disponibilidade ainda era incipiente, e nessa época os avanços conquistados na produção de equipamentos musicais demoravam a chegar ao Brasil, portanto, acreditamos que grande parte dos bateristas brasileiros da década de 60 ainda utilizavam as peles “empachadas”, de couro animal em suas baterias (PORTES, 2018). A afinação da bateria de Dom Um Romão observada nos dois discos de nosso objeto de estudo possuem similaridade entre ambas; a caixa possui uma sonoridade que abrange as frequências médias tendendo para o agudo; o primeiro tambor (posicionado em frente à caixa) está afinado com predominância de frequência média; o surdo (tambor de chão) está afinado com predominância de frequências graves e o bumbo possui uma sonoridade com predominância essencialmente das frequências mais graves.

Em relação aos pratos presentes nas fotos, constatamos anteriormente na Figura 16 e Figura 17, somente um prato de aproximadamente 20 polegadas, situado à direita do baterista, e também um “casal” de chimbal de 14 ou 15 polegadas, situado à esquerda do baterista. Na Figura 20 (p. 83), aparece discretamente no canto direito da foto, o que sugere 9 ser a “borda” de um prato, localizado acima do tambor suspenso acoplado ao bumbo da 7 bateria, e que provavelmente parece ter a medida de 18 polegadas. Não conseguimos afirmar com certeza de que se trata de Dom Um Romão na bateria, pois no momento do registro da foto o baterista não aparece de frente (está inclinado), mas determinadas evidências deixam poucas dúvidas de sua identidade. A aparência física corresponde à de Romão, e, além disso, nota-se a presença da dupla de produtores Miéle e Ronaldo Bôscoli, e o cantor Jorge Ben, com os quais Romão costumava trabalhar regularmente no Beco das Garrafas.

Levando em conta todas essas considerações acerca do equipamento utilizado, acreditamos que Dom Um Romão recorria a algumas variações na configuração dos pratos, geralmente alternando o uso entre um prato de 20 polegadas (com funções de ataque e condução rítmica), ou adicionando mais um prato de 18 polegadas ao seu set up de bateria,

79 Os americanos Chuck Evans e Remo Belli respectivamente em 1956 e 1957, começaram a fabricação de peles manufaturadas com material sintético o que na época revolucionou a sonoridade da bateria.

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conforme a foto da Figura 20 sugere a seguir. Não conseguimos identificar nas fotos a marca e os modelos dos mesmos, entretanto a sonoridade mais grave, aberta, e bem definida, presente nos dois álbuns aqui investigados, são especificidades atribuídas a pratos manufaturados pela liga B2080, o que nos leva a acreditar que eles tenham procedência estrangeira, já que nessa época ainda não dispúnhamos de fabricantes nacionais que produzissem pratos na liga B20, pois a importação para revenda também era proibida pelo governo brasileiro. O ex-baterista da Elis Regina e desenvolvedor de equipamentos de bateria aqui no Brasil, Dudu Portes, afirmou em depoimento ao autor que provavelmente os pratos que Dom Um Romão usava no período do sambajazz (década de 1960) eram da marca Zildjian – pratos “turcos” como eram chamados pelos bateristas – corroborando nossa hipótese sobre essa questão, já que a única fabricante nacional na época, a Ziltannan81, utilizava latão, uma liga de cobre e zinco, para manufaturar seus pratos, o que não oferecia as mesmas características sonoras dos pratos fabricados pela liga B20, que tinham em sua composição a proporção de 20% de estanho e 80% de cobre, conferindo características sonoras desejáveis aos contextos de jazz e música brasileira.

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80 A liga B20 é o nome dado à composição de metais utilizada para a confecção de pratos de bateria iniciada pela marca Zildjian, numa tradição familiar desde o ano de 1600. É feita de 20% de estanho e 80% de cobre e atribuem ao prato características sonoras bastante desejadas pelos bateristas do contexto do jazz e da música brasileira. 81 O nome Ziltannan, é de origem Árabe, Zil significa pratos e Tannan: sonoro. Com a chegada do jazz no Brasil na década de 30 o mercado da música brasileira começou a crescer impulsionado por tal contexto. Surgiu então no final da década de 50, os pratos Ziltannan fabricados pela Weril, empresa brasileira de instrumentos e acessórios para sopro, orquestras entre outros seguimentos da música. A produção dos Ziltannan começou a atender os bateristas que não tinham condições de ter os pratos Turcos da época, assim como eram chamados os pratos da Zildjian pouco vistos por aqui. Os momentos de grande atividade da marca de pratos Ziltannan foram nos anos 60, 70 e 80, e, mesmo com o escasso acesso às novas tecnologias, materiais e produtos em geral, eles conseguiram se destacar no mercado brasileiro. A Weril retornou a produzir os pratos em 2008, lançando o kit: Ziltannan B8, mas não deu continuidade a produção. Matéria feita por Ricardo Goedert e disponível no site: . Acesso em 8/01/2018.

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Figura 20. Reconhecidos na foto: A dupla Miéle e Bôscoli, Jorge Ben e possivelmente Dom Um Romão Fonte: Jornal Folha de São Paulo – 1965/Folhapress - matéria escrita por Rodrigo Faour (link na bibliografia). Acesso em 10/05/2017

Acerca da concepção sonora da bateria presente nos referidos álbuns, com ênfase no papel dos pratos e na afinação específica dos tambores, a similaridade entre os dois, conforme já mencionamos, é bem perceptível, já que foram gravados no ano de 1964 e concebidos, portanto, num curto espaço de tempo em que, provavelmente, Romão tenha 9 usado o mesmo instrumento e todos os outros equipamentos envolvidos no processo de 9 gravação relacionado à captação de áudio para o registro dos discos. Sobre a afinação dos tambores da bateria, podemos descrever características sonoras em termos gerais com maior predominância para a região compreendida entre as frequências médias e graves. O tambor de 13 polegadas soa mais agudo em relação ao tambor de 16 polegadas e o bumbo soa mais grave em relação ao surdo de “chão”. Importante também salientar que a pele animal utilizada nos tambores da bateria, possui características sonoras que reforçam as frequências graves (PORTES, 2018). O baterista carioca André Tandeta, em entrevista concedida ao autor, fala sobre a afinação da bateria de Dom Um Romão e coloca em perspectiva uma breve análise acerca de sua sonoridade em relação aos seus pares do sambajazz, os bateristas Edison Machado e Milton Banana, citando inclusive a sua preferência:

O Dom Um não é tão grave quanto o Banana e o Machado, é uma afinação grave também, entretanto mais agudo em relação a esses dois bateristas. Porque também tem outra coisa, ele usava bastante dar uma “passeadinha”, mas era uma coisa mais

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disciplinada. O suingue dependia de como o cara arrumava a bateria. O Machado era meio embaralhado, eu o vi tocando ao vivo, ele tinha um negócio especial, tinha uma coisa bacana, mas não foi um baterista que fez a minha cabeça (TANDETA, 2017).

Quando falamos de sonoridade, podemos traçar um paralelo com os conceitos abordados pelo pesquisador Felipe Trotta (2008) que, ao discuti-la como uma ferramenta para a delimitação de gêneros musicais, afirma que é o aspecto sonoro (o som) que possui a preferência para determinar “o aparato simbólico inicial de estabelecimento das regras e das identificações musicais”. Segundo Trotta, um estudo mais aprofundado, direcionado para as estruturas sonoras, pode “permitir uma compreensão mais precisa dos processos de identificação, classificação e uso que envolve as práticas musicais” (TROTTA, 2008 p. 3). Para o pesquisador, uma investigação mais específica dos parâmetros sonoros pode nos indicar quais elementos “atuam com maior preponderância na construção e classificação dos gêneros” (ibidem). A partir desse aspecto, Trotta distingue o ritmo e a sonoridade como os elementos essenciais para a identificação e a classificação dos gêneros musicais. Marques (2013), quando discutiu o conceito de sonoridade apresentado por Trotta em sua pesquisa, 1 relacionou que o estilo interpretativo de um instrumentista em particular, definido pelo 00 pesquisador como aspecto “micro” no que tange a sua sonoridade individual, pode contribuir numa perspectiva “macro”, o que determina a constituição dos gêneros musicais, estabelecendo parâmetros para a sua distinção (TROTTA, apud. MARQUES, 2013, p. 56). Sendo assim, Marques concluiu seu raciocínio da seguinte forma:

[...] a noção de sonoridade apresentada por Trotta – que considera “a sonoridade como o resultado acústico dos timbres de uma performance” (TROTTA,2008, p. 4) e que reflete “uma combinação de instrumentos que, por sua recorrência em uma determinada prática musical, se transforma em elemento identificador” (ibidem).

Quando a sonoridade é aplicada a um recorte mais específico, pode ser de grande valia na compreensão dos elementos musicais que compõem e determinam um estilo musical. Em nossa investigação, buscamos identificar na atuação do baterista Dom Um Romão, os elementos que, através do binômio “sonoridade/idiomatismo característico”, convergiram

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para o favorecimento de um modelo de performance que passou a incluir a rítmica da melodia como algo também a ser considerado para suas intervenções na bateria. Desta forma, ampliou- se o papel do baterista, que anteriormente, representados pela primeira geração de bateristas brasileiros, exercia apenas um papel rítmico, o de conduzir sem grandes interferências na música (BARSALINI, 2009). Marques, em sua pesquisa sobre o baterista Airto Moreira, contextualizou acerca desse assunto ao apontar as características da performance representadas pelas diferentes gerações da bateria brasileira quando citou as considerações do próprio Airto Moreira, em que ele coloca em perspectiva a função dos dois tipos de baterista: o “melódico” e o ritmista:

No Brasil, esta figura do baterista “melódico” surge em contraposição à atuação do ritmista, aquele baterista que, segundo o depoimento de Airto Moreira “tocava direto”, ou seja, cumpria com a função exclusiva de prover ao conjunto uma base rítmica sólida e linear sem criar maiores interferências na interação do grupo (MOREIRA, apud. MARQUES, 2014).

Diante de toda essa perspectiva musical discutida acima, para continuarmos nosso 1 debate é importante entender alguns aspectos musicais ligados a performance que 01 caracterizam o baterista que toca considerando a melodia como um referencial de orientação para as suas intervenções na bateria, para tanto, vamos abordar a seguir as relações de interação musical numa prática coletiva associada a improvisação.

2.2 Interação Musical

Para iniciarmos uma investigação musical acerca de performance com o foco nos procedimentos idiomáticos que caracterizaram o contexto do sambajazz na bateria, é importante primeiro dialogarmos com trabalhos de pesquisadores que desenvolveram discussões nesse sentido. A pesquisadora Ingrid Monson (1996) evidenciou os aspectos envolvidos na interação musical no contexto da improvisação jazzística, discutindo as relações intrínsecas e extrínsecas inseridas nesse processo. A relação intrínseca está associada às habilidades musicais que o músico necessita dominar para alcançar a proficiência

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necessária em seu instrumento para desempenhar uma boa performance, e que envolve aspectos tais como: conhecimento formal (estrutura da música), pulso estável, coordenação, fraseologia, técnicas específicas de pés e mãos e fidelidade estética. A relação extrínseca está associada à questão do diálogo musical observada na prática coletiva ligada à improvisação. Nesta prática, são observadas algumas formas de interação musical no grupo; primeiro na relação mútua entre os músicos acompanhantes e o solista, e, em segundo, entre os próprios músicos acompanhantes no momento do improviso, estabelecendo assim a interação musical geral de todo o grupo. Neste processo, no que tange especificamente a função do baterista, há a procura de um equilíbrio entre realizar a condução rítmica, mantendo o tempo para o grupo, como também de reforçar as proposições do solista, e ainda como parte avançada deste diálogo, também propor ideias musicais interessantes que induzam o solista na construção de seu improviso.

Monson em seu livro Saying Something (1996), nos revela e contextualiza o depoimento do baterista americano Michael Carvin que abordou os diversos aspectos decorrentes da interação musical numa seção rítmica de um grupo de jazz, que basicamente incluem piano, baixo e bateria. Em um contexto jazzístico, duas ideias primordiais que tratam 1 da funcionalidade da atuação do baterista são levantadas por Carvin e discutidas por Monson 02 em suas pesquisas. A primeira ideia se refere à interação interna entre os quatro membros do corpo do baterista que tocam diferentes partes do seu instrumento: mão direita no prato de condução; mão esquerda na caixa e tambores; pé direito no bumbo e pé esquerdo no chimbal, criando dessa forma um diálogo que, segundo Carvin, é “tão polifônico quanto aquele que se estabelece entre o baterista e os outros instrumentistas do grupo” (CARVIN, apud. MONSON, 1996; 52-53). A segunda ideia evidencia uma função que, de acordo com Monson, é uma especialidade dos bateristas, além de ser uma de suas primordiais funções como instrumentista, definindo essa habilidade como: keeping time, ou playing time82:

82 Keeping Time ou Playing Time, expressão em inglês mantida no corpo do texto da dissertação presente no livro da pesquisadora Ingrid Monson e que se refere à habilidade do baterista durante uma performance de ser capaz de manter o andamento do ritmo o mais estável possível (MONSON, 1996. p. 52).

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Para o conceito de um bom tempo, deve ser adicionada a ideia de tocar no tempo, uma especialidade particular de bateristas. Um ou mais membros do baterista geralmente permanecem estáveis e são condicionados a manter o tempo; os membros restantes muitas vezes tocam livremente "contra" o tempo. Os músicos chamam de diferentes estilos de se tocar no tempo - cada um dos quais implica num diferente conjunto de ritmos – sentimento rítmico e de levadas. Estes estilos de tocar estabelecem a estrutura rítmica na qual ocorre a improvisação. Uma sensação particular tocada pelo baterista sinaliza ao baixista que certas linhas de baixo são apropriadas e outras não. Da mesma forma, uma levada particular diz ao pianista que certos tipos de acompanhamento são esperados e outros não. Estas relações trabalham em reciprocidade. Certo estilo de acompanhamento, ou certa linha de baixo, dirá ao baterista qual a sensação de tempo seria mais apropriada. Músicos ouvem cuidadosamente para detalhes musicais como estes (MONSON, 1996, p. 53)83.

Esse é um procedimento muito comum aos bateristas num contexto de improvisação, uma vez que pelo menos um dos membros do seu corpo é mantido em uma condução rítmica mais estável, criando dessa forma “uma espécie de base sobre a qual a improvisação é executada pelos outros membros do seu corpo, os quais, isentos desta função, passam a serem guiados para uma conversa musical direta com os outros instrumentistas participantes” (MONSON, apud. MARQUES, 2013). 1 Marques revela a expressão “tocar nas quebradas”, que o baterista Airto Moreira 03 referencia como comum à sua época para significar essa nova forma de se tocar de maneira mais participativa, ou seja, interagindo com os outros músicos do grupo e principalmente com o solista (MARQUES, 2013, p. 49). A respeito do significado de “tocar nas quebradas”, Airto Moreira afirmou em entrevista a Marques:

83 Trad: To the concept of good time must be added the idea of playing time, a particular specialty of drummers. One or more of the drummer´s limbs generally remain stable and are said to be playing or keeping time; the remaining limbs often play freely "against" the time. Musicians call the different styles of playing time - each of which implies a different set of ensemble rhythms - rhythmic+ feels or grooves. These styles of playing establish the rhythmic framework against which improvisation takes place. A particular feel played by the drummer signals the bassist that certain bass lines are appropriate and others are not. Likewise, a particular groove tells the pianist that certain types of comping are expected and others are not. These relationships work in reverse as well. A certain style of comping, or a certain bass line, will tell the drummer wich time feel would be most appropriate. Musicians listen carefully for musical details such as these.

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Nos anos 60, ''nas quebradas'' era uma gíria que servia para várias coisas diferentes. Quando eu tocava samba eu fazia uns acentos diferentes ao invés de tocar direto. Assim, depois de pouco tempo começamos a chamar aquele estilo de “samba nas quebradas”. Eu não lembro quem inventou esse termo, mas ouvindo o Edison Machado você pode perceber aquele estilo, pois ele e outros bateristas cariocas já tocavam assim. (MOREIRA, apud. MARQUES, 2013, p. 49-50).

E, então, Marques conclui:

A partir deste relato, percebe-se o uso do termo “nas quebradas” para representar, sobretudo, uma mudança na postura musical dos bateristas ligados ao sambajazz. Quando Airto se refere à execução do samba caracterizado pela realização de alguns “acentos diferentes”, em contraposição à ideia de “tocar direto”, ele coloca em perspectiva duas abordagens distintas: a primeira diz respeito a uma forma participativa do baterista dentro do conjunto, enquanto a segunda se refere a um estilo mais contido no qual o baterista executa essencialmente a marcação rítmica da música (MARQUES, 2013, p. 49).

É nesse contexto musical discutido acima que o baterista Dom Um Romão está inserido; com atuações representativas tanto na bossa nova, numa forma mais contida de se 1 tocar, quanto no sambajazz, em que uma abordagem mais livre no instrumento favoreceu um 04 modelo de performance mais interpretativa, o que propiciou o desenvolvimento do idiomatismo característico de Romão. Nesse aspecto, nós investigamos e identificamos os elementos musicais que forjou e definiu o estilo de Dom Um Romão dentro do sambajazz. São discutidos nesse capítulo do estudo interpretativo dois procedimentos bastante peculiares e recorrentes da performance de Dom Um Romão: 1) a “raspadeira” e, 2) atividade rítmica da mão esquerda exercida sobre uma base estável, observadas em: exposição temática e na improvisação. Desta análise, pretendemos incluir no final da dissertação, na parte dos anexos, um Inventário Idiomático completo que propõe reunir a fraseologia e os padrões rítmicos que apresentaram recorrência durante a investigação e que caracterizam o idiomatismo de Dom Um Romão no sambajazz.

É importante enfatizar que tais procedimentos idiomáticos são observados de forma recorrente na performance de Dom Um Romão e que estão incluídos dentro do período delimitado para essa pesquisa (década de 1960). A importância destes procedimentos para a

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construção do estilo forjado pelo baterista é primordial, pois são estes os aspectos que o diferenciam dentre os bateristas de sua época e, consequentemente, o tornaram referência para os bateristas de sua geração bem como na formação das gerações seguintes. É importante esclarecer, entretanto, que tais procedimentos representam apenas uma parte do conjunto das características que constituem o idiomatismo peculiar de Dom Um Romão na bateria, e que apesar de nos atermos especificamente à fase ligada ao sambajazz, entendemos e reconhecemos a grande dimensão da obra de Romão, podendo haver outros aspectos acerca de seu idiomatismo que poderiam ser explorados e incluídos como traços característicos de sua performance, como por exemplo o seu trabalho como percussionista, desenvolvido com maior ênfase a partir de sua mudança para os Estados Unidos, ressaltando a sua destacada participação no grupo de grande representatividade na história da música fusion americana: o Weather Report. No entanto, apesar de relevantes, não abordaremos estas outras produções nessa pesquisa, deixando este campo aberto para futuras investigações.

2.3 A “raspadeira” 1 Começaremos a nossa discussão acerca do procedimento idiomático da 05 “raspadeira” abordando a questão da sonoridade advinda de algumas técnicas de performance que compõe o universo da linguagem musical da bateria, para que nesse sentido seja possível o entendimento dos aspectos que forjaram o procedimento idiomático característico em investigação, e cuja criação é atribuída ao baterista Dom Um Romão (MEIRELLES, 2016).

Em geral, tambores e pratos são peças fundamentais que, quando agrupadas, definem o instrumento conhecido por nós hoje em dia como bateria. A montagem padrão de bateria para contextos musicais de jazz e de música brasileira em geral, varia de sete a oito peças, sendo um ou dois tambores usualmente montados na parte superior do bumbo; um bumbo apoiado no “chão”; um tambor de “chão” (usualmente chamado de “surdo” no Brasil); uma caixa (tambor mais raso) com uma esteira com fios de metal em contato com a pele de resposta; um “casal” de chimbal (dois pratos montados em sentido oposto sobre a máquina de chimbal); um prato de ataque (pontuações musicais) e um prato de condução rítmica. Com tal configuração de montagem de bateria, temos um amplo espectro de possibilidades sonoras

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que podem ser produzidas em diferentes superfícies das peças que compõe a bateria. Em um caráter mais “tradicional”84, temos sons provenientes das distintas peças da bateria em associação com diferentes técnicas na obtenção de sonoridades, para citar algumas: 1) toques percutidos na borda do prato, na superfície (corpo) ou em sua cúpula85, tocados com a ponta ou com o corpo da baqueta, ou então raspando a ponta da baqueta na superfície dos pratos; 2) toques percutidos nos tambores (tambor agudo e tambor de “chão”) com a baqueta incidindo na pele do tambor ou diretamente em seu respectivo aro, ou ainda com a mão apoiada na pele do tambor com o toque sendo executado em seu aro (cross stick86); 3) toques percutidos com o corpo da baqueta diretamente na pele na caixa (com ou sem rimshot87) ou no seu próprio aro, ou então com a mão apoiada na pele, atingindo o aro com o corpo da baqueta. Enfim, mesmo diante dos procedimentos tradicionais de performance, temos várias possibilidades de obtenção de sonoridades distintas, e este quadro pode ainda ser ampliado quando técnicas não convencionais de performance são incorporadas, gerando novas possibilidades de texturas sonoras para um determinado contexto musical.

Estamos falando da “técnica estendida”, a qual é definida como sendo um procedimento de performance não usual, executado no instrumento para atingirmos 1 determinados sons e efeitos musicais, muitas vezes inesperados (CHERRY, 2009). Carinci 06 por sua vez, considera que a técnica estendida pode ser uma demanda do próprio compositor ou então um processo de busca sonora do próprio músico: “essa demanda, por exploração de novos timbres, pode ser um pré-requisito de compositores ou pode fazer parte da pesquisa do próprio músico” (CARINCI, 2012), e conclui seu pensamento citando Hill quando ressalta que a técnica estendida pode ser a solução na obtenção de sonoridades: “as técnicas

84 Quando definimos tradicional estamos nos referindo à sonoridade advinda de uma configuração básica de bateria a qual foi descrita no texto com procedimentos de performance usuais em suas peças. 85 O termo cúpula usado no Brasil pelos músicos se refere a uma região do prato que se localiza perto do centro e que possui uma elevação em toda a sua volta. Quando aplicados toques nessa região a sonoridade obtida é bem aguda e destacada. 86 Cross stick é o nome em inglês atribuído ao procedimento de performance descrito no segundo item do parágrafo acima que a escola americana de bateria emprega. O toque em questão se caracteriza pela ato de percutir o aro da caixa com o corpo da baqueta com a mão apoiada na pele da mesma caixa. 87 Rimshot (significando "golpe de aro" em português) é uma técnica que consiste em tocar determinado tambor de maneira que a baqueta, no momento do ataque, vá de encontro ao aro e o centro da pele do tambor ao mesmo tempo, reproduzindo assim um som mais encorpado e volumoso.

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estendidas podem ser consideradas como um vocabulário adicional do instrumento, para ser usado quando uma ideia musical não pode ser expressa de nenhuma outra maneira” (HILL, apud, CARINCI, 2012, p. 23-24).

Já o baterista e pesquisador americano Terry O’Mahoney em seu livro Motivic Drumset Soloing (2004), elencou diferentes tipos de procedimentos de performance possíveis na bateria, aos quais chamou de “efeitos especiais”, e que estão associados a técnicas não convencionais para a obtenção de determinadas texturas sonoras no instrumento. Dentre os exemplos de “efeitos especiais”88, ou seja, técnicas que são consideradas estendidas para este instrumento (CHERRY, 2009), a partir de O´Mahoney (2004), identificamos aquelas mais comumente utilizadas por Dom Um Romão e que caracterizam sua performance 89. São elas: 1) posicionar uma baqueta com a sua ponta na pele do tambor, exercendo pressão contra a mesma e executar o toque com a mão oposta, em cima da baqueta pressionada na pele; 2) procedimento de aumentar ou diminuir a pressão exercida com a ponta da baqueta por uma das mãos exercida na pele do tambor, enquanto que com a outra mão executa-se um toque na pele, em forma de tap90, obtendo notas com diferentes alturas91, em função da pressão exercida na pele; 3) pressionar a baqueta contra a pele do tambor, antes ou depois da execução 1 do toque, promovendo um abafamento ou um som “seco”, de curta duração; 4) tocar nos aros 07

88 Optamos por explicar os diferentes tipos de nomes associados aos toques classificados como: “efeitos especiais”. No livro o autor define em muitos casos um nome de associação ao procedimento em discussão, como existem palavras que não tem uma tradução exata de sentido para o português, optamos para um melhor entendimento proceder dessa forma. Os nomes originais em inglês podem ser acessados no livro: Motivic Drumset Soloing; de Terry O’Mahoney (2004). 89 Apesar de em seu livro O´Mahoney citar uma grande variedade de técnicas estendidas, como por exemplo: tocar no corpo dos tambores, geralmente na parte lateral do tambor de chão (surdo); tocar nas ferragens que compõe a bateria, como estantes de prato, estantes de chimbal e estantes dos tons (procedimento comumente usado por bateristas de jazz americanos em contextos de big band); friccionar a pele do tambor com a ponta da baqueta em movimentos laterais curtos, produzindo um som característico de raspagem; friccionar a baqueta obliquamente nos sulcos dos pratos, produzindo um som de caráter não ligado, devido às suas ondulações, abrangendo frequências sonoras entre as regiões média e aguda; raspar os pratos com a parte metálica das vassourinhas, produzindo um som agudo, não definido; tocar com o corpo da baqueta perpendicularmente a borda do prato, gerando um som agudo, obtendo uma sonoridade que lembra sinos pequenos; contudo, vamos nos ater àquelas mais significativas para o nosso trabalho. Para maiores aprofundamento neste assunto sugerimos consulta ao trabalho de O´Mahoney (2004). 90 Faz parte da lista dos 40 rudimentos da P.A.S. (Percussive Arts Society). É um rudimento de toque com dinâmica leve (pp) onde a baqueta executa o toque em posição baixa e permanece perto da superfície percutida após o toque. 91 Altura nesse caso está sendo relacionada com notas musicais.

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dos tambores com uma resultante sonora metálica e de curta duração; 5) partindo de uma posição fechada dos pratos montados na máquina de chimbal (um contra o outro), através do pé pressionando a “sapata”92 do pedal, executar um movimento análogo a uma “pisada”, levantando primeiramente o calcanhar enquanto que se mantém a pressão na parte anterior do pé, envolvendo inclusive a ponta de pé, e na sequência, imediatamente abaixar o calcanhar na sapata reduzindo a pressão dos pés em sua parte anterior sem perder o contato com a mesma, semelhante ao movimento de sapateado americano, no qual os pés tocam o chão com o seu calcanhar e por suas pontas (dedos), com o controle da duração do som através da pressão que os pés exercem na sapata da máquina do chimbal. Os americanos denominam esse procedimento de performance de splash no contexto da bateria, ou choke93 no ambiente musical erudito. Não encontramos nas categorias elencadas por O´Mahoney (2004) acima, nenhuma menção que descreva especificamente o toque da “raspadeira”, entretanto é patente que a sua sonoridade só foi alcançada por Romão através da técnica estendida (CHERRY, 2009), e, que por decorrência desse processo, produziu um tipo de toque com um atributo técnico e sonoro diferenciado, ou seja, um toque não usual. Outro aspecto a ser considerado para a discussão e que corrobora o sentido de diferenciação no toque da “raspadeira” é o que os pesquisadores Stanyec e Oliveira (2011) definiram como sons “transitórios”, os quais 1 estabelecem que cada instrumento, “além de seus timbres mais notáveis e audíveis, também 08 podem produzir sonoridades paralelas. Esses sons transitórios são os “clicks” produzidos pela baqueta do surdo, pelas platinelas94 do pandeiro, [...] pelo bater das mãos nos cascos do instrumento, como fazem os executantes do repique de mão e tantã” (STANYEC E

92 Sapata é o termo usado em português, o termo em inglês é footboard, que é o nome dado à peça metálica onde o baterista coloca o pé na máquina de chimbal, uma espécie de pedal com ação de subir e descer ligado um eixo que promove o encontro dos pratos que formam o casal de chimbal. 93 Choke é um tipo de toque na bateria ou na percussão que consiste em bater um prato contra o outro, abafando- os imediatamente. No caso da bateria, essa função esta associada à máquina de chimbal que aloja os dois pratos em posições opostas e que no momento do toque te o controle da sonoridade exercida pelos pés e. No contexto da percussão erudita, o choke é exercido pelos “pratos a dois”. Disponível em: . Acesso em 03/2018. 94 [...] Podem ser argolas que se entrechoquem ou choquem contra o “casco”, “guizos”, mas o mais comum é que sejam encaixados pares de pequenos discos metálicos (“platinelas”) em pinos atravessados perpendicularmente em fendas abertas em torno do “casco”. [...] O efeito de “rulo” é obtido sacudindo-se a mão que segura o instrumento ou pela fricção de um ou 2 dedos de outra mão sobre a pele, de modo que as “platinelas” produzam o efeito de “trêmulo” (FRUNGILLO, 2003, p. 244).

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OLIVEIRA, apud. CUNHA, 2014), e, no caso da “raspadeira”, com os toques desempenhados nos aros do tambor agudo e da caixa, através do movimento de “raspagem”.

No momento histórico em que surge a “raspadeira”, podemos considerá-la como um procedimento de performance pertencente ao campo da “técnica estendida”, já que não era um procedimento comum para a época e que surgiu como uma solução inusitada para a emulação do fraseado do naipe de tamborim da escola de samba na bateria. A partir da aceitação e incorporação dos instrumentistas da época e das gerações sequentes, ao longo do tempo, aquela que então era considerada técnica estendida, se torna parte da “técnica convencional” do instrumento, ampliando as possibilidades texturais e fraseológicas pertinentes à expressão dos ritmos brasileiros. Portanto, a partir da influência de Dom Um Romão na aplicação da técnica do procedimento da “raspadeira” no contexto da música brasileira, observamos que atualmente temos sua plena incorporação na linguagem da bateria como parte integrante e corrente do repertório fraseológico do baterista brasileiro.

Veja nas fotos a seguir, representadas respectivamente nas Figuras 21a, 21b e 21c95, a sequencia dos movimentos que envolvem o ato de percutir relacionado ao procedimento de performance da “raspadeira”. Dividimos as fotos em três momentos 1 distintos; inicialmente no aro do primeiro tambor com a sua finalização no aro da caixa. A 09 Figura 21a mostra a mão esquerda do baterista empunhando a baqueta que está apoiada na caixa para preparar o toque que será executado no aro do primeiro tambor, em frente à própria caixa. A Figura 21b representa o primeiro toque da apojatura (Flam) que compõe o procedimento da “raspadeira”; a mão esquerda permanece apoiada na pele de caixa com a baqueta empunhada em um grip exercido entre o indicador e polegar, enquanto o toque é aplicado com o corpo da baqueta no aro do primeiro tambor. A Figura 21c representa a continuação e também a finalização do procedimento do toque da “raspadeira”, em que o toque principal da apojatura é aplicado ainda com a mesma mão apoiada na pele da caixa, percutindo o aro da caixa com o corpo da baqueta.

95 Fotos do autor produzidas pelo próprio.

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Figura 21a. Raspadeira Figura 21b. Raspadeira Figura 21c. Raspadeira preparação do toque apojatura no tambor toque principal no aro da caixa

Sob um contexto histórico, conforme já mencionamos anteriormente, atribui-se a invenção da raspadeira a Dom Um Romão no surgimento e desenvolvimento do sambajazz (na década 1960), em que a abordagem musical favorecia a presença de dinâmicas mais fortes. O próprio nome “raspadeira”, já demonstra de certa forma como esse toque diferenciado foi exercido, pois o movimento de rotação do punho da mão esquerda no sentido anti-horário, em conjunto com um discreto movimento do braço de dentro pra fora, faz com que a baqueta exerça uma espécie de raspagem nos aros do tambor e da caixa. Segundo o baterista Pascoal Meirelles, em entrevista concedida ao autor, a “raspadeira” vem da 1 influência do baterista norte americano Art Blakey, que utilizava uma técnica parecida dentro 10 da linguagem do jazz. Meirelles afirmou que Blakey exerceu uma forte influência nos bateristas de sua época (década de 1960) e que Romão, possivelmente inspirado por ele, criou a versão brasileira desse “toque especial”. Segundo Meirelles, Romão foi o primeiro baterista a executar esse procedimento de performance na bateria na fase do sambajazz. Vários bateristas da época incorporaram a técnica em seu repertório fraseológico, após terem assistido a Romão em performances ao vivo, ou ouvirem os discos gravados por ele nessa época (MEIRELLES, 2016).

Antes de apresentarmos as transcrições para as análises, gostaríamos de informar que adotaremos a legenda de notação musical proposta por Weinberg (1994) para representar as execuções de bateria para esse trabalho. Fizemos seis alterações em relação à legenda original: a abertura do chimbal, o aro de caixa, o toque diferenciado que descreve o rudimento “flam” executado entre os aros do tom e da caixa denominado de “raspadeira”, caixa com rimshot abafada pela mão esquerda, a cúpula do chimbal, baqueta tocando em cima do corpo

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da outra baqueta que, por sua vez, permanece apoiada na pele. A Figura 22 abaixo mostra a legenda da notação de bateria adotada com a inclusão das alterações descritas acima:

Figura 22. Notação musical de bateria adotada para esse trabalho 1

11 Mais um esclarecimento se faz necessário nesse momento no que tange ao conceito de métrica que tomaremos como base para entendermos e discutirmos as ocorrências rítmicas observadas frente aos aspectos que envolvem a estrutura da sincopa no universo rítmico do samba. Com o foco na atividade rítmica que a mão esquerda de Romão desempenhou ao executar o procedimento da “raspadeira” na superfície rítmica das músicas, tomaremos como parâmetro a relação existente entre as divisões temporais com o fundo métrico dos compassos, e nesse sentido, podemos traçar um paralelo aos conceitos discutidos pelo pesquisador Carlos Sandroni, em seu livro Feitiço Decente (2001). Sandroni utilizou amplamente os termos “cometricidade” e “contrametricidade”, os quais foram postulados anteriormente pelo pesquisador Mieczyslaw Kolinksi, definindo estas duas possibilidades de ocorrências rítmicas em relação ao seu fundo métrico, cuja infraestrutura permanente recebe intervenções temporais. Acerca disso, Sandroni comenta: “o caráter variado do ritmo pode confirmar ou contradizer o fundo métrico, que é constante [...]. A “metricidade” de um ritmo

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seria, pois, na medida em que ele se aproxima ou se afasta da métrica subjacente” (KOLINSKY, apud. SANDRONI, 2001, p. 21).

Essas duas características métricas – cometricidade e contrametricidade - são encontradas na rítmica do samba e são extremamente necessárias para o equilíbrio de seu tecido rítmico, entretanto, o aspecto de maior força para a articulação desejável da rítmica do samba tende a ser orientada mais pelo sentido contramétrico das divisões. Podemos então, correlacionar o aspecto da contrametricidade como necessária na construção da rítmica que desencadeia a sincopa. A sincopa, segundo o dicionário Harvard Dictionary of Music (1944) de Willy Apel, é definida como:

[...] qualquer alteração deliberada do pulso ou métrica normal. Nosso sistema rítmico baseia-se no agrupamento de pulsações iguais em grupos de 2 ou 3, com um acento regular recorrente na primeira pulsação de cada grupo. Qualquer desvio em relação a este esquema é sentida como uma perturbação ou contradição entre o pulso subjacente [normal] e o ritmo real [anormal] (ibidem, p. 827).

1 Nessa linha de pensamento, temos a sincopa como uma característica do contexto 12 rítmico do gênero do samba96, assunto que já foi amplamente discutido por pesquisadores, como Mário de Andrade, que afirmou que a “sincopa no primeiro tempo do dois por quatro” é a “característica mais positiva da rítmica brasileira” (ANDRADE, apud. SANDRONI p. 13); ou como o musicólogo Andrade Muricy, que ressalta que o “ritmo sincopado” é contraposto ao “ritmo regular” (ibidem), destacando que o sincopado traduz o irregular, sendo a exceção à própria regra nesse caso, mas que o “irregular” é considerado para a música popular brasileira a orientação rítmica necessária e “característica”.

96 Sandroni em seu livro Feitiço Decente (2001) comenta considerações acerca de Mario de Andrade que afirmou: “sincopa [...] no primeiro tempo do dois por quatro” é a “característica mais positiva da rítmica brasileira”.

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2.3.1 Telefone

O primeiro exemplo que escolhemos para discorrer sobre a ocorrência da “raspadeira” no idiomatismo de Romão, é a música Telefone97 de autoria de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, faixa de abertura do disco Dom Um (1964), o primeiro álbum solo da carreira de Dom Um Romão. Telefone é um samba com andamento médio em torno de 100 bpm, e tem a seguinte estrutura formal: (introdução) 10 compassos, (A) 12 compassos, (A’) 8 compassos, (B) 10 compassos, (ponte) 4 compassos, (C) 20 compassos (improviso de bateria), (B) 8 compassos, (A) 8 compassos (tema 4 compassos + 4 compassos de improviso de bateria), (B) 10 compassos e fim98.

Vale considerar alguns aspectos importantes sobre a análise musical no que tange ao seu aspecto formal (estrutura) adotada acima em Telefone, e que teve como critério, a priori, a sua separação por seções. O problema é que esta divisão em seções maiores não dá conta de toda a complexidade da percepção presente em Telefone. O interlúdio melódico funcionou como um tipo de retransição, ou seja, a transição para um material já apresentado anteriormente, ou conforme a definição de Schoenberg nos Fundamentos da Composição Musical (2008, 3°ed.): retransições são “pequenos segmentos conectivos que atuam como 1 pontes ou como elementos distanciadores das duas partes [A e B]” (SCHOENBERG, 2008, p. 13 253). O trecho representa um interlúdio, mas na verdade é uma transição para o retorno do A, ou seja, uma retransição. As retransições mais importantes são as que ocorrem ao final de um desenvolvimento, e por isso, poderíamos considerar o solo de bateria como um tipo de desenvolvimento, algo bastante diferenciado para a época. Outro aspecto a considerar na peça, diz respeito ao próprio início da parte B: dá-nos a impressão, na verdade, de começar na Casa 2, o que é confirmado na conclusão da peça, inclusive pela seção “Final”, onde repetição ocorre a partir da Casa 2 (ou seja, no final da peça o Final começaria ainda dentro do A). O interessante é que numa estrutura binária clássica, a parte (A) nunca é maior que a (B),

97 MENESCAL, Roberto. Telefone. Intérprete: DOM UM ROMÃO. In: Dom Um. [SI]: Philips, p1964. Remasterizado em CD, 2001. CD faixa 1. 98 Ver partitura completa, com melodias e acordes nos anexos. Obs: todas as músicas analisadas nesse capítulo do estudo interpretativo têm a sua partitura com melodias e acordes nos anexos.

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entretanto a parte (B) pode ser maior que a (A), seria então o caso de uma classificação formal pelo viés de análise shoenberguiana de um binário assimétrico para Telefone.

Ponderando essa perspectiva da complexidade formal, Telefone nos remete para um aspecto inovador frente à época em que foi registrada (1964). Vale também observar que essa faixa compõe o repertório de um disco solo de estreia de um baterista, fato incomum para a década de 60 no Brasil. O único instrumento a improvisar em Telefone foi justamente a bateria, com ocorrências em dois momentos distintos: primeiro após a exposição do tema em 16 compassos de solo, e pela segunda vez na retomada do tema, nessa oportunidade com um breve improviso, executado em apenas quatro compassos.

Temos em praticamente todas as seções de Telefone a ocorrência do procedimento da “raspadeira”, entretanto para iniciarmos nossa discussão, vamos ao nosso primeiro recorte musical observado logo na introdução da música, em uma extensão de 10 compassos. Constatamos a presença do procedimento da “raspadeira” em todos os compassos, conforme a transcrição representada na Figura 23 abaixo revela:

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Figura 23. Introdução de Telefone, álbum: Dom Um (1964): 0’0” - 0’12” [Ex. de Áudio 1]

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O procedimento da “raspadeira”99 amplamente identificado em todo o trecho acima (Figura 20), foi executado pela mão esquerda de Romão, enquanto que a sua mão direita e ambos os pés exerceram essencialmente uma base estável de condução do padrão rítmico tradicional de samba na bateria, com semicolcheias contínuas no prato (mão direita), divisões no bumbo (pé direito) na primeira e na quarta subdivisão de semicolcheia dos tempos (BOLÃO, 2003, p. 30), variando somente nos compassos que tiveram os ataques em tutti. A marcação do chimbal (pé esquerdo) observada nos contratempos apareceu em quase todos os tempos dos compassos, variando da mesma forma que o bumbo, ou seja, nos compassos com o ataque em tutti. As caixas de destaque em vermelho na Figura 23 mostram ao longo da introdução a ocorrência de convenções antecipadas feitas em caráter de tutti, com dinâmica “ff” (fortíssimo), observadas logo no início da música (compasso anacrúsico100), e nos compassos: 2 ao 7, e no compasso 10, todos com as ocorrências exercidas sempre na quarta semicolcheia do segundo tempo. Romão enfatizou as convenções em tutti, criando um toque em uníssono com dinâmica “ff” de textura densa, composto pelo prato de ataque, a caixa e o bumbo, executados em consonância com a dinâmica fortíssima que o arranjo exigiu.

Evidenciamos com as caixas de destaque em preto na Figura 23, a associação da 1 “raspadeira” com a linha melódica presentes nos seguintes trechos: 1) no primeiro compasso, 15 com a “raspadeira” apoiando a nota Si bemol da melodia na “cabeça” do segundo tempo; 2) no segundo compasso, na “cabeça” do primeiro tempo, apoiando a nota Dó e também na sua quarta semicolcheia, em associação com a nota Sol, esta por sua vez desempenhou um caráter de preparação antecipada para a convenção em tutti na quarta semicolcheia do segundo tempo desse mesmo compasso; 3) no compasso 3, na “cabeça” do segundo tempo, apoiando a nota Dó bemol e também com a terceira semicolcheia da linha melódica, que por sua vez é um Lá bemol; 4) no compasso 4, na “cabeça” do primeiro tempo junto com a nota Si bemol, e na quarta semicolcheia do primeiro tempo, acentuando o Lá bemol e exercendo dessa forma a função de preparação para a convenção em tutti no fim desse compasso, exatamente como

99 Relembrando a descrição do procedimento da “raspadeira”: consiste em percutir com a baqueta primeiramente o aro do tambor agudo, finalizando o toque aro da caixa caracterizando uma espécie de flam de aros. 100 Figuras que precedem o primeiro compasso. Bohumil Med: Teoria da Música. 4 edição 1996 pag.147.

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aconteceu no compasso 2; 5) no compasso 5 a “raspadeira” está associada com a rítmica da melodia presente na “cabeça” do segundo tempo desse compasso, diferentemente do que aconteceu nos compassos 2 e 4, quando então preparou o tutti por antecipação melódica, exercida na quarta subdivisão de semicolcheia, apoiando respectivamente as notas Sol e Sibemol; 6) no compasso 6, a “raspadeira” enfatizou a nota Fá da melodia em seu contratempo e também a nota Lá bemol na “cabeça” do segundo tempo, acentuando e preparando a convenção em tutti na última semicolcheia do segundo tempo desse compasso; 7) no compasso 7, a “raspadeira” teve uma ocorrência similar ao do compasso anterior em termos rítmicos, sendo aplicada no contratempo do primeiro tempo, apoiando a nota Mi bemol e também na “cabeça” do segundo tempo, junto com a nota Fá. Percebemos na análise até esse momento, que a “raspadeira” esteve presente em todos os compassos desse trecho, as únicas intervenções que não foram enfatizadas por ela foram às convenções realizadas em caráter de tutti, presentes nos compassos: 2, 4, 5, 6 e 10 e logo no início da música, em compasso anacrúsico. A melodia se desenvolveu entre os espaços criados justamente pelas convenções (em tutti) e Romão teve na rítmica da melodia o referencial para fazer as suas intervenções. Embora os bateristas não toquem melodias e acordes da mesma maneira que outros instrumentistas o fazem, sua participação na estrutura do discurso musical é 1 fundamental, uma vez que o mesmo resulta da interação e do diálogo que é constantemente 16 “alimentado” pelas intervenções dos diversos instrumentistas (MARQUES, 2014).

Prosseguindo em nossa análise, temos a seguir na Figura 24, um recorte dos compassos 8 ao 10 do trecho anterior (Figura 23), em que a “raspadeira” exerceu um papel um pouco diferente em relação ao observado nos compassos anteriores da introdução de Telefone. As caixas de destaque em preto apontam as divisões cométricas (SANDRONI, 2001) ocorrentes nos compassos 8 e 9 em colcheias cométricas, e também na cabeça do primeiro tempo do compasso 10. Divisões contramétricas foram observadas na quarta subdivisão semicolcheia do primeiro e do segundo tempo, evidenciadas pela caixa de destaque me vermelho.

Observe as ocorrências citadas acima na Figura 24 a seguir:

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2 4

Figura 24. Trecho final da introdução da faixa Telefone álbum: Dom Um (1964): 0’10” - 0’12” [Ex. de Áudio 2]

Dom Um Romão ao aplicar as divisões em colcheias cométricas nesses dois compassos (8 e 9) representados na Figura 24 acima, está em consonância com a rítmica do contrabaixo, a qual é bastante perceptível na gravação (0’8”s aos 0’11”s). Dessa forma, o espaço melódico criado pela ligação das notas longas desde a quarta semicolcheia do primeiro tempo do compasso 8 até o compasso 10, foi preenchido quando então houve novamente a ocorrência de um “ataque” em tutti com dinâmica “ff” na última semicolcheia do segundo tempo, marcando dessa forma o fim da introdução (seção), e que, por sua vez, foi sinalizada com o procedimento da “raspadeira” de forma acentuada na última semicolcheia do primeiro 1 tempo desse compasso, conforme a caixa de destaque em vermelho inserida no exemplo 17 musical evidencia (Figura 24).

O que podemos concluir acerca do emprego do procedimento da “raspadeira” em toda a introdução da música Telefone é que Romão não aplicou divisões rítmicas que exercessem algum caráter fixo, muito pelo contrário, ele participou ativamente do discurso musical e foi guiado pela rítmica da melodia para realizar as suas intervenções na bateria, o que, sob essa ótica, gerou interações incisivas com os outros instrumentistas em sua performance. Tal fato nos revela que, mesmo em uma parte da música que possui uma estrutura mais fechada, como no caso da “introdução” de Telefone, com um arranjo que sugere opções interpretativas mais definidas, Romão tomou decisões orientadas por um modelo de performance com um caráter mais aberto, ou seja, algo que admita uma variedade de escolhas no momento de tocar. Depreende-se então, que a “raspadeira” exercida pela mão esquerda nesse trecho musical representado na Figura 24, tem a sua aplicação orientada num

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sentido improvisado, com o referencial interpretativo baseado na rítmica da melodia e não relacionada a um padrão estável.

Podemos, nessa linha de raciocínio, determinar um paralelo com o termo “tocar nas quebradas”, cujo movimento musical do sambajazz da década de 1960 está amplamente associado, e que “indicava uma via alternativa de expressão artística para aqueles instrumentistas oriundos da bossa-nova, cuja atuação musical na época foi central, como é o caso dos bateristas Edison Machado e Dom Um Romão” (MARQUES, 2013). Tutty Moreno, em depoimento para o pesquisador Guilherme Marques acerca de sua investigação sobre o idiomatismo do baterista Airto Moreira, abordou essa questão para caracterizar aquilo que ficou mais conhecido no meio profissional musical como baterista “melódico”. Para Tutti Moreno, o baterista melódico “é aquele que não pensa unicamente no ritmo, ele toca em cima da melodia [...] quer dizer, mistura o ritmo com a melodia” (MORENO, apud. Marques 2011). A definição de baterista “melódico”, contextualizada por Moreno nos faz traçar esse paralelo com a abordagem rítmica exercida por Dom Um Romão na introdução de Telefone, já que suas intervenções no discurso musical aplicadas com o procedimento da “raspadeira” foram guiadas pela estrutura rítmica da melodia principal. 1

Considerando todas essas ocorrências colocadas em perspectiva, podemos afirmar 18 que a introdução da música Telefone é balizada por uma série de intervenções que Dom Um Romão realizou na superfície rítmica da música (LARUE, 1992, p. 90-91), participando ativamente do discurso musical, antecipando, enfatizando o desenho rítmico e preenchendo os espaços deixados pela melodia, iniciada no compasso 8 até a convenção final no compasso 10, o que também nos remete à discussão estabelecida pela pesquisadora Ingrid Monson (1996, p. 51), que considera que a performance dos bateristas numa seção rítmica de jazz “representa [numa perspectiva interativa] um microcosmo de todo o processo interativo, incluindo-se aí a sensibilidade harmônica e melódica” (MONSON, apud. Marques, p. 75).

De posse de todos os conceitos levantados e discutidos acima, em relação ao trecho representado na Figura 23 e que corresponde à introdução de Telefone, podemos identificar e definir dois tipos de ocorrências rítmicas exercidas pelo procedimento da “raspadeira” encontradas desde o compasso 1 até o compasso 10 desse trecho. As divisões em colcheias presentes nos compassos 8 e 9, aplicadas nas “cabeças” dos tempos e também em

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seus contratempos, estabeleceram uma relação direta com a métrica regular desses compassos, portanto possuem caráter de cometricidade. No compasso 10, as divisões observadas na quarta semicolcheia dos tempos, sendo uma delas com a “raspadeira” e a outra exercida em caráter de tutti na caixa com o rimshot, possuem natureza contramétrica. Ocorrências rítmicas observadas na quarta semicolcheia dos tempos (parte “fraca do tempo”) induziram uma sensação rítmica de sincopa, e muito embora ela não seja extensa, foi estabelecido nesse compasso 10 um movimento rítmico que se contrapôs ao discurso dos compassos anteriores (8 e 9). Dom Um Romão, ao aplicar colcheias cométricas nos compassos 8 e 9, e finalizando com divisões contramétricas no compasso 10, estabeleceu dessa forma um equilíbrio rítmico da sincopa.

Estendendo nossa investigação da recorrência do procedimento da “raspadeira” associada a outras partes estruturais de Telefone, identificamos a sua presença também nas partes (A) e (A’) da música, conforme a Figura 25 a seguir evidenciou nas caixas de destaque em preto nos compassos 16, 18, 24 e 30.

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2 4

1 20

Figura 25. Trecho da parte (A) e (A`) da faixa Telefone, álbum: Dom Um (1964): 0’12” - 0’40” (Ex. de Áudio 3)

Observamos quatro ocorrências da “raspadeira” em todo o trecho acima, representado na Figura 25, num total de 24 compassos transcritos. Na parte (A), o procedimento aparece em dois momentos: no compasso 16, na “cabeça” do primeiro tempo em associação discreta com a rítmica da melodia; no compasso 18, também em associação com a rítmica da melodia e com os ataques de metais em dinâmica “ff” (não transcritos, mas identificados na gravação), aplicados na segunda subdivisão de semicolcheia do segundo tempo. Já na parte (A’), também verificamos a “raspadeira” em dois momentos: no compasso 24, em associação com a rítmica da melodia na terceira subdivisão de semicolcheia do primeiro tempo e também no compasso 30, da mesma forma que no compasso 24 e com os

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ataques de metais na segunda subdivisão de semicolcheia do segundo tempo, igualmente observado no compasso 18 da parte (A).

Acerca desse trecho transcrito acima, sobre uma perspectiva de análise musical mais ampla, observamos que a ocorrência da “raspadeira” nas partes (A) e (A’) de Telefone, se desenvolveu dentro de um contexto rítmico associado às outras intervenções exercidas em diferentes peças da bateria, compondo uma linha rítmica de subdivisões aplicadas na caixa, no aro da caixa, nos tons e no surdo, determinando dessa forma uma variedade de timbres e divisões rítmicas. Em geral, nesse contexto analisado na Figura 25 a “raspadeira” teve uma ação diluída, ou seja, sua ocorrência procedeu em associação com as outras peças da bateria, diferente do caráter único atribuído na introdução de Telefone (Figura 23), quando então nesse trecho, Romão usou o procedimento quase que exclusivamente como pontuação da voz rítmica principal em interação com os outros instrumentos do grupo.

Outra parte da música em que Romão aplicou o procedimento “raspadeira” foi na seção do solo de bateria, ainda na música Telefone. O procedimento foi observado de forma intensa, pois está presente em nove compassos, quase metade da extensão do solo de bateria 1 que possui vinte compassos101 em seu total. As caixas de destaque na Figura 26 a seguir, 21 evidenciam as ocorrências da “raspadeira” no compasso 2, localizado no primeiro, terceiro e quarto sistema da transcrição, os quais incluem o compasso 9 até o compasso 16.

101 A contagem de compasso aplicada na transcrição está em numeração sequencial referente à seção do improviso de bateria estabelecida a partir do primeiro compasso desta seção de improviso.

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Figura 26. Solo de bateria em 20 compassos de extensão na faixa Telefone álbum: Dom Um (1964): 0’54” - 1’17” [Ex. de Áudio 4]

1 22 Logo no início do solo de bateria, em seu segundo compasso, verificamos a “raspadeira” na “cabeça” do segundo tempo e também em seu contratempo, conferindo um sentido de cometricidade (SANDRONI, 2001). Já nos compassos 9 até 16, observamos uma intensa aplicação da “raspadeira” em caráter essencialmente contramétrico, variando com divisões que incidem na segunda ou na quarta subdivisão de semicolcheia em todo o trecho. Nos compassos 11 ao 13, as divisões rítmicas exercidas pela “raspadeira” são exatamente iguais entre si, e no compasso 14 temos a adição de mais uma subdivisão na última semicolcheia do seu segundo tempo. Na sequencia, nos compassos 15 e 16 identificamos “variações” da “raspadeira” no que tange ao seu aspecto tímbrico e de performance.

Na Figura 27 a seguir, as caixas de destaque evidenciam as ocorrências do procedimento da “raspadeira” em associação com divisões rítmicas em fusas, aplicadas na caixa da bateria pela mão direita de Romão, precedendo o “flam” da “raspadeira”. Ainda após o aro da caixa da “raspadeira”, identificamos outra divisão no prato que também foi exercida

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pela mão direita. Vejamos abaixo na Figura 27, o recorte dos compassos 15 e 16 da seção que compõe o solo de bateria, com destaque para as considerações mencionadas.

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Figura 27. Recorte dos compassos 15 e 16 do improviso de bateria em Telefone álbum Dom Um (1964): 0’50” [Ex. de Áudio 5]

O procedimento da “raspadeira” discutido nesse subcapítulo, sempre esteve associado a uma base rítmica de samba “estável” (ostinato), exercida pelos pés e também pela mão direita conduzindo essencialmente em semicolcheias no prato. Entretanto, para essa “variação” identificada na Figura 27 acima (compassos 15 e 16 - caixas de destaque), houve uma quebra da condução rítmica que vinha sendo desempenhada pela mão direita no prato, 1 decorrente da aplicação de uma fusa na caixa da bateria que precedeu o “flam”. Após a 23 aplicação da divisão em fusa na caixa, a mão direita se moveu imediatamente para o prato, aplicando outro toque, conforme as caixas de destaque evidenciaram na Figura 27. Dessa forma, a adição de dois novos toques aplicados no toque da “raspadeira” nos permite estabelecer uma relação com os conceitos discutidos pelo baterista e educador Terry O’Mahoney, acerca de desenvolvimento motívico para a construção de solos de bateria e definido por ele como “embelezamento”. Ou seja, o procedimento da “raspadeira” foi preservado em sua característica original, mas ganhou um novo “colorido” ao receber a adição de notas em seu aspecto original.

O´Mahoney, em seu livro Motivic Drumset Soloing (2004), abordou o assunto de improvisação para o contexto da bateria, elencando diversos conceitos que ajudam a analisar e a construir solos de bateria de uma maneira organizada, através de ferramentas que auxiliam o entendimento de estruturas motívicas e de como usá-las para tal fim. “Embelezamento” é um dos vários conceitos que foram discutidos no trabalho do pesquisador e que é definido detalhadamente como sendo o processo de “aumentar” ou “decorar” (flams ou drags) um

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motivo rítmico através da adição de notas à sua estrutura básica, normalmente entre os espaços rítmicos ou tempos fortes dos compassos, ou ainda duplicando as divisões, como é o caso de tocar duas peças da bateria simultaneamente, conhecida como: double stops (O´MAHONEY, 2004, p. 35).

Ainda na Figura 27, verificamos outra variação do procedimento da “raspadeira” observada no segundo tempo do compasso 15 e em todo o compasso 16. A segunda variação da “raspadeira”, presente nesses compassos 15 e 16, se caracterizou pelo abafamento provocado pela pressão da mão esquerda exercida por Romão na pele da caixa da bateria no momento em que o toque foi aplicado pela mão direita, gerando dessa forma uma nova sonoridade, caracterizada por um som “seco” e mais agudo em relação à primeira variação da “raspadeira”, já analisada no compasso 15. Tecnicamente na bateria, as duas variações do procedimento da “raspadeira” encontradas nesses compassos, demandam um nível elevado de habilidade técnica para a sua execução devido à necessidade de uma rápida movimentação com a mão direita para percutir a caixa e logo em seguida o prato, imediatamente após o flam desferido pela mão esquerda no aro do tambor agudo e em seguida no aro da caixa.

Bastante perceptível na gravação, o timbre determinado por essa variação da 1 “raspadeira” estabeleceu uma textura sonora diferente em relação à raspadeira original, a qual 24 vinha sendo aplicada nos compassos anteriores (9 ao 14). Desta forma, constatamos que essa “variação” da “raspadeira” presente nos compassos 15 e 16 conferiu maior densidade ao procedimento ao incorporar mais duas divisões a sua forma original. Em termos rítmicos houve uma quebra no fluxo do padrão de condução que vinha sendo desempenhada no prato pelas semicolcheias contínuas, com isso, a resultante rítmica das divisões aplicadas entre mãos e os pés estabeleceu uma sensação geral de polirritmia102 e polifonia, determinado pelas diferentes vozes das peças da bateria, mas também proporcionando a interação com o discurso musical corrente, gerando ritmicamente o mesmo sentido polirritmico que a bateria estabeleceu com as suas vozes individuais. Tal fato, nos leva novamente a estabelecer

102 A Polirritmia é definida de acordo com autor Peter Magadini, como sendo “dois ou mais ritmos tocados simultaneamente ou um contra o outro” (MAGADINI, 1993, p. 1).

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correlação com o pensamento de Monson acerca da questão da polirritmia que os bateristas facilmente podem determinar no contexto musical, pois a interação estabelecida internamente entre os quatro membros do corpo do baterista que desempenham partes distintas do seu instrumento - no caso de bateristas destros - com a mão direita no prato de condução, a mão esquerda na caixa e tambores, e o pé direito no bumbo e pé esquerdo no chimbal, podem criar um diálogo musical que misturam texturas e diferentes rítmicas, determinando um caráter tão polifônico quanto aquele que se institui entre o baterista e os outros instrumentistas de um grupo musical (CARVIN, apud. MONSON, 1996, p. 52).

Último aspecto interessante a considerar, ainda sobre os compassos 15 e 16 da Figura 27, é que encontramos no livro do baterista Oscar Bolão: Batuque é um Privilégio (2003, p.62) uma frase característica do repinique que é similar a “variação” da “raspadeira” presente nesses compassos. Na Figura 28 abaixo, temos a comparação das rítmicas entre a “raspadeira” e a frase de repinique mencionada, as caixas de destaque em vermelho mostram a similaridade entre elas.

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2 4

Figura 28. Associação da frase de repinique (excerto original) com a “raspadeira” nos compassos 15 e 16 do improviso de bateria em Telefone álbum: Dom Um (1964): 0’50” [Ex. de Áudio 5]

A notação musical da frase do repinique escrita acima está dividida em duas linhas que representam duas alturas103 distintas (grave e agudo). Ajustamos o primeiro tempo

103 Notação característica para percussão usada por Oscar Bolão em seu livro: O Batuque é um Privilégio (2003)

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da frase do repinique (deslocando-o para direita) com a “cabeça” do segundo tempo da frase da “raspadeira” no compasso 15, onde a partir desse ponto, ambas as rítmicas desempenharam as mesmas características de repetição do agrupamento rítmico (LERDAHL E JACKENDOFF, 1983, p.36-37) exercido a cada três semicolcheias sobre um compasso binário (Ibid, 1983, p.17). A frase rítmica do repenique descrita acima, é usualmente observada em contextos de solos sobre uma base rítmica de condução das escolas de samba, e, essencialmente desempenhada nas tradicionais “paradinhas”104, a qual foi instituída pelo Mestre André da Bateria da Escola de Samba Carioca Mocidade Independente de Padre Miguel (PAULA, 2003 p. 26)105. A semelhança entre ambas às frases no seu aspecto sonoro e rítmico nos leva a prospectar que Romão além do tamborim pode ter também considerado uma adaptação da referida frase do repenique para a linguagem da bateria através do procedimento da “raspadeira”. Tal agrupamento rítmico que foi exercido pela “variação” da “raspadeira” nos compassos 15 e 16 e aplicado a cada três semicolcheias sobre um pulso binário, gera um ciclo rítmico característico de 3:2, caracterizando o fenômeno rítmico denominado hemíola106, o qual foi observado em outras músicas de nosso recorte musical, atribuindo dessa forma um traço idiomático peculiar de Dom Um Romão associado ao estilo musical do sambajazz. Vale ressaltar que, embora a sonoridade característica da “raspadeira” 1 esteja associada essencialmente pela questão tímbrica à emulação do naipe de tamborim da 26 escola de samba a bateria, observamos na Figura 28 o procedimento da “raspadeira” ser relacionando com a frase do repinique, o que nos remete a trazer para a discussão os conceitos

104 A paradinha da bateria é um contraste com a levada característica do samba. É um momento em que a bateria executa trechos combinados anteriormente. Ocorre uma “quebra” da levada característica estruturada em caráter motívico de pergunta-resposta ou de proposição-imitação. Normalmente, somente um instrumento (ou naipe) executa a primeira parte, e esta primeira parte chama à memória dos ritmistas a continuação ensaiada. Para tanto, o repenique, os tamborins ou os surdos encarregam-se da primeira parte e todos os instrumentos da bateria executam a resposta ou imitação (PAULA, 2003 p. 26). 105 O repinique foi introduzido nas escolas de samba cariocas no final dos anos 50, com o nome de "Caixinha Carioca" (CUÍCA; DOMINGUES, 2009, p. 67). 106 Hemíola é uma das principais e mais particulares características da música africana que consiste na superposição e o intercâmbio da pulsação binária com a ternária. Este tipo de relação rítmica acontece de duas formas: (1) na sobreposição dos dois tipos de pulsação e/ou (2) na sucessão dos mesmos. Muitas vezes os dois tipos acorrem ao mesmo tempo. Algumas evidências apontam que o “3 contra 2”, sobretudo quando aparece horizontalmente, seja o elemento causador de movimento e da condução rítmica. [..] é o principal componente do efeito de tensão-relaxamento e da imparidade rítmica, atributos fundamentais da maioria das time lines (CARVALHO, 2011, p. 49-53).

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contextualizados por CUNHA (2014) em que o pesquisador, através da discussão promovida por diferentes autores, como Gomes (2003), Stanyek e Oliveira (2011) e Oliveira Pinto (1999), afirma que para uma melhor compreensão do universo rítmico do samba é necessário observar a simultaneidade de suas linhas e as suas relações de interação; isso porque na prática, os instrumentos podem transitar entre diferentes funções ao longo da execução musical, ou, ao mesmo tempo, dialogar com diversas linhas simultaneamente ao longo da execução (GOMES; STANYEC E OLIVEIRA, PINTO, apud. CUNHA, 2014). Tal discussão acima corrobora a relação observada entre os empréstimos fraseológicos do tamborim e do repinique exercidos por Romão ao associar os seus aspectos rítmicos e tímbricos dos dois instrumentos de percussão, nas suas intervenções rítmicas pelo procedimento da “raspadeira” na bateria. Podemos então dizer que na prática coletiva do samba não há uma separação estrita de função definitivamente rigorosa de desempenho rítmico (CUNHA, 2014). Cunha sintetiza essa discussão afirmando que:

[..] a maior parte dos instrumentos executa simultaneamente ritmos relacionados a diferentes regiões do espectro de frequências (grave, médio e agudo) e diferentes linhas rítmicas. Na verdade, o termo “linha” pode nem mesmo ser tão apropriado para 1 descrever a atuação de cada instrumento, pelo menos não no sentido rítmico, como se 27 cada instrumento executasse uma única linha específica de ritmo e cada uma dessas linhas se sobrepusesse (ibidem).

O que podemos concluir sobre a aplicação da “raspadeira” na música Telefone em suas diferentes partes que a compõe, é que o procedimento teve maior recorrência quando a dinâmica estabeleceu um caráter mais forte em determinada seção da musical, como na introdução, com recorrência verificada em todos os seus 10 compassos de extensão, e no solo de bateria, em nove dos seus vinte compassos totais de extensão. Já nas partes de exposição do tema: (A) e (A´) a “raspadeira” teve apenas uma recorrência em quatro compassos. Diante disso, podemos concluir que o critério utilizado por Romão para aplicação da “raspadeira” na música Telefone está ligado a questões de dinâmica, e também a partes estruturais da música que possuam maior liberdade de expressão de performance, ou seja, seções de improviso em que a interação musical é um dos aspectos preponderantes.

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2.3.2 Birimbau

Com o objetivo de investigar equivalência entre as ocorrências verificadas em partes estruturais iguais desempenhadas em músicas diferentes, com uma possível associação do emprego do procedimento da “raspadeira” a seções específicas do arranjo, transcrevemos mais uma seção de introdução, agora da música Birimbau107, a décima primeira faixa do álbum Dom Um. Birimbau é um samba de andamento médio em 94 bpm, composição João Mello e Codó (Clodoaldo Brito) e tem a seguinte estrutura formal: (Introdução) 20 compassos, (Improviso-bateria) 8 compassos, (A) 16 compassos, (Ponte) 4 compassos e (B) 8 compassos. A partir desse momento, a música se repete novamente, sendo que a parte (B) se apresenta em sua repetição com o dobro do tamanho (16 compassos). Na sequencia temos a parte final, similar à introdução da música com 20 compassos.

Na Figura 29 a seguir, transcrevemos a primeira parte da introdução de Birimbau, mostrando o desenho melódico, a parte da bateria e a rítmica do piano, esta por sua vez escrita em uma única linha, entre os pentagramas da bateria e da melodia. Romão executou nesse trecho um padrão rítmico de condução tradicional de samba (GOMES, 2008, p. 23), 1 verificada entre os compassos 1 até ao 12. A “levada”108 nos primeiros 12 compassos é 28 constituída pelo: bumbo, chimbal, aro da caixa (rimshot/mão apoiada na pele) e pela “raspadeira”. Vejamos a transcrição a seguir na Figura 29 com a presença da “raspadeira” evidenciada pelas caixas de destaque em preto no segundo sistema nos compassos 6 ao 10.

107 Mello, João; Brito, Clodoaldo. Birimbau. Intérprete: DOM UM ROMÃO. In: Dom Um. [SI]: Philips, p1964. Remasterizado em CD, 2001. CD faixa 11. 108 Levada na linguagem de jargão informal dos músicos significa o padrão de condução adequado que se encaixa na música a partir do referencial fornecido pelo contrabaixo, piano, guitarra, entre outros instrumentos que pode referenciar a construção de padrões.

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Figura 29. Associações da mão esquerda de Romão com melodia e rítmica do piano música Birimbau compasso 1 ao 12 Dom Um (1964) 0’0” - 0’25” [Ex. de Áudio 6]

Em todo o trecho da Figura 29 acima, Romão aplicou uma levada de bateria composta de um ostinato com o seu pé direito, com o bumbo “a dois”.109 Nos compassos 1 e 2 a condução rítmica foi desempenhada em semicolcheias contínuas pela sua mão direita no chimbal, entretanto, a partir do terceiro compasso até o décimo, ocorreram acentuações no chimbal em associação com as intervenções realizadas no aro da caixa, terminando com a abertura de chimbal na “cabeça” dos tempos nos compassos 11 e 12, sendo que nesse último

109 Samba a dois é uma expressão idiomática usada no meio dos bateristas e músicos em geral que para se referir a divisões executadas no bumbo que exerçam um ostinato rítmico composto de uma colcheia pontuada na cabeça dos tempos mais uma semicolcheia na ponta:

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compasso (compasso 12), temos outra abertura de chimbal, dessa vez no contratempo do segundo tempo.

Os espaços melódicos criados pelas divisões exercidas em mínimas ligadas, aplicadas nos quatro primeiros compassos desse trecho (Figura 29), caracterizaram um efeito “pedal”, exercido pelo trombone/baixo que apoiou a nota Ré, a qual é a tônica de Birimbau, e Romão preencheu esses espaços criados pela melodia com a sua mão esquerda, aplicando divisões no aro da caixa, em associação com a rítmica de acompanhamento do piano, evidenciada pelas caixas de destaque em vermelho na Figura 29.

Interessante é notar que a partir do terceiro compasso desse trecho, as intervenções rítmicas observadas em aspecto contramétrico e aplicadas no aro da caixa pela mão esquerda de Romão, mantiveram a mesma divisão com uma frase de dois tempos até o compasso 5, sendo que no compasso 6 a mesma divisão ganhou força ao ser desempenhada com o procedimento da “raspadeira” que seguiu da mesma maneira até o compasso 8, quando então no compasso 9, as colcheias cométricas promoveram um antagonismo e um consequente relaxamento na malha rítmica que estava sendo tensionada pela repetição excessiva das divisões contramétricas desde o compasso 3. Contudo, no compasso 9, as 1 colcheias cométricas exerceram um aspecto de “pergunta”, que foi respondido no compasso 30 10 com a adição de mais uma divisão com o procedimento da “raspadeira”, em caráter de contrametricidade.

Percebemos nesse momento algo que é muito comum na linguagem rítmica do samba: a inversão do caráter de “pergunta” e “resposta” o qual pode ser associado ao caráter cométrico e contramétrico, pois em geral, aspectos contramétricos (sincopa) induzem na rítmica o sentido motívico de “pergunta”, enquanto que divisões cométricas denotam um caráter motívico de conclusão, ou seja, de “resposta”. O mesmo fenômeno motívico também foi observado em relação ao trecho final da transcrição nos compassos 11 e 12, porém, houve nesses compassos uma diminuição da densidade rítmica, estabelecida pelas divisões observadas no aro de caixa em relação à “raspadeira” que foi exercida nos compassos anteriores (compassos 9 e 10 da Figura 29).

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Ainda sobre os compassos 9 a 12, vale ressaltar que além de divisões diferentes em relação aos compassos anteriores, um novo ciclo rítmico se configurou com o aumento do tamanho da frase que estava sendo desempenhada em dois tempos, e que a partir do compasso 9 se completou em quatro tempos, estabelecendo dessa forma um relação motívica de “pergunta” e resposta” dos respectivos compassos 9 e 10, e do compasso 11 com o 12. Resumindo, as divisões cométricas aplicadas no compasso 9 pelo procedimento da “raspadeira” receberam seu contraste no compasso 10 com o incremento das divisões, conferindo desse modo o caráter contramétrico.

Na sequencia, as mesmas divisões do compasso 9 foram repetidas no compasso 11, no aro da caixa, entretanto houve diminuição da densidade rítmica gerada pelo aro da caixa. O compasso 12 por sua vez, exerceu uma “resposta” em relação ao compasso 11, e, apesar de observarmos uma colcheia no contratempo do segundo tempo, o que favorece o aspecto cométrico (SANDRONI, 1996), a divisão aplicada na quarta semicolcheia do primeiro tempo, atribuiu ao compasso 12 um caráter mais contramétrico (sincopa).

Veja na Figura 30 a seguir, o recorte dos compassos 9 até 12, com as caixas de destaque evidenciando todas as relações citadas acima, mostrando as similaridades das 1 rítmicas desempenhadas pela mão esquerda (caixas de destaque na cor preta), alternando entre 31 toques desempenhados com o aro de caixa e o procedimento da “raspadeira", bem como também a relação da rítmica da melodia com a divisão desempenhada pela mão esquerda de Romão (caixas de destaque na cor vermelha).

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2 4

Figura 30. Análise motívica e interação da mão esquerda com melodia dos compassos 9 ao 12 de Birimbau

1 Diante de todas as ocorrências observadas no trecho transcrito da introdução da 32 música Birimbau, representado na Figura 29, entendemos que Romão tomou como referencial as partes estruturais da música para compor seu arranjo de bateria, acentuando a sua superfície rítmica, com isso interagiu, propôs e também respondeu em termos dinâmicos ao discurso melódico (LARUE, 1992, p. 91) e a rítmica do acompanhamento de piano. Não achamos correlação das divisões exercidas no aro da caixa com a rítmica da melodia entre os compassos 1 ao 8, no entanto, existiu uma associação com a rítmica do acompanhamento do piano nesse trecho, conforme já comentado. Nos compassos: 9 a 12 (Figura 30), Romão alternou seu referencial de escolha para as intervenções na bateria entre a rítmica de acompanhamento do piano e a rítmica da melodia, conforme as caixas de destaque indicaram. Parece-nos que a divisão empregada no aro da caixa, exercida também através do procedimento da “raspadeira”, já fazia parte de um repertório de padrões de condução rítmica preconcebido por Dom Um Romão, pois o procedimento observado nessa primeira parte da introdução de Birimbau, mais especificamente nos compassos 4 ao 10, também está presente

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em diferentes seções das várias músicas presentes nos dois discos que constituem o nosso objeto de estudo da análise musical.

Prosseguindo, transcrevemos a segunda parte da introdução de Birimbau, que vai do compasso 13 ao 20 e que está representado na Figura 31 a seguir. Encontramos novas ocorrências da “raspadeira”, sendo que nesse trecho identificamos uma “variação” ao procedimento da “raspadeira” encontrado na primeira transcrição introdução (compassos 1 ao 12) de Birimbau (Figura 29). A “raspadeira” além de ter a sua incidência somente em alguns compassos, não teve a sua aplicação em caráter único e sim associado com o aro da caixa.

Vejamos a transcrição a seguir representada na Figura 31, com as caixas de destaque em preto evidenciando os compassos com a ocorrência da “raspadeira”, e as caixas de destaque em vermelho apontando a relação das divisões rítmicas desempenhadas pela mão esquerda de Romão em associação com a rítmica da melodia.

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Figura 31. Trecho transcrito da música Birimbau, compasso 13 ao 20 álbum: Dom Um (1964) 0’0” - 0’25” [Ex. de Áudio 7]

Observamos em todo esse trecho da segunda parte da introdução de Birimbau, a presença de um grande tutti melódico. A condução rítmica que foi desempenhada no chimbal na primeira parte da introdução (Figura 31) passou no compasso 13 a ser exercida no prato,

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em semicolcheias contínuas com algumas pontuações acentuadas no prato de ataque, nas “cabeças” dos tempos dos compassos 13, 14 e 18, e também nos contratempos dos compassos 16 e 20, com dinâmica fortíssima. Dos compassos 13 ao 20, temos divisões rítmicas em tambores e na caixa, as quais foram executadas pela mão esquerda de Romão em associação com as convenções em tutti. O pé direito desempenhou padrões de samba a “dois” (BOLÃO), e o pé esquerdo marcou no chimbal nos contratempos, com a ocorrência de apenas uma leve variação no compasso 20. O procedimento da “raspadeira” foi observado nos compassos: 14, 17 e 18, conforme as caixas de destaque em preto evidenciaram na Figura 31, sendo que nos compassos 14 e 18 o procedimento se apresentou de forma idêntica entre si, compondo uma linha rítmica com as outras vozes da bateria que apoiaram a melodia em tutti (caixas de destaque em vermelho). Romão aplicou nesses compassos (14 e 18) um prato de ataque na “cabeça” do primeiro tempo com a “raspadeira” na “cabeça” do segundo tempo, seguido de um aro de caixa no contratempo, em associação com a rítmica da melodia, conforme a caixa de destaque em vermelho evidenciou na Figura 31. Já no compasso 17, a “raspadeira” desempenhou uma espécie de “resposta” (O´MAHONEY, 2004) aos compassos 15 e 16, aplicando a mesma rítmica do segundo compasso, presente no padrão tradicional do telecoteco. 1 34 Em relação às transcrições de Birimbau representadas nas Figuras 30 e 31, do ponto de vista da análise métrica, segundo Sandroni (2001), observamos rítmicas cométricas e contramétricas em todo o trecho transcrito. Um motivo rítmico contramétrico foi iniciado no compasso 3 e repetido até o compasso 8. Apesar de termos observado a contrametricidade nesses compassos citados (total de oito compassos), o que de uma maneira geral é esperado e favorece a articulação da síncope no samba, a repetição em demasia desse aspecto, mesmo que seja desejável, estressa o sentido de tensão que esse aspecto métrico naturalmente impõe podendo causar um desequilíbrio na estrutura da sincopa rítmica para o samba, desse modo gerando uma espécie de “estagnação”, um endurecimento do tecido rítmico. Entretanto esse aspecto foi quebrado no compasso 9 pelo antagonismo que o caráter cométrico atribuiu ao ser aplicado, promovendo finalmente o relaxamento e reequilibrando a sincope.

Para concluir e estabelecermos um paralelo do procedimento da “raspadeira” identificado nas introduções de Telefone e de Birimbau, vamos colocar brevemente em

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perspectiva as ocorrências examinadas nas duas análises. A grande diferença encontrada na aplicação do procedimento da “raspadeira” nas duas músicas é que em Telefone, a “raspadeira” teve sua aplicação em caráter “quase” único em todo o trecho da introdução, desempenhando a função de reforçar, preencher e estabelecer diálogo no discurso musical (Figura 23). A única divisão verificada em Telefone que não houve a aplicação da “raspadeira” foi na convenção em tutti, ou seja, Romão escolheu o procedimento da “raspadeira” como textura rítmica principal para estabelecer sua interação com o discurso musical. Em Birimbau (Figura 31), a “raspadeira” também foi aplicada em caráter único dentro do mesmo compasso (compasso 6 até o 10), entretanto, além de uma menor incidência desse aspecto em relação às ocorrências em Telefone, identificamos a associação da “raspadeira” com divisões na caixa (toque na pele) e no aro da caixa nos compassos 14, 17 e 18, compondo dessa forma uma linha rítmica variada e diluindo a densidade do procedimento.

2.3.3 Nordeste

Encontramos mais variações do procedimento da “raspadeira” na música 1 110 Nordeste, a quarta faixa do álbum O Som (1964), composição de J.T. Meirelles. Nordeste é 35 um samba com andamento de 76 bpm, com estrutura formal caracterizada por: (A) (A) (B) (A), com oito compassos para cada parte, num total de 32 compassos. Saxofone e piano improvisaram sobre a extensão total de um chorus111 respectivamente, e após a seção de improvisos o tema foi retomado, mantendo a forma já apresentada inicialmente: (A) (A) (B) (A). Após a exposição da última parte (A), a música seguiu para a sua parte final, com quatro

110 MEIRELLES, J.T.. Nordeste. Intérprete: DOM UM ROMÃO. In: Meirelles e os Copa 5:O Som. [SI]: Philips, p1964. Remasterizado em CD, 2001. CD faixa 4. 111 Paul Berliner definiu chorus como: “tornou-se uma convenção para os músicos expor a melodia e seu acompanhamento no início e no fim da apresentação de uma música. No meio, eles criam solos improvisados dentro do formato cíclico da música. Um solo pode compreender apenas uma passagem pelo ciclo, conhecido como chorus, ou isso pode ser estendido por diversos chorus. Tradução livre do autor. Original: “It has become the convention for musicians to perform the melody and its accompaniment at the opening and closing of a piece´s performance . In between, they turns improvising solos within the piece´s cyclical rhythmic form. A solo can comprise a single pass through the cycle, known as a chorus, or it can be extended to include multiple choruses”

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compassos de extensão, alternando harmonicamente entre a tônica e a sua dominante até o quinto compasso desse trecho, finalizando então no acorde da tônica.

A transcrição representada a seguir na Figura 32 abaixo, corresponde ao acompanhamento da bateria dos últimos oito compassos do improviso do piano em Nordeste. Identificamos mais “variações” do procedimento da “raspadeira” aplicadas por Dom Um Romão nos compassos 1 e 5 desse trecho, evidenciados pelas caixas de destaque em vermelho, e que revela ocorrências que diferem de outras já encontradas e discutidas anteriormente.

1 36

Figura 32. Raspadeira no improviso de piano em Nordeste álbum (O Som -1964): 2’22” - 2’34” [Ex. de Áudio 8]

A “raspadeira” presente no primeiro compasso da Figura 32 foi aplicada na “cabeça” do primeiro tempo e também em seu contratempo. Romão adicionou um aro de caixa na quarta subdivisão de semicolcheia do primeiro tempo, logo após a “raspadeira”, e é justamente essa associação de um toque “simples” após a “raspadeira” que gerou uma sonoridade diferenciada ao procedimento, já que na maioria das vezes observamos um caráter único da “raspadeira” dentro do mesmo compasso, ou então, associada a outras peças de bateria como caixa e tambores, entretanto com um espaçamento maior entre as divisões.

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No compasso 5 (Figura 32), temos a ocorrência de outra “variação” da “raspadeira”. Em termos estruturais, o procedimento é praticamente ao mesmo encontrado anteriormente na música Telefone e representado na Figura 28, entretanto as divisões aplicadas pela mão direita na caixa e no prato se mantiveram dentro do mesmo trilho de subdivisão de semicolcheias, as quais já vinham sendo desempenhadas no prato nos compassos anteriores, o que de certo modo facilitou a execução da “raspadeira”, diferente da ocorrência observada na referida Figura 28, em que o prato desempenhou rítmicas fora do trilho da subdivisão da semicolcheia, impondo um nível maior de dificuldade ao procedimento. Do ponto de vista da performance, ao analisarmos tecnicamente os movimentos que compõe essa “variação” do procedimento da “raspadeira”, houve uma rotação do antebraço em associação com a movimentação lateral do braço, enquanto o pulso se manteve fixo, alternando os toques entre a caixa e o prato da bateria. O que fica evidente com tal movimentação é que a “raspadeira” não teve a ação dos dedos, os quais mantiveram a baqueta firme em uma posição fechada do “grip”112.

Veja a seguir na Figura 33a, 33b, 33c e 33d113, as fotos mostrando a sequencia dos movimentos com seus respectivos toques, os quais compõe essa “variação” do procedimento 1 da “raspadeira” descritos acima. 37

Figura 33b Figura 33c Figura 33d Figura 33a

Figuras: 33a (foto 1) – 33b (foto 2) – 33c (foto 3) – 33d (foto 4) – Variação do procedimento da “raspadeira” fotos em sequencia dos movimentos da esquerda para direita, descritas no texto e relacionados as respectivas figuras aqui dispostas

112 A tradução da palavra grip em associação para o contexto da bateria significa: empunhadura, ou seja, diz respeito à maneira como a mão segura a baqueta. De um modo geral temos dois tipos de grip estabelecidos pela escola americana: tradicional grip e macthed grip. 113 Fotos do autor e produzidas pelo próprio.

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Em relação ao aspecto métrico das ocorrências rítmicas presentes no compasso 5 da Figura 32, temos um caráter cométrico nas divisões exercidas no primeiro tempo, desempenhadas no prato na “cabeça” do tempo e em seu contratempo, e um caráter contramétrico, nas divisões exercidas na segunda e na quarta subdivisão de semicolcheia do primeiro tempo e na segunda subdivisão de semicolcheia do segundo tempo. É interessante observar que Romão, ao manter o trilho da subdivisão de semicolcheia em sua mão direita e alternar as intervenções entre a caixa e o prato para cada figura rítmica aplicada, determinou dessa forma aspectos métricos de cometricidade e contrametricidade para a mão direita, enquanto que com a mão esquerda, somente o aspecto contramétrico foi observado (SANDRONI, 2001).

Diante da discussão acerca das duas “variações” da “raspadeira” encontradas na Figura 32, e considerando as análises dos seus respectivos aspectos métricos estabelecidos pelas intervenções aplicadas pela “raspadeira” de Romão, bem como os elementos que os definiram como “variação” em relação às ocorrências anteriores, é necessário nesse momento ampliar o foco de observação e investigar se houve relação das intervenções exercidas na bateria com a rítmica do solo de piano. Para tal fim, colocamos novamente o mesmo trecho da 1 transcrição da Figura 32, agora representada na Figura 34, evidenciando com as caixas de 38 destaque em vermelho as divisões em que a mão esquerda de Dom Um Romão interagiu com a rítmica do improviso de piano, através da “variação” do procedimento “raspadeira” e também das outras ocorrências temporais observadas e exercidas sobre as outras peças da bateria. Apesar do objetivo da investigação nesse subcapítulo não estar relacionado com as ocorrências aplicadas em outras peças de bateria, vamos considerá-las nesse momento, pois entendemos que Romão utiliza a “raspadeira” também para compor uma linha rítmica, mesclando com as outras vozes da bateria para obter diferentes sonoridades associadas ao procedimento. Vejamos abaixo na Figura 34 abaixo, as caixas de destaque em vermelho ressaltando a relação da rítmica do improviso com as intervenções aplicadas na bateria. Em todos os compassos desse trecho transcrito, observamos interações da rítmica da mão esquerda distribuída por Romão nas peças da bateria com a rítmica do improviso do piano.

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Figura 34. Relação das intervenções de bateria com a rítmica do improviso de piano em Nordeste do álbum: O Som (1964): 2’22” [Ex. de Áudio 8]

Como podemos constatar, há em todos os compassos da Figura 34 (compasso 1 ao 8), caixas de destaque ligando os pentagramas da bateria e da melodia, o que evidencia a associação das divisões aplicadas na bateria com a rítmica da melodia do solo de piano. Nos 1 compassos em que observamos a ocorrência da “raspadeira” (compasso 1 e compasso 5), bem 39 como as outras divisões aplicadas em distintas peças da bateria: caixa (toque na pele), aro da caixa, tambor e caixa/prato de ataque, foi observado um diálogo musical entre o piano de Luís Carlos Vinhas e a bateria de Dom Um Romão. As divisões rítmicas aplicadas por Romão com a sua mão esquerda nos compassos: 2, 4, 6 e 7, se relacionaram totalmente ou quase que totalmente com a rítmica da melodia do solo de piano, o que demonstra um intenso nível de interação musical entre os dois músicos. Vale ainda ressaltar as ocorrências observadas nos compassos 5 e 6 entre piano e bateria. No compasso 5, Luís Carlos Vinhas aplica uma divisão mais longa no primeiro tempo e Romão imediatamente responde com o procedimento da “raspadeira”, preenchendo e propondo uma maior densidade a linha rítmica, incitando o solista, o que de fato acontece fraseologicamente no compasso seguinte (compasso 6), com o aumento da atividade rítmica do improviso, enquanto Romão, nesse compasso, inverteu o seu papel, relaxando com a diminuição das intervenções rítmicas, determinando dessa forma um equilíbrio em sua interação dialógica. Acerca dessa observação, um aspecto pertinente ao processo de performance musical coletiva associada a improvisação merece ser pontuada.

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Nicholas Cook (2007) em sua pesquisa, levantou discussões sobre performance e os aspectos que envolvem a sua prática, trazendo vários pensamentos de diferentes pesquisadores importantes para uma discussão acerca desse assunto. Alguns conceitos sob a ótica de Alfred Schutz são inerentes ao ato da improvisação, como por exemplo, o “tempo interno”. Schutz enfatiza que a qualidade de um diálogo musical em tempo real, está condicionada a um “tempo interno” ajustado entre os instrumentistas (COOK, 2007, p. 14). Nesse sentido Cook explica as considerações de Schutz em seu artigo publicado em 2007: Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros, sobre a questão do “tempo” comentada acima:

[...] o “tempo externo” pode ser dividido em porções iguais, ao passo que, no “tempo interno”, não há subdivisões, medidas de tempo distintas do conteúdo da experiência durante aquele tempo. Para Schutz, então, fazer música juntos significa o engajamento de dois ou mais indivíduos dentro de um tempo interno compartilhado: “esta comunhão do fluxo de experiências do tempo interno do outro, este vivenciar de um presente vívido comum, constituindo... a relação mútua de ajuste, a experiência do ‘Nós’, que está na base de qualquer possível comunicação” (SCHUTZ, 1964, p. 173).

1 Cook, aponta ainda no mesmo artigo, que a ideia de tempo interno e externo e seu 40 necessário processo de ajuste, desenvolvida por Schutz, vai de encontro ao pensamento de Ingrid Monson sobre os seus estudos de performance no jazz, bem como a de outros pensadores acerca dos aspectos que envolvem a interação musical existente entre o solista e o acompanhador:

Quando ele utiliza esta ideia como base para descrever uma performance de um instrumentista solista com acompanhamento de teclado, o resultado (se nos permitirmos uma terminologia husserliana) é quase indistinta dos relatos sobre interação em performance apresentados por Monson e outros autores de estudos sobre jazz: cada performer “tem de prever o “Outro” por meio da audição, atrasos e antecipações, qualquer virada na interpretação do “Outro”, é estar preparado, a qualquer momento, para ser líder ou acompanhador” (ibidem, p. 176).

Diante de todos os conceitos levantados e discutidos em nossa investigação, e postulados acima, nos parece claro que Dom Um Romão, bem como os seus pares do

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sambajazz na década de 1960, mais precisamente em 1964, data da gravação do referido álbum O Som de J.T. Meirelles, já estavam conseguindo estabelecer em suas experiências de prática coletiva - em que tais processos discutidos ocorrem de numa maneira primordial - ótimos resultados no que tange a performance associada a improvisação.

Ainda na música Nordeste do álbum Dom Um, encontramos mais duas situações interessantes do emprego da “raspadeira” durante o improviso de saxofone.

Vejamos a transcrição representada na Figura 35 a seguir, com as ocorrências da raspadeira que foram evidenciadas pelas caixas de destaque em vermelho:

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Figura 35. Ocorrência da “raspadeira” no improviso de saxofone em Nordeste do álbum: O Som (1964): 1’21” [Ex. de Áudio 9] 1 41

No compasso 46 da Figura 35 acima, a ocorrência da “variação” da “raspadeira”, também se assemelha no que tange ao seu aspecto tímbrico com a mesma encontrada na música Telefone (Figura 27), em que a divisão exercida pela mão direita em fusa na caixa antes do “flam”, determinou uma sonoridade “abafada”, a qual foi gerada pela mão esquerda de Romão, que se manteve apoiada na pele (da caixa), justamente para a execução dos “flams” entre os aros do tambor e da caixa. As divisões rítmicas presentes no segundo compasso da Figura 35 acima, são iguais às observadas anteriormente na Figura 34 em seu quinto compasso. No compasso 47 (Figura 35) a “raspadeira” apareceu apenas na última semicolcheia do segundo tempo, em associação com a caixa percutida em sua pele (esteira acionada) e também no aro da caixa. Já no compasso 48, observamos algo inédito até então em toda a nossa análise; conforme indicado na caixa de destaque na Figura 35, percebemos uma intensa atividade rítmica da “raspadeira” em uma sequencia de seis semicolcheias em associação com o prato de condução, sendo cinco subdivisões com o procedimento da

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“raspadeira” e apenas um aro de caixa no contratempo do primeiro tempo. De acordo com os conceitos de Jan LaRue, esse tipo de ocorrência rítmica intensa é caracterizado pelo estado de “stress”. O musicólogo americano estabeleceu correlação da atividade rítmica a três estados: “stress” (muita atividade), “lull” (pouco atividade) e “transition” (estágio intermediário) (LARUE, 1993, p. 95-102). Outro aspecto importante observado é que, ao aplicar o procedimento da “raspadeira” nesse compasso, Romão enfatizou a estrutura da música pontuando a superfície rítmica (LARUE, 1992, p. 91) de seu acompanhamento, com uma intervenção que determinou a passagem da parte (A) para a parte (B) do chorus, no improviso do saxofone. “Do ponto de vista da interação, é também uma maneira de instigar o solista ao propor uma nova sonoridade no acompanhamento, ainda que isso ocorra de maneira sutil” (MARQUES, 2013).

2.3.4 Blues Bottle’s

Investigamos também a música Blue Bottle´s ainda do álbum O Som (1964), composição do próprio J.T. Meirelles. Blue Bottle´s possui um andamento médio de 74 bpm e 1 tem uma estrutura formal tradicional de blues em 12 compassos (BERLINER, 1994, p. 76). A 42 primeira exposição do tema é apresentada pelo contrabaixo, trompete e saxofone, com um acompanhamento discreto da bateria nessa seção. Na segunda exposição do tema, o contrabaixo passa a conduzir e o piano faz o acompanhamento, enquanto que a melodia é tocada somente pelos metais. Temos quatro seções de improvisos em Blue Bottle´s, com os respectivos solos de piano, trompete, saxofone e baixo, todos com a extensão de três chorus para cada instrumentista, com exceção do contrabaixo que improvisou somente sobre dois chorus da música. Após os improvisos, temos novamente duas exposições do tema; na primeira vez o contrabaixo e os metais tocam a melodia, na segunda vez a exposição do tema é feita de novo somente com os metais, o contrabaixo a partir desse momento conduziu em padrão rítmico de samba, exatamente como já havia acontecido na música anteriormente. Transcrevemos abaixo, a parte da bateria que corresponde ao acompanhamento do primeiro chorus (12 compassos) do solo do piano. As caixas de destaque em vermelho indicam a presença da “raspadeira” na Figura 36 abaixo:

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Figura 36. Ocorrência da “raspadeira” no improviso de piano em Blue Bottle´s álbum: O Som (1964): 0’41”. [Ex. de Áudio 10]

O improviso do piano aconteceu sobre um total de três chorus (32 compassos), e observamos a presença da “raspadeira” apenas no primeiro chorus, no compasso 8 e 9, conforme as caixas de destaque evidenciaram. A baixa ocorrência da “raspadeira” na Figura 36 aponta que o procedimento não teve uma aplicação relevante em associação ao solo do 1 piano. Tal constatação nos leva a acreditar que a aplicação do procedimento da “raspadeira” 43 pode estar associada a questões de dinâmica.

Na bateria, tradicionalmente temos duas peças primordiais que, ao serem tocadas, nos oferecem possiblidade de condução rítmica tanto para solos, como para exposição do tema, são elas: o chimbal e prato de condução. A opção de conduzir no chimbal ou no prato nas diferentes seções da música está associada a alguns fatores, sendo o mais importante deles a questão da “dinâmica”. Para contextos de dinâmica leve, geralmente os padrões de condução rítmica são executados no chimbal, enquanto que para contextos de maior volume, temos a opção do prato de condução, chimbal aberto, e, em algumas vezes, até o prato de ataque pode ser utilizado para esta função. Recorrentemente dentro da linguagem da bateria associada ao jazz e a música brasileira instrumental, em seu caráter mais tradicional, temos condução rítmica desempenhada no chimbal para uma primeira exposição de tema e também para acompanhamento de solos dos instrumentistas que possuem emissão sonora limitada, como é o caso do piano (geralmente primeiro chorus) e do contrabaixo acústico. Para instrumentos com maior projeção sonora, como saxofone, trompete ou guitarra, as conduções

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de padrões rítmicos são geralmente exercidas no prato, em exposição de tema e seções de improvisos. Por fim, existe a possibilidade de aplicação de condução rítmica com o chimbal e com o prato na mesma seção da música (tema e improviso), nesse caso, o critério é estabelecido sobre o aspecto da construção dinâmica, ou seja, bateristas começam a conduzir o improviso no chimbal no primeiro chorus e no segundo chorus transferem a condução para o prato, adicionando mais densidade sonora, ambiência e consequentemente mais energia, criando dessa forma um efeito “crescente” de dinâmica ao acompanhamento, auxiliando o solista a desenvolver o seu improviso no que tange a esses aspectos mencionados.

Diante dessa perspectiva discutida acerca de dinâmica, vale ressaltar que na segunda exposição do tema de Blue Bottle´s, a qual precedeu a seção do improviso, o ritmo foi conduzido no prato, com frases aplicadas no aro da caixa pela mão esquerda, com os pés exercendo uma base estável de samba, quando então no último compasso dessa seção Romão fez uma discreta preparação na caixa e no tambor para sinalizar a entrada do solo de piano, transferindo a condução rítmica no compasso seguinte do prato para o chimbal. Com tal mudança, houve uma adequação do acompanhamento da bateria ao solista no que tange ao aspecto da intensidade, pois a partir desse ponto, Romão promoveu um acompanhamento 1 mais leve, propício ao caráter sonoro do instrumento, no caso o piano. O mesmo 44 procedimento se repetiu no improviso de contrabaixo, quando então Romão utilizava o prato de condução para acompanhamento dos solos de trompete e do saxofone tenor, e assim que o contrabaixo começou a improvisar, já quase no fim da música, houve novamente uma adequação na dinâmica da condução rítmica, respeitando dessa forma as características de intensidade do contrabaixo, pois a partir de então, o ritmo foi conduzido no chimbal. Esse fato nos faz acreditar que Romão tinha um conhecimento de estruturas musicais, uma vez que todas as mudanças de condução rítmica foram efetuadas corretamente, de acordo com o tamanho das seções e das respectivas dinâmicas adequadas às partes. Por exemplo, na primeira exposição do tema, em que a melodia foi apresentada com dinâmica moderada, Romão conduziu no chimbal, e na segunda exposição do tema, quando a melodia impôs maior intensidade, a condução rítmica foi transferida para o prato.

O mesmo procedimento foi observado em relação à seção dos improvisos, no momento da troca dos solistas, quando então Romão aplicou intervenções sinalizadoras para

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pontuar essas transições. Em relação ao procedimento da “raspadeira” dentro desse contexto, percebemos que em situações de dinâmica mais leve, como no improviso de piano, que naturalmente tem um volume menor em relação aos instrumentos de sopros, Romão aplicou o procedimento da “raspadeira” somente em duas oportunidades (compassos 8 e 9) diante de 32 compassos de improviso (Figura 36). Considerando essa perspectiva, podemos estabelecer uma relação da aplicação da “raspadeira” com a questão da dinâmica, ou seja, o procedimento tem uma maior recorrência quando os contextos musicais estabelecem uma dinâmica de maior intensidade, que é o caso dos improvisos e exposição de temas exercidos pelos instrumentos de sopro. Para corroborar essa afirmação, transcrevemos mais um trecho de Blue Bottle´s, a seção do improviso de trompete, e encontramos justamente uma recorrência maior do procedimento da “raspadeira” em comparação à observada ao solo de piano. Segue abaixo na Figura 37, a transcrição da parte da bateria pertinente a dois (24 compassos) dos três chorus totais (36 compassos)114 do acompanhamento ao improviso de trompete em Blue Bottle´s.

1 45

114 Mantivemos os números dos compassos em sequencia contabilizados desde o início da música e indicados na transcrição em cada compasso na Figura 37 acima.

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Figura 37. Ocorrência da “raspadeira” no improviso de trompete em Blue Bottle´s, álbum: O Som (1964): 1’39” - 2”18”. [Ex. de Áudio 11]

1 As caixas de destaque na Figura 37 mostram a ocorrência da “raspadeira” 46 observada dentro de dois chorus de acompanhamento da bateria no solo de trompete. No último chorus do improviso (não transcrito), encontramos mais três ocorrências da “raspadeira”, totalizando 12 compassos com a aplicação do procedimento em toda a extensão do solo, ou seja, 1/3 dessa seção. Em nossa análise, de acordo com a interpretação dos dados, e, comparando todos os áudios selecionados para o nosso estudo interpretativo, acreditamos que a “raspadeira” seja um dos procedimentos idiomáticos característicos de Dom Um Romão com maior recorrência encontrada em um trecho musical de todos já analisados, com a sua ocorrência se apresentando de diversas formas na Figura 37; a) associada ao aro da caixa nos compassos 63, 66, 73, e 75; b) associada a outras peças da bateria como caixa e tambores nos compassos 69 e 76; c) combinada com as intervenções na pele da caixa e também em seu aro nos compassos 81 e 82. O único momento desse trecho (Figura 37) em que houve exclusivamente a ocorrência da “raspadeira” sem estar associada a outras peças da bateria foi no compasso 67, com um caráter cométrico (SANDRONI, 2001). No que tange ao seu aspecto rítmico (Figura 37 - compasso 67) com a “raspadeira” aplicada em colcheias

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cométricas, constatamos recorrência exata do procedimento em outras músicas; como no solo de piano de Blue Bottle´s (Figura 36 - compasso 8); na introdução da música Telefone (Figura 23 - compasso 8 e 9). Fazendo uma análise geral da ocorrência da “raspadeira” nas seções de Blue Bottle´s, entendemos que o procedimento teve maior recorrência na exposição do tema, quando o mesmo foi exercido pelos metais e também em seus respectivos improvisos (trompete e saxofone), momento em que o aspecto da interação musical está mais propício. Concluindo, trata-se, portanto, de uma importante recorrência idiomática característica de Romão, observada em sua performance em momentos diferentes da mesma e de diferentes músicas.

2.3.5 Demais Considerações Sobre a Raspadeira

Uma característica importante que identificamos na aplicação da “raspadeira” no idiomatismo de Dom Um Romão presente nos dois álbuns do nosso objeto de estudo (Dom Um e O Som), é que a ocorrência desse procedimento sempre esteve associada a uma base estável de condução rítmica de samba, com a mão direita conduzindo essencialmente em 1 semicolcheias contínuas, no prato ou no chimbal, de acordo com a dinâmica que o arranjo 47 determinou para as seções, com os pés direito e esquerdo respectivamente, exercendo o padrão de bumbo “a dois” (BOLÃO, 2003, p. 85) e com a marcação do chimbal no contratempo.

Podemos afirmar que através das entrevistas realizadas para esse trabalho, bem como o acesso a todo material já publicado sobre Romão, em conjunto com as informações contidas nos exemplos musicais apresentados nessa discussão; a “raspadeira” é um procedimento idiomático peculiar do baterista Dom Um Romão que foi criado e amplamente aplicado pelo músico em suas performances. A “raspadeira” influenciou bateristas contemporâneos a Romão bem como a de gerações posteriores na prática desse procedimento idiomático. O caráter inicial de técnica estendida atribuída a “raspadeira”, foi transformado em parte integrante (CARINCI, 2012) com o passar do tempo ao repertório da linguagem da bateria do samba. Comprovamos tal fato, ao escutar o baterista Airto Moreira com o seu grupo Sambalanço Trio, quando então na música A Vontade Mesmo - no álbum homônimo de

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Raul de Souza (1965) -, aplicou o procedimento em sua performance nesse álbum, um ano depois de Romão ter gravado o álbum O Som (1964), provavelmente resultado da influência de Romão, por quem Moreira tinha comprovada admiração.

Veja na Figura 38 abaixo, a transcrição extraída do trabalho do pesquisador Guilherme Marques (2014). A caixa de destaque evidencia a aplicação do procedimento da “raspadeira” no segundo chorus do solo do piano em A Vontade Mesmo115:

Figura 38. Compassos 1 ao 4 do 2° chorus do solo de piano na música À Vontade Mesmo álbum: À Vontade Mesmo (1965): 2’25” - 2’33” 1 [Ex. de Áudio 12] Transcrição Guilherme Marques 48

Diante de todo o material levantando e discutido até aqui através das nossas análises musicais, Dom Um Romão aplicou a procedimento de performance da “raspadeira” pela sua mão esquerda em distintas partes das músicas, como introduções, exposições de tema, solos, pontes e partes finais das músicas, tendo como referencial para as suas execuções o padrão do telecoteco (poucas vezes), a rítmica da melodia e padrões preconcebidos. Tais ocorrências do procedimento da “raspadeira” tiveram como critério para a sua aplicação aspectos musicais como: dinâmica, andamento, arranjo e interação musical, com a sua recorrência observada dentro do mesmo compasso em caráter único, mas também em associação com as outras peças da bateria como: caixa, surdo, tambor agudo, tambor grave e

115 SOUZA, Raul de. À Vontade Mesmo. Intérprete: Raul de Souza e Sambalanço Trio. In: À Vontade Mesmo. [SI]: RCA, p1965. Remasterizado em CD, 2001. CD faixa 1.

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prato. Além da “raspadeira” ter sido observada recorrentemente em sua forma mais tradicional de performance, Romão ainda criou “variações” para esse procedimento ao adicionar notas de embelezamento e diferenciações tímbricas, o que confere a ele não só a característica de inventividade atribuída ao seu idiomatismo na bateria, mas acima de tudo uma busca constante por novas sonoridades, mesmo em cima de algo que já era considerado novo ( “raspadeira), destacando dessa forma o arrojo e a incessante criatividade do baterista.

2.4 Atividade rítmica da mão esquerda em uma exposição temática e na improvisação

A segunda geração da bateria brasileira que inclui nomes de grande representatividade como: Edison Machado, Milton Banana, Dom Um Romão e Hélcio Milito, contribuiu de forma decisiva para a quebra do paradigma do samba “batucado” na bateria (MARQUES, 2013, p. 1). Estamos nos referindo ao modelo exclusivo de condução rítmica (samba batucado) que era praticado pelos bateristas anteriores a década de 50 (primeira geração da bateria brasileira), e que teve como seu representante maior o baterista Luciano Perrone (BARSALINI, 2009, p. 30). A partir do momento em que houve a incorporação do 1 “prato” (feito creditado principalmente ao baterista Edison Machado116) para desempenhar 49 essencialmente a função de condução rítmica no samba, o “samba batucado” deixou de ser o “padrão” para se transformar na “variação” no que tange a função de padrões rítmicos recorrentes de condução na linguagem da bateria brasileira da época, o que estabeleceu dessa forma uma mudança de status das funções do prato e dos tambores da bateria.

Com essa nova perspectiva formada em relação à condução rítmica na bateria, foi atribuído ao “prato” o papel da manutenção do tempo dentro de um grupo musical, bem como a função de uma referência rítmica central para o próprio baterista. Criou-se uma espécie de “rede” em que as intervenções das diferentes vozes internas da bateria se apoiaram quando

116 Há alguma polêmica em torno de quem teria sido o precursor a usar o prato da bateria para condução rítmica no samba. O baterista Juquinha, em entrevista concedida à revista Batera & Percussão revelou que foi Hildofredo Corrêa quem começou a usar os pratos para conduzir o ritmo na bateria, na década de 40, entretanto não há duvidas que quem popularizou esse procedimento foi Edison Machado no período musical do sambajazz, na década de 60 (n. 59, pp. 36 a 38, julho 2002).

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aplicadas pela mão esquerda, pé esquerdo e direito117. Mais ainda, a definição tímbrica das linhas rítmicas dos tambores foi valorizada pela sonoridade diferente e característica que o “prato” agregou ao contexto geral do instrumento. Nesse sentido, a partir do momento em que a mão direita do baterista migrou para o “prato”, abandonando a rítmica que era exercida nos tambores e caixa em conjunto com a mão esquerda (samba batucado), houve uma espécie de separação da fraseologia, gerando consequentemente uma diminuição na densidade geral das vozes dos tambores e da caixa, possibilitando que uma das mãos do baterista - em nosso caso a mão esquerda de Romão -, pudesse exercer uma participação diferenciada junto ao discurso musical.

O diálogo estabelecido na introdução desse capítulo de análise interpretativa com as discussões promovidas por Monson (1966) e Marques (2013), acerca dos aspectos que envolvem a performance em uma prática musical coletiva, em que a improvisação é o foco central no processo da interação musical, ilustra bem os aspectos que envolve a ocorrência dos possíveis procedimentos idiomáticos característicos de Dom Um Romão associados a sua mão esquerda em investigação nesse capítulo.

Um dos pontos peculiares do idiomatismo de Romão, e que talvez o diferencie 1 frente aos seus pares do sambajazz (década de 60), é o fato de ele ter utilizado extensivamente 50 a emulação das vozes da percussão afro-brasileira, mais especificamente na execução com sua mão esquerda, distribuídas em frases por toda a bateria em associação com levadas de acompanhamento rítmico dentro do contexto do sambajazz, em que a interação musical na pratica coletiva passou a ser valorizada. Entendemos que a intensa incidência do procedimento em discussão, que foi observada em quase que na totalidade de nosso recorte musical, nos remete a acreditar que se trata de uma recorrência característica de Romão bastante significativa, senão a maior encontrada em nossa pesquisa.

Relembrando o que já discutimos anteriormente no início desse capítulo sobre alguns aspectos de interação musical, Ingrid Monson em sua discussão sobre performance no

117 Estamos considerando para a nossa discussão o caso dos bateristas destros como Romão, Edison Machado, Milton Banana e Hélcio Milito.

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contexto jazzístico, contou com o depoimento de vários bateristas ligados ao gênero, entre eles o professor e baterista de jazz norte americano Michael Carvin, que afirmou que num contexto moderno de jazz, os bateristas necessitam dedicar pelo menos uma de suas vozes rítmicas para a manutenção do tempo, fornecendo ao grupo uma base estável, enquanto que as outras vozes podem atuar de uma maneira mais livre, estabelecendo uma interação com o discurso musical corrente, criando contrastes, apoios, tensões e proposições musicais aos solistas bem como a sessão rítmica. Carvin ainda reforçou que o baterista também tem uma intensa interação musical entre os seus próprios membros e que esse diálogo interno é tão polifônico quanto aquele que é estabelecido com os outros instrumentistas do grupo (CARVIN, apud. MONSON, 1996, p. 52). Nessa perspectiva, ao examinarmos as performances de Romão e relacioná-las com os pontos levantados por Carvin acima, percebemos que a manutenção do tempo exercida por Romão no período do sambajazz, não foi desempenhada apenas por um membro como Monson aponta em sua discussão, e sim por três vozes rítmicas, exercidas pelos seus seguintes membros: 1) pé direito tocando o bumbo; 2) pé esquerdo marcando o chimbal essencialmente nos contratempos; 3) mão direita conduzindo no chimbal ou no prato, dependendo do volume da dinâmica e das seções da música. Com essa configuração de condução rítmica estabelecida, a mão esquerda ficou livre 1 para exercer o diálogo musical com o grupo e também com a suas vozes rítmicas exercidas 51 pelos seus outros membros, conforme já mencionamos. Dessa forma podemos prospectar uma analogia com a discussão proposta por Monson no sentido de que Romão, em sua performance, exerceu as duas funções descritas pela pesquisadora: manteve uma base de condução estável118 para a manutenção do tempo do contexto musical (em nosso caso três vozes exercendo esse papel), enquanto desempenhou com a sua mão esquerda intervenções de caráter mais livre, interagindo com o discurso musical.

Dom Um Romão, além de ter se destacado como um dos expoentes da segunda geração da bateria brasileira no período do sambajazz (MARQUES, 2013, p. 1), também

118 Base estável (ostinato do samba), que foi exercida pela mão direita de Romão em semicolcheias contínuas no prato ou no chimbal, com o pé direito no bumbo “a dois” (BOLÃO, 2003, p. 85) e o pé esquerdo marcando o chimbal, geralmente nos contra tempos quando a condução rítmica foi exercida no prato.

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esteve presente na criação e ascensão da bossa nova, portanto também sabia tocar de uma forma mais “contida” quando necessário. Fato que comprova essa afirmação foi a sua participação no disco Canção de Amor Demais de Elizete Cardoso em 1958, apontado pela crítica e pesquisadores como um disco referencial da bossa nova. Tal caraterística de adaptação aos contextos musicais foi citada por Airto Moreira em depoimento para Marques (2013), em que ele (Airto) comenta acerca dos bateristas de sambajazz que geralmente dominavam as duas formas de tocar: “forma participativa do baterista dentro do conjunto, enquanto a segunda se referia a um estilo mais comedido, no qual se executava essencialmente a marcação rítmica da música” (MARQUES, 2013, p. 50). Contudo, foi exatamente da outra maneira, “tocando nas quebradas” (ibidem), que Romão se apropriou da função condutora em sua mão direita no chimbal ou no prato, enquanto exerceu fundamentalmente com a sua mão esquerda intervenções rítmicas nas peças da bateria como: tambores, caixa, aros entre tambores/caixa (“raspadeira”) e toques percutidos diretamente no aro da caixa com a mão apoiada na pele dentro do idiomatismo do samba.

Observamos que Romão ao tocar o gênero do samba na bateria nas diversas seções formais que estruturam as músicas do nosso recorte musical, tais como introdução, 1 exposição do tema e na parte dos improvisos, sugere em termos rítmicos e tímbricos, algo que 52 se aproxime da soma geral da textura das vozes pertinentes aos instrumentos de percussão da escola de samba, como surdos, pandeiros, reco-reco, tamborim, caixa, cuíca, repenique e chocalho (GONÇALVES; COSTA, 2000, p. 20-21). Conforme já citamos anteriormente, Romão se considerava muito mais um percussionista brasileiro que tocava bateria, do que o inverso. Na verdade ele se intitulava um sambista em sua essência, ou seja, pensava ritmicamente como um percussionista quando tocava o samba na bateria (MODERN DRUMMER, 1990, p. 60).

Trazemos novamente as considerações de Michael Carvin, feitas em depoimento a Monson (1996) no sentido de estabelecermos um paralelo com o procedimento de performance desempenhado pela mão esquerda de Romão.

Carvin denominou de estado musical “líquido”, a associação de ideias rítmicas mais livres ao diálogo musical. Em contrapartida, a manutenção do tempo que é exercida pelos outros membros do baterista, as caracterizou como estado musical “sólido” (CARVIN,

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apud. MONSON, p. 55). Essa analogia estabelecida entre os estados da matéria e densidade musical, correlacionadas com as funções dos membros dos bateristas, exercidos nas diferentes peças da bateria, ora mantendo o ritmo, ora dialogando com o discurso musical, sintetiza bem o que queremos discutir e entender no idiomatismo de Dom Um Romão na bateria. Mais especificamente, é no estado “líquido”, ou seja, na atividade rítmica desempenhada pela mão esquerda de Romão no instrumento que iremos investigar e promover a nossa discussão nesse subcapítulo.

No que tange a construção de “levadas” para a bateria associadas ao repertório do sambajazz, conforme já mencionamos anteriormente, Romão recorreu frequentemente ao padrão rítmico tradicional do telecoteco119 bem como as suas variações, em que a “sincopa característica”120 está presente no segundo tempo do primeiro compasso do ciclo rítmico que é estruturado em dois compassos de 2/4, tanto no padrão tradicional quanto na sua variação. Não iremos nos aprofundar no assunto que envolve os aspectos da herança africana e/ou europeia no desenvolvimento da rítmica brasileira, mas é importante pontuar algumas questões sobre o desenvolvimento dos padrões rítmicos do samba, mais precisamente do ciclo do tamborim, em que uma de suas rítmicas mais recorrentes gerou o nome por associação 1 121 onomatopeica a “telecoteco” . As figuras mais agudas, que correspondem às sílabas te e le, 53 são tocadas por uma das mãos com a baqueta no tamborim. A sílaba co, representada pela

119 O padrão tradicional do telecoteco a que nos referimos na verdade é o ciclo rítmico associado ao tamborim exercido em motivos de quatro tempos que começa com as colcheias cométricas no primeiro tempo seguido do agrupamento estabelecido por: semicolcheia + colcheia + semicolcheia no segundo tempo do primeiro compasso. 120 Termo cunhado por Mário de Andrade para denominar o tipo de sincopa muito observada na música brasileira composta pelo seguinte agrupamento rítmico: semicolcheia + colcheia + semicolcheia. Essa sincopa se alocava essencialmente no primeiro tempo do padrão rítmico do samba “maxixado” observado na música brasileira no fim do século XIX até 1930, quando então houve a transformação estabelecida pela “turma do Estácio” que transformaram essa rítmica acrescentando mais sincopas no ciclo rítmico de quatro tempos, com a sincopa característica podendo estar no primeiro quanto no segundo compasso desse ciclo rítmico, dependendo do contexto que outros fatores como letra e harmonia determinavam (SANDRONI, 1996, p. 22). 121 A utilização de onomatopeias, originalmente uma figura de linguagem, é algo presente também na linguagem musical e que parece estar associado de forma mais presente em manifestações musicais que têm bases na oralidade, como é o caso da música africana; a vocalização ou oralização é situada, segundo VARGAS (2004: 6), no mesmo plano das “expressões rítmicas”, e estas, ao mesmo tempo em que são originárias das mimeses de alguns instrumentos, deram também origem aos ritmos. Como exemplos, podem-se citar o nosso samba telecoteco, o bebop americano ou, como encontrado em LEON (1984: 306-308), o chachacha cubano. (VARGAS; LEON, apud. DAMASCENO, 2016, p. 55-56).

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figura mais grave, geralmente é tocada pelo dedo médio da mão que segura o instrumento (DAMASCENO, 2016, p. 56). Dessa forma, relaciona-se o som das sílabas aos toques exercidos no tamborim pelas duas mãos, uma abafando internamente o som e a outra percutindo na pele. O tamborim foi introduzido no samba no fim da década de 1920 pelos percussionistas Bide e Bernardo, conforme afirmou o sambista Buci Moreira (MOREIRA, apud. CABRAL, p. 254).

Até 1930, os sambas guardavam em sua rítmica vestígios do antigo padrão do maxixe, quando então sambistas como Ismael Silva, Armando Marçal, os irmãos Bide, Nilton Bastos, entre alguns outros que vinham do bairro Estácio no Rio de Janeiro, resolveram organizar blocos para desfilar pelo próprio bairro até a Praça Onze, cantando e sambando. Nascia nesse momento à primeira escola de samba: Deixa Falar (1928). Entretanto, tal fato revelou uma dificuldade que consistia em encaixar o ritmo da música com o andar cadenciado do samba da época, aquele que era praticado nas rodas, o samba do partido-alto. Esse tipo de samba não possuía grandes deslocamentos (sincopas), não atribuía um movimento rítmico necessário para esse ritual. Nesse momento, os sambistas do Estácio acima mencionados,= resolveram alterar o ritmo de suas músicas, adaptando-o para o desfile de rua, com o emprego 1 de mais um grupo de células rítmicas nas já existentes, promovendo dessa forma uma 54 cadência rítmica mais sincopada, o que favorecia a marcha. Essa transformação na rítmica do samba, buscando uma sincopa maior é chamado por Sandroni de “Paradigma do Estácio” (SEVERIANO, apud. SANDRONI, p. 120).

Tal rítmica tem sido objeto de investigação por pesquisadores que estudam a música africana e a brasileira. Sandroni cita o pensamento de Mukuna acerca do ciclo rítmico presente no samba, e que segundo o pesquisador, tanto a “sincopa característica”122 observada

122 A pesquisadora Lopes Cançado (2000) apontou em sua pesquisa que o padrão da “síncope característica” se desenvolveu no Brasil, advindo da linguagem rítmica de tribos africanas de países como Angola e Zaire. Independentemente de sua origem, o padrão rítmico da síncope, em todas as suas expressões, tem sido considerado pelos musicólogos uma das mais importantes fórmulas rítmicas surgidas nas Américas no século dezenove. (ANDRADE, 1989; ALVARENGA, 1946; SANDRONI, 1996; CARPENTIER, 1961/1980; FERNANDEZ, 1988; ORTIZ, 1991; VEGA, 1952; KUBIK, 1979; MUKUNA, 1979). No século vinte e no século atual, o uso da síncope continua a trazer variedade e movimento à música. No Brasil, o padrão rítmico da

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no primeiro tempo de dois da rítmica tradicional do maxixe herdada do século XIX, quanto o novo padrão rítmico estabelecido pela turma do Estácio (1930) continham elementos bantu, encontrados em algumas regiões do Zaire na África. Mukuna ainda acrescentou que esse ciclo rítmico citado “é frequentemente dado pelo tamborim na orquestração da percussão”. A associação ao tamborim é corroborada por Samuel Araújo, que dá um exemplo semelhante ao de Mukuna chamando-o de “ciclo do tamborim” ou “padrão do tamborim” (Mukuna; Araújo, apud. SANDRONI, 2001, p. 120). Kubik por sua vez, aponta considerações na mesma direção de Mukuna ao afirmar que o tamborim exerce uma relação central, de pivô, em torno do qual os outros elementos rítmicos orbitam. Nesse sentido Kubik afirma que:

Qualquer pessoa que esteja familiarizada com o samba de rua brasileiro, como pode ser visto no Rio de Janeiro pela época do Carnaval ... deve conhecer a característica célula percussiva que atravessa esta música como um de seus traços mais persistentes. Esta célula pode ser tocada em vários instrumentos, por exemplo, em um tambor agudo ou até num violão. Trata-se de um elemento focal, no qual os outros instrumentistas, cantores e dançarinos encontram um pivô de orientação. (KUBIK, apud. SANDRONI, p. 120).

1 Podemos então nesse momento falar das “linhas rítmicas guias” ou time-lines, já 55 que elas desempenham exatamente a função que discutimos acima. Sandroni citou em sua pesquisa duas observações respectivamente sobre os pensamentos dos pesquisadores Nketia e Sinha Arom em relação à rítmica da música africana, e que pode nos servir para entendermos a função do padrão do tamborim na rítmica do samba. Na primeira consideração, Sandroni contextualiza o papel das “linhas-guias” citando o pensamento de Nketia sobre esse assunto:

síncope é encontrado abundantemente em diversos estilos e gêneros musicais (SANDRONI, 1996) e mais extensivamente no samba. Segundo Sandroni, a “sincopa característica” é uma herança modificada do tresillo observada nos padrões de sambas antigos do fim do século XIX e início do século XX e que foi modificado a partir de 1930 pela “turma do Estácio” que modificou o samba urbano carioca daquela época, determinando as sincopas que até hoje estão presentes no gênero.

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Em muitos repertórios musicais da África Negra, “linhas-guias” representadas por palmas, ou por instrumentos de percussão de timbre agudo e penetrante (como idiofones metálicos do tipo do nosso agogô), funcionam como uma espécie de metrônomo, um orientador sonoro que possibilita a coordenação geral em meio a polirritmias de estonteante complexidade. O fato é que essas “linhas-guias” têm especial predileção por fórmulas assimétricas [...], que são, então, repetidas em ostinato estrito, do início ao fim de certas peças (SANDRONI, 2001, p. 25).

A segunda observação feita por Sandroni em sua pesquisa partiu de Arom e diz respeito ao fato de que “em muitos casos deste tipo a repetição não é estrita, mas configura o que o pesquisador batizou de ostinato variado”. Sendo assim, a fórmula rítmica assimétrica ora é repetida, ora variada através de improvisações do músico responsável pela “linha-guia” (ibidem). Entretanto não é somente no tamborim que verificamos a rítmica peculiar a que Mukuna se referiu, elas podem ser encontradas também nas intervenções da cuíca, que compuseram com o surdo e com o próprio tamborim, o trio de instrumentos emblemático do novo estilo de samba surgido nos anos 1930 (ibidem).

Tanto o padrão tradicional do tamborim (telecoteco) criado pela “turma do Estácio” (SANDRONI, 1996) a partir de 1930, quanto as suas variações, e a sua forma 1 “invertida” (GOMES, 2008), foram frequentemente identificadas na performance de Romão 56 no que tange às divisões atribuídas a sua mão esquerda na bateria associadas as levadas de acompanhamento. Em alusão à rítmica e ao próprio timbre do tamborim, tais intervenções de Romão foram adaptadas a priori diretamente com toque simples no aro da caixa e com o procedimento da “raspadeira”, bem como também emulando os outros instrumentos de percussão do samba orientados ritmicamente pelo ciclo do tamborim e suas variações (SANDRONI, 1996).

É nesse sentido que o foco de nossa observação está direcionado, para tentarmos demonstrar através da análise dos elementos musicais presentes nas transcrições que a atividade rítmica desempenhada pela mão esquerda de Romão, em quase toda a sua totalidade, é uma resultante da soma das divisões e timbres da emulação das diferentes vozes dos instrumentos de percussão tradicionais do samba na bateria, e que tais rítmicas derivam dos valores divisivos de maior ou menor valor em relação ao ciclo rítmico do tamborim, conforme já discutimos anteriormente. Estamos falando do contexto rítmico característico

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encontrado nos surdos (primeira, segunda e terceira), caixa, tamborim, cuíca, agogô, repinique e ganzá, e que se mesclaram em seus timbres sob a orientação rítmica da “linha guia” do tamborim (padrão tradicional do telecoteco/variações), exercidas essencialmente num sentido “improvisado” (ostinato variado) quando adaptado ao contexto da linguagem de bateria. Aliado a todas essas considerações discutidas, Romão ainda estabeleceu mais um referencial de escolha para as suas intervenções na bateria: a rítmica da melodia, ora apoiando-a, ora completando-a, o que o faz ser incluso no rol dos bateristas denominados “melódicos”.

Em depoimento (MARQUES, 2013), o baterista Airto Moreira, pontua a diferença entre duas formas de performance para as rítmicas brasileiras, que eram comuns entre os bateristas daquela geração da década de 1960. Tal diferença é o que permitiu estabelecer a distinção entre duas “escolas” de bateria no Brasil, chamadas de primeira e segunda geração (conforme discorremos anteriormente). A primeira geração, com início a partir da década de 20 até meados de 1950, acaba sendo representada principalmente pela característica do samba “batucado” (condução rítmica predominantemente realizada nos tambores); enquanto a segunda geração, por suas características como condução predominantemente realizada nos pratos e intensa interação com os demais instrumentistas do grupo, acaba por ser conhecida 1 como a geração de bateristas “melódicos”: 57

No Brasil, esta figura do baterista “melódico” surge em contraposição à atuação do ritmista, aquele baterista que, segundo o depoimento de Airto Moreira, “tocava direto”, ou seja, cumpria com a função exclusiva de prover ao conjunto uma base rítmica sólida e linear sem criar maiores interferências na interação do grupo (MARQUES, 2013, p. 73).

A prática musical dos bateristas dito “melódicos” está associada a um modelo de performance mais interpretativo (tocar nas quebradas) a qual começou a tomar forma no movimento carioca e já amplamente comentado: o sambajazz (década de 1960). Como o próprio nome sugere, entendemos que a mistura do samba com o jazz agrega os elementos primordiais intrínsecos dos dois gêneros, trazendo então do jazz o modelo interpretativo de performance, no qual o diálogo musical é um fator essencial nas exposições dos temas e na improvisação, e, no que se refere ao samba, as melodias e o aspecto rítmico. Nesse sentido, é

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importante estabelecer uma relação com as discussões levantadas pelos pesquisadores Oliveira Pinto (1999), Gomes (2003) e Stanyek e Oliveira (2011) acerca dos aspectos que envolvem o universo rítmico do samba. Há uma convergência de pensamento entre os autores citados, no sentido de que para um melhor entendimento do universo rítmico do samba, é necessária a observação da simultaneidade de suas linhas rítmicas, bem como as suas relações de interação. “Isso se deve principalmente ao fato de que na prática os instrumentos podem transitar entre diferentes funções ao longo da execução musical ou ao mesmo tempo dialogar com diversas linhas concomitantemente” (CUNHA, 2013, p. 30-31).

O pesquisador e baterista Hélio Cunha, evidenciou os aspectos intrínsecos da prática coletiva do samba em seu caráter rítmico, definindo-os da seguinte maneira:

Dessa forma, podemos dizer que na prática coletiva do samba não há uma divisão radical de função ou uma separação absolutamente rígida de atuação rítmica. Pelo contrário, a maior parte dos instrumentos executa simultaneamente ritmos relacionados a diferentes regiões do espectro de frequências (grave, médio e agudo) e diferentes linhas rítmicas. Na verdade, o termo “linha” pode nem mesmo ser tão apropriado para descrever a atuação de cada instrumento, pelo menos não no sentido rítmico, como se cada instrumento executasse uma única linha específica de ritmo e 1 cada uma dessas linhas se sobrepusessem (ibidem). 58

Nesse sentido, Tiago de Oliveira Pinto aponta para a mesma direção que Cunha quando o pesquisador discutiu três conceitos que auxiliam na “compreensão da complexidade do tecido rítmico do samba e de como suas interações procedem no resultado da sonoridade geral” (ibidem). O primeiro conceito, que o autor nomeou de “flutuação” rítmica, é definido pela elasticidade frequente intrínseca quando se pratica o ritmo, o qual possibilita que as “estruturas básicas de certos motivos rítmicos se mantenham, mas não de forma “metronômica” como é o caso da transição entre grupos rítmicos de semicolcheia + colcheia + semicolcheia (sincopa característica) e três quiálteras de colcheia” (PINTO, apud. CUNHA, 2013, p. 30-31).

Outro conceito considerado por Oliveira Pinto acerca da interação rítmica no idiomatismo do samba foi nomeado pelo pesquisador de “rede flexível”. Este nos permite compreender e considerar a imprecisão advinda de um processo de performance coletiva em

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que o desajuste ocorre naturalmente, por se tratar de uma rede em atuação de performance. Não estamos falando de tocar fora do tempo, estamos considerando aos ajustes na performance que o gênero do samba aceita e até espera em virtude da interação rítmica dos músicos em sua prática coletiva, para que aspectos até certo ponto abstratos, passem a ser vislumbrados. Estamos falando do que muitos chamam no jargão popular de: o “balanço”, o “swing”. Na verdade os músicos de um grupo sentem os ritmos, processam, tocam, interagem, e nesse processo, se admite uma imprecisão que justamente o pesquisador Tiago Oliveira Pinto chama de “rede flexível” (ibidem). Acerca dessa perspectiva levantada, trazemos as considerações do pesquisador sobre essa questão:

Sendo assim, não há nada de arbitrário na colocação dos impactos sonoros da música dentro desta rede, como a ideia de sua existência flexível poderia sugerir. A amarração de sua trama depende dos pontos de impacto. Na realidade, sua elasticidade elimina toda e qualquer rigidez e com isso possibilita uma atuação própria do conjunto musical e da ação complementar dos vários níveis rítmicos e sonoros, que se manifestam naquilo que observadores gostam de chamar de ‘swing’ musical, de levada do groove. Afinal, estamos falando de uma atividade realizada por um grupo que se socializa de forma especial justamente através do fazer musical em conjunto (OLIVEIRA PINTO, 1999, p. 103). 1

59 Por último, o conceito de “cruzamento rítmico”, considerado por Oliveira Pinto para o entendimento da complexidade da interação rítmica presente no samba, nos parece bastante pertinente tanto para o entendimento do comportamento rítmico geral quanto dos instrumentos de percussão do samba. “O autor define esse conceito como sendo “a combinação de ritmos distintos, de frases ou de motivos musicais” não coincidentes que dão origem a novas configurações rítmicas” (PINTO, apud. CUNHA, op. cit., p. 30-31).

Sobre a sonoridade do samba, Stanyec e Oliveira (2011) discutiram aspectos observados no contexto de prática coletiva do samba, ressaltando que cada instrumento, além de seus timbres mais característicos, pode também produzir o que os pesquisadores denominam de “sons transitórios”. Os sons transitórios são toques desempenhados “pela baqueta do surdo, pelas platinelas do pandeiro, pelos movimentos no violão de sete cordas, pelo bater das mãos nos cascos do instrumento, como fazem os executantes do repique de mão e de tantã” (STANYEC E OLIVEIRA, apud. CUNHA, 2013, p. 32-33). Considerando

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todas as questões levantadas e contextualizadas até aqui, trazemos novamente as considerações de Hélio Cunha, em que o pesquisador sintetiza muito bem como se processa a linguagem e interpretação da rítmica do samba, pensamento do qual compartilhamos e cremos que pode nos ajudar a discutir e compreender os traços característicos do idiomatismo de Dom Um Romão dentro do sambajazz:

Esses sons audíveis e não audíveis também compõem a sonoridade final da textura. A execução do samba na caixa, ou no pandeiro ou em qualquer outro instrumento que tente reproduzir a sonoridade da resultando geral do samba e não a sonoridade de um instrumento especificamente busca representar os efeitos causados por esses “cruzamentos” e pelos “sons transitórios” ainda que não se tenha consciência disso. O sucesso dessa reprodução muitas vezes está relacionado ao que chamamos de “suingue”, “balanço” ou “ginga” (CUNHA, 2013, p. 33).

É importante definirmos alguns parâmetros em relação ao critério que vamos estabelecer para identificar o que pode ser a “variação” do padrão rítmico tradicional do telecoteco e o que são as ocorrências rítmicas observadas em caráter de improvisação em nossa investigação. Dessa forma, o referencial utilizado para estabelecer tal diferenciação 1 (variação/improvisação), determina que as divisões verificadas nos compassos que compõe o 60 ciclo motívico - estruturado em padrão de dois compassos de 2/4 (ciclo completo de 16 semicolcheias)123 – identificados nas músicas em estudo, possuam pelo menos no primeiro compasso (do ciclo de dois), mais precisamente em seu segundo tempo, a presença obrigatória da “sincopa característica”124 do padrão tradicional do telecoteco, cuja qual apresenta a

123 c.f. SANDRONI, 1996, p. 27. 124 A “sincopa característica” já foi discutida por vários pesquisadores e eles parecem concordar que a versão brasileira dessa síncope teve seu desenvolvimento nas Américas através da herança cultural africana trazida pelos escravos, com diferença entre o local exato e o período do seu surgimento relatado nas pesquisas. Alguns descrevem que esse padrão rítmico é a mutação ou variante de um ritmo africano básico (ANDRADE, 1989; ALVARENGA,1946; SANDRONI, 1996), nascido da transformação da ternaridade ibérica (tercinas) em contato com a música africana cuja linguagem também incorpora essa mesma característica (CARPENTIER, 1961/1980; FERNANDEZ,1988; ORTIZ, 1991; VEGA, 1952). Alguns pesquisadores acreditam que esse padrão aparece nas estruturas rítmicas africanas e que foi apenas transferido para a métrica binária europeia na sua forma original (KUBIK, 1979; MUKUNA, 1979) (Vasconcelos, Cunha, Ferreira, Souza e Rodrigues). Avaliação da eficácia do Danceability do Echo Nest aplicado a músicas de forro (Vasconcelos, Cunha, Ferreira, Souza e Rodrigues.

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sequencia ritmicamente de: semicolcheia + colcheia + semicolcheia. Sendo assim, diferentes divisões podem ocorrer em outros tempos do compasso, mas a presença do referido grupamento rítmico acima (semicolcheia + colcheia + semicolcheia) é obrigatório para a caracterização do aspecto “variado” em relação ao padrão tradicional do telecoteco. Entretanto, se houver a aplicação de outra célula ou grupamento rítmico no segundo tempo do primeiro compasso que compõe o ciclo motívico, então, nesse caso, entenderemos que as ocorrências rítmicas se apresentam em caráter de improvisação. Importante ressaltar que estamos considerando tanto para a análise das “variações” quanto para as “improvisações”, estruturas rítmicas motívicas de quatro tempos estruturadas em padrão de dois compassos de dois tempos em cada um, e que por sua vez, exercem uma associação fraseológica entre o primeiro e o segundo compasso desse ciclo, estabelecendo uma relação motívica de “pergunta” e “resposta”125. Colocamos na Figura 39 a seguir, o padrão tradicional do telecoteco, nessa oportunidade escrito em 4/4, retirada do livro do pesquisador e baterista Sergio Gomes: Novos Caminhos da Bateria Brasileira (2008), que escreveu o ciclo rítmico do telecoteco em quatro tempos dispostos em um único compasso de 4/4126.

1 PERGUNTA RESPOSTA 61

Figura 39. Padrão tradicional do telecoteco (extraído do livro do Sergio Gomes): Novos Caminhos da Bateria Brasileira, 2008, p. 2, ex. 6).

Avaliação da eficácia do Danceability do Echo Nest aplicado a músicas de forro. Revista Principia, divulgação cientifica e tecnológica do ifpb/n.38 João Pessoa, 2018). 125 A intenção de “pergunta e resposta” também é um fator relevante para a compreensão da acentuação das frases no samba. Nos exemplos de execução de samba demonstrados acima é possível perceber um diálogo constante entre os tempos um e dois de cada compasso. Na interpretação do ritmo de samba, ainda que se execute apenas semicolcheias na caixa, sem qualquer intenção fraseológica, o tempo 1 geralmente não é igual ao tempo 2. Quase sempre há um contraste entre os dois tempos do compasso binário, ainda que isso seja sutil. Algumas vezes o primeiro tempo poder ser mais acentuado do que o primeiro ou vice-versa, mas quase sempre haverá o diálogo. No contexto do samba, se uma mesma forma de articulação dos toques for empregada em ambos os tempos do compasso, a acentuação, que também pode ser associada à exploração de timbres, deve ser um fator interpretativo a ser explorado. 126 Se escrevermos o mesmo padrão rítmico em 2/4, torna-se então necessário dois compassos da referida fórmula para fechar o motivo rítmico já que a frase completa tem quatro tempos.

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2.4.1 Zambeze

Iniciamos a análise musical pertinente à atividade rítmica desempenhada pela mão esquerda de Romão examinando a música Zambeze127, composição de Orlann Divo e Roberto Jorge, proeminentes compositores atuantes na fase da bossa nova e do sambajazz (1955- 1960). Zambeze é uma das 12 faixas registradas no álbum Dom Um, com a produção de Armando Pittigliani, o primeiro trabalho instrumental solo de Romão, gravado no Brasil em 1964 pela gravadora Philips128.

O álbum Dom Um (1964) representa para a carreira de Romão uma espécie de síntese de seu idiomatismo associado à linguagem do samba na bateria, especificamente no que se refere ao contexto musical do sambajazz. Podemos talvez considerar em termos da carreira de Romão, que o álbum Dom Um encerra um ciclo que se iniciou com a gravação do disco Canção do Amor Demais de Elizete Cardoso em 1958, em que Romão foi um dos responsáveis, ao lado do baterista Juquinha, pela criação de uma linguagem de acompanhamento na bateria para padrões rítmicos da bossa nova, encerrando essa fase no auge do sambajazz (1964), em que a associação dos padrões de condução rítmica do samba 1 ligados a contextos jazzísticos, permitiu que o baterista atuasse de uma forma mais interativa, 62 forjando o que seria o equilíbrio entre conduzir, participar, improvisar e propor novos caminhos musicais na prática de música instrumental coletiva ligada ao idiomatismo do samba. No ano seguinte do registro desse álbum (1964), Romão se mudou em definitivo para os EUA, e o contato com o jazz, rock e fusion ampliou seus horizontes musicais, através da influência de todos esses diferentes estilos musicais em voga naquele período na América do Norte, inclusive passando a tocar mais percussão do que bateria a partir da sua entrada no Weather Report, em 1971. Dito isso, podemos considerar os álbuns supracitados Dom Um (1964), O Som (1964) de J.T. Meirelles e Flora é M.P.M. (1965) – este produzido pelo

127 Divo, Orlann; Jorge, Roberto. Zambeze. Intérprete: DOM UM ROMÃO. In: Dom Um [SI]: Philips, p1964. Remasterizado em CD, 2001. CD faixa 9. 128 Informação proveniente em artigo do jornalista e produtor Tiago Ferreira no dia 26/11/2013 disponível no endereço eletrônico < http://namiradogroove.com.br/grandes-albuns/dom-um-romao_dom-um_1964>. Acesso em 29/03/2017.

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próprio Romão – respectivamente como os seus últimos trabalhos significativos gravados no Brasil antes de sua partida, e que simbolizam de certa forma, o fim de um período musical em que sua atuação teve maior representatividade como baterista.

Zambeze possui um padrão rítmico de samba em compasso binário (2/4), com andamento médio em torno de 92 bpm e com a sua estrutura formal dividida em: Intro – A – B – A’ – B, o que caracteriza um grande binário. Em uma análise orientada pelos padrões clássicos, teríamos a seguinte divisão: (Introdução) compassos 1 a 8; seção (A) compassos 9 a 16; esta seção tem as seguintes subseções: (A) compassos 5 a 12 e (B) compassos 13 a 22. A subseção (A) por sua vez se organiza da seguinte forma: (a) compassos 5 a 8 e (a) compassos 9 a 12. Já a subseção (B) se apresenta em: (a) compassos 13 a 16 e (b) compassos 17 a 22. Os dois últimos compassos, 21 e 22, podem ser considerados uma extensão, ou mesmo uma ponte. A seção (B) compassos 23 a 35 se organiza da seguinte forma: (a - a + Coda129) compassos 31 a 35. Na sequencia a flauta improvisa sobre a base harmônica da subseção (A) da macro seção (A) do início da música (por isso um A’). Segue para seção (B’) compassos 44 a 51 e termina em fade out. Conforme comentamos acima, a análise de Zambeze desenvolvida seguiu um enfoque formal baseado nos moldes clássicos que analisa inclusive as 1 subseções das partes, entre outros detalhes. Analisamos Zambeze primeiramente dessa forma 63 com o propósito de evidenciar a complexidade formal da música, entretanto, vamos considerar para a nossa discussão uma organização formal um pouco mais simplificada, sem a divisão em subseções, adotando a seguinte divisão: (Introdução) 8 compassos, (A) 8 compassos (B) 10 compassos, (A) 8 compassos, (B) 10 compassos, (C) 8 compassos e (Ponte) 5 compassos. Na sequencia temos: improviso de saxofone na forma de: A (8) e A´ (8); retorno da melodia da parte (C); improviso de flauta sobre a mesma base harmônica, terminando em fade out. Veja abaixo na Figura 40, a transcrição pertinente à parte de bateria dos oito primeiros compassos da introdução de Zambeze.

129 Chamamos de “Coda”, pois apesar dessa parte estar no meio da peça, de certa forma a música já se encerra aqui, pois a partir desse ponto se inicia uma repetição variada de tudo que já veio antes.

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Figura 40. Transcrição da introdução de Zambeze: álbum: Dom Um (1964) 0’0” - 0’11” [Ex. de Áudio 13]

Temos em todo o trecho transcrito acima, um padrão de acompanhamento rítmico de samba, desempenhado pelo bumbo “a dois” (BOLÃO, 2003, p. 85), com a condução em semicolcheias contínuas exercida pela mão direita no chimbal de forma “fechada”130, variando com aberturas a partir do terceiro compasso. Os dois primeiros compassos apresentaram um caráter cométrico (SANDRONI, 1996), estabelecido pelas colcheias aplicadas no aro da caixa. Já nos compassos 3 e 4, identificamos a rítmica tradicional do telecoteco (GOMES, 2008, p. 22) que foi distribuída entre: a caixa (pele), aro da caixa, 1 tambor agudo (tom tom) e tambor mais grave (surdo). Observamos apenas uma variação em 64 relação à rítmica tradicional do telecoteco no segundo tempo do quarto compasso, através de duas colcheias aplicadas em uníssono com o bumbo e também com a abertura de chimbal. Do quinto ao oitavo compasso da Figura 41, temos novamente a rítmica exata do padrão tradicional do telecoteco que foi distribuída entre o aro da caixa, caixa (toque na pele), tambor agudo e no tambor grave. Está claro na transcrição dos oito primeiros compassos da introdução de Zambeze, que a mão esquerda de Romão exerceu uma intensa atividade rítmica, tendo como sua “linha guia” o ciclo rítmico do tamborim (telecoteco), o qual orientou as constantes distribuições rítmicas exercidas nas peças na bateria, combinando até quatro timbres distintos dentro do mesmo compasso, advindos do: aro de caixa, caixa (pele), tambor

130 O termo, forma “fechada” significa aplicar condução rítmica no chimbal, onde o som articulado nele pode ser mantido de forma “seca”, com os dois pratos que o compõe são mantidos em contato através da força aplicada pelo pé esquerdo que os mantém em posição fechada. O oposto a forma “fechada” seria a forma de condução “aberta”, essa por sua vez estabelece uma analogia ao som do prato que tem duração sonora maior.

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agudo e tambor grave, tocados em sequência na linha rítmica, conforme a amostragem verificada nos compassos 3, 5 e 7 revelou.

Prosseguindo a análise de Zambeze vamos à transcrição de sua parte (A), trazendo mais oito compassos dessa seção: Veja a Figura 41 abaixo:

2 4

Figura 41. Transcrição da parte (A) 8 compassos de Zambeze: álbum: Dom Um (1964) 0’11” - 0’21” [Ex. de Áudio 14]

As caixas de destaque horizontais em preto (maiores) na Figura 41 mostram nos 1 compassos 9 a 12 novamente a ocorrência rítmica do padrão tradicional de telecoteco 65 (compasso 12 com variação), executada pela mão esquerda de Romão e que teve sua distribuição em termos tímbricos semelhante ao que já observamos em outros recortes de nossa análise, ou seja, divisões rítmicas distribuídas na caixa, no aro de caixa, no tambor agudo e no grave. No compasso 12, foram adicionadas mais duas subdivisões de semicolcheia no tambor grave em relação à frase característica do telecoteco, conferindo dessa forma um aumento na densidade do tecido rítmico gerado pela intensa atividade da mão esquerda nesse compasso, conceito que o musicólogo Jan LaRue definiu como estado rítmico de “stress”, já discutido anteriormente no capítulo da “raspadeira” (LARUE, 1993 p. 95-102). Investigaremos mais adiante no texto se Dom Um Romão adotou algum outro referencial de apoio para as suas intervenções na bateria (no que tange a sua mão esquerda), como por exemplo, o aspecto melódico. Num sentido geral, ao investigarmos as ocorrências rítmicas a partir do compasso 13 (Figura 41), acreditamos que Romão ainda esteja exercendo variações, acrescentando ou omitindo algumas divisões em relação à frase tradicional do “ciclo do tamborim” (ARAÚJO apud. SANDRONI, 1996, p. 26), conforme podemos constatar nas caixas de destaque

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verticais em vermelho, as quais relacionaram as rítmicas da mão esquerda presentes no pentagrama inferior da Figura 41 e que são coincidentes com a rítmica do padrão do telecoteco aplicadas no pentagrama superior, nos compassos de 9 ao 12.

Prosseguindo nossa análise; nos compassos 15 e 16 da Figura 41, temos a recorrência do procedimento da “raspadeira”, sendo que no compasso 15 a sua ocorrência se deu por associação linear com o tambor grave e com o aro de caixa, mas no compasso 16, ela (“raspadeira”) se apresentou em caráter único dentro do compasso, exatamente como já identificamos no solo de bateria da música Telefone (Dom Um), em seus compassos 11 a 13, representados na Figura 26, e também na introdução da música Birimbau, essa por sua vez, presente nos compassos 6 a 8 da respectiva Figura 29, ambas discutidas anteriormente na investigação sobre o procedimento da “raspadeira”.

Prosseguindo ainda, com o foco de nossa investigação sobre a atividade rítmica da mão esquerda, analisamos a parte (B) de Zambeze. Segue a transcrição representada na Figura 42:

1 66

2 4

Figura 42. Parte (B) de Zambeze: álbum: Dom Um (1964) 0’0” - 0’11” [Ex. de Áudio 15]

As caixas de destaque em azul, sinalizadas na figura acima, evidenciam a ocorrência da “sincopa característica” (SANDRONI, 2001) nas intervenções rítmicas desempenhadas pela mão esquerda de Romão. Relembrando, tal agrupamento rítmico,

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conforme discutimos no início desse capítulo, está presente no padrão tradicional do telecoteco em seu segundo tempo do primeiro compasso do ciclo de dois, e, estabelecemos que para determinar o sentido rítmico “variado” em relação ao padrão tradicional do telecoteco, alterações podem ocorrer nos dois compassos binários que compõe o ciclo do telecoteco, entretanto a “sincopa característica” deve ter a sua presença mínima obrigatória no segundo tempo do primeiro compasso para caracterizar o sentido “variado”, portanto consideramos os compassos: 17/18, 1920 e 25/26, variações do padrão tradicional do telecoteco, já que observamos nesses compassos exatamente o que descrevemos acima. Já as caixas de destaque em vermelho apontam os compassos (compasso 22, 24 e 26) que possuem divisão rítmica igual entre si. Em particular, os compassos 22 e 24 possuem similaridade tanto no seu aspecto rítmico quanto no tímbrico, com o tambor mais agudo sendo aplicado na segunda subdivisão de semicolcheia do primeiro tempo e as colcheias cométricas sendo exercidas no tambor grave (surdo), na “cabeça” e no contratempo do segundo tempo do compasso, caracterizando dessa forma o mesmo tipo de rítmica observada em relação ao surdo de terceira das escolas de samba (GONÇALVES; COSTA, 2000, p. 20-21), conferindo um sentido motívico de “resposta” em relação aos seus respectivos compassos anteriores (compasso 21 e 23). 1 67 Considerando que estamos adotando a relação motívica de “pergunta” e “reposta” (O´MAHONEY, 2004) em nossa análise, com a frase rítmica se completando essencialmente em 4 tempos, portanto, associando desse modo dois compassos binários em sequência, temos em todo o trecho musical representado na Figura 42, relações motívicas estabelecidas nesse sentido descrito. Nos compassos 17 e 19 verificamos a divisão do padrão do telecoteco com distribuições de sua rítmica, misturando quatro timbres diferentes das peças da bateria dentro do mesmo compasso, advindos da caixa (pele), do aro da caixa, do tambor agudo (tom tom) e grave (surdo) e com o procedimento da “raspadeira” no compasso 19. Nos compassos 18 e 20, os quais completam o sentido motívico de seus respectivos compassos de “pergunta” (compasso 17 e compasso 19), observamos variações em relação à rítmica tradicional do telecoteco, as quais foram aplicadas com divisões no aro da caixa e com o procedimento da “raspadeira”. No compasso 21, verificamos divisões desempenhadas somente com o procedimento da “raspadeira”, novamente uma alusão ao naipe de tamborim de escola de samba em seu aspecto tímbrico, com o sentido motívico de “pergunta” (curiosamente

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semelhante à clave rítmica observada na música cubana). Vale ressaltar ainda que essa mesma divisão aplicada com o procedimento da “raspadeira” já foi observada na música Telefone (compasso 10 da Figura 26), em sua seção de improviso de bateria, portanto, trata-se de uma frase recorrente de Romão associada a sua mão esquerda. Na sequencia, no compasso 22 da Figura 42, temos uma “resposta” ao compasso 21, entretanto, agora desempenhada pelos tambores da bateria (tambor agudo e grave) com uma rítmica que se aproxima ao padrão tradicional de telecoteco no segundo compasso que compõe o seu ciclo.

No compasso 23, o caráter motívico de “pergunta” foi determinando pelas divisões contramétricas aplicadas no aro da caixa na segunda e na quarta semicolcheia do segundo tempo desse compasso. A “resposta” veio em seguida, no compasso 24 com divisões aplicadas nos tambores exatamente da mesma forma que no compasso 22, tanto em seu aspecto rítmico quanto no tímbrico. Comparando a relação do caráter motívico de “pergunta/resposta” estabelecida entre os compassos: 17 até 20 e do compasso 21 até o 24, percebemos que houve uma inversão tímbrica associada à relação motívica. Resumindo, timbres graves desempenharam o caráter de “pergunta” e os timbres agudos de “reposta”. Tal relação foi invertida nos compassos 21 até o 24, com os timbres agudos “perguntando” e os 1 graves “respondendo”. Essa característica observada na relação da associação tímbrica com o 68 caráter motívico desempenhado por Dom Um Romão em suas intervenções na bateria, nos remete a estabelecer uma analogia ao que comumente é observado no contexto de performance das escolas de samba: as “paradinhas”131. Essa relação ocorre não no seu sentido estrito de “proposição” e “imitação”, como usualmente observamos na prática musical das escolas de samba ao executarem as “paradinhas”, mas sim para associarmos em nosso contexto o caráter de relação motívica (pergunta/resposta) em que a rítmica do samba tende a

131 A paradinha da bateria é um contraste com a levada característica do samba. E um momento em que a bateria executa trechos pré-combinados. Ocorre uma quebra, um contraste com a levada característica estruturada em caráter de pergunta-resposta ou de proposição-imitação. Normalmente, um só instrumento (ou naipe) executa a primeira parte, e esta primeira parte chama à memória dos ritmistas a continuação pré-combinada. Para tanto, o repenique, os tamborins ou os surdos encarregam-se da primeira parte e todos os instrumentos da bateria executam a resposta ou imitação (PAULA, 2003, p. 26).

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se orientar e a se desenvolver. Sobre a “paradinha” (PAULA, 2003), tal procedimento de performance característico do samba, ocorre quando, num determinado trecho da execução do samba enredo, há uma “quebra” para o desenvolvimento de um diálogo entre os diferentes “naipes” dos instrumentos de percussão que compõe o contexto rítmico das escolas de samba. Os instrumentos de timbres agudos compostos geralmente por tamborim, caixa, tarol, agogô, repenique e ganzás tocam divisões em caráter de “pergunta”, provocando a “resposta” dos instrumentos de timbres graves (surdo de primeira, segundo e terceira). O inverso também é observado: instrumentos graves provocam a resposta dos instrumentos agudos, exatamente como foi observado no início da transcrição de Zambeze no trecho que compreende os compassos 17 até 20 na Figura 42.

Sobre o procedimento da “paradinha” das escolas de samba, Rafael Reif de Paula (2003) apresenta em sua pesquisa exatamente aquilo que parece ilustrar a relação motívica das ocorrências rítmicas desempenhadas por Romão ainda no trecho transcrito na Figura 38.

No primeiro momento, há uma frase inicial do tamborim seguida da resposta do tutti. Na segunda execução desta unidade de pergunta e resposta, o tamborim executa a 1 mesma figura. Já a resposta do tutti termina agora com o acréscimo de um som. O 69 tamborim toca a mesma frase ainda uma terceira vez, e o tutti responde com uma pequena variação de sua segunda resposta, mas entrando antes: ao invés de um tempo após a última nota do tamborim, entra agora no lugar desta. Há, nesta antecipação da entrada do tutti, uma elisão das duas frases, transformando a resposta do tutti em uma nova pergunta, que será agora respondida pelos tamborins, já em uma inversão dos papéis iniciais (ibidem).

Importante ressaltar que essa analogia estabelecida entre as ocorrências do trecho transcrito da música Zambeze e representado na Figura 42 e a “paradinha”, foi trazida para a discussão apenas para contextualizar o aspecto da relação motívica em associação com os timbres das vozes percussivas que são comumente desempenhadas na rítmica do samba, não acreditamos que Romão possa ter influenciado a “paradinha”, pois sabemos que a linguagem da bateria do samba sempre ocorreu no sentido da tentativa de adaptação das vozes percussivas no aspecto tímbrico e rítmico para a bateria e não no sentido inverso.

Prosseguindo a análise, temos uma ocorrência observada nos compassos 25 e 26 da Figura 42 que merece destaque. Para tal finalidade, recortamos esse trecho e colocamos na

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Figura 43 abaixo, ressaltando a ocorrência de mais uma variação do padrão tradicional do telecoteco, novamente com uma inversão do caráter motívico em relação ao observado aos seus respectivos compassos anteriores (compassos 23 e 24 da Figura 42). Segue a abaixo o recorte desse trecho em discussão:

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Figura 43. Parte (B) de Zambeze: compasso 25 e 26 álbum: Dom Um (1964) 0’33” [Ex. de Áudio 16]

Embora tenhamos identificado divisões no aro da caixa e na pele da caixa no compasso 25, o timbre grave advindo das divisões contramétricas empregadas na segunda e quarta semicolcheia nos tambores conferiram um sentido motívico de “pergunta”, que foi respondido no compasso 26 com a mesma rítmica já observada nos compassos 22 e 24 1 (Figura 42), predominando os timbres mais agudos, exercidos respectivamente em sequencia 70 pelo tambor agudo, rimshot na caixa, caixa (na pele) e rimshot novamente na caixa. Os sons advindos dos toques aplicados em rimshot na caixa, bastante próximo a sua borda e observados nos compassos 25 e 26, caracterizam o que os pesquisadores Stanyec e Oliveira (2011) definem como sons transitórios e que são descritos pelos autores da seguinte forma:

[...] cada instrumento, além de seus timbres mais notáveis e audíveis também produzem o que chamam de “sons transitórios” ou “sons de transição” – “transitional sounds”. Esses sons transitórios são “clicks” produzidos pela baqueta do surdo, pelas platinelas do pandeiro, pelos movimentos no violão de sete cordas, pelo bater das mãos nos cascos do instrumento, como fazem os executantes do repique de mão e tantã [..] (Stanyec e Oliveira, apud. Cunha, 2014, p. 56).

Desviando brevemente do foco da investigação da atividade rítmica ligada a mão esquerda de Romão em Zambeze, vale ainda ressaltar, a ocorrência identificada no compasso

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25 da Figura 43, evidenciada pela caixa de destaque vertical preta. Há um diferencial a parte em relação à performance de Romão no referido compasso. Temos uma abertura de chimbal na “cabeça” do primeiro tempo do compasso 25 que foi aplicada pela mão direita de Romão, e, o seu fechamento foi efetuado logo em seguida de forma acentuada pelo pé seu pé esquerdo na segunda subdivisão de semicolcheia do primeiro tempo, completando dessa forma a continuidade da subdivisão de semicolcheias dentro do tempo, porém com uma discreta variação da sonoridade no trilho das semicolcheias, perceptível na gravação (Zambeze: início em 0:32s).

Marques (2013), em sua pesquisa, investigou profundamente o uso melódico do chimbal pelo pé esquerdo nas performances de Airto Moreira. Essa conotação de “melódico”, conferida ao papel do chimbal nos contextos musicais, implica que essa voz rítmica da bateria não necessariamente teria mais que exercer a marcação regular dos tempos como usualmente era observada na prática corrente pelos bateristas de gerações anteriores a Moreira, e, sim que poderiam participar, desde então, do discurso musical de uma forma mais “melódica”, considerando a rítmica da melodia como um referencial de escolha para intervenções na bateria. Tal herança na linguagem da bateria é atribuída essencialmente aos bateristas de jazz, 1 em especial a Tony Williams que passou a utilizar o chimbal com esse viés de aplicação em 71 sua prática musical (MARQUES, 2013, p. 83). No Brasil, a figura do baterista Airto Moreira é tida como um dos grandes expoentes nesse aspecto do uso do chimbal. Moreira é reconhecidamente um dos bateristas que empregou largamente o uso do chimbal numa perspectiva melódica em seu idiomatismo na bateria, sendo apontado por alguns como precursor desse procedimento de performance. Veja as considerações de Marques acerca desse aspecto:

Mas todos132 concordam com a importância de sua atuação, inclusive na sua maneira de manipular o uso dessa peça da bateria de modo bastante particular. Embora a maioria desses depoimentos relacione o uso do chimbal no pé esquerdo com uma suposta influência do jazz, em especial através da figura fundamental de Tony

132 “Todos” se referem aos entrevistados por Guilherme Marques em sua pesquisa como os bateristas: Robertinho Silva, Pascoal Meirelles, Tuti Moreno e Nenê (Realcino Lima).

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Williams, parece haver uma concordância quanto à importância do trabalho de Airto no processo de adaptação deste uso para o contexto da música brasileira, especialmente no sambajazz (ibidem).

O baterista Pascoal Meirelles em depoimento a Marques ressalta o pioneirismo de Airto Moreira em relação à atuação do chimbal de forma melódica:

[...] mais uma peça, como se fosse outra parte da bateria. É o que eles [bateristas de jazz] criaram nesta época [anos 60], e o Airto embarcou com muita propriedade nesta jogada, influenciado pela turma do jazz, por que no Brasil nenhum baterista fazia isso (MEIRELLES, apud. MARQUES, 2011).

Pascoal Meirelles credita a Airto Moreira como sendo o primeiro baterista a utilizar o chimbal dessa forma no Brasil. Entretanto, se pensarmos que Zambeze foi gravada por Dom Um Romão em 1964, um ano antes da gravação da música Deixa, do grupo Sambalanço, do álbum Reencontro com Sambalanço Trio (1965)133 – primeira música analisada por Guilherme Marques em sua pesquisa sobre Moreira – uma nova investigação 1 musical teria que ser feita com o objetivo de identificar se Airto Moreira possui alguma 72 gravação anterior a Zambeze para sustentar a condição de pioneirismo em relação a essa questão, pois conforme mostramos na Figura 43 no compasso 25, Romão mesmo que de uma maneira discreta, já começava no início da década de 60 a articular o chimbal com uma conotação diferente em sua performance. Outras ocorrências em nosso recorte musical foram identificadas em relação ao chimbal aplicado com o pé esquerdo fora do contexto de marcação rítmica e serão discutidas oportunamente mais adiante.

Voltando para o foco de nossa investigação sobre a atividade rítmica da mão esquerda, ainda na parte (B) de Zambeze, no compasso 25 (Figura 43), temos divisões exercidas: no aro da caixa, com o rimshot (pele e aro simultâneo), no tambor agudo e grave. A

133 Deixa foi composta por Baden Powell e Vinícius de Moraes, e gravada pelo Sambalanço Trio no LP Reencontro com Sambalanço Trio, em 1965 (MARQUES, 2013).

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“sincopa característica” está presente no compasso 25 em seu segundo tempo, caracterizando o padrão do telecoteco tradicional, entretanto, em sua forma variada já que existem rítmicas diferentes ao seu caráter tradicional, encontrada nos outros tempos da relação motívica estabelecida em “pergunta/reposta”. Já no compasso 26, identificamos quatro divisões aplicadas em sequencia, começando no tambor agudo (segunda subdivisão da semicolcheia), na caixa com o rimshot (quarta subdivisão de semicolcheia), na caixa (direto na pele) na “cabeça” do segundo tempo e finalizando novamente na caixa, com uma divisão aplicada com o rimshot no contratempo do segundo tempo. Na Figura 44 abaixo, temos o recorte do compasso 26 em comparação com o padrão rítmico do repinique, extraído do método do baterista e professor Edgard Nunes Rocca: Ritmos Brasileiros e seus Instrumentos de Percussão (1986) (ROCCA, p. 32): Vejamos a similaridade dos toques associados pela caixa de destaque em preto:

2 1 4 73

Figura 44. Parte (B) de Zambeze - compasso 26 (transcrição feita pelo autor) em comparação ao padrão do repinique (excerto original) álbum: Dom Um (1964) [Ex. de Áudio 17]

As divisões observadas na Figura 44, executadas na caixa com o rimshot (toques simultâneos no aro e na pele) aplicadas próximas à borda da caixa (caixa de destaque em verde), conferiram uma sonoridade aguda ao toque (0:33s), e a divisão executada na pele da caixa (sem rimshot) na “cabeça” do segundo tempo, logo após o rimshot, estabeleceu uma sequencia rítmica e tímbrica que fez alusão aos toques desempenhados no repinique quando executados usualmente no contexto das escolas de samba. As caixas de destaque na Figura 44 associaram as similaridades encontradas nos toques acentuados com o rimshot perto da borda

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da caixa da bateria em relação ao toque desempenhado no repinique, também da mesma forma, ou seja, com o rimshot aplicado na mesma região da superfície a ser percutida (perto da borda). Essa constatação corrobora o que mencionamos anteriormente acerca do conhecimento da linguagem musical dos instrumentos de percussão do samba que Dom Um Romão possuía, evidenciando que Romão, além de aplicar as divisões rítmicas pertinentes ao contexto das vozes da percussão do samba na bateria, também buscava uma solução tímbrica para tal adaptação.

Prosseguindo a análise de Zambeze, em sua segunda exposição da parte (A), Romão transferiu a condução que estava sendo exercida no chimbal para o prato, mantendo-a dessa maneira durante toda a seção (B). Identificamos nessas partes [(A) (B)], o padrão tradicional do telecoteco executado pela sua mão esquerda em sua forma tradicional, com as suas variações e divisões que desempenharam um sentido de improvisação no tecido rítmico. As caixas de destaque em preto na Figura 45 a seguir, agrupam na transcrição os dois compassos binários que contém a frase completa na relação motívica de “pergunta e resposta” entre si; já as caixas de destaque com diferentes cores, associam os compassos em que 134 observamos rítmicas idênticas ou bastante similares . Embora haja proximidade nas 1 divisões, as variações no aspecto tímbrico foram muito intensas, entretanto alguns poucos 74 compassos mantiveram o mesmo aspecto rítmico e tímbrico, como no caso dos compassos 31 com 39 e 28 com 36. Em relação ao sentido motívico de “pergunta e resposta”, no que tange as suas associações tímbricas; temos o caráter de “pergunta” associado ao timbre agudo, e o de “resposta” associado ao timbre grave nos compassos: 33/34, 35/36/, 37/38 e 41/42. A única relação inversa foi observada nos compassos 43/44, em que o caráter de “pergunta” foi associado ao timbre grave e o de “resposta” foi associado ao timbre agudo.

A seguir, temos a transcrição do trecho descrito acima e representada na Figura 45:

134 As caixas de destaque coloridas na Figura 44 associaram as rítmicas idênticas ou aquelas que estão bem próximas entre si ou com mínimas variações, como por exemplo, omitir ou acrescentar alguma divisão em relação à outra de forma discretamente quando comparadas.

175

2 4

Figura 45. Segunda exposição do tema parte (A) e (B) de Zambeze 1 álbum: Dom Um (1964) 0’34” - 0’58” [Ex. de Áudio 17] 75

As caixas de destaque na cor verde na transcrição acima apontam os compassos que possuem a rítmica exata ou similar a do padrão tradicional de telecoteco (compasso de “pergunta”). O compasso 27 marca o início da segunda exposição da parte (A) de Zambeze, e Romão ainda manteve a condução rítmica que estava sendo exercida no chimbal na parte anterior da música por mais dois compassos, transferindo-a para o prato somente no compasso 29 – o terceiro compasso dessa seção (A) – provavelmente impulsionado pela intervenção dos metais no compasso 28, entre o primeiro e o segundo tempo135. Em relação à atividade rítmica da mão esquerda, verificamos no compasso 27 que o padrão do telecoteco foi distribuído no aro da caixa, no tambor agudo e no tambor grave; já no compasso 28, temos um caráter

135 Metais não transcritos para representação em figuras, mas perceptível na gravação em 0:37s.

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variado em relação ao padrão tradicional do telecoteco, com divisões aplicadas no tambor agudo e no tambor grave. O padrão do telecoteco foi aplicado em sua forma tradicional nos compassos 29 e 30, com as suas divisões distribuídas no aro da caixa e nos tambores agudo e grave. Seguindo, nos compassos 31 e 32, temos novamente outra “variação” do telecoteco no aspecto tímbrico e rítmico, com o aumento da distribuição das divisões na bateria, provocado pela adição da caixa e do prato de ataque em relação aos compassos anteriores. Dos compassos 33 ao 38, temos um caráter de improvisação na atividade rítmica da mão esquerda, com divisões distribuídas no aro de caixa, nos tambores agudo e no grave. Verificamos ainda o procedimento da “raspadeira” em caráter contramétrico nos compassos 35 e 37, o que por sua vez aumentou a densidade do tecido rítmico. Na sequência, novamente constatamos a “variação” do telecoteco nos compassos 39 e 40, com distribuições rítmicas aplicadas em aro de caixa, caixa (pele), tambor agudo (tom tom), tambor grave (surdo) e no prato de ataque. A “raspadeira” apareceu novamente no compasso 41, na “cabeça” e também na quarta subdivisão de semicolcheia do segundo tempo, atribuindo dessa forma um caráter contramétrico a esse compasso.

Recortamos da transcrição de Zambeze, representada anteriormente na Figura 45, 1 o trecho que compreende do compasso 39 até 44, acrescidos de mais dois compassos (45 e 76 46), representados agora na Figura 46 a seguir, com a finalidade de evidenciarmos e discutirmos as ocorrências rítmicas verificadas nos compassos 42 a 45, e que em termos de procedimentos de performance, caracterizam-se como uma novidade idiomática de Dom Um Romão encontrada em nossa análise até esse momento. O procedimento ocorre quando o chimbal é tocado pela sua mão esquerda de forma vigorosa com duas colcheias na “cabeça” e no contratempo do segundo tempo (compasso 42), terminando com outra colcheia no primeiro tempo do compasso 43, enquanto que a condução rítmica estava sendo exercida por sua mão direita no prato (caixa de destaque compasso 42 e 44). O mesmo procedimento foi repetido no compasso 45 e finalizado no compasso 46, também com uma colcheia, determinando dessa forma o fim da seção (B).

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2 4

Figura 46. Segunda exposição do tema parte (A) e (B) de Zambeze: recorte dos compassos 39 a 43 mão esquerda no chimbal – compassos 42 e 44 álbum: Dom Um (1964) 0’34” - 0’58” [Ex. de Áudio 18]

Com tal intervenção desempenhada pela mão esquerda na superfície da música, Romão novamente destacou a sua estrutura ao sinalizar o fim de uma seção e o início de outra (LARUE, 1992, p. 91). Vamos para a análise da parte (C) de Zambeze (compasso 45 ao 52) e da Codeta da música (compasso 53 ao 57), que desempenhou uma função de “ponte” para a entrada da seção dos improvisos. Vejamos na Figura 47 abaixo, a transcrição da bateria das partes mencionadas acima:

1 77

2 4

Figura 47. Segunda exposição do tema parte (C) e Codeta de Zambeze: álbum Dom Um 0’34” - 0’58” [Ex. de Áudio 19]

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As caixas de destaque na Figura 47 evidenciam os compassos agrupados na relação motívica “pergunta e resposta”. A abertura do chimbal exercida pela mão esquerda de Romão no compasso 45 [o primeiro da parte (C)], concluiu a frase que se iniciou no compasso anterior (44), marcando então o fim da parte (B), dessa forma temos mais uma intervenção na superfície rítmica da música, com Romão enfatizando a sua estrutura (LARUE, 1992, p. 91).

Encontramos no compasso 46 a rítmica pertinente ao segundo compasso do padrão do telecoteco (compasso de “resposta”), mas a ausência da “sincopa característica” no compasso 45 (compasso de “pergunta”), conferiu a esses compassos um sentido de improvisação. Já nos compassos 47 e 48 identificamos a “variação” do telecoteco, com intervenções distribuídas no aro da caixa, na caixa (pele), no tambor agudo e no tambor grave. Seguindo, no compasso 48, Romão aplicou divisões no aro da caixa, na segunda subdivisão de semicolcheia do primeiro tempo (contrametricidade) e mais duas colcheias na “cabeça” e no contratempo do segundo tempo (cometricidade) que foram exercidas pelo procedimento da “raspadeira”. Observamos mais uma “variação” do padrão do telecoteco nos compassos 49 e 50, com uma intensa atividade rítmica da mão esquerda de Romão, que aplicou uma sequencia de seis semicolcheias, começando na “cabeça” do primeiro tempo do compasso 49 1 com o tambor agudo, seguindo com o tambor grave a partir da segunda subdivisão de 78 semicolcheia, aplicando mais cinco divisões sucessivas, finalizando com a caixa na quarta semicolcheia do segundo tempo. O sentido contramétrico estabelecido no segundo tempo do compasso 49 foi respondido com o procedimento da “raspadeira” em colcheias cométricas no compasso 50. Dos compassos 51 aos 54, as ocorrências exercidas pela mão esquerda de Romão, tiveram um caráter de improvisação, já que não observamos a presença da “sincopa característica” em seu ciclo rítmico. As divisões nesse trecho foram distribuídas com toques tradicionais no aro de caixa, na caixa (pele), no tambor agudo (tom tom), no tambor grave (surdo), no prato de ataque e com o procedimento da “raspadeira” (aro de tambor pequeno e aro da caixa). Constatamos novamente nesses compassos a relação de “pergunta” e “reposta” associada à questão tímbrica, da mesma forma que foi observada anteriormente na parte (B) de Zambeze (compasso 17 ao 24 na Figura 42). Temos nos compassos 49 e 51, divisões com caráter de “pergunta” associado a uma orientação tímbrica de graves (tambores), com a devida “resposta” nos compassos 50 e 52 pelos timbres agudos, com divisões aplicadas no aro da caixa e também com o procedimento da “raspadeira”.

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Partindo para a análise dos últimos quatro compassos da Figura 47, observamos a transferência da condução rítmica do prato para o chimbal no compasso 53, o que foi mantido até o último compasso desse trecho. Ao sinalizar a transição das partes (B) para a parte (C) do chorus da música, Romão pontuou novamente a superfície rítmica da música (LARUE, 1992 p. 91), enfatizando a sua estrutura através da aplicação de uma caixa com prato de ataque em dinâmica “ff”, no primeiro tempo do compasso 53 (início da Codeta). E, encerrando a análise desse trecho, temos nos compassos 55 e 56 mais uma “variação” do padrão do telecoteco com a presença da “sincopa característica” no compasso 56, o que denota um caráter de “pergunta” determinado pelas divisões contramétricas exercidas nos tambores, que foi respondido no compasso 57 pelas colcheias cométricas aplicadas no aro da caixa.

Sobre as ocorrências rítmicas identificadas em todas as transcrições referentes à exposição do tema na música Zambeze, as quais foram representadas nas figuras 39 até 46, constatamos uma intensa atividade rítmica da mão esquerda de Romão que foram distribuídas e orientadas nas peças da bateria pelo padrão tradicional do ciclo do tamborim denominado telecoteco (menor ocorrência)136 pelas suas variações (alta incidência), e por rítmicas de caráter improvisado com relação motívica de “pergunta” e “reposta” (maior ocorrência). A 1 constatação da intensa ocorrência de divisões aplicadas por Romão em Zambeze, sob as duas 79 perspectivas rítmicas, improvisada e variada, corroboram as considerações dos pesquisadores Oliveira Pinto (1999), Gomes (1999), Stanyec e Oliveira (2011) e Cunha (2014), discutidos na introdução do presente subcapítulo acerca dos aspectos que envolvem o universo rítmico do samba. Lembrando novamente aqui, há uma convergência de pensamento entre os autores citados no sentido de que para um melhor entendimento do universo rítmico do samba, é necessária a observação da simultaneidade de suas linhas rítmicas e também das suas relações de interação. “Isso se deve principalmente ao fato de que na prática os instrumentos podem

136 A expressão “menor ocorrência”, não determina em nossa colocação um juízo de valor de menor importância, e sim um dado estatístico da recorrência de determinado elemento musical. Lembrando que não é a quantidade de ocorrências que determina o valor do elemento no discurso musical.

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transitar entre diferentes funções ao longo da execução musical, ou ao mesmo tempo dialogar com diversas linhas concomitantemente” (CUNHA, 2013, p. 30-31).

Importante pontuar que, embora tenhamos verificado uma alta recorrência de divisões em caráter “variado” que orbitaram em torno do padrão tradicional do telecoteco, e, por consequência, num sentido geral, tal aspecto promova um aspecto rítmico mais padronizado; a intensa distribuição das intervenções exercidas em diferentes peças da bateria, inclusive dentro do mesmo compasso, conferiu ao tecido rítmico um alto grau de variedade advindo dos diferentes timbres disponíveis das peças da bateria executados por sua vez pela mão esquerda de Romão. Toda essa atividade rítmica de natureza “variada”, associada às divisões de caráter “improvisado”, que por sua vez tiveram também uma alta incidência em Zambeze, atribuiu ao plano rítmico geral um caráter de performance altamente improvisado, muito embora, tais ocorrências são variações do agrupamento de divisões rítmicas que compõe a célula da frase tradicional do tamborim (telecoteco). Um termo que parece ser bastante apropriado para estabelecermos um paralelo ao caráter das ocorrências rítmicas observadas na performance de Romão em relação a sua mão esquerda em Zambeze, seria o de

“ostinato variado”. Tal conceito foi inicialmente mencionado pelo pesquisador Simha Arom 1 que discutiu sobre a herança rítmica africana observada na música brasileira em seu livro 80 Feitiço Decente (1996). Veja as considerações de Sandroni acerca desse aspecto:

[...] em muitos casos deste tipo a repetição não é estrita, mas configura o que Arom batizou de “ostinato variado”. Sendo assim, a fórmula rítmica assimétrica ora é repetida, ora variada através de improvisações do músico responsável pela “linha- guia”. Estas variações em muitos casos obedecem ao princípio da subdivisão, ou seja, a decomposição em valores menores, sempre a partir dos agrupamentos principais da fórmula rítmica. Assim, por exemplo, 3+3+2 pode ser subdividido em (2+1) + (2+1) + (2) ou em (1+2) + (1+2) + (2) e assim por diante (AROM, apud. SANDRONI, 1996, p. 18) 137.

137 A teoria musical clássica presume dois tipos de compassos: os simples e os compostos. Nos compassos simples, as unidades de tempo são binárias. Nos compassos compostos, como o 3/8, o 6/8, o 9/8 e 12/8, as unidades de tempo são ternárias e são representadas por semínimas pontuadas (trilho de subdivisão ternária). Não há compassos que agreguem de uma maneira sistemática compassos simples (subdivisão binária) e

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Sandroni nessa citação discorre sobre a presença de uma grande quantidade de variações e improvisações rítmicas que observamos na música brasileira de uma forma geral, e, em especial, no samba. Tal variação na rítmica do samba orbita principalmente em torno da divisão da “sincopa característica”, com figuras rítmicas de maior ou menor valor dispostos isoladamente ou ainda em agrupamentos envolvendo as colcheias e semicolcheias, funcionando muitas vezes como verdadeiras time-lines na orientação da atividade rítmica. Nesse sentido, Sandroni conclui seu pensamento relacionando a proximidade dos conceitos rítmicos africanos com a música brasileira, o que pode nos ajudar a entender do ponto de vista “macro”, de que maneira tais ocorrências rítmicas encontradas na performance Dom Um Romão (em relação a sua mão esquerda), estão correlacionadas com os conceitos de “ostinato estrito” ou “variado”, o que também está muito presente na música africana. Veja o pensamento de Sandroni sobre as questões discutidas acima:

Mas o que nos interessa mais diretamente é constatar que, neste ponto, o Brasil está muito mais perto da África do que da Europa. [...] No tambor-de-mina maranhense, no xangô e no maracatu pernambucanos, no candomblé e na capoeira baiana, na macumba e nos sambas cariocas, entre outros, fórmulas como 3+3+2, 3+2+3+2+2 e 1 3+2+2+3+2+2+2 fazem parte do dia a dia dos músicos Estas fórmulas em muitos casos comportam-se exatamente como time-lines, aparecendo sob forma de palmas, 81 batidas de agogôs ou tamborins, em ostinato “estritos” ou “variados”, muitas vezes coordenando polirritmias quase tão complexas quanto as africanas (ibidem, p. 18 Grifo do Autor).

compostos (subdivisão ternária), entretanto esse aspecto de hibridação de subdivisão é encontrado nas músicas da África subsaariana. A.M. Jones, pesquisador da música africana, estabeleceu a questão da seguinte maneira: a rítmica ocidental é “divisiva”, pois se baseia na divisão de uma dada duração em valores iguais e a rítmica africana é aditiva, pois apreende uma dada duração através da soma de unidades menores que se agrupam formando novas unidades como é o caso de compassos binários e ternários. Nesse sentido o pesquisador renomado Simha Arom percebeu a existência, na música africana, de um importante grupo de fórmulas rítmicas em que a mistura de agrupamentos binários e ternários originava períodos rítmicos pares, por exemplo: a sequencia 3+3+2 (duas semínimas pontuadas+semínima) configura-se um período de oito unidades; a sequencia 3+2+3+2+2 configura um período de 12 unidades, e assim por diante. Mas qualquer tentativa de dividir estes períodos pares em dois, respeitando sua estruturação interna, levava a duas partes necessariamente desiguais, estas ímpares. Dessa forma pensando nessa lógica rítmica, o período de oito não pode ser dividido em 4+4, mas somente em 3+5 (ou 3+[3+2]); o período de 12 não pode ser dividido na metade exata (6+6),mas apenas em quase metades (5+7, ou [3+2]+[3+2+2]). Arom chamou este fenômeno de “imparidade rítmica” (SANDRONI, 2001, p. 17).

182

Nesse aspecto discutido acima por Sandroni, o autor traz o conceito de “ostinato variado”, aspecto que vamos investigar e promover em nossa discussão a partir de agora, procurando mostrar nesse sentido, um panorama geral das ocorrências rítmicas desempenhadas pela mão esquerda de Romão no estilo do sambajazz. Elaboramos um inventário rítmico de todas as divisões encontradas e exercidas pela mão esquerda de Romão em Zambeze em seu chorus completo, até o fim da última seção da exposição do tema: Introdução - (A) - (B) - (A’) - (B). Identificamos os motivos rítmicos compostos pela frase que se completa em quatro tempos (16 semicolcheias), porém agrupados em dois compassos de 2/4, com uma relação motívica de “pergunta” e “resposta” (O´MAHONEY, 2004). As diversas divisões rítmicas observadas e que foram distribuídas na bateria pela mão esquerda de Romão, foram escritas na Figura 48 a seguir de forma reduzida (em uma só linha), e as classificamos conceitualmente conforme o critério adotado anteriormente para identificarmos as possibilidades de ocorrências rítmicas em padrão tradicional do telecoteco (PTT), suas “variações” (VAR) e de sentido improvisado (IMP). As caixas de destaque na Figura 48 abaixo apontam a presença da “sincopa característica” no primeiro compasso do padrão tradicional do telecoteco e também na sua variação. Tal agrupamento rítmico conforme discutido anteriormente nesse capítulo, tem a sua presença fundamental no ciclo do tamborim 1 e também na caracterização de sua variação: Vejamos na Figura 48, as diferentes rítmicas 82 encontradas em Zambeze:

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2 4

Figura 48. Ocorrências rítmicas em Zambeze: padrão tradicional do telecoteco, variações e improvisação observados na exposição do tema - transcrição em caráter de redução rítmica não temporal. 1

83

Referente às diferentes ocorrências presentes no inventário rítmico de Zambeze (Figura 48), além do padrão tradicional de telecoteco - que teve a sua incidência em quatro oportunidades - observamos dez diferentes tipos de “variações” (agrupadas em dois compassos) em relação ao padrão tradicional do telecoteco, e outras nove ocorrências rítmicas que as classificamos como divisões que desempenharam um caráter de improvisação durante o trecho analisado, portanto, percebemos que a atividade rítmica da mão esquerda de Romão em Zambeze teve um caráter de prevalência no sentido “variado” e “improvisado” em detrimento do padronizado. Com base nas ocorrências rítmicas identificadas e classificadas na Figura 48, mostraremos na Figura 49 a seguir, a transcrição em forma de redução rítmica, dessa vez na temporalidade musical de Zambeze (sequencia dos eventos musicais).

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Utilizamos para classificar as ocorrências rítmicas encontradas na Figura 49, as seguintes abreviações: padrão tradicional de telecoteco = PTT; “variações” do padrão do tradicional do telecoteco = VAR e divisões rítmicas de caráter improvisado = IMP.

1 84

Figura 49. Identificação em Zambeze dos padrões de telecoteco, variações e divisões de improvisação em caráter de redução rítmica: álbum: Dom Um (1964) 0’0” - 1’07” [Ex. de Áudio 20]

Na Figura 49 acima, foram observadas ocorrências rítmicas em PTT nos compassos: 5-6, 7-8, 9-10, 29-30; caráter de “variação” nos compassos: 3-4, 11-12, 17-18, 19- 20, 25-26, 27-28, 31-32, 39-40, 43-44, 47-48, 39-40, 43-44, 47-48, 49-50 e 55-56; e por fim,

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intervenções rítmicas que desempenharam um sentido de improvisação nos compassos: 13-14, 15-16, 21-22, 23-24, 33-34, 35-36, 37-38, 41-42, 45-46, 51-52, e 53-54. Fundamentado nos dados obtidos acima, contabilizamos138 oito ocorrências rítmicas exercidas em PTT (padrão tradicional do telecoteco); vinte e quatro ocorrências em VAR (variação) e vinte e duas ocorrências em caráter de IMP (improvisação). Considerando que as ocorrências rítmicas desempenhadas em caráter de “variação” possam desempenhar uma sensação rítmica que orbita em torno do padrão tradicional do telecoteco, poderíamos então nesse caso associá-las na mesma contagem, incluindo-as numa mesma categoria que o PTT, já que o seu principal agrupamento rítmico (“sincopa característica”) é comum a ambos, resultando dessa forma um total de trinta incidências [PTT (8 ocorrências) + VAR (22 ocorrências) = 30 ocorrências no total)], um número superior às ocorrências rítmicas de caráter improvisado (22 ocorrências). Sendo assim, teríamos em todo o trecho analisado uma prevalência da atividade rítmica da mão esquerda orientada essencialmente por um caráter mais padronizado (PTT +VR), o que contraria a nossa hipótese inicial de que Romão adota uma postura mais improvisada do que padronizada em suas intervenções. No entanto, entendemos que as divisões rítmicas de sentido “variado”, bem como as ocorrências rítmicas de natureza “improvisada” - pela sua ampla distribuição exercida nas peças da bateria -, agregou uma grande variedade tímbrica, e 1 dessa forma determinou um caráter de improvisação na malha rítmica. Nessa perspectiva, 85 podemos concluir que o aspecto tímbrico foi o que determinou o sentido improvisado observado em relação à atividade rítmica da mão esquerda de Dom Um Romão em Zambeze.

Na Figura 50 a seguir, colocamos a transcrição do mesmo trecho de Zambeze já analisado anteriormente na Figura 49, entretanto, agora, com as divisões distribuídas nas peças da bateria, justamente para evidenciar a intensa e variada atividade rítmica desenvolvida pela mão esquerda de Romão. Retiramos as linhas rítmicas das outras vozes da bateria que foram tocadas pela mão direita (chimbal ou prato de condução) e pelos pés de Romão (bumbo e chimbal). As caixas de destaque em cores associam as ocorrências rítmicas que tiveram

138 Adotamos a contagem da amostragem das ocorrências rítmicas observadas no trecho descrito na figura 44, de acordo com a classificação proposta, contando cada compasso que forma a relação motívica estruturada em dois compassos de 2/4.

186

caráter exato ou semelhante, podendo ter entre elas algum tipo de variação “tímbrica” ou “divisiva”, mas bastante próximas entre si no que tange a sua estrutura rítmica.

1 86

Figura 50. Atividade rítmica da mão esquerda distribuída na bateria em Zambeze álbum: Dom Um (1964) 0’0” - 1’07” [Ex. de Áudio 21]

Verificamos na Figura 50 acima, um intenso trabalho rítmico da mão esquerda de Romão, com divisões executadas em mais de uma peça da bateria dentro de um mesmo compasso, o que na perspectiva da performance exigiu um amplo domínio de habilidades técnico-musicais, tais como força, velocidade, coordenação e pertinência fraseológica ao idiomatismo do samba. Nos compassos 14, 22, 24, e 28 evidenciados pela caixa de destaque

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na cor vinho, constatamos compassos idênticos, tanto em seu aspecto rítmico quanto no tímbrico, sendo a ocorrência com tais características de maior incidência na Figura 50.

Alguns aspectos observados no que tange a relação motívica de “pergunta” e “resposta” estabelecida pela atividade rítmica da mão esquerda de Romão - exercido nos dois compassos binários necessários para abranger o ciclo da frase que se completa em quatro tempos – merecem destaque. O primeiro deles, diz respeito à divisão rítmica de colcheia encontrada no contratempo do segundo tempo do segundo compasso desse ciclo, que é caracterizado como “resposta” da estrutura motívica (“pergunta e resposta”). De forma recorrente em toda a transcrição, observamos divisões em colcheias exercidas essencialmente no tambor mais grave da bateria (surdo), e, ainda com menor recorrência, no aro da caixa ou na pele da caixa. Embora tenhamos também verificado algumas divisões contramétricas nesses referidos compassos, as “colcheias cométricas” atribuem um sentido pontual de conclusão motívica, portanto cumprem uma função motívica de “resposta” em relação ao compasso anterior, o qual possui essencialmente um caráter de “pergunta”. Tais ocorrências descritas acima foram encontradas nos compassos: 4, 6, 12, 14, 22, 24, 28, 30, 32, 34, 36, 38,

40 e 46, e, pela sua alta recorrência, constatamos que Romão determinava resoluções rítmicas 1 relativamente simples em seu fraseado, pois não verificamos a presença de agrupamentos 87 rítmicos (LERDAHL e JACKENDOFF, 1983 p. 36-37) que atravessassem a linha divisória do compasso, definidos como ritmos cruzados (ROCHA, 2007). Vale ressaltar mais um aspecto sobre as relações motívicas, métricas e tímbricas presentes em Zambeze; de um modo geral, considerando que na rítmica do samba as divisões contramétricas exercidas com timbres agudos tendem a atribuir um sentido motívico de “pergunta”, e divisões cométricas associadas a timbres graves conferem um caráter prevalente de “resposta”, verificamos entretanto, uma variante nessa relação, ou seja, um sentido métrico de contrametricidade associado a timbres graves e de cometricidade aos timbres agudos, alterando então a ligação tímbrica e métrica geralmente pertinente com o sentido motívico de “pergunta e resposta”. Nessa perspectiva de análise, o caráter métrico dos compassos – contrametricidade e cometricidade - por si só não é definidor do sentido motívico (pergunta e resposta), como por exemplo, as ocorrências observadas em Zambeze nos compassos 7 ao 12. Portanto, a questão tímbrica passa a ser prevalente para definir o sentido do caráter motívico nesse contexto. Para ilustrarmos esse raciocínio, colocamos na Figura 51, dois pentagramas com o mesmo trecho

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em cada um (compassos 7 ao 12); no primeiro pentagrama analisamos o aspecto motívico e no segundo o tímbrico.

Figura 51. Exemplo de classificação motívica dos compassos 7 ao 12 de Zambeze sob parâmetros métricos e tímbricos para definição de caráter motívico.

Verificamos no primeiro pentagrama da Figura 51 (compassos 7 ao 12), ocorrências rítmicas que tiveram suas atribuições motívicas relacionadas à questão métrica, 1 não levando em conta o que recorrentemente os aspectos tímbricos - grave e agudo - 88 pudessem atribuir aos mesmos. Sob esse aspecto, tais ocorrências estão presentes mais especificamente nos compassos 8 ao 10, e anteriormente, também na Figura 50 nos compassos: 16, 18, 19, 20, 25, 26, 27, 28, 29, 42, 53 e 57.

No segundo pentagrama, consideramos a questão tímbrica como critério para estabelecer o sentido motívico aos compassos, e, nessa perspectiva, constatamos diferentes atribuições em relação ao aspecto métrico adotado para análise do primeiro pentagrama. Dessa forma, temos no segundo pentagrama (compassos 7 ao 12), extensões do caráter motívico em “pergunta”, observado no compasso 8 em relação ao anterior (compasso 7); uma atribuição de “resposta” no compasso 9, repetindo o mesmo sentido do compasso 8; um caráter de pergunta no compasso 10 se estendendo da mesma forma no compasso 11 e, por fim, um caráter de resposta no compasso 12. Encontramos no livro de John Riley: The Art of Bop Drumming (1994:44) e Motivic Drumset Soloing de Terry O´Mahoney (2004:57-58), uma análise motívica similar, em que os compassos são classificados em analogia aos

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conceitos de “pergunta” e “resposta”, exercendo nessa relação uma função “trocada” ou “estendida”, da mesma forma que observamos em Zambeze na Figura 51.

Concluindo, o que de fato nos chama a atenção nas relações motívicas observadas na Figura 51, é que uma repetição do compasso com caráter de “pergunta” ou de “resposta”, ou ambos, pode gerar um aumento da variedade da malha rítmica ao quebrar essa relação motívica (“pergunta e resposta”) que geralmente é recorrentemente observada em sequencia, ou seja, uma após a outra. Em nossa análise na Figura 51, encontramos exatamente este tipo de ocorrência no segundo pentagrama, associada ao caráter motívico de “pergunta” e que teve a sua repetição em duas oportunidades: no compasso 8 e no compasso 11.

Para finalizarmos nossa análise em Zambeze, investigamos se houve relação das intervenções da mão esquerda com a rítmica da melodia na introdução da música.

Na Figura 52 a seguir, temos novamente a transcrição da introdução de Zambeze até o compasso 26 (partes A e B), representada em dois pentagramas musicais. O superior possui as rítmicas exercidas pela mão esquerda, incluindo os tambores (tom tom/surdo), caixa

(rimshot/pele), aros (cross stick na caixa) e “raspadeira” (aro de tom tom/caixa), e o 1 pentagrama inferior mostra a melodia da música. Não colocamos o chimbal (tocado com a 89 mão), pratos de condução, bumbo (pé direito) e o chimbal tocado pelo pé esquerdo, estas “vozes” foram omitidas propositalmente para facilitar a identificação visual das relações rítmicas. As caixas de destaque em preto mostram as relações coincidentes da rítmica da melodia com as intervenções da mão esquerda de Romão, já as caixas de destaque em vermelho, pontuam onde a rítmica da bateria preencheu os espaços da melodia, completando- as.

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1 90 Figura 52. Relação da melodia e atividade rítmica exercida pela mão esquerda em Zambeze: compasso 1 ao 26 álbum: Dom Um (1964) [Ex. de Áudio 21]

Analisando a Figura 52 acima, fica evidente que Romão considerava a rítmica da melodia também como um referencial para interagir com o discurso musical. Nos compassos 1 e 2 (introdução), as intervenções da sua mão esquerda tiveram a sua ocorrência mais no sentido cométrico, em consonância com a melodia que cumpriu o mesmo caráter. A partir do terceiro compasso, observamos mais associações rítmicas entre os dois pentagramas da transcrição, com o aumento de divisões cométricas e contramétricas, e, a partir desse ponto, Romão além de se relacionar com a rítmica da melodia aplicando as mesmas divisões na bateria (caixas de destaque preto), ainda completou os espaços melódicos (caixas de destaque em vermelho). A única variação da melodia observada na parte (A) foi no compasso 22 e, nessa oportunidade, Romão interagiu aplicando divisões rítmicas idênticas ao contorno melódico no tambor agudo e no grave. Sob esse enfoque de interação da mão esquerda com a

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rítmica da melodia associada a uma base estável presente em todo o trecho da Figura 48, Romão cumpriu uma função de acompanhamento diferenciado na bateria. Nesse sentido trazemos um conceito de Schoenberg que ilustra bem nossa discussão nessa perspectiva:

O acompanhamento não deve ser uma mera adição à melodia. Deve ser o mais funcional possível e, nos melhores dos casos, atuar como um complemento às essências de seu assunto: tonalidade, ritmo, fraseio, perfil melódico, caráter e clima expressivo. Deve [...] estabelecer um movimento unificador, satisfazer as necessidades e explorar os recursos instrumentais (SHOENBERG, 2012, p. 107).

Seguindo nossa análise, vamos examinar a segunda exposição do tema de Zambeze correspondentes as partes (A´) e (B). Veja a seguir na Figura 53 as mesmas relações evidenciadas anteriormente na Figura 52, ou seja, associações com a rítmica da melodia e preenchimento dos espaços melódicos.

1 91

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Figura 53. Relação da melodia e atividade rítmica exercida pela mão esquerda em Zambeze: compasso 27 ao 57 álbum: Dom Um (1964) 0’0” - 1’07” [Ex. de Áudio 22]

Temos na transcrição acima os trechos das partes (A´) e (B), que correspondem a reexposição do tema de Zambeze, as mesmas características de performance desempenhadas pela mão esquerda de Romão já identificadas anteriormente na parte (A). Importante ressaltarmos um aspecto em relação à divisão da melodia: o motivo melódico que prevaleceu em toda a música não tem relação com o padrão tradicional do telecoteco, nem com a sua forma “invertida” (GOMES, 2008, p. 22). Nesse sentido, é interessante constatar que mesmo não havendo relação da rítmica da melodia com algum padrão rítmico, Romão ainda assim se

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orientou pela rítmica tradicional do telecoteco para promover suas intervenções, variando, improvisando e completando os espaços melódicos, conforme as caixas de destaque em vermelho apontaram Figura 53. Para a pesquisadora Joana Martins Saraiva, essa abordagem na performance está vinculada aos elementos da improvisação jazzística (SARAIVA, 2007, p.17), o que favorece a parte interpretativa e evidencia a interação musical entre os instrumentistas, tal característica está amplamente ligada à fase musical do sambajazz que foi discutida no primeiro capítulo do presente trabalho.

Conforme as caixas de destaque evidenciaram nas Figuras 52 e 53, Romão estabeleceu intensa associação com a rítmica da melodia para construir suas intervenções na bateria em Zambeze. Tal abordagem “melódica” associada a performances de bateristas foi amplamente discutida pela supracitada pesquisadora Ingrid Monson, em seu livro Saying Something (1996), e, nesse sentido, vale ressaltar mais uma característica de performance apontada por Monson em seu trabalho. Trata-se da possibilidade de quando uma determinada ideia rítmica é desempenhada entre duas ou mais partes das peças da bateria, as quais possuem afinações diferentes entre si, podendo oferecer um contraste sonoro interessante ao tecido musical. Veja as considerações de Monson acerca desse aspecto: 1

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Quando os bateristas falam de tocar melodicamente, no nível mais básico, eles estão se referindo aos ritmos melódicos - ou a aqueles que imitam a melodia ou a linha do solista, ou então, que formam ideias temáticas desenvolvidas para serem tocadas em diferentes alturas (pitches139) e níveis timbrais em torno do conjunto de bateria. Além disso, uma grande variedade musical pode ser conseguida, tocando uma determinada ideia rítmica entre duas ou mais partes das peças da bateria afinadas em contraste entre elas (MONSON, 1996, p. 60-61)140.

139 Termo em inglês que se refere à altura das notas. 140 Trad. When drummers speak of playing melodically, at the most basic level they are referring to melodic rhythms-either those that imitate the melody or the soloist´s line or those that form thematic ideas developed by played at different pitches and timbral levels around the drums set. In addition, great musical variety can be achieved by playing a given rhythmic idea between two or more parts of the drum set tuned in contrast to each other.

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Monson, ao discutir acima a abordagem melódica considerada pelos bateristas em suas performances, ressaltou em particular o aspecto de tocar uma ideia rítmica entre duas ou mais partes das peças da bateria que possuem afinações distintas entre si. Tal possibilidade de performance ilustra o que observamos em relação às ocorrências associadas à mão esquerda de Romão e que foram exercidas dentro do mesmo compasso entre os tambores (agudo e grave) e a caixa da bateria. Nesse sentido, constatamos nos compassos: 3, 4, 5, 6, 7, 9, 15, 19, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 39, 40, 42, 44, 46, 47, 49, 51 e 55, ocorrências rítmicas desempenhadas linearmente nas peças da bateria, ou seja, na sequencia dos eventos musicais, sem toques simultâneos, associando três timbres distintos dentro do mesmo compasso. Reforçando esse aspecto, observamos também a presença de quatro timbres associados nos compassos: 4, 17, 25, 31, 43 e 45. Tal variedade rítmica e tímbrica verificada da forma como mostramos acima, contribuiu largamente para que as sensações das ocorrências rítmicas em Zambeze tivessem uma orientação de caráter altamente improvisado.

Vale ressaltar ainda em Zambeze, mais um aspecto identificado referente à atividade rítmica desempenhada pela mão esquerda de Romão e que os pesquisadores Stanyec e Oliveira definiram como sons “transitórios”, os quais foram discutidos anteriormente no 1 presente trabalho (STANYEC E OLIVEIRA, 2011, p. 126). Relembrando, tais sonoridades 94 podem ser obtidas através de divisões rítmicas aplicadas em um instrumento de percussão - em nosso caso são as peças de bateria (tambores) -, e que exploram diversas sonoridades tímbricas (principalmente agudas e médias), oriundos da mesma voz rítmica, entretanto não representam o seu timbre mais notável e audível. A resultante sonora, advinda do que Stanyec e Oliveira chamaram como “sons transitórios”, é a soma de dois fatores: a técnica empregada para realizar esse toque em associação com as diversas partes que podem ser percutidas nas diferentes superfícies que compõe o tambor, como: a “pele”, o aro e o próprio corpo do tambor. Nesse sentido, identificamos em Zambeze os “sons transitórios”, que por sua vez foram desempenhados na caixa da bateria e geraram sonoridades distintas através de: 1) toques com a baqueta no aro (rims) com a mão apoiada na pele; 2) toques executados pelo procedimento da “raspadeira”, em alusão ao naipe de tamborim das escolas de samba; 3) toques simultâneos com a baqueta percutindo a pele e o aro da caixa próximo à borda do tambor, em emulação a sonoridade característica do repinique (já discutida e demonstrada anteriormente na análise da Figura 44). Em especial, nos compassos: 26, 31, 39, 42, 43 e 53,

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identificamos os “sons transitórios” advindos das divisões aplicadas simultaneamente na pele da caixa e de seu aro, bem próximo a sua borda, em alusão a sonoridade do repinique. Vale ressaltar ainda que constatamos na Figura 52 e 53, uma alta recorrência de divisões rítmicas coincidentes nos espaços rítmicos pertinentes a segunda e a quarta subdivisão de semicolcheia (contrametricidade) nos compassos: 4, 6, 9, 11, 15, 17, 19, 21, 22, 23, 25, 27, 29, 31, 33, 35, 37, 39, 40, 41, 43, 45, 46, 47, 49 e 51, o que favoreceu o caráter da sincopa que é esperada para o gênero do samba.

2.4.2 Vivo Sonhando

Encontramos na música Vivo Sonhando141 de Tom Jobim, um procedimento de performance semelhante ao que já discutimos em Zambeze. Vivo Sonhando é a terceira faixa do álbum Dom Um (1964), com andamento de 80 bpm em ritmo de samba. Seu plano formal geral tem a seguinte estrutura: Intro/A/A/Impro/A/A/Coda, com a seguinte quantidade de compassos por partes: (Introdução) 12 compassos, (A1) (16 compassos), (A2) sendo que as duas partes (A) estão divididas em três subseções: (a) 4 compassos, (a) 4 compassos e (b) 8 compassos. Na sequencia temos: (Impro Sax) 32 compassos; (Impro piano) 16 compassos; 1 (Impro trombone) 16 compassos; (A) 16 compassos e Coda (4 compassos). 95

Na Figura 54 a seguir, temos a transcrição da melodia e da parte da bateria tocada por Romão na introdução de Vivo Sonhando. As caixas de destaque em preto evidenciam as relações coincidentes entre a rítmica da melodia e as intervenções realizadas pela mão esquerda de Romão, já as caixas de destaque em vermelho, apontam o preenchimento dos espaços melódicos por divisões distribuídas em distintas peças da bateria.

141 JOBIM, Tom. Vivo Sonhando. Intérprete: DOM UM ROMÃO. In: Dom Um [SI]: Philips, p1964. Remasterizado em CD, 2001. CD faixa 3.

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Figura 54. Introdução de Vivo Sonhando: associação da melodia e a rítmica exercida pela mão esquerda - álbum: Dom Um (1964) 0’00” - “00.20” [Ex. de Áudio 23]

Ao examinarmos os compassos 1 ao 4 na Figura 54 acima, verificamos um caráter de performance da mão esquerda de Romão no sentido improvisado, pois não temos rítmicas características do padrão tradicional do telecoteco, tão pouco de sua “variação”. Os espaços melódicos criados pelas notas ligadas foram preenchidos pela mão esquerda de Romão com 1 intervenções distribuídas na bateria através de divisões em caráter contramétrico, o que 96 conferiu movimento ao tecido rítmico pelo favorecimento da sincopa. Já, os apoios ao desenho da melodia, aplicado por Romão na introdução da música, foram exercidos em pontos de convergência cométrica, exceto no segundo compasso (Figura 54), quando então Romão aplicou divisões interagindo com a melodia na quarta semicolcheia do primeiro tempo e também na segunda semicolcheia do segundo tempo (caixa de destaque em preto).

Observamos exemplos de relações cométricas estabelecidas entre a rítmica da melodia e a rítmica da mão esquerda nos seguintes compassos: 1 e 3, em seu primeiro tempo; no compasso 4, na “cabeça” do segundo tempo; no compasso 5, na “cabeça” e no contratempo do primeiro tempo; no compasso 6, na “cabeça” e no contratempo do segundo tempo; no compasso 7, na cabeça e no contratempo do primeiro tempo e no compasso 8, na segunda e terceira subdivisão de semicolcheia, conforme as caixas de destaque em preto apontaram. Vale ressaltar ainda que nos compassos 5 e 6, observamos uma variação do padrão tradicional do telecoteco com a “sincopa característica” presente no segundo tempo do compasso 5,

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enquanto que nos compassos 7 e 8, constatamos o padrão do telecoteco em sua forma tradicional. No compasso 7 da introdução de Vivo Sonhando, Romão distribuiu suas intervenções rítmicas entre a caixa (pele), aro da caixa (rims) e tambor agudo, compondo dessa forma três timbres distintos e associados dentro do mesmo compasso. Já no compasso 8, temos o procedimento da “raspadeira” que determinou em termos estruturais, o fim da introdução em 2/4 para uma “breve ponte melódica” (LARUE, 1992 p. 91) com fórmula de compasso em 7/8, o que para época representou uma inovação (década de 1960). Vale ainda observar que no compasso 4, verificamos novamente a presença do que os pesquisadores Stanyec e Oliveira (2011) chamam de “sons transitórios”, os quais foram obtidos na caixa, bem próximo a sua borda, com o toque sendo percutido ao mesmo tempo na pele e no aro (rimshot), gerando dessa forma um som com característica metálica, aguda e similar ao som do repinique (BOLÃO, 2003, p. 62).

Avançando em nossa análise de Vivo Sonhando, veja na Figura 55 abaixo a transcrição da parte (A). Assim como na análise da sua introdução, as caixas de destaque em preto apontaram as relações das intervenções exercidas pela mão esquerda com a rítmica da melodia, já as caixas de destaque em vermelho, mostram onde Romão completou os espaços 1 melódicos. 97

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Figura 55. Vivo Sonhando (parte A): melodia e bateria - álbum: Dom Um (1964) 0’20” - 0’45” [Ex. de Áudio 24]

Constatamos na transcrição do trecho representado na Figura 55, uma atividade 1 rítmica da mão esquerda em que Romão apoiou o contorno do desenho melódico na parte (A) 98 de Vivo Sonhando, com intervenções exercidas essencialmente no aro da caixa desde o compasso 13 até compasso 24, a única variação observada nesse trecho foi no compasso 20, com a aplicação de três semicolcheias seguidas no tambor agudo a partir da “cabeça” do segundo tempo. Verificamos ainda a presença do padrão tradicional do telecoteco apenas nos compassos 25 e 26, evidenciado pela caixa de destaque horizontal em preto, sendo que no primeiro tempo do compasso 25, Romão preencheu o espaço melódico com colcheias cométricas, distribuindo-as na pele e no aro da caixa. Já no segundo tempo do compasso 25, houve interação total com a rítmica da melodia, com aplicações de divisões no tambor agudo e no aro da caixa. Seguindo a análise, encontramos no compasso 26 divisões totalmente contramétricas exercidas no aro e na pele da caixa que preencheram os espaços melódicos e também interagiram com a rítmica da melodia na segunda e na quarta semicolcheia do primeiro tempo, e também, na segunda semicolcheia do segundo tempo. No compasso 27, Romão continuou preenchendo os espaços melódicos com divisões cométricas na caixa (pele), no aro da caixa e no tambor agudo. A interação com a rítmica da melodia nesse

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compasso só apareceu na última semicolcheia do segundo tempo, com a aplicação de uma divisão na caixa (pele).

Finalizando a análise musical desse trecho (Figura 55), observamos no compasso 28 uma frase de bateria que marcou o fim da seção (A1) e o início da seção (A2), estabelecendo dessa forma novamente uma atividade rítmica na superfície da música ao enfatizar a sua estrutura (LARUE, 1992 p. 91). Vale ressaltar ainda no compasso 28, dois aspectos que compõe a frase de bateria executada pelas duas mãos de Romão. O primeiro deles é novamente a presença do timbre advindo de “sons transitórios” (STANYEC e OLIVEIRA, 2011, p. 162) gerados pelo toque percutido bastante próximo da borda da caixa, em que atingiu a pele e o seu aro ao mesmo tempo, originando dessa maneira um som metálico e agudo, em alusão a sonoridade do repinique. Outro aspecto para ressaltar e que já foi também observado anteriormente na Figura 38, são as divisões executadas pelo pé esquerdo de Romão que aplicou figuras rítmicas contramétricas na segunda e na quarta semicolcheia dos tempos, caracterizando dessa forma o uso do chimbal de maneira diferente de sua ação regular de marcação.

Prosseguindo a análise, examinaremos agora a parte (A2) de Vivo Sonhando, com 1 16 compassos transcritos, mostrando a parte de bateria e a linha melódica, dispostos em dois 99 pentagramas musicais. Vamos continuar discutindo a relação da atividade rítmica da mão esquerda de Romão com a melodia ou com algum padrão rítmico que exerça maior recorrência, destacando mesmo que brevemente, alguma ocorrência idiomática que tenha um caráter relevante em seu idiomatismo e que nos traga aspectos de traços características que denotem peculiaridade. Segue abaixo a transcrição representada na Figura 56.

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Figura 56. Transcrição de Vivo Sonhando: melodia e bateria parte (A2) álbum: Dom Um (1964) 0’45” - 1’09” [Ex. de Áudio 25]

Identificamos na parte (A2) de Vivo Sonhando, representada na Figura 56 acima, 2 aspectos semelhantes da performance de Romão já discutidos anteriormente na parte (A) 00 (Figura 55) no que tange a atividade rítmica da mão esquerda, que ora se relacionou com o desenho rítmico da melodia, ora preencheu os espaços melódicos (caixas de destaque em preto e vermelho), aplicados essencialmente no aro da caixa em divisões que tiveram características métricas de cometricidade e contrametricidade. Alguns compassos apresentaram variações ao contexto descrito acima em termos tímbricos, são eles: compasso 36, pela aplicação de um rudimento denominado “press roll”142 na pele da caixa em sua segunda subdivisão de semicolcheia do segundo tempo (contrametricidade); compasso 37, com a mesma rítmica do padrão tradicional do telecoteco com as divisões distribuídas por

142 Rudimento que compõe a lista dos sete rudimentos essenciais, listados e editados pela PAS: Percussive Arts Societty, e que consiste em aplicar toques alternados em forma de downstroke na pele da caixa, pressionando a baqueta contra a mesma, produzindo com isso múltiplos toques pela ação do rebote da baqueta. Os toques exercidos pelas mãos alternadas, com o aumento da velocidade, vão gradativamente conferindo uma sonoridade ligada na caixa.

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Romão no aro da caixa, na pele e nos tambores agudos; e, finalizando, observamos no compasso 43 e 44 (Figura 56), a “variação” do procedimento da “raspadeira” que já foi encontrada e discutida anteriormente no subcapítulo anterior, mais precisamente na transcrição do trecho da música Telefone representada na Figura 26 (solos de bateria). No entanto, nessa oportunidade (compasso 43 e 44 da Figura 56), percebemos que Romão apresentou uma novidade; o bumbo e o chimbal (pé esquerdo) exerceram divisões acompanhando a intenção da frase da “raspadeira” desempenhada pelas mãos que teve a sua aplicação orientada pelo trilho rítmico de 3 em 3 semicolcheias, ou seja, o bumbo não manteve uma base estável, nesse caso os pés participaram do cruzamento rítmico, atravessando a linha do compasso junto com o procedimento da “raspadeira” (LERDAHL E JACKENDOFF, 1983, p. 36-37).

Partindo para a última análise de Vivo Sonhando, transcrevemos o acompanhamento de bateria pertinente aos dois chorus de improviso do saxofone (32 compassos). Não transcrevemos as solo do saxofone, pois a relação de interação musical observada entre Romão e o solista não estabeleceu pontos relevantes que justificassem a sua transcrição, no entanto, o que mais nos chamou a atenção na parte da bateria durante o solo de 2 saxofone foi justamente a mudança de caráter rítmico e tímbrico estabelecido pela mão 01 esquerda de Romão em comparação às outras seções de Vivo Sonhando já analisadas até aqui [(Intro) (A1) e (A2)].

Um aspecto importante para ressaltar, é que encontramos pela primeira vez em nossa investigação na seção de improvisos de Vivo Sonhando, a presença da “sincopa caraterística” no segundo tempo do segundo compasso do ciclo rítmico. Tal ocorrência representa o pilar do padrão rítmico do telecoteco “invertido”, entretanto, não achamos rítmicas que apresentassem o padrão “invertido” em sua estrutura tradicional, dessa forma entendemos que tais ocorrências rítmicas se caracterizam como um sentido de “variação” da forma “invertida” do telecoteco.

Ainda identificamos também na Figura 57 a seguir, a presença do padrão do telecoteco em sua forma tradicional e “variada”. Todas essas ocorrências rítmicas associadas a uma intensa distribuição das divisões pelas peças da bateria determinaram ao tecido rítmico

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um caráter altamente variado, atribuindo uma sensação de improvisação constante exercida pela mão esquerda de Romão sobre a sua base estável de acompanhamento rítmico na bateria.

Outro aspecto relevante a considerar foi o aumento das divisões exercidas nos tambores e na caixa (pele) em detrimento da presença dos aros de caixa em relação à introdução e a parte (A) de Vivo Sonhando.

A seguir na Figura 57 temos a transcrição do acompanhamento de bateria do chorus inteiro (32 compassos) pertinente à seção de improviso do saxofone em Vivo Sonhando.

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2 02

Figura 57. Transcrição da parte de bateria de Vivo Sonhando: improviso de saxofone álbum: Dom Um (1964) 1’09” - 1’55” [Ex. de Áudio 26]

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As caixas de destaque em preto na Figura 57 acima evidenciaram as rítmicas exercidas pela mão esquerda de Romão no padrão telecoteco em sua forma tradicional e na “variada”. As caixas de destaque em azul apontaram os compassos que se caracterizaram pela “variação” do telecoteco invertido. O agrupamento rítmico da “sincopa característica” foi destacado em linha tracejada na cor vermelha, tanto nos compassos que possuem a variação do padrão do telecoteco em sua forma tradicional quanto na sua invertida. Os compassos que não foram destacados tiveram seu caráter de ocorrências rítmicas no sentido improvisado (compasso 47, 57 e 63). Vale ainda ressaltar que a frase observada no compasso 75, executada em uníssono com o prato de condução, foi distribuída em fusas na caixa, no tambor agudo e no tambor grave, sinalizando dessa forma o fim do improviso do saxofone, cuja função corresponde ao que o etnomusicólogo Paul Berliner denomina como “marcação estrutural da música” (1994, p. 622).

Concluindo, podemos averiguar que os resultados obtidos através das análises das transcrições das músicas Zambeze e Vivo Sonhando (Dom Um, 1964), em suas diferentes partes estruturais, evidenciam dados que nos permitem chegar a algumas conclusões acerca da performance de Dom Um Romão no que tange a atividade rítmica de sua mão esquerda 2 associada a uma base estável de condução rítmica. 03

Romão forjou suas levadas de acompanhamento para o gênero do samba praticado na década de 1960, compondo padrões rítmicos exercidos pela sua mão direita no chimbal ou no prato de condução, dependendo da parte da música, com o bumbo geralmente tocado “a dois” (BOLÃO, 2003, p. 85) pelo seu pé direito com o pé esquerdo marcando recorrentemente os contratempos no chimbal quando a condução rítmica foi desempenhada no prato de condução pela sua mão direita. A aplicação de divisões distribuídas pela bateria pela mão esquerda de Romão teve a sua orientação através do padrão rítmico do samba de telecoteco em sua forma tradicional, invertida, ou ainda por “variações” em torno de todas essas possibilidades acima descritas. As ocorrências rítmicas verificadas no sentido improvisado tiveram suas divisões orbitando em torno das figuras de colcheias, colcheias pontuadas e semicolcheias que foram dispostas isoladamente ou em agrupamentos rítmicos, ou seja, o mesmo material rítmico que compõe a estrutura rítmica do ciclo do tamborim, a qual exerce a função de time-line do samba (NKETIA, apud SANDRONI, 1996, p.18). No

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sentido descrito acima, trazemos novamente para ilustrar o conceito que o pesquisador Simha Arom definiu como “ostinato variado” e que pode nos auxiliar a entender de que maneira todas essas ocorrências rítmicas exercidas pela mão esquerda de Romão tiveram sua ação na dentro da linguagem do samba.

[...] em muitos casos deste tipo a repetição não é estrita, mas configura o que Arom batizou de “ostinato variado”. Sendo assim, a fórmula rítmica assimétrica ora é repetida, ora variada através de improvisações do músico responsável pela “linha- guia”. Estas variações em muitos casos obedecem ao princípio da subdivisão, ou seja, a decomposição em valores menores, sempre a partir dos agrupamentos principais da fórmula rítmica. Assim, por exemplo, 3+3+2 pode ser subdividido em (2+1)+(2+1)+(2) ou em (1+2)+(1+2)+(2) e assim por diante (AROM, apud. SANDRONI, 1996, p. 18).

Outro aspecto relevante a considerar é o referencial melódico que Romão adotou para aplicar as suas intervenções rítmicas nas peças da bateria com a sua mão esquerda, interagindo dessa forma com a rítmica da melodia ou então preenchendo os seus espaços. Sob o aspecto tímbrico, observamos nas músicas analisadas nesse capítulo a presença de níveis de 2 texturas sonoras através da atividade rítmica da mão esquerda de Romão em: a) tambores 04 (surdo e tom tom) com espectro sonoro que abrange frequências graves e médias, emulando o som e a rítmica do surdos de terceira da escola de samba; b) na caixa da bateria com toques direto em sua pele ou com rimshots (pele do tambor e aro simultaneamente), abrangendo o espectro sonoro de frequências agudas resultando numa textura “metálica” que emula o som da caixa ou tarol de escola de samba; c) sons “transitórios” (STANYEC E OLIVEIRA, 2011) com sonoridades obtidas através de toques aplicados no: aro de caixa; nos aros do tambor agudo e da caixa pelo procedimento da “raspadeira” (espectro sonoro que abrange frequências agudas de textura “metálica”, emulando os tamborins das escolas de samba); d) na caixa, próximo a sua borda, com toques na pele e no o aro pele simultaneamente, gerando um som agudo, metálico em alusão a sonoridade do repinique da escola de samba.

Do ponto de vista da análise motívica encontradas nos compassos binários, os quais foram agrupados de dois em dois para abranger o ciclo completo da frase rítmica; observamos em Zambeze e Vivo Sonhando a presença constante da relação motívica de

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“pergunta” e “resposta” entre eles. Em Zambeze, percebemos invariavelmente a associação de colcheias alternando entre a associação de timbres agudos ou graves no contratempo do segundo tempo do segundo compasso binário da relação motívica, estabelecendo dessa forma um caráter cométrico na sua rítmica, o que favoreceu a função motívica de “resposta”. Já nos compassos com função motívica de “pergunta” em Zambeze, observamos recorrentemente a presença de divisões contramétricas, as quais afirmaram a sincopa do samba.

E, finalmente na faixa Vivo Sonhando, constatamos na sua introdução, na parte (A) e na parte (A1), uma rítmica desempenhada pela mão esquerda de Romão que se orientou muito mais por um caráter improvisado do que padronizado ou variado, pois identificamos a sincopa característica do ciclo do tamborim em poucos compassos nessas respectivas partes. Já na seção de improviso do saxofone, Romão aplicou recorrentemente a “sincopa característica” em dois momentos diferentes e que determinaram dois tipos de ocorrência em relação ao padrão do telecoteco: 1) sua forma tradicional e variada, com a presença da sincopa característica no segundo tempo do primeiro compasso do ciclo de dois que comporta a frase de quatro tempos (caixa de destaque em vermelho na Figura 1); 2) sua forma “invertida”, sempre no aspecto variado, com a “sincopa característica” (caixa de destaque pontilhada em 2 vermelho), presente no segundo tempo do segundo compasso da relação motívica, sendo esse 05 aspecto com uma recorrência maior em relação à primeira possibilidade (caixa de destaque em azul na Figura 57).

Ponderando todas as análises musicais discutidas nesse capítulo, observamos alguns aspectos distintos nas duas músicas analisadas no que tange especificamente ao caráter rítmico adotado por Romão para participar do discurso musical através de suas intervenções rítmicas advindas da sua mão esquerda. Observamos padrões e variações rítmicas mais valorizadas em partes diferentes da mesma música em detrimento de outras, mas o aspecto encontrado que parece ser comum a todos os trechos analisados, é a ampla distribuição das divisões rítmicas pelas peças da bateria, chegando a compor até quatro timbres diferentes na linha de divisão rítmica dentro do mesmo compasso binário, característica que determina frequentemente uma alta densidade rítmica na fraseologia de Romão sempre associada a sua mão esquerda. Nesse sentido, a intensa variedade tímbrica observada, mesmo que orientada muitas vezes por uma variação não muito distante do padrão rítmico do telecoteco tradicional

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ou invertido, somada ainda as rítmicas estritamente improvisadas, confere à malha rítmica uma sensação de improvisação constante. Fica claro então, que o aspecto tímbrico é um dos traços característicos preponderantes no idiomatismo de Romão e que se manifesta recorrentemente independente do referencial adotado para orientar as suas intervenções rítmicas na bateria exercidas pela sua mão esquerda quando associada a uma base estável de condução rítmica. Tal aspecto ligado à atividade rítmica da mão esquerda de Romão associada à intensa variação tímbrica, observado no decorrer do presente trabalho, em sua linguagem musical, mais especificamente tocando samba na bateria, evidencia um traço característico muito marcante de seu idiomatismo no instrumento, além de colocá-lo em uma posição de diferenciação frente aos seus pares do sambajazz.

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Considerações finais

A intenção de identificar os procedimentos idiomáticos do baterista Dom Um Romão, os quais pudessem evidenciar e associar os seus traços característicos correlacionados como representativos da fase da música brasileira ligada ao sambajazz, situando-o dessa forma como um dos alicerces no que tange a linguagem da bateria praticada nesse período, partiu em grande parte, primeiramente, pela necessidade de reconhecer e legitimar a sua contribuição na história da bateria brasileira, já que o sambajazz propiciou mudanças significativas na prática musical corrente dessa época do instrumento.

Construímos ainda que brevemente, uma biografia de Romão que partiu do começo de sua carreira até a sua morte, através das informações advindas das entrevistas semiestruturadas e de compilação do material já existente, com um enfoque especial no período do sambajazz (década de 1960), pois é nessa fase em que o cerne de nossa pesquisa se concentra do ponto de vista da análise musical, representado pela investigação da performance de Romão em dois álbuns: Dom Um e O Som, ambos de 1964, que podem ser considerados referenciais desse período. Entretanto, no decorrer do processo biográfico 2 encontramos vários relatos histórico musicais que denotaram relevância, tanto para a sua 07 carreira quanto para a história da música em geral, e que foram vivenciados por Romão no Brasil, nos EUA e na Europa, o que nos direcionou a ir um pouco além do sambajazz, aproveitando a oportunidade de trazer para a academia dados que pudessem contribuir para futuras pesquisas acerca de seu idiomatismo na bateria ou na percussão. Nesse sentido, vale ressaltar a atuação de Romão como percussionista, já que após a sua mudança em definitivo para os EUA, o músico passou a tocar mais percussão do que bateria, processo que culminou com a sua entrada no grupo norte-americano de , o Weather Report, registrando com eles na década de 1970 quatro álbuns referenciais de destacada repercussão mundial. Portanto, reside nessa fase (1971-1976), um vasto material musical que ainda pode ser investigado acerca do idiomatismo musical de Dom Um Romão. Encerramos a biografia do músico com o seu retorno ao Brasil, quando então o produtor carioca Arnaldo DeSouteiro, deu um impulso final em sua carreira, produzindo importantes CDs, shows, gravações, programas de televisão, entrevistas para revistas e workshops até próximo ao seu falecimento em 2005.

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Por se tratar de uma pesquisa feita dentro de uma linha de práticas interpretativas, em que o material musical é central, as transcrições que foram feitas pelo autor são, na verdade, uma das principais ferramentas de investigação. Metodologicamente, a investigação seguiu diferentes etapas: audição, reconhecimento, seleção (determinação do recorte musical), transcrição, análise, obtenção de dados, discussão com base na fundamentação teórica e conclusão. No curso do processo investigativo da performance musical chegamos a dois procedimentos idiomáticos característicos de Dom Um Romão que significaram intensa peculiaridade e recorrência, são eles: 1) o procedimento da “raspadeira”; 2) atividade rítmica de sua mão esquerda associada a uma base estável de condução rítmica. Vale ressaltar que a “raspadeira” também foi executada pela mão esquerda de Romão, entretanto, optamos por analisá-la separadamente, dedicando um capítulo inteiro para a sua discussão por entendermos que se tratava de um procedimento de performance bastante peculiar e inovador do baterista.

Sobre a “raspadeira”, concluímos que Romão, em seu processo de emulação das vozes percussivas na bateria, procurou um procedimento de performance que pudesse adaptar o timbre do naipe do tamborim das escolas de samba pela sua mão esquerda, o qual foi alcançado através da “técnica estendida” (CHERRY, 2009). Constatamos uma alta 2 recorrência do procedimento da “raspadeira” na forma em que definimos como a sua estrutura 08 “original”, pois foi o aspecto mais encontrado em nossa observação. Entretanto, através das análises observamos que Romão recorria às variações sobre o procedimento original da “raspadeira”, modificando a sua rítmica e o seu timbre. Nesse sentido, a raspadeira foi aplicada de diversas formas dentro do sambajazz, com ocorrências verificadas da seguinte forma: 1) exercendo divisões rítmicas em caráter único (somente a raspadeira observada no compasso) em padrão de um ou dois compassos, repetidas algumas vezes em sequência ou não; 2) pontuando o contorno do desenho melódico ou em convenções sob dinâmica forte; 3) compondo linhas rítmicas com timbres advindos de outras peças de bateria dentro do mesmo compasso; 4) aplicado como frases sinalizadoras de passagem entre as diferentes partes da música (LARUE, 1992), com as rítmicas exercidas em cometricidade ou contrametricidade (SANDRONI, 1996), ou ainda, com frases de três em três semicolcheias (LERDAHL e JACKENDOFF, 1983, p. 36-37), estabelecendo dessa forma um “cruzamento rítmico” (OLIVEIRA PINTO, p. 101), observado entre as divisões desempenhadas pela “raspadeira”

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com o ostinato rítmico realizado pelos pés, bem como também com as rítmicas praticadas pelos outros músicos do grupo (CARVIN, apud. MONSON, 1996 p. 52).

Encontramos em nossa análise musical que o procedimento da “raspadeira” sempre esteve presente no idiomatismo de Dom Um Romão na bateria, alternando momentos de maior ou menor ocorrência, mas sempre presente, e que a sua ocorrência está vinculada a alguns aspectos musicais importantes como: dinâmica, texturas e diferentes seções das músicas. Romão aplicou a “raspadeira” com maior frequência em partes estruturais das músicas que possuem dinâmica mais forte, como: introduções, seções de improviso de instrumentos de sopro, solos de bateria e partes finais das músicas (Coda). Sob uma perspectiva geral, podemos afirmar que Romão emprega o procedimento da “raspadeira” nos momentos em que o contexto propicia um diálogo maior com o discurso musical, aumentando dessa forma a densidade rítmica, ou então ainda quando é necessário sinalizar transições das diferentes seções da música (LARUE, 1992). Para concluir as considerações sobre a “raspadeira”, trazemos de novo a citação que o baterista Pascoal Meirelles (2016) nos revelou em depoimento, quando afirmou que de Dom Um (como ele assim o chamava), após apresentar a “raspadeira” no instrumento, todos os bateristas contemporâneos a ele (Romão) 2 passaram a adotar o procedimento como parte integrante do repertório idiomático do samba. 09 Comprovamos esse fato quando demonstramos em nossa análise a ocorrência da “raspadeira” na transcrição que o pesquisador Guilherme Marques (2013) fez em seu trabalho sobre o baterista Airto Moreira na música A Vontade Mesmo (1965), apontando a ocorrência do procedimento.

O segundo procedimento idiomático de performance de Romão identificado em nossa investigação e que apresentou uma intensa recorrência (o que sob esse aspecto no induz a acreditar que seja um traço característico marcante de seu idiomatismo na bateria), definimos como: “atividade rítmica da mão esquerda associada a uma base estável, em exposição temática e nas seções de improvisação”. Tal procedimento, talvez seja o aspecto idiomático de Romão que mais o diferencie frente aos seus pares de maior destaque no período do sambajazz (Edison Machado, Hélcio Milito e Milton Banana) devido à alta recorrência do mesmo. Romão ao aplicar em sua mão esquerda a rítmica do padrão do telecoteco em suas diferentes possiblidades, como a: tradicional, invertida, variações, e ainda

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divisões em caráter de improvisação, distribuindo-as amplamente na bateria, compôs frases combinando até quatro timbres diferentes dentro do mesmo compasso, estabelecendo dessa forma uma atividade fraseológica rica em texturas, o que vinculou ao tecido rítmico um caráter tão variado que a sensação é que há uma improvisação constante em curso. Outro aspecto a considerar sobre a atividade rítmica da mão esquerda de Romão associadas a padrões de condução observados nas músicas analisadas é que, além da ocorrência dos padrões rítmicos mais estáveis conforme os citados anteriormente, a interação com a rítmica da melodia é uma constante, o que nos permite incluí-lo dentro da “segunda geração da bateria brasileira” a qual está associada ao modelo de performance mais interpretativo em que expressões como “tocar nas quebradas”, mencionado pelo baterista Nenê (NENÊ, apud. MARQUES, 2013), ou então “baterista melódico”, citado por Tutti Moreno (MORENO, ibidem). Nesse sentido, existe um modelo de performance em que o baterista estabelece um diálogo constante com o discurso musical, interagindo com a rítmica do contorno melódico ao aplicar divisões coincidentes ou então de forma a preencher as mesmas.

Aos bateristas representativos do sambajazz: Edison Machado, Milton Banana,

Hélcio Milito entre alguns outros, é creditado em termos idiomáticos no instrumento, a 2 realização de grandes transformações na linguagem da bateria brasileira na década de 1960 10 por quebrarem os paradigmas de execução musical em relação às práticas correntes da época. Nesse sentido, de uma forma geral, vale pontuar o que esses bateristas citados agregaram de significativo para a evolução na linguagem musical do instrumento; Edison Machado com o samba no “prato” (BARASALINI, 2009) e sua alta energia em performances, principalmente ao vivo; Hélcio Milito com sua extrema habilidade com as vassourinhas adaptadas ao contexto da música brasileira (CASACIO, 2012); Milton Banana como sendo um dos grandes representante das levadas de bossa nova e especialista em conduções em andamentos rápidos, com semicolcheias contínuas (WINK, 2014), enfim, todos os bateristas mencionados acima, contribuíram no desenvolvimento da linguagem da bateria brasileira, anexando ao seu repertório geral, traços característicos de seus respectivos idiomatismos. Nessa perspectiva, pouco ou nada se fala da herança musical que Dom Um Romão legou a essa seara, mas conforme nos propusermos a demonstrar com este trabalho, ela foi distintiva e representativa, e dessa forma o esforço de nosso empenho deve ser entendido como um reconhecimento à importância das contribuições que Dom Um Romão legitimou dentro do grupo dos bateristas

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de sambajazz, os quais transformaram profundamente a linguagem da bateria brasileira, principalmente no que se refere ao samba.

Dessa forma, vamos estabelecer um paralelo de Romão com dois dos três bateristas citados acima de maior destaque no período musical do sambajazz, tendo como referência para tal afirmação a intensa demanda de trabalhos representativos em shows e gravações que Machado, Banana e o próprio Romão tiveram na década de 60. Podemos prospectar então posicionamentos dos mesmos em relação aos traços característicos de suas performances individuais, colocando primeiramente Edison Machado de um lado, com as suas “pratadas” marcantes, o samba no “prato” altamente sincopado e frases aplicadas por toda a bateria sob forte influência jazzística; Milton Banana em um sentido oposto ao de Machado, com dinâmicas mais leves no instrumento, com um destacado diferencial em sua condução rítmica, essencialmente exercida em semicolcheias contínuas rápidas em sua mão direita, com um fraseado comedido na bateria quando solicitado, e, essencialmente com a sua mão esquerda sincopando na maioria das vezes no aro da caixa; já Romão, o posicionamos no centro desse espectro, com larga amplitude de domínio de dinâmica, indo do “pp” ao “ff” com facilidade, condução rítmica firme exercida essencialmente no prato em semicolcheias 2 contínuas ou sincopadas dependendo do andamento, com a sua mão esquerda fraseando 11 incessantemente, emulando a resultante geral dos instrumentos de percussão do samba distribuídos na bateria, tanto do ponto de vista rítmico quanto do tímbrico, e, ainda, com frases de passagem que também se remetem muito mais às frases encontradas em contextos idiomático dos instrumentos de percussão das escolas de samba do que na influencia que o jazz exercia nos bateristas dessa época, conforme constatamos em nossas transcrições. Tal aspecto pode ser atribuído à experiência que Romão acumulou no seu passado, tendo tocado desde muito cedo percussão e bateria no ambiente do samba, o que lhe rendeu um amplo domínio idiomático do estilo ao adaptar do contexto fraseológico da percussão do samba para a sua mão esquerda na bateria em associação a uma base estável exercida pelos seus outros membros do corpo de uma forma bastante peculiar e pertinente ao gênero do samba. A posição “central” na qual assentamos a performance de Romão em relação à forma contrastante de seus dois contemporâneos, também pretende significar um posicionamento do músico em relação à sua capacidade de discernimento e observação dos aspectos musicais característicos de sua época, que permitiram a partir da síntese com seu passado musical no

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samba, construir uma linguagem original e representativa. Portanto, a partir do que discorremos, é possível afirmar que Romão desenvolveu um caráter de performance que pode ser considerado como modelo para o estilo de sambajazz na bateria, representando contundentemente a acepção deste termo, já que traz para o contexto musical da década de 60 no Rio de Janeiro, as características interpretativas de interação e improvisação primordiais do jazz norte americano, e conjuntamente de maneira integrativa, explora a fraseologia rítmica do samba expondo seu idiomatismo típico.

Ainda cabe deixar registrado, de que esta pesquisa se beneficiou mesmo de maneira informal e intuitiva, das performances que este pesquisador se propôs a realizar como forma de compreender com a maior profundidade possível os idiomatismos que foram analisados. Para tanto, o autor reuniu músicos, selecionou repertório143 baseado nos dois álbuns que compõe o objeto de estudo da investigação e realizou apresentações144 em casas especializadas e teatros de São Paulo com o seu grupo145 que arregimentou para tal. Após dois anos de performance mantendo o mesmo repertório, parece claro a constatação do enriquecimento da capacidade criativa bem como do vocabulário musical enquanto baterista, e, em particular, no que se refere ao idiomatismo do samba na bateria. 2

Certo de que ainda há muito a ser investigado sobre a obra de Dom Um Romão, 12 como já mencionamos no início de nossas considerações, esperamos que o presente trabalho possa servir de parâmetro e diálogo para futuras pesquisas no que tange ao campo da performance e da música instrumental e popular brasileira.

143 Dentre as composições provenientes do recorte musical (objeto de estudo: Dom Um e o Som) selecionado para o presente trabalho, destacamos as músicas selecionadas para compor o repertório do grupo montado pelo autor: Zambeze, Vivo Sonhando, Blues Bottle´s, Telefone, Nordeste, Birimbau, Quintessência, Fica Mal com Deus, Jangal, Dom Um Sete, Afrika, Contemplação e Consolação. 144 Shows realizados com o Quinteto: Tributo a Dom Um Romão: SESC Ipiranga: 01/2017; Bar e Restaurante São Cristóvão: 02/2017; Jazz nos Fundos: 06/2017; I° Congresso de Percussão Unicamp, 05/2017; Auditório EMT: 09/2017; Gravação de Áudio e Vídeo: Estúdio Giba Favery 04/2017: https://www.youtube.com/watch?v=Iz0hX-jRKK0; https://www.youtube.com/watch?v=kSHvNOqJxqU; https://www.youtube.com/watch?v=Olm_cA9jMPo; https://www.youtube.com/watch?v=lke11iU3gvQ 145 Leo Mitrulis/piano; Jarbas Barbosa/guitarra; Dino Barioni/guitarra; Robertinho Carvalho/baixo; Ogair Junior/piano/; Vitor Alcantara/saxofone; Zeli Silva/baixo.

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Áudio

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Endereços eletrônicos consultados

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223

http://osomdovinil.org/florapurim/ http://showlivre.com/blog/a-evolucao-da-musica-brasileira-no-piano-de-dom-salvador

2 23

224

ANEXO I – EXEMPLOS DE ÁUDIO EM MP3

EXEMPLO DE ÁUDIO 1

EXEMPLO DE ÁUDIO 2

EXEMPLO DE ÁUDIO 3

EXEMPLO DE ÁUDIO 4

EXEMPLO DE ÁUDIO 5

EXEMPLO DE ÁUDIO 6

EXEMPLO DE ÁUDIO 7

EXEMPLO DE ÁUDIO 8

EXEMPLO DE ÁUDIO 9

EXEMPLO DE ÁUDIO 10

EXEMPLO DE ÁUDIO 11

EXEMPLO DE ÁUDIO 12

EXEMPLO DE ÁUDIO 13

EXEMPLO DE ÁUDIO 14 2 EXEMPLO DE ÁUDIO 15 24 EXEMPLO DE ÁUDIO 16

EXEMPLO DE ÁUDIO 17

EXEMPLO DE ÁUDIO 18

EXEMPLO DE ÁUDIO 19

EXEMPLO DE ÁUDIO 20

EXEMPLO DE ÁUDIO 21

EXEMPLO DE ÁUDIO 22

EXEMPLO DE ÁUDIO 23

EXEMPLO DE ÁUDIO 24

EXEMPLO DE ÁUDIO 25

EXEMPLO DE ÁUDIO 26

225

ANEXO II – DISCOGRAFIA GERAL

2 25

226

2 26

227

2 27

228

2 28

229

2 29

230

2 30

231

2 31

232

2 32

233

2 33

234

2 34

235

2 35

236

2 36

237

2 37

238

2 38

239

2 39

240

2 40

241

2 41

242

2 42

243

2 43

244

ANEXO III – INVENTÁRIO IDIOMÁTICO DE DOM UM ROMÃO

Transcrições:

Telefone - Roberto Menescal - Dom Um Romão - Dom Um (1964)

Vivo Sonhando - Tom Jobim - Dom Um Romão - Dom Um (1964)

Blues Bottle´s - J.T. Meirelles – J.T. Meirelles e os Copa 5 - O Som (1964)

Zambeze - Orlann Divo Roberto Jorge - Dom Um Romão - Dom Um (1964)

Birimbau - Clodoaldo Brito e João Mello - Dom Um Romão - Dom Um (1964)

Nordeste - J.T. Meirelles – J.T. Meirelles e os Copa 5 - O Som (1964)

Legenda utilizada para identificação dos procedimentos idiomáticos de Dom Um Romão 2 exclusivamente nas transcrições das partes de bateria: 44

Obs.: os procedimentos de performance abordados nesse trabalho, estão em sua grande parte relacionados com a atividade rítmica desempenhada pela mão esquerda de Dom Um Romão em associação com padrões de condução de caráter estável.

= PTT (Padrão Tradicional do Telecoteco)

obs: padrões rítmicos que apresentaram a mesma estrutura de divisão do PTT com algumas omissões rítmicas, foram considerados pertencentes a esta classificação.

= VARPTT (Variação do Padrão Tradicional do Telecoteco)

= PTTI (Padrão Tradicional do Telecoteco Invertido)

Obs.: padrões rítmicos que apresentaram a mesma estrutura de divisão do PTTI com algumas omissões rítmicas foram considerados pertencentes a esta classificação.

245

= VARPTTI (Variação do Padrão Tradicional do Telecoteco Invertido)

= RHTTI (Rítmica Híbrida Telecoteco Tradicional/Invertido)

= RI (Rítmica de Improvisação)

= PR (Procedimento da Raspadeira)

= VPR (Variação do Procedimento da Raspadeira)

= FTF (Frases de Transição ou Finalização)

= Variações da Rítmica do Pé Esquerdo 2

45 = Sons Transitórios

Obs.: sonoridades obtidas através de toques executados diretamente no aro da caixa e também com o procedimento da “raspadeira” não estão incluídas nessa classificação.

= Mão Esquerda no Chimbal com a Mão Direita no Prato

= Sincopa Característica (identificados em: PTT, PTTI, VARPTT, VARPTI e RI)

246

2 46

247

2 47

248

RI RI

RI RI RI

RI VARPTT RI

VARPTT RI PTT

2 VARPTT PTT RI 48

RI RI RI

PTT RI RI

RI RI VARPTT

249

RHTTI VARPTT VARPTT

RI RI RI

VARPR/FTF VARPTT RI FTF

RI PTT PTT

PTT PTT VARPTT 2 49

VARPTT RI FTF RI

RI PTT PTT

PTT RI RI

250

2 50

251

2 51

252

PTT RI FTF VARPTT

PTT FTF

RI RI RI

RI RI RI

2 PTT VARPTT FTF RI 52

RI RI RI

RI PTT RI

FTF PTT RI

253

VARPTI VARPTI VARPTI

RHTTI VARPTI VARPTI

VARPTT RI VARPTT

VARPTT VARPTI VARPTT

VARPTT FTF/VARPTI VARPTI 2 53

RI RI RI

VARPTI VARPTI RI

RI RI VARPTT

254

VARPTT RHTTI RI

RI RI RI

RI PTT VARPTT

VARPTT VARPTT VARPTT

PTT PTT FTF RI 2 54

RI VARPTT RI

VARPTT RI RI

RI RI

255

2 55

256

RI RI PTT

RI PTT PTT

PTT RI PTT

RI RI RI

PTT VARPTT VARPTT

2 56 RI RI VARPTT

RHTTI VARPTI RI

VARPTT RI VARPTT

RI RI RI

257

RI RI RI

RI VARPTT RI

VAPTTI RI VARPTT

RI RI RHTTI

RI RI RI

2 RI VARPTT RI 57

RI RI RI

RI RI RI

RI RI RI

258

RI RI RI

RI RI RI

RI RI RI

VARPTT RI RI

RI

2 RI 58

RI

RI

RI PTT RI

259

RI RI PTT

RI RI PTT

PTT PTT PTT

RI/FTF

2 59

260

2 60

261

2 61

262

RI VARPTT PTT

PTT PTT VARPTT

VARPTT VARPTT VARPTT

VARPTT RI VARPTT 2

62

VARPTT VARPTT PTT

VARPTT VARPTT VARPTT

263

VARPTT VARPTT VARPTT

VARPTT RI VARPTT

VARPTT VARPTT VARPTT

VARPTT VARPTT

2

VARPTT PTT VARPTT 63

VARPTI VARPTI RI

264

PTTI VARPTI RI

VARPTT VARPTT RI RI

VARPTI RI VARPTT

VARPTI RI RI

2

RI RI RI 64

265

2 65

VARPTT VARPTT VARPTT

VARPTT VARPTT

RI VARPTT VARPTT

RHTTI RHTTI RI

VARPTI VARPTI RI

VARPTT VARPTT RI

VARPTI RI VARPTT

VARPTI RI RI

266

2 66

267

RI RI RI

RI RI RI

RI VARPTT RI

VARPTT RI RI

2 RI RI RI 67

RI RI RI

RI RI RI

RI VARPTT VARPTI

268

PTT PTT VARPTT

VARPTT RI RI

RI VARPTT PTT

PTT RI VARPTT

VARPTI RI RI 2 68

VARPTT PTT PTT

PTT VARPTT PTT

PTT RHTTI RI

269

VARPTT RI RI

RI PTT VARPTT

RI RI RI

VARPTT RI VARPTT

FTF

2 69

270

2 70

271

RI RI RI

RI VARPTT RI

RI RI PTTI

RI RI VARPTT

2 VARPTI RI VARPTT 71

RI RI RI

RI RI VARPTT

RI PTT VARPTT

272

PTT RI RI

VARPTI RI VARPTI

RI RI RI

VARPTT VARPTI RI

VARPTT RI VARPTI

2 72

RI RI RI

PTTI RI RI

RI PTTI RI

273

RI RI RI

RI RI RI

RI RI RI

RI RI RI

RI RI PTT

2 73

RI RI RI FTT

FTT