42º Encontro Anual da ANPOCS

SPG 09: Direitas no Brasil contemporâneo

Disputas em torno da família na Câmara dos Deputados: entre o conservadorismo moral e o neoliberalismo

Rayani Mariano

Disputas em torno da família na Câmara dos Deputados: entre o conservadorismo moral e o neoliberalismo

Rayani Mariano1

1. Introdução Em maio de 2016, quando a Câmara dos Deputados votou o afastamento da presidenta , mais de 500 deputados/as tiveram alguns segundos para manifestar seus votos e a palavra “família” foi mencionada 136 vezes (VIEIRA, 2016). Causou estranheza a mobilização dessa instituição que é utilizada frequentemente em discursos conservadores, mas não mantinha nenhuma relação com os supostos motivos para o afastamento da presidenta. Com a posse de , políticas claramente associadas ao neoliberalismo foram implementadas, como a Reforma Trabalhista e a Emenda Constitucional 95; e como argumentam Brown (2015) e Cooper (2017), o livre mercado e a liberdade contratual não podem existir sem o reforço do privado e das obrigações das famílias. No caso estadunidense, há trabalhos que buscaram analisar a relação entre o neoliberalismo e o conservadorismo moral. Cooper (2017) indica que já nos anos 1970, o neoliberalismo americano e o novo conservadorismo social amadureceram e se posicionaram de forma conjunta contra uma série de eventos e uma percepção de crise. Ela explica que segue Brown (2006), para quem o neoliberalismo e o neoconservadorismo devem ser pensados conjuntamente – nas suas convergências, colisões e simbioses – para entender a racionalidade política do poder nos EUA hoje. Cooper (2017) comenta que neoliberalismo e neoconservadorismo podem ser diametricamente opostos em várias questões, mas na questão dos valores familiares eles revelaram uma afinidade surpreendente. Para a autora, enquanto os neoliberais demandavam uma redução na alocação orçamentária para o Estado de Bem-Estar Social, os neoconservadores apoiavam a expansão do papel do Estado na regulação da sexualidade. Apesar das diferenças, eles convergiram na necessidade de reinstalar a família como fundadora da ordem social e econômica.

1 Doutoranda em Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. No caso brasileiro, há indícios de que essa aproximação também possa estar ocorrendo. Chaloub e Perlatto (2016, p. 37), ao analisarem no caso brasileiro aproximações entre a “direita teórica” e a “direita militante”, argumentam que em ambas está presente a “plena conformidade entre um forte conservadorismo moral e a adesão ao mundo do capitalismo liberal”. É possível levantar a hipótese de que a defesa da família e dos valores familiares seriam pontos nessa convergência entre neoliberalismo e conservadorismo. A centralidade da família nessa convergência se daria porque a implementação de políticas neoliberais, como o corte dos investimentos em saúde, educação, previdência social etc., obriga as famílias a terem que sobreviver sozinhas sem o auxílio do Estado. Machado (2017) argumenta que as eleições de 2014, apesar de não terem ocasionado um aumento significativo dos evangélicos na Câmara, criaram um ambiente favorável para grupos mais conservadores do Cristianismo. E é possível supor que o aumento da força de grupos religiosos no Congresso Nacional brasileiro incentive alianças com outros grupos de interesse, como ruralistas e empresários. A eleição para a presidência da Casa do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ) foi uma consequência desse ambiente que se construiu com atores ligados ao agronegócio, à indústria armamentista, às igrejas evangélicas, ao movimento carismático católico e a outros setores que faziam oposição ao Partido dos Trabalhadores (MACHADO, 2017). Essas alianças conservadoras têm se expressado em diferentes momentos do contexto recente brasileiro, como na união entre a Frente Parlamentar Evangélica e a Frente Ruralista no Congresso Nacional para a aprovação do Código Florestal em 2011 (VITAL; LOPES, 2013). Mais recentemente, com a aproximação do então Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, um dos ícones do neoliberalismo no Brasil e candidato às eleições presidenciais de 2018, com setores evangélicos (BIROLI, 2017). Além disso, uma matéria jornalística recente publicada na revista Piauí sobre o Movimento Brasil Livre (MBL)2 expõe o desejo dos seus membros de formar uma aliança entre “setores modernos da economia”, “agro” e evangélicos com o objetivo de constituir um pacto político de centro-direita (ABBUD, 2017).

2 O MBL é um movimento ligado à direita, composto por jovens e fundado no final de 2014. Organizou manifestações explorando principalmente a pauta da corrupção. Diante desse contexto, Biroli (2017) levanta a hipótese de que “a agenda dos direitos humanos e de grupos específicos que levaram novos problemas e demandas ao debate público e ao âmbito estatal, como os movimentos LGBT, feministas, negros e indígenas, não incidiu em um universo paralelo ao da política partidária e das diretrizes econômicas”. Para a autora, nos casos da demarcação de terras indígenas e da inclusão da perspectiva de gênero e de raça nas políticas de proteção social isso fica claro. Porém, em outros contextos, a relação é mais sutil, como no caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, do direito ao aborto e do combate à violência contra as mulheres. Para a autora, um dos pontos de intersecção é a definição da “família funcional” em uma lógica de reestruturação produtiva. Biroli (2014) argumenta que a forma moderna de família é caracterizada pela privatização e como uma unidade de “autogestão”, na qual estão incluídos o amor romântico, o casamento heterossexual monogâmico e o cuidado com os filhos. E é possível afirmar que com a implementação de políticas neoliberais, haja uma intensificação da privatização das famílias, já que ocorre um encolhimento da infraestrutura pública que serve de suporte às famílias. Diante do exposto e da hipótese de que a defesa da família tradicional por parlamentares está articulada tanto com a racionalidade conservadora quanto com a racionalidade neoliberal, o objetivo do paper é observar a mobilização da família nos discursos de deputados/as federais, buscando analisar de que forma o neoliberalismo e o conservadorismo se articulam nesse debate. A metodologia do paper consiste em duas frentes, a análise da literatura teórica e a análise dos debates parlamentares na Câmara dos Deputados brasileira. Em relação ao trabalho empírico, ele consistiu na análise de discursos proferidos no plenário que estavam direta ou indiretamente relacionados às disputas em torno da família. A questão da família perpassa diferentes temáticas, e é mobilizada nos mais distintos assuntos discutidos pelos deputados. Por essa razão é inviável buscar pela palavra-chave “família”, pois o resultado retornaria um número muito elevado de pronunciamentos e que provavelmente não estariam em sua maioria relacionados com o que se pretende investigar. Optou-se por buscar discursos relativos aos seguintes temas e projetos3: Lei

3 A escolha desses temas e projetos ocorreu pelo fato de que em todos os casos a noção de família está sendo afirmada em alguma concepção específica e disputada relativamente a transformações na sociedade e no âmbito jurídico normativo. 13.010/2010 (Lei Menino Bernardo e também conhecida como “Lei da Palmada”), Projetos de Lei que buscaram instituir Estatutos da Família (PL 6.583/2013 e PL 674/2007), a ofensiva contra a chamada “ideologia de gênero” (ocorrida nas discussões sobre os Planos nacional, estaduais e municipais de educação, e na proposição de vários PL’s) e Movimento Escola sem Partido, cujas ideias estão presentes no PL 867/2015 e no PL 7.180/2014.

2. Justificando e contextualizando as temáticas escolhidas Nessa seção, irei apresentar os temas/projetos que serão trabalhados no artigo: o Estatuto da Família, a Lei Menino Bernardo, a “ideologia de gênero” e o Escola sem Partido, buscando contextualizar os fatos mais relevantes relacionados aos quatro. Parto da percepção de que todos são relevantes para se compreender como a família vem sendo mobilizada por parlamentares conservadores e progressistas e que sua contextualização contribui para a análise das disputas em torno das famílias. A discussão sobre a Lei 13.010/2014, intitulada Lei Menino Bernardo, se iniciou em 2010, quando o Executivo enviou o PL 7.672/2010 para o Congresso4. Foi instalada uma Comissão Especial na Câmara para apreciar a matéria, e teve como relatora a Deputada Teresa Surita (PMDB/RR), que apresentou um substitutivo aprovado no final de 2011. Em seguida, vários parlamentares apresentaram requerimento contra a apreciação conclusiva da Comissão, mas o projeto acabou sendo encaminhado para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), e aprovado em maio de 2014. O PL foi apelidado pela imprensa de “Lei da Palmada” e causou grande debate, tendo sido apontado pelos seus críticos como uma limitação da legitimidade dos pais na educação dos filhos. A lei estabelece o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. No período recente, outra discussão específica sobre a família se deu a partir da proposição do PL 674/2007 pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), que estabelecia a criação de um Estatuto das Famílias. O PL tratava principalmente da união estável e

4 Em 2003, a Deputada Maria do Rosário (PT/RS) propôs o PL 2.654/2003 que buscava proibir qualquer forma de castigo físico em crianças e adolescentes. O PL foi aprovado na Comissão de Educação e de Cultura, na Comissão de Seguridade Social e Família, e na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, mas não chegou a ser votado pelo plenário. Em 2006, a Organização das Nações Unidas (ONU) editou o Comentário Geral N.8, que dispunha sobre o assunto, fazendo com que o governo brasileiro elaborasse um projeto de lei e o enviasse ao Congresso Nacional. divórcio, estabelecendo que “é reconhecida como entidade familiar a união estável, pública, contínua e duradoura, entre duas pessoas capazes, estabelecida com o objetivo de constituição familiar”. Entre os objetivos do PL estava instituir a categoria do divórcio de fato e regularizar a situação das uniões estáveis, incluindo casais homossexuais como unidades familiares. Os dois pontos que mais provocaram polêmica na discussão desse PL foram o casamento e a adoção por casais homossexuais; e a possibilidade de estabelecer união estável quando uma ou ambas as pessoas fossem casadas. O projeto foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família em 2009 e na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania no final de 2010, porém com a retirada da possibilidade de união estável de homossexuais. Em seguida, o PL deveria ser encaminhado ao Senado, porém os deputados evangélicos Eduardo Cunha (PMDB/RJ) e João Campos (PSDB/GO) entraram com recurso contra a apreciação conclusiva do projeto e para que ele fosse votado pelo plenário da Câmara. O PL acabou sendo arquivado no final da 53ª Legislatura e não foi desarquivado na legislatura seguinte. Em 2013, foi apresentado um novo Estatuto da Família, e não mais um Estatuto das Famílias, como propunha o projeto anterior. O PL 6.583/2013, do deputado Anderson Ferreira (PR/PE), restringe a entidade familiar ao casal formado por um homem e uma mulher, como comentado anteriormente. O PL foi aprovado na Comissão Especial em setembro de 2015 (os destaques foram votados em outubro), e aguarda deliberação de recurso da mesa diretora da Câmara dos Deputados. No caso do Estatuto da Família, a principal controvérsia se relaciona a esse impedimento de que outros arranjos familiares sejam considerados como família. O PL 6.583/2013 elenca diversas medidas que visam manter, proteger e “valorizar” a família, no entanto em nenhum momento ele trata da divisão sexual do trabalho dentro das famílias e das desigualdades decorrentes dessa divisão. Além disso, o projeto trata dos direitos à entidade familiar e não faz alusão aos direitos dos membros da família, ou seja, o que o Estatuto visa proteger é a entidade familiar. Essas tentativas de retrocesso nos direitos das mulheres e LGBT não parecem ser exclusividade brasileira, já que em outros países da América Latina, por exemplo, ocorreram embates recentemente relacionados a discussões sobre gênero. No caso brasileiro, o combate à chamada “ideologia de gênero” ganha força com a discussão do PL 8.035/2010 (instituía o Plano Nacional de Educação (PNE) para o período 2011/2020). No projeto original enviado pelo Executivo, a palavra gênero aparecia em uma das estratégias da Meta 3, que dizia respeito à universalização do ensino entre 15 e 17 anos. Após tramitação e modificações na Câmara, o PL foi enviado ao Senado em 2012 com o termo gênero em dois locais do texto. Cabe ressaltar que quando o PL foi modificado no Senado e voltou à Câmara, em 2014, uma das principais controvérsias foi a questão da chamada “ideologia de gênero”, que não havia sido um problema na primeira votação. No substitutivo aprovado no Senado, os termos “gênero” e “orientação sexual” foram suprimidos. E na redação final, aprovada em 2014, eles também não estavam presentes. Nos anos seguintes à aprovação do Plano, deputados buscaram afirmar que a Câmara já havia se posicionado contrariamente à “ideologia de gênero” e, por essa razão, os municípios e estados deveriam fazer o mesmo e excluir qualquer referência a gênero dos seus planos estaduais e municipais de educação. Outro tema que se destacou na discussão sobre a “ideologia de gênero” foi a Medida Provisória 696/2015, relacionada à organização da Presidência da República e dos Ministérios, que incluía entre as atribuições do Ministério de Direitos Humanos, Políticas para as Mulheres e Igualdade Racial: “planejamento de gênero que contribua na ação do Governo federal e das demais esferas de governo para a promoção da igualdade entre mulheres e homens”. Deputados contrários à “ideologia de gênero” discursaram defendendo a retirada do termo “gênero”, e no texto final o termo realmente foi suprimido. Mais recentemente, exposições de arte foram o alvo dos deputados conservadores, acusando-as de promover a “ideologia de gênero”. Foram dois episódios marcantes: o da exposição Queermuseu, que ocorria no Santander em , e foi cancelada após mobilização de religiosos e do MBL; e uma performance no Museu de Arte de São Paulo, na qual o artista estava nu e havia pessoas assistindo e filmando, e entre elas ao menos uma criança. E, por último, o que causou reações e discursos em relação à “ideologia de gênero” foi a vinda da filósofa Judith Butler ao Brasil. Balieiro (2018, p. 3), analisando esses acontecimentos mais recentes relacionados à “ideologia de gênero”, e a reação ao material que seria distribuído às escolas como parte do Programa Brasil sem Homofobia, em 2011, argumenta que foi se consolidando “um pânico moral que reflete a oposição a políticas de reconhecimento das diferenças de gênero e sexualidade e à crescente visibilidade das questões sobre diversidades sexual no Brasil”. Além disso, o autor aponta para a estratégia desses grupos de trocar a chave do debate: ao invés de se posicionarem contrariamente aos direitos de homossexuais, pessoas trans e mulheres, eles se colocam como defensores das crianças que estariam ameaçadas. O combate à “ideologia de gênero” no caso brasileiro também está articulado com o combate a uma “doutrinação marxista”. O Movimento Escola sem Partido (MESP) surgiu em 2004, mas só ganhou mais destaque a partir de 2010 (MIGUEL, 2016). No site do Movimento, há a explicação de que ele se divide em duas frentes: uma relativa ao Projeto Escola sem Partido, ou seja, que busca transformar suas concepções em lei; e a outra é uma associação informal de pais, alunos e conselheiros que estariam preocupados com a contaminação político-ideológica do ensino básico ao superior. O problema, segundo o coordenador do movimento, é que, “a pretexto de transmitir aos alunos uma “visão crítica” da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo”5. O MESP pode ser caracterizado como um “movimento conservador que busca mobilizar princípios religiosos, a defesa da família em moldes tradicionais e a oposição a partidos políticos de esquerda e de origem popular” (MACEDO, 2017). A estratégia inicial do Movimento, segundo Macedo (2017), foi judicializar a relação entre professores e alunos, e depois pressionar as assembleias e câmaras para que aprovassem leis contendo suas ideias. Na Câmara dos Deputados, há projetos de lei relacionados ao Movimento. O PL 7.180/14, proposto pelo deputado Erivelton Santana (PSC/BA), busca alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), estabelecendo o “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. E, pouco depois, o deputado Izalci (PSDB/DF) apresentou o PL 867/15, que pretende incluir, entre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o “Programa Escola sem Partido”. Foi criada uma Comissão Especial para discutir o PL 7.180/2014 e todos os outros apensados a ele que possuem relação com o “Programa Escola sem Partido”6. Em

5 Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2018. 6 É necessário explicar que há o Movimento Escola sem Partido (MESP) – que foi quem iniciou essa discussão; há o Programa Escola sem Partido – que é o que o MESP quer implementar; e há os projetos de lei que buscam estabelecer esse Programa. dezembro de 2017, foi feito requerimento para que os trabalhos da Comissão Especial fossem prorrogados. Miguel (2016) argumenta que a importância do MESP cresce quando sua pauta se direciona para o combate à chamada “ideologia de gênero”. Antes, diz o autor, o foco estava na “doutrinação marxista”.7 Como as políticas de combate à homofobia e ao sexismo nas escolas impulsionaram o receio da discussão sobre gênero e se tornaram uma pauta prioritária dos grupos religiosos conservadores, se aproximar dessa pauta poderia ser vantajoso. “Ao fundi-lo à sua pauta original, o MESP transferiu a discussão para um terreno aparentemente “moral” (em contraposição a “político”) e passou a enquadrá-la nos termos de uma disputa entre escolarização e autoridade da família sobre as crianças” (MIGUEL, 2016, p. 596). A breve apresentação dos temas e projetos que serão analisados na tese permite a percepção de que no debate em torno do Estatuto da Família e da “Lei da Palmada”, a questão da família é central, sendo que no primeiro caso a disputa se desenvolve em torno da definição de família; e no segundo caso, em direção à autoridade familiar e estatal. Em relação à ofensiva contra a “ideologia de gênero”, o papel da família não é tão central quanto nas temáticas anteriores, mas acaba adquirindo relevância porque conservadores a mobilizam constantemente para ir contra os direitos das mulheres e LGBT, que é o centro da disputa em relação à controvérsia da “ideologia de gênero”. E o Projeto Escola sem Partido, a princípio, é semelhante à temática da “ideologia de gênero”, mas a família também ganha protagonismo na medida em que conservadores buscam exaltar a autoridade dos pais na educação dos filhos. Além das duas últimas temáticas manterem relação com a família – mesmo que não tão direta -, elas também podem ser identificadas como temas que foram bastante mobilizados por setores conservadores nos últimos anos, por isso têm um papel importante na análise do conservadorismo recente e no objetivo de compreender a relação entre conservadorismo e neoliberalismo no Brasil, pois elas foram e estão sendo discutidas justamente em um momento em que o país está passando por mudanças relevantes em direção à implementação de políticas neoliberais.

7 O tema da “doutrinação marxista” aparece desde a ditadura militar em certos contextos, e o combate a essa suposta doutrinação foi o responsável pela aproximação entre o MESP e o instituto ultraliberal Millenium (MIGUEL, 2016). 3. Discursos A busca pelos discursos no site da Câmara dos Deputados ocorreu em diferentes momentos, sendo a primeira em outubro de 2017, e a última busca em setembro de 2018. Foram utilizadas as seguintes palavras-chave para a busca: “ideologia de gênero”, Lei Menino Bernardo, Lei da Palmada, 7672/2010 (referente ao PL que propunha a proibição de castigos físicos), Escola sem Partido, Estatuto da Família e Estatuto das Famílias. E os campos em que se poderia preencher a data para buscar discursos de um período específico foram deixados em branco8. No total, foram lidos e fichados 406 discursos9. Utilizou-se o software estatístico Sphinx Lexica para fichar os discursos e organizar as informações. Sobre os temas dos pronunciamentos, a divisão foi a seguinte: “ideologia de gênero” (134 pronunciamentos, correspondendo a 33%); Escola sem Partido (117 pronunciamentos, correspondendo a 28,8%); Estatuto da Família (97 pronunciamentos, correspondendo a 23,9%); Lei Menino Bernardo (63 pronunciamentos, correspondendo a 15,5%)10. Os discursos analisados foram proferidos entre 2007 e 2018, porém os três primeiros anos do período contaram com apenas cinco discursos no total. Os pronunciamentos se concentraram nos anos de 2015, 2016 e 2017, quando três das temáticas analisadas estavam sendo mais discutidas (somente os discursos sobre a Lei Menino Bernardo se concentraram antes desse período, em 2011). Sobre as posições defendidas, é possível visualizar na tabela abaixo.

8 Houve uma exceção com a palavra-chave “ideologia de gênero”, com a qual foi especificada a data inicial dos discursos a partir de 2014. A busca no site retorna seis discursos com essa palavra-chave antes de 2014. 9 No total há 439 discursos fichados, porém alguns não foram realizados por parlamentares e outros retornaram na busca, mas não se referiam a nenhuma das temáticas tratadas, por isso foram classificados como “irrelevantes” e excluídos da análise. Além disso, foram fichados apartes de deputados, que não retornam separadamente na busca realizada no site da Câmara, mas como são proferidos por outro parlamentar, eles foram fichados e contabilizados como outro discurso. 10 Cabe ressaltar que alguns discursos abordam mais de uma temática ou citam mais de uma palavra-chave, por esse motivo a soma das porcentagens não é exatamente 100%. Além disso, há discursos relacionados ao Escola sem Partido nos quais a “ideologia de gênero” é citada, por exemplo, e quando se realiza a busca no site da Câmara o mesmo discurso retorna com as duas palavras-chave. Esses discursos repetidos foram fichados apenas uma vez e como normalmente há uma temática que se destaca, eles foram classificados nessa temática, apesar de também tratarem de outra. Tabela I – Temas e posições nos discursos sobre família na Câmara dos Deputados Tema A favor Contra Não se posiciona Discussão de gênero11 56 discursos (13,8%) 133 discursos (32,8%) 217 discursos (53,4%) ESP 34 discursos (8,4%) 83 discursos (20,3%) 289 discursos (71,2%) Estatuto da Família 30 discursos (7,4%) 42 discursos (10,3%) 334 discursos (82,3%) Lei Menino Bernardo 36 discursos (8,9%) 24 discursos (5,9%) 346 discursos (85,2%) Fonte: Elaboração própria Obs.: Os dados marcados em azul representam a posição progressista no debate.

Os dados da tabela permitem a conclusão de que, no geral, as posições progressistas e conservadoras no debate foram equilibradas. Apenas nos discursos sobre “ideologia de gênero” a posição conservadora predomina. Nos debates das outras temáticas, as posições progressistas são maioria. No debate sobre o Escola sem Partido chama a atenção o fato de que foram feitos poucos discursos no plenário defendendo o projeto, em relação aos discursos contrários. Como o objetivo principal deste paper é discutir como a família foi mobilizada, apresento a seguir exemplos mais gerais. Algumas expressões utilizadas em diferentes discursos foram: “família natural”, “pilar da preservação dos valores histórico-culturais”; “família brasileira”; “família tradicional”; “família civilizada”; “família cristã”; “base da sociedade”; “célula mater”; “alicerce basilar de toda a sociedade”. Cabe observar que predomina nos discursos conservadores a ideia de que existe uma família natural, civilizada, cristã, que corresponde à ideia tradicional de família, com a heterossexualidade, monogamia, papeis de gênero tradicionais. Além disso, é comum a ideia de que a família é a base da sociedade, a instituição mais importante, e que deve ser preservada contra qualquer ameaça que venha a surgir.

11 O tema indicado para a busca dos discursos foi “ideologia de gênero”, mas como não há um projeto de lei específico sobre a temática, os discursos são pulverizados. Optei então por colocar na ficha a seguinte questão: “É contra a discussão de gênero?”, que permite observar nos discursos sobre “ideologia de gênero” se os deputados fazem parte dessa ofensiva conservadora contra a “ideologia de gênero” ou se a criticam. E também permite observar a posição de parlamentares em discursos que não necessariamente tratem de “ideologia de gênero”, mas o parlamentar deixa explícita sua posição machista ou homofóbica. Por esse motivo, há mais discursos que possuem essa resposta do que discursos que retornaram com a palavra-chave “ideologia de gênero”. Nos próximos parágrafos, discuto questões mais específicas relacionadas à mobilização da família nos discursos analisados, como a influência da religião e a defesa da autoridade familiar.

3.1 Família, conservadorismo e religião Sobre a participação de parlamentares no debate, cinco deputados/as proferiram 14 ou mais discursos sobre as temáticas. Curiosamente, os dois mais ativos/as são contrários a projetos que visavam restringir os direitos de mulheres, LGBT, professores e estudantes, o deputado Ivan Valente (PSOL/SP), com 25 discursos, e a deputada Erika Kokai (PT/DF), com 20 pronunciamentos. Logo depois, há três parlamentares ligados a religiões: o deputado evangélico Professor Victório Galli (PSC/MT), com 17 discursos; o deputado católico Flavinho (PSB/SP), com 15 pronunciamentos; e o deputado Jair Bolsonaro (PP/RJ)12, com 14 discursos, que já se identificou como catolico publicamente, mas é próximo de evangélicos e foi batizado em 2016 pelo pastor Everaldo, presidente do PSC. Em relação aos partidos dos/as parlamentares que mais participaram do debate, os principais são: PT, com 82 discursos (20,2%); PSC, com 52 (12,8%); PSOL, com 49 (12,1%); PRB, com 36 (8,9%). Cabe ressaltar que parlamentares do PT e do PSOL se pronunciaram contra o Estatuto da Família, a ofensiva contra a “ideologia de gênero”, o Escola sem Partido, e a favor da Lei Menino Bernardo. Enquanto os deputados dos outros dois partidos se posicionaram de forma inversa. É importante ressaltar, ainda, que tanto o PSC quanto o PRB são partidos controlados por líderes pentecostais (da Assembleia de Deus e da Igreja Universal do Reino de Deus, respectivamente), com uma grande presença de bispos, pastores e fieis, apesar de nem todos os integrantes desses partidos serem pentecostais (MACHADO, 2018b). Não é novidade que parlamentares de religiões organizadas são parte importante desse movimento conservador recente no Brasil. Desde 2003 os deputados evangélicos se organizam através da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), que só foi institucionalizada

12 Está indicado o partido no qual Jair Bolsonaro proferiu a maior parte dos pronunciamentos aqui analisados, mas ressalte-se que atualmente ele se encontra no PSL, e que proferiu discursos enquanto estava no PSC. em novembro de 201513. Atualmente a FPE conta com 199 deputados signatários (com alguns fora do exercício) e quatro senadores, e a maioria de seus integrantes não são evangélicos, já que, segundo o DIAP (2014), a bancada evangélica elegeu 75 deputados nas eleições de 2014. Segundo Machado (2013), os pentecostais são o grupo com maior representação na Câmara e eles têm atuado de forma ativa para impedir as iniciativas do então Governo Federal de avanços no campo dos direitos humanos direcionados às mulheres e aos homossexuais. Apesar de não serem um grupo majoritário na Câmara14, com a vitória do deputado Eduardo Cunha para a presidência daquela Casa em 2015, os evangélicos ganharam ainda mais força. No cargo, além de ter autorizado a abertura do processo de impeachment quando a bancada do PT anunciou que não o apoiaria no processo de cassação na Comissão de Ética, foi responsável por acelerar a tramitação de diversos projetos de lei conservadores. Em fevereiro de 2015, criou a comissão especial para discutir o PL 6583/2013, que estabelece o Estatuto da Família; e também criou a comissão para apreciar a PEC 171/1993 que propõe a diminuição da maioridade penal. Além disso, ele é um dos autores do PL 5069/2013, que “tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto”, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) enquanto ele era presidente da Câmara. É inegável a força simbólica de sua atuação como presidente, ilustrando a união e o poder do que tem sido chamado nos últimos anos de “Bancada BBB” – da bala, do boi, e da bíblia, como referência aos armamentistas, ruralistas e religiosos. Além disso, Machado (2018b) acrescenta que católicos da Renovação Carismática também o apoiaram, e nos meses seguintes ocorreu uma intensa aliança entre católicos e evangélicos contra o movimento LGBT, e em direção a um discurso que incorporou argumentos da psicologia, biomedicina, antropologia e uma visão própria dos Direitos Humanos. Sendo a questão da família uma pauta central para os evangélicos, entrevistas de Machado (2013, p. 52) com líderes pentecostais indicam que eles acreditam que “o

13 Para que seja criada uma Frente é necessário que um terço dos membros do Poder Legislativo a componham. Até esse período, então, parlamentares evangélicos se organizavam estrategicamente, se denominando de frente, porém não eram oficialmente uma frente parlamentar. 14 Inclusive, levando-se em consideração a porcentagem de evangélicos no Brasil atualmente (em 2010, 22% se declararam evangélicos), eles estariam sub-representados (MACHADO, 2018b). fenômeno da globalização incrementou as ameaças à família tradicional cristã e, consequentemente, amplificou os riscos de desestruturação moral da sociedade brasileira como um todo”, sendo assim, sua participação na política seria uma forma de enfrentamento nessa batalha espiritual que se localiza não só no nível local, mas também mundial. É possível perceber que a religião exerce uma influência relevante no debate, e foi mobilizada em 18% dos discursos (73). Nos trechos a seguir é possível observar como as crenças religiosas aparecem. Em todos os trechos o grifo é nosso. E se querem nos chamar de conservadores, porque nós temos a Bíblia como regra de fé, então somos. Não há nenhum constrangimento de assumirmos o que somos. (...) Como Jesus, amamos a todas as pessoas, mas, às vezes, se a prática, o comportamento dessas pessoas não se harmoniza com a Bíblia, repelimos o comportamento. Logo, não somos homofóbicos porque não temos nenhum preconceito contra homossexuais. (Deputado João Campos (PSDB/GO), 19 jul. 2010).

"O divórcio leva à destruição da família; a liberdade sexual leva à promiscuidade; a contracepção é contrária ao surgimento de uma nova vida; a esterilização seca a fonte da vida; o aborto destrói uma vida; a pornografia arruína o ser humano; a fecundação artificial significa fazer filho sem o ato do amor. Tudo isso é contrário à vontade de Deus. Só o casamento monogâmico entre um homem e uma mulher preserva e dará continuidade à procriação. (Deputado João Campos (PSDB/GO), 28 mar. 2011).

Tenho certeza absoluta, como representante dos bons princípios defendidos pela Igreja Católica Apostólica Romana, que a maioria absoluta da população do País é favorável à família, que é a base da sociedade, nos moldes tradicionais, de acordo com a própria Constituição. Esta é a posição da Igreja. Precisamos de famílias equilibradas, para termos uma sociedade mais fraterna e feliz, de acordo com os ensinos do cristianismo. Outros moldes ou formatos familiares propostos afrontam os ensinos tradicionais da Santa Igreja e, no meu entender, da maioria do povo brasileiro. (Deputado Givaldo Carimbão (PROS/AL), 20 fev. 2014).

A modernidade, entretanto, pode caminhar paralelamente, mas jamais jogará por terra o núcleo familiar composto por homem e mulher, conceito que precisa ser preservado, tomando por base principalmente a origem do ser humano, a partir da criação divina. (Deputado Vinicius Carvalho (PRB/SP), 21 maio 2015).

A possibilidade de definição de sexo, dessa forma, pode determinar o fim da família, conforme defendido na Bíblia, e defendido por todos os que acreditam em um Criador superior e na perfeição de sua criação. (Deputado Carlos Andrade (PHS/RR), 3 set. 2015).

Os ideólogos de agora precisam atacar as religiões para que consigam dominar as almas que as igrejas protegem. Por isso, as religiões, particularmente as evangélicas, são alvos preferenciais. Eles sabem que as religiões criam um círculo de valor e autoridade fora do alcance do poder do Estado. (Deputado Antonio Bulhões (PRB/SP), 4 nov. 2015).

A natureza é sábia e a criação, divina. Se ser homem ou ser mulher são papéis que cada um representa como quer, por que os seres humanos foram criados diferentes? Poderiam ser hermafroditas. Assim cada um escolheria. (Deputado Jefferson Campos (PSD/SP), 3 mar. 2016).

[N]ão combato e nunca combati pessoas, mas suas ideologias que visam dividir a sociedade e acabar com princípios e valores cristãos que trazem ordem e progresso ao nosso País. (Deputado Professor Victório Galli (PSC/MT), 9 mar. 2016).

Nós não podemos deixar nem podemos aceitar ou compactuar com que tal política, com que tal ideologia, permaneça nas escolas, fazendo com que a educação dos filhos que geramos, por quem zelamos, de quem cuidamos, que amamos e educamos seja distorcida por uma ideologia de gênero diferente daquilo que cremos, aceitamos e sabemos que é justo, certo e bom diante dos olhos de Deus. (Deputado Lincoln Portela (PR/CE), 24 out. 2017).

Na educação, o intuito é desconstruir valores familiares, morais e religiosos, colocando a criança em conflito com sua realidade, para provocar no núcleo familiar uma guerra de valores. Esta minoria, com toda a certeza, é adepta da teoria da desconstrução, teoria esta de que todos precisamos ter o mínimo de conhecimento e o máximo cuidado, porque ela pretende desconstruir a Fé, Deus, a sexualidade e, consequentemente, a sociedade. (Deputado Vinicius Carvalho (PRB/SP), 13 mar. 2018).

[Q]uase 98% do povo brasileiro é cristão, e todo cristão acredita em Deus, na família e na vida. (...) Afinal de contas, todos sabem que a criança, o menino ou a menina, adquire a educação intelectual nos bancos da escola, mas a educação de vida, de orientação para o futuro, está na Bíblia. (Deputado Silas Câmara (PRB/AM), 17 maio 2018).

Em alguns discursos aparece a ideia de que a religião teria a função de proteger a sociedade, de preservar os valores e tradições que o Estado estaria tentando destruir ao interferir em assuntos que seriam privados, como a forma que os pais educam os filhos ou a sexualidade. Além disso, é possível observar que para alguns deputados a preservação da família tradicional é totalmente compatível com os preceitos cristãos e essencial para que eles permaneçam. Isso ocorre, em parte, porque uma questão cara para a maioria das religiões é a reprodução, e na visão desses parlamentares conservadores a única possibilidade aceitável para as pessoas terem filhos é que elas formem um casal heterossexual. Outro argumento trazido nos discursos é que a maior parte da população brasileira é cristã e, dessa forma, seriam automaticamente favoráveis à família que eles defendem. Porém, não entra nos discursos o fato de que na realidade os arranjos familiares no Brasil são cada vez mais plurais, e que, além disso, o fato de as pessoas serem de uma religião específica não significa necessariamente que elas sigam todas as orientações de seus líderes. O caso do aborto é bastante ilustrativo dessa questão. A Pesquisa Nacional do Aborto mostra que as mulheres que realizaram aborto são mulheres comuns, e de todas as religiões (também sem religião) (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017). Outra questão que aparece é a da natureza. Uma família formada por um homem, uma mulher e seus filhos é o natural e condizente com a vontade divina na visão desses parlamentares. Além disso, a natureza também seria a responsável pelos supostos atributos diferentes dos homens e mulheres. De acordo com essa ideia, as desigualdades entre os sexos são naturais, a responsabilização das mulheres pelo cuidado e serviços domésticos também adviria da natureza, e a divisão sexual do trabalho seria o correto e natural. Biroli (2016) argumenta que a divisão sexual do trabalho possui um papel fundamental na construção do gênero. Para a autora, as diferenças se definem em termos de privilégios e vantagens, como consequência, não seria uma questão identitária, mas de posições que adquirem sentido em hierarquias. O exemplo de Biroli (2016) se relaciona ao cuidado diferenciado com as crianças. Ela explica que não é a gestação ou a relação amorosa que coloca a mulher na situação de principal responsável, mas a atribuição dessas responsabilidades em relações hierárquicas. Apesar dessa responsabilização ser apresentada como consequência natural, não indica que as relações de autoridade não existam, apenas que não se definem de forma aberta como controle sobre as atividades e tempo das mulheres.

3.2 Autoridade familiar x Interferência do Estado Pela forma como a sociedade se organiza atualmente, a família é uma instituição estruturante, quase a totalidade da população inicia a sua vida dentro de uma família – por mais que as famílias sejam as mais diferentes possíveis. Então mobilizar a família é um argumento forte contra outras pautas. Essa “defesa da família” se ancora em dois pontos: na preservação da família “tradicional”, ou seja, heterossexual e patriarcal; e na salvaguarda da autoridade dos pais sobre os filhos. Se na seção anterior ficou clara a defesa da família tradicional nos discursos, a seguir é possível observar a defesa da autoridade familiar e a crítica à “interferência” do Estado nos discursos.

O que não é admissível, Sr. Presidente, é que o Estado interfira no que se passa dentro das famílias, como um pai deve ou não educar seu filho. (Deputado Jair Bolsonaro (PP/RJ), 7 fev. 2012).

[S]ou contra a chamada Lei da Palmada, pelo disposto com que, mesmo involuntariamente, reprime um dos alicerces da estrutura familiar: os meios com que pais e mães contam na educação dos filhos, para dotá-los da consciência da responsabilidade, da disciplina, do dever, do direito alheio, do respeito para com o próximo. Sem eles, coíbe-se perigosamente a autoridade materna e paterna. (Deputado Zequinha Maria (PSC/PA), 20 mar. 2012).

Preocupa-me o projeto da Lei da Palmada não apenas porque nós conservadores sabemos que o espaço familiar deve ser preservado como o último refúgio das pessoas para proteção; preocupa-me principalmente porque a história ensina que a interferência na vida privada é sempre uma estratégia política do totalitarismo. (Deputado Antonio Bulhões (PRB/SP), 3 dez. 2013).

Querem enfraquecer a autoridade paternal para que a família seja cada vez mais desestruturada. Isso, dentro dos bons princípios ideológicos materialistas, ateístas, fundamentados na filosofia - se assim posso falar - gramiscista, de Antonio Gramsci, que foi operacionalizada, para quem não sabe, por Louis Althusser, num documento ou num livro intitulado Os Aparelhos Ideológicos do Estado, cujos fundamentos estão todos colocados no PNDH3, o Plano Nacional de Direitos Humanos, na sua terceira versão, que é o catecismo, que é o manual da desconstrução da família, da Igreja, da liberdade pessoal, da liberdade coletiva, enfim, de todas as liberdades de que nós já desfrutamos no Brasil e que estão garantidas na nossa Constituição. (Deputado Arolde de Oliveira (PSD/RJ), 28 maio 2014).

[A] ideologia de gênero, que, em nome de um suposto combate à discriminação, na verdade é uma tentativa antidemocrática de fazer o Estado árbitro final de uma questão moral e comportamental de âmbito sexual. (Deputado Alan Rick (PRB/AC), 5 mar. 2015).

Fruto da nova realidade que a todos nos diz respeito, mães e pais renunciaram pouco a pouco ao que lhes toca na criação dos filhos, abriram mão da autoridade que lhes é inerente e delegaram a outras instituições - à escola, sobretudo - responsabilidades e deveres que são intransferíveis. (Deputado Zequinha Maria (PSC/PA), 20 mar. 2012).

O papel da família no desenvolvimento de cada indivíduo é de fundamental importância. É no seio familiar que são transmitidos os valores morais e sociais que servirão de base para o processo de socialização da criança, bem como as tradições e os costumes perpetuados através de gerações. (Deputado Vinicius Carvalho (PRB/SP), 21 maio 2015).

A ideologia de gênero tem raiz marxista, na agenda cultural que visa desconstruir a família, retirando a autoridade dos pais sobre os filhos na sua formação sexual e dando ao Estado ou ao Governo a autoridade de decidir qual será o destino de nossas crianças. (Deputado Stefano Aguiar (PSB/MG), 23 jun. 2015).

São livros que "ensinam" às crianças que não há modelo padrão de família e que o casamento é a união de "duas pessoas", independentemente do gênero. Os livros corrompem pela ideologia de gênero. Quem defenderá as famílias da afronta governamental? (Deputado Elizeu Dionizio (PSDB/MS), 3 fev. 2016).

A família tem a primazia na formação moral dos filhos porque o Código Civil e o Código Penal determinam que é dever da família • não dos professores, nem de líderes de movimentos sociais, nem de artistas •, repito, é dever da família prestar sustento material e moral aos filhos. Se a família tem o ônus de suportar as consequências dos atos de seus filhos, é natural que tenha a primazia em sua formação moral. (Deputado Alan Rick (PRB/AC), 4 fev. 2016).

O setor mais radical da esquerda está preparando o que parece ser o assalto final para a desconstrução dos valores e das instituições democráticas do Estado, processo lento e gradual, mas determinado, rumo a um sistema de Governo populista autoritário, até a consumação de um Estado socialista-marxista, com a supressão das liberdades e dos direitos democráticos. (Deputado Arolde de Oliveira (PSC/RJ), 16 abr. 2016).

Nós conhecemos a máxima de Lenin de que não se tomem quartéis, mas sim escolas. Eles agora estão mostrando realmente a que vieram, estão ocupando escolas e, lá dentro, um verdadeiro bunker, estão promovendo o desrespeito à constituição, o desrespeito à família, baseado na ideologia de gênero. (Deputado Jair Bolsonaro (PSC/RJ), 18 out. 2016).

[Os professores] não podem fazer uso do direito de cátedra para massacrar, para espezinhar e para arrebentar as famílias brasileiras obrigando os seus filhos a se tornarem aquilo que jamais gostariam de ser. (Deputado Lincoln Portela (PRB/MG), 10 ago. 2017).

[Q]uem educa somos nós, a família brasileira. Nós temos o papel de educar. A escola tem o papel de ensinar, de levar o conhecimento, de mostrar para as crianças como se faz um cálculo, como se lê um livro. (Deputada Geovania de Sá (PSDB/SC), 13 set. 2017).

A transmissão de valores morais é uma prerrogativa da família. (...) De acordo com o Pacto de San Jose de Costa Rica, os pais têm o direito primordial na educação dos filhos de princípios morais e religiosos. (Deputado Lincoln Portela (PRB/MG), 24 out. 2017).

Os trechos de discursos indicam que existe no debate uma tentativa de fortalecer as famílias e crenças religiosas e conservadoras em detrimento de ações estatais que visem combater as desigualdades de gênero. Fica aparente em alguns discursos que entre a escola e a família, quem tem a autoridade é a segunda. É como se os filhos fossem propriedades dos pais e estes pudessem decidir tudo sobre suas vidas. E à sociedade e ao Estado não caberia nenhuma responsabilidade sobre a educação das crianças. É possível observar nesses discursos a defesa da separação entre as esferas pública e privada. Os deputados argumentam que o Estado não deve interferir no âmbito privado – na visão deles, deve-se permitir aos pais educarem os filhos com os meios que desejarem (discursos sobre Lei Menino Bernardo); e discutir questões de gênero e sexualidade nas escolas corresponderia a uma interferência indevida do Estado na vida das famílias, pois seriam questões que apenas os pais poderiam influenciar os filhos. Biroli (2014) explica que o ideal da família moderna se define juntamente a outros dois ideais, o da maternidade e o da privacidade. O ideal familiar que surge na modernidade, diz a autora, é o da família burguesa, no qual os papeis são definidos segundo o sexo, cabendo às mulheres o cuidado com os filhos; e no qual o espaço privado da vida familiar passa a ser valorizado e demarcado por uma fronteira mais nítida com o mundo exterior. Porém, segundo a autora, essa privacidade que se forma serve para proteger “a família” como entidade, e não seus membros, o que faz com que mulheres e crianças sejam vítimas de violência física e simbólica sem que haja consequências para os agressores. Para Cohen (2012), quando o privado equivale ao lar na doutrina liberal, este seria marcado pela dependência e hierarquia, e não pela ideia de indivíduos autônomos com direitos iguais. Nos últimos anos, no Brasil, estava-se caminhando em direção à proteção dos indivíduos nas famílias, a Lei Maria da Penha e a Lei Menino Bernardo vão na direção de afirmar que o direito à privacidade não abarca tudo e que a violência no espaço familiar é crime. Porém, iniciativas como o Estatuto da Família e o Escola sem Partido, apesar de não alterarem essas legislações, vão na direção contrária, afirmando o poder familiar em detrimento dos direitos dos indivíduos. Também há nos discursos uma espécie de teoria da conspiração indicando que os marxistas/comunistas pretendem “tomar as escolas”, implantar a “ideologia de gênero” e, consequentemente, destruir as famílias. Causa um pouco de surpresa discursos como esses. Essa ligação entre a “ideologia de gênero” e o marxismo pode ter sua origem no livro The Gender Agenda: Redefining Equality. Após ter participado das duas Conferências Internacionais da ONU, sobre População e Desenvolvimento no Cairo (1994), e da Mulher em Pequim (1995), a católica Dale O´Leary lançou esse livro em 1997 nos Estados Unidos, onde estabelece uma associação entre gênero, marxismo, ateísmo e a “visão construcionista” (MACHADO, 2018a). Após essa obra inaugural, outros documentos foram escritos pela Igreja Católica acusando a “ideologia de gênero” de destruir a família. Outra questão que aparece nos discursos é a de que os pais estão renunciando à responsabilidade na criação de seus filhos, abrindo mão de sua autoridade e relegando-a à escola. É um dos únicos discursos que trata da dificuldade que as famílias têm para se responsabilizar sozinha pela criação dos filhos, apesar de o deputado não tratar a questão de forma crítica, mas censurando esses pais que não conseguiriam cuidar de forma adequada das crianças. Brenner (2015) aponta para o fato de que um dos pontos mais vulneráveis do capitalismo atualmente, e que está sendo mobilizado pelos conservadores, é a ansiedade em relação a como as pessoas irão cuidar de si mesmas, dos outros, dos idosos, dos seus filhos, e o preço que têm que pagar por isso. Para a autora, as famílias estão mais sobrecarregadas e mais isoladas de outras fontes de apoio. Como exemplo, ela traz os ataques à seguridade social e à educação – únicas instituições remanescentes que expressam alguma responsabilidade social pelos idosos e crianças.

4. Conexões com o neoliberalismo Como apresentado na introdução, parto do pressuposto de que o Brasil vem enfrentando um fortalecimento do conservadorismo que ocorre paralelamente à implementação de políticas neoliberais. O fato de a candidatura de Jair Bolsonaro à presidência nas eleições de 2018 ser, até o momento de escrita deste paper, a primeira colocada nas pesquisas é ilustrativa do argumento de que há uma conexão entre o conservadorismo e o neoliberalismo que precisa ser melhor compreendida no contexto atual brasileiro e que parece ter uma aceitação de parcela significativa do eleitorado brasileiro15. Como se sabe, Bolsonaro enfatiza há muitos anos suas posições contrárias aos direitos das mulheres, da população LGBT e de negros. Suas posições econômicas, por outro lado, não tinham tanta clareza e iam na direção de uma visão mais estatizante e nacionalista, até o anúncio de Paulo Guedes como coordenador do programa econômico do candidato. Guedes é economista, com doutorado na Universidade de Chicago – conhecida como um dos berços do neoliberalismo -, e um dos fundadores do banco Pactual e do Grupo BR Investimentos, e aberto defensor de privatizações e do Teto dos Gastos (AYRES, 2018). Uma das medidas propostas por Guedes que ilustra sua posição econômica é a de mudar as regras do imposto de renda, passando a cobrar a alíquota única de 20% para todas as pessoas físicas e jurídicas (BERGAMO, 2018), o que penaliza desproporcionalmente os mais pobres ao mesmo tempo em que beneficia os mais ricos, tornando o sistema tributário brasileiro ainda mais regressivo.

15 Não é possível afirmar com certeza os motivos que levam os eleitores de Bolsonaro a manterem seu apoio. Pode ser que a defesa de políticas neoliberais não seja apoiada pela maioria desses eleitores, mas o fato é que o candidato do PSL não tem escondido as propostos econômicas elaboradas por Paulo Guedes. Tratando do contexto estadunidense dos anos 1970, Petchesky (1981) argumenta que a mobilização de questões reprodutivas e sexuais foi o que deu legitimidade ideológica e coerência organizacional à Nova Direita dos Estados Unidos no contexto da eleição de Ronald Reagan. O novo, para a autora, era justamente a tendência a localizar questões de sexualidade, reprodução e família no centro de seu programa político, não apenas com objetivo retórico de manipulação, mas como o centro de uma política voltada para mobilizar uma massa de seguidores. As políticas antiaborto e antifeminismo, então, se tornaram, na visão da autora, um veículo central para a direita conquistar o poder no final dos anos 1970 e nas eleições de 1980. No Brasil, como discuti nas seções anteriores, o combate às discussões de gênero esteve relacionado ao processo de afastamento da presidenta Dilma Rousseff, é mobilizado por Bolsonaro desde 2011 e tem se intensificado na década de 2010 - não só no Brasil. Graff (2016) explica que na Polônia a campanha antigênero entre 2012 e 2014 e o pânico moral provocado levaram a direita a vencer em 2015, ocasionando a entrada no governo de importantes atores dessa cruzada antigênero. Desde então, diz a autora, essa ameaça relacionada ao gênero tem sido substituída pela dos refugiados de países muçulmanos. Para ela, então, a cruzada contra o gênero foi o início do autoritarismo e continua sendo utilizada para esse fim. Ou seja, a “ideologia de gênero” é mobilizada por políticos de direita como justificativa para o desmantelamento das instituições democráticas, e para mudar os currículos escolares. Algo semelhante é observado no contexto brasileiro. É importante observar com cuidado o que esses discursos parlamentares que mobilizam a família realmente estão defendendo e como se relacionam com o neoliberalismo, pois há análises discrepantes sobre a possível relação entre o combate à “ideologia de gênero” e o neoliberalismo. Há interpretações que associam o combate à “ideologia de gênero” com um aprofundamento de políticas neoliberais. E há outras análises que vão em outra direção. Weronika Grzebalska, Eszter Kováts e Andrea Pető (2017), ao tratarem do caso americano e europeu, argumentam que a ordem democrática neoliberal globalizada está em crise16 e passando por um período de transição

16 Cabe ressaltar que é possível existir uma rejeição a uma certa ordem liberal (como as autoras apontam) e o predomínio ou convergência para a racionalidade neoliberal, como defendido por Brown (2015) e outros autores. Sendo assim, é necessário compreender que o neoliberalismo como uma racionalidade abrangente caracterizado pelo iliberalismo (illiberalism) – um sistema que repousa na rejeição do liberalismo cívico (freios e contrapesos e liberdades civis) e enfraquece a democracia. As autoras introduzem a metáfora do gênero como uma “cola simbólica” (symbolic glue) que, segundo elas, permitiu convencer/mobilizar tantas pessoas ao redor do mundo em torno dessa temática. Para Grzebalska, Kováts e Pető (2017), isso foi realizado de diferentes formas: I) Primeiro, pela construção de uma dinâmica onde “gênero” é percebido como um conceito ameaçador dentro do qual a direita uniu diferentes aspectos em oposição à agenda progressista com um só guarda-chuva que passou a ser chamado de “ideologia de gênero”. O termo abarcaria, segundo as autoras, desde um meio de rejeitar diferentes aspectos de ordem socioeconômica à influência das instituições transnacionais e da economia global em estados-nação, além da rejeição da priorização das políticas identitárias em detrimento das materiais. II) Segundo, a demonização da “ideologia de gênero” se tornou uma chave retórica na construção de um consenso sobre o que é normal e legítimo. III) Por último, a oposição às “políticas de gênero” e ao “Marxismo cultural” permitiu que a direita criasse uma ampla aliança e unisse vários atores que não cooperavam entre si no passado. No caso brasileiro, também é possível observar alianças entre amplos setores da direita. No processo do Golpe parlamentar isso ficou muito claro, com a união do mercado financeiro, dos evangélicos, dos empresários etc. contra a permanência de Dilma Rousseff na presidência. Na Câmara dos Deputados também é possível observar essa articulação, e o combate à “ideologia de gênero” e à “doutrinação marxista” seriam pontos importantes nesse movimento. Lacerda (2018) investigou iniciativas legislativas e discursos de deputados na Câmara sobre diferentes temáticas que caracterizariam o neoconservadorismo norte- americano, buscando compreender se aqui também existe um neoconservadorismo. Primeiro, a autora identificou uma reação pró-família na Casa que seria protagonizada por homens, principalmente dos partidos PSC e PV, e na qual mais de 60% dos atores são evangélicos e mais de 25%, católicos. A partir da identificação desses atores, Lacerda (2018) observa como eles se comportaram em outras pautas relacionadas ao punitivismo, ao sionismo, ao bolivarianismo e ao neoliberalismo.

pode entrar em conflito com premissas do liberalismo em contextos anteriores, mas isso não significa necessariamente que ele esteja em crise. Em relação ao neoliberalismo, a autora argumenta que no Brasil os deputados não defendem abertamente o neoliberalismo ou se dizem favoráveis ao Consenso de Washington. Por isso, para identificar o apoio a políticas neoliberais ou ao Estado de Bem-Estar Social é preciso observar como os parlamentares se comportam em votações de projetos que seriam “ideologicamente polarizados em relação ao tema” (LACERDA, 2018, p. 167). Para a autora, o governo Temer tem uma feição neoliberal muito clara que se refletiu em propostos que foram colocadas em pauta na Câmara, e ela se detém na análise da redução da participação da Petrobrás no pré-sal, no corte de gastos públicos e na reforma trabalhista. Foram escolhidas essas três propostas pela autora porque elas já foram votadas no plenário, o que permite a observação dos votos de cada parlamentar individualmente; e porque elas atendem aos fundamentos da cartilha neoliberal expressos no Consenso de Washington, no fim dos anos 1980. Sobre a alteração da participação da Petrobrás na exploração do pré-sal, Lacerda (2018) explica que em 2015 o senador José Serra (PSDB/SP) propôs o PLS 131/2015 (PL 4567/2016 e Lei 13365/2016). Dos 39 evangélicos presentes na votação, 38 votaram a favor do PL. Da seleção feita pela autora dos deputados neoconservadores, nove estiveram na votação e todos votaram a favor. Sobre o teto dos gastos públicos (PEC 241/2016, PEC 55/2016, Emenda Constitucional 95/2016), 89% dos evangélicos votaram a favor na votação ocorrida na Câmara, enquanto 76% do quórum também apoiou. Na votação compareceram 11 deputados identificados pela autora como neoconservadores, todos votaram a favor. Sobre a reforma trabalhista, 63% dos evangélicos votaram sim, enquanto 62,5% do quórum também o fez. Indicando que o fato de serem evangélicos não fez diferença no posicionamento. Doze parlamentares identificados como neoconservadores estiveram presentes na votação, 75% votaram a favor. (LACERDA, 2018). A pesquisa de Lacerda (2018) demonstra que na Câmara há uma coincidência entre defender valores familiares e apoiar medidas neoliberais. Porém, apesar de apoiarem essas medidas, os parlamentares não expõem isso de forma muito aberta em suas falas. Nos discursos analisados, é possível observar a associação entre conservadorismo e neoliberalismo apenas nos pronunciamentos de deputados progressistas, como é possível observar nos exemplos a seguir: O Brasil é um país capitalista e vive um momento de onda conservadora, com o retorno de projetos e debates como a redução da maioridade penal, o debate do Estatuto da Família que estabelece Família é formada apenas por homem e mulher, um assunto que o Estado não deveria legislar, o projeto da terceirização que escancara as terceirizações, tornando ainda mais precárias as relações de trabalho, a retirada de direitos sociais conquistados historicamente. (Deputado Ivan Valente (PSOL/SP), 21 maio 2015).

[A] Direita neoliberal, essa representada pelo DEM, pelo PSDB, pelo partido golpista e corrupto por excelência, o PMDB, e pelo PPS, fala em acabar com a gratuidade do ensino, e os fundamentalistas e fascistas querem ressuscitar o velho macarthismo nas escolas, com um projeto cinicamente batizado de "escola sem partido", como se os proponentes desse projeto não tivessem partido. (Deputada Alice Portugal (PCdoB/BA), 12 set. 2016).

Este Governo tem um tripé: a retirada de direitos de trabalhadores para pagar a conta dos fundamentalistas patrimonialistas que o apoiaram; outra parte desse tripé significa blindar o Governo contra qualquer investigação da Operação Lava-Jato ou de qualquer outra que seja; e o terceiro aspecto diz respeito à venda da Nação - estão querendo derreter esta Nação. (Deputada Erika Kokai (PT/DF), 9 fev. 2017).

É assim que se conta o tempo sob um governo golpista, um tempo de retrocesso político, social e econômico. Ao congelamento, por 20 anos dos investimentos em saúde e educação, seguiram-se, neste ano, a aprovação do trabalho terceirizado para atividades-fins, a extinção dos direitos trabalhistas e a entrega do pré-sal às petroleiras internacionais. Citei aqui os retrocessos mais marcantes. Mas, em meio a esses, temos o desmonte das políticas de igualdade racial e de gênero, o desmonte do SUS e das universidades públicas e implantação da famigerada "escola sem partido". Na realidade, a imposição nas escolas da ideologia de um único partido, a ideologia de direita. (Deputada Benedita da Silva (PT/RJ), 16 dez. 2017).

Nessas falas, parlamentares contrários aos projetos Escola sem Partido e ao Estatuto da Família associam essas iniciativas conservadoras às medidas neoliberais implementadas pelo governo Temer. Em relação aos parlamentares conservadores, além deles apoiarem as medidas neoliberais, como mostrado por Lacerda (2018), é possível argumentar que a forma com que esses parlamentares defendem a família em seus discursos está de acordo com a racionalidade neoliberal17, pois eles estão contribuindo para reforçar a responsabilização das famílias. Então, mesmo que o discurso neoliberal

17 Brown (2015) argumenta que o neoliberalismo é mais conhecido como promulgando um conjunto de políticas econômicas relativas ao princípio do livre mercado. Isso inclui desregulação das indústrias e dos fluxos de capital; redução radical das provisões do Estado de Bem-Estar Social e proteções para os vulneráveis; privatização e terceirização dos bens públicos; substituição de impostos progressivos por regressivos; fim da distribuição de renda como políticas econômica e social; conversão de todo desejo ou necessidade humana em uma empresa rentável; e, mais recentemente, financeirização de tudo e aumento do domínio do capital financeiro sobre o produtivo nas dinâmicas da economia e da vida cotidiana. Porém, ao invés de compreender o neoliberalismo como uma série de políticas estatais, uma fase do capitalismo, ou uma ideologia que liberou o mercado para restaurar os lucros para a classe capitalista, a autora explica que se junta a Michel Foucault e outros para conceituar o neoliberalismo como uma ordem de razão normativa que, quando se torna ascendente, toma a forma de uma racionalidade governamental levando uma formulação específica dos valores econômicos, práticas e métricas a todas as dimensões da vida humana. não seja defendido abertamente no debate sobre família, as ausências que se observam e seu enquadramento permitem a suposição de que a racionalidade neoliberal atravesse essa discussão. Esse discurso conservador contribui para mobilizar a população e contribui para atrair a atenção para certas temáticas e retirar o enfoque de outras. Há muitos autores que argumentam que os discursos morais têm essa função. Mas Cooper (2017) argumenta que não é só isso. As disputas em torno das famílias têm consequências para além das estratégias discursivas e de mobilização da base de eleitores. Os papeis sexuais tradicionais são parte muito importante da argumentação de parlamentares conservadores. As mulheres desempenham papeis essenciais em sociedades nas quais as famílias são privatizadas. Elas fornecem o trabalho de cuidado (que abarca o cuidado de crianças, idosos e doentes; o preparo dos alimentos; a limpeza da casa; a lavagem da roupa) que não é remunerado dentro das famílias. Com o neoliberalismo, esses serviços são oferecidos cada vez menos pelo Estado, fazendo com que as famílias tenham que desempenhá-los sozinhas ou paguem por esses serviços no mercado ou contratem pessoas – principalmente mulheres – que irão desempenhar esse trabalho nas casas dos outros – deixando, muitas vezes, suas próprias famílias e filhos sem cuidado. Brown (2015) busca discutir se a subordinação de gênero é intensificada ou fundamentalmente alterada pelo neoliberalismo. A autora argumenta que sim, há intensificação e alteração das desigualdades de gênero. A intensificação ocorre através do encolhimento, privatização e/ou desmantelamento da infraestrutura pública de suporte às famílias, crianças e aposentados. Tal infraestrutura inclui escolas, transporte público, programas de qualidade na primeira infância e após a escola, educação, pensões públicas, parques nas vizinhanças, segurança social etc. Quando essas provisões públicas são eliminadas ou privatizadas, o trabalho e/ou custo de fornecê-las é retornado para os indivíduos, desproporcionalmente para as mulheres. Dessa forma, a “responsabilização” em um contexto de privatização de bens públicos penaliza as mulheres na medida em que elas continuam desproporcionalmente responsáveis por aqueles que não podem se responsabilizar por si mesmos. Nesse sentido, o familismo é um requisito essencial, mais do que uma característica incidental, da privatização neoliberal dos bens e serviços públicos. (BROWN, 2015).

5. Considerações finais O discurso a favor da família tradicional – contra a “ideologia de gênero” e a favor do Estatuto da Família, concomitante ao discurso a favor da autoridade familiar – contra a Lei Menino Bernardo e a favor do Escola sem Partido, contribuem para a ideologia de privatização e responsabilização das famílias numa lógica de cada vez menos recursos que facilitem as vidas das famílias, e restringem o debate à definição do conceito de família, não dando lugar para a discussão sobre as dificuldades que as famílias enfrentam quando elas são as principais responsáveis pela reprodução da vida em um contexto neoliberal. A suposta defesa da família não está preocupada com a vida das famílias. É necessário investigar com maior profundidade as ligações entre grupos conservadores e neoliberais no contexto brasileiro atual. Apesar de o contexto norte- americano dos anos 1970 ser muito diferente do Brasil atual, talvez existam pistas sobre aquela situação que possam nos ajudar a compreender a nossa situação. Petchesky (1981) argumenta que a política da Nova Direita nos EUA buscou legitimidade desde um núcleo ideológico comum, a ideia de privatização; e o impulso da privatização interferia em duas direções inter-relacionadas: contra o bem-estar social e os pobres; e contra o feminismo e as mulheres. O programa da Nova Direita apelava para a perda de controle do que era considerado o mais “privado”, o mais “pessoal” - e a autora diz que essa ideologia da “privacidade” era patriarcal, racista e capitalista, pois historicamente abarcou o direito dos homens controlarem suas esposas, filhos, escravos e os corpos destes, além dos direitos de propriedade e do livre mercado. No Brasil, o discurso favorável ao neoliberalismo parece não ser colocado abertamente – talvez porque pesquisas têm mostrado que mesmo as pessoas que têm sido identificadas como conservadoras, por terem apoiado o impeachment, por exemplo, defendem majoritariamente que o Estado deve fornecer serviços de saúde e educação para todos (SOLANO, 2018). Porém, o discurso conservador no campo dos direitos parece estar sendo colocado com cada vez menos timidez, e ele se assemelha ao que Petchesky (1981) observava nos Estados Unidos dos anos 1970 e 1980, com a ideia do “privado” e da “privatização” como centrais.

Referências bibliográficas

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