Entre O Industrial Da Arte E O Artista Ingênuo
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39º Encontro Anual da Anpocs GT02 Arte e cultura nas sociedades contemporâneas Francisco Brennand: entre o industrial da arte e o artista ingênuo Eduardo Dimitrov Pós-doutorando IEB/USP Bolsista registrado no processo 2014/17656-6, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) em convênio com a CAPES. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES. Francisco Brennand é um dos artistas pernambucanos mais reconhecidos local e nacionalmente. Para além de ter construído seu próprio museu, a Oficina Brennand, que se tornou um dos pontos turísticos mais visitados na cidade, é o autor de obras públicas dispostas em pontos importantes da cidade do Recife como o Parque das Esculturas Francisco Brennand localizado em um recife em frente ao Marco Zero que, por sua vez, recebeu outra obra de Cícero Dias, estabelecendo uma especie de equivalência entre seu nome e o do mais consagrado artista pernambucano. Conseguiu circular por instâncias nacionais de legitimação como poucos conterrâneos. Participou de edições da Bienal de São Paulo, expôs em diferentes galerias paulistas e cariocas, obteve uma exposição retrospectiva na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Brennand também atua no ramo industrial, produzindo revestimentos cerâmicos muito singulares e difundidos na paisagem urbana do Recife. Ao andar pela capital pernambucana, não é raro se deparar com um de seus azulejos facilmente reconhecíveis para olhos minimamente treinados. Esta comunicação pretende reconstruir, de forma breve, a trajetória deste artista com a intenção de lançar luz sobre as conexões entre arte, indústria, mercado e turismo, bem como a relação entre centro e periferia presente tanto na produção, quanto na recepção de suas obras. Brennand é um artista pernambucano não porque nasceu no estado ou por que lá vive, mas pelo fato de que não é possível compreender sua produção artística sem levar em consideração o contexto social de Pernambuco e a posição que o Estado ocupou, nas últimas décadas, no sistema artístico brasileiro. Ricardo Brennand, pai de Francisco, teve grande visão de negócio quando, em 1917, vislumbrando o declínio da economia do açúcar, transferiu seu capital agrícola para o setor industrial. Desfez-se da usina e construiu uma fábrica de cerâmica que, inicialmente produzia telhas e tijolos. O empreendimento foi mais do que acertado. Até hoje, a família Brennand controla diferentes indústrias em setores que vão da cerâmica, cimento e vidro, até hidrelétricas, parques eólicos e hotéis. Antes de se desviar para o mundo das artes, Francisco Brennand estava sendo treinado, assim como seus irmãos, para ser um gestor dos negócios da família que hoje ocupa um lugar especial entre as maiores fortunais nacionais. Francisco Brennand conta que seu pai, um colecionador de arte, incumbiu-o da tarefa de cuidar dos quadros da família. Foi assim que o jovem Francisco passou a frequentar a casa de Álvaro Amorim, restaurador, professor de pintura e fundador da Escola de Belas Artes de Pernambuco. Francisco, interessando-se pelo ofício, passou a tomar aulas com ele e com outro fundador da Escola, Murillo La Greca. La Greca era um dos mais importantes pintores atuantes em Pernambuco. Com formação em Roma, La Greca chegou a ser premiado com medalha de prata no Salão Nacional de Belas Artes, em 1927, no Rio de Janeiro, com a tela histórica Último Fanático de Canudos (imagem 2). Já em 1947 e 1948, Brennand venceu seus mestres locais nos dois salões anuais de pintura promovidos pelo governo do Estado demonstrando um total controle das técnicas de pintura valorizadas pelos seus mestres. Seu Autorretrato Como Cardeal Inquisidor (imagem 3) não traz inovações pictóricas se comparado com os trabalhos de Murillo La Greca. Para além da brincadeira de se retratar como um inquisidor, as técnicas utilizadas estavam de acordo com os padrões daquilo que, no Recife de então, costumava-se chamar de pintura “acadêmica”, em referência a pintura valorizada pelos professores da Escola de Belas Artes de Pernambuco. Foi também nesse ano de 1948 que Francisco se aproxima de Cícero Dias. Amigo de Ricardo Brennand, Cícero propõe a Francisco que viaje a Paris para continuar seus estudos de pintura. Por conta de problemas de saúde de sua esposa Débora, essa estadia foi feita em três tempos entre 1949 e 1952. Francisco, além de herdar a rede de relações de Cícero Dias, teve aulas com André Lothe, frequentou o atelier de Fernand Léger, e estabeleceu-se no imóvel que antes havia abrigado o atelier de Francis Picabia. Ao término de sua segunda estadia, e depois de retornar ao Brasil, Brennand parte para a Itália onde visita museus e faz um estágio numa pequena fábrica especializada em produzir majólicas, segundo processos artesanais do século XVI. Na viagem de volta ao Brasil, passa novamente por Paris, onde conhece o pintor Balthus, uma referência importante para seu trabalho. Ao regressar, após essas viagens de formação financiadas pela fortuna da família, a pintura de Brennand alterou-se completamente. Em 1953, já explorava motivos florais em vasos e placas cerâmicas. As frutas e vegetais, que rapidamente foram classificados pela crítica como elementos regionais, tornaram-se temas prediletos. No quadro que apresentou na Bienal de 1959, incorporado à coleção de Assis Chateaubriand, as frutas aparecem dispostas em uma gamela, nos moldes de uma natureza morta (imagem 5). Certamente esta tela desagradaria La Greca, assim como as pinceladas simples e as cores transparentes do quadro cerâmico Bananas, de 1958 (imagem 6). Brennand diz, ainda hoje, que o que lhe interessava não era propriamente retratar frutas regionais, mas o fato das formas vegetais permitirem ampliações sem que se transformassem em “monstros”, tal como acontece com as figuras humanas. Os vegetais guardariam semelhanças anatômicas com os homens, com a vantagem de serem facilmente ampliados. Essa sua participação na Bienal de 1959 trouxe-lhe constrangimento e prestígio. Seus trabalhos foram colocados junto aos dos pintores ditos primitivos. Ladjane Bandeira noticia o fato sem apegar-se muito ao “erro”: Francisco Brennand está agradando em São Paulo com os trabalhos que enviou para a V Bienal. Mereceu elogios de Malraux, que, segundo dizem os jornais paulistas, só gostou dos primitivos. Desse modo, Brennand que figurou entre os primitivos assim está sendo considerado, erroneamente, pelo escritor e ministro francês (BANDEIRA, 1959a). Vinte dias depois, o suposto equívoco torna-se apenas elogio na coluna de Ladjane que anunciava, pela segunda vez, a exposição de Brennand: “Continua aberta ao público de São Paulo na galeria das Folhas, a exposição dos trabalhos de Francisco Brennand, ultimamente elogiado por Malraux, na V Bienal” (BANDEIRA, 1959b). Entretanto durante a entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em 1998, Brennand relembra o ocorrido: Em 1959, quando participei da Bienal de São Paulo, os paulistas inventaram que não havia pintores, e fizeram uma mostra só em preto-e- branco. Só havia gravadores e desenhistas. Colocaram-me, então, no meio dos primitivos. Acontece que André Malraux, então Ministro da Cultura do presidente Charles de Gaulle, em visita meteórica à Bienal, parou exatamente diante de minhas telas e exclamou: “Magníficos e puros.” Pode ser que Malraux tenha incorrido num erro, porque, afinal, para os franceses, tudo o que não é francês é excêntrico (ALVES FILHO, 1998). Em outra entrevista, esta de 2002 ao jornal Folha de S. Paulo, Brennand também comenta o caso usando praticamente as mesmas palavras. Apenas o final é ligeiramente diferente, enfatizando o suposto erro da curadoria e da interpretação de Malraux: “Faço a indagação: será que até Malraux se enganou e pensou que minha pintura era primitiva? Tudo é possível” (2002). Assim, a produção mais ousada de Brennand é tida, tanto pelos organizadores da V Bienal quanto pelo Ministro da Cultura Francês, como primitiva, o que abre a reflexão para qual o papel possível de ser desempenhado por um artista que esteja fora dos reconhecidos centros de produção artística. Uma dessas composições vegetais pode ser vista no painel executado para o escritório da Bacardi, na Flórida (imagem 12). Em 1962, a empresa, fugindo da Revolução Cubana de 1959, instalou sua sede em Miami, e veio ao Recife na intenção de construir uma nova destilaria. Seus representantes procuraram os Brennand para, entre outros negócios, comprar garrafas de vidro que a família produzia. A aproximação das duas corporações levou Francisco a executar o mural no prédio da sede da empresa em Miami, assinado pelo arquiteto de origem cubana Enrique Gutierrez. Diz o artista: A área total do mural chegava a mil metros quadrados. Não queria fazer nada abstrato. Pensei em dividir o espaço em pequenas unidades menores, à maneira de Giotto, e contar uma história. Mas tive medo de parecer folclórico. Fiz então um grande plano com motivos florais, com caules, raízes e flores entrelaçadas. Nisso, talvez estivesse influenciado por Léger, pois admirava as suas naturezas mortas. Só fui ver esse mural muitos anos depois, em 1975. Ele não destoa da paisagem. Soube, com grande alegria, que a prefeitura de Miami tinha instituído um prêmio para as melhores construções da cidade, e o edifício da Bacardi com o meu mural havia sido vencedor na categoria edifício de escritórios (BRENNAND, 2002). Desse modo, o seu painel com temas florais agigantados, pintados em azul, com fundo em branco, inaugurado em 1963, apresentava uma espécie de versão das mesmas ilustrações que vinha fazendo na revista Nordeste (imagens 10 e 11). O fundo branco e o luminoso azul fizeram com que o prédio ficasse conhecido em Miami como o “The blue- and-white tower”. Segundo a imprensa estadunidense, o prédio de oito andares representa um símbolo da influência cubana na arquitetura da cidade com seus azulejos “espanhóis” [Spanish tiles] azuis e brancos. Allan Shulman, professor de arquitetura da Universidade de Miami afirmou: “a marca de Miami é sua identidade como uma cidade tropical.