Universidade do Estado do Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Guilherme Esteves Galvão Lopes

Evangélicos, mídia e poder: análise da atuação parlamentar na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988)

Rio de Janeiro 2017

Guilherme Esteves Galvão Lopes

Evangélicos, mídia e poder: análise da atuação parlamentar na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política.

Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho. Coorientadora: Prof.ª Dra. Lucia Maria Bastos Pereira das Neves.

Rio de Janeiro 2017

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / CCS/A

L864 Lopes, Guilherme Esteves Galvão. Evangélicos, mídia e poder: análise da atuação parlamentar na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) / Guilherme Esteves Galvão Lopes – 2017. 149 f.

Orientador: Oswaldo Munteal Filho. Coorientadora: Lucia Maria Bastos Pereira das Neves. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Bibliografia.

1. Protestantismo – Teses. 2. Mídia e política – Teses. 3. Poder – Teses. I. Munteal Filho, Oswaldo, 1964-. II. Neves, Lucia Maria Bastos Pereira das, 1952-. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. IV. Título.

CDU 283/289

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Guilherme Esteves Galvão Lopes

Evangélicos, mídia e poder: análise da atuação parlamentar na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política.

Aprovada em 14 de dezembro de 2017. Banca examinadora:

______Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho (Orientador) Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

______Prof.ª Dra. Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

______Prof. Dr. Frederico Lustosa da Costa Universidade Federal Fluminense – UFF

Rio de Janeiro 2017 DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos meus pais Denise e Vicente, minhas irmãs Michele e Thalita, meu cunhado Alexandre, minhas sobrinhas Quézia e Keren, às minhas avós Floripes (in memorian) e Matildes, e a todos os meus tios, tias, primos, primas, no Rio de Janeiro, na figura da minha tia Deise Costa Esteves, e no Ceará, na pessoa da minha prima Tecla Lopes de Carvalho. Todas as páginas desse trabalho seriam insuficientes para citar e agradecer a todos vocês por tudo que são para mim. Pude contar com minha família em tudo, em todos os momentos. A vocês, devo tudo o que sou, minha formação, meu caráter, e muitas das características que foram necessárias em todos esses anos de estudo: dedicação, responsabilidade, persistência, esforço e renúncia. Foram muitas noites sem dormir, dores no pescoço e nos ombros, vistas embaçadas, pequenas fortunas investidas em livros e eventos acadêmicos, viagens de ônibus pela madrugada, horas e horas perdidas no trânsito da Avenida Brasil ou esperando o último trem para Japeri... No entanto, os momentos de maior complicação e cansaço foram intercalados com momentos de grande alegria: as idas pro Ceará, churrascos organizados pelo meu pai, vários frangos assados nos almoços de domingo, noites e madrugadas conversando com minhas irmãs, dias de estudo e descanso na rede à sombra da mangueira, jogos do Botafogo, feijão fresco da minha mãe, as cantorias no carro com minha prima Tecla, as aventuras da Thalita pelo exterior, banhos no Rio dos Macacos, no nosso gostoso Trapiá, as brincadeiras com a bicharada da casa (Bené, Tchutchuca, Pepê, Neném, Brigitte, Lily e Rosa). A vocês, minha família, dedico este e todos os trabalhos que virão. Vocês são meu alicerce, meu porto seguro, a razão da minha existência. Todos os títulos que vierem, dividirei com vocês, pois sem vocês eu não teria nem o primeiro. Eu não teria nem a vida.

AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus. Ele que me sustentou, me deu forças, paciência, sabedoria e persistência para prosseguir em todos os meus planos. Todas as minhas vitórias dedicarei a Ele, por toda a minha vida. Aos meus orientadores, professora Lucia Bastos e professor Oswaldo Munteal, meus amigos, mentores e incentivadores. Obrigado por tudo, meus mestres. Ao professor Leonildo Silveira Campos pela ajuda, colaboração e compreensão. A todos os amigos e amigas, antigos ou novos, de perto ou de longe, que entenderam as horas (na verdade, anos) de sacrifício pessoal, me acolheram, ouviram, ajudaram, brigaram, deram palpites, indicaram leituras, abriram portas, me inspiraram e incentivaram, incondicionalmente, cada passo que dei na minha caminhada acadêmica e profissional: Alex Vasconcelos, Luana e Samuel Braun, Gustavo Machado Rangel, Jéssica Gonzaga, Vanessa e Sidnei Menezes, Leandro Gavião, Ibis Silva Pereira, Luiz Eduardo Soares, Miriam Krenzinger, Bruno Tamancoldi, Caroline e Maicon Carreiro, Eduardo Félix, Fabiana Karine de Jesus, Thayane Neves, Lorena Matos, Ricardo Guimarães, Renata e Maria da Conceição Machado, Tamires Sol, Rosiene da Conceição Rezende, Anderson Macedo, André Luiz Guimarães Ferreira, Luiz Felipe Mendes, Carlos Dornelles Lopes Monte, Thársyla Glessa, Gabriel Gontijo, Toni Brisson, Wendel Pinheiro, Rafael Galvão, Marluce Mortoni, Estela e Denilson Santos. A todos os membros da Primeira Igreja Presbiteriana de Petrópolis, nas pessoas dos amigos João Pedrosa de Miranda e Vilma Grion e de todos os seus familiares. Aos meus colegas de trabalho do DETRAN, em especial da Divisão de Administração Geral e da 5ª CIRETRAN (Petrópolis), que compreenderam a importância dos estudos no meu crescimento e aperfeiçoamento profissional.

EPÍGRAFE

“Quando os justos governam, alegra-se o povo; mas quando o ímpio domina, o povo geme”. Provérbios 29:2

RESUMO

LOPES, Guilherme Esteves Galvão. Evangélicos, mídia e poder: análise da atuação parlamentar na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988). 2017. 149 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

O objetivo da presente pesquisa é a análise da atuação evangélica na Assembleia Nacional Constituinte, realizada entre os anos de 1987 e 1988, durante o governo José Sarney (1985-1990), com enfoque nas disputas relacionadas às mudanças legais acerca das concessões de rádio e televisão, assim como o estudo da presença evangélica no meio político brasileiro e seus vínculos com grupos e veículos de comunicação de massa.

Palavras-chave: Protestantismo. Mídia. Poder. Religião. Brasil.

ABSTRACT

LOPES, Guilherme Esteves Galvão. Evangelicals, media and power: analysis of the parliamentary performance in the National Constituent Assembly (1987-1988). 2017. 149 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

The objective of the present research is the analysis of the evangelical activity in the National Constituent Assembly, held between 1987 and 1988, during the José Sarney government (1985-1990), focusing on disputes related to legal changes regarding radio concessions and television, as well as the study of the evangelical presence in the Brazilian political environment and its links with groups and vehicles of mass communication.

Keywords: Protestantism. Media. Power. Religion. Brazil.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Missionário R. R. Soares, futuro fundador da Igreja da Graça, apresentando o programa O Despertar da Fé, da IURD, na TV Tupi...... 23

Figura 2 – Pastor Edir Macedo, fundador da Igreja Universal, em capa de LP, fotografado no estúdio do programa O Despertar da Fé, na TV Tupi...... 24

Figura 3 – Bispo Roberto McAlister, apresentando programa da Igreja de Nova Vida...... 28

Figura 4 – Pastor Nilson do Amaral Fanini, Arolde de Oliveira e o General João Figueiredo, em ato evangélico no estádio do Maracanã, nos anos 1980...... 34

Figura 5 – Rev. Erasmo Braga, precursor da Confederação Evangélica e presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil entre 1924 e 1926. 46

Figura 6 – Rev. Guaracy Silveira, com farda de capelão da Revolução Constitucionalista de 1932...... 47

Figura 7 – Cena típica nos tempos do Plano Cruzado: estabelecimento comercial fechado por prática de ágio...... 56

Figura 8 – O primeiro uso do termo bancada evangélica, na Tribuna da Imprensa, em 1986...... 59

Figura 9 – Gidel Dantas em 1981, à época presidente do DETRAN cearense...... 64

Figura 10 – Propaganda de Eunice Michiles nas eleições para o Senado em 1978...... 70

Figura 11 – Parlamentares negros de esquerda na Assembleia Nacional Constituinte: Edmilson Valentim (PC do B/RJ), Carlos Alberto Caó (PDT/RJ), Paulo Paim (PT/RJ) e Benedita da Silva (PT/RJ)...... 71

Figura 12 – O presidente da República José Sarney, o presidente do Supremo Tribunal Federal José Carlos Moreira Alves e o presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães, na instalação da Assembleia Nacional Constituinte, em 01 de fevereiro de 1987...... 76

Figura 13 – Entidades fazem entrega conjunta de emendas populares à Comissão de Sistematização da Assembleia Constituinte; listas de assinaturas de apoio de pelo menos 30 mil eleitores acompanham cada uma das propostas...... 81

Figura 14 – Deputado Matheus Iensen, autor da emenda dos 5 anos de mandata para José Sarney...... 91

Figura 15 – Partidários da emenda Matheus Iensen com as mãos abertas, em alusão aos cinco anos de mandato para José Sarney...... 94

Figura 16 – O presidente Arolde de Oliveira, o líder do PMDB Mário Covas e a relatora Cristina Tavares, durante a discussão na votação do relatório...... 109

Figura 17 – Audiência pública da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação: da direita para a esquerda, o ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães, o presidente Marcondes Gadelha e o relator Artur da Távola...... 113

Figura 18 – Sessão de promulgação da Constituição Federal de 1988...... 121

Figura 19 – O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o bispo Edir Macedo, apertando o botão que levaria ao ar a Record News, em 2007...... 137

Figura 20 – Pastor Samuel Câmara, em anúncio da Boas Novas...... 138

Figura 21 – Francisco Silva, já falecido, e seu filho Fábio Silva, deputado estadual pelo Rio de Janeiro...... 142

Figura 22 – Pastor Everaldo Pereira, liderança da Assembleia de Deus (CONAMAD), e os deputados Eduardo Cunha, Arolde de Oliveira e Sóstenes Cavalcante 144

Figura 23 – Caio Fábio, Luiz Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola, em 1998...... 145

Figura 24 – O missionário David Miranda, já falecido, pregava e transmitia seus programas de rádio de dentro de uma cabine blindada, após sofrer atentado a tiros em 1992...... 146

Figura 25 – Apóstolo Estevam Hernandes, fundador da Igreja Renascer em Cristo, na torre da Rede Gospel, na Avenida Paulista, em São Paulo...... 147

Figura 26 – O missionário R. R. Soares, em transmissão dublada em inglês de seu programa Show da Fé...... 149

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Divisão comum entre evangélicos tradicionais e pentecostais...... 21

Tabela 2 – As divisões e subdivisões do protestantismo brasileiro...... 22

Tabela 3 – Deputados federais evangélicos – Titulares e suplentes (1933-1987)...... 49

Tabela 4 – Dinâmica de funcionamento Assembleia Nacional Constituinte...... 77

Tabela 5 – Comissões e Subcomissões da Assembleia Nacional Constituinte...... 83

Tabela 6 – Produtividade evangélica na Assembleia Nacional Constituinte...... 84

Tabela 7 – Evangélicos nas Comissões Temáticas da Assembleia Nacional Constituinte...... 85

Tabela 8 – Evangélicos nas Subcomissões Temáticas da Assembleia Nacional Constituinte...... 86

Tabela 9 – Deputados evangélicos na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação...... 90

Tabela 10 – Membros titulares e suplentes da Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação por partido político...... 97

Tabela 11 – Membros titulares e suplentes da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação por partido político...... 112

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Evangélicos pentecostais e tradicionais na Câmara dos Deputados – 1933-1991...... 55

Gráfico 2 – Deputados federais eleitos por partido – 1982 e 1986...... 58

Gráfico 3 – Movimentação partidárias dos deputados federais evangélicos (titulares e suplentes) – 1986-1990...... 69

Gráfico 4 – Faixa etária dos deputados federais evangélicos – 1987-1991...... 72

Gráfico 5 – Constituintes evangélicos por igreja/denominação...... 73

Gráfico 6 – Comparação entre estados de origem e estados representados por parlamentares evangélicos – 1987-1991...... 75

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AD – Assembleia de Deus ARENA – Aliança Renovadora Nacional CBB – Convenção Batista Brasileira CBN – Convenção Batista Nacional CCB – Congregação Cristã no Brasil CEB – Confederação Evangélica do Brasil CGADB – Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil CONAMAD – Convenção Nacional das Assembleias de Deus – Ministério de Madureira CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs IASD – Igreja Adventista do Sétimo Dia IB – Igreja Batista (Convenção Batista Brasileira) IC – Igreja Congregacional ICCR – Igreja Cristã de Confissão Reformada ICE – Igreja Cristã Evangélica IDC – Igreja de Cristo IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil IEQ – Igreja do Evangelho Quadrangular IMPD – Igreja Mundial do Poder de Deus IPB – Igreja Presbiteriana do Brasil IPI – Igreja Presbiteriana Independente IPU – Igreja Presbiteriana Unida IURD – Igreja Universal do Reino de Deus LBA – Legião Brasileira de Assistência MDB – Movimento Democrático Brasileiro PCB – Partido Comunista Brasileiro PC do B – Partido Comunista do Brasil PDC – Partido Democrata Cristão PDS – Partido Democrático Social PDT – Partido Democrático Trabalhista PFL – Partido da Frente Liberal PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PP – Partido Popular (1980) PP – Partido Progressista (1993-1995) PPB – Partido Progressista Brasileiro PR – Partido da República PSB – Partido Socialista Brasileiro PSC – Partido Social Cristão PTB – Partido Trabalhista Brasileiro VINDE – Visão Nacional de Evangelização

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 15 1 EVANGÉLICOS NO BRASIL: DOS PÚLPITOS AO CONGRESSO NACIONAL...... 20 1.1 As divisões do protestantismo brasileiro...... 20 1.2 Os neopentecostais e o crescimento evangélico dos anos 1980...... 26 1.3 O rádio, instrumento de evangelização...... 30 1.4 Mídia, política a religião: o papel do rádio na formação da opinião pública...... 35 1.5 Os evangélicos e a Revolução de 1930: a Confederação Evangélica do Brasil...... 44 1.6 Os evangélicos e as relações com a ditadura militar...... 49 2 A ORGANIZAÇÃO E ATUAÇÃO DA BANCADA EVANGÉLICA NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE (1987-1988)...... 52 2.1 1986: a estratégia da Assembleia de Deus e a virada pentecostal...... 52 2.2 O impacto eleitoral do Plano Cruzado...... 55 2.3 O termo bancada evangélica...... 58 2.4 O ressurgimento da Confederação Evangélica do Brasil e os dissidentes...... 61 2.5 Análise sócio-política dos deputados evangélicos na Constituinte de 1988...... 66 2.6 O funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte e a atuação evangélica...75 3 A CONSTITUINTE DE 1988 E A EXPANSÃO DA MÍDIA EVANGÉLICA...... 88 3.1 Os evangélicos e as relações com veículos de comunicação...... 88 3.2 A distribuição de concessões de rádio e TV no governo Sarney...... 92 3.3 Os trabalhos da Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação...... 97 3.4 Os trabalhos da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação...... 112 3.5 A Constituição de 1988 e as novas regras de concessão de radiodifusão...... 119 CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 123 REFERÊNCIAS...... 129 APÊNDICE – PÓS-1988: A EXPANSÃO DA MÍDIA EVANGÉLICA BRASILEIRA E A FORMAÇÃO DAS GRANDES REDES...... 132

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INTRODUÇÃO

Em 2016, segundo pesquisa Datafolha, os evangélicos somavam 29% da população brasileira, chegando a cerca de 60 milhões de fiéis. Expressão numérica que se reflete na representação política: atualmente, 85 deputados federais e 2 senadores do Brasil são apontados como evangélicos, além de dezenas de deputados estaduais e incontáveis prefeitos e vereadores1. Nas últimas décadas, dois evangélicos disputaram eleições presidenciais, obtendo grandes votações: em 2002, Anthony Garotinho (PSB), com 15 milhões de votos. Em 2010, Marina Silva candidatou-se pelo PV, conquistando mais de 19 milhões de eleitores. Quatro anos depois, pelo PSB, recebeu 22 milhões de votos recebidos, tornando-se a personalidade evangélica mais votada da história do Brasil. O Partido Republicano Brasileiro (PRB), vinculado à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), é uma das maiores expressões da representação política evangélica. No pleito de 2016, Marcelo Crivella, sobrinho do bispo Edir Macedo com dois mandatos de senador, foi eleito em 2º turno prefeito do Rio de Janeiro pelo partido, com 1 milhão e 700 mil votos, deixando para trás Marcelo Freixo (PSOL) e Pedro Paulo (PMDB), candidato do então prefeito Eduardo Paes (PMDB), derrotado ainda no 1º turno. Aliado à representatividade política evangélica está o poder de comunicação: a segunda maior rede de TV do país em audiência e faturamento, a Record, é controlada pela IURD, ultrapassando poderosos concorrentes, como o SBT de . Figuras como Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, e Agenor Duque, da Igreja Plenitude do Trono de Deus, ocupam amplos horários alugados em inúmeros canais de TV, sendo diversos deles também integralmente arrendados. O missionário R. R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus e cunhado de Edir Macedo, possui uma operadora de TV por assinatura: a Nossa TV, que transmite via satélite a programação religiosa da Igreja da Graça, além de canais como ESPN, TCM e TNT. Nos anos 2000, Soares era apontado como o homem que mais horas por semana aparecia na

1 MÍDIA, RELIGIÃO E POLÍTICA. Composição da Bancada Evangélica. Disponível em . Acesso em 27 set. 2017. 16

TV brasileira: eram 100 horas, em programas na Bandeirantes, CNT, RedeTV! e em algumas afiliadas do SBT2. Diante deste cenário, buscamos, nesta pesquisa, compreender de que forma tudo isto começou. Assim, chegamos à Assembleia Nacional Constituinte, realizada entre 1987 e 1988, quando a atual Constituição foi redigida, enterrando a Constituição de 1967 e o entulho autoritário da ditadura militar. Foi durante a Constituinte que ambos os temas, mídia e religião, confluíram, refletindo-se na atuação política dos evangélicos e em suas relações com o poder central da Nova República. Para tanto, em primeiro lugar, compreendemos a importância de abordar as divisões e diferentes tendências do protestantismo brasileiro, sobretudo entre tradicionais e pentecostais. Em seguida, relatamos a experiência de uma nova linha, a neopentecostal, responsável pelo crescimento geométrico dos evangélicos a partir da década de 1980. O rádio, importante ferramenta de evangelização e de influência da opinião pública, também teve espaço nesta pesquisa, baseando-se na contribuição de Leonildo Silveira Campos sobre o tema. Ainda nos anos 1930, houve a primeira tentativa de uma organização que congregasse os interesses evangélicos: assim surgiu a Confederação Evangélica do Brasil (CEB), reunindo principalmente os de tendência tradicional em torno de questões sociais, políticas e educacionais. Após 1964, a CEB foi desarticulada, principalmente por seu viés progressista, em contraposição ao campo majoritário que fiou apoio ao golpe de estado. Estas questões são contempladas no primeiro capítulo, enriquecidas pelo trabalho de pioneiros na temática, como o pesquisador Paul Freston. No segundo capítulo, partimos para o período da redemocratização, mais especificamente as eleições de 1986, que elegeu os membros da Assembleia Nacional Constituinte. Neste contexto, ressaltamos o impacto do Plano Cruzado no resultado eleitoral favorável ao PMDB do presidente José Sarney, e a estratégia de algumas igrejas evangélicas, sobretudo a Assembleia de Deus, que virou a página do distanciamento, transformando os pentecostais, a partir de então, em maioria na representatividade política. No mesmo capítulo, analisamos o termo bancada evangélica, surgido neste contexto, chamando a atenção para as generalizações e fragilidades que envolvem tal tentativa de conceituação para, em seguida, abordarmos o ressurgimento da CEB, em contexto diferente de sua fundação, funcionando então como organismo de articulação política do grupo na

2 ISTOÉ GENTE. Pastor eletrônico. Disponível em . Acesso em: 27 set. 2017. 17

Constituinte. Entretanto, o alinhamento da instituição com setores conservadores da sociedade fez surgir a figura dos evangélicos dissidentes, mais próximos da esquerda e críticos do governo Sarney. Importante contribuição desta pesquisa é a análise da representação evangélica na Constituinte. Utilizando o conceito proposto por Lawrence Stone, analisamos diferentes dados e fatores socioculturais: o impacto da restrição à ordenação feminina na representatividade política; a migração interna motivada por trabalhos missionários; a influência da doutrina religiosa na filiação partidária e ideológica; o recorte etário; o processo de escolha dos candidatos por parte de suas denominações; além do uso da mídia na visibilidade e sucesso eleitoral dos parlamentares. O segundo capítulo foi concluído com a introdução ao funcionamento interno da Assembleia Nacional Constituinte, e a divisão dos evangélicos nas comissões e subcomissões. No terceiro e último capítulo, verificamos os interesses e relações dos parlamentares evangélicos com veículos de comunicação, principalmente rádio e televisão. Constatamos que tais relações contribuíram para que a atuação na Constituinte fosse preponderante na comissão e na subcomissão que tratavam da temática das comunicações. Em paralelo, ocorria a tática desenfreada de concessões de radiodifusão, promovida pelo então ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães (ACM). Acompanhamos os embates na Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, presidida pelo evangélico Arolde de Oliveira, e na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, sobretudo os que tratavam de novas políticas referentes às concessões de rádio e televisão e mecanismos de controle social sobre a área, com destaque para o polêmico Conselho Nacional de Comunicação, proposto por entidades civis e levado adiante pela relatora Cristina Tavares, da subcomissão presidida por Arolde de Oliveira. Analisamos as regras até então vigentes sobre as outorgas ou renovações de concessões e permissões de radiodifusão, muitas delas desenvolvidas no período autoritário, sendo de exclusiva prerrogativa presidencial. Na Constituição de 1988, elas passaram a ser divididas com o Congresso Nacional, que deveriam ratificar ou não tais atos do Poder Executivo, sem que fossem desenvolvidos mecanismos mais eficazes de controle social. Neste sentido, foi criado o Conselho de Comunicação Social, como mero órgão auxiliar do Congresso. Nas considerações finais, apresentamos a legislação sobre o tema após a Constituição de 1988, e como ela contribuiu para o desenvolvimento da mídia religiosa ao longo dos anos 18

1990, quando elencamos alguns dos principais grupos de comunicação ligados aos evangélicos no Brasil, estes no apêndice. Sobre sua participação na política, debatemos sobre algumas questões envolvendo os limites entre Estado e igreja, questões que, no nosso entendimento, vão além da seara política- eleitoral, abrangendo também aspectos doutrinários e teológicos, sobre os quais tratamos de forma introdutória. Diante de todo o exposto, chamamos a atenção para algumas questões. A presente pesquisa não se trata de um trabalho que pretende condenar a inserção dos evangélicos na política e sua presença na mídia. A Constituição garante em seu texto a liberdade de opinião, de expressão e de culto, sem distinções, privilégios ou prejuízos, de qualquer ordem ou natureza. Também não pretende atingir, de forma negativa, a imagem dos diferentes grupos evangélicos do Brasil. O autor desta pesquisa é um evangélico tradicional, presbiteriano, portanto, de linha calvinista. O calvinismo que, por sua vez, teve juntamente com outras linhas originárias da Reforma, como luteranos, metodistas e batistas, uma luta incansável pela liberdade de culto e contra a intolerância religiosa, sofrendo privações e perseguições, e em muitos casos pagando até com as próprias vidas. O objetivo deste trabalho é investigar, de forma mais profunda e ampla, sob o ponto de vista historiográfico, as relações dos evangélicos com a mídia e o poder. Ambos, íntimos e intrínsecos, caminham juntos em diferentes momentos, em um ciclo no qual causa e efeito se confundem. Em outras palavras: quanto maior a visibilidade midiática, maior a representação política. E quanto maior o poder deste grupo, melhores condições são criadas para expansão de seus propósitos políticos e religiosos a partir da posse dos meios de comunicação. No entanto, nos deparamos, no decorrer desta análise com dilemas morais e éticos – em alguns casos, até mesmo questões legais – envolvendo a representação evangélica no Congresso. No entanto, tomamos o cuidado de não nos deixar levar por generalizações, procurando critérios e métodos adequados para análise e diferenciação entre os interesses representados pelo grupo evangélico. Buscamos exaustivamente informações em jornais, com profissionais de mídia, em fontes oficiais como a própria Câmara dos Deputados e o Ministério das Comunicações, relatórios de organizações da sociedade civil, materiais produzidos pelos próprios parlamentares durante seus mandatos ou em perfis de redes sociais, enfim, tudo o que fosse necessário para produzir uma pesquisa séria e confiável. 19

Temos a consciência, no entanto, de que existem lacunas a serem preenchidas, fatos ainda ocultos, informações desencontradas e opiniões diversas, o que procuramos deixar bem claro, do início ao fim, pois não possuímos a presunção de escrever uma história total. Entretanto, estes fatos não tiram o mérito deste trabalho: entendemos que isso enriquece a pesquisa histórica, abrindo caminho para que outros trabalhos sejam desenvolvidos, futuramente, utilizando-o como ponto de partida para análises ainda mais complexas e profundas, que busquem esclarecer questões tão importantes na realidade contemporânea brasileira.

20

1 EVANGÉLICOS NO BRASIL: DOS PÚLPITOS AO CONGRESSO NACIONAL

1.1 As divisões do protestantismo brasileiro

É importante, no desenvolvimento sobre a temática do protestantismo no Brasil, realizar seu aprofundamento histórico e, mesmo que, superficialmente, teológico, para melhor compreensão acerca do seu surgimento, suas diferentes correntes, denominações e aspectos doutrinários e dogmáticos, tendo como objetivo desfazer erros e equívocos decorrentes de seu desconhecimento e esclarecer questões que serão fundamentais no decorrer desta pesquisa. O próprio termo evangélico, em si, é alvo de discordâncias, sendo apontado como uma designação genérica, que não leva em conta as diferenças históricas e doutrinárias entre os diferentes grupos. Para Ricardo Mariano, especificamente na América Latina, o termo “recobre o campo religioso formado pelas denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestante europeia do século XVI”3. Habitualmente, os evangélicos brasileiros distinguem-se a si mesmos como reformados ou históricos (popularmente chamados de tradicionais) ou pentecostais. O primeiro grupo engloba as igrejas oriundas da Reforma e algumas de suas tendências, como batistas, presbiterianos, luteranos e anglicanos. No segundo, estão incluídas a Congregação Cristã no Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil Para Cristo, Deus é Amor, Casa da Benção e Universal do Reino de Deus, para citarmos as principais (ver Tabela 1)4. Pesquisadores como Mariano e Paul Freston, no entanto, aprofundam as distinções do meio evangélico brasileiro e destacam as principais interpretações acerca das subdivisões existentes no protestantismo, sobretudo no pentecostalismo. Não existe, no entanto, consenso entre elas, pois levam em conta diferentes aspectos em sua conceituação, de históricos a teológicos.

3 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2012. p. 10. 4 Ibid. p. 23-49. Paul Freston utiliza divisão semelhante em: FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 41. Aqui, a listagem é ampliada e atualizada, inclusive, com igrejas criadas posteriormente ao trabalho de Freston. 21

Tabela 1 – Divisão comum entre evangélicos tradicionais e pentecostais

Igrejas históricas ou tradicionais Igrejas pentecostais Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil Congregação Cristã no Brasil Igreja Presbiteriana do Brasil Assembleia de Deus Igreja Metodista Igreja do Evangelho Quadrangular Igreja Presbiteriana Independente do Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para Brasil Cristo Igreja Batista (Convenção Batista Brasileira) Igreja de Nova Vida Igreja Evangélica Congregacional Igreja Pentecostal Deus é Amor Casa da Benção/Igreja Tabernáculo Igreja Evangélica Luterana do Brasil Evangélico de Jesus Igreja Cristã Evangélica Igreja Batista (Convenção Batista Nacional) Igreja Presbiteriana Unida do Brasil Igreja Metodista Wesleyana Igreja Universal do Reino de Deus Igreja Internacional da Graça de Deus Igreja Evangélica Cristo Vive Comunidade Cristã Paz e Vida Igreja Apostólica Renascer em Cristo Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra Ministério Apascentar Igreja Apostólica Fonte da Vida Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo Igreja Mundial do Poder de Deus Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus

Utilizaremos, no caso das igrejas evangélicas tradicionais, a tipologia do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), de 1991, apresentada por Freston, que os divide entre protestantes de missão e de migração. No caso dos pentecostais, adotaremos as classificações utilizadas por Freston e Mariano, que descrevem três ondas ou vertentes do pentecostalismo, sendo a primeira delas na década de 1910, com a fundação da Congregação Cristã no Brasil e da Assembleia de Deus, classificadas como pentecostais clássicas. A principal característica deste grupo é o “batismo no Espírito Santo”, que tem como foco os chamados dons espirituais, com ênfase na glossolalia5.

5 A glossolalia é uma das principais características atribuídas ao pentecostalismo, comumente denominada como dom de línguas, falar em línguas estranhas ou falar em mistério. Ela remonta ao Novo Testamento, sobretudo a partir do livro de Atos, quando os cristãos primitivos receberam o dom divino de falar em outras línguas. Não há consenso sobre a contemporaneidade desses dons, nem sobre a natureza dessas línguas, se eram terrenas – xenoglossia – ou espirituais, a própria glossolalia. 22

Tabela 2 – As divisões e subdivisões do protestantismo brasileiro

Igreja Início Protestantes de missão6 Igreja Metodista 1835/1867 Igreja Evangélica Congregacional 1855/1913 Igreja Presbiteriana do Brasil 1859/1862 Convenção Batista Brasileira 1871/1907 Igreja Episcopal Anglicana do Brasil 1890/1965 Igreja Presbiteriana Independente do Brasil 1903 Igreja Presbiteriana Unida do Brasil 1978 Protestantes de migração Reformados 1555/1630 Anglicanos 1810 Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil 1824/1968 Igreja Evangélica Luterana do Brasil 1904 Pentecostalismo clássico7 Congregação Cristã no Brasil 1910 Assembleia de Deus 1911 Deuteropentecostalismo Igreja do Evangelho Quadrangular 1951 Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para Cristo 1955 Igreja de Nova Vida/Igreja Cristã de Nova Vida 1960 Igreja Pentecostal Deus é Amor 1962 Casa da Benção/Igreja Tabernáculo Evangélico de Jesus 1964 Neopentecostalismo Igreja Universal do Reino de Deus 1977 Igreja Internacional da Graça de Deus 1980 Igreja Evangélica Cristo Vive 1985 Comunidade Cristã Paz e Vida 1982 Igreja Apostólica Renascer em Cristo 1986 Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra 1992 Ministério Apascentar 1993 Igreja Apostólica Fonte da Vida 1994 Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo 1994 Igreja Mundial do Poder de Deus 1998 Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus 2006 Igrejas renovadas Convenção Batista Nacional 1965 Igreja Metodista Wesleyana 1967 Igreja Cristã Maranata 1968 Igreja Presbiteriana Renovada 1975 Pseudo-protestantes Igreja Adventista do Sétimo Dia 1893/1896 Testemunhas de Jeová 1920 Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmon) 1923/1931

6 Protestantes de missão, de migração e pseudo-protestantes: FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 37. 7 Pentecostalismo clássico, deuteropentecostal, neopentecostal e igrejas históricas renovadas: MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2012. p. 23-49. 23

A segunda onda é chamada deuteropentecostal, que engloba as igrejas surgidas, principalmente, em São Paulo ao longo dos anos 1950 e 1960, tendo como marco inicial a fundação da Igreja do Evangelho Quadrangular. Durante muitos anos, foram populares as cruzadas missionárias promovidas em estádios, praças e clubes, eventos que possuíam como destaque a cura divina, nos quais os fiéis confessavam a cura imediata de enfermidades através da atuação dos pregadores. A terceira onda é a neopentecostal, a partir dos anos 1970, na qual se situa a Igreja Universal do Reino de Deus, principal expoente do movimento no Brasil. Esta corrente nasceu com a Teologia da Prosperidade, doutrina surgida nos Estados Unidos, que ensina que o cristão deve ser bem-sucedido em todas as áreas, principalmente, a financeira, e que “pobreza e doença são resultados visíveis do fracasso do cristão que vive em pecado ou que possui fé insuficiente”8. O neopentecostalismo abarca outras práticas, como a “batalha espiritual” e a “confissão positiva”9.

Figura 1 – Missionário R. R. Soares, futuro fundador da Igreja da Graça, apresentando o programa O Despertar da Fé, da IURD, na TV Tupi. Autor desconhecido.

Fonte: http://www.terra.com.br/istoegente/193/fotos/rr_soares_02.jpg

8 ROMEIRO, Paulo. Supercrentes: o evangelho segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os profetas da prosperidade. São Paulo: Mundo Cristão, 1993. p. 19. 9 Ver: LOPES, Augustus Nicodemus. O que você precisa saber sobre batalha espiritual. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. 24

Importantes tendências são as igrejas históricas renovadas, ou simplesmente igrejas renovadas, como é o caso da Convenção Batista Nacional e da Igreja Cristã Maranata, esta de origem presbiteriana; e os chamados pseudo-protestantes, como são denominadas a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmon), as Testemunhas de Jeová e a Igreja Adventista do Sétimo Dia10.

Figura 2 – Pastor Edir Macedo, fundador da Igreja Universal, em capa de LP, fotografado no estúdio do programa O Despertar da Fé, na TV Tupi. Autor desconhecido.

Fonte: https://i.ytimg.com/vi/KkD9cxbdiZw/hqdefault.jpg

Os equívocos em relação aos evangélicos brasileiros ocorrem, sobretudo, na diferenciação entre os tradicionais e os pentecostais: pela superioridade numérica e maior exposição destes na mídia, é senso comum a interpretação, por quem não é evangélico, de que os primeiros também pensam e atuam de maneira semelhante. Em relação aos pentecostais, o mesmo problema ocorre: em primeiro lugar, pelo fato de todos eles serem carismáticos11. Desta forma, não existem grandes diferenças litúrgicas, o que os torna também propensos à ideia de que são todos iguais. Em segundo lugar, algumas doutrinas como o “batismo no Espírito Santo” e a cura divina são comuns a quase todos os grupos pentecostais. Cabe também ressaltar que as igrejas deuteropentecostais não se autodenominam desta forma, sendo mais comum a identidade enquanto pentecostais. Entretanto, a principal

10 As Testemunhas de Jeová e os Santos dos Últimos Dias não se consideram protestantes, autodenominando-se apenas como cristãos, ao contrário dos Adventistas do Sétimo Dia. 11 Embora o termo não seja comum no meio evangélico, ele remete aos movimentos oriundos dos chamados avivamentos do século XIX, influenciados, sobretudo, pelo metodismo. Ver: CAMPOS, Leonildo Silveira. As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro: observações sobre uma relação ainda pouco avaliada. Revista USP, São Paulo: USP, nº 67, p. 100-115, setembro/novembro 2005. 25

diferença fica a cargo do último grupo, neopentecostal. A Teologia da Prosperidade é fortemente combatida por grupos pentecostais mais tradicionais e pelos reformados, sendo encarada inclusive como heresia, como é o caso da Igreja Presbiteriana do Brasil, que considera a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD) como seitas12. Outro importante fator a ser destacado é a relação entre temporalidade e método. O fato de uma igreja tradicional possuir uma liturgia mais flexível, implantar células e grupos familiares13 ou investir em mídia pode fazer com que ela se pareça com uma igreja pentecostal, da mesma forma que o surgimento de uma igreja contemporânea não quer dizer, necessariamente, que ela seja neopentecostal. O mesmo pode ocorrer com uma denominação adepta da Teologia da Prosperidade que possua um padrão mais rígido de culto e até mesmo a sistematização de sua doutrina, algo pouco comum na tendência. Isto posto, configuram-se dois grandes ramos dentro do protestantismo brasileiro, estando, de um lado, as igrejas tradicionais e, do outro, as pentecostais. Ao longo dos anos, surgiram incontáveis grupos e denominações evangélicas, sendo que alguns subgrupos ganham dimensões consideráveis a ponto de não serem consideradas simples tendências, a exemplo dos neopentecostais, como veremos adiante. Em linhas gerais, tais grupos distinguem-se entre si, principalmente, pela liturgia, geralmente mais rígida nas igrejas tradicionais; pelo sistema teológico, majoritariamente dividido entre calvinismo e arminianismo, que exercem influência direta sobre a interpretação soteriológica (predestinação x livre-arbítrio) e abarcam questões como pecado e redenção divina; além de outros aspectos doutrinários, como a escatologia (pré-milenista, pós- milenista, amilenista e dispensacionalista) e o “batismo no Espírito Santo”, para citar os principais. Em relação a este, os tradicionais, em geral, são adeptos do cessacionismo, interpretação na qual tais manifestações eram restritas à igreja cristã primitiva. O grupo pentecostal é adepto do continuacionismo (ou continuísmo), que aceita a contemporaneidade de tais dons espirituais14.

12 BRASIL PRESBITERIANO. São Paulo: Igreja Presbiteriana do Brasil, Edição Especial, Resoluções do Supremo Concílio, ago. 2010. 13 As células se popularizaram no Brasil nos anos 1990, a partir do modelo implantado pelo Pastor colombiano César Castellanos, denominado como Visão Celular no Modelo dos 12, Visão Celular, Governo dos 12, Grupo dos 12 ou G12. O modelo, como um todo, é contestado por igrejas tradicionais e pentecostais clássicas. Ver: CASTELLANOS D., César. Sonha e ganhará o mundo. São Paulo: Editora G12, 2006. 14 Sugerimos ver: LOPES, Augustus Nicodemus. Polêmicas na Igreja: Doutrinas, práticas e movimentos que enfraquecem o cristianismo. São Paulo: Mundo Cristão, 2015. p. 167-180. Os pentecostais são predominantemente arminianos. No entanto, existem exceções, como a Igreja Cristã de Nova Vida e a Igreja Cristo Vive, que adotam o calvinismo. Mesmo no meio calvinista, existem denominações como a Igreja Presbiteriana Independente, declaradamente continuacionista, mas não-pentecostal. Da mesma forma, existem 26

1.2 Os neopentecostais e o crescimento evangélico dos anos 1980

A década de 1980 é apontada como divisor de águas no meio evangélico brasileiro. O processo de redemocratização, iniciado no fim dos anos de 1970, possibilitou o crescimento de diversas denominações evangélicas, sobretudo as pentecostais e o nascente grupo neopentecostal. Diferentes fatores contribuíram para este movimento, entre os quais destacamos o fim da censura aos meios de comunicação, o fim do bipartidarismo e a realização de eleições diretas a partir de 1982, que convergiriam no deslocamento evangélico para o meio político, com maior intensidade a partir de 1986. Em 1970, a população evangélica brasileira era de apenas 5,2%, pouco mais de 4 milhões e 800 mil indivíduos. Ao longo da década, o protestantismo brasileiro se expandiu consideravelmente, sendo marcado pelo surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada por Edir Macedo, em 1977:

Após doze anos como membro da Nova Vida, em 1975 Macedo, farto do elitismo desta igreja e sem apoio para suas atividades evangelísticas, consideradas agressivas, decidiu partir para voos mais altos. Ao lado de Romildo Ribeiro Soares, Roberto Augusto Lopes e dos irmãos Samuel e Fidélis Coutinho, fundou a Cruzada do Caminho Eterno, que não fez jus ao nome nem mesmo para seus criadores. Antes de abri-la, Macedo e Romildo Soares, que ainda não haviam exercido cargos eclesiásticos, foram consagrados pastores na Casa da Benção pelo missionário Cecílio Carvalho Fernandes. Dada sua experiência com números e dinheiro na Loterj, Macedo tornou-se tesoureiro da Cruzada15.

Ainda em 1977, a IURD já se fazia presente na TV Tupi, com programas apresentados por Macedo e seu cunhado Romildo Ribeiro Soares, o R. R. Soares, que toma para si o papel de precursor do trabalho evangelístico da igreja na televisão, conforme consta em seu perfil no site da Igreja da Graça: “Em novembro de 1977, por meio de seu programa exibido na extinta TV Tupi, R. R. Soares iniciou o maior trabalho de evangelismo já visto em um canal brasileiro de televisão”16. A contracapa de um dos compactos produzidos pela IURD, aproximadamente em 1978, traz as seguintes informações acerca do trabalho da igreja:

O Pastor Macedo, um dos fundadores da Igreja Universal do Reino de Deus, com sede na Av. Suburbana, 7.692, Abolição, tem dirigido a Palavra de Deus a milhões grandes diferenças doutrinárias entre calvinistas e luteranos, oriundos diretamente da Reforma Protestante do Século XVI. 15 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2012. p. 55. 16 IGREJA INTERNACIONAL DA GRAÇA DE DEUS. R. R. Soares. Disponível em . Acesso em: 20 fev 2017. 27

de pessoas através dos programas “O Despertar da Fé” pela rádio Metropolitana do Rio de Janeiro, às 7:00 horas, Televisão Tupi do Rio, às 7:50 horas e São Paulo, às 9:00 diariamente. Através de sua fé no Senhor Jesus Cristo, muitas pessoas têm recebido as bênçãos de Deus e neste Compacto ele apresenta uma canção e faz a “Oração da Fé”17.

Em 1980, no entanto, houve o rompimento entre Edir Macedo e R. R. Soares, e este fundou pouco depois a Igreja Internacional da Graça de Deus (ou simplesmente Igreja da Graça). Os cunhados foram responsáveis por inovações no campo evangelístico brasileiro, utilizando estratégias de mercado para a promoção de suas mensagens. Ambos realizaram pesados investimentos em mídia, inicialmente na rádio AM, através do aluguel de horários, seguindo para a compra ou arrendamento de emissoras. Pouco depois, as atenções se voltariam para a TV, onde passaram a figurar constantemente, disputando espaços com os tradicionais e outros pentecostais e neopentecostais. Fundada em 1960, no Rio de Janeiro, pelo missionário canadense Roberto McAlister, a Igreja de Nova Vida torna-se relevante neste contexto pois, mesmo estando agrupada na tendência deuteropentecostal, a denominação é classificada como ponto de transição para o neopentecostalismo:

(...) na Nova Vida encontramos de forma embrionária as principais características do neopentecostalismo: intenso combate ao Diabo, valorização da prosperidade material mediante a contribuição financeira, ausência do legalismo em matéria comportamental18.

A Nova Vida nasceu a partir de um programa de rádio, A Voz de Nova Vida, transformando-se em cruzada e posteriormente em igreja, ao longo da década de 196019. A partir de 1965, a igreja esteve presente também na televisão, com programa apresentado pelos Bispos McAlister e Tito Oscar, na TV Tupi20. No ano seguinte, McAlister adquiriu a Rádio Relógio Federal, do Rio de Janeiro, fundada em 1956, mantendo, no entanto, a programação original, com pequenas transmissões religiosas, à exceção dos domingos, quando quase todo o espaço era ocupado pelos cultos da Nova Vida21.

17 YOUTUBE. Pastor Macedo 1978. Disponível em . Acesso em: 20 fev. 2017. 18 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2012. p. 51. 19 Ibid. p. 51-52. 20 IGREJA DE NOVA VIDA. Bispo Tito Oscar. Disponível em . Acesso em: 24 fev. 2017. 21 EBC Rádios. Você sabia? Curiosidades e áudios da Rádio Relógio. Disponível em . Acesso em: 03 mar. 2017 28

Figura 3 – Bispo Roberto McAlister, apresentando programa da Igreja de Nova Vida.

Fonte: https://i.ytimg.com/vi/lpexkfbAhrI/hqdefault.jpg

Direcionada para um público de classe média, ao contrário do padrão pentecostal até então, dela emergiram as lideranças das principais denominações neopentecostais nascidas a partir dos anos 1970. Além de Macedo e Soares, também foi membro da Nova Vida o fundador da Igreja Cristo Vive, o ex-guerrilheiro luso-angolano Miguel Ângelo da Silva Ferreira, em 1986. No mesmo ano, surgiu outra importante igreja do segmento da IURD. O casal Estevam Hernandes, ex-executivo de marketing com passagem por diversas igrejas pentecostais, e Sonia Hernandes, de origem presbiteriana, iniciou os trabalhos da Igreja Apostólica Renascer em Cristo. Voltado para um público de classe média e média alta, a Renascer expandiu-se pelo estado de São Paulo, onde fui fundada. Neste contexto, o Brasil passou a experimentar um fenômeno semelhante ao do televangelismo22 norte-americano. Além dos Bispos Roberto McAlister e Tito Oscar, que se revezavam no programa Coisas da Vida, outros religiosos evangélicos tornaram-se presenças constantes na televisão brasileira. Em 1967, o Pastor Nilson do Amaral Fanini, da Convenção Batista Brasileira, iniciou o programa Reencontro, transmitido por diversas emissoras, no Brasil e no exterior23. No fim dos anos 1970, a IURD exibia O Despertar da Fé, aos domingos pela manhã, através da TV Tupi24. Com o fim da emissora, o programa passou a ser

22 Termo surgido nos Estados Unidos para designar líderes religiosos que utilizam meios eletrônicos, principalmente a televisão, para transmitir suas pregações. 23 AROLDE DE OLIVEIRA. Programa Reencontro termina sua trajetória na TV. . Acesso em: 03 mar. 2017. 24 O Fluminense, Niterói, 02 dez. 1979. p. 5. 29

transmitido pela TV Bandeirantes, diariamente, com aproximadamente meia hora de duração25. A partir de 1982, R. R. Soares se fez presente na TV Corcovado, canal 9 do Rio de Janeiro, afiliada da antiga TV Record de Silvio Santos, ocupando 20 minutos diários da programação matutina26. Durante vários anos, a partir de 1985, o programa de Soares dividia espaço – chegando até mesmo a ser sucedido – com o Posso Crer no Amanhã, apresentado pelo Pastor Miguel Ângelo da Silva Ferreira, que transmitia também o Última Palavra, programa que encerrava a programação da TV Corcovado27. Surgiram também os programas apresentados pelo Pastor Silas Malafaia (Renascer, na TV Corcovado)28, da Assembleia de Deus, e pelo Reverendo Caio Fabio (Pare e Pense, na TV Corcovado e depois pela TV Manchete), da Igreja Presbiteriana do Brasil. O pastor norte- americano Bernhard Johnson, missionário da Assembleia de Deus, apresentava o programa Palavras de Vida, pela TV Bandeirantes e TV Corcovado29. O Encontro com a Vida, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, era veiculado também na TV Corcovado. O norte-americano Jimmy Swaggart contava com transmissões dubladas nas manhãs da TV Bandeirantes. Alguns dados mencionados por Ricardo Mariano demonstram o forte crescimento da IURD durante os anos 1980:

Em julho de 1980, quando completou três anos, tinha apenas 21 templos em cinco estados. Em 1982, dobrou de tamanho, passando a contar com 47 templos em 8 estados. Em abril de 1983, chegou a 62 templos e alcançou mais um estado. Em agosto de 1984, avançou para 85 templos em 10 estados. No mesmo mês do ano seguinte, saltou para 195 templos em 14 estados e no Distrito Federal. Em agosto de 1986, ano em que Macedo se mudou para os EUA, a igreja avançou para 240 templos em 16 estados. No final de 1987, com 356 templos em 18 estados, 2 em Nova York e mais 27 “trabalhos especiais” em cinemas alugados, já reunia gente suficiente para promover sua primeira grande exibição de força: lotar o Maracanã e o Maracanãzinho concomitantemente. Até então suas anuais concentrações evangelísticas no Rio de Janeiro eram realizadas (desde 1981) apenas no Maracanãzinho, jamais no estádio. Em agosto de 1988, além de 26 “trabalhos especiais”, possuía 437 templos em 21 estados e Brasília, 3 deles fincados nos EUA e 1 no Uruguai. Em abril de 1989, ano em que negociava a compra da TV Record, somava 571 templos30.

No período tratado, não são disponibilizadas informações oficiais da Igreja da Graça, como o número de membros e igrejas. No entanto, a Graça Editorial, fundada em 1983, já

25 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 02 jan. 1985. Caderno B, p. 5. 26 Ibid. 08 out. 1982. Caderno B, p. 8. 27 Ibid. 15 ago. 1988. Caderno B, p. 5 e Ibid. 04 jun. 1987. Caderno B, p. 5 28 ASSOCIAÇÃO VITÓRIA EM CRISTO. Uma história de fé. Disponível em . Acesso em: 24 fev. 2017. 29 EDITORA FILADÉLFIA. Bernhard Johnson. Disponível em . Acesso em: 24 fev. 2017. 30 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2012. p. 64-65. 30

ostentava enorme variedade de títulos literários. R. R. Soares, que buscou inspiração, entre outros, no ministério de T. L. Osborn, autor do popular Curai enfermos e expulsai demônios, comprou os direitos de publicação de seus livros no Brasil, além de editar obras de Kenneth Hagin, um dos principais expoentes da Teologia da Prosperidade a nível mundial. O Missionário, como é conhecido – deixando de lado a comum denominação enquanto Pastor – , além dos investimentos em literatura, criando um diferencial no meio neopentecostal, buscou espaços na mídia, principalmente a televisão, em detrimento do rádio. Em 1980, o Brasil havia atingido a marca de 7.885.650 de fieis evangélicos, cerca de 6,6% da população. O crescimento percentual foi de 63% em apenas 10 anos. Em paralelo, apesar do aumento numérico, a proporção de católicos caiu, de 91,8% em 1970 para 89,9% em 1980. Pela primeira vez, houve diferenciação entre evangélicos de missão e evangélicos pentecostais. Os primeiros, tradicionais, perfaziam 51% e os pentecostais, os 49% restantes31. No Censo de 1991, como resultado de todo o trabalho da década de 1980, foram apontados pouco mais de 13 milhões de evangélicos no Brasil (9% da população), um aumento de quase 66% na década. Os pentecostais já eram quase 67%, e os tradicionais, pouco mais de 33%. O primeiro grupo experimentou um crescimento de 126%, enquanto o segundo, apenas 9%. Os católicos caíram de 89,9% para 83,3% da população brasileira32.

1.3 O rádio, instrumento de evangelização

“De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus”33. A passagem bíblica anteriormente citada é uma das mais reproduzidas no meio evangélico. O entendimento recorrente é que, através da pregação do evangelho, os perdidos serão alcançados para a salvação em Cristo. Desta forma, o uso do rádio como ferramenta de evangelização foi e é primordial para a expansão evangélica. Segundo Leonildo Silveira Campos, apesar de ainda pouco numerosos, os evangélicos do Brasil seguiram a tendência dos norte-americanos, que já na primeira transmissão radiofônica experimental de sua história, realizada no natal de 1906 em Massachusetts,

31 JACOB, Cesar Romero et. al. Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. São Paulo: Loyola, 2003. p. 34. 32 Ibid. p. 34. 33 SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. Romanos, cap. 10, vers. 17 (ARC). Disponível em . Acesso em: 04 mar. 2017. 31

executaram um instrumental de “O Holy Night”, músicas de Georg Friedrich Händel e realizaram a leitura de trechos do evangelho de Lucas34. No Brasil, o trabalho evangélico no rádio começou no fim da década de 1920, com programas como o do Reverendo Rodolpho Hasse, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), na Rádio Club, do Rio de Janeiro, em 1929. Hasse foi, ainda, um dos responsáveis pela criação da Hora Luterana, em 1947, programa de rádio que deu origem a um dos maiores projetos evangelísticos do Brasil. No entanto, foi a partir dos anos 1940 e 1950 que a presença evangélica nas rádios brasileiras se intensificou. Surgiram A Voz da Profecia, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, transmitido em português desde 1943 e com sede própria no Rio de Janeiro a partir de 1962; e as transmissões em português da rádio Voz dos Andes (HCJB), em Quito, no Equador, de propriedade da World Radio Missionary Fellowship35, a partir de 1947. No início dos anos 1950, foram ao ar os programas dos missionários Harold Williams e Raymond Boatright, que deram origem à Igreja do Evangelho Quadrangular brasileira. Em 1952, foi fundado o Centro Audiovisual Evangélico (CAVE), em Campinas (SP), por iniciativa do missionário norte-americano Robert McIntire, ligado à Igreja Presbiteriana. O objetivo era produzir material protestante interdenominacional, visando à propaganda religiosa. No ano seguinte, o programa Meditação Matinal estreou, sendo apresentado até 1981 pelo Pastor presbiteriano José Borges dos Santos Junior nas rádios Tupi e Bandeirantes de São Paulo, com apoio do Banco Bradesco, presidido pelo também presbiteriano Amador Aguiar. A Voz do Brasil para Cristo, iniciado em 1956 pelo Pastor Manoel de Mello, ex- ministro da Igreja do Evangelho Quadrangular, deu origem à Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo36. Entre os censos de 1940 e 1960, o crescimento evangélico no Brasil foi de impressionantes 162%, passando de pouco mais de 1 milhão de adeptos para 2,8 milhões. Não restam dúvidas, observando tanto os dados oficiais, como os das próprias instituições religiosas, que o rádio foi um instrumento imprescindível para este movimento. Leonildo Campos aponta ainda que, em 1961, o programa A Voz da Profecia era transmitido por 184 emissoras; em 1965, por 327; e que entre 1968 e 1975, o programa teve

34 CAMPOS, Leonildo Silveira. Evangélicos, pentecostais e carismáticos na mídia radiofônica e televisiva. Revista USP, São Paulo: USP, nº 61, p. 151, março/maio 2004. 35 Organização missionária internacional e interdenominacional sediada em Colorado Springs, no estado norte- americano do Colorado. 36 CAMPOS, Leonildo Silveira. Evangélicos, pentecostais e carismáticos na mídia radiofônica e televisiva. Revista USP, São Paulo: USP, nº 61, p. 152-154, março/maio 2004. 32

405.076 matriculados ativos, 70.518 diplomados, 48.510 visitados, 13.925 que prometeram guardar o sábado e 2.041 batizados, perfazendo o total de 2,89% dos diplomados. Nesse mesmo período houve 26.755 batizados no estado de São Paulo, dos quais 7,62% atribuíram o desejo de seguir o adventismo à audição do programa A Voz da Profecia37.

Citando o pesquisador Tarcis Prado, Campos indica que em 1969 existiam 64 programas de rádio evangélicos na Grande São Paulo, com predominância pentecostal (34,3%), seguido por batistas (12,5%); adventistas e presbiterianos, ambos com 9,3%, e 34,3% de igrejas e denominações não especificadas38. São inúmeros os exemplos de igrejas brasileiras que surgiram e se desenvolveram a partir de programas de rádio. Além das igrejas do Evangelho Quadrangular, O Brasil Para Cristo e de Nova Vida, relacionadas anteriormente, a Igreja Pentecostal Deus é Amor, fundada em 1962 pelo missionário David Miranda, popularizou-se devido à sua extensa programação radiofônica, que tinha como ponto central o programa Voz da Libertação, transmitido por meio de espaços alugados em diversas emissoras39. No entanto, foi a partir da década de 1980, que o protestantismo brasileiro experimentou um processo vertiginoso de crescimento, impulsionado principalmente pelo surgimento das igrejas neopentecostais, por meio da maciça presença de seus pregadores na mídia, a partir das rádios, seguindo em direção à televisão posteriormente. Inicialmente, a estratégia de vários grupos evangélicos, em relação ao rádio, foi o arrendamento ou a compra de emissoras à beira da falência, em virtude tanto da má gestão, como do declínio frente ao crescimento da televisão. Em 1976, o cantor evangélico Matheus Iensen adquiriu a Rádio Marumby, de Campo Largo (PR), com alcance nacional a partir de emissões em ondas curtas. Em 1982, o missionário David Miranda comprou a Rádio Universo, de Curitiba, com o mesmo alcance da Marumby40. Dois anos depois, foi a vez da Igreja Universal adquirir a Rádio Copacabana, do Rio de Janeiro, onde já possuía um espaço de 15 minutos nas madrugadas desde 198041. A

37 Ibid. p. 153. 38 Ibid. p. 153. 39 Atualmente, a programação da IPDA é transmitida no Brasil por mais de 40 emissoras próprias, arrendadas ou afiliadas à Rádio Deus é Amor. IGREJA PENTECOSTAL DEUS É AMOR. Links para rádios. Disponível em . Acesso em: 11 jul. 2016. 40 CAMPOS JUNIOR, Luis de Castro. O pentecostalismo e o rádio: Relações entre religião e comunicação. p. 8- 9. Disponível em . Acesso em: 23 fev. 2017. 41 GOMES, Leandro Eduardo Wick. A religião na TV: a comunicação da Igreja Universal do Reino de Deus na Rede Record. Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado de São Paulo, 2006. p. 25. 33

emissora considera-se a primeira rádio evangélica do Rio de Janeiro42. Em 1989, a IURD assumiu a Rádio Contemporânea, controladora da Rádio Ipanema, que pertenceu ao sistema Radiobrás e foi vendida em 1988 à Golden Cross, administradora de planos de saúde, ligada à Igreja Adventista do Sétimo Dia43. Em 1983, a outorga da rádio 93 FM, do Rio de Janeiro, foi concedida aos empresários Arolde de Oliveira, também militar e deputado federal, e Edson Dominguez. No entanto, a emissora, também conhecida por El-Shadai, só entraria em operação com programação evangélica em maio de 1992, quando Arolde comprou a participação acionária de Dominguez na rádio Nacional FM, como a emissora era conhecida, com perfil voltado para a MPB44. Oliveira transformou-a em uma das principais emissoras evangélicas do Brasil, caracterizada pelo interdenominacionalismo45. O empresário Francisco Silva, apontado como membro da Congregação Cristã no Brasil46, adquiriu em 1986 a Rádio Melodia, com outorga na cidade de Petrópolis, concedida nove anos antes. Com estúdios na cidade do Rio de Janeiro e transmissores em potência máxima de 100 kW na Pedra da Lagoinha (Morin), a 1.520 metros de altitude, a Melodia é uma das rádios mais populares do Brasil, sendo sintonizada em quase todo o território fluminense, parte do Vale do Paraíba Paulista, Campo das Vertentes e Zona da Mata Mineira47. Outras emissoras, de maior ou menor importância, foram adquiridas por igrejas e empresários evangélicos. No entanto, as mais relevantes são aqui apontadas, sendo a Rádio Deus é Amor a única a não ser utilizada, explicitamente, para fins eleitorais, devido às posições doutrinárias da denominação à qual pertence. Ao longo da década de 1980, além da compra, grupos evangélicos conquistaram também concessões, constituindo novas emissoras e redes de rádio, sobretudo a partir de 1988, cujos vínculos políticos serão analisados ao longo dos capítulos 2 e 3.

42 RÁDIO COPACABANA. História da Rádio. Disponível em . Acesso em: 11 jul. 2016. 43 RÁDIO RECORD. Home. Disponível em . Acesso em: 11 jul. 2016. 44 Não confundir com a Nacional FM, do Sistema Radiobrás, que operava em 100,5 FM e foi vendida em 1988. 45 TRIBUTO AO RÁDIO DO RIO DE JANEIRO. 93 FM – 93,3 MHz – Porta-voz dos evangélicos tradicionais. Disponível em . Acesso em: 11 jul. 2016. 46 O vínculo de Francisco Silva como a CCB era controverso: embora esta fosse a versão mais recorrente, diversos fieis a contestavam. Nesta fonte, o vínculo é confirmado: FOLHA DE S. PAULO. Igrejas já controlam um terço das rádios de SP. Disponível em . Acesso em: 1 ago. 2017. 47 Nota do autor: em 09 de julho de 2016, pude sintonizar a Rádio Melodia no rádio comum de um carro, na cidade de Tiradentes (MG), a 187 km de Petrópolis em linha reta. 34

Em 1993, a Assembleia de Deus, através da Fundação Evangélica Boas Novas, iniciaria a operação da Rede Boas Novas, a partir de Manaus. A Rede Aleluia, da IURD, formaria rede em 1998, contabilizando, em 2017, 64 emissoras cobrindo 75% do território nacional48. Além delas, a Rádio Melodia chegou a constituir rede entre os anos 90 e 2000, seguida pela 93 FM, famosa por lançar os músicos ligados à sua gravadora, MK Publicitá (hoje MK Music). Essas rádios são notáveis pelas relações políticas de seus proprietários e sócios, além do espaço aberto em sua programação para personalidades políticas, como veremos mais adiante.

Figura 4 – Pastor Nilson do Amaral Fanini (à esquerda), Arolde de Oliveira (ao centro, de óculos escuros) e o General João Figueiredo, em ato evangélico no estádio do Maracanã, nos anos 1980. Autor desconhecido.

Fonte: http://2.bp.blogspot.com/- 4TdFXSNL44Y/TniiVzRYf6I/AAAAAAAAEKM/K8iCYjjVLQ0/s320/Reencontro%2B001.jpg

Em paralelo à consolidação evangélica no rádio, ocorriam os primeiros passos em direção à televisão. Em 1983, o Pastor Nilson do Amaral Fanini conquistou a concessão da TV Rio, canal 13 do Rio de Janeiro, através da Rádio Difusão Ebenézer Ltda. A TV Rio foi a primeira concessão de televisão outorgada para um grupo evangélico no país. Fanini já era conhecido e prestigiado pregador, sendo Arolde de Oliveira, membro de sua igreja, apontado como um dos principais articuladores de sua aproximação com o governo militar, à época presidido pelo General João Figueiredo. A TV Rio foi ao ar apenas em 1988, sendo vendida no início dos anos 1990.

48 REDE ALELUIA. Sobre a Rede. Disponível em . Acesso em: 23 fev. 2017. 35

1.4 Mídia, política e religião: o papel do rádio na formação da opinião pública

O que eu percebi então, e creio agora, é que o poder está baseado no controle da comunicação e da informação, seja ele o poder macro do Estado e das corporações de mídia, seja o poder micro de todos os tipos de organização. (...) O poder é mais do que comunicação e a comunicação é mais do que o poder. Mas o poder depende do controle da comunicação, assim como o contrapoder depende do rompimento desse controle. E a comunicação de massa, a comunicação que potencialmente atinge a sociedade como um todo, é moldada e administrada por relações de poder, tem raízes nos negócios da mídia e nas políticas do Estado. O poder da comunicação está no âmago da estrutura e da dinâmica da sociedade49.

Com estas palavras, o sociólogo espanhol Manuel Castells, em seu livro Poder da Comunicação, define as relações entre poder e controle dos meios de comunicação. Para ele, o poder político é apenas uma dimensão do poder, sendo a comunicação uma das formas mais sofisticadas e eficazes de exercê-lo. De acordo com Castells, apesar de a coerção ser uma fonte essencial de poder, ela não consegue consolidar a dominação. É necessário, portanto, um poder capaz de alterar a forma como as pessoas agem, pensam e sentem, ou, nas palavras de Castells, “moldar a mente humana”. Desta forma, podemos compreender como a política evoluiu e se aperfeiçoou em paralelo com o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação e informação, desde a mídia impressa, passando por rádio e TV e chegando às mídias sociais digitais. Para ele, os atores sociais e políticos intervém, através da estrutura do Estado, na mídia e nos meios de comunicação em geral, no objetivo de promover seus interesses ou de seus grupos. O exemplo que o autor desenvolve, no capítulo 3, é a chamada “guerra ao terror”: como foi criada a cultura do medo na sociedade norte-americana nos episódios imediatamente seguintes aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, durante o governo de George W. Bush, a partir de um processo de desinformação que respaldou, a partir da manipulação da opinião pública, os ataques ao Iraque e ao Afeganistão. O que estava em questão eram os interesses financeiros e políticos de grupos empresariais nos recursos naturais daqueles países, sobretudo as reservas petrolíferas. No entanto, na impossibilidade de negociá-los de forma diplomática, os atentados terroristas foram utilizados como subterfúgio para defendê-los à força. Para tanto, foi criada uma atmosfera de medo e terror pelos conglomerados midiáticos norte-americanos, manipulando a opinião pública para que o governo dos Estados Unidos, também interessados na presença estratégica no Oriente Médio, interviesse naquela região, sob o pretexto de combater grupos e

49 CASTELLS, Manuel. O Poder da comunicação. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. p. 21. 36

governos terroristas islâmicos. Neste contexto, expressões como “Eixo do Mal”, “cruzada contra o terror”, “grupos extremistas”, “Estados terroristas” e “armas de destruição em massa” dominaram a mídia. Anos depois, a manipulação ficou evidente, quando veio à tona a inexistência de arsenal nuclear no Iraque, uma das justificativas para a intervenção, derrubada e assassinato do ditador Saddam Hussein; a escolha de lideranças próximas dos interesses norte- americanos, como Ghazi al-Yawar, no Iraque, e Hamid Karzai, no Afeganistão, que influenciaram contratos de exploração de petróleo em favor de grupos multinacionais, e a recente crise humanitária, decorrente dos conflitos originados ou agravados a partir da atuação dos EUA e seus aliados na região. A partir das conclusões de Castells, podemos refletir acerca do interesse de grupos evangélicos no controle da mídia. A principal justificativa desenvolvida por lideranças religiosas para dar fim ao “apolitismo”, sobretudo o pentecostal, de acordo com Ricardo Mariano, foi a sobrevivência do protestantismo enquanto religião: mesmo a contragosto, é preciso estar na política. Neste contexto, a Assembleia Nacional Constituinte de 1988 seria o momento crucial, no qual os rumos do país seriam decididos a partir da criação de uma Carta Magna que pusesse fim a todo o entulho autoritário da ditadura de 1964, inimiga dos comunistas, mas amiga do catolicismo. Para evitar que o catolicismo fosse novamente instituído como religião oficial, por ser majoritário no país, e que certas ideias da esquerda contrárias à fé cristã, como aborto e casamento homossexual, fossem contempladas na nova Constituição, era preciso que os evangélicos se mobilizassem em torno de candidaturas que realmente defendessem seus interesses. Naquele contexto, surgiu um livro cujo título torna-se lugar comum no meio evangélico: Irmão vota em irmão50. No entanto, a partir de análises preliminares baseadas principalmente nos dados e estatísticas decorrentes do trabalho da Assembleia Nacional Constituinte, pudemos observar que, apesar do discurso moral baseado em doutrinas e interpretações bíblicas, a prática política ocorreu em outro sentido: o domínio dos meios de comunicação, mesmo que, para isso, surgissem escândalos decorrentes das negociações obscuras para obtê-lo. E, neste caso, o domínio dos meios de comunicação por parte de evangélicos não quer dizer, necessariamente, que estes veículos estejam voltados para o interesse religioso.

50 SYLVESTRE, Josué. Irmão vota em irmão: os evangélicos, a Constituinte e a Bíblia. Brasília: Pergaminho, 1988. 37

A afirmação de Castells de que a política é apenas uma das formas de exercer o poder demonstra, também, a complexidade da política, e consequentemente, de seu estudo através da História. Neste sentido, analisar e discutir o poder também é fazê-lo acerca de suas dimensões, seja a política ou a comunicação e suas consequências na vida social, não sendo o poder, desta forma, obrigatoriamente o poder estatal. Para Francisco Falcon, o historiador político deve ter atenção e compreensão para analisar diversos fatores, centrais ou periféricos, que influenciam as relações de poder, como a atuação das massas no processo eleitoral, as votações no Congresso Nacional, os agentes políticos e a dinâmica da política cotidiana51. A partir desse pressuposto, desenvolvemos uma análise mais precisa sobre as questões que envolvem a atuação evangélica no campo político brasileiro e os interesses dos diversos grupos do segmento no controle dos meios de comunicação. É de suma importância entendermos a mídia como uma das ferramentas não apenas de análise, mas de exercício do poder. As conexões entre mídia e poder são perceptíveis a partir da forma como exercem influência sobre os modos de expressão dos atores políticos. Por conseguinte, deve ser observado o cuidado até mesmo ao abordar os veículos de comunicação como fonte: o que é retratado pode não refletir a realidade, parcial ou totalmente. As questões levantadas anteriormente por Castells confirmam as preocupações de Falcon. Prosseguindo nesta questão, Pierre Bourdieu e Jean-Noël Jeaneney nos previnem em relação ao que é transmitido pela televisão. Para o primeiro, o conteúdo das redes de televisão é “determinado pelas pessoas que as possuem, pelos anunciantes que pagam a publicidade, pelo Estado que dá subvenções”52. A advertência de Bourdieu, no entanto, não fica restrita à televisão, sendo também aplicável ao rádio, aos jornais e até às mídias digitais, levando em consideração que os maiores provedores de acesso e conteúdo na internet são controlados por grupos que dominam as mídias tradicionais. Para Jeaneney,

deve-se tomar cuidado, pois o estudo das relações de poder, conflitantes ou convergentes, dos meios de comunicação e o Estado ou na relação com a nação como um todo, não deve deixar de considerar as instituições de comunicação em si mesmas. No interior dos estabelecimentos de comunicação, na vida cotidiana de um jornal, rádio ou televisão, se vê refletida constantemente a vida política do país, apresentando resumidamente o jogo que é jogado no mundo político53.

51 FALCON, Francisco. História e poder. In: FLAMARION, Ciro; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da História, ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 52 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 20. 53 JEANENEY, Jean-Noël. A mídia. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 213-230. 38

Desta forma, a compreensão do poder da comunicação e a análise das diferentes ligações e usos dela por parte de parlamentares e grupos evangélicos nos oferecem subsídios para interpretarmos a organização e conciliação destes interesses no evento de maior importância da história política recente do país, a Assembleia Nacional Constituinte, que consumou o processo de redemocratização iniciado há mais de 10 anos antes. Ao tratarmos especificamente sobre o público alvo, entendemos que o discurso dos políticos evangélicos estava destinado a um auditório, com o intuito de influenciar a opinião pública a respeito da atuação do grupo na Câmara dos Deputados, sobretudo na Constituinte. Em Tratado da Argumentação, de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, percebemos que o discurso e a argumentação são dirigidos a um público previamente conhecido pelo locutor, por meio de um discurso que pode ser escrito. Entretanto, “percebemos melhor a argumentação quando é desenvolvida por um orador que se dirige verbalmente a um determinado auditório, do que quando está contida num livro posto à venda em livraria”54. A argumentação necessita da aceitação de quem a recebe. Em outras palavras: o orador precisa saber o que o público deseja ouvir, com a finalidade de gerar simpatia, aceitação e, consequentemente, influência. Assim, entendemos que a comunicação, aqui especificamente a oral, encontra espaço suficiente para projetos de poder. Cabe, neste caso, ressaltar a importância da oralidade no cristianismo, mesmo sendo uma religião em que a tradição escrita, através da Bíblia, é incontestável. Diversas citações bíblicas destacam sua importância, sobretudo do Novo Testamento, sintetizadas na seguinte passagem, conhecida por “A Grande Comissão”:

Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século55.

Destacamos, também, a relevância da retórica para argumentação na mídia, por ser um recurso que abrange tanto o poder de persuasão, quanto o conhecimento, induzindo o público à aceitação de um determinado discurso.56 No contexto da mídia, isso requer a necessidade de alcançar uma opinião pública, ou seja, a intenção de fazer com que opiniões individuais ou de

54 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 15-70. 55 O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS, cap. 28, vers. 18-20, p. 906. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012. 56 CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi: Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, Rio de Janeiro, n. 1, p. 123-152, 2000. Disponível em . Acesso em 17 fev. 2017. 39

um grupo específico tornem-se a opinião geral57. Exemplificando de forma básica, quando os parlamentares evangélicos criticam a suposta apologia ao homossexualismo e lesbianismo em rede nacional e pedem providências ao Ministro da Justiça, na verdade creem estar defendendo valores de toda a sociedade brasileira, absolutamente cristã e pautada em seus valores éticos e morais58. Leonildo Silveira Campos vai trabalhar a comunicação e a retórica, especificamente no campo neopentecostal brasileiro e tendo por base a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), em seu livro Teatro, Templo e Mercado: Organização e Marketing de um empreendimento neoepentecostal. Publicado em 1997, o texto mantém muito da atualidade de seu conteúdo, analisando a adoção de técnicas e padrões empresariais na estrutura da IURD, o uso de recursos dramatúrgicos e teatrais nos cultos, as bases teológicas e rituais da igreja e as relações políticas de suas lideranças. Para Campos, conforme investigado no capítulo 6, Propaganda e Religião: a comunicação da Igreja Universal, o processo de globalização alterou, além dos campos econômico e cultural, o meio religioso, exigindo novos métodos de funcionamento, controle e fidelização dos fiéis:

Até então, as organizações religiosas funcionavam atreladas à tradição, principal forma de se transmitirem os valores e práticas religiosas. Após essas mudanças, as pessoas deixaram de orientar suas ações pelos programas embutidos nas instituições tradicionais e se tornaram dependentes da mídia, como fonte de modelos para regular seus comportamentos. Por isso, é impossível visualizarmos o drama social, as relações humanas ao redor do sagrado e as trocas dos bens religiosos, sem uma análise do papel desempenhado pela propaganda e publicidade na montagem de um sistema religioso orientado pelo marketing59.

Esse deslocamento ficou mais visível na sociedade norte-americana após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando os pesquisadores David Riesman, Nathan Glazer e Reuel Denney publicaram suas pesquisas no livro The Lonely Crowd, em que descreveram três novos tipos ideais: traditivo-dirigido, introdirigido e alterdirigido, descritos a seguir por Campos:

O primeiro tipo corresponde às pessoas, cujas ações sociais são orientadas pela tradição. O segundo, àquelas dirigidas por valores internalizados pelo processo de

57 MOREL, Marco. Em nome da opinião pública. In: As transformações dos espaços públicos. Imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade Imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005. 58 Em 1983, o deputado estadual Edivaldo Holanda (PDS/MA), que viria a tornar-se deputado federal constituinte, teceu críticas ao apresentador Clodovil Hernandes e à TV Bandeirantes por supostamente fazerem apologia à homossexualidade, pedindo providências ao então ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel para tirar seu programa do ar. 59 CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. 1. ed. Petrópolis, São Paulo: Vozes; Simpósio, Umesp, 1997. p. 239. 40

socialização. Já o terceiro tipo representa a adoção de um novo estilo de vida, que brota na sociedade urbana e industrial, em que o indivíduo assume um comportamento social tipo radar, pois sempre está procurando uma receita automática para um comportamento mais moderno, que houve. No decorrer do aparecimento do “alterdirigido”, os meios de comunicação se tornaram o principal fornecedor desses modelos. Graças à capacidade de persuasão da propaganda e publicidade, o “alterdirigido” pode se ajustar e ajudar a construir uma nova realidade cultural60.

Em paralelo, surgiu, no meio religioso norte-americano, a figura dos televangelistas ou pastores eletrônicos, como Oral Roberts, que utilizava o rádio e a televisão para disseminar novos padrões religiosos, adaptados à nova realidade dos meios de comunicação de massa, juntamente com o ressurgimento dos movimentos de cura divina. Segundo Campos, neste contexto há enorme discussão sobre o “aspecto manipulativo da propaganda”, com enfoque na “conformação passiva dos indivíduos à nova realidade”. Ou seja: a publicidade e o marketing existem apenas para enganar as massas e tirar o máximo possível de proveito delas, baseando-se no tripé propaganda, publicidade e mentira, reforçado pela propaganda ideológica da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. Um dos defensores desta tese era Guy Durandin, que entendia a propaganda como a tentativa de “exercer uma influência sobre os indivíduos e grupos”, incluindo “o ato de esconder aspectos fundamentais para o julgamento de um fato, a dissimulação de objetivos, sempre com vistas à perturbação do livre exercício do julgamento racional”, no que era contestado por Campos:

Ora, a propaganda existe exatamente porque há conflitos entre grupos e visões de mundo diferenciadas. Sem tais conflitos, não haveria necessidade de se elaborarem técnicas para conquistar outras pessoas para uma determinada atitude ou visão, tidas como “verdadeiras” e “únicas”61.

Para o autor, “os propagandistas religiosos não estão preocupados com os aspectos lógicos e evidentes de uma afirmação e sim, com o resultado prático delas”. Para ele, “a posição deles se assemelha ao dos pragmatistas norte-americanos, que afirmavam que o ‘verdadeiro é o que é vantajoso, não importando de que maneira’ o seja”62. Prosseguindo, ele diferencia os conceitos de publicidade, voltado para atividades comerciais, e propaganda, direcionada “à mudança de ideias, comportamentos e sentimentos, principalmente no que se refere às crenças religiosas, ideológicas ou políticas”. No entanto, entendemos que, no campo religioso contemporâneo, a diferença entre ambos conceitos é uma linha tênue, sendo uma ou outra utilizadas de acordo com os propósitos aos quais servirá: “por

60 Ibid. p. 240. 61 CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. 1. ed. Petrópolis, São Paulo: Vozes; Simpósio, Umesp, 1997. p. 240-241. 62 Ibid. p. 241. 41

este motivo pretendemos (...) considerar que, tanto a sua [no caso, a Igreja Universal] como outras propagandas, se situam nas fronteiras entre a realidade, desejos e sonhos de um público ávido por realizá-los”63. No entanto, Campos adverte para os que associam a propaganda “à mentira, fraude e desumanização”, esclarecendo que

é preciso ter em mente que a propaganda, aqui no sentido amplo, incluindo publicidade e estratégias de marketing, é uma consequência direta de um sistema de se articular a vida ao redor do mercado, pois como escreveu Renato Ortiz (1994:119), “no mundo em que o mercado torna-se uma das principais forças reguladoras, a tradição torna-se insuficiente para orientar a cultura”. Ao lado disso, aumenta a importância da mídia no processo de reengenharia do campo religioso e da cultura de um modo geral. Mais do que nunca é preciso reconhecer que a cultura é um conjunto de receitas determinadoras do comportamento humano, e que pode também ser compreendida à luz da teoria do mercado regulador. (...) A Igreja Universal se constitui como movimento religioso num contexto de globalização, que tornou possível o emprego da propaganda, publicidade e marketing religioso em seu processo de expansão. Esta prática mercadológica repousa no pressuposto de que é no ato de consumir individualmente que o ser humano adquire a sua humanização e não na preocupação com os excluídos desse processo. Nesse sentido, a propaganda tende a desempenhar nos sistemas religiosos função semelhante ao do sangue no corpo humano, fazendo circular a mensagem do centro às extremidades; daí, a ganância em se adquirir espaço na mídia e em se comprarem emissoras de rádio e de televisão. Essa estratégia de crescimento na mídia reforça o que assinalou Baudrillard (1994:27): “hoje é preciso produzir os consumidores, é preciso produzir a própria demanda, e essa produção é infinitamente mais custosa do que a das mercadorias”64.

Com base nisso, compreendemos que a mídia não é apenas uma ferramenta de proselitismo religioso. Para muitas denominações evangélicas, é um meio de se fazer presente no mercado, combater concorrentes, buscar e fidelizar clientes, oferecendo soluções espirituais, sempre inovadoras e atuais, tendo em mente alguns dos aspectos anteriormente abordados. O principal é o de que a tradição tornou-se insuficiente: no caso das igrejas neopentecostais, elas estão na contramão das tendências protestantes históricas e pentecostais clássicas, comumente rotuladas como denominações antiquadas, espiritualmente frias e de costumes e doutrinas complexas e ultrapassadas. Assim, os neopentecostais buscam retirar delas sua legitimidade, transferindo para si o rótulo de igrejas autênticas pois, agindo de acordo com as necessidades do mercado, estão sempre mostrando algum tipo de novidade, como novas técnicas de evangelização, ritmos musicais contemporâneos, práticas de libertação e exorcismo, métodos de organização de igrejas, nomenclaturas de cargos eclesiásticos, entre muitos outros.

63 Ibid. p. 242-243. 64 Ibid. p. 243-244. 42

A IURD, por exemplo, possui características muito peculiares, como cultos de libertação (Sessão do Descarrego), as reuniões setoriais (empresários, solteiros, casados, família etc.), além das disputadas correntes (Corrente dos 70, Nação dos 318), em que são comercializados objetos como “água do Rio Jordão”, óleo e canetas “ungidos”, cajados, sabonetes para “purificação espiritual”, “rosa consagrada”, além de rituais utilizando sal grosso, fogo e até mesmo o curioso culto com lixeiras, onde são depositadas confissões de pecados. A IURD é seguida por igrejas como a Mundial do Poder de Deus e a Internacional da Graça de Deus, que oferecem, respectivamente, o “martelo da justiça de Deus” e o cartão de “crédito com Deus”. As práticas da IURD não são, porém, unânimes e exclusivas, refletindo em inovações por parte da concorrência neopentecostal. A principal delas surgiu no entorno do movimento do G12, surgido na Colômbia e adotado por grandes denominações brasileiras, gerando inúmeras versões, como o M12, do Pastor Renê Terra Nova, de Manaus (AM). O G12 difundiu no Brasil não apenas cultos, mas cursos e até mesmo “consultoria” em batalha espiritual65, atos proféticos, organização de igrejas em células, o encontro com Deus (espécie de retiro espiritual), originando, além da profusão de títulos, nomenclaturas eclesiásticas e neologismos – apóstolos e até mesmo um “paipóstolo” –, a divisão e o surgimento de incontáveis novas igrejas evangélicas66. Tais práticas dentro da tendência neopentecostal brasileira vão ao encontro do perfil “alterdirigido”, que vimos anteriormente. No nosso contexto, as igrejas tradicionais não correspondem mais às expectativas de muitos fiéis, que estão à procura de novidades, assim como as pentecostais clássicas. São denominações rígidas em muitos aspectos, como doutrina e liturgia, que não costumam aderir às novas tendências doutrinárias neopentecostais. Assim, estes fiéis passam a buscar e frequentar novas igrejas, consumindo seus produtos (programas de TV, CDs, DVDs, sites) e buscando suas soluções (cultos de cura divina, reuniões de batalha espiritual, aconselhamento sentimental). Para evitar o esgotamento, muitas denominações promovem congressos, seminários e retiros espirituais, além do lançamento de novos produtos e soluções, com o objetivo de reavivar sua membresia. Quando o cansaço é inevitável, os fiéis reiniciam o ciclo, sendo atraídos para igrejas que ofereçam novidades. É neste sentido que Leonildo Silveira Campos afirma:

65 A apóstola Neuza Itioka lidera um ministério que oferece apoio neste campo para diversas igrejas evangélicas, dentro e fora do Brasil. ÁGAPE RECONCILICAÇÃO. Visão ministerial. Disponível em http://agapereconciliacao.com.br/agape-reconciliacao/visao-ministerial>. Acesso em: 08 mai. 2017. 66 Ver nota 11. 43

Nos programas radiofônicos e televisivos neopentecostais, as articulações entre “templo” e “mercado” se tornam tão visíveis, que até permitem o emprego das palavras “publicidade” e “propaganda” como sinônimos. De fato, as técnicas publicitárias dominam as relações da Igreja Universal, produtora de bens simbólicos e serviços religiosos, com um público carente de tais bens e serviços. É, através da linguagem publicitária e do esforço de propaganda, que ela busca atrair a atenção, reunir o seu público e divulgar suas formas de lidar com as aflições do povo67.

E é desta forma que a mídia torna-se a principal ferramenta no esforço de expansão da Igreja Universal:

Seu sistema de mídia está direcionado para persuadir e convencer os destinatários, a despertar a atenção do público-alvo para os produtos anunciados e desencadear o desejo de adquiri-los nos verdadeiros pontos de venda, onde são encontrados, sem imitação. Huxley (apud Kotler: 1980:135) afirmou certa vez, que “não é muito difícil persuadir as pessoas a fazerem aquilo que elas estão ansiosas para fazer”. Diante disso, é simplismo denunciar as estratégias de propaganda e publicidade da Igreja Universal como mera manipulação ativa de massas passivas. Há uma ansiedade por produtos por ela distribuídos, por isso a Rede Globo, assim como toda a mídia, têm conseguido poucos resultados na luta contra a propaganda iurdiana, embora seja uma contrapropaganda muito bem orquestrada68.

Por fim, o autor vai levantar novamente a questão da retórica, muito próximo do proposto por Perelman e Olbrechts-Tyteca: “todo discurso religioso é articulado em contextos sociais específicos, transmitido por locutores, que representam certos aspectos de seu campo, e absorvido por destinatários peculiares”, assumindo que as “mudanças organizacionais e sistêmicas refletem no campo religioso”, fazendo com que estejam ligados, de forma intrínseca, “ao surgimento de atos retóricos cuja explicação exige uma superação desse próprio campo”69. Para ele, “a Igreja Universal, desde o início de sua história, tem procurado construir um edifício de “representação simbólica” para expressar a sua força, legitimidade e eficiência na distribuição dos “bens de salvação””, apresentando como “credenciais de sua legitimidade, exemplos de milagres e prodígios, palavras de ordem, slogans e narrações, devidamente arranjadas na forma de “histórias de vida” ou de “testemunhos de fé”, largamente apresentados em seus meios de comunicação”:

A retórica da Igreja Universal, como uma forma de construção simbólica da realidade, está presente diretamente na Televisão Record por mais de 60 horas

67 CAMPOS, Leonildo Silveira. O marketing e as estratégias de comunicação da Igreja Universal do Reino de Deus. p. 15-16. Disponível em . Acesso em: 12 jul. 2017. 68 CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. 1. ed. Petrópolis, São Paulo: Vozes; Simpósio, Umesp, 1997. p. 293-294. 69 CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. 1. ed. Petrópolis, São Paulo: Vozes; Simpósio, Umesp, 1997. p. 298. 44

semanais, indiretamente em muitas outras oportunidades e 24 horas por dia em sua rede de rádio, tendo por finalidade atrair novos adeptos e manter os que já aderiram à sua pregação. Dessa maneira, ouvintes e simpatizantes são estimulados em suas emoções, recebem promessas de solução para seus inúmeros problemas, e a garantia de uma troca vantajosa para ambos os lados. Alguns atos retóricos estão voltados para se conseguir a adesão contínua, principalmente daqueles até então em permanente trânsito religioso. Com esse fim, empregam-se argumentos cativantes, como a reafirmação contínua de sua excelência em milagres e prodígios, ao lado de argumentos intimidatórios, que apontam para quem não aderir a sua pregação as consequências do fogo infernal ou descenso social inevitável, que na sociedade de consumo, são quase sinônimos70.

Portanto, “os atos retóricos da IURD buscam diminuir a distância entre o discurso e a ação na medida que se apresenta como uma “igreja de resultados”71, refletindo “a existência de uma demanda social por eixos básicos que possam dotar a biografia de milhões de indivíduos de sentido e unidade”, conseguindo “reprocessar materiais simbólicos até então desprezados pelo racionalismo de agentes majoritários no catolicismo tradicional, protestantismo histórico e kardecismo” e aliando “poesia e razão, criatividade e controle, “sagrado selvagem” e inibição institucional”72.

1.5 Os evangélicos e a Revolução de 1930: a Confederação Evangélica do Brasil

A presença evangélica na política brasileira, durante o Império e boa parte da República Velha, foi praticamente inexistente. Neste período, Paul Freston aponta apenas três senadores protestantes: Alfredo Ellis, senador por São Paulo de 1903 a 1925, protestante nominal; Érico Coelho, senador pelo estado do Rio de Janeiro entre 1906 e 1909 e entre 1914- 1918, pertencente à Igreja Evangélica Brasileira; e Joaquim Nogueira Paranaguá, que exerceu diversos cargos na política do Piauí, convertido à Igreja Batista no fim da carreira política73. Foi apenas a partir da Revolução de 1930 que os evangélicos se organizaram e adentraram no meio político de forma mais incisiva. A iniciativa do novo governo em romper com o sistema político da República Velha trouxe prejuízos aos protestantes, que possuíam a simpatia de antigos liberais e republicanos, deslocando a Igreja Católica novamente para o centro do poder.

70 Ibid. p. 300-302. 71 Ibid. p. 310. 72 Ibid. p. 326. 73 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 151-152. 45

Anos antes, já havia ocorrido a tentativa de oficializar o catolicismo como fé do povo, sem sucesso. Depois de 1930, no entanto, a reaproximação entre Igreja e Estado se intensificou, com iniciativas como a autorização do ensino religioso nas escolas públicas e a inauguração da estátua do Cristo Redentor no morro do Corcovado, no Rio de Janeiro, em 193174. Proposta anterior de instalação de um monumento cristão no local, por exemplo, havia sido descartada após a proclamação da República. Em resposta à Liga Eleitoral Católica (LEC), organizada em 1932, líderes evangélicos, encabeçados pelos presbiterianos, lançaram um manifesto pouco depois, conclamando a participação evangélica nas eleições que escolheriam os membros da Constituinte. Dentre os pontos levantados pelo manifesto, figuravam a defesa das liberdades individuais e do parlamentarismo; o voto secreto; a justiça gratuita; laicidade do Estado; educação básica gratuita e ensino superior acessíveis aos mais pobres; o cooperativismo; divórcio; pacifismo e a não-realização de eleições aos domingos75. É neste contexto que surge a Confederação Evangélica do Brasil (CEB). Segundo o teólogo Alderi Souza de Matos,

nas primeiras décadas do século 20, o protestantismo brasileiro sofreu a influência de algumas correntes teológicas norte-americanas, como o evangelho social, o movimento ecumênico e o fundamentalismo. Inspirado em parte pelos dois primeiros, surgiu um notável esforço cooperativo entre as igrejas históricas, sob a liderança do Rev. Erasmo Braga, secretário da Comissão Brasileira de Cooperação (1917). Essa entidade se uniu em 1934 à Federação das Igrejas Evangélicas do Brasil e ao Conselho Nacional de Educação Religiosa para formar a Confederação Evangélica do Brasil (CEB)76.

Assim, a CEB não era uma mera frente de oposição à atuação política católica através da LEC, pois possuía também um caráter unionista, procurando criar um movimento de cooperação entre as igrejas evangélicas brasileiras em diferentes segmentos. Em Introdução ao Protestantismo no Brasil, os pesquisadores Antônio Gouvêa Mendonça e Prócoro Velasques Filho analisaram alguns dos esforços da CEB, como a tentativa de criação de liturgias comuns às diversas tradições evangélicas, introduzindo um novo manual de culto e um novo hinário, que seriam elaborados na década de 1940. A Igreja Metodista foi a única a adotar o Hinário Evangélico, e o manual litúrgico da CEB, Liturgia – Manual para o culto público, não foi utilizado, oficialmente, por nenhuma importante denominação brasileira77.

74 Ibid. p. 153. 75 Ibid. p. 153-154. 76 MATOS, Alderi Souza de. Breve História do Protestantismo no Brasil. Disponível em . Acesso em: 13 nov. 2016. 77 MENDONÇA, Antônio Gouvêa; VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990. p. 198-200. 46

Figura 5 – Rev. Erasmo Braga, precursor da Confederação Evangélica do Brasil e presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil entre 1924 e 1926. Autor desconhecido.

Fonte: http://www.bu.edu/missiology/files/2013/02/Rev.-Erasmo-Braga.jpg

Visando a Constituinte de 1934, houve grande mobilização evangélica nas eleições que elegeriam seus representantes, com destaque para os tradicionais. Porém, o único evangélico eleito para a Constituinte de 1934 foi o pastor metodista Guaracy Silveira, pelo PSB de São Paulo. Classificado como reacionário, Silveira foi expulso do partido. Seu mandato foi caracterizado pela defesa moderada do laicismo, servindo de ponto de equilíbrio entre o movimento anticlerical e as reivindicações da base católica. Após a Constituinte, Silveira não conseguiu se reeleger, e o Congresso Nacional ficou sem representação evangélica até 1937, quando o golpe do Estado Novo o dissolveu. Foi apenas em 1946, com o fim do regime e a convocação de nova Constituinte, que os evangélicos passaram a ter representante na Câmara. Novamente Guaracy Silveira, que havia exercido cargos na estrutura do Ministério do Trabalho durante o Estado Novo, foi o único parlamentar do segmento, desta vez eleito pelo PTB.

47

Figura 6 – Rev. Guaracy Silveira, com farda de capelão da Revolução Constitucionalista de 1932. Autor desconhecido.

Fonte: http://www.metodista.org.br/content/interfaces/cms/userfiles/images/guaracysilveira_site.jpg

No novo mandato, entretanto, sua postura foi diferente. Diante do crescimento comunista, aliou-se aos católicos, assumindo uma postura menos laicista e mais corporativista. O contexto geopolítico era o da Guerra Fria, com a disputa bipolar entre os Estados Unidos e a União Soviética, na qual boa parte das lideranças religiosas brasileiras tomou partido do primeiro. A partir de Silveira, o crescimento da representação evangélica no Congresso foi gradativo. Partindo de apenas 1 parlamentar em 1933 e em 1946, em 1950 foram 7 evangélicos eleitos para a Câmara dos Deputados. Antes concentrada majoritariamente no PTB em 1951, ela fragmentou-se ao longo do período democrático, dobrando o número de partidos representados até 1962. Em paralelo, a CEB, dotada de forte preocupação social, organizou-se em diversos departamentos: “de Literatura, de Mocidade, de Atividades Religiosas e Educativas, de Ação Social, de Imigração e Colonização”78. A Confederação esteve dividida entre uma inclinação mais voltada para o progressismo, simbolizado pelo ecumênico Conselho Mundial de Igrejas (CMI), e o Concílio Internacional de Igrejas Cristãs (CIIC), de orientação conservadora. A disputa agravou-se no período da Guerra Fria, quando a CIIC, por influência norte- americana, assumiu um caráter anticomunista, combatendo críticas políticas mais

78 DIAS, Agemir de Carvalho. O ecumenismo: uma ótica protestante. p. 6. Disponível em . Acesso em: 13 nov. 2016. 48

aprofundadas aos problemas sociais decorrentes do modelo capitalista. Em 1955, foi criada a Comissão de Igreja e Sociedade. Pouco depois,

a “Comissão” decidiu se incorporar a CEB e foi criado o Setor de Responsabilidade Social da Igreja, [quando] Waldo Cesar foi escolhido como secretário Executivo desse setor. Mais três conferências foram realizadas. A segunda reunião de estudo aconteceu em Campinas, em 1957, com o tema “A igreja e as rápidas transformações sociais do Brasil”. A terceira reunião foi em São Paulo e tratou da “presença da Igreja na evolução da nacionalidade”. A quarta reunião de estudos aconteceu em Recife, de 22 a 29 de julho de 1962, participaram 167 delegados de 16 estados brasileiros, representando 14 denominações, foi secretário executivo da conferência o Rev. Carlos Cunha e o Rev. Almir dos Santos era o presidente do Setor de Responsabilidade Social, teve como tema “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”, a reunião ficou conhecida como “Conferência do Nordeste”. Foram palestrantes dessa reunião entre outros: , Paul Singer, Gilberto Freire, João Dias de Araújo, Joaquim Beato, Almir dos Santos. Ainda contava entre os participantes alguns nomes que se tornaram importantes no mundo ecumênico brasileiro: Rubem Alves, Richard Shaull, Jether Ramalho, Aharon Sapsezian, Eber Ferrer, Gerson Meyer79.

Após o golpe de 1964, houve um progressivo esvaziamento da CEB, até sua total desarticulação. A presidência da CEB foi exercida pelo Pastor Amantino Adorno Vassão, conservador, o que afastou os progressistas e ecumênicos da instituição. Houve, por parte do regime instaurado, perseguição aos adversários dentro da instituição. Em 1967, Waldo César, que foi presidente da União Latino-americana da Juventude Evangélica (ULAJE) e já havia sido interrogado pelo DOPS, teve sua casa invadida pelos órgãos de segurança, sendo levado preso80. O Pastor Carlos Alberto Correa da Cunha, futuro fundador da Igreja Presbiteriana Unida (IPU), fui expulso da CEB dias antes do golpe, por aparecer em matéria do jornal das Ligas Camponesas81. Jether Pereira Ramalho, membro da Igreja Congregacional, coordenador dos setores de Responsabilidade Social e de Ação Social da Igreja juntamente com Cunha, também foi afastado da CEB82.

79 Ibid. p. 7-8. 80 CUNHA, Magali do. “O passado nunca está morto”. Um tributo a Waldo César e sua contribuição ao movimento ecumênico brasileiro. Estudos de Religião, Ano XXI, n. 33, 136-158, jul/dez 2007. 81 DIAS, Zwinglio Mota (org.). Memórias ecumênicas protestantes – Os protestantes e a Ditadura: colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia, 2014. p. 102-103. 82 Ibid. p. 110. 49

1.6 Os evangélicos e as relações com a ditadura militar

Em 1964, ocorreu o golpe de estado que destituiu o presidente João Goulart, e dois anos depois, o Ato Institucional Nº 2 (AI-2) extinguiu os partidos políticos, instaurando o modelo bipartidário. A postura dos evangélicos diante do golpe de 1964 foi de apoio majoritário. Diversas lideranças apoiaram o movimento, que tinha como pretexto o combate ao “perigo comunista”, simbolizado naquele momento pelo governo do PTB. O exemplo da adesão evangélica ao regime militar foi a representação partidária na Câmara a partir de 1966: 11 deputados agruparam-se na ARENA governista, e apenas 2 no oposicionista MDB.

Tabela 3 – Deputados federais evangélicos – Titulares e suplentes (1933-1987)

1933-1935 1 1935-1937 - 1946-1951 1 1951-1955 7 1955-1959 8 1959-1963 11 1963-1967 13 1967-1971 13 1971-1975 11 1975-1979 14 1979-1983 13 1983-1987 17 1987-1991 36

A simpatia pelo governo militar possuía diferentes graus de comprometimento. Líderes evangélicos notáveis eram convidados para cursos na Escola Superior de Guerra (ESG), considerada a alma mater do regime, onde a Doutrina de Segurança Nacional foi gestada. Entre eles, estavam Nilson do Amaral Fanini e Irland Pereira de Azevedo, este Pastor da PIB de São Paulo83. Incontáveis denominações passaram para o apoio institucional, algumas de forma direta, e outras, de maneira mais tímida. Os dirigentes da Confederação Evangélica do Brasil, Amantino Adorno Vassão e Rodolfo Anders, dirigiram telegrama de congratulações ao Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro general-presidente do período; o Mensageiro Luterano, de junho de

83 MONTENEGRO, Eraldo (org.). Arolde de Oliveira: uma trajetória de trabalho. Rio de Janeiro: E-papers, 2014. 50

1964, a respeito do processo aberto contra padres “comunistas”, dizia que “as investigações do atual governo descobriram tramas surpreendentes da ação vermelha no país”, que “em tempo livrou o Brasil da desgraça vermelha”; o Brasil Presbiteriano, de março de 1964, e O Jornal Batista, do mês seguinte, tiveram posturas semelhantes: o primeiro afirmava que o governo militar estava “fazendo a limpeza para que os comunistas, agitadores e peculatários fiquem de fora”; para o segundo, o golpe foi um desafogo84. Todavia, um importante segmento evangélico se opôs à ditadura: majoritariamente, pela defesa dos direitos humanos; outros, entretanto, optaram pela resistência através da luta armada. A morte do jornalista iugoslavo Vladimir Herzog, membro do PCB e diretor da TV Cultura, em 1975, obteve repercussão internacional. No ato ecumênico realizado em sua memória, na Igreja da Sé, estavam presentes o rabino Henry Sobel, o arcebispo D. Paulo Evaristo Arns, o bispo D. Hélder Câmara e o pastor presbiteriano Jaime Nelson Wright. A presença do pastor Jaime Wright era emblemática: seu irmão, Paulo Wright, militante de esquerda e ex-deputado estadual, foi preso pelos órgãos de segurança da ditadura e considerado como desaparecido político desde 1974. O acontecimento fez com que o engajamento de Jaime na defesa dos direitos humanos aumentasse. Destacaram-se também como opositores do regime o Pastor batista Davi Malta e Aurélio Viana, também batista, deputado federal nos anos 1950 e senador pelo PSB da Guanabara em 1962. No contexto de oposição de lideranças presbiterianas descontentes com a aproximação da IPB com o regime surgiu, sob a liderança do Reverendo Boanerges Ribeiro, a Igreja Presbiteriana Unida (IPU), em 1978. O deputado Lysâneas Maciel, membro da Igreja Cristã de Confissão Reformada (ICCR), de linha calvinista, foi cassado dois anos antes, com base no Ato Institucional Nº 5 (AI-5), de 1968, após duro discurso no qual protestou contra a cassação de outros parlamentares. A ICCR também surgiu como dissidência da IPB durante a ditadura. Apesar da adesão de parcela significativa dos evangélicos ao regime, a representação no Congresso Nacional não experimentou mudanças significativas. De 1965, a primeira eleição após o golpe a ainda na vigência do pluripartidarismo, até 1982, a última do período autoritário e primeira após o fim do bipartidarismo e com eleições diretas para governadores de estado, a variação foi de 13 para 17 parlamentares (Ver Tabela 3). No sentido contrário do modesto crescimento no Legislativo federal, pela primeira vez três governadores evangélicos foram eleitos, mesmo que pelo voto indireto: Geremias Fontes, presbiteriano, pelo antigo estado do Rio de Janeiro em 1966; Eraldo Gueiros Leite, também

84 Dias, Zwinglio Mota (org.). Memórias ecumênicas protestantes – Os protestantes e a Ditadura: colaboração e resistência. Rio de Janeiro: Koinonia, 2014. p. 184-186. 51

presbiteriano, eleito para o governo de Pernambuco em 1970; e Enoc Reis, batista, governador do Amazonas entre 1975-197985. Foi iniciado em 1978, durante o governo do General Ernesto Geisel, o processo de desmonte do aparato autoritário com vistas à abertura política. O AI-5 foi revogado. No ano seguinte, já no governo do General João Figueiredo, a Lei da Anistia foi promulgada. Em paralelo, o sistema bipartidário foi extinto. A ARENA transformou-se em PDS, o MDB em PMDB, e surgiram PP (logo incorporado ao PMDB), PTB, PDT e PT. O processo de abertura política possibilitou que novos atores sociais e políticos emergissem, e é neste contexto que os evangélicos aumentam sua participação política. Nas eleições de 1982, a primeira pós-abertura, os parlamentares evangélicos eleitos foram 12. Em sua primeira tentativa, a Igreja Universal, que posteriormente viria a ser um dos principais expoentes da atuação política evangélica, lançou Eraldo Macedo, irmão do Bispo Edir Macedo, como candidato a deputado estadual pelo PTB fluminense, sem sucesso. Iris Rezende, do PMDB, foi o primeiro governador evangélico eleito pelo voto direto do Brasil, pelo estado de Goiás. Aquele pleito foi o último no qual os protestantes históricos constituíram maioria entre os eleitos para a Câmara: somente 2 parlamentares eram pentecostais, José Fernandes e Mário de Oliveira, membros da Assembleia de Deus e da Igreja do Evangelho Quadrangular, respectivamente. E dos 5 suplentes que assumiram no decorrer da legislatura, 4 eram batistas e 1 adventista. Entretanto, seria em 1986, nas primeiras eleições gerais após o fim do regime militar, que a representação evangélica no Congresso Nacional causaria impacto: a eleição da maior bancada até então, de maioria pentecostal, eleita para a realização de uma Assembleia Nacional Constituinte, buscando protagonismo em concorrência com os católicos e os partidos de esquerda, dando fim ao processo de “apolitismo”, na expressão de Ricardo Mariano.

85 O primeiro evangélico a assumir um governo estadual foi o presidente da Assembleia Legislativa de Pernambuco Antônio Torres Galvão, fiel da Assembleia de Deus, interino em 1952. 52

2 A ORGANIZAÇÃO E ATUAÇÃO DA BANCADA EVANGÉLICA NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE (1987-1988)

2.1 1986: a estratégia da Assembleia de Deus e a virada pentecostal

Até 1986, a participação evangélica resumia-se às candidaturas avulsas, sem apoio institucional, principalmente entre os pentecostais. Os espaços de atuação eram, principalmente, o ambiente familiar e os templos, distantes das disputas políticas nas eleições e partidos. Foi apenas em 1981 que a Assembleia de Deus86 permitiu que seus pastores pudessem se candidatar a cargos eletivos, desde que licenciados de suas funções eclesiásticas87. Nas eleições de 1982, foram 17 os evangélicos eleitos para a Câmara dos Deputados. Os representantes pentecostais, porém, estavam restritos a apenas 2 representantes. Foi somente a partir de 1986 que os grupos evangélicos empenharam, publicamente, apoio institucional às candidaturas de suas lideranças, com vistas à Constituinte. O livro Irmão vota em irmão, de Josué Sylvestre, membro da Assembleia de Deus, tornou-se um marco no meio evangélico, transformando-se em slogan recorrente no segmento. Em linhas gerais, Sylvestre conclamava-os para a escolha de representantes da mesma fé nas eleições daquele ano. Paul Freston analisa a “irrupção pentecostal na política”, encabeçada pela Assembleia de Deus, “a igreja de extensão nacional por excelência”, o que “implica em nova dispersão geográfica e partidária, novo perfil social e novas trajetórias políticas”, e indaga: “por que líderes pentecostais, principalmente da AD, quiseram romper com o tradicional “crente não se mete com política” e apresentar candidatos próprios?”88. Neste sentido, Freston afirma que “não há evidência para uma mudança teológica profunda que pudesse provocar a nova postura”, buscando os fatores que contribuíram para este comportamento dentro e fora do campo religioso, afirmando que as causas básicas “tem a

86 A Assembleia de Deus é a principal denominação pentecostal do Brasil, fundada em Belém (PA) pelos missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg, em 1911. No entanto, é uma tendência fragmentada, existindo diferentes lideranças nas chamadas convenções ou ministérios. Na presente pesquisa, ao citarmos Assembleia de Deus, nos referimos à CGADB, a maior e mais importante. Em 1989, ocorreria importante cisão na CGADB, quando o Ministério de Madureira se transformou na Convenção Nacional das Assembleias de Deus no Brasil – Ministério de Madureira (CONAMAD). 87 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 208-209. 88 Ibid. p. 180. 53

ver com a evolução do campo religioso e com a defesa do ambiente sectário”89. Assim, o autor sugere três razões conexas. A primeira delas coloca os líderes religiosos evangélicos como os principais beneficiários da politização do segmento. O autor justifica o comportamento comparando as igrejas históricas e as pentecostais, sendo as últimas mais recentes, cada vez maiores, com bases amplamente populares e mais tendentes ao sectarismo. Deste modo,

o pastor pentecostal sofre de um status contraditório, tanto dentro da sua comunidade como entre esta e a sociedade ambiente. Lançar-se na política, ou lançar um familiar ou protegido, é maneira de atenuar as tensões e profissionalizar seu campo. A conexão pública ajuda a estruturação internamente, a força política se traduzindo em fortalecimento de suas posições e organizações. A política fortalece inclusive pelo acesso à mídia que frequentemente faculta; como já vimos, esta é outra via de estruturação do campo evangélico, até em nível transdenominacional (...)90.

A segunda razão é reflexo da concorrência religiosa com o catolicismo, buscando “igualdade de status na vida pública” e, assim como diversas organizações ligadas ao catolicismo, recursos públicos para fortalecer a “expansão pentecostal”. A terceira é a reação às mudanças sócio-políticas que o Brasil experimentava, sob o lema de “ameaças à família”: “em suma, a politização pentecostal visa fortalecer lideranças internas, proteger as fronteiras da reprodução sectária, captar recursos para a expansão religiosa e disputar espaços na religião civil”91. No capítulo 13 de sua pesquisa, intitulado A irrupção pentecostal na política (II), Freston aprofunda algumas das questões levantadas anteriormente. Ele destaca que nem todas as igrejas pentecostais mudaram seu posicionamento em relação ao tema: Assembleia de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular e IURD se politizaram, enquanto a Igreja Pentecostal Deus é Amor e a Congregação Cristã no Brasil mantiveram-se distantes do assunto, por diferentes razões92. O momento político vivido pelo país, tendo a Constituinte como divisor de águas, motivou a busca do protagonismo evangélico em importante momento histórico:

Um elemento é a mística em torno da Constituinte e a construção de uma ideologia do papel histórico dos evangélicos como “povo de Deus”. A Constituinte é vista como um tempo diferente no qual as regras não se aplicam. No tempo normal, reina o princípio da obediência às autoridades; mas no momento de uma Constituinte, outras ações são possíveis. “O tempo agora é de falar. Depois de elaborada a nova

89 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 181. 90 Ibid. 181. 91 Ibid. 181. 92 Ibid. 212. 54

Constituição, então já não será mais tempo de falar e sim de obedecer” (in Sylvestre 1986:25). Não se explica, porém, como surgem esses momentos excepcionais; o fetiche do poder não é quebrado e a política não é vista como um sistema93.

Anos depois, a análise de Ricardo Mariano, em alguns aspectos, foi semelhante à de Freston:

[A] mudança ocorreu justamente na Assembleia Constituinte, quando a cúpula eclesiástica da Assembleia de Deus, temendo que a nova Carta Magna restringisse sua liberdade religiosa e restabelecesse a Igreja Católica como religião oficial do Estado – boatos alarmistas e persecutórios que seus próprios dirigentes e membros contribuíram para disseminar por todo o país -, mobilizou suas bases pastorais para apoiar o lançamento de candidaturas oficiais na maioria dos estados brasileiros, estratégia que conseguiu eleger 13 deputados federais94.

Mariano aponta diversos fatores para o fim do “apolitismo” pentecostal, como o temor da Assembleia de Deus e outros grupos de que a nova Constituição restringisse a liberdade religiosa, restabelecendo o catolicismo como religião oficial do Estado, e a presença de grupos adversários como “homossexuais, feministas, macumbeiros e católicos entre outros”, citando Josué Sylvestre, que estariam representados na Constituinte e, portanto, lutariam por seus interesses. Daí justificou-se a participação dos grupos pentecostais nas eleições, com o objetivo “de ingressar na política partidária para defender sua liberdade religiosa e a moralidade cristã tradicional e para fazer oposição direta a seus adversários religiosos e laicos”95. Para Freston, no entanto, alguns desses temores evangélicos eram refutáveis e passíveis de desconfiança:

As histórias são sempre vagas e levam as marcas da boataria. Como entendê-las? A ideia de retorno a uma religião oficial, quase cem anos após a separação de Igreja e Estado e sem campanha pública preparatória, é estranha. Estava a cúpula da AD totalmente alienada no momento histórico? Ou seria manipulação cínica dos fieis, com vistas a objetivos inconfessáveis? Ou devemos entender “liberdade religiosa” como um código para referir-se a algo maior e mais ancorado na realidade?96.

A estratégia da Assembleia de Deus foi vitoriosa, com a eleição de treze parlamentares ligados à denominação. Mais dezenove evangélicos foram eleitos, formando a maior representação do segmento no Congresso Nacional até então. Outro fato importante foi o predomínio, de 1986 em diante, de parlamentares ligados às igrejas pentecostais e

93 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 212-213 94 MARIANO, Ricardo. Pentecostais e política no Brasil: do apolitismo ao ativismo corporativista. In: SANTOS, Hermílio (org.). Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea. : Edipucrs, 2010. p. 115-116. 95 Ibid. p. 116. 96 Op. Cit. p. 213-214. 55

neopentecostais: se entre 1910 e 1982 haviam sido eleitos somente cinco, apenas em 1986 eles foram dezoito97. No decorrer da legislatura iniciada em 1987, outros quatro parlamentares assumiriam mandato, sendo dois deles membros da Igreja Batista renovada (CBN)98.

Gráfico 1 - Evangélicos pentecostais e tradicionais na Câmara dos Deputados - 1933-1991 25 20 15 10 5 0 1 - 1 7 8 11 13 13 11 14 13 17 36 1933- 1935- 1946- 1951- 1955- 1959- 1963- 1967- 1971- 1975- 1979- 1983- 1987- 1935 1937 1951 1955 1959 1963 1967 1971 1975 1979 1983 1987 1991

Pentecostais Tradicionais

2.2 O impacto eleitoral do Plano Cruzado

Lançado em fevereiro de 1986 pelo Presidente José Sarney e o ministro Dilson Funaro, o Plano Cruzado previa, entre outras medidas, a instituição do cruzado como a moeda brasileira, em substituição ao cruzeiro; o congelamento dos salários, pela média dos seis meses anteriores, e de todos os preços, inclusive dos alugueis, aos níveis de 27 de fevereiro, data do decreto-lei que instituiu o plano; o “gatilho-salarial”, que reajustava o salário de forma automática sempre que a inflação alcançasse 20%; e o seguro-desemprego. As medidas econômicas tomadas pelo governo Sarney tornaram-se extremamente populares, visto que a inflação de 1985, medida pelo IPCA, foi de 127,04%. Surgiu a figura do “fiscal do Sarney”, cidadão que denunciava qualquer ação de ágio ou descumprimento das tabelas impostas pelo governo. Já no mês seguinte ao anúncio do pacote, o país experimentou

97 MARIANO, Ricardo. Pentecostais e política no Brasil: do apolitismo ao ativismo corporativista. In: SANTOS, Hermílio (org.). Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea. Porto Alegre: Edipucrs, 2010. p. 116. 98 A exemplo das Assembleias de Deus, os batistas no Brasil são divididos em diferentes tendências. No entanto, elas possuem grandes diferenças doutrinárias entre si. A mais antiga é a Convenção Batista Brasileira (CBB), organizada em 1907 em Salvador (BA), conhecida por “batista tradicional”, pela proximidade com o protestantismo histórico. Em 1965, um grupo dissidente da CBB formou a Convenção Batista Nacional (CBN), de caráter pentecostal, popularmente conhecida por “batista renovada”, nomenclatura genérica de diversos grupos batistas pentecostais, ou “batista nacional”, com menor uso. 56

deflação de -0,11%. Nos meses de abril e maio de 1986, a inflação foi de 2,18%, contra 15,56% do mesmo período de 198599. Como consequência, o Presidente José Sarney alcançou 69% de popularidade100.

Figura 7 – Cena típica nos tempos do Plano Cruzado: estabelecimento comercial fechado por prática de ágio. Autor desconhecido.

Fonte: https://jesuegraciliano.files.wordpress.com/2016/08/17-07-1986-fiscais-da-sunab-superintendencia- nacional-do-abastecimento-colocam-cartaz-e-interditam-a-casa-jose-silva-por-desrespeitar-o-congelamento-de- precos-do-plano-cruzado-na-rua-do.jpg

O Plano Cruzado, porém, não era unanimidade. Parte do PDS, a antiga ARENA, posicionou-se contrariamente às medidas, capitaneado pelo governador catarinense Esperidião Amin. Mas foi o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, o maior opositor do plano econômico:

Cinco dias depois da edição do Cruzado iria ao ar o programa de televisão do PDT em rede nacional. Brizola convocou seu secretário de Planejamento – o de Fazenda, César Maia, dera declarações favoráveis ao plano –, o economista Fernando Lopes, e pediu-lhe um gráfico que demonstrasse as perdas impostas aos salários pela medida de Sarney. Reuniu o material em uma pasta de papelão e foi para o auditório da TV Manchete, lotado de militantes do PDT, gravar sua participação no programa. No dia seguinte, 6 de março, quando a fita foi ao ar, parecia que Brizola havia assinado sua própria sentença de morte. Mesmo reconhecendo que ele tinha razão em sua análise da inviabilidade do plano, mesmo entendendo as metáforas que fizera sobre um doente em que a febre era um sintoma e que não se curaria a doença com analgésicos, mesmo sabendo que para os políticos governistas, o congelamento significava “votos, votos e mais votos”, como dissera Brizola naquela noite, muitos de seus colaboradores resmungavam pelo Guanabara, lamentando o gesto de seu

99 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor: Resultados mensais por grupos – 1979 a 1999 – Brasil e áreas. Disponível em . Acesso em: 13 nov. 2016. 100 ESTADÃO. O vaivém da popularidade dos presidentes pós-ditadura. Disponível em . Acesso em: 13 nov. 2016. 57

líder. Eles ouviam em casa e nas ruas o que Brizola só lia nos jornais: a perplexidade e a revolta contra o único homem que parecia estar contra aquele sonho de mais de uma década: preços fixos, inflação zero. Um mês depois, na Semana Santa, quando a criançada costuma personificar seus desafetos nos bonecos de Judas que irão malhar, em vários pontos da cidade era o nome de Leonel Brizola que se escrevia nos cartazes que pendiam pendurados no pescoço daqueles toscos espantalhos101.

O efeito eleitoral do Plano Cruzado foi sentido na acachapante vitória do PMDB nas eleições de 1986: dos 23 governos estaduais, 22 foram conquistados pelo partido, e 1 pelo PFL, da base governista. Em 1982, o PMDB, que encabeçava a oposição ao regime juntamente com o PT e o PDT, havia eleito apenas 9 governadores estaduais. Brizola pagou caro pela oposição ao cruzado: seu candidato à sucessão estadual, o vice-governador , foi vencido pelo candidato do PMDB Moreira Franco, apoiado por ampla aliança que envolvia até mesmo o PC do B e que havia sido derrotado por Brizola em 1982, quando ainda era do PDS, por 49% a 35% dos votos. O PDT fluminense também não conseguiu eleger seus candidatos ao Senado, Marcello Alencar e José Frejat. A nível nacional, na oposição somente o PT, que via o cruzado com simpatia, cresceu consideravelmente. O PDT manteve-se estável, o PDS, desfigurado pela criação do PFL, perdeu 200 cadeiras, e o PMDB consolidou-se no comando político do Legislativo com 235 deputados federais, apesar da crescente fragmentação partidária. Surgiram ainda o PL e o PDC, além dos antigos partidos de esquerda pré-1964, como PC do B, PCB e PSB, legalizados durante o mandato de José Sarney (ver Gráfico 2). Na eleição para o Senado, o PMDB, de forma avassaladora, elegeu 38 dos 49 senadores. Seis dias após a eleição, entretanto, diversas medidas consideradas impopulares foram tomadas pelo governo. Houve descongelamento dos preços, e a inflação voltou a crescer, alcançando 11,65% já em dezembro de 1986. O país entrou em convulsão social, alastrando- se os saques a supermercados e as depredações de ônibus e trens urbanos. Diante do grave quadro econômico, em 20 de fevereiro de 1987, o governo brasileiro decretou a moratória da dívida externa, por prazo indeterminado102. Gozando de baixíssima popularidade, Sarney chegou a ter sua comitiva atacada por pedradas em protesto no Centro do Rio de Janeiro, em junho de 1987.

101 BRAGA, Kenny et. al. Leonel Brizola: perfil, discursos, depoimentos. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do , 2004. p. 142. 102 Folha de São Paulo, São Paulo, 21 fev. 87. p. A-17/A-22. 58

Gráfico 2 - Deputados federais eleitos por partido -1982 e 1986

300 260 235 250 200 200 150 118 100 33 50 2324 16 17 0 3 0 3 0 5 0 0 6 0 1 0 1 8 13 0 PC do PCB PDC PDS PDT PFL PL PMDB PSB PSC PT PTB B

1982 1986

Diante do exposto, não restam dúvidas acerca da importância do Plano Cruzado para o desempenho do PMDB nas eleições de outubro de 1986. Muitos enxergaram o desempenho do partido como sinal da aprovação popular ao pacote econômico, que teve como principal mote o slogan “inflação zero”. No entanto, conforme apontado em diversos discursos políticos e matérias jornalísticas, o cruzado foi “o maior plano de estelionato eleitoral da história do país”103. Dono da maior bancada no Congresso Nacional, o PMDB foi o partido pelo qual se elegeram 18 dos 36 evangélicos que ocuparam uma cadeira na Câmara dos Deputados na legislatura iniciada em 1987. Mesmo com mudanças de sigla partidária, o que ocorreu ao longo do mandato, muitos parlamentares continuaram na base de apoio ao governo Sarney durante a realização da Constituinte.

2.3 O termo bancada evangélica

Foi a partir de 1986, após o aumento considerável da representação evangélica no Congresso Nacional, que surgiu o termo bancada evangélica, que designa o grupo até a atualidade. Mediante o fato, procuramos analisar nos principais veículos de comunicação da época o surgimento do termo, frisar os cuidados que devem ser observados em sua conceituação e os contextos em que ele é utilizado.

103 Folha de São Paulo, São Paulo, 26 fev. 06. p. B7. 59

Ainda em 1986, a Tribuna da Imprensa usou bancada evangélica para informar, em pequena reportagem, que o evangélico Edésio Frias, eleito pelo PDT, “engordaria” o grupo na Câmara. Com sua eleição, o número de deputados federais protestantes chegaria a 7 representantes104. O termo também apareceria em pequena nota do jornal O Fluminense, quando o ex-deputado federal pela ARENA mineira e à época presbítero da Igreja Nacional de Brasília, Athos Vieira de Andrade, protestou contra o fato de menores de 12 anos não poderem trabalhar, estando assim “livres para roubar”, sinalizando que indicaria à bancada evangélica mudanças constitucionais neste sentido105.

Figura 8 – O primeiro uso do termo bancada evangélica, na Tribuna da Imprensa, em 1986.

Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/cache/5124704012263/I0026831- 2Alt=001899Lar=001366LargOri=004004AltOri=005566.JPG

No Jornal do Brasil, em junho de 1987, a bancada evangélica surgiu em matéria que abordou a divisão entre evangélicos diante de temas polêmicos, como o aborto, o divórcio e a pena de morte. Segundo a matéria, 26 dos 34 votos evangélicos foram utilizados para derrotar os relatórios “progressistas e irreais” do senador José Paulo Bisol (PMDB/RS) e do deputado Artur da Távola (PMDB/RJ), membros das comissões da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher e da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Estas comissões ganharam atenção prioritária dos evangélicos, mesmo tendo “ovelhas desgarradas”, como Lysâneas Maciel e Benedita da Silva, “que trabalham em sentido

104 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 04 dez. 1986. p. 5. 105 O Fluminense, Niterói, 02 jul. 1987. p. 7. 60

contrário à pregação dos princípios rígidos da facção majoritária do grupo”. Ao longo da reportagem, Daso Coimbra (PMDB/RJ) e Fausto Rocha (PFL/SP) são apontados como os principais líderes da bancada, sendo Coimbra “uma espécie de coordenador do grupo”106. Nas páginas do jornal O Globo, foi em uma reportagem do dia 1º de fevereiro de 1987, dia da instalação da Assembleia Nacional Constituinte, que o termo surgiu, mostrando a heterogeneidade e as contradições do grupo. O deputado Eliel Rodrigues (PMDB/PA) afirmou que, apesar do respeito à Bíblia, segundo ele “a maior Constituição que Deus outorgou ao povo”, haveria respeito às posições ideológicas de deputados dos mais variados partidos políticos:

Contrários ao aborto, fumo, tóxico, álcool e pornografia, como informou o Deputado Daso Coimbra (PMDB-RJ) – que promoveu a reunião –, os evangélicos têm como ponto mais polêmico a reforma agrária. A maioria considera que deve haver um limite nas pretensões dos sem-terra. “A produtividade pode servir de parâmetro para as distribuições de terras”, explica Daso. Nelson Aguiar (PMDB-ES) e Lysâneas Maciel (PDT-RJ) discordam. Para Nelson, “Deus criou a terra para todos, não para alguns, por isso a reforma agrária deve ser total. Não há motivo para rateá-la, pois ela foi criada, como o vento e a chuva, em benefício do homem”. Lysâneas garante que não será criado um gueto religioso: “Antes de representantes evangélicos, somos representantes do povo brasileiro. Temos que ressaltar que todos os problemas vitais da população são também vitais para o Evangelho”. Mesmo assim, Eliel tem a certeza de que é possível realizar um “encontro entre os ideais cristãos com a população, mostrando uma realidade espiritual e moral que deve ser seguida”. (...) Fausto Rocha (PFL-SP) afirma que atuação política dos evangélicos “será bem diferente da adotada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil”. Pretendem evitar uma atuação “radical”, respeitando-se a posição individual de cada um de seus membros.107 Lysâneas acredita que a impossibilidade de se conseguir um consenso na bancada evangélica poderá dificultar novas reuniões. (...)

Na Folha de São Paulo, o termo aparece na edição de 24 de janeiro de 1988. Na reportagem, que fala a respeito da calorosa recepção ao presidente José Sarney durante a 69ª Assembleia da Convenção Batista Brasileira no ginásio Nilson Nelson, em Brasília, o termo se refere ao conjunto dos deputados evangélicos na Câmara:

Parte da bancada evangélica (34 parlamentares) do Congresso constituinte assistiu à cerimônia instalada logo atrás da mesa de honra montada numa espécie de palanque. Entre os presentes, os deputados federais Arolde de Oliveira (PFL-RJ), Enoc Vieira (PFL-MA), Eraldo Tinoco (PFL-BA) e Nelson Aguiar (PDT-ES)108.

O Estado de São Paulo fala da bancada evangélica em matéria, de abril de 1988, sobre censura às obras do pintor peruano Taco Lagos, expostas em corredores da Câmara dos

106 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 05 jun. 87. p. 4. 107 O Globo, Rio de Janeiro, 1 fev. 1987. p. 11. 108 Folha de São Paulo, São Paulo, 24 jan. 1988. p. A-5. 61

Deputados, em que nus eram retratados. A bancada, segundo o jornal, “exigiu a retirada de alguns nus expostos no mesmo corredor”109. Nos veículos aqui analisados, o conceito de bancada evangélica é utilizado para designar, de forma genérica, o conjunto dos representantes evangélicos no Congresso Nacional, em especial na Câmara dos Deputados. Entretanto, é necessário cautela no uso do termo. O fato de um deputado ser policial, por exemplo, não o faz integrante da chamada “bancada da bala” que, em linhas gerais, faz a defesa de propostas conservadoras em relação à segurança pública e o lobby da indústria armamentista. Deste modo, um deputado evangélico pode não fazer parte, necessariamente, da articulação da bancada evangélica, como ocorreu durante a Constituinte. Conforme abordamos no primeiro capítulo da presente pesquisa, são incontáveis as tendências e correntes evangélicas, e esta diversidade se reflete também em sua heterogeneidade no meio político, podendo um evangélico ser integrante de um partido mais radical, como era visto o PT naquele contexto, ou de siglas como o PDC e PFL, situadas no campo conservador. Nesta pesquisa, utilizamos o termo para o conjunto dos deputados evangélicos, levando em consideração que existiam, no seio do grupo, parlamentares que não se alinhavam politicamente ao campo majoritário da bancada, composto por membros da CEB e do Centrão110. Os chamados dissidentes, quase todos de partidos de esquerda, defendiam posturas políticas laicas e mais voltadas para a questão social por parte dos evangélicos, rejeitando as relações que criassem benefícios e privilégios além dos limites constitucionais entre igrejas e Estado.

2.4 O ressurgimento da Confederação Evangélica do Brasil e os dissidentes

Durante o processo de abertura política, no artigo A visita do Papa: uma perspectiva protestante, Antonio de Godoy Sobrinho, falando sobre o papel de alguns teólogos evangélicos e seu afastamento de igrejas e instituições, após o golpe de 1964 e da vigência da Lei de Segurança Nacional (LSN), relata o seguinte:

109 O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 abr. 1988. p. 4. 110 Grupo suprapartidário com perfil de centro e direita criado no final do primeiro ano da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 para dar apoio ao presidente da República José Sarney. Fonte: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. CPDOC. Centrão. Disponível em: . Acesso em: 17 ago. 2017. 62

Hoje, a Confederação Evangélica do Brasil, por ter se servido da LSN e desservido as igrejas protestantes a ela filiadas, não consegue nem “quorum” para se dissolver e encerrar as suas atividades. Em lugar dela se projeta a criação de um Conselho Nacional de Igrejas Evangélicas que possa absorver, no seu programa, os novos ares da liberdade criativa e responsável111.

No texto de Sobrinho, fica claro o esvaziamento sofrido pela CEB ao longo do regime militar, culminando em sua total desarticulação. O Reverendo Domício Pereira de Mattos, da IPU, em carta ao Jornal do Brasil, denunciou o colaboracionismo de líderes evangélicos, que copiaram o Estado e embarcaram no “sistema do autoritarismo, do abuso do poder, dos atos institucionais e das perseguições aos que pensavam diferente”:

Na Confederação Evangélica do Brasil, esses líderes da cúpula eclesiástica caçaram cinco secretários departamentais, esconderam literatura como a da Conferência do Nordeste e recolheram lições bíblicas das Escolas Dominicais, já distribuídas, porque estudavam o Profeta Amós...112.

Em agosto de 1987, foi divulgada nota no jornal Luta Democrática acerca da posse, em junho, da nova direção 1987/1988 da CEB, “instituição que surgiu em 1934”. Ela era presidida pelo deputado Gidel Dantas, tendo como 1º, 2º e 3º vice-presidentes, respectivamente, o deputado Salatiel Carvalho, Arival Pires da Silveira e o deputado Fausto Rocha; 1º e 2º secretários o deputado Daso Coimbra e o Pastor Manoel Ferreira (CGADB); 1º e 2º tesoureiros os parlamentares José Fernandes e Milton Barbosa; secretário executivo o Reverendo Guilhermino Cunha (IPB); Presidente do Conselho Consultivo, Karl Gottschald, Pastor luterano (IECLB); e membros do Conselho Fiscal os deputados Costa Ferreira e Manoel Moreira, juntamente com o Pastor Othoniel Silva Martins (IPB)113. Neste contexto, Paul Freston afirma que, em 1987, foi iniciada a articulação dos parlamentares evangélicos, por iniciativa dos membros de igrejas tradicionais, sobretudo Daso Coimbra e Fausto Rocha, o decano e o mais votado, respectivamente. Posteriormente, a liderança foi deslocada para parlamentares pentecostais, como Salatiel Carvalho e Gidel Dantas. O último, pastor da Igreja de Cristo e com passagens por diversas organizações evangélicas, foi apontado como o principal articulador do ressurgimento da CEB:

A passagem de Gidel pela CEB foi o gancho para a próxima fase da bancada. Os pentecostais eram maioria; vários não tinham posições definidas em muitas questões; e para quase todos a reeleição, sem a mística da Constituinte, era incerta. O governo acenava com cargos e verbas em troca de apoio. Abriu-se espaço para o surgimento de uma nova liderança pentecostal, com estilo diferente de Daso

111 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 jul. 1980. p. 11. 112 Ibid. 10 mar. 1985. p. 10. 113 Luta Democrática, Rio de Janeiro, 15 ago. 1987. p. 4. 63

Coimbra: mais “agressivo”, menos ideologicamente comprometido com a direita e mais arrojado na maximização das oportunidades conjunturais. A fórmula encontrada foi inteligente, pois explorava o flanco exposto deixado pela segmentação e pela turbulenta história recente do protestantismo, dando às atividades de um grupo de políticos uma legitimidade religiosa impensável em outras circunstâncias. A antiga CEB nunca fora dissolvida. Com anuência do último presidente, que estava com o mandato vencido, Gidel escolheu uma nova diretoria. A posse (25/6/87) foi no Clube do Congresso. Dos 13 cargos, oito ficaram com constituintes; destes, seis eram pentecostais, sendo cinco da AD. Dois dos três membros do Conselho Fiscal eram deputados da AD. Na Mesa da reunião estavam Joaquim Francisco, Ministro do Interior; Senador Marco Maciel, presidente do PFL; e Carlos Sant’Anna, líder do governo na Câmara114.

Havia, por parte dos líderes da “nova CEB”, a insistência na comparação com a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O objetivo era fazer da CEB a organização de representação oficial dos evangélicos brasileiros, o que teria como consequência, também, o repasse de verbas públicas para a instituição. A instituição reivindicou, portanto, parte das verbas da Legião Brasileira de Assistência (LBA) que eram destinadas à CNBB115. Para Freston, a comparação com a CNBB era “forçada”:

Primeiro, pela legitimidade restrita: boa parte da comunidade protestante não aceitava a nova CEB e criticava as motivações e práticas. Em segundo lugar, pelo fato de ser recém-criada e sem recursos próprios, não podendo mirar-se na CNBB, estabelecida há décadas, com linhas pastorais firmadas. (...) O fato de uma suposta “CNBB evangélica” resultar das articulações de parlamentares mostra o caráter vulnerável e volúvel do protestantismo brasileiro (ainda mais com a expansão rápida), exposto a grandes intromissões do poder político pela ausência de um centro eclesiástico institucionalizado e estável116.

As posições das denominações evangélicas diante da CEB foram diversas. A Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) apoiou a instituição, ao contrário da maioria das igrejas tradicionais, tendo a presença do Reverendo Guilhermino Cunha na Secretaria-Geral até fins de 1988. Os batistas dividiram-se, com o apoio de Nilson Fanini e o afastamento do deputado Fausto Rocha (PFL/SP), que esteve na diretoria da CEB como terceiro vice-presidente. Foi o apoio da Assembleia de Deus, no entanto, que deu sustentação à confederação: “a oposição da cúpula assembleiana, em qualquer momento, teria sido suficiente para acabar com a CEB. Nunca se opôs; ao contrário, procurou mantê-la o maior tempo possível”117.

114 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 230. 115 Ibid. p. 230. 116 Ibid. p. 230-231. 117 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 231. 64

Figura 9 – Gidel Dantas em 1981, à época presidente do DETRAN cearense. Autor desconhecido.

Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/27956

Entretanto, no início da articulação política em torno da CEB, as diferenças no seio do grupo tornaram-se latentes. Lysâneas Maciel organizou um grupo de parlamentares evangélicos mais próximos do campo progressista e que discordavam da liderança de Gidel Dantas e Daso Coimbra, chamados de dissidentes. Entre os membros de tal facção, estavam Benedita da Silva, Celso Dourado (PMDB/BA), Nelson Aguiar (PMDB/ES) e Lézio Sathler (PMDB/ES). Os chamados dissidentes aproximaram-se do Movimento Evangélico Progressista (MEP), surgido em meados dos anos 1980 para congregar as lideranças evangélicas opositoras da atuação conservadora na Constituinte. O MEP baseava-se na Teologia de Missão Integral, que pregava a convergência entre evangelização e responsabilidade social118. Em 15 agosto de 1988, foi realizado um ato ecumênico na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), presidido pelo Bispo Paulo Lockman, da Igreja Metodista, e com apoio de diversas lideranças evangélicas, repudiando as ações da CEB. Para eles, sua atuação era ilegítima, ao ser utilizada como “instrumento para canalizar recursos oficiais” e na defesa de “oligarquias”119. O Pastor Mozart Noronha, da IECLB, chegou a pedir a abertura de uma CPI para investigar o grupo. Os evangélicos ligados à CEB, João de Deus Antunes e Salatiel Carvalho tumultuaram a reunião, para a qual não haviam sido convidados. O ato teve a presença do Bispo de Duque de Caxias Dom Mauro Morelli, e de religiosos batistas, congregacionais, da IECLB, IPU, Assembleia de Deus e da Igreja Episcopal de Comunhão Anglicana, além das presenças do

118 MUNIZ, Ricardo. A Esquerda Evangélica. Le Monde Diplomatique. Disponível em . Acesso em: 22 abr. 2017. 119 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 ago. 1988. p. 3. 65

Pastor Zwinglio Dias, do Conselho Mundial de Igrejas, e Dom Paulo Aires, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação120. O ato foi consequência de perturbadora reportagem do Jornal do Brasil do domingo anterior, dia 7 de agosto, com a chamada de capa intitulada Evangélicos trocam voto por vantagens. Alguns dos benefícios governamentais obtidos pela CEB são enumerados a seguir: 1) Destinação de Cz$ 100 milhões à Assembleia de Deus de Salvador, por parte da Fundação Educar (ex-MOBRAL), coordenada por Raimundo Orrico, indicado pelo deputado Milton Barbosa; 2) Arrecadação de verbas federais na ordem de Cz$ 300 milhões, além de outros Cz$ 200 milhões solicitados e em tramitação; 3) Doações do Ministério de Planejamento de Cz$ 8,5 milhões para aquisição da sede da CEB em Brasília e de Cz$ 50 milhões para “serviços de assistência social das comunidades evangélicas”; 4) Destinação de Cz$ 20 milhões dos Cz$ 100 milhões solicitados ao MEC, para “aquisição de uniformes escolares para crianças pobres”. Apesar das altas cifras concedidas por diversos órgãos e para diferentes finalidades, chama a atenção o fato de que, apenas três dias antes da votação do tempo de duração do mandato presidencial de José Sarney, proposto pelo deputado evangélico Matheus Iensen para durar 5 anos, todos os 33 deputados evangélicos receberam telegramas do Palácio do Planalto informando sobre a liberação de mais de Cz$ 110 milhões da LBA para a CEB, a fundo perdido121. As denúncias de irregularidades surgiam na mesma proporção. Diversos deputados do grupo foram acusados de beneficiamento ilícito, como o aluguel de um terreno de 1.127 m² em Belo Horizonte, pertencente à Rede Ferroviária Federal S/A, pelo valor de Cz$ 294 mil, dez vezes inferior ao preço de mercado, em benefício da Igreja do Evangelho Quadrangular, liderada pelo deputado Mario de Oliveira; e a venda de 200 bolsas de estudos destinadas a estudantes pobres por parte do parlamentar Milton Barbosa, avaliadas em Cz$ 812 mil e negociadas por Cz$ 200 mil a um intermediário. As trocas de acusações entre os deputados que disputavam liderança e influência no grupo eram recorrentes. José Fernandes, 1º tesoureiro da CEB e posterior dissidente, acusou Daso Coimbra de ter recebido um cheque de Cz$ 50 milhões, supostamente dado por um grupo de empresários para ser repartido entre os evangélicos. Coimbra, que por sua vez

120 Ibid. 16 ago. 1988. p. 3. 121 Ibid. 7 ago. 1988. p. 1/4B-6B. 66

“estranhou” o comportamento de Sotero Cunha na votação da nacionalização dos postos de gasolina, afirmou: “Nunca tive um cheque de Cz$ 50 milhões nas mãos e se tivesse não mostraria a ninguém”122. Roberto Vital se disse “chocado” ao ser acusado por um lobista pela negociação Cz$ 10 milhões para cada deputado evangélico para votar contra a matéria da nacionalização dos postos. A fama da bancada evangélica se generalizou entre outros membros da Constituinte. Dirce Tutu Quadros (PSDB/SP) afirmava que a bancada evangélica fazia comércio. José Lourenço, líder do PFL, chamou Gidel Dantas de “chefe da gang”, além de acusar alguns membros de infidelidade e quebra de acordos. Ricardo Fiúza (PFL/PE), líder do Centrão, também se queixou: “não aguento esses evangélicos. Só querem tirar vantagens”123. Portanto, podemos concluir que a CEB foi o principal instrumento utilizado pela corrente evangélica majoritária na Câmara dos Deputados para conquistar milhões de cruzados em recursos, nomeações em diferentes escalões do governo, aprovação de emendas orçamentárias e inúmeras concessões de rádio, particulares e para denominações, seja pela atuação pró-governista no Centrão, ou pela proximidade de membros do grupo com figuras de destaque no governo José Sarney, como o ministro das Comunicações e líder do PFL Antônio Carlos Magalhães, além do evangélico Iris Rezende, ministro da Agricultura.

2.5 Análise sócio-política dos deputados evangélicos na Constituinte de 1988

Na presente pesquisa, nos baseamos no conceito aqui apresentado por Lawrence Stone, no que diz respeito à pesquisa prosopográfica:

A prosopografia é a investigação das características comuns de um grupo de atores na História por meio de um estudo coletivo de suas vidas. O método empregado constitui-se em estabelecer um universo a ser estudado e então investigar um conjunto de questões uniformes – a respeito de nascimento e morte, casamento e família, origens sociais e posição econômica herdada, lugar de residência, educação, tamanho e origem da riqueza pessoal, ocupação, religião, experiência em cargos e assim por diante. Os vários tipos de informações sobre os indivíduos no universo são então justapostos, combinados e examinados em busca de variáveis significativas. Eles são testados com o objetivo de encontrar tanto correlações internas quanto correlações com outras formas de comportamento ou ação124.

122 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 ago. 1988. 5B. 123 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. Caderno B/Especial. p. 5. 124 STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 39, p. 115, jun. 2011. 67

Assim, compreendemos que a prosopografia é um método de pesquisa imprescindível para o estudo do fenômeno político no campo da história. Diante de um quadro como a da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, torna-se necessária a análise pormenorizada de diversos aspectos que passam despercebidos diante do enorme emaranhado de siglas, bancadas, sobrenomes, lobbies e interesses presentes nos embates, retóricos ou não, do Congresso Nacional. O universo político da Constituinte era composto por mais de 600 parlamentares, entre senadores e deputados federais, titulares e suplentes, de todas as unidades da federação, pertencentes a mais de 10 diferentes partidos, além dos inúmeros especialistas, técnicos, acadêmicos, autoridades, líderes religiosos, sindicais e da sociedade civil em geral, ouvidos nas audiências, debates em comissões e subcomissões, reuniões de bancadas e sessões diversas, sem contar as propostas de iniciativa popular, enviadas por milhares de brasileiros que buscaram participar, de alguma forma, da realização da nova Constituição. É nesta complexa configuração que se enquadra a representação evangélica no Congresso Nacional. Para Stone, a prosopografia ataca dois problemas básicos. O primeiro deles é relativo às origens da ação política, e o segundo tem como foco a estrutura e mobilidade sociais. A ação política desdobra-se em temas como “a análise das afiliações sociais e econômicas dos agrupamentos políticos” e “a revelação do funcionamento de uma máquina política e a identificação daqueles que manipulam os controles”. O segundo problema abarca diferentes questões, como o papel exercido por “possuidores de títulos, membros de associações profissionais, ocupantes de cargos, grupos ocupacionais ou classes econômicas” na sociedade; a mobilidade social, levando fatores como a origem geográfica, familiar, pertencimento a um grupo e o grau de importância em seu interior; além da “correlação de movimentos intelectuais ou religiosos com fatores sociais, geográficos, ocupacionais ou outros”. É com base no método apontado por Stone que desenvolvemos a presente análise, investigando e interpretando a ação política evangélica dentro do contexto da redemocratização, especificamente na Constituinte, de acordo com os propósitos da prosopografia:

(...) dar sentido à ação política, ajudar a explicar a mudança ideológica ou cultural, identificar a realidade social e descrever e analisar com precisão a estrutura da sociedade e o grau e a natureza dos movimentos em seu interior. Inventada como um instrumento da história política, ela é agora crescentemente empregada pelos historiadores sociais125.

125 STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 39, p. 116, jun. 2011. 68

Em 1986, foram 32 os parlamentares evangélicos eleitos que, somados aos 4 suplentes, totalizaram 36 deputados ao longo da legislatura 1987-1991. Contabilizando-se apenas os titulares, foram 1 milhão e 236 mil votos recebidos126. Ressaltamos que um dos evangélicos, Gerson Villas-Boas, assumiu o mandato apenas em janeiro de 1989, portanto, depois da Constituinte. É importante frisarmos a heterogênea composição partidária da bancada. Metade dos evangélicos foi eleita pelo PMDB, nove pertenciam ao PFL no ano da eleição e outros cinco deputados foram eleitos por partidos de esquerda (ver Gráfico 3). Destacamos também o fato de nenhum evangélico ter sido eleito pelo PDS, o que creditamos ao surgimento do PFL, em 1985. Alguns deputados eleitos pelo partido em 1982, como Arolde de Oliveira e Levy Dias, foram fundadores da Frente Liberal, dissidência do PDS, que viria a tornar-se o PFL127. Outro fator importante a ser levantado é a participação de evangélicos em partidos de esquerda. Em 1979, o bipartidarismo foi extinto, e partidos como PDT de Leonel Brizola, que disputava o espólio político do antigo PTB com Ivete Vargas, e o PT, que tinha no líder sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva sua liderança máxima, surgiram no cenário político, juntamente com o PC do B, liderado por João Amazonas, PCB, a esta altura sem a participação de Luiz Carlos Prestes, e o PSB.

126 Em termos de comparação, os evangélicos eleitos para a Câmara em 1986 obtiveram votação maior, por exemplo, que os 600 mil votos dados em 1989 ao presidenciável Aureliano Chaves (PFL), que fora vice do General João Figueiredo (1979-1985), e ao candidato comunista Roberto Freire, com 769 mil votos. 127 A Frente Liberal surgiu sob a influência de José Sarney, ex-presidente da ARENA e do PDS, que apoiou a candidatura de Tancredo Neves (PMDB) no Colégio Eleitoral, em 1985, contra Paulo Maluf. Sarney foi eleito vice de Tancredo, sendo empossado em seu lugar em 15 de março de 1985, em virtude de problemas de saúde do titular. Com o falecimento de Tancredo, em 21 de abril, Sarney foi efetivado na Presidência. A Frente Liberal virou o Partido da Frente Liberal ainda em 1985. 69

Gráfico 3 - Movimentação partidárias dos deputados federais evangélicos (titulares e suplentes) - 1986-1990 20 18 16 14 12 10 8 6 4 2 0 PDC PDS PDT PFL PL PMDB PRN PSC PSDB PST PT PTB

1986 1990

Aspecto importante é a representatividade do segmento por gênero. Dos parlamentares evangélicos, apenas duas representantes eram do sexo feminino: Eunice Michiles (PFL/AM), que havia sido senadora, e Benedita da Silva, a única negra. Apesar de não refletir, com seus 5,55%, a parcela feminina da população brasileira, de 50,23%128, a representação evangélica era ligeiramente superior ao total de deputadas federais: apenas 5,33% de um universo de 487 cadeiras da casa foram ocupados por mulheres durante a Constituinte, em um total de 26129. Sobre a inserção feminina na política, como um todo, apontamos aspectos culturais e históricos brasileiros que convergem para a pequena representatividade. O patriarcalismo, que impôs a preponderância masculina nos mais diversos setores da sociedade, deixou mulheres de fora dos importantes espaços de decisão. No Brasil, apenas em 1932 o direito de voto foi a elas estendido. No ano seguinte, a primeira deputada federal, Carlota Pereira de Queirós, do Partido Constitucionalista de São Paulo, foi eleita com 5.311 votos no 1º turno, e 176.916 votos no 2º turno130. Em 1979, Eunice Michiles, então filiada à ARENA do Amazonas, assumiu a cadeira de João Bosco de Lima, titular que faleceu ainda no início do mandato, tornando-se a primeira senadora do Brasil. Segundo Michiles, no Senado “não tinha nem banheiro feminino”, e para

128 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Distribuição percentual da população por sexo – Brasil – 1980 a 2010. Disponível em . Acesso em: 27 jan. 2017. 129 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Bancada feminina. Disponível em . Acesso em: 27 jan. 2017. 130 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Mulheres no Parlamento brasileiro: Carlota Pereira de Queiros. Disponível em . Acesso em: 27 jan. 2017. 70

a maioria dos senadores “não era uma colega que estava chegando. Era uma senhora, uma dama”131. A primeira governadora de estado foi Iolanda Fleming, em caso semelhante ao de Michiles: era vice-governadora do Acre, assumindo o cargo após a renúncia de Nabor Júnior, eleito senador em 1986132.

Figura 10 – Propaganda de Eunice Michiles nas eleições para o Senado em 1978.

Fonte: http://idd.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2016/04/Eunice-Michiles-Jornal-A-Critica.jpg

Somando-se aos fatores histórico-culturais, estão os elementos doutrinários e religiosos, no que diz respeito à inserção da mulher evangélica na política. Tendo como base interpretações bíblicas ou tradições, diversas igrejas não aceitavam a ordenação feminina para o pastorado. Consequentemente, cabia apenas aos homens a ordenação pastoral, restringindo a eles, também, a liderança, organização e governo das denominações. Em muitas delas, às mulheres é facultado apenas o diaconato, sendo proibida a ocupação de cargos em presbitérios. As Assembleias de Deus (CGADB e CONAMAD) e os batistas (CBB e CBN) não permitiam o pastorado feminino, e a Igreja Presbiteriana do Brasil não autorizava também o diaconato e presbiterato. A Igreja Metodista ordenava mulheres desde a década de 1970 e a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), por sua vez, ordenou sua primeira pastora em 1982. A IURD também não ordenava mulheres.133

131 BBC BRASIL. ‘Não tinha nem banheiro feminino’, diz primeira mulher no Senado. Disponível em . Acesso em: 27 jan. 2017. 132 Apenas em 1994, uma mulher seria eleita governadora por voto direto: Roseana Sarney, do PFL maranhense. 133 A CBN e a CONAMAD apenas permitiriam a ordenação sacerdotal feminina em 2004 e 2013, respectivamente. 71

A representatividade negra também é outra importante questão a ser analisada. Apenas 4 parlamentares evangélicos eram negros: além de Benedita da Silva, constavam Antonio de Jesus (PMDB/GO), Salatiel Carvalho (PFL/PE) e Milton Barbosa (PMDB/BA), representando 11,11% da bancada134. Nacionalmente, os negros e pardos formavam 44,77% da população135, e na Câmara, eram somente 2,25% dos parlamentares.

Figura 11 – Parlamentares negros de esquerda na Assembleia Nacional Constituinte: Edmilson Valentim (PC do B/RJ), Carlos Alberto Caó (PDT/RJ), Paulo Paim (PT/RJ) e Benedita da Silva (PT/RJ). Autor desconhecido.

Fonte: https://4.bp.blogspot.com/--86mgJA27ig/TwM6ly00hAI/AAAAAAAAAaE/YBJXfQJ1TOs/s1600/5.JPG

Historicamente, as populações afro-brasileiras encontravam-se excluídas dos espaços de decisão, por graves razões. O processo de escravização dessas populações, retiradas à força de suas nações de origem, foi iniciado no século XVI e finalizado apenas em 1888 com a Lei Áurea. Muitos apontaram pressões externas na decisão, principalmente por influência do Reino Unido. O fato é que a escravidão gerou graves consequências sociais, empurrando os afro-brasileiros para a marginalidade, sem alfabetização, emprego, direitos sociais, sem direito a indenizações ou qualquer outro tipo de reparação por parte do Estado brasileiro ou de seus antigos senhores. Às duras penas, os negros brasileiros conquistaram diversos avanços, como a popular Lei Afonso Arinos, de 1951, que proibiu a discriminação racial no Brasil, mais tarde aperfeiçoada pela Lei Caó, de 1989, que transformaria o racismo em crime inafiançável e

134 Johnson III, Ollie A. Representação racial e política no Brasil: parlamentares negros no Congresso Nacional (1983-99). Disponível em . Acesso em: 27 jan. 2017. 135 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Última etapa de divulgação do Censo 2000 traz os resultados definitivos, com informações sobre os 5.507 municípios brasileiros. Disponível em . Acesso em: 22 mai. 2017. 72

imprescritível, aperfeiçoando dispositivos da Constituição de 1988. Outro desafio aos afrodescendentes foi a ocupação dos espaços de poder. Nomes como Monteiro Lopes, primeiro deputado negro no Congresso Nacional, eleito em 1909136, Abdias Nascimento, deputado federal em 1983 e primeiro negro a ocupar, ao longo da década de 1990, uma cadeira no Senado Federal, como suplente de Darcy Ribeiro, e a própria Benedita da Silva, marcaram a história da representatividade afro-brasileira na política brasileira, que experimentou, a partir da década de 1980, considerável avanço. A respeito da faixa etária, de acordo com o texto da Constituição Federal de 1967, no art. 30º, uma das condições de elegibilidade para o cargo de deputado federal era a idade mínima de 21 anos. No entanto, nenhum dos parlamentares apontados possuía menos de 30 anos. Tendo como base 1986, ano da eleição, a média de idade dos parlamentares evangélicos era de 44,94 anos, sendo Eliel Rodrigues (PMDB/PA) o parlamentar mais idoso, com 61 anos, e Milton Barbosa e Salatiel Carvalho os mais jovens, com 32 anos de idade cada.

Gráfico 4 - Faixa etária dos deputados federais evangélicos - 1987-1991 18 16 14 12 10 8 6 4 2 0 Até 30 anos 31-40 anos 41-50 anos 51-60 anos Mais de 61 anos

Importantes membros da Assembleia de Deus foram eleitos, como Sotero Cunha, que havia sido diretor da Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD) entre 1965 e 1976; Matheus Iensen, cantor tradicional e proprietário da Rádio Marumby, de Curitiba; Costa Ferreira, antigo aliado da família Sarney, eleito pelo PFL maranhense; José Fernandes, prefeito de Manaus entre 1979 e 1982 pela ARENA, eleito em 1986 pelo PDT; e Benedita da Silva, primeira negra eleita para a Câmara Municipal do Rio, pelo PT.

136 DOMINGUES, Petronio. "Vai ficar tudo preto": Monteiro Lopes e a cor na política. Disponível em . Acesso em: 31 mai. 2017. 73

Gráfico 5 - Constituintes evangélicos por igreja/denominação 14

12

10

8

6

4

2

0

João de Deus Antunes, eleito pelo PDT gaúcho, foi escolhido como candidato em convenção estadual da Assembleia de Deus, mesmo sem experiência política anterior137. O mesmo ocorreu com Antonio de Jesus, que já havia ocupado cargos públicos em Goiás, convidado para o PMDB por Iris Rezende138; com Salatiel Carvalho, escolhido pela Assembleia de Deus em Pernambuco, tendo ocupados cargos na administração estadual e ostentando ligações com Marco Maciel, líder do PFL; e Sotero Cunha, do PDC, que também era empresário do ramo têxtil no Rio de Janeiro, ex-membro do PDT e apoiador de Leonel Brizola nas eleições presidenciais de 1989139. Mário de Oliveira, fundador e pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular em Minas Gerais, com passagem pelo natimorto PP a convite de Magalhães Pinto, foi reeleito pelo PMDB. Outro pastor quadrangular eleito foi Jayme Paliarin, do PTB paulista. O representante dos batistas renovados (CBN) foi Roberto Vital, que havia sido vereador em Belo Horizonte pelo PMDB. Gidel Dantas, da desconhecida Igreja de Cristo do Brasil, conquistou vaga pelo PMDB cearense. A escolha dos membros da Assembleia Nacional Constituinte marcou também a estreia da IURD no Congresso Nacional, com seu único deputado, Roberto Augusto Lopes, o evangélico mais votado do estado do Rio de Janeiro, com 54 mil votos. Antes mesmo do

137 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 197. 138 Ibid. p. 199. 139 Ibid. p. 201-202. 74

resultado final, o desempenho do candidato da igreja liderada pelo Bispo Edir Macedo chamava a atenção da imprensa carioca:

É talvez o maior fenômeno desta eleição. Com uma legenda frágil – o PTB – deve conquistar cerca de 100 mil votos. Roberto esperava o triplo, mas foi surpreendido pelo excesso de votos nulos e em branco. A origem de sua votação gigante está na sua função de pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1975. Antes de tornar-se líder religioso, foi jogador de futebol. Atuou em vários clubes, principalmente o Bangu, como ponta-direita, num time formado por craques como Nívio, Zózimo e Décio Esteves. Sem experiência partidária anterior, Roberto, durante a campanha, beneficiou-se com programas regulares na rádio Copacabana e TV Bandeirantes. Na Constituinte, pretende defender a família140.

No meio tradicional, Daso Coimbra destacou-se ao ser eleito pelo PMDB para o seu 9º mandato, sendo o 7º de deputado federal, figurando como decano entre os evangélicos. Membro da Igreja Congregacional, Coimbra possuía um programa de rádio e angariava votos também entre batistas e presbiterianos. Antes do PMDB, foi membro do PTB, PSD, ARENA, PDS e PP141. Os batistas tradicionais (CBB) eram representados, entre outros, por Arolde de Oliveira; o brizolista Edésio Frias, do Rio de Janeiro; Enoc Vieira, líder maçônico e aliado da família Sarney no Maranhão, reeleito pelo PFL; e Fausto Rocha, o evangélico mais votado naquela eleição pelo PFL paulista, duas vezes deputado estadual pela ARENA e PDS. As três maiores tendências presbiterianas foram representadas por quatro deputados, destacando-se Celso Dourado, do PMDB, com vasta formação teológica, fundador da Igreja Presbiteriana Unida (IPU). Próximo do presbiterianismo também estava Lysâneas Maciel, cassado pelo AI-5 em 1976, membro da Igreja Cristã de Confissão Reformada, egressa da IPB. Eunice Michiles, do PFL do Amazonas, era a única adventista. Naphtali Alves era o representante da Igreja Cristã Evangélica, pelo PMDB goiano. O único representante luterano foi o pastor Norberto Schwantes, suplente pelo PMDB do Mato Grosso. No entanto, a permanência de Schwantes na Constituinte foi efêmera: assumiu o mandato em agosto de 1988 e faleceu no mês seguinte, vítima de câncer. Existem, ainda, duas peculiaridades da bancada evangélica na Constituinte. A primeira delas é a renovação dos mandatos. Vinte e sete dos trinta e cinco parlamentares estavam em seu primeiro mandato na Câmara. No entanto, para 13 deles, a experiência foi a única na casa (Tabelas 7 e 8). A segunda peculiaridade é a comparação entre estados de origem e estados representados. A Bahia, por exemplo, contava com 6 dos deputados evangélicos nascidos no

140 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 nov. 1986. p. 16. 141 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 206-207. 75

estado, possuindo, no entanto, apenas 1 mandato. O contrário ocorria com o Rio de Janeiro, com 2 deputados nascidos em território fluminense, mas 7 mandatos. Apontamos, para isto, duas importantes razões: a primeira delas, devido à intensa migração interna, intensificada com o processo de industrialização dos anos 1950 e 1960, partindo especialmente do Nordeste em direção ao Sudeste. A segunda razão é a atividade sacerdotal, que em alguns casos exige que o religioso se desloque para outros municípios e estados, visando o trabalho evangelístico, a plantação e direção de templos e o exercício de outras atividades inerentes ao seu ofício.

Gráfico 6 - Comparação entre estados de origem e estados representados por parlamentares evangélicos - 8 1987-1991

6

4

2

0 AC AM BA CE ES GO MA MG MS MT PA PB PE PR RJ RN RS SC SP Origem Mandato

2.6 O funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte e a atuação evangélica

A instalação da Assembleia Nacional Constituinte ocorreu em 1º de fevereiro de 1987, com a posse dos 487 deputados e 49 senadores eleitos no ano anterior para a 48ª legislatura (1987-1991) que, somados aos 23 dos 25 senadores eleitos em 1982 para a 47ª legislatura (1983-1987), totalizavam 559 constituintes. O presidente da Constituinte conduziria seus trabalhos e, para a função, candidataram-se os deputados Ulysses Guimarães (PMDB/SP) e Lysâneas Maciel. O primeiro foi o eleito, com 425 votos. Maciel recebeu 69 votos e houve também 28 votos em branco, em votação realizada em 2 de fevereiro142.

142 Diário da Assembleia Nacional Constituinte, Brasília, 3 fev. 1987. p. 17. 76

Figura 12 – O presidente da República José Sarney, o presidente do Supremo Tribunal Federal José Carlos Moreira Alves e o presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães, na instalação da Assembleia Nacional Constituinte, em 01 de fevereiro de 1987. Autor desconhecido.

Fonte: http://infogbucket.s3.amazonaws.com/timeline/line_assembleia-nacional-constituinte/01-02-1987.jpg

Na eleição para os outros cargos da Mesa Diretora, que incluíam dois vice-presidentes, três secretários e três suplentes de secretários, os evangélicos estavam representados por Benedita da Silva, escolhida 1ª suplente de Secretário, e Sotero Cunha (PDC/RJ), eleito 3º suplente de Secretário. Benedita da Silva destacou-se, também, por ser a única mulher negra na direção da Câmara dos Deputados. A dinâmica de funcionamento da Constituinte era dividida em 7 etapas, subdivididas em outras 25 fases, conforme proposta de Mauro Márcio Oliveira (Tabela 4)143.

143 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Panorama do Funcionamento da ANC. Disponível em . Acesso em: 28 mai. 2017. 77

Tabela 4 – Dinâmica de funcionamento Assembleia Nacional Constituinte

Etapas Fases Definição do Regimento Interno da ANC 1 - Preliminar Sugestões: cidadãos, constituintes e entidades A: Anteprojeto do relator 2 - Subcomissões Temáticas B: Emenda ao Anteprojeto do relator C: Anteprojeto da Subcomissão E: Emenda ao Anteprojeto da Subcomissão, na Comissão F: Substitutivo do Relator 3 - Comissões Temáticas G: Emenda ao Substitutivo H: Anteprojeto da Comissão I: Anteprojeto da Constituição J: Emenda Mérito (CS) ao Anteprojeto K: Emenda Adequação (CS) ao Anteprojeto L: Projeto de Constituição 4 - Comissão de Sistematização M: Emenda (1P) de Plenário e Populares N: Substitutivo 1 do Relator O: Emenda (ES) ao Substitutivo 1 P: Substitutivo 2 do Relator Q: Projeto A (início 1º turno) R: Ato das Disposições Transitórias S: Emenda (2P) de Plenário 5 - Plenário T: Projeto B (fim 1º turno, início 2º turno) U: Emenda (2º turno) ao Projeto B V: Projeto C (fim 2º turno) W: Proposta exclusivamente de redação 6 - Comissão de Redação X: Projeto D - redação final 7 - Epílogo Y: Promulgação Nota: “Etapas” propostas pelo autor; “fases” da APEM (Anteprojetos, Projetos e Emendas). A fase D não existe.

De modo a facilitar os trabalhos parlamentares, a Constituinte foi dividida em 8 Comissões Temáticas, que por sua vez eram subdivididas em 3 Subcomissões Temáticas cada, num total de 24:

O sistema de comissões funcionou do seguinte modo. O corpo constituinte, excluídos os membros da mesa, foi dividido em oito comissões temáticas e uma Comissão de Sistematização, respeitando-se no interior de cada comitê a proporcionalidade partidária. À exceção da Sistematização, onde a indicação dos integrantes foi feita pelos líderes, cada constituinte tinha direito a uma vaga de titular e a outra de suplente. Uma vez instaladas, cada comissão dividiu-se em três subcomissões, iniciando-se nesse nível descentralizado o debate da matéria constitucional. Cada subcomissão, após elaborar seu anteprojeto, juntou-se às outras duas convizinhas na comissão temática ascendente, para a feitura de novo anteprojeto. Os textos das oito comissões foram enviados à Comissão de Sistematização, a fim de que fossem compatibilizados em um único projeto constitucional. Esse projeto seria então enviado ao plenário da Constituinte, para votação em dois turnos. 78

(...) As 24 subcomissões funcionaram de 7 de abril a 25 de maio de 1987. Em conformidade com as preferências dos parlamentares, a composição de cada uma variou entre o mínimo de 14 integrantes — Questão Urbana e Transporte — e o máximo de 26 — Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos —, o que descompensou, em parte, a proporcionalidade partidária. A definição dos nomes que comporiam cada mesa diretora, desgastou o relacionamento entre o líder Mário Covas e peemedebistas que se sentiram desprestigiados pelas indicações. Nessa etapa, a participação dos constituintes e da população foi intensa, tendo sido concedidas 182 audiências públicas, encaminhadas 11.989 propostas e apresentadas 6.417 emendas aos anteprojetos. A sobrecarga de informações e de temas, a inexperiência de parte dos parlamentares e normas regimentais novas e imprecisas produziram algumas votações confusas. Por sua vez, o procedimento descentralizado e o menor número de parlamentares em cada comitê favoreceram a obtenção e a troca de informações, recompensaram os constituintes mais atuantes e propiciaram a elaboração de anteprojetos extensos e detalhistas. As primeiras grandes polêmicas e os contornos básicos da futura Constituição manifestaram-se nessa fase144.

Entretanto, mesmo instaladas no dia 1º de abril de 1987, as comissões iniciariam seus trabalhos somente depois do encerramento das discussões e votações em suas respectivas subcomissões:

(...) A partir do dia 26 de maio, as oito comissões receberam os anteprojetos. Com a união das subcomissões, o quórum deliberativo foi ampliado, variando entre 59 componentes — Organização do Estado — e 65 — Ordem Econômica e Ordem Social. Essa etapa representou o primeiro esforço para depuração dos assuntos e compatibilização dos textos. Isso permitiu a especialização temática de parlamentares e a formação de grupos informais unidos pela afinidade de idéias. Na fase do plenário, a experiência adquirida nas comissões mostrar-se-ia fundamental, tanto para esclarecer o teor das posições em conflito, quanto para fornecer bases preliminares para os acordos. Na etapa das comissões, também começou a ser selado o fim da Aliança Democrática, ocorrendo a aproximação do governo com os setores de centro e direita. Uma das principais motivações foi a escolha feita pelo líder Mário Covas dos relatores peemedebistas, em sua maioria de centro-esquerda, fato que desagradou o palácio do Planalto e os setores à direita da Constituinte145.

Dadas a dimensão e abrangência dos trabalhos das comissões e subcomissões, tendo como fator preponderante a enorme variedade de interesses representados na Constituinte, o resultado dos anteprojetos era um grande emaranhado, confuso e inconsistente:

(...) Além de superposições e desencontros da matéria constitucional — por exemplo, definição de despesas e vinculações orçamentárias sem a contrapartida das receitas —, houve perfis antagônicos — Comissão de Ordem Social, à esquerda, e Comissão de Ordem Econômica, à direita. Como conseqüência, e dada a crescente fragmentação do PMDB, começaram a ser articulados blocos suprapartidários. Alguns unidos por afinidade ideológica ou temática, tendo em vista influir na

144 ATLAS HISTÓRICO DO BRASIL – FGV. Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88. Disponível em . Acesso em: 28 mai. 2017. 145 ATLAS HISTÓRICO DO BRASIL – FGV. Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88. Disponível em . Acesso em: 28 mai. 2017. 79

organização do texto; outros interessados em ocupar o espaço que surgia do afastamento entre a elite peemedebista e o Poder Executivo146.

Além das Comissões e Subcomissões temáticas, existiam também as Comissões de Sistematização e a de Redação. A primeira, instalada em 9 de abril de 1987, tinha o objetivo de elaborar o anteprojeto do texto constitucional, que seria enviado ao plenário para votação em 1º turno. Sua composição regimental era de 89 parlamentares, sendo 49 membros titulares, 24 relatores das Subcomissões, 8 relatores e 8 presidentes das Comissões, mas chegou a abrigar 93 para contemplar toda a representação partidária da Constituinte.

A Comissão de Sistematização tinha, essencialmente, três funções. A primeira era coordenar os anteprojetos oriundos das comissões temáticas, compatibilizando‐os em um texto preliminar para discussão. A segunda, que começava pelo recebimento e organização das propostas enviadas, implicava a elaboração de um anteprojeto substitutivo. Essa fase incluía o recebimento das emendas populares e a concessão de audiência pública para que os representantes das propostas as defendessem perante a Constituinte. Finalmente, atribuía‐se aos componentes da Sistematização, por delegação dos demais, a competência para debater as propostas, definindo, pelo voto, o projeto de Constituição a ser enviado ao plenário. (...) Em 17 de junho, foram enviados à Sistematização sete anteprojetos elaborados pelas comissões temáticas — uma delas, a Comissão VIII, não concluíra a sessão de votação. Coube ao relator, além da tarefa de reunir os textos, elaborar, a partir de conversas com os relatores das etapas anteriores, a matéria referente a essa comissão. O primeiro projeto da Sistematização, apresentado no dia 26, continha 501 artigos, e apenas reunia formalmente os anteprojetos. Incompatibilidades entre os textos e inconsistências técnicas de algumas normas eram visíveis, fato que, acrescido do caráter polêmico de alguns dos dispositivos, motivou críticas ácidas dentro e fora da ANC. As lideranças partidárias decidiram que, das 5.624 emendas feitas ao texto, o relator Bernardo Cabral levaria em conta apenas as 977 emendas consideradas como de adequação, ficando as demais — emendas de mérito — para serem avaliadas em etapa subseqüente. No dia 14 de julho, o relator apresentou o “Projeto Zero”, composto por 496 artigos, e marco inicial para a apresentação e discussão de novas propostas.

O “Projeto Zero” recebeu 20.791 propostas de emendas, sendo 5.237 originadas das etapas anteriores da Constituinte, além de 122 emendas de iniciativa popular. Destas, 83 preencheram os requisitos regimentais, sendo defendidas na Comissão de Sistematização pelas entidades patrocinadoras.

(...) As atenções, porém, estavam voltadas para o “Substitutivo I”, o novo texto elaborado pelo relator Bernardo Cabral. Decorrente de negociações entre a equipe do relator, grupos de constituintes e lideranças partidárias, o substitutivo suscitou polêmicas dentro e fora da ANC. Sobrecarregada de trabalho — outras 14.320 emendas seriam apresentadas ao Substitutivo I, perfazendo um total de 35.111 —, a ANC enfrentava pressões diversas à medida que crescia a expectativa com relação à votação. (...) Em ambiente tenso, em meio às articulações das forças políticas, Bernardo Cabral concluiu seu parecer sobre as emendas apresentadas optando pela elaboração de um novo anteprojeto, “Substitutivo II”. (...) Em 24 de setembro, começou a votação do

146 ATLAS HISTÓRICO DO BRASIL – FGV. Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88. Disponível em . Acesso em: 28 mai. 2017. 80

projeto da Comissão de Sistematização, de modo confuso e em ritmo lento, dados o grande número de destaques para votação — 8.377 —, o pouco tempo para debater o “Substitutivo II” e o sistema de votação nominal. (...) No dia 18 de novembro, após a apreciação de 2.612 destaques, aconteceu a última votação (535ª), sendo definido o texto final. O Projeto de Constituição A, com cerca de 1.800 dispositivos, possuía 335 artigos, dos quais 271 nas disposições permanentes, e 63 em disposições transitórias147.

A Comissão de Redação recebeu a incumbência de preparar o texto final do documento, “corrigindo a linguagem e adequando o texto à técnica legislativa”. Era presidida por Ulysses Guimarães, com dois co-presidentes, Afonso Arinos e Jarbas Passarinho, além de Bernardo Cabral como relator.

A Comissão de Redação recebeu 833 emendas de redação, das quais algumas propunham alterações na matéria aprovada. O trabalho da comissão não se deteve à adequação e à correção do texto. Em disputadas votações internas foram aprovados, dentre 733 destaques, alguns referentes a emendas supressivas, aditivas e modificativas. Embora parte das emendas aprovadas fosse objeto de acordo de lideranças, houve polêmica. A liderança do PFL, atendendo à solicitação do governo, reivindicou que alterações feitas ao projeto fossem votadas separadamente. A proposta foi rejeitada pelo presidente da ANC, Ulisses Guimarães, que não permitiu a realização do que seria um terceiro turno. No dia 22 de setembro, o plenário da ANC, na 1.021ª votação, aprovou, por 474 votos contra 15 — todos de constituintes do PT — e seis abstenções, o Projeto de Constituição “D”. Em sessão solene, realizada no dia 5 de outubro de 1988, e com a participação das maiores autoridades do país e de convidados do exterior, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil. O texto final ficou composto por 315 artigos, dos quais 245 distribuídos por oito títulos das disposições permanentes e 70 nas disposições transitórias148.

No que diz respeito às comissões, os evangélicos destacavam-se em duas: eram 14 membros, entre titulares e suplentes, na Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher e na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Na primeira, eram 8 titulares, e na última, somavam 11. Em outras importantes comissões, como a de Organização do Estado e a da Ordem Econômica, porém, havia apenas 1 evangélico titular em cada. Nenhum evangélico presidiu comissões (ver Tabela 7). Em relação às subcomissões, os destaques eram as da Ciência e Tecnologia e da Comunicação e a da Família, do Menor e do Idoso, ambas incluídas na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. A primeira era liderada por Arolde de Oliveira, eleito seu presidente em abril de 1987. Além de Oliveira, os outros evangélicos na subcomissão eram Fausto Rocha e Roberto Vital, membros titulares. A

147 ATLAS HISTÓRICO DO BRASIL – FGV. Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88. Disponível em . Acesso em: 28 mai. 2017. 148 ATLAS HISTÓRICO DO BRASIL – FGV. Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88. Disponível em . Acesso em: 28 mai. 2017. 81

atuação da bancada evangélica nesta subcomissão e na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação será analisada, de forma mais ampla e aprofundada, no capítulo 3 deste trabalho.

Figura 13 – Entidades fazem entrega conjunta de emendas populares à Comissão de Sistematização da Assembleia Constituinte; listas de assinaturas de apoio de pelo menos 30 mil eleitores acompanham cada uma das propostas. Foto de Lula Marques/Folhapress.

Fonte: http://memorialdademocracia.com.br/publico/image/1404

A Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, era presidida por Nelson Aguiar. Entretanto, Aguiar era membro do grupo dissidente, tendo defendido posturas consideradas polêmicas em relação ao aborto: apesar de ser pessoalmente contra, caberia “à mulher ou à sua família discutir se uma gravidez por estupro ou que cause risco de vida deve prosseguir ou não”. Os evangélicos da subcomissão eram unanimemente contrários ao aborto, alguns não admitindo exceções e outros sem posição definida a este respeito149. A subcomissão liderada por Aguiar era a que mais possuía evangélicos: 8 no total, com os deputados Roberto Augusto e Eraldo Tinoco como 1º vice-presidente e relator, respectivamente. Apenas Orlando Pacheco era suplente. As seguintes contavam com 4 evangélicos cada: a Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e das Garantias, a Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais e a Subcomissão dos Municípios e Regiões. As subcomissões de Tributos, Participação e Distribuição das Receitas e a de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica não possuíam representantes evangélicos. Outras 5 subcomissões possuíam apenas 1 representante do grupo (ver Tabela 8).

149 Folha de São Paulo, São Paulo, 26 abr. 1987. p. A-22. 82

Quanto à produção legislativa, os constituintes evangélicos apresentaram 3.420 emendas e 328 sugestões, num total de 3.748 matérias apresentadas. Destas, apenas 465 foram aprovadas, e 1.782 foram rejeitadas. Manoel Moreira foi o evangélico que mais apresentou emendas, em um total de 337, sendo 70 delas aprovadas e 201 rejeitadas, aparecendo também como o que mais conseguiu aprovar matéria constitucional. No extremo oposto, Mario de Oliveira apresentou apenas 6 emendas, com 2 aprovadas e nenhuma sugestão, e Edivaldo Holanda simplesmente não apresentou nenhuma emenda ou sugestão durante sua presença na Constituinte (ver Tabela 6)150.

150 SENADO FEDERAL. Bases da Assembleia Nacional Constituinte 1987-1988. Disponível em . Acesso em: 01 fev. 2017. 83

Tabela 5 – Comissões e Subcomissões da Assembleia Nacional Constituinte

Comissões Subcomissões a - Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das I - Comissão da Soberania e dos Relações Internacionais Direitos e Garantias do Homem e da b - Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Mulher Coletivos e das Garantias c - Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais a - Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios II - Comissão da Organização do Estado b - Subcomissão dos Estados c - Subcomissão dos Municípios e Regiões a - Subcomissão do Poder Legislativo III - Comissão da Organização dos b - Subcomissão do Poder Executivo Poderes e Sistema de Governo c - Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público a - Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos IV - Comissão da Organização b - Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de Eleitoral, Partidária e Garantia das sua Segurança Instituições c - Subcomissão de Garantia da Constituição, Reformas e Emendas a - Subcomissão de Tributos, Participação e Distribuição V - Comissão do Sistema Tributário, das Receitas Orçamento e Finanças b - Subcomissão de Orçamento e Fiscalização Financeira c - Subcomissão do Sistema Financeiro a - Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica VI - Comissão da Ordem Econômica b - Subcomissão da Questão Urbana e Transporte c - Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária a - Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos b - Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio VII - Comissão da Ordem Social Ambiente c - Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias a - Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes VIII - Comissão da Família, da b - Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Educação, Cultura e Esportes, da Comunicação Ciência e Tecnologia e da Comunicação c - Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso IX - Comissão de Sistematização - X - Comissão de Redação -

84

Tabela 6 – Produtividade evangélica na Assembleia Nacional Constituinte

6

52

32

43

16

46

82

21

19

24

42

67

13

37

31

30

306

136

239

193

363

168

112

201

238

168

162

228

107

204

111

121

130

-

-

3748

TOTAL

1

2

3

8

3

2

1

3

1

8

5

4

5

7

9

10

26

36

58

45

22

10

11

16

18

14

328

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

Sugestões

8

6

6

50

32

40

46

79

19

18

24

62

13

33

21

96

30

93

296

135

239

192

337

165

104

143

193

163

155

206

188

112

116

-

-

3420

TOTAL

1

1

1

1

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

4

Retirada

3

4

4

75

25

22

21

21

23

16

94

60

14

16

51

32

10

15

91

63

71

13

46

22

42

70

41

171

123

201

106

106

110

1782

-

-

Rejeitada

5

5

3

3

6

1

9

2

1

9

4

2

9

9

2

8

2

9

21

44

15

13

18

17

23

19

12

17

288

-

-

-

-

-

-

-

Prejudicada

9

5

4

1

3

2

9

1

5

3

2

38

30

25

28

26

20

15

17

32

22

19

26

12

22

10

11

23

420

Emendas

-

-

-

-

-

-

-

Parcial. Parcial. Aprovada

9

4

2

1

5

5

1

1

8

25

-

-

-

-

10

-

21

-

34

-

27

50

-

-

-

13

15

40

29

31

-

16

16

13

25

401

N/I

1

4

3

3

1

1

60

33

14

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

Em análiseEm

5

9

2

2

2

2

5

2

1

6

2

3

9

41

16

15

11

10

26

17

70

12

16

11

12

23

29

27

17

14

20

15

13

465

-

-

Aprovada

TOTAL

Parlamentar

Sotero Cunha

Salatiel Carvalho Salatiel

Rubem Branquinho Rubem

Roberto Roberto Vital

Roberto Roberto Augusto

Paulo Almada Paulo

Orlando PachecoOrlando

Norberto Schwantes

Nelson Aguiar Nelson

Naphtali Alves de Souza Alves Naphtali

Milton Barbosa Milton

Matheus Matheus Iensen

Mário de Oliveira Mário

Manoel Moreira Manoel

Lysânes Lysânes Maciel

Lézio Sathler Lézio

Levy Dias Levy

José Viana

José Fernandes

João de Deus Antunes

Jayme Paliarin

Gidel Dantas Gidel

Fausto Rocha

Eunice Michiles Eunice

Eraldo Tinoco Eraldo

Enoc Vieira

Eliel Rodrigues Eliel

Edivaldo Holanda Edivaldo

Edésio Frias Edésio

Daso Coimbra

Costa Costa Ferreira

Celso Dourado Celso

Benedita da Silva Benedita

Arolde de Oliveira Arolde

Antônio de Jesus Antônio

RJ

RJ

RJ

RJ

RJ

PE

RJ

SC

ES

BA

PR

SP

ES

RS

SP

SP

BA

PA

RJ

UF

AC

CE

BA

GO

MS

RO

MA

GO

MG

MG

MT

MG

AM

AM

MA MA

85

Tabela 7 – Evangélicos nas Comissões Temáticas da Assembleia Nacional Constituinte

14

T

T

T

T

T

T

T

T

T

T

T

T

S

S

VIII

7

T

T

T

S

S

S

S

VII

3

T

S

S

VI

4

T

T

S

S

V

4

T

T

S

S

IV

Comissões

7

T

T

S

S

S

S

S

III

8

T

II

S

S

S

S

S

S

S

I

T

T

T

T

T

T

T

T

S

S

S

S

S

S

14

Não

Sim

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Sim

Não

Sim

Sim

Sim

Não

Não

Não

Não

Não

Sim

Não

Não

Sim

Não

Sim

Não

Não

Não

Não

Não

Sim

Não

Sim

Sim

Não

Total:

Reeleito

4

1

7

6

0

7

10

10

1,0

-

9,5

5,5

3,5

7,5

7,0

0,5

1,5

0,5

4,61

4,75

6,75

5,75

3,75

0,75

9,75

1,25

4,25

6,25

7,75

5,25

0,25

3,75

1,25

9,75

0,75

3,25

DIAP

Média

Mandato

N/D

N/D N/D

N/D N/D

N/D N/D

Votos

39.519

42.138

56.430

36.698

79.792

51.028

36.913

50.641

90.850

32.170

23.294

21.077

28.415

27.460

26.417

49.301

51.190 51.190

48.907 48.907

54.332 54.332

25.898 25.898

47.047 47.047

49.556 49.556

17.018 17.018

19.633 19.633

48.327 48.327

40.459 40.459

24.003 24.003

27.087 27.087

45.399 45.399

40.822 40.822

4.807

IB

IB

IB

IB

IB

IB

IB

IC

IPI

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

IPB

ICE

IEQ

IPB

IDC

IPU

IEQ

CBN

CBN

ICCR

IURD

IASD

IECLB

Igreja

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Suplente

Suplente

Suplente

Situação

RJ

RJ

RJ

RJ

RJ

RJ

RJ

PE

SC

BA

PR

SP

RS

SP

BA

PA

UF

AC

MT

ES

GO

ES

RO

SP

CE

MA

BA

GO

MG

MG

MG

MS

AM

AM

MA

MA

PL

PT

PFL

PFL

PFL

PTB

PDT

PFL

PDT

PFL

PFL

PFL

PFL

PDT

PFL

PFL

PTB

PRN

PDT

PTB

PDC

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

Partido

Parlamentar

Sotero Cunha Sotero

Salatiel Carvalho

Rubem Branquinho Rubem

Roberto Vital Roberto

Roberto Augusto Roberto

Paulo Paulo Almada

Orlando Pacheco Orlando

Norberto Schwantes* Norberto

Nelson Aguiar Nelson

Naphtali Alves de Souzade Alves Naphtali

Milton Barbosa

Matheus Matheus Iensen

Mário de Oliveira de Mário

Manoel Moreira Manoel

Lysânes Maciel

Lézio Lézio Sathler

Levy Dias Levy

José Viana José

José Fernandes José

João de Deus Antunes Deus de João

Jayme Paliarin Jayme

Gidel Dantas Gidel

Fausto Rocha

Eunice Michiles

Eraldo Tinoco Eraldo

Enoc Vieira

Eliel Rodrigues

Edivaldo Holanda Edivaldo

Edésio Frias

Daso Coimbra Daso

Costa Costa Ferreira

Celso Celso Dourado

Benedita da Silva da Benedita

Arolde de Oliveira de Arolde Antônio de Jesus Antônio de

86

Tabela 8 – Evangélicos nas Subcomissões Temáticas da Assembleia Nacional Constituinte

c

8

T

S

P

T

T

T

R

T

1VP

3

P

b

VIII

T

T

2

S

a

T

3

S

c

T

T

1

S

b

VII

3

S

S

a

T

c

1

S

2

S

b

T

VI

a

0

c

1

S

2

b

T

T

V

a

0

1

c

T

2

S

b

IV

2VP

a

1

S

c

2

S

S

3

S

S

b

T

III

a

3

S

S

1VP

4

S

S

S

c

T

2

S

S

b

II

a

2

S

S

4

S

S

c

T

T

I

4

R

S

T

b

1VP

3

S

S

a

T

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Total

Reeleito

4

1

7

6

0

7

10

10

1,0

9,5

5,5

3,5

7,5

7,0

0,5

1,5

0,5

-

4,75

6,75

5,75

3,75

0,75

9,75

1,25

4,25

6,25

7,75

5,25

0,25

3,75

1,25

9,75

0,75

3,25

4,61

DIAP

Média

Mandato

N/D

N/D N/D

N/D N/D

N/D N/D

39.519

42.138

56.430

36.698

79.792

51.028

36.913

50.641

90.850

32.170

23.294

21.077

28.415

27.460

26.417

49.301

Votos

51.190 51.190

4.807 4.807

48.907 48.907

54.332 54.332

25.898 25.898

47.047 47.047

49.556 49.556

17.018 17.018

19.633 19.633

48.327 48.327

40.459 40.459

24.003 24.003

27.087 27.087

45.399 45.399

40.822 40.822

IB

IB

IB

IB

IB

IB

IC

IB

IPI

AD

AD

ICE

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

AD

IPB

IEQ

IPB

AD

AD

IEQ

IPU

IDC

CBN

CBN

ICCR

IURD

IASD

Igreja

IECLB

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Titular

Suplente

Suplente

Suplente

Situação

RJ

RJ

RJ

RJ

RJ

PE

RJ

SC

ES

PR

SP

ES

RS

SP

SP

RJ

GO

CE

PA

GO

UF

AC

BA

RO

BA

BA

MG

MG

MT

MG

MS

AM

AM

MA

MA

MA

PL

PT

PFL

PFL

PFL

PFL

PFL

PFL

PFL

PTB

PFL

PFL

PFL

PDC

PTB

PDT

PDT

PDT

PTB

PDT

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

PMDB

Partido

Parlamentar

SoteroCunha

Salatiel Carvalho Salatiel

Rubem Branquinho Rubem

RobertoVital

RobertoAugusto

Paulo Almada Paulo

Orlando PachecoOrlando

NorbertoSchwantes*

NelsonAguiar

Naphtali AlvesNaphtali de Souza

MiltonBarbosa

MatheusIensen

Mário deMário Oliveira

ManoelMoreira

LysânesMaciel

Lézio Sathler Lézio

Levy Dias Levy

JoséViana

JoséFernandes

Joãode Deus Antunes

Jayme Paliarin Jayme

Gidel Dantas Gidel

FaustoRocha

Eunice Michiles Eunice

Eraldo Tinoco Eraldo

Enoc Vieira Enoc

Eliel Rodrigues Eliel

Edivaldo Holanda Edivaldo

EdésioFrias

DasoCoimbra

CostaFerreira

Celso DouradoCelso

Beneditada Silva Aroldede Oliveira Antôniode Jesus

87

LEGENDA

Comissões: I - Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher II - Comissão da Organização do Estado III - Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo IV - Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições V - Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças VI - Comissão da Ordem Econômica VII - Comissão da Ordem Social VIII - Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação IX – Comissão de Sistematização X – Comissão de Redação

Subcomissões: I a – Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais I b – Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e das Garantias I c – Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais II a – Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios II b – Subcomissão dos Estados II c – Subcomissão dos Municípios e Regiões III a – Subcomissão do Poder Legislativo III b – Subcomissão do Poder Executivo III c – Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público IV a – Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos IV b – Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança IV c – Subcomissão de Garantia da Constituição, Reformas e Emendas V a – Subcomissão de Tributos, Participação e Distribuição das Receitas V b – Subcomissão de Orçamento e Fiscalização Financeira V c – Subcomissão do Sistema Financeiro VI a – Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica VI b – Subcomissão da Questão Urbana e Transporte VI c – Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária VII a – Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos VII b – Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente VII c – Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias VIII a – Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes VIII b – Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação VIII c – Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso

Cargos: T – Titular S – Suplente R – Relator P – Presidente 1VP – 1º Vice-Presidente 2VP – 2º Vice-Presidente

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3 A CONSTITUINTE DE 1988 E A EXPANSÃO DA MÍDIA EVANGÉLICA

3.1 Os evangélicos e as relações com veículos de comunicação

O presente tópico objetiva analisar – antes de nos aprofundarmos especificamente na produção legislativa – as relações entre os parlamentares que compunham a Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação e a Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação com veículos de comunicação, quaisquer que fossem seus vínculos: donos, sócios, funcionários ou apresentadores. O primeiro da lista é o deputado Arolde de Oliveira. Escolhido para a presidência da Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação em abril de 1987, iniciou sua carreira parlamentar em 1982, quando foi candidato a deputado federal pelo PDS fluminense, sendo eleito 1º suplente, com 23 mil votos, assumindo o mandato no ano seguinte, após o licenciamento de Álvaro Valle. Em 1985, mesmo fora do exercício do mandato, ajudou a articular o PFL. No mesmo ano, assumiu a vice-presidência da estatal Telecomunicações do Estado do Rio de Janeiro (TELERJ), onde permaneceu até 1986, quando foi novamente candidato a deputado federal, sendo desta vez eleito com 26 mil votos. Engenheiro militar, formado pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) nos anos 1960, Oliveira já havia ocupado vários cargos em órgãos públicos na área das telecomunicações, como na Empresa Brasileira de Telecomunicações (EMBRATEL), onde foi chefe do escritório permanente em Washington (EUA); a International Telecommunications Satellite Organization (INTELSAT), também em Washington, onde exerceu o cargo de governador da instituição nos anos 1970; Telecomunicações Brasileiras (TELEBRÁS); e o Departamento Nacional de Telecomunicações (DENTEL), onde foi diretor regional no Rio de Janeiro entre 1979 e 1982. Nos anos 1980, Oliveira controlava a rádio Nacional FM do Rio de Janeiro, na qual era sócio do empresário Edson Dominguez151. Em 1992, a rádio se transformaria na 93 FM, ou El-Shadai, voltada para o público evangélico. A Rádio Mundo Jovem LTDA, razão social da emissora de Oliveira, está registrada no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) desde abril de 1983, com a outorga assinada em 20 de outubro do mesmo ano e publicada no

151 TRIBUTO AO RÁDIO DO RIO DE JANEIRO. 93 FM – 93,3 MHz – Porta-voz dos evangélicos tradicionais. Disponível em . Acesso em: 05 set. 2017. 89

Diário Oficial da União uma semana depois152. Além disso, como apontado no primeiro capítulo desta pesquisa, Oliveira também foi um dos articuladores da concessão recebida pela Rádio Difusão Ebenézer Ltda, ligada ao pastor Nilson do Amaral Fanini, que deu origem à TV Rio. Os outros parlamentares membros da subcomissão presidida por Arolde de Oliveira eram Fausto Rocha e Roberto Vital. O primeiro possuía sólida carreira no jornalismo brasileiro: havia sido apresentador de telejornais da TV Tupi nos anos 1960, tornando-se locutor oficial do Palácio dos Bandeirantes na gestão de Paulo Egydio Martins, nos anos 1970. Em 1978, foi eleito deputado estadual pela ARENA com 61 mil votos, e reeleito pelo PDS nas eleições de 1982 com 71 mil votos. Foi também secretário estadual na gestão de Paulo Maluf, entre 1981-1982. Nas eleições de 1986, Rocha, batista tradicional, foi o deputado evangélico mais votado do Brasil, eleito pelo PFL com 90.850 votos. Roberto Vital, batista renovado, foi eleito pelo PMDB mineiro com 48 mil votos. Médico com base em Belo Horizonte, Vital havia passado pelo efêmero PP de Tancredo Neves e Magalhães Pinto, retornando em seguida ao PMDB, por onde foi escolhido vereador da capital mineira nas eleições de 1982, chegando à presidência da Câmara Municipal entre 1984-1986. Rocha e Vital eram membros titulares da subcomissão. Ainda sobre a Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, levantamos alguns dados importantes. Seu 1º vice-presidente era Onofre Correia (PMDB-MA), economista, pecuarista e aliado do presidente José Sarney. O 2º vice-presidente da subcomissão era o deputado José Carlos Martinez (PMDB/PR). Martinez e sua família eram fundadores e donos da emissora Rede OM, inaugurada em 1982 no estado do Paraná, sendo também proprietários da TV Tropical, de Londrina, fundada em 1979, que foi afiliada da Rede Globo e da Rede Bandeirantes, depois integrante da Rede OM153.

152 Diário Oficial da União, Brasília, 27 out. 1983. p. 18.261. 153 Em 1993, a Rede OM (iniciais de Organizações Martinez) se transformaria na Central Nacional de Televisão (CNT). 90

Tabela 9 – Deputados evangélicos na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação Alinhamento Deputado Partido/UF Condição parlamentar Relação com mídia Antonio de Jesus PMDB/GO Titular Centrão/CEB Ganhou concessão154 Proprietário de emissora de rádio; executivo de empresas de telecomunicações; conquistou concessões de Arolde de Oliveira PFL/RJ Titular Centrão rádios para aliados Eliel Rodrigues PMDB/PA Titular Centrão Radialista Proprietário de emissora de Eraldo Tinoco PFL/BA Titular Centrão rádio Eunice Michiles PFL/AM Titular Centrão - Apresentador de TV; ganhou concessão da TV FR (SP) em Fausto Rocha PFL/SP Titular Centrão 1988

Radialista e apresentador de TV; conquistou concessões de João de Deus Antunes PDT/RS Titular Centrão/CEB rádios para aliados Radialista; ganhou concessões das rádios 107 e Alvorada Mário de Oliveira PMDB/MG Suplente Centrão/CEB (MG) em 1988 Proprietário de emissora de rádio; ganhou concessão da Rádio Novas de Paz (PR) em Matheus Iensen PMDB/PR Titular Centrão 1988 Nelson Aguiar PMDB/ES Titular Dissidente - Orlando Pacheco PFL/SC Suplente Centrão Radialista Radialista e apresentador de Roberto Augusto PTB/RJ Titular Centrão TV Roberto Vital PMDB/MG Titular Centrão/CEB - Ganhou concessão da Rádio Salatiel Carvalho PFL/PE Titular Centrão/CEB Betel (PE) em 1988

No que diz respeito à Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, ela era presidida pelo deputado Marcondes Gadelha, do PFL paraibano. Sua família é proprietária das emissoras Rádio Cidade Esperança AM, Rádio Líder FM e Rádio Jornal AM, nos municípios de Esperança e Sousa (PB). O engenheiro agrônomo José Elias Moreira (PTB-MS) era o 1º vice-presidente da Comissão. Moreira, que havia pertencido à ARENA e ao PDS, foi um dos fundadores da União Democrática Ruralista (UDR), sendo proprietário de um canal de televisão em Dourados, a TV Caiuás. O 2º vice-presidente foi o economista Osvaldo Sobrinho (PMDB-

154 Paul Freston aponta que o parlamentar conquistou concessão de rádio sem, no entanto, discriminá-la. Fonte: FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 182. 91

MS), ex-membro da ARENA. O relator era o jornalista Artur da Távola, do PMDB fluminense, conhecido opositor do regime militar e liderança do campo progressista de seu partido. Na Comissão, a participação evangélica era expressiva: eram 14 os representantes, sendo 12 titulares e 2 suplentes. Do total, 11 possuíam vínculos com veículos de comunicação – sobretudo rádios –, de apresentadores a proprietários. Alguns deles conquistaram concessões durante a Constituinte, em favor próprio, de aliados ou de suas denominações religiosas (ver Tabela 9). Os deputados Eliel Rodrigues, Fausto Rocha, João de Deus Antunes, Mário de Oliveira, Orlando Pacheco e Roberto Augusto apresentavam programas religiosos através do rádio, com alguns deles estendendo suas atividades para a TV. Por ser presidente de subcomissão, Arolde de Oliveira, era membro titular. O deputado Eraldo Tinoco era proprietário da Rádio Cristal, que operava em AM na Bahia. Matheus Iensen era dono da Rádio Marumby, com outorga em Campo Largo e estúdios em Curitiba.

Figura 14 – Deputado Matheus Iensen, autor da emenda dos 5 anos de mandato para José Sarney. Foto: Wilson Pedrosa.

Fonte: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 05 jun. 1988. p. 5.

Em levantamento preliminar, constatamos que, dos 36 parlamentares evangélicos que atuaram na 48ª legislatura, entre titulares e suplentes, 14 possuíam algum envolvimento com emissoras de rádio, atuando como profissionais ou sócios de empresas de radiodifusão. Além disso, vários deles agiam como “facilitadores”, negociando concessões não apenas para igrejas ou grupos de comunicação voltados para o público evangélico, mas para aliados políticos diversos, como veremos no próximo tópico.

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3.2 A distribuição de concessões de rádio e TV no governo Sarney

Ao longo da Constituinte, diversos parlamentares evangélicos, membros do Centrão e ligados à CEB, conquistaram concessões de radiodifusão. Arolde de Oliveira e João de Deus Antunes conseguiram emissoras para aliados políticos em diversos estados. Fausto Rocha ganhou a TV FR, no interior de São Paulo, com abrangência em regiões como Bauru e Campinas. Mário de Oliveira conquistou a concessão da Rádio 107 FM e da Rádio Alvorada, em Minas Gerais. Salatiel Carvalho, a emissora Rádio Betel, no Recife, e Matheus Iensen, a Rádio Novas de Paz, no Paraná. Chama a atenção, em primeiro lugar, as datas em que foram concedidas as outorgas para funcionamento das emissoras. A TV FR obteve a sua em 29 de março de 1988, através do Decreto nº 95.881, publicado no Diário Oficial da União no dia seguinte, com o nome TV Universal LTDA155. A permissão da Rádio Betel LTDA foi outorgada através da Portaria 484, de 30 de setembro de 1988, do Ministério das Comunicações, publicada no Diário Oficial da União no dia 3 de outubro, dois dias antes da promulgação da nova Constituição Federal. A Rádio Novas de Paz LTDA obteve sua concessão para operar em ondas curtas pelo Decreto nº 96.147, de 10 de junho de 1988, publicado três dias depois156. O Sistema de Comunicação Alvorada, de Ipatinga (MG), obteve a outorga do Ministério das Comunicações em 01 de julho de 1988157. João de Deus Antunes, “que apadrinhou dois pedidos de concessões de rádio”, conquistou, ainda em junho de 1988, “a aprovação de um deles, em favor do prefeito de Coronel Dicase [o correto é Coronel Bicaco], no Rio Grande do Sul”. Arolde de Oliveira admitiu que “usou suas ligações no governo para obter uma rádio destinada a uma fundação evangélica em Santo Antônio do Descoberto, em Goiás”158. Em busca simples no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), da Receita Federal, verificamos que as emissoras já possuíam registro antes de receberem as concessões para funcionamento. A TV FR, de Fausto Rocha, possui inscrição desde 30 de setembro de 1987. A Rádio Betel, com nome fantasia de Rádio Maranata, pediu abertura em 30 de

155 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto Nº 95.881, de 29 de março de 1988. Disponível em . Acesso em: 17 jun. 2017. 156 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto Nº 96.147, de 10 de junho de 1988. Disponível em . Acesso em: 17 jun. 2017. 157 O TEMPO. Mário de Oliveira e Carlos Willian são sócios. Disponível em . Acesso em: 17 jun. 2017. 158 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 ago. 88. p. 5, Caderno B/Especial. 93

dezembro de 1987; a Rádio Novas de Paz, em 05 de novembro de 1987. O Sistema de Comunicação Alvorada, de Mário de Oliveira, obteve o CNPJ em 06 de outubro de 1987. O procedimento é praxe, com a abertura de empresa antes da concessão por parte do Estado. No entanto, compreendemos que só há a necessidade de abertura de uma empresa deste setor quando há expectativa real da concessão por parte do poder público, pois ela só pode entrar em operação a partir desta autorização, diferentemente da maior da parte das empresas privadas em outros ramos de atividades. Em segundo lugar, destacamos os vínculos políticos. Quase metade dos evangélicos na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação estava filiada ao PFL, com destaque para Arolde de Oliveira, Fausto Rocha e Eraldo Tinoco, além de outros seis deputados pelo PMDB, partido do presidente da República. Entre os principais líderes do PFL estavam, além do presidente da Comissão, Marcondes Gadelha, o ex-governador Bahia Antônio Carlos Magalhães (ACM), escolhido Ministro das Comunicações em março de 1985. Mesmo sendo um dos articuladores da Frente Liberal e apoiador da candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, ACM filiou-se ao partido apenas em 1986, sendo o único ministro a permanecer no cargo durante todo o governo de José Sarney. Podemos concluir que a atuação da bancada evangélica pró-governo Sarney, juntamente com as ligações político-partidárias, contribuiu para a distribuição de concessões para membros e aliados do grupo. Destacamos a iniciativa de Matheus Iensen, autor da emenda coletiva 1525-5/88, que concedeu 5 anos de mandato para o presidente José Sarney, apresentada em 13 de janeiro de 1988 e apoiada por 317 parlamentares159.

159 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 14 jan. 88. p. 3. 94

Figura 15 – Partidários da emenda Matheus Iensen com as mãos abertas, em alusão aos cinco anos de mandato para José Sarney. Foto: Jorge Rosenberg/Editoral Abril.

Fonte: http://www.memorialdademocracia.com.br/publico/thumb/1425/740/440

Dois dias após a apresentação da Emenda Iensen, o Jornal do Brasil denunciou: “Governo garante maioria com FMs e fundos perdidos”. Citados na reportagem, Roberto Jefferson (PTB/RJ), Rubem Medina (PFL/RJ), Aloísio Teixeira (PMDB/RJ) e Arolde de Oliveira, todos “cinco anistas”, foram apontados como “ganhadores” de concessões de rádio no estado do Rio. Roberto Jefferson conquistou uma em Três Rios, e Arolde de Oliveira, por sua vez, ganhou uma emissora em Paraíba do Sul, transferindo-a em seguida para um aliado político ligado ao Sistema Globo de Rádio. Além disso, houve a distribuição de recursos federais “destinados a programas de doação de leite e mutirões de casas populares”160. Diante da proposta de Iensen, o jornalista Carlos Chagas escreveu:

Raras vezes o País assistiu a um festival de fisiologismo como o encenado agora. Concessões para estações de rádio e televisão foram dadas aos montes para deputados, senadores e seus prepostos. Dirigentes de empresas estatais foram afastados e outros nomeados para satisfazer parlamentares capazes de engajar-se na tese dos cinco anos161.

As benesses concedidas em troca do apoio à proposta de Matheus Iensen ficaram conhecidas nos bastidores políticos como “5 anos”. No caso das concessões, eram “rádios e TVs 5 anos”162. Neste sentido, a atuação do ministro ACM foi preponderante. As denúncias sobre a “farra” das concessões eram crescentes, até que, em entrevista aos jornalistas Josias de

160 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 jan. 88. p. 4. 161 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 25 jan. 88. p. 4. 162 SILVA, Adriana Fernandes da. Telejornalismo regional: identidades e representações. Dissertação de Mestrado, Bauru, UNESP, 2005. p. 86. 95

Souza e Mauro Lopes, da Folha de São Paulo, o ministro das Comunicações admitiu o uso político das concessões de rádio e televisão:

Folha – Voltando à questão das pressões, o sr. tem nas mãos um instrumento de pressão muito grande: as concessões de rádio e televisão. O governo tem utilizado essas concessões para atingir objetivos políticos? Magalhães – Não. Entretanto eu devo lhe dizer que aqui há um exame da situação de quem merece ou não vencer. Agora, aquilo que se chama igualdade de condições eu jamais deixo de dar a concessão a alguém que apoia o governo. Isso não está interferindo em nada. Se houvesse uma superioridade de um adversário do governo, de apresentação técnica de proposta, de idoneidade financeira etc, aí levaria tranquilamente. Como isso não existe, havendo um equilíbrio, uma igualdade, ao senhor presidente da República cabe decidir e decidimos por aquele que apoia o governo. Mas temos até dado ao próprio líder Mario Covas. Você sabe que ele levou aquela célebre “Luzes da Ribalta” (concessão de emissora de rádio). Fez o pedido, que eu acho que não foi nada demais, e atendeu a comunidade de que ele faz parte. (...) Folha – Há o caso do deputado Fernando Bezerra Coelho (PMDB-PE), que votou pelos quatro anos na Sistematização. Segundo conta esse deputado, ele estaria com uma concessão de rádio FM, na cidade de Petrolina, “praticamente na mão”. Após ter votado a favor dos quatro anos, a concessão teria saído de suas mãos para ser entregue ao deputado Osvaldo Coelho (PFL-PE), seu aparentado e inimigo político, que votou a favor dos cinco anos na Sistematização. Aí entra naquele critério que o senhor falou, de “igualdade de condições”? Magalhães – Exatamente. Agora ele [Fernando Bezerra Coelho] não contou toda a verdade. Vou até pegar um telegrama ali que eu mandei para ele. Esse telegrama mostra que ele falseou a verdade. O que ele pediu? Uma rádio para Petrolina. O que o Osvaldo Coelho pediu? Uma rádio para Petrolina. Não é uma rádio para ele, é uma rádio para Petrolina. A rádio foi dada (Risos). Eu fiz um telegrama a ele assim: comunico ao ilustre parlamentar que foi dada a permissão para funcionamento da rádio FM – dei o nome da rádio – a pedido do ilustre parlamentar, para a coletividade de Petrolina. E mandei um abraço. Ele queria uma rádio para Petrolina, foi dada uma rádio para Petrolina. Coincidentemente no telegrama que foi para ele, dizia que a rádio foi do deputado Osvaldo Coelho, mas evidentemente Petrolina ganhou a rádio. Folha – O sr. acha lícito o uso desses critérios políticos? Magalhães – Não é critério político. Eu poderia dar a um e poderia dar a outro, ambos preencheram os requisitos da concorrência. O deputado Fernando Coelho não obteve. Se era pra ele ou não, nem sei, como também não sei se era para o deputado Osvaldo Coelho. O que sei é que dei uma rádio em Petrolina. Petrolina tem mais uma rádio FM163.

Dias depois, a mesma Folha de São Paulo veiculou uma reportagem com dados sobre as emissoras concedidas por ACM: “Entre 17 de março e 11 de junho deste ano, o governo fez oitenta concessões de estações retransmissoras da TV Bahia, que pertence ao filho do ministro, ao cunhado e ao genro do ministro Antonio Carlos Magalhães, ampliando a sua rede”164. Até mesmo uma CPI foi criada para investigar possíveis irregularidades nas concessões. Entretanto, instalada em paralelo à Constituinte, seus trabalhos foram para a “vala comum”. O relator, senador Wilson Barbosa (PMDB/MS), culpava os trabalhos da

163 Folha de São Paulo, São Paulo, 06 dez. 87. p. 6. 164 Folha de São Paulo, São Paulo, 10 dez. 87. p. 10. 96

Constituinte pela pouca produtividade: em cinco meses, ouviram apenas um depoente, o secretário-geral do ministério, Romulo Furtado. Martins também se queixava do falecimento do senador Fábio Lucena (PMDB/AM), articulador da CPI, que “morreu antes de nos deixar qualquer pista, qualquer indício dessas irregularidades”. Lucena suicidou-se em 14 de junho de 1987. Na mesma reportagem, a Folha de São Paulo relatou:

(...) No Congresso, existe uma espécie de estado-maior interpartidário sempre pronto a colaborar com quem queira investigar a política de concessões de rádio e televisão da chamada “Nova República”, administrada pelo ministro das Comunicações. Em março último, esses políticos recorreram ao sistema de processamento de dados do Senado (PRODASEN), e descobriram que em seus dois primeiros anos, o governo José Sarney já outorgou 327 concessões de rádio e televisão, cerca de 55% de todas as 598 concessões feitas durante os seis anos do governo Figueiredo. Entre março de 85 e março de 87, o Ministério das Comunicações aprovou mais de treze concessões por mês e, neste ritmo, o número de rádios e televisões autorizadas pela “Nova República” poderia estar, hoje, na casa das 435, mas o líder do PDT na Câmara, deputado Brandão Monteiro (RJ), 48, de centro-esquerda, arrisca: “Hoje elas já passam de quinhentas”165.

O Portal da Legislação, mantido pela Casa Civil da Presidência da República, aponta que, entre 15 de março de 1985, dia em que José Sarney assumiu a presidência interinamente, e o dia 15 de março de 1990, quando transmitiu o cargo para o eleito Fernando Collor de Mello, foram 795 decretos relativos à outorga, renovação ou transferência de concessões ou permissões de radiodifusão. Apenas durante a realização da Assembleia Nacional Constituinte, o Portal da Legislação aponta 430 decretos relativos ao tema. Atribuímos o grande número de atos relativos às concessões durante o governo Sarney não apenas à emenda de Matheus Iensen, mas à iminente mudança na legislação, que incluiria o Congresso Nacional no processo, fazendo com que deixasse de ser prerrogativa exclusiva do presidente da República:

O ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, admitiu ontem em Porto Alegre que o governo está apressando a concessão de emissoras de rádio e tevê antes da promulgação da nova Constituição, que prevê a participação do Congresso Nacional no processo de concessões. Lembrado de que seus adversários políticos o acusam de ser o recordista na concessão de canais de rádio e tevê, Antonio Carlos Magalhães contestou: “Nem são meus adversários que dizem isto. Eu mesmo estou dizendo: é uma realidade. Estamos dando antes do dia 5 as concessões que já estão prontas, porque isto vai facilitar”166.

Após a série de polêmicas, no dia 2 de junho de 1988, sob protestos das galerias e dos deputados de esquerda, o plenário da Constituinte aprovou a permanência de José Sarney na presidência da República até 15 de março de 1990, com a realização de eleições presidenciais

165 Ibid. 166 GOMES, José Carlos Teixeira. Memórias das Trevas. São Paulo: Geração Editorial, 2001. p. 352 97

em 15 de novembro de 1989 e de um plebiscito, marcado para 1993, para decidir a forma e o sistema de governo no Brasil. Foram 328 votos favoráveis aos 5 anos de mandato, 222 contrários e 3 abstenções para a Emenda Iensen167. Diante de tais informações, analisaremos a seguir, detalhadamente, os trabalhos realizados pela Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, e de sua integrante, a Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, com foco na atuação evangélica em ambas. Destacamos que o desempenho de alguns parlamentares evangélicos, como Arolde de Oliveira, foi decisivo no processo de mudanças legais referentes às comunicações no Brasil, com destaque para a radiodifusão.

3.3 Os trabalhos da Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação

Instalada em 07 de abril de 1987, a Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, como visto anteriormente, era presidida por Arolde de Oliveira, tendo Onofre Corrêa e José Carlos Martinez como 1º e 2º vice-presidente, respectivamente, e Cristina Tavares como relatora. Eram 21 membros titulares e 20 suplentes, distribuídos por 6 partidos políticos (ver Tabela 10).

Tabela 10 – Membros titulares e suplentes da Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação por partido político

Partido Titulares Suplentes PMDB 11 11 PFL 5 4 PDS 2 2 PDT 1 1 PTB 1 1 PT 1 1 Total: 21 20

Durante os quase 2 meses de atividades, houve uma série de audiências públicas, quando foram ouvidos profissionais, acadêmicos e lideranças civis dos segmentos contemplados nas discussões da Subcomissão. Foram levantadas questões relativas, por

167 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 03 jun. 88. p. 3. 98

exemplo, à indústria farmacêutica, informática, telefonia, ao cinema, às empresas públicas como os Correios e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e entidades de fomento à pesquisa como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Dentre os ouvidos, estavam José Antônio do Nascimento Brito, do Jornal do Brasil e da Associação Nacional de Jornais; Armando Rollemberg, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ); Roberto Civita, do grupo Abril e presidente da Associação Nacional dos Editores de Revistas; Renato Archer, que ocupou os ministérios da Ciência e Tecnologia e da Previdência Social durante o governo Sarney; e Sérgio Arouca, médico sanitarista e um dos líderes do movimento que culminou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Destacamos a participação, no dia 30 de abril de 1987, dos pastores Guilhermino Cunha, falando em nome da Associação dos Comunicadores Cristãos do Brasil (ABCC), e Nilson do Amaral Fanini, pela Ordem dos Ministros Evangélicos do Brasil (OMEB), que, segundo ele, abrigava “13.700 pastores evangélicos no Brasil”168. Em sua intervenção, Cunha afirmou que “Deus quer o progresso científico dos povos”, embora tenha se posicionado contra o comércio de órgãos humanos, o aborto e defendido o planejamento familiar. Mais especificamente sobre a comunicação, afirmava que ela devia atender “à sua função social, à elevação do padrão ético-moral do nosso povo e, acima de tudo, ao respeito à verdade”, defendendo a liberdade de expressão, mas com a devida “coragem para impedir a veiculação daquilo que for atentatório à moral, à ética e aos costumes”169. Guilhermino Cunha falou, ainda, sobre o respeito à privacidade, argumentando que “nenhuma informação ou dado sobe o cidadão poderá ser armazenados por entidades governamentais ou particulares, sem o conhecimento e o direito de acesso a ela”. E foi ao abordar valores morais que ele encerrou seu primeiro pronunciamento na Subcomissão:

Vamos restaurar os valores da família e da moral nacional. Vamos redescobrir o sentido ético no uso dos meios de comunicação de massa. É hora de dizer basta. Bastar às canções que ensinam imoralidades, aos comerciais que anunciam e estimulam a contravenção, os vícios, o lenocínio e a pornografia. Dizer basta às programações que atentam contra os legítimos valores éticos e morais da família e do povo brasileiro. É tempo de reconstrução nacional. A Constituinte tem poderes

168 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 105. 169 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 101. 99

até mesmo para desconstituir, se tanto for necessário e que, para tanto, tenham coragem170.

Indagado pelo deputado Mendes Ribeiro (PMDB/RS) acerca do papel das rádios evangélicas, Cunha foi enfático ao defender a liberdade de expressão e criticar a falta de espaço nas emissoras comerciais à programação religiosa:

(...) Naturalmente, as rádios cristãs, católicas umas, espíritas outras, evangélicas outras, exercem a sua liberdade de comunicar ou de abrir espaço para que os comunicadores possam levar a sua mensagem. (...) Vejo as rádios ditas cristãs, católicas, espíritas e evangélicas, como a tentativa de criar um espaço, porque as emissoras comerciais não estão abrindo espaço. Então, vejo lugar para elas e creio que elas tenham um público alvo e tenham uma resposta de audiência e elas estão prestando um serviço171.

Ao ser questionado pelo parlamentar Olívio Dutra (PT/RS) a respeito da ausência de emissoras direcionadas às minorias e outros credos, “até mesmo as manifestações daqueles que não tem religião alguma”, Cunha respondeu que “todos nós temos direito de acesso e uso desses meios de comunicação, sem perguntar a cor da nossa pele, sem perguntar o credo da nossa fé”, com base no “direito de acesso a todos”, com o fim de “evitar o privilegiamento de determinados grupos religiosos”172. Após defender, em coro com o deputado Fausto Rocha, a existência de dispositivos de classificação etária, encarada por muitos como um tipo de censura, Cunha emitiu a seguinte opinião, em resposta ao deputado Artur da Távola (PMDB/RJ):

Sobre o critério de concessão, questão de estatização e privatização dos meios, o meu posicionamento é que deve ser concedido, primacialmente, à iniciativa privada. Eu creio que nós temos excesso de Estado em tudo neste país. Na verdade, será uma benção enorme se esta Assembleia Nacional Constituinte puder colocar, em todas as Subcomissões, um esforço imenso para diminuir o intervencionismo, a participação excessiva do Estado, e abrir espaço bem largo para a iniciativa privada. E por que não dizer: a tendência moderna é exatamente que os meios de comunicação de massa estejam nas mãos de particulares. Mas eu defendo ainda a continuidade, por algum tempo, de veículos do Estado. E ainda mais eu creio que se poderia consagrar uma reserva de espaço, para que o Estado pudesse dizer o que precisa dizer à sociedade. O Estado, aí, talvez, seja mais dizendo Governo. Eu sou favorável que a concessão seja a particulares e que a participação do Estado seja pequena173.

Em seguida à participação de Guilhermino Cunha, foi a vez de apresentar seus argumentos o pastor Nilson do Amaral Fanini, que em seu pronunciamento inicial, afirmou:

Nós, como religiosos, incentivamos que esta Constituição deve garantir a todos os religiosos, a todas as religiões, sem qualquer cor, seja ela católica, espírita,

170 Ibid. p. 101-102. 171 Ibid. p. 102. 172 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 102. 173 Ibid. p. 104. 100

evangélica ou outro credo, a liberdade e acesso aos meios de comunicação, porque o homem é um religioso (...) O nosso País, o Brasil, o brasileiro é religioso e tem dentro de si a religiosidade. Somos frontalmente opostos, diametralmente contrários ao mercantilismo religioso. Portanto, queremos apenas deixar esta última palavra. Primeiro, liberdade com responsabilidade; segundo, o acesso a todos para participarem do vídeo e do microfone, e, terceiro, que Deus possa abençoar esta Comissão e daqui saírem novos rumos para o progresso desta Pátria comum174.

Em seguida, a relatora da Subcomissão, Cristina Tavares, questionou Fanini sobre a possibilidade de existência de conselhos ou outros organismos que pudessem exercer controle social sobre os meios de comunicação, a exemplo dos Estados Unidos, como forma de fazer frente aos monopólios e democratizar o acesso ao rádio e à televisão. Fanini falou sobre a força das grandes redes de televisão, que criam tendências, ressaltando o “sotaque carioca” e outros modismos no Amazonas, criticando as concessões que transformam emissoras com potencial local em meras repetidoras das grandes redes. A respeito do controle social sobre os meios de comunicação, Fanini respondeu:

Bem, se fosse de fato, então, para cada cidade, eu seria a favor de um conselho, conselho quase que municipal onde, como V. Exª. mesma já colocou, seria então formado de todos, de minorias, de maiorias, todos juntos, para tomar as decisões. Não seria uma censura, mas uma participação coletiva do que estava sendo levado. O que determina, hoje, muitas vezes, do ponto de vista do empresário, é o IBOPE que faz as publicitárias darem mais ou menos verba. Esta é a realidade. (...) A programação deveria começar a ser feita do outro lado, do povão, com o povo, com a sociedade, com todos os segmentos para fazer a programação175.

Por fim, Fanini apontou o momento pelo qual passava o meio evangélico brasileiro, criticando, de forma indireta, grupos pentecostais e neopentecostais, dando ênfase à organização das igrejas tradicionais e à formação de seus religiosos:

Há essa proliferação, a que se referiu o Constituinte Artur da Távola, de milagreiros e outros movimentos, que vão, fazem um estatuto, registram e começam – dizem eles – a fazer milagres. Mas é o que eu disse: nós somos frontalmente contrários ao mercantilismo religioso, explorar a fé, ainda mais o brasileiro que é tão crédulo. Não sabemos onde vamos parar. Vendas de tantas coisas, explorando a fé e a boa vontade. (...) Vou apenas dizer a V. Exª. como se procede na Igreja Batista e creio que a mesma coisa na Igreja Presbiteriana, do representante Reverendo Guilhermino, para ser um pastor precisa ter o primeiro grau, o segundo grau, fazer bacharel em Teologia, que são 4 anos, fazer também o mestrado em Teologia e doutorado em Teologia, que pode ser no País ou no exterior, como fiz minha pós-graduação, na Alemanha, na Suíça, na Inglaterra ou nos Estados Unidos, mas a verdade é que a três por dois consagra-se uma pessoa, dizem que ele é pastor, missionário, e vivemos essa proliferação que estamos vendo por aí. Esse é o problema dos nossos dias176.

174 Ibid. p. 105-106. 175 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 106. 176 Ibid. p. 108. 101

Guilhermino Cunha e Nilson Fanini foram os únicos religiosos evangélicos ouvidos pela Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação. Destacamos o fato de ambos pertencerem à tendência evangélica tradicional, sendo reconhecidos como lideranças a nível nacional, inclusive entre os pentecostais. Além deles, a única organização religiosa convocada foi a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que não enviou representante177. Especificamente sobre radiodifusão, foram ouvidos Antônio Martins, presidente da Radiobrás, e Lourenço Chehab, secretário de Radiodifusão do Ministério das Comunicações, no dia 28 de maio de 1987; e Antônio Taumaturgo, presidente da Federação Nacional dos Radialistas, no dia seguinte. Martins abordou aspectos técnicos e legais do funcionamento da Radiobrás, relatando o funcionamento das 33 emissoras de rádio, 5 emissoras e 2 repetidoras de televisão do sistema. O presidente da Radiobrás falou ainda do alcance nacional do sistema, abrangendo todo o território nacional em diversas frequências e potências, incluindo a Amazônia e a ilha de Fernando de Noronha, além das emissões em “inglês, francês, espanhol, alemão e português, atingindo todos os continentes” da Rádio Nacional, mostrando “ao resto do mundo um país moderno, desenvolvido, contraditório, rico, pobre, exuberante em todas as suas belezas naturais, mas com problemas peculiares, como qualquer outro país do mundo”178. Após o curto depoimento de Martins, foi a vez de Lourenço Chehab que, em poucas palavras, resumiu o funcionamento da política brasileira de radiodifusão:

Existem basicamente dois grandes modelos diferenciando-se muito pouco entre si nas diversas nações. Numa delas prevalece o chamado modelo político, que nitidamente repousa sobre um conceito que é chamado de intuito personae nas concessões, onde a escolha dos vencedores se faz através de um concurso público de alguma forma estabelecido e um procedimento prévio administrativo de qualquer natureza; finalmente, pessoa ou pessoas deliberam sobre qual ou quais devem ser aqueles que exercerão a atividade. Essa é a opção do modelo brasileiro, tendo começado no Brasil em 1946, com a Constituição de 46. Já havia qualquer coisa no mesmo sentido em 1935. Como não era muito nítida a diferenciação, uma grande miscigenação desse conceito com o outro, que direi em seguida, fazia crer que não tínhamos uma política muito bem clara na área das comunicações sociais. Esse segundo modelo é o chamado econômico, onde prevalece o poder econômico. É onde evidentemente, a escolha não se faz mais por um concurso, mas sim através de uma concorrência propriamente dita, onde cada interessado diz o quanto tem, o quanto pode, o quanto quer, e oferece aquilo que deve prestar em seus serviços. Falamos dos países que oferecem, em concessão, a oportunidade de tantos quantos queiram em sua comunidade fazer radiodifusão. Na opção chamada econômica, o

177 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 155. 178 Ibid. p. 71. 102

poder econômico exerce uma influência muito grande, e sabemos como ela pode ser exercida179.

Chehab completou informando que a Radiobrás funcionava como empresa suplementar no sistema de radiodifusão, “divulgando em todos os lugares onde não há possibilidade de a iniciativa privada exercer e onde há interesse do Estado em que ali esteja o Governo do Brasil atuante para educar, entreter e, eventualmente, servir à comunidade; e em todos os lugares em que a Nação brasileira julgar que essa oportunidade exista”. Por fim, fez a seguinte afirmação:

Os países democratizados admitem todo um pluralismo de operação na área do rádio, da televisão e da própria atividade jornalística, porque aí está a estratificação da vontade da sociedade, em que todas opiniões, religiões e credos estão representados. Como as concessões têm duração grande, porque estão sujeitas à renovação, ao final de um longo período de História, todas as correntes sociais acabam representadas, pela alternância dos poderes e das pessoas. Ao final de muito tempo, pelo livre discernimento de todos e pela livre opção ao exercício político, acabamos tendo, nesses lugares, o livre exercício da atividade profissional e, portanto, o livre praticar das idéias. Esse, acredito, é o modelo que universalmente tem sido desenhado, principalmente no mundo ocidental180.

Imediatamente, o deputado Olívio Dutra (PT/RS) afirmou que, em seus 45 anos de vida, em sua região, “os proprietários de rádio são sempre os mesmos, as mesmas famílias”. Chehab retrucou afirmando que o mecanismo não estava sendo “bem exercido”. Dutra continuou: “nunca vi um grupo de negros com um canal de rádio”, e Chehab respondeu que “deveriam ter, todos sabemos disso”181. Antônio Taumaturgo, representando a Federação Nacional dos Radialistas, fez duras críticas ao modelo brasileiro de radiodifusão:

(...) a concessão de canais de rádio e televisão é feita através de critérios legais falhos, que permitem a arbitrariedade do poder concedente e a utilização dessa prerrogativa para favorecer interesses pessoais e de grupos. Continuam em vigor os instrumentos que impedem a liberdade de informação e a livre criação cultural, como a Lei de Imprensa, a Lei de Segurança Nacional e a Legislação de Censura a espetáculos e diversões públicas. O modelo de rádio e televisão é concentrador e assume o controle da estrutura de produção e de transmissão, por poucos grupos econômicos, localizados principalmente no eixo Rio-São Paulo182.

Taumaturgo criticou a programação de TV privada, orientada “por critérios prioritariamente comerciais, incompatíveis com o seu caráter de serviço público e suas finalidades educativas e culturais estabelecidas por lei”. Segundo ele, “a política de

179 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 73. 180 Ibid. p. 73. 181 Ibid. p. 73. 182 Ibid. p. 74. 103

comunicação social, particularmente para o rádio e a televisão, impede que a eles tenham acesso os diversos setores da sociedade”, possuindo “forte dependência externa”, demonstrada nas “importações de mensagens informativas e culturais, de padrões internacionais e propagandas, além de equipamentos tecnológicos”183. Diante do quadro, a proposta apresentada foi a seguinte:

A Federação Nacional dos Radialistas, nesse grupo de trabalho, propôs e teve a sua aprovação, como sugestão, para a criação de um Conselho Nacional de Comunicação, subordinado à Presidência da República, com maioria de membros indicados pela sociedade civil e pelos partidos políticos, para: deliberar sobre planos e políticas de comunicação social e de telecomunicações; conceder e fiscalizar os serviços de radiodifusão; manter, na nova legislação, as finalidades educativas e culturais do rádio e da televisão; estabelecer que, sendo o rádio e a televisão um serviço público, ao privilégio da sua exploração corresponde uma contrapartida de responsabilidade social; adotar medidas para obrigar o cumprimento da lei; formular um novo código brasileiro de telecomunicações, que regule os diversos aspectos da comunicação pelo rádio, televisão e outros meios proporcionados pelas novas tecnologias, com particular atenção para os seguintes aspectos; concessão de canais que deve ser objeto de aprovação prévia, pelo novo Conselho Nacional de Comunicação; deve ser reduzida a duração da licença para a exploração, atualmente de 10 anos, para o rádio, e 15 para televisão, para não caracterizar uma situação de propriedade privada do canal184.

O documento contemplava também normas de programação:

(...) estabelecer programação que garanta a pluralidade de fontes e o acesso de todos os setores da sociedade às estruturas de produção e transmissão; finalmente, impedir toda forma de controle da comunicação por mecanismos econômicos ou políticos. Nesse sentido, é mister alterar a Lei de Segurança Nacional, reformular a Lei de Imprensa, restringir a censura a espetáculo e diversões, substituindo-a por um sistema de classificação de espetáculos185.

Em seguida, o deputado Joaci Góes (PMDB/BA) criticou o modelo brasileiro de concessões e falou acerca das 43 rádios piratas existentes na Grande São Paulo, sendo respondido por Taumaturgo: ao mesmo tempo em que a Federação Nacional dos Radialistas condenava o funcionamento de rádios piratas, ela apontava como culpado o modelo brasileiro, pois, caso houvesse “a definição de critérios, uma definição democrática, não haveria necessidade de existir rádio pirata. A rádio pirata é a consequência exatamente do modelo atual de concessões”186. Ao ser questionado pelo deputado Carlos Alberto de Oliveira Caó (PDT/RJ), Taumaturgo defendeu a permanência da iniciativa privada, não sendo a proposta da Federação

183 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 74. 184 Ibid. p. 75. 185 Ibid. p. 75. 186 Ibid. p. 76. 104

de estatização dos meios de comunicação. Sobre a participação de empregados do setor de comunicação em conselhos editoriais, Taumaturgo foi enfático:

Por que não iniciarmos neste País, a co-gestão, através da radiodifusão, colocando empregado eleito também na direção da empresa? A partir do momento em que a radiodifusão é uma concessão, então, pode ser negociada esta concessão. Será dada esta concessão, em ambos critérios, a partir do momento em que os empregados também tenham a sua participação na gestão da empresa, para que não ocorram neste País também casos idênticos como o do grande império, que já teve, aqui na radiodifusão e televisão, que eram os "Diários Associados". Talvez, se tivéssemos participação na gestão dos negócios, não chegássemos ao ponto de fecharmos a maior rede deste País, desempregando tanta gente, porque até hoje, estão companheiros nossos brigando na justiça, em São Paulo e Rio de Janeiro, principalmente, para receber o que lhe era direito, porque os sucessores se negam a reconhecer esse direito e os "Diários Associados" foram extintos e seus bens estavam penhorados pelos órgãos públicos, como IAPAS e outros tantos, e V. Exª sabe disso, da luta nossa; talvez, se tivéssemos a participação na gestão dos negócio da empresa, não chegássemos a este ponto187.

Em seguida, representando os veículos de comunicação, falou Fernando Ernesto Corrêa, vice-presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), reunindo “em todo o território nacional, 143 emissoras de televisão e 2.057 estações de rádio, das quais, 1.250 em onda média”. Em seu depoimento, Corrêa discorreu sobre a importância da iniciativa privada no setor e defendeu a liberdade de expressão como direito constitucional:

O tema da radiodifusão, pois, vinculado à liberdade de expressão e informação, tem tudo a ver com as preocupações de uma Assembléia Nacional Constituinte, da qual resultará uma Constituição que deve ser um estatuto a serviço da liberdade, visto que se destina a limitar o poder, limitar o poder político e o poder econômico, com a finalidade de assegurar aos seres humanos a realização de dois de seus maiores ideais: a liberdade e a igualdade. Assim, o direito à comunicação, à expressão e à informação, cuja manutenção e ampliação constituem escopo fundamental de qualquer texto constitucional moderno, estão dramaticamente vinculados, no mundo de hoje, a maneira pela qual se exercita ou não a comunicação de massa188.

Corrêa fez extenso relatório sobre a privatização de veículos de comunicação estatais, indicando França e Argentina como exemplos. Manifestou-se também a respeito das grandes redes de televisão no Brasil, negando haver monopólio no setor, e exaltou a qualidade da produção televisiva brasileira, que deixou de lado os “enlatados”. A respeito da política de radiodifusão, o representante da ABERT a criticou, mas foi evasivo na solução:

Só para concluir, Sr. Presidente, vou ficar devendo aqui as vantagens, vou falar sobre alguns defeitos, porque senão vão pensar que nós somos os maiores do Mundo. Temos problemas, processo de concessão, renovação e cassação, temos

187 Ibid. 188 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 78. 105

problemas aí. A ABERT não tem uma posição firmada, ainda, o modelo atual não é bom, é imperfeito, há uma certa manipulação do poder que concede, que fiscaliza e que cassa. É um problema que tem que ser bem discutido a nível de Constituinte. Tem que ser aprimorado não é perfeito. Temos consciência de que alguns programas gerados na televisão ainda têm uma qualidade baixa. Essa é das grandes preocupações da ABERT. A ABERT está atenta a esse problema, ela editou em 1980 um Código de Ética da Radiodifusão brasileira, que também pedimos que fosse entregue aos Srs. Constituintes, estamos tentando fazer com que esse Código de Ética crie força viva. E, neste momento muito importante falar nele aqui, neste grupo. Espero que esse Código realmente estabeleça um inter-relacionamento entre as emissoras de rádio e televisão, suas relações com o Poder Público, suas relações com o consumidor, com o ouvinte, com o telespectador, estabelecendo conceitos de ordem ética, padrões de ordem moral, padrões de programação. Esse Código de Ética pode ser utilizado pelos Srs. Constituintes, por qualquer cidadão, desde que se socorra, procurando a ABERT para, através do seu Código Superior de Ética, examinar as questões que forem levantadas189.

No prosseguimento, Corrêa falou ainda sobre o crescimento da TV a cabo e outras tecnologias, como a transmissão via satélite. Indagado por Olívio Dutra acerca do Conselho Nacional de Comunicação, o representante da ABERT novamente criticou o modelo brasileiro de concessões de radiodifusão. Entretanto, a ideia do Conselho não foi bem recebida, e Corrêa deixou para o Congresso a solução do problema:

(...) O Conselho Nacional de Comunicação, ao que tenho ouvido e lido a respeito do assunto, inclusive já me chegaram algumas propostas de alguns Constituintes, nesse sentido, ele se constituiria, eventualmente, em um órgão que teria dois objetivos fundamentais. Primeiro, seria o de outorgar as concessões, fiscalizálas e eventualmente, cassá-las, e o outro objetivo seria o de estabelecer políticos de radiodifusão, ou seja, aquelas políticas que estão relacionadas com o conteúdo do nosso serviço. A ABERT tem estudado bastante esse problema, porque não achamos que o modelo atual de concessão seja perfeito, achamos que é imperfeito. Realmente, o concessionário fica à mêrce da autoridade administrativa que concede, que fiscaliza, que renova e que cassa. (...) Mas nós entendemos que nada melhor que os Constituintes, que estão com esse problema à flor da pele e discutindo, para se encontrar um caminho. Não tenho fórmula. A ABERT não tem fórmula. Mas me parece, como pessoa física, Fernando Ernesto Corrêa, radiodifusor há 32 anos, que a concessão ad referendum do Congresso é um caminho, porque ninguém representa melhor a sociedade do que o Congresso. Uma das atribuições básicas do Congresso é a representação da sociedade. Portanto, um conselho com 9, 12, 20, 45, 114 membros, nunca é representativo da sociedade na sua integridade. E o setor da radiodifusão é abrangente. Participarão do Conselho aqueles representantes que estejam em entidades que, naquele momento, são mais importantes. Não vejo uma democratização da representação através de um conselho, mas acho que se poderia, por exemplo, deixar como idéia – eu não vou fazer a Constituinte, não tenho competência para isso – de que a concessão seja feita ad referendum do Congresso Nacional e que a cassação seja ato do Poder Judiciário, fazendo com que se desvincule um pouco aquele processo que está na mão de uma só autoridade administrativa190.

189 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 79-80. 190 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 82. 106

Ao ser questionado por Antônio Brito (PMDB/RS) a respeito do Conselho de Comunicação, desta vez Corrêa foi enfático:

Quanto ao Conselho, tenho muito medo deste Conselho, porque ele vai ser apenas uma ampliação de instrumentos de pressão, ele não vai ser representativo da sociedade. Não pode ser, porque radiodifusão é um bem universal que atinge toda a população, todo o Brasil, toda a população brasileira. Por que é que vamos eleger 4, 5 ou 6 entidades para fazer parte de um Conselho? Não vejo representatividade no Conselho. É mais democrático, porque sai de uma só pessoa para várias pessoas. Tudo que sai de um para vários é mais democrático, é menos autoritário. Evidente que é. Ele não seria tão representativo quanto se pretende. Teoricamente, as pessoas que defendem o Conselho acham que ele poderia ser. Para a ABERT isso aí não é uma questão relevante. Não é uma questão em que a ABERT firme uma posição: "não é porque nós queremos que continue com o Executivo; não, é por que tem que ser pelo Congresso Nacional". O que os Srs e as Sras decidirem em relação à concessão, porque o sistema atual não é perfeito, será acatado por nós. Nós somos a Associação Brasileira de Emissores de Rádio e Televisão. Nós não somos a associação brasileira de futuras emissoras de rádio e televisão. Estamos muito mais preocupados com a execução do serviço, com o conteúdo da programação, com a melhoria da qualidade dos nossos serviços, do que com o aumento de mais uma ou duas concessões. É um problema, mas não um problema fundamental para a ABERT. Para surpresa de muitos, não é fundamental para a ABERT. Procuraremos contribuir, na medida do possível, mas, o que o Congresso decidir, como tudo aliás, será inteiramente acatado pela ABERT191.

Outra importante organização da sociedade civil convocada para audiências na subcomissão era a Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação, que congregou inúmeras entidades representativas de profissionais da comunicação. A Frente recolheu assinaturas de 111.192 eleitores em apoio à Emenda Popular 91 que, além da manutenção do monopólio estatal sobre as telecomunicações, contemplava também a criação do Conselho de Comunicação Social, proposta acolhida pela relatora da subcomissão192. Uma das motivações para o controle da sociedade em relação aos meios de comunicação estava na censura promovida pelo regime militar, o que possibilitou a organização de monopólios entre os grupos apoiadores do governo, promovendo, por outro lado, a extinção de veículos de comunicação menores ou de oposição à ditadura:

Politicamente, o Brasil pós-ditadura militar, queria selar em sua Constituição artigos que garantissem a liberdade de imprensa e de expressão e afastasse a censura. Nas reuniões da Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação o “controle social e democrático dos meios de comunicação” era o centro dos debates. Havia a clareza que no texto constitucional não seria possível detalhar tudo o que gostariam, [e que] seria, portanto, o momento de se estabelecer marcos193.

191 Ibid. p. 83. 192 RODRIGUES, Theófilo Codeço Machado. A Constituição de 1988 e a comunicação: a história de um processo inacabado de regulamentação. Revista Mosaico, Rio de Janeiro: PPHPBC/FGV, nº 7, vol. 4, p. 107, 2013. 193 GERALDES, Elen Cristina et al. O Direito Humano à Comunicação e à Informação: em busca do tempo perdido. p. 22-23. 107

A leitura do relatório de Cristina Tavares na Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação ocorreu no dia 13 de maio de 1987, onde a parlamentar defendeu a criação de um Conselho Nacional de Comunicação, “com a atribuição de estabelecer, supervisionar e fiscalizar políticas nacionais de comunicação nas áreas de rádio e televisão”, com o objetivo de promover a “cultura nacional em suas distintas manifestações”, garantir a “pluralidade e descentralização, vedada a concentração da propriedade dos meios de comunicação”, além de priorizar “entidades educativas, comunitárias, sindicais, culturais e outras sem fins lucrativos” no processo de concessões e exploração de serviços194. Caberia a este Conselho, por exemplo, “outorgar e renovar, ad referendum do Congresso Nacional, autorizações e concessões para exploração de serviços de radiodifusão e transmissão de voz, imagem e dados”, “promover licitações públicas para concessão de frequências de canais”, “decidir e fixar as tarifas cobradas aos concessionários de serviços de radiodifusão e transmissões de dados, sons e imagem”, além de “dispor sobre a organização e transparência das empresas concessionárias de radiodifusão” e “autorizar a implantação e operação de redes privadas de telecomunicação”195. Além disso, o relatório de Cristina Tavares assegurava

liberdade de manifestação do pensamento, vedando a instituição de qualquer tipo de restrição por parte do Estado e prevendo que a suspensão ou a cassação de concessões de radiodifusão somente poderiam ser determinadas por “sentença fundada em infração definida em lei”. Na mesma linha, em relação às diversões e aos espetáculos públicos, a atuação estatal deveria se limitar a informar o público sobre conteúdos, faixas etárias e horários adequados de exibição. De outro lado, a proposta vedava a concentração da propriedade dos meios de co- municação e, embora permitisse a exploração do serviço pela iniciativa privada, assegurava que as concessões de rádio e TV deveriam ser, prioritariamente, destinadas a entidades sem fins lucrativos. Por fim, instituía o chamado “direito de antena”, ao garantir a partidos políticos, bem como a organizações sindicais, profissionais e populares, “a utilização gratuita da imprensa, do rádio e da televisão, segundo critérios a serem definidos por lei”196.

A proposta de criação do Conselho, a mais polêmica apresentada na subcomissão, foi recebida com forte oposição por parte dos deputados conservadores, principalmente os ligados ao setor das comunicações. O grupo conservador baseava-se até mesmo em pressupostos liberais, “recusando qualquer forma de censura” e, por isso, opondo-se à proposta do Conselho Nacional de Comunicação. No dia 21 de maio, Cristina Tavares apresentou uma versão mais light de seu relatório: “de modo geral, o substitutivo mantinha o

194 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 154. 195 Ibid. p. 154. 196 CARVALHO, Lucas Borges de. Censura e liberdade de expressão na Assembleia Constituinte (1987-1988). Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, nº 209, p. 94. 108

núcleo da proposta original”, e algumas das atribuições do Conselho Nacional de Comunicação foram alteradas:

Tanto os Conselhos Editoriais quanto o Conselho Nacional de Comunicação foram preservados. O segundo, porém, passou a contar com competências mais restritas, quando comparadas com a primeira versão. Assim, por exemplo, se, na primeira versão, o Conselho detinha competência para “promover licitações públicas para concessão de frequência de canais” e “decidir e fixar as tarifas cobradas aos concessionários”, no substitutivo, a competência passou a ser, respectivamente, de “supervisionar as licitações públicas” e de “estabelecer critérios para a fixação de tarifas”. Ademais, em ambos os casos, as decisões do Conselho ficariam condicionadas a referendo do Congresso Nacional. Da mesma forma, a competência original do Conselho de “estabelecer políticas nacionais de comunicação” foi mitigada para “propor ao Congresso Nacional políticas nacionais de comunicação”197.

Em seguida, a discussão ocorreu sobre o processo de votação. Ficou decidido que “seria votada, em bloco, a versão original do relatório” e, em seguida, “seriam votadas as emendas consolidadas pela relatora e os destaques porventura apresentados pelos parlamentares”198. Mas os momentos mais tensos dos trabalhos da subcomissão estavam reservados para a votação do relatório final:

(...) Na votação do Relatório da Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, o Presidente, Arolde de Oliveira (PFL – RJ), protelou ao máximo a votação do relatório, que havia começado com a presença do primeiro suplente, Deputado Antônio Brito (PMDB – RS), que estava votando a favor do relatório, cuja relatora, Deputada Cristina Tavares (PMDB – PE), era de esquerda. A votação, até o momento da chegada do titular vinha sendo 11 a 10 a favor do relatório. Com a chegada do titular, Deputado Onofre Corrêa (PMDB – MA), estabeleceu-se um debate se o titular, chegando com o processo de votação iniciado poderia assumir o cargo de titular e votar o restante da matéria. Depois de ouvir as posições a favor e contrária, o Presidente decidiu que o titular tinha o direito de assumir e votar o restante do relatório. Alguns recorreram da decisão ao Plenário da Subcomissão que confirmou a posição do Presidente. Por 11 a 10. A partir desse momento, as emendas defendidas pelas posições à direita passaram a ser aprovadas, sendo o relatório praticamente rejeitado no que concerne à tecnologia e à comunicação, o que levou a relatora e alguns deputados a se retirarem da sessão de votação, denunciando, que o Deputado Onofre Corrêa havia negociado seu voto com o Ministro das Telecomunicações, Sr. Antônio Carlos Magalhães, em troca de uma emissora de televisão na cidade de Imperatriz – MA199.

Onofre Corrêa possuía a fama de “gazeteiro”, sendo necessária a intervenção do ministro Antonio Carlos Magalhães para localizá-lo e fazê-lo votar contra a proposta do Conselho Nacional de Comunicação200. Instaurado o impasse, oito membros da subcomissão, dentre eles a relatora, deixaram seus trabalhos. Na mesma sessão, foi apresentada emenda do

197 Ibid. p. 94. 198 CARVALHO, Lucas Borges de. Censura e liberdade de expressão na Assembleia Constituinte (1987-1988). Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, nº 209, p. 95. 199 LIMA, Luziano Pereira Mendes de. A luta política no processo constituinte brasileiro (1986-1988). p. 13-14. 200 GERALDES, Elen Cristina et al. O Direito Humano à Comunicação e à Informação: em busca do tempo perdido. p. 22. 109

deputado José Carlos Martinez, na qual a proposta de criação do Conselho Nacional de Comunicação era retirada. No que diz respeito às concessões de radiodifusão, seria criado um sistema no qual os Três Poderes da República dialogariam a esse respeito201.

Figura 16 – O presidente Arolde de Oliveira, o líder do PMDB Mário Covas e a relatora Cristina Tavares, durante a discussão na votação do relatório. Foto: Luiz Antonio Ribeiro.

Fonte: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 mai. 1987. p. 5.

O gesto de Cristina Tavares foi encarado por Arolde de Oliveira como “abandono” do cargo de relatora, pois ela havia deixado a subcomissão durante o processo de votação. A destituição ganhou repercussão nos meios de comunicação, conforme verificamos na seguinte matéria de 27 de maio de 1987 do jornal O Estado de S. Paulo, que possui como título “Mais um problema para Ulysses resolver”:

O presidente da Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação, deputado Arolde de Oliveira, do PFL do Rio de Janeiro, enviou telegrama, domingo à noite, ao líder Mário Covas, comunicando que destituiu do cargo a relatora, deputada Cristina Tavares, substituindo-a pelo deputado José Carlos Martinez, também do PMDB. Assim, a deputada ficaria afastada também da Comissão de Sistematização, fato que foi levantado e debatido ontem no plenário da Constituinte. A versão foi relatada pela própria deputada, invocando testemunho do deputado peemedebista Antonio Gaspar. Conforme a parlamentar, o presidente Arolde de Oliveira prometeu destituí-la da função de relatora na primeira reunião da subcomissão202.

No entanto, segundo o líder do PMDB, deputado Mario Covas, a decisão de Oliveira desrespeitava o regimento interno da Assembleia Nacional Constituinte:

O líder Mário Covas entregou, segunda-feira, o telegrama ao presidente da Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, explicando não ser possível destituir a

201 RODRIGUES, Theófilo Codeço Machado. A Constituição de 1988 e a comunicação: a história de um processo inacabado de regulamentação. Revista Mosaico, Rio de Janeiro: PPHPBC/FGV, nº 7, vol. 4, p. 107, 2013. 202 O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 mai. 1987. p. 5. 110

deputada Cristina Tavares, que, além de ter assinado o seu relatório, havia recorrido ao presidente da Comissão Temática, deputado Arthur da Távola, contra o encaminhamento da votação pelo deputado Arolde de Oliveira. Mário Covas explicou, ainda, que os trabalhos da subcomissão já haviam sido encerrados. Lembrou, além disso, que cabe ao líder do partido indicar o relator, e não ao presidente da comissão. E faz a seguinte advertência: “Se relator pode ser substituído, presidente também pode”. Os presidentes das subcomissões pertencem ao PFL. (...) Segundo o líder do PFL, José Lourenço, e o presidente da subcomissão, Arolde de Oliveira, Cristina Tavares teria sido afastada por haver abandonado os trabalhos daquele órgão; e ainda: com base no regimento interno da Câmara, a ser utilizado subsidiariamente em caso de omissão do regimento da Constituinte, pode haver mudança de relator se o parecer deste não for adotado pela comissão. O líder Mário Covas, no entanto, com fundamento no parágrafo 4º do artigo 17 da Constituinte, sustentou que Cristina Tavares não só assinou seu relatório, como recorreu à Comissão Temática, à qual pertence a Subcomissão de Ciência e Tecnologia e de Comunicação contra procedimentos do seu presidente203.

Para Arolde de Oliveira, porém, a motivação para a destituição da relatora era diversa da interpretação da própria deputada:

O pivô do incidente, deputado Arolde de Oliveira, justificou-se ao afirmar que optou pela substituição da relatora por esta haver abandonado o plenário onde se processavam os debates, e que a decisão foi tomada com dois terços dos integrantes da subcomissão presentes. Já Cristina Tavares atribuiu toda a manobra ao ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, com a participação direta da constituinte Rita Furtado, do PFL, cujo marido é secretário-geral daquele ministério204.

Cristina Tavares denunciou, no plenário da Constituinte, a manobra de Arolde de Oliveira, em pronunciamento que tumultuou a sessão em andamento:

– Tô surpresa de saber que a relatora, que seria eu, teria sido substituída por um outro relator do PMDB, que é o deputado José Carlos Martinez, dono de televisão, ex-partidário de Maluf, do Paraná, por indicação do presidente, também outro dono de televisão. Então acho que essas coisas estão muito complicadas, é preciso a gente esclarecer bem, e que a população saiba que a Assembleia Constituinte está sendo tomada de assalto pelas forças mais ilegítimas da nação, pelas forças que foram derrotadas nas urnas e agora querem ganhar na intimidação205.

Em sequência, as denúncias feitas pela relatora foram prontamente rebatidas por Oliveira:

– O que ela tem dito aí são coisas das mais absurdas, mas cada um dá o que tem. Eu sei que vou passar tranquilamente por esse tipo de crítica, porque as críticas dela, evidentemente, são infundadas, não me atingem. Fez inclusive um recurso à mesa da Comissão Temática dizendo que o presidente tinha decidido autoritariamente, ou coisa parecida, por votação de uma emenda de um constituinte. Na realidade, não foi o presidente, foi o plenário. Então é um recurso preliminarmente desqualificado206.

203 O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 mai. 1987. p. 5. 204 Ibid. 205 DIÁRIO da Constituinte. Programa 68. Brasília: Assembleia Nacional Constituinte, 1987. 206 DIÁRIO da Constituinte. Programa 68. Brasília: Assembleia Nacional Constituinte, 1987. 111

Apesar da manobra de Arolde de Oliveira, a mesa diretora da Constituinte não acatou sua decisão:

A deputada Cristina Tavares (PMDB-PE) permanece como relatora da Subcomissão de Ciência, Tecnologia e das Comunicações, com participação assegurada na Sistematizaçao. A decisão de mantê-la no cargo foi do 1º vice-presidente da Constituinte, senador Mauro Benevides (PMDB-CE), que rejeitou a manobra do presidente da subcomissão, deputado Arolde de Oliveira (PFL-RJ), no sentido de destituir Cristina para substituí-la por José Carlos Martinez (PMDB-PR). – Foi o meu primeiro ato como presidente da Constituinte. Cristina Tavares está no lugar certo – disse, entusiasmado, Mauro Benevides, no fim da tarde. Ele ocupou ontem pela primeira vez a Presidência da Constituinte, enquanto o deputado Ulysses Guimarães respondia pela Presidência da República, pois Sarney estava em Montevidéu. – Os métodos da Máfia dão certo na Baixada Fluminense, não numa Constituinte – afirmou Cristina Tavares, elogiando o “raciocínio lógico” de Benevides. Ao rejeitar o pedido de Arolde de Oliveira, o senador alegou inconsistência de argumentos207.

A atitude de Benevides e a consequente vitória de Cristina Tavares foram seguidas de conformação por parte de Oliveira:

– A decisão foi tomada, e Cristina Tavares irá para a Sistematização. Foi uma decisão interna do PMDB, que preferiu a relatora ao deputado Martinez. Não adianta recorrer, pois que recurso eu poderia apresentar com chances de vencer? – comentou o deputado, aludindo à maioria do PMDB na Mesa da Constituinte208.

Finalizada no dia 22 de maio, a Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação aprovou um relatório de

concepção ultraliberal, de acordo com a qual nenhuma forma de restrição ou controle poderia ser imposta sobre a liberdade de expressão. Dessa maneira, acolhendo-se os argumentos das entidades empresariais, eram reforçados os vínculos dessa liberdade com o princípio da livre iniciativa, na medida em que se ampliavam, exponencialmente, as garantias dos concessionários privados – com a participação do Legislativo nos procedimentos de concessão, a definição constitucional do prazo de quinze anos para as outorgas e a necessidade de sentença judicial para determinar a sua não renovação ou cassação –, em detrimento da instituição de controles democráticos, praticamente inexistentes na proposta, exceção feita à norma do art. 14, que impedia a concentração de mercado no setor209.

207 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 mai. 1987. p. 3. 208 Ibid. 209 CARVALHO, Lucas Borges de. Censura e liberdade de expressão na Assembleia Constituinte (1987-1988). Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, nº 209, p. 95. 112

3.4 Os trabalhos da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação

Com o fim dos trabalhos da Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação, a nova etapa das discussões seria, a partir de 09 de junho de 1987, na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, instalada em 01 de abril. Conforme visto anteriormente, eram 14 evangélicos membros da Comissão, sendo 12 deles titulares e 2 suplentes, de um total de 65 titulares e 64 suplentes.

Tabela 11 – Membros titulares e suplentes da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação por partido político210

Partido Titulares Suplentes PMDB 34 34 PFL 16 15 PDS 4 4 PDT 3 3 PTB 3 3 PT 2 2 PL 1 1 PDC 1 1 PC do B 1 1 Total: 65 64

Na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, os temas ligados à saúde e educação pública, previdência social e as telecomunicações – esta abarcando as concessões de rádio e televisão –, dominavam as discussões parlamentares. Para tanto, foram convocados para audiências os ministros Raphael de Almeida Magalhães, da Previdência e Assistência Social, e Antônio Carlos Magalhães (ACM), das Comunicações. Das discussões, a mais polêmica foi a da qual participou o ministro Antônio Carlos Magalhães, no dia 4 de junho de 1987. ACM fez extenso relatório sobre as atividades do

210 Apesar do direito às cadeiras, o PC do B mantinha um cargo de titular vago, e PFL, PDT e PDC um cargo de suplente cada. Fonte: CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Disponível em . Acesso em: 25 mai. 2017. 113

ministério que comandava: 400 mil novos telefones instalados; crescimento de 92,4 mil para 149 mil telefones públicos instalados; 1.933 localidades com serviço telefônico; implantação de DDD e DDI em 400 cidades; 13.600 terminais de Telex instalados; e a implantação de tarifas reduzidas na telefonia, de acordo com a faixa horária, sendo todos os dados referentes à sua gestão no ministério das Comunicações. Além disso, ACM exaltou a função social do trabalho realizado pelos Correios, atingindo regiões de difícil acesso pelo país, através de serviços como a Rede Postal Noturna; expôs os avanços obtidos pelo sistema Telebrás no campo da telefonia; discorreu sobre o papel da Radiobrás no ramo da radiodifusão, inclusive divulgando a imagem do Brasil no exterior; além de contemplar em sua fala o investimento do Governo Federal no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Telebrás (CPqD) e a política de uso de tecnologia brasileira no ramo das telecomunicações211.

Figura 17 – Audiência pública da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação: da direita para a esquerda, o ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães, o presidente Marcondes Gadelha e o relator Artur da Távola. Foto: O Globo.

Fonte: http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=198019870605

Apesar do amplo relato técnico do ministro, as interpelações dos membros da Comissão levaram em conta os aspectos políticos da atuação de ACM. O primeiro dos questionamentos partiu do relator Artur da Távola, que questionou as concessões de radiodifusão por parte do ministério das Comunicações, principalmente durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. O ministro respondeu que não era “adequado que a Assembleia Nacional Constituinte, ao se reunir, queira evidentemente não só descumprir a

211 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 128-133. 114

Constituição em vigor, e muito mais, derrogar as leis existentes”, aproveitando também para criticar a proposta da deputada Cristina Tavares de criação do Conselho Nacional de Comunicação, afirmando que seu modelo “não existe em parte nenhuma do mundo, desde a Rússia até a Índia”212. Távola prosseguiu em seus questionamentos, indagando o ministro acerca de uma proposta apresentada que dava ao Executivo a prerrogativa das outorgas, mas transferia ao Judiciário a prerrogativa de renovação das concessões. ACM retrucou, afirmando que a interpretação do relator sobre a proposta estava equivocada, pois “seria um absurdo o Judiciário estar renovando concessões que foram dadas pelo Executivo e referendadas pelo Legislativo”213. No prosseguimento da audiência, o deputado Joaci Góes (PMDB/BA), inimigo político de ACM, foi mais duro em seu discurso. Góes falou acerca das denúncias levantadas por Cristina Tavares, relatora da Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação, sobre práticas de corrupção envolvendo a mudança de voto de deputados do PMDB, tendo um deles declarado que o fez em troca de uma concessão de televisão, no que acrescentou:

Há, no entanto, determinados episódios que, por serem do conhecimento amplo da Nação e desta Assembléia Nacional Constituinte, e que dizem respeito a denúncias, as mais amplas, de irregularidades que ocorrem no âmbito desse Ministério, e que estão resultando, na prática, no processo de instalação em curso, fato sem precedentes na história do País, de nada menos do que três Comissões Parlamentares de Inquérito destinadas, todas as três, a apurar irregularidades praticadas neste Ministério, digo eu, esses fatos todos resultam por conferir credibilidade a essa acusação de envolvimento de V. Ex.ª nos trabalhos da Subcomissão de Ciência, Tecnologia e Comunicação. Uma das três Comissões de Inquérito se destina a apurar problema de exploração de satélites, no âmbito do Senado, uma outra na Câmara dos Deputados, com o objetivo específico de apurar o caso NEC e uma terceira destinada a apurar outras irregularidades, como, por exemplo, a praticada na área das concessões em que se, a nosso juízo, não houver uma contenção do Ministério, nada praticamente sobrará na fase que se inicia com a promulgação da nova Constituição uma vez que, como é o caso da Bahia, V. Ex.ª tem sido de uma prodigalidade ímpar na outorga de concessões, tendo ocorrido, na sua gestão, dezenas de concessões, todas elas, sem uma exceção sequer, destinada a correligionários seus. A questão principal, nesta discussão toda, residiu precisamente no exame e na discussão do exame do Conselho de Comunicação Social214.

O ministro ACM acusou Góes de leviandade, levando questões pessoais para a discussão, além de levantar denúncias que não poderiam ser provadas, no que Góes levantou o tom:

212 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 134. 213 Ibid. p. 135. 214 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 136. 115

Apesar de tudo isso, vim para cá e me comportei em termos regimentais, porque se eu fosse me comportar em termos pessoais, não estaria dispensando a V. Ex.ª o tratamento de Ministro. Estaria dizendo, como disse em outras ocasiões, mas este não é o Plenário próprio, que V. Ex.ª, pelos crimes que tem cometido contra o Brasil e contra a Bahia, não deveria estar no Ministério, num País sério, V. Ex.ª haveria de estar na cadeia!215.

A fala de Góes deu início a uma longa troca de acusações com ACM, discussão que envolveu, ainda, o presidente da Comissão, Marcondes Gadelha, e o deputado Hermes Zaneti (PMDB/RS). O episódio foi encerrado pelo próprio ministro:

Sr. Presidente, quero primeiramente, dizer que jamais passaria pela minha cabeça ofender a qualquer Parlamentar, até mesmo aos meus inimigos pessoais, sobretudo a V. Ex.ª, por quem tenho admiração profunda, e até porque compreendo que um Ministro de Estado não vem a uma Comissão para ofender a quem quer que seja, principalmente aos Srs. Parlamentares. Dito isso, dou como exemplo o debate que se travou com o Constituinte Artur da Távola, inteiramente útil para os esclarecimentos dos Srs. Parlamentares, na formação das suas opiniões. Apenas revidei ataques que me foram desferidos, injustamente desferidos, mas que eu sabia que, inclusive, iria recebê-los se aqui viesse. Mas era meu dever vir aqui, Sr. Presidente, e vim cumprir o meu dever com esta Casa e com a Assembléia Constituinte. Eu quero colaborar, como o Constituinte Hermes Zaneti salientou, e quero, inclusive, que, ao final deste debate, eu traga uma contribuição positiva e não apenas ficar aqui em função de ódios, puros ódios, que não constroem coisa nenhuma! Quem odeia é escravo do outro que ele odeia; os que me odeiam são escravos meus, porque não conseguem se desvincular da minha pessoa. Conseqüentemente, Sr. Presidente, o que quero dizer a V. Ex.ª – com a seriedade com que costumo pautar os meus atos na vida pública – e a todos os Srs. Constituintes, inclusive, até, ao que me ofendeu, que o meu trabalho é para contribuir e não para criar polêmicas, porque os lugares não são próprios para isto. Assim, acho que está respondido e não há mais o que responder em relação ao Constituinte que me interpelou216.

Artur da Távola, relator da Comissão e alinhado ao grupo progressista do PMDB, procurou resgatar em seu relatório algumas das propostas rejeitadas na Subcomissão da Ciência, Tecnologia e da Comunicação. Entre os pontos apresentados pelo relator, estavam contemplados a “definição da comunicação como um direito e da informação como um bem social” e a “submissão da liberdade dos meios de comunicação a objetivos sociais, tais como a eliminação das desigualdades e injustiças e o respeito ao pluralismo ideológico”, vedando ainda “a formação de monopólios ou oligopólios”217. Távola trouxe para seu relatório a ideia proposta por Cristina Tavares em relação ao Conselho Nacional de Comunicação, prevendo “a autonomia do Conselho” e instituindo “o

215 Ibid. p. 137. 216 Ibid. p. 139. 217 CARVALHO, Lucas Borges de. Censura e liberdade de expressão na Assembleia Constituinte (1987-1988). Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, nº 209, p. 97. 116

princípio da complementaridade dos sistemas público, privado e estatal de radiodifusão”218. No entanto,

a principal alteração em relação às propostas anteriores decorria da exclusão de garantias importantes para os concessionários privados. Nesse sentido, o relatório não fixava prazo de duração das concessões, nem mencionava a participação do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, respectivamente, nos procedimentos de concessão e de cassação das outorgas. Surgia, assim, um modelo que era mais flexível ou menos “engessado” por disposições constitucionais e, por consequência, permitia que as maiorias futuras pudessem moldar as feições do serviço de acordo com o contexto e o momento histórico219.

Na sessão do dia 12 de junho, Távola aceitou emendas apresentadas ao seu texto, estabelecendo “que a competência para outorga das concessões de radiodifusão ficaria a cargo do Poder Executivo, ad referendum do Congresso Nacional, ouvido o Conselho Nacional de Comunicação”, justificando-se:

No campo da comunicação a questão que se polemizou foi a do chamado Conselho. A meu juízo nem é a questão central do problema. A meu juízo, a questão central do problema brasileiro no campo da comunicação é a democratização dos meios de comunicação, e essa democratização encontra no Conselho uma forma de auxílio, mas não a única forma de solução. (...) O Brasil possui 95% da comunicação em mãos da iniciativa privada, talvez mais um pouco, e o restante em mãos do Estado. Temos a forma antagônica da comunicação: capital ou Estado. A Europa não era exatamente o Estado, exceto nos países socialistas, forma única, totalitária; ela era uma forma pública, sem a presença do capital. O Conselho inglês, depois que se abriu a concessão para a iniciativa privada, também, funciona independente do Estado, opera com algo, que me parece, absolutamente importante em sessões públicas e tende à regionalização da comunicação que, aliás é um princípio que os Srs. Constituintes aqui sempre mostraram aceitar, pelo menos na fase inicial dos trabalhos. A minha idéia de Conselho é esta, é a minha idéia pessoal220.

Entretanto, não houve consenso quanto às propostas do relator, principalmente em relação à existência e função do Conselho Nacional de Comunicação, e “ambas as versões do relatório foram rejeitadas por 37 votos a 26, nos dias 12/6/1987 e 13/6/1987, respectivamente”. Em decorrência do impasse, o prazo regimental não foi respeitado, e a Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação foi a única comissão temática que não enviou relatório final para a Comissão de Sistematização, responsável pela elaboração do anteprojeto da nova Constituição. A saída para o imbróglio foi um acordo entre os grupos progressista e conservador:

Do embate político entre as duas propostas - inicialmente o relatório Tavares versus Emenda Martinez e posteriormente o relatório de Artur da Távola versus

218 Ibid. p. 97. 219 Ibid. p. 98. 220 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Atas de Comissões. Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. p. 211. 117

substitutivo da maioria - uma nova proposta teve que ser formulada contemplando elementos dos dois grupos para ser aprovada no Plenário da ANC. A solução encontrada através de amplo acordo para a votação foi a aprovação do que hoje conhecemos da Constituição. Ou seja, por um lado foi aprovado o Conselho de Comunicação Social através do artigo 224. Por outro lado, o próprio artigo 224 afirma que ele é apenas um órgão auxiliar do Congresso enquanto o artigo 223 passa a tarefa de autorizar ou renovar concessões para o poder executivo e para o poder legislativo. No que diz respeito ao monopólio estatal das telecomunicações foi instituído o inciso XI do artigo 21 da Constituição aprovando a proposta graças a um acordo entre conservadores e progressistas que levava em consideração outras votações. Desnecessário dizer, portanto, que os conservadores foram mais contemplados do que os progressistas221.

Isso ocorreu pois, em 14 de novembro de 1987, “pouco antes de se iniciar a análise dos destaques relativos às concessões de radiodifusão, a maioria conservadora impediu o prosseguimento da votação, valendo-se de uma manobra regimental”, suspendendo, assim, a reunião. “Como aquele era o último dia para a deliberação sobre os destaques, estes foram considerados prejudicados, restando aprovado, assim, o substitutivo “Cabral 2” – chamado assim em alusão ao relator da Comissão de Sistematização, Bernardo Cabral (PMDB/AM) –, que contemplava as propostas mais conservadoras e esvaziava o Conselho Nacional de Comunicação222.

3.5 A Constituição de 1988 e as novas regras de concessão de radiodifusão

A legislação brasileira de radiodifusão vigente em 1988 poderia ser considerada uma verdadeira “colcha de retalhos”: estavam em vigência a Lei nº 4.117/1962, que instituiu o Código Brasileiro de Telecomunicações; o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, através do Decreto nº 52.795/1963; o Decreto nº 70.568/1972, que legislava sobre o Conselho Nacional de Telecomunicações e o Conselho Nacional de Comunicações; a Lei nº 5.785/1972, que prorrogou os prazos de concessões e permissões de radiodifusão; o Decreto nº 88.066/1983, que alterou a Lei nº 5.785/1972 e modificou novamente os prazos de concessões e permissões de radiodifusão; e os dispositivos constitucionais a esse respeito, dispostos na Constituição Federal de 1967.

221 RODRIGUES, Theófilo Codeço Machado. A Constituição de 1988 e a comunicação: a história de um processo inacabado de regulamentação. Revista Mosaico, Rio de Janeiro: PPHPBC/FGV, nº 7, vol. 4, p. 109, 2013. 222 CARVALHO, Lucas Borges de. Censura e liberdade de expressão na Assembleia Constituinte (1987-1988). Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, nº 209, p. 100. 118

Os decretos de outorga de concessão levavam em consideração o artigo 29 do Decreto nº 52.795/1963, que previa ser “prerrogativa do Presidente da República outorgar concessão a uma das entidades que se habilitarem ao edital”, além do previsto no artigo 28, alterado pelo Decreto nº 88.067/1983: o prazo de 2 anos para instalação da emissora, a contar da publicação da portaria de autorização; o caráter de não exclusividade na execução do serviço; a admissão apenas de profissionais brasileiros ou estrangeiros com residência fixa no Brasil na operação de transmissores; e a não participação de seus dirigentes na administração de mais de uma emissora, no mesmo tipo de serviço de radiodifusão, na mesma cidade. O artigo previa também que as diretorias ou as gerências das emissoras deveriam ser constituídas de brasileiros natos, “os quais não poderão ter mandato eletivo que assegure imunidade parlamentar, nem exercer cargos de supervisão, direção ou assessoramento na administração pública, do qual decorra foro especial”, além de obrigar a autorização prévia do Ministério das Comunicações para “transferir a concessão ou permissão de uma pessoa jurídica para outra” e modificar o contrato social e a composição societária. Também obrigava as emissoras de rádio e TV a manter “um elevado sentido moral e cívico, não permitindo a transmissão de espetáculos, trechos musicais cantados, quadros, anedotas ou palavras contrárias à moral familiar e aos bons costumes”, “não transmitir programas que atentem contra o sentimento público”, e a transmitir a Voz do Brasil, diariamente, entre as 19 e 20 horas, com exceção dos sábados, domingos e feriados. Os decretos de renovação, por sua vez, eram embasados no artigo 6, item I, do Decreto nº 88.066/1983, que, após parecer do DENTEL e apreciação do ministro das Comunicações, deveriam ser encaminhados, com exposição de motivos, ao presidente da República, a quem competia “decidir sobre a renovação ou declaração de perempção da concessão”, reforçando assim a prerrogativa presidencial a respeito das concessões de radiodifusão; e no artigo 33, § 3º, da Lei 4.117/1962, que autorizava a exploração por concessão, autorização ou permissão dos serviços de telecomunicações não executados diretamente pela União, sendo observados os prazos de 10 anos para o rádio e 15 anos para a televisão, “podendo ser renovados por períodos sucessivos e iguais”. A Constituição Federal, por sua vez, através do item III do artigo 81, concedia privativamente ao presidente da República “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução”. Além disso, a Constituição Federal de 1967, alterada pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969, proibia a propriedade e a administração de empresas jornalísticas por estrangeiros, sociedades de ações ao portador ou que tivessem entre seus sócios e acionistas estrangeiros ou pessoas jurídicas, com exceção de 119

partidos políticos, dando também a prerrogativa de “estabelecer outras condições para o funcionamento das empresas jornalísticas ou de televisão e de radiodifusão, no interesse do regime democrático e no combate à subversão e à corrupção”. A prerrogativa presidencial exclusiva de aprovação das concessões ou permissões de radiodifusão, como constatamos anteriormente, foi alvo de diversos questionamentos por parte de entidades da sociedade civil, parlamentares, profissionais e proprietários de órgãos de mídia. Foi no bojo dessa discussão que surgiu a proposta do Conselho Nacional de Comunicação, como órgão de controle social sobre as políticas de concessão e regulação da mídia no Brasil, apoiada sobretudo pela Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ) e outros grupos do mesmo campo. Entretanto, a proposta foi combatida por diferentes segmentos, desde as organizações empresariais que congregavam os maiores veículos de comunicação do país, como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) e grupos de diferentes orientações ideológicas na Assembleia Nacional Constituinte, representados por parlamentares detentores de concessões de rádio e televisão, que viam no Conselho Nacional de Comunicação uma ameaça de censura, além de impor, sob seu ponto de vista, um desnecessário controle social e estatal sobre a mídia. Foi apenas em março de 1988 que começaram a surgir definições a respeito deste e outros temas de interesse público:

Ao dar continuidade à votação do Capítulo relativo ao Poder Legislativo, a Constituinte concluiu os itens de competência exclusiva do Congresso, que terá seus poderes ampliados pela nova Constituição. Assim, vai fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo, inclusive os da administração indireta. Vai também poder autorizar a realização de referendo ou plebiscito. Uma das inovações mais bem recebidas é a que trata da concessão renovação de concessão de emissoras de rádio e TV: a concessão continuará sendo um ato do presidente da República, mas o Congresso o apreciará. O ponto de equilíbrio entre o Legislativo e o Executivo estará na possibilidade de o Congresso Nacional sustar os atos normativos do Executivo que exorbitem do poder regulador ou dos limites de delegação legislativa223.

Em 17 de março de 1988, a emenda de autoria de Artur da Távola, que proibia que parlamentares recebessem concessões de radiodifusão, foi derrotada por 238 votos. Foram 171 votos favoráveis e 23 abstenções. De acordo com a proposta de Távola

a proibição se estendia a cônjuge, filhos, irmãos, pais ou sócios. Segundo levantamento feito pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) junto ao Ministério das Comunicações, 75 dos atuais constituintes possuem canais de rádio e

223 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 mar. 1988. p. 4. 120

televisão ou tem parentes ou sócios que possuem. Dos 75, só 10 votaram a favor da emenda, seis se abstiveram e 20 não estavam no plenário224.

Entre os deputados apontados por legislar “em causa própria”, estavam Aécio Neves (PMDB/MG), Ângelo Magalhães (PFL/BA), Arolde de Oliveira (PFL/RJ), César Cals Neto (PDS/CE), Inocêncio Oliveira (PFL/PE), José Agripino (PFL/RN), José Carlos Martinez (PMDB/PR), Levy Dias (PFL/MS), Luís Eduardo Magalhães (PFL/BA), Matheus Iensen (PMDB/PR), (PFL/MA) e Siqueira Campos (PDC/GO), todos membros da base de apoio ao governo Sarney. Foi apenas com a votação do capítulo referente à Comunicação Social, em maio de 1988, que alguns dos impasses relativos ao tema foram solucionados:

O presidente da República terá que dividir com o Congresso o poder de conceder ou renovar concessões de rádio e televisão, que deixará de ser privativo do Poder Executivo. A Constituinte tomou a decisão por 443 votos contra oito e sete abstenções, dentro do acordo que possibilitou a votação de todo o capítulo referente à Comunicação da futura Constituição. Os votos de dois quintos da Câmara dos Deputados e do Senado – 195 deputados e 28 senadores, na representação atual – poderão rejeitar a concessão ou a renovação. O Congresso terá 45 dias para votar o pedido enviado pelo presidente225.

Os prazos de validade das concessões, que eram de 15 anos para televisão e 10 anos para o rádio, de acordo com o Decreto nº 88.066/1983, foram mantidos. Importantes alterações também foram realizadas no que diz respeito à propriedade dos veículos de comunicação:

De acordo com a futura Constituição, a propriedade de empresas jornalísticas e de radiodifusão será privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Será proibida a participação de pessoas jurídicas no capital social de empresa jornalística ou de radiodifusão, exceto a de partidos políticos e de sociedade cujo capital pertença exclusivamente a brasileiros. Essa participação, entretanto, só será efetuada através de capital sem direito a voto e não poderá exceder a 30% do capital social. Os constituintes atenderam reivindicação da Federação Nacional dos Jornalistas, aprovando a criação do Conselho de Comunicação Social, que será órgão auxiliar do Congresso. As atribuições e a composição do conselho serão definidas por lei ordinária226.

Apesar disso, as polêmicas envolvendo o Conselho Nacional de Comunicação duraram até os últimos momentos da Constituinte. O conselho foi renomeado para Conselho de Comunicação Social, com a inclusão do pronome seu, em referência ao Congresso Nacional: “para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social”. O deputado Vivaldo Barbosa

224 Ibid, 18 mar. 1988. p. 4. 225 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25 mai. 1988. p. 4. 226 Ibid. 121

(PDT/RJ) chamou a atenção do relator Bernardo Cabral para a questão, e o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deu ordens para que o pronome fosse apagado do texto. Entretanto, como veremos em seguida, o texto final continuou como estava227. Promulgada em 5 de outubro de 1988, a nova Constituição da República Federativa do Brasil, a “Constituição Cidadã”, foi considerada um marco no avanço de direitos sociais, tendo sido a Carta Magna que mais recebeu contribuições da sociedade em sua elaboração, seja através das audiências públicas com a participação de entidades que representavam os mais diversos setores e interesses, da representatividade parlamentar plural ou pelas emendas populares, que mobilizaram milhões de assinaturas e incontáveis sugestões de cidadãos comuns.

Figura 18 – Sessão de promulgação da Constituição Federal de 1988. Foto: Agência Brasil.

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/47/Promulga%C3%A7%C3%A3o- Constitui%C3%A7%C3%A3o-1988.jpg

Conforme previsto no artigo 21, inciso XII, item a, da Constituição de 1988, competia à União explorar “os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens e demais serviços de telecomunicações”228. O Capítulo V do Título VIII do texto constitucional é inteiramente dedicado à Comunicação Social, prevendo, em seu artigo 223, que “compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observando o princípio da complementaridade dos

227 Ibid, 24 set. 1988. p. 4. 228 Texto alterado pela Emenda Constitucional nº 8, de 1995, atualmente vigente. 122

sistemas privado, público e estatal”, sendo o prazo de dez anos para a concessão ou permissão de emissoras de rádio e de quinze anos para emissoras de televisão. O mesmo artigo estabelece que cabe ao Congresso Nacional apreciar o ato do Executivo, no prazo de até 45 dias, sendo necessários 2/5 dos parlamentares, em votação nominal, no caso de não renovação da concessão ou permissão, ou de decisão judicial, no caso de cancelamento antes do prazo. Ainda, segundo o artigo 223, “o ato de outorga ou renovação somente produzirá efeitos legais após deliberação do Congresso Nacional, em votação nominal”. O capítulo dedicado à Comunicação Social afirma ainda que “a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos, aos quais caberá a responsabilidade por sua administração e orientação intelectual”; cria o Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional; além de proibir a formação de monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação e de censura de natureza política, ideológica e artística229.

229 Verificar alterações realizadas no texto do Capítulo V da Constituição ocorridas através da Emenda Constitucional nº 36, de 2002, atualmente vigentes. 123

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a Assembleia Nacional Constituinte, o Congresso Nacional retomou seu funcionamento normal, legislando sobre assuntos diversos e procurando regulamentar assuntos constitucionais. Entretanto, a 48ª legislatura foi uma das mais tumultuadas da história recente do Congresso: teve que lidar, durante quase dois anos, com a realização da Constituinte, com as eleições presidenciais de 1989 – as primeiras desde 1960 – e com as eleições de 1990, já realizadas sob novas regras, dentre elas a da realização do 2º turno. Nas eleições de 1989, boa parte dos políticos evangélicos abraçou candidatos conservadores, como Fernando Collor de Mello, do PRN, apoiado por muitos deles nos dois turnos daquelas eleições. O poderio da bancada evangélica ficou evidente quando Gidel Dantas, o mesmo que articulou o “ressurgimento” da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), tornou-se vice-líder do novo governo. Nas eleições de 1990, porém, a bancada evangélica caiu dos 32 eleitos em 1986 para 22. Dantas, até então homem-forte da articulação do grupo, não foi reeleito, junto com outros 13 correligionários. Do grupo dissidente, apenas Benedita da Silva foi reeleita. Apesar do revés eleitoral na Câmara, naquele pleito Levi Dias (PST-MS) foi o primeiro evangélico eleito senador no Brasil230. Ainda no início do governo Collor, a CEB deixou de funcionar, sem que houvesse esclarecimentos sobre a destinação e aplicação dos recursos públicos transferidos para a entidade durante o governo de José Sarney231. O desaparecimento da CEB abriu espaço para o surgimento de outras organizações, como a Associação Evangélica Brasileira (AEVB), de caráter progressista, liderada pelo pastor presbiteriano Caio Fábio D’Araújo Filho e surgida em 1991, e o conservador Conselho Nacional de Pastores do Brasil (CNPB), criado em 1993, articulado pela Igreja Universal e pelo pastor Manoel Ferreira, líder da Convenção Nacional das Assembleias de Deus no Brasil (CONAMAD). O parcial insucesso eleitoral dos evangélicos em 1990 e o desmantelamento da CEB deixaram claras algumas intenções do grupo. A primeira delas, a inserção política, tendo como mote a realização da Constituinte: era necessário ter voz e espaço, para defender os interesses evangélicos na nova Constituição. Era preciso garantir a liberdade de culto, impedir que o catolicismo voltasse a ser religião oficial, combater a subversão dos valores tradicionais

230 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro. 29 out. 1990. p. 2. 231 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 jun. 1990. p. 5. 124

– simbolizada, por exemplo, pela presença de comunistas e de defensores dos gays no Congresso Nacional – e conquistar ganhos para as causas evangélicas. Entretanto, constatamos que muito disso ficou apenas no discurso. Era irreal o temor de proibição dos cultos evangélicos, assim como era risível a suposta ameaça católica de se tornar novamente uma igreja estatal. Muitas das garantias fundamentais que favoreciam grupos comunistas, defensores do aborto e adeptos da causa gay eram estendidas aos evangélicos e à sociedade como um todo: liberdade de expressão, opinião, de organização e de culto. Quando nos aprofundamos na análise prosopográfica, nos deparamos com a defesa de interesses que não estavam totalmente relacionados à questão religiosa: o alinhamento com a União Democrática Ruralista (UDR) nas questões envolvendo direitos trabalhistas e reforma agrária, e com o Centrão, visto como o grupo mais retrógrado da Constituinte, nos assuntos relacionados, por exemplo, aos direitos sociais, trabalhistas, previdenciários, e à função do Estado. Na raiz da questão, estavam as concessões de rádio e televisão, que interessavam a inúmeros grupos políticos, inclusive aos emergentes evangélicos. Utilizadas como farta e fácil moeda de troca, tendo como principal pretexto um possível “endurecimento” nas regras para as concessões após a Constituinte, o governo do PMDB distribuiu tais benesses aos seus aliados. No caso dos evangélicos, a troca envolveu a proposta do mandato presidencial de cinco anos para José Sarney, de iniciativa do deputado Matheus Iensen. Vitoriosos, os “cincoanistas” garantiram milhões de cruzados em recursos públicos para prefeituras municipais e governos estaduais, entidades de assistência e obras sociais, algumas delas obscuras. Na Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, a estratégia era, na verdade, aumentar o peso do Legislativo nas concessões de rádio e televisão, impedindo proposições que criassem mecanismos de regulação mais rígidos ou de controle social envolvendo o tema. Assim, a proposta original do Conselho Nacional de Comunicação, que dominou o debate do início ao fim, foi enterrado, dando lugar a um órgão meramente consultivo. Coube a outro evangélico, Arolde de Oliveira, dono de emissora de rádio, a articulação para que tais medidas fossem derrotadas. Na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, os evangélicos, aliados aos conservadores, derrubaram a versão final do substitutivo do relator Artur da Távola, derrotado mesmo após diversas concessões feitas aos 125

vencedores do embate. Os carlistas, como eram chamados os adeptos do ministro ACM, queriam a manutenção da prerrogativa presidencial exclusiva para concessões de rádio e televisão232. Ressaltamos que era o ministro das Comunicações quem expedia as portarias, e o presidente da República chancelava suas sugestões. A atual regra, que dá ao Legislativo o poder de ratificar a decisão presidencial, na verdade pouca mudança produziu: se é interesse de um governo conceder ou renovar concessões, isso pode ser facilmente contornado caso ele possua maioria no Congresso, ou negociado em caso diverso. E mais: na prática, muitos proprietários de empresas de comunicação têm seus interesses defendidos no Congresso Nacional, elegendo seus representantes ou, em muitos casos, a si mesmos. É o que o levantamento feito ela FENAJ, que relatamos no capítulo 3, demonstrava: 75 parlamentares eram proprietários de concessões, ou possuíam familiares e sócios nesta condição. Concluímos que a “repentina” mudança de postura de alguns grupos evangélicos, principalmente os pentecostais, em relação à política teve uma motivação: a mídia. Consideramos este e outros interesses como legítimos. O Congresso Nacional é o espaço natural para a representação dos mais variados segmentos da sociedade brasileira, cada um buscando seus interesses. É um processo intrínseco ao exercício democrático. Portanto, não tratamos de questionar a legitimidade da presença evangélica ou de seus interesses. O que questionamos nesta pesquisa são os métodos utilizados para alcançar tais objetivos, desde uma retórica que não condiz com os reais interesses buscados, ludibriando assim a opinião pública, até o uso de estratégias obscuras de negociação política, tendo como pretexto o avanço da evangelização e a preservação da família. Diante de tal quadro, não apontamos heróis ou mocinhos, culpados ou inocentes. Compreendemos a dinâmica do jogo político, incluindo manobras regimentais, acordos políticos, tentativas de conciliação de interesses, mudanças de opinião ou de voto, etc. Seria ingênuo imaginar espaços de disputas de poder sem que tais artifícios fossem utilizados. Desde o recorte temporal aqui analisado até a atualidade, a população evangélica continua crescendo, o que se reflete não apenas, mas principalmente na política. A cada eleição, fica transparente a ideia de um projeto de poder, baseado na panaceia de que os evangélicos no comando resolveriam todos os problemas do país. O ponto máximo desta ideia seria a eleição de um presidente evangélico, um “homem de Deus” capaz de colocar o Brasil no rumo certo.

232 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 jun. 1987. p. 5. 126

A ideia é de um movimento que transforme a sociedade de cima para baixo: é pela ocupação do Estado que os evangélicos transformarão o país, legislando sobre os mais diversos assuntos, inclusive sobre questões morais e de cunho íntimo. Embora, no Brasil, essa visão do papel do cristão na sociedade possua muitos adeptos, poucos a conhecem por seu nome: reconstrucionismo, dominionismo ou simplesmente Teologia do Domínio. Não obstante existirem problemas de conceituação – por vezes, é confundida com a teonomia de base calvinista –, basicamente pelo fato de ser pouco estudada e haver escassos artigos em língua portuguesa, autores como Mary Schultze buscam desvendar algumas de suas ideias, postulada em três crenças básicas, dentre elas a de que “Jesus não poderá voltar até que a igreja tenha subjugado a Terra e conseguido o controle das instituições governamentais e sociais da mesma”. Schultze aponta alguns ensinamentos desta corrente de pensamento: “A Lei do Velho Testamento é a nossa regra de vida para hoje” e “deve governar também a sociedade”; ela “ensina um alto nível de ativismo social e político. Para os dominionistas, como o Reino de Deus vai dominar gradualmente a Terra, é natural que os cristãos se engajem na mudança da sociedade, através de novas leis e da ação social”233. Embora tentadora e palpável, delegando para o homem parte da obra divina de salvação e regeneração da humanidade, esta linha teológica contradiz alguns dos pensamentos de importantes teólogos da Reforma, como o próprio Martinho Lutero, que em diversos momentos faz alusão à separação entre “autoridade secular” e “autoridade espiritual”, e João Calvino, que também deu importante contribuição a respeito da separação entre governo civil e os assuntos religiosos234. Entendemos que, mesmo tendo visões diferentes a respeito do tema, ambos previam a separação entre as autoridades secular (governo ou Estado) e espiritual (igreja), sem que houvesse intervenção estatal em assuntos religiosos, abrindo espaço para a visão de um Estado laico, respeitando a religiosidade e a espiritualidade, sem privilegiar ou coibir qualquer manifestação neste sentido. Desta forma, os que se inserem na visão reconstrucionista ou dominionista, além de caírem em contradição, praticando, por exemplo, o que diziam combater durante a Constituinte, abrem perigoso precedente no que diz respeito ao fundamentalismo religioso,

233 SOLA SCRIPTURA TT. Dominionismo, Reconstrucionismo, Teonomia – Benção ou Maldição? Disponível em . Acesso em: 28 set. 2017. 234 REIS, Arthur Ferreira. Autoridade secular x religiosa: os escritos políticos de Lutero e Calvino (Séculos XV- XVI). Revista de História da UEG, Anápolis, v. 5, n. 1, jan/jul. 2016, p. 316. 127

desejando fazer das leis religiosas também leis civis, obrigando toda a sociedade a cumpri-las, independentemente da religião professada. Neste sentido, Paul Freston nos fornece bastante subsídios:

O Estado deve ser não-confessional. Foi justamente essa percepção por parte de alguns dos primeiros protestantes nos séculos 16 e 17 que deu início à separação entre Igreja e Estado. Com bases teológicas, eles perceberam que a visão cristã do Estado é que o Estado não deve ser “cristão”, no sentido de defender e promover uma determinada igreja ou religião. Este não é o papel de Estado nenhum na dispensação da graça. Entretanto, religião e política podem, sim, ser misturadas. Uma pessoa pode ser inspirada por sua fé religiosa a ingressar na política e defender certas propostas. Política confessional, sim; Estado confessional, não235.

Se a preocupação histórica e teológica da Reforma era a de influenciar a sociedade como um todo a partir dos exemplos pessoais, fazendo do indivíduo e da igreja agentes de transformação da realidade a partir de padrões éticos e morais elevados, hoje a preocupação de muitos grupos evangélicos é apenas com a ocupação das estruturas governamentais, utilizando uma retórica que pouco tem a ver com a realidade, dados os escândalos nos quais diversos políticos evangélicos tem se envolvido ao longo de décadas236. Criticamos, por exemplo, a ideia de que “os fins justificam os meios”. Salatiel Carvalho, evangélico constituinte, declarou que “se o presidente quisesse cem anos para trocar por cem rádios, se é para divulgar o evangelho, eu trocava”237. Não compreendemos como uma causa religiosa pode servir de pretexto para que pretensos deputados evangélicos se envolvam em negociações obscuras com governantes em troca de benesses que não servem, necessariamente, para atender às demandas mais urgentes de seu eleitorado e da sociedade brasileira em geral, tão carente de serviços públicos básicos. Por fim, entendemos que, mesmo diante de um confuso quadro relativo à representatividade política dos evangélicos, a sociedade como um todo não pode recriminar ou rechaçar, de forma alguma, a inserção deste segmento na vida pública brasileira:

Podemos não concordar com as políticas deste ou daquele candidato e até achar que sua conversão foi oportunista, mas não devemos combatê-lo de tal forma a deslegitimar a razão da nossa própria participação política. A política não deve ser meio de fortalecer uma religião em detrimento de outras, mas dizer que a religião em

235 FRESTON, Paul. Religião e política, sim; Igreja e Estado, não: os evangélicos e a participação política. Viçosa: Ultimato, 2006. p. 10. 236 LOPES, Guilherme Esteves Galvão. Por que os evangélicos não mudaram o Brasil? Análise histórica da atuação evangélica no Congresso Nacional (1982-2006). XXVII Simpósio Nacional de História, ANPUH, Florianópolis, 2015. Disponível em . Acesso em: 23 out. 2016. 237 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 135. 128

si nada tem a ver com a conduta da política é lógica e historicamente falso. Falar em “abuso” da religião é seguir uma linha errada. A diferença entre “uso” e “abuso” é muito subjetiva. Um dia, o feitiço pode se virar contra o feiticeiro. Devemos, sim, protestar quando se diz que todos os evangélicos estão com tal candidato, mas não devemos atacar os outros por “abusar” da religião na política. Deixemos que cada um se utilize da religião como quiser — é melhor do que criar um ambiente em que ninguém pode falar sobre religião em praça pública238.

Deslocando o debate especificamente para as concessões de radiodifusão, uma das temáticas centrais desta pesquisa, apontamos grande desencontro de informações, ausência de dados importantes sobre as empresas concessionárias, além de respostas negativas para algumas solicitações. Não existem, por exemplo, informações sobre a composição societária da maioria das emissoras aqui pesquisadas. Em algumas solicitações de informações dirigidas ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) e à Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), fomos orientados a buscar tais dados nas Juntas Comerciais dos estados de origem das concessionárias. Entretanto, as pesquisas de informações são pagas, sendo inviáveis pela natureza desta pesquisa, e por não haver fontes de financiamento. Outras solicitações, quando não são parcialmente atendidas, sendo necessárias repetidas indagações, são prontamente negadas, por motivos não esclarecidos, como verificaremos adiante no caso da Rádio Melodia. Ressaltamos que não ficaram totalmente claros os critérios que fazem com que algumas emissoras possuam abundância de informações, enquanto outras oferecem informações mínimas, aparentando que tais distinções e inconsistências sejam propositais.

238 FRESTON, Paul. Religião e política, sim; Igreja e Estado, não: os evangélicos e a participação política. Viçosa: Ultimato, 2006. p. 9-10. 129

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APÊNDICE – PÓS-1988: A EXPANSÃO DA MÍDIA EVANGÉLICA BRASILEIRA E A FORMAÇÃO DAS GRANDES REDES

A estratégia de ocupação dos meios de comunicação, principalmente rádios e TVs, por parte de igrejas e grupos evangélicos passou por diferentes estágios ao longo do século XX, sendo bem definidos quatro deles. O primeiro estágio ocorreu a partir do aluguel de espaços em rádios AM, sobretudo durante as madrugadas, que mesclavam programação religiosa com músicas populares. Ele teve início nos 1950 sem, no entanto, haver terminado: ele ainda ocorre, com menos intensidade, por iniciativa de pequenas igrejas, sobretudo das periferias das grandes cidades. No Rio de Janeiro, as rádios Copacabana e Metropolitana destacavam- se neste segmento239. O segundo estágio foi o arrendamento e a compra de emissoras de portes diversos, geralmente deficitárias ou em estado pré-falimentar, transferindo as concessões para estes grupos. Este movimento ocorreu com maior intensidade entre meados dos anos 1970 e o fim dos anos 1980, durante o Regime Militar iniciado em 1964. O bispo Roberto McAllister, da Igreja de Nova Vida, foi um de seus precursores ao adquirir, em 1967, a Rádio Relógio Federal, antiga emissora da Radiobrás, mantendo a sua programação secular e reservando pequeno espaço em sua grade para o serviço religioso. Neste estágio, destacamos as compras das rádios Marumby (1976), adquirida por Matheus Iensen, com outorga no município paranaense de Campo Largo; Universo (1982), em Curitiba, da Igreja Pentecostal Deus é Amor; Melodia (1986), rádio FM de Petrópolis, pelo empresário evangélico Francisco Silva; e as cariocas Copacabana (1984) e Ipanema (1989), pela Igreja Universal do Reino de Deus. O terceiro estágio ocorreu durante o governo José Sarney (1985-1990), período que abrange a realização da Assembleia Nacional Constituinte. Conforme verificamos, houve verdadeira distribuição de concessões de rádio e televisão, utilizados na maioria dos casos como moeda de troca em negociações políticas envolvendo os temas constitucionais, sob o pretexto de que a nova Constituição alteraria as prerrogativas presidenciais sobre as outorgas, o que, em tese, dificultaria suas concessões e renovações. Este período é marcado também pela progressiva transição da banda AM para a FM.

239 Atualmente, a rádio Metropolitana AM do Rio de Janeiro ainda mantém uma programação que mescla pregações evangélicas, músicas populares e programas de religiões afro-brasileiras. 133

O quarto estágio é a investida evangélica na televisão, com a articulação, em paralelo, de redes de rádio, possibilitando a construção de grandes conglomerados evangélicos de mídia. Este estágio é iniciado ainda nos anos 1980, com a TV Rio de Nilson do Amaral Fanini, em 1983. Mas é a partir da Constituição de 1988 que o processo avança e se consolida, ganhando força nos anos 1990, mesclando, no campo da televisão, novas concessões, arrendamentos e compra de emissoras. Em 1989, iniciou-se a negociação para aquisição da TV Record de São Paulo pela Igreja Universal do Reino de Deus, concretizada no ano seguinte. Em 1992, a igreja adquire também a TV Rio, transformando-a em emissora própria da Rede Record. Daí em diante, o surgimento de canais evangélicos vem em sequência: em 1993, surge a TV Boas Novas, em Manaus, ligada à Assembleia de Deus (CGADB) e transformada em rede dois anos depois. Outras importantes emissoras surgiriam ao longo dos anos 1990, como a Rede Gospel (1996), ligada à Igreja Apostólica Renascer em Cristo, e a Rede Internacional de Televisão – RIT (1999), da Igreja Internacional da Graça de Deus. Analisaremos, em seguida, casos de grupos evangélicos de comunicação que perpassam os diferentes estágios aqui apresentados. Definimos como critérios a importância numérica das denominações evangélicas proprietárias ou relacionadas aos tais veículos, assim como sua relevância no segmento religioso no qual se inserem, em paralelo com o peso de sua representatividade política, sobretudo a nível nacional. Definidos estes critérios, apontamos quatro importantes grupos: o conglomerado de mídia de propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus, que abarca o Grupo Record e a Rede Aleluia; a Rede Boas Novas, de propriedade de Samuel Câmara, liderança da CGADB; a Rádio Melodia, de propriedade de Francisco Silva; e a 93 FM, de Arolde de Oliveira. Em seguida, contemplaremos de forma concisa alguns veículos e grupos de importância regional, ou de maior abrangência que não se enquadram nos critérios acima.

I.I Mídia da Igreja Universal: Grupo Record e Rede Aleluia

Não restam dúvidas sobre a preponderância do conglomerado midiático da Igreja Universal do Reino de Deus: apenas a Rede Record (recentemente RecordTV) atingiu, em 2016, um faturamento de R$ 1,8 bilhão, quase a soma de três outras importantes redes de televisão, como o SBT (R$ 1,060 bilhão), Rede Bandeirantes (R$ 500 milhões) e RedeTV! 134

(R$ 400 milhões).240 No mesmo ano, na Grande São Paulo, a emissora atingiu a vice-liderança geral, com média de 5,8 pontos, pouco à frente do SBT, com 5,6 pontos. Segundo a pesquisa Kantar IBOPE, cada ponto equivale a 70.500 domicílios241. A trajetória da IURD neste campo começou de forma modesta, ainda nos anos 1980, com a aquisição da Rádio Copacabana, do Rio de Janeiro, em 1984. Ao analisarmos o histórico da emissora, porém, nos deparamos com o desencontro e até mesmo a ausência de informações que normalmente acompanha as concessões do setor no Brasil. A primeira Rádio Copacabana operava no Rio de Janeiro na frequência de 1320 AM, com a concessão outorgada em 1957, pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Em 1972, a outorga da Organização Rádio Copacabana LTDA foi transferida, através do Decreto nº 71.272/1972, para a Rádio Rio de Janeiro, da Fundação Cristã Espírita Cultural Paulo de Tarso, que hoje opera em 1400 AM242. Do outro lado da Baía de Guanabara, existia a Rádio Mapinguari, que operava em 680 AM, na cidade de São Gonçalo. A Rádio Mapinguari LTDA conquistou sua concessão em 1954, outorgada por Getúlio Vargas, e em 1976 a emissora teve sua concessão renovada por 10 anos, com data retroativa a 1973, já constando com a razão social Rádio Copacabana LTDA, com registro no CNPJ datando de 1967. Ao longo de décadas, a Rádio Copacabana veiculou diversos programas de rádio evangélicos, com destaque para os do deputado Daso Coimbra; de Erasmo Martins Pedro, ex- vice-governador da Guanabara; e do pastor Nilson do Amaral Fanini, da Primeira Igreja Batista de Niterói. A própria IURD alugava horários nas madrugadas da Copacabana desde 1980. Não foi possível, nesta pesquisa, verificar maiores informações sobre o controle acionário ao longo dos anos, pelos motivos que mencionamos no início. Em 1984, “a rádio dos evangélicos” estava sob o controle de Francisco Silva e de seu sócio Sidney Maury243. O Diário Oficial da União, de 07 de maio de 1984, publicou portaria aprovando os nomes destes para procuradores, e em novembro do mesmo ano, foi publicado no Jornal do Commercio despacho da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro – JUCERJA, informando mudança de sede da emissora para a rua Visconde de Inhaúma, no Centro do Rio, e o aumento do capital social para Cr$ 1 milhão e 400 mil, figurando novamente como sócios

240 TV E FAMOSOS. Faturamento da Record dá quase a soma de SBT, Band e RedeTV! Disponível em . Acesso em: 26 set. 2017. 241 TV FOCO. Record é vice-líder na média de 2016 e tem maior audiência no mês de dezembro em cinco anos. Disponível em . Acesso em: 26 set. 2017. 242 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 23 dez. 1972. p. 3. 243 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 23 jul. 82. p. 11. 135

Francisco Silva e Sidney Maury244. No mesmo ano, a Copacabana passou ao controle da Igreja Universal:

Em julho de 1984, fiz o anúncio sobre a igreja em todo o país, num artigo publicado em nosso jornal interno, intitulado “A Rádio Copacabana é nossa!”. O título fazia referência à célebre trilha comemorativa de conquista da Copa do Mundo, em 1958, pela Seleção Brasileira de Futebol245.

A segunda emissora adquirida pela IURD foi a Rádio Ipanema, do Rio de Janeiro. Em abril de 1988, a Radiobrás publicou edital de concorrência pública, visando a venda de diversas emissoras do sistema, dentre elas a Ipanema, que operava em AM do Rio de Janeiro. Sua trajetória é peculiar: a concessão original da Sociedade Anônima Rádio Ipanema era de 1935, outorgada por Getúlio Vargas, operando em 1130 AM. Oito anos depois, a rádio foi liquidada em decreto do próprio Vargas, que em 1945 criou a Fundação Rádio Mauá, com o acervo da Ipanema. Vinculada ao Ministério do Trabalho, ficou conhecida como a “emissora do trabalhador”. Posteriormente, a rádio passou ao controle da Radiobrás, que nos anos 1970 fez a permuta de sua frequência com a Rádio Nacional, passando a operar em 980 AM. Sua programação era majoritariamente musical, transmitindo também corridas do Jóquei Clube do Rio de Janeiro. Passaram pela emissora profissionais como Manoel de Nóbrega, Daisy Lucidi, Dalva de Oliveira e Jamelão. Com a divulgação do edital de venda, diversos veículos de comunicação noticiaram a possibilidade de um grupo de empresários ligados à Golden Cross, operadora de planos de saúde, adquirir a emissora carioca:

O governo fez uma concorrência para privatizar a Rádio Ipanema. Ninguém apareceu, até que à última hora, inscreveu-se um grupo de evangélicos, escondidos na empresa Rádio Contemporânea S/A. Ficaram como candidatos únicos e logicamente ganharam a concorrência. Ofereceram 110 mil OTNs, e o governo aceitou, pois o limite mínimo era de 95 mil OTNs. Tudo perfeito. Mas, na hora de assinar o contrato, fazer o pagamento e assumir a Rádio Ipanema, o grupo de evangélicos descobriu que “concorrera” sozinho, e que, portanto, poderia pagar apenas 95 mil OTNs, em vez das 110 mil oferecidas. Mas o governo (federal) diz que não pode fazer mais nada. A Rádio Contemporânea, então, pretende não pagar para forçar nova concorrência. Mas fontes do governo já deixaram bem claro: em nova concorrência, esse grupo não poderá concorrer de maneira alguma. Ou paga, ou sai de cima246.

A Golden Cross era presidida por Milton Soldani Afonso, membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Mas os adventistas não foram os únicos interessados: a IURD teria juntado 111 mil OTNs (cerca de Cz$ 265 milhões) e proposto a compra da Ipanema. A

244 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1 nov. 84. p. 9, 2º caderno. 245 MACEDO, Edir. Nada a perder. São Paulo: Planeta, 2013. v. 2, p. 35. 246 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 16 set. 88. p. 9. 136

Radiobrás, que já havia considerado a venda da emissora no fim dos anos 1970, não aceitou a proposta e nem realizou nova concorrência. Assim, a Rádio Contemporânea LTDA, registrada no CNPJ em 25 de maio de 1988, ficou com a emissora, com data de outorga em 25 de agosto daquele ano e frequência em 990 AM. No entanto, meses depois, a Golden Cross transferiu o controle acionário da Rádio Contemporânea LTDA para a IURD, que, em março de 1989, já figurava como proprietária da Rádio Ipanema, transmitindo sua programação em cadeia com a Rádio Copacabana247. Atualmente, a Rádio Ipanema chama-se Rádio Record, alternando a transmissão de músicas populares com cultos religiosos. A Copacabana transmite programação totalmente voltada para os fieis da Igreja Universal. Em 1989, começaram as negociações para a aquisição da TV Record de São Paulo. Afundada em dívidas de US$ 20 milhões e com faturamento de apenas US$ 2,5 milhões, a compra da Record foi o mais ambicioso passo do bispo Edir Macedo visando o crescimento de sua igreja. À época, os proprietários da emissora eram Paulo Machado de Carvalho e Silvio Santos, também dono do SBT. Segundo a Veja, o valor pago pela Record foi de US$ 45 milhões, em negociação conduzida por Laprovita Vieira, ex-deputado federal, também acusado de ser “testa-de-ferro” de Macedo248. Em 1993, seria a vez da TV Rio, de Nilson Fanini, ser adquirida pela IURD, transformada em emissora própria da Rede Record249. Edir Macedo, por sua vez, pareceu ter aprendido com o fracasso de Fanini, ao não transformar a Record em emissora com programação totalmente religiosa:

Como proprietário, Macedo é sensível às demandas do mercado. “Vamos ter uma televisão atraente... Só então partiremos para nossa programação religiosa, que ficará, por enquanto, restrita aos horários da madrugada” (in Rubim 1991:116). De olho na concorrência religiosa, Macedo diminuiu a programação evangélica (mantendo, num primeiro momento, somente seu próprio Despertar da Fé), mas inovou com o programa de debates 25ª hora. (...) A programação destoa da dos demais canais somente de forma discreta: noticiou mais a concentração da IURD no Maracanã do que a visita do Papa, e compensou fartamente o virtual boicote das outras redes sobre a prisão preventiva de Macedo250.

247 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30 mar. 89. p. 3. 248 VEJA. E a compra da Record? Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 249 MACEDO, Edir. Nada a perder. São Paulo: Planeta, 2013. v. 2, p. 45. 250 FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1993. p. 139. 137

Atualmente, 108 emissoras nas 27 unidades da federação integram a RecordTV, a emissora de televisão mais antiga em atividade no Brasil, desde 1953251. Juntamente com a Record, destacam-se no Grupo Record a Record News, canal de televisão all-news inaugurado em 2007; a Rede Família, que retransmite também o conteúdo da IURD TV; o portal de internet R7, concorrente do G1, do Grupo Globo; a Record Internacional, presente em 150 países de todos os continentes, com “9 canais exclusivos de distribuição de sinal digital via satélite e 17 emissoras”252; e o jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, fundado em 1895 e adquirido em 2007. Outro importante veículo da Igreja Universal é a Rede Aleluia, que teve como mola propulsora a aquisição da 105 FM, do Jornal do Brasil. Comprada em 1995, foi transformada em cabeça da Rede Aleluia, formada em 1998. Atualmente, a rede, com sede em São Paulo desde 2002, conta com 64 emissoras, próprias ou afiliadas, cobrindo 75% do território nacional253.

Figura 19 – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o bispo Edir Macedo, apertando o botão que levaria ao ar a Record News, em 2007. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República.

Fonte: http://noticiasdatv.uol.com.br/media/_versions/_versions/lula_edir_macedo_record_news_2_free_big_fixed_big.jpg

251 RECORD TV. Por dentro das emissoras da rede. Disponível em http://recordtv.r7.com/emissoras- record/record-pelo-brasil-afora/>. Acesso em: 04 out. 2017. 252 RECORD INTERNACIONAL. Conheça a empresa. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 253 REDE ALELUIA. Sobre a Rede. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 138

I.II Rede Boas Novas

A Rede Boas Novas, ligada à Assembleia de Deus (CGADB), teve início em 1993, quando Samuel Câmara, líder da denominação no Amazonas, adquiriu a Rede Brasil Norte de Manaus por US$ 3,25 milhões de dólares, mantendo a sigla RBN. Revezou sua programação entre a Rede Manchete e a CNT até 1999, quando passou a ser totalmente voltada para o público evangélico. Apesar de pertencer à Assembleia de Deus, a Boas Novas também transmitiu programas da Igreja Mundial do Poder de Deus – de quem cobra uma dívida de R$ 14 milhões –254, da Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus, e da Rede Gênesis, pertencente à Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, de Goiânia, com quem passou a compartilhar a programação em outubro de 2016255. Mesmo se autointitulando “a maior e melhor TV cristã do Brasil”, a Boas Novas vem passando por diversas instabilidades ao longo dos anos, com a perda de afiliadas, processos trabalhistas e irregularidades na operação de algumas de suas emissoras, além de problemas técnicos, que ocasionaram falhas na transmissão de seu sinal.

Figura 20 – Pastor Samuel Câmara, em anúncio da Boas Novas.

Fonte: http://tvmana1.com/imagens/slide_rede-boas-novas-voz-ad.jpg

254 ÉPOCA. Apóstolo, as novas não são boas: Valdemiro deve R$14 mi para Boas Novas. Disponível em http://colunas.revistaepoca.globo.com/felipepatury/2013/03/17/apostolo-as-novas-nao-sao-boas/>. Acesso em: 04 out. 2017. 255 METROPOLIS. TV de Bispo Rodovalho fundirá programação com Assembleia de Deus. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 139

A Boas Novas está presente em 23 capitais, com cobertura em mais de 220 cidades do Brasil256. Não existem, no entanto, fontes confiáveis relativas à audiência da rede, nem de suas emissoras de rádio. Apesar de ser ligada à mais importante denominação religiosa do Brasil, a Assembleia de Deus, a ausência de informações sobre a emissora e o baixo destaque em Manaus e Belém, duas de suas importantes praças, confirmam o mau desempenho do canal. Neste contexto, o maior destaque fica para Samuel Câmara e sua família: Samuel candidatou-se diversas vezes à presidência da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), sendo derrotado pelo pastor José Wellington Bezerra, que comandou a CGADB por quase 30 anos, e por seu filho, José Wellington Bezerra Júnior, eleito em 2017257. O irmão de Samuel, Silas Câmara, é deputado federal em 5º mandato pelo PRB do Amazonas. Sua esposa, Antônia Lúcia, foi deputada federal pelo PSC do Acre entre 2011 e 2015.

I.III Rádio Melodia

Sobre a Rádio Melodia, ressaltamos questões peculiares envolvendo informações a respeito da concessão. Em 28 de junho de 2016, fizemos a primeira consulta ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), através do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC) da Controladoria Geral da União (CGU). Em 05 de julho, a solicitação foi respondida:

Prezado Senhor,

Em resposta ao seu pedido de informação de nº 53850001118201686, a respeito de “Solicito, para fins acadêmicos, informações acerca da outorga e renovações de concessão para a Radio Melodia LTDA, com frequência em 97,5 FM Rio de Janeiro, com detalhamento das datas.”, informamos o seguinte:

1.Consultamos a frequência 97,5 na tabela de canalização FM da Anatel, e verificamos que corresponde ao canal 248-ver anexo.

2.Em seguida, consultamos os serviços e canais de radiodifusão sonora em FM da localidade de Rio de Janeiro/RJ, mas não consta serviço deferido para a localidade nesse canal.

256 BOAS NOVAS. Institucional. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 257 WEB GOSPEL. José Wellington Jr. é empossado na presidência da CGADB; Samuel Câmara anuncia que recorrerá na Justiça. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 140

Caso entenda que a sua resposta não foi completamente atendida, você pode dirigir recurso à Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica no prazo de 10 dias, a contar do recebimento desta resposta.

Atenciosamente, Departamento de Outorga de Serviços de Comunicação Eletrônica-DEOC Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica-SCE MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INOVAÇÕES E COMUNICAÇÕES - -MCTIC

Em 6 de outubro, realizamos nova solicitação ao MCTIC, corrigindo a informação da cidade de outorga da concessão, e a resposta demorou pouco mais de 1:30h:

Prezado Senhor,

Em resposta ao pedido de informação protocolizado com o nº 53850001437201691, que diz: "Solicito, para fins acadêmicos, informações acerca da outorga e renovações de concessão para a Radio Melodia LTDA, com frequência em 97,5 FM, com outorga na cidade Petrópolis/RJ, com detalhamento das datas.", informamos que:

Reiteramos todas as informações prestadas no protocolo nº 53850001118201686, por ter o mesmo teor desta demanda.

O Ministério agradece o seu contato.

Atenciosamente,

Serviço de Informações ao Cidadão - SIC Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC)

Apenas na terceira solicitação, protocolada em 05 de janeiro de 2017, obtivemos sucesso, após uma semana aguardando a resposta. A permissão para a Organização de Emissoras Integradas de Radiodifusão – Rádio Melodia LTDA operar a frequência 97,3 FM, em Petrópolis, foi outorgada através da Portaria nº 782, de 2 de agosto de 1977, do ministro das Comunicações Euclides Quandt de Oliveira, publicada no Diário Oficial da União do dia seguinte. A Rádio Melodia foi adquirida pelo empresário paulista Oliveira Francisco da Silva, mais conhecido por Francisco Silva, dono do laboratório que produzia o popular composto hepático Atalaia Jurubeba. Nos anos 1960, Silva já havia apresentado programas evangélicos em rádios AM, até que em 1986 comprou a emissora, transformando-a na primeira FM evangélica do Brasil258. Anteriormente, já havia sido um dos proprietários da Rádio Copacabana, adquirida pela Igreja Universal.

258 A Evangélica FM, do Recife, reivindica para si o título de primeira FM evangélica do Brasil, com operações iniciadas em setembro de 1985. Fonte: EVANGÉLICA FM. A rádio. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 141

A Melodia rapidamente popularizou-se, devido a dois grandes fatores. O primeiro, pelo fato de operar em potência máxima de 100 kW, com transmissores instalados em uma montanha de 1.520 metros de altitude. Devido a isso, a Melodia pode ser sintonizada em quase todo o estado do Rio, em especial na Baixada Fluminense, e em cidades dos estados vizinhos de São Paulo e Minas Gerais. O segundo fator foi o preenchimento de um nicho do mercado até então desocupado. Os programas e rádios evangélicos concentravam-se no AM, de grande alcance geográfico devido às suas características técnicas, mas de baixa qualidade sonora, suscetível aos ruídos estáticos e interferências diversas. Mesmo em sinal FM, levando em consideração sua capacidade de geração de sinal, a Rádio Melodia rapidamente se consolidou no segmento evangélico, com maior penetração nos grupos pentecostais, desde então disputando a liderança geral de audiência. Constituindo-se como importante veículo de comunicação, a concessão de emissora de Francisco Silva foi renovada em 29 de setembro de 1988, a poucos dias da promulgação da Constituição Federal, através da Portaria nº 437, pelo ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães, publicada no Diário Oficial da União em 30 de setembro do mesmo ano. Nas eleições de 1990, Francisco Silva foi eleito deputado federal pelo PDC fluminense, com 40.721 votos. Em 1994, foi reeleito o deputado federal mais votado do estado, com 141.880 votos, desta vez pelo PP. Quatro anos depois, recebeu quase 90 mil votos, reeleito pelo PPB. Sendo o principal veículo evangélico do Rio de Janeiro e um dos mais importantes do país, vários políticos utilizaram o espaço da Melodia para obter ganhos eleitorais. Os mais notórios, além do próprio Francisco Silva, são o ex-governador Anthony Garotinho, sua esposa e também ex-governadora Rosinha Garotinho, sua filha Clarissa Garotinho, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, e Théo Silva e Fábio Silva, filhos do proprietário da emissora. Garotinho foi convertido ao protestantismo após um acidente de carro durante a campanha para o governo do estado em 1994, quando foi derrotado no 2º turno. Foi eleito governador em 1998, candidatando-se sem sucesso à Presidência da República em 2002, mas elegendo como sucessora sua esposa Rosângela Matheus (Rosinha Garotinho). Eduardo Cunha, que havia sido presidente da TELERJ durante o governo de Fernando Collor e secretário estadual de Habitação durante a gestão de Anthony Garotinho, foi candidato a deputado estadual pelo PPB, em dobradinha com Francisco Silva. Foi eleito suplente, assumindo o mandato a partir de 2001. No ano seguinte, foi eleito deputado federal 142

com 101.495 votos, após Silva manifestar o desejo de não renovar o mandato, passando a ser presença constante na programação da emissora, contando até mesmo com programa próprio. No ano de 2015, após ser eleito para seu quarto mandato consecutivo com 232 mil votos, Cunha foi escolhido presidente da Câmara dos Deputados, quando foi um dos articuladores do impeachment da presidente . Em julho de 2016, devido às pressões pelos desdobramentos da Operação Lava-Jato, Cunha renunciou à presidência da Câmara, sendo cassado em setembro do mesmo ano, por 450 votos a 10. No mês seguinte, foi preso pela Polícia Federal259. Clarissa Garotinho, juntamente com Fábio Silva e Théo Silva, também colheram frutos eleitorais da audiência da Melodia. Fábio foi eleito deputado estadual em 2002, em dupla com Eduardo Cunha, com quase 49 mil votos. Em 2006 foi reeleito pelo PMDB, com 45.957 votos, e em 2010, pelo PR, com 47.939 votos. Em 2014, de volta ao PMDB, alcançou 82.168 votos.

Figura 21 – Francisco Silva, recentemente falecido, e seu filho Fábio Silva, deputado estadual pelo Rio de Janeiro.

Fonte: https://static.cdn.pleno.news/2017/10/francisco2.png

Seu irmão, Théo Silva, foi eleito vereador na cidade do Rio em 2004, pelo PMDB, alcançando quase 22 mil votos. Nas eleições seguintes, Théo abriu mão da reeleição para que Clarissa pudesse concorrer ao cargo, sendo esta eleita com 42 mil votos. Em 2010, após rompimento político entre Anthony Garotinho e Francisco Silva no decorrer do processo eleitoral, Clarissa concorreu com Fábio Silva, também pelo PR, obtendo 118.863 votos. No

259 LOPES, Guilherme Esteves Galvão. Eduardo Cunha, a bancada evangélica e o impeachment de Dilma Rousseff. Disponível em . Acesso em: 22 set. 2017. 143

pleito de 2014, foi eleita deputada federal, sendo a segunda candidata mais votada do estado, com 335 mil votos. Em maio de 2017, segundo pesquisa Kantar Ibope divulgada pelo portal Tudo Rádio, a Melodia liderava a audiência das rádios do Rio de Janeiro, com 225 mil ouvintes por minuto no horário de meia-noite às 5h, tanto em FM quanto pela internet260. E ainda de acordo com o portal Radios.com.br, no mês de setembro de 2017 a Melodia possuía 104 mil acessos através da internet, sendo a 5ª mais ouvida do estado do Rio entre as AM e FM261.

I.IV Rádio El-Shadai (93 FM)

A Rádio Mundo Jovem LTDA, com frequência em 93,3 FM e outorga na cidade do Rio de Janeiro, obteve sua concessão através da Portaria nº 190, de 20 de outubro de 1983, pelo ministro Haroldo Corrêa de Matos, titular do Ministério das Comunicações durante o governo do General João Batista Figueiredo. A Portaria foi publicada no Diário Oficial da União em 27 de outubro do mesmo ano. No entanto, existem os registros de duas emissoras com o mesmo nome no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). O primeiro é da Radio Mundo Jovem LTDA, com data de abertura em 15 de outubro de 1980, três anos antes da Portaria de concessão, em um endereço de Vila Isabel. A empresa está com o status de “baixada”, desde o dia 25 de maio de 1988. O segundo registro é o da Rádio Mundo Jovem S/S LTDA, com data de abertura em 14 de abril de 1983, e endereço em São Cristóvão. Os sócios-proprietários da emissora Nacional FM262 eram o deputado Arolde de Oliveira e Edson Dominguez. Oliveira já havia ocupado importantes cargos, no Brasil e no exterior, na área de telecomunicações. Dominguez teve seu nome envolvido em escândalos durante o governo de Fernando Collor de Mello, desligando-se da emissora ao vender suas ações para seu sócio. Em 1992, a Nacional FM se transformaria na El Shadai, ou simplesmente 93 FM, em alusão à sua frequência, com programação totalmente voltada para o público evangélico. Com

260 TUDORADIO.COM. Exclusivo: após a greve, Super Rádio Tupi dispara na audiência FM do Rio de Janeiro. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 261 RADIOS.COM.BR. Rádios AM e FM mais acessadas por estados. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 262 Existiu outra Nacional FM, na frequência de 100,5, de propriedade da Radiobrás. 144

torres instaladas no Morro do Sumaré, no Maciço da Tijuca, a 753 metros de altitude, a abrangência geográfica da 93 FM era menor que sua concorrente direta, a Rádio Melodia. Entretanto, a emissora diferenciou-se por estar voltada ao público evangélico tradicional e de classe média, abrindo espaço também para igrejas pentecostais e neopentecostais em sua programação. Diferentemente da Melodia, a rádio de Arolde de Oliveira cedia espaço preferencialmente aos músicos de sua gravadora, a MK Publicitá (atual MK Music), que se diferenciava pela qualidade técnica de suas gravações e pela presença também na televisão, a partir dos anos 1990, através do programa Conexão Gospel, apresentado pela cantora Marina de Oliveira, sócia da MK e filha de Oliveira, e veiculado pela CNT e Rede Manchete. Após a transformação da Nacional FM em El-Shadai, Arolde de Oliveira aumentou sua votação para deputado federal, dos 33 mil votos obtidos em 1990, para quase 50 mil votos nas eleições de 1994, ainda pelo PFL. O empresário foi reeleito para sucessivos mandatos pelo PFL: em 1998, conquistou 72 mil votos; em 2002, teve 91.798 votos; em 2006, 61.440 votos; em 2010, após o PFL ter mudado seu nome para Democratas (DEM), recebeu 99.457 votos. Nas eleições de 2014, já pelo PSD, obteve 55.380 votos.

Figura 22 – Pastor Everaldo Pereira, liderança da Assembleia de Deus (CONAMAD), e os deputados Jair Bolsonaro, Eduardo Cunha, Arolde de Oliveira e Sóstenes Cavalcante. Foto: Marcos Arcoverde/Estadão.

Fonte: https://ogimg.infoglobo.com.br/in/17276420-426-759/FT1086A/420/2015-842627234- 2015082136256.jpg_20150821.jpg.pagespeed.ce.EiNUmo_Ngm.jpg

Em 2017, figuravam no quadro de sócios Yvelise Assis Vieira de Oliveira e Marina de Oliveira Menezes, esposa e filha de Arolde de Oliveira, respectivamente. Segundo pesquisa Kantar IBOPE publicada no site Tudorádio.com, em setembro de 2017 a 93 FM era a 5ª colocada geral e a 2ª evangélica mais ouvida do Rio de Janeiro, superando 100 mil ouvintes 145

por minuto no horário de 05h até a meia-noite263. Além disso, a emissora também obteve, através do portal Radios.com.br, 22 mil acessos, sendo a 2ª rádio evangélica mais ouvida, atrás apenas da Melodia, e a 11ª do estado do Rio264.

I.V Outros grupos evangélicos de mídia

Trataremos, de forma sucinta, de outros importantes grupos evangélicos de mídia presentes no Brasil. O primeiro deles é um que já não existe: a VINDE, acrônimo de Visão Nacional de Evangelização, ousado projeto de comunicação dos anos 1980 e 1990, fundado pelo pastor presbiteriano Caio Fábio D’Araújo Filho, no Rio de Janeiro. Caio Fábio foi dos mais importantes pregadores brasileiros entre as décadas de 1970 e 1990, ganhando notoriedade pela proximidade com figuras políticas, artistas e intelectuais.

Figura 23 – Caio Fábio, Luiz Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola, em 1998.

Fonte: https://caiofabio.net/Arquivo/Image/antigas/Caio_lula.jpg

Foi também um dos organizadores da Associação Evangélica Brasileira (AEVB), no início dos anos 1990. A VINDE transmitia conteúdos via satélite, sendo recepcionada por antenas parabólicas em todo o Brasil. Em 1996, a organização passou a operar a VINDE TV, através da operadora a cabo TVA, do Rio de Janeiro. Surgiu também a revista VINDE, de

263 TUDORÁDIO.COM. Exclusivo: Acirra disputa entre Rádio Melodia e FM O Dia. Super Rádio Tupi segue em disparada. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 264 RADIOS.COM.BR. Rádios AM e FM mais acessadas por estados. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 146

circulação nacional, além da Fábrica de Esperança, grandioso projeto social instalado em Acari, uma das comunidades com os piores indicadores sociais do Rio de Janeiro. Caio Fábio caiu em desgraça em 1998, quando envolveu-se na polêmica do Dossiê Cayman, um documento falso que provaria a existência de contas e empresas do então presidente Fernando Henrique Cardoso em paraísos fiscais. Pouco depois, teve problemas conjugais, divorciando-se em seguida. Em meses, a VINDE desapareceu: a revista foi vendida, a TV saiu do ar, e o prédio da Fábrica de Esperança foi implodido, dando lugar a um hospital público. Entre veículos existentes está a cadeia de rádios da Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA), fundada pelo missionário David Miranda, em São Paulo, em 1962. Segundo seu site, a igreja possui 22 mil templos no Brasil e em todo mundo265. Vinte anos depois da criação de sua denominação, Miranda comprou a Rádio Universo, formando assim a Rádio Deus é Amor.

Figura 24 – O missionário David Miranda, já falecido, pregava e transmitia seus programas de rádio de dentro de uma cabine blindada, após sofrer atentado a tiros em 1992.

Fonte: http://i0.statig.com.br/bancodeimagens/16/q7/ft/16q7ft8zrvv31xn2hunmlhf7u.jpg

Historicamente, a IPDA é uma denominação extremamente rígida no que diz respeito ao comportamento de seus membros, mantendo distância, por exemplo, do envolvimento político-eleitoral. Neste sentido, a estratégia da igreja foi a compra ou arrendamento de emissoras pequenas e médias, unindo-as sob a rede que transmitia o programa Voz da Libertação, com alcance internacional a partir de ondas curtas, oferecendo também emissões em espanhol.

265 IGREJA PENTECOSTAL DEUS É AMOR. Home. Disponível em . Acesso em: 05 out. 2017. 147

Em 1996, surgiram duas importantes redes evangélicas: a Novo Tempo e a Gospel. A primeira, a TV Novo Tempo, pertence à Igreja Adventista do Sétimo Dia, tendo origem em Nova Friburgo, no estado do Rio, e sede na cidade paulista de Jacareí. O canal de TV deu origem à Rede Novo Tempo de Comunicação, que abrange também emissoras de rádios pelo país, presente em quase todos os estados do Brasil através de TV paga e canais abertos, além de contar com cobertura nacional via satélite. A Rede Gospel, ligada à Igreja Apostólica Renascer em Cristo, foi fundada na cidade de São Paulo. Liderada pelo apóstolo Estevam Hernandes e sua esposa, bispa Sonia Hernandes, a Renascer em Cristo destaca-se pela realização de eventos de expressão no meio evangélico, como a Marcha para Jesus e o SOS da Vida, que contam com grande divulgação e cobertura por parte da Rede Gospel, que possui programação aberta em cidades como Rio de Janeiro, além de recepção via antenas parabólicas.

Figura 25 – Apóstolo Estevam Hernandes, fundador da Igreja Renascer em Cristo, na torre da Rede Gospel, na Avenida Paulista, em São Paulo.

Fonte: http://www.redegospel.tv.br/tv/images/noticia02-img02.jpg

No entanto, a primeira investida da Renascer foi na extinta Rede Manchete, ainda no início dos anos 1990, quando alugou vários horários na emissora do Grupo Bloch. No fim da década, momentos antes da falência da Manchete, a Renascer arrendou a emissora, passando transmitir conteúdos da Rede Gospel, incluindo a sigla RGC, de Rede Gospel de Comunicação, logo abaixo do conhecido “M” estilizado da Manchete. A Igreja Renascer em Cristo assumiu permanentemente algumas emissoras do Grupo Bloch, como a rádio Manchete FM, do Rio de Janeiro, transformada em Manchete Gospel. No ano de 1997, foi fundada a Rede Gênesis, da Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, de Brasília, comandada pelo apóstolo Robson Rodovalho. Possui alcance nacional a 148

partir de emissões via satélite, estando presente também em quase todas as operadoras de TV por assinatura. Em algumas capitais, como Fortaleza, Brasília, Goiânia, Cuiabá e Belo Horizonte, a Rede Gênesis conta com canais abertos266. No mesmo ano de fundação da Rede Gênesis, foi ao ar a emissora que daria origem à Rede Super, da Igreja Batista da Lagoinha, sediada em Belo Horizonte. A Igreja Batista da Lagoinha é um dos mais conhecidos templos da Convenção Batista Nacional (CBN). A Rede Super era a antiga Rede de Televisão Comunitária, fundada em 1997 e vendida cinco anos depois para a Igreja da Lagoinha267. A exemplo das outras emissoras mencionadas, possui alcance nacional via satélite, sendo sintonizada em sinal aberto, sobretudo, no estado de Minas Gerais, em capitais como Curitiba, e outras importantes cidades através de operadoras de TV por assinatura, totalizando 225 municípios em 16 unidades da federação268. Em 1999, seria a vez da Rede Internacional de Televisão, ou simplesmente RIT, do missionário R. R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus. É um dos casos de maior sucesso no meio evangélico: possui sinal aberto na maior parte das capitais do Brasil, além de contar com uma operadora própria de TV por assinatura, a Nossa TV, oferecendo variedade de canais religiosos, realizando também cobertura esportiva e jornalística. Sua cobertura abrange todo o território nacional, através de satélite, e 70% do planeta, oferecendo informações detalhadas sobre seu público: 60,29% de mulheres, 60% de pessoas com 60 anos de idade ou mais, além de 69% de audiência da classe C e 21,79% das classes A e B, com “cobertura geopolítica de 40,28% da população brasileira, o que representa cerca de 82 milhões de pessoas em todo o país, segundo a ANATEL”269. Mesmo contando com emissoras próprias, a Igreja da Graça se faz presente em diversos horários alugados em grandes redes do Brasil, como a RedeTV! e a Rede Bandeirantes, com destaque para o programa Show da Fé, transmitido em horário nobre e em rede nacional. Além da RIT, a Nossa Rádio está presente em diversas capitais brasileiras, com programação musical evangélica eclética, que divide espaço com pregações do fundador da igreja.

266 REDE GÊNESIS. Cobertura. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 267 REDE SUPER. IBL na gestão. Disponível em . Acesso em: 05 out. 2017. 268 REDE SUPER. Comercial. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2017. 269 RIT. Área Comercial. Disponível em http://www.rittv.com.br/comercial/index . Acesso em: 05 out. 2017. 149

Figura 26 – O missionário R. R. Soares, em transmissão dublada em inglês de seu programa Show da Fé.

Fonte: https://i.ytimg.com/vi/KEZSmglzxso/hqdefault.jpg

Por último, falaremos dos casos da Igreja Mundial do Poder de Deus e da Igreja Plenitude do Trono de Deus. Ambas nos chamam a atenção: a Igreja Plenitude é uma dissidência da Igreja Mundial, que por sua vez saiu da Igreja Universal, que teve origem na Igreja de Nova Vida. Liderada pelo apóstolo Valdemiro Santiago, a Mundial é dona da Rede Mundial, que transmitia seu conteúdo originalmente através de TV paga na cidade de São Paulo. Sua estratégia é semelhante à da TV Plenitude, da igreja liderada pelo apóstolo Agenor Duque: arrendamento de emissoras de pequeno e médio porte, e aluguel de horários nas redes maiores. Assim, ambos disputam presença em emissoras como CNT, RedeTV!, TVCi, RBI, Rede Bandeirantes, Rede 21 e Ideal TV, contando também com a concorrência da Igreja da Graça e da Igreja Universal do Reino de Deus nestes espaços. Ambas, TV Plenitude e Rede Mundial, também transmitem conteúdo pela internet, assim como a quase totalidade das emissoras contempladas neste apêndice.