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Universidade Do Estado Do Rio De Janeiro Centro De Educação E Humanidades Instituto De Psicologia

Universidade Do Estado Do Rio De Janeiro Centro De Educação E Humanidades Instituto De Psicologia

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia

Davi Cavalcante Roque da Silva

Sociedade de controle e medicalização na educação: cartografando as práticas de um psicólogo nas escolas de uma cidade do interior do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2013 Davi Cavalcante Roque da Silva

Sociedade de controle e medicalização na educação: cartografando as práticas de um psicólogo nas escolas de uma cidade do interior do Rio de Janeiro

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.ª Dra. Marisa Lopes da Rocha

Rio de Janeiro 2013

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

S586 Silva, Davi Cavalcante Roque da. Sociedade de controle e medicalização na educação: cartografando as práticas de um psicólogo nas escolas de uma cidade do interior do Rio de Janeiro / Davi Cavalcante Roque da Silva. – 2013. 277 f.

Orientadora: Marisa Lopes da Rocha. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.

1. Psicologia educacional – Teses. 2. Controle social – Teses. 3. Eugenia – Teses. 4. Medicalização – Teses. I. Rocha, Marisa Lopes da. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. IV. Título.

es CDU 37.015.3:613.94

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação.

______Assinatura Data

Davi Cavalcante Roque da Silva

Sociedade de controle e medicalização na educação: cartografando as práticas de um psicólogo nas escolas de uma cidade do interior do Rio de Janeiro

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 12 de março de 2013.

Banca Examinadora: Prof.ª Dra. Marisa Lopes da Rocha (Orientadora) Instituto de Psicologia da UERJ

Prof. Dr. Bruno Rêgo Deusdará Rodrigues Instituto de Letras da UERJ

Prof.ª Dra. Heliana Conde de Barros Rodrigues Instituto de Psicologia da UERJ

Prof.ª Dra. Katia Faria de Aguiar Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro 2013 DEDICATÓRIA

Para a minha esposa Simone, e filhos: Bernardo (6 anos), forte como um urso, e Erico (4 anos), poderoso como uma águia... AGRADECIMENTOS

Meus mais profundos agradecimentos vão para a minha orientadora, Marisa Lopes da Rocha, pela confiança, amizade e paciência diante de minhas dúvidas, conquistas, inquietações, e desabafos sobre as situações de trabalho nas escolas e a produção da dissertação, e ainda pelas conversas duradouras via telefonemas emergenciais de Mendes. Gostaria de agradecer aos grandes professores que aceitaram participar da banca de avaliação do meu trabalho: - Heliana Conde de Barros Rodrigues, Kátia Faria de Aguiar, Bruno Deusdará e Silvana Mendes Lima, e pelas contribuições na avaliação do projeto da dissertação. Às colegas doutorandas Luana, Ângela e Mônica. A todos os colegas de trabalho do CAPSAd de Paracambi, ?técnicos e não-técnicos?, ?especialistas e não-especialistas?, pelas discussões sobre medicalização na Educação e na Saúde. Aos profissionais de todas as escolas de Antares, aos mais questionadores que estiveram ao meu lado lutando por melhores condições de trabalho. Aos grandes amigos, Nilma Pereira da Silva e Ricardo de Souza Protencio. Aos meus pais Norma e Mario, e ao meu irmão Mario Negrini, pela torcida e apoio em todos os sentidos.

Médicos ignorantes, vós não saberíeis o que fazer: Vosso mais alto saber não passa de pura quimera.

Esse remédio, de que o homem vulgar Crê conheceis a virtude admirável, Para o mal que aflige nada tem de salutar; E todo vosso falatório só pode ser ouvido Por um Doente Imaginário Vosso mais alto saber não passa de pura quimera,

Vãos e pouco sábios médicos; Vós não podeis curar, com vosso grande falar em latim A dor que me desespera; Vosso mais alto saber não passa de pura quimera.

Prólogo – O Doente Imaginário

Molière (1873) RESUMO

SILVA, Davi Cavalcante Roque da. Sociedade de controle e medicalização na educação: cartografando as práticas de um psicólogo nas escolas de uma cidade do interior do Rio de Janeiro. 2013. 277 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Esta dissertação baseia-se em uma pesquisa-intervenção realizada em cinco escolas de nível fundamental e infantil, e em uma escola de ensino especial/ atendimento educacional especializado (AEE) de uma cidade de pequeno porte do interior do Rio de Janeiro, na região sul do estado. O presente trabalho situa-se no contexto das discussões sobre as práticas de medicalização na escola-empresa e nas sociedades de controle, e tem como objetivo a investigação da medicalização e a judicialização como exigências que têm moldado um viés predominante médico-assistencialista ao trabalho do psicólogo, concentrando-se em atendimentos individualizados a alunos e famílias nas escolas públicas. O método adotado é o da cartografia (Deleuze & Guattari). Os conceitos de Medicalização (Conrad, Illitch, Szasz) Controle (Deleuze), e o conceito científico-ficcional de Pré-Crime (Dick) são a cluna vertebral do trabalho. A pesquisa de cunho qualitativo utiliza os referenciais teórico-práticos da análise institucional (AI) e dos estudos da filosofia de diferença, de autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guatarri, assim como a contribuição valiosa de estudiosos mais contemporâneos, como Veiga-Neto, Gallo e Marcondes. Os análisadores dos relatórios pré-crime de medicalização do fracasso escolar, da (in)disciplina e da loucura através funcionam como pistas para as passagens dos diagnósticos para as práticas e modos coletivos de subjetivação, contexto mais amplo que nos conduz à visibilidade das questões do trabalho, da saúde no trabalho no magistério, e às plataformas de alianças coletivas entre técnicos (psicólogos) e não-técnicos (professores) para a construção dos processos de desmedicalização e desmedicalização na Educação.

Palavras-chave: Psicologia institucional. Psicologia social. Psicologia educacional. Análise institucional. Educação. Sociedades de controle. Medicalização. Judicialização. ABSTRACT

SILVA, Davi Cavalcante Roque da. Control society and medicalization in education: charting, practices of a school psychologist in na inland city of Rio de Janeiro. 2013. 277 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

This dissertation is based on a intervention-research conducted in five primary and infant schools, and a special education unit / specialized educational services (ESA) of a small town in the interior of Rio de Janeiro, in the southern the state. This work is in the context of discussions about the practices of medicalization in school-enterprise and the societies of control, and aims to investigate the medicalization and judicialization requirements as a bias that have shaped the predominant medical-welfare work of the psychologist, focusing on individualized care to students and families in public schools. The method adopted is that of cartography (Deleuze & Guattari), and throughout the text, three analyzers are used as clues leading to processes. Concepts of medicalization (Conrad, Illitch, Szasz), Control (Deleuze), and the concept of science-fictional Precrime (Dick) are the backbone of the work. The qualitative research uses the theoretical and practical institutional analysis (IA) and studies of philosophy of difference, by authors such as Foucault, Deleuze and Guattari, as well as the valuable contribution of more contemporary scholars, as Veiga-Neto, Gallo and Machado, addressing the issues of educational policy of inclusion, and new ways of doing minority-militants education and institutional work of psychologist in education. The questions refer to the analysis of pre-crime reports on medicalization of school failure, the (in) discipline and madness through the respective analyzers, clues to the passage through and far beyond the diagnosis empire, towards practice and collective modes of subjectivity, the broader context in which leads to the visibility of work issues, health at work in teaching, and platforms for collective alliances between technical professionals (psychologists) and nontechnical (teachers) for the construction of the processes of demedicalization and deinstitutionalization in Education.

Keywords: Institutional psychology. Social psychology. Educational psychology. Institutional analysis. Education. Control Societies. Medicalization. Judicialization. SUMÁRIO

SOBRE DOUTORES, CORONÉIS E OS JUÍZES DA NORMALIDADE

NA ES-COLA. 9 1 OS PRIMEIROS RELATÓRIOS DE MEDICALIZAÇÃO: OS DIAGNÓSTICOS DO CORPO DO ALUNO NA PONTA DO ICEBERG 41 1.1 As Crônicas vão configurando a modulação Escola-Triagem 45 1.1.1 Uma Cidade de Fronteira entre Manicômios e Pupilagens 53 1.1.2 Prontuários, Diagnósticos, Prognósticos, Encaminhamentos em Fileiras do Tipo Caserna ao Posto de Saúde 61 1.1.3 A triagem entre a hiperatividade médica e a testagem neuropsicológica 64 1.1.4 Psicologia e (Psico)pedagogia: Sequência de Encaminhamentos à Neurologista (Po-liclínica) ou ao Neuropsiquiatra (CAPS) 70 1.2 As Crises Intempestivas do Aluno Bruce Banner e as Carteiras. - Escola-Empresa, Triagem e Encaminhamentos. - O Ato Pedagógico e o II Fórum Interse-torial de Antares 73 1.3 Transversalização de forças histórico-político-institucionais movendo a escola para a medicalização 80 1.3.1 O Nascimento dos testes psicológicos 85 1.3.2 Arthur Ramos: psiquiatria, criminologia e educação: uma introdução à psicanálise nas escolas públicas do Rio de Janeiro 90 1.4 De volta para o futuro: do pós-Segunda Guerra à era do aprimoramento cerebral. - Ares de (toxi)cidade na escola 97 2 REINAÇÕES DE TOM SAWYER - OPERAÇÕES DE MEDICALIZAÇÃO E PRÉ-CRIMINALIZAÇÃO DAS CONDUTAS DESORDEIRAS 108 2.1 Dos ritos primários (os primeiros e breves relatórios informais)Dos ritos primários (os primeiros e breves relatórios informais) 111 2.1.1 Escola-empresa e o controle do tempo para os diagnósticos 119 2.1.2 Positivismo e Medicalização: da síndrome ao paradoxo de Munchausen 128 2.2 A Escola cria caso. - Os garotos perdidos na Terra do Nunca Nunca 134 2.3 Tom Sawyer : Agressividade, Carência e Limites 151 2.4 A escola fábrica-do-medo: Tom Sawyer e o Duplo médico-criminológico 164 2.4.1 A escola, a cidadela do caos e seus manuais de fabricação do medo em nós 165 2.4.2 Máquinas escolares de detecção dos maus desejos (ou más intenções) 171 2.4.3 Tecnologia de Triagem de Atributos Futuros (FAST), (in)disciplina e violência na escola e na cidade 174 3 GOVERNAMENTALIDADE EM ANTARES: DOUTORES, CORONÉIS 181 E CLIENTES NA ESCOLA-EMPRESA 3.1 O Burnout e as readaptações - competição, adoecimento e medicalização entre os professores 189 3.2 Alianças entre Práticas Soberanas e Competitividade 193 3.3 Da Soberania às Sociedades de Controle: Coronéis e Clientes 200 3.4 Linhas de Errância de Alice: Anti-Anatomia política entre escola e família 204 3.5 Encaminhar a distorção série-idade para a Escola Especial: inclusão ou exclusão? 211 3.6 Da esquizofrenia, a menina, e o poder grotesco soberano (Jaguadarte) 219 4 PSICÓLOGOS E PROFESSORES NA GRADE: RELATÓRIOS DE DESCON-FIANÇA E BIOPOLÍTICAS DA PARANOIA 229 4.1 Psicólogos e Professores na Grade: Relatórios Recíprocos de Desconfiança e Biopolíticas de Paranoia 229 DOS PLANTÕES INSTITUCIONAIS COMO DISPOSITIVOS 5 CRIADORES DE UMA EDUCAÇÃO MINORITÁRIA E REVOLUCIONÁRIA 263 REFERÊNCIAS 269 9

SOBRE DOUTORES, CORONÉIS E OS JUÍZES DA NORMALIDADE NA ES- COLA.

Crianças, ficção é a verdade dentro da mentira, e a verdade desta ficção é bastante simples: a magia existe. Stephen King

Antares. O nome me encanta e intriga. Como se explica que, nesta região onde outrora foram as reduções jesuíticas, encontra-se uma cidade com nome de estrela e não de santo? Na opinião do Pe. Gerôncio, o velho vigário da Matriz local, a denominação vem possivelmente de terem existido aqui antigamente muitas antas, que vinham beber água no rio, e que a semelhança entre o nome deste lugar e o da estrela da constelação de escorpião é pura coincidência. A explicação não me convence. Acho que por aqui passou ou aqui viveu há mais de cem anos alguém, talvez um estrangeiro, que tinha noções de astronomia. Tenho a impressão que já vivi nesta cidade: o déjà vu. Numa outra vida? Tolice. Nasci no Rio Pardo e lá passei a minha infância e parte da adoles- cência. Erico Veríssimo, Incidente em Antares

Antares é um pouco como Castlerock, pequena cidade fictícia do estado norte- americano do Maine, localidade igualmente de fronteira, ao norte, entre o Canadá (Que- bec) e os Estados Unidos, e inventada pelo escritor Stephen King. A Antares1 das escolas que tenho pesquisado é tão pequena como a Asa Branca, cidade heterônima criada para a novela televisiva Roque Santeiro, cuja primeira versão, filmada na cidade de Vassouras, região sul do Rio de Janeiro, fora censurada em 1975 pela ditadura militar tão logo descobrissem que era baseada em uma peça do autor – O Berço do Herói -, Dias Gomes, já anterior e igualmente vetada pelos censores. A cidade invisível contada nesta dissertação tem a Rodoviária como um espaço raro de coletividades, de encontros. Um dos escassos lugares planos na localidade, pois suas ruas são tão íngremes e os bairros bem distantes entre si. Seus espaços são tão es- treitos que a Câmara Municipal fica inserida na rodoviária. Nela amontoavam-se os estudantes nas entradas e saídas das escolas. Quando King cria Castlerock, imaginamos que ele quer falar de Portland, cidade do Maine onde nasceu, vive e escreve seus livros, e ele sabe da existência de pelo me-

1 O nome da cidade das escolas em estudo é fictício, assim como todos os nomes nesta dissertação: - todas as seis escolas e de todas as pessoas: professores, alunos, famílias e trabalhadores sociais no traba- lho têm heterônimos, isto é, nomes fictícios e, em muitos momentos, utilizados como metáforas para as questões abordadas e análises das relações de poder. 10

nos duas cidades reais com este nome, no Colorado e em Washington D. C. Mas nada têm a ver com a Castlerock de suas estórias. No entanto, se não evoca Portland em suas obras é porque, possivelmente, constituir ficção levando em conta sua história política oficial significaria conter-se às distopias2 instituídas como verdades últimas; seria como falar apenas do ponto de vista dos coronéis, doutores, juízes, especialistas e seus clien- tes acólitos em Antares:

[...] A palavra ‘distopia’ é citada no Oxford English Dictionary como tendo primeiramente sido usada em 1868 por John Stuart Mill. Como Bentham an- tes dele, Mill esteve buscando por uma palavra que descrevesse uma situação ou um governo que seria o ‘pior imaginável’. Bentham usou a palavra Caco- topia para este estado patológico. Parecia importante ser capaz de designar o ambiente político que estaria além da fronteira do aceitável, talvez mesmo do imaginável, mas que seria ainda reconhecível como um mundo político. Nas tradições centrais da filosofia política, este ambiente poderia ser designado por ‘caos’, ‘guerra’, mesmo tirania. Mas, quando Mill escreveu que aquilo que seus inimigos pareciam favorecer era ‘muito ruim para ser praticável’, eu penso que ele se integrou a um discurso moderno em torno da utopia. Neste discurso, o negativo da utopia não está apontando em direção a um estado de relações que nós nos esforçaríamos poderosamente para evitar, mas exata- mente para um estado de relações as quais nós poderíamos intensamente de- sejar. Distopia é a utopia que, cuidadosamente, você não deve desejar. [...] (RÜSEN et al., 2005: 230; tradução nossa)3

A heteronímia é o recurso de linguagem utilizado na configuração geral das duas cidades. Numa Carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa (1999) expli- ca o significado dos seus heterônimos: [...] Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos é o fun- do traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histéri- co, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta se- gunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, pro- priamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. A origem men- tal dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e para os outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se mani-

2 RÜSEN, Jörn; FEHR, Michael; RIEGER, Thomas W. (orgs.) Thinking Utopia: Steps into other worlds. New York, USA: Berghahn Books, 2005. No texto original em inglês, do capítulo 15 intitulado Trauma – a dystopia of the spirit: “[...] The word ‘dystopia’ is cited in the Oxford English Dictionary as first been used in 1868 by John Stuart Mill. Like Bentham before him, Mill was searching for a word that would describe a situation or a government that would be the worst ‘imaginable’. Bentham had used the word cacofonia for this pathological state. It seemed important to be able to designate the political envi- ronment that would be beyond the border of the acceptable, perhaps even the imaginable, but that would be still recognizable as political world. In core traditions of political philosophy, this environment might be designated by ‘chaos’, ‘war’, even tyranny. But, when Mill wrote that what his enemies appear to favour was ‘too bad to be practicable’, I think he was joining in a modern discourse around utopia. In this discourse the negative of utopia is not pointing towards a state of affairs that we would all strive mightily to avoid but rather the state of affairs that we mightily intensely desire. Dystopia is the utopia you must be careful not to wish. [...]” (p.230)

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festam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. [...] Desde criança tive a ten- dência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram [...] Desde que me conheço como sendo a- quilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movi- mentos, carácter e história várias figuras irreais que eram para mim tão visí- veis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusiva- mente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar [...] (PESSOA; MOISÉS, p. 144-145)

Tradicionais especialistas com seus canudos, como médicos e advogados, alia- dos aos chefes políticos locais, cativam histórica e politicamente sua clientela. As suas práticas nos traduzem o anacronismo em um campo de tensões: a Escola pública de An- tares nos evidencia o paradoxo da coexistência aparentemente pacífica entre a soberani- a, a disciplina forjada na escola-fábrica e o controle mais atual produzido na escola- empresa. Doutores, Coronéis e Juízes da Normalidade nos falam das forças políticas que atuam na localidade de Antares e permeiam suas instituições de formação escolar para crianças e adolescentes:

[...] Mal chegamos a Antares e já nos querem envolver nas brigas locais. Esta cidade em matéria de rivalidades tem um caráter por assim dizer binário. No futebol ou se é do Fronteira F. C. ou do S. C. Missioneiro, e não há como es- capar. Na vida social, ou se é do Clube Comercial ou do Clube Caixeiral. Já me perguntaram se pertenço ao grupo do Dr. Lázaro Bertioga ou ao do Dr. Erwin Falkenburg, os dois médicos mais importantes e antigos da terra, ini- migos de morte um do outro. Cada um deles tem grande número de clientes devotados que de certo modo são também soldados duma legião, a qual, se necessário, é capaz de ir à guerra contra a facção inimiga. Conheci pessoalmente o Dr. Lázaro, um homenzinho baixo, calvo, com cabe- los grisalhos, penteados cuidadosamente a escova, nos lados da cabeça, rosto redondo e rosado, sempre sorridente. Um sujeito amável, desses de quem se costuma dizer que são “serviçais”. Seus clientes o adoram, não só porque a- creditam nas suas qualidades de médico, como também porque se sentem protegidos pelos seus ares carinhosamente paternais. Alguém me diz que o Dr. Lázaro goza duma espécie de santidade leiga, que lhe foi conferida pela sua clientela. Ele próprio parece carregar com um certo orgulho satisfeito es- se halo de santidade. É proprietário do maior hospital da cidade, o Salvator Mundi, que conta com uma pequena ala para indigentes, subvencionada pela prefeitura. Quanto ao Dr. Falkenburg – proprietário do Hospital Repouso – conheço-o apenas de longe. É um tipo empertigado, que lembra um oficial prussiano re- formado. Usa pince-nez, tem um cachaço nédio, olhos verdegoengos e metá- licos, e um sorriso de canto de boca que me parece de desdém ou ironia. D. Quitéria o adora, deposita nele uma confiança ilimitada e costuma dizer que, acima do Dr. Falkenburg, só Deus. Seus inimigos põem em dúvida a legiti- midade de seu diploma. E o que contribui para que alguns desconfiem ainda 12

mais do doutor teuto-brasileiro é o fato de ele usar o hipnotismo no tratamen- to de certas moléstias nervosas. [...] (VERÍSSIMO, 1971: 152) 4

Faz-se, então, o uso da heteronímia neste trabalho como quem objetiva provocar questionamentos no leitor através da sátira, do exagero, do suspense e do humor, que estão mesmo presentes nos acontecimentos tidos, em geral, como os mais normais, os mais factuais, figuras nem sempre visíveis como questões no cotidiano. No entanto, me utilizo do recurso ao exagero, ao realismo fantástico entre as imagens repetitivas e fa- tigantes, sempre normativas. As anormalidades, as diferenças e distorções podem falar mais alto e destoar do previsível em meio às tensões nas escolas de Antares, provocan- do-nos a avançar numa projeção crítica de suas imagens em movimento neste estudo. Com o uso do recurso literário de realismo fantástico como metáforas sobre os incidentes em Antares e em suas instituições de saber, é possível lançar mão de expres- sões do universo ficcional-científico e futurista para figurar os exageros nas realidades escolares que não são vistas como um exagero, extrapolação ou como estranhamentos que nos servissem de condução às virtualidades, mas como óbvias normalidades, mes- mo com suas práticas de compulsão nem sempre visíveis como tais. Despersonalizar (retirar a máscara) a normalidade dos fatos relacionais numa pequena cidade e suas es- colas públicas é mostrar que há problemas sim nos excessos de normalidade evocados na Educação, é dar visibilidade aos acontecimentos entre eles, possibilitando assim fa- zer com que os desvios deixem de ser seus depositários negativos, meras anormalida- des renegadas. Significa que queremos escutar a tonalidade dos desvios, abrir e produ- zir coletivamente os caminhos às diferenças e dissidências, e, com isto, pôr em questão o instituído, os acontecimentos petrificados em fatos. Eu me reporto aos incidentes em Antares e suas escolas como Bob Dylan se re- fere àqueles de sua cidade natal, Hibbing, no condado de Saint Louis, estado de Minne- sota:

Parecia com qualquer cidade das décadas de 40 ou 50. Apenas uma cidade rural. Como que parada no tempo. Provavelmente nem estava nos mapas. Umas três quadras em um sentido e umas três outras no outro... com uma es- pécie de rua principal, onde estavam todas as lojas... as mercearias, e... Isso é praticamente tudo, sabe. Como fica uma cidade sem meios de subsistência? É, entra numa espécie de decadência e se deteriora, não é? É isso que aconte-

4 No texto original, este excerto está em itálico. Constitui-se em fala da equipe universitária que se dirige a Antares para a realização de uma pesquisa, financiada pela Fundação Ford, e que , mais tarde, origem à publicação Anatomia duma cidade gaúcha de fronteira. Os estudantes da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – são orientados pelo professor Martim Francisco Terra, no empreendimento. 13

ce. A maior parte era fazendas ou estava totalmente revirada pelas empresas de mineração. Muito quente na época de verão... e no inverno, muito frio, en- tende? O inverno todo era, quero dizer. [...] A mina era fora dos limites da ci- dade. Todo mundo trabalhava lá. Não se podia ser rebelde. Era tão frio que eu não podia ser mau. O clima equilibrava tudo com muita rapidez. E nin- guém iria se arriscar a roubar. Não havia nenhuma filosofia, nenhum tipo de expressão ou ideologia para se discordar. Meu pai e seus irmãos tinham uma loja de material elétrico. O meu primeiro emprego foi varrer a loja... eu deve- ria aprender a disciplina do trabalho duro ou coisa semelhante, sabe... e os benefícios de estar empregado. (informação verbal)5

Como psicólogo estrangeiro nas escolas, - para mim não menos estranhas em su- as normalidades quase sempre unânimes -, em um território-cidade estranho, tenho per- cebido um sentido de estrangeiro que contrasta com aquele de pertença à localidade e ao ambiente de trabalho, seus espaços de saber em questão e ao lugar médico- assistencial e clínico-individualizado certo e previsível para a minha atuação profissio- nal. O Sentir-se e o Pensar como estrangeiro, mesmo que se tenha nascido em uma ci- dade, ou que se trabalhe há anos em um mesmo espaço, configura-se situação paradoxal necessária ao questionamento - e à decomposição - das instituições educativas reinantes, como plataforma para pensar um novo lugar para o psicólogo, salto para acesso a um reposicionamento no trabalho institucional. Robert Allen Zimmerman, declarando-se sentir-se um estrangeiro na cidade onde nasceu, cria o heterônimo Bob Dylan, inspirado no nome do poeta Dylan Thomas:

Eu pensava em sair pelo mundo em uma jornada de retorno para algum lugar. Eu tentava encontrar aquele lar que deixei há muito tempo e não conseguia lembrar exatamente onde era, mas eu estava a caminho. E depois de tudo com que me deparei pelo caminho, eu percebi tudo. Eu não tinha nenhuma ambição. Nasci muito distante de onde eu deveria estar. Então, estou voltan- do para casa, sabe? [...] Eu tinha 10 anos quando comecei a tocar violão. Na verdade, encontrei um violão na casa que meu pai comprou. E ali achei outra coisa. Uma espécie de nuance mística. Havia um rádio grande de mogno. Quando você abria a tampa, aparecia um toca-discos de 78 rotações. Um dia eu o abri e lá estava um disco de música country. A canção chamava-se Drif- ting Too Far From Shore. O som do disco fez com que eu me sentisse outra pessoa, e aquilo... Sabe, parecia que eu nem mesmo nasci com os pais certos, ou algo assim. (Informação Verbal) 6 Na micro-história que se está por narrar, os exageros dos recursos literários de realismo fantástico arriscam linhas-de-fuga aos binarismos sócio-políticos, instituídos secularmente. Ao construir hipérboles e metáforas através de conceitos oriundos da fic-

5 NO DIRECTION HOME BOB DYLAN (2005). Filme-documentário dirigido por Martin Scorsese. DVD duplo – 208 Min. Aprox. Spitfire Productions, Grey Water Park Productions, Thisteen/WNet Newyork/PBS e Sikelia Productions em co-produção com Vulcan Production, BBC e NHK. Estados Unidos: Paramount Pictures.

6 Idem. 14

ção científica a partir dos automatismos cotidianos que percebe, eu me permito ultrapas- sar as repetições fatídicas e escorchantes, o tédio produzido nas relações, e viabilizar um caminho visível e aberto às virtualidades, às invenções. Nesta cartografia nas escolas da Antares sul-fluminense, eu as percorro e questi- ono suas instituições. Em lugares sem tempo para os questionadores, porque incomo- dam, e mesmo podem ameaçar a ordem médica e a lógica empresarial atravessada nas práticas normais educativas. Em unidades educacionais onde é prática comum e normal a compulsiva classificação dos anormais da escola, onde têm sentido e funcionam as máquinas (financeiras) de busca incessante de diagnósticos médicos. Nestas maquinarias das produções nosológicas pelos vários atores (não só pelos médicos) das escolas em questão, planejando adaptações curriculares e/ou a constituição do duplo vínculo de matrícula escola regular-especial, o que me interessa, nesta pesqui- sa, de modo particular, são os não-sentidos, ou como as engrenagens emperram, para com eles podermos pensar novas práticas, novos sentidos. E, quando a inclusão é para excluir, não importa a circularidade entre o incluir ou o excluir, mas a contestação à integração (inclusão) obrigatória e para todos a um sistema de relações sociais que já exclui, por profissão, os ditos normais. Na direção do exercício de uma psicologia social crítica das instituições de con- trole e medicalização na Educação desta cidadela, Érico Veríssimo me empresta sua veia literária satírica e incisiva à análise dos incidentes na Antares do sul do Estado do Rio de Janeiro. Questiono então a medicalização e outras instituições em jogo na trama política-educacional, antes que só os mortos ousem entrar em greve e protestar balan- çando o coreto da praça, no que se poderia evocar como a constituição de uma tanato- cracia insurgente. Porque só os mortos poderiam se sublevar sem sofrer as consequên- cias diretas (retaliações) em uma revolta organizada contra os “podres poderes” instituí- dos em Antares, para que se evidencie, nesta introdução, a ironia central e questionadora do “incidente”, e que transporto ao espírito questionador desta pesquisa desde que li a primeira vez Incidente em Antares, e percebi que as descrições da cidade (do livro) e- ram quase idênticas às da que lhes apresento agora, desde as mais superficiais, como a localização da igreja e o cemitério atrás dela no alto de um morro, até as vicissitudes históricas dos desmandos da administração política local, de coronéis e doutores: [...] O que até hoje nos deixa ocasionalmente irritados é o fato de cartógra- fos, não só estrangeiros como nacionais, não mencionarem nunca em seus mapas a cidade de Antares, [...] De pouco ou nada têm servido os memoriais assinados pelo Prefeito Municipal, pelos membros da Câmara de Vereadores 15

e por outras pessoas gradas e repetidamente dirigidos ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, protestando contra a acintosa omissão. [...] No entanto a verdade clara e pura é que, a despeito da má vontade ou da ig- norância dos fazedores de cartas geográficas, a cidade de Antares, sede do município do mesmo nome, lá está, visível e concreta, à margem esquerda do grande rio. O incidente que se vai narrar, e de que Antares foi teatro na sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963, tornou essa localidade conhecida e de certo modo famosa da noite para o dia – fama um tanto ambígua e efêmera, é verdade – [...]. Entretanto, esse fato, ao que parece, não sensibilizou até agora geógrafos e cartógrafos. Tão insólitos, lúricos e tétricos – e estes adjetivos foram cata- dos no artigo alusivo àquele dia aziago, escrito pelo jornalista Lucas Faia pa- ra o seu diário A Verdade, porém jamais publicado, por motivos que oportu- namente serão revelados – tão fantásticos foram esses acontecimentos, que o P.e Gerôncio chegou a exclamar, dentro de seu templo, que aquilo era o co- meço do Juízo Final. Nesse momento de susto e angústia coletiva, um cético gaiato, desses que costumam menosprezar a terra onde nasceram e viveram, murmurou: a troco de quê Deus havia de começar o Juízo Final logo neste ca- fundó onde Judas perdeu as botas?” Bem, mas não convém antecipar fatos nem ditos. Melhor será contar primei- ro, de maneira tão sucinta e imparcial possível, a história de Antares e de seus habitantes, para que se possa ter uma ideia mais clara do palco, do cenário e principalmente das personagens principais, bem como da comparsaria, desse drama talvez inédito nos anais da espécie humana. [...] (VERÍSSIMO, 1980, p. 1-3)

Anatomia Política de uma Cidade Fluminense de Fronteira7.

Em dez de outubro de dois mil e oito, na capa do jornal local intitulado Diário Democrático8, a Prefeitura Municipal de Antares anunciava o edital de um novo con- curso público. A notícia do tipo tabloide9 era veiculada em um mesmo texto que infor-

7 Em a alusão ao título do estudo publicado após pesquisa realizada por um grupo de estudantes da UFRGS com a população da cidade de “Ribeira”, pseudônimo dado à cidade de Antares, no romance político escrito por Erico Veríssimo em 1971, Incidente em Antares.

8 Este jornal regional existe desde 1988 (apenas o nome é fictício). Na matéria da capa, os dois slogans: Antares Publica Edital de Concurso, e Sobrinho de Tibério Vacariano é Reeleito. (aqui apenas as expressões em itálico foram modificadas com nomes fictícios).

9 “O termo tabloide designa um formato de jornal surgido em meados do século XX, no qual cada página mede aproximadamente 33 x 28 cm, as notícias são tratadas num formato mais curto e o número de ilus- trações costuma ser maior do que o dos diários de formato tradicional. O formato tabloide é particular- mente popular no Reino Unido, onde suas dimensões de página são cerca de 43 × 28 cm (16,9 × 11,0 polegadas). Jornais de maior circulação, tradicionalmente associada a "maior qualidade" de jornalismo, são chamados de broadsheet embora vários jornais britânicos de "qualidade" recentemente adotaram o formato tabloide. Outro formato de jornal britânico é o Berliner, que é de tamanho intermediário entre o tabloide e o broadsheet e foi por The Guardian e seu co-irmão The Observer. [...] O nome deste formato provém do inglês "tabloid", pois foi em Londres onde se desenvolveram os primeiros jornais desse tipo, mas a origem dessa palavra é um pouco mais antiga. Em 1884, o laboratório farmacêutico britânico Burroughs, Wellcome and Company, atualmente fundido com o GlaxoSmithKline registrou a palavra "tabloid" para um formato de remédios condensados, a partir da palavra francesa "tablette", di- 16

mava a vitória eleitoral do novo governante da cidadela, logo abaixo de uma foto em que ele é erguido e ovacionado por um grupo de pessoas. O ano de 2008, que tinha sido de eleições municipais, se aproximava do fim. O concurso foi para o provimento de vagas de “emprego público” na prefeitura. No edital, impunha-se esta categoria de vín- culo ou relação de trabalho, que destoava do institucionalizado e constitucional vínculo estatutário nos concursos públicos para a administração pública direta, como ocorre no caso das prefeituras. Chama-se de celetista o regime jurídico nacional que regulamenta as relações individuais e coletivas de trabalho nas empresas privadas e nas públicas- estatais (municipais, estaduais ou federais), da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. 10 A CLT foi erigida na forma do Decreto-Lei federal n.º 5452, de primeiro de maio de 1943, sancionada pelo presidente Getúlio Vargas durante o período do Estado Novo. Tendo sido fortemente inspirada na Carta Del Lavoro11 - legislação trabalhista construída no regime fascista de Frederico Mussolini em 1927, na Itália -, a norma le- gislativa brasileira unificou toda a legislação de trabalho então existente no país. O do- cumento preconizava a criação de corporações de empregados e patrões e institui as ainda atuais práticas de corporativismo12 nas relações de trabalho. Eu lia este jornal que estava sendo distribuído na entrada do único hospital de re- ferência para pelo menos seis cidades da região centro-sul – Hospital Universitário Sul-

minutivo de "table" (mesa), que se usava como nome de uma peça plana de lousa ou uma placa de mármore que era usada antigamente para escrever. Até o século XVI, a palavra "tablette" já havia sido empregada no francês como nome de pequenos comprimidos de remédios, sabão ou alimentos, com a ideia de que se tratava de doses reduzidas de qualquer uma das três coisas. Este vocábulo francês in- gressou no português para designar o formato de medicamento, substância alimentar ou qualquer produ- to sólido apresentado em forma de placa. No começo do século XX já se falava, em inglês, de "tabloid journalism" para designar inicialmente não um formato, mas sim a ideia de publicar notícias em versões condensadas, algo como "jornalismo em tabletes". TABLOIDE. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: Acesso em: 5 jan 2013.

10 Diferentemente do regime do trabalhador estatutário, a CLT, própria dos empregos em empresas públi- cas como a Caixa Econômica Federal, o BNDES e a Casa da Moeda, não prevê a constituição da estabi- lidade no setor público-estatal, que é, atualmente, conquistada pelo servidor por meio de um estágio probatório de três anos, geralmente com avaliações semestrais. E o Estatuto da Estabilidade nas empre- sas públicas e privadas já havia sido abolido com a instituição do FGTS – Fundo de Garantia por Tem- po de Serviço - e do Seguro-Desemprego pelo regime militar-ditatorial, nos anos 70.

11 A carta do trabalho é o documento de 1927, onde o Partido Nacional Fascista de Benito Mussolini apresentou as linhas de orientação que deveriam guiar as relações de trabalho na sociedade, nomeadamente entre o patronato, os trabalhadores e o Estado. Segundo este documento, todos deveriam seguir as orientações e o interesse do Estado.

12 Este modelo, - caracterizado pela “harmonização”, ou “equalização” dos interesses conflitantes entre trabalhadores e capitalistas através de instrumentos como a legislação trabalhista e o controle sindical -, ficou para a história sob a designação de Corporativismo e foi replicado em Portugal (pelo Estatuto do Trabalho Nacional), no Brasil, na Turquia por Ataturk, e na França. 17

Fluminense13 - HUSF -, na cidade de Vassouras -, quando me decidi pela inscrição em uma das quatro vagas em psicologia. Havia quase dois meses eu tinha me transferido, com a minha família, da capital do Rio de Janeiro para Mendes, uma pequena cidade do Vale do Paraíba Fluminense. Na capa, a notícia da comemoração dos 45 anos de sua emancipação político- administrativa há seis dias, com “excelentes índices em educação, emprego e PIB”:

[...] Devido às eleições, no domingo, 05 de outubro, as festividades foram a- diadas para não comprometer o bom andamento do processo eleitoral e tam- bém prejudicar as comemorações. Mas o município tem o que comemorar. Recentemente, o jornal O GLOBO, [...] publicou matéria ressaltando o cres- cimento do PIB – Produto Interno Bruto, em Antares14. O município no biê- nio 2005/2006 obteve um crescimento do PIB em + 14,09%, ficando com o segundo maior crescimento de atividades econômicas, atrás somente de Rio das Ostras, e conquistou também o primeiro lugar em crescimento do PIB per capita, em + 13,97% e tendo Itaguaí como o segundo colocado. O mais im- portante deste crescimento fica por conta do mérito da cidade, no que diz res- peito a investimento em atividades econômicas, pois foi conseguido com re- cursos próprios e não como Rio das Ostras (Petróleo) e Itaguaí (com porto e grandes indústrias, como a CSA). [...] O município também foi destaque no jornal O GLOBO no ranking das escolas, ficando o município em 19º lugar no desempenho no ensino de 1ª a 4ª série, no estado do Rio de Janeiro, de a- cordo com o Índice de Desenvolvimento na Educação Básica – IDEB, de 4,3%. (DIÁRIO DEMOCRÁTICO, 2008: capa)

No quadrante à direita, ainda na capa do jornal, uma outra matéria intitulada: – “Família Vacariano: Quase Duas Décadas de Bons Serviços a Antares”, destaca a his- tória das fábricas que faliram na cidade, uma que produzia fogos-de-artifício, e a que fazia guarda-chuvas (houve ainda uma outra de produção de discos de vinil (LP´s) não referenciada neste texto), além das “gestões” imperiais do chefe político local:

Analisando as administrações recentes do Cel. PM Tibério Vacariano e so- brinho, podemos constatar que o nível de emprego neste município vem se mantendo estável e com bom nível de crescimento. Em relação às empresas [...] que fecharam nesta cidade, é bom lembrar que eram “empresas da inicia- tiva privada”. Independem do Poder Público, mas sim das oscilações de mer- cado, desempenhos, balança de resultados e concorrência com produtos im- portados, mais baratos. [...] Coronel Tibério foi Prefeito de Antares por três vezes, sempre promovendo o crescimento da cidade: 1989 a 1992, 1997 a 2000 e de 2000 e 2004. Em seguida, seu sobrinho, Xisto Vacariano, foi eleito para a gestão 2004-2008. Depois de seu primeiro governo, quando Coronel Tibério retornou à prefeitura de Antares em 1997, encontrou a cidade num completo abandono, fruto de desmandos administrativos. No funcionalismo

13 Hospital Geral vinculado à Universidade Severino Sombra, e cuja Fundação homônima que lhe confere recursos é conveniada com o SUS – Sistema Único de Saúde, sediada na cidade de Vassouras.

14 As palavras e expressões postas em itálico - nas citações e notas de rodapé - são as por mim modificadas; as demais são transcrições ipsis literis do jornal Diário Democrático. 18

público, 10 meses de salários atrasados, 1000 férias atrasadas, e o 13º salário de 1995 e 1996 ainda pendentes. A cidade também devia R$ 1,5 milhão em precatórios trabalhistas. Nos serviços à população, a cidade tinha apenas duas viaturas funcionando na Prefeitura. Durante seis meses, Coronel Tibério usou o próprio carro no trabalho administrativo, levando, inclusive, os doentes de câncer, ao Rio de Janeiro. Depois de três administrações, Coronel Tibério sa- iu “de cabeça erguida”, com uma frota de 83 viaturas, como modernos cami- nhões, tratores, etc. [...] (DIÁRIO DEMOCRÁTICO, 2008: capa)

No interregno de 1993-1996, o chefe político local mantém-se no poder através do governo de um aliado partidário. A dinastia da família “Vacariano” mantém-se vita- lícia em Antares desde fins da ditadura civil-militar de 1964 (1985) e a promulgação da Carta Magna em 1988. O sobrinho se reelege para o mandato seguinte, de 2008 a 2012, mas permanece reinando nos bastidores (com domicílio na capital, e aterrissando via helicóptero na cidade quando lhe convém), pois quem de fato governa é o “coronel”, em seus aposentos, como ‘chefe do gabinete’ do prefeito. Neste espaço, ele recebe, diaria- mente, e remedia demandas sociais gerais da população, como solicitações de cestas- básicas, vales gás-de-cozinha, fornecimentos de óculos de grau, transporte para atendi- mentos em Saúde especializados fora da cidade, intermediação e resolução de conflitos, etc. E fundamentalmente, os pedidos massivos de emprego por meio de “contratos” ce- lebrados com o Executivo Municipal15. Esta região do estado do Rio de Janeiro é também conhecida pelas cidades que outrora - até o início do século XX - integraram o Vale do Ciclo do Café Sul- Fluminense, que tinha se constituído como o principal centro econômico brasileiro até o declínio econômico da monocultura cafeeira em nosso país entre os anos de 1920-1930. Este período é marcado pelo começo da industrialização do país como processo, acompanhada pela efervescência política, cultural, pela criação e organização dos pri-

15 Os contratos são muitas vezes verbais e, em certa época, foram intermediados por uma “cooperativa” de trabalho. O uso das chamadas ‘cooperativas de trabalho’ tem sido comum por prefeituras na região sul-fluminense, com o objetivo da terceirização da mão-de-obra geral, como a de professores, psicólogos e outros trabalhadores sociais para a formação de equipes técnicas na Saúde, Educação e Assistência Social. Neste modo-de-fazer as relações de trabalho, este é travestido de serviço temporário. Sendo que os contratos tem sido reiteradamente renovados, e por isso instrumentos das eternas contratações temporárias, evocadas em um suposto caráter administrativo, enquanto que a realização de concursos públicos tem se dado via pressões do Ministério Público do Trabalho. As relações de trabalho têm sido, assim, escamoteadas para dar lugar às relações administrativas ou prestação de serviços às prefeituras. Esta modulação tem significado um tipo de controle sobre as práticas dos trabalhadores, o que tem esvaziado as práticas sociais críticas e revolucionárias no serviço público, no sentido de possíveis organização e ação contestatárias. A vigilância político-eleitoral dos governos locais tem sido constante sobre quaisquer riscos de dissidências políticas da situação, às possibilidades de críticas, pensamentos diferentes dos hegemônicos entre os técnicos ou grupos contratados e posicionados à frente das políticas públicas pela administração eleita. A entidade Cruz Vermelha, sediada na cidade de Barra do Piraí, como exemplo, tem intermediado, com carteira assinada, a contratação de servidores públicos temporários em cidades como Valença, Vassouras e Mendes. 19

meiros movimentos operários, movidos principalmente pela vinda ao país dos imigran- tes italianos, portugueses, alemães, entre outros, munidos do referencial teórico e políti- co do anarquismo. Vivenciamos marcos de movimentos políticos e culturais de extrema importância: - tivemos a Semana de Arte Moderna de 1922, os primeiros movimentos operários autônomos no Rio e em São Paulo e, no campo educacional, a referência his- tórica com a eclosão do Movimento Escolanovista16, que é movido por intelectuais e educadores preocupados com o analfabetismo em massa e em luta pela Educação Popu- lar como um direito social que deveria ser ampliado às grandes frações populacionais menos favorecidas em seu poder aquisitivo. Foram movimentos históricos, (1) nos campos do trabalho e das lutas políticas de trabalhadores, (2) no campo cultural, da literatura e das artes em geral e (3) no campo político-educacional, frentes que se constituíram coletivamente – seja pela classe operá- ria em formação, seja pela intelectualidade revolucionária e humanista -, todos na estei- ra da industrialização efetiva, mesmo que conduzida pela implantação de um capitalis- mo atrasado no Brasil, pois que ainda caracterizado pelo restrito acesso da maioria da população a direitos como a Educação (o ensino público e gratuito ainda estava por se instituir), e dada a coexistência das relações de poder de soberania atreladas às velhas maquinarias agrário-latifundiárias. Sua estruturação histórica continua a atravessar os espaços públicos de trabalho e formação, como as instituições educacionais de nível fundamental, pela instituição do coronelismo e das práticas sociais imbuídas de cliente- lismo, remanescentes como fantasmas de um Brasil arcaico. Antares é o nome fictício que utilizo, nesta dissertação, para denominar a cidade na qual se ambientam as escolas públicas onde trabalho como psicólogo e realizo a pes- quisa. A imprensa tabloide e marrom tem sido a mídia impressa que reina na região repleta de pequenas ex-cidades dos barões (senhores cafeeiros), a qual veicula, predo- minantemente, assuntos relacionados a autoridades político-eleitorais e seus feitos, isto é, ao que poderíamos chamar de um verdadeiro conglomerado empresarial democráti- co-representativo. “Que tipo de cidade era Antares e que espécie de gente a habitava e governava ao tempo em que ocorreu o macabro incidente que em breve se vai narrar?” (VERÍSSIMO, 1971, p.125)

16 O Escolanovismo constituiu-se no movimento dos pioneiros da educação dos anos de 1920. Intelectuais como Cecília Meireles, Lourenço Filho e Anísio Teixeira integraram esta frente em defesa de reformas educacionais com vistas à democratização do acesso à educação como um direito social. Suas perspectivas de mudanças tiveram forte inspiração da psicologia experimental e psicometrista, considerando que se coadunavam aos seus ideários a aplicação dos recém-criados testes de inteligência e mensuração das capacidades e maturação para a aprendizagem. 20

Na edição de 18 de maio de 2010 do Jornal Tribuna do Interior17, matéria da comemoração dos seus 25 anos em um conhecido hotel-fazenda de Vassouras exibe a foto de uma mulher negra que, “caracterizada de mucama, fez a recepção aos convida- dos”, um grupo formado por “empresários”, “lideranças políticas” e “personalidades da região”, “[...] o vice-governador do estado [...]”, prefeitos e “ex-prefeitos da área de cobertura do jornal, vereadores [também de diversos municípios da área de cobertura do jornal] 18anunciantes, colaboradores e colunistas. [...]” (TRIBUNA DO INTERIOR, 2010: 9-13) Retratando este encontro de 13 de maio de 2010, e reverenciando o tempo de e- xistência do periódico – 1984-2009, em seu “Jubileu de Prata”, que reuniu “nomes im- portantes da sociedade de Vassouras e região”, o jornal noticia: - “pluralidade política marcou a festa dos 25 anos”, e estampa em cinco páginas nada menos que 75 fotos do evento, em meio às quais é fotografada cada “personalidade” ou “liderança política” presente. No escasso texto abaixo das fotos, são mencionados os nomes dos convidados, numa reafirmação de sua presença, em claro marketing mass-midiático eleitoral. Consideramos a origem farmacêutica e medicamentosa do termo e conceito de tabloide, e vemos que o seu sentido expressa a conotação de uma redução, compressão ou condensação das comunicações em formato de remédio, no caso, das doses de informações, ou da crítica e complexidade (portáteis) na veiculação das informações, em especial nestas cidades do interior. Deste modo, a mass-mediatização regional promovida pelos jornais tabloides e marrons segue o formato dos comprimidos medicamentosos, como que em doses periódicas e reduzidas de crítica e complexidade sobre os acontecimentos e sobre a vida, vão injetando o controle em frações regulares no cotidiano da Cidade e das instituições, entre elas, a Escola. São efeitos de entorpecimento político e das atitudes de transformação da cidade e suas instituições, incluindo as de instrução pública básica. A imprensa tabloide exibe o formato mais adequado à chamada mídia marrom. O termo tem a origem na expressão yellow press19 ou imprensa amarela, cunhado nos

17 Edição de Tribuna do Interior de 18 de maio de 2010, ano XXVII, Nº 938. É um jornal de circulação na maioria das cidades da região do Vale do Paraíba Fluminense.

18 Os colchetes são utilizados para expressar meus comentários. 19 “Inspirado no personagem de quadrinhos Yellow Kid, cujas tiras foram criadas nos EUA, 1894. Mickey Dugan, mais conhecido como The Yellow Kid (‘O Garoto Amarelo’), era o personagem principal Ho- gan's Alley, pioneira história em quadrinhos e uma das primeiras a ser impressa em cores. O Yellow Kid era uma criança dentuça, que sempre aparecia com um sorriso bobo e vestindo um pijama amarelo en- quanto circulava por uma vila cheia das mais estranhas criaturas. O artifício de usar balões para mostrar 21

Estados Unidos, e que se teria modificado, na França e no Brasil, respectivamente, na tradução do conceito de imprimeur marron20 para explicitar os jornais franceses impressos em gráficas clandestinas, e devido à cor marrom cujo sentido se identificaria também à clandestinidade e à ilegalidade, no Brasil, desde o século XVII, por associação aos escravos fugidos ou em situação ilegal no país. Dois empreendimentos industriais de grande vulto marcariam para sempre a história da região sul-fluminense: - a efetiva entrada em operação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em 1946, implantada e construída através dos Acordos de Washington21 e fundada em 1941 (ainda no Estado Novo), e a Estrada de Ferro Central do Brasil a promover o entroncamento ferroviário entre Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, que inclui um projeto inicial de integração nacional a partir deste núcleo. Nos anos de 1950, criava-se a Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) (em 1957), e evidenciava-se o grande crescimento industrial das antigas cidades dos barões do café. A cidade de Mendes, próxima de Antares, e que já pertenceu a Piraí, Vassouras e Barra do Piraí, se emanciparia em 11 de julho de 1952, por meio do Decreto n.º 1559, em função do alto desenvolvimento econômico-industrial. Em 1889, dá-se o início do processo de industrialização com a implantação da indústria de papel Itacolomy, e depois surgem a Cervejaria Teutonia, a fábrica de fósforos Serra do Mar, o frigorífico Anglo S/A (1915), entre outras. Em Paracambi, a Companhia Têxtil Brasil Industrial é fundada em 1867, e a metalúrgica de grande porte Siderúrgica Lanaria S/A Indústria e

as falas dos personagens foi usado pela primeira vez com Yellow Kid, apesar de o próprio garoto só se comunicar através de mensagens que apareciam inscritas em sua roupa. Ele usava um jargão cheio de gírias, numa linguagem típica dos guetos. A tira era desenhada pelo artista Richard Felton Outcault. Apareceu pela primeira vez esporadicamente na revista Truth durante 1894 e 1895, até que teve sua es- tréia oficial no jornal New York World em 17 de fevereiro de 1895, inicialmente em preto e branco e subsequentemente colorida a partir de 5 de maio. Outcault levou o Yellow Kid para o New York Jour- nal American de William Randolph Hearst em 1897, mas a New York World contratou outro artista chamado George Luks para continuar a produzir as tiras, dando origem então à duas versões do perso- nagem. Ambas chegaram ao fim em 1898.” THE yellow kid. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. Dis- ponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Yellow_Kid Acesso em: 5 jan 2013.

20 Embora "imprensa marrom" seja normalmente considerada o equivalente da "yellow press" norte- americana, Leandro Marshall propõe uma diferenciação. Para ele, a imprensa amarela seria uma fase anterior, marcada pelo sensacionalismo, com fatos sendo exagerados nas páginas de jornais apenas com o objetivo comercial de atrair mais leitores. Já a imprensa marrom seria mais caracteristicamente definida como a manipulação da notícia com fins políticos. [...] Norbert Bolz aponta como principal característica desse tipo de jornalismo a comunicação direta, que abre mão de qualquer abordagem mais complexa sobre o mundo. IMPRENSA marrom. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imprensa_marrom Acesso em: 5 jan 2013.

21 Previa-se que a construção da companhia com capitais norte-americanos atenderia aos objetivos de fornecer aço aos aliados em guerra (durante a segunda guerra mundial), e de alicerçar o desenvolvimento econômico do Brasil após o término do conflito. 22

Comércio (usina metalúrgica) é instalada entre 1945/1952. Existiu ainda a fábrica têxtil Maria Cândida e a Crown, instaladas no bairro da Cascata. Adentrando uma rua entre casas geminadas do antigo bairro operário em anexo às instalações, tem-se acesso ao manicômio ainda existente da Cascata, com cerca de 300 internos. Com o período da ditadura militar-fascista de 1964, o Brasil, e particularmente a antiga região do Vale do Café vive os efeitos de um intenso, forte e abrupto processo de desindustrialização. Todas as indústrias acima desaparecem e, em especial, a Lanaria entra em falência, subitamente lançando dois mil empregados à deriva22. Avança a onda de privatização e internacionalização de serviços públicos como o transporte ferroviário de passageiros, através das concessões das linhas à MRS (Minas-Rio-São Paulo) Logística, e o transporte, que antes era também da produção agropecuária de pequenos produtores, passa a ser apenas do minério de ferro para exportação, a partir de 1996. A CSN é privatizada em 1993, no governo Itamar Franco, e a RFFSA é dissolvida em 1999. A maioria das cidades passa a ter como atividade econômica principal os serviços, o comércio e o turismo, sendo que Barra do Piraí, cidades mais próximas de São Paulo como Resende e V. Redonda, e mais próximas de Minas como Três Rios, conservam e recebem novas indústrias, ainda que predominantemente estrangeiras. Neste ínterim, além da privatização das empresas públicas, a política oficial da precariedade, privatização e rotatividade empresarial se insere e cristaliza em meio às relações de poder nos estabelecimentos públicos-estatais de formação e trabalho, a exemplo das escolas públicas fundamentais, não sem crítica, resistência e lutas por transformação no campo de relações educacional e de Trabalho.

22 “[...] em Paracambi, pequenina cidade do interior do estado do Rio, uma fábrica de laminação, fundada na década de 40 e que empregava cerca de dois mil operários, faliu em 1975, repentinamente, sem ao menos pagar os direitos trabalhistas dos funcionários. Havia no local um hospital psiquiátrico particular, conveniado com o Inamps, cujo proprietário era um coronel da Aeronáutica. Internações de operários começaram a ocorrer em massa naquele hospital, como consequência da impossibilidade de sobrevivên- cia dos trabalhadores desempregados e desesperados. Na região, ainda existia um grande hospital psi- quiátrico para internação de pacientes crônicos, o Dr. Eiras de Paracambi, também conveniado com o Inamps. A questão é que, em pouco tempo, aquele hospital começou a experimentar um crescimento motivado pelo fato daquela gente ter sido subitamente lançada à deriva, tendo como tutores o desem- prego, a miséria, a fome e o desespero. Pessoas chegavam ali até em busca de um prato de comida. Eu, e mais outros colegas, que trabalhávamos no local, percebemos o quadro, fizemos uma intervenção jun- to aos operários, apelando para que retomassem a sua organização sindical, até mesmo para que pudes- sem reaver suas garantias trabalhistas.[...]” (TEIXEIRA, Julius Martins. A Loucura a Serviço dos Pode- rosos. In: A Nova Democracia, Ano 1 - n.º 7 - março de 2003, p. 6-7. Ed. COEDITA: Rio de Janeiro, RJ.) Também disponível em: Acesso em: 5 jan 2013. 23

Não obstante movimentos como a combativa Greve de 198823, promovida pelos operários metalúrgicos da então empresa estatal CSN, em novembro de 1988, os anos de chumbo teriam efeitos de esvaziamento dos direitos sociais na região (como trabalho, saúde, educação, e o transporte necessário à integração regional em uma área de constantes práticas de migração entre as pequenas cidades), a destruição e o enfraquecimento dos movimentos de trabalhadores autônomos com relação à esfera estatal. Trata-se de um tipo de controle das relações de trabalho que vem se agudizando em nosso cotidiano atual, e, na região sul do estado, a venda da CSN, com a demissão de onze mil funcionários (cerca de 70% do quadro) no processo, significou um marco da onda de privatizações, cuja gestação se dá através da máquina ditatorial nos anos de 1970 e o estopim nos de 1990. Dois congressos dos trabalhadores da educação ocorreram em Mendes: o primeiro se deu em 1983, e a I Conferência Estadual de Educação do Rio de Janeiro (conhecido como o Congresso de Mendes: Uma Proposta de Professores) em 1999. Em

23 Os operários da CSN exigiam: reajuste salarial com base no DIEESE, reposição salarial devido à inflação, estabilidade no emprego, jornada semanal de 40 horas, fim da “repressão” (perseguição) dentro da empresa, readmissão de demitidos no ano de 1987, isonomia salarial, Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) eleita pelos trabalhadores, reconhecimento dos representantes sindicais eleitos, e divulgação do Sistema de Classificação de Cargos e Salários da empresa, segundo o sítio eletrônico Wikipedia. GREVE de 1988. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: Acesso em 24 de dezembro de 2012. Ver também a matéria do jornal Folha de São Paulo: “CHOQUE COM EXÉRCITO DEIXA 3 GREVISTAS MORTOS NA CSN”, cujo excerto exponho a seguir: - “Um conflito entre soldados do exército, policiais-militares e metalúrgicos em greve na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ), causou ontem a morte de três pessoas e ferimentos em pelo menos 31. A identidade de dois dos mortos – Valmir Freitas Monteiro, 28, da própria CSN, e William Fernandes Leite, 23, da Fábrica de Estruturas Metálicas – foi revelada pelo prefeito da cidade, Marino Clinger (PDT), depois de visita ao hospital da CSN. Eles foram alvejados a bala. A existência de um terceiro morto (sem identificação) foi anunciada às 0h40 [...] O confronto começou às 19h, quando cerca de 600 soldados do Exército e da PM desceram a avenida Independência – em frente à CSN – atirando bombas de gás lacrimogênio. Os metalúrgicos responderam com paus e pedras. Um automóvel foi utilizado como barricada pelos soldados. [...] Por volta das 20h30, tiros de metralhadora foram ouvidos no interior da usina [...] À tarde, Marcelo Felício, que estava no interior da CSN, disse à Folha que os metalúrgicos iriam reagir caso o exército tentasse ocupar a acearia, onde estão cerca de 2 mil operários. [...] os metalúrgicos estavam equipados com barras de ferro, tubos de amônia e que poderiam jogar água nos altos fornos que estão sendo mantidos ligados. Caso os três fornos da usina sejam desligados, levarão cerca de um ano para voltar a funcionar normalmente, paralisando toda a produção de aço. [...] Em duas assembleias realizadas ontem à noite [...] os operários decidiram manter a greve iniciada há quatro dias e que paralisou toda produção da empresa. O metalúrgicos estavam divididos em dois grupos – um deles com cerca de 8 mil pessoas está concentrado em sua maioria em um pátio interno da CSN, cercado por cerca de 200 militares, três carros blindados, 5 caminhões e e quatro jipes do Exército. O outro grupo, impedido de entrar na usina desde as 23h concentrava-se em frente ao portão principal. Para o general Lopes, “a ocupação da usina feita pelos metalúrgicos foi muito inteligente porque eles ocuparam a acearia impedindo a fabricação do aço.” (Choque com Exército deixa 3 grevistas mortos na CSN. Folha de S. Paulo; Acervo online (banco de dados Folha). São Paulo, SP: edição de quinta-feira, 10 de novembro de 1988. Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/cotidiano_10nov1988.htm . Acesso em 24 de dezembro de 2012. )

24

ambos os encontros as teses se relacionavam à crítica e o debate ao modelo de administração escolar autoritário até então vigente, - existente segundo os interesses dos militares detentores da máquina administrativa -, e à perspectiva da construção de uma gestão democrática e autônoma na escola pública. Nos dias 26 e 27 de novembro de 1983, professores da rede pública se reuniram para debater a construção das políticas públicas educacionais nos anos vindouros. O objetivo era o de promover um encontro entre administração pública e professorado, e discutiram-se as teses educacionais: (1) a crítica de uma escola pública antipopular e injusta, cujo modo de organização tem beneficiado uma minoria de estudantes, em detrimento dos alunos provenientes das classes populares, (2) discute-se a afirmação de que há uma seleção, nas duas séries iniciais24, de quem vai ser educado na escola regular e quem será excluído do processo, e constata-se o fracasso escolar predominante entre as crianças economicamente menos favorecidas, considerando que são objetivadas e tratadas de modo idêntico às crianças oriundas de famílias mais abastadas, (3) sobre o tempo de permanência na escola, aponta-se que as crianças pobres saem da escola depois de três a quatro anos sem aprender quase nada e são elas que carregam a alcunha do fracasso, pois este fracasso é atribuído a fatores externos à escola, como carência e problemas familiares, entre outros, o que acaba por isentar a instituição-escola de suas responsabilidades, (4) há uma crítica a respeito do número de dias letivos ser, à época, um dos mais curtos do mundo, (5) a crítica à jornada escolar de duas ou três horas diurnas, e (5) o ponto em que a compreensão de que a escola opera a seleção e a promoção dos melhores é posta em evidência como errônea. (Cf. CUNHA, 1999) 25 As teses ressaltam o caráter discriminatório vigente nas escolas públicas, e os professores como agentes instrumentalizados deste processo de discriminação. Ressoam então, em contrapartida, críticas dos professores às teses, entre elas a de que a evasão escolar não se dava tão somente pela rejeição pela escola, mas ainda pela incidência comum do trabalho precoce entre os jovens alunos. Após este primeiro encontro, deflagram-se impasses entre os docentes e a administração pública educacional, a política dos encontros e a busca da participação dos professores são abandonadas,

24 O texto refere-se aos dois primeiros anos de alfabetização, que na atualidade são conhecidos como primeira série A e primeira série B, uma divisão e postergação do tempo e processo de alfabetização no Brasil.

25 CUNHA, Luís Antonio (1999). Educação, Estado e Democracia no Brasil. (coleção Biblioteca de Educação. Séria 1. Escola; V.17) Universidade Federal Fluminense; Brasília, DF: Flasco do Brasil. 25

enquanto os CIEPS tornam-se a figura principal da política de Educação vigente em solo fluminense. Novamente em território mendense, entre os dias 10 e 12 de dezembro de 1999, num esforço pela retomada das discussões do primeiro encontro de 16 anos atrás, realiza-se a Primeira Conferência Estadual de Educação, cujos eixos integradores temáticos se referem à (1) gestão democrática e autonomia, (2) o combate à baixa escolaridade e ao analfabetismo, (3) a valorização da escola e dos profissionais da educação, e (4) a “qualidade social da educação”, assim como (5) a defesa da implementação do ensino integral segundo o modelo dos CIEPS. Em meio à discussão sobre a gestão democrática e autônoma na escola pública, os trabalhadores do ensino analisavam os modos de administração ainda dominantes no início dos anos 80, à época do primeiro encontro. Na medida desta problematização do modelo autocrático e tecnoburocrático de administração dos assuntos educacionais, que incluía o cotidiano escolar de tensões coletivas, e decisões nem sempre tomadas coletivamente, professores travavam lutas por transformações políticas: - preconizavam- se as eleições diretas de direção, de modo a garantir a eleição de diretores pela comunidade, e que estas gerências uma vez eleitas não poderiam ser destituídas senão pela comunidade escolar (a incluir os pais dos alunos), com isto a rever a legislação vigente; a instituição dos conselhos paritários deliberativos e constituídos de todos os segmentos da comunidade escolar, em substituição às AAES (Associações de Assistência ao Educando); defesa da construção coletiva dos projetos político- pedagógicos em cada unidade escolar, em eixo pluriétnico e multicultural; assegurar a criação dos grêmios estudantis, sendo de competência exclusiva dos estudantes a definição dos critérios de estatutos e demais questões referentes à organização. Em Antares, as diretoras das escolas municipais eram indicadas pelo chefe político local durante todo o período desta pesquisa, em cargo comissionado, e nunca houvera eleições para tais gerências do ensino. Durante todo o período desta pesquisa, não houve nenhum processo de escolha pelas comunidades para a direção das escolas, enquanto os salários dos professores do magistério, de todos da Educação e das demais Secretarias estavam há cerca de vinte anos congelados. As gerentes (diretoras) do ensino foram e continuam sendo todas indicadas politicamente ao cargo pela Prefeitura. Apesar de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 preconizar as eleições de administradores das escolas pela comunidade, era evocada a autonomia do município, ou melhor, uma autonomia administrativa do prefeito na escolha das dirigentes. O que 26

pode ser traduzido como um eixo integrante da estratégia biopolítica de controle à população, por meio dos dispositivos escolares de saber. Alguns efeitos do período ditatorial mais recente foram: as políticas oficiais de municipalização da educação e demais políticas públicas, que vêm traduzindo a suposta autonomia do município pela soberania de seus governantes no que se refere à gerência das políticas educacionais públicas (“prefeitorização”), reafirmando as antigas práticas de tutela nas relações de trabalho com o seu controle pela instalação do cabresto político-eleitoral, e o coorporativismo implantado em nossa história desde a Era Vargas. A formação das escolas públicas primárias e secundárias tornar-se-ia, com isso, na contemporaneidade, um tipo de formação específica direcionada à escola-empresa.

De Brave New World a Minority Report : da Compressão que dispersa à Articulação que comprime

Dois conceitos-ferramentas foram o protótipo de toda a discussão teórico-prática desta dissertação. São eles: as instituições de Disciplina, construído por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir (1975), e as instituições de Controle, empreendido por Gilles Deleuze, em Conversações (1990). O primeiro expõe as relações de poder nas sociedades disciplinares, que se produzem no espaço e no confinamento; o segundo expõe a era de desindustralização do pós-II Grande Guerra (égide política que se configura a partir de 1945), e aqui a gerência máxima é a do tempo e das articulações- sem-fim. Gallo (2011) explicita o sentido da descontinuidade entre disciplina e controle, entre fábrica e empresa, ou ainda entre indústria e desindústria:

As sociedades de controle, funcionando como biopolítica, já não precisam enclausurar para controlar. Cada indivíduo se torna um número, um código numérico, um código de barras, que carrega um conjunto de informações que podem ser lidas, decodificadas, identificadas, localizadas, controladas. Con- trole de fluxo. Para que impedir o “livre” fluxo pelo enclausuramento, se o próprio fluxo “livre” pode ser identificado, medido, controlado? Informação, cada vez mais informação. Disseminação de ideias virais, ativação dos fluxos corporais. Controle, cada vez mais controle. (GALLO, 2011, p.170)

27

A Crise Geral do Sistema Capitalista de 1929, à época do clímax de sua fase industrial, foi um curto-circuito no sistema através da superprodução e subconsumo atrelado à indústria, nos países desenvolvidos e centrais como EUA, Alemanha e França. No Brasil, ainda estávamos no começo da industrialização nacional, cujo avanço dar-se-á só em período já próximo da Segunda Guerra, quando os Estados Unidos nos “permitem” a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em troca de nosso apoio no conflito. A Crise de 1929 traria ainda o processo da Grande Depressão dos anos subsequentes. Após 45, já sob a égide da Empresa, das grandes fusões entre o capital financeiro e industrial, e do domínio globalizante das bolsas de valores, o ápice da crise que se anuncia está nos processos de sobreprodução e financeirização macro e micropolítica. A financeirização avança em espiral com vertentes de privatização e desestatização não só na visão macropolítica e econômica das instituições, como tem significado um tipo de privatização corporativista das relações nas organizações gerais de trabalho e formação, como a Escola Pública. No Brasil e no mundo, os anos de 1980 e 1990 são um marco catalisador das ondas de privatização e financeirização das condutas gerais nas sociedades de controle. Em países como o nosso, a “redemocratização” eleitoral consolida e faz progressões à construção da precariedade nas relações de trabalho já iniciada pela ditadura de 1964, a exemplo do advento jurídico do FGTS e do seguro-desemprego. Estes são artifícios engendrados neste período (1964-1985), e que destroem a estabilidade no emprego. Da Inglaterra, Margaret Thatcher torna-se um ícone internacional da máxima liberal e imperialista empresarial. A primeira-ministra preconiza as políticas públicas neoliberalistas26, para o mundo, de controle e repressão aos sindicatos, greves e lutas populares, o exemplo da desindustrialização e consequente triplicação do desemprego

26 O thatcherismo caracterizou-se pelos programas governamentais de privatização das empresas estatais inglesas. A política de privatização foi chamada de um ingrediente crucial do thatcherismo. Este proces- so, especialmente a preparação das indústrias nacionalizadas para a privatização, esteve associado com melhoras de mercado na execução (produção) industrial, particularmente em termos de produtividade do trabalho. Privatizou a Educação através de “reformas” inseridas num pacote geral de reformas neoliberais sindicais, do trabalho, - visando o controle das atividades sindicais -, da Saúde pública, assim como promoveu a redução dos serviços sociais. Também reduziu o poder dos Conselhos de Salários (Wage Concils), controlando-os e, com isso, abolindo o salário mínimo na Inglaterra. Cogitou renegociar a medida, tendo em vista os interesses na participação do Reino Unida na CEE e a abolição do poder sindical. Seguidora da economia política de Friedrich von Hayek e Milton Friedman (com os quais manteve contato desde os anos 60), - pais do neoliberalismo -, e então dos postulados do liberalismo e monetarismo estritos, gerou uma onda de protestos com o veto a uma normativa que ordenava a distribuição gratuita de leite nas escolas públicas, para crianças entre sete e onze anos. Sua política econômica foi centrada na desregulamentação do setor financeiro, na flexibilização do mercado de trabalho, e na privatização das empresas públicas estatais. Entre 1970 e 74, Thatcher foi Secretária de Estado de Educação e Ciências (cargo idêntico ao de Ministra da Educação, no Brasil).

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em seu país, e do desmonte do welfare state que vigorarava desde o pós-II Guerra, assim como a drástica redução dos suportes sociais ao desemprego. Na educação e saúde públicas, instala a ordem das sociedades empresariais e meritocráticas através de “reformas” neoliberais:

A partir de 1982 a administração Thatcher lança medidas com vista à criação de uma “sociedade empresarial” (entrepreneurial society) e um “capitalismo popular” (popular capitalism), o que marca um corte com os princípios se- guidos no pós-guerra de “emprego para todos e democracia social” (JESSOP, 1992, p.15)

Sobre o Brasil, escreve, em 1994, em entrevista à revista Veja27

Parece-me bem claro que o Brasil não teve ainda um bom governo, capaz de atuar com base em princípios, na defesa da liberdade, sob o império da lei e com uma administração profissional. Bastaria um período assim, acompa- nhado da verdadeira liberdade empresarial, para que o país se tornasse real- mente próspero. (VEJA, 09/03/1994)

Nas sociedades de controle, no início da segunda década do século XXI, as relações são configuradas e cifradas para o acesso aos fluxos e integração às suas instituições, e na particularidade do campo educacional público codificam-se de acordo com os índices de produtividade dos professores, na formação da trama (ou campo de tensões) onde produtividade = aprovação do maior número possível de alunos. Nesta constituição binária de relações na escola, a função empresarial instituída nas salas de aula determina a máxima moralista: - se o fracasso não é do aluno, então é do educador, quando o que importa não é se alguém aprende, se há trocas e afecção entre professores e alunos, mas a implementação e execução das tarefas curriculares, a minimização dos prejuízos financeiros (da redução dos investimentos dadas às reprovações) e dos riscos sociais em meio à comunidade atendida. Com isso, não dispensamos a participação atual e do processo de formação histórica da profissão de psicólogo no entroncamento com as práticas médicas, assistenciais e de educação (que aprofundaremos no capítulo um). A produtividade é a tecnologia fabricada das progressões continuadas (aprovações automáticas dos alunos) na escola-empresa, que se não feitas podem inviabilizar os pacotes internacionais de endividamento sob concessão das matrizes capitalistas e aval do Banco Mundial. Fracasso escolar é sinal de redução de

27 Revista VEJA. Entrevista: Margaret Thatcher – A Receita da Leoa. Entrevista por Marcos Antônio de Rezende. Edição 1330 – nove de março de 1994 – p.8. São Paulo: Ed. Abril. 29

investimentos ou recursos financeiros para cada aluno que não passa de ano na escola. Se não aceitamos e nos adaptamos às “medidas de austeridade” na Educação pública, o risco é a demora no recebimento das verbas educacionais. Se antes a escola formava cidadãos para a indústria, na fase do controle ela então gerencia alunos para a precariedade das relações de trabalho, para os empregos temporários, como “trainees”, estagiários e eternos períodos de experiência de três meses nas empresas, e com isso a instauração da ética (modo de agir e se relacionar) da rotatividade empresarial não só na empresa privada, mas que se dispersa também aos Serviços Públicos estatais, entre eles as escolas, os dispositivos de atenção em Saúde e a Assistência Social. Não importa o espaço de confinamento. Não há etapas, estas são reduzidas e minimizadas; o que interessa agora são os fluxos intermitentes, a Articulação como modelo. Os operários, - preconizados coveiros do Sistema Capitalista de Produção -, foram expulsos de seu lugar natural, de seu território natal; o que fazer? Como parar as máquinas nesta nova configuração? Penso que Brave New World (“Admirável Mundo Novo”), obra literária futurista escrita por Aldous Huxley, em 1932, em tempos de Superprodução industrial e Grande Depressão, já nos aponte a configuração do conceito de pré-crime, e da concepção- fabricação de Relatórios Pré-Crime. Brave New World ainda nos reporta aos píncaros da industrialização, mas próximo da derrocada de seus ideais. A diretriz e método de produção em massa industrial é introduzida nas práticas biológicas, de engenharia genética em Brave New World. No “Centro de Incubação e Condicionamento” (C.I.C) de Londres, onde há um brasão com “o lema do Estado Mundo: Comunidade, Identidade e Estabilidade” (HUXLEY, 1980: 23), as “ciências da vida”, psicologia e biologia se justapõem para a fabricação in vitro dos indivíduos e o condicionamento psicológico. São então classificados em seus níveis de inteligência, classes sociais e já predestinados na divisão social do trabalho, alinhados aos postos de trabalho e com suas competências bem definidas, de acordo com os diferentes níveis hierárquicos de inteligência e maturidade. Isto ocorre na “Sala de Predestinação Social”. Em seguida, um diálogo entre um estudante e o “Diretor de Incubação e Condicionamento” (D.I.C.): [...] - Também predestinamos e condicionamos. Decantamos bebês já como seres humanos socializados, tanto Alfas como Ipsilones, tanto os futuros tra- balhadores de esgotos como os futuros . . . Ele ia dizendo os “futuros dirigen- tes do mundo”, mas, corrigindo-se, disse, “futuros Diretores de Incubação”. O D. I. C. agradeceu o cumprimento com um sorriso. 30

Encontraram-se no Metro 320, na Prancha II. Um jovem mecânico Beta- Menos estava trabalhando com uma chave de fenda e uma chave de boca na bomba de sangue artificial de um frasco que passava. O ruído do motor elétrico tornava-se mais baixo à medida que ele apertava os parafusos. Mais baixo, mais baixo . . . Uma torção final, um relance ao con- tador de voltas, e pronto. Deu dois passos e começou a mesma operação com a bomba seguinte. - Está reduzindo o número de rotações por minuto, explicou o senhor Foster. O sangue artificial gira mais devagar; assim, passa pelo pulmão em intervalos mais longos, dando, pois, menos oxigênio ao embrião. Nada como o racio- namento de oxigênio para manter um embrião abaixo do normal. – Ele esfre- gou as mãos de novo. - Mas por que querem manter o embrião abaixo do normal? – perguntou um estudante ingênuo. - Burro! – disse o Diretor, rompendo um longo silêncio. – Não lhe ocorreu que um embrião Ípsilon deve ter um ambiente Ípsilon e uma herança Ípsilon? Realmente não lhe ocorrera. Ficou inteiramente confuso. - Quanto mais baixa a casta – disse o Sr. Foster – menor é a quantidade de oxigênio. O primeiro órgão afetado é o cérebro. Depois dele, o esqueleto. Com setenta por cento de oxigênio normal você obtém anões. Com menos de setenta, monstros sem olhos. - Que de nada servem – concluiu o Sr. Foster. [...] (HUXLEY, 1980, p 34)

Depois da incubação e do uso de tecnologias biológicas em embriões, eles entram na sala de condicionamento pavloviano (berçários):

[...] Livros e ruídos insuportáveis, flores e choques elétricos – esses pares já estavam ligados na mente infantil; e após duzentas repetições da mesma lição ou de outra semelhante, estariam indissoluvelmente associadas. O que o ho- mem uniu, a natureza é incapaz de separar. - Eles crescerão com o que os psicologistas costumavam chamar ódio “instin- tivo” de livros e flores. Reflexos condicionados inalteráveis. Manter-se-ão afastados de livros e de botânica por toda a vida. O Diretor voltou-se para as enfermeiras. – Podem levá-los. Sempre gritando, os bebês de cáqui foram colocados nos carrinhos e retira- dos, deixando atrás deles um cheiro de leite azedo e um silêncio bem-vindo. Um dos estudantes levantou a mão; embora compreendesse perfeitamente por que gente de casta inferior não devia desperdiçar o tempo da Comunidade com livros, pois sempre haveria o risco de lerem algo que descondicionasse seus reflexos, no entanto . . . bem, não podia dar-se ao trabalho de tornar psi- cologicamente impossível aos Deltas amar as flores? O D.I.C. explicou pacientemente. Se as crianças eram levadas a gritar ao ve- rem rosas, a razão era de alta política econômica. Há muito tempo atrás (cer- ca de um século), Gamas, Deltas e mesmo Ipsilones, eram condicionados a amar as flores – especialmente as flores e a natureza agreste em geral. Tinha- se a ideia de levá-los a desejarem ir para o campo em qualquer oportunidade possível, forçando assim, o consumo dos meios de transporte. - E eles não utilizaram os meios de transporte? – perguntou o estudante. - Sim, e demais – respondeu o D.I.C. – Mas nada mais. [...] (HUXLEY, 1980, p. 44-45)

O início do século vinte marca o começo da industrialização nos países de Terceiro Mundo. O primeiro teste psicológico de inteligência e medição de competências surge em 1905, criado por um médico e um psicólogo (Theodore Simon e 31

Alfred Binet), na França. Não tardaria para que o uso dos testes se reproduzisse em massa na Educação no ocidente, e nos anos de 1920 e 1930 eles são aplicados a todo vapor. Tal como um efeito “Heimdall” na Educação e na Psicologia, os testes de inteligência aprimoravam a divisão social do trabalho nas instituições escolares de formação para a indústria. Os testes ABC de Lourenço Filho, no Brasil, separam em classes de maturidade para a leitura e a escrita, predizendo o futuro de muitas crianças ainda em processo de alfabetização, e segmentando as classes escolares através da quantificação dos alunos em fracos, médio e fortes. Em Rocha & Andrada (1931), as palavras do segundo autor são significativas sobre o espírito psicometrista da época e os esforços por contenção dos riscos sociais iminentes: Muito haveria que dizer sobre as vantagens, no ponto de vista social, em que se conhecerem e classificarem as mentalidades infantis. Limito-me, portanto, a apenas lembrar que esta classificação constitui o fundamento de toda a or- ganização de ensino que pretenda o nome de científica, bem como de todas as obras de assistência e proteção a menores com finalidades profiláticas quanto ao crime e à loucura. Toda a eficiência do ensino deriva, pois, da organização de classes homogêneas, sem o que não será satisfeita uma das necessidades mais essenciais deste ensino que é forçosamente de preparar o maior número de alunos no menor prazo, para beneficiar a totalidade da po- pulação infantil que cumpre educar. (ROCHA; ANDRADA, p.11-12; grifos meus)

Assim, vemos a época do nascimento e expansão do uso dos testes psi como a da construção de um dispositivo que unirá, de modo mais elaborado, econômico e estraté- gico, as forças de judicialização e medicalização nas futuras sociedades de controle (o Relatório Pré-Crime). O deus Heimdall, na mitologia nórdica, nas histórias infantis e nos quadrinhos do personagem Thor, era o guardião da ponte do arco-íris (Bifrost) que separa Asgard, terra dos deuses da Terra, lugar dos humanos, mortais. Na mitologia, o sentinela de sentidos aguçados seria o criador da humanidade, ao criar as três classes sociais: Karl, Jarl e Thrall. Tinha a visão e a audição extremamente apuradas, sendo até capaz de escutar o crescer da lã da ovelha e o das ervas. É considerado o deus das estratégias, possuía um olhar mais aguçado do que o de um falcão e uma visão noturna melhor do que a da coruja, metáfora que aqui deslizo para os exageros de prestidigitação, em geral atribuídos pelas sociedades ao ofício de escuta dos psicólogos, e ao seu suposto poder de julgamento e predição cartomante. A psicologia, com o nascimento dos testes, 32

empreendia o dispositivo tecnológico que lhe garantiria um lugar certo na ponta das estratégias biopolíticas.

Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tem- pos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no cam- po de controle do saber e de intervenção do poder [...] deveríamos falar de ´bio-política’ para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos en- trem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana [...] Não é necessário insistir, também, sobre a proliferação das tecnologias políticas que, a partir de então, vão investir sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço da existência (FOUCAULT, 2010., p. 155-156)

As histórias em quadrinhos norte-americanas dos anos 30 trariam alguns personagens mass-midiáticos como o vigilante Batman28, o homem-morcego. Num tempo de efeitos sociais e econômicos da Depressão: desemprego, aumento da criminalidade, miséria, sem nenhum superpoder, ele combate o crime. Com uma peculiaridade de suas ações: todos os criminosos da cidade de Gotham City não são encaminhados para a cadeia (como faria, por exemplo, o Super-Homem), mas sim para um hospício de Gotham chamado Asilo Arkham (Arkham Asylum). A medicalização em Batman está associada à gestão dos riscos sociais dos desajustamentos na sociedade. O tema se atualiza em um filme mais recente, Batman: O Cavaleiro das Trevas, em que seu arqui-inimigo, Coringa, é um terrorista que explode bancos e, em uma cena queima dinheiro. A trama tece um não–sentido da criminalidade, justaposto à loucura: uma força extra-policial que executa a criminalização das anormalidades na cidade. As práticas de medicalização são uma forma de administração biopolítica das coletividades, e que se ajustam ao controle específico, na modulação empresarial da Escola. Instituições de controle são aquelas próprias das sociedades de controle. Gilles Deleuze (1990), em Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle, após anunciar estarmos numa época de crise generalizada de todos os meios de confinamento e disciplina espacializada, como prisão, hospital, escola, família e caserna, explicita as origens do conceito de “sociedade e instituições de controle”: Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente ne- cessárias. Reformar a escola, [...] a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou

28 O personagem dos quadrinhos Batman foi co-criado pelo desenhista Bob Kane e pelo escritor Bill Fin- ger, em 1932. As histórias em quadrinhos do Batman são publicadas pela editora norte-americana DC Comics. 33

menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as [...] disciplinares. “Controle” é o nome que Burrou- ghs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virilio também analisa sem parar as formas ultra- rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que ope- ravam na duração de um sistema fechado. (DELEUZE, 1990, p. 220; grifos meus)

O termo “sociedade de controle” tem então origem nas obras de William Serrand Burroughs II, um escritor do movimento norte-americano de contracultura, que teve sua expressão máxima nos anos de 1960 e 197029. Neste trabalho, lanço mão de um conceito-metáfora, o qual nasce dos escritos de um outro autor da contra-cultura: Phillip Kindred Dick30. Trata-se do conceito de pré-crime, extraído do conto The Minority Report, uma curta estória futurista, de cunho ficcional-científico. A sua versão cinematográfica, Minority Report: A Nova Lei, na reflexividade de suas imagens e virtualidade, provoca-nos a discussões sobre alguns temas da contemporaneidade, entre eles as práticas medicalizantes e judicial-criminalizantes de subjetivação em sociedade, unificadas em espiral, nas virtualizações do pré-crime. As imagens de O Relatório Dissonante nos reportam à temática do uso das leis como controle, a judicialização das sociedades, e principalmente o controle das virtualidades, dos ímpetos de criação. Em suma, de todo tipo de dissonâncias tidas como desvio, através de previsões temporais futuras (teleológicas), ou o que um aluno pode vir a ser, se não for “educado”, caso não se adeque às normas e controles escolarizados. A medicalização no Pré-crime é evidente no uso de imagens cerebrais como meio de se obter provas irredutíveis dos crimes futuros da população da cidade, tal como os pedidos incessantes de exames de eletroencefalograma na Escola, como meio de detectar supostas doenças da aprendizagem. O filme - cujas cenas focalizam o equilíbrio e a luta entre autonomia e sobredeterminação (heteronomias) como uma de suas discussões - e o seu conceito

29 O movimento de contracultura nasce nos Estados Unidos, nos anos de 1960. Os precursores da revolução contracultural foram os chamados beatniks, cuja característica mais importante foi o inconformismo com a realidade do começo da década de 1960. Os líderes do movimento beatnik que serviu de base para o movimento hippie, foram Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. A contracultura movia críticas à sociedade de controle: ao consumismo, ao capitalismo e à economia de mercado, aos valores culturais, religiosos e políticos das sociedades cristãs-ocidentais. Teve expressão na literatura, no cinema, na música, e nas atitudes em geral.

30 Escritor do conto The Minority Report, que se transformou no filme homônimo, dirigido por Steven Spielberg, conhecido no Brasil como Minority Report: Nova Lei. 34

principal, transversalizam o uso dos demais conceitos e questionamentos nesta dissertação:

[...] Minority Report toma lugar no ano de 2051. O Distrito de Columbia [em Washington, Estados Unidos] está livre de assassinatos devido a uma evolu- ção, na polícia e no sistema de justiça, chamada “Pré-crime”. O Pré-crime u- tilizas três paranormais ou “pré-cognitivos”, suspensos na água em um estado de semi-consciência e conectados, através de monitores de ondas cerebrais, a um aparato computadorizado com um complexo sistema interativo para reve- lação de imagens. Os paranormais configuram os assassinos futuros, até que os oficiais de polícia possam rever gravações fragmentadas das visões, no vi- sor interativo e encarcerar os criminosos antes que cometam os crimes. Du- rante uma investigação pelo FBI, interessado em “implementar o Pré-Crime nacional” conduzida pelo agente Danny Witwer (Colin Farrell), John Ander- ton (Tom Cruise), o oficial do Pré-Crime, é previsto a cometer um assassina- to. Anderton decola em fuga e chega a sequestrar um dos paranormais pré- cognitivos, Agatha (Samantha Morton), na esperança de descobrir outra ver- são escondida de seu futuro, conhecida como o “Relatório Dissonante”31. (SKONIECZNY, 2005: 1; tradução livre minha)

Por meio da construção de exageros e delírios futuristas sobre a aplicação das leis, as imagens e diálogos do filme nos convidam a questionar se tais controles à virtualidade, para a contenção e a punição das infrações, como auxiliar da lei e da justiça em espaços como a escola, já não ocorrem na atualidade, e não sem hipérboles que nos instrumentariam a pensar os modos de subjetivação contemporâneos nestas instituições de trabalho e formação. Não raro os acontecimentos que nos convocam ao trabalho nas escolas antarenses soam como absurdos construídos por seus vários atores, reais delírios. São esses delírios que nos trazem questões a investigar, e de início, expõem apenas algumas pistas sobre as forças que se constituem, micropoliticamente. Irrompem nas escolas na forma dos “casos” individuais endereçados ao trabalho do psicólogo, psicopedagogo e assistente social, e que, além da individualização, preveem a responsabilidade preponderante da família. O desafio tem sido o de desdobrarmos os casos clínicos

31 […] Minority Report takes place in the year 2051. The District of Columbia is free of murder due to a development in the police and justice system called “Precrime.” Precrime employs three psychics or “precognitives”, suspended in water in a semi-conscious state, and connected through brain wave moni- tors to a computerized apparatus with a complex interactive image display system. The psychics envi- sion future murders so that police officers can review fragmented recordings of the visions on the inter- active display and incarcerate the murderers before they commit the crime. During an investigation by the FBI interested in “taking Precrime national”, conducted by Agent Danny Witwer (Colin Farell), John Anderton (Tom Cruise), the chief officer of Precrime, is predicted to commit a murder. Anderton takes off on the run and goes so far as to kidnap one of the precognitive psychics, Agatha (Samantha Morton), in the hopes of discovering another hidden version of his future known as the “Minority Re- port”. 35

individuais e os delírios diagnósticos na análise dos processos e instituições que os produzem e os sustentam nas práticas cotidianas de tutela escolar.

Configuração da Equipe Técnica e das Escolas

A equipe (concursada) era dividida em dois grupos de intervenção desde 2009: dois psicólogos e dois pedagogos com especialização em (psico)pedagogia, em cada qual um psicólogo e um (psico)pedagogo a percorrer seis escolas. No período 2005- 2008, a equipe técnica - contratada temporariamente -, era composta de apenas um profissional de cada uma das “especialidades técnicas32”: psicologia, psicopedagogia, fonoaudiologia e serviço social. Em fins de 2010, um assistente social integraria a Equipe de Apoio, tendo sido convocado a trabalhar em todas as escolas do município. Desta forma, transitava entre as duas duplas técnicas. No Regimento Interno (R.I.) da Secretaria de Educação, verificam-se a configuração geral do Departamento de Atendimento Técnico e as atribuições profissionais específicas do “setor de psicologia”:

Art. 14 – O Departamento de Atendimento Técnico é o órgão que tem como finalidade a educação e os cuidados com o desenvolvimento global de todos os alunos matriculados na rede pública municipal, com o objetivo de orientar às equipes das unidades escolares para executarem suas ações educativas de forma a atender as peculiaridades de cada instituição escolar. Através de avaliações periódicas serão produzidos diagnósticos sócio- educativos para que seja possível atender as demandas diferenciadas de cada unidade escolar e seus respectivos contextos docentes e discentes, inclusive dos alunos portadores de necessidades especiais, combatendo assim a exclu- são e criando estratégias específicas para o trabalho nos espaços de comple- mentação e/ou suplementação do processo educacional.

I O Departamento de Atendimento Técnico é composto pelos seguintes seto- res: a) Setor de Supervisão Escolar b) Setor de Orientação Pedagógica c) Setor de Orientação Educacional d) Setor de Orientação Psicopedagógica e) Setor de Orientação Psicológica f) Setor de Orientação Fonoaudiológica [...]

[...] Art. 19 – O Setor de Orientação Psicológica tem por finalidade possibili- tar a integração do desenvolvimento emocional, físico e psicológico frente às

32 Nós, os profissionais da equipe técnica éramos chamados de “técnicos” e “especialistas” pelos outros profissionais, o que demarcava um fronteira na relação hierárquica entre técnicos e não-técnicos nas escolas. 36

demandas da educação inclusiva e demais necessidades diagnosticadas atra- vés de encontros frequentes e regulares com as equipes das unidades escola- res, alunos e suas respectivas famílias, bem como assessorar o Secretário Municipal de Educação nas referidas questões. [...] 33

Na primeira reunião de equipe, no espaço da Secretaria de Educação, um dos pedagogos diz que psicólogos “não podem atender, de modo individualizado, as crianças nas escolas”, “não podem fazer atendimento clínico na escola”. Ele faz “especialização” em psicanálise e tem um amigo – psicólogo -, que lhe falou da vigência de um dispositivo jurídico que veta este tipo de procedimento psicológico na Escola. Eu debati sua máxima explicando que não é todo atendimento clínico que é individual, e que nem todo atendimento individual significa uma prática psicoterapêutica. As escolas são de ensino fundamental, ensino infantil (antigo pré-escolar) e um Núcleo de Atendimento Educacional Especializado (NAEE). Respectivamente, são (1) quatro escolas do fundamental, - que exponho na ordem decrescente quanto ao porte (que se refere ao contingente de alunos matriculados em cada escola): Escola Estadual Municipalizada Alpha, com aproximadamente 500 alunos, o Colégio Municipal Beta, com 350 alunos, Escola Municipal Gamma (na área rural, com 45 alunos), Escola Delta (rural, com turmas multiseriadas34 e 25 alunos), a Unidade de Ensino Infantil Épsilon, apenas de ensino infantil, com quase noventa alunos. A Escola Especial (NAEE) contava com trinta e cinco alunos de 9 a 55 anos de idade. As duas maiores escolas são também as mais próximas do Centro da cidade; a Gamma e a Delta são as mais afastadas porque na região mais rural. O NAEE localizava-se a mais de 10 quilômetros, dentro de uma fazenda da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Expor a ‘quantidade’ de escolas nas quais trabalhei, e a diversidade dos públicos que assisti – crianças e adolescentes em unidades educacionais de três diferentes tipos, - de ensino fundamental, infantil e AEE (atendimento educacional especializado) -, interessa-nos tão somente para evidenciarmos os desafios ao trabalho do psicólogo na área da educação e magistério atrelado às práticas de medicalização como efeitos repetitivos de subjetivação. Independentemente do número de escolas, e da diversidade dos públicos atendidos, a ordem médica é a que rege as relações em geral, e tem

33 Este artigo foi extraído do “Regimento Interno” da Secretaria Municipal de Educação de Antares.

34 Nesta escola, havia duas turmas. Em uma eram agrupadas as crianças dos períodos de ensino infantil I, II e III, em uma segunda uniam-se alunos da 1.ª série A à 4.ª série (5.º ano).

37

determinado um modo de ser hegemônico e previsível para o trabalho e integração do psicólogo à organização dessas escolas do Ensino Básico. Em todas as escolas do presente estudo, as demandas ao trabalho do psicólogo eram as mesmas, dos atendimentos individualizados e sistemáticos com alunos e pais, das triagens com vistas aos encaminhamentos certos dos estudantes para neurologistas. Percebe-se o psicólogo integrado à escola e, por isso, às políticas públicas de Educação, como um profissional de Saúde no sentido estrito, ou seja: - está na escola para tratar dos desvios no campo educacional, daquilo que não é da Educação e supostamente escapa às suas competências -, mas estritamente da Saúde em seu viés patológico. Por que precisaríamos conversar com um professor, se a escola e a pedagogia já “contêm” uma especialidade voltada ao suporte técnico, fiscalização e vigilância aos professores, que é a de Orientação Pedagógica? Trata-se de uma pesquisa-intervenção em que acompanho o meu próprio percurso em itinerância, ao trabalhar como psicólogo nas escolas de uma cidade invisível, de ruas íngremes e sinuosas e muitas escolas dado o seu pequeno porte35, pondo em análise os efeitos das minhas práticas em relação às crianças, educadores e familares, e considerando as relações de poder constituídas nas questões históricas e políticas recentes da cidade. O cotidiano e as tensões que atravessam este percurso estarão em evidência, chamando atenção para a cena os atores da educação: professores, técnicos, gerentes do ensino (direção), estudantes e suas famílias, entre outros. Entre a escola e a cidade, “como é bastante comum nas ciências humanas, estamos aqui diante daquela situação que Deleuze chama causalidade imanente”. (VEIGA-NETO, 2008, p.142). Pensando “desse modo, não se trata de pensar a escola apenas como produzida pela sociedade em que ela se insere mas, também e ao mesmo tempo, de pensá-la como produtora desta mesma sociedade”. (VEIGA-NETO, 2008, p.142) A partir do momento em que questiono, em Antares, a compulsão das práticas psicológicas médico-assistencias na história recente das escolas em questão, e da consequente individualização do cotidiano e vida escolar, busco afirmar uma direção dissidente destas práticas hegemônicas que privilegiam os indivíduos a serem medicalizados. Diagnósticos e encaminhamentos para os setores da Saúde são as

35 Antares tem aproximadamente 15 mil habitantes. 38

demandas que evidenciam a precariedade da educação, mas também de grande parte dos cursos de formação dos psicólogos. Não tendo sido solicitado um trabalho institucional, que se dispusesse ao questionamento da escola, da cidade e de suas instituições soberanas, disciplinares, de controle, enfim, totais, deixamos claro que, quando o trabalho teve início nestas escolas, eu não tinha em mente, não sabia que o desafio seria uma análise institucional. A questão central desta dissertação emerge, então, de meu desconforto acerca dos excessivos encaminhamentos, nas escolas públicas da cidade de Antares, para a área médica e para uma escola especial, tendo o psicólogo como intermediador destas relações. Tal questão está implicada com o trabalho do psicólogo na escola, sendo atravessada pelas relações de poder que se estabelecem entre professores, diretores, alunos, especialistas e famílias, e no que considero como desafio, não só para o psicólogo, mas também para os atores da educação no avanço do processo do ensinar e aprender entendido como uma construção coletiva. Tradições, políticas, condições de trabalho, formação dos professores e dos especialistas, expectativas familiares, muitas vezes, dificultam transformações na forma hegemônica de entender a vida. Isto, nas relações de formação, significa consolidar padrões e normalizar os modos de subjetivação em detrimento da singularização da existência. É na lógica médico- assistencial que os dispositivos de medicalização e judicialização vêm ganhando consistência. Tenho percebido a medicalização dos alunos nessas escolas públicas, através das práticas discursivas e não-discursivas, especialmente dos docentes, como efeito com- pensatório aos não-ditos institucionais. Quais movimentos na escola são silenciados pela lógica médica atravessada nas práticas e relações gerais de ensinar-aprender? Os conflitos e tensões têm apresentado um desfecho compulsivo na patologização da infân- cia e adolescência, e a escola objetiva-subjetiva o psicólogo como um fiel intermediador de tais encaminhamentos que têm consolidado um tipo de relação de poder com tarja preta. Que instituições de controle e tarja preta têm contribuído para um não falar sobre as relações difíceis na Educação e o adoecimento no trabalho? O trabalho institucional do psicólogo, que leve em conta as implicações dos atores da escola e as questões que envolvem o seu trabalho, significaria uma automática e provável culpabilização do pro- fessor, já que descola o “problema” do aluno, numa política binária professor-aluno? 39

Pôr em jogo a atuação dos professores com os alunos, - em meio às práticas es- colares quase sempre com desfecho aos conflitos no corpo diagnosticado do aluno -, tem significado, aos olhos do docente, um desvio da normalidade das classificações comumente atribuídas aos estudantes. Deslocamento binário e automático da imputação da culpa do corpo de aluno para o corpo do professor. Sendo assim, evidenciam-se en- trecruzamentos entre as instituições de medicalização da infância e adolescência na es- cola e os processos de saúde-doença nas relações de trabalho no magistério. A ordem médica também tem sido uma forma de prescrição do trabalho do psicólogo na escola pública, na medida em que este profissional é convocado, reiteradamente, a agir como um avalista dos encaminhamentos médico-assistenciais na escola. Quais as forças em jogo e os modos sócio-políticos de produção na escola, e quais efeitos se engendram quando as questões educacionais são quase sempre abordadas como médicas? Os indícios, - que nas práticas de medicalização são possíveis rastros das histó- rias políticas de sua produção entre os atores da escola -, eu pretendo usá-los como dis- positivo analisador das relações de poder. Estas pistas têm-se constituído como os ditos, feitos e escritos hegemônicos na educação: uma compulsão de diagnósticos evocados na própria escola e pedidos de diagnósticos para alunos aos psicólogos, além dos encami- nhamentos certos aos médicos. Deste modo, nos interessa desanuviar aquilo que não é dito (é silenciado), e o que não se torna visível, pelas forças de repetições que roubam a cena. São ditos e previsíveis os lugares certos e prescritos: - para o psicólogo, como intermediador do assistencialismo médico, e para os professores, como meros executo- res de um trabalho tedioso e que adoece. Mais além do instituído, pretende-se, nas próximas páginas, dar visibilidade aos movimentos e relações instituintes do novo, através das pistas no percurso. Pretende-se uma cartografia do campo de batalha e das resistências, isto é, da arquitetura dos pro- cessos autônomos e dissidentes de discussão e debate coletivo, autogestionários e de desinstitucionalização na Educação. No Capítulo I, procedo à configuração e à análise crítica dos primeiros relatórios de medicalização, aqueles produzidos entre 2005 e 2008 pela equipe técnica anterior à minha. Com base nestes relatórios médico-assistenciais feitos por psicólogo e pedago- go, busco discutir as implicações históricas e éticas da psicologia com as práticas de medicalização, bem como compor um estudo genealógico do entroncamento psicológi- co-médico-pedagógico nas escolas públicas brasileiras de ensino básico. 40

No Capítulo II, discuto as práticas da medicalização no nível de operacionaliza- ção pela equipe técnica da qual participei, trabalho referente ao período 2009-2012. En- fatizo como se dão as configurações das demandas iniciais para o tratamento psicotera- pêutico do aluno e encaminhamento médico, tarefas atribuídas ao psicólogo. Tornam- nos, sem embargo, importantes as discussões a partir das cenas que se anunciam como efeitos - aparentemente a-históricos -, e que nos traduzem modos de produção coletivos de todo tipo de registro ou relatório pré-crime, isto é, médico-judicializante da vida. No Capítulo III, os relatórios se deslocam para as formas de encaminhamentos entre a escola e as famílias, relações que, não raro, se tornam impasses entre as partes: pais e professores. Nosso instrumental teórico, então, passa a ser o controle da articula- ção histórico-política atravessada por antigas-novas instituições de soberania, momento da pesquisa em que Foucault, Deleuze e outros autores subsidiam as discussões sobre as tradições soberanas - práticas políticas coronelistas e clientelistas na escola e na cidade – e o corporativismo das lutas-entre-competências na escola-empresa. No último capítulo da dissertação, Capítulo IV, as questões problematizadas en- volvem as relações verticalizadas entre os trabalhadores gerais do ensino: (1) educado- res e gerência autocrática dos assuntos escolares pela direção e (2) com foco nas rela- ções de desconfiança entre professores e os trabalhadores sociais ditos especialistas. Na conclusão, mais além do instituído nas versões dos relatórios pré-crime evi- denciados ao longo dos capítulos, pretende-se dar visibilidade aos desafios e perspecti- vas no que tange ao trabalho institucional do psicólogo na Educação. Os desafios que se mostraram ao longo de um percurso de trabalho nas escolas públicas municipais de Antares/RJ, nos darão indícios das possibilidades de construção coletiva de novas práti- cas institucionais, reposicionamentos contestatórios das ordens de medicalização, judi- cialização, de coronéis soberanos e clientes, acopladas sob a égide biopolítica na escola- empresa. 41

1 OS PRIMEIROS RELATÓRIOS DE MEDICALIZAÇÃO: OS DIAGNÓSTICOS DO CORPO DO ALUNO NA PONTA DO ICEBERG

Foto 01 - do mural de avisos da Escola Especial (NAEE) de Antares “Favor não esquecer de dar o remédio dos alunos”36.

Não contestei a primeira prescrição ao meu trabalho como psicólogo: - a de que eu iria atuar junto à Secretaria de Educação, mesmo sabendo que minha formação acadêmica tinha sido diversa deste campo específico de trabalho psi. Estagiei na área da Saúde Mental, através de estágio curricular que realizei no Instituto Philippe Pinel, e na área de Psicologia Social e Comunitária. O único contato que tive com a Educação, durante toda a minha graduação em psicologia, foi com minhas práticas em Alfabetização de Jovens e Adultos (EJA), na favela da Maré, em um programa de

36 Aviso afixado em mural do NAEE para os funcionários em geral (27/06/2011). 42

extensão promovido pela UFRJ. No momento em que tomei posse como psicólogo vinculado à Educação na cidade de Antares, apenas aceitei o desafio. Embora a minha expectativa fosse a do trabalho junto à Saúde Mental, os conteúdos programáticos nos indicavam a possibilidade nas três áreas de atuação mais presentes nos serviços públicos estatais: Assistência Social, Saúde Mental e Educação. Além disso, constavam livros relacionados à temática da Saúde e Relações no Trabalho. Fora, realmente, um concurso generalista para psicólogo, pois que não definia a área específica de atuação na cidade. Na Secretaria de Educação, após assinarmos o livro da posse, nos deram uma lista com os nomes das doze escolas municipais existentes, entre elas uma escola especial. Como eu havia sido aprovado na terceira colocação, e o outro psicólogo em quarto, pude escolher, primeiramente, uma das metades com seis escolas cada. Fomos informados de que as unidades de cada grupo eram mais próximas entre si, demorei horas para escolher quais escolas onde trabalhar, pois não sabia de suas localizações, e decidi pelo grupo que continha a Escola Especial NAEE, Núcleo de Atendimento Educacional Especializado de Antares. A partir daí, tínhamos de nos apresentar a cada uma das escolas... No primeiro dia na Escola Estadual Municipalizada Alpha (EEMA), - a de maior porte em que trabalharia -, prontamente organizaram uma reunião em que se encontravam a diretora, a orientadora educacional e a orientadora pedagógica, as duas últimas também convocadas através do concurso público, e estas foram as primeiras palavras da gerente da escola: “ – Que bom que chegou o psicólogo para resolver todos os nossos problemas!” Os primeiros registros e relatórios, - escritos, falados, praticados nas relações -, eram (1) aqueles registros que constavam nas pastas individuais dos alunos nas seis escolas em estudo, que traduziam versões especializadas, (2) os relatos das histórias familiares e escolares dos alunos feitos na forma das demandas iniciais discursivas pelos atores escolares, como Secretária e Sub-secretária de Educação, diretores, professores e demais funcionários, e (3) os registros da primeira equipe técnica que atuou nas escolas, de psicologia e (psico)pedagogia.

Setembro de 2009, Colégio Municipal Beta Pedrinho havia sido encaminhado pelo psicólogo da antiga equipe técnica para exame neurológico, porque falava dormindo. A neurologista Dr.ª Hyde, da policlínica 43

(do bairro da escola Alpha) expressara a não necessidade de acompanhamento em sua especialidade. O menino também foi encaminhado pela equipe a algumas consultas com um neuropsiquiatra do CAPS. O Centro de Atenção Psicossocial ficava do outro lado da rua, a uma quadra desta escola, e os encaminhamentos escola- neuropsiquiatria tornar- se-iam cada vez mais intensos, além daqueles que ocorreriam no sentido CAPS - Escola: Em 03/10/2007, ao receber um parecer da neurologista com laudo de eletroencefalograma, o psicólogo K. relatava:

– Neste dia, a mãe trouxe um diagnóstico da neurologista de que ele não tem nada (não é hiperativo), que o seu eletro deu normal, então é uma questão comportamental. / Comparecer a família toda. 28/11/2007 – K pede outro exame à mesma neurologista. 16/04/2008 – Novamente, marcar com neuropsiquiatra. 27/08/2008 – Mãe levaria outro eletro ao psicólogo da escola. 25/11/2008 – Encaminhamento ao neuropsiquiatra (CAPS) 02/12/2008 – Encaminhamento ao neuropsiquiatra. [sic.] (arquivos equipe técnica 2005-2008; grifos meus)

Trata-se de um dos primeiros atendimentos em que um aluno é encaminhado rei- teradas vezes como condição para a assunção de que o problema ou dificuldade do alu- no é psicológica, ou comportamental, passível da intervenção de um profissional de psicologia. Foi preciso antes saber, através dos encaminhamentos à área médica, em duas especialidades, se o problema na forma da demanda escolar seria um problema médico, para depois então defini-lo, por exclusão, como psicológico. Seriam as práticas médicas e psi interexcludentes, o oposto uma da outra, ou, se não uma tem de ser a ou- tra, obrigatoriamente !? Nesta relação de causa e efeito, parece que o campo de inter- venção psicológico se submeteria ao médico, no estabelecimento de um binarismo, uma tautologia. As consultas psicológicas individuais nas escolas eram agendadas (na escola Al- pha, pela orientadora pedagógica) de segunda a sexta para atendimentos de trinta em trinta minutos, com os alunos apenas, e com estes juntos dos familiares, na maioria das escolas em estudo. Apresento a seguir uma grade de horários para atendimentos psi in- dividualizados e à família, a constar nos cadernos de registro da escola Alpha:

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HORÁRIO NOME PRESENÇA FALTA

09:30 INJUN JOE X

10:00 BENJAMIN ROGERS OK

10:30 DOUG X

11:00 JOSEPH HARPER OK

11:30 GEORGE OK

12:00/12:30 ALMOÇO XXXXXXXXX XXXX

13:00

13:30 EDGARD BROWN X

14:00 BRUCE WAYNE OK

14:30 SID OK

15:00 HUCKLEBERRY FINN OK

15:30 BILL TURNER X

16:00 MATHEWS OK

16:30 WILLIE MUFFERSON X

17:00 BRUCE BANNER OK

17:30 ROGER OK

18:00 WARREN WORTHINGTON III OK

Quadro 1 - Psicólogo K – Relação de alunos que serão atendidos37 data do atendimento: 10 de julho de 2007 – (terça-feira)

Estudantes são chamados com seus irmãos a um mesmo atendimento com sua família: Alunos agendados com suas famílias p/ dia 08/04/2008: 12:30 – 1.º) Pam (4.ª série) e Mathews B (3.ª série) transferidos. 13:00 – 2.º) Warren (3.ª série) 13:30 – 3.º) George (104) – 1.ª B 14:00 – 4.º) Anna Carolina (4.ªsérie) e Pati Pimentinha (2.ª série/202) 14:30 – 5.º) Brenda (4.ª) e Brian (6.ª) 15:00 – 6.º) Johnny (104) - 7.º) Ana Carolina B (103) [sic.]

37 No quadro abaixo, alguns destes nomes fictícios para os alunos reais das escolas de Antares foram inspirados nos nomes dos personagens do livro As Aventuras de Tom Sawyer, e outros de histórias em quadrinhos. 45

1.1 As Crônicas vão configurando a modulação Escola-Triagem

Wendy Darling, 6 anos, na 1.ª série A38 da Escola Alpha

O psicólogo 18/03/2008 – Família: Mãe (27 anos), irmão (4 anos), avó (materna) ( 55 a- nos), marido (Padrasto) (27 anos), e tio (materno) (15 anos). Pai (os pais são separados) Medicação – Celestonia39, Mucolin, Label40, Hidróxido de Alumínio e Moti- lha41 Diagnóstico - refluxo de grau 4, bronquite e alergia Nasceu prematura c/ problema de coração (abertura no coração). Com 5 me- ses ela e o pai se separaram. Quando ela tinha 1 ano de vida, a mãe foi morar c/ o padrasto, que é quem “banca tudo”. [sic.] 09/07/2008 - Compareceram a avó e ela. A mãe teve que ir a Teresópolis a trabalho. A avó relatou que a mãe não tem paciência e que ela teve problemas de saúde, ao nascer, mas que agora, está aparentemente bem. Só o sono dela é que é ruim, pq ela acorda sobressaltada toda hora. Marcar com o neuro-psiquiatra. Às vezes, ela Tb parece não ouvir bem. Pedi para retornarem qdo eu voltar. A avó, a mãe e ela Retornarem depois das férias. [sic.] 02/09/2008 – Abertura grande no coração (da válvula) que vai fechando, na- turalmente. Compareceram ela e a avó. Avó relatou que a filha (mãe dela) não pode vir, pq trabalha e estuda muito, para dar o melhor para os filhos. O pai dela é o motorista do ônibus escolar, e quase não dá atenção a ela, apesar dela vê-lo todo dia de longe... A avó relatou que ela está c/ o sono ruim, que acorda muito de noite. Retornarem. [sic.] 11/11/2008 - Prof.º Edgard, mãe – Sr.ª Darling, irmão: - Ernesto – 5 anos. Compareceram ela e a mãe. A mãe relatou que ela está melhor. Que tirou no- tas boas e vai passar de ano. Agora o estado de saúde dela é que precisa de uma nova avaliação, pq Dr.ª A.B. pediu com urgência para ela ir a um neu- ropsiquiatra, um cardiologista, um pediatra e um gastro que atendam crian- ças. Ela tem um problema sério de coração, que precisa ser avaliado e acom- panhado por estes especialistas. Ela fez uma poligrafia e deu 60 apneias durante o sono, num dia que por aca- so ela estava super tranquila. Então, Dr.ª Hyde, ficou apavorada e pediu que ela tentasse c/ a Secretaria de Saúde autorização para ser atendida por estes profissionais especializados em atendimento com crianças. Que ela pode morrer dormindo. Ela já fez tratamento no Hospital Fernandes Figueira, no Rio. Pedimos as cópias dos exames e Alicia42 [D.: (psico)pedagoga] vai ten- tar estes atendimentos com a Secretaria de Saúde. Retornarem ano que vem. [sic.] A mãe43

38 Primeiro ano de alfabetização. 39 Celestone – nome comercial do fármaco betametasona, fabricado pelo laboratórios Mantecorp. 40 Cloridrato de Raniditina.

41 Referem-se ao Motilium, um dos nomes comerciais para o fármaco Domperidona, além de Peridona, Peridal e Cinet, de acordo com o laboratório farmacêutico que o produz. A Domperidona é um fármaco antidopaminérgico, do grupo dos "modificadores da motilidade gastrointestinal", que é utilizado para tratamento de situações de vômitos ou náuseas. 42 Nome fictício da (psico)pedagoga da primeira equipe técnica. 43 Carta datada de 19 de outubro de 2010. Os erros de grafia e ausência de pontuação quando necessárias são transcrições literais da carta escrita. 46

19/10/2010 – Olá! A minha mãe [D.: refere-se à avó de Wendy] deve estar falando com vocês agora sobre o que eu, no dia dessa carta que estou escre- vendo, tive o conhecimento e que já havia há muito tempo suspeitado e que outras pessoas também haviam levantado hipóteses. Primeiro é que eu estive com um psicólogo nessa noite e tive uma palestra sobre o assunto que casou em tudo ou, pelomenos 98%, com o que passo com minha filha. Então, conversando com ele e com um professor responsável por trazer ele para palestrar, eles identificaram a necessidade urgênte de recorrer à escola, já que aos médicos andamos em passos lentos, pois os dois são da área também de pedagogia e viram que “a eminência é grande para que sejam feitas medidas midigadores e de suporte para que não haja piora no quadro ou mesmo uma desmotivação diante do não êxito da criança diante de seu gran- de esforço”. Ele me encaminhou para uma parte relevante da medicina que poderá ajudar a dar suporte nessa complexidade do caso e pediu para reforçar a ideia de que ela não é preguiçosa e que ela provavelmente não consegue lembrar ou mes- mo se motivar para isso, e que isso de achar que ela é preguiçosa só vai mas- carando o caso ou estigmatizando a criança e eu mesma estava fazendo isso. Há a possibilidade dela (sic) ter Disgrafia, Disfasia, Disortografia, essas eles levantaram a possibilidade diante do relato do que falei do desenvolvimento desde o Jardim e principalmente na entrada para alfabetização. E a Dislexia, essa já supra citada por inúmeras pessoas que tiveram contato com ela e o ritmo dela. Renata44 e Karina45 por favor si for possível mesmo sem o diag- nóstico laboratorial eu peço que começem a tratar o caso com mais cuidado e ainda mais, com mais jeitinho, pois o que pode está em risco agora é muito mais que um ano letivo, mais sim uma possibilidade de frustração e levado a derrepente uma esperiência traumática que poderá resultar em não mais si sentir capaz de encarar novamente uma sala! Não sei se era para fazer o que estou fazendo mais se vocês não puderem fa- zer nada, me fala com quem eu posso fazer, seja a diretora ou a Secretaria de Educação ou mesmo o Prefeito para que haja este acompanhamento. A sigla é TDAH se quizerem pesquisar mais e tem a ABDA (Associação Brasileira de Déficit de Atenção) que dão cursos para professores saberem li- dar com esses tipos de crianças, isto normalmente é hereditário e pode ser agravado com o tempo, onde o fator que mais faz a exclusão é o não compre- ender o que acontece com essas crianças. Estou bem informada do assunto e estou me colocando à disposição de vocês e se vocês quizerem, esse mesmo Professor e Psicólogo pode vir apresentar de perto o TDAH de maneira a esclarescer dúvidas e ensinar o que possível for. Ele tem, “Eles têm” filhos assim e sabem bem o que as duas partes preci- sam, Escola e Aluno, fora que eles entendem a parte dos pais - “mãe”, que é o meu caso! O nome dele é Dr.º J. M. Barrie46 e tenho mais outros contatos. Pense em uma forma mais justas com as condições dela de avaliação para que ela não fique se sentindo como ela falou “uma burra”. Agradeço desde já, não me entendam mal, não duvido da ótima professora que é a tia Karina e do quanto já tem nos ajudado e não duvido da Escola em si diante dos problemas. Sei que tenho muito a agradecer, principalmente, as duas. Você, Renata, que me abriu os olhos de como estava sendo dura comi- go e com minha filha como no instante que ela nasceu e principalmente a- prendi a enfrentar seus limites e aceitá-los e respeitá-los.

44 Esta professora tornar-se-ia orientadora pedagógica na Escola Alpha, à época da atuação da minha equipe técnica.

45 Professoras.

46 Referência ao nome do escritor – James Mathew Barrie - da peça de teatro Peter Pan, que originou o livro homônimo escrito em 1911.

47

Obrigado por tudo, Obrigado por vocês não desistirem! Sra. Darling [sic.] (grifos meus)

A mãe da aluna Wendy, aluna matriculada na escola Alpha, tem feito incursões (desde o encaminhamento desta carta em 2010) à unidade escolar de modo a solicitar um processo de “inclusão” para a filha. Em uma entrevista com ela, - realizada como uma conferência de quatro palestrantes para a plateia de uma mãe só: eu, o assistente social, a (psico) pedagoga e a OE -, nos diz “ter ficado em dúvida: ‘-não sei se faço a inclusão de Wendy...’ ” Num dia de entrevistas coletivas automáticas como esta (em 15/03/2011), - sur- gia um pai na escola, a diretora nos encaminhava em segundos, e logo todos os “especi- alistas-técnicos” entravam em formação de “reunião colegiada” -, em que o coletivo era, quase sempre, de entrevistadores. Parecíamos então como inquisidores da família, o que me preocupava. As famílias, em muitos momentos, já vinham com sua demanda pré- definida, esperando só que a ratificássemos. Precisavam de um aval nosso. E quanto mais técnicos da escola assinando juntos, atuando na corroboração de suas hipóteses, melhor. Ficamos quase três horas em conferência:

A Equipe Técnica e a Mãe47 15/03/2011 - Entrevista com a mãe de Wendy (no 5.º ano neste ano) > Sra. Darling fala que a aluna está sendo acompanhada por junta médica num hos- pital federal, e que durará cinco semanas de avaliação. No final de 2010, co- meçou tratamento com Juliette [D.C.: psicóloga do posto de saúde]. Tem fei- to desde dezembro de 2010, parou janeiro, e fez 7 e 8 de fevereiro. Houve 5 ou 6 sessões. Faz tratamento em neurologia agora. É paciente do hospital desde que nasceu: teve refluxo, nasceu com coração aberto e tem apneia. Nasceu prematura, de 8 meses, a bolsa estourou três vezes. Nasceu com espi- nha bífia. Mãe: - No setor pneumologia, houve um erro médico quanto a um exame que verificou 50 apneias, dizendo normal esta polissonografia. [...] Fez no Institu- to do Sono. - Precisa fazer cirurgia da adenoide, a Prefeitura e os dois últimos Secretários de Saúde sabiam. À época do nascimento, teve sopro no coração, faltou ácido fólico. A gravidez foi não desejada: descobri com 5 meses e meio. Tive para- da respiratória, eclampsia. Ela nasceu em sofrimento, minha pressão chegou a dezessete. Nasceu em abril, em agosto eu e o seu pai nos separamos. Tive depressão pós-parto.- Tem grau 4 de refluxo, porque não se desenvolveu a válvula do estômago, e há falha no esôfago. Ainda tem 9% do coração aberto e fez muitas cirurgias. - Foram pedidos relatórios ambulatoriais pela pediatra e neuro. O neurologis- ta botou fita métrica na cabeça dela e a viu dois anos atrás. Mudou hipótese de TDAH para “água no cérebro”. Falou na frente da família. Em maio, ela vai para consulta para receber resultados dos exames. Sobre o TDAH: é que ela para e trava. Fica paralisada na sala.

47 Registro de meu diário de campo de 15/03/2011, escola Alpha, com a transcrição de falas minhas e da responsável pela aluna. 48

A mãe solicita relatório da equipe com os professores, para levar ao neuro e à pediatra do hospital: - A professora Karina falou em realizar a inclusão de Wendy; eu disse ter ficado em dúvida: não sei se faço a inclusão de Wendy... Há uma prova em abril, e a mãe está muito preocupada: - eu tô com medo de enfrentar uma prova assim, como no ano passado: “ZERO”. Eu estudava com Wendy em casa. Mudando de assunto: - Os alunos não podem levar livro para casa! Quero deixar como reclamação. A diretora Ágatha, da escola Alpha, não pede mate- rial à Secretaria de Educação para não dizer que precisa. A diretora da escola infantil (Sra. Filomena) tem muito material: EVA, lápis e etc! [sic.]

O pedido de inclusão se resumiu, então, à realização de uma adaptação curricu- lar para a aluna, o que quer dizer que, a partir da produção pela responsável de um en- tendimento-verdade a respeito do caso da aluna-filha, este processo exigiria uma com- pressão dos conteúdos educacionais que a estudante deverá aprender. Está aqui, em questão, a evocação de um suposto distúrbio de aprendizagem, ou de uma doença-do- aprender, como o celébre e famigerado TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. É o que, na escola, tem-se chamado de adaptação curricular: aprender apenas o necessário. Mas o que é o necessário? é possível prever prováveis e futuros limites in- transponíveis no processo do aprendizado de cada aluno? Trata-se de uma clara política de fabricação de limitações-adaptações sem fim. Quem prevê a adaptação-em-si (como dispositivo de controle, contenção e redu- ção), não imagina a cognição como invenção, - ato de criação na escola -, mas sim a identificação às normas prescritas.

Tomando como referência a filosofia de Bergson (1907/1948), a invenção ca- racteriza-se por dois aspectos. Em primeiro lugar, a invenção é sempre in- venção de novidade, sendo, por definição, imprevisível. Em segundo lugar, para Bergson a invenção, em sentido forte, é sempre invenção de problemas e não apenas invenção de solução de problemas. São esses dois pontos – o ca- ráter imprevisível do processo de aprender e a invenção de problemas – que necessitam ser incluídos no estudo da aprendizagem inventiva. (KASTRUP, 2001, p.18)

O identificar-se em geral com os espaços e tempos escolares já dados (pré- moldados) – com os horários certos e as grades sem um contestar nas tensões cotidianas -, é a instituição de um fim-em-si das perspectivas, e das diferenças. Este caminho tem sido um fio da rede escolar de relações que não a desdobra em novas possibilidades, mas a tem embolado como linhas entrelaçadas e sem-saída na reprodução do tédio e dos adoecimentos no magistério, assim como nas readaptações que têm sido promovidas por muitos professores da educação básica. 49

Em seguida, a mãe vai à escola solicitar a avaliação da nossa equipe técnica vi- sando a tal “inclusão”, que no seu discurso e no discurso e prática em geral na escola significa a pura e simples adaptação curricular. Nada mais simples. Durantes as conversações com a mãe de Wendy, acompanhado dos outros com- ponentes da junta (equipe) técnica, concentram-se as forças da escola, - com o grupo formado por professores da aluna (o da turma atual e aqueles que lhe conhecem desde as primeiras aulas de alfabetização), a direção e outros como a coordenação da equipe SAFE -, de um lado, e as forças da família, de outro. São dois blocos agindo em unísso- no, e que versam a demanda à equipe pela produção (ou pelo encaminhamento em soli- citação do documento a profissionais de estabelecimentos de Saúde) de um laudo que, legalmente, instrumentalizassem os educadores para fazerem a dita adaptação da estu- dante. Na fala de alguns professores “- precisamos de um respaldo legal, sem ele não podemos fazer nada; temos de continuar a dar a mesma prova que os outros alunos, que já sabem ler e escrever, os não atrasados, fazem.” Sendo assim, encaminhei uma questão à mãe e aos colegas: - considerem que, para os vários atores da escola Wendy seja uma aluna especial (ou portadora de necessi- dades especiais), e que, para ser devidamente assistida precisássemos de laudo médico ou de outro especialista que nos subsidiasse e outorgasse o saber-fazer de um dispositi- vo de adaptação curricular. Como saberíamos, - com exatidão -, se a aluna não aprende- ra a ler e não acompanhara a média do desempenho de sua turma devido a algum supos- to distúrbio-da-aprendizagem ou deficiência que a incapacitasse? E se pensarmos o fra- casso escolar na esteira dos processos sociais, políticos e históricos que atravessam a escola e governam as condutas dos alunos, e que têm trazido, entre outros, o efeito das aprovações automáticas e do não-aprender ? A família almejava a produção de relatórios de todos os lados, do hospital de reabilitação e da escola, para confrontá-los e descobrir o que sua filha tem, qual seria a deficiência. Ficou combinado que em maio, quando teria os resultados de exames neu- rológicos e pediátricos, ela os trouxesse, ao passo que lhe daríamos um relatório técnico da equipe, o qual seria feito com os professores. Poderíamos ter continuado as discus- sões, não fosse a chegada de um laudo, que silenciou os debates:

50

A fonoaudióloga

Departamento de Pediatria – Serviço de Neurologia48 Ambulatório de Fonoaudiologia Especializado em Linguagem Coordenadora: XXXXXXXX, Fonoaudióloga, Phd.

Nome: Wendy Darling Prontuário: XXXXXX Data de Nascimento: 17/07/01 Idade: 10 anos e 1 mês Data da Avaliação: maio de 2011 Tel.: XXXXXXX Mãe: XXXXXXXX Escolaridade: Ens. Superior Completo Pai: XXXXXXX Escolaridade: Ens. Médio Completo Encaminhamento: Ambulatório de neurologia. Queixa Principal: “Dificuldades na leitura e na escrita” Examinadora: XXXXXXXX

AVALIAÇÃO FONOAUDIOLÓGICA – APRENDIZADO INFORMAÇÕES [...] OBSERVAÇÃO DO COMPORTAMENTO [...] AVALIAÇÃO REALIZADA I.Perceptiva II. Memória III. Linguagem [...] RESULTADO DA AVALIAÇÃO

CONCLUSÃO Wendy está com 10 anos e 1 mês de idade e foi encaminhada pelo ambulatório de neu- rologia para avaliação fonoaudiológica com queixas de dificuldades escolares quanto à realização de cópias. Os resultados de cada teste estão descritos nos respectivos itens, neste laudo. Os resultados da avaliação da discriminação auditiva de pares de fonemas indicaram re- sultado adequado. A avaliação da discriminação visual de letras e palavras apresentou resultado inadequado. Os resultados do Teste de Avaliação do Desenvolvimento da Per- cepção Visual (FROSTIG) indicaram resultado nas habilidades figura-fundo, constância de percepção e relação espacial; inadequado resultado nas habilidades de coordenação visomotora e posição espacial habilidades fundamentais no desenvolvimento da decodi- ficação da leitura e na codificação da escrita. Os resultados das avaliações da memória auditiva indicaram que Wendy apresenta re- sultado inadequado para memória de trabalho para dígitos, com dificuldades maiores para a repetição de dígitos na ordem inversa que pode sugerir dificuldades em abstração. O resultado da memória auditiva para repetir sentenças foi inadequado com escore pa- drão EP= 05., Wendy apresentou dificuldades na repetição de sentenças quando aumen- taram de extensão e complexidade, além de evidenciar dificuldades com ordens conten- do sequência de primeiro, segundo e último e direção direita e esquerda. Wendy ainda nomeou a forma geométrica: círculo, primeiramente como bola e depois como retângu- lo. A avaliação da linguagem receptiva e expressiva foi realizada com a bateria de testes CELF-R, Wendy alcançou escore padrão (EP) (média EP=100) na linguagem compre- ensiva evidenciando distúrbio severo e alcançou (EP) 70 (média EP=100) na linguagem expressiva evidenciando distúrbio moderado. O escore padrão global alcançou (EP) 61 (média EP=100) e idade equivalente a 6 anos e 3 meses de idade, o que indica inade- quado desenvolvimento global da linguagem oral com distúrbio severo.

48 Departamento de pediatria de uma instituição federal de ensino e cuidados em Saúde da mulher, da criança e do adolescente, que se localiza no Rio de Janeiro, capital. 51

O TONI-3 – Teste não-verbal que avalia as habilidades cognitivas através do raciocínio abstrato e da resolução de problemas. Wendy alcançou resultado inadequado com quociente (QD) =74 e idade equivalente a 6 anos e 3 meses de idade. Em relação à compreensão de parágrafos lidos pela examinadora, Wendy apresentou re- sultado adequado para parágrafos correspondentes à sua idade cronológica, com falhas. O vocabulário receptivo avaliado com o PPVT, Wendy alcançou resultado adequado com escore padrão 101 (média EP= 100) média alta correspondente a idade de 10 anos e 2 meses. Wendy apresentou resultado adequado nos subtestes que avaliam as habilidades de consciência fonológica como: combinação de sons e rima. Na leitura de texto oral de 2.º ano apresentou inadequação. Na leitura silenciosa corres- pondente ao 2.º ano, apresentou compreensão parcial do conteúdo. Em relação à escrita, Wendy apresentou inadequação para escrita de palavras reais com falhas no uso de letras e acentuação e uso de testes, com escrita compatível com proces- so de alfabetização. Na cópia de teste de 1.º ano (alfabetização), Wendy não copiou o título, copiou correta- mente somente as duas primeiras palavras e continuou com palavras inexistentes. Num segundo momento, a examinadora auxiliou a Wendy e a mesma realizou com um pouco mais de facilidade. Copiou o texto completo, com boa caligrafia, no entanto, ainda apre- sentou falhas como: escrita de palavras inexistentes no texto, omitiu palavras e escreveu palavras inexistentes no léxico. É indicado que ela dê continuidade aos atendimentos de fonoaudiologia especializada em linguagem/ aprendizagem a fim de maximizar as suas habilidades de linguagem e desenvolver as habilidades que ainda não apresenta. É indicado apoio psicopedagógico com objetivo de auxiliar o desenvolvimento da leitu- ra e da escrita da Wendy. Sugiro avaliação do desenvolvimento cognitivo com objetivo de complementar as in- formações deste laudo. [...] [sic.] (LAUDO FONOAUDIOLÓGICO; grifos meus)49

Inadequação Na parte grifada do laudo, verifica-se que a menina alcançou resultado inade- quado, quociente (QD) 74 no teste não-verbal TONI-3, “que avalia as habilidades cog- nitivas através do raciocínio abstrato”, diante dos padrões esperados. Ela alcançou tam- bém “idade equivalente a 6 anos e 3 meses de idade”. Idade mental? Este julgamento que se refere a um ponto específico, a uma das avaliações, foi o que bastou para que a coordenadora da equipe e a (psico)pedagoga assumissem que a idade mental da aluna fosse, de fato, a de seis anos e três meses. O documento enviado pela fonoaudióloga era uma garantia de que ela era mesmo portadora de um “atraso” mental, o que lhes subsi- diava a promover a adaptação curricular, sem que pudessem sofrer processos judiciais pela conduta. Não são profissionais de Saúde os pedagogos, e, portanto, não se sentem seguros em oficializar diagnósticos de enfermidades da aprendizagem. Na parte item “Sub-testes para faixa etária de 8 anos a 16 anos e 11 me- ses/linguagem receptiva”, no qual Wendy também não obteve êxito: Classes de Palavras – avalia a habilidade para perceber as relações entre as palavras que pertencem à mesma categoria semântica. EP= 05

49 Documento externo enviado à Escola Alpha – excerto de um laudo fonoaudiológico. 52

Wendy apresenta resultado inadequado. Ex.: triste; devagar, pequeno; rápido. Wendy respondeu: “triste e devagar”. [sic.]

As duas palavras deveriam pertencer a uma mesma “categoria semântica”. Deve- riam constituir uma relação de sentido de oposição entre elas. Não sei se isso foi infor- mado, mas Wendy interveio de modo afetivo, emocional, e inventou um sentido entre as palavras “triste” e “devagar”. Dizia à sua maneira que aquelas palavras lhe afetavam no momento, na construção subjetivante de um sentido para si; um não-sentido aos olhos do avaliador e dos padrões dos testes. Deste modo, o padrão esperado restringe as pos- sibilidades, e o teste não consegue capturar todas as nuances possíveis, como uma res- posta criativa e afetiva de Wendy, que foge ao previsível. O que escapa ao padrão tem- se projetado nas sombras, até quase se tornar invisível. Muitas vezes é visto como uma ameaça às instituições em tempo aprisionado (comprimido) na escola. Relações semânticas – avaliar a habilidade para interpretar diferentes relações semânti- cas em sentenças. EP = 03 Wendy apresenta resultado inadequado Apresentou dificuldades nas seguintes categorias: o Comparativa – ex.: A água é mais líquido do que? terra; leite; gelo; suco. Wendy respondeu: “leite e suco”; Os livros são mais pesados do que ? Televi- sões, penas, mesas e algodão. Wendy respondeu: penas e mesas. Apresentou ainda mais dificuldades com relações semânticas nas categorias de voz passiva, relação espacial e temporal. 50 [sic.] (GRIFOS MEUS) Como seria possível a água ser mais líquida do que a terra ou o gelo? Como esta comparação pode ser feita deste modo, com esta interrogativa, se estas últimas substân- cias não são líquidas? O que é mais líquido pode ser entendido como o que é menos misturado, ou em estado ou solução menos bruta, como no caso da água para leite ou o suco. Esta é uma outra interpretação diferente e possível. Isto, só para demonstrar que certos desvios da normalidade esperada, movimentos à deriva dos padrões estimados podem não ser levados em conta numa avaliação como esta. Esta crítica não pretende negar que existam problemas de aprendizagem, - e esta aluna tinha mesmo dificuldades na escola -, mas dificuldades que não são só dela. Que não começam nem acabam nela mesma. Há outras instituições em jogo, que inclusive lhe promovem um sentido de in- dividualidade isolada de problemas sociais e políticos (e dos históricos de vida, do que está instituído e do que está em luta mesmo que silenciado) na escola, e que fixam o

50 Esta transcrição é de um trecho da página 5 do laudo. 53

indivíduo que estuda em uma unidade tripla: indivíduo-problema (doença da aprendiza- gem)-tratamento medicamentoso. O que podemos afirmar, de início, é que o uso de laudos como este têm silencia- do as discussões nas escolas. Documentos como este, discutido acima, têm ofuscado os questionamentos e silenciado outros movimentos possíveis na Educação – críticos e contestatários - com relação ao domínio das ditas doenças-do-não-aprender do aluno e as práticas político-pedagógicas focadas na sua detecção e encaminhamento -, desloca- mentos necessários para tempos de criação na escola. É o que pode continuar a se repe- tir se ainda estivermos à espera de diagnósticos em laudos para assegurar nossas ações. Pois, na medida em estes produtos se fabricam, entravam-se os diálogos sobre o territó- rio institucional em cujos entrecruzamentos se produzem os encaminhamentos médico- assistenciais e individualizantes das tensões gerais.

1.1.1 Uma Cidade de Fronteira entre Manicômios e Pupilagens

Nossos dois períodos ditatoriais e seus embates precedentes atravessam a micro- história recente de Antares. O antigo distrito dos Barões vira município em 1963, mes- mo ano em que se inaugura o grande hospício Doutor Eiras51, na cidade próxima de Paracambi52. Um outro incidente histórico-institucional no microcosmo de Antares trata da antiga existência marcante de dois internatos-escola para jovens órfãos e infratores, ligados a entidades filantrópico-religiosas53, e localizados em antigas fazendas bem a- fastadas e escondidas da área urbana do Centro da cidade.

51 Casa de Saúde Dr. Eiras S/A. Este estabelecimento psiquiátrico, sito no bairro de Lages, em Paracambi, teve seus portões de acesso fechados em 23 de julho de 2012, e já foi o maior manicômio da América Latina, com cerca de dois mil e quinhentos internos nos anos de 1980. 52 A cidade de Paracambi é conhecida por muitos como “cidade da loucura”. A primeira vez em que ouvi a alcunha foi através de um morador da cidade e que lá trabalhava na Saúde mental. Wladimir, o assistente social integrante da equipe técnica escolar de Antares. Com a derrocada das fábricas da outrora cidade industrial, a partir dos anos 70, os dois grandes manicômios (A “Eiras” e a “Cascata”, como costumam ser chamados pelos paracambienses e profissionais da Saúde Mental) lá existentes passaram a ser os principais mantenedores dos empregos para a população local. E a economia girava então em torno da existência da Casa de Saúde Dr.º Eiras, principalmente. A exemplo, as festas juninas que ocorriam no hospital psiquiátrico eram acontecimento geral da cidade, não restrito aos usuários, familiares e profissionais. Era um evento aberto a todos os cidadãos. 53 O internato-escola para infratores, - era vinculado à FACR – Fundação Abrigo do Cristo Redentor, entidade formada em 1976. Por sua vez, a atual Escola Especial de Antares fica em espaço que funcionava, anteriormente, como um outro internato-escola na cidade, ligado a um Educandário da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, sendo esta uma instituição de cuidados à infância de 54

A partir do século XIX os valores de preservação da vida se fizeram anunciar no espaço da cidade, e seus primeiros arautos: os médicos higienistas. A va- lorização do corpo, a normalização das condutas, a moralização de almas lai- cizadas porque não mais se buscava a salvação eterna, e sim a sua relação com o corpo, a saúde e a doença – se a alma se entrega às paixões desenfrea- das, o corpo padece. Mas a quem se referiam os higienistas do século XIX? [...] Pobres e principalmente escravos e indigentes teriam ação indireta nesta modernização das almas de elite: fonte de todos os malefícios (epidemias, ví- cios e degenerações), eles funcionavam como admoestação à obediência dos preceitos higiênicos, e por isso deveriam ser afastados do convívio urbano, internos em espaços próprios como os depósitos de medigos, prisões, asilos e hospícios ou, no caso dos escravos, enviados para o trabalho rural. Com o tempo, a medicina social irá tomar a caridade das mãos dos leigos, estenden- do discursos e práticas normalizadoras ao resto da população. Estará articula- da à filantropia, transformando o hospital num estabelecimento propriamente médico e deixará sua marca normalizadora nos demais: escola, asilos, fábri- cas e prisões. (LOBO, 2003, p. 291-292)

A existência de manicômios nas cidades próximas a Antares, como o Doutor Ei- ras e a Clínica da Cascata em Paracambi, o famigerado Sanatório da cidade de Men- des54, e das instituições totais de antigos reformatórios para jovens são os primeiros es- paços de trabalho psi que Antares, seus governantes e moradores conheceriam, notada- mente a partir de meados das décadas de 1960 e 1970. A maioria dos estabelecimentos asilares acima descritos, - destinados a doentes mentais, dependentes químicos, jovens órfãos e/ou infratores (pobres e negros em sua maioria, como relatado por muitos pro-

formação muito mais antiga. Enquanto a primeira é fundada em 19 de agosto de 1943, por meio do Decreto-Lei n.º 5760, em sucessão à sociedade civil Abrigo do Cristo Redentor, o início da segunda é muito mais remoto: as Santas Casas foram fundadas no século XVI. Estas são órgãos historicamente voltados à assistência médica e social no Brasil: “A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro Foi fundada em 24 de março de 1582 pelo sacerdote espanhol José de Anchieta, para cuidar dos homens da frota de Diego Flores Valdez. A assistência médico-social representou a concretização dos princípios do humanismo da Misericórdia, destacando-se os trabalhos antiescravistas do provedor José Clemente Pereira e do farmacêutico José do Patrocínio. Criou-se um modelo de assistência que, de certa forma, persiste até os dias atuais. Uma medicina para os ricos, que eram atendidos nas Casas de Saúde privadas e um atendimento para os pobres, que eram feitos pela Santa Casa. Nos atendimentos privados surgiram as Casas de Saúde e alguns médicos despontaram como empresários da saúde. Uma delas, inicialmente chamada casa de banhos, veio até nossos dias com o nome de Casa de Saúde Dr. Eiras. Ela deve seu nome ao antigo proprietário, o Dr. Manoel Joaquim Fernandes Eiras, médico e cirurgião, fundador da primeira casa de saúde do Brasil, em 1843.” (PICCININI, Walmor J. História da Psiquiatria: Casa de Saúde Dr. Eiras: Crônica de seu Desaparecimento. In: Psychiatry on line Brasil. Part of the International Journal of Psychiatry, VOL.13, N.º 03, março de 2008). Disponível em: Acesso em: 6 jan 2013.

54 Clínica psiquiátrica conhecida popularmente como Sanatório de Mendes. Sobre os vários manicômios históricos da região sul-fluminense, ainda existia um grande hospital psiquiátrico – Hospital Colônia de Vargem Alegre - em Barra do Piraí, cidade vizinha a Mendes e Vassouras, hoje desativado. A também famigerada Clínica São José, ou Cananeia, como é popularmente conhecida, ainda fica nas instalações de um sítio nos confins de Vassouras, em local ermo e afastado às margens da BR-393 (estrada federal que liga Vassouras a Paraíba do Sul e a Três Rios, e o Rio a Juiz de Fora – MG). Na pe- quena Quatis, temos a Clínica Psiquiátrica do Vale do Paraíba, o “frenocômio” CLIVAPA. 55

fessores que lá atuavam55) - não existem mais, mas seus fantasmas continuam a arrastar correntes, ressoam em meio às relações de poder nas escolas regulares em estudo, e nos encaminhamentos comuns e sub-reptícios à escola especial56 do município, que deveri- am passar pelo crivo avalista do psicólogo57. O primeiro internato-escola de que ouvi notícias era chamado, popularmente, de “hospício” ou “APAE”. Curiosamente, a estrada longínqua que dava acesso à fazenda da Santa Casa também servia de caminho para o antigo Sanatório de Mendes: uma real clínica especializada em psiquiatria. O espaço do ex-orfanato da Santa Casa se tornaria então a sede do futuro Núcleo Municipal de Atendimento Educacional Especializado, mais tarde, com a cessão do estabelecimento (antiga escola dos órfãos) à Prefeitura pe- los donos da fazenda. No que compete ao teor específico de atenção e cuidados médicos sócio- assistencialistas destinados às parcelas populacionais menos favorecidas pela Santa Ca- sa de Misericórdia do Rio de Janeiro, Lobo (2003, p.292) nos explicita a extensão da ética asilar dos alienistas e higienistas a outros espaços como os internatos para crianças e jovens pobres, que se dá na aliança entre a ordem médica e as práticas sociais assis- tencialistas seculares:

[...] Embora já houvesse, em torno de 1850, a preocupação com a mortalida- de das populações, face à epidemias e, em consequência, com a mortalidade infantil (REGO, 1847, 1848 e 1850), a criança pobre não foi objeto de aten- ção da medicina higienista. Com exceção dos expostos da Misericórdia, dada a mortalidade assustadora daqueles que seriam futuros braços para o trabalho forçado nas milícias e nos navios, o século XIX pouco discriminou, entre as camadas mais pobres, as crianças dos adultos. Nos asilos de mendi- cantes não havia separação das crianças desvalidas e mendicantes de meio dos adultos. Nem mesmo a criação de estabelecimentos semi-oficiais para crianças como o “Asilo dos meninos Desvalidos” e a “Casa de São José” al- terou significativamente esta situação. As crianças continuarão a conviver com adultos no Asilo de mendicidade, verdadeiro depósito de todas as misé- rias, até 1895, quando um novo regulamento as separa em definitivo. A mesma mistura permanecerá entre os internos do Hospital Nacional dos Alie-

55 Os mesmos educadores que hoje lecionam nas escolas regulares de nível fundamental e especial na cidade. Durante a pesquisa, colhi estes dados através da história oral da cidade e suas instituições asilares e totais: - estes profissionais relataram a mim, diretamente, sobre suas atividades de trabalho nestes antigos estabelecimentos asilares de ensino e assistência social, e suas verbalizações serão descritas em alguns fragmentos, neste trabalho, como coadjuvantes. 56 O NAEE – Núcleo de Atendimento Educacional Especializado ainda localiza-se em antiga fazenda da Santa Casa de Misericórdia. Neste grande espaço, os atuais moradores que guardam a fazenda são os outrora estudantes órfãos estudantes do ex-internato-escola. As casas que lhes servem de moradias ainda conservam as inscrições “pavilhões”, reais dormitórios de um passado em que a educação no local era ministrada por freiras. 57 Segundo o Regimento Interno da Secretaria Municipal de Educação de Antares, estes encaminhamentos somente poderiam ser feitos pelo psicólogo, (psico)pedagogo ou fonoaudiólogo que integrassem a equipe multidisciplinar SAFE. 56

nados até 19036, quando é inaugurado o primeiro pavilhão para crianças a- normais, o Pavilhão-Escola Bourneville. Assim também, a medicina higienista do século XIX não manifestou interes- se pelos desvios da infância de modo a dirigir para eles práticas especializa- das. Crianças defeituosas (idiotas, surdas-mudas, epiléticas) eram citadas, na maioria dos textos médicos, como fruto dos desregramentos morais e dos ca- samentos consanguíneos. Mesmo a fundação, em meados do século XIX, do Imperial Instituto dos Meninos Cegos e do Instituto de Surdos-Mudos, por suas dimensões acanhadas, não produziu a separação dos defeituosos, muito menos saberes especializados. Não se pode dizer que aqueles institutos tives- sem surgido por algum movimento dos médicos higienistas, como foi o caso da fundação do Hospício de Pedro Segundo, em 1841. (LOBO, 2003; grifos meus)

Neste espaço de internação, as freiras da Santa Casa eram as professoras dos es- tudantes órfãos. O “pavilhão-escola”, sendo uma espécie de hospital-escola, como pre- conizado pelos alienistas, inclui a concepção “curinga” de pavilhão, pois é espécie de dispositivo de confinamento e termo historicamente utilizado em hospitais, prisões, es- colas, e para nomear os antigos alojamentos em internatos-escolas religiosos como o de Antares. Quais ressonâncias destas antigas instituições asilares em meio às tensões cotidi- anas nas escolas regulares do presente estudo, e nas suas relações intersetoriais na rede biopolítica da cidade? As velhas práticas higienistas se atualizam, apesar dos processos de esvaziamen- tos e extinção dessas antigas instituições totais e de sequestro de indivíduos pobres e perigosos em potencial. Esta atualização, que não pode esquecer a sua base fundadora nos primeiros hospitais de alienados, se expande a partir da segunda metade do século XX, e das chamadas “década do cérebro” (anos 90), segundo o presidente George W. Bush (pai), e a propalada “década do cérebro aprimorado” (2000). A ética corporativa, industrial-empresarial médica-psicofarmacológica, lança sinapses sociais de controle em meio ao âmbito interno de relações nas escolas públicas. Nesta direção, LOBO (2003, p.293) nos reporta a um tipo de cuidado que se atu- aliza nas sociedades de controle na forma do instrumental dos relatórios pré-crime:

O início do século XIX irá assistir à extensão das práticas de prevenção às camadas pobre da população. Associado às obras filantrópicas, o higienismo aplicará seus esforços à criança e sua família, preocupado com a construção da nacionalidade pelas novas gerações e, principalmente, em prevenir futuros fardos para a sociedade, indivíduos inúteis e perigosos que teriam sua origem naturalizada pela pobreza. Pois será a partir das naturalizações propostas pelo higienismo que este trabalho pretende traçar a genealogia do bio-poder sobre a infância em nosso país; naturalizações presentes tanto nos laudos, nos diag- nósticos que ao individualizar promovem a exclusão dos desviantes para fo- 57

ra dos limites da norma, quanto nas prescrições que dizem respeito aos que habitam o seu interior. (LOBO, 2003, p. 292; grifos meus)

OCORRÊNCIA NA ESCOLA Após um conflito físico entre dois alunos adultos da turma do EJA – Ensino de Jovens e Adultos -, escola Beta, na semana anterior, a diretora convoca os profissionais do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), de localização bem próxima à escola, por- que eles (neuropsiquiatra e psicólogo) é que haviam encaminhado um dos alunos (Mar- cel Ribeiro) para “socialização” no espaço escolar. No dia 05 de maio de 2011, estavam presentes a equipe técnica (eu, a psicope- dagoga), uma integrante da equipe pedagógica ( a OE ), uma psicóloga e a coordenadora do CAPS, e as responsáveis pelos alunos em questão: a tia de Elton e a mãe de Marcel. Participou das discussões ainda o tutor de Elton John, Jeffrey, profissional designado a acompanhá-lo durantes as aulas, além de ajudar a carregá-lo e acompanhá-lo no trans- porte residência-escola e vice-versa. Elton John (18 anos) tem paralisia cerebral e precisa usar cadeira de rodas, esta- va matriculado nesta escola e na escola especial; Marcel só frequentava o CAPS... Até que a instituição o tivesse encaminhado aos estudos (com laudo médico, é claro, feito pelo neuropsiquiatra).

Coordenadora CAPS: “ - Marcel fala palavrão, manda Dr. º Simão Baca- marte tomar no #%*@&==[~~~]>< ¶!!” Psicóloga do CAPS: “- Marcel nunca agrediu ninguém; tem compulsão a comer...” Tia de E. John: “ - Preocupo-me, pois os dois são doentes. Elton é indefeso, e Marcel também é doente. Ele tem 33 anos.” Coord.ª CAPS: “ - Temos de ter um pouco de segurança com Marcel, limi- tes...” Entra na conversa a diretora adjunta da escola (acaba de adentrar a sala da equipe pedagógica): Diretora Adjunta: “- Pipa, coordenadora da equipe técnica disse que está havendo resistência58 na equipe para que Marcel vá ao NAEE.” Tutor: “- acho que o problema é oriundo do Marcel com relação a E. John.” Psicóloga - CAPS: “- Marcel carece de atenção.” Diretora: “- Perguntei-lhe sobre o dia das mães.” Coord.ª CAPS: “- Domingos (irmão de Soraya, usuária também do CAPS) disse que a diretora da escola especial falou que Soraya teria que ir todos os

58 Observe que a palavra “resistência” é tomada como expressão negativa. Sua conotação, neste momento, é a da negação, e cuja origem é psicanalítica. Costuma ser empregada para classificar os movimentos dos atendidos que ocorrem no sentido da evitação ou dos questionamentos aos procedimentos do psicanalista. Críticas ao “terapeuta”, o atrasar-se às sessões; em suma, todo tipo de quebra ou descontinuidade da ordem estabelecida no contrato pelo profissional. A expressão não é a da resistência em positividade; seria o idêntico a uma reação negativa, supostamente existente entre componentes da equipe técnica, ao encaminhamento de alunos ao NAEE. A máxima então fixa um regime único de verdade: - a ordem é encaminhar, indiscriminadamente, os alunos para o centro “especializado”. 58

dias ao NAEE e teria que sair do CAPS. Soraya não pode ficar sem o haldol decanoato59, tem crises, dá porrada...” Tutor: “- Marcel já xingou. Marcel não respeita as mulheres, as xinga, a não ser quando as diretoras estão.” Tia de E. John: “- Nós precisamos reclamar, pressionar pelas obras [no NA- EE].” Chega a coordenadora da equipe técnica: Pipa: “- O regimento interno é insuficiente sobre educação especial, segundo a consultora que a Secretaria tinha. Com base na alteração interna da Secreta- ria de Educação, montamos o esquema.”

Eu me refiro ao NAEE como “escola especial”, e ela retruca expondo uma con- fusão reinante, na rede municipal de educação, entre o que é um Centro Especializado e uma Escola Especial:

O NAEE não é uma escola especial. Pois deveria ter atividades, oficinas, não seriam só salas de aula; teria cursos, fisioterapia e outros. Não é escola. Coord.ª CAPS: “- Mauro que encaminhou o usuário, Marcel, para o Colégio Municipal Beta. Passou por cima da gente no CAPS. Marcel frequentou a APAE de Mendes desde os 9 anos.” Mãe de Marcel: “- o psicólogo Mauro [psicólogo que trabalhava no CAPS, à época] fez uma lista de coisas para eu comprar.” Coord.ª CAPS: “- Marcel não tem ganho cognitivo na escola regular. Tem que ter psiquiatra no NAEE para Marcel: é uma questão de risco.” Pipa: “- Proponho transferir a matrícula de Marcel para o NAEE.” Mãe de Marcel: “- Não poderei estar sempre em reunião no NAEE, pois te- nho uma criança de 8 anos para cuidar em casa.” OE: “ - A senhora quer que registremos sua concordância com que o aluno estude no NAEE!?”

Relatório Majoritário:

Em suma, ao fim das discussões, ficou resolvido que Marcel passaria a estudar apenas na escola especial, como medida de contenção de sua agressividade. A outra instituição total era a Escola Filinto Müller60, e temos vários profissio- nais das escolas atuais desta pesquisa que já haviam atuado no internato profissionali- zante para infratores. São eles professores, diretores e diretores adjuntos de escolas, e a atual Secretária de Educação, Sr.ª Iracebeth, que fora a diretora da instituição nos anos de 1980. Uma unidade do Instituto Federal de Educação – IFRJ - veio a se instalar, mais tarde, nas velhas dependências da Filinto Müller. A Escola Filinto Müller era uma instituição total e asilar de cuidados a velhos e mendigos, e ao menor desamparado, estando vinculada à Fundação Abrigo do Cristo

59 Decanoato de Haloperidol. 60 Nome fictício da instituição da FACR para jovens infratores encaminhados pela FUNABEM. Hoje inexistente, desativada. 59

Redentor – FACR. Esta Fundação é instituída através do Decreto-Lei 5.76061 de 19 de agosto de 1943. O presidente Getúlio Vargas, Gustavo Capanema (então Ministro da Educação e Saúde), Alexandre Marcondes Filho e A. de Souza Costa assinam o texto do documento: [...] Art. 1.º É o Govêrno Federal autorizado a entrar em acôrdo com o Abri- go do Cristo Redentor, sociedade civil em que se transformou a Obra de As- sistência aos Mendigos e menores Desamparados, com sede na Capital Fede- ral, reconhecida de utilidade pública pelo decreto n. 4682, de 19 de setembro de 1939 [...] (SENADO FEDERAL, DECRETO-LEI DE 19/08/1943)

No artigo 2.º são assinaladas as atribuições da FACR, e no parágrafo único logo após o terceiro artigo, fica registrado o regime de internamento como tecnologia própria de instituições totais e asilares como esta:

[...] Art. 2.º A União Federal, representada pelo Diretor do Domínio de Uni- ão, instituirá, com todos os bens incorporados por forca do acordo previsto no artigo 1º e mais os terrenos de propriedade da União ocupados pelos prédios e instalações das diversas instituições atualmente mantida pelo Abrigo e cujo título de domínio porventura não lhe tenha sido transferido, uma fundação, denominada “Fundação Abrigo do Cristo Redentor”, que terá como finalida- de primordial promover: a) assistência moral e material aos mendigos, independente de sua cor, nacio- nalidade, religião, sexo, idade, estado covil e saúde; b) assistência moral, material e educativa ao menor, especialmente o desam- parado. [...] [...] Art. 3º O Governo Federal concederá, anualmente, à Fundação Abrigo do Cristo Redentor, a subvenção de dois milhões de cruzeiros (Cr$ 2.000.000,00), para auxiliar a sua manutenção, obrigando-se a Fundação a receber e amparar, na medida de suas possibilidades, os mendigos e menores que lhe foram encaminhados pela autoridade pública. Parágrafo único. Sem prejuízo da subvenção a que se refere este artigo, pode- rá o Governo Federal dar outros auxílios à Fundação para a ampliação das suas instalações ou a inauguração de novos estabelecimentos para o encami- nhamento de menores, sendo outrossim facultado à Fundação contratar com entidades oficiais, mediante módica indenização, o internamento de meno- res, para cuja proteção haja dotação orçamentária própria. (SENADO FE- DERAL, DECRETO-LEI DE 19/08/1943; grifos meus) O decreto n.º 74.00062, de 1 de maio de 1974 dispõe sobre a vinculação de enti- dades, e a FACR, tal como a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNA- BEM), passa a vincular-se ao Ministério da Previdência e Assistência Social. O decreto

61 DECRETO-LEI N. 5.760 – DE 19 DE AGÔSTO DE 1943. SENADO FEDERAL – Subsecretaria de Informações. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=32677&tipoDocumento=DEL&tipoT exto=PUB> Acesso em: 04 ago 2012. [Decreto-Lei revogado]

62 DECRETO Nº 74.000, DE 1 DE MAIO DE 1974. SENADO FEDERAL – Subsecretaria de Informações. Disponível em: Acesso em 04 ago 2012. [Decreto revogado] 60

n.º 77.250 63, de 27 de fevereiro de 1976, aprova a reforma dos Estatutos da Fundação, tendo sido assinada pelo presidente Ernesto Geisel, Luiz Assumpção e Paranhos Vello- so. Desta vez, na revisão das suas atribuições, no art. 2º, inclui-se a assistência geral aos “velhos desamparados”, e acrescenta-se a “assistência religiosa” às já presentes moral e material, e também educativa ao “menor”:

[...] estatutos da fundação abrigo do cristo redentor Capítulo I Da Fundação e seus fins Art. 1º A Fundação Abrigo do Cristo Redentor, entidade filantrópica de fins assistenciais não lucrativos, de duração ilimitada, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro e pessoa jurídica de direito privado, instituída pelo Gover- no Federal por força do Decreto-lei nº 5.760, de 19 de agosto de 1943, em sucessão à sociedade civil Abrigo do Cristo Redentor, reger-se-á pelos pre- sentes Estatutos aprovados por Decreto do Poder Executivo. [...] [...] Art. 2º A Fundação Abrigo do Cristo Redentor, daqui por diante, desig- nada nestes Estatutos por FUNDAÇÃO, tem por finalidade primordial pro- mover: a) Assistência religiosa, moral e material aos mendigos e velhos desam- parados, independentemente de nacionalidade, crença, cor, sexo, idade, esta- do civil e saúde; b) Assistência religiosa, moral, material e educativa ao menor, especi- almente ao desamparado. Art. 3º Para a consecução de seus fins, a FUNDAÇÃO manterá asilos, insta- lações hospitalares, pupilagens, escolas primárias e profissionais. (SENA- DO FEDERAL, DECRETO 77.250, 27/02/1976),

Moribundos fantasmas destes velhos internatos educacionais e de ofício (de formação e trabalho) ressoam se atualizando na forma das demandas contemporâneas de medicalização produzidas pelos atores escolares. Estas demandas caracterizam-se pelas solicitações de encaminhamentos das unidades de ensino regular para a escola especial do município. Lugar este que já soava, aos meus olhos, a princípio pelos aspectos geo- gráficos, ou geopolíticos, como lugar de exclusão. O que se vê com o tempo são as pro- duções da exclusão - travestida de inclusão (na melhor dinâmica ‘incluir para excluir’) – no interior das escolas “normais”, ditando os encaminhamentos para o NAEE, e alguns indícios nas tensões cotidianas que tenho vivenciado em meus dias de trabalho na insti- tuição de ensino especial.

63 DECRETO Nº 77.250, DE 27 DE FEVEREIRO DE 1976. SENADO FEDERAL. Subsecretaria de Informações. Disponível em: Acesso em: 04 ago 2012. [Decreto revogado] 61

1.1.2 Prontuários, Diagnósticos, Prognósticos, Encaminhamentos em Fileiras do Tipo Caserna ao Posto de Saúde.

Nos arquivos em cadernos do setor de psicologia e (psico)pedagogia tive indí- cios dos modos de fazer predominantes da equipe técnica anterior. Remédios psiquiátri- cos em destaque, neurológicos também, e de outros tipos – como para alergias, gripe, problemas de má-formação congênita do organismo -, eram anotados em quase todos os “prontuários” individuais dos alunos. Nestes pré-relatórios, produzidos previamente à chegada da nova equipe, vejo o alto índice do uso de medicamentos psiquiátricos, e os onze (11) mais frequentemente ministrados aos alunos: Carbamazepina (vulgo Tegretol), Metilfenidato (Ritalina64/Concerta), os dois barbitúricos fenobarbitais Gadernal e Gaballon (e Gaballon xarope), Assert, Calman (fitoterápico), Depakene, Trileptal, Organoneuro Cerebral, Tofranil e Haldol, são recei- tados para “melhorar” o rendimento escolar dos jovens diante das falhas atribuídas às diversas competências individuais específicas na escola-empresa. São remédios sem história, para a memória, “vitamina para o cérebro”, “o desenvolvimento individual da criança”, “a atenção” (ou o seu déficit), “a agressividade”, o comportamento, a agitação, a (in)disciplina, “os problemas-na-aprendizagem”, “ a hiperatividade” e “a disritmia”, que, inseridos nos registros oficiais dos técnicos-especialistas da escola, carimbam o destino das crianças e adolescentes a partir da recusa das suas histórias de vida mais complexas. São históricos que ultrapassam em muito os espaços-tempos da escola, mas que se reduzem ao seu tempo, andamento e ritmos peculiares, à sua tonicidade particular, pois que são enquadrados por seus atores em seus discursos e ações, registros, relatórios e relações, vinculados à missão organizacional do exame e da coleta de provas diagnós- ticas. Vejamos como os remédios vão dominando a cena nos atendimentos em psicolo- gia:

Escola Alpha, em dezoito de março de 2008: Gadernal e Ana Carolina (11 anos, 4.ª série – 402).

64 A Ritalina é o nome comercial do fármaco comercializado pela Novartis, enquanto Concerta é o do produzido pela Janssen-Cilag, uma subsidiária da Johnson & Johnson. 62

Mãe – Ana, irmã – Paula (10 anos), irmã – Kledir ( 6 anos), irmão – Maurílio (3 anos), irmão Wagner Luís (7 meses), e padrasto – João Lucas. Tomou Ga- dernal desde ± 1 ano até 7 anos. Vai fazer 2 anos (em maio) que o pai se suicidou (enforcado). Sem mais/sem menos ela começa a chorar e fica triste. [sic.] Em oito de abril de 2008: Da Ritalina ao Gaballon e Aserta, O Pai Ausente e Miguel (8 a- nos, 1.ª série B). Mãe – Maria, irmã – Luísa Celina, pai – J. J. Jameson. Medicação: Gabalon. O neurologista Dr.ª Xavier mudou a medicação retirou a Ritalina e colocou o Gabalon e outro medicamento que ele não lembra. Ficou de trazer na próxi- ma vez. A mãe relatou que ele repetiu de ano e quis ficar na sala da professo- ra Raíssa, a direção concordou e ele está na sala dela. Com isso, a mãe acha que ele está melhor no processo de aprendizagem. O que incomoda à mãe é que o marido está muito ausente da família e agora construiu um quarto no 2.º andar da casa, para o casal, mas ela não aceitou e continua c/ os filhos na parte de baixo da casa. Ele quando tem algum problema ou não quer receber visita em casa, sobe para o quarto de cima. Pedi para ele comparecer e pedi p/ ela procurar uma terapia, no posto, para ela. Retornarem. [sic.]

Nesta consulta, percebe-se a importância dada pelo psicólogo ao registro dos medicamentos utilizados. Percebe-se também um esboço de como tem ocorrido a inter- ferência das famílias no funcionamento organizacional interno da escola, quando uma mãe solicita e determina com qual professora o filho estudará, e encontra-se ainda uma indicação de terapia à família no posto de saúde. No atendimento seguinte, descobrimos que o “outro” medicamento era o Assert, produzido no Brasil pela corporação farmacêutica Eurofarma. Ele pertence ao grupo dos antidepressivos, vulgo Sertralina Assert, ou Cloridrato de Sertralina:

Miguel e o Aserta com “S” Medicação – Aserta65 – 1 comprimido para dormir / Gabalon – 1 comprimi- do após as refeições. O neurologista Dr.º Laerte acha que ele tem TOC. Compareceram ele e a mãe. A mãe relatou que ele está um pouco mais cal- mo, devido à medicação, mas ainda está c/ dificuldade p/ ler e o médico neu- rologista Dr.º Laerte acha que ele, Tb, tem TOC. Retornarem. [sic.] Em 25 de junho de 2008, [...] A mãe relatou que ele está um pouco melhor. Que ela também está se cuidando, fazendo terapia e tentando equilibrar me- lhor a família. Que o marido está participando um pouco mais, apesar de tra- balhar muito e não ter hora como taxista. Retornarem depois das férias, para uma nova avaliação. [sic.] Infrequência Escolar, Tofranil, Calman e Noodles 09/07/2008 – Medicação: Calman – 1 comprimido às 10:00 hs – Tofranil 10 mg – 1 comprimido ao deitar. Compareceram ele e a mãe. A mãe relatou que ela está tendo uma luta, para ele vir para o colégio e ficar longe dela. Nesta semana ele não quis vir ao colégio e ela pela 1.ª vez deu umas correadas nele,

65 O cloridrato de sertralina tem sido indicado para o tratamento de Transtorno Obsessivo-Compulsivo – T.O.C. Em 08/04, é registrado como “Aserta”, e em 02/09 como Assert, nos presentes arquivos. O Ser- tralina Assert é produzido pelos Laboratórios Eurofarma. O primeiro registro como Aserta é apenas um engano nos registros da escola. No Brasil, não há veiculação da substância como Aserta, no entanto, a Pentafarma Sociedade Técnico Medicinal S. A., em Portugal, utiliza o nome comercial Sertralina “Aser- ta”. 63

coisa que a emociona muito ao falar. Então eu coloquei p/ a mãe que às vezes o filho precisa de um limite maior. Ela levou ao Dr.º Simão Bacamarte 66, que passou esta medicação para ele e pediu p/ retornar em 15 dias. Ele vai come- çar a tomar a medicação (Tofranil) hoje à noite. Retornarem depois das fé- rias. [sic.]

Após estas escutas cotidianas, em 16 de julho de 2008 ocorre então um Conselho de Classe de 1.ª a 4.ª série, na E. E. M. Alpha, no qual os educadores expõem, a mim, os seguintes encaminhamentos individualizados de alunos: (1) a professora Rose cinco alunos com “dificuldades de aprendizagem”; (2) prof.ª Fátima (turma 202) quatro alu- nos com “comportamento agitado”, e dois com “dificuldade de aprendizagem”; as duas professoras que dividem o terceiro ano a turma 301 (em turnos diferentes, lecionando disciplinas diferentes) ordenaram uma quantidade de seis alunos com dificuldades de aprendizagem. Na turma 302, dirigidas também pelas professoras da 301, mais seis alu- nos na mesma rede de dificuldades de aprendizagem.

Agendamentos & Atendimentos, Data: 23/09/200867: 9:30 – Lucy (aluna transferida) está grávida de 7 meses 10:00 – Thomas Sawyer 10:30 – Warren Worthington III. > (substituído, pois tem psiquiatra e fono neste horário) >> pelo aluno Ferb. 11:00 – João (aluno transferido) família diz ser hiperativo; não há laudo a- qui. 2.ª série, prof.ª Fátima. 11:30 – Wendy Darling 13:00 – Bruce Banner 13:00 – Peggy Jean e Schroeder (irmãos) 14:00 – Roger 14:30 – Charles Schulz 15:00 – Franklin Armstrong 15:30 – Linus. 16:00 – Miguel. [sic.]

Miguel Medicação: 1.ª Tofranil. - Assert 50 ml – 1 comp. à noite - Gaballon – no almoço e jantar. -Tegretol – xarope – à noite. Compareceram ele e a mãe. A mãe relatou que ele melhorou e a professora elogiou-o também. Mas como o médico mudou agora a medicação dele, talvez ele melhore mais ainda. Ela tem estudado c/ ele, todos os dias. Já conversamos c/ a mãe a possibillidade de ficar retido tb este ano e ele aceitou. Eu e Alicia conversamos, já com ela. Retornarem. [sic.] Laboratório Novartis Biociências, Ritalina, Depakene, Hiperatividade e Disritmia, e João (9 anos, 2.ª série) Diagnóstico: Hiperativo e tem disritmia – Medicação: - Ritalina – 10 mg – 1 comp. - Depakene – 250 mg – 3 comp. Ao dia – manhã, tarde e noite. Doutor Fal- cão.

66 Médico (neuro)psiquiatra que atuava no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS -, a duas quadras do Colégio Municipal Beta. 67 Nomes fictícios inspirados em personagens do desenho animado Peanuts, de Charles Schulz, do livro Peter Pan, e histórias em quadrinhos. 64

Escola Olivier Furtado em Mendes (escola particular). A mãe tirou da escola particular, porque ele nunca vinha com o dever para casa, pq a professora di- zia que ele não copiava e que ela não podia fazer nada. Pedi p/ a mãe trazer a xerox do laudo dele do eletroencefalograma e da testagem psicopedagógica que ele está fazendo na Clínica DiBiase68. Retornar a família toda. [sic.] Linus, 11 anos, 2.ª série Mãe – Ana Amélia Sampaio, pai – Aureliano Alves. Medicação – Triptal69 – 8 da manhã e 20:00 hs à noite.

1.1.3 A triagem entre a hiperatividade médica e a testagem neuropsicológica

A hiperatividade é competência do tratamento médico, enquanto a troca de le- tras, como dificuldade de aprendizagem, é competência de quem aplicará os testes neu- ropsicológicos, como atesta o registro do procedimento de escuta psicológica de dois de setembro de 2008:

Miguel e o Assert Medicação: Assert / à noite, Gaballon – 3 X ao dia após as refeições. Dr.º La- erte (neurologista). Compareceram ele e a mãe. E eu e Alicia70. Atendemos juntas e colocamos que ele melhorou da hiperatividade, (c/ o tratamento médico) mas a letra ainda está ruim e ele está lendo c/ muita dificuldade e trocando letras. Então vamos tentar uma testagem neuropsicológica pela Prefeitura, pela Saúde. A mãe autorizou e sabe da dificuldade dele, pq o mé- dico explicou que a dificuldade dele á na aprendizagem. Marcar uma avalia- ção neuropsicológica. Ele demorou a nascer e c/ isto houve falta de oxigena- ção e sofrimento, c/ isto ele ficou c/ a área do cérebro, correspondente à a- prendizagem c/ dificuldades. Retornarem. [sic.] Em 02/12/2008, Compareceu só a mãe. [...] conversou comigo e Alicia, na última entrevista nossa, sobre a probabilidade dele ficar retido, porque não consegue ler ainda. Escreve e copia bem, a letra está boa e o caderno limpinho. Aí a mãe con- cordou com a possibilidade de retê-lo c/ a professora Rose, que conseguiu ajudá-lo na aprendizagem. Só que qdo a mãe falou c/ ele de repetir ele teve um ataque, chorou e disse que não virá mais para a escola estudar, porque ele fez a parte dele, se esforçou e será o 4.º ano que ele fará a 1.ª série. Então a mãe veio conversar c/ a diretora Ágatha, que colocou a possibilidade de a- prová-lo para ele recuperar a autoestima, e dele continuar c/ o trabalho c/ a professora Raquel, de alfabetização. Como não tem ninguém na escola hoje, porque todos estão num curso, e falei p/ mãe que terei uma reunião com Ága- tha, a professora dele e a gente (equipe técnica), para ver o procedimento mais adequado. Retornar ano que vem! [sic.]

Novamente, neste atendimento vemos a “autonomia” da família de Miguel em determinar a “retenção” (reprovação) do aluno. O que ocorre é que a mãe teria concor-

68 Clínica que se situa na cidade de Barra de Piraí, vizinha a Mendes. 69Trileptal, nome comercial da Novartis para a oxcarbamazepina, medicamento antiepilético e anticonvulsivante. 70 Nome fictício para a (psico) pedagoga desta equipe anterior (2005-2008) à minha. 65

dado com a possibilidade da reprovação. Supostamente uma autonomia, porque contro- lada e coordenada pela estratégia biopolítica de controle promovida indiretamente aos trabalhadores do ensino no magistério. Um tipo de controle é exercido quanto à ativida- de e a atribuição de aprovar ou reprovar pelos professores através de técnicas e proce- dimentos político-pedagógicos como a chamada progressão continuada, e esta autono- mia das famílias é indício de que tal estratégia funciona. Encaixa-se esta interferência dos pais na prática e decisão político-pedagógica de professores da avaliação de alunos à missão da escola-empresa em promover a satisfação total das famílias-clientes, onde a cultura é a de que: o cliente tem sempre razão na escola-empresa. A escola-empresa controla o bom fornecimento de seus serviços de aprovações automáticas para evitar reclamações clientelistas às “ouvidorias gerais” da municipali- dade de Antares: - como a própria Secretaria de Educação, a Câmara de Vereadores e o Fórum [de Justiça] local. Nas últimas duas instâncias de poder (Legislativo e Judiciário) as queixas dos familiares são direcionadas, em geral, a políticos de partidos de oposição ao grupo da Prefeitura, e ao Ministério Público, respectivamente. Coaduna-se à máquina da escola-empresa a máquina colégio-eleitoral, onde a ordem de cativar os clientes está em conexão com a de cativar eleitores entre as famílias dos alunos. No CC de 15/12/2009 da Escola Alpha, vemos o quanto se maximizam esforços de todas as partes para que os educadores não reprovem, com a orientação pedagógica à frente dos “negócios”, no comando operacional das diretrizes de promoção automática:

Conselho de Classe, de 15/12/2009: A média final dá-se com arredondamento: 1, 2 = 0; 3 e 4 arredondam-se para 5; 6, 7 arredondam-se para 5; e 8 e 9 para 10. Exemplo: 4,1 = 4,0 4,4 = 4,5 4,7 = 4,5 4,8 = 5,0 Alguns professores não arredondaram a média final desta forma explicitando que desconheciam a regra. Não a atenderam corretamente, e por que em ne- nhuma das escolas onde trabalharam constava tal procedimento. Dá-se uma discussão sobre quais alunos serão aprovados na escola Alpha. Uma coordenadora de turno informa que: “- Francisco será reprovado, justificando que a regra, “- Ela é nova, mas está na escola.” Verônica (turma 801), prof.ª de inglês do turno da tarde, diz que não há de- pendências em sua turma; “somente o Jerry e o Francisco com dependência, na 801!?” “E as faltas de Francisco?” Uma professora comunica que, na Escola Estadual do município, “- Juscelino Kubitschek -, pegou aluno na 6.ª série com DP [dependência] da 3.ª série. Sobre a questão de se o aluno da 8.ª série com DP da sétima poderia passar par o 2.º grau [atual ensino médio].” Secretária escolar: “- Não temos a informação. Vou perguntar no J. K. Se- gundo o J. Kubitschek, as dependências podem ser levadas para o segundo 66

grau (as da 7.ª na 8.ª), segundo alteração no dispositivo-lei, sendo feitas pre- ferencialmente no colégio de origem.” O. P. Renata: “- Uma falta só abonada! (de 24/11)”

Francisco tem 72 faltas e os professores discutem se vão mexer nas notas do diá- rio ou reprová-lo pelas faltas. Heloneida (supervisora escolar) perguntou-lhe porque não copiava a matéria, e ele respondeu que era porque não queira. Quando perguntado sobre as faltas, disse que “ia às aulas, mas não copiava as matérias.”

D. P.: Reprovado: 2,0 / 2,0 / 5,0 / 2,0 [notas] Faltas: 52 - Geografia = 16 72 - Matemática = 200 58 - História = 160 50 - Português = 200 40 – Ciências = 160 20 – Ed. Física = 80 26 – AR = 80 17 – Inglês = 80 12 – Ética Religiosa = 40 347 – Total de faltas em todas as matérias. (poderia ter até 290) = 1160. [Sic.] (INFORMAÇÕES NO QUADRO NEGRO DA SALA-DE-LEITURA, 15/12/2009)71

São vários dispositivos atuantes para que os alunos não sejam reprovados; onde está a autonomia de decisões pedagógico-políticas e éticas do professor? Houve demora para que todos decidissem a reprovação de Francisco, durante o Conselho. Francisco tem 18 anos, a professora de matemática diz que ele é inteligente, mas preguiçoso e há falta de presença da mãe.

Sobre Jerry Lee: Reprovado em matemática, não frequentou a DP de mate- mática da sétima. Tem a grande vantagem de não ter faltas. Se tiver faltas, é mais fácil reprovar... Será que o aluno pode carregar DP da 7.ª e da 8.ª para o 2.º grau!? A secretária escolar foi ligar para Colégio Estadual J. K., a fim de tirar a dúvida. O. P. Renata: “- Fecha a 801! - Todos os alunos aprovados, exceto Francisco reprovado em todas as disciplinas por falta, e na D. P. de matemática!” 802: “- Todos aprovados!” Prof.ª de matemática: “- Só Matheus foi permanecer com D. P. matemáti- ca.” 701: Matemática: Brian foi reprovado. Aloísio (deficiente múltiplo (neurop- sicomotor)) e Gustavo (deficiente físico) vão para o turno da tarde. Dois alu- nos deficientes auditivos, que não dominam libras, têm “comunicação pró- pria”: - precisam estudar na frente da sala.

71 Os dados das frequências eu copiei do quadro-negro da sala-de-leitura onde se realizou o Conselho de Classe na escola Alpha. (DIÁRIO DE CAMPO, 15/12/2009) 67

A prof.ª de Ed. Física fala sobra a questão das 16 horas de jornada do professor com o PCS – Plano de Cargos e Salários.

701: “- Gilles reprovado por notas e faltas, e DP matemática.” 501: “- Nenhum reprovado.” 502: “- Paulo reprovado e Juliana aprovada com DP em matemática.” 601: Oscar: “ - Não foi reprovado / falta justificada /não tem D. P.” Na fala que objetivava Oscar intervêm discussões sobre as faltas em cada matéria como condição para decidir se será reprovado.” [sic.]

Em 11 de novembro de 2008: Depakene, Corporações Abbott, João (9 anos, 2.ª série) e a Ausência Pa- terna Prof.ª Fátima, mãe – Patrícia, pai – Ronaldo (33 anos), e irmã - Rosa. Medi- cação: Depaquene – 3 comprimidos ao dia (250 ml). Compareceram ele a mãe. A mãe relatou que na escola melhorou, que a medicação agora está fa- zendo efeito e que o pai é ausente e palco dele: - tudo o pai bate palma para ele. Ela acha que o marido é alcoólatra, mas não aceita, e por isso não quer se tratar. Como eles são donos da padaria de Antares, ela acha que ele pensa que dinheiro nasce em árvore, porque tudo quer e ganha brinquedos caros, que destrói todos. Mas o principal e que ele não obedece a ela. Ela precisa brigar e falar 10 X para ele fazer e obedecer. Que não pode contar c/ o marido. Re- tornarem ano que vem. Em 02 de dezembro de 2008

Em dois de dezembro de 2008, os atendimentos aconteceram de quinze em quin- ze minutos, agendados das 9 hs e 30 min às 17 hs e 30min, num total de 37 alunos assis- tidos (na maioria das vezes, acompanhados pelos familiares):

09:30 – Bruce Wayne 09:45 – Bruce Banner 10:00 – Roger 10:15 – Tom Sawyer 10:30 – Leon 10:45 – Miguel 11:00 – Charles Schulz 11:15 – Franklin Armstrong 11:30 – Junin

Estado do Rio de janeiro Prefeitura Municipal de Antares Secretaria Municipal de Educação

Sr. Responsável, Informamos que no dia 02 / 12 / 2008 às _10: 30 estaremos finalizando os atendimen- tos do ano com o Psicólogo K. Aluno (a) (FAC-SÍMILE DO DOCUMENTO DE ENCAMINHAMENTO, COLÉGIO BETA) Oxcarbamazepina, “Vitamina para o Cérebro” e Linus (11 anos, 2.ª série). 68

Mãe – Ana Elisa, pai – Aldo. Medicação: Trileptal 300 mg. A medicação foi passada pelo Dr.º Laerte – 1 COMPRIMIDO ÀS 8hs E 10hs. Organoneuro Cerebral72 – (vita- mina p/ o cérebro) toma às 9hs da manhã. Compareceram ele e a mãe. Ela relatou que ele está um pouco melhor e ela acha que ele vai passar de ano, pelo menos ela deseja que ele passe. Eu pude observar que ele está um pouco mais calmo e consequente, mas centrado, depois da medicação. Retornar ano que vem para eu avaliá-lo se continua no atendimento psicológico, na escola, ou não. Gaballon, alterações inespecíficas do E.E.G., Agitação e Isadora (9 anos, 3.ª série) Medicação: Gaballon xarope – 1 colher de chá 2X ao dia após as refeições, pela Dr.ª Hyde. E.E.G. – “alterações inespecíficas” (11/09/08) – padrão de déficit de atenção e di- ficuldades na aprendizagem. Comparecera a mãe e ela. A mãe relatou que ela está me- lhor na escola, que tirou 5,0 em Estudos Sociais, de uma nota máxima de 5,0. Que está estudando mais e está mais agitada, mais atenta. Então eu coloquei que a medicação a está ajudando a se concentrar mais, pelo déficit de atenção. Retornar para nova avalia- ção, ano que vem! 02/09/2008 – [...] só a mãe, que relatou que ela está um pouco melhor, mas que ainda sente o nó na garganta e tem muita dificuldade com a leitura. No passado, ela se tratou c/ um neurologista por ± 2 anos e tomou medicação. Agora ela foi à neurologista indi- cada por nós, que pediu o eletroencefalograma agora p/ o dia 11/09/2008, em Volta Re- donda. Quando vier o resultado, ela vai levar na neurologista, para ela medicá-la. Rela- tou que ela está um pouco + feminina e que é ansiosa e morre de medo das coisas. Re- tornarem. 10/06/2008 - [...] A mãe relatou que ele é muito tímida. Que há uns anos atrás um mé- dico disse que mais tarde ela terá uma dificuldade no processo de aprendizagem dela, hoje aos 9 anos. Então ela falou que qdo vai fazer uma prova o coração bate muito [...] Marcar com a neurologista uma consulta.

Junin e a Síndrome do Pânico (9 anos, 2.ª série) Compareceram a mãe, a irmã e ele. A mãe relatou que ele está muito bem, que parou de sentir os sintomas do pânico e este ano foi representante de turma, que ele se desenvol- veu bem e se revelou um bom aluno. Ele acha que vai passar de ano, “com louvor”. A- valiá-lo ano que vem, para ver se ele continua no atendimento com a família, ou se dá vaga para outra criança. Antes, em 02 de setembro de 2008: [...] A mãe relatou que ele está bem melhor, que parou c/ aqueles sintomas de pânico (bolo na garganta. Sudorese), etc. Que levou-o ao neurologista e ele disse que não tem nada. Foi ao oftalmologia e ele disse que vai fazer o exame e agora eu pedi p/ marcar o fonoaudiólogo, porque acho que ele tem língua presa. Na escola é representante de tur- ma e está c/ a letra, os cadernos e as notas excelentes. Agora só em casa é que ele e a irmã de 5 anos estão brigando muito, então eu marquei p/ os três virem da próxima vez. O pai trabalha no Rio e só vem nos finais de semana. Retornarem. 09/07/2008 – Compareceram ele e a mãe. E ele relatou que está ótimo, que não ficou mais nervoso, que só tirou notas ótimas e que é representante de turma. Quando ele fala, eu identifiquei um pouco de língua presa, então vou pedir uma avaliação fonoaudio- lógica. Marcar o fonoaudiólogo. Nas férias ficou de ir para a casa da avó, em Barra Mansa. [...]

72 Nome comercial do Laboratório Gross, para os seguintes componentes: Bitartarato do ácido gama- aminobutírico 100 mg; Ácido glutâmico 100 mg; Fosfato de cálcio dibásico 50 mg; Mononitrato de tiamina 25 mg; Cloridrato de piridoxina 10 mg; Cianocobalamina 5 mcg. Utilizado como neurotrófico: nas neurites e polineurites. Terapêutica coadjuvante das sequelas de acidentes vasculares e cerebral, e arteriosclerose.

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10/06/2008 – [...] A mãe relatou que ele é muito tímido e que, se tem uma prova, ele fi- ca muito nervoso e começa a chorar de nervoso. Então pedi uma avaliação neurológica. Marcar consulta com Dr.ª Hyde. Retornarem. Warren (8 anos, 1.ª B) e Ciúmes 02/09/2008 – Mãe genética – Christine. Ano passado, ele foi morar com a mãe em En- genheiro Pedreira e parou de estudar. Retornou este ano e está c/ dificuldade de ler e es- crever, ou seja, acho que ele não foi alfabetizado adequadamente. Então a irmã disse que estuda com ele. Tarefa: ela continuar a estudar e ensinar a ele e ele treinar +. Mar- car Dr.º Simão Bacamarte (Neuropsiquiatra). Fazer caderno de caligrafia e se empe- nhar mais. [...] 02/12/2008 - Compareceram a mãe e o primo (adotado) pela família. [...] ele está me- lhor, tanto em casa, qto na escola. A professora falou que ele deve passar de ano e a mãe relatou que agora, a única coisa dele, é ter ciúme do sobrinho, que veio morar como e- les. Toda hora ele reclama dos ciúmes dele. Retornar ano que vem, para nova avaliação. Um remédio para a memória e a prescrição de estudo de pais com filhos ½ aos do- mingos: 1. Dora, 11 anos, 5.ª série 10/06/2008 – A mãe relatou que ela sente falta do pai genético, que depois que se- parou da mãe (há ± 5 anos) ela gostaria de encontrar o pai. A mãe já casou de novo, com o Ronaldo e ele é muito bom para esses 2 filhos mais novos dela e muito bom marido com ela, pq ela, tem um problema cardíaco grave e ela pode ter uma crise e morrer abruptamente. A Dr.ª Hyde [D.: Neurologista], passou um remédio para a memória dela e ela parou de tomar, pq tinha que comer para tomar, e como ela quer fazer regime para emagracer, então ela parou de tomar. Tarefas: - da mãe comprar o remédio e ela voltar a tomar e depois marcar c/ a neurologista [...] 2. Os irmãos Michelângelo (6 anos, 1.ª A) e Donatello (8 anos, 2.ª série) 10/06/2008 – Compareceram a mãe e os dois filhos. [...] relatou que é superproteto- ra e [...] acha que acaba atrapalhando o desenvolvimento dos filhos, com este com- portamento, mas não consegue evitar. Tarefa: ela estudar ½ hora c/ eles aos do- mingos. Retornarem.

A psicologia da 1.ª equipe técnica prescrevia, em quase todos os atendimentos, o período de “½ hora de estudo ao aluno com seu responsável no final-de-semana”. Estes registros insinuavam que havia causas que circulavam intrinsecamente na família, em seus supostos descuidos educacionais e carências afetivas na dinâmica intra-familiar, para os problemas de (in)disciplina e aprendizagem, ao passo que as implicações dos professores nunca eram mencionadas. Não eram registradas as atuações dos professores, e as tensões com a equipe - porque o psicólogo nunca estava com os mesmos, porque não havia tempo, com o dia todo só com alunos e seus pais. A concentração era total à família e aos alunos, com foco individualizado e patológico aos seus corpos. Deste mo- do, como haver tempo para práticas coletivas entre os integrantes da equipe e destes com os educadores? Ou melhor, entre técnicos atentos e fechados em suas tarefas e es- pecialidades, e entre estes ditos especialistas e os não-especialistas no organograma (grade hierárquica) escolar?

Julieta, o Pediatra, a “Má Alimentação e os Vermes”. 70

Mãe: Karen Horney. Compareceram ela e a mãe. A mãe relatou que ela está bem melhor, [...] que faz as tarefas dela (arrumar cama, etc.), e que na escola está super bem, porque está estudando com a tia Rosana, que ela adora. Quanto à má alimentação ela come muito pouco, o pediatra pediu um tra- tamento para vermes e a mãe começará hoje. Como a aluna está bem em todas as áreas [D.C.: ou melhor: competências], fechei o atendimento dela c/ sua família.

1.1.4 Psicologia e (Psico)pedagogia: Sequência de Encaminhamentos à Neurologista (Policlínica) ou ao Neuropsiquiatra (CAPS)

A grande maioria dos registros de medicamentos são feitos pelo psicólogo Kane, enquanto a (psico)pedagoga costumava registrar os consentimentos das mães para os encaminhamentos dos estudantes à neurologista do posto de saúde, que aí assinavam abaixo do relato individual; a especialista assim otimizava a prestação do “serviço”, levando ela mesma as crianças para os atendimentos. Em geral, esta técnica anota dados das circunstâncias da gestação de cada aluno que atendia, das condições de saúde do parto (se foi natural, com cesariana, se houve alguma intercorrência). Anota ainda os números de prontuários médicos da Policlínica de Saúde próxima à Escola α, a conduta médica adotada, com exames, consultas e etc, sobre o controle normal ou anormal dos esfíncteres, e do seu desenvolvimento geral normal ou anormal como a idade em que começou a andar, sentar e a falar,... São anotações que sempre se repetiam em seus diá- rios, como a sequência de onze (11) atendimentos (psico)pedagógicos a seguir:

Colégio Municipal Beta, 2005: 07/10/2005 – Edgard Brown - Gestação de 9 anos. Já tem 5 anos e a 3 anos faz tratamento fonoaudiológico. Já foi encaminhado ao otorrino. Não tem do- res de cabeça. Nunca teve convulsão e nenhum parente apresentou o mesmo problema. Extremamente agitado, não para o tempo todo. Autorizou levá-lo ao neurologista. Prontuário: 9.753. Consulta dia: 17/10/2005. Conduta médi- ca: E.E.G. 19/12/2005 – Obs.: Alteração no E.E.G., medicação tofranil 10 mg, encaminhado p/ psicóloga testagem neuropsicológica.

Há autorizações dos familiares para a consecução de eletroencefalogramas (E.E.G) que, ao longo dos atendimentos subsequentes, nos apresentam o encaminha- mento ao médico neurologista, e o pedido do exame, como práticas associadas à agita- ção, agressividade, e à hiperatividade e o comportamento geral de crianças e adolescen- tes. Pretende-se, com isto, a busca da prova imagética de uma suposta patologia com- 71

portamental. Faz-se aí a censura e contenção de uma agressividade negada, uma que é negativada em si mesma pela instituição Escola. Opera-se a cisão entre a agressividade anormal de hospício, cujo portador não poderá estudar na escola normal e deve seu en- caminhado ao hospital-escola (atualmente escola especial ou especializada) – como na situação de Marcel, direcionado pela escola Beta e o CAPS para o NAEE -, e a agressi- vidade anormal que precisa ser medicalizada e medicada, como condição para a sua permanência na Escola regular. A seguir, veremos uma série de encaminhamentos (psico)pedagógicos de alunos “agitados”, e que vivem em “ambiente familiar tumultuado”, à especialidade médico- neurológica e, a partir daí, para os exames de eletroencefalograma. Estes também reali- zados, em alguns momentos, de modo consecutivo com um mesmo aluno. Em particu- lar, no registro de um atendimento, a pedagoga refere a realização do E.E.G. com foto e audioestimulação. A fotoestimulação intermitente (FSI) é uma técnica de sensibilização do exame e é epileptogênica, isto é, estimula a produção convulsivante. Sendo assim, ainda neste caso, um resultado inesperado não deve ser interpretado como conclusivo. Segundo Moysés73 (2008),

O eletroencefalograma (EEG) e a radiografia do crânio constituem, no ima- ginário de pais, professores e outros profissionais que não dominam a racio- nalidade médica, instrumentos privilegiados para o entendimento dos moti- vos que fazem com que uma criança não-aprenda-na-escola e/ou apresente comportamentos que transgridem as normas sociais. Esse imaginário resulta, sem dúvida, da extensão a toda a sociedade da nor- matividade que vem sendo estabelecida pela medicina, acerca de sua compe- tência para solucionar esses problemas. Entretanto, neste caso específico, não se pode deixar de registrar que a atuação dos médicos, principalmente desde os anos 1960, vem desrespeitando os conhecimentos produzidos pela própria medicina. [...] (MOYSÉS, 2008, p. 87)

26/10/2005 – David Mathews – Gestação de 9 meses. Parto cesariana. Custou a falar. Começou a falar com 3 anos. Até os 7 anos fazia as necessidades na roupa. Matheus é muito nervoso, agressivo. O ambiente familiar era tumultuado. Autorizou levá-lo ao neurologista. O referido aluno queixa-se de dores de vista. Ass.: Constance da Silva. Prontuário: 305. Consulta médica dia: 14/11/2005 / 21/11/2005. Conduta médica: en- caminhado p/ psicologia p/ avaliação e testagem neuropsicológica e oftalmológica. 26/10/2005 – José Guilhermino – Gestação agitada, por problemas pessoais. Nasceu de cesariana. Andou com 1 ano e 5 meses. Teve o controle dos esfíncteres com 2 anos. Sempre foi muito agitado. Faz tratamento com a D.ª Hyde74 há 2 anos. Faz uso de To- franil 25 mg à noite. Últimas consultas em julho. Aluno da 1.ª A, lê e escreve. Faz tra- tamento fonoaudiológico por trocar letras. Ass.: Maria do Carmo. Prontuário: 12561. Consulta dia: 14/11/2005 / 21/11/2005. Consulta médica: E. E. G (normal 03/03/2005).

73 MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso. A institucionalização invisível. Campinas, SP: Mercado das le- tras, 2001. 74 Neurologista atuante na Policlínica. 72

Encaminhamento à Psiquiatria Infantil e Psicologia p/ avaliação e conduta. Consulta psiquiátrica: 30/11/2005. [sic.] No dia 14/11/2005, os alunos D. Mathews e José Guilhermino tinham consulta médica na unidade de Saúde da Barragem75 na qual a médica Dr.ª Hyde não compareceu para o atendimento. Em 12/12/2005, nesta U. E. recebi o pedido de consulta da Dr.ª Klein, no qual a mãe disse que não conseguiu consultar o seu filho pois é necessário um encaminhamento da médica. No dia 14/12/2005, fui até a Policlínica e peguei o encaminhamento com a Dr.ª Klein e entreguei a mãe na mesma data.

Uma consulta marcada com um neurologista de Paracambi: O menor foi encaminhado pela Dr.ª Klein para o neurologista Dr. Pfister no Hospital de Lages em Paracambi. Hospital de Lages: (21)2683-4877 /36833364 - Agendamento: 2.ª a 6.ª feira, 7:00 às 16:00 horas. Atende: 3.ª feira à tarde e 6.ª feira p/ manhã.

06/11/2005, Ariel: Gestação 9 meses; meio agitada; a mãe trabalhou até os 6 meses de gestação. Parto normal, demorou muito para nascer, precisou furar a bolsa porque a bol- sa não estourou sozinha. A aluna já faz tratamento neurológico há 3 anos com a Dr.ª Hyde. No 2.º eletroencefalograma a médica relatou um bloqueio e diz que aos 9, 10 a- nos irá passar. Faz uso de Gabalon manhã e noite. A mãe levou a sua filha até ao psi- quiatra. Na escola a dificuldade de aprendizagem está muito grande. Fez exame oftal- mológico, precisará usar óculos. Com 2 meses de idade apresentou uma convulsão. Mais tarde descobriu que era um problema no canal auditivo. Segundo a mãe a aluna adora estudar. A última consulta era para março e a mãe perdeu e não pode remarcar devido a agenda cheia da médica. A médica já encaminhou Ariel para o psicólogo e a mãe não conseguiu. A mãe autoriza levá-la novamente ao neurologista. Ass.: Nina Freitas. Prontuário dia: 19/12/2005 (faltou em 12/12/2005). Conduta médica: E. E. G. normal em junho de 2005. No dia 19/12 encaminhada para psicóloga, testagem neu- ropsicológica.

Um Esboço de Resistência: O aluno Charlie Brown não compareceu a consulta no dia 13/03/2006, sua mãe levou o seu irmão Edgard Brown para a médica passar um calmante. Alegou que não levou o Charlie, pois a Professora Bete disse que ele não tem nada. Pedi p/ O. P. Calpúrnia ave- riguar. 22/03/2006 – A O. P. Calpúrnia me informa que, segundo a Professora, a mãe do aluno Charlie Brown, chegou na escola dizendo que o seu filho iria ser medicado sem neces- sidade, sendo que na anamnese em momento algum eu [D.C.: Alicia] disse que o seu fi- lho precisaria de medicamento. Muito pelo contrário, a médica é que faz o encaminha- mento necessário. Então ela achou por bem, levar o aluno Edgard Brown, irmão de Charlie. Nesta data, encaminhei bilhete para os alunos: - William. -João Victor. -Vitor Hélio. -Camile. 23/05/2006 – A mãe de Charlie solicitou encaminhamento ao neurologista, devido ao fato do filho estar esquecendo as coisas com facilidade. A mãe do referido aluno em março não levou o filho na consulta. Ass.: Ana Terra. Consulta médica dia: 29/05/2006. Conduta médica: encaminhamento para fonoaudiologia. Stella– Gestação 9 meses, parto cesariana. A mãe teve eclampsia, sentou, andou, falou na idade normal. Teve o controle dos esfíncteres na idade normal. Nunca apresentou

75 Nome (fictício) do bairro da Escola Alpha, onde fica também a Policlínica. 73

desmaios, convulsões. Ninguém da família apresenta esses sintomas. Em 2005, come- çou a apresentar como se ficasse fora do ar (ausências); Tem que ficar chamando para ela voltar. Esquece as coisas com muita facilidade. Brinca normalmente. As ausências com maior frequência. A mãe pediu para encaminhá-la ao neurologista devido as ausên- cias da filha. Ass.: Ruth Souza Teles. Prontuário: ----- . Consulta dia: 29/05/2006. Con- duta médica: E. E. G. digital com foto mais audioestimulação. [...] 30/08/2006 – Stella. Nova consulta dia: 28/08/2006. A consulta com o propósito de mostrar o exame. O E. E. G. em sua conclusão deu alteração do ritmo do cérebro. A Dr.ª Hyde passou uma medicação (carbamazepina, 5 ml à noite). Revisão daqui a 3 meses. Nova consulta dia: 04/12/2006 às 8h:00. A menor acima foi encaminhada ao ambulatório de psicologia. A mãe da referida aluna não compareceu ao Colégio para a reunião com a Diretora e a Psicopedagoga nesta data. 16/09/2005 – William, 10 anos (nasc.: 11/08/1995) – Pai alcoólatra, agrediu a mãe du- rante a gravidez. Gravidez tumultuada. Gestação de 9 meses. Andou falou na idade normal. Tem um problema auditivo desde de 1 ano de vida. Faz acompanhamento desde de 1 ano. O último exame realizado ano passado foi normal. Te dificuldade de aprendi- zagem, agressivo, fica aéreo à vezes. As visitas do pai à família são tumultuadas, sem- pre há agressão. A mãe concordou de levá-lo ao neurologista e otorrino. Seis filhos, to- dos do mesmo pai. Filho de pais separados. Para mãe é o único filho que apresenta pro- blema. É chamado pelos colegas de MALUCO76. Ass.: conduta médica: exame de san- gue e testagem neuro psicológica. Consulta: 19/09/2005. Prontuário – Policlínica: 2931. 16/09/2005 -, Ronaldo – data de nascimento: 18/05/1998. Gestação tranquila. Nasceu de 8 meses, cesariana. Ficou internado um mês com problemas respiratórios. Andou, sentou e falou na idade norma, controle dos esfíncteres normal. Desde bebê é aéreo. En- trou na escola com 6 anos e desde essa idade apresenta dificuldade de aprendizagem. A mãe relata ter o mesmo problema. Não aprendeu a ler e escrever, só sabe fazer conta e assinar o nome. Encaminhado ao NEUROLOGISTA. Ass.: Renata Rocha. Prontuário policlínica: 887. Conduta médica: EEG, testagem neuropsicológica. Consulta médica: 19/09/2005. 30/09/2005 – Aluno Jeremias, acompanhado da tia (Cristina). Nasceu parto N, gestação 9 meses, andou, falou na idade normal, os esfíncteres também. A tia relata que o aluno sente dores no peito. Nunca fez tratamento neurológico. Criança muito agitada, em casa e na escola. A tia ficou de conversar com a mãe e dar a resposta sexta-feira dia 07/10/05. Ass.: Cristina. Consulta dia: 10/10/05 (faltou). Conduta médi- ca: avaliação neuropsicológica/ avaliação oftalmológica. Prontuário: 18.304.

1.2 As Crises Intempestivas do Aluno Bruce Banner e as Carteiras. - Escola- Empresa, Triagem e Encaminhamentos. - O Ato Pedagógico e o II Fórum Interse- torial de Antares

Bruce Banner, 8 anos, 2.ª série Mãe: Célia, medicação – Tegretol comprimidos ½ pela manhã e ½ à noite. Compareceram ele e a mãe. Nesta semana, aconteceu um evento, que o aluno não se comportou adequadamente de novo. A professora passou um dever no quadro e ele ficou brincando e não copiou do quadro. Quando ela foi apagar ele pediu para ela não apagar, pq ele ainda não tinha copiado, então ficou nervoso por ser contrariado e jogou as carteiras uma em cima da outra e pare- cia um “bicho acuado”. Então eu conversando c/ a mãe e ele eu pedi para ela

76 A palavra “maluco” estava toda grafada em letras maiúsculas nestes registros. 74

conversar c/ a fonoaudióloga dele, para ver se ele passa a fazer uma terapia com a psicóloga do posto, para ele aprender a lhe dar com esta “crise”, que ele chama assim. Tarefa: aos domingos, a mãe continuar a estudar ½ hora. Quando nós conversamos com ele, ele começou a chorar. Pedi para a mãe dar mais limite, em casa, para ele também. Retornarem.

Em onze de novembro de 2009 (uma quarta feira), estive na E.E.M. Alpha. Fui solicitado pela diretora adjunta a atender Bruce em um “momento de crise”, e queriam que eu o visse em ação ao vivo, na hora em que se irritava na sala-de-aula.

Na sala dos professores: Estava a socar a porta da sala dos professores. Socava a porta querendo de qualquer modo sair da escola. Socava e olhava fixamente para a maçaneta, parecendo não ouvir-nos, com muita raiva. Eu tentava conversar e aí sugeri de chamarmos seu pai77. Bruce então caiu em lágrimas, parou de bater à porta E fomos arrefecendo sua rigidez, à medida que lhe pedíamos que escrevesse num caderno o endereço do pai, em Mendes. A mãe e o padrasto chegaram e fiz a escuta, com os três; depois só com os responsáveis. Informei da possibi- lidade de encaminhamento para atendimento com uma psicóloga da Policlí- nica, que já o havia atendido anteriormente, e a um psiquiatra, quando a mãe me falou do neuropsiquiatra do CAPS78. 23/09/2009 – Atendimento à mãe Banner, desde os 11 meses faz tratamento neurológico. Atualmente, faz com a neurologista, Hyde, pela Secretaria Municipal de Saúde. Seu pai mora em Mendes, tem outra família. Seus pais separaram-se quando ele tinha 1 ano; não o vê, habitualmente, desde abril deste ano. Toma Tegretol, na manhã e na tarde. Há informações (da escola Alpha) de que a mãe bate nele. Teve três crises convulsivas e tem diagnóstico de epilepsia: a 1.ª aos 11 meses, a 2.ª quando tinha 1 ano e 3 meses, e a 3.ª, entre 9 e 10 anos ( em 2007). Do Te- gretol fez uso há bastante tempo: de 1 ano e 3 meses até 3 anos, parou, e vol- tou ± entre 7 e 8 anos. Em conversa com a neurologista, esta diz à mãe que a “impulsividade é de sua personalidade” [da de Bruce].

Em conversa com a professora de Bruce, Rosa Maria, ela conta outros “casos” de alunos:

Isadora – tem dificuldades na leitura e compreensão. A mãe, em reunião, disse que queria avaliação do psicólogo para encaminhar a filha ao neurolo- gista. Doug – “bagunça”, “mexe com os colegas.”

Com a concordância dos pais, fiz o encaminhamento, que antes de chegar à Se- cretaria de Saúde deveria passar pela Secretaria de Educação, segundo normativas táci- tas, pois que eu as desconhecia de forma regulamentada. Eram tão somente verbais,

77 Em uma conversa anterior com a mãe do aluno, e com a diretora adjunta, ambas disseram que o menino não via o pai há anos (os pais estão separados), e que a certa época este vinha buscá-lo na saída da escola.

78 Diário de Pesquisa, caderno de 2009. 75

como muitas outras diretrizes que seriam repassadas pela coordenação, da Secretaria; nada escrito. Semanas após o procedimento, tive notícias pela coordenadora da equipe (que tinha especialização em psicopedagogia) de que teríamos que fazer um novo en- caminhamento. A gerente fez uma reunião, comigo e a psicopedagoga, trazendo o do- cumento que havia sido escrito por mim, e ordens da Sr. Secretária de Educação: “- qualquer encaminhamento só pode ser feito passando antes pela psicopedagoga!” Em uma outra cena (25.11.2009), no auditório da maior escola municipal da ci- dade, após algumas palestras sobre dados estatísticos do município, como de demandas sociais dos idosos, e relatos de atuação profissional, houve uma roda de discussão inter- setorial. Estávamos lá reunidos, durante o II Fórum Intersetorial79 de Antares, psicólo- gos, assistentes sociais, pedagogos, médicos (entre eles, um médico da família que atu- ava num posto de saúde ao lado do Colégio Beta) e Secretários Municipais, das três Secretarias: de Saúde, Assistência Social e Educação. As falas se detiveram à questão dos encaminhamentos intersetoriais, entre as três Secretarias ali presentes. Uma médica (clínica geral) solicitou a todos que, caso lhe fi- zessem encaminhamentos, enviassem junto do documento um “parecer” que fundamen- tasse as razões do procedimento. Os impasses foram muitos, e percebi que os psicólogos não tinham um tipo de autonomia que favorecesse a garantia de direitos aos atendimen- tos dos alunos na área da Saúde. Uma série de hierarquizações médicas na rede da cida- de retardaria o acesso a profissionais como fonoaudiólogos e outros, que não são espe- cialidades da medicina. A psicóloga que atuava nos postos de saúde preferia os encami- nhamentos burocráticos àqueles a que me propus fazer diretamente, seja porque seguia as ordens gerais ditas no segundo fórum, ou porque era uma só psicóloga que atendia em todos os Postos de Saúde da Família do município.

79 Em 24 de setembro de 2009, houve um I Fórum Intersetorial na cidade, com a temática: Universalidade: Limites e Possibilidades. Discutiu-se a questão da produção local da intersetorialidade no que atravessava as ações das três Secretarias Municipais: de Assistência Social, Saúde e Educação. Manifestaram-se preocupações pela “Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente” no que se referia à permanência destes na Escola, e as intervenções possíveis para a contenção da evasão escolar. Assim, planificaram-se ações conjuntas entre os três campos de trabalho com a infância e a adolescência: A Educação faz um levantamento para saber se as crianças estão nas escolas, considerando a obrigatoriedade do ensino às que tiverem 6 anos ou mais; a Saúde pode dar informes sobre as pesagens das crianças entre 0-4 anos, e entre 4-6 anos, como mais um artifício que informaria “se a criança está na escola”; a Assistência Social, por sua vez, faz o “cadastramento e o bloqueio dos recursos” daqueles benefícios sociais que exigem a assiduidade dos alunos, como o Bolsa- Família. Segundo este viés da política de intersetorialidade na cidade, o operacionalizar do Sistema de Garantia de Direitos parece oficializar-se (na prática) como um “Sistema de Coerções para acesso aos Direitos Sociais e Benefícios Assistencialistas”, se pensarmos o não levar em conta das produções éticas, históricas, sociais e políticas da (in)frequência e da chamada evasão escolar, e sim destes efeitos como causa sui ou como resultado direto da irresponsabilidade subjetiva do aluno, indivíduo então isolado das relações na escola e políticas pedagógicas, e da sua família. 76

A questão é que quando comecei a trabalhar, fiz vários encaminhamentos de modo independente. E, sempre que possível, ia diretamente a um posto de saúde, ao CAPS, ou a um CRAS, a exemplo, entregar um documento de referência e contra- referência, que continha um resumo do pedido. Isto posto, percebi que uma prática co- mum da Secretaria de Educação era a seguinte: - em nenhum momento, passaram in- formações prévias a respeito do funcionamento intersetorial do município, não antes que eu fizesse os encaminhamentos por minha conta. E aí, ao saberem do que eu fazia, veta- vam essas minhas ações; prescreviam um modo burocrático de fazer a “intersetorialida- de”: os documentos de referência deveriam: (1) passar antes pela Secretaria de Educa- ção, armazenadas em uma pasta-de-arquivo, endereçadas à e conferidas pela coordena- ção da equipe técnica, (2) encaminhadas à Secretaria de Saúde, (3) enviadas ao setor de Programa de Saúde da Família (PSF), em um posto de saúde mais próximo da residên- cia do aluno, e (4) lá examinadas por um médico clínico geral, avalista que então inseri- ria o pedido numa fila de espera para os atendimento em especialidades médicas, com psicológos, fonoaudiólogos e fisioterapeutas e etc... Assim, segundo as ordens conjuntas das Secretarias de Saúde e Educação, mes- mo os encaminhamentos que precisássemos fazer para psicólogos da Saúde e fonoaudi- ólogos, ou a pediatras80, deveriam passar pelo ato médico de um clínico geral:

A Sra. Secretária de Saúde [que é pedagoga] diz que os encaminhamentos pe- los psicólogos da educação devem conter parecer explicando as razões dos encaminhamentos. A Secretária de Educação intervém informando a todos no grupo [com profissionais da Saúde, Assistência Social e Educação] que os encaminhamentos das escolas para a Saúde devem ser feitos somente após o “parecer” de toda a equipe técnica (psicólogo e (psico)pedagogo). A primeira propõe, na reunião intersetorial, que as referências sejam mandadas das esco- las paras os PSF´s, e pensa que os psicólogos não podem encaminhar direta- mente a especialidades médicas, afirmando veemente: “- psicólogo não pode diagnosticar!”, ou o que ela compreendia como o mesmo que enviar pedidos de consultas médicas para alunos nos dispositivos da SMS. Na sequência, in- cluiu em seu discurso mais uma proposta: a de que os encaminhamentos à Saúde [não só os médicos] sejam avaliados previamente por clínico geral do PSF 81. (DIÁRIO DE CAMPO)

80 Sobre os pediatras, após um tempo trabalhando nessas escolas da pesquisa, cheguei a pensar em uma questão minoritária e não desenvolvida neste trabalho: por que a ênfase nos pedidos de assistência em especialidades neurológicas, psiquiátricas, e quase nunca a Escola pensava na possibilidade de ouvir o que teria a dizer um médico pediatra com relação às crianças, à aprendizagem e ao desenvolvimento? Poderíamos pensar em pediatras na escola, por exemplo, antes que se pensasse em curar supostas doenças dos alunos.

81 Diário de Campo, 25/11/2009. 77

Num esplendor de economia, após um pedido de avaliação neuropsicológica fei- to pela outra dupla de psicólogo e pedagogo da equipe técnica (de alto custo para a Se- cretaria de Saúde), a Secretária de Educação informa que todos os pedidos de testes psicológicos – escutem bem: ela não se referia apenas a testes neuropsicológicos, para o que também seria um equívoco restringir o poder de encaminhamento pelos psicólogos e demais integrantes da equipe – , inclusive os de testes neuropsicológicos, devem ser mandados, previamente, a um neurologista. A chefe da equipe imaginava que nós, os dois psicólogos da SAFE, deveríamos aplicar, ou melhor, “executar” pedidos de testes neuropsicológicos direcionados aos alunos, e nas próprias escolas. Expectativa esta que seria frustrada quando a coordena- ção inclui a prerrogativa da feitura dos testes neuropsicológicos pelos psicólogos em um texto “multidisciplinar”, que estava sendo elaborado por psicólogos e psicopedagogos em conjunto, na sala de reuniões da Secretaria de Educação. Eu e o outro psicólogo escrevemos, a mão, um texto que seria uma “proposta de trabalho”, solicitada pela Secretária de Educação; os dois pedagogos psi também o fize- ram. Não houve tempo, naquele dia, para que terminássemos o que seria uma “proposta multidiciplinar de trabalho”, e a coordenadora levou os escritos, os quais juntaria trans- crevendo-os. Ela os trouxe de volta, num outro dia de ‘reunião de equipe’, data-limite para a sua entrega à Secretária. Quando li o documento final, antes de assinar, vi que haviam sido modificadas várias expressões, como “estudantes” por “educandos” e “a- prendentes”, e a inclusão da prerrogativa de que: “os psicólogos aplicarão testes neuro- lógicos nos alunos [...].” Sendo uma técnica própria do campo de atuação em Psicologia Clínica, e que exige tal especialização, recusei a assinatura. Comuniquei ao outro psicó- logo dizendo para que fizesse o mesmo, no entanto ele assinou. Como recusar depois, se eu assinasse atestando que pudesse fazê-lo? A gerente de equipe, anteriormente, tinha sido professora do magistério e de e- ducação infantil na Escola Alpha, e assim escreveu em um questionário da antiga equipe técnica: Prefeitura Municipal de Antares Secretaria Municipal de Educação e Cultura Serviço Técnico de Apoio ao Educando e Família

Unidade de Ensino: E. E. M. Alpha______Data: 18 / 04 / 07______

Quais são as suas expectativa quanto à atuação do Serviço Técnico de Apoio ao Edu- cando e Família em sua unidade de ensino? 78

Sabemos que a individualidade do educando deve ser respeitada no processo ensino- Aprendizagem. Sendo assim, nunca devemos esperar uma turma homogênea tendo em vista os vários problemas que atrapalham o bom desenvolvimento do educando, tenho como expectativa que a equipe faça diagnóstico, proporcione dentro do possível o trata- mento e me dê apontamentos para qual linha de estratégias devo adaptar para atender a necessidade do meu educando. Coloco-me a disposição para modificar o que for necessário em minha prática pedagógica com o objetivo de atender meus educandos, estando disposta a aprender desde que a equipe vigore em sua totalidade sem interrupções no tratamento. Com carinho Prof.ª Pipa Educação Infantil Pré III Mais duas professoras se posicionariam ainda à pergunta, em uma mesma res- posta: Escola Estadual Municipalizada Alpha, em 18/04/2007 Necessitamos muito da colaboração dos colegas de apoio ao Educando no que diz res- peito ao convencimento dos responsáveis na presença na Escola quando houver reuni- ões, no interesse da vida escolar de seu filho e também quanto à responsabilidade ao comprimento das atividades escolares, disciplina – (comportamento) em casa de aula, enfim tornar-se possível a nossa união com os alunos os objetivos propostos com suces- so. (Arquivos equipe técnica 2005-2008; grifos meus) Morticia Addams Laura Palmer

Estava declarada a linha-de-fratura entre dois grupos dentro da equipe. As duas partes pensavam muito diferente entre si, e quase sempre estávamos nos confrontando, e tendo impasses entre nossos modos de intervenção na escola: primavam por atendimen- tos individualizados em sequência e encaminhamentos-triagem, anamneses para inves- tigação da doença do aprender, e para o descobrimento da especialidade necessária ao tratamento. Instalavam então um domínio da discussão de casos individuais nas reuni- ões de equipe, o que seguia em consonância a coordenadora. Fui conversar com uma neurologista (Dr.ª Hyde) e uma psicóloga, na Políclínica próxima à Escola α, e ainda com uma psicóloga, no CAPS (próximo ao Colégio β), Juli- ette. Falei sobre os alunos que já eram atendidos por estes profissionais, e sobre os en- caminhamentos educação-saúde. Informei aos psicólogos da Saúde que, encaminharia estudantes para os seus cuidados na medida em que não poderia me ater e concentrar aos atendimentos psicoterapêuticos individualizados aos alunos e familiares nas pró- prias escolas. Havia questões institucionais, nas quais intervir no âmbito escolar, que ultrapassavam a concretude dos atendimentos individuais (subsequentes) a cada aluno encaminhado como medida imperiosa por professores, diretores e outros; mesmo se isto fosse feito, como pela equipe técnica em 2005-2008, não sobraria tempo para trabalhar com os professores e demais trabalhadores do ensino, e nas questões que atravessavam a 79

construção da saúde no magistério. Sendo que os modos de produzir saúde no trabalho escolar, eu desconfiava que estariam a tecer concatenações possíveis com a produção compulsiva dos relatórios pré-crime e de medicalização nas escolas. O controle era tanto que as decisões de um psicólogo quase sempre tinham de passar pelo crivo da Educação em partes: na própria escola, à vigilância da gerência geral (diretoras), e à anuência dos especialismos pedagógicos, notadamente. Nas esco- las, em geral, quando as demandas e pedidos de atenção e encaminhamentos eram pro- feridos pelos professores, orientadores e direção (em geral, pedagogos), estes já incluí- am a prescrição médica do que fazer: - o psicólogo delivery deveria entrar em cena, e mandar o “problema” para fora da escola. O repasse dos diagnósticos já estabelecidos pelos atores da escola, no fluxo-endereçamento ao psicólogo, já era esperado. Quando a análise de tais demandas tão repetitivas era feita por mim, e assim não corroboradas as ansiedades coletivas pelos encaminhamentos automáticos médicos na rede intersetorial, em geral não era aceita. Porque os questionamentos que destoassem dos tempos certos do controle empresarial, e do enquadramento nas grades de produti- vidade – ao professor a máquina de aprovar, ao psicólogo a máquina de encaminhar -, não eram aceitos. Em uma disputa por competências entre pedagogia e psicologia na escola pública, a primeira tencionava-se por defender seu território, e para tanto deveria tomar medidas de segurança. Era preciso antecipar mostrando saber o que o psicólogo faria. Não seria por isso que muitos profissionais de pedagogia têm defendido a regula- mentação da (psico)pedagogia como “profissão”? Toda esta política de fazer diagnósticos e encaminhamentos médicos, a divisão do trabalho entre os técnicos da Saúde e da Educação, isto é, modos de fazer que eram modos de se relacionar enquadrados num organograma do tipo empresarial, não se constituíam em meros relatórios, não ficara no passado. Os modos de fazer da equipe técnica anterior continuou existindo na forma das exigências feitas deste tipo de inter- venção e trabalho clínico individualizado, médico-assistencialista e focado nas famílias e alunos apenas. Segundo a Secretaria de Educação, as diretoras das escolas, profissio- nais em geral e famílias, deveríamos atuar como a outra equipe. Assim é que a prescrição do lugar certo para o psicólogo na Escola nos provoca a questionar seu regime de verdade tido como único possível até pelos profissionais de psicologia. Porque muitos destes continuam a repetir tal prática e, assim, a corresponder à expectativa comum das escolas, sem a reflexão e os questionamentos à produção in- cessante dos diagnósticos e pedidos de encaminhamentos à área médica e a núcleos es- 80

pecializados isolados de educação. Assim, como procedermos à análise de nossas pró- prias implicações ético-histórico-políticas, sem o exercício da análise crítica das de- mandas iniciais que nos são endereçadas, mesmo que compulsiva e excessivamente? Há, de fato, psicólogos que não exercem tal prática questionadora, e nesta direção, enca- ram as solicitações das escolas como demandas definitivas, finais: - inquestionáveis. Urge questionarmos a ordem médica na Escola! E para isso torna-se necessário uma análise de nossas próprias implicações com a sua produção, que é histórica, políti- ca, cultural e social. Desta forma, percorremos tais analisadores históricos da formação profissional do psicólogo no Brasil nos três capítulos da pesquisa, na medida em que escavamos o solo dos efeitos de medicalização, cujas projeções recebemos como tarefa de trabalho psi. De modo a historiografar a formação da psicologia como profissão no Brasil – sobretudo de uma psicologia escolar -, e os seus entrecruzamentos com o desenvolvi- mento e o avanço das práticas de medicalização como disciplina e controle na sociedade brasileira, é relevante o recorte do processo de formação do trabalho psi no que tange aos dois momentos: - o primeiro que concerne ao início do século XX, notadamente no que nos remonta aos anos 20 e 30, após a entrada da psicologia como disciplina nos cursos de Escola Normal e Institutos de Educação, e o segundo, o período das chama- das reformas de base, nos anos 50 e início dos anos 60, contemporâneo à profissionali- zação do psicólogo em 1962. São dois tempos de lutas populares sociais e políticas que antecedem dois golpes de Estado e dois tempos de ditadura no Brasil. São eles o Estado Novo de Getúlio Vargas de 1937-1946, e a ditadura mais recente de 1964-1985. São recortes de nossa história que não ocorreriam sem efeitos à formação da profissão do psicólogo, e a constituição do lugar ético e histórico-político de trabalho que ocupamos na escola pública.

1.3 Transversalização de forças histórico-político-institucionais movendo a escola para a medicalização

Como os personagens técnicos das Unidades Educacionais vêm ética, política e historicamente encarnando a ordem médica? Como a psicologia se forma como campo disciplinar ajuizador da normalidade, e guardiã das fronteiras normal-patológico, saúde- 81

doença na Educação? O que Minority Report poderá nos dizer da psicologia como ope- radora histórica em meio à rede de subjetivação medicalizante-correicional? Foucault (2000, p. 186) nos indica algumas ferramentas-conceituais:

Quinta precaução metodológica: é bem possível que as grandes máquinas de poder tenham sido acompanhadas de produções ideológicas. Houve prova- velmente, por exemplo, uma ideologia da educação; uma ideologia do poder monárquico, uma ideologia da democracia parlamentar, etc.: mas não creio que aquilo que se forma na base sejam ideologias: é muito menos e muito mais do que isso. São instrumentos reais de formação e saber: métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito e de pesqui- sa, aparelhos de verificação. Tudo isto significa que o poder, para exercer- se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e por em circula- ção um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são construções ideoló- gicas. Recapitulando as cinco precauções metodológicas: em vez de orientar a pes- quisa sobre o poder no sentido do edifício jurídico da soberania, dos apare- lhos de Estado e das ideologias que o acompanham, deve-se orientá-la para a dominação, os operadores materiais, as formas de sujeição, os usos e as co- nexões da sujeição pelos sistemas locais e os dispositivos estratégicos. É pre- ciso estudar o poder colocando-se fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição estatal. É preciso estudá- lo a partir das técnicas e táticas de dominação. Este é, grosso modo, a linha metodológica a ser seguida e que procurei seguir nas várias pesquisas que fi- zemos nos últimos anos a propósito do poder psiquiátrico, da sexualidade in- fantil, dos sistemas políticos, etc. (FOUCAULT, 2001, p. 186; grifos meus)

Quais serão esses instrumentos reais de formação e de acumulação de saber imersos entre as práticas médicas e assistencialistas supracitadas, instituídas como ofí- cio de trabalhadores que nem mesmo são da área médica, mas, - em foco -, psicólogos e pedagogos? Mais além dos instrumentos de trabalho presentes, quais os agenciamentos coletivos de enunciação que estão na base de produção dos relatórios pré-crime nas es- colas de Antares? Vimos que os instrumentos iniciais são a formação da escola-triagem direciona- da à escuta e compreensão dos casos individuais na escola para os atendimentos médi- cos, os remédios psiquiátricos e neurológicos que muitas crianças já costumavam utili- zar para o tratamento de supostos distúrbios de aprendizagem, antes que a segunda e- quipe técnica começasse a trabalhar, os encaminhamentos da escola – professores e di- retores – e das famílias para o psicólogo, e de especialistas da área médica, psicológica, fonoaudiológica e outras para a escola com o objetivo da adaptação curricular de alunos e, de certo modo, bem-vindos aos professores. 82

Considerando tais instrumentos históricos de poder, podemos pensar ainda a polifonia82 presente e em constante movimento nos relatórios pré-crime, ou os relató- rios majoritários de medicalização e adaptação das condutas porque os mais compulsi- vos: O texto polifônico ou dialógico é um conceito bakhtiniano que permite exa- minar a questão da alteridade enquanto presença de um outro discurso no in- terior do discurso. Por intermédio do referido conceito de polifonia, o que normalmente se reco- nhece como contexto da enunciação é colocado no interior mesmo do enun- ciado, por meio de uma mescla essencial de vozes – vozes daquele que regu- larmente se considera como sujeito da enunciação e vozes outras daqueles cuja enunciação é captada no enunciado. “O extraverbal não é a causa exteri- or do enunciado e sim um constituinte necessário de sua estrutura semântica.” (AMORIM apud ROCHA, 2007, p. 9)

Os discursos (práticas agenciadas coletivamente mesmo que individualizadas) dentro dos discursos pré-crime (técnicas e procedimentos) dos atores das escolas de Antares também se coadunam às imagens do filme Minority Report: A Nova Lei, e do conto The Minority Report83. Rocha (2007, p.7) já havia retomado cada um dos quatro dispositivos de formação e acumulação de saber mencionados por Foucault no curso Soberania e Disciplina, do Collége de France, em 14 de janeiro de 1976, para a análise polifônica do filme O Homem que Copiava, de Jorge Furtado84. São eles, os que serão remetidos agora à análise polifônica de Minority Report, a percorrer toda esta disserta- ção: Diversidade de métodos e/ou instrumentos de observação, dispositivo que diz respeito à presença de diferentes métodos concretos de observação e coleta de informações “inventados” pelos personagens[...]” Modo de produção da narrativa [ou técnicas de registro], no que con- cerne ao recurso a uma técnica específica de construção da narração – a nar- ração em off assumida pelo personagem como instrumento para o registro (e a inteligibilidade) do que ocorre na história[...]

82 Em linguística, polifonia é, segundo Mikhail Bakhtin a presença de outros textos dentro de um texto, causada pela inserção do autor num contexto que já inclui previamente textos anteriores que lhe inspiram ou influenciam. A polifonia é um fenômeno também identificado como heterogeneidade enunciativa, que pode ser mostrada (no caso de citações de outros autores em obras acadêmicas, por exemplo) ou constitutiva (como a influência de dramaturgos clássicos em Shakespeare, que não é mencionada diretamente, mas transparecida). Bakhtin usa o conceito de polifonia para definir a forma de um tipo de romance que se contrapõe ao romance monofonico. Os textos que serviram de base às suas reflexões acerca desta temática são os de Fjodor Dostojevski. Romance polifônico é aquele em que cada personagem funciona como um ser autônomo com visão de mundo, voz e posição própria no mundo.(Cf. WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre, verbete POLIFONIA) 83 O livro The Minority Report, de Phillip K. Dick, é de 1956, enquanto o filme Minority Report, dirigido por Steven Spielberg, é de 2002. 84 O HOMEM QUE COPIAVA. Dirigido por Jorge Furtado. DVD – 123 min. Produzido por Casa de cinema de Porto Alegre. Coproduzido por Globo filmes. Brasil, 2003.

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Diversidade de linguagens [ou procedimentos de inquérito e pesquisa], o recurso a outras linguagens para além do verbal, que contribuem para ins- crever o que se passa como história[...]” Diversidade de máquinas [ou aparelhos de verificação], o último dos dispositivos de produção de saberes que anunciamos é o que se refere à im- plementação de máquinas de diferentes ordens: máquinas de docilização dos corpos, máquinas de aniquilamento e máquinas de invenção.[...] (ROCHA, 2007., passim)

Para Deleuze (2006, p. 17), “um livro de filosofia deve ser, por um lado, um tipo muito particular de romance policial e, por outro, uma espécie de ficção científica.” Sendo assim, inversamente, Minority Report providencia ferramentas filosóficas e éti- cas questionadoras dos padrões de medicalização e controle – ou relatórios técnicos majoritários (pré-crime) - que ressoam na educação em Antares, na medida em que evi- dencia a possibilidade dos relatórios minoritários (dissonantes):

No quarto, o rádio seguia com a transmissão. Percebendo-a apenas de modo subconsciente, ele examinou um dente quebrado no espelho trincado. “...o sistema de três precogs tem origem nos computadores de meados deste século. Como são verificados os resultados de um computador eletrônico? Pela entrada de dados num segundo computador com estrutura idêntica. Mas dois computadores não são suficientes. Se cada computador chegar a respos- tas diferentes, é impossível saber a priori qual é a correta. A solução, baseada num criterioso estudo estatístico, é usar um terceiro computador para verifi- car os resultados dos dois primeiros. Desse modo, obtém-se o chamado rela- tório majoritário. É possível supor, com alta probabilidade, que a concordân- cia entre dois dos três computadores indica qual dos resultados alternativos é exato. Não seria provável que dois computadores chegassem a soluções in- corretas idênticas...” Anderton largou a toalha e correu para o quarto. Trêmulo, curvou-se para es- cutar as palavras emitidas pelo rádio. “...a unanimidade entre os três precogs é um fenômeno desejado, mas rara- mente alcançado, explica o comissário interino colaborativo, de dois precogs, acrescentado de um relatório minoritário com uma leve variação, geralmente relativa a tempo e local, do terceiro mutante. Isso é explicado pela teoria dos futuros múltiplos. Caso existisse apenas uma via temporal, a informação pre- cognitiva não teria a menor importância, uma vez que, ao possuirmos tal in- formação, não haveria possibilidade alguma de alterar o futuro. No trabalho da Divisão Pré-Crime, temos de supor, em primeiro lugar... [...] (DICK, 2012, p. 148-149)

Os paranormais que preveem os futuros crimes de assassinatos na Washington D. C. de Phillip Dick são acometidos de uma séria enfermidade, tal como Jerry, diag- nosticado com demência hidrocefálica. Apesar dos limites provindos da doença, seus recursos pessoais de premonição foram aperfeiçoados ao estudar em uma escola de trei- namento do Governo, através de técnicas de aprimoramento cognitivo:

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“Jerry” tinha 24 anos. No início, fora diagnosticado com demência hidro- cefálica, mas quando chegou aos 6 anos de idade os medidores psíquicos i- dentificaram o talento de precognição enterrado sob as camadas de tecido corroído. Colocado numa escola de treinamento do governo, o talento latente fora cultivado. Aos 9 anos, o talento avançara a um estágio aplicável. “Jerry”, no entanto, permanecera no nível da demência; a faculdade em desenvolvi- mento estava absorvendo toda a personalidade. [...] (DICK, 2012, p. 152)

Carlos Monarcha é o autor que nos orienta quanto às origens das relações da psi- cologia com a escola pública no Brasil, que se constitui de início nas escolas das três metrópoles nacionais do país: Belo Horizonte, Rio e São Paulo, com destaque para o importante movimento histórico da Escola Nova (anos 20) e seus principais desenvol- vedores e repercussões nos anos 30 e 40. Este movimento garantiria a entrada dos cur- sos obrigatórios de psicologia na formação de professores para o magistério, nas cha- madas Escolas Normais, e marcaria a gênese da estreita e simbiótica relação. Maria Aparecida Moysés nos subsidia com a história da formação das institui- ções de medicalização da sociedade no que concerne ao período inicial, que vai de fins do século XVIII até o século XIX, com a fase industrial de desenvolvimento do capita- lismo nos países hoje considerados “desenvolvidos”. A autora ainda nos fornece ele- mentos a respeito de tal formação histórica na primeira metade do século XX, e no tem- po entre guerras mundiais (1914 – 1945). Impulsionada pelo Alienismo e pelo chamado Movimento em Favor da Infância Anormal, a medicalização se estabelece como institu- ição disciplinar, alicerçada na criação de estabelecimentos especializados. A lógica de medicalização intervém atravessada nas práticas psicológico-sociais clínicas e individu- alizantes aplicadas, historicamente, nas escolas públicas:

Essa extensão da normatividade médica ao campo da aprendizagem pode ser percebida em alguns movimentos, simultâneos e entrelaçados. Dirigindo-se ao ambiente escolar, preconiza a higiene escolar; Binet e Simon instrumenta- lizam o ideário psicométrico inaugurado por Galton; o determinismo biológi- co alicerça, pseudocientificamente, o racismo; o estudo do cérebro, de sua anatomia e funcionamento orgânico, firma-se como especialidade médica, a neurologia. Na encruzilhada de todos esses movimentos, a medicina preco- niza a instituição de classes especiais para os alunos que, segundo ela, não irão aprender na escola quando nela conseguirem entrar. Disseminada a forma de pensamento do movimento puericultor, que centra na ignorância das pessoas pobres a causa de praticamente todos os problemas por elas vivenciados, incluindo falta de qualidade de vida, doenças, ignorân- cia, analfabetismo e até mesmo a própria pobreza, está estabelecido o campo para o surgimento de formas de pensamento correlatas. É nesse campo que surge a doutrina da Saúde Escolar, originalmente designada Higiene Escolar. (MOYSÉS, 2002, p. 7)

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1.3.1. O Nascimento dos testes psicológicos

O processo de demarcação do território de atuação psicológica é gestado, a prin- cípio, com a defesa pelo movimento alienista da criação dos hospitais-escola e das classes especiais, como contraproposta de cuidado em Saúde - que pudesse ser realiza- do na própria escola - às habituais práticas de internação asilar de crianças85 e jovens em hospitais psiquiátricos e asilos, na época. Em paralelo, as práticas de medicalização en- tram na escola na esteira dos movimentos médico-alienistas e suas lutas humanistas por desinstitucionalização hospitalar-psiquiátrica da infância, a partir do qual surge o adven- to ou dispositivo tecnológico das classes especiais. O campo médico advogava então por um tratamento possível nas próprias escolas com as classes especiais, de modo a inviabilizar ou reduzir as internações asilares de crianças. Em um segundo momento, após a invenção dos testes psicométricos de inteli- gência por Simon e Binet, na França do início do século XX, o campo disciplinar- prático da psicologia em formação promove esforços na construção do campo psicoló- gico autônomo, isto é, independente da atuação médica ou pedagógica. Os interesses de emancipação do campo psicológico, cientificamente alicerçado, vão aí de encontro aos interesses médicos pela desinstitucionalização do modelo asilar vigente. Se o hospício era o espaço de domínio médico-psiquiátrico e alienista, a escola o lugar próprio dos professores e da disciplina pedagógica, a proposta clínica de Binet e Simon, - que seria seguida em outros países como o Brasil, inicialmente nas suas três principais cidades que se industrializavam e desenvolviam mais rapidamente (BH, Rio e São Paulo), - ar- quitetaria o espaço protótipo da psicologia na escola. Isto se deu com a aplicação dos primeiros testes, mesmo que não por psicólogos ainda, e por meio da introdução das disciplinas obrigatórias de psicologia aos cursos de formação normal de professores. Contestando as categorizações médicas dos “anormais médicos” e “anormais pedagógicos”, e defendendo em contrapartida a divisão conceitual entre os “anormais de escola” e os “anormais de hospícios”, Binet e Simon86 (1907), numa perspectiva clíni-

85 Crianças epiléticas eram comumente internadas junto a criminosos, mendigos, e outros “párias da sociedade” durante chamada Idade do Ouro do Alienismo (século XIX), em que o movimento alienista médico empreendia lutas pela especialização humanizadora e assistencialista do atendimento dos “alienados” em espaços próprios, reservados à doença mental em construção. Ao mesmo tempo em que os alienistas erguiam um espaço próprio e autônomo de trabalho, a loucura era transformada em “doença mental”, e nascia uma nova especialidade em medicina: a psiquiatria. 86 Cf. Les Enfants Anormaux: Guide d´Admission pour les Classes de Perfectionnement, de 1907. 86

ca, visam garantir a construção de um lugar de trabalho para a psicologia como guardiã da fronteira entre a normalidade e anormalidade nas escolas de ensino básico, a co- meçar pela atuação referente às classes de alfabetização:

O posicionamento de Alfred Binet causou uma reviravolta na cena médica e pedagógica. De fato, até então o diagnóstico de “debilidade” associava a pes- soa à falta de vigor físico ou psíquico, ou, ainda, à existência de patologias orgânicas; diferentemente, as cogitações de Binet referiram o “débil” ao esco- lar com baixo aproveitamento, melhor dito, a dimensão deficitária expressava as dificuldades intelectuais para realizar tarefas. Dessas teorizações, o cha- mado fisiologista formulou os conceitos norteadores dos debates e soluções sobre a infância, a saber: os “anormais de asilo” (idiotas) e os “anormais de escola” (os débeis). (MONARCHA, 2009, p. 276)87

Deste modo, foi-se construindo um campo de atuação psi em que os profissio- nais, ao se utilizarem das recentes técnicas psicológicas como os testes de inteligência e aptidão, demarcariam as fronteiras entre quem poderia estudar nas escolas “normais” ou regulares, e quem seria encaminhado às classes especiais. A classe profissional de psi- cólogo ainda inexistente em 190588, mas em formação incipiente, e já em luta por dife- renciação e autonomia em meio a outros campos de atuação profissional, produz soci- almente a oferta do serviço psicológico como imprescindível auxiliar ao trabalho do professor das classes iniciais (de alfabetização). Em suma, a medicalização é introduzida na escola através do Alienismo em suas lutas por desinstitucionalização hospitalar da infância, e na subsequente defesa das clas- ses especiais, enquanto a psicologia forja um campo de trabalho através da guarda e ajuizamento das fronteiras entre o aluno normal e o anormal na Educação Básica, utili- zando seu mais novo aparato tecnológico, na década de 1900 do século XX: os testes psicométricos de aptidão e inteligência, de modo a julgar quem pode estudar nas escolas regulares e quem só aprenderia nas classes especiais, tão reivindicadas pelos médicos alienistas. Na Lei Francesa de 30 de junho de 1838 – sobre os alienados, evidencia a pre- sença de “menores” internados nos hospícios:

Art. 13. – Toda pessoa internada num estabelecimento de alienados deixará de ficar detida no mesmo tão logo os médicos do estabelecimento declarem,

87 MONARCHA, C. Psicoclínicas e cuidados da infância. In: Boletim Academia Paulista de Psicologia – V. 77, n.º 02/09: 274-284.

88 Ano de publicação do teste Binet-Simon. 87

no registro enunciado no artigo precedente, que a cura foi obtida. – Se se tra- tar de menor de idade ou de um interditado, será dada ciência imediata da declaração dos médicos às pessoas a quem ele deverá ser entregue e ao procurador do rei. [...] Art. 17. – Em todos os casos o interditado só po- derá ser entregue a seu tutor, e o menor somente àqueles sob cuja autori- dade estiver colocado pela lei. [...] (CASTEL, 1991, p. 311; grifos meus) 89

No Brasil, a invenção dos Testes ABC por Lourenço Filho90, - notadamente, ins- pirados nos testes de inteligência de Binet e Simon (médico e psicólogo, respectivamen- te) -, e a sua implementação nas escolas públicas da Grande São Paulo, revelou o longo alcance que esta tecnologia de cuidado teria quanto à medição dos níveis de maturidade dos alunos para a aprendizagem de leitura e escrita, ao mesmo tempo em que avaliaria os níveis de competência dos educadores das classes iniciais em ensinar na medida em que esses mesmos seriam quem aplicaria os testes psicológicos, e os principais respon- sáveis pelo ensino e avaliação de alunos nas escolas regulares ou nas classes especiais. Lima (2007) nos evidencia mais este entrocamento, que se produz nas micropolíticas de trabalho e formação nas escolas:

Pode-se considerar que os testes ABC funcionaram como um recurso de bio- política na medida em que seu emprego nas escolas primárias paulistanas no início da década de 1930 buscou produzir conhecimento sobre a aprendiza- gem dos alunos e o trabalho dos professores para favorecer a organização do ensino e simultaneamente atender ao interesse da administração escolar de tornar mais eficiente o sistema e reduzir os gastos com a reprovação escolar. Conforme já se explicitou, a bio-política consiste numa forma de poder que se baseia em conhecimentos sobre a vida dos indivíduos e as características das populações com o objetivo de preservar e promover as condições de vida desses mesmos indivíduos, na medida em que isso seja considerado impor- tante para o próprio Estado. Assim como os outros testes produzidos pela psicologia experimental nas primeiras décadas do século XX, os testes ABC também podem ser considerados como um recurso da biopolítica porque pro- duziram conhecimento sobre um aspecto da vida dos alunos – sua maturidade para o aprendizado da leitura e escrita. E foi esse conhecimento que permitiu intervir na população, organizá-la em grupos mais homogêneos, legíveis e administráveis. Efetuava-se a classificação com o objetivo de melhorar as condições de vida dos alunos e dos professores na escola. Tudo isso interes- sava à administração do ensino na medida em que resolvia um problema de governo, a necessidade de reduzir as taxas de reprovação escolar. [...] (LI- MA, 2007, p. 145-146)

89 CASTEL, Robert (1991). A ordem psiquiátrica – a idade de ouro do alienismo. 2.ª edição. – Rio de Janeiro: Edições Graal. A primeira edição desta obra data de 1978. O excerto está no anexo desta segunda edição brasileira, intitulado Cronologia e Lei de 1838.

90 Encontram-se disponíveis no sítio eletrônico do INEP uma coleção de todos os livros de Lourenço Filho, reeditados: http://portal.inep.gov.br/, e no endereço específico http://www.publicacoes.inep.gov.br/arquivos/%7B93D6EB33-3B3F-41BC-8D27- 9FD1F46F788B%7D_miolo_louren%C3%A7o_filho.pdf 88

Temos, então, a tecnologia dos testes ABC como aparelhos de verificação, máquinas de controle e avaliação (exame) cujo alcance nos revela o seu funcionamento como pletora de controle bio-político triplo: (1) da aprendizagem dos alunos e da ho- mogeneização das classes regulares, (2) do desempenho individualizado no trabalho dos professores, além da (3) vigilância aos gastos governamentais estatais com as reprova- ções dos alunos nas escolas públicas. Vale apontar que este aumento exponencial do controle bio-político da população através de técnicas educacionais e psicológicas avan- ça no sentido da industrialização nascente do Brasil do início do século XX e as deman- das emergentes pela formação de quadros operários, com o estopim após a I Guerra Mundial e um continuum nos anos 20 e 30, e cuja retomada ocorre com a Segunda Guerra. Os esforços para promover a garantia dos direitos sociais a setores mais amplos e menos favorecidos da sociedade, como preconizado pelos escolanovistas e Manifesto dos Pioneiros, valeriam ainda para a formação geral e técnica de quadros para as indús- trias que surgiam no país. De modo embrionário, estes primeiros testes psicológicos brasileiros discipli- nam educadores e educandos, e assim abrem campo à avaliação das competências dos estudantes nos processos formais de ensino-aprendizagem (com uma previsão do futuro aprendizado dos alunos) como à das competências no trabalho do ensino:

Os testes aparecem como uma tecnologia de governo que permite equacionar ambos os problemas: o de promover condições mais adequadas ao ensino e o de evitar o desperdício de recursos públicos causado pelo excesso de repro- vações na primeira série. Em terceiro lugar, as classes homogêneas permitiri- am uma avaliação mais justa do trabalho docente, visto que, pelo sistema re- gular, sem que se conhecesse o número de crianças maduras e imaturas em cada classe, os professores que tinham a má sorte de receber maior número de alunos imaturos eram julgados pelos mesmos critérios daqueles que rece- biam alunos mais maduros, o que constituía uma injustiça porque, claramen- te, o desempenho dessas classes não poderia ser igual. O estabelecimento das classes homogêneas permitiria adequar as expectativas de rendimento de ca- da turma ao seu nível de maturidade e assim os integrantes do magistério po- deriam ser avaliados de maneira mais precisa e mais justa. As classes sele- cionadas possibilitaram identificar ainda diferenças de rendimento entre pro- fessores com classes de níveis equivalentes de maturidade, o que tornaria e- videntes as falhas daqueles cujas classes apresentassem rendimento inferior ao esperado. Os testes ABC funcionavam, portanto, como auxílio precioso não apenas no governo dos alunos, mas também dos professores. (LIMA, 2007, p.149)

Pensando na genealogia dos testes, para que compreendamos os processos que culminam no nascimento dos testes ABC, é preciso que, como primeira etapa, estude- mos os processos de institucionalização da psicologia em São Paulo, que se dão através 89

da invenção do Serviço de Psicologia Aplicada e sua instalação junto à Secretaria de Educação e Saúde Pública do Estado de São Paulo:

Primeiro dessa modalidade no Brasil, o Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) foi criado na administração de Manoel Bergström Lourenço Filho (Pa- trono da Cad. 2 desta Academia), à frente da Diretoria Geral da Instrução Pú- blica, de 27 de outubro de 1930 a 23 de novembro de 1931, subordinada à Secretaria de Educação e Saúde Pública do Estado de São Paulo. Possivel- mente, este empreendimento constituía uma das principais fontes iniciais do desenvolvimento de clínicas psicológicas, serviços psicoeducacionais e ainda de unidades de recursos humanos nas empresas que se multiplicavam pelo Estado de São Paulo ou por outras regiões afora e que se tornaram, na atuali- dade, em um bem apreciável número. [...] Em fevereiro de 1931, a Prof.ª No- emy91 (ex-ocupante da Cad. 2 deste sodalício), foi designada para a chefia da Assistência Técnica de Psicologia Aplicada e João Batista Damasco Penna (ex-ocupante da Cadeira 18 desta Academia) para a função de Assistente. [...]

[...] De imediato, o Serviço de Psicologia Aplicada (SPA), idealizado como centro de estudos, investigações e pesquisa, coordenou e organização de 476 classes seletivas de 1.º Ano de acordo com os níveis de maturidade para a a- prendizagem da leitura e da escrita. Na publicação Um ensaio da organiza- ção de classes seletivas do 1.º Grau com o emprego dos testes ABC (Silveira, 1931), a Prof.ª Noemy assinalava que, se a associação entre idade mental e maturidade para o aprendizado fosse sempre ou fortemente positiva, seria fá- cil selecionar alunos: escalonava-se uma escala de testes de Inteligência in- dividuais, Binet-Simon, por exemplo, ou uma escala de testes de grupo, co- mo o Dearborn. Mas essa correlação foi fraca. Daí, a necessidade de medida específica e concluía pelas provas denominadas testes ABC. (MONARCHA, 2009, p.7-9)92 (grifos do autor)

Estes testes são utilizados também por Helena Antipoff, em Minas Gerais, na avaliação dos estudantes que deveriam ser encaminhados para as classes de aperfeiço- amento pedagógico ou para as escolas especiais localizadas em geral nas áreas rurais mais afastadas, condição vislumbrada como ideal para o aprendizado destes mesmos grupos de alunos. Esta psicóloga e educadora é quem cunha o termo educação de indi- víduos excepcionais para substituir retardados. Enquanto isso, Arthur Ramos, antes adepto fiel das práticas psicometristas já u- suais, passa a se utilizar das técnicas psicanalíticas aplicadas à Educação e ao trabalho de cunho psicológico nas escolas públicas, e altera alguns termos como o de criança anormal para criança-problema:

91 Noemy da Silveira Rudolfer.

92 MONARCHA, Carlos (2009). Notas sobre a Institucionalização da Psicologia em São Paulo: o serviço de Psicologia Aplicada (1930-1938). In: Boletim Academia Paulista de Psicologia – Ano XXIX, nº 01/09: 07-15. 90

A nossa experiência no exame dos escolares “difíceis” mostrou que havia ne- cessidade de inverter os dados clássicos da criança chamada “anormal”. Essa denominação - imprópria em todos os sentidos - englobava o grosso das cri- anças que por várias razões não podiam desempenhar os seus deveres de es- colaridade, em paralelo com os outros companheiros, os “normais”. [...] A grande maioria, porém podemos dizer os 90% das crianças tidas como “a- normais”, verificamos na realidade serem crianças difíceis, “problemas”, ví- timas de uma série de circunstâncias adversas [...] e, entre as quais avultam as condições de desajustamentos dos ambientes social e familiar. (RAMOS, 1939, p.13)93.

1.3.2 Arthur Ramos: psiquiatria, criminologia e educação: uma introdução à psicanálise nas escolas públicas do Rio de Janeiro

Moysés94 (2012) e Patto (1993), em suas pesquisas históricas, afirmam a rele- vância das contribuições teórico-práticas do psiquiatra Arthur Ramos para o pensamento em psicologia, educação e medicina, destacando que o deslocamento operado da catego- ria de criança anormal para criança problema significa um avanço, porém seu caráter ainda é o de uma subdivisão conceitual estigmatizante:

A importância de Artur Ramos para o pensamento educacional e médico bra- sileiro não deve ser minimizada, sendo responsável por propostas de mudan- ças do olhar clínico. A substituição da concepção de anormal pela de proble- ma representa um avanço inegável. Porém, dois pontos merecem ser destaca- dos. Em primeiro lugar, essa nova concepção sobre a criança é construída pe- lo mesmo olhar clínico que criou a criança anormal; aconteceu, apenas, um giro desse olhar, significante sem dúvida, porém apenas um giro... Não se tra- ta de uma nova forma de olhar a criança, que continua abstraída e silente, com suas individualidades transformadas em perturbações ou acidentes. A essência da doença continua centrada em uma abstração, o quadro, de que nos fala Foucault (1980); a criança consistirá, ainda, na abstração da abstra- ção. O segundo ponto refere-se ao fato de que não ocorre a substituição de uma concepção por outra; ao conceito de criança anormal, agrega-se o de cri- ança problema e ambos passam a conviver, aparentemente de forma pacífica, sem conflitos, nos discursos médicos, psicológicos e pedagógicos sobre a cri- ança. (MOISÉS, 2012, p. 21-22)

93 RAMOS, A. (1939). A criança problema: a higiene mental na escola primária. São Paulo: Nacional. Atualidades pedagógicas, v.37. 94 MOYSÉS, Maria Aparecida A. A medicalização na educação infantil e no ensino fundamental e as políticas de formação docente - a medicalização do não-aprender-na-escola e a invenção da infância anormal. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/4sessao_especial/se%20-%2012%20- %20maria%20aparecida%20affonso%20moyses%20-%20participante.pdf Acesso em: 06 fev 2013. 91

Adepto da passagem do conceito de criança anormal para o de criança pro- blema e da mudança do foco da hereditariedade para o meio no estudo dos determinantes da personalidade, A. Ramos estava afinado com as ideias do- minantes na psicologia educacional de sua época: seu livro faz parte de uma extensa literatura internacional que nas décadas de trinta e quarenta trazia no título a expressão “criança-problema”, tinha como palavra-chave o conceito de desajustamento e como objetivo a correção dos desvios. Mais que isto, Ramos é um crítico dos abusos da psicometria e da importância exagerada dispensada à dimensão intelectual na explicação do comportamento e seus desvios, postura coerente com sua adesão à psicanálise, que privilegia a di- mensão afetiva na explicação do comportamento e o método clínico na inves- tigação de seus desvios. (PATTO, 1993, p. 81)95

Ramos formou-se em medicina quando foi nomeado médico-legista do Serviço Médico-Legal do Estado da Bahia (Instituto Nina Rodrigues) e foi discípulo de Rai- mundo Nina Rodrigues e sua Escola antropológica, médico legista e psiquiatra, conside- rado o pai da antropologia criminal brasileira. Nina Rodrigues é o escritor da obra As collectividades anormais (1939), escritos póstumos que o revelam como um precursor da psicologia coletiva ou das multidões e da psicologia social no Brasil. Nele, Rodri- gues analisa (1) as loucuras epidêmicas religiosas, destacando os casos de Canudos e Pedra Bonita, e (2) as associações criminais no Brasil. Pesquisa e estuda casos de cho- reomania (dançomania) e abasia choreoforme epidêmica no norte do Brasil, como ma- nifestação de contágio emocional coletivo (das multidões) e atavismo (do latim, atavus, ancestral), este como condição de hereditariedade genética na degeneração criminosa, quadro do reaparecimento de uma característica no organismo após muitas gerações de ausência. Decorrente da não expressão de um gene em uma ou mais gerações de indiví- duos, este termo é usado correntemente para referir-se a semelhanças físicas e/ou psico- lógicas entre seres e seus ancestrais mais distantes. Culturalmente, o atavismo é usado para se fazer referência à recuperação de atitudes ou tradições ancestrais que teriam permanecido latentes durante longo período. No que nos levaria a uma genealogia dos processos contemporâneos de judicia- lização da juventude nas escolas públicas fluminenses (e com projeção teórico-prática nacional), considero de suma importância um breve estudo das relações que o psicana- lista Arthur Ramos estabelecia entre a loucura e o crime, e em particular, entre a epilep- sia e a criminalidade. No capítulo dois de seu livro Crime e Loucura96, intitulado “Epi- lepsia e Criminalidade”, o autor relata o caso de um criminoso que bateu na filha e na

95 PATTO, Maria Helena Souza (1993). A produção do fracasso escola: histórias de submissão e rebeldia. – São Paulo: T. A. Queiroz, reimpressão, 1993 – (Bliblioteca de psicologia e psicanálise; v.6). 96 RAMOS, Arthur. Crime e Loucura: questões de psychiatria, medicina forense e psychologia social. Porto Alegre: Edição da Livraria Globo; Barcellos, Bertaso e Cia., 1937. 92

mulher para ilustrar um situação de criminalidade em epiléticos. Neste trágico episódio, segundo Ramos (1937), não importava a história de seus antepassados; o criminoso so- fria de “déficit global de todas as funções psychicas”. (Cf. p. 54-55) O doente diz que “[...] os doentes perturbam, querem me matar.” (Cf. p. 55) O médico apresenta então três características como indícios de que o criminoso é epilético, mesmo sabendo que ele não tinha apresentado a crise do grande mal, somente a do pequeno mal - quando o acometido perde a consciência em espécie de desmaio: (1) ele teve uma impulsão cri- minosa sem motivo aparente, (2) o seu crime não foi premeditado, (3) há ausência de remorso, uma indiferença, e (4) ele sofre de amnésia total do fato. Para Arthur Ramos, o crime é um sintoma da epilepsia, - assim como todos os outros -, sendo então o seu au- tor qualificado como irresponsável e ininputável, quanto ao ato infrator da Lei. A con- duta é desordeira, no entanto, com passaporte para o hospício (manicômio judiciário), já que é examinada em sua justaposição à loucura: - o doente diz ao médico que quando ouve bater algo, ele perde os sentidos, fica louco, perde a noção do que está fazendo. A direção geral de Crime e Loucura é a da produção com fundamentos médico- legais de uma separação, cisão científica entre os criminosos insanos e os verdadeira- mente delinquentes, e a epilepsia, – numa amplificação dos seus sentidos patológicos -, encaixa-se como uma chave para tal discernimento. No capítulo quatro, o título “Res- ponsabilidade Criminal. Seus modificadores” faz referência à obra homônima de Rodri- gues Doria, também seguidor de Nina Rodrigues, o qual preconiza ser mutável a res- ponsabilidade penal, considerando que não há uma razão humana por excelência, mas várias razões. Sobre a eclosão necessária e o problema dos manicômios judiciários, Ra- mos justifica a sua criação, na Bahia, em 1928, pautado no repúdio que sofrem os lou- cos criminosos de seus parentes, seus amigos e dos loucos comuns. “É preciso que ele sejam isolados, não somente da sociedade, mas ainda do meio limitado que constitui um asilo de alienados”. (CARRARA apud RAMOS, 1937, p.178) Ainda, Ramos articula a questão do diagnóstico entre o criminoso alienado e os loucos lançando margem de pos- sibilidade à atenção psicológica, quando diz que o estado clínico [médico] do paciente não é suficiente para se dar um diagnóstico sobre ele ser responsável ou não. Olhar o seu comportamento, o seu behavior, é também de grande importância. Os contatos e parcerias de Artur Ramos com Afrânio Peixoto97 e Anísio Teixei- ra, quando da sua chegada ao então Distrito Federal do Rio de Janeiro, são extremamen-

97 Júlio Afrânio Peixoto. Era médico-legista, professor, escritor e político.

93

te importantes no que precisamos explicitar de suas relações médicas e psicanalistas com a criminologia e a Educação, sobretudo primária. Trata-se dos encontros, respecti- vamente, entre a medicina psiquiátrica e a criminologia médico-legal, e entre a psicaná- lise e a Educação no Rio de Janeiro. No segundo momento, ressalto se tratar ainda de um encontro de Arthur Ramos com a Escola Nova e os pioneiros como Anísio Teixeira.

Grande entusiasta do ideário escolanovista, tendo exercido o cargo de Inspe- tor Geral do Ensino na Bahia entre 1924 e 1929, Anísio Teixeira veio para o Rio de Janeiro após a Revolução de 30, convocado para ocupar o cargo de Diretor de Ensino Secundário do recém-criado Ministério da Educação e Saúde Pública. Acaba, então, aceitando o convite do Prefeito do Distrito Fe- deral, Pedro Ernesto, para ocupar a Direção da Instrução Pública da Capital, onde inicia uma ampla reforma. [...] Fascinado pela sociedade norte- americana e a tendência “democrática” do mundo contemporâneo, coloca que dois deveres se impunham à educação voltada para a democracia: respeito à individualidade e ao bem social comum. Personalidade e cooperação consti- tuiriam os dois polos do homem contemporâneo. O ideário assumido por Teixeira, educador, parece ter se harmonizado de forma especial com o de Arthur Ramos, psiquiatra e médico-legista. Assim, no início de 1934 (mais precisamente no dia 17 de janeiro), Ramos era nomeado por Teixeira, Chefe da Seção Técnica de Ortofrenia e Higiene Mental (S.O.H.M.), serviço este vinculado à Divisão de Pesquisas Educacionais, uma das muitas estruturas criadas por Teixeira. (RAMOS, 2003, p. 13-14)98

Ramos é convidado por Afrânio Peixoto (então professor catedrático da Facul- dade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro e criador do curso de extensão uni- versitária em Criminologia em 1932) para ministrar um curso de Psicanálise Forense. A invenção das psicoclínicas é um segundo marco nesta genealogia do entron- camento entre psicologia, medicina e educação, após o nascimento dos testes psicomé- tricos e a tecnologia específica dos testes ABC, no Brasil. Compreende-se como psico- clínicas aos primeiros “serviços de saúde mental e terapêuticos em conexão direta ou indireta com as escolas públicas brasileiras de 1930 e 1940. Hoje recebem os nomes ‘Clínicas Psicológicas’ ou ‘Clínicas de Higiene Mental.” (MONARCHA, 2009, p.274) Os princípios das psicoclínicas eram (1) as psicopatologias são expressão de conflitos psíquicos, e (2) as psicopatologias no adulto são a repetição da história infantil do aluno. Considerando que as psicoclínicas brasileiras surgiam nos anos 30 e 40, no mesmo período em que as clínicas do mesmo tipo na Europa e USA, vale ressaltar a importância influente do suíço Hans Zulliger como precursor das psicoclínicas, profes- sor de ensino primário e depois psicólogo, na fusão técnica psicoanalítico-pedagógica

98 RAMOS, Arthur (2003) [1936]. Introdução à Psicologia Social [Prefácio para a 4.ª edição]. 4.ª edição. Casa do Psicólogo/ Ed. da UFSC/ Conselho Federal de Psicologia. 94

de intervenção com crianças difíceis (tipologia pessoal de Zulliger), ou seja, com difi- culdades de aprendizagem, tendo formulado uma pedagogia psicanalítica para a com- preensão destes casos individualizados. Os médicos Mirandolino Caldas, Arthur Ramos e Durval Marcondes criaram, respectivamente, as psicoclínicas conhecidas como Clínica de Eufrenia (1932), Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (1934) e Clínica de Orientação Infantil (1938). As duas primeiras foram instaladas no Rio de Janeiro, e última em São Paulo. Este tipo de dispo- sitivo de cuidado se diferenciava das clínicas de psiquiatria infantil no que tange à aten- ção específica ao diagnóstico e tratamento das oligofrenias. A oligofrenia é uma carac- terização geral para uma gama de situações individualizadas em que há déficit de inteli- gência, e que tem subdivisões em oligofrenia suave (debilidade e deficiência mentais), moderada (imbecilidade) e profunda (idiotia). Quando o psiquiatra Arthur Ramos assume o Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental do Instituto de Pesquisas Educacionais (do Distrito Federal), implantam-se seis psicoclínicas ortofrênicas anexas às escolas públicas. Partidário da psicanálise, de Freud, Adler e Melanie Klein, e da antropologia social de Franz Boas e Levy-Bruhl, Ramos preconizava a intervenção nos meios familiares e escolares, visando a remoção ou a atenuação aos bloqueios à personalidade infantil livre de inibições e distúrbios neu- róticos. As equipes técnicas que atuavam nas psicoclínicas ortofrênicas avaliavam o es- tado físico e mental dos escolares, e eram formadas por professores, assistentes sociais, professores-visitadores, psicólogos (denominados no período como psicologistas), mé- dicos clínicos e psiquiatras. As investigações destas clínicas de cuidados eram conduzi- das com foco nas bases fisiológicas da personalidade, as atividades instintivas como fome, sede, funções de eliminação, sono, repouso, atividades de sexo, manifestações emocionais e afetivas. Com apoio técnico desta equipe de ajustamento, a escola poderá, não de modo isolado, tratar dos vícios hereditários e das constituições delinquenciais das crianças. Em seu turno, os métodos ou técnicas de exame destas equipes de profis- sionais se caracterizavam pelo psicodiagnóstico: aplicação de instrumentos psicológi- cos, exames de sinais de comportamento, análise da anatomia corporal, para o rastreio de desvios de caráter e personalidade. Da visão condescendente dos especialistas destas equipes técnicas, formulavam- se uma série de tipologias estigmatizantes e que vigoram até a atualidade como redutora das virtualidades de crianças e adolescentes desadaptados: “criança quieta”: “criança 95

mimada”, “criança escorraçada”, “filho único”, “criança turbulenta”; assim como um repertório de síndromes prototípicas, como: “tiques e manias”, “fugas escolares”, “pro- blemas sexuais”, “medo e angústia”, “timidez”. A Clínica de Eufrenia foi estabelecida em 1932 pela LBHM – Liga Brasileira de Higiene Mental no DF. Segundo o propositor do conceito de “eufrenia” (do grego: eu + phrenos: bom + mente, espírito), Mirandolino Caldas, a ciência eufrênica bifurcava-se em duas especialidades, saber: a eufrenia genealógica e a eufrenia médica-pedagógica. A primeira subdivisão referir-se-ia ao estudo dos antecedentes psiquiátricos e psicológi- cos, e a segunda tratar-se-ia de uma justaposição das orientações médicas e pedagógicas para a compreensão da formação da “boa cerebração” desde a fase evolutiva intra- uterina. A eufrenia médica-pedagógica tinha como objetivo a atenuação das predisposi- ções mórbidas hereditárias, a estimulação dos bons hábitos e a formação geral do psi- quismo infantil. Esta especialidade dividia-se ainda em eufrenopedia, voltada à remoção dos fatores exógenos e endógenos prejudiciais à evolução do psiquismo, e em ortofre- nopedia como técnica especialista direcionada à correção ao desenvolvimento retardado ou anormal do psiquismo, trabalho ativo de ortopedia mental inclusive visando à erradi- cação dos efeitos negativos de hereditariedade.

Os quadros dirigentes da Liga pretendiam regenerar as populações desde o ponto de vista mental e moral e promover o aperfeiçoamento biológico e psi- cológico. Para atingir as metas, foram promovidas campanhas de combate ao alcoolismo, controle da reprodução humana e da imigração estrangeira, de higiene mental na escola e de educação sexual. (COSTA, 1989)

A proposição da Liga de Higiene Mental era o do controle biopolítico dos riscos e perigos populacionais. A escola pública, para seus integrantes, era o instrumento mais adequado no combate às patologias ocasionadas pelo alcoolismo, aglomeração popula- cional, delinquência infantil e juvenil, baixo rendimento escolar, migração, entre outros. Destaca-se aqui mais um indício da gênese histórica da acoplagem entre medicina higi- ênica e judicialização. Este breve histórico da formação das psicoclínicas e equipes técnicas escolares fluminenses dos anos 30 e 40, portanto da era Vargas, caracterizada pelo auge da indus- trialização e nacionalismo no país, nos apresenta então um protótipo dos modos de (fa- zer) trabalho psicoclínicos individualizantes operados pelo psicólogo como modo de subjetivação contemporâneo nas escolas públicas. Mais além, a história das psicoclíni- 96

cas é um embrião da ética de polícia das famílias que temos observado e registrado nes- ta dissertação. Em A Polícia das Famílias, Donzelot (1986) evoca uma visão do tribunal de menores que bem traduz o funcionamento técnico da polícia das famílias predominante nas intervenções das duas equipes técnicas de Antares e suas articulações com os tribu- nais e forças extrajudiciárias como o C. Tutelar:

[...] em que o modo de comparecimento implica a incrustação da criança e de sua família num contexto de notáveis, de técnicos sociais e de magistrados. Imagem de enceramento através de uma comunicação direta entre os impera- tivos sociais e os comportamentos familiares, que sanciona uma correlação de forças em detrimento da família.[...] (DONZELOT, 1986, p. 9)

Os modos de produção da narrativa são atualizados nos discursos e práticas contemporâneas de subjetivação nas escolas de Antares, e formam-se historicamente através do uso secular de técnicas e registros teórico-práticos em um conluio entre psi- cólogos, (psico)pedagogos e médicos (psiquiatras, neurologistas e (neuro)psiquiatras). As técnicas utilizadas pelo psicólogo e (psico)pedagoga [da equipe técnica de 2005- 2008] para o registro e exame geral das condutas são produzidas em acoplagem à já prevista utilização dos aparelhos de verificação medicamentosos. Vimos que nos relató- rios descritos neste capítulo, - ritos sumários produzidos pela primeira equipe técnica -, o psicólogo mantinha uma prática extremamente individualizada, através de atendimen- tos ao aluno e família em tempos subsequentes de trinta minutos. No último dia de tra- balho, dois de dezembro de 2008, o psicólogo Kane atendeu a intervalos repetidos de quinze minutos. A construção de um ideário psicológico escolar cujo modelo de atenção é um tipo de clínica individualizada tendo como clientela as crianças e adolescentes, e as suas famílias, tem sua formação histórica na introdução da psicanálise às escolas fluminen- ses, promovida nos anos 30 e 40 pelo médico-legista e psicanalista Arthur Ramos. A fixação do atendimento aos alunos, de modo individualizado, e às famílias, feita pelos psicólogos e pedagogos é uma reprodução de um modo de atuar originalmente médico- clínico. A psicologia, campo disciplinar cuja formação histórica e práticas nos interes- sam aqui particularmente, não se resume, em suas práticas, à atuação na escuta e análise individuais; é possível que façamos psicologia com grupos, com organizações, com instituições em análise. 97

As diversidades de máquinas. Nos registros que se supra-assinalam neste capí- tulo, os medicamentos mais utilizados para as supostas doenças de aprendizagem são apresentados. Eles funcionam como máquinas bioquímicas de assujeitamento e con- trole. Nas escolas de Antares, a psicologia e a pedagogia na escola atuam produzindo relatórios pré-crime: - declaram-se em seus registros prescientes da futura intervenção medicamentosa às questões da Escola e da Educação. Opera a máquina do setting psi- cológico dentro da escola, que é a máquina de produção de uma ética e uma política histórica de atuação do psicólogo em consultório individual e psicanalítico, aparelha- gem de enquadre à qual devem ser encaminhados e tratados os indivíduos estudantes e suas famílias de responsáveis. A máquina (psico)pedagógica de classificações se dife- rencia da máquina psicológica nas escolas em estudo no que tange às técnicas utilizadas para a aferição do teor das doenças da educação. O foco das atenções, reproduzido dos moldes psicológicos-psicanalíticos e médicos, é o mesmo direcionado para o aluno e família, assim como os encaminhamentos já previstos para os médicos neurologistas, neuropsiquiatras, pediatras, oftalmologistas. Alicia conduzia, pessoalmente, as crianças e adolescentes em fileiras de caserna às consultas com a Dr.ª Hyde, neurologista da Po- liclínica quase ao lado da escola Alpha, não sem antes encaminhá-las, durante um pro- cesso de triagem médica-assistencial, aos cuidados do setor de psicologia escolar (den- tro da escola). Nas suas consultas, Alicia sempre examinava perguntando se o aluno já havia tido crises convulsivas ou algum parente, mesmo que distante. Mesmo doravante a negativa, os alunos eram encaminhados.

1.4. De volta para o futuro: do pós-Segunda Guerra à era do aprimoramento cere- bral. - Ares de (toxi)cidade na escola Computer God

Waiting for the revolution New clear vision - genocide (or is it nuclear revolution ???) Computerize god - it's the new religion Program the brain - not the heartbeat

Onward all you crystal soldiers Touch tomorrow - energize Digital dreams And you're the next correction Man's a mistake so we'll fix it, yeah

Take a look at your own reflection 98

Right before your eyes It turns to steel

There's another side of heaven This way - to technical paradise Find it on the other side When the walls fall down

Love is automatic pleasure Virtual reality Terminal hate - it's a calculation Send in the child for connection

Take a look at the toys around you Right before your eyes The toys are real

There's another side of heaven This way - to technical paradise Find it on the other side When the walls fall down

Midnight confessions Never heal the soul What you believe is fantasy

Your past is your future Left behind Lost in time Will you surrender

Waiting for the revolution Program the brain Not the heartbeat

Deliver us to evil Deny us of our faith Robotic hearts bleed poison On the world we populate

Virtual existence With a superhuman mind The ultimate creation Destroyer of mankind

Termination of our youth For we do not compute No !

Computer God, Black Sabbath Álbum: Dehumanizer

99

No que tange à eclosão das sociedades de controle, com o pós-II Guerra (segun- da metade do século XX, notadamente), e catapultada no Brasil com o advento de uma ditadura militar (a de 1964), importa-nos, especialmente, a descontinuidade ou quebra entre os dois processos, - industrialização e desindustrialização -, com o avançar dos processos de desindustrialização, e da configuração da égide empresarial nas relações de trabalho e formação. Após 1945, vivemos na vigência da medicalização em sua contemporaneidade, atualizada no tempo das fusões financeiro-industriais da sociedade de controle. Nesta fase, Caliman (2009) explicita o notável crescimento das práticas sócio-médicas de con- trole sobre a vida, da produção do primeiro Manual de Diagnóstico Psiquiátrico, DSM, até sua última versão chamada DSM–IV TR, baseando-se, para tanto, na análise da construção do fato TDAH como doença da não-aprendizagem. A todo vapor a partir dos anos cinquenta, as forças de medicalização avançam para além dos antigos domínios espaciais-disciplinares dos alienistas; agora a ordem médica torna-se imperialista, quando a indústria farmacêutico-psiquiátrica acompanha as tendências das fusões industriais e empresariais-especulativas, atravessando múltiplas fronteiras em fluxos intermitentes num Capitalismo Mundial Integrado (CMI)99. A or- dem médica dispensa seus capitais a céu aberto para além dos sanatórios e asilos, e cada vez mais cavalga o tempo dos encaminhamentos-fluxos que objetivam os espaços que não lhe são próprios, - como a escola -, mas que passam a lhe servir como filiais da ma- triz de medicalização no âmbito dos estabelecimentos da Saúde pública. Sendo assim, apontamos a conformação do império médico-psiquiátrico cuja empresa matriz ianque exportará dispersando capitais às suas filiais em território brasi- leiro, a partir dos anos 50 do século XX, e cujo marco é a tecnologia do primeiro DSM, em 1952, inspirado no pensamento de Adolf Meyer:

Dificilmente podemos falar de um único estilo de pensamento científico do- minante em uma época, principalmente quando analisamos a pesquisa e a clí- nica psiquiátrica a partir da segunda metade do século XX. Especialmente nos EUA, a nova ciência psiquiátrica nascia do encontro de diversos aspec- tos: o processo de biologização das doenças mentais vinculado às descobertas psicofarmacológicas; o desenvolvimento do campo neurocientífico e de suas tecnologias de imagem cerebral; o crescimento da pesquisa epidemiológica baseada nos estudos populacionais dos riscos individuais; a criação do Insti- tuto Nacional de Saúde Mental; o advento da tecnologia genética, biofísica e bioquímica; o estabelecimento, entre os anos de 1940 e 1970, do que Rhein-

99 Capitalismo Muncial Integrado (CMI) - Conceito de Félix Guattari.

100

berger (2000) chamou de um novo paradigma biológico-molecular. [...] (CALIMAN, 2009, p.136)

Segundo Conrad (2007)100, a medicalização tem sido estudada por sociólogos desde o fim dos anos 60. O autor descreve algumas características dos processos sociais de medicalização, entre as quais, a dimensão de não necessidade de sua existência total, isto é: a jurisdição médica se ergueria em degraus. Destaca as propriedades de elastici- dade das categorias médicas, a de sua bidirecionalidade, no sentido de que atua tanto na medicalização como na desmedicalização (demedicalization), e a expansão da jurisdição médica através da transformação de aspectos da vida cotidiana em patologias, e do foca- lizar das origens dos problemas em indivíduos, e não no ambiente social de relações de poder. Como uma quarta propriedade, aponta a formação do controle sócio-médico dos comportamentos humanos que avança com as jurisdições médicas, assim como a ques- tão-chave do poder de um aparato médico de definições, pensadas em espírito e prática, a impulsionar a lucratividade das firmas farmacêuticas e biotecnológicas. Como exemplo de categoria médica que se expandiu, temos o exemplo dos de- graus históricos da produção sócio-médica da Doença de Alzheimer (DA) (AD – Al- zheimer´s Disease). Quando o critério da idade foi removido, não houve mais distinção entre DA e Demência Senil, e com a inclusão da segunda na população de adultos com mais de 60 anos, aumentou o número de casos de Alzheimer, que se tornou uma das cinco causas de mortalidade nos USA. Por sua vez, o caso mais notável de bidireciona- lidade na medicalização é a homossexualidade, desmedicalizada como incapacidade nos anos 70, quando deixa de ser categorizada oficialmente como doença em 1973 e é re- formulada em termos de acesso e direitos civis. A sétima tiragem do DSM-II (1974) não mais listava a homossexualidade como desordem, transtorno ou doença. Mantém-se como “distúrbio de orientação sexual” no DSM-II, e o DSM-III inclui o diagnóstico de distúrbio de homossexualidade ego-distônica, que é removido com o lançamento do DM-II, em 1987, e substituído pelo “transtorno sexual sem outras especificações”, o qual permanece até o DSM-IV. Conduzindo o que chama de meta-análise dos estudos sobre a medicalização dos anos 70 e 80, Conrad (2007) enfatiza três fatores: (1) o poder ou a autoridade da profis- são médica, reportando-se ao extremo de uma colonização médica, (2) às vezes, a medi- calização ocorre através de movimentos sociais e grupos interessados a advogar pela

100 CONRAD, Peter (2007). Medicalization – On the transformation of human conditions into treatable problems. Baltimore, Maryland, USA: The John Hopkins University Press. 101

legitimação de uma definição médica de um problema, ou validar algum tipo diagnose médica, e (3) atividades organizacionais direcionadas, inter ou intraprofissionais, nas quais profissionais competem entre si para pela autoridade em definir e tratar proble- mas, têm promulgado a medicalização, como é o caso dos obstetras e o desaparecimento das parteiras, e da origem de uma pediatria comportamental no despertar do controle médico das doenças da infância. Não obstante a definição de um imperialismo médico por Illich, Peter Conrad ressalta que não há tão somente uma colonização médica. Há uma forma de ação coleti- va em que pacientes e pessoas leigas colaboram com as práticas de medicalização, inte- grando e acoplando-se às máquinas desejantes do controle sócio-médico. Entre os precursores dos estudos sociológicos críticos da Medicalização, nos a- nos de 1970, como Irving Zola e Thomas Szasz, Peter Conrad101, em Medicalization of society, define de modo sucinto o conceito de medicalização:

“Medicalization” describes a process by which nonmedical problems defined and treated like medical problems, usually in terms of illness and disorders. […] The key to medicalization is definition. That is, a problem is defined in medical terms, described using medical language, understood through the adoption of a medical framework, or “treated” with a medical intervention. Its important to remember that medicalization describes a process. […] While “medicalize” literally means “to make medical”, and the analytical has been on overmedication and its consequences, assumptions of overmedicalization are not a given in the perspective. The main point in considering medicaliza- tion is that an entity that is regarded as an illness or disease is not ipso facto a medical problem; rather it needs to became defined as one. […] (CON- RAD, 2007, p. 4-5)

O filósofo Ivan Illitch (1975), em sua obra Limits to Medicine: Medical Nemesis, aborda o tema da medicalização da vida, e defende o conceito de iatrogênese, cujo sig- nificado seria o de um processo em que problemas patológicos e questões sociais au- mentam com a intervenção medicalizante:

Handbooks that deal with iatrogenesis concentrate overwhelmingly on the clinical variety. They recognize the doctor as a pathogen alongside resistant strains of bacteria, hospital corridors, poisonous pesticides, and badly engi- neered cars. It has not yet been recognized that the proliferation of medical institutions, no matter how safe and well engineered, unleashes a social path-

101 Cf. CONRAD, Peter (2006). Identifying hiperactive children – The medicalization of deviant behavior (expanded edition) – The classic study of ADHD. Ashgate classics in sociology.

102

ogenic process. Overmedicalization changes adaptive ability into passive medical consumer discipline. (ILLITCH, 1975, p. 77)102

Ivan Illitch estudou a iatrogênese em três níveis: clínico, no que se refere a efei- tos colaterais produzidos piores do que a condição original; social, quando o público cliente da medicina torna-se dócil e dependente da ciência médica para lidar com a vida em sociedade; e estrutural, onde a compreensão do envelhecer e morrer como doenças médicas deixam indivíduos e sociedades menos capazes em lidar com estes processos vitais. Szasz (2001)103 anuncia o nascimento de um Estado Terapêutico, e denuncia as características de seu regime político: os símbolos médicos tomam o lugar no papel de- sempenhado anteriormente pelos símbolos patrióticos, e o governo do critério médico e da terapia substituem o governo da Lei e da punição. Refere-se também à formação de uma farmacocracia (pharmacracy) que se define pela medicalização do Estado e pelo uso da saúde pública como um instrumento de autocontrole por indivíduos nas comuni- dades e populações. Neste sentido, a medicalização é evocada por Thomas Szasz como controle social mascarado por supostas liberdades civis e políticas no acesso individual e populacional aos serviços de uma saúde pública medicalizada.

Actually, I believe, Americans want a therapist-in-chief who is both physi- cian and priest—an authority that will protect them from having to assume responsibility not only for their own health care but also for their behaviors that make them ill, literally or figuratively. Pandering to this passion, politi- cians assure them they have a “right to health” and that their maladies are “no-fault diseases”; promise them a “patient’s bill of rights” and an America “free of cancer” and “free of drugs”; and stupefy them with an inexhaustible torrent of mind-altering prescription drugs and mind-numbing antidisease and antidrug propaganda—as if anyone could be for illness or drug abuse. For- merly, people rushed to embrace totalitarian states. Now they rush to em- brace the therapeutic state. By the time they discover that the therapeutic state is about tyranny, not therapy, it will be too late. (SZASZ, 2001, p. 516)

O diagnóstico escolar de Transtorno de Déficit de Atenção e Hipertividade tem- se configurado como a expressão máxima da medicalização crescente de crianças e ado- lescentes nas escolas públicas de nível fundamental, na medida em que vem funcionan- do como uma nosografia do tipo “saco de gatos”, à qual uma gama de supostos distúr-

102 ILLITCH, Ivan. The medicalization of Life. In: Journal of Medical Ethics, I975, I, 73-77. Disponível em: < http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1154458/ > Acesso em: 23 fev 2013. Esta publicação é uma junção de um excerto do livro Medical Nemesis, com a transcrição de um documento que o autor leu em uma conferência organizada pelo London Medical Group, sobre a questão da iatrogênese. 103 SZASZ, Thomas (2001). The Therapeutic State – The tyranny of Pharmacracy. In: The Independent Review, v.V, n.4, Spring 2001, p. 485–521. 103

bios ou doenças do não aprender na escola é remetida. A eclosão do TDAH nas socie- dades de controle tem promovido um amálgama de comportamentos agressivos (in)disciplinados e não aprendizagens desatentas. Caliman (2010) faz uso, a seguir, da expressão “cerebrização das disfunções adaptativas” para evidenciar a construção da suposta doença TDAH como um movi- mento biopolítico cuja funcionalidade específica é o controle dos indivíduos desadapta- dos. Os dispositivos escolares de exame (técnicas de observação e registro) e encami- nhamento (à área médica e outras especialidades como escolas especiais/centros especi- alizados na rede intersetorial da cidade) são a máquina principal utilizada, uma vez que, na maioria dos casos, os sintomas ocorrem na escola.

Como o TDAH, os diagnósticos guarda-chuva agrupados em sua história fi- zeram parte do processo através do qual a ciência médica iniciou seu discurso sobre a saúde mental de pessoas que não eram nem drasticamente mal desen- volvidas nem mentalmente deficientes. Elas eram mal adaptadas. O diag- nósticos incluídos na história do TDAH são aqueles que fortaleceram o pro- cesso de patologização dos indivíduos incapazes de satisfazer as expectativas morais, políticas e econômicas da sociedade na qual viviam. Na história da psiquiatria, a patologização do indivíduo inapto ou não adaptado não é um processo recente, mas, na constituição do TDAH, ela se vincula à cerebriza- ção das disfunções adaptativas. (CALIMAN, 2010, p.50-51; grifos meus)104

Na teoria desenvolvida por Russel A. Barkley, na década de 1990, o TDAH é consequência de um defeito adaptativo da inibição e da capacidade de autocontrole, constituindo-se como um defeito da vontade e um déficit do desenvolvimento moral. Segundo Caliman (2010), temos que George Still, Virginia Douglas e Russel Barkley compartilham um mesmo aspecto como ponto central da análise teórico-histórica do TDAH, que é uma ligação funcional entre um defeito neurológico do sistema inibitório e o déficit da moral e da vontade. Com um duplo e amplificável alcance de um diagnóstico para as desadaptações gerais na escola pública de ensino fundamental, o TDAH nos serve à catalogação de (in)disciplinas e não aprendizagens como doenças do não aprender na escola. Em con- sonância à questão da medicalização da educação via a construção sócio-médica como um halo para as virtualidades estudantis, temos um outro campo de controle com a eclo- são do uso indiscriminado dos medicamentos nootrópicos nas sociedades, desta vez como exercício de autocontrole individual na aprendizagem universitária de adultos e

104 CALIMAN. Luciana Vieira (2010). Notas sobre a história oficial do Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade TDAH. Psicologia: Ciência e Profissão 2010, 30(1), 45-61. 104

no trabalho empresarial. São drogas de aprimoramento cognitivo (cognitive-enhancing drugs) para o aperfeiçoamento do desempenho cognitivo de indivíduos em empresas e universidades. O metilfenidato (Ritalina/Concerta), psicoestimulante utilizado no tratamento de TDAH e narcolepsia (ataques do sono incontroláveis), é uma droga utilizada tanto nas escolas como por executivos nas próprias empresas. O medicamento é sintetizado em 1944 como um variante das anfetaminas, mas com efeitos colaterais reduzidos, como os de vasoconstricção e broncodilatação, lançado no mercado em 1955 pela, e, nos anos 60, populariza-se no tratamento de crianças diagnosticadas como hiperativas. O fármaco foi sintetizado a primeira vez em 1887, e o químico Gordon Alles introduziu o uso mé- dico da anfetamina em 1929. Trata-se de uma droga sintética quimicamente similar à efedrina (feita como uma erva chinesa). A primeira versão comercial, a Benzedrina, surgiu na França, em 1932. Durante a Segunda Guerra Mundial, aliados e potências do eixo fizeram uso de anfetaminas para aplacar a fadiga e estimular o Sistema Nervoso Central: Ingleses e estadunidenses usaram a Benzedrina, droga similar ao Adderal, en- quanto às divisões Panzer e aos japoneses foram ministradas meta-anfetaminas como o Methedrine. Nos anos de 1950, militares norte-americanos, servindo na Coreia e no Japão, foram os primeiros a fazer uso do speedball, uma mistura injetável de heroína e anfetamina. No bloco das cognitive-enhanced drugs, tecnologias importadas pelas corpora- ções do imperialismo médico, tem sido comum o uso de outros medicamentos como anfetaminas (Aderall e outros), Modafinil (Provigil), e o Donepezil (Aricept). O objeti- vo é o aprimoramento da eficiência comportamental no trabalho e nos estudos. O Moda- finil é um estimulante de nova geração para narcolepsia e sonolência extrema devido a trabalho em turnos ou apneia obstrutiva do sono. O Donepezil é indicado para o déficit cognitivo como efeito da Doença de Alzheimer: aumenta a quantidade do neurotrans- missor acetilcolina para melhorar a cognição. O Modafinil, introduzido nos USA em 1998, teve o uso rejeitado pela FDA - Food and Drug Administration - no tratamento de TDAH em crianças e adolescentes, em função dos relatos de erupções graves na pele como efeito colateral. Uma verdadeira drogadicção da infância e adolescência tem se projetado de den- tro e de fora das escolas públicas como forma de treinamento e adaptação dos jovens aos ritmos eficientes das sociedades empresariais, vigentes com suas ramificações de subjetivação na contemporaneidade. Preparam-nos para o futuro, e a estratégia maior é 105

o treinamento de sujeitos resilientes no trabalho e na formação básica. A propriedade de resiliência foi deslizada da física para o campo das organizações e do trabalho. Na me- cânica, refere-se à capacidade dos materiais em responder a forças externas e a absorver energias externas impactantes sem o comprometimento de sua integridade, sem distor- ções em seu desempenho. É uma habilidade dos corpos se recuperarem de uma defor- mação elástica, liberando a energia recebida. Nas organizações, trata-se da capacidade de adaptar-se “positivamente” às mudanças e desafios intermitentes. A resiliência orga- nizacional é um produto da ética da rotatividade empresarial, e está presente em quase todas as instituições das sociedades de controle. Há fabricação de indivíduos resilientes nas fábricas, no exército, nas empresas, nos dispositivos de Saúde Mental, e mesmo nas escolas públicas municipais. Em prefeituras municipais como a Antares desta disserta- ção, indivíduos resilientes são fabricados entre as relações privatizadas de trabalho, efei- to das rotatividades empresariais dos exércitos de mão-de-obra de reserva para os con- tratos temporários no serviço público de saúde e educação. Os encaminhamentos compulsivos e subreptícios para o uso de medicamentos turbinadores do cérebro pelos alunos são uma modulação das estratégias de inclusão educacional-social nas escolas de nível fundamental: - É preciso sair para entrar, excluir para incluir, aderir ao fluxo e cair na rede entre setores sócio-técnicos e médico- educacionais de cuidado para adaptar-se, disciplinar-se. Em suma: configura-se a domi- nação da Educação tabloide e majoritária (dominante), cujo lema é: - adaptar, otimizan- do recursos sócio-econômicos para aprender o ‘necessário para a vida’, comprimindo o tempo, verticalizando condutas gerais na escola pública de ensino básico. Sendo assim, a exigência e a difusão do uso dos aprimoradores químicos pelos alunos através dos encaminhamentos das escolas, pelos especialistas intra e extraescola- res, têm se configurado como a reprodução e efeito da atualidade de cobranças por pro- dutividade e desempenho totais pelos estudantes universitários e executivos de empre- sas. É preciso preparar as crianças e adolescentes para o mercado de trabalho e a univer- sidade. Estudantes universitários e executivos ingerem drogas estimulantes para melho- rar seu desempenho mental cotidiano, embora estas substâncias nunca tenham sido a- provadas para esse uso. Especialistas em ética e neurocientistas levantam a probabilida- de de tornar essas drogas amplamente disponíveis para aprimorar pessoas saudáveis que não sofram de demência. Contudo, ainda sobram dúvidas de se os chamados nootrópi- 106

cos, isto é, se drogas que alteram o funcionamento mental básico serão seguras o bastan- te para serem consumidas como café ou chá:

A obsessão com aprimoradores de cognição é atestada por artigos saudando a chegada das chamadas drogas inteligentes, aprimoradores neuronais, nootró- picos ou mesmo “o Viagra para o cérebro”. Sob esse ponto de vista, a era do aprimoramento já chegou. Universitários normalmente pegam emprestadas algumas pílulas de Ritalina prescritas para um amigo e conseguem estudar a noite toda. Programadores de computador com prazos vencendo ou executi- vos tentando manter a mente no limite ingerem modafinil, da nova geração de “despertadores mentais”. Os usuários juram que essas drogas fazem mais que deixar a pessoa alerta, como faria um café expresso com caramelo; em vez disso, propiciariam o foco preciso necessário para absorver nuances da química orgânica ou explicar detalhes esotéricos de dívidas bancárias.105 (STYX, 2012, 64)106

Corporações se empenham na fabricação dos turbinadores do cérebro visando a cura de várias formas de demência e déficit cognitivo, assim como, possivelmente, a perda de memória comum no envelhecer. Nas linhas de produção temos as Ampaquinas e os inibidores de fosfodiesterase (FDE), para o aprimoramento da memória de longo prazo, as Anti-histaminas atuando na vigília, na atenção e cognição, e os ativadores do receptor nicotínico de acetilcolina, substâncias para otimizar o uso da atenção e memó- ria. (STYX, 2012) Cientistas futuristas já apontam o símbolo H + para o que seria uma versão aper- feiçoada de humanidade, bionicamente modificada através do uso de tecnologias avan- çadas, como células-tronco, robótica e substâncias bioquímicas que catalisariam a supe- ração de limites físicos e mentais. As escolas, com esforços de professores, alunos e técnicos de normalização, parecem se estabelecer como um campo de readaptações para um futuro não muito distante. Os casos individualizados atendidos pela equipe técnica que atuou em Antares entre 2005 e 2008 nos revelaram os quadros da formação histórica da profissão de psi- cólogo no Brasil. Os psicólogos não estão sozinhos nesta história; um entroncamento de tríplices fronteiras entre medicina, pedagogia e psicologia é que nos assegura o caminho das análises das práticas de medicalização como exigência de trabalho acrítico ao psicó- logo, neste capítulo, e nos que se seguem traduzindo as minhas práticas na nova equipe SAFE que vem atuando nas escolas de 2009 até março de 2012. Arthur Ramos atraves-

105 Disponível em: Acesso em: 10 fev 2013. http://download.springer.com/static/pdf/453/art%253A10.1007%252Fs12152-009-9032- 1.pdf?auth66=1360686725_9b0c7d2fb378002b726271c9f7ecc9f5&ext=.pdf 106 STYX, Gary (2012). O cérebro turbinado – Neurociência 1.In: Scientific American Brasil especial (A máquina humana) – Ed. 49. São Paulo, SP: Ediouro Duetto Editorial. 107

saria este acoplamento ao adicionar ares de criminologia antropológica não só médica como psicologista nas escolas públicas fluminenses. 108

2 REINAÇÕES DE TOM SAWYER - OPERAÇÕES DE MEDICALIZAÇÃO E PRÉ-CRIMINALIZAÇÃO DAS CONDUTAS DESORDEIRAS

O pulso ainda pulsa O pulso ainda pulsa...

Peste bubônica, câncer, pneumonia Raiva, rubéola; tuberculose e anemia Rancor, cisticercose, caxumba, difteria Encefalite, faringite, Gripe e leucemia...

E o pulso ainda pulsa E o pulso ainda pulsa Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia Úlcera, trombose, coqueluche, hipocondria Sífilis, ciúmes, asma, cleptomania... E o corpo ainda é pouco E o corpo ainda é pouco Assim... Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia Hérnia, pediculose, tétano, hipocrisia Brucelose, febre tifoide, arteriosclerose, miopia Catapora, culpa, cárie, câimbra, lepra, afasia... O pulso ainda pulsa E o corpo ainda é pouco Ainda pulsa Ainda é pouco Assim... Titãs, O Pulso

Um tipo de demanda clínica inicial para a atuação do psicólogo e do psicopeda- gogo - para a triagem com mais da metade dos alunos de uma escola, é o que nos des- perta o questionamento da ordem para atendimentos psicológicos individualizados. Há dois meses do início do trabalho dos psicólogos nas escolas de Antares (RJ), os (psico)pedagogos já haviam sido convocados, para compor a Equipe Técnica SA- FE107. Realizaram-se os conselhos de classe (em julho de 2009), a partir dos quais, pro- duziram-se diversas listagens com nomes dos alunos considerados “problemáticos” de todas as escolas do município. Destacara-se o número de duzentos e cinco alunos da escola de maior porte (maior contingente de alunos matriculados), encaminhado para avaliação e acompanhamento da equipe técnica de atenção à família e ao educando (no conselho de classe do segundo semestre). Considerando que havia mais de quatrocentos

107 Os dois psicólogos da Equipe SAFE só foram convocados em setembro de 2009. 109

alunos matriculados naquele ano, a escola nos encaminhara mais da metade desta popu- lação estudantil – do ensino infantil ao nono ano do fundamental –, com a suposição de que seria portadora de alterações comportamentais na aprendizagem e na fala, apresen- tando também problemas de infrequência em todos os anos de escolaridade. Na primeira categoria, havia alguns sub-grupos: no ensino infantil, uma aluna “grita muito”, um aluno “(S.O.S.) tem muita agitação, porém houve progresso neste bimestre”. Considerando o grupo das dificuldades de aprendizagem, nas duas turmas do ciclo de alfabetização (da 1.ª A à 1.ª B: divisão do antigo C.A. - Classe de Alfabeti- zação), um aluno tem “dificuldade no raciocínio, chora muito e é inseguro”. No 9º ano, havia sete alunos com “agitação e conversa paralela”, e dois alunos “com desinteresse”. No que se refere ao item das faltas, destaca-se um dado sobre uma aluna: - “faltas justificadas por atestado médico – gravidez”, tem notas muito baixas em português e matemática. Este registro parece permear dois campos do quadro de classi- ficação: o comportamento (ou a sua falta: indisciplina) e a aprendizagem (ou a sua falta: fracasso escolar ou distorção série-idade), tidos como duas categorias isoladas, cada qual com os técnicos “naturalmente” responsáveis por seus exames e tratamentos. No total desta primeira lista com nomes de alunos e categorizações desviantes (da escola Alpha), havia 52 alunos com alteração de comportamento e 120 alunos com dificuldades de aprendizagem, considerando aqui a produção pela escola de muitas ou- tras classificações-problema, endereçadas à equipe técnica no formato de casos indivi- duais aos especialistas. Na Unidade de Ensino Infantil (escola Épsilon), vi um arquivo com uma lista de quatro alunos outrora atendidos pelo psicólogo K, e a inscrição ao lado dos nomes: - “Alta ou transferido”. Um emaranhado de operações institucionais108 ocorre na forma dos fluxos inces- santes de encaminhamentos que se sucedem no espaço-tempo dessas escolas públicas. Estas operações são expressas nos mais diferentes tipos de registros, relatórios e enca- minhamentos. Anunciam-se como códigos de conduta e exame entre os trabalhadores do ensino: direção-educadores, educadores-psicólogos (e outros “técnicos- especialistas”), escola e família (dos professores para os pais); os relatórios, produzidos

108 As operações institucionais são os procedimentos técnicos, e práticas discursivas e não-discursivas, realizados pelos atores escolares (diretores, educadores e equipe técnica), como os registros de exame, relatórios, encaminhamentos e articulações gerais médico-assistenciais que garantem a manutenção da ordem vigente nos controles e disciplinamentos no espaço-tempo da escola. Incluem outros discursos e instituições em sua constituição.

110

em maior escala, são aqueles que têm como objeto principal o aluno, considerando o exame de seu corpo e o governo de sua conduta. Nesse sentido, os relatórios transitam mais além do espaço disciplinar da escola, avançando em direção à Rede Intersetorial da cidade. Eles deslocam-se entre os vários atores da escola, são efeitos das tensões en- tre as partes: há relatórios-queixas dos pais a operar como exame ou avaliação do traba- lho dos professores. Há conflitos entre educadores e psicólogos quando os primeiros exigem que os segundos realizem os diagnósticos e encaminhamentos para a Saúde e assim por diante. Esta dissertação se inicia com os primeiros ritos sumários109 médicos e judiciali- zantes, que são aqueles produzidos como operações psicodiagnósticas no corpo dos alu- nos, e tal como uma gestão dos riscos na escola, atingem por extensão suas famílias e o controle social dessas comunidades escolares (de cada um dos seis bairros das escolas aqui em estudo). Como questão principal dessa pesquisa temos as práticas de medicali- zação promovidas por muitos: psicólogos, professores e famílias, nos limites da comu- nidade escolar, que objetivam os alunos, e que encontram nos seus corpos um instru- mento para a contenção dos desvios, dos debates coletivos e conflitos, e das diferenças e dissidências políticas na escola. Como se produzem? Quais os modos de produção da medicalização cujo fio inicial nos parece ser aqueles estereotípicos diagnósticos de su- postas doenças-da-não-aprendizagem, o que podem nos mostrar mais além de seus dis- cursos e encaminhamentos patológicos das multidões de estudantes, justapostos a uma também suposta causa genética familiar? Para isso será importante percorrer os primei- ros caminhos e julgamentos, isto é, pré-julgamentos médicos-assistenciais que se anun- ciam nas sombras. E considerar tais indícios de relações mais complexas na díade escola – comunidade; o que faremos através de exposição de dados e análise de diversos do- cumentos, entrevistas, observações e conversas registradas nos diários de campo e gra- vadas, no campo de tensões educacional das escolas de Antares, com professores, alu- nos e seus familiares, com as gerências do ensino, a Secretaria Municipal de Educação,

109 São súmulas escolares produzidas ou bulas médico-assistenciais e judiciais-correcionais engendradas pela escola e seus trabalhadores gerais: psicólogos, assistentes sociais, direção, educadores, fonoaudiólogos e outros, e compõem uma arquitetura micropolítica que visa aplacar as tensões mais complexas no cotidiano de cada unidade de ensino nem sempre visíveis, ditas ou pensadas (discutidas) pelos atores em questão. Ritos e procedimentos sumários identificam-se às práticas de medicalização, as quais resumem as questões sócias, políticas e históricas a patologias individuais que se concentram em frações ou cisões no corpo do estudante de ensino fundamental: comportamentais, de aprendizagem, afetivas, cognitivas, motoras, cada qual digna de e colada a alguma prática especialista restrita. Utilizo aqui como uma metáfora a partir do termo jurídico original que é então transportado às questões educacionais na escola pública, no que concerne especificamente à tutela médica e criminológica- judicializante instalada historicamente no âmbito da escola pública. 111

- em sua maior parte em grupos - num diálogo crítico, tenaz e intenso com as políticas pedagógicas instituídas. As tensões, os impasses e as lutas que aqui se registrarão eu poderia lhes dizer que tiveram seu prelúdio nas sombras... Nas sombras não somente dos muitos alunos diagnosticados, como dos especialistas e não especialistas, daqueles que na Escola-Empresa aceitam as grades, e daqueles que as problematizam e contes- tam...

2.1 Dos ritos primários (os primeiros e breves relatórios informais)

As pistas que riscam (como giz) luzes a respeito da lógica de medicalização a- travessada nos processos, nas práticas institucionais das escolas da pequena Antares, ocorreram, antes dos Conselhos de Classe de julho de 2009, com os registros psi da e- quipe que trabalhou nas mesmas escolas no período entre início 2005 e dezembro de 2008, e logo depois com as visões de diretoras e professores sobre os alunos, famílias e comunidades expostas nas primeiras conversas que tive com estes profissionais, acom- panhado, a princípio, apenas da (psico)pedagoga Dorothy Gale110. São indícios das ações do controle que se expande a partir da escola, das micro às macrorrelações e vice-versa, do corpo adoentado de cada estudante atravessado pelas tensões das escolas às famílias, e assim às comunidades atendidas pelo serviço público estatal da Educação Municipal de ensino fundamental. Nas primeiras visitas às escolas recebíamos os encaminhamentos dos alunos e seus respectivos problemas, com os nomes daqueles, de cada turma, que supostamente deveriam ser tratados por um psicólogo. Seguem alguns primeiros ritos111 percebidos através dos relatórios breves e (in)formais ditos pelos professores, diretoras das escolas, recreadoras, recreacionistas,

110 O assistente social – Vladimir -, só veio juntar-se à equipe em 15 de outubro de 2010. Sobre o setor de fonoaudiologia, estes profissionais foram convocados um a um, até que não restassem mais vagas no cadastro reserva do concurso público. Todos os chamados para a Educação foram desistindo, seja pela grande quantidade de escolas a percorrer, pelo salário baixo (mínimo) ou por não concordarem em exercer um trabalho focado direta e estritamente no aluno como fora exigido.

111 As falas escritas em diários de campo estão destacadas em tamanho 11 da fonte Times New Roman e entre aspas, tal como uma citação; os registros de documentos, como os dados nas fichas sociais de matrícula, e os demais da pasta individual do aluno estarão no mesmo tamanho da referida fonte mas em itálico. Não há registros de falas gravadas neste primeiro momento, último quadrimestre de 2009, quando comecei a trabalhar em Antares. Deste tempo que chamo de ambientação na equipe, nas escolas 112

entre outros profissionais, ainda no primeiro ano de trabalho nas escolas, de setembro a dezembro, notadamente o último quadrimestre de 2009:

Escola Estadual Municipalizada Alpha, setembro de 2009 Turma 301, quarto ano: Bruce Banner (quarto ano/10 anos) – “Nervoso”, “tem ataques” (“a mãe bate nele”), “fica vermelho quando em situações conflituosas, não pode ser con- trariado...” Doug – “Os pais morreram.” Leon – “Precoce”, “mãe não é normal, perturba o menino”.

Turma 302 Cezar – “Nervoso”, “vive com a mãe e o padrasto”. “O pai mora em Barra do Piraí e trabalha em São Paulo”. “Dificuldades na leitura.”

Turma 401 (5.º ano) – extremos: Carol (12): “Já teve leucemia”, “há questões referentes à “sexualida- de”; Antônio: “É revoltado”: “o pai bebe.”; Isabel: “ - Tem como “única amiga: Carol”. “Pai ignorante.” Wanderlaine: “ - Higiene pessoal” / “mau cheiro”. Matoso – “Só pensa em comer, e ‘viaja’ muito: - para a pergunta “qual a im- portância da preservação dos rios?, sua resposta: - o sol”. “Aceita provoca- ções, como “Piu! Piu!”, ditas pelos colegas a caçoar dele.” “O pai é homos- sexual. Hoje, saiu de casa.” Mãe solicitou psicólogo. Ele não acompanha a ordem das contas.” Wayne – “Dificuldade de audição”.

Turma do Segundo ano Carla, Lis e Albertino – “irmãos-problema”.

Colégio Municipal Beta, 08 de setembro de 2009112 1.ª série A (1.º ano) – “Vários alunos (10) com dificuldades de compreender, ler, escrever e copiar palavras: - Aline (9 anos), Laís, Natália, Manoel, Marisa, Cristina, Isabelina, Tábata e Wanderlan.”

1.ª série B (2.º ano) (turma 101) Hugo – “Indisciplinado”, “notas baixas / repetências”, “conta tudo do bairro”

e na cidade, transcrevo apenas dados de documentos e falas que registrei nos diários. As palavras e expressões em itálico referem-se a excertos ou transcrições originais de documentos, como registros do histórico escolar dos alunos nas pastas individuais na escola, onde ficam os boletins e as fichas sociais, que são um primeiro questionário que os pais precisam preencher na matrícula. Esta contém, entre outras informações, itens como doença e deficiência do aluno ou parentes, se usa medicamentos, e o nome do responsável a quem a escola deve contactar. Este aqui, em geral, contém o nome da mãe, que quase sempre é posta como a única responsável. Aquelas entre aspas e destacadas em fonte Times New Roman tamanho 11 referem-se às falas dos diversos atores: professores, diretoras, alunos, pessoal da equipe técnica, datando do momento de chegada dos psicólogos ao trabalho na equipe, entre os meses de setembro e outubro de 2009. São comentários dos profissionais (tidos por eles mesmos como não- técnicos ou não-especialistas, dada à posição especialista da equipe de assistência) de todas as escolas onde trabalhei (que eram seis). 112 Professores falam dos alunos em um Conselho de Classe, no sentido da produção coletiva de encaminhamentos aos cuidados da equipe técnica, que estava chegando para trabalhar nas escolas, e presente à reunião. 113

Pati – “Fala sozinha”; Dan – “mãe não participa (inclusão)”, “ele copia”; Stephania e Marcos – “Dificuldades de aprendizagem”; Luke – “Xinga os colegas /é uma questão emocional?” Marie Louise – “Problemas sociais / familiares”; Francis – “Dificuldade na leitura”, “dificuldade de aprendizagem”; Priscila – “Reprovou a 1.ª B/ avaliações pisadas e amassadas na 1.ª B” [em 2008].

3.º ano (turma 201) - Peter Henri, Stella, José, Tanja, Guilherme e Wesley – “distorção série-idade.”

Turma 202 Carla – “Implicante / provoca os colegas”, “não bem aceita pelo grupo”; Victória – “Não alfabetizada / distorção série-idade / operação no INCA (Ins- tituto Nacional do Câncer) que provocou muitas faltas”, “pais separados / vi- ve com o pai”, “furtos”, “pai pegou a mãe com outro / pai matou alguém”; Félix – “Perdeu a mãe”, “tem família carente”;

No 4.º ano (301) – os problemas foram cindidos em dois pólos: 1. Comportamental – Quatro alunos: Alberto (desequilibra a turma), Ronald, Raoni e Jeronimo; Raoni – 1.ª A > de acordo com o sistema implantado pela Secretaria de Edu- cação, na referida série não há registro de notas ou conceitos. Avaliação re- alizada bimestral. / APTO; participativo / boa leitura / pouco organizado / bem inconstante, espírito de cooperação, bom relacionamento com os de- mais alunos, escrita legível. 2. Dificuldades de Aprendizagem – dois alunos: Ariel – “distorção série-idade” / não lê nem escreve / mais velha (14-15 a- nos)”; “Ariel , 301, é mais velha que os demais e está na 3.ª série.” Cassia – “lê e escreve coisas básicas”;

5.º ano Ferdinanda – “Gera todos os conflitos da sala.” Octavia – “Agressividade verbal.” Luiz – “Dificuldade de se socializar: a mãe fica sentada próximo à sa- la.”

6.º ano (501) Alexander Franz (19 anos/inclusão) – “Retardo mental”. Rogério – “Alteração de comportamento”.

Escola de jovens e Adultos - EJA (única turma noturna no Colégio Beta)

O EJA funciona das 18h às 21h e 30 min, logo fomos informados no Colégio Beta, assim como o nome dos alunos que, segundo professor, orientadores educacional e pedagógico, e diretoras, precisariam ser assistidos pela equipe: “- Daniel, Elton John e Gilbert Grape.” Daniel (35 anos) tem Síndrome de Down; Elton John é portador de deficiência neuropsicomotora proveniente de paralisia cerebral; Gilbert Grape é acometido de grave 114

déficit auditivo (usa aparelho auditivo e por vezes sua linguagem ao comunicar-se PE imcomprensível). Os dois primeiros frequentam o Núcleo Municipal de Atendimento Educacional Especial(izado) (NAEE); Gilbert é (in)disciplinado e falta constantemente à aulas do EJA.

Escola Municipal Gamma Primeiro ano (101): Nicole – “Falta de concentração (dificuldade de aprendizagem)”;

Segundo ano (102): Turma em geral - “Alteração de comportamento”; Allan – “Muito compromisso em casa, preocupado com a mãe. Tirou nota baixa, mas era ativo.”

Terceiro ano (201) Alterações do comportamento: Josilene – “Muito distraída, difícil memorização e concentração”, “inventa história”; “é irmã do Paulo do 7.º ano da Escola Alpha: filhos de pais dife- rentes”,

Quarto ano (301) Nicole – “Emocional”; Isa – “muito choro/problemas de família”, “apresentou medo de tu- do”; Will – “Dificuldade de aprendizagem – lento, distraído, teimoso, superprote- ção da avó”; Hélio – “Agressivo, debochado”; Antônio – “Pega as coisas dos outros (S.O.S.)”, “falta de concentração”, “questão de abandono”, “questão social”, “alfabetizou-se”, “o pai prometeu uma bicicleta e não cumpriu”

Unidade de Educação Infantil Épsilon, 29 de setembro de 2009 Educadores e Diretora, em uníssono (em relatórios ditos e escritos): Pré-II (A) – dois alunos para atendimento: Ezequiel – (4 anos) – “Mãe de Vassouras, usa fraldas, problema nas pernas, hidrocefalia.”

Pré-II (B) - Luiz – “Muita insegurança na realização das atividades / fala que não vai conseguir”. Manuela – “Demonstra muita inibição” Ester – “Falta autonomia / não faz nada sozinha”

O pré-III (B) da manhã: Ítalo – “Insegurança nas atividades”, “dificuldades cognitivas: não relaciona as letras, os números com as quantidades”; Natanael – “Lentidão”; Patrício (5 anos) – “Apresenta insegurança nas atividades”, “muito agitado”, “agressivo”, “distraído”. “A mãe o abandonou, o aluno vive com o pai. Pai trabalha o dia todo”.

O pré-III (A) da tarde: 115

Maria Eduarda – “Elétrica”, “instrospecta”, “dificuldade de aprender”, “lenti- dão de aprendizagem”, “não gosta de conversar com adulto”, “faltosa”. E na ficha social [questionário aplicado aos pais quando da matrícula, e que consta arquivado na pasta do aluno], no item patologia: alergia; patologia clínica (cardíaca). “Manifesta sentimento de medo e insegurança ao realizar as tare- fas, chora todos os dias pelo mesmo motivo. Melancólica, sentimento de tris- teza”. Bethânia, Laura (“melhorou/mais caprichosa”) e Raimunda - “Lentidão de aprendizagem”, “não acompanham o ritmo da turma”. J. Victor – “Faz tratamento para alguma doença”, “introspectivo”; Julia - “Não tem limites”, “inventa situações”, “fala bastante, como Camille”; Leonardo – “Disperso”.

O pré-II (B) da manhã: L. Gustavo – “muita insegurança na realização das atividades: fala que não vai conseguir”; Manuela – “demonstra muita inibição”

Escola Especial – NAEE

Numa terça-feira, 6 de outubro de 2009, houve uma reunião com pais para a apresentação da equipe: Jurema: - “Síndrome de Wanderburg 113 ” Segundo a mãe adotiva, que é enfermeira, Jurema submeter-se-á a implante co- clear, dado ao déficit auditivo e de linguagem. Uma das características ou “sintomas” da doença é a hipopigmentação da íris (ocular). Luciano – “Usa Gaballon e Tegretol. Tem epilepsia”. “Pai alcoolista.” Evans – “A mãe pensa em tirá-lo da escola caso não aprenda a ler e escrever.” Catarina – “Precisa de atendimento específico”. “Usa Risperidona e Neozine.” Alguns professores dizem que seu “caso” se assemelha com autismo; informam que foi diagnosticada como “esquizofrênica” por um psiquiatra de Volta Redonda, co- mo consta mesmo registrado na sua pasta individual na secretaria do NAEE. Também já foi diagnosticada como disrítmica.

07/10/2009: Em uma reunião entre orientadoras educacionais e a equipe (“de ajuste”) SAFE, comenta-se que em Antares não há a prática de reunião peda- gógica. Diz-se necessária a reunião pedagógica; “não deixar só [D.: as comu- nicações normativas e os assuntos a serem discutidos] para o conselho de classe”. Explanam, então, um panorama reduzido a alguns casos individuais de alunos. Dorothy [(psico)pedagoga] refere-se à turma 301 do Colégio Beta e aos casos de aprovação automática na antiga Classe de Alfabetização (C. A.). A coordenadora, Pipa, ressalva “a importância do registro no caderno e planilhas”. Antes de realizarmos atendimento com um aluno, deveríamos ve- rificar ter havido ou não intervenção técnica anterior, para evitar que uma

113 Na verdade, trata-se do termo Síndrome de Waardenburg. 116

mesma criança ou adolescente fosse atendido, individualmente, por vários profissionais, de modo subsequente, em um mesmo dia. Houve reclamação de uma adolescente que havia sido chamada por vários especialistas: OP, OE, psicólogo e (psico)pedagogo, cada um a seu tempo; a estudante ficou revol- tada e questionou a conduta da triagem (multi)disciplinar e diagnóstica que se processava e a capturava como objeto de múltiplas avaliações: “- o que será que eu tenho!?” Houve uma briga envolvendo quatro alunos na Alpha, e no- tícias de um aluno, do 7.º ano, de uma escola visitada pela outra dupla da e- quipe, que apresenta “Síndrome de Cotello” e era objeto de “discriminações” dadas as anormalidades em sua aparência que eram efeito da patologia. In- forme: desde 2004, temos o Programa Família na Escola. (DIÁRIO DE CAMPO, 07/10/2009)

Escola Estadual Municipalizada Delta, 22 de outubro de 2009 Pré- III Phineas Problemas de saúde: epilepsia e alergia (bronquite alérgica) / “dificuldades de aprendizagem”. Quando no pré-II, escrito pelo professor no documento avaliação do primeiro semestre (na pasta do aluno (secretaria escolar) ) : Aparenta muita dificuldade na aprendizagem, controle motor e desenvolvimen- to. Professor afirma que não apresenta concentração nem interesse na realiza- ção das tarefas, ainda não assimilou os conteúdos “adaptados” dados para me- lhor assimilação. 3.º e 4.º bimestres – grafa numerais e sílabas, mas não relaciona c/ quantidades. Síntese do desenvolvimento – pré-II: sua maturidade não condiz com a idade. Não possui coordenação motora. (DADOS DE AVALIAÇÃO BIMESTRAL DO ALUNO)

Primeiro ano (turma 101 de alfabetização) – Julius (7 anos) “Transferiu-se de uma escola de Rio Claro, RJ, em junho de 2009.” “Tem difi- culdade em compreender números de 1 a 10”; “disperso”; “os pais migram constantemente, não há continuidade nos estudos.” “Dificuldades de aprendi- zagem.”

Segundo ano (1.ª B) – Jonas – “importante ver o relatório do professor”, - diz a diretora. “Dificulda- des de aprendizagem, escrita/leitura”. No boletim da série anterior, 1.ª A, a primeira fração de alfabetização, o informe: sem avaliação -> segundo o siste- ma implantado pela Secretaria de Educação nesta série, não há registro de nota nem conceito. E continuamos com alguns registros da pasta do aluno: Neurologista – 18/09/2008 Alergia/doenças respiratórias – 09/04/2008 Otorrino – 27/05/2008 Avaliação bimestral 2008 – aspectos cognitivo, afetivo e psicomotor Clínica de Reabilitação Inaloterapia e Alergia Respiratória – dias 03/06/2009, 04/06/2009 e 15/04/2009. Nesta última data: tratamento de alergia em Para- cambi (Casa de Saúde N.ª S.ª de Aparecida, diagnóstico J.30.0 (CID-10), 1 dia em casa).

Terceiro ano (antiga 2.ª série) Alexandre – “mãe diz que ele não quer estudar”, “muito sensível”, “pai carpin- teiro e bronco influencia e não dá importância ao estudo”. Notas: - Português – 1.º bim. 4.6 / 2.º bim. 7.5 - Matemática – 1.º bim. 4.5 / 2.º bim. 6.9 117

- Ciências – 1.º bim. 4.5 / 2.º bim. 7.5 - “Palavras e gestos feios para os colegas no pré-II.” / “No quarto semestre (pré-III): - desentendimentos e faltas (ficou perdido nas aulas)”.

Erin – (8 anos) “não fala (calada na escola / em casa é mais expressiva)”. “Pais não partici- pam”. Pré-III – Extremamente reservada, o que dificulta a aprendizagem. 1.º bimestre: chorava quando alguém se aproximava dela. 2.º bimestre: não chorava mais. / não come. [...] 4.º bimestre: lê poucas palavras / numerais até 20. 1.ª A - Participou de festividades sem se desesperar ao ver pessoas desconheci- das; tomou parte de brincadeiras sem muita insistência nossa. Ivan – “Excelente aluno”, “filho único / os pais lhe fazem muitas vontades”, “mãe diz que ele não quer estudar”, “muito sensível”, Na ficha social da pasta do aluno: - Portador de deficiência: “alérgico” / avó: “AVC” (Acidente Vascular Cere- bral). Sarah – “Mãe e padrasto – portadores de transtorno mental / usam tegretol, propanolan e hidroclorotiazida.”

Antares, 22/09/2009, 16: 15: 00. Durante entrevista em grupo com os alunos: Sabrina, Andressa, Stephania, Victor Hugo, Marcus Vinícius, Lucas e Patrícia, esta úl- tima não integrou o grupo. Não quis conversar sobre o assunto das dificuldades na a- prendizagem, e demos seguimento às conversações. Em 22/09/2009, às 17 horas: - entrevista realizada como o prof.º Aqualung (E- JA), sobre incidentes recentes em sua turma noturna de EJA – Educação de Jovens e Adultos, envolvendo Gilbert Grape (19 anos), um aluno com déficit auditivo, e que usa- va aparelhos eletrônicos nos ouvidos. Este aluno falava muitas vezes de modo incom- preensível.

OCORRÊNCIA NA ESCOLA Forte apelo sexual sobre as colegas, inclusive no transporte. Quando o pro- fessor começa a escrever no quadro ou explicar, o aluno se vira e vai sentar em outro lugar para conversar com outro colega. Gilbert usa remédio Garde- nal e bebe bebida alcoólica, demonstra agressividade e, quando expulso da sala, gritou palavrões fora da escola.114 (LIVRO DE OCORRÊNCIAS, ES- COLA BETA, 22/09/2009) Considerando a situação, por volta das 18hs e 20min do dia, eu pedi à diretora adjunta a convocação dos responsáveis pelo jovem Gilbert, de modo a buscar compre- ensões possíveis acerca dos acontecimentos recentes. Sua mãe compareceu na semana seguinte, para o atendimento comigo; o que eu não sabia é que seria mais que um aten- dimento psicológico individual. No horário marcado (à noite), estavam presentes a dire- tora B (adjunta, a diretora A., a coordenadora da equipe técnica (e também na Coorde-

114 Registro feito pelo professor (Senhor Aqualung) da turma de EJA no livro negro de ocorrências da escola.

118

nação de Inclusão do Município), a diretora da escola especial NAEE (também coorde- nadora de Ensino Especial/Especializado), a OE, a OP, o aluno e sua mãe. O que era para ser apenas um procedimento de escuta psicológica veio a ser uma entrevista coleti- va, em que uma família era sabatinada por integrantes da equipe escolar: soava como uma reunião de colegiado, de uma espécie de Conselho Administrativo. Tal procedi- mento sumário viria a se repetir, como veremos mais adiante, nos capítulos seguintes: - seriam indícios de uma estratégia de vigilância, política e historicamente, montada? Não sabia se se tratava de um esquema que já existia antes de eu estar ali, ou algo es- pontâneo. Uma estratégia como gestão de riscos, ou um estratagema? Não entendi o que teria motivado aquela montagem em formato de colegiado, a despeito de minha deman- da (na forma da solicitação que fiz à gerência escolar, de um chamamento à mãe do aluno, somente) específica quanto a um simples procedimento de escuta individual à família, dirigida à gerência da unidade de ensino. No capítulo quatro de O Menino do Dedo Verde115, “no qual tistu é mandado à escola, onde não fica116”, o narrador nos conta as desventuras do personagem principal da estória em sua jornada introdutória ao mundo novo do ensino formal, após ter viven- ciado as suas primeiras lições, informais, com sua mãe, em casa:

Até os oito anos, Tistu não soube o que era escola. Dona Mamãe, com efeito, tinha preferido começar em casa a instrução do filho, ensinando-lhes os ru- dimentos da leitura, da escrita e do cálculo. Os resultados, é preciso reconhe- cer, não eram maus. Graças a belas figuras compradas especialmente, a letra A se instalara na cabeça de Tistu sob a aparência de um Asno, depois de uma Andorinha, depois de uma Águia. A letra B, sob a forma de uma Bota, de uma Bola, de um Balão etc. Quanto às contas, serviam-se de andorinhas pou- sadas nos fios dos postes. Tistu aprendera não somente a somar e a subtrair, mas chegava mesmo a dividir, digamos, sete andorinhas por dois fios . . . o que dava três andorinhas e meia para cada fio. Como essa meia andorinha podia se equilibrar num fio, eis um problema que todos os cálculos do mundo jamais poderão explicar! (DRUON, 2002, p. 23)

Deste modo, os cálculos que se dão no corpo das andorinhas imaginárias e lhes operam cisões na sua superfície, úteis ao aprendizado escolar-formal dos conteúdos ma- temáticos, - e das ciências exatas -, constroem um mundo mental especulativo nos fra- cionamentos dos corpos vivos, e na redução das suas potencialidades. Estes cálculos

115 Excerto do livro infantil do escritor francês Maurice Druon. (DRUON, Maurice. O Menino do Dedo Verde; tradução de D. Marcos Barbosa / ilustrações de Marie Louise Nery – 69ª Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.)

116 Ibid, 2002: 21. 119

próprios das sociedades de controle atuam liquidando a expansão disruptiva-inventiva do corpo do aluno em meio às tensões escolarizadas. Assim:

Todo mundo esperava que um menino tão bem vestido, com pais tão belos e ricos, e que sabia dividir e esquartejar andorinhas, realizasse prodígios nas aulas. Mas que decepção! A escola produziu em Tistu um resultado imprevi- sível e lamentável. [...] No primeiro dia de aula Tistu voltou para casa com o bolso repleto de zeros. No segundo dia, ficou de castigo por mais duas horas, isto é, ficou mais duas horas a dormir na aula. Na tarde do terceiro dia, o pro- fessor entregou a Tistu uma carta para seu pai: Na dita carta o Sr. Papai teve a desdita de ler estas palavras: “Prezado senhor, o seu filho não é como todo mundo. Não é possível conservá-lo na escola.” A escola devolvia Tistu a seus pais. (DRUON, 2002, p. 24-25)

2.1.1 Escola-empresa e o controle do tempo para os diagnósticos

Há todo tipo de relatório produzido pelas chefias do ensino, notadamente pelas diretoras, como as avaliações de estágio probatório que todos os profissionais receberão durante três anos (de 2009 a 2012). Recebem notas baixas os professores se não tiverem produtividade, quer dizer, se não aprovarem o máximo de alunos possível, mesmo que não aprendam. Os psicólogos, se não aceitarem a exigência de exercício de um trabalho clínico e médico-assistencial, baseado nos atendimentos individualizados, somente com o aluno e família, ou seja, caso este decida transgredir as normas de encaminhamentos dos alunos para neurologistas e a “escolas especiais para alfabetização”, também poderá receber notas mais baixas. Os relatórios-queixas dos pais, na história de Antares, são enviados para a Secre- taria de Educação ou a vereadores de oposição político-eleitoral à prefeitura (na Câmara Municipal), como efeito dos impasses entre a escola e a comunidade usuária dos servi- ços educacionais, e entre educadores e pais. Visam, com este instrumento, reclamar das atitudes dos professores, no que se refere ao ensino geral: dos conteúdos formais da escola e dos comportamentos disciplinados. No que evocam a urgência do ensino- aprendizagem dos limites, os professores os remetem à sua falta, e às faltas da família na sua promoção. O Conselho Tutelar e o Ministério Público também se mantêm no lugar de ouvidoria das reclamações da comunidade escolar, a respeito dos problemas no ensino público, incluindo queixas contra a Secretaria de Educação. 120

Tivemos acesso, ainda, a relatos de professores e outros funcionários das esco- las referindo-se à feitura de relatórios pelas diretoras, como dispositivos de soberania e de controle dos trabalhadores, na forma de queixas sobre os que questionam as ordens da Secretaria à escola, ou que simplesmente pensam ou trabalham diferente (com uma postura crítica). São relatórios encaminhados à Secretaria de Educação, buscando efei- tos de punição aos profissionais mais questionadores, quando o questionamento e a crí- tica são vistos como ameaças ao poder soberano da gerência local do ensino. Começo com a apresentação dos relatórios que se direcionam aos estudantes das escolas de ensino fundamental da cidade de Antares. Os professores, as diretoras, outros trabalhadores do ensino, especialistas das escolas e da rede intersetorial, e até as famí- lias dos alunos, produzem diagnósticos acerca da saúde e da doença da criança ou ado- lescente escolarizados. São, em geral, dirigidos por diretores e educadores aos profissionais técnicos- especialistas, e oriundos do campo de atuação da Saúde Pública como o psicólogo, com fins aos seus cuidados clínico-terapêuticos variados. Entre os ditos “especialistas”, encontram-se alguns trabalhadores sociais - como psicólogo e assistente social - que podem atuar, direta e indiretamente, na relação com a escola. Isto significa que há especialistas a intervir com seu trabalho, do âmbito exterior (em outros dispositivos, como posto de saúde e CAPS) ou na própria escola, ou seja, independentemente do ponto de partida do encaminhamento (como incidente interno ou externo à escola) sempre se dá na linha de medicalização. Nos registros de diário de campo, acompanhamos as práticas discursivas e não discursivas de medicalização, através dos registros, relatórios e encaminhamentos - fa- lados e escritos - dos atores escolares e que são direcionados aos meus cuidados profis- sionais como psicólogo e à equipe. O material foi coletado através da minha participação, como psicólogo, nos prin- cipais espaços coletivos para discussão nos quais foram produzidos os relatórios de endereçamento de alunos à área médica: nos encontros da equipe técnica com as famí- lias (às vezes, com a presença de professores), nas reuniões pedagógicas, nas entrevistas individuais com pais, nos grupos com os alunos (nas classes e na brinquedoteca) e nas reuniões bimestrais de equipe, sendo que, nesta pesquisa-intervenção, os conselhos (CC) e as reuniões pedagógicas (RP) são os principais dispositivos de escuta e proble- matização das demandas escolares em torno da lógica médico-assistencial. Há, contudo, problematizações em dispositivos oficiais, como o CC, e não oficiais (inventados in- 121

formalmente, e nem por isso menos importantes), como uma conversa entre mim e um professor (Felipe) caminhando da escola Gamma até a Rodoviária de Antares, e outra com a prof.ª Rosa Maria na Rodoviária. Esta análise imediata da demanda inicial - medicalizante e direcionada unica- mente aos alunos - é realizada por mim, em intervenção institucional nestes eventos coletivos por meio de discussões com os professores, membros da equipe técnica, e ou- tros profissionais presentes, a exemplo, nos Conselhos e Reuniões Pedagógicas; nos grupos com os pais, em geral, conversações acontecem com pais e professores, ou com outros técnicos. Mantive-me atento às falas, referentes aos supostos problemas neurológicos que os próprios professores achavam que determinados alunos poderiam ter. De algum mo- do, eles se sentiam mais confortáveis - e aliviados - em nomear doenças e remédios para os alunos, pois assim estariam inseridos nos discursos, - como se estivessem colaboran- do e ratificando as expectativas de diagnósticos dos psicólogos. Com isso, sentir-se-iam participando e fazendo a coisa certa e esperada ao antever os diagnósticos mesmo antes que o psicólogo os declarasse, mas ocupando os espaços-tempos coletivos, então, medi- ados pelo encaminhamento professor-especialista das questões individualizadas no es- tudante. Os professores pensam em facilitar o trabalho dos especialistas quando trans- formam problemas educacionais em doenças, e querem com isso mostrar que sabem o que acontece em suas turmas, sendo a recíproca uma tarefa ético-histórica como empre- endimento a partir de especialistas como o psicólogo. Esforçam-se por construir verda- des sobre seus problemas com os alunos, antes que os psicólogos o façam ou que al- guém possa lhes atribuir incompetências. O movimento recíproco, - o da produção dos diagnósticos e prognósticos – também é verdadeiro a partir dos trabalhadores sociais. Estes ditos “especialistas” pela comunidade escolar em geral foram treinados para bus- car evidências, provas que confirmem suas hipóteses nosológicas. Utilizam um discurso e uma prática que adquiriram nas disciplinas de psicopatologia dos cursos de graduação. A demanda por medicalização tem-se produzido historicamente em um entron- camento tríplice entre psicologia-psiquiatria-pedagogia, e por isso, torna-se tarefa com- plicada conhecermos qual destas disciplinas iniciara tal empreitada, ou mesmo se houve um “culpado”, ou primeiro responsável. Sabemos que esta fabricação da demanda esco- lar médico-assistencial começa em meio às lutas corporativistas entre os três campos de saber-poder. Cada qual grupo lutava por demarcar e garantir seu território específico de 122

atuação, e talvez tenham alicerçado um plano de alianças para se prevenirem do risco de conflitos de maior intensidade: ergue-se uma espécie de aliança para o progresso huma- nista que sustentasse a coexistência pacífica entre os três campos de disciplinarização e trabalho. Durante uma reunião pedagógica (2010) na escola Alpha, a O.P. Ângela117 ex- põe dois vídeos para os professores desta escola e do Colégio Beta:- o primeiro consis- tia em uma imagem de alunos sentados em carteiras, na sala de aula, ajustada a uma cacofonia composta por sons incompreensíveis e gritarias de alunos que falavam ao mesmo tempo, a voz de um professor ao longe e robotizada como em uma falação ra- diofônica alterada, e com a música To Sir, with Love 118, do filme homônimo, ao fundo (com o ator Sidney Poitier como o professor Mark Thackeray), e o segundo uma pales- tra motivacional para vendas, dada a funcionários de uma empresa, intitulado “O fun- cionário cachorro e o funcionário gato”: A produção da escola-empresa na relação com a audiência:

Olha o que é um funcionário gato, com atitude de gato, e olha o que é um funcionário com atitude de cachorro... O funcionário com atitude de cachor- ro, quando alguém fala mal da empresa dele, ele diz: - não, que é isso, por que você tá falando mal !? Se houve algum problema eu vou verificar. Eu conheço a minha empresa, é extraordinária, eu vou resolver, deixe comigo,

117 Ângela, orientadora pedagógica do Colégio Beta, virá a ser a coordenadora pedagógica do município de Antares. Segundo a coordenadora da equipe técnica, Ângela “será os olhos e os ouvidos da Secretária” de Educação. Na hierarquia, diretamente abaixo das Sras. Secretária e Subsecretária Municipais de educação, a pedagoga, – que faz especialização em (psico)pedagogia na USS e vislumbra trabalhar com psicopedagogia empresarial -, passa a assumir uma posição de vigilância e controle com relação às escolas, visando normalizar, agora, as condutas desviantes de quase todos os profissionais (técnicos e não-técnicos), de alunos e pais. Se antes sua postura era a vigilância sobre os professores, já que tinha o posto apenas de orientadora pedagógica na escola Beta, a partir de agora visita todas as escolas e também imagina que possa supervisionar e fiscalizar também a prática dos trabalhadores sociais como o psicólogo. Em 2011, percorre as escolas assistidas por minha equipe técnica, e na escola Alpha cobra que sejam registrados todos os tipos de intervenções que fazíamos na pasta do aluno, na secretaria escolar. Contudo, nossa equipe técnica não tinha armários próprios para a guarda dos materiais como cadernos de registros de atividades e procedimentos, nem locais seguros para tanto, e eu e o assistente social Vladimir recusamos a ordem e as pressões para que registrássemos os atendimentos nas pastas das secretarias escolares, - o que era exigido ser feito na forma de prontuários –, sabendo que desta forma não teríamos o controle sobre a guarda do material, sendo o zelo pela segurança e sigilo de tais materiais responsabilidade ética nossa. Em certa ocasião, quando da visita da Comissão de Estágio Probatório (do concurso de 2008) à escola, cadernos de anotações da equipe foram fotocopiados por uma O.P. da escola (Renata Vacariano) para provar ao C.Tutelar que um aluno, - Thomas Sawyer -, era atendido, de modo frequente, pelo setor de psicologia da equipe anterior (2005-2008). Tinha havido um desentendimento entre este aluno e um professor. O primeiro xingou; o segundo jogou sua mochila para fora da classe. O professor passou a responder processo administrativo disciplinar pela atitude tomada frente à (in)disciplina de Thomas. Outra vez, um relatório sobre aluno feito pela O.E. foi entregue pela secretaria de escola sem qualquer consulta à profissional, e o mesmo quase aconteceu com um laudo fonoaudiológico de uma estudante.

118 Ao Mestre com Carinho (1967). Dirigido por James Clavell. 123

vou ligar... É A MINHA EMPRESA !! O funcionário gato, quando alguém começa a falar mal da empresa dele, ele já começa a se coçar... Ele começa: o Sr.º sabe que eu já ouvi falar... também! E ele acrescenta... E tem mais isso, mais isso e mais isso. O cachorro é fantástico, o cachorro defende, e o ca- chorro nunca cansa, já notaram, não !? Ele tem uma motivação fantástica. O cachorro, você pode, por exemplo, brincar com ele, jogar um pedaço de pau para ele buscar, ele vai cinquenta vezes e volta. [...] O cachorro, mesmo a- marrado ele não perde o pique. [...] mesmo na corrente ele tá lá GRRR... GRRR... [imitando grunhidos]. A corrente simboliza as normas do gover- no, as normas da tua empresa, que você não pode fugir... mas mesmo as- sim você tem que ter motivação. [...] (informação verbal119; grifos meus)

O palestrante, o administrador Daniel Godri, continua sua exposição no Instituto Brasileiro de Marketing & Vendas ensinando a um grupo de funcionários sorridentes como vender e atender os clientes na empresa. Da mesma forma instrui, indiretamente, os professores das duas escolas de Antares - como em um treinamento corporativo à distância (no melhor estilo, Educação à Distância -EAD) - as regras do compliance. São as conformidades coletivas na Escola-Empresa a que os professores devem se adaptar. Assistiram, pois, calados e atônitos às imagens do curso de EAD. Não houve comentá- rios ou discussões sobre o material e os sentidos possíveis ali engendrados, por nenhu- ma das partes: de quem levou a vídeo com a teleconferência ou de quem assistiu, se considerarmos os problemas existentes em escolas públicas como aquela, no que con- cerne à sua situação atual do trabalho e da formação coletiva, entre professores, alunos, psicólogo e outros:

[...] O cachorro, ele nos ensina até como atender um cliente. Se você chega em casa bem vestido o cachorro vem te atender. Se você chegar em casa mal vestido [...] também vai te atender. O cachorro te ama do jeito que você é. Se você chegar em casa cheio do dinheiro o cachorro te recebe; se você chegar em casa com pouco dinheiro o cachorro também te recebe. Se você chegar de mau humor [...] se você chegar de bom humor [...] também te recebe. [...] Se você chegar são, o cachorro te ama; se [...] chegar bêbado, ele lambe a tua boca. Olha como a gente pode aprender com o cachorro: - vai ter cliente que vai chegar bem vestido e que você vai ter que atender bem, mas vai ter clien- te mal vestido que você também vai ter que atender bem. Vai ter cliente cheio de dinheiro [...] mas vai ter cliente com pouco de dinheiro que [...] vai ter que atender. Vai ter cliente sorrindo, [...] de mau humor. Vai ter cliente são, mas vai ter cliente que bebeu. [...] Mas o que o cachorro tem de fantástico, que o gato não tem, é a capacidade de perdão. Esse aí é o grande diferencial. [...] O gato não perdoa. Se você dá um tapa no gato, normalmente o gato se afasta [...] O cachorro não, [...] você pode xingar, ofender, gritar, e ele sempre te perdoa. É aí que está o segredo da excelência: - nós precisamos aprender a perdoar, porque as pessoas que perdoam elas conseguem ir além da excelên-

119 Ao Vivo - Cachorro e Gato (vídeo completo) In: Motivando com Criatividade. GODRI, Daniel. Acesso em 15.12.2012. 27 min. Disponível em . O autor é administrador e presidente do IBMV – Instituto Brasileiro de Marketing & Vendas. Também é apresentador de um programa chamado Desenvolvendo Talentos, na TV Canção Nova. Este vídeo foi uma palestra realizada em Curitiba. 124

cia. Aí está o segredo da excelência: - o perdão. Por que vai ter cliente que vai ser estúpido com você, vai ter pessoa que não vão te respeitar. É difícil, lógico que é difícil... Mas por isso você precisa desenvolver. Por isso, você precisa ser o melhor. [...] (informação verbal)

Guimarães120 (2009) discute a incidência do marketing empresarial na escola pública, respondendo em seu Blog a algumas perguntas sobre a “Violência Escolar”, feitas por uma jornalista de Campinas (em julho de 2007):

[...] A escola, como “máquina disciplinar” se reorganizou e implantou novos tipos de educação, tais como: formação permanente, educação à distância, educação midiática, treinamentos empresariais, que ao invés de nos dar mais liberdade causam um maior controle sobre nós, pois são operados por um so- fisticado esquema empresarial em que o “marketing” aparece como o mais importante instrumento de controle, modificando a nossa maneira de viver, as nossas relações com as pessoas. O saber produzido no campo educacional se- rá um saber estratégico, uma vez que todo conhecimento aí produzido terá como instrumento de regulação a educação das massas. Alunos, professores, diretores, funcionários passam a ser controlados enquanto cifras. [...] (GUI- MARÃES, 2009)

As imagens robotizavam os professores, e encontros pedagógicos como este e- ram reservados à instrução-treinamento de normas institucionais. Os pedagogos em ge- ral levavam textos para a motivação dos professores, e o vídeo apresentado parecia um esforço derradeiro – verdadeiro remédio para as tensões na Educação – a tratar dos efei- tos das políticas educacionais, entre eles o silêncio daqueles trabalhadores do magisté- rio, quanto à ordem médica ou às suas condições preocupantes de trabalho: turmas mui- to cheias e repletas de problemas. Ainda em 2009, Ângela me disse que o professor do EJA falou sobre o Pré-sal em uma de suas aulas, e a OP o respondeu, taxativamente: “- as pessoas aqui em Anta- res não querem saber do pré-sal; só precisam saber o bê-a-bá e pronto!” A O.P. tem, entre suas atribuições, a função de supervisionar, hierarquicamente, o exercício dos pro- fessores. E, notadamente, o Sr.º Aqualung não aceitara suas indicações. Enquanto os encontros de RP (Reunião Pedagógica) se concentravam na prescri- ção das normas administrativas, modelos de avaliação dos alunos, muitas vezes em um tom analgésico-motivacional para a conformidade, os de CC (Conselhos de Classe) se resumiam à contagem pelos professores de listas de alunos com dificuldades de apren- dizagem e comportamentais atribuídas à responsabilidade primária de suas famílias, aos

120 GUIMARÃES, Áurea. Entrevista: Violência Escolar. Disponível em::http://aureaguimaraes.blogspot.com.br/2009_01_01_archive.html Acesso em: 03 fev 2012. 125

encaminhamentos à equipe técnica presente, e mais normativos e reclamações. Nos CC eram comuns as reclamações dos educadores sobre os técnicos, as exigências dos enca- minhamentos à área médica e ao NAEE dos alunos que não acompanhavam a média das turmas, a produção incessante e altissonante dos diagnósticos dominantes de “hiperati- vidade” como verdade incólume, indiscutível, que eu precisaria apenas aceitar e enca- minhar na rede intersetorial. Não havia espaço nem tempo para discussões. Os questionamentos possíveis e- ram silenciados pela conformidade empresarial. Eles listavam os alunos-problema; nós deveríamos encaminhá-los para a articulação médica e a especialismos fora da escola. Na medida em que eu empreendia esforços e comecei a problematizar os lugares certos – tanto para professores quanto para psicólogos -, e me tencionava a construir, coleti- vamente, novos lugares de encontro, vi o controle se estender dos muros às paredes temporais internas do corpus escolar. Refiro-me ao espaço-tempo individualizado de cada tipo de execução profissional de tarefas, ou seja, os esquadrinhamentos que são linhas divisórias hierárquicas na linha-de-produção escolar. A articulação para o contro- le também se dá em fluxos internos da organização. Quero dizer que a questão tempo interferia definitivamente na possibilidade dos encontros entre os técnicos e os professores, assim como com outros funcionários da escola. Na medida em que eu questionava, nos conselhos e reuniões pedagógicas, a or- dem esperada e o andamento já programado pela equipe pedagógica com a direção e a Secretaria de Educação sem a minha participação e da equipe SAFE, perdia espaço nes- tes encontros coletivos cujas pautas já estavam armadas antes de eu saber. Sendo assim, minhas intervenções eram, quase sempre, improvisações. Como a Secretaria mandava, via coordenação, uma grade com os nomes dos técnicos designados para os conselhos de cada escola, sempre de modo prévio à sua ocorrência, via o meu nome cada vez me- nos inscrito nos quadrinhos. A grade temporal aprisiona pelos lugares certos, pelo arran- jo das tarefas e competências dos funcionários e especialistas na escola. Durante uma reunião de equipe (de 26/04/2011), analisei a existência de uma configuração hierárquica naquelas escolas, na qual as orientadoras pedagógicas recebem ordens para estar com os professores e encaminhar, através deste contato, os casos indi- viduais para o psicólogo. Em geral referentes a “problemas comportamentais”, porque os O.P.’s encaminhavam para o setor de (psico)pedagogia, quando julgavam a restrição da competência pedagógica em lidar com os “problemas de aprendizagem”. Trata-se de um exemplo do corporativismo e reserva de mercado entre a classe profissional dos 126

pedagogos. Existe na instituição escolar um modo-de-pensar que fixa o estar com os professores como tarefa para a orientação pedagógica; os psicólogos estão lá para aten- der alunos e família, o que é disputado, desta vez, com a orientação educacional. Estes são pedagogos cujo ofício é lidar com questões comportamentais como a (in)disciplina e as relações escola-família. Esta é a maquinaria corporativa (competitiva e hierárquica) que alicerça, - no tempo e na geometria espacial das atribuições individuais bem esquadrinhadas de cada técnico -, relações de ameaça e desconfiança entre professores-executores e psicólogos, ditos técnicos. São notórias as relações hierárquicas da escola em meio às quais os espe- cialistas são vistos como superiores, e supostamente mais ligados a quem manda execu- tar tarefas: - à direção e à Secretaria de Educação, como técnicos-prepostos que irão supervisionar e fiscalizar o trabalho dos professores. Tal presunção de comportamentos se configura e opera como se todos estes trabalhadores sociais fossem, indiscriminada- mente, executores acríticos dos “gestores” e das Secretarias. São notáveis a ansiedade e a pressa em diagnosticar: querem dizer que sabem, antes que lhe digam o contrário e aí sofram as consequências como punições, retaliações e não-aprovações da chefia pelo fracasso (na avaliação de desempenho chamada “está- gio probatório”), supostamente, por intermédio dos técnicos tidos como vigilantes dos cuidados professor-aluno. Os educadores avaliam atribuindo o fracasso aos alunos e famílias, como efeito do medo que têm de serem avaliados e punidos por todos: dos chefes aos especialistas. Eles se antecipam para que não precisem lhes perguntar sobre suas implicações, o que pode soar como culpabilização e ameaça. A produção dos relatórios individualizantes da não aprendizagem e os encami- nhamentos à área médica seriam um caminho discursivo através do qual o professor pode se sentir decidindo quanto aos processos de ensino-aprendizagem. Quando fazem diagnósticos, pensam encontrar reais saídas para os problemas do ensino. Afinal, essa é a cultura que atravessa a escola e a formação dos profissionais e familiares. Nos espaços de escuta com os professores, mais operações institucionais e de tu- tela escola-comunidade são expressas: - as de individualização e culpabilização das fa- mílias, sempre submetidas às práticas de encaminhamentos médico-assistenciais ou a relatórios com fins da articulação com outros dispositivos da assistência vinculados ao território da Saúde. O que rege tais instituições é sempre a lógica medicalizante inscrita nessas práticas que, antes de mais nada são práticas de si, práticas de subjetivação. 127

Nos dispositivos intraescolares, surgia todo tipo de encaminhamentos presentes nas falas das crianças, dos adolescentes, de pais, de professores, de diretores, do psicó- logo, dos orientadores educacional e pedagógico e do psicopedagogo, sem contar aque- les que provinham de outros estabelecimentos que contracenavam, nas articulações de controle, com a escola como o Conselho Tutelar, como a Instituição de Acolhimento (abrigo para crianças e adolescentes) e como a Saúde. A história recente das práticas da equipe técnica anterior (2005-2008) relatada nas escolas, e em alguns registros de atendimentos e encaminhamentos psicológicos para a área médica, nos evidencia (1) um modelo de atenção individualizado e concen- trado aos alunos e família dos agentes psi, considerando que não há informes, pelos re- latos orais da escola, de interação entre o psicólogo e o psicopedagogo com os educado- res, (2) uma prática compulsiva em relação aos alunos, enviados para neurologistas e outras especialidades médicas. Quase não havia encaminhamento para atendimentos propriamente ditos vincu- lados à psicologia clínica, já que o psicólogo mantinha este tipo de atuação na escola, ou seja, a de realização de diagnósticos e de encaminhamentos. Não constavam, também, registros escritos de encaminhamentos para fonoaudiologia clínica, uma vez que um profissional integrava esta primeira equipe técnica. O alto índice dos encaminhamentos da escola para a área médica, e com eles a exigência de um modo de trabalho psicológico e social intermediador de tais transações, nos provocam a questionar a ordem médica hegemônica. Para tanto, fazemos a discus- são sobre tais tipos de relatórios articuladores escola-Saúde, como operações de medi- calização e controle no cotidiano da escola. Sendo que o conceito de saúde resultante de tais práticas se constitui não como uma afirmação da vida, porém como uma negação da doença. Saúde se define como o contrário de doença, e assim assume sua função pre- dominantemente epidemiológica-positivista, alijada das questões histórico-políticas em sua formação social, na tradução livre dos pressupostos científicos unicamente biológi- cos para a constituição da Saúde nas sociedades: - a postos na Escola Pública para o controle epidemiológico dos riscos sociais e políticos das multidões! No dia-a-dia das tensões nas escolas de Antares, torna-se perceptível uma multi- plicidade de registros e relatórios, produzidos pelos gerentes e educadores e tendo os trabalhadores sociais como destinatários. Na maioria das vezes, tais encaminhamentos vinham com um diagnóstico pré-estabelecido pelo professor. Já escutávamos, na forma de demandas iniciais que, na versão dos emissores das comunicações, deveríamos man- 128

dar referências dos alunos aos diferentes dispositivos. Aos Centros de Atenção Psicos- social (C.A.P.S.), ao posto de saúde, ao Conselho Tutelar, ao Ministério Público, Assis- tência Social, com C.R.A.S. e C.R.E.A.S., dentre outros possíveis para uma escola es- pecial da cidade e para os diversos especialistas. Ao M.P. (Ministério Público) as escolas deveriam produzir um tipo de relatório de controle responsabilizando as famílias, de modo isolado, e as faltas que lhes são atri- buídas, pelas infrequências dos alunos. Neste empreendimento, ajusta-se a medida das faltas dos responsáveis à medida da (in)disciplina do estudante (in)frequente. Ao mes- mo tempo, uma prática que visava à gerência dos índices de evasão escolar. As Fichas de Comunicação do Aluno Infrequente – F.I.C.A.I.121 – eram preen- chidas em geral pelo setor de orientação educacional, que em sua especialidade pedagó- gica tem a competência de lidar com a (in)disciplina e as relações entre escola e família, incluindo os procedimentos burocráticos exigidos como esse. Alguns profissionais da escola defendiam que tais fichas fossem preenchidas independentemente de conversa prévia com os pais, e simplesmente enviados.

2.1.2 Positivismo e Medicalização: da síndrome ao paradoxo de Munchausen

Löwy122(1988) põe em evidência e análise o positivismo de Augusto Comte e Émile Durkheim. A visão positivista está na base das práticas de medicalização nas so- ciedades e na Escola, na medida em que seus defensores se esforçam por eliminar as análises éticas, sociais e políticas das condutas gerais, tal como se isto fosse uma inova- ção. A lógica médica e assistencialista se alicerça nos ideais positivistas na medida em que identifica e condiciona a existência e produção social, ética, política e histórica de indivíduos aos visores técnico-científicos das ciências naturais, em foco as biológicas. Deste modo, a ordem médica positivista, - cujo método de que se valem técnicos da

121 Em geral, as fichas do F. I. C. A. I. – Ficha de Comunicação do Aluno Infrequente – eram preenchidas, quase todas, pela O. E. – Orientadora Educacional – que, em sua especialidade pedagógica, tem a função de lidar com a (in)disciplina e as relações da escola com as famílias dos alunos, incluindo os procedimentos burocráticos como a produção dos registros nos F. I. C. A. I. Alguns profissionais defendiam que tais fichas devessem ser produzidas , mesmo sem uma conversa anterior com os pais, a respeito da infrequência dos alunos, e os motivos.

122 LÖWY, Michael (1988). As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchausen. Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 3.ª Ed. 129

Saúde e da Educação é a redução de questões sócio-políticas a doenças de indivíduos -, intervém para o silenciar dos conflitos na escola. No entanto, não fazem mais do que reinventar a roda. Repetem velhas e caducas construções lógicas que reduzem a vida, e as potencialidades. Calam a virtualidade. Detecta-se, com efeito, a subserviência do princípio metodológico da corrente positivista de produção de saber aos moldes das ciências da natureza. Émile Durkheim fez-se real empreendedor da démarche positivista nas ciências sociais, referenciando-se nas leis físicas e estabelecendo a “lei social natural” como o conceito central da ciência social positivista. Advogava uma suposta homogeneidade epistemológica existente en- tre os diferentes domínios das ciências sociais e das ciências naturais. Michael Lowy refere-se então ao Barão de Munchausen para destacar a grande pretensão positivista em livrar-se de todos os preconceitos. O Barão, ao mesmo tempo tendo mesmo existido e se tornado uma fábula: um personagem das anedotas fabulosas de Erich Rudolph Raspe que mais tarde se tornariam um clássico das histórias infantis. Com ele, produz um realismo fantástico que é utilizado por muitos autores em seu nega- tivo, pois Munchausen é conhecido como um farsante, - o maior mentiroso de todos os tempos -, dadas as estórias fantásticas que passou a contar em sua fazenda, após ter lu- tado no fronte russo, na guerra contra os turcos... Isto posto, podemos analisar a produção social, ético-política, cultural e histórica de uma visão escolar predominante sobre indivíduo, história e psicologia no espaço es- colar. Sobre o indivíduo, porque na escola pública primária é comum a produção de uma conjugação histórico-político-social do conceito de indivíduo escolarizado como causa-em-si para os problemas escolares. Sobre história, considerando que a história destes indivíduos é construída como a de indivíduos reduzidos,- isolados das questões políticas, sociais, enfim, mais comple- xas na escola -, a um campo de tensões patológico, a um âmbito familiar intimista de relações, e às faltas ou carências também ensimesmadas. Nesta linha de produção, temos uma justaposição da atuação escolar do psicólo- go ao tipo de demanda médico-assistencial já apresentada. Trata-se da conjuração da demanda da escola com o lugar de trabalho prescrito para o psicólogo no organograma de cada unidade escolar. As demandas versam a respeito de problemas individuais ins- critos no corpo adoentado (sickened) do estudante, pois na escola fabrica-se em série a atribuição de doenças-da-aprendizagem aos mesmos. Estes movimentos então circula- 130

res ao corpo patológico e ao aluno individualizado se estendem aos encaminhamentos médicos. No capítulo um de Além do Bem e do Mal, o filósofo da diferença, Nietzsche, nos descreve e enfatiza a constituição social, desde a modernidade, do indivíduo como causa sui, tal como o aluno, a quem falta luz123 e cujos sintomas tautológicos são os das faltas em um corpo psíquico e fisiológico em si, evocado em uma produção social co- mo se não se instituísse em relações, aproximações e em campo de tensões. Os sintomas na tríade conceitual indivíduo-corpo-aluno causas-em-si então se mantêm na contempo- raneidade das tensões no corpus escolar:

21 – A melhor autocontradição que até agora se imaginou é a causa sui, uma espécie de violação e de monstruosidade lógica. No entanto, o orgulho des- medido do homem levou-o a embaraçar-se, profunda e terrivelmente, com es- tes absurdos. A aspiração ao “livre-arbítrio”, nesse sentido metafísico super- lativo que domina ainda, infelizmente, os cérebros dos semi-instruídos, essa aspiração em tomar a inteira e última responsabilidade dos seus atos, alivian- do Deus, o universo, os antepassados, o acaso, a sociedade, não senão o dese- jo de ser precisamente essa causa sui e de se puxar a si mesmo pelos cabelos, com uma temeridade que ultrapassa a do barão de Münchhausen, para sair do pântano do nada e entrar na existência. (NIETZCHE, 2012, p. 50; grifos do autor)

Corazza (2004) usa sua tese sobre a História da Infância sem Fim para discutir a produção da Infância cercada de cuidados técnicos intensivos e estratosféricos (de con- trole expansivo):

Colocar a infância em discurso, incitar a produção de saberes sobre ela, regu- lar relações de poder e práticas institucionais em seu nome, construir ideais religiosos e laicos de vida e de sociedades futuras, produzir mitos infantis: tudo isto entra em colisão com a nova faceta do dispositivo de infantilidade – a perda da infância -, de onde proviria a figura de um novo sujeito adulto, próprio das sociedades contemporâneas. Começam a funcionar outros enun- ciados e operar outras práticas sociais e subjetivas, entrecruzados com os an- teriores, explicitamente hierarquizados, dispostos sob a forma de oposições binárias, todos articulados em torno de um novo feixe de relações de poder. Entre o fim da infância e o poder existiria uma relação de dominação tal, que uma transformação radical de nossas sociedades implicaria que fosse modifi- cada também esta relação: onde a infância não mais estivesse ameaçada pela modelagem adulta, exploração, violência, assassinatos, abusos sexuais, traba- lho precoce, prostituição, morte prematura, patologias deixadas de herança às adultas e aos adultos desajustadas/os em quem as crianças, expropri- adas de infância, inevitavelmente se transformam. (CORAZZA, 2004: 26- 27; grifos meus)

123 Etimologia da palavra aluno: do grego, o sem luz. 131

Nesta direção, os cuidados especialistas que cercam a infância, vigiam e contro- lam o desenvolvimento e a saúde geral de crianças e adolescentes, tendem a prevenir, de modo intensivo, as patologias futuras e certas na fase adulta. As síndromes, os comple- xos e os transtornos (desordens) adultos seriam então a consequência direta e automáti- ca da falta de Infância (e do brincar, possivelmente), assim como das falhas nos cuida- dos dispensados a esta fase da vida humana:

A ideia de uma infância que vem perdendo-se, que vem sendo roubada, ne- gada, vitimada, deformada pela volúpia narcísica dos/as adultos/as inquie- tos/as em fazer deste outro um Si-Mesmo/a – onde as crianças não conse- guem mais ser crianças porque são cada vez mais pensadas e tratadas como se fossem adultos/as -, tornou-se objeto de cuidados e de inquietação, ele- mento para reflexão e debates, questão e problema social e de ordem moral, tratados com pânico e urgência, e também matéria de estilização. As socie- dades ditas pós-industriais, entre suas violências, estariam cometendo mais esta: a de retirar da infância a possibilidade de ser infantil; e nossas lutas e- mancipatórias deveriam voltar-se, com prioridade, no mínimo absoluta, con- tra essa modalidade de perversão em direção à libertação da infância, ao di- reito de ser criança, ao direito de ter preservados seus direitos infantis. (CO- RAZZA, 2004, p.27)

Nessa direção, as sociedades ditas pós-industriais alçam como módulo de con- trole das coletividades uma série de remédios sociais e morais, executado pelos porta- dores e porta-vozes dos saberes cada vez mais especializados, e organizado nos disposi- tivos escolarizados de formação:

Nos anos 90, com um sentido inteiramente novo e numa cultura dife- rente, as formas de exclusão social da criança – acrescidas pela persistente demanda moderna de reintegração espiritual da infância – subsistem. Para es- se sentido despedaçado da infância, as regularidades enunciativas das práticas culturais indicam como remédios sociais e morais: a diminuição ou supres- são da pobreza e da miséria econômicas; famílias emocional e moralmente melhor estruturadas; respeito aos direitos e atendimento às necessidades da infância; mais saberes especializados, que resultariam em maior sensibili- dade por sua condição infantil; mais efetiva escolarização, funcionando co- mo salvaguarda para a perda da infância. Nessas práticas, o fim da infância aparece sempre ligado à privação da educação escolar, por acreditarem que, se a criança para ali fosse e permanecesse, este fim seria adiado, abreviado, mesmo suprimido, e ela poderia continuar a ser criança e a viver o e no Mun- do Infantil. É neste último ponto que situo a analítica do que denomino “dispositi- vo de infantilidade”, para a qual o busílis, o nó cego, o xis, a equação perti- nente, com uma enorme e aterradora incógnita, pode organizar-se do seguinte modo: mal-doença social/cultural = fim-da-infância, remédio mo- ral/institucional/político = mais e melhor escolarização, cujo efeito continua sendo = a infância-sem-fim. (CORAZZA, 2004, p. 27-28; grifos meus)

A jornalista Colette Dowling, em 1981, denota o “Complexo de Cinderella” para as mulheres que têm medo da independência, e um desejo inconsciente de serem cuida- 132

das. O psicólogo Dan Kinley, em 1983, utilizou a expressão “Síndrome de Peter Pan” para categorizar aqueles adultos que regrediam emocionalmente em um processo de infantilização. No ano de 1951, o médico inglês Richard Asher cunha o conceito de Síndrome de Munchausen, “em alusão a Karl Friedrich Hieronynus Von Munchhausen (1720- 1797), ou barão de Munchausen, para descrever estranhos casos de doença auto- imposta”. (GREGORY, 2004, p. 7) Mais tarde, desenha-se a Síndrome de Munchausen por Procuração (MBP – Munchausen By Proxy):

A SÍNDROME DE MUNCHAUSEN POR PROCURAÇÃO (MBP) talvez seja a forma singular mais complexa e letal de abuso de que se tem conheci- mento atualmente. Quanto à forma, define-se como a simulação ou a fabrica- ção de uma doença física e/ou emocional em uma pessoa dependente por par- te daquela responsável por seus cuidados. Na maioria dos casos, o perpetra- dor é a mãe e a vítima, seu próprio filho. O barão Karl Von Munchausen foi uma figura histórica real, um soldado e aventureiro do século XVIII, que se tornou famoso por suas histórias escandalosas. Em 1951, um médico britâni- co tomou emprestado o nome do barão e introduziu o termo síndrome de Munchausen para designar as pessoas que fingem estar doentes para ganhar, a simpatia e os cuidados de outros ou para exercer controle sobre estes. O termo MBP*, por sua vez, foi cunhado para descrever aqueles que usam um substituto ou “procurador” para esses mesmos propósitos. Calcula-se, segun- do uma estimativa conservadora, que são registrados 1.200 novos casos de MBP nos Estados Unidos a cada ano, e um número proporcional em outros países [...] Um recente estudo indica que quando um caso de MBP é final- mente reconhecido, até 25 por cento dos irmãos da criança afetada já vieram a falecer, muito provavelmente vítimas anteriores do perpetrador. Somente quando o segundo, o terceiro ou o quarto filho da família apresenta os mes- mos tipos de sintomas, os profissionais e as autoridades legais são obrigados a reconhecer que a maternidade pode distorcer-se em um tipo de relação do- entia de abuso que, diferentemente do espancamento e do abuso sexual, desa- fia qualquer tipo de classificação possível. Há alguns anos, embora o FBI es- teja consciente da MBP e vigilante, a síndrome de Munchausen por procura- ção ainda é uma tragédia da saúde pública que, paradoxalmente, vem sendo escondida em grande escala do público. (GREGORY, 2004: 11-12)124

Pensemos assim no efeito Munchausen no corpus escolar como paradoxo entre a medicalização subreptícia, e o questionamento de sua lógica e os sentidos das tensões e conflitos silenciados e negados. E a partir daí, na eclosão de um devir-Munchausen como potência de vida nestas instituições de formação. A produção social em negativo das síndromes utiliza personagens da literatura infantil universal para enfatizar o retrocesso, o retardo ou a regressão emocional de in-

124 Prefácio do Dr. Marc D. Feldman, do Departamento de Psiquiatria e Neurobiologia Comportamental da Universidade do Alabama, Tuscaloosa, ao livro de Julie Gregory: Eu Não Sou Doente – a verdadeira história de uma vítima da síndrome de Munchausen por procuração; prefácio de Dr. Marc D. Feldman; prefácio à edição brasileira do Táki Athanássios Cordás. – São Paulo : Arx, 2004. O título original é Sickened: the memoir of a Munchausen by Proxy childhood. 133

divíduos. Este “retorno” à infância se dá em sua negatividade, como uma infantilização da vida, e neste recuo reativo tem-se apagado o seu espírito inventivo. Nesta visão, o devir-infância seria reduzido a infantilidades, atos irresponsáveis das pessoas adultas. Se o uso da figura e mito de Munchausen é utilizada, por muitos autores, para conotar a mentira, o exagero, a redução das histórias, o individualismo humanista (iluminista) e a ciência positivista, por que não desinventarmos este uso, num contrauso em resistência?

Numa outra história, remetendo a um passado ainda mais remoto e maravi- lhoso, o Barão assegura ter herdado a funda do Rei Davi. Se afirmações dessa natureza correspondem ou não à verdade, é um debate de antemão absurdo, mas é inegável seu grande poder de tocar nossa imaginação. A prova é que os leitores do livro se multiplicam, ao mesmo tempo que novas versões continu- am a ser escritas em vários idiomas. Cecília Meireles alude a uma sucessão infinita de “novas mentiras – a ponto de poder-se julgar afinal, que, de todos, o mais modesto a mentir foi o Barão”. A verdade é que “acreditamos piamen- te” nessas aventuras e nos deixamos seduzir por elas, imersos na realidade do mundo do Barão. [...] Em decorrência da magia literária que as atravessa do começo ao fim, dificilmente um leitor, qualquer que seja sua idade, desistiria de ler As aventuras do Barão de Munchausen, “pois um clássico”, como lem- bra Italo Calvino, escritor que redigiu histórias não menos mágicas, “é um li- vro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, não importa se lido na infância ou na fase adulta. Para Italo Calvino, a propósito, “[...] ler pe- la primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitu- ra de juventude”. [...] (AMARANTE125 apud RASPE, 2010, p. 13-15; grifos do autor)

2.2 A Escola cria caso. - Os garotos perdidos na Terra do Nunca Nunca

“Cortem as cabeças!!!” Rainha Vermelha, em Alice in Wonderland 126

As previsões do futuro dos estudantes inquietos e questionadores já pressupõem a intervenção do saber médico na forma dos diagnósticos e da interlocução com a Saúde como saída aparente para as questões educacionais, independentemente de formalizarem (1) articulações com Conselho Tutelar para o controle das (in)disciplinas, bullying, a-

125 AMARANTE, Dirce Waltrick (2010). Fanfarrices que seduzem gerações de leitores. (prefácio) In: RASPE, Rudolf Erich (2010). As Aventuras do Barão de Munchausen / [compilação] ; ilustrações Gustave Doré ; tradução Ana Goldberger. – São Paulo: Iluminuras, 2010. Dirce Waltrick do Amarante é ensaísta, dramaturga e tradutora. Escreveu, entre outras publicações, Para ler Finnegans Wake de James Joyce. São Paulo: Iluminuras, 2009.. 126 Filme dirigido por Tim Burton. 134

gressividade, negligência e irresponsabilidade da família dadas às infrequências, ou (2) com a neurologista (Policlínica de Saúde) e o neuropsiquiatra (CAPS) de plantão, seja nos casos de distorção série-idade, seja também nos índices de agressividade nas rela- ções. Desta forma, são essas as demandas que ponho em evidência como reais relató- rios pré-crime, pois elas têm traçado o destino de crianças e adolescentes através de justificativas calcadas nas condutas desordeiras precedentes evocadas pelas escolas, que são, no mínimo, questionáveis. Passei a analisar alguns tipos principais – os mais absurdos inseridos em meio à mesmice dos discursos e práticas cotidianas – de registros e relatórios internos às esco- las, e que davam suporte aos encaminhamentos dos atores gerais do ensino. E, ao pensar o seu não-sentido como um relator possível de outras questões ali invisíveis e surdas para a maioria, era uma visão paradoxal nas minhas tensões teórico-práticas singulares com os outros. A verborragia destes diagnósticos era uma afirmação dos atores técnicos e não-técnicos, em cuja produção intermitente não viam nenhum problema. Quiçá pen- sar questioná-la. Chegavam até mim como demandas iniciais e não traziam consigo a autocrítica (que eu pensava) necessária. Eram, contudo, uma produção coletiva como regime único de verdade. São ritos sumários feitos pelos professores, diretoras, OP´s e OE´s, (psi- co)pedagogos, entre outros, que me dão as primeiras pistas, em meu trabalho institucio- nal na Educação, das relações de poder que explicitam as práticas disciplinares para além dos muros escolares, já que acessam a rede intersetorial da cidade, destacadamente na intermediação da área da Saúde. Sem embargo, apresentamos algumas cenas das escolas, que se configuraram como um duplo disciplinar (registro de exame-relatório) e de controle, uma vez que se expandem na rede de encaminhamentos intersetoriais da cidade, por meio do crivo dos juízes da normalidade da escola, o que tem início no olhar clínico do professor, mas que ganha veracidade no olhar da ciência do psicólogo, do assistente social e do (psi- co)pedagogo. São nove pequenas histórias que surgem, na escola, na forma de “casos” indivi- duais, já com os diagnósticos nosológicos pré-determinados, e “devidamente” endere- çados aos especialistas mais “adequados”: ao médico ou ao psicólogo clínico na maioria dos encaminhamentos. Eles subsidiam para nós uma dupla análise, considerando a aná- 135

lise da demanda inicial da escola direcionada ao psicólogo e à equipe técnica, e a análise das implicações histórico-políticas do especialista encarnadas nas práticas. Cena 1, Escola Beta: Humberto e o sério problema psicoafetivo primário O professor Xavier carimbava os cadernos dos alunos, fosse como elogios ou conselhos. Cogitava-se que Humberto não queria mais entrar na sala de aula da escola Alpha porque o professor teria dito que sua letra era horrível, e precisava melhorar. E reclamava, continuamente de sua letra na classe. No caminhar das investigações solici- tadas pela diretora e pela subsecretária de educação, Humberto disse que um outro garo- to, mais alto, o Guilherme, lhe deu um soco no rosto, dentro do banheiro, justificando assim a sua fobia de entrar na sala. Foi transferido para a escola Beta, a pedido dos pais, prontamente atendido pela direção, depois de a mãe do aluno ter dito à dir.ª Ágatha que nada era feito. Na outra escola, a situação era a mesma: só ficava e assistia a aula caso a mãe ou o avô permane- cesse com ele na sala. Um dia, dentro do fusca amarelo do avô, em frente ao portão do Colégio, uma O.P. insistiu para que Humberto entrasse, quando ele teve crises de vômi- to. A equipe técnica fez visitas à casa de Humberto, cheguei mesmo a jogar video- game com ele, e ele continuava mudo. Além de se recusar a entrar sem os pais e avós em sala-de-aula, o aluno não falava comigo, nem com ninguém da escola. Permanecia mudo o tempo todo. Mas, calado, contra o que protestava? Quais os sentidos do silên- cio? Fizemos um encaminhamento para atendimento com uma psicóloga do CAPS, po- rém Humberto continuava emudecido, e estava arriscado que ficasse retido naquele ano letivo. Devido às faltas e ao não comparecer para fazer as provas. Também recomenda- mos que fosse encaminhado pela família a cuidados médicos. Após a consulta, com um neurologista de um Centro Médico da cidade de Mesquita (Baixada Fluminense), trouxe um documento de declaração-diagnóstica, que parecia desvendar o caso e as tensões binárias entre escola e pais:

Para: Humberto Declaro que o menino, submetido a apreciação médica, necessitando de a- companhamento neuropediátrico por sério problema psicoafetivo primário (sem relação com convívio ou atitudes da família), não se apresenta em condições de retornar às atividades escolares, por um período mínimo de 10 (dez) dias. Neurologia, Mesquita/RJ, 06/07/2011

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Em uma conversa com a equipe técnica na Escola Alpha, os pais de Humberto nos mostraram uma receita médica do antipsicótico Haloperidol (Haldol) para o menino. Só que estavam preocupados sobre os efeitos e a real necessidade do medicamento, e por isso não haviam dado a medicação ao filho. Sendo assim, desanuviar as tensões seria, para muitos espectadores da escola, descobrir-se de quem tinha a sido a culpa: da escola ou da família? Nos escritos do neu- rologista, a evocação de um “problema psicoafetivo primário” traduz que a culpa não seria dos familiares. Este relatório pré-crime externo (e intermunicipal) à escola quer ainda afirmar que o que é “primário” não tem a ver com as relações? Seria, com efeito, este indício de produção fóbica de origem biológico-genética ou bioquímica apenas, considerando que ela ocorre “sem relação com convívio ou atitudes da família”? Ou intenta, subliminarmente, informar que a culpa é da escola?

Cena 2, Escola Épsilon: Benjamin e o comportamento oposicionista-desafiador (T.O.C.) Uma roda de conversa e desenhos com os alunos e uma conversa com a Diretora Adjunta Diretora adjunta, 06/04/2011, Escola Épsilon: “Ben é muito agitado. Um dia, ao levá-lo ao dentista do posto mais próximo, ele correu para a rua, quando quase foi atropelado. Aí, pegou uma pedra grande e queria jogar so- bre os amigos; [como tática amenizadora] eu pedi para que Benjamin guardasse a pedra na mochila, e cantei a canção das rodinhas: “- Fala baixo... Fala baixo... Que lá vem seu delegadoooo...” Chegando à sua casa, a mãe de Benjamin considerou estranho que o menino estivesse com a pedra na mochila, e não acreditou que ela o tivesse feito. Os pais teriam se sepa- rado, e a mãe de Bem chorado com Claudete, na escola. 07/04/2011, Primeira Entrevista com a Sr.ª Tennyson (psicólogo e (psico)pedagoga) Ben Tennyson é do ensino infantil 3. Tem neuropediatra marcado para 4 de maio, em Barra Mansa. Foi atendido durante um ano pelo Dr. Jekyll, neurologista, e depois por uma outra neurologista por um mês só. O primeiro ministrava Carbamazepina, e a se- gunda alterou a medicação para o Neuroleptil. Em um terceiro momento, uma neurope- diatra de Barra Mansa, lhe disse que, no eletroencefalograma, deu que “ele é hiperati- vo”. Havia alteração na parte frontal do cérebro. Diretora Filomena O Recado (do “tipo telegrama”) da diretora da Unidade de Ensino Infantil (Escola Épsi- lon): “Laudo Benjamin pedir Davi p/ encaminhar p/ psicóloga” já estava lá na escola, na pasta da equipe, e fui avisado dele pela diretora adjunta. Pedi então para ver o laudo, que tinha sido enviado por uma neuropediatra de Nilópolis: Dr.ª Spielrein______Declaro para os devidos fins que o pré-escolar Benjamin Tennyson apresenta compor- tamento oposicionista desafiador, em uso de medicação específica e estou encaminhan- do para o serviço de psicologia. Neurologia Infantil, Nilópolis/RJ, 10/11/2011

21/11/2011, Segunda entrevista com a Sr.ª Tennyson (psicólogo) 137

Fala de um filho que perdeu há seis anos, antes do nascimento de Benjamin. Seu nome era Moisés. Nasceu prematura, com setes meses. Ela diz que foi para a casa do pai do bebê, quando a bolsa estourou e foi para o hospital local [de Antares]. Não havia médi- co no momento; apenas um acadêmico: - Acho que foi o jeito como ele o retirou, pois nasceu com um coágulo no cérebro. Ficou por cinco meses numa incubadora, com um catéter na cabeça, e com outra perfuração na traqueia para respirar. Já tinha se acostu- mado a este respirador, e por isso os médicos o teriam deixado durante um tempo. Sr.ª Tennyson afirma que seu primeiro bebê era agitado, também, como Ben, e que Benja- min já era agitado desde bebê. Compara os dois, dizendo que a agitação pode ser só de- les, só da criança, em uma produção de modo isolado. Por volta dos 2 anos e meio de Bem, ela argumenta com um pediatra sobre a sua agitação; o pediatra lhe disse: “- Você é muito agitada!” “Ben sempre bateu nas crianças desde os dois anos e meio de idade, e tenho reclamações da escola desde que ele tem três anos. E me preocupo com as outras crianças, que não podem pagar por isso.” [...] Relata que o bebê lutava contra sua condição, não deixava que lhe aplicassem injeções, e, certa vez, encontrou a criança amarrada na cama, “pois não aceitava mais invasões ao seu corpo.” Segunda Sr.ª Tennyson, ele estava com as pernas e braços amarrados. [De- vido à “agitação”] [...] Ela informa que Ben ficou brincando no chão no consultório, enquanto a neurope- diatra apenas avaliou o caso por meio de um questionário dirigido a ela. A dir.ª adjunta, Claudete, diz que o pai de Benjamin esteve na escola, - após a entrevis- ta, de 07/04/2011, quando eu e Dorothy conversamos com a mãe -, dizendo que enca- minharia o filho para consulta psicológica em Barra do Piraí. Claudete acha que a mãe deve ter recebido o dinheiro para a consulta, e deve ter gastado com outro fim. Já que estava na escola Épsilon solicitando encaminhamento para psicólogo da rede pública de Antares. Após o encaminhamento do laudo pediátrico à escola pela mãe de Bem, eu ti- nha pedido à Claudete que a convocasse para uma nova entrevista comigo.

Cena 3, Escola Épsilon: As alterações estomagnáticas de Calvin Num episódio, após encaminharmos (eu e Dorothy) o aluno Calvin para o setor de fo- noaudiologia do posto de saúde, este devolve a contra-referência127 relatando a conduta a ser realizada e a avaliação dos motivos do procedimento:

127 Segundo o verbete Sistemas de Contra-Referência, no Glossário RedeHumanizaSUS, é um modo de organização dos serviços configurados em redes sustentadas por critérios, fluxos e mecanismos de pactuação de funcionamento, para assegurar a atenção aos usuários. Na compreensão de rede, deve-se reafirmar a perspectiva de seu desenho lógico, que prevê a hierarquização dos níveis de complexidade, viabilizando encaminhamentos resolutivos (dentre os diferentes equipamentos de saúde), porém reforçando a sua concepção central de fomentar e assegurar vínculos em diferentes dimensões: intra- equipes de saúde, inter-equipes/serviços, entre trabalhadores e gestores, e entre usuários e serviços/equipes. (Cf. SÍTIO ELETRÔNICO RedeHumanizaSUS). Disponível em: É um tipo de documento formalizado para encaminhamentos intra e intersetorial: respectivamente, entre setores e profissionais de uma mesma Secretaria municipal, a exemplo, e como intercâmbio entre diferentes Secretarias. Durante meu trabalho nas escolas de Antares, percebi que, em geral, não é comumente utilizado, como um padrão, pelo setor da Educação. Utiliza-se nas práticas de encaminhamento entre os territórios da Saúde e da Assistência Social, e outros. É dividido em duas partes: a da referência, para o envio do pedido de atendimento ou avaliação, por exemplo, e a da contra- referência, esta para o registro de retorno de comunicações, com descrição da conduta efetivada pelo setor profissional destinatário. Eu consigo implementar o uso deste sistema nas escolas onde trabalhei, apesar das reações negativas iniciais de alguns profissionais de minha equipe técnica, que propuseram um outro tipo de documento, sem a parte da contra-referência. Este era apenas uma réplica de um documento que já estava nos arquivos das escolas, antes de começarmos a atuas nelas, e tinham sido confeccionados pela antiga equipe técnica. A outra dupla de psicólogo e pedagogo da equipe queria utilizar este modelo mais medicalizado, apenas com espaço (mais extenso) para a referência (mas não nestes termos), e opções para marcação das especialidades médicas já explicitadas. 138

Unidade de Ensino Infantil, 12/12/2011 Receituário – Declaro para fins escolares que o paciente supracitado foi avaliado pelo setor de fonoaudiologia, sendo encaminhado para futuro acompanhamento fonoaudioló- gico, devido a alterações no sistema estomatognático [sic.]

A simples menção do termo “alterações no sistema estomagnático”, provoca ex- trema preocupação da (psico)pedagoga de nossa equipe com a saúde da aluna. Num dia de itinerância entre duas escolas, eu, Wladimir e Dorothy descíamos a mais de três qui- lômetros, da escola Gamma, na área rural, até a Alpha. Alternávamos os turnos entre estas escolas neste dia. Enfatizava o excesso, que vinha percebendo, das práticas gerais de medicalização e de demandas das escolas para avaliarmos alunos já com destino cer- to ao NAEE. Digo à pedagoga que poderíamos agir de modo conjunto, contrapondo-nos e problematizando aqueles pedidos compulsivos de encaminhamentos, ao mesmo tempo em que eu argumentava sobre o porquê das escolas não aceitarem alfabetizar os alunos, na chamada distorção série-idade, na própria escola. Dorothy só responde que já fez um projeto de reforço escolar, e não foi aceito pela Secretaria. Um ato pedagógico pode ratificar prerrogativas medicalizantes ao trabalho da equipe. Ocupar o lugar do especialista que lhe prescreve a escola, assim como garantir sua produtividade na medida em que se produzem diagnósticos, não o questionar das demandas institucionais iniciais da escola, e assim comprometer necessariamente a pos- sibilidade de análise coletiva em equipe. É através deste exagero a respeito de um termo técnico utilizado pelo campo teórico-prático da fonoaudiologia que Dorothy nos fornece subsídios à análise de nossas implicações como técnicos, o que se constrói sempre em composição com a análise das demandas patológicas que nos endereçam. Ao comentarmos os absurdos dos encaminhamentos dos alunos não- alfabetizados para a Escola Especial, - pois que a “inclusão” deveria ocorrer na própria escola, com a revisão dos conteúdos letivos atrasados, não aprendidos -, a pedagoga se justifica: “- Estou sendo pressionada, pela orientadora pedagógica, [Calpúrnia, do Colé- gio Beta] a encaminhar os alunos para lá!” Ela preocupava-se com as alterações estoma- tognáticas: “- A profissional realizará, em breve, uma cirurgia de hérnia (na região ab- dominal), e imagina que o aluno, Calvin, possa estar com um problema no estômago.” Mas por que a Fonoaudiologia nos informaria sobre um problema no estômago? Segundo o sítio eletrônico Wikipédia, a enciclopédia livre:

Continha as opções de especialidades, como oftalmologista, fonoaudiólogo, neurologista, e etc, as quais dever-se-iam marcar para o encaminhamento. 139

O Sistema estomatognático identifica um conjunto de estruturas bucais que desenvolvem funções comuns, tendo como característica constante a partici- pação da mandíbula. Como todo sistema, tem características que lhe são pró- prias, mas depende do funcionamento, ou está intimamente ligado à função de outros sistemas como o nervoso, o circulatório, o endócrino e todos em geral, porque não constitui uma unidade separada do resto do organismo, mas se integra estritamente a ele. Tanto nos estados de saúde como na enfermida- de, o sistema estomatognático pode influir sobre o funcionamento de outros sistemas como o digestivo, respiratório, metabólico-endócrino etc. (WIKI- PÉDIA, Sistema Estomagnático)

Cena 4, Escola Gamma: D`Artagnan Bipolar No CC de 13/07/2011, professores comentam o comportamento observado de D`Artagnan, filho de uma Conselheira Tutelar e de um pai alcoólatra: “Ele [D`Artagnan] tem surtos de memória. Eles não têm calma. Não tem ninguém na turma que não levante da carteira arrastando-a. Todos são líderes, não tem ninguém que segue ninguém, que vá seguir o exemplo de alguém.” A professora Silvana pergunta à Dorothy: “- para você, que é mais assim... Será que ele é bipolar!? [...] Para você e o Davi... O.P.: “ – Ele pode ter ‘oscilação de humor’!” Dorothy: “- Acho que é mais com o Davi...” Silvana: “- Tem hora que quer comer muito, depois pouco. Uma hora quer comer le- gume, depois massa... Oscila muito! Dorothy: “- Acho que é uma questão de ansiedade, preocupado com os problemas do pai...” “Depressivo... Depressivo mesmo.” Nélida: “- Ele fica estático.” Eu pergunto a todos: D. C.: “- Como um professor ensina o aluno com T.O.C. (Transtorno Obsessivo- Compulsivo)?” Prof.º Felipe: “- Faz ‘adaptações’!” Silvana: “- A mãe disse que o levou ao neurologista, e que ele disse que D`Artagnan não tem nada.” Prof.º Walmir: “- A mãe acha que o problema de D`Artagnan é o pai.” Silvana: “- Difícil é fazer a mãe mudar esse comportamento.” Entra em cena Luzia, a recreacionista: “- Resumindo, professor é psicólogo, médico, etc, fazem o que os pais não fazem em casa.” Walmir: “- Antigamente, não tinha tanto profissional envolvido, e a gente dava jeito.” Fala do aluno Romário, que ficava sozinho em casa, mas era mais fácil de lidar: “- Não sei se hoje é melhor com a família presente ou não.” Prof.ª Luzinete: “- A gente é que vê necessidade de isso tudo ao mesmo tempo. Mil e uma utilidades; obrigação... não tem!”

Cena 5, Épsilon: Brandon, o ‘gigante do gelo’ (gigantismo pituitário) Em outra página do meu diário de itinerância, consta: A diretora da Unidade de Ensino Infantil insiste em que façamos um encaminhamento de um aluno, para um médico, pois suspeita que ele possa vir a contrair a doença Gi- gantismo: - Ele é muito grande para a idade, desengonçado, e esbarra em todos os alu- nos. Já se envolveu em algumas brigas, e pode machucar alguém. E já tivemos muitas reclamações de pais.

A preocupação da diretora Filomena era com a contenção da “agressividade” de Brandon, - com vistas à prevenção dos riscos de reclamações pelos pais dos outros alu- 140

nos da escola. As reclamações, por sua vez, são previstas como uma ameaça em poten- cial à manutenção do poder político local (hegemônico) em Antares. Isto porque qual- quer centelha de discordância e anormalidades, - a exemplo das reclamações clientelis- tas da população, como exemplo aquelas das não aprovações dos filhos -, pode ser utili- zada como pretexto pela oposição [político-eleitoral] na disputa pela máquina adminis- trativa da cidade, de olho nas falhas da situação, e nas próximas eleições municipais. As dirigentes das escolas se caracterizavam como prepostos contratados (comissionados, de livre nomeção), reais apoiadores eleitorais da Prefeitura visando a consolidação de sua equipe geral. Sra. Filomena me disse que tinha assistido, no Globo Repórter, a uma reporta- gem sobre a doença “gigantismo pituitário”. Em seguida, relatou que já havia alertado, anteriormente, a uma família (da sua vizinhança) do risco de que seu filho pudesse vir a adquirir tal enfermidade grave. A diretora diz que não lhe deram ouvidos, e que a crian- ça chegou mesmo a contrair, mais tarde, a patologia.

Cena 6, Épsilon: Ofélia no ‘Labirinto do Fauno’ – a suposta orientação homoafetiva como distúrbio. A expansão imaginativa-criativa como desvio. Numa outra cena, em abril de 2011, no mesmo dia da produção diagnóstica de gigantismo, estou em observação de classe, sentei ao lado de cinco alunos. Eles estão sentados à mesa, brincando, em tempo de atividade livre. Enquanto isso, a professora punha em dia algumas tarefas, fazendo anotações no que parecia ser um diário de classe, esforçando-se por encaixar aquelas letras minúsculas. Estar nas duas salas da “escolinha” 128 em rodas de desenho e conversa com os estudantes de quatro (antigo pré-II) e de cinco anos (antigo pré-III e pré-alfabetização), era a minha principal atividade de trabalho naquela unidade diferenciada. Nesta escola, assim como na escola Gamma, - escolas de menor porte – as diretoras, Maria Filomena e Mirana, respectivamente, estavam muito mais abertas ao diálogo do que as das outras quatro escolas (incluindo o NAEE). Foi onde consegui realizar mais atividades de traba- lho em grupo, diálogos e debates e desenhos com professores e alunos, sem muita inter- ferência negativa e controle pelos dirigentes, a exemplo, e permanecer mais tempo den- tro das classes, considerando que o espaço dessas escolas era mais reduzido e os profes-

128 A escola Épsilon, Unidade de Ensino Infantil, era popularmente conhecida como “escolinha”, por quase todos na escola, e na cidade dado que muitos pais dos alunos atualmente matriculados lá já haviam estudado. 141

sores gostavam e solicitavam a nossa presença o tempo todo para que observássemos o comportamento dos alunos em grupo, assim como aqueles mais diferentes. Os relatórios pré-crime entre os trabalhadores, e entre chefia e trabalhadores, sim, eram bastante re- duzidos, pois entre professores e a equipe técnica, e os trabalhadores em geral e as duas diretoras, Filomena e a adjunta, Claudete, havia um diálogo franco e crítico possível. As práticas de medicalização na técnica dos encaminhamentos dos alunos à equipe e as cobranças de diretoras e professores? Eram as mesmas que nas outras escolas, mas em quantidade e intensidade reduzida dos fluxos médico-assistenciais intermitentes. Observava, sempre escutando, conversando e fazendo apontamentos com as pro- fessores, as recreacionistas e recreadoras. Conversava com os alunos, sentados em gru- pos de cinco ou quatro às pequenas cadeiras e mesas. Neste grupo com os alunos (em maio de 2011), Ofélia (5 anos), do ensino infantil III, nos traduz uma história fabulosa inscrita mas invisível a olhos nus em seu desenho:

Ofélia: “- É uma máquina de deixar a cidade sombria, e ninguém pode fazer o que quer...”

Anteriormente (em março de 2011), - numa rodinha em que todos os alunos fa- lavam de suas férias -, Ofélia diz, bem séria, o que fez em suas férias;

Ofélia: “- Comi gosma de sapo, depois fomos andando e a casa explodiu. Comi gosma, muita gosma... misturada com espinhos...”

Ofélia expunha sua imaginação, falava um português com ótima concordância verbal e nominal, quase sem erros. Sua criatividade era sem igual. Ela misturava a reali- dade a um mundo de fantasia em seus discursos. Percebo que ela troca alguns sons, ou “fonemas”, como casa por ca(X)a, e selva por (X)elva. Substituía, em sua fala, o som do “S” pelo do “X”, e daí penso em encaminhá-la à fonoaudiologia. Ofélia, de fato, se des- tacava em meio aos outros alunos e alunas, pela complexidade de seus discursos imagi- nativos e criativos, mas que eram tidos como desvios, anormalidades, complexidade esta que facultava o seu associar com outros discursos não comuns na escola, ditos por ele no que se referem à questão ‘sexualidade’, e que estariam por se anunciar: Em um primeiro momento, na fala da recreacionista:

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Bete: “- Ela gosta de coisas de meninos... sua garrafinha é de menino. Eu te- nho um sobrinho com comportamento parecido: gostava de usar roupas de menina e brincar com bonecas. Começou assim...”

Em seguida, a diretora adjunta, quando eu lhe entreguei um documento de refe- rência para a avaliação fonoaudiológica de Ofélia, questiona:

Claudete: “- Não seria o caso de encaminhá-la para o psicóloga Juliette [que também trabalhava no posto de saúde mais próximo], devido a seu compor- tamento!?”

Ao que perguntei qual o tipo de comportamento, ela responde, confiante:

Claudete: “- O de se comportar como menino: - querer urinar em pé, usar o tênis do Ben 10129, só fazer coisas de menino!?”

Estes discursos apontam e validam as concepções instituídas sobre a sexualidade na escola, e na cidade. São concepções que já havia percebido, através de pedidos para tratamento de alguns alunos nas escolas Alpha e Beta. Eram alunos considerados ho- mossexuais pelos comportamentos que apresentavam nos gestos, voz, roupas e brinca- deiras que, para as escolas eram explicitadores da provável “opção” sexual que fariam mais adiante. No meu ver, a ordem era a previsão da suposta orientação homoafetiva de determinados alunos, e a prevenção com o auxílio técnico dos psicólogos contra a sua ratificação futura. E mais além: lançava-se, com isso, uma espécie de controle técnico- psicológico das possibilidades futuras, do vir-a-ser, da virtualidade de cada indivíduo na população dividual de alunos. Em consonância com a atribuição da periculosidade presente, na medida da con- tenção de uma amplificação da estética diferenciada, da virtualidade de estudantes como Ofélia, e futura, no que se refere à presciência político-pedagógica da configuração

129 A questão é que Ben 10 é um desenho animado da TV assistido mais por meninos do que por meninas (embora haja uma personagem menina nas estórias: Gwen, sua prima), assim como imitado nas brincadeiras de lutas, correria e transformação em alienígenas entre os meninos. Nas escolas, eram comuns essas imitações de lutas com alienígenas, como no desenho. Ben 10 é uma aclamada franquia de desenhos animados norte-americana criada pelo grupo Man of Action (Duncan Rouleau, Joe Casey, Joe Kelly e Steven T. Seagle), e é produzida e exibida no Brasil pelo canal Cartoon Network Studios. A série é sobre um menino (Benjamin Tennyson) que adquire um dispositivo extraterrestre em formato de relógio de pulso chamado Omnitrix (Sucedido pelo Superomnitrix), através do qual tem a habilidade de se transformar em diversas criaturas alienígenas. A primeira série se chamava Ben 10 (2005-2008), na qual Ben tinha 10 anos de idade e pode se transformar de 10 a 16 alienígenas; a segunda, Ben 10: Alien Force (Força Alienígena/ 2008-2010), quando o herói passa a se transformar em mais 10 aliens; Ultimate Alien (Supremacia Alienígena/ 2010-2012) e Omniverse (2012-presente), nos quais as possibilidades de transformações em alienígenas tornam-se sem limites. 143

(consolidada) provável de sua já suposta orientação homoerótica, Michel Foucault, em As Verdades e as Formas Jurídicas, nos explana os processos históricos-políticos de formação de tal forma de controle:

[...] O controle dos indivíduos, essa espécie de controle penal punitivo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça, mas por uma série de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção – a polícia para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, crimino- lógicas, médicas, pedagógicas para a correção. É assim que, no século XIX, desenvolve-se, em torno da instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos ao nível da periculosidade, uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existên- cia; instituições pedagógicas como a escola, psicológicas ou psiquiátricas como o hospital, o asilo, a polícia, etc. Toda essa rede de um poder que não é judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento: função não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades. (FOUCAULT, 2011, p.85-86; grifos meus)

As primeiras demandas aconteceram em relação a dois alunos pré-adolescentes, e foram feitas por uma professora e uma O. E. A partir destas, ocorreram múltiplos pe- didos das escolas para o tratamento psicológico-psicoterapêutico com vistas à correção ou alteração da orientação homossexual de alunos, e mesmo das supostas. Os “especialistas” da escola buscam prever o comportamento futuro das crian- ças, e, se suas expressões de sexualidade mesmo aparentam uma fuga aos padrões vi- gentes (heterossexuais) em nossa sociedade, a escola se esforça por contê-las. Notada- mente, nessas escolas, a máscara do especialista, quase sempre, escapa das faces dos psicólogos, médicos e (psico)pedagogos, e são utilizadas por outros atores, como direto- res, professoras, e até mesmo, os pais dos alunos. Quando dissemos à diretora adjunta que, naquele momento, avaliávamos neces- sário apenas o encaminhamento para o fonoaudiólogo, após alguma insistência, a escola tenta encaminhamento, através de um pedido ao assistente social da equipe. Este man- tém a mesma posição: - a de que não havia motivos para o encaminhamento a um psicó- logo clínico, mesmo que fosse possível julgar, em definitivo, a homossexualidade de uma criança de 5 anos130. Depois, como último esforço, ainda tenta o encaminhamento

130 Nota-se que, desde a minha explicação sobre não ser possível atendimento psicológico individualizado sistemático e intensivo com os alunos e/ou com os seus pais na própria escola, houve um deslocamento para os excessos nos pedidos de encaminhamentos, a partir de um dado momento. O que se confirma pelo fato de que, a partir de julho de 2010, as demandas passaram a se constituir hegemônica e massivamente como solicitações de atendimentos clínico-psicológicos fora da escola. No entanto, não cessavam os pedidos para este tipo de abordagem psicológica no seu âmbito interno. 144

através da (psico)pedagoga, e vemos como a direção retoma a questão por reiteradas vezes. Um dado era evidente, durante o processo: a diretora adjunta, os pais da aluna, a (psico)pedagoga Dorothy, e Pipa, coordenadora da equipe técnica, professam a religião protestante, e, seguindo seu credo, constroem uma associação entre homossexualidade e doença, como uma patologia passível de alteração pelo psicólogo. Portanto, exerciam seu poder pastoral e corporativista, como tática de soberania que se alia à prevenção das queixas dos pais-clientes da escola. Estes relatórios (à escola, à Secretaria de Educação) poderiam ocorrer contra a “influência” dos comportamentos homoafetivos de uma aluna entre outros na classe. Lembro que já havia conversado com os pais antes, junto da dire- tora. Eles relataram a preocupação de que a Ofélia, “no futuro, viesse a se tornar homos- sexual, porque só tem brincadeiras de menino: - Gostava de correr, jogar bola e brincar de carrinho...” Mais tarde, numa reunião com pais, a mãe nos agradecera pela conversa que ti- vemos, dizendo que a filha mudara, substancialmente, o comportamento, em casa. Con- versamos, ainda neste dia, eu e Wladimir, ao que descobrimos, através da fala da mãe, que Ofélia apenas acompanhava o desejo do pai de que, antes que ela nascesse (e que parecia se atualizar), tivesse um filho. Este desejo era expresso constantemente. Assim, Ofélia se esforçava para ser como o pai; de outro modo, não teria dito à professora que queria “botar a cueca do flamengo, do meu pai”, “gosto de mulher” e “quero te beijar na boca.” Destarte, depois de muitas discussões nos conselhos de classe que se seguiram, nas quais exponho a Resolução 001/99 do CFP131 que veta o tratamento psicológico com fins de transformar a orientação sexual, a história continua... A aluna vai para a alfabetização, em outra escola. Esta já anuncia sua preocupação com a vontade que Ofé- lia expressa de usar o banheiro dos meninos, a e O. E. (também protestante) quer con- versar sobre o “caso”. Em fevereiro de 2012, na escola Gamma, a diretora Mirana me solicita a conversar com um professor a respeito do “jeitinho” de um aluno, Vinny.

131 Cf. Resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia, de 22 de março de 1999, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual: “Considerando que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão; considerando que há, na sociedade, uma inquietação em torno de práticas sexuais desviantes das normas estabelecidas sócio- culturalmente, resolve: [...] art. 2º - os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas. Art. 3º - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. [...] 145

Cena 7, Colégio Beta, e Cena 8, Escola Alpha: TDAH e os alunos Tommy Walker e Jimmy Cooper132

THE REAL ME

I want back to the doctor To get another shrink I have to tell him about my weekend But he never betrays what he thinks

Can you see the real me Doctor? Can you see the real me Doctor?

I went back to my mother I said “I´m crazy, ma, help me!” She said “I know how it feels, son ‘cause it runs in the family.”

Can you see the real me, Mother? Can you see the real me, Mother?

The cracks between the paving stones Like rivers of flowing veins Strange people who know me Peeping from behind every window pane The girl I used to love Lives in this yellow house

Yesterday she passed me by She doesn´t want to know me now

Can you see the real me? Can you, can you? Can you see the real me? Can you, can you?

I went to the holy man [preacher] Full of lies end hate I seemed to scare him a little So he showed me to the golden gate

Can you see the real me, preacher? Preacher? Can you see the real me, preacher? Can you see the real me, doctor? Can you see the real me, mooooooother? Can you see the real me me me me me me Me me me me me me me me me me me…?

132 Os dois nomes fictícios são referências aos dois personagens principais das duas óperas-rock do grupo inglês The Who, intituladas, respectivamente, Tommy (1969) e Quadrophenia (1973). 146

The Who, The real me Album: Quadrophenia (1972)

O diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH - verificou-se o mais comum e repetitivo durante a meu trabalho nas escolas, - nos anos de 2009-2012 -, e direcionado à equipe SAFE como demanda para atendimento e enca- minhamento médico subsequente. Eu conversava com uma dentista que visitava a esco- la Delta, que quando aplicava o flúor olhou e apontou para um aluno que já tinha passa- do por ali diversas vezes: “- tem um aqui que é hiperativo...” Na Unidade de Ensino Infantil, em 12/12/2011, a mãe de um aluno (Aparecido) vem fazer sua matrícula para 2012. Diz que Aparecido é “hiperativo”, “é, ele toma remédio, Neuroleptil”. A dire- tora adjunta, Claudete, pergunta se a responsável tem algum exame que comprove a “doença”, pois que precisa de um laudo para a escola. Informa ser “leve a hiperativida- de”, que teve um exame de EEG, mas o médico não disse muito; disse que “deu um probleminha”. Reiterando o pedido do exame e laudo, Claudete fala para a mãe: “- Com a graça de Deus... vai que ele não aprende... Queira Deus que tudo dê certo, mas vai que ele não aprende...” [...] Ainda na Unidade Infantil... A avó de Brandon,- o qual já tem a probabilidade de vir a ser um gigante, segundo a diretora -, disse que ele é hiperativo, não para quieto! Tommy já havia sido encaminhado à escola especial, - para a turma de alfabeti- zação -, e lá estudado por um tempo, só que a sua mãe passou a não concordar mais com a sua frequência ao dispositivo. Pedrinho “queimou etapas, e teve aprovação automáti- ca, ‘é incluso’ no Colégio Beta, 13 anos, quarta série, passou a saber ler e escrever entre a 5.ª e a 6.ª séries, tem dificuldades. Os colegas encarnam nele lá na E. Beta; a mãe não aceita.” Enquanto realizo observações e converso com a alfabetizadora, Adele, e alunos da mesma unidade, ela conta o caso de Tommy. – “O aluno usava remédio que não o deixava acor- dar; foi meu aluno”, diz. Segundo Adele, Pedrinho dizia: -“ não gosto de vir para cá [NAEE] porque di- zem que sou maluco”, diz a professora. Os colegas da escola Beta diziam a ele que lá era “escola de maluco”. Pedrinho foi três vezes ao NAEE e falou à professora que “ca- çoaram” dele “uma vez”. Chamam-no de maluco. “Os pais são resistentes ao NAEE”; “foi no NAEE que ele [Pedrinho] aprendeu a ler.” 147

Durante esta conversa, percebo que o conceito de “inclusão” é coletivamente fa- bricado e instituído, nas escolas antarenses, como um processo que parte da escola es- pecial para a regular, e não como movimento que se pode dar por vários ângulos de a- travessamentos, inclusive nas relações internas das escolas “normais”. A professora continua a me falar das “resistências” com relação ao confinamento e institucionaliza- ção ao NAEE, mesmo que engendrado na articulação com as escolas regulares [D.C.: eu me refiro aos alunos com dupla matrícula133]: “O trabalho foi iniciado, - “inclusão esco- lar” -, por Pipa [atual coord.ª da equipe técnica e da Inclusão no município] e por Tina [diretora do NAEE], o que é recente, propõe mudanças; não é rápido! Acho que há re- sistências.” A mãe de Tommy tinha medo que Raymond, - um aluno diagnosticado como au- tista, e que batia mesmo nos outros quando incomodado em seu mundo particular – fi- zesse algo com ele. [batesse em Tommy] Disse que o filho saía falando para todos. Hoje ele não foi à escola especial, e Adele seguiu para o Colégio Beta, quando a mãe disse do remédio que não o deixa acordado. Pedrinho falou para o filho de Adele: “- estou aqui, mas não sou maluco.” Ao passo que no Beta, colegas disseram que aqui é “escola de maluco”. “- E dizem que sou também”, continuava Pedrinho. Tommy Walker já teve um tutor (que era o inspetor de disciplina da escola) que o acompanhava dentro da classe. Para conter seus episódios de “agressividade”. Carrie é de Cerro Azul [distrito de Antares] ,e não sabe ler. A tia dela foi à Secretaria de Educação. Foi dizer pessoalmente à Secretária de Educação que a sobrinha “não é maluca”, e a Rainha Vermelha concordou. Gerou problema com a coordenadora de “inclusão”, Pipa, orde- nando-lhe: “- a Carrie não é doente mental, tem que tirar ela de lá! [do NAEE]”, proferiu a Sr.ª Secretária. Neste ínterim, eu disse à professora que poderíamos, eventualmente, visitar a ABBR – como relevante à formação daqueles profissionais -, quando ela retrucou informando que um aluno e uma aluna que apresentavam déficit de audição, - com 28 e 19 anos, respectivamente, e matriculados na antiga 5.ª série – fizeram cursos de libras na USS – Universidade Severino Sombra, e não continuaram o segundo módulo, porque a Secretaria não quis pagar. Na sala dos computadores do Colégio Beta (em 25/11/2010), estávamos eu, Dorothy e Ana Maria, secretária escolar. Ana conta que a escola incluiu dois alunos na categoria de “espe- ciais” – como retardo mental e retardo mental leve – para Tommy e Pedrinho, respectivamente, na pesquisa do último Censo Escolar, sem haver documentos que comprovassem [laudos médi- cos ou de outro especialista]. Recebeu ligação do Departamento Pessoal da Secretaria de Educa-

133 A dupla matrícula a que me refiro é a situação em que os alunos se matriculam na escola regular e na especial. Recebem, desta forma, também, duplamente, as verbas educacionais. 148

ção, na qual lhe cobravam dizendo que ela tinha que “mostrar os papéis”. Ana Maria recebeu ordens da Orientadora Pedagógica da E. Beta [Ângela], e estava muito preocupada e ansiosa naquele momento, explicando-nos repetidas vezes, a mim e à OE presente como se fazia um documento de encaminhamento, depois, na secretaria da escola. Tommy e Jimmy estudavam nas unidades Beta e Alpha, respectivamente, e ambos fo- ram diagnosticados como portadores de D.D.A.H., ou seja, Desordem de Déficit de Atenção e Hiperatividade, pelo mesmo neuropsiquiatra, do CAPS, Dr.º Simão Bacamarte:

Colégio Beta, 31 de março de 2011: Declaro que Tommy Walker encontra-se em atendimento especializado (ambulatorial), apresenta quadro compatível com D. D. A. H. e necessita de atenção especial nas ativi- dades escolares - CAPS, em 31/03/2011.134 Laudo eletroencefalográfico de 23/07/2007: Conclusão: EEG Digital exterioriza descargas difusas a 4 c/s – 7c/s e pontas agudas di- fusas mais amplas em regiões frontais. Eletroencefalopatia cerebral: Aluno: Tommy Walker Sexo: masculino. Idade: 7 anos. Hemisfério dominante: direito Terapêutica: Tegretol + Neuroleptil Data: 23/07/07 Solicitação: XXXXXX

Psicólogo, Assistente Social, e a mãe (entrevista) Em 5 de março de 2012, estivemos no Colégio Beta, das 12hs às 17hs e 30min. Eu e Wladimir, assistente social, entrevistamos Gláucia, mãe do aluno, Tommy, [...] de 12 anos, e no 4.º ano de ensino fundamental. Ao final da conversa, Gláucia diz que: “- se forem conversar com a Escola sobre Tommy, eles vão falar sobre a Apae [refere-se à escola especial], para vocês.” O estudante usa a medicação carbamazepina (tegretol) desde os três anos de idade. Apenas recentemente, há um ano, um médico, do CAPS, Dr.º Bacamarte, teria reduzido a frequência do uso para um comprimido de 200 mg (à noite). Antes, utilizava duas vezes ao dia, - diz. Usou também “neuroleptil”, durante cerca de três anos, o que teria sido criticado por um outro médico com relação aos efei- tos prejudiciais possíveis à criança. O neuropsiquiatra, Dr.º Simão, receitou uma dosa- gem de Gaballon, para o horário do almoço. Segundo a mãe, “para a memória”. Gláucia diz que Tommy não tem afinidade com o pai “biológico”, que mora em Paracambi. Este não mantém contato com o filho. Separaram-se quando Tommy tinha três meses. Tommy tem diagnóstico de disritmia, que seria “o mesmo que epilepsia”, segundo o médico que o diagnosticou, - disse Gláucia. Tem também um laudo do neuropsiquiatra, afirmando que ele tem D.D.A.H.135 (grifos meus) Escola Alpha, 22 de novembro de 2011: “Jimmy Cooper” > “Paciente em tratamento D. D. A. H. e com boa evolução e prognós- tico”. (laudo médico enviado pelo CAPS, escrito em 19.08.2010. Simão Bacamarte, neuropsiquiatra).

134 Documento de referência encaminhado do C. A. P. S. ao Colégio Municipal Beta. (Redigido pelo neuropsiquiatra em 31/03/2011). 135 Diário de Campo, 05/03/2012. Refere-se a uma entrevista à família (mãe) de Tommy.

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Sua mãe vem à escola dizendo que o filho tem laudo (“DDAH) e deve ser reprovado. Conversando com Mary Jane (O.E.), a responsável queixou-se das aulas de biologia so- bre reprodução sexual. Considera os conteúdos não adequados às idades dos alunos. A sua professora, Rosa Maria, havia me solicitado o tratamento psicológico para o meni- no. Ela suspeitava do seu “jeitinho”, e dizia-se preocupada porque os outros alunos jo- gavam piadas chamando-o de “viadinho”, assim insinuando a sua suposta orientação homoafetiva. Segundo a educadora, Jimmy precisava ser tratado por um psicólogo, an- tes que esta orientação da sexualidade se consolidasse; ou se eu não o pudesse fazer, que o encaminhasse para algum profissional (um outro psicólogo) fora da escola. Entrevista em grupo: o psicólogo, a mãe e duas professoras Escola Alpha, 22/03/2011: As professoras Leda e Rosana dizem que “Jimmy não copi- a”. Simão Bacamarte diagnosticou D. D. A. H. O aluno foi encaminhado pelo S. Baca- marte por “nervosismo” e demonstrar-se “muito agitado”. Falou-se em Jimmy Cooper porque hoje houve, neste mesmo dia, uma tarde de “discussão de casos de alunos inclusos”. A coord.ª Pipa encaminha uma lista com dez estudantes considerados inclusos: (1) Helena (13 anos) – Pipa informa que a mãe tinha um laudo de um “oftalmo” sobre problema em um olho (sem visão neste olho), mas perdeu o “papel”. “Uma família de contexto social muito conturbado”. Patrícia e a irmã (Ma- riana) viviam no porão [refere-se a moradia precária em andar inferior ao prédio da escola] da escola Gama, e viram o pai enforcado em uma árvore. O pai vivia em casa com o amante da mãe. Ela tem sede de aprender, mas tem algo que bloqueia! (2) Mafalda Cristina – O prof.º Felipe [que atua em ambas as escolas Alpha e Gama] fala: - mudanças eu achei que houve. Kelly era aquela menina indo- mável, acho que houve uma evolução: ela senta, e copia. Palavrão ela fala! [refere-se à aluna também frequentadora do NAEE, que apresenta Síndrome de Waardenbürg e, por isso tem déficit auditivo, pouco fala ou com fala in- compreensível] (3) George – Está frequentando o NAEE e obteve avanços. Pati Pimentinha não avança pelas faltas no NAEE. (4) Wendy Darling – Beatrice (OP) diz que Wendy sai muito de sala, e disse que “não quer mais estudar aqui”, quando a diretora Ágatha esteve em clas- se e perguntou se os outros alunos queriam mudar de sala. Foi quando Wendy levantou o braço. A coordenadora da equipe técnica responde: “- Mas isso que é perigoso: ela não pode se sentir diferente!” (5) Mariana – Eu, Beatrice e Dorothy conversamos com Mariana. Mora com a tia e a avó. Deixou a mãe no início deste ano [2011]. Não aprende a ler. Laudo da neurologista (Hyde) enviado à escola: – “imaturidade cerebral. Atividade lenta posterior. Muito calada.” (6) Aloísio - (7) Caroline - (8) Christy Brown – O laudo médico que chega à escola, e às mãos da coorde- nadora Pipa: “Devido ao seu comprometimento, ‘paralisia do tipo coreoate- tose’, o aluno necessita de tutora para realizar suas tarefas relacionadas à escrita” (9) Mario – A família é nômade [é andarilha e costumava pedir dinheiro nas ru- as alegando serem portadores de patologias incapacitantes, desde quando viviam em Barra do Piraí]. “A mãe diz que não irão ao NAEE, pois não são malucos” -, diz Pipa. (10) Luigi – Pipa fica superfeliz ao ter a notícia de que chegara à escola um laudo médico de um aluno “especial”, Luigi, trazido pela responsável. Ela quase deu um salto da cadeira com as mãos juntas ao peito, expressando o 150

gesto de quem fosse rezar, e disse: “- Graças a Deus! [olhando para o céu] Eu não sabia que tinham trazido... Porque a mãe dizia que o neurologista não dava...” [o laudo e o diagnóstico para a adaptação curricular]. Dennis, o viking ameaçador 12/07/2011 – Este foi um encontro136 marcado com pais dos alunos do ens. Infantil III (Escola Alpha), após a prof.ª Telma ter-nos dito que estes familiares estariam se organi- zando para pedir que retirassem o aluno (Dennis) da escola. Alguns pais tinham ido ao Conselho Tutelar fazer reclamações sobre o comportamento e a “agressividade” de Dennis. Ayrton, avô de Mickey: “- Em relação a Mickey: - ele é insubordinado porque ele é hiperativo. Levaram-no a um médico, que o encaminhou a um neuropediatra. Não vou dar medicamento para acompanhar ele... Eu queria pedir, em nome da mãe, ‘pulso’ à tia [professora]. Nossa realidade, na família, é essa. O pediatra falou que, enquanto não ti- vermos avaliação de um neuropediatra, não posso medicá-lo...” Suzana, mãe de Laura: “- Meu problema é o Dennis também... [deflagra-se um clima tenso no grupo, e todos os pais presentes começam a se queixar do aluno] O pai veio até pedir transferência. [...]” Prof.ª Telma: “- Eu já passei nos Conselhos [de Classe]... O que pode a gente faz.... Sempre procuro muito conversar. E, se necessário, chamo os alunos à atenção. Dennis pegou a mochila de Laura e chutou. Não gosta de ser contrariado [fala em uníssono com a mãe de Laura]. A culpa cai tudo (sic) em cima dele.” Thereza, mãe de Roberto: “- Como vai o desempenho? Ele continua xingando, não obedecendo!?” Ayrton: “- a mãe [de Dennis] trabalha na cheche municipal, com disciplina. É recrea- dora.” Thereza: “- Quando o bebê chorava, e Roberto ficava reclamando, joguei o boneco do Homem-Aranha na parede. Acabou batendo e quebrou mesmo. E Roberto ficou choran- do. Tenho de reeducar ele, e peço que a professora me avise... para ajudá-la. [a profes- sora]. Por causa desse negócio de Ben 10, quebrou o braço descalçando umas manilhas e as chutando.” Prof.ª Telma: “- O desenho Ben 10 só traz influências negativas para o comportamento da criança.” Thereza: “- É problema de carência mesmo! Dizem que a personalidade da criança se desenvolve até os 8 anos de idade... Brigo muito com ele, Telma...” Ayrton: “- Não quero dar mau exemplo, até porque fui aluno também... “

]Sra. Rebecca, a avó de Dennis, pede desculpas aos responsáveis presentes, e chora após M. Jane perguntar se houve melhora. Neste momento, o avô de Mickey olha para Rebecca, e diz que os dois estudaram juntos na escola Alpha... Eu pergunto se ele era, também, “(in)disciplinado”, “(in)subordinado”;

“- Dennis e Laura estudaram juntos na creche. Vieram de lá, um mundinho -, diz Re- becca. Dennis não olhava para nós quando na creche. Se não fizermos, o mundo lá fora não terá coragem de ajudar.” A avó pede ajuda aos outros pais:

136 Idem, 12/07/2011. Registro de um grupo de discussão, agendado depois de escuta com a professora Telma, do ensino infantil III da Escola Alpha. Participaram: Mary Jane (OE), Beatrice (OP), Telma (professora), e oito pais de alunos: Ayrton, Thereza, Rebecca, Sônia, Suzana, entre outros.

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“- A mãe [de Dennis] voltou para casa. Estou com ela, largou as drogas e está em co- munhão total com Deus.” M. Jane (OE): “- Temos de entender que são crianças...” Sônia, mãe de Jean: “- Pergunta como ele vai. Tô achando diferença nele porque houve separação dos pais.” O avô de Mickey é enfermeiro, e fala de uma pediatra, Maria: “- Dando um remedinho aí, de repente relaxa... “ “- Eu fui reprimido. É um paliativo, não curativo: as repressões. Eu trabalhei com psi- quiatria, e muitas vezes conversávamos e eles melhoravam. A pediatra disse que não dá jeito, precisa de tratamento. Disse que ele é hiperativo.” Telma: “- Tenho percebido melhoras em geral.” Suzana: “- O pai de Laura acionou o C. Tutelar por causa de Dennis, para retirar a filha da escola. O pai, pela segunda vez, foi ao C. T.”

As preocupações deste responsável eram consideradas como um exagero, tal como um sentimento de culpa e aí buscasse redenção. E o seu movimento em acionar o C. Tutelar e retirar a filha da escola fosse um efeito compensatório. Segundo a escola, se devem ao fato de ele ter ficado muito tempo afastado da filha, quando trabalhava na Light, em Barra do Piraí.

2.3 Tom Sawyer137: Agressividade, Carência e Limites

A modern day warrior Mean mean stride Today´s Tom Sawyer Mean mean pride

Though his mind is not for rent Don´t put him down as arrogant His reserve, a quiet defense Riding out the day´s events – The river

What you say about his company Is what you say about society - Catch the mist – Catch the myth

137 Utilizo este nome fictício para o aluno, em alusão ao personagem Thomas Sawyer, que, nos livros infantis de Mark Twain, desferia críticas políticas à sociedade norte-americana. Era órfão e astucioso, como o aluno em questão. Tom Sawyer é um menino aventureiro, pobre, espertíssimo e órfão - quando ainda bebê seus pais faleceram, tendo que morar com sua tia Polly. Tem como arma principal para sobreviver na sociedade – a inteligência, ou melhor, a malandragem. Usa a esperteza para se sair de situações inusitadas ou negociar quando está em condições de desvantagem, mesmo que seja necessário enganar os outros. Seu brinquedo é a sua astúcia – capaz de manipular a todos por meio da malandragem. Tom Sawyer é a personagem principal dos livros infantis As Aventuras de Tom Sawyer, As Viagens de Tom Sawyer e Tom Sawyer, Detective, de Mark Twain (1835-1910), considerado o pai da literatura americana moderna. É um garoto que vive com a tia Polly e o irmão Sidney numa pequena cidade nas margens do rio Mississippi, nos Estados Unidos da América, no século XIX. Esperto, Tom e seu amigo Huckleberry Finn metem-se nas mais incríveis peripécias. Tom é um menino muito sapeca que arranja as mais bravas encrencas. 152

- Catch the mistery – Catch the drift

The world is the world is Love and life are deep Maybe as his skies are wide Today´s Tom Sawyer He gets high on you And the space he invades He gets by on you

No, his mind is not for rent To any god or government Always hopeful, yet discontent He know changes are permanent – But changes is

What you say about his company Is what you say about society Catch the witness – Catch the witness

Catch the spirit – Catch the spit […]

Exit the warrior Today´s Tom Sawyer He gets high on you The energy you trade He gets right on toThe friction ofthe day

Rush, Tom Sawyer Música de Geddy Lee e Alex Lifeson Letras de Pye Dubois e Neil Peart Álbum: Moving Pictures (1981)

Dos registros gerais de casos individualizados, extraio um segundo analisador nesta dissertação: - o aluno Thomas Sawyer, pré-adolescente, considerado um jovem infrator, levando em conta sua história familiar. História esta que faculta a associação do fato de seu pai estar preso por tráfico de drogas e assassinato com o seu atual com- portamento (in)disciplinado e “agressivo” com os colegas de classe e professores. Ainda neste segundo capítulo, uma Reunião Pedagógica e um Conselho de Clas- se serão tomados como dispositivos para a discussão da judicialização do cotidiano es- colar, pois as exigências de laudos psiquiátricos para a (in)disciplina e a “hiperativida- de” levantam suspeita de que há periculosidade nos comportamentos resistentes, talvez um vir-a-ser infracional, ações pré-crime por parte dos jovens.

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Diversidade de Linguagens:

Figura 1 - Esquilo queimando.

Numa atividade de desenho e diálogos em grupo com alunos, perguntei a Tom Sawyer o que era a figura escura dentro do que dizia ser o fogo a sair detrás dos carros de corrida. “- É um esquilo queimando.”-, me disse. Em um segundo encontro, quando fez o segundo desenho, que segue, o estudante continua a expressar sua criatividade, desta vez de modo menos obscuro. Desenha carros elétricos ativados por raios. Não obstante a repetição dos carros, eram visíveis as construções das diferenças. A sua sin- gularidade inventiva ele exibia no que a escola enquadrava como agressividade (destru- tiva):

Figura 2 – Carros Elétricos. (14/06/2011)

1 - Em 30 de setembro de 2011, na escola Gamma, uma merendeira fala sobre o filho que já estudou na Alpha e com aprovação automática: “- eles pararam com a repe- 154

tência, e agora aprovam. Antigamente, eles repetiam os alunos e ficavam aqueles gran- dões só para arrumar confusão”( Há nas afirmações acima um passagem do momento do repetente que se torna um infrator em potencial, - ou alunos repetentes que se tornam agressivos e perigosos: no descompasso da aprendizagem, sem ter o que fazer, tornam- se (in)disciplinados). Uma passagem da contenção das periculosidades iminentes à a- bordagem médico-psicopatologizante do fracasso escolar, pois, se antes, quando havia a repetência, os alunos ficavam revoltados, hoje, controlados, eles sofrem com o sistema de “progressão continuada”.

Controle da (in)disciplina de professores na escola Beta: 2 – 13/05/2010: CC no C. Beta. 7hs 30. Ordens e cobranças da O.P. Ângela: - Muita colagem na prova torna-a pesada; - Para os professores do turno da tarde: - Deixar o ‘caderno de planejamento’ às 17hs porque não estou vendo o caderno; - Se a mãe (de aluno) lhes procurar para falar à porta da sala, não atendam; peçam para que se dirijam à secretaria (da escola); - Não deixem a turma sozinha! Numa fração de segundo acontece uma briga... - Observação aos professores: utilizem o calendário novo de provas e testes. [...] - Erros e desenhos obscenos sobre ‘um livro’ no mural, erros gritantes de ortografia! Digam para que os alunos corrijam! - O reforço começa no 2.º bimestre de maio; alguém teria interesse em dar o reforço? - Vocês têm de colocar o “destaque” na ata! [refere-se ao aluno-destaque] Professores Prof.ª Sonja fala de sua turma. Da agressividade de alguns alunos... “- Preciso observar mais a turma. Luke não fez o teste de nenhum modo. Há a questão da mudança para a “resistência ao teste”. “- Como vou escolher um [1] destaque nesta turma? O que os outros vão achar?” Prof.ª Georgina fala que os alunos mexem uns com os outros, e destaca o aluno Bocão: “- Eu estou falando uma coisa, e percebo que eles não estão nem aí. Dificilmente, con- sigo fazer com que fiquem quietos; percebi que as médias não estão boas: - são muito agitados! “ O. E. : “ - Vou conversar com o Bocão. Se eu souber, no dia seguinte chamo a mãe. O. P. : “ – Gostaria que chamasse a mãe aqui.” Escola Alpha, 29/03/2011: Lucy van Pelt e sua “agressividade” Entrevista com Osório, pai da aluna Lucy van Pelt, do ens. Infantil III (5 anos). Sobre a queixa escolar, da professora e pais, a respeito da sua “agressividade”, ele diz que irá procurar, junto da mãe, um clínico geral ou pediatra, pois acham que Lucy pode ter o 155

mesmo problema “de cabeça” que seu irmão mais velho (hoje com 22 anos) teve. Lucas foi encaminhado pela escola à neurologista Dr.ª Hyde, que por sua vez o indicou uma consulta psiquiátrica, com Dr.º Bacamarte. Segundo o pai de Lucy, o neuropsiquiatra in- formou, taxativo, à família, que “agora [à época] iria demorar o tratamento, pois os pais não o tinham procurado antes.” Queixas da professora sobre Tom Sua irmã, Lara, tirou a roupa na sala, em julho, e ficou junto aos meninos. Sua avó falou e ameaçou de colocá-la no Abrigo [municipal] e então a menina parou. Thomas costuma tirar 6,0. Não faz a maioria das atividades, não escreve melhor porque não pratica, não interpreta. Rasgava as provas. Tem desatenção. Há questões com a sexualidade e a a- gressividade. Não faz trabalho; fez metade do teste. Muito bom em matemática. Faz o que quer... Chutou a professora. Faz provocações (piolhento), usa palavrão feio. Come- tia furtos: levava coisas dos colegas para casa. Passava pelas mesas quebrando os lápis dos outros alunos.

Figura 3 – Metrô. (14/06/2011)

Em treze de maio de 2010, fez-se um “relatório de observação” sobre a conduta escolar do aluno Thomas Sawyer, assinado por quatro profissionais: OP, OE, diretora e professora.

Antares, 13 de maio de 2010

RELATÓRIO DE OBSERVAÇÃO Aluno: Thomas Sawyer. O aluno em questão apresenta dificuldade de auto-regulação, demonstrando agressividade em situação de conflito, quando sente seguro em relação à atenção da pro- fessora realiza tarefas aparentando interesse e dedicação, porém logo se distrai com brincadeiras. Se confrontado, utiliza-se de palavras pouco cordiais para repelir e afron- tar os amigos de sala de aula. O aluno apresenta um comportamento fora do comum para sua idade e para convívio em grupo, pois o mesmo tem atitudes consideradas pouco cordiais dentro do seu grupo escolar. É um aluno agressivo em relação aos colegas em sala de aula, costuma usar de inverdades para justificar seus atos e justificar suas atitudes e dos colegas. 156

A professora do aluno Thomas, Helena Campolargo, percebeu uma grande ca- rência do aluno tanto afetiva como social, pois o mesmo fica o tempo todo aparentando desejar atenções diferenciadas para si. Sabemos que além de Thomas a professora tem mais 30 alunos, tendo que aten- der a necessidade de todos e se preocupa muito com os hábitos e atitudes de Tom. Vale ressaltar que o aluno em relação à professora melhorou muito sendo afetu- oso e demonstra constantemente o seu carinho, sendo que quando repreendido se torna agressivo com a professora e os outros, não apresentando limites. Prof.ª Helena Campolargo Renata Vacariano/ Mary Jane Watson - Or. Pedagógica/ Educacional Ágatha Trunchbull – Direção

Recebi 24/05/2010 – agente administrativo – Matrícula xx/xxxx (assinatura da- tada de recibo do relatório pré-crime pela Secretaria de Educação)

Reunião Pedagógica de 17 de junho de 2011138 na Escola Alpha [...] Prof.ª Duca: “-será que a criança obedece? Eles têm muita influência.” Pablo [professor de xadrez]: “- Hoje tem de proibir mesmo! Não tem jeito! Hoje tem as drogas...” Jonas: “Tráfico. Tomem cuidado com os filhos. Tem estudante – jovens -, que vão buscar drogas e os pais nem sabem. Essa praga desse Crack... Moro em uma comunidade!” Pablo: “Estou vendo alunos que jamais estarão associados a drogas.” Veronica: - Trabalhei em Gov. Portela [distrito de Miguel Pereira]... O que tem de aluno de 11 e 12 anos usando droga... fumando no banheiro... Lá em Gov. Portela e Miguel está um problema... Estamos pensando em projeto. Vimos alu- no ser preso. Ágatha: - Dois casos na escola. Um aluno que foi preso e vinha ao portão da es- cola chamar os alunos. Um rapaz já que me trouxe problema quando minha fi- lha estudou no CIEP. Me preocupa muito porque é da comunidade do Thomas. Falei com Dona Rainha de Copas139. Esta recomendou uma unidade para o alu- no estudar140. O foco é o bairro. O pai está preso, mas é ele que comanda. Estou preocupada, pois lá é a fonte. Ele não tem cabeça de 9 anos, quem é esse meni- no? Como é o coração dele? Minhas filhas sendo atacadas, minha casa sendo metralhada... Sei lá... O pai comanda lá da cadeia... Jogar as coisas dos alunos é agressividade. [fala aqui do professor que, estressado, jogou a mochila de Tom para o lado de fora da sala, após o xingamento feito pelo aluno] Ele [Tom Sawyer] já vive em agressividade. [Ágatha sugeriu ao avô que pagasse uma escola para o aluno, e foi marcado um encontro com os avós na escola, às 16hs, no dia 17/06/2011.]

Repare que nesta última fala (acima), Ágatha alterna rapidamente, no trecho em negrito, o discurso da objetivação da agressividade do professor para a do aluno Tom.

138 Diário, 17/06/2011. Estiveram presentes à RP a diretora da escola Alpha, Mary Jane (OE), Beatrice (OP), e os professores Jonas, Karina, Andrea, Jaciara, Pablo (de xadrez), Duca, e a prof.ª de inglês, Veronica.

139 Sub-Secretária de Educação.

140 Refere-se a uma possível transferência do aluno para a escola Gamma, que se encontra em bairro mais afastado da cidade, da comunidade do Morro Amarelo, onde Thomas reside, e há tráfico de drogas.

157

Antes, muda subitamente objeto de suas falas: - está falando da história do aluno e o pai que está preso, quando logo desvia para falar da agressividade do professor Augusto.

Duca: “- Globo Repórter: a família toda presa por tráfico.” Ágatha: “- Somos agredidos em nossa profissão...” Prof.º Jonas completa: “- Toda hora...” Ágatha: “- Como posso cobrar do aluno se não sou assim com ele? Falo do des- respeito por jogar as coisas do aluno para fora da sala. Onde está o ponto... Li- mite, respeito, postura...? - Respeito!? Não! Eles têm medo. Jaciara: “- E os alunos, o aceitam!? Ágatha: “ – Thomas Sawyer age de modo natural. É assim... a cultura, o bairro, fala palavrões com naturalidade. Duca: “-Mostrava o dedo para Telma.” Ágatha: “- A Secretária me tasca. Reclama das avaliações [nota] cinco141. Eu debati com a Secretária que não vou desmotivar o professor.” Jaciara: “- um aluno, Luís Fernando, pediu “visto para essa merda!”[a prova.]. “Toma essa merda para dar visto!”-, disse o aluno. Duca: “Não têm limites.” Jonas: “- Na Escola temos de ter limites. A família tá conturbada, os professo- res com os nervos à flor da pele. A família tá complicada, as pessoas querem colocar tudo na escola. [Fala de seu conflito com um pai de aluno]. Ágatha: “- A Secretária quer que você resolva o problema.” Jonas: “- Penso em procurar outra instância, a gente tá a Deus-dará.” Adriana: “- Lá em baixo tá difícil.”[refere-se à Secretaria de Educação] Duca: “- Você fala em ter postura, mas é muito relativo. Às vezes, tem de sair do salto para não infartar. Somos bons profissionais, mas temos de cuidar da sa- úde. Tá um descaso danado contra o professor. Se eles vão continuar assim, e as autoridades não fazem nada!” Jonas: “- Temos de ter cuidado, pois a corda sempre arrebenta para o mais fra- co. Um jornal sensacionalista põe o nome do professor: acaba sua vida. Se che- ga a um momento em que, se você não tem apoio dos amigos, da escola, você tá lascado.” Ágatha: “- Paula estava com o namorado na frente da escola. Este namorado está proibido de se aproximar dela, pois lhe deu uma coça. Entrou no ônibus, botou o uniforme como se tivesse assistido aula. A diretora subiu ao ônibus e falou que o namorado que a levaria para casa.” Duca: “- Caso familiar [seu]: Meu irmão não tem atitude. Minha sobrinha de 12 anos, - a Renatinha da Jurema -, tem relacionamento com pessoa envolvida com tráfico. Já foi preso. A família... fragmentada. Renata (OP): “-Não é família fragmentada; é sem atitude!” A Paula, agora com 14 anos, é sobrinha de Duca. Jaciara: “- Já viu a unha do Mathews? Precisa ir ao médico, está com a unha encravada.” Duca: “- Cristina teve Paula com 15 anos. Separou-se de meu irmão e casou com marido violento. É ‘cavalheiro’, bate nela e anda com ‘facção’.”[vinha pas- sando alguns integrantes do C. Tutelar.] Ela está apaixonada, cega. Ele não tem medo de nada. Ele vai acabar com ela, como o tráfico: - ou sai morto ou mutila- do!

141 Refere-se à nota mais alta atribuída a um servidor público no estágio probatório. 158

Quando o filho entra para o tráfico, para as drogas, os pais não têm saída: ‘- Eu vou namorar sim, e você vai ser avô logo! Disse ao Marquinho [seu irmão, e pai de Paula]: ‘- Agora você deixa ela namorar!?”. Retorna a diretora: “-Preciso fazer esse relatório, proteger a escola, a mim, à minha família... o professor... Uma coisa é o filho da lavadeira; outro é o do tra- ficante. E se o pai a apedrejar? Eu preciso que alguém me dê um foco, uma luz!

É proposta a divisão da turma do professor Augusto Cezar, que está muito cheia (com 30 alunos), e foi onde aconteceu o incidente do xingamento e da mochila. Na se- quência dos discursos, a prof.ª de inglês fala de alunos que “eram doentes na 1.ª A e 1.ª B: iriam perder a visão, havia falta de alimentação”. A diretora explica que estavam “com muita disritmia”. Jonas reclama: “- Não pode ser mais cuspe-e-giz, não pode mais bater nos filhos, não pode mais nada? Duca, por sua vez, comenta que já recebeu amea- ças verbais de alunos avisando que contatariam o Conselho Tutelar. Meus filhos e dos meus amigos nunca falariam deste modo, sobre o C. Tutelar. Beatrice (OP) já recebeu uma mãe, que disse: “-Ele me enfrenta.” Há, na pauta da RP, uma discussão sobre o uso do tipo de “avaliação (recuperação) paralela” ou “avaliação bimestral”. Os professores querem marcar uma reunião com Pipa para tirarem dúvidas sobre Educação Especial [inclusiva]. Duca conversa com Margarida (tutora que acompanha alunos “inclusos e especiais” nas classes): “- Não é que eu não queira; eu não sei fazer atividades de português para Luan, que é deficiente [com tipo paralisia cerebral e atraso neuropsicomotor grave]. É dito na RP que “não é responsabilidade do tutor fazer adap- tação”. Duca retruca: “- Mas a Margarida faz, é bom. Por que o aluno tem de aprender o que é proparoxítona? Jonas falou para Renata da carta de uma aluna falando em suici- dar-se. Os dois visitaram a família da aluna Flávia (901), que faz 15 anos no domingo. Pablo: “- Ai das rosas se não fossem os espinhos...” Decidi fazer uma atividade de dramatização com dois professores: Duca inter- pretou uma professora, e Jonas um aluno, em um diálogo fictício na sala de aula. Este imitou o aluno atravessando a porta da sala, na hora da entrada: “- o Horácio faz assim, entra chutando a lata-de-lixo.” Com o desenrolar da conversa professor-aluno, os outros professores que participaram da RP, ao redor da cena começavam a imitar as falas e agir como se fossem os outros alunos da sala imaginária. A seguir fala-se (1) num relatório a ser feito sobre o professor Augusto, e na e- xoneração recente do Secretário de Saúde e Assistência Social. Ágatha fala dos vários “ses” [condições] da Secretaria de Educação. A professora Verônica, de inglês, elogia a 159

escola, dizendo que é diferente do estado, “- onde todos querem te derrubar”. Jonas diz que “- lá em Japeri, a diretora e os colegas viram as costas quando há problema.” Perguntei à dir.ª adjunta sobre o que o C. Tutelar disse a respeito de Augusto. Ela respondeu que o CT irá acompanhar o “caso” visitando a família de Thomas. Uma aluna, Zelda Scott142, quer sair da escola. O caso Dennis: o pai de uma aluna quer tirá-la da escola.

Margarida: São vários alunos bagunceiros; Dennis está como bode expiató- rio!

Beatrice: São horrorosos! Em uma reunião com os pais do pré, uma mãe estava com uma varinha ao lado, balançando, [...] com a varinha na mão, sobre a mesa, mos- trando para disciplinar o filho. Patrick me mandou “à merda.” [da turma de Augusto] Juana, professora de Victor Rafael, diz que a mãe quer adaptar a prova [adaptação curricular = “inclusão”] porque ele tirou zero. Ágatha volta: “- A Secretária deu al- gumas orientações: a equipe tem de ter uma só opinião, enquanto Renata reforça a de- manda pela confecção do relatório sobre o caso Tom Sawyer – Augusto Cezar. Ágatha está preocupada com as notas 5 que deu a Augusto: - Disse, no relatório enviado à Se- cretaria após a tensão entre professor e aluno, da nota ter sido dada apenas por motiva- ção. “A Iracebeth (a Rainha Vermelha) quer junta médica!!!” Liguei [acabou de ligar, durante a RP] para Helioneida [supervisora educacional], que afirmou: “- o que a maio- ria da equipe decidir está bom.” E termina: “- Augusto Cezar não me engole.” (Diário de Campo, grifos meus) Conselho de Classe de 13 de julho de 2011 na Escola Alpha Professor Beavis pergunta se podem reduzir a nota para que o aluno possa fre- quentar as aulas de reforço. Diz que quer uma reunião com a O. P. Esta, por sua vez, responde que “sempre quis fazer isso”. Sente que há uma falha; falta isso: - ir mais às aulas, às salas...

Prof.º Beavis: “- É... Porque o seu trabalho é conosco, não é trabalho... [...]” O. P. Beatrice: “- Heloneida, supervisora, aponta para alterarmos o PPP [Plano Político Pedagógico].” Beavis: “- Precisamos da Beatrice, porque não temos tempos para alterar o PP...”

142 Zelda tem 17 anos, esteve grávida recentemente e ainda está no sexto ano. Há rumores de que assedia os alunos mais jovens da turma. A neurologista Hyde lhe receitou carbamazepina devido a crise convulsivas. 160

Dir.ª Ágatha Trunchbull: “- Os professores estão todos os dias, mas a Equipe está em apenas dois dias...” Prof.ª Constance: “- Alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem: - lista nove alunos. Prof.ª Helena: “-Não é preconceito, discriminação; é que a gente não tem quem nos oriente... Prof.ª Leda: “- Alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem: lista cin- co alunos. Ágatha: “- Os alunos já estão cansados do [método de alfabetização] BA-TA- NA! [a diretora diz se reportando indiretamente à professora Thaís, da turma de alfabetização.] Prof.ª Thaís: “- Também trabalho cruzadinha, caça-palavras, e outros!” [Diz, indignada com a fala da diretora.] Prof.ª Telma: “- Alunos que apresentam algum tipo de dificuldade: comporta- mento e psicomotor: - Christy Brown. Atividades: a estória do Pinóquio, onde trabalhei valores como desobediência e mentira. O resultado foi satisfatório. Prof.ª Luana: “- Alunos que apresentam dificuldades no processo ensino- aprendizagem. [Ela lista oito alunos.] Prof. Karina: Cita quatro alunos. Prof.ª Lois Lane (ensino infantil III): Dificuldades: comportamento e psicomo- tor: Michael – dificuldade no reconhecimento das letras F, H, J, L, N. Billy Jean – Tem dificuldade em relacionar o número à quantidade no que se refere aos numerais acima de 6 (seis). Dificuldades de aprendizagem: Marcus Rogério e Victor Hugo. Beavis: Temos dúvidas sobre adaptação curricular. Entram na sala duas Conselheiras Tutelares, que vieram participar do CC. Ágatha: “- O psicólogo pode também estar soluciando143...” Beavis: “- Tenho uma dúvida entre o reforço do NAEE e da escola; porque tem um estigma, um rótulo de que só aluno incluso144 vai para lá.” Pipa: “- O NAEE era só para deficiente, cadeirantes...” Prof.ª Helena: “- Dificuldades de aprendizagem. [Cita quatro alunos.] Pipa: “- NAEE: - É uma questão de sedução, também. Ana Caroline foi enca- minhada para o NAEE. Para encaminhar para lá, nós temos de ter certeza de en- caminhar para lá, de que não há mais nada a fazer! Não temos mais o que fazer mesmo....! Prof.º Felipe: “- Dificuldades...” Karina pergunta sobre um aluno que tem hidrocefalia. Diz que, quando o traz para a aula, às vezes chora. Pipa: “Deve ser feito um trabalho com os pais, quem sabe no próximo semes- tre...”

143 Nesta frase duplipensada da diretora, pensei que ela estaria a dizer, na expressão “soluciando”, que eu, como psicólogo deveria estar “solucionando” a questão das dificuldades dos alunos que deveriam ser encaminhados à escola especial. Solucionar os problemas, na opinão de Ágatha, seria encaminhar os alunos anormais para o NAEE; não encaminhar como o exigido pela escola, gerentes, professores, inte- grantes da equipe técnica, seria como “soluçar”, isto é, não cumprir as metas da escola-empresa.

144 Prof.º Beavis expressa uma compreensão comum entre muitos atores das escolas em estudo: a de que aluno incluso significa um enquadramento daqueles como problemas mais graves de saúde, com parali- sias cerebrais, deficiências físicas, neuropsicomotoras, entre outras deficiências e doenças graves que comprometem realmente o desempenho escolar (porque são doenças reais, não fabricadas pela escola), e os chamados “transtornos globais de desenvolvimento” como psicoses e autismos. A categoria també enquadra aqueles alunos que antes só frequentavam o NAEE, ou instituições como APAE, ou da Saúde, como o CAPS. 161

A tutora, Margarida: “- Seria possível uma terapia de grupo, com os pais!?” Prof.º Beavis: [ironicamente] “- É... O psicólogo e o assistente social poderi- am... Pipa: “- Antes de atender o filho devemos atender os pais. Vamos para a análise das turmas, senão vamos sair daqui à meia-noite.” Análise das turmas: Turma 501 Wendy Darling tem dificuldade na leitura. Quem tem dificuldade de leitura tem dificuldade em matemática. Jimmy Cooper tem dificuldade na interpretação. Kelvin: Pipa diz que a mãe investiga sobre suas dificuldades. Karina: “- A mãe disse que era um problema no cérebro, e que, quando ele fi- casse assim, tinha de tomar remédio para acelerar o cérebro.” Supervisora Escolar, Heloneida: “- A família é presente?” Conselheiras tutelares falam: “- Professor não pode tomar partido de um alu- no.” Margarida: “- E se um aluno chama a mãe de outro de prostituta!?” Conselho Tutelar: “- Essa questão de aluno agitado é de toda a Rede, não só aqui; é no Estado [refere-se às escolas estaduais fluminenses] também!” Pipa:”- Tenho um pouco de dúvida: em âmbito escolar, o que seria denúncia para o Conselho ou não? Vocês já fizeram alguma capacitação? Telma: “- o caso Dennis: a mãe e o pai de Laura recorreram ao C. Tutelar.” C. Tutelar: “- Quando há denúncia, começamos a infiltrar na família...” (Diá- rio de Campo, 13/07/2011; grifos meus)

Após as várias comunicações neste Conselho, Tom passa a ser objeto dos discur- sos profiláticos dos professores, coordenadora da equipe técnica, supervisora educacio- nal, OE, OP, e um convidado muito especial: - o Conselho Tutelar. Uma professora diz que Tom já trouxera certo dia de aula, uma chave-de-fenda a qual teria apontado a outro estudante da turma. Neste momento, alguns dos educadores presentes começam a contar as artimanhas e peripécias do menino, um “desajustado” aos espaços-e-tempos quadráticos da escola Alpha. Assim como as alunas Wendy Dar- ling (no primeiro capítulo/primeiro analisador) e Alice Pleasance Lidell (no terceiro capítulo/terceiro analisador), Tom era mais uma peça nas microbatalhas do jogo-de- xadrez vivo da escola dirigida pela Sr.ª Ágatha Trunchbull, por sua vez uma outra peça, mais um tijolo no muro que funcionava como um valete (uma carta marcada) serviçal, na hierarquia crescente, à (Sub)Rainha de Copas, e então à Rainha Vermelha; Tom Sawyer, na sua imaginação, poderia ser um pirata, mesmo nas brincadeiras mais sérias, como nos conta o seu amigo Huck Finn:

Brincamos de bandidos uma vez por outra, durante um mês; então eu me de- miti. Todos os rapazes fizeram o mesmo. Não tínhamos roubado pessoa al- guma, não havíamos matado ninguém, apenas tínhamos fingido. Costumá- vamos pular dos bosques e “atacar” condutores de porcos e mulheres em car- roças levando hortaliças para o mercado, mas nunca assaltávamos de verdade ninguém. Tom Sawyer chamava aos porcos “lingotes de ouro” a e aos nabos 162

“joias”, e depois íamos para a caverna e tagarelávamos sobre o tínhamos fei- to, e quantas pessoas havíamos matado e marcado. Mas eu não via a menor vantagem nisso. Certa vez Tom mandou um rapaz pela vila com um ramo a- ceso, que era o sinal combinado para a Quadrilha se reunir, e então disse que recebera informações secretas por intermédio dos seus espias de que, no dia seguinte, uma caravana completa de mercadores espanhóis e árabes ia acam- par na Covanca, com duzentos elefantes, seiscentos camelos e mais de mil mulas, todas carregadas com diamantes, e não tinham uma escolta nem de quatrocentos soldados, e que assim eles iriam ficar de emboscada, como ele lhe chamava, e matar todos os homens da caravana e roubar os tesouros. Dis- se que devíamos preparar as nossas pistolas e espadas, e aprontarmo-nos. Nunca fora capaz de assaltar nem saquear uma carroça de nabos, mas sempre mandava limpar em polir as espadas e pistolas para isso; mas como essas ar- mas eram só ripas e cabos de vassouras, a gente bem podia poli-las até ficar de língua de fora, que nunca conseguia fazê-las ficar mais brilhantes do que antes. (TWAIN, 2009, p. 41)

Neste encontro, medicina higiênica e criminologia se entrecruzam na educação. Em outro episódio a envolver Tom, este é retirado de sala e enviado à sala dos professo- res, onde estou eu, com Mary Jane (OE). Thomas nos tinha sido encaminhado pela pro- fessora por ter xingado os colegas durantes a aula, e assim se resumia seu relatório (ver- bal) de encaminhamento. No relatório (minoritário) de Thomas, os colegas o tinham chamado de “traficante do morro amarelo [nome do bairro onde Tom morava]” Chamei os outros alunos: um menino e duas meninas. A menina se queixou dizendo que Tom a chamou de “piranha”; num segundo relatório minoritário, Joe afirma que, sob sua or- dem, uma das meninas tinha feito o xingamento a Tom antes que ele falasse qualquer palavrão. Os alunos reclamavam de Tom Sawyer, às vezes até o colocavam como bode expiatório das suas traquinagens, das armações coletivas da turma, mas também o admi- ravam... Desconfiavam de suas mentiras, exageros e atitudes, muitas vezes o considera- vam um estorvo. Contudo embarcavam em suas aventuras, em sua imaginação criativa. E Huckleberry Finn continua seu relato:

[...] Não vi nenhuns diamantes, e disse-o a Tom Sawyer. Ele respondeu que, no entanto, havia montes deles no local; e disse que havia também árabes, e- lefantes, e outras coisas. Perguntei por que então eu não fora capaz de vê-los. Tom respondeu que se eu não fosse tão ignorante e tivesse lido um livro chamado Dom Quixote, poderia sabê-lo sem perguntar. Disse que tudo fora feito por encanto. Disse que havia centenas de soldados ali, e elefantes e te- souros, e por aí a fora, mas que nós tínhamos inimigos, que ele chamava de feiticeiros, e que estes haviam transformado toda a caravana em um simples convescote de crianças escolares, só por despeito. Eu disse então que o que nos restava a fazer era ir em perseguição dos feiticeiros. Tom Sawyer disse que eu era louco. [...] De maneira que acabei pensando que tudo aquilo era apenas mais uma das mentiras de Tom Sawyer. Imagino que ele acreditasse de verdade nos árabes e nos elefantes, mas comigo a coisa foi diferente. A- 163

quilo não passava mesmo de um convescote escolar. (TWAIN, 2009, p. 41- 43, passim; grifos do autor)

O C. Tutelar foi chamado a integrar (implicitamente, na prática, supervisionar) a “reunião” (CC) que, apesar de todas as falações anteriores, já parecia ter um propósito principal, que era retomar o relatório (sem-fim) Tom Sawyer. Soava como se o jovem estivesse sob julgamento. Os conselheiros entram em cena após Augusto Cezar ter sido afastado do trabalho, por 15 dias, e o Conselho de Processo Administrativo da Prefeitu- ra ter antes enviado um ofício à escola Alpha decretando a suspensão. A medida disci- plinar tinha a ver com o incidente do lançamento da mochila de Tom para fora da sala, como efeito de alguns palavrões enviados diretamente ao professor: - Tom mandou o professor tomar no $$#@!!!%¨¨¨*¨¨¨*&¨¨¨*. Thomas não tinha construído para si limi- tes, não aceitava correções, ordens, normas, e a Lei: não tinha o pai presente ou qual- quer outra figura de autoridade; tinha sido criado pela tia, e agora pelos avós; de outro modo, - com um visor panorâmico da escola e suas relações, a desfocar-se da individua- lização das questões no corpo (in)disciplinado de Tom -, onde estão os seus limites ins- titucionais? Quais os limites para as compulsivas práticas de medicalização, de judicia- lização e dos clientelismos empresarias instituídos com a comunidade? Haveria algum tipo de encaminhamento, ou varredura, para estes não limites institucionais? Os professores presentes se queixam sobre não ter sido justo que apenas o prof.º Augusto tivesse sido punido no conflito. Assim, perguntam ao C. Tutelar – dizendo que desconhecem algumas de suas atribuições e não sabem como e quando poderia ser acio- nado pela escola, e em que circunstâncias poderia atuar dentro da escola: “- caso um aluno agrida um professor, o Conselho Tutelar poderia ser avisado? Poderíamos enca- minhá-lo ao Conselho!?” O Conselho Tutelar responde, então, que este seria o caso de solicitarmos um diagnóstico do aluno à psicóloga clínica que o atende na Policlínica, Juliette. Fixam aí a necessidade de um diagnóstico psicológico ao comportamento (in)disciplinar e às agres- sividade e periculosidade consideradas naturais ou inerentes ao corpo (patologizado) do pré-adolescente:

[...] Os dispositivos de inclusão escolar que têm como objetivo a inserção de alunos do ensino especial na escola regular também têm se constituído como um sistema de aprimoramento de controle, mediante a utilização de ferra- mentas que efetuam a normalização do que é percebido como diferença. Inte- grar tem significado reduzir diferenças, disponibilizando meios de aproxima- ção à boa forma. Novas parcerias aproximam instituições da rede pública de 164

ensino, como é o caso do conselho tutelar, ampliando as formas de controle. E é fundamental evidenciar que o processo de judicialização da sociedade chega à escola como alternativa para velhos e novos problemas, prometendo aos educadores o apoio para o cumprimento da estressante jornada solitária de trabalho. (HECKERT & ROCHA, 2012, p. 9-10)

2. 4 A escola fábrica-do-medo: Tom Sawyer e o Duplo médico-criminológico

Figura 4 - (© Andy Singer)

No último CC, e último encontro reportado neste capítulo, há a presença de duas integrantes do Conselho Tutelar de Antares145. Após um conflito entre o professor Au-

145 Este era o primeiro grupo de conselheiros tutelares em Antares, tendo sido realizada a primeira eleição para o C. T. em 2009. Havia relatos de que as denúncias, - hoje feitas e endereçadas ao C. T. -, eram antes feitas diretamente à Delegacia de Polícia ou ao Fórum local (Ministério Público e Comissariado da Infância e Adolescência), onde os conflitos familiares ou entre família e escola eram administrados. 165

gusto Cezar e o Aluno Thomas Sawyer, em sala de aula, professores indignaram-se com a punição apenas direcionada ao educador, que lecionava em uma turma com trinta alu- nos, sabendo que Tom, como medida de segurança, apenas teria sido transferido para uma escola (Gamma) mais afastada da área central da cidade, uma escola com menos estudantes por classe. Enfim, uma escola “mais tranquila”. No fluxo abrupto e arbitrário da transferência de Tom, Sr. ª Mirana [uma aliada], a diretora da escola Gamma, preocupada, dizia que a Secretária Iracebeth (a Rainha Vermelha) e a Sub-Secretária (Rainha de Copas) tinham a sua unidade educacional co- mo um tipo de “instituição de reabilitação em Saúde”. Quase sempre lhe eram enviados aqueles alunos ou profissionais considerados mais “problemáticos”, pois que envolvidos em incidentes de conflito, enfim, situações de risco e perigo social que precisavam ser aplacadas, silenciadas, governadas pelo go- verno oficial de Antares. Educadores e estudantes que “davam problema na escola” e- ram transferidos, segundo as normas de controle de produção na escola-empresa. O con- trole, neste caso, é especificamente o dos riscos políticos da notoriedade dos conflitos que envolvessem as comunidades clientes em potencial no mercado consumidor eleito- ral de Antares. Clara estava a existência de um movimento de transferência de personagens mais questionadores, incômodos, que perturbassem a ordem e representassem risco. Eram retirados de cena, do jogo (de xadrez) mais árduo das maiores escolas, Alpha e Beta. Mais tarde, o prof.º Augusto seria transferido para a escola Beta, para a classe de alfabetização.

2.4.1. A escola, a cidadela do caos e seus manuais de fabricação do medo em nós

O que os traumas no histórico familiar-escolar do aluno Tom Sawyer, - que nos parecem falar pelos outros atores silenciados (ou estes estariam a não-falar pelo aluno) - poderiam nos dizer das tramas sócio-políticas da escola e da cidade? O que se mantém

Não obstante o MP e o Comissariado serem instituições independentes ao Fórum, era um costume o uso do Fórum para encaminhamentos de resolução de conflitos intrafamiliares e escola-família, a exemplo, era um hábito o uso de expressão “colocar a família/a escola no Fórum”, no sentido de processar judicialmente, judicializar os conflitos na cidade. 166

tão insuportável, e ameaçador em potencial, de se dizer e pensar, a ponto de que a pro- dução compulsiva dos relatórios pré-crime sobres os alunos dominem a cena? Heckert & Rocha (2012, p. 11) nos anunciam algumas pistas:

[...] Temas como indisciplina, bullying e risco social tomam o centro da cena dos debates entres profissionais da educação no chão da escola, obscurecendo as questões relativas aos processos de formação, de trabalho e saúde dos edu- cadores, financiamento da educação, modos de gestão da escola, dentre ou- tras questões. [...] tais tensionamentos constituem-se analisadores das artes de governar que têm tecido os processos de formação e gestão da/na escola, en- tendendo que o contemporâneo nos convoca tanto à análise dos novos peri- gos como aos exercícios éticos. [...] (HECKERT & ROCHA, 2012, p. 11)

Antes de tudo, a biopolítica do medo é fabricada, e como um segundo passo al- gorítmico (bem previsto e calculado), instrumentos técnicos de prevenção dos riscos são vendidos pela mass-mídia. Vasconcellos (1997)146 refere-se ao neoliberalismo brasileiro como um “vídeo-capital financeiro” onde “o limite do desvio é a anomia, a ruptura da coesão ‘pactada’ ”, integrada. Narrativas do medo são construídas cotidianamente pelas grandes empresas dos meios de comunicação para justificar o controle social e político da população da cida- de. Batista (2009) nos aponta que:

Os discursos do medo construíram o suporte fundamental da arquitetura polí- tica da longa conjuntura denominada precariamente de neoliberalismo. Seus efeitos devastadores são hoje reconhecidos porque atingiram o coração do império. O ciclo latinoamericano atingiu-nos um pouco antes, explodindo as precárias instituições dos nossos Estados previdenciários, atirando milhões de camponeses e trabalhadores à própria sorte, criminalizados, barbarizados, en- carcerados, exterminados. Aquele modelo econômico, político e cultural pre- cisava de ondas intensas de criminalização. É Massimo Pavarini quem sem- pre nos lembra que para entender a questão criminal temos que compreender a demanda política por ordem. O medo é a arma mais eficaz na produção de demandas subjetivas autoritárias. É só rever o Ovo da Serpente, de Bergman, ou O Conformista, do Bertolucci. [...] (BATISTA, 2009, p. 2; gri- fos meus (em negrito)

Na transição da ditadura para a “democracia” (1978-1988), com o desloca- mento do inimigo interno para o criminoso comum, com o auxílio luxuoso da mídia, permitiu-se que se mantivesse intacta a estrutura de controle social, com mais e mais investimentos na “luta contra o crime”. E, o que é pior, com as campanhas maciças de pânico social, permitiu-se um avanço sem prece- dentes na internalização do autoritarismo. Podemos afirmar, sem medo de er- rar, que a ideologia do extermínio é hoje muito mais massiva e introjetada do que nos anos da ditadura. Os “intervalos democráticos” da nossa história do

146 VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O príncipe da moeda. Rio de Janeiro, RJ: Ed. Espaço e Tem- po, 1997.

167

presente revelam os artifícios de manutenção de uma ordem desigual e hie- rarquizada. (BATISTA, 2009, p. 6)147

A socióloga Vera Malaguti Batista segue denunciando a produção de um esque- ma internacional que tem afixado as políticas de Segurança Pública às de Segurança Nacional (na unificação em uma biopolítica de Segurança Interna - Homeland Security), e na esteira a produção de demandas de cada vez mais justificativas, inclusive das bio- lógico-criminais para a fabricação dos “criminosos natos”, para a expansão do controle nos novos tempos, através da eclosão de um “neolombrosianismo” atualizado por meio das neurociências:

[...] Os discursos do medo e a indústria do controle do crime, associados ao complexo industrial bélico, produziram uma subjetividade obsidional, de for- taleza, que gerou efeitos devastadores na nossa periferia. A luta contra o cri- me e, em especial, a política criminal de drogas (introduzida no Brasil no au- ge da ditadura) renovaram a ideia da América Latina como uma gigantesca instituição de sequestro. [...] Os novos tempos produzem níveis de encarce- ramento nunca vistos na história da humanidade. O disciplinamento do tempo livre, da concorrência desumana e da conflitividade social despolitizada vai requerer novos argumentos “científicos”: surge o neo-lombrosianismo deter- minista com as neurociências e as descobertas de novos “criminosos natos”. É importante ressaltar que os negócios do crime e da criminalidade vão fazer parte da “nova economia”: as ações das empresas que exploram as penitenci- árias privadas integram o índice Nasdaq. A indústria do crime, a que se refe- riu Nils Christie, é um dos setores mais dinâmicos do capitalismo de barbárie. (BATISTA, 2009, passim; grifos do autor)

Na RP de 17.06.2011, as discussões focadas na (in)disciplina e agressividade dos alunos, e nas dificuldades expostas pelos professores em educar os alunos (in)disciplinados nos levam a outros discursos, assim como na transferência explícita de responsabilidade e culpabilização às famílias pela comportamento (in)disciplinado dos filhos na escola, nos levam a outras questões sociais e políticas afetas à escola Alpha. Quando o objetivo do encontro seria falar das relações da escola, sobre Educa- ção, em instantes, os professores e diretora associam a (in)disciplina e agressividade dos alunos à questão da criminalidade. Fala-se da fabricação do medo, do medo que sentem, do medo de falharem como pais e educadores e serem punidos, confrontando neste mo- mento os papéis duplos que alguns desempenham como pais e professores, e o choque ao se depararem com o comportamento de alguns alunos.

147 BATISTA, Vera Malaguti de Souza Weglinski (2009). O medo em nós. Texto preparado para ser apresentado na Reunião da Associação de Estudos Latino-Americanos (LASA) de 2009, no Rio de Janeiro, Brasil, de 11 a 14 de junho de 2009. Disponível em: Acesso em: 20 fev 2013. 168

Relacionam a (in)disciplina na escola ao medo que sentem de serem culpabiliza- dos pelo fracasso dos alunos, e assim serem também desaprovados e rotulados como fracassados. Menciona-se a questão do tráfico de drogas, na cidade e na escola. E, entre o medo e a (in)segurança, temos novos dispositivos de controle e segurança. Na Reuni- ão Pedagógica de 29/03/2011, Dir.ª Ágatha diz, em meio a técnicos e professores, que vai às bocas-de-fumo com o Conselho Tutelar, porque eles [os conselheiros] têm medo. [...] Foi entregar cesta-básica a aluno... A diretora intercala seu discurso com outro informe: “- Os alunos faltosos e atra- sados já foram encaminhados para o C. Tutelar e M.P.!” E continua: “- Thomas [Saw- yer] - filho de Thomas, apontou na casa onde o pai guarda as armas, o fuminho...” Du- rante visita domiciliar, uma conselheira tutelar descobriu que o pai de Tom tinha estu- prado e matado uma parente sua (idosa).” Ágatha, ao destacar que o Tom tinha o mes- mo nome do pai, intentava exclamar que o que há mesmo ali, no corpo agitado do me- nino, é a questão da criminalidade que é um problema de família, uma imputação a uma genética familiar, como se fosse possível que puséssemos um microscópio e ver os pe- quenos cromossomos bem agitados. O comportamento infrator de Tom estaria inscrito nos laços de sangue com sua família, com um pai prisioneiro. Sobre o medo, a infantilização das tensões pelos discursos gerais na escola e a junção médico-judiciária para o exame (disciplinar) e o controle (articulação), temos que:

Esse caráter propriamente grotesco, propriamente ubuesco, do discurso penal, pode ser explicado precisamente, em sua existência e em sua manutenção, a partir desse núcleo teórico constituído pela parelha perversão-perigo. De fato, vocês veem que a junção do médico com judiciário, que é possibilitada pelo exame médico-legal, essa função do médico e do judiciário só se efetua gra- ças à reativação dessas categorias, que vou chamar de categorias elementares da moralidade, que vêm se distribuir em torno da noção de perversidade e que são, por exemplo, as categorias de "orgulho", de "obstinação", de "mal- dade", etc. Em outras palavras, a junção do médico com o judiciário implica e só pode ser efetuada pela reativação de um discurso essencialmente parental- pueril, parental-infantil, que é o discurso dos pais com os filhos, que é o dis- curso da moralização mesma da criança.” “Discurso infantil, ou antes, discur- so essencialmente dirigido às crianças, discurso essencialmente em forma de bê-a-bá. E, de outro lado, é o discurso que não apenas se organiza em torno do campo de perversidade, mas igualmente em torno do problema do perigo social: isto é, ele será também o discurso do medo, um discurso que teria por função detectar o perigo e opor-se a ele.” (FOUCAULT, 2001, p. 44)148

148 FOUCAULT, M. Os anormais. (curso no Collège de France- 1974-1975) São Paulo, Ed, Martins Fontes, 1.ª Ed., 2001.

169

Diferentemente do aluno Clóvis, descrito por Machado (2004) em Crianças de Classe Especial, que tinha medo, através do CC de 13.07.2011 na Escola Alpha vimos a produção coletiva do medo entre os professores e outros trabalhadores da escola, medo do menino Thomas, e do que poderia vir a partir de suas truculências, medo das suas próprias ações diretas na relação (ensino) com este aluno (in)disciplinado. Os educado- res já estavam treinados quanto às consequências de punição, das prováveis queixas dos pais, da avaliação ruim possível no estágio probatório, e do medo do (in)sucesso, por- que também já estudaram. Numa cena inversa à de Tom Sawyer, do qual se sentia medo, Clóvis era medro- so: Clóvis acertara Sandra no olho com uma borracha durante a aula. Clóvis tem 11 anos, não para quieto, é do tipo que sabe bater ou apanhar. Sandra tem 9 anos, é loira, distraída, com jeitão de bebê. Ela foi levada para o Posto de Sa- úde perto da Escola. Clóvis está com medo de ser expulso e de apanhar do pai. No grupo, Clóvis aterroriza todo mundo. Marivaldo, com 10 anos, é um medroso que se mostra valente. Marivaldo tem medo de Clóvis e de Genival- do. (MACHADO, 2004, p. 5)

Machado (2004) continua, e nos ensina o que é problematizar a partir da cons- trução naturalizada de um tipo de medo na escola:

Buscar as causa do medo ou suas razões é tratar o medo como um objeto e, portanto, naturalizá-lo como imutável: “o” medo. O medo não é um objeto, é afeto que problematiza. O que é problematizar? Eu diria que problematizar é a busca de efeitos, é multiplicar Clóvis, não deixá-lo aprisionada a uma só maneira de ser. Não interessa somente o porquê do medo ou o que o medo significa, mas, sim, também, como e em qual território ele funciona. [...] Ter medo e brigar é diferente de ter medo e chorar. Aliás, não existem “o” medo, nem “a” loucura, nem “a” intervenção. Problematizar seria, então, libertar o desejo de qualquer categoria, como, por exemplo, da categoria de se esse de- sejo deveria ou não existir. É deixá-lo existir em paz, é substituir o “porquê” pelo “e”. [...] Problematizar, libertar o desejo de uma relação que aprisiona e que impede outros acontecimentos. [...] (MACHADO, 2004, p. 68-69)

Sendo assim, problematizar Tom Sawyer é livrar-nos dos antolhos e examinar o território em que se produz a sua individualização, em meio a quais tensões ético- políticas se produz o modo de ser único do aluno infrator, agressivo, prisioneiro. Se- gundo Deleuze (1987), é preciso “aplicar a prova do verdadeiro e falso aos problemas mesmos, denunciar os falsos problemas e reconciliar verdades e criação no nível dos problemas” (DELEUZE, 1987, p.11) Para o filósofo Bergson, os falsos problemas sub- dividem-se na tipologia dos inexistentes e dos mal-postulados. Na análise do caso indi- vidualizado de Tom, formular problema inexistente seria perguntar por que acontece 170

isso e não aquilo, com dois futuros bem previstos que embotam a possibilidade do pen- sar além das individualizações dos problemas. Esta formulação porta “a ilusão de que o possível existe antes do existente, o não-ser antes do ser, como se o ser viesse a encher o vazio, como se o real viesse a realizar uma possibilidade primordial.” (DELEUZE, 1987, p. 15) De outro modo, inventar um problema mal-formulado seria identificar arbi- trariamente coisas que diferem de natureza. Vemos tão somente variações de graus e intensidades e pensamos em termos de mais-ou-menos quando mimetizamos e equali- zamos singularidades, seres que são diferentes em sua existência. Seria a constituição de um falso problema o seguinte encaminhamento: - Tom Sawyer seria ou não um aluno infrator das leis na escola porque seu pai é um criminoso? A infração das leis, a crimi- nalidade e a história do pai têm ressonâncias aos traumas históricos e crônicos de Tom; só que o estudante existe em suas singularidades não ditas. As versões que sobressaem ditam a criminalidade, o tráfico de drogas, o medo de monstruosidades humanas como a violência non sense através do seu corpo. Mais ainda, a infração e periculosidade em potencial de Tom é dobrada em uma tonicidade orgânico-biológica e médica, porque encaminhado pela escola não só ao Conselho Tutelar, mas ao setor de psiquiatria tam- bém. Thomas Sawyer não tem responsabilidade jurídica, ele é teleguiado pelo DNA de seu pai (pela herança genético-biológica paterna) e de dentro do presídio, como disse a diretora Ágatha. O responsável é o seu pai, e quem consolida tal situação são os atos médicos nosográficos e de encaminhamentos pelos atores da escola. É a psiquiatria co- mo ajuizadora de condutas e encaminhamentos quem libera a agressividade e a crimina- lidade em Tom de qualquer sentido possível. Sua disciplinarização (os atos médicos feitos pelos médicos) e o controle assistencialista (executado pelos técnicos em geral, trabalhadores sociais, professores, na expansão das redes intersetoriais da cidade, e da ética medicalizante nas sociedades), acoplados, fundam e refundam desde a criação do duplo médico-criminológico as práticas ético-históricas de normalização. Considerem-se os três domínios que constituem a anomalia, a saber: (1) o mons- tro humano, (2) o indivíduo a ser corrigido e (3) a criança masturbadora, e em específi- co as relações alicerçadas entre este terceiro domínio e as práticas e técnicas de pedago- gia do século XVIII, como descritos por Foucault (2001), e veremos que a imagem de Tom como um monstro infrator e ameaçador (acoplada ao fantasma da criança mastur- badora) ao olhar normalizador de escola produz um duplo registro em que a infração da leis (ou a especificidade da infração às normalizações) é incorporada em sua existência mesma (de Thomas). 171

Sendo assim, não nos importa aqui o efeito Tom Sawyer por si só, e as suas su- postas razões de ser imputadas à desfiliação de um pai prisioneiro, mas como libertá-lo de uma só maneira de ser fora-da-lei, como produção social em negativo de um indiví- duo na escola, uma máquina-de-aprisionamento que aí se coaduna e acopla à máquina- de-fabricação do medo entre os professores. Um efeito colateral é o aprisionamento para todos nas grades bem articuladas da escola. Ele é “extrapiramidal” porque se per- cebe pelos movimentos e forças que extravasam a ordem, mesmo que em condição pa- radoxal, pelas tensões entre os corpos, pelos não ditos institucionais da interação entre os dois remédios institucionais: a máquina de aprisionamento das tensões no corpo e- xaminado e aí articulado, a princípio como efeito interno, e a máquina de fabricação do medo que requer atravessamentos de fora da escola. Há, decerto, uma identificação (u- ma colagem) produzida entre o aluno Tom, depositário escolhido das ansiedades gerais individualizantes: e (1) os sentimentos de terror e persecutoriedade com relações à cri- minalidade e violência na sociedade, e (2) as punições avaliativas e relações-de-ameaça- e-desconfiança produzidas no ambiente de trabalho, tal como uma totalização entre in- divíduo e sociedade que interagem. O aluno é visto como uma causa em si mesmo, e não como efeito do percurso de dentro e de fora da escola, das linhas de força sócio- institucionais. Tom Sawyer é a válvula de escape para os problemas de um território mais complexo de relações políticas na escola. Em seu corpo médico-judicializado e eivado por periculosidades (“corpo em pedaços médico-legais”), opera uma bifurcação do medo aos riscos reais de violência, criminalidade e (in)segurança em sociedade, as- sim como o medo das retaliações, desqualificações e culpabilizações no trabalho dos educadores.

2.4.2. Máquinas escolares de detecção dos maus desejos (ou más intenções)

Chamo de máquinas escolares de detecção às acoplagens hierárquicas entre os trabalhadores do ensino e suas ações, poderes e técnicas que se encaixam num jogo de cartas marcadas nas escolas que estudo. São no mínimo três as suas técnicas: - a tria- gem, o diagnóstico nosológico ou nosológico-criminal e os encaminhamentos internos e/ou externos ao estabelecimento de ensino. Aqui a máquina de detecção atua na previ- são e prevenção de futuras fraudes. A educação é um conjunto de técnicas e tecnologias 172

pré-crime bem previdente nas triagens de atributos futuros, qual sejam: as intenções de cometer infrações, fraudes, e crimes nas sociedades de controle. No que os remete a uma genealogia do exame médico-criminológico, Foucault, em Os Anormais, põe em questão “[...] quais são os objetos que o exame psiquiátrico faz surgir, que ele cola no delito e de que constitui o dublê ou o duplo?” (FOUCAULT, 2001, p.20)149 Em seguida, argumenta sobre qual função teria um conjunto de noções nosográ- ficas, tal como os vários tipos de diagnósticos produzidos nas escolas de Antares, e diri- gidos em geral ao psicólogo. Em primeiro lugar, “repetir tautologicamente a infração para inscrevê-la e constituí-la como traço individual”, o que significa que as técnicas de exame permitem uma passagem do ato à conduta, e uma subsequente do delito à manei- ra de ser, e de “fazer a maneira de ser se mostrar como não sendo outra coisa que o pró- prio delito, mas, de certo modo, no estado de generalidade na conduta do próprio indi- víduo” (FOUCAULT, 2001, p. 20). Uma segunda função dessas séries de noções diag- nósticas seria um deslocamento do nível de realidade da infração, sabendo-se que as condutas desordeiras ou desadaptadas à normalidade esperada nas escolas não infringem propriamente a Lei, e não há medidas legais diretas para o desajuste através de (1) su- postos distúrbios congênitos da não-aprendizagem, como o “TDAH” de Wendy (Cf. capítulo um), (2) os comportamentos (in)disciplinados e violentos de Thomas, e (3) as psicoses “autísticas” como a de Alice (Cf. capítulo três). As três condutas desadaptati- vas foram psiquiatrizadas. Wendy e Alice são encaminhadas a um estabelecimento es- pecial (NAEE) dado o foco na aprendizagem e na possibilidade associada de distúrbios congênitos, neurológicos e psiquiátricos; Thomas e Alice são encaminhados, por sua vez, em sua agressividade, ao uso de medicamentos psiquiátricos para o controle de suas impulsividades emocionais; Tom não é encaminhado ao NAEE porque seus epi- sódios recorrentes de violência (in)disciplinar não são associados diretamente à questão da loucura nem à não-aprendizagem, mas à infração e à pré-criminalidade; assim, é des- tinado às atenções pelo Conselho Tutelar, pois seu pai é um presidiário e, nesta direção de julgamentos, a família deve ser responsabilizada. Segundo Foucault (2001), estes enquadramentos “são qualificações morais [...] São também regras éticas”. (FOU- CAULT, 2001, p.20)

149 FOUCAULT, Michel (2001). Os anormais : curso no Collège de France (1974-1975) ; tradução: Eduardo Brandão. 1.ª edição - São Paulo: Martin Fontes. (Coleção Tópicos) 173

Como o exame psiquiátrico permitiria a constituição de um duplo psicológico- ético do delito? Foi preciso, desde o século XIX, inserir a infração e a ilegalidade na lógica ou no movimento do desejo através das técnicas de exame psiquiátrico e médico-legais. O exame psiquiátrico minucioso pode mostrar falhas, contradições e ambiguidades que comprovariam a inscrição do sujeito na forma do desejo. O duplo psicológico-ético é então uma “psicolagem” da prática infratora, isto é, do crime ao desejo interior de co- metê-lo. É necessário que se cole a práxis às paixões para consolidar mesmo a indivi- dualidade do crime. A pré-condição de que o desejo do criminoso seja fundamentalmente mau é “a pertinência fundamental da lógica do desejo à transgressão da lei.” 150 (FOUCAULT, 2001, p. 25-26)

[...] deslegalizar a infração tal como é formulada pelo código, para fazer apa- recer por trás dela seu duplo, que com ela se parece como um irmão, ou uma irmã, não sei, e que faz dela não mais, justamente, uma infração no sentido legal do termo, mas uma irregularidade em relação a certo número de regras que podem ser fisiológicas, psicológicas, morais, etc. (FOUCAULT, 2001, p.21)

O caráter pré-crime das condutas psiquiátricas se forja na medida em que o peri- go e a perversão da ordem se unificam no núcleo essencial-teórico do exame médico- legal:

[...] a junção do médico com o judiciário implica e só pode ser efetuada pela reativação de um discurso essencialmente parental-pueril, parental-infantil, que é o discurso dos pais com os filhos, que é o discurso da moralização mesma criança. Discurso infantil, ou antes, discurso essencialmente dirigido às crianças, discurso necessariamente em forma de bê-a-bá. E, de outro lado, é o discurso que não apenas se organiza em torno do campo da perversidade, mas igualmente em torno do problema do perigo social: isto é, ele será tam- bém o discurso do medo, um discurso que terá por função detectar o perigo e opor-se a ele. (FOUCAULT, 2011, p. 44)

O desejo do crime, ou a má-intenção (malintent) é sempre o indicador correlato de uma falha, de uma ruptura, de uma fraqueza, de um desvio, e de uma incapacidade do sujeito Tom Sawyer. Após a configuração histórica dos três papéis do exame psiqui- átrico: da dobra do delito com a criminalidade, da dobra do autor da infração com o sujeito delinquente, e da especialização do médico em um médico-juiz, temos o nasci-

150 Excerto original de um manuscrito de exame psiquiátrico-criminológico, ou médico-legal, estudado por Michel Foucault e citado em os Anormais. 174

mento de um poder para além da ordem médica e o poder Judiciário: o poder de norma- lização, que se posiciona apoiado em tecnologias e saberes específicos de readaptação, reinserção e correção das condutas.

2.4.3 Tecnologia de Triagem de Atributos Futuros (FAST), (in)disciplina e violên- cia na escola e na cidade

TV CRIMES […] Jack is nimble, Jack is quick Pick your pocket, turn a trick Slow and steady, he's got time To commit another TV crime TV crime

One day in the life of the lonely Back again on the round about What do they need Somebody to love

Yeah

One night in the life of the lonely Another miracle on the screen What did they see Somebody to love again

A supermarket of salvation Take a look inside the store Shop around and find forgiveness for yourself But he gives more

Holy father, holy ghost Who's the one who hurts you most Rock the cradle when you cry Scream another lullaby

Jack be nimble, Jack be slick Take the money, get out quick Slow and steady, so much time To commit another TV Crime, TV Crime

TV Crimes, Black Sabbath Álbum: Dehumanizer (1992) Canta: Ronnie James Dio

175

Em setembro de 2008, engendra-se um tipo de dispositivo tecnológico para pre- dição de crimes futuros, que começa a ser testado em aeroportos, e que está para ser testado e utilizado também em territórios abertos. No filme Minority Report, John An- derton sai em fuga quando sua identidade é reconhecida pelo rastreamento da sua íris por diversas telas expostas ao ar livre, como em um shopping por onde passa.

Irrompem notícias durante a última semana de setembro de 2008 de que o Departamento de Segurança Interna [USA] começou a testar um novo dispo- sitivo para leitura da mente. 1 Segundo o sítio eletrônico do Departamento, o Diretório de Ciência e Tecnologia para Fatores Humanos tem trabalhado na Tecnologia de Triagem de Atributos Futuros (FAST). A Segurança Interna define a FAST como uma iniciativa para desenvolver produtos inovadores, tecnologias não invasivas para tele-rastrear 151 pessoas nos postos de controle de segurança. A FAST está fundamentada em pesquisas sobre comportamen- to humano e psicofisiologia, com foco em novos avanços em técnicas de tria- gem comportamentais/ centradas em humanos. O objetivo é um conjunto móvel prototípico (FAST M2) que seria usado para aumentar a exatidão e va- lidade da identificação de pessoas com má-intenção (a intenção ou desejo de causar danos). (USA TODAY, 18/09/2008; tradução livre minha) 152

Joëlle Anne Moreno, em The Future of Neuroimaged Lie Detection and the Law153 (2009) nos antecipa sobre os usos já em teste das Neurociências em amplificação para outros campos, com a formação das suas subdivisões aplicadas em “neuropolítica” e “neuromarketing”, coadunadas a estratégias de segurança a céu aberto:

[...] Um terceiro estudo em neuropolítica, amplamente lido (e amplamente criticado) da U.C.L.A. informou que varreduras [scans] do cérebro de indiví- duos que haviam mostrado imagens dos candidatos presidenciais ou as pala- vras "democrata", "Republicano" e "Independente" revelaram atividade neu- ral a qual se correlacionava com emoções que incluem ansiedade, desgosto, ambivalência, e empatia. Com a eleição a apenas alguns dias de distância, e a rápida temporada de férias aproximando-se, esta pesquisa neuropolítica foi substituída na corrente principal da mídia com ainda mais recentes esforços de "neuromarketing" para usar a EEGs para aferir as preferências de compra dos compradores. (MORENO, 2009, p. 721; tradução livre minha)

Alguns jornais lançam manchetes sobre o dispositivo FAST, como:

151 Tradução livre minha para o verbo-conceito “screen”, considerando-o no contexto de utilização técnica do FAST. 152 Thomas Frank, Anxiety Detecting Machines Could Spot Terrorists, USA TODAY, Sept. 18, 2008; Allison Barrie, Homeland Security Detects Terrorist Threats by Reading Your Mind, Fox News.com, Sept. 23, 2008. Disponível em: . Acesso em: 28 jan 2013. 153 Moreno, Joëlle Anne (2009). The Future of Neuroimaged Lie Detection and the Law. Akron Law Review, Vol. 42, p. 717-734; Florida International University Legal Studies Research Paper No. 09-06. Disponível em SSRN (Social Science Research Network): < http://ssrn.com/abstract=1440928 > Acesso em: 29 jan 2013. Também disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1440928. Acesso em: 29 jan 2013.

176

“US crime predicting technology testes draw Minority Report comparisons” (THE TELEGRAPH, 10/10/2011), “Airport security: intent to deceive?” (NATURE, 26/05/2010), “Minority Report-style advertising billboards to target consumers” (THE TE- LEGRAPH, 01/08/2010), onde o primeiro parágrafo da matéria adverte:

Painéis publicitários semelhantes aos vistos no filme Minority Report, que pode reconhecer os transeuntes, orientá-las com anúncios personalizados e até mesmo usar os seus nomes, estão sendo desenvolvidos por engenheiros de computação. (THE TELEGRAPH, 01/08/2010; tradução livre minha)

“Terrorist ‘pre-crime’ detector field tested in United States – Screening system aims to pinpoint passengers with malicious intentions” (NATURE, 27/05/2011). O título desta publica- ção da revista Nature, de 27 de maio de 2011, expunha um “campo detector pré-crime de terro- ristas testado nos Estados Unidos”. O subtítulo apontava que o “sistema de triagem tem como objetivo identificar os passageiros com intenções maliciosas”. O novo programa de segurança do US Department of Homeland Security (DHS) foi projetado para detectar pessoas que estão pretendendo cometer um crime ou ato terrorista: um ato disruptivo (disruptive act) ou conduta desordeira. A tática teceu comparações com o conceito de ficção-científica de “pré-crime”, popularizado pelo filme Minority Report, no qual serviços de segurança podem detectar a intenção de alguém cometer um crime. De modo diferente do sistema no filme, o FAST (em português, poderíamos arriscar a sigla TTAF – Tecnologia de Triagem de Atributos Futuros) não conta com a maquinaria do trio de humanos mutantes que podem enxergar o futuro. Da ficção ao fato, o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos vem testando um equipamento para a previsão das possibilidades futuras de realização de crimes através da medição de padrões psicofisiológicos nos movimentos corporais. O sistema pré-crime mensura e controla alterações nos movimentos do corpo de uma pes- soa. Opera através do rastreamento à distância do tom da voz e do ritmo do seu discurso com o uso de sensores e câmeras. A probabilidade de um indivíduo vir a cometer um crime também será inferida através do monitoramento dos padrões de respiração, mo- vimentos oculares, taxa de intermitência (blink rate – medição dos padrões do piscar dos olhos) e alterações no calor do corpo. 177

Frank, Menasco & O´Sullivan (2008)154 referem-se à “resposta Pinóquio”, um tipo de comportamento ou padrão de comportamentos universais que, em todas as pessoas, e em todas as situações, seria específico para a dissimulação ou fraude (deception155). Segundo estes auto- res, todos os comportamentos identificados e examinados por pesquisadores até o momento podem ocorrer por razões não relacionadas com a dissimulação. Expõem que, de um modo ge- ral, a pesquisa sobre a detecção de mentiras a partir do comportamento sugere que duas amplas famílias de pistas comportamentais são prováveis de ocorrer quando alguém está mentindo: pistas sobre a memória do mentiroso e o pensamento sobre o que ele está dizendo (pistas cogni- tivas), e pistas sobre os sentimentos do mentiroso e os sentimentos sobre a dissimulação (decep- tion) (pistas emocionais).

What interests the scientist, as well as society at large, is (i) are there clues perceptible to the unaided eye that can reliably discriminate between liars and truth tellers; (ii) do these clues consistently predict deception across time, types of lies, different situations, and cultures?; and if (i) and (ii) are true, then (iii) How well can our counter-terrorism professionals make these judg- ments, and can they do this in real time, with or without technological assis- tance? (FRANK; MENASCO; O´SULLIVAN, 2008, p. 2)

O FAST tem semelhanças de funções com o polígrafo, procedendo como um detector de mentiras: mede diferentes indicadores fisiológicos, alternando da aferição a distância da frequência cardíaca à firmeza do olhar de uma pessoa com vistas a julgar o estado de espírito de um “sujeito”. Entretanto, há diferenças majoritárias com relação ao polígrafo, pois que (1) o dispositivo se baseia em sensores sem-contato - para que possa, a exemplo, medir indicadores de pessoas andando por corredores em um aeroporto -, e (2) não depende de questionamentos ativos do “sujeito”, isto é, como as perguntas que são feitas pelo aplicador do polígrafo. Trata-se, portanto, de uma técnica e uma tecnolo- gia, aparentemente, não-invasivas. O primeiro teste do Tecnologia de Triagem de Atributos Futuros (FAST) foi fei- to em um local secreto no nordeste dos USA, tendo como cobaias funcionários do go- verno norte-americano. Não foi realizado em um aeroporto, mas em um espaço de gran- de porte, substituto ideal para um ambiente operacional. A estratégia é a da utilização do dispositivo não só em aeroportos. Objetiva-se o seu uso estendido às fronteiras e em

154 FRANK, Mark G.; MENASCO, Melissa A.; O´Sullivan, Maureen (2008). Human behavior and de- ception detection. In: Handbook of Science and Technology for Homeland Security, Vol. 5, Edited by John G. Voeller.

155 O conceito de deception, evocado no texto dos autores supracitados, pode ser traduzido por mentira, fraude, enganação, e optei por um termo que considerei mais adequado: “dissimulação”. 178

quaisquer eventos públicos de larga escala, como convenções políticas e jogos esporti- vos. Da escola-empresa às sociedades de controle, a fabricação do medo pode servir uma chave para a desterritorialização do caso individualizado e do estigma criminológi- co de um estudante da escola Alpha. É preciso escavar as tecnologias de triagem de a- tributos futuros nas escolas de Antares para obtenção de senhas de acesso a outras ques- tões não ditas, escamoteadas pelos efeitos de medicalização e judicialização da infância e adolescência nessas escolas públicas. No momento, a senha é: medo, terror (grande medo) na escola Alpha. Que outras relações aterrorizam a escola? Passamos de um caso individualizado de um aluno, do medo institucional sinto- mático de um aluno, para o medo nas relações no trabalho e a violência nas sociedades. A produção do medo tem se qualificado como uma estratégia de controle. Penso no me- do e sua fabricação como uma pertinência entre a lógica médico-legal como efeito das práticas, técnicas e tecnologias específicas, e as relações de culpabilização no trabalho: entre professor e família, entre professor e os trabalhadores sociais da equipe técnica, sempre nas grades hierarquizadas da escola-empresa, nas subdivisões corporativas do trabalho. O medo não era do Tom Sawyer em si. As técnicas médicas-correcionais de dis- ciplina e controle que aprisionavam o aluno também eram as técnicas que encarceravam os professores e os próprios técnicos detentores do poder normalizador. O depositar das ansiedades institucionais em Tom apenas servia para aliviar as tensões, e os efeitos de ameaça, culpabilização, sofrimento e adoecimento no magistério. A judicialização de Tom Sawyer é um tigre de papel; por isso a comparação am- plificadora entre as técnicas e práticas criminal-judicializantes na escola Alpha e o FAST geral da cidade e das sociedades de controle pode nos servir para desindividuali- zar duas questões: a violência e (in)disciplina na escola pública. Guimarães (2010) preocupa-se com um questionamento que alguns professores lhe haviam feito, recentemente: queriam saber o porquê de a academia ter interesse por pesquisar a violência da escola e professores sobre alunos, e não dos alunos sobre os professores. A pergunta lhe incomodou, uma vez que há estudiosos que consideram a violência nas instituições educativas uma “via de mão dupla”, ou seja, da ética de cul- pabilização recíproca entre professores e alunos que se alternam ora como vítimas ora como algozes violentos. 179

Durante o efeito tribunal de menores no CC de 13/07/2011 feito sob a supervi- são do Conselho Tutelar, é perceptível uma caracterização binária dos atores entre o professor violento versus o aluno vitimizado, ou então, entre aluno violento versus pro- fessor vitimizado. O efeito tribunal de menores se expressa pelas técnicas apresentadas para a culpabilização do aluno tido infrator e sua família, além das tecnologias de tria- gem de atribuições futuras a aprisionar suas virtualidades em um destino certo crimino- so, identificado à situação presente de seu pai.

Na sua ambiguidade, a indisciplina não expressa apenas ódio, raiva, vingan- ça, mas também uma forma de interromper as pretensões do controle homo- geneizador imposto pela escola. Tanto nas brigas (envolvendo alunos, fun- cionários, professores, diretores) quanto nas brincadeiras existe uma duplici- dade que, ao garantir a expressão de forças heterogêneas, assegura a coesão dos alunos, pois eles passam a partilhar de emoções que fundam o sentimento da vida coletiva. (GUIMARÃES, 2010, p. 421)156

Na escola Alpha, os professores se autoevidenciam como vítimas da truculência de Tom quando sentem que perderam a autoridade ao lidar com os alunos. Em uma ce- na, exigem punição para o aluno, em uma demanda para a equalização das sanções ad- ministrativas que o professor Cezar já havia sofrido, como a suspensão de 15 dias e uma remoção para outra escola. A ordem geral da escola-empresa é mesmo a culpabilização para todos, no compasso das forças de supressão das diferenças: se um é punido, todos devem ser. Por que o aluno Thomas Sawyer, em um primeiro momento, era transferido, e o professor, punido? Era o argumento dos professores durante o Conselho de Classe. A (in)disciplina e a violência na escola partindo de alunos têm sido evocadas como fator deflagrador da exaustão no trabalho e do adoecimento entre os educadores, tendo sua expressão máxima no efeito burnout. No entanto,

vários são os fatores que vêm contribuindo como desestímulo à prática do- cente, levando à produção de muitas críticas ao ensino, de insatisfação da comunidade escolar e de distribuição de culpas, o que mostra muitas preocu- pações com melhorar o sistema, mas poucas possibilidades concretas pelo desgaste cotidiano. [...] Poderíamos considerar que a maior expres- são de adoecimento do corpo docente hoje é o tédio, ou seja, a sensação de impotência de criar alternativas que modifiquem os impasses atuais. [...] A questão que se coloca neste momento é investigar por que a comunidade se sente despotencializada para

156 GUIMARÃES, ÁUREA M. (2010). Novos regimes de ver, ouvir e sentir afetam a vida escolar. Disponível em: Acesso em 03 fev 2012. 180

intervir coletivamente, construindo outros modos de gestão da vida escolar. (ROCHA, 2001, p. 218)

Na escola Alpha, vemos a hegemonia de um modo de encaminhar as discussões que tangem ao comportamento (in)disciplinado de alunos e professores. As políticas pedagógicas de punição e controle das indisciplinas também têm sido as mesmas técni- cas e práticas que têm equalizado e silenciado as diferenças na Educação. Rocha (2006) aponta a ciência moderna cujos modelos referenciais trabalham a diferença sob o crivo das avaliações de cunho quantitativo e qualitativo. A exclusão das diferenças se dá por sua inclusão como identificada (codificada) a verdades e normas pré-concebidas. O es- forços escolares por contenção das agressividades e (in)disciplinas também se constitu- em como controle normalizador das disrupções inventivas, das virtualidades. 181

3 GOVERNAMENTALIDADE EM ANTARES: DOUTORES, CORONÉIS E CLIENTES NA ESCOLA-EMPRESA

Figura 5 - Gravura de Alice e o Jaguadarte, do livro Through the Looking-Glass and What Alice Found There (1872). Imagem jabberwocky2.jpg. Disponível em: Acesso em: 23 fev 2013.

182

No primeiro e segundo capítulos, configuram-se produções de registros e relató- rios como técnicas de exame das condutas, tendo como objeto principal o aluno da esco- la fundamental. Desta vez, a escola-empresa tem o foco nas suas relações estendidas aos familiares dos alunos, e então às comunidades clientes do serviço “público” educacio- nal. As práticas de saber-poder operacionalizadas pelos trabalhadores da educação municipal – técnicos e não-técnicos na hierarquia corporativa escolar-, nos despertam a atenção para os relatórios feitos com diagnósticos nosológicos, que, por sua vez, trans- formam-se em encaminhamentos aos especialistas da equipe técnica escolar, e ao terri- tório da Saúde, principalmente aos neurologistas. A produção coletiva dos relatórios é, contudo, expressão dos modos de se- relacionar entre os atores escolares. A presença do psicólogo nas escolas em questão e, historicamente, no campo educacional, tem reforçado a expectativa da confirmação de diagnósticos já proferidos pelos educadores. Ela contribui para que os relatórios pré- crime se especializem nas trajetórias dos encaminhamentos. Inauguro as discussões deste capítulo (1) com a exposição e a análise crítica de algumas cenas de tensões, conflitos, e competição entre os especialistas das escolas: psicólogo, pedagogo e assistente social, e que personificam individualizando uma série de relatórios pré-crime cujo objeto de intervenção é o próprio trabalhador do magistério. Os professores do magistério, pedagogos, gerentes da escola (diretores), os estu- dantes, as famílias e os técnicos (trabalhadores sociais), quase todos entram em confron- tos diários entre suas práticas com os alunos. Tenho verificado a ética predominante da competição desenfreada entre os profissionais e suas práticas especialistas, os modos de pensar a escola e suas instituições, e de examinar as condutas dos alunos e familiares. Psicólogos, assistentes sociais e pedagogos (em todas as suas habilitações- especialidades de formação) disputam entre si o corpo do aluno, objetivando-o em fragmentações: classificações na própria escola e encaminhamentos para outros enqua- dramentos especializados fora dela. Tendo-o como objeto de seus exames, promovem triagens, com os alunos, de modo a elegerem qual é o técnico mais adequado ao pro- blema de cada aluno. Alguns incidentes conflituosos entre os especialistas serão relatados a partir da competição pelo exame e diagnóstico do aluno, para depois evidenciar a questão medu- lar nas tensões entre a escola e a família. 183

A princípio, os técnicos disputam, além do espaço-tempo para o exame do aluno, quem melhor governará as condutas dos alunos e, por extensão, as das suas famílias. Parecem engendrar, com isso, dispositivos escolarizados de segurança que alcançam as comunidades, através das técnicas de exame dos corpos dos alunos. Durante o período de formação inicial e ambientação das duas equipes nas esco- las (de julho de 2009 a fins de 2010), - notadamente as equipes SAFE e SOPE -, tensões e conflitos se anunciavam, e diziam respeito às relações entre os diversos especialismos em luta nas escolas, dispostos no ambiente de trabalho. A equipe SOPE constitui o Serviço de Orientação Pedagógica e Educacional, segregada da equipe do Serviço de Atenção à Família e ao Educando (SAFE) na organi- zação hierárquica entre as escolas e a Secretaria de Educação. Seus integrantes estavam mais próximos da Secretaria, a exemplo de que tinham reuniões de equipe diretamente com a Secretária de Educação, com a Sub-Secretária, com as diretoras e a coordenação municipal pedagógica. Enquanto a equipe SAFE era formada pelos psicólogos, (psi- co)pedagogos e assistente social, e mantinham suas reuniões na própria escola, sendo que, raramente, participávamos dos mesmos encontros na Secretaria de Educação com a SOPE. Possivelmente, esta divisão seria uma tática de controle, que objetiva separar dois grupos que trabalham nas mesmas escolas, sendo que um se posiciona em lugar de hierarquia superior, como que fossem passar as ordens da Secretaria para o funciona- mento no interior da escola. Numa cena, uma aluna adolescente é avaliada pelos vários profissionais na esco- la de maior porte do município157 (Escola Chico Mendes). Psicólogo, (psico)pedagogo, orientador pedagógico e orientador educacional entrevistam a aluna, considerando a demanda inicial da escola com relação ao seu comportamento (in)disciplinado. A Subsecretária de Educação e a Secretária orientavam para que os técnicos se organizassem melhor, de modo que um deles realizasse triagens com os alunos e com isso examinassem o problema, e o respectivo especialista procedesse aos encaminha- mentos necessários de modo a evitar reclamações de alunos e pais. Esta orientação ocorre porque a aluna reclamara à escola o fato de ter passado pela avaliação de vários profissionais, ao passo que questionava se teria, e qual seria o seu “problema”: “- O que é que eu tenho?”, perguntava ela. Na reunião da equipe técni-

157 Observe que esta é a escola de maior porte de todo o município; a escola Alpha é a de maior porte (número de alunos) no que se refere ao grupo de seis escolas em que eu trabalhei. Na primeira, a inter- venção era feita pela outra dupla de psicólogo e (psico)psicopedagogo (a partir de 2010, também pelo assistente social) da equipe SAFE. 184

ca, a coordenação discute o incidente, quando um dos (psico)pedagogos relata que, du- rante o desfile militar de Sete de Setembro, a mesma aluna se sentara ao chão, na rua, se recusando a desfilar, contestando a obrigatoriedade da participação no desfile. Os dois (psico)pedagogos desconfiam e lançam a hipótese de que a estudante tivesse Transtor- no Opositivo-Desafiador (T.O.D.):

Reunião da equipe técnica na Secretaria de Educação A menina reclamou dos vários atendimentos, não quis cantar o hino nacional no desfile, sentou no chão e gritou na rua. Criticaram-na nesta reunião de e- quipe, disseram que ela já “era” estressada. Dorothy Gale, fala da possibili- dade de “transtorno opositor”: - é a aluna que havia sido atendida por vários profissionais no mesmo dia e reclamou... [...] Ela continua a citar os casos in- dividuais de alunos-problema: Matilda, com déficit auditivo, e sobre Anakin, com dificuldades de aprendizagem. Ainda comenta sobre Alice Lidell, “autis- ta”, Tom Sawyer, “o agressivo”, e Breno, transferido de turma, após uma bri- ga e um acordo entre a escola e os pais. Dorothy comenta uma reunião com pais na Alpha. Pipa avisa que todas as re- uniões devem ser registradas em atas. Dorothy: “- Falta colaboração dos pais, em casa ou levando às escolas para reforço. ‘Eu, Você e Todos pela Educação’, propaganda televisiva com a a- triz Cláudia Abreu. Deve haver ‘cobrança sobre os pais’, eles ‘não têm noção de que devem colaborar...’ Pipa: “ – Na 1.ª reunião com professores (turno da manhã – das turmas do in- fantil ao sexto ano) da escola Alpha, o tema da ‘indisciplina’ seria mais im- portante que ‘dificuldades de aprendizagem’, segundo os professores; no Co- légio Beta, ‘profissionais de saúde para trabalho preventivo sobre o tema da sexualidade’.” Informes finais Não haverá férias [os pedagogos começaram a trabalhar em julho, e nós, psi- cólogos, em setembro daquele ano]. Em dezembro: reunião de programação para o ano que vem, e reunião com [todas] as diretoras das escolas. [que nun- ca aconteceu, mesmo com a minha insistência e de Wladimir] 158

Este acontecimento nos fala do poder das especializações no interior da escola. Há conflitos que se dão entre os próprios técnicos, no que se refere ao governo da con- duta dos alunos. Trata-se de uma competição por quem será o técnico da vez. Como uma extensão de tais conflitos nos trilhos bem produtivos (aderentes) dos diagnósticos médico-assistenciais, apontam-nos outro tipo de tensão, na medida em que os especialistas investigam razões para as diversas patologias produzidas na escola. De-

158 Transcrição da reunião de equipe técnica na Secretaria de Educação, de 10 de novembro de 2009, cuja pauta inicial proposta pela coordenadora era: (1) Sobre a chegada de uma fonoaudióloga, “que atenderá a ambas as equipes” [atuará junto às duas duplas da equipe Safe, o que incluía o trabalho em pelo me- nos 8 escolas do município], (2) entrega de relatórios [bimestrais, que deveriam ser feitos individual- mente pelos técnicos] e (3) relatos (balanço) do trabalho, com os (atendimentos) apresentados pelos componentes da equipe, na ordem: (psico)pedagogo e psicólogo da dupla 2, e (psico)pedagogo e psicó- logo da dupla 1. O primeiro [(psico)pedagogo da dupla 2] a falar pergunta sobre a possibilidade da in- clusão do tempo de deslocamento entre escolas na jornada de trabalho, que de início, não era aceito pela Secretária. Em seguida, um relato do outro psicólogo sobre sua atuação na Creche Municipal.

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lineiam-se por meio das práticas de culpabilização das famílias dos alunos, como mais uma vertente. Em outros momentos, o psicólogo escolar escuta queixas generalizadas, pelos educadores, acerca das diretoras. Muitos denunciavam perseguições das gerentes das escolas aos professores. Diziam que quem “batesse de frente” com uma diretora, arcaria com as consequências, sendo pressionado para que saísse da escola. Tais denúncias- relatórios que se referiam a algumas diretoras eram endereçadas à minha escuta. Estas queixas com relação às pressões da chefia aconteciam, com maior frequência, na escola Alpha, a de maior porte no estudo. Uma ex-professora desta escola, - tendo sido trans- ferida em 2009 e passado a atuar como orientadora tecnológica na sala de informática da Escola Beta -, me confidenciaria a história de um relatório pré-crime dentro de outro relatório:

O Olho Mágico da EEM Alpha. Uma conversa com uma professora Re- adaptada159. 27/04/2010, 15: 52, no Laboratório de Informática: [...] Era uma coisa tão doentia, que na sala do corredor160, se você for analisar... ir lá dentro da sala dela, na salinha antiga da direção, ela furou... fez um olho na porta, te juro... e por aquele olhinho... As próprias... As meninas que varriam diziam que ela ficava ali tomando conta da vida dos funcionários. O regime de lá é, como assim: a direção lá em cima e você lá embaixo. Você não vê lá aquelas con- dições de humanidade, de amizade... é aquela coisa muito particular. Sabe o que ela fez!? Você não vai acreditar... ela fechava a porta e ficava ali naquele “olho mágico” para ficar olhando o funcionário que tava no corredor e ia para a cozinha. [...] Éramos eu e a Aninha em parceria, aí eu larguei a 3.ª série e o Augusto C. Sandino assumiu o ano passado. Quando eu estava lá, eu que era errada. Que eu não podia exigir muito dos alunos porque os problemas estão nos pais, que não tinha como disciplinar muito as crianças porque os proble- mas vinham de casa para a escola. O Relatório Pré-Crime No meu caso, a própria Renata, - não sei se desceu ou ficou161[o relatório] ... -, sei que o relatório foi apresentado para a O.P. Renata assinar. – Ela tá ten- tando te prejudicar de tudo quanto é forma. Guilhermina, antiga contratada, atual funcionária da Saúde (no bairro da Escola Beta): - Morticia, ela me chamou para assinar também, [...] me induzindo (mandou um pedido) a dizer certas coisas de você, ao qual eu disse a ela que não podia dizer até porque não te conheço direito, a diretora queria induzir Guilhermina a fazer um certo falso testemunho. É uma pessoa perigosa, mas não tem poder para isso. E essas pessoas que estão aqui, será que estão doentes também, a Iracebeth [Rainha Vermelha] e a Rainha de Copas, que não veem isso: - que não foram

159 Transcrição parcial da gravação de uma conversa informal em 27/04/2010, Escola Beta (Grav09).

160 A professora readaptada da escola Alpha para a Beta se refere ao corredor da primeira escola. De fren- te para este corredor estava a porta da sala da diretora, a partir da qual Ágatha Trunchbull tinha uma vi- são panorâmica (panóptica) das entradas e saídas de todas as salas de aula da escola. Podia então ver se os professores saiam ou não em direção ao refeitório e a cozinha, que eram territórios aparentemente neutros, que não se poderiam vigiar.

161 Ela refere-se ao relatório em questão. 186

dois ou três só, foram várias pessoas perseguidas, pelo menos, vamos dizer assim? Ela [a diretora] tem essa “má-índole”, essa infelicidade de fazer isso com as pessoas, mas para funcionar da forma deles, ela funciona da forma que eles querem. Eu estou aqui há um ano, eu vou dizer para você: - nunca me senti tão capaz, com tanta motivação para trabalhar, tô te falando... Porque quando eu traba- lhei lá eu não tinha motivação nenhuma, e quando... Chegou o ponto de eu começar a entrar em pânico, de eu olhar para o portão e não conseguir entrar. Eu me senti desesperada.

Em 02/07/2010, 09hs 05, começo uma conversa informal com um professor, ao descermos caminhando de uma escola (Gamma), a quase três quilômetros bem inclina- dos do centro da cidade. Neste dia, haveria jogo da Seleção Brasileira na Copa do Mun- do, e todos estavam liberados após as dez horas da manhã, devendo retornar às 14 horas da tarde para a retomada do expediente. Fui a Mendes, mas não voltei. Conversávamos caminhando:

Um Professor da Escola Gamma e a Diretora da Escola Delta. Conversa na descida da escola em um dia de jogo da Seleção Brasileira (Copa de 2010). 162 02/07/2010, 09: 05: A diretora Ágatha, da escola Alpha, sexta-feira, que teve jogo, queria que lá algumas pessoas ouvissem o jogo no rádio. [D.C.: porque não tinha televisão na escola] Que não fossem às suas casas para assistir o jo- go... É... Merendeiras! D.C.: - E aí, concordaram!? - Não, bateram o pé! E foram em casa. O que ela fez !? Ela fez a merenda: - [...] Aí... a merenda já está pronta, porque eu fiz!! [...] após o jogo, porque as crianças vinham à tarde. Você sabe, não é? D.C.: Deve ter ficado uma beleza... - Ficou horrível... [ risos.] Eu não quis almoçar não, eu larguei tudo. [...]

Sabia que este professor e a diretora da qual falávamos eram protestantes, e con- tinuamos a discussão:

D.C.: Você acha que a religião faz algo com ela!? - [...] A religião, não é? Eu acho que... sabe... tem de fazer diferença em você; não tornar pior. [...] Eu acho que... ela... que... sabe... não tá dentro dos pa- drões da Bíblia, Davi... Porque Deus é bom e é amor. E ele não quer que a gente seja mau um com o outro, entendeu!? Ou injusto, não é? D.C.: Quem me falou umas coisas uma vez foi a professora Cristina, que saiu de lá. - Cristina é gente boa demais... D.C.: Que ela saiu de lá por causa de uns problemas... - Morticia Addams, não é? Que trabalha no Colégio Beta agora!? A Morticia foi “uma ‘das’...” D.C.: Mas é muita gente assim, cara !? Inacreditável isso... - Se você mexer com ela, ela começa a armar coisas... - Davi, você não tem noção... De amigos meus, assim... É... que eu conheço, assim, amigos meus mesmo, são quase dez. [...] Ela persegue a pessoa. [...]

162 Gravação de uma conversa informal datada de 02/07/2010. 187

Se alguém “bater de frente” com ela, em alguma coisa, ela pega a pessoa. E quando ela pega a pessoa, ela persegue. Persegue até a pessoa não aguentar mais. É assim, é um jogo. [...] É uma pressão psicológica terrível na pessoa. E a pessoa não aguenta. D.C.: E ninguém fala nada? - Ninguém, Davi, ninguém! Ela é muito forte no município, não sei por quê. D.C.: Forte... politicamente? - Olha... Nem é isso. Eu não sei o porquê. [...] Na escola, entendeu? Ela é muito forte porque até hoje eu não vi uma pessoa que batesse de frente com ela e permanecesse. D.C.: Mas ela faz [...] o quê? Já me falaram que ela escreve relatório... - Ela faz relatório. Ela inventa coisa mesmo. E ela arma situações, sabe... E o pior, eu acho, o mais triste é que eu não sei é de que forma ela encontra quem a apoie. Aparece um carro com professores que nos dão carona, e dentro seguimos: D.C.: Você vai ter que voltar? - Sim! Duas horas!

E continuamos a falar, desta vez sobre uma professora. Rosa Maria era quem le- cionava a disciplina de Religião na Escola Alpha. Entretanto, com um incidente em que a professora foi dar aulas de Religião ao mesmo tempo em que estava de licença médi- ca163, após ter apresentado um atestado, a diretora a teria retirado de sala-de-aula no momento em que dava a aula, dizendo-lhe que, a partir daquele dia, não mais o faria:

D.C.: A Rosa não mais dá aula de Religião por quê? Você acha que é impli- cância porque a diretora quer lecionar a matéria? - Tanto que ela começa a fazer, em Lages164, teologia165. D.C.: Para poder pegar [assumir/ ministrar] a matéria!? Eu sei que teve outra professora que saiu de lá também, a Maria Eugênia, a Adriane Collares... - Você vai conhecer muitos. A Adriane teve problemas graves com ela. As pessoas que foram vítimas, você vai ouvir falar delas. A Aninha... saiu de sa- la porque ela tava dando problema com aluno. Porque a Aninha era par com a Morticia Addams, e as turmas delas eram terríveis. Aí as duas não consegui- ram por... sabe, domínio. E aí, ela [a diretora] tirou de sala. Ela faz assim... Evanora166, no fundo é como a diretora Ágatha Trunchbull, da escola Alpha. Trabalhei lá onze anos: perseguição, é nervosa, às vezes não tem educação alguma, grita com você. Escola Chico Mendes167: - eu dava aula lá, e ela... hoje mudou muito... era hiper-mal-humorada e gritava com você na frente dos outros. “a Rainha Vermelha”, ela implicava comigo há anos. Meu ônibus saía 15 para as 17, e eu saía às 16hs e 30. E se eu perdesse o ônibus, era só 18hs e 30. Fazia serão até 17hs e 10. Um dia a Secretária me chamou na fren-

163 Isto ocorrera porque alguns professores teriam lhe alertado sobre o risco de perder o posto, ou a vaga como professora de Religião, caso se ausentasse com atestado médico.

164 Nome de um bairro de Paracambi, onde se localizava o conhecido manicômio Doutor Eiras.

165 A diretora não tinha ainda a pós-graduação em teologia, requisito para ministrar a matéria sobre Religião.

166 Nome fictício para a diretora da Escola Delta.

167 Localiza-se no bairro Morro Amarelo. 188

te dos outros, esculachou, gritou comigo: - Olha! Alguns pais estão recla- mando de você, que você não vê os livros, cadernos e etc., e sua turma tá as- sim, assim, assim! Na frente dos outros, bem alto. Então dá a senhora aula lá naquela turma. Eu dei um grito com ela: - Vou falar! Estou gritando! Eu fui, sabe, para agredi-la, mas graças ao pai, Deus é pai e me ama muito. E não deixou eu encostar um dedinho nela. Mas eu fui pra bater mêrmo nela. E os professores: “ – Calma, Lipe, calma, Lipe... [...] Ela se escondeu atrás do ar- mário. Fiquei um mês fora sem dar satisfação. A Secretária da época, era a Clarice, hoje aposentada pelo estado, e eu acabei sendo transferido para a es- cola Filinto Müller168 e onze anos na Delta. A Evanora. Ela é muito nervosa, sabe, até hoje, ela aperta no mesmo tom, se eles aqui [em baixo169, na Secretaria de Educação] apertam com ela, ela aper- ta lá na mesma medida: - amanhã é sábado letivo, você tem que estar aqui! Ela não sabe dar a notícia, não... A aprovação automática como controle É agressiva, e o professor bateu de frente com ela e o professor que não apro- vava aluno que aprontava o ano todo. Os professores que reprovavam batiam de frente com as diretoras. A diretora da escola Delta alterou as notas do bo- letim, o que é assim: - ou a gente se insere no processo ou é ferrado mesmo. Conheço uma professora que foi O.P. e trabalhou ali na Escola Alpha: - Or- dens da diretora [à orientadora pedagógica]: “- aperta os professores até o caldo”, [...] D.C.: E aí, ela não obedecia!? - Não. “Vou tratar eles com respeito e pronto!”, Teria dito a O.P. à diretora. - Porque eram todos contratados, não tinham vínculo, aí pronto: perseguiu [D.C.: a O.P.] até não aguentar mais. D.C.: Eu tenho medo que, por eu ser psicólogo, ela vá achar que vou “desco- brir” essas coisas. Em geral, acham que psicólogo tem bola de cristal, e que vou “descobrir” se ela tem algum “problema”. - Ela tem problema! Ela trata com psicólogo. [D.C.: a diretora da E. Alpha].

Assim, chegamos à Rodoviária de Antares, onde eu pegaria um ônibus para Mendes, não sem antes encontrar Rosa Maria:

Rosa Maria e a Síndrome de Burn-out: O Primeiro Relatório de Medicaliza- ção do Professor Rodoviária de Antares, 02/07/2010, 09: 36: 41: [...] D.C.: Pode contar comigo para o que precisar... Se você quiser falar das “dificuldades de aprendizagem” dos alunos, da questão da alfabetização, se- mana que vem estarei lá na escola Alpha. - Davi, é judiação... Porque se ninguém fizer nada, eu vou envolver Conselho Tutelar. Porque eu considero grave o que está acontecendo na sala. A aluna L passa a mão, passa a mão na bunda, passa a mão na frente, pega no negócio do menino... Se ninguém fizer nada... Porque a escola está sendo omissa. En- tão: a última cartada. Se ninguém tomar atitude, eu vou cobrar do Conselho Tutelar. Porque se eu fosse a mãe do garoto que ela arriou a calça na sala, eu não teria deixado por menos. Se fosse o meu filho, eu não deixava. Porque eu acho isso muito grave você tocar no corpo do outro.

168 Esta escola, com o nome fictício Filinto Müller, fazia parte do grupo das outras escolas municipais não atendidas pela minha dupla da equipe SAFE.

169 Notadamente, os personagens que trabalham nas escolas de Antares se referem, comumente aos locais mais baixos da cidade, como a Secretaria de Educação, e quando se referem às escolas, em geral falam lá em cima. Assim, quando uma professora disse que não sabia se tinha descido um relatório feito na escola, contra ela, ela quis dizer descer para a Secretaria, que fica a uma altitude mais baixa. 189

D.C.: O Conselho Tutelar, do qual você fala, seria em relação aos pais, não é? - Não, com certeza. D.C.: Eu só fiquei sabendo disso porque o professor Felipe me falou. Os pro- fessores não me procuram, eu fico lá na escola e ninguém me fala nada. Aí eu fico sem saber. Mas assim: [...] sobre você também... se você quiser falar coi- sas que estejam te incomodando na escola, não só sobre os alunos. - Eu tô com Síndrome de “Bãrnô”170, só...

3.1 O Burnout e as readaptações - competição, adoecimento e medicalização entre os professores

Rosa Maria me disse que um médico havia lhe diagnosticado como portadora da Síndrome de “Bãrnô”, e que ela pensava ser “Bãrnô” uma palavra de origem francesa. Expliquei logo que sua etimologia era inglesa, e que, bem antes de sua invenção como “doença da exaustão no trabalho” nos anos de 1980, tratava-se de uma gíria, bem co- mum na Inglaterra, que identificava os usuários de drogas que se deixavam consumir ao máximo pelo efeito das drogas, e designava seu estado de extremo comprometimento de Saúde: biofisiológico, psíquico e social. Burnout, - “combustão ou exaustão completa”-, vem de burn-out, verbo que sig- nifica “queimar-se ou exaurir-se por inteiro”. Antes do uso da gíria para designar usuá- rios graves de drogas, o burn-out já teria sido utilizado como gíria por engenheiros ae- ronáuticos desde 1940, ao que se referiam ao estado final das turbinas de jatos quando eram expostas em testes de resistência até o seu limite máximo, quando mecanicamente suas estruturas se fundiam em queima total. O psicólogo e psicanalista Herbert Freudenberg norte-americano foi quem cu- nhou o conceito patológico de burnout, em 1974, ao observar o intenso desgaste físico e emocional dos profissionais de Saúde (médicos, enfermeiros, entre outros) que traba- lhavam no tratamento de dependentes químicos. A inspiração para a invenção da cate- goria nosológica vem do romance A Burn-out Case, de 1960 (no Brasil, Um Caso Li- quidado), no qual se narra a estória de Querry, um arquiteto que se alimenta de sua ce- lebridade e não enxerga mais sentido em sua arte e prazer na vida; vai trabalhar, de mo- do anônimo, em um leprosário no Congo, onde é diagnosticado pelo Dr.º Colin como o equivalente mental de um caso burn-out, à época, da hanseníase: em que o leproso atin-

170 Síndrome de Burnout. 190

gia um estágio de mutilação. Freudenberg lança um livro - Burn Out: The High Cost of High Achievement - What it is and how to survive it, em 1980, em uma parceria com Géraldine Richelson.

Pressão Baixa: Escola Beta, 21/11/2011: Theodora nos informa que sua pressão está muito bai- xa. Disse para mim, e ao assistente social da equipe técnica, Wladimir que, em reitera- das vezes, dados os repetitivos momentos de inquietação e algazarra da sua turma – com quantidade considerável de alunos (pelo menos dez) que não aprenderam a ler nem es- crever, ou ainda como dificuldades sérias – chegou a morder a si mesma: - em momen- tos de tensão em classe punha-se a morder o próprio braço. Acontecia quando a (in)disciplina geral dos alunos a deixava estressada, de modo a conter seus impulsos, sua raiva. Informa que está tomando cloridrato de fluoxetina171 (antigo Prozac), e que não consegue se divertir, só pensa em trabalho, não consegue relaxar. Consultou um médico em Vassouras que a indicou que procurasse um psiquiatra:

Escola Beta, em 10/10/2011: Lucy: “- O sistema tem de nos preparar para isso: lidar com a inclusão, com os alunos com Síndrome de Down. A gente tem de se preparar... Coisas simples a gente não tem suporte aqui no Colégio Beta. Theodora: “- Mariza (aluna) está na mesma situação de Stella o ano passado. Ela não acompanha. Ela não lia; agora lê. A turma é a mesma, mas quando chegaram o Paulo, o Guilherme... Eu já não brinco, não rio com a turma. O Guilherme anda pela sala o tem- po todo. Começa um furdúncio quando os que copiam primeiro terminam. Eu soco o quadro. A turma veio de Lucy para mim, e de mim vai para alguém: - os dez são o pro- blema; os outros vinte e um, não.” Relação Saúde versus Autonomia: 21/11/2011: Entrevista em grupo: - eu, Wladimir, prof.ª Theodora e uma mãe: “Nós não temos autonomia, eles [a equipe, direcionando-se para mim e o assis- tente social] não têm; vocês têm, podem fazer alguma coisa!!”

171 Fluoxetina é um medicamento antidepressivo da classe dos inibidores selectivos da recaptação da serotonina. Suas principais indicações são para uso em depressão moderada a grave, transtorno obsessi- vo-compulsivo (TOC), transtorno alimentar, transtorno do pânico e de ansiedade. É utilizado na forma de cloridrato de fluoxetina, como cápsulas ou em solução oral. Foi sintetizada e comercializada inicial- mente pela companhia farmacêutica Eli Lillycom com o nome Prozac®. Atualmente é comercializada no Brasil e em Portugal por vários laboratórios como medicamento genérico, estando sujeita a receita médica (ou até mesmo a retenção da receita). A patente da Eli Lilly sob o Prozac expirou em agosto de 2001, despertando um influxo de genéricos ao mercado. Só nos Estados Unidos, mais de 19 milhões de prescrições genéricas foram efetuadas em 2006, colocando-a na terceira posição entre os antidepressi- vos mais receitados, após a sertralina e o escitalopram. FLUOXETINA Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: Acesso em: 28 jan 2013.

191

Pressão Alta: O professor Augusto Cezar Sandino havia sido transferido da escola Alpha para a Beta, após o conflito com o aluno Thomas Sawyer [E Tom tinha sido encaminhado para a escola Gamma]. Numa RP, passou mal, está com a pressão alta constantemente. Na reunião, Calpúrnia, orientadora pedagógica, reclamou coletivamente das faltas de Cezar, o que lhe acentuou o mal-estar. No primeiro capítulo vimos “o caso” de Wendy, analisador de um campo escolar de forças medidas e entrecruzadas para a adaptação curricular da estudante, e que se caracteriza como uma conduta geral e coletiva em que uma série de relatórios pré-crime são produzidos. Na trajetória das adaptações, vemos, a partir dos registros supracitados, a escola máquina de produções (re)adaptativas, só que desta vez operando nos corpos dos professores. Quando as pressões por metas bancárias agressivas, e muitas vezes impossíveis e absurdas, - a exemplo, ter que aprovar alunos que não sabem ler nem es- crever para manter a “boa” política de aprovação automática, e assim evitar o mau hu- mor da diretora, notas baixas no estágio probatório e ainda reduzir os gastos públicos com as reprovações, pode soar como um absurdo para os professores! - , chega um mo- mento em que o trabalhador de educação não suporta atuar regularmente, e sem voz e sem autonomia seu corpo começa a falar, esbravejar em uma resistência solitária. E meio a essas vozes de corpos exclamando-interrogando (!?) às robotizações contínuas da vida na escola e o seu tédio esmagador, educadores começam a resistir com seus cor- pos na forma do adoecimento psicossomático aos sofrimentos políticos, e as respostas, como nos casos individualizados dos alunos encaminhados à área médica, são um quá- druplo algorítmico de encaminhamentos médico-assistenciais. A interferência médica e assistencialista ressoa como intermediário entre a Esco- la e o INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social. Esta instituição configura-se co- mo mais um setor que avalizará os encaminhamentos do tipo excluir para incluir, desta vez para o trabalhador e seu sofrimento decorrente das relações e condições de trabalho. O trabalhador enfrenta alguns embargos até que consiga utilizar-se da perícia médica. Se obter o aceite à solicitação, pode ser encaminhado para a licença médica ou direta- mente à readaptação. Havendo a possibilidade de extensão do prazo de licença até o limite de 24 meses, quando este é alcançado, é o parecer de uma junta médica que deci- dirá e encaminhar-lhe-á segundo uma quadrifurcação de possibilidades: (1) retorno ao 192

trabalho com alta médica, (2) manutenção da licença, (3) retorno ao trabalho em readap- tação, ou (4) aposentadoria por invalidez. A “readaptação” profissional neste contexto é um recurso administrativo uti- lizado quando é constatada a impossibilidade do(a) trabalhador(a), de conti- nuar realizando as mesmas atividades, considerando-se-lhe o sofrimento e adoecimento. Trata-se, então, de uma das formas encontradas para lidar com o sofrimento dos(as) trabalhadores(as), geralmente quando não há uma outra solução! (ATHAYDE et al, 2003, p. 99)172

Destarte, como operam as engrenagens das máquinas de adaptação de alunos acopladas às máquinas de (re)adaptação dos trabalhadores da educação nas escolas de Antares, tendo em foco a atividade de trabalho dos professores? As adaptações curricu- lares que reduzem as virtualidades e virtuosidades estudantis são efeitos de práticas e relações no campo do trabalho, e das heteronomias que têm excluídos os professores da interferência nos próprios currículos escolares municipais, as (re)adaptações também o são... daí, o que nos interessa é desvendar e questionar a(s) lógica(s) que atravessa(m) estas relações, - de trabalho e formação na escola -, onde trabalhadores e alunos têm de se adaptar e readaptar às normas institucionais; onde quase não há espaço nem tempo para pensar, para a invenção. Esta produção dos relatórios pré-crime se anuncia, particularmente, como indício das relações conturbadas de trabalho, e por que não adoecedoras? Com uma apresenta- ção diferente daqueles relatórios de diagnoses (neuro)psiquiátricas associadas à não aprendizagem e (in)disciplina, e dos relatórios-duplos médico-correcionais (criminoló- gicos) que capturam a infância e a adolescência, os relatórios pré-crime do trabalho são os que circulam entre os trabalhadores da educação objetivando o próprio trabalhador: - Formam-se entre chefia e professores, entre os professores, entre estes e os ditos especi- alistas [trabalhadores sociais], e entre os próprios especialistas, sendo que os três pri- meiros tipos são os principais. Como efeitos das relações difíceis no trabalho do magis- tério, e que atravessam os processos de Saúde no trabalho, temos que:

[...] Os (As) professores(as) queixam-se de problemas relacionados com a voz, como já foi dito, com problemas alérgicos, de visão, de coluna verte- bral, de minúsculos e varizes. Completam esse quadro as enfermidades psi- cossomáticas, expressas por sensações de cansaço, dores de cabeça, altera- ções digestivas e insônia, determinando que a economia psicossomática se apresente como elemento estratégico da investigação em saúde no trabalho docente. [...] (ATHAYDE et al, 2003, p. 92-94)

172 Brito, Jussara; NEVES, Mary Yale Neves; ATHAYDE, M. (Orgs.) (2003). Cadernos de textos: pro- grama de formação em saúde, gênero e trabalho nas escolas. – João Pessoa, PB: Editora Universitá- ria/UFPB. 193

A adaptação curricular comumente tem sido proposta nas escolas como uma re- dução de possibilidades para o aluno aprender. Coloca-se como uma compressão quanti- tativa dos chamados conteúdos formais do ensino que as classes regulares têm de a- prender. Tanto esta adaptação do aluno como a readaptação de professores têm exigido a produção de nosografias médicas, psicológicas, e fonoaudiológicas como é o caso da aluna Wendy, no capítulo um, além dos incidentes nosográficos engendrados por outros profissionais. O laudo ou parecer de um especialista, que tem ser de profissional do campo da Saúde (de fora da escola), tem sido uma técnica e um procedimento demandados pela escola como (suporte) aval e caução para as outras técnicas (1) de promoção automática e (2) de adaptação curricular tabloide de alunos, (re)adaptações dos educadores do ma- gistério, dois movimentos de encaminhamento-fluxo interno para a formação de zonas de exclusão para inclusão social na escola pública. Trata-se de um binarismo biopolítico que inclui por exclusões. As exclusões são compartimentalizações que operam confor- me este duplo movimento de economia da coletivização possível de ações, que circula entre trabalhadores e estudantes. Manter a individualização, e o esquadrinhamento em grupos de alunos inclusos, os quais funcionam como as antigas classe especiais, é artifí- cio fundamental à economia da coletivização, e à garantia das articulações hierárquicas de controle dentro de cada sala de aula. Como exemplo, temos as micro-hierarquizações entre alunos que sabem, e os que não sabem. Tornam-se comuns as multiserializações internas às classes, e, aos professores, em seu turno, têm-se exigido que se adaptem a cada uma das microzonas, ou microsséries incluídas nas classes de ensino.

3.2 Alianças entre Práticas Soberanas e Competitividade

Nas escolas de Antares, era comum a confecção de relatórios, pelas diretoras, acerca do comportamento (in)disciplinado dos trabalhadores em geral das escolas. Tal prática não acontece apenas com professores, ocorre com orientadores pedagógicos, pessoal da limpeza, inspetores, entre outros. Os relatórios eram enviados à Secretaria de Educação e diziam respeito àqueles mais questionadores da ordem da escola. Na história recente de Antares (1989 – período 194

atual), os pensamentos e práticas diferentes de trabalho que na escola desviavam de um modo hegemônico da existência coletiva eram considerados ameaças à soberania dos seus gerentes, envolvendo a escola, a Secretária de Educação, o poder vigente há vinte anos no executivo municipal (de um coronel militar e sua família), e os funcionários- padrão:

A escola brasileira traz as marcas do seu processo de colonização (sacerdó- cio, assistencialismo, elitização), do modo como se deu o desenvolvimento da sociedade liberal no capitalismo tardio brasileiro (precarização, feminiza- ção, tecnicização do ensino) a que se misturam os vetores neoliberalizantes de aceleração do tempo e da produtividade. As práticas de exclusão, que atu- am de forma preponderante na produção da dinâmica institucional escolar, estão implicadas com dispositivos de manutenção da hierarquia (relações de saber-poder), da individualização (cada professor cuida de sua sala e cada a- luno cuida de si) e, mais recentemente, das medidas neoliberalizantes do Banco Mundial, submetendo as escolas ao cumprimento de metas produtivis- tas (aumento de tarefas que não cessam de se multiplicar). A grade de estabi- lização do cotidiano educacional se alimenta das relações de tutela com os educadores e educandos, mantendo-os à margem do processo decisório no que tange à dimensão política, pedagógica e institucional; [...] (ROCHA, 2008, p. 480)

Configuram-se, destarte, alguns analisadores históricos de soberania e discipli- na, aos quais tive acesso através dos relatórios (orais) pelos vários atores das escolas antarenses: diretoras, professores, pessoal da limpeza, merendeiras, e famílias, entre outros: A Secretária de Educação, Sr.ª Iracebeth, tinha sido diretora de um antigo inter- nato-escola da cidade. Este estabelecimento recebia jovens egressos da FUNABEM, e chegou a ter cerca de oitocentos alunos matriculados. Além da dirigente, mais duas dire- toras, uma diretora adjunta, e vários professores e coordenadores de turno já haviam educado os jovens infratores da antiga escola profissionalizante e alojamento da FACR – Fundação Abrigo do Cristo Redentor. Estes locais de assistência foram criados em 1976, em plenos anos de chumbo da ditadura, e vigorariam até fins dos anos de 1980 e início dos de 1990. Em fins de 2011, uma conversa informal na sala da direção da escola Épsilon a- tualiza, na contemporaneidade da educação de Antares, os fantasmas agonizantes deste velho e desativado reformatório da cidade:

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Escola Épsilon, 28/11/2011: Conversa na sala da Direção: - Diretora Filomena, prof.ª Geisa, prof.ª Andrea, O. P. Cátia, e a dir.ª adjunta Claudete: Prof.ª Geisa: “- O Davi pensa que sou louca porque eu dei um salto na sala-de-aula.” A prof.ª Geisa tinha dado, - mesmo -, (simulou) um passo de ballet – um pas- des-deux – em meio aos alunos que dançavam músicas brasileiras regionais, e ela riu, quando eu sugeri, ironicamente, que ela fizesse a cena na festa de fim-de-ano dos alu- nos, e com os pais presentes: “- Por que você não faz isso na festa!?”

Na sala-da-direção: Prof.ª Geisa: “- O Davi pensa que eu sou louca!” “Eu tenho uns surtos!” Prof.ª Andrea: “- Onde é mesmo a APAE ? (Associação de Pais e Amigos do Excepcional)” [Refere-se ao NAEE, à única escola especial do município, e não havia APAE; o NAEE era conhecido vulgarmente como APAE, além de outras referências como Hospício e Escola de malucos] Diretora Filomena: “- É lá no bairro Montes Claros...” Prof.ª Andrea: “Então... Vai fazer isso lá!!” Prof.ª Geisa: “- Quando eu ia para lá, eu fazia um monte de coisa...”

No diálogo descontraído descrito, depreende-se o ponto de vista também dos professores acerca da valorização do estabelecimento especial(izado) do NAEE como instituição total e asilar. Tal compreensão não era só uma expressão e uma preocupação das famílias dos alunos. A instituição atual de educação especial é assemelhada ao anti- go orfanato que se localizava na mesma construção. Em um segundo momento, veio a ser uma escola estadual, e mais tarde o NAEE. Goffman (2010) [1961] classifica as instituições totais nas sociedades em cinco agrupamentos. Há aquelas criadas para cuidar de pessoas consideradas incapazes, como “as casas para velhos, cegos, órfãos e indigentes”, caso em que se enquadrariam os re- formatórios hoje fechados e que deixaram sua marca histórica impressa na cidade. Te- mos locais existentes para salvaguardar pessoas incapazes de cuidar de si mesmas e que representam uma ameaça à comunidade em caráter não-intencional, como os leprosá- rios, manicômios e hospitais para o tratamento (internamento) de tuberculosos; as “ca- deias, penitenciárias, campos de concentração e campos de prisioneiros de guerra” ser- vem como proteção da sociedade contra as ameaças e perigos intencionais sem se ater ao bem-estar dos indivíduos isolados; pressupõem-se ainda as instituições para a orga- nização coletiva mais apropriada de uma tarefa de trabalho: quartéis, navios, escolas internas, entre outras, e as que funcionam como um refúgio do mundo e instrução de religiosos: conventos, mosteiros e similares. 196

Despontavam como instituições totais. Goffman (2010) estabelece um princípio para a classificação de alguns estabelecimentos sociais como instituições totais:

Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, cada instituição tem tendências de “fechamento”. Quando resenhamos as diferentes instituições de nossa socie- dade ocidental, descobrimos que algumas são muito mais “fechadas” do que outras. Seu “fechamento” ou caráter total é simbolizado pela barreira â rela- ção social com o mundo externo e proibições à saída, que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, a- rame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome instituições totais, e desejo explorar suas características gerais. (GOFFMAN, 2010, p.16)

A diretora da Escola Especial, a nova diretora da escola de maior porte (em 2012), e a diretora adjunta da escola de ensino infantil foram professoras no orfanato- escola, e relatam que agiam com dureza na educação dos “meninos”. Diziam que a grande maioria dos alunos era formada de adolescentes negros, altos, e que havia um grupo que se destacava porque segregado dos outros: um grupo de estudantes homosse- xuais. Todos os estudantes circulavam pela cidade, - apesar de a escola ter se localizado num distrito bem distante, numa antiga fazenda, cujo acesso se dá por uma estrada longe do centro -, o que despertava a curiosidade e preocupações da população, em uma cida- de de quinze mil habitantes. Quando a escola-orfanato cessa suas atividades com os adolescentes infratores e órfãos173, em 1982, os alunos se matriculam na escola municipal Chico Mendes (que não é objeto desta pesquisa), e lá ficam por quinze dias. Os pais dos alunos “normais” fazem abaixo-assinados para a expulsão dos ‘infratores’, preocupados com as possíveis “influências”, no convívio com seus filhos. A predominância da religião protestante, na cidade, constitui também um fator relevante, uma vez que há diretoras, professoras, (psico)pedagogas, orientadoras educa- cionais, diretoras adjuntas, pais de alunos, e muitos outros profissionais do ensino que professam um protestantismo muitas vezes fundamentalista, considerando a homosse- xualidade uma doença e encaminhando repetidas vezes alunos para tratamento da orien- tação sexual com psicólogos. Está aí instituído um tipo de corporativismo religioso, como empreendimento entre os componentes de um grupo que trabalhava nas escolas e nas comunidades de

173 A Escola Filinto Müller continuaria suas atividades, após a saída dos adolescentes, no entanto, na assistência de crianças órfãs mais jovens, até meados dos anos de 1990. 197

entorno. Baseiam suas práticas profissionais em uma ética protestante, na proteção dos seus, e na provisão do exame e conversão doutrinária dos comportamentos e corpos desviantes, de fora do grupo, numa fusão técnico-soberana. Misturavam suas crenças às suas intervenções político-pedagógicas. Destaca-se também como condição de soberania, o fato de todos os diretores das escolas serem administradores contratados e indicados como prepostos político- eleitorais. Estão no dispositivo escolar para garantir a eficácia dos serviços públicos ofertados pela prefeitura, a satisfação total das comunidades (famílias)-clientes, a nor- malidade nas relações na escola, envolvendo a tríade professores-alunos-pais, evitando ao máximo as queixas de sua clientela, e mantendo-a em seu lugar de depositária fiel de suas promessas (eleitoreiras) futuras. Ao mesmo tempo, sentem-se, em seus postos de governo, ameaçados quase sempre, pelas críticas, pelos questionamentos, pela irrupção das diferenças, dos conflitos, debates e discordâncias gerais na escola, o que consideram afrontas à normalidade, à constância da manutenção da posição política de seu grupo. Dois professores antigos, do município, me confidenciam que os questionado- res eram levados à forca, nos tempos do coronel, i. e., aqueles trabalhadores que não “andavam na linha”, eram “encaminhados para conversar com o governador vitalício da Antares, Cel. Tibério Vacariano. Despontam, de modo particular, táticas de soberania que entrelaçam algumas instituições, como a dos coronéis, e o clientelismo político-eleitoral, tradições que se aliam à contemporaneidade da Escola-Empresa. De modo geral, as várias táticas são tecnologias de governo entre os atores da escola, - salientando-se os professores, alunos e pais -, que arquitetam a peculiar governamentalidade de Antares, a se espalhar por sua geografia geral de exclusão, mas estudada (nesta dissertação) do ângulo-recorte de seus dispositivos escolarizados de saber-poder:

Quanto ao estudo da “governamentalidade”, respondia a um duplo objetivo: fazer a crítica necessária às conceituações correntes de “poder” (mais ou me- nos confusamente pensado como um sistema unitário, organizado em torno de um centro que é, ao mesmo tempo, a sua fonte e que é levado por sua di- nâmica interna a se estender sempre); analisá-lo, ao contrário, como um do- mínio de relações estratégicas entre indivíduos ou grupos – relações que têm como questão central a conduta do outro ou dos outros e que podem recorrer a técnicas e procedimentos diversos, dependendo dos casos, dos quadros ins- titucionais em que ele se desenvolve, dos grupos sociais e das épocas. (FOU- CAULT, 1997, p.110)

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Nas engrenagens da maquinaria escolar, além das táticas de soberania, são visí- veis as tensões que nos indicariam o processo, em andamento, de implementação da Escola-empresa na escola de nível fundamental. Notadamente, este modelo vigente se pauta pela ética da gestão de competências, que:

[...] Passa rapidamente de ação sobre o funcionamento efetivo de unidades e redes de trabalho e ferramenta nos processos de avaliação na gestão dos re- cursos humanos, onde a competência é assumida por um coletivo, mas de- pende de cada pessoa individualmente. Deixa-se de lado, então, a noção de que a competência individual não é nada sem o conjunto de aprendizagens sociais que formam o indivíduo e produzem subjetividades. Deste modo, a participação de cada um e o trabalho conjunto que se espera dos educadores estão na ordem da execução e do cumprimento das normativas dos manuais, quase sempre inviabilizados pela aceleração e pelas condições de trabalho frente às exigências da realidade encontrada nas escolas que atendem a dife- rentes comunidades. (ROCHA; BESSA, 2009, p.7)

Caracterizam-se como impasses e diferenças entre professores e famílias os rela- tórios discursivos, dos pais dos alunos, denunciando as práticas de cuidados dos educa- dores. Encontram-se lado a lado com as queixas destes trabalhadores aos técnicos como o psicólogo. São relações recíprocas que envolvem táticas de culpabilização e ameaça como controle da família-cliente. Estas pensam governar as práticas dos professores, mas promovem o controle de si mesmas quando se mantêm na posição de clientes de um ensino que se pronuncia como mercadoria ofertada pelo Estado, no nível municipal. Rocha (1998) ressalta o esplendor do clientelismo produzido como expressão das alianças entre as tradições soberanas e o controle corporativista na escola-empresa, [...] “as relações de soberania e de competitividade são complementares e solidárias, o que significa que uma é remetida incessantemente à outra e, na história brasileira, têm seus contornos e expressão nas relações de favor, clientelismo [...]” (ROCHA, 1998, p. 76) 174 As imputações de responsabilidade suprema à família-cliente, pela educação dos alunos, é evocada, pelos professores, no que concerne à (in)disciplina, e ao fracasso escolar. Este não-aprender é atribuído às faltas e falhas dos pais, que não acompanhari- am os filhos, em casa, nos estudos, e não participariam ou não se fariam presentes na escola.

174 Rocha, M. L. (1998). Para além das evidências, dos princípios e dos valores instituídos no fazer pedagógico. Em C. V. Cortez (Org.), Cadernos Transdisciplinares (p. 71-80). Rio de Janeiro: UERJ. 199

Escola Alpha, 06/04/2011. Professor Augusto Cezar Sandino: “– A escola é lugar de transmissão de conhecimento, não de educação; edu- cação é em casa, vem de casa! Precisamos do auxílio dos pais para conse- guirmos fazer nosso trabalho!” Escola Épsilon (U. E. I.), 25/04/2011. Diretora Filomena: “- O irmão de Bam-Bam [que está na alfabetização da Alpha] tem desconcen- tração. As professoras Claudete [hoje dir.ª adjunta da Épsilon] e Nadine lhe deram aula, aqui na unidade infantil. Eu o encaminhei para neurologista, e ele não foi bem nos testes. [...] Eu é que o levei à consulta. Dr.ª Hyde fez exames de movimentos, e, em seguida o encaminhou para eletroencefalograma.” U. E. I., 12/07/2011. Eu e Dorothy Gale, (psico)pedagoga: Um estudo do ‘caso’ Anna Lisa Dorothy comenta uma “reunião” com Pipa, coord.ª SAFE, e com a Denise, mãe da aluna Anna Lisa, no Colégio Beta. As duas (psico)pedagogas infor- maram à responsável sobre o ‘direito’ do NAEE de avisar o Conselho Tute- lar, caso a mãe não a levasse [encaminhassem] à escola especial. Denise fala que o aluno Elton John [com paralisia cerebral], e outros ficavam a olhar para a sua filha, quando alunos novos chegavam. “Ele não é para minha filha”, - diz chorando e exibindo tremores nas mãos.175

Deste modo, essas escolas exigem apenas que os pais acompanhem sua linha formal de ensino; na verdade, não há uma preocupação da primeira na composição de uma parceria. O objetivo é enquadrar a família aos seus moldes de aprendizado, sem que se considerem as particularidades da educação pela família. A escola já pensa a família a partir de sua negatividade, de suas falhas e faltas. Nega suas potencialidades. A escola está enquadrada! Quais entrecruzamentos há entre os relatórios pré-crime, a compulsão coletiva nas referências de alunos da escola para a Saúde, e os impasses percebidos nas tensões entre escola (educadores) e família? Que desafios surgem com o paradoxo existente entre o exercício crítico do psicólogo social e o lugar normalizado de especialista, que lhe reservam, na escola? Quais efeitos produzem a mediação e a equalização dos impasses nos conflitos - entre escola e família (comunidade formada de pais e alunos) -, pelos especialistas como o psicólogo, com relação aos processos de medicalização das condutas de fracasso esco- lar e (in)disciplina em marcha? Sendo assim, neste capítulo do trabalho, apresento as análises a partir dos inci- dentes dos Relatórios Pré-Crime de tipo específico: as relações de culpabilização e ameaça entre pais e professores na escola. Segundo a lógica empresarial instalada, são quem poderíamos chamar, respectivamente, de clientes consumidores, e produtores (e- xecutores dos serviços educacionais prestados à comunidade usuária). Produz-se a judi- cialização na responsabilização da genética familiar e a carência de cuidados e atenção

175 Diário de Campo de 12/07/2011. 200

pela família na medida em que os alunos são diagnosticados e, por conseguinte, captu- rados na expansão na forma dos encaminhamentos da escola para a área médica. Em consonância com as práticas discursivas e não-discursivas de tais relatórios, investigo os entrecruzamentos com as tensões e conflitos na escola, salientando aqueles que se dão entre professores e famílias.

3.3 Da Soberania às Sociedades de Controle: Coronéis e Clientes

Considera-se, portanto, que há um deslocamento das práticas dos relatórios esco- la-aluno, para os relatórios e encaminhamentos entre escola e família. A partir de dois acontecimentos precedentes, provocam-se questionamentos à ordem “problemática” vigente dos relacionamentos professor-família (comunidade), não raro com desfecho nos exames diagnósticos e patologizantes do corpo do aluno: Escola Alpha: No primeiro encontro com professores (no ano de 2010), do sexto ano ao nono, (durante o planejamento do ano letivo), levantávamos temas-questões a serem conver- sadas com os estudantes. Dentre elas, os educadores ressaltavam, em geral, referentes ao comportamento e (in)disciplina: à sexualidade dita “exacerbada”, à “má-educação ge- ral”, que vinha de casa (da família), vinculada ao tratamento entre os alunos, e destes com o professor, na forma de palavrões e discursos sexualizados. Tais cenas se davam, frequentemente, nas classes, sendo ligadas ao bullying e agressividade, à violência e à falta de limites nas relações, cujos direcionamentos eram atribuídos unicamente à edu- cação da família. No ano letivo de 2011, deflagra-se um desentendimento entre um “responsável” [um ex-vereador, de oposição, na cidade] e o professor Jonas, quando este chamara a atenção do primeiro, para a desatenção e descompromisso do filho com os estudos (“não fazia nada em classe, não copiava do quadro, estava sempre em conversa e bagunças paralelas”). O pai sente-se afrontado, pois o professor o abordara na porta da sala de aula, quando sua esposa já havia sido convocada a comparecer à escola. Pergunta se o profissional era contratado, e, diz que, se o fosse, já teria perdido o cargo. Diz que fará denúncia ao MP- Ministério Público, e daí, o professor se antecipa (sentindo-se amea- 201

çado, e como precaução e autodefesa) faz ocorrência na Delegacia de Polícia, apoiado por testemunhas da escola.

Reunião Pedagógica da Escola Alpha, 29/03/2011: (In)disciplina: - As professoras ‘ficam sem graça’ de rechaçar a entrada atra- sada do aluno (filho do vereador supracitado) na classe, pois o pai entra e le- va o aluno até a porta, e até dentro da sala. Reporto aqui um outro incidente no qual o vereador ameaçou em acionar o MP contra o colégio, dizendo que o filho era perseguido na escola [Alpha], dadas as reiteradas reclamações que recebia da escola quanto ao quesito ‘indisciplina’, sobre o aluno não copiar os deveres nem fazê-los por conta da bagunça, da conversa paralela e brinca- deiras com os colegas fora-de-hora: - Durante uma conversa, na secretaria es- colar, entre as duas professoras, Lúcia e Helena, - da qual também participei, estas lhe disseram que o menino era muito inteligente, mas não copiava.

Na primeira cena, os professores reclamam de certas atitudes e comportamentos dos pais dos alunos. Relatam que estes, quando não concordavam com os cuidados dis- pensados pelos educadores na relação com seus filhos, no que concernia ao estabeleci- mento de “limites” e da “disciplina”, costumavam proceder a queixas formais à Secreta- ria de Educação. Havia ainda, historicamente, aquelas direcionadas a vereadores de oposição, na Câmara Municipal, como modo de pressionar a situação (prefeitura) a agir conforme seus interesses, que considerariam mais adequados à educação de seus filhos, em con- fronto declarado ao governo das condutas na classe pelos professores. Com isso, o pro- fessor poderia ser demitido, se tivesse queixas em seu nome, e levando em conta suas precárias relações de trabalho, em contrato temporário. Os profissionais eram convoca- dos a uma espécie de inquirição, ficando lado a lado com o pai reclamante, quando, quase sempre, a Secretaria de Educação ou o político opositor ficava a favor do “res- ponsável”. No encontro para planejamento, realizado por professores e técnicos, entres estes os psicólogos, as demandas dos professores vão no sentido de que, para a formação bem sucedida, é preciso mudanças nos comportamentos dos alunos. Assim, a questão é colo- cada como mudança que deve ocorrer de forma unilateral, ou seja, os alunos precisam ser modificados e a resolução dos problemas disciplinares e de agressividade é de natu- reza familiar. Para os educadores o que se passa em sala de aula é consequência do que não acontece em casa no que tange à educação. Entre os registros como os supracitados, destaca-se o analisador de Alice Plea- sance Lidell, uma aluna considerada “autista”. Ele é que nos aponta alguns tensiona- 202

mentos nas relações entre (1) técnicos e professores, (2) entre especialistas e gerência do ensino, e, (3) destacadamente, conflitos torrenciais entre família e escola. Partindo de alguns incidentes deste tipo, Alice nos aponta subsídios para pensarmos, ainda, a impli- cação do psicólogo, no lugar de especialista e juiz da normalidade diante das demandas compulsivas pelos encaminhamentos à escola especial – NAEE. A família de Alice cobra, da escola, que a escola Alpha responda pelo ensino especializado para a filha. Tanto o professor como o “tutor” que cuida da aluna, em sala de aula, não têm formação específica que lhes forneça subsídios técnicos-educacionais para lidar com os chamados “transtornos globais do desenvolvimento”, como o autismo é enquadrado. Estes trabalhadores do ensino foram convocados, no último concurso (2008), para as funções de professor do magistério, e para recreacionista, respectivamente. Am- bas que não exigiam especialização na área de Atendimento Educacional Especializado – AEE (e às últimas apenas era exigido o ensino médio para o exercício da função). Estava declarado o impasse, a partir do momento em que o professor e o tutor eram cobrados por um tipo de cuidado especializado pela escola, e pelos pais de Alice. A gerência da escola, a Secretaria de Educação, e a coordenação da equipe técnica, de- fendiam a permanência de Alice na escola regular, como nos discursos com a família. Paradoxalmente, avaliavam, entre si, a inviabilidade prática desta permanência (em si- lêncio, não era declarado aos pais, mas dito no cotidiano da escola), uma vez que a alu- na não poderia ficar eternamente na turma do pré-escolar III (em função do descompas- so etário com os alunos de 5 anos), e se preocupavam com a exigência dos pais para que Alice passasse à classe de alfabetização. O conceito de duplipensar nos serve como ferramenta teórico-prática a operar com uma análise inicial das práticas discursivas destes atores das escolas de Antares. Foi inventado por George Orwell, no livro 1984, e corresponde a um conceito segundo o qual é possível ao indivíduo conviver simultaneamente com duas crenças diametralmente opostas e aceitar ambas. Na distopia de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro176, o Estado controlava o pensamento dos cidadãos, entre muitos outros meios, pela manipulação da língua. Os especialistas do Ministério da Verdade criaram a Novilíngua, uma língua ainda em

176 Refiro-me ao livro 1984, escrito em 1949 como uma obra futurista, por George Orwell.

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construção, que quando estivesse finalmente completa impediria a expressão de qualquer opinião contrária ao regime.

Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir menti- ras cuidadosamente bem arquitetadas, defender simultaneamente duas opini- ões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia, e que o Partido era o guardião da de- mocracia, esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; a acima de tudo aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a consciência, e então tornar-se insconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “du- plipensar” era preciso usar o duplipensar. (ORWELL, 2009 [1949])

Assim, operar-se-ia um repúdio à expansão da vida, ou uma redução de potencialidades, em função da defesa discursiva (relatorial) da própria expansão. No discurso geral da escola, as diferenças, ou aqueles que destoam da homogeneidade prevista, como Alice, devem ser administradas, - e adaptadas -, com o “recurso” de Educação para a vida. Na fala da chefe da equipe técnica, à Alice deve ser ministrada a “educação para a vida”, uma espécie de “socialização” apenas.

Escola Beta, dia 8 de março de 2012 Com relação a outro aluno, Daniel177, com Síndrome de Down, numa reunião pedagógica (escola Beta, diário de 08.03.2012), diz-se que é preciso saber onde é que ele falha, onde é que ele não consegue, para então reduzirem o que o aluno pode aprender, o que ele precisa aprender. A Orientadora pedagógica, Calpúrnia, pede à coordenadora da SAFE, orientação sobre adaptação curricular de dois alunos “inclusos”(um com Síndrome de Down, e outro com grave paralisia cerebral, ambos matriculados na escola regular):

O. P. Calpúrnia: “- Daniel precisa de adaptação. Não pode assistir as aulas do 7.º ano sem ser adaptado.” Professora A: “- O aluno Daniel questiona que ‘o seu trabalho’ é diferente dos outros. Não aceita.” A coordenadora SAFE, Pipa: “ - Vou pedir, gentilmente, ao psicólogo, à psicopedagoga, e à orientadora educacional para que façam a adaptação. Vamos ter essa adaptação após ver onde ele [o aluno] para, onde não funciona. Vamos identificar o limite do Daniel. Exemplo bobo: Tratado de

177 Daniel era apelidado de “boto cor-de-rosa” pelos alunos da turma. Ele tem trinta e cinco anos, estatura bem superior à da maioria dos alunos da classe, e está “inserido” em uma turma com alunos de 6.º ano, em geral, com dez anos de idade. 204

Tordesilhas; o que ele pode aprender do tratado? É um trabalho individualizado mesmo.” [sic]

Da mesma forma, professores, quase em uníssono, quando se deparam com incidentes de distorção série-idade, evocam a necessidade incólume da produção de laudos especialistas que justifiquem suas condutas de redução da vida escolar de alguns alunos, através do desfecho da adaptação curricular, aparentemente único para o não aprender. Desta forma, a palavra de ordem é: “- eles precisam aprender apenas o necessário para a vida”. E, afinal, querem dizer, com isso, que a aprendizagem para a vida seria algo menor que os conteúdos formais da cartilha escolar, e, que haveria separação entre vida escolarizada e a vida, de modo mais amplo? Parece que, através destes discursos, a vida se reduz à escola. Retomando os discursos referentes a Daniel, a coordenadora:

Coord.ª Pipa: “- a equipe vai estar trabalhando, com ele, essa aceitação, que, de início, não será fácil”. Um professor pergunta, e a coordenadora responde que Daniel tem deficiência mental leve.

A tutora do aluno com paralisia cerebral [e mãe de outro, também com a paralisia], profere:

Tutora: - “a família já está ciente de que ele não consegue !?” Professora A: “- Daniel é que tem de decidir...” Coordenadora: “-quando trabalhamos com esses alunos, é pensar para a vida!” Professora A: “- Daniel é questionador, é bom, mas ele não acompanha...”

3.4 Linhas de Errância de Alice: Anti-Anatomia política entre escola e família

Assim, a direção da escola, e a coordenação da SAFE, defendiam, com os técnicos, a necessidade encaminhar Alice para uma escola especializada em cuidados com autistas, pois que não estavam preparados para atender às suas necessidades especiais: - a justificativa era a de que não tinham profissionais nem salas especializadas. Entretando, de encontro ao discurso da Secretaria de Educação, na prática, subentendia-se que a ordem era a da permanência da aluna na escola regular. 205

Sabendo que os pais de Alice eram figuras “ilustres” da cidade, com seu pai no cargo de Secretário de Transportes, a escola deixava-se policiar pelas atitudes da mãe de Alice em “supervisionar” o trabalho da escola. Visitava a escola, de surpresa, corrigindo os educadores ao lhes dizer como atuar com a filha. Em geral, investidas como esta, eram aceitas pela escola. Enquanto a família de Alice esperava uma pedagogia especializada para o “au- tismo”, a escola enxergava na aluna a “doença mental”, ou somente questões compor- tamentais a serem objetos de uma educação condicionada, que não iam de encontro com a fração da “aprendizagem” formal, dos conteúdos formais do ensino. Isto porque Alice não se alinhava à linguagem, e ao discurso do ensino formal-escolar. A escola Alpha acreditava em uma socialização, ou o que denominam de educar para a vida. Ironica- mente, “educar para vida”, significa a redução ou adaptação curricular, que pode se a- plicar tanto aos alunos especiais, com problemas graves de saúde – paralisias cerebrais, a exemplo -, como àqueles não alfabetizados. Os pais recorriam à escola ao entender o adoecimento da filha como uma ques- tão, essencialmente, intelectual, como que estivesse acometida de “deficiência mental ou intelectual”, e, portanto, passível de uma intervenção de uma pedagogização onipo- tente. Tal como uma defesa contra o sofrimento e a sua implicação, a família deposita- va à educação formal escolar a responsabilidade de cuidados com Alice. Em meio a estas discussões pais-professores-escola, uma tática de observação em sala, realizada pelo psicólogo, é questionada. Durante uma observação na turma de Alice, eu percebi que ela estava realizando atividades diferentes das dos outros alunos (de 5 anos). Dei uma folha de papel à aluna, e alguns gizes de cera, para que desenhasse. Rapidamente, Alice os leva à boca, os mas- tiga e come. (diários de pesquisa) Eu, surpreso, ao ver a aluna mastigar os gizes, e a professora apenas a observar (como se esperasse que o “especialista” fosse interferir na situação) perguntei à profes- sora: “- ela faz sempre isso ? E o que vocês costumam fazer ? (sic.) Ela responde, di- zendo que, se um “especialista” entra em sua sala, para realizar atividade com um aluno, ele é o responsável. Apenas afirmei que estava apenas observando, e que a responsabili- dade do professor não cessava quando da sua entrada. Subitamente, toda a responsabilidade lançada, pela escola e pela família, ao pro- fessor, é transferida para o “especialista”. A professora, sentindo-se ameaçada, forja um 206

relatório distorcendo as minhas falas: “-ele disse que Alice ingeria gizes-de-cera todos os dias, e que nada fazíamos”, no qual consegue a assinatura da tutora e de uma outra professora (que nem mesmo esteve na sala), confirmando o falso discurso atribuído a mim, e o envia à direção, na forma de mais um relatório-queixa:

Relatório Pré-Crime de 17/03/2010: do professor ao especialista Aos dezessete dias do mês de março de 2010, aproximadamente as dezesseis horas, o psicólogo Davi, adentrou em minha sala de aula com o objetivo de fazer algu- mas observações sobre a aluna Alice Pleasance Lidell. O psicólogo Davi me perguntou se a aluna possuía algum brinquedo de estima- ção e se caso não possuísse, se a mesma não poderia levar para sua casa, algum brin- quedo existente na sala de aula, como por exemplo, uma boneca. Respondi a Davi que a aluna não demonstrava interesse por nenhum objeto da sala sem autorização da Direção da escola. O psicólogo Davi tentou fazer com que a aluna Alice se interessasse por uma boneca, a da Mônica, mas não obteve sucesso em suas investidas. A aluna demonstrou interesse em tirar os objetos e brinquedos que estavam guardados nos baús infantis. Em um dado momento a aluna sentou-se e começou a manusear e ingerir gizes de cera que estavam expostos sobre a mesa. O psicólogo me pediu uma folha de ofício para aluna, mas a mesma não apresentou interesse em pintar ou rabiscar a folha e ingeriu mais gizes de cera. O psicólogo me perguntou o que costumava fazer nessa situação. Respondi que procurava intervir e retirar o giz de suas mãos e desviar sua atenção. O psicólogo me perguntou num tom nada agradável, digo, com um tom de voz não demonstrando estar satisfeito por não intervir na situação, o por que da minha omissão. Respondi que não interferi porque a aluna no momento estava sob seus cuida- dos, sob sua responsabilidade e que achei que ao analisar a situação iria inclusive me sugerir meios, modos ou quem sabe, alguma atividade diferenciada para solucionar esta situação. O psicólogo Davi sem mais nada a me declarar, retirou-se da sala de forma grosseira, digo de modo grosseiro. Por volta aproximadamente dez minutos, o mesmo retornou a sala me afrontan- do com o seguinte comentário: Que a aluna Alice é de extrema responsabilidade minha e que tudo o acontece em minha sala de aula é de responsabilidade minha e que quem colocou os gizes de cera sobre a mesa fui eu e não ele. Respondi o comentário do profissional da seguinte forma: Lembrei o mesmo que, a aluna Alice não é de extrema responsabilidade minha, é de todos, da equipe téc- nica, da tutora Como ele mencionou e da escola. Disse mais: que os lápis e gizes de cera estavam expostos sobre a mesma, porque os alunos July, Marieta, Michael, Miriam, Noêmia, Thaís, Marília, Victorio e Keila estavam realizando determinada atividade di- recionada por mim. O psicólogo não se conteve e afirmou que eu estava incomodada com a presen- ça da Alice em sala de aula e estava transferindo a responsabilidade para ele. Contestei sua afirmação dizendo que tenho plena consciência das minhas obrigações como profes- sora e que pelo contrário, ele é que estava se insentando das responsabilidades que ca- bem a ele. No decorrer do acontecimento, a recreadora Solange procurou intervir naquela situação conflitante e principalmente nas questões de “responsabilidades”, mas não ob- teve sucesso. 207

Vale ressaltar também que a professora Rosana do quinto ano de escolaridade, presenciou grande parte do epsódio. (Lembrando que por necessidade a professora utili- zava o banheiro da sala). Sem mais nada a declarar desta desagradável situação, peço por gentileza que os envolvidos indiretamente e a direção da escola assinem o presente relatório. [sic.] Escola Municipalizada Alpha Professora Telma Ribeiro x Rosana Santos x Solange Campos Mota Observação importante: O psicólogo Davi também afirmou que acreditava que a aluna Alice ingeria giz de cera todos os dias. - No dia seguinte 18/03/2010 a professora Telma procurou a direção da U. E. e a orien- tadora educacional e relatou o fato ocorrido. [sic.] Ciente. Mary Jane Watson [Orientadora Educacional] Ágatha Trunchbull [Diretora]

Sendo assim, no que tange à questão evocada neste segmento da dissertação – a envolver os desencontros, impasses e relatórios de culpabilização entre família e escola e a discussão em torno do lugar de especialista do psicólogo -, o conceito de governa- mentalidade é utilizado como ferramenta principal para as análises das relações de po- der, considerando que nos fala das várias táticas de soberania, e controle, a exemplo nas escolas, como tecnologias de governo de si e dos outros. A governamentalidade se forma, na passagem do Estado territorial, para o Esta- do administrativo e, atualmente, populacional, através de três instrumentos particulares: (1) o poder pastoral, (2) novas técnicas diplomático-militares, e, finalmente, (3) pela invenção da Polícia. (Cf. FOUCAULT, 2004). Em dissonância aos esforços escolares em adaptar Alice aos seus espaços- tempos, a aluna provoca distúrbios à normalidade esperada. Apesar de sua incomunica- bilidade com palavras, seu corpo nos fala das tensões entre os atores, entre os professo- res e técnicos, - porque os primeiros avaliavam que estes não os apoiavam, suficiente- mente, não lhes ensinavam como direcionar o comportamento de Alice -, entre os pró- prios técnicos, e entre escola e família. Suas expressões eram de expansão, para além dos limites que as paredes da clas- se de alfabetização lhe ofereciam. Ela andava, nas pontas dos pés, como se flutuasse sobre o chão da escola, escapando às tentativas, da escola, em lhe dar direção. Alice queria ficar transitando, passava entre os espaços de confinamento, e os tempos de con- trole, e por isso, desafiava a ordens, as normativas, a ênfase nas adaptações. Não acata- va reduzir-se à linguagem formal escolarizada. 208

Atendendo aos anseios dos pais, a escola se tensionava pela manutenção de Ali- ce dentro da classe, pois que a família não poderia desconfiar de que Alice estivesse sem atividades (o que significava aprender a ler, na concepção dos pais). Como a aluna não fazia as mesmas atividades que os alunos da turma, perturbava o andamento das aulas, e, como não havia toalete, por perto, na sala, urina na própria classe, como indício de protesto:

Relatório Pré-Crime da (Psico)pedagoga

ESTADO DO RIO DE JANEIRO Prefeitura Municipal de Antares Secretaria Municipal de Educação

EM 2 DE SETEMBRO DE 2010

OCORRÊNCIA Ao iniciar as aulas 2.º turno, fui chamada urgentemente para a sala do 1.º ano/ prof.º Beavis. A tutora Solange Maria estava sem forças para controlar a aluna Alice Pleasan- ce Lidell, portadora de autismo clássico. A aluna estava muito agitada, mordendo e u- nhando o professor e a tutora. Chegando à classe, observei a gravidade da situação e pedi que a tutora caminhasse com a aluna pelo pátio da escola, pensando, talvez, que ela pudesse melhorar aquela situa- ção. Como esta melhora não aconteceu, acompanhei a tutora e a aluna ata a brinquedoteca. Mas a aluna estava muito agitada, derrubou o escorrega, chutou a gangorra para o outro lado da sala, derrubando outros brinquedos pequenos, entrou na piscina de bola e mor- deu as bolinhas até rasgar. Nesse momento, peguei a aluna para levá-la ao espaço pedagógico e avisar a coordena- dora de Ed. Especial Pipa, que, graças a Deus, encontrava-se no momento e pode ob- servar o que acontecia. A aluna unhou e tentou me morder. Para que ela não me machucasse mais do que já es- tava machucada, e não machucasse outras pessoas, eu segurei a aluna com os braços pa- ra trás e pedi que Pipa comunicasse à sua família imediatamente, e pedisse que, quando ela estivesse agitada, não a levasse para a escola, mas sim para a unidade de tratamento em Saúde, por onde é acompanhada, apenas uma vez por semana. Neste momento, a mãe chegou à escola de surpresa e presenciou algumas reações. Acho que a mãe apareceu porque sabia que, naquele dia, a filha estavan um pouco mais agitada. Fizemos imediatamente uma reunião com a mãe na presença do professor Bea- vis, tutora, subdiretora, OP Beatrice, psicopedagoga e coord. de ed. Especial. Logo, fomos interrompidas, porque a alunas havia arranhado e mordido as funcionárias Margarida e Rosalva. Pedimos então que a antiga tutora Ellen estivesse com amenina com fim de que pudéssemos dar continuidade à reunião. Mas logo em seguida Alice mordeu o dedo de Ellen, ocorrendo sangramento. Durante a conversa sugerimos à mãe da aluna que esta frequentasse a classe regular a- penas algumas vezes na semana, e que também freqüentasse o NAEE – Núcleo Munici- pal de Atendimento Educacional Especializado. Imediatamente, a mãe criticou nega- tivamente a instituição, mesmo sem conhecê-la. Daí, sugeri que conhecesse o local pa- ra se certificar do tipo de trabalho que é realmente realizado na instituição. Porém, a responsável disse que pensaria em aceitar a proposta. 209

De acordo com a legislação específica de educação inclusiva, em seu art. 10º: Os alu- nos que apresentem necessidades educacionais especiais e requeiram atenção individu- alizada nas atividades da vida autônoma e social, recursos, ajudas e apoios intensos e contínuos, bem como adaptações curriculares tão significativas que a escola comum não consiga prover, podem ser atendidos, em caráter extraordinário, em escola especi- ais, públicas ou privadas, atendimento esse complemento, sempre que necessário e de maneira articulada, por serviços das área de Saúde, Trabalho e Assistência Social.

CONCLUSÃO Após observações, verifiquei que a aluna Alice não se encontra preparada para a inclu- são, pelo menos neste momento, pois mesmo com a tutora atual, a menina não terá bom aproveitamento das atividades realizadas em classe. No momento, a aluna Alice necessita de escola especializada para tornar seu aprendiza- do mais eficiente. Precisa adquirir condições básicas para futura inclusão. Também terá de aprender a ter autonomia em cuidados com o próprio corpo, utilizar de forma correta o banheiro para suas necessidades, pois atualmente ela despe-se e urina em qualquer lu- gar, apresentando quadro de agitação muito grande: - grita, morde, unha, não consegue realizar nada. A aluna deverá aprender a conviver em grupo para socializar-se com os demais alunos, professores e funcionários. Este trabalho será feito diretamente com profissional especializado, e, a família terá de ser acompanhada a fim de que este trabalho desenvolvido com a estudante tenha êxito. [sic.] (grifos do autor do documento)

Estes incidentes promovem várias reuniões, entre equipes, e destas com os pais de Alice. Após muitas discussões, fica decidida a redução de seu tempo na escola, para três dias, e durante três horas, no turno da tarde (antes ficava de segunda a sexta, e o dia inteiro). Isto não é feito por iniciativa dos técnicos, mas com a intervenção da direção da Escola Especial da municipalidade (NAEE). Alice passa estudar em uma sala de recursos individual, e a contar com o apoio de dois técnicos: uma alfabetizadora e um cuidador (ambos da escola especial). Isto ocorre num período em que o NAEE interrompe suas atividades, em função de obras. Alguns alunos, deficientes, que pudessem, passavam a frequentar as turmas regulares. Os que não poderiam, eram os que não teriam comportamento adequado à escola, e, que, com isso, poderiam suscitar conflitos. Alice, como os outros produtores desconhecidos na comunidade escolar - alunos, famílias, professores -, consumidores e clientes do ensino-mercadoria, nos dão indícios das lutas ainda silenciosas. Alice expressa uma dissidência silenciosa: não pre- cisava falar para desestabilizar a organização da escola. De Certeau (1999), como um intercessor, nos remete às táticas astuciosas dos produtores desconhecidos como Alice:

[...] Produtores desconhecidos, consumidores produzem por suas práticas significantes alguma coisa que poderia ter a figura das “linha-de-erre” dese- 210

nhadas pelos autistas de F. Deligny. No espaço tecnocraticamente construído, escrito e funcionalizado onde circulam, as suas trajetórias formam frases im- previsíveis, “trilhas” em parte ilegíveis. Embora sejam compostas com os vo- cabulários de línguas recebidas e continuem submetidas a sintaxes prescritas, elas desenham as astúcias de interesses outros e de desejos que não são nem determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolvem. (DE CER- TEAU, 1999, p. 45)

As análises que o corpo de Alice nos providencia têm a ver com uma descons- trução que promove com relação aos lugares certos e previsíveis para os atores envolvi- dos na trama, inicialmente reduzida a um “caso” individual”. Na medida em que a ex- pansão autística de Alice desarruma os lugares, ao tensionar o ambiente, outros aconte- cimentos se constituem como suporte à análise das relações escola-família: A família de Alice, devido à sua posição de poder político e soberano na cidade, não aceita as determinações da escola, e é resistente aos encaminhamentos à área médi- ca, e para o NAEE; tencionam, de um lado, para que a escola dê conta de quase todos os cuidados com Alice. Isto porque remete a doença do “autismo” aos cuidados pedagógi- cos e, de outro lado, pensá-la como adoecimento real os levaria às suas próprias impli- cações com cuidados e educação de Alice. Neste caso, a família policia a escola, e, com isso, promove uma inversão do caminho comum dos encaminhamentos para fora da escola. Exigem que tudo aconteça na própria escola. A escola, em sua contraparte, se queixa, especulando que a família de Alice não lhe dava os remédios, ou seja, o antipsicótico haldol (haloperidol), que um neuropsiquiatra (Simão Bacamarte) do CAPS lhe havia prescrito. Pensavam que a “mãe não lhe dava a medicação”, pois não “aceitava a doença mental da filha”, e, no ponto de vista da escola, se a aluna fizesse o uso apresentaria um comportamento mais controla- do, mais permitido e adaptado às regras. Assim, lançavam, com mais um discurso pré- crime, uma hipótese sobre a “origem” da agressividade de Alice, e de sua (in)disciplina: - estaria no não uso do medicamento antipsicótico. Alguns técnicos da escola – das equipes SAFE e SOPE -, e profissionais da Es- cola Especial (NAEE) tiveram cursos especializados na Sociedade Pestalozzi, em uma cidade próxima – Barra do Piraí -, pagos pela Secretaria de Educação de Antares. Estes cursos versavam sobre um método cognitivo-comportamental de cuidado e educação com crianças autistas, método TEACCH178, ministrado então por uma fonoaudióloga.

178 Sigla para Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children. 211

3.5 Encaminhar a distorção série-idade para a Escola Especial: inclusão ou exclu- são?

O Corpo sem Órgãos (CsO), - um plano de consistência ou campo de imanên- cia do desejo como produção, onde o desejo é autônomo com relação às exterioridades que lhe indiquem as faltas e falhas a serem preenchidas -, nas flutuações de Alice às ordens adaptativas escolares, nos encaminha, ainda, às análises das práticas coletivas de inclusão social educativa, nas escolas deste estudo. Ele nos fala das pedagogias políticas destinadas aos Atendimentos Educacionais Especializados, bem particulares da cidade de Antares. A questão se inaugura com a eclosão das práticas de encaminhamentos de alunos para uma Escola Especial, como um direcionamento prescrito, obrigatório e repetitivo nas escolas antarenses. No excerto que se segue, Deleuze e Guattari (2011) sintetizam como retomam o conceito de Antonin Artaud e o atualizam em um uso ético-político:

Às máquinas-órgãos, o corpo sem órgãos opõe sua superfície deslizante, opa- ca e tensa. Aos fluxos ligados, conectados e recortados, opõe seu fluido a- morfo indiferenciado. Às palavras fonéticas, ele opõe sopros e gritos, que são outros blocos inarticulados. Acreditamos ser este o sentido do recalcamento dito originário: não um “contrainvestimento”, mas essa repulsão das máqui- nas desejantes pelo corpo sem órgãos. E é justamente isso que significa a máquina paranoica, a ação invasiva das máquinas desejantes sobre o corpo sem órgãos, e a ação repulsiva do corpo sem órgãos, que as sente globalmen- te como aparelho de perseguição. (DELEUZE; GUATARRI, 2011, p. 21)

Pelbart (2008) nos aponta a que se propõem os Corpos sem Órgãos, como nos anunciam as derivas nas heterogeneidades de Alice, e dos alunos em defasagem série- idade: [...] Como mostra a conclusão praticamente ininteligível de Mil Platôs, o que se inscreve num plano de composição são os acontecimentos, as transforma- ções incorporais, as essências nômades, as variações intensivas, os devires, os espaços lisos – é sempre um corpo sem órgãos. Em todo caso, há aqui uma condição que serve para pensar o plano micropolítico ou macropolítico, e que parece uma fórmula matemática: o n-1. O que significa essa fórmula esquisi- ta? Apenas isto: dada uma multiplicidade qualquer, um conjunto de indiví- duos, ou singularidades, ou afetos, como produzir esse plano de consistência sem subsumir essa heterogeneidade a uma unidade qualquer? Ou seja, o des- faio consiste nisto: mergulhados numa multiplicidade qualquer, que faz um plano de composição, esconjurar aquele Um que pretende unificar o conjun- to, ou falar em nome dessa multiplicidade, seja esse um papa, um governante, o diretor, uma ideologia, um afeto predominante. (PELBART, 2008)

212

Estes encaminhamentos ocorrem por várias demandas, principalmente oriundas dos discursos dos professores, diretores e especialistas da escola. A partir de 2011, as exigências aumentaram quanto a avaliações pela equipe SAFE, já com o destino pré- definido pela coordenação, e arquitetado de fora, pela Secretaria de Educação, para o NAEE. Suas reais motivações são incógnitas até o momento. Entretanto, desconfio de que a aproximação das eleições de 2012, e em sendo 2011 um ano “pré-eleitoral” agu- dizaram-se a prevenção e contenção dos riscos das queixas da comunidade de pais se voltassem para a oposição, contra a reeleição de apoiadores do poder político atual. Os alunos “incluídos” nos grupos e categoria de “distorção série-idade” tinham de ser encaminhados à escola especial, para lá participar de aulas de alfabetização. Os alunos com deficiências neurológicas e neuropsicomotoras graves, como paralisias cerebrais, e com patologias como autismo, em geral, se constituíam como desafio para a inclusão. Alguns eram matriculados e estudavam no ensino regular e es- pecial. Para os que só frequentavam o especial, pensavam-se possibilidades da entrada às escolas “normais”. O que se verifica é que os mais obedientes, e não agressivos ou indisciplinados eram aceitos na escola regular, no que se refere aos autistas e aos defici- entes mentais mais graves. No que concerne à não aprendizagem ou distorção série- idade, tendo como “risco-potencial” interno a geração de (in)disciplina, estes também não são aceitos: a menos que sejam adaptados à grade curricular reduzida; se não o fo- rem, serão “incluídos” na articulação com a Escola Especial. Em descompasso com as práticas de “inclusão” na própria escola, e com a vi- gência legal da Declaração Internacional de Salamanca (1994) 179, a política pedagógica de Antares parece entender como inclusão apenas o que se refere à entrada nas escolas regulares de reais deficientes físicos, mentais, sensoriais, neuropsicomotores; após as obras na escola especial de Antares (entre março e julho de 2011), recomeçam as esco- las a encaminhar os alunos não alfabetizados e em classes mais avançadas (classifi- cados em distorção série-idade) para a Escola Especial, como destino certo, exigin- do, para tanto, a assinatura dos membros da equipe técnica das escolas como avalistas para os encaminhamentos. Caso o psicólogo não concordasse em encaminhar, utiliza- vam o (psico)pedagogo, deixando em branco o espaço para a assinatura do primeiro, no documento de referência. Vejo que se destaca um impasse e uma contradição entre um

179 A Declaração de Salamanca sobre Princípios, Política e Práticas em Educação Especial é um docu- mento resultado da Conferência Mundial em Educação Especial, organizada pelo governo da Espanha em cooperação com a UNESCO, entre os dias 7 e 10 de junho de 1994, na cidade de Salamanca, Espa- nha. 213

fluxo de inclusão privilegiada nas escolas “normais” dos alunos com deficiências orgâ- nicas mais sérias com implicações na aprendizagem, e outro fluxo de encaminhamentos de alunos que se encontram atrasados na apreensão dos conteúdos formais para o NAE- E. Estes últimos sofrem os efeitos da macropolítica oficial das aprovações automáticas (“progressão continuada”), e por isso incluídos na categoria semi-nosográfica de distor- ção série-idade. No Regimento Interno (RI) da Secretaria de Educação, apenas os psicólogos, psicopedagogos e fonoaudiólogos poderiam encaminhar os alunos a serviços educacio- nais especializados. Os discursos que se referiam ao ensino ao aluno Daniel, com Síndrome de Down, agora se deslocam, numa mesma reunião pedagógica, às questões que envolvem o trabalho do professor diante do fracasso escolar, isto é, com aqueles alunos não alfa- betizados nas turmas mais adiantadas de 6.º, 7.º, 8.º e 9.º anos. Incluídos na categoria de defasagem série-idade, são, respectivamente, 14 alunos (ou metade do sexto ano), na turma 601, três na 602, um na 701, três no oitavo ano (801), e um na 901, segundo os registros dos professores:

Professora 1: “- Eles não sabem ler, nem escrever: não lêem literatura, e não sabem interpretar.” Professor 2: “- não sabem direito fazer a ordem cronológica.” Professor 1: “- Devolvem o livro sem manusear.” Professor 3: “- O jovem não vai aprender nunca. Ele não vê sentido na edu- cação. E só pensa em namorar, não pensam na educação como no futuro.” Professor 4: “- Só querem saber de namorar mesmo! E reproduz a fala de uma aluno, quando este disse não ter compreendido o que é o século XVII: - ah, Dona, não sei isso não! [...].”

A professora 1 evoca, daí, questões que relacionam fracasso escolar e (in)disciplina:

Professora 1: “- Mas a culpa não é do aluno, é da Secretaria de Educação: se o aluno volta sem o livro, e a Secretaria não faz nada!” Professora 4: “- E é assim, o cara mata, vai preso e ... é de menor. Os direi- tos humanos pulam em cima, e o jovem não é preso porque é menor.” Calpúrnia (OP).: “- É mesmo, eles só querem saber de seus direitos.” Professor Z180: “- O mundo atual não vê literatura: as pessoas não leem. Ho- je, você busca no google a história do [número] π (pi), copiam uma redação inteira da Internet.

180 PROFESSOR Z utilizo como um código para os discursos dissidentes, registros dissonantes na escola, que escapam como linhas de fuga dos mais previsíveis e medicalizantes como registros pré-crime. No fime “Z”, de Costa-Gravas, considerado uma obra –prima do cinema político, que inicia com o assassi- nato de um político grego dissidente (nacionalista), em seu final expõe o significado da letra Z em gre- 214

Se ninguém vai aprender nunca, então: The Wall181 [o muro], não há saída!!” A orientadora pedagógica, que gerencia a reunião, informa as novas regras para avaliação dos alunos:

“- Haverá três avaliações: uma prova a valer 5,0, e um teste a valer 3,0, no somatório de 8,0 pontos; os 2,0 restantes referer-se-iam à AQ – avaliação qualitativa. Caso não consigam obter a nota 5,0, os professores terão de dar ainda uma prova de recuperação, valendo 8,0.”

Com isso, os professores reclamam, ressaltando a (in)disciplina que se produzi- ria como efeito:

“- e a bagunça vai aumentando... Com menos de 5, o aluno ainda tem direito à recuperação. E ainda tem a prova Antares, que também ajuda, soma uns pontos.” Calpúrnia.: “- Ao aluno que tiver nota menor que 5,0, o professor terá que fazer um relatório. [como se tivesse de se justificar]. O relatório que tiver ra- sura, “este ano”, não vai passar no controle de qualidade.”

Que forças políticas engendram as chamadas distorções série-idade, e as aprova- ções automáticas de alunos, e como se dariam suas ressonâncias com o exercício da autonomia, e práticas decisórias, no trabalho do magistério? Quais os efeitos das exigências de encaminhamentos dos alunos em distorção sé- rie-idade para a escola especial – como nova modalidade de inclusão (nova lei, uma extensão dos dispositivos pré-crime da escola), numa clara extensão dos relatórios de controle a especialistas médicos -, direcionadas ao psicólogo, e a outros especialistas no plantão clínico-escolar? Se existe um lugar de inclusão na escola, que lugar é este? Se muitos dizem que certas práticas, - como as articulações com escolas especiais, e as classes especiais na própria escola -, se constituem como práticas de inclusão, não é o que vejo. Vejo espe- cialistas e tutores como mediadores e porta-vozes dos professores, respectivamente, na escola e nas classes. De quem mais a escola precisaria para lhes tirar a voz e a autono-

go antigo: ‘Ele está Vivo!’. Na ditadura militar no Brasil, também era utilizado para evidenciar os ditos “subversivos”, mas de modo pejorativo.

181 Este professor faz uma ironia a um discurso anterior de outro professor, antes do início de RP (Reuni- ão Pedagógica). O segundo falava que fez uma lista com mais de dez filmes para passar para os alunos do nono ano, na sala de vídeo. A televisão e o aparelho de DVD tinham sido consertados, depois de quase todo o ano de 2011 sem usá-los. Entre os filmes, sugeria a ópera-rock The Wall, com músicas do álbum homônimo do grupo Pink Floyd, e dirigido em 1982 por Alan Parker: - durante a música Ano- ther Brick in the Wall, alunos são levados, com máscaras em trens para a escola, onde marcham para dentro de um gigante moedor de carne. 215

mia? Quem se disporia a agir de modo diferenciado? Como seriam as classes especiais e salas multifuncionais potentes? Isto ocorre então em uma dimensão mais ampliada das práticas de controle e medicalização que se engendram do interior das escolas. Tal composição da escola re- gular com o núcleo (ou escola) especial(izado) faz a expansão dos relatórios pré-crime na rede de serviços públicos da cidade, nos revelando, através de um exemplo, a trama de articulações intersetoriais como controle expandido, numa cidade em alerta aos des- vios da normalidade. Os anormais de dentro de seus dispositivos de saber podem, então, ser controlados na articulação, na contenção rotativa do risco de escaparem às discipli- nas recalcitrantes. Deparamo-nos com as dissidências, e os esforços para sua captura em voo, em movimento, na rotatividade como prenúncio de libertação, mas que pode ser articulado como controle. Sabemos, no entanto, que mesmo antes desta projeção das medicalizações para a escola especial, - na tendência de controlar a distorção série-idade dos analfabetos nor- mais, e a (in)disciplina dos autistas, deficientes físicos e mentais mais agressivos -, a escola tem suas articulações internas e indiretas com outros campos de saber-poder: com os especialistas – pedagógicos e aqueles da Saúde, como psicólogo e assistente social -, com a Justiça, com a heteronomia das Políticas Pedagógicas estatais (como leis externas que se transformam nos currículos prescritos e implementados pelo professor), com a Prisão, com a Ordem Médico-higienista e a Indústria Farmacêutica - consideran- do os encaminhamentos excessivos para a área médica, e o elevado número de alunos usando medicação para o controle de seus comportamentos indisciplinados e dificulda- des de aprendizagem. São instituições que atravessam a escola, em suma, provocando e diferenciando suas articulações gerais. Os diversos tipos de relatórios pré-crime produzidos nessas escolas, - e que des- crevo nestes dois primeiros capítulos -, parecem descontextualizar os alunos, as famí- lias, os professores, e os técnicos das relações políticas, sociais, éticas e estéticas que lhes afetam, respectivamente, através dos encaminhamentos excessivos de alunos para a área médica, da culpabilização das famílias pelo fracasso e a indisciplina, pelo cerco à autonomia de educadores que não podem avaliar, e de psicólogos que devem medicali- zar as questões pedagógico-políticas. Que forças e tensões contribuem para que uma forma dita de Educação Inclusiva seja, na prática, mais uma forma de exclusão social e controle político da população? 216

Com Veiga-Neto (2005), depreendemos que a inclusão para excluir ocorre quando esta se dá, - assim como os currículos apenas executados na escola, e a adapta- ção do autismo “incluso” à escola -, como heteronomia, transcendência, e entra em con- flito com a imanência, no esforço por equalização das diferenças, ou seja, na crise com as forças que lutam por questionamentos, criação e inventividade:

Como manter uma escola plural – em termos de alunado, professores, políti- cas educacionais, metodologias de trabalho – e, ao mesmo tempo, uma escola igualitária? Em outras palavras: diferença não é antônimo de igualdade, Nós queremos a igualdade, mas ao mesmo tempo nós queremos manter as dife- renças. O contrário da diferença é a mesmice, o contrário da igualdade é a de- sigualdade. Isso pode ser fácil de compreender, mas não é uma coisa simples de executar. (VEIGA-NETO, 2005, p. 58)

Deste modo, a emergência da adaptação do aluno às regras externas da escola, sem a sua efetiva participação no processo de aprendizagem, se identifica à confusão feita pelas políticas públicas oficiais e atores da escola entre diferença e desigualdade. Notadamente, os processos de medicalização e judicialização da infância e ado- lescência na escola, - nos encaminhamentos médico-assistencialistas, e de alunos não alfabetizados para uma escola especial-, vêm tomando o lugar das práticas coletivas e inventivas na educação. Uma ordem para que nós da equipe técnica de ajuste utilizás- semos mais um instrumento técnico como procedimento de inquérito e pesquisa. Foi elaborado sem a nossa participação direta, e a determinação era para que identificásse- mos as categorias de doenças e deficiências inscritas neste mapeamento dos alunos a- normais das escolas, assim como para indicarmos as adaptações correlatas, descritas na fac-símile abaixo como “tipo de atendimento educacional especializado”[AEE]. Em Minority Report, os policiais da Divisão Pré-Crime utilizavam os dispositi- vos de detecção de identidades dos cidadãos que viriam a cometer os supostos crimes, aparelhos autômatos conhecidos como aranhas-robôs. Este procedimento de inquérito perseguia e através de um laser se lançava à leitura da íris dos suspeitos. Como um ma- terial genético, a íris, cujos dados são registrados como um código de barras nos siste- mas operacionais computadorizados da Divisão de Polícia Pré-Crime, garantiria a irre- futável confirmação da identidade:

Procedimento de inquérito e pesquisa – aranhas-robôs: Estado do Rio de Janeiro Prefeitura Municipal de Antares Secretaria Municipal de Educação 217

Mapeamento de Alunos da Rede com Deficiência, Transtorno Global do Desenvol- vimento ou Altas Habilidades / Superdotação

1 – U. E.: ______2 – Aluno: ______3 – Idade: ______4 – Sexo: ( ) feminino ( ) masculino 5 – Ano de Escolaridade: ______6 – Turno: ______

7 – Tipo de deficiência, transtorno global do desenvolvimento ou altas habilida- des/superdotação: ( ) Cegueira ( ) Autismo Clássico ( ) Deficiência Auditiva ( ) Síndrome de Rett ( ) Deficiência Mental ( ) Síndrome de Asperger ( ) Baixa Visão ( ) Trans. Desintegrativo da Infância (Psicose infantil) ( ) Surdocegueira ( ) Altas Habilidades / Superdotação ( ) Deficiência Múltipla ( ) TDA-H (Hiperatividade) ( ) Dislexia ( ) Dif. Acentuada de aprendizagem ( ) Distúrbio de Conduta ( ) Outros. Qual? ______

8 – Tipo de Atendimento Educacional Especializado (AEE): ( ) Sistema Braile ( ) Atividades de vida autônoma ( ) Recursos para alunos com baixa visão ( ) Desenvolvimento de processos mentais ( ) Orientação e mobilidade ( ) Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS ( ) Comunicação alternativa e aumentativa ( ) Atividades de enriquecimento curricular ( ) Soroban ( ) Informática Acessível ( ) Língua Portuguesa na modalidade escrita ( ) Outro. Qual? ______Responsável pelas informações

Esta técnica seria um modo de oficializar as práticas já crônicas e vigentes de encaminhamentos indiscriminados de alunos para o NAEE, arquivar um documento como respaldo legal contra fiscalizações e processos legais, e provar que um técnico, trabalhador social como o psicólogo, ou o “responsável pelas informações”, como des- crito no documento, seria mais uma testemunha que avalizaria a classificação nosográfi- ca pré-crime. O sentido metafórico e metálico de aranha está nos enquadres entre os fios das teias que se fabricam e se entrelaçam na escola. Destacam-se dispositivos técnicos que tecem as relações gerais em grades orgânicas, cujo disciplinamento se expande em controle pelos ares da cidade, por amplos setores. Havia este primeiro passaporte para o NAEE, no fluxo escola regular-especial, e as senhas a serem identificadas seriam os códigos de conduta desordeira e/ou patológi- 218

ca: as deficiências gerais, os transtornos e as superdotações seriam rastreadas e conferi- das pelos técnicos. Um segundo dispositivo técnico de escrutínio dos corpos dos alunos era um questionário destinado aos pais dos alunos, quando do aceite da senha de entrada no serviço especial(izado) de educação. A Ficha Informativa do Aluno – Anamnese (em anexo) tinha um caráter total e invasivo. Visava acumular o maior número possível de informações do círculo familiar e de vida do estudante, objetivando compor um histórico para a escola especial. No que toca à família, a primeira questão tem as opções: pai e mãe ( )vivo, ( )falecido, ( )adotivo, ( )pais separados, ( )pais casados outra vez. “As horas gastas fora do lar” pelo pai e pela mãe são perguntadas. Dados sobre “as condições em que se efetuou” o parto, se ocorreu de modo “natural”, “demorado”, com “fórceps”, se foi “cesariana”, ou “induzido”, e as “condições do nascimento”: se “custou a chorar”, “nasceu com sinais de sofrimento”, “precisou de oxigênio”, ou “apre- sentou defeito físico”. Este documento, como mais uma técnica de exame minucioso, - agora no fluxo pós-encaminhamento da escola regular -, tende a ser exaustivo com uma interrogação que pretende uma assertiva sobre o desejo de cada um dos pais do aluno, cujo objetivo era o da detecção do mau desejo, a inscrição do malintent (má-intenção) ou desejo pré- crime na existência mesma da família.

Ficha Informativa do Aluno – Anamnese [...]

[...] A criança foi desejada desde o início? Pai ( ) Sim Não ( ) Mãe ( ) Sim Não ( ) [...]

Seguem-se perguntas sobre as doenças: - “Cite doenças, operações e acidentes que a criança sofreu até a idade atual (especificando as idades)” [...] adoece com facili- dade? Em que situações adoece? Doença ligada ao aparelho: ( ) Auditivo ( ) Visual [...]” Tendo em vista os fluxos de encaminhamentos internos às escolas “normais” e entre estas e o NAEE, e a conotação e a ênfase da inclusão dadas no sentido dos enca- minhamentos de alunos com deficiências e doenças reais do NAEE à escola regular, gostaria de questionar o que são os outros fluxos de encaminhamentos existentes. Vei- ga-Neto (2007) argumenta que “as políticas de inclusão escolar funcionam como um poderoso e efetivo dispositivo biopolítico a serviço da segurança das populações.” 219

(VEIGA-NETO, 2007, p. 949)182. Foucault (2010) expõe a qualidade políticas específi- cas, calculistas, que se voltam ao controle estatístico dos processos biológicos: - como as práticas político-pedagógicas de inclusão excludente,

[...] a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a dura- ção da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los vari- ar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. (FOUCAULT, 2010: 152)

Indícios de práticas e relações de governo, soberania, disciplina e controle nos servem como ferramentas conceituais nas análises das relações de poder. Ao invés de educar, a ordem é a gerência política sobre a vida da população: irrompem desafios éti- co-políticos para o psicólogo social, professores, alunos e famílias, ao ir-além das estra- tégias de governo da vida da comunidade escolar, para além dos controles político- médico-assistenciais na cidade.

3.6 Da esquizofrenia, a menina, e o poder grotesco soberano (Jaguadarte)

JABBERWOCKY (JAGUADARTE) Lewis Carroll (from Through the Looking-Glass and What Alice Found There, 1872) `Twas brillig, and the slithy toves Did gyre and gimble in the wabe: All mimsy were the borogoves, And the mome raths outgrabe. "Beware the Jabberwock, my son! The jaws that bite, the claws that catch! Beware the Jubjub bird, and shun The frumious Bandersnatch!" He took his vorpal sword in hand: Long time the manxome foe he sought -- So rested he by the Tumtum tree, And stood awhile in thought. And, as in uffish thought he stood, The Jabberwock, with eyes of flame,

182 LOPES, M. C.; VEIGA-NETO, A. (2007) Inclusão e Governamentalidade. Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 947-963, out. 2007. Disponível em Acesso em: 30 abril 2011. 220

Came whiffling through the tulgey wood, And burbled as it came!183[…]

Os técnicos e não técnicos normalizadores da E. E. M. Alpha discutiam, então, qual seria o destino de Alice lidell. Reuniões e mais reuniões do tipo colegiado foram agendadas com a família. Nos bastidores, a diretora Ágatha e a diretora adjunta diziam que a aluna deveria estudar no NAEE e/ou em uma escola especializada na suposta do- ença autística; na prática cobravam, juntas dos professores, que a equipe técnica forne- cesse instruções técnicas aos educadores sobre como lidar com o comportamento agres- sivo ((in)disciplina) de Alice e como ensiná-la. Ágatha tinha medo da família, especial- mente do pai, que era o Secretário Municipal de Transportes. Afinal, reclamações da família poderiam repercutir em sua destituição do cargo de diretora. Os técnicos eram posicionados como um escudo para a equipe dirigente, na dianteira das conversações com a família da estudante. Especialistas das equipes técnica e pedagógica visitam uma escola especializada em autismo em Barra do Piraí, cuja diretora é uma fonoaudióloga. Na visita, o pai de Alice lê em um quadro pendurado uns dizeres sobre o autismo se constituir como uma doença genética, e em seguida, olha para a esposa e diz que as inscrições eram uma comprovação de que a culpa era dela. Culpa genética = culpa da mãe. Durante uma reu-

183 O jabberwocky pode ser traduzido por Jaguadarte, como é feito no filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton e na tradução de Augusto de Campos que apresento abaixo.

Jaguadarte

Era briluz. As lesmolisas touvas Roldavam e relviam nos gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas, E os momirratos davam grilvos.

“Foge do Jaguadarte, o que não morre! Garra que agarra, bocarra que urra! Foge da ave Felfel, meu filho, e corre Do frumioso Babassurra!”

Êle arrancou sua espada vorpal E foi atrás do inimigo do Homundo. Na árvora Tamtam êle afinal Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta, Chegou o Jaguadarte, ôlho de fogo, Sorrelfiflando através da floresta, E borbulia um riso louco! [...]

Tradução de Augusto de Campos para o Jabberwocky de Lewis Carroll 221

nião “colegiada” com a responsável por Alice, ela afirma que sofreu de “depressão pós- parto”, não olhava a filha, e a tinha como a um objeto inanimado posicionando-se à dis- tância. Lembro da primeira vez em que entrei na sala de aula de Alice, em 2009, quando ela ainda estudava na turma do ensino infantil III. Assim que abri a porta, ela correu começou a me tatear, e a cheirar as próprias mãos, como se estivesse a reconhecer um território sem poder vê-lo, como se não me enxergasse e não tivesse noção de profundi- dade, da distância entre mim e ela. Pensei que ela realmente não enxergasse, e ainda não sabia que ela era a aluna “autista” de que muito se falava em todas as escolas em que trabalhava. O dilema entre os diagnósticos atribuídos pela família (autismo), ou pela escola (esquizofrenia {ou psicose}) à aluna Alice, nos reportam à antiga divisão entre os a- normais de hospício e os anormais da escola, tipologia defendida pelo psicólogo [à épo- ca, psicologista] Alfred Binet para demarcar bem cada território para o qual as crianças deveriam ser encaminhadas e tratadas. Binet descrevia os anormais de hospício como os imbecis, os idiotas, e os anormais da escola como os débeis, retardados, atrasados. O olhar clínico instrumentalizado pelo teste de inteligência de Binet-Simon prestava-se ao exame e enquadre diagnóstico das crianças que não se beneficiariam da escola regular e, por isso, deveriam ser encaminhadas ao tratamento em ortopedia mental, nas classes e escolas especiais ou de aperfeiçoamento. Ao desafiar o campo médico-pedagógico já estabelecido quando põe em crítica a taxonomia até então hegemônica entre anormais médicos e anormais pedagógicos, Binet abre caminho para um campo psicológico, embrionário, de trabalho, ainda que com re- lações estreitas com o entroncamento disciplinar medicina-pedagogia. Como inventor e gestor dos testes de inteligência, o psicologismo tem as cartas e as senhas para guardar e ajuizar a fronteira entre normalidade (débil) e a anormalidade (idiota, imbecil) na edu- cação, determinando quem pode estudar na escola regular e quem se destinaria às esco- las especiais. Mahler (1989) destaca que, no final da década de 30 e década de 40, o trabalho de Lauretta Bender sobre a esquizofrenia na infância não fora aceito no campo da psi- quiatria de crianças. “Foi no início da década de 40 que o conceito de Kanner do “au- tismo precoce dos bebês” (1943, 1944) tornou a ideia de grave perturbação psicótica nas crianças pequenas mais aceitável para os pesquisadores desta área.” (MAHLER, 1989, p. 41) 222

A psicanalista húngara Margareth Schönberger Mahler lança bases genealógicas para a confusão nosográfica entre o autismo e a psicose em Alice, quando assinala que

qualquer quadro clínico de psicose infantil em que fosse encontrada alguma semelhança com os mecanismos autísticos e no qual o rompimento psicótico com a realidade ocorresse numa criancinha pequena era, a partir desse mo- mento, designado como “autismo” (MAHLER, 1989, p. 42)

O quadro autístico é associado pela família de Alice a um déficit/debilidade da inteligência e da memória, a uma espécie de transtorno cognitivo, e assim consideram que ela precisa ser educada na escola. Não concordam, durante muito tempo com o encaminhamento da filha para o NAEE, dada a conotação popular que o estabelecimen- to carrega como hospício de menores (abandonados), dispositivo referenciado por Don- zelot (1986) em A Polícia das Famílias. Uma acoplagem binária rotativa entre o autismo e a esquizofrenia se produz quando há suspeitas pela escola de que o diagnóstico mais fidedigno seria o de um transtorno ou doença mental: esquizofrenia/psicose. Qual o veredicto: deficiência ou doença mental? Anormal da escola ou anormal de hospício? Para onde Alice deveria ser encaminhada? Onde poderia estudar? Quem decidiria e daria o aval da diligência para a nau dos loucos de Antares? Mesmo que a diligência fosse de ida-e-volta, modulada na articulação em rede, no fluxo de uma inclusão excludente, que precisa fazer excluir para incluir, um sair para entrar em taxas de intermitência. O paradoxo nosográfico entre a deficiência mental e a doença mental em Alice nos fala dos guardiões da fronteira normalidade-anormalidade, dos psicólogos e suas técnicas de normalização demandadas pela escola e sua formação específica. A expressão “hospício” atribuída pelos discursos da população antarense ao cen- tro especial(izado) nos remete a um duplo sentido de internato-escola (reformatório) e manicômio. Uma outra conexão mais moderna se daria quando o NAEE também é ape- lidado de APAE, movimento que se inicia no ano de 2002, quando o local passa a ser destinado à educação especial e a receber alunos com sérias deficiências mentais, físi- cas, neurológicas e neuropsicomotoras, a maioria com origem em complicações no par- to, como relatado pelas famílias que atendia na unidade. Alguns relatos se referiam à eclampsia durante o nascimento, uma complicação caracterizada por convulsões. Na estrada de acesso ao bairro afastado do NAEE, ao passar pelo bairro rural da escola Gamma, havia uma placa com uma seta com as inscrições “APAE” indicando a locali- zação do estabelecimento especial. 223

Em suma, o entroncamento entre os fantasmas de um assistencialismo social de internato para órfãos-infratores (codinome hospício), e a formação mais recente da insti- tuição de ensino especial (codinome APAE) no mesmo território, tem se submetido a um terceiro acoplamento de uma nova forma de manicomialização (SANTA CRUZ, 2011, p. 17), tal como são chamadas as práticas de medicalização nas sociedades de controle por Santa Cruz (2011):

Hoje, o arsenal de drogas lícitas da psiquiatria consegue radicalizar sua fun- ção política do controle social, realizando ainda mais eficazmente sua voca- ção de nascimento, função de controle já reconhecida, reafirmada e concla- mada por Kennedy (apud Amarante, 2001) em 1963 em seu famoso discurso inaugural de uma psiquiatria que se pretendia preventiva e comunitária. Mais uma amostra dessa função de controle é a crescente onda de patologização e medicalização generalizadas dos jovens encarcerados na Febem, onde é prá- tica corrente, em algumas instituições, principalmente aquelas destinadas aos jovens que cometeram infrações mais graves. A distribuição indiscriminada de Gadernal para todos. (SANTA CRUZ, 2011, p. 20-21)

A manicomialização disciplinar-histórica, considerando que uma linha geográfi- ca que nos leva ao NAEE tinha o mesmo sentido que dava acesso ao hospício de Men- des, e a manicomialização de controle nas articulações das escolas regulares com o NAEE, enfim, os fantasmas médico-assistenciais não se desterritorializam, e reformu- lam-se em configurações mais líquidas: - Fora o confinamento! A exclusão se dá em ondas, fluxos que se renovam! Os fantasmas de asilos como a clínica psiquiátrica de Mendes e a Casa de Saúde Dr.º Eiras de Paracambi nas proximidades ressuscitam a cada fluxo-encaminhamento intersetorial educação-saúde, escola regular-NAEE. Em março de 2010, faço um memorando solicitando que a direção do NAEE convide alguns pais de alunos para uma entrevista em grupo que organizaria com o ob- jetivo de conhecer a história dos estudantes. Antes eu havia feito o pedido verbalmente, quando a diretora perguntou qual era o objetivo do encontro, e respondeu que não gosta- ria que eu fizesse “uma reunião naquele momento”. Eu estava começando a trabalhar naquelas escolas (desde setembro de 2009) e queria escutar as famílias, conhecer o seu histórico de vida e os efeitos de adoecimento nos “casos” de autismo e paralisias cere- brais. E gostaria também de falar sobre a “distância” do NAEE com relação ao Centro de cidade, e da configuração de uma situação de não acessibilidade. A coordenadora da equipe técnica estava por perto, e disse, compondo fala com a diretora, que esta estava a percorrer as doze escolas de rede municipal para convencer pais de alunos a matricula- 224

rem seus filhos no núcleo especial(izado), e que não queria que eu falasse sobre a dis- tância, isto é, do isolamento geográfico da escola. A dirigente intentava dobrar o único turno (da manhã) de funcionamento da escola especial, o ocorreria em julho de 2011, com o findar das obras que se realizaram. O convite se referia àqueles alunos com difi- culdades sérias de aprendizagem, com supostos distúrbios ou doenças do aprender na escola como TDAH, dislexia e outros, quer dizer: alunos mais atrasados quanto à apre- ensão dos conteúdos formais e que não sabiam ler nem escrever ou tinham “deficiên- cias” nas práticas. A maioria dos jovens matriculados no NAEE também estudava nas escolas regu- lares: um turno na regular; o outro turno na especial(izada); outros grupos de alunos somente estudavam na Núcleo Especial(izado). Estes últimos, confinados por razões de seus problemas graves de não aprendizagem e de comportamento. Havia os deficientes mentais, físicos, sensoriais, e neuropsicomotores, os autistas e os psicóticos (esquizo- frênicos). Elton John usava cadeira-de-rodas e, durante uma escuta individual na unida- de educacional, me disse, chorando, que se revoltou quando ouviu seus familiares se referirem a ele como “cadeirante”. Ele disse: “- Eu não sou cadeirante!!” Na lógica do discurso da família, parecia que a cadeira de rodas dominava a ce- na, e Elton se sentia como identificado a um objeto inanimado, mortificado em sua exis- tência e eivado de suas singularidades. O jovem estudante falou de uma moça de quem gostava, e que estudara com ele na APAE de Mendes, sorrindo. Falou também que gos- taria de namorá-la, e eu disse: “- por que não liga para ela !? tem como fazê-lo?” Após um tempo, a diretora da instituição informou que a família de Elton fizera queixa à escola, dizendo que o rapaz se tornara “agressivo” em casa, com a família, porque lhe disseram no NAEE que ele podia namorar. Um outro jovem (18 anos), (que também usava cadeira de rodas), usava também uma sonda para urinar, enquanto uma criança de nove anos, acompanhada pela mãe, utilizava uma para se alimentar. Os psicóticos como Marcel, em seu turno, eram os também usuários atendidos no CAPS, e tentavam “fugir” correndo da instituição de atendimento especial(izado). Depois de brigar com Elton John, quando “incluso” na classe do EJA do colégio Be- ta, passou a estudar somente no NAEE. Antes de estudar no EJA, só frequentava o CAPS. Os autistas como Raymond, que se isolava em uma sala a fazer movimentos repetitivos e estereotipados com o corpo, como sentar e ficar se mexendo para frente e para trás, só estudavam na escola especial. Raymond não tolerava o contato corporal e 225

tinha muita força física. Não se comunicava com palavras fonéticas (valises) e ficava em casa vendo televisão a repetir as falas. Sua expressão era a de gritos e sons incom- preensíveis. Marcel e Raymond tinham acesso restrito ao NAEE na geopolítica educa- cional de Antares. Aqui, a senha para a nau dos loucos é: “agressividade”. Neste momento, o paradoxo nosográfico autismo-esquizofrenia (ou entre anor- mal da escola e anormal de hospício) encontra o poder grotesco na pólis. Alice encontra o soberano Jaguadarte (Jabberwocky) e dispõe de algumas armas no jogo de xadrez do mundo do espelho. Este encontro significa o entrecruzamento entre Alice (e a questão da triagem diagnóstica na escola), as técnicas de controle e disciplina dos atores escola- res, e a governamentalização do Estado na sua subdivisão em Antares. O boicote da diretora ao meu grupo com as famílias tinha relações com seus in- teresses em ampliar a atuação da unidade do NAEE: ela não queria que o Núcleo saísse do lugar. Pipa, coordenadora da SAFE, me perguntou se eu estava querendo “cutucar a onça com vara curta”, então, soube que a retirada do NAEE da tal fazenda já era uma antiga exigência e objeto de reclamações pelos pais dos alunos. A diretora agia por ou- tra frente na batalha, a negociar com outros pais a matrícula de novos alunos anormais visando dar legitimidade à clara exclusão geopolítica. Através deste único acontecimen- to-analisador, pude perceber que não havia interesse da equipe dirigente (diretoras e coordenadoras), da Secretária de Educação, ou da Prefeitura, em deslocar o estabeleci- mento educacional para um território mais acessível. A fazenda, da Santa Casa de Mise- ricórdia, onde se localizava o NAEE ficava a quase 15 quilômetros do Centro, e para chegar lá íamos em um micro-ônibus da Prefeitura por estradas não pavimentadas, pela subida da serra. Acidentes automobilísticos eram comuns na travessia, e quando chovia tínhamos de nos deslocar por uma outra estrada pavimentada que impunha uma duração de quarenta minutos de viagem. Até o início do ano de 2011, em quase dez anos de e- xistência institucional, o NAEE não tinha telefone próprio instalado e nenhuma espécie de serviço de Saúde (como posto de saúde) nas proximidades, e na região bem afastada não funcionavam telefones celulares nem havia telefones públicos. Acessos às pastas com os históricos dos alunos foram restringidos. A diretora não queria que eu tivesse acesso aos dados das famílias, como endereços e telefones. Talvez pensasse que eu organizaria uma revolução junto com os pais dos alunos no que se referia à situação de manicomialização dos alunos na escola especial. Considerei tudo aquilo um absurdo, e eu queria saber que forças atravessavam os acontecimentos, e mo- tivavam a diretora e a Secretaria de Educação a manter o NAEE, de modo peremptório, 226

em condição de exclusão pelo isolamento em uma zona de fraca acessibilidade da cida- de. Não via condições de manter atendimentos individuais no Núcleo porque pensei que este tipo de atuação agudizaria a situação de exclusão. Assim, privilegiei as escutas, observações e intervenções nas turmas com professores e alunos, e a formação de gru- pos de discussão com os primeiros. Tinha para mim que estar ali trabalhando de qual- quer forma, com qualquer técnica, já me fazia um apoiador daquela situação. Nos grupos, os professores se queixavam das condições ruins de trabalho, da falta de investimento em capacitações, enfim, no trabalho. Uma professora me confi- denciou que a diretora determinava a permanência dos alunos nas salas, e que quase sempre não poderiam sair dos alunos para atividades fora das salas. Diziam da necessi- dade de mais profissionais de saúde na escola, como enfermeiros, já que havia alunos que sofriam de crises convulsivas, os que corriam para fora do estabelecimento, os que utilizavam sondas. O NAEE era vinculado à Educação municipal e contava com poucos profissionais de saúde e de reabilitação em saúde, considerando que a perspectiva de pais, diretora e funcionários é de que a instituição funcionasse como um Centro Espe- cializado em reabilitação, aos moldes das APAES, que operam como um misto de pro- fissionais de educação e de saúde, de ensino-aprendizagem e reabilitação médico- assistencial e psicológica. Lá os funcionários em geral, nos chamavam de especialistas também. A equipe de técnicos, então, era composta por mim, a (psico)pedagoga Dorothy Gale, e uma fo- noaudióloga que não integrava a equipe técnica, e era vinculada à Secretaria de Saúde. Nós da equipe técnica trabalhávamos em dias diferentes da fonoaudióloga, a diretora certa ocasião me contou que gostaria de discutir alguns casos de alunos comigo, mas não foi possível uma atuação interdisciplinar. Em 2011, estava no Colégio Beta, em atendimento com Daniel, um aluno diag- nosticado com Síndrome de Down “incluso” na unidade educacional. A professora ha- via me pedido que o atendesse porque o estudante estava triste com a saída da tutora que o acompanhava em sala de aula e copiava as matérias do quadro para ele. Durante a escuta e conversa, Daniel me falou da sua mãe, que estaria às nove ho- ras em uma reunião com as famílias dos alunos do NAEE, na escola Alpha. Queria que eu conversasse com ela. Logo depois, Wladimir (assistente social) chegou à escola, fa- lei-lhe sobre a reunião e ele me disse que também não havia sido avisado. Resolvemos ir ao evento, ao que chegamos de surpresa. Lá estavam todos os pais dos alunos, a dire- 227

tora e um vereador de oposição ao sobrinho do Coronel Tibério. Mais tarde chegariam Iracebeth e a Sub-Secretária. Em meados de 2012, saberíamos que a gerente do NAEE se candidataria a vereadora de oposição em Antares. Neste ínterim, entre março e julho de 2011, o núcleo especial(izado) de educa- ção passaria por obras para reformas de salas, construção de uma sala multifuncional e de uma quadra poliesportiva em seu pátio. Na reunião com os pais na escola Alpha, a administradora do NAEE diria que alguns alunos ficariam sendo assistidos nas escolas regulares durante o período de obras, enquanto outros não poderiam devido ao seu comportamento. Alice foi transferida da turma de alfabetização para uma sala especial multifun- cional em formato retangular na escola Alpha, e era assistida de modo intensivo por uma alfabetizadora e um tutor. Aprendeu por condicionamento a ir até o banheiro da escola e usá-lo. Permaneceu estudando em sua sala individualizada, até que a professora fosse reclamar de sua agressividade, das mordidas e arranhões que ocasionava. Através dos diagnósticos, Alice parece ter dupla entrada no sistema. Poderia in- clusive ter duas matrículas, na escola regular e em um pretenso centro de reabilitação de anormais. Através de uma dupla nosografia, Alice adquire linguagem na pólis: a psicose autística é a senha para a inclusão nestas instituições das sociedades de controle. Alice Lidell detinha uma senha minoritária, portava a possibilidade de um rela- tório minoritário, em meio a uma profusão de lugares certos e adaptações das condutas de trabalhadores do ensino e estudantes. A aluna desafiava o tempo cronológico com seus paradoxos de significação.

Os paradoxos de significação são essencialmente o conjunto anormal (que se compreende como elemento ou elementos de diferentes tipos) e o elemento rebelde (que faz parte de um conjunto cuja existência ele pressupõe e perten- ce aos dois subconjuntos que determina). Os paradoxos de sentido são essen- cialmente a subdivisão ao infinito (sempre passado-futuro e jamais presente) e a distribuição nômade (repartir-se em um espaço aberto ao invés de repartir um espaço fechado). Mas, de qualquer maneira, têm por característica o fato de ir em dois sentidos ao mesmo tempo e tornar impossível uma identifica- ção, colocando a ênfase ora num, ora no outro desses efeitos: tal é a dupla aventura de Alice, o devir-louco e o nome-perdido. (DELEUZE, 2009, p. 77- 78)184

Trata-se agora de pensar como o devir-louco e o nome-perdido de Alice poderi- am se transformar em uma flecha que desafiaria os tempos certos para os professores e

184 DELEUZE, Gilles (2009). Lógica do sentido. 5.ª edição. São Paulo, SP: Perspectiva. 228

psicólogos, entre outros atores escolarizados? A desterritorialização incitada pelo corpo sem órgãos de Alice tem funcionado como o devir-minoritário dos jovens estrangeiros que vinham da capital para integrar os antigos internatos-escola de Antares. A batalha dos diagnósticos nos revela a chave para a politização de Alice em Antares. E, novamente, as nuances dos traumas parecem conspirar sobre as tramas mais complexas. Sempre pensei que a vida naquelas escolas não se resumia aos traumas, às patologias, e que elas poderiam nos falar por algo mais. As peças no tabuleiro de xadrez movimentavam-se para a conquista de casas ou postos políticos soberanos na escola e na cidade. Os dirigentes autoritários visavam acumular matrículas dos dois lados – nas escolas regulares e na especial -, ao enviar alunos atrasados (anormais da escola) devido às aprovações automáticas para a alfabetização no NAEE, e conduzindo adaptações curriculares nas regulares, sempre como o aval de laudos médicos, psicológicos ou de outros profissionais da Saúde. Sobre estes processos de biopolitização da vida na educa- ção e na cidade, de Alice, de Tom Sawyer, de Wendy, dos professores e demais traba- lhadores do ensino, ou seja, falo da formação de campos de readaptações para todos os viventes nas escolas e na cidade, temos que:

A dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo- inimigo, mas vida nua-existência política, zoé-bíos, exclusão-inclusão. A po- lítica existe porque o homem é o vivente que, separa e opõe a si a própria vi- da nua e, ao mesmo tempo, se mantém em, relação com ela nuam exclusão inclusiva. (AGAMBEN, 2010, p. 17)

As grades que incomodavam Alice era as mesmas que aprisionavam os professo- res e outros trabalhadores, e, enquanto a aluna mordia, gritava, arranhava, e fazia suas necessidades fisiológicas de excreção dentro da classe, como protesto, onde estaria a voz dos trabalhadores? É por meio da medicalização nos fluxos da cidade que Alice adquire linguagem e habita a pólis. A única linguagem aceita é a senha para os percur- sos de ida-e-volta, ora a doença mental, que encaminha pela escola a centros especiali- zados, ora é a deficiência mental que a deve incluir na própria escola Alpha. À exemplo da biopolítica e da governamentalização do Estado em Antares, Agamben (2010) decla- ra que “ no horizonte biopolítico que caracteriza a modernidade, o médico e o cientista movem-se naquela terra de ninguém onde, outrora, somente o soberano podia penetrar.” (AGAMBEN, 2010, p 155) 229

4 PSICÓLOGOS E PROFESSORES NA GRADE: RELATÓRIOS DE DESCON- FIANÇA E BIOPOLÍTICAS DA PARANOIA

O Hierofante185 Não há possibilidade de viver Com essa gente Nem com nenhuma gente A desconfiança te cercará como um escudo Pinte o escaravelho De vermelho E tinge os rumos da madrugada Virão de longe as multidões suspirosas Escutar o bezerro plangente Secos & Molhados, O Hierofante (Letras: João Ricardo – Oswald de Andrade)

Chega aí, pessoal! Chega aí, vamo escutar! A gente é da chapa Mundo Livre. Nossa chapa não é modinha. A gente precisa começar a falar Sobre a falta de respeito Que tá acontecendo com os outros aqui nesse Colégio! Essa escola aqui é um Big Brother do mal, Ca- ra! Tá todo mundo vigiando todo mundo. Tá todo mundo com medo de ser o zuado da vez. Isso aqui é uma bolha sem ar, cara! A gente precisa estourar essa merda dessa Bo- lha!! Mano, em As melhores coisas do mundo Direção: Laís Boldanzky

4.1 Psicólogos e Professores na Grade: Relatórios Recíprocos de Desconfiança e Biopolíticas de Paranoia

Os dois primeiros capítulos do trabalho nos falam de táticas entre os atores no cotidiano escolar, e operações que objetivam o corpo do aluno em patologias que, al-

185 A etimologia de hierofante é bastante sugestiva à temática deste capítulo, porque deriva do grego Hierophantes, cujo significado literal é o daquele que explica as coisas sagradas, o revelador da ciência sagrada e chefes dos iniciados. Hierofante é o termo usado para designar os sacerdotes da alta hierarquia dos mistérios da Grécia e do Egito. É o sacerdote supremo, que pode ser chamado também de Sumo Sacerdote. O exemplo mais popular de alguém que pode ser chamado de Grande Hierofante é o líder supremo da Igreja Católica Apostólica Romana, o Papa, também chamado de Sumo Pontífice. Na similaridade como a função do sumo pontífice, é o que lança pontes, deve unir diferentes pessoas e coordenar esforços. Seu objetivo é conectar pessoas e sinergizar esforços. 230

gumas vezes, acabam subjetivando e criando personagens nas tensões produzidas. Eles nos fornecem pistas na forma dos vários registros e encaminhamentos medicalizantes das relações gerais na escola pública de Antares. Dão-nos indícios das relações compli- cadas entre escola, educadores e famílias, que nos apontam direções do modo predomi- nante de gerenciamento da vida nas escolas e da coletividade que se agencia por dife- rentes forças. O terceiro capítulo tenciona-se às questões mais particulares entre a escola- empresa e as famílias como clientela de seus serviços. O psicólogo delivery é um deles: máquina de fazer encaminhamentos às áreas especializadas na Rede intersetorial da cidade. Este capítulo traz como discussão as relações dos professores com os diretores, com a administração direta da escola, do mesmo modo que abordamos as relações entre os próprios professores como trabalhadores do magistério. O debate em foco também se enreda nas questões existentes entre os professores e os ditos “técnicos” ou “especialis- tas”, como o psicólogo. No compasso das relações que produzem culpados entre a escola e a comunida- de, e entre os próprios trabalhadores da escola, tendo o aluno como alvo principal das reclamações, destaca-se um tipo de gerência burocrática e autoritária bem peculiar do ensino público. Tenho percebido, via de regra, o exercício do poder dos gerentes de turno das Secretarias de Educação como uma estratégia para intensificar as divisões, desigualdades e distâncias entre os trabalhadores. Nas escolas antarenses, tais estraté- gias fazem parte de um controle cotidiano contra possíveis rebeliões dos trabalhadores frente à situação da Educação. Incita-se a competitividade empresarial – aderência à verticalidade hierárquica, que inclui interesses de ascensão na pirâmide organizacional, no cotidiano da escola pública, de modo a aprofundar os impasses em meio às discus- sões entre especialistas e educadores, o que se tem constituído em rotina. Cada um trabalha por si, individualmente, seguindo os lugares certos de especia- listas, ao passo que uma perspectiva de trabalho com estratégias traçadas e pensadas pela própria equipe é impossibilitada pela gerência do tempo em compassos e ritmos individualizados, mantendo a linha de produção. Um de seus efeitos lesivos é a organi- zação do trabalho em equipe no regime dos encaminhamentos das demandas dos profes- sores entre os técnicos: ao invés de uma análise coletiva das demandas, a ordem é que um profissional como OP ou OE, numa triagem repasse ao psicólogo os problemas e- mocionais e comportamentais, ao (psico) pedagogo os de aprendizagem, e que cada um 231

cuide de sua especialidade e competência. Estes são os encargos sociais dos profissio- nais, como diria um institucionalista! A formação histórica da escola pública começa com a primeira etapa de implan- tação da escola-indústria: dispositivo de segurança e contenção de riscos, projetada para a forja na infância e adolescência de quadros disciplinados, dóceis, para a indústria. SARAIVA (2008) nos mostra como se produziu, historicamente, a Escola, na implanta- ção da disciplinarização como etapa e condição histórico-política para o controle dos movimentos dissidentes de trabalhadores e comunidade consumidora dos serviços educacionais prestados:

No século XIX, acontece a criação da escola pública, que permitirá a escola- rização das massas, tornando-as mais aptas a viverem em sociedade, fixando- as nas cidades e promovendo sua inserção no sistema produtivo. Essa estraté- gia produz uma mão-de-obra disciplinada e abundante. O capitalismo indus- trial não criou a escola pública disciplinar, mas valeu-se dela para seu desen- volvimento. Dito de outra maneira, a escola moderna foi uma das condições que permitiram o desenvolvimento do capitalismo industrial. A escola públi- ca, ao intervir na vida da população, pode ser caracterizada como uma ação da ordem do biopoder, que regula a população ao fazer com que passe pela escola. Ela pode ser tomada como um dispositivo de seguridade, pois colo- ca em movimento uma tecnologia que reduz o risco de rebeliões e insur- gências. Segundo Foucault (2006), o biopoder tem por objetivo minimizar os riscos, constituindo dispositivos de seguridade. (SARAIVA, 2008, p.1; grifos meus).

Se os professores insistem nos pedidos de medicalização para os alunos, - como um alívio imediato para o risco de que o fracasso lhes seja atribuído -, na declaração de que a culpa não é do aluno, a direção da escola faz, intencionalmente, um uso de tais conflitos no sentido de sua sobreprodução. A máxima hierofante da competição (deli- rante) nas escolas tem-se traduzido no ato de se especular com os incidentes de conflitos que pululam no chão de fábrica escolar. Engendra-se um não avançar na problematiza- ção e na facilitação da desconstrução dos lugares certos nas grades, consolidam-se as desigualdades entre os postos hierárquicos superiores de técnicos que examinam e edu- cadores que executam. Como intervirmos na lógica aparentemente sem sentido dos exa- geros que vimos se produzir, mas na perspectiva da inversão da ordem supostamente natural das práticas dos relatórios pré-crime? É preciso caminharmos do exagero às ul- trapassagens inventivas, passarmos das construções hiperbólicas delirantes e sintomáti- cas, compulsivas e patológicas – mas nem sempre reconhecidas, muito menos de modo unânime na escola - como tais, aos desvios contraproducentes (hipérbatos) à medicali- zação naturalizada nas práticas, nas relações gerais. 232

Os pedidos incessantes dos encaminhamentos médicos pelos professores têm registro nos desencontros entre modos de pensar/modos de trabalhar dos psicólogos com os professores e na aposta que a direção acaba fazendo na manutenção deste desen- contro. Se assim não fosse, qual o sentido de especialistas na escola para fazer encami- nhamentos? Embora ratifiquem que é a criança quem porta uma doença, isto não contri- bui para a melhora do ensino nem para a redução de encaminhamentos que só se multi- plicam, muitas vezes, sem chance de atendimentos. Na verdade, precisaríamos pensar que produzimos a tecnoburocratização e os automatismos das relações e que essas práti- cas vêm de algum modo controlando qualquer movimento entre nós, a partir de nós por efetivas mudanças, pois se alivia a culpa, também a mantem. Um emaranhado de fios relacionais que nos afogam em tensionamentos não vêm contribuindo para gestar o no- vo. Quais relações entre um tipo de gerência tecnoburocrática e autoritária dos as- suntos escolares se dão com a manutenção da ordem de culpabilização, endividamento individualizante no interior da escola? Além da administração tecnoburocrática, quais são as grades gerais do ensino às quais todos têm de se adaptar, fortalecendo sua produção? Falo não só da gerência do ensino que promove ações de vigilância à aderência e conformidade dos trabalhadores às regras impostas, aos currículos e políticas governamentais às quais todos devem se- guir no chão-da-escola; aponto a conjuração e estruturação das próprias políticas gover- namentais como heteronomias. Como são produzidas e quais são os efeitos no campo das questões e lutas do magistério e na Saúde de seus trabalhadores, especialmente o professor?

Tomando a escola como palco dos atravessamentos do mundo do trabalho e lançando um olhar cuidadoso sobre a desqualificação do magistério, teremos um panorama bastante amplo de quão prejudicada tem sido a sua saúde em virtude de um conjunto de fatores decorrentes de políticas governamentais que vêm sendo implementadas ao longo dos anos. Podemos evidenciar que tais políticas apresentam pontos básicos em comum, pois, além de destinarem recursos insuficientes à educação, implicando baixos salários, falta de infra- estrutura e excesso de trabalho em que a dimensão político-institucional (po- der frente aos procedimentos e gerenciamento do processo – organização do trabalho escolar) e a dimensão pedagógica (contextualização das demandas locais e interferência na construção curricular – articulação entre concepção e execução) estão excluídas da intervenção cotidiana do professor. Nesse senti- do, toda a comunidade sofre, incluindo alunos e familiares, uma vez que é a burocracia funcional que serve como modelo para as práticas educacionais. (ROCHA, 2001, p. 251-252)

233

São avaliações de desempenho que amordaçam pela medição das produtividades em função das aprovações automáticas de alunos, distorções na aprendizagem que apri- sionam os estudantes aos porões das salas-de-aula e seus tutores-mediadores entre pro- fessor-aluno, das classes especiais impotentes e escolas especiais que enclausuram, em lugares certos que incomodam pela constância, pela repetição e pelo tédio que adoece pela falta de perspectiva coletiva de transformações. O professor não participa das decisões na escola, não decide o que vai ensinar. Ele não cria junto dos que prescrevem os currículos, e tudo que se refere às grades cur- riculares vem como prescrições, exterioridades ao seu trabalho no magistério. Gera-se, com efeito, um campo de tensões paranoico entre os trabalhadores na escola. A competição generalizada na escola-empresa, junto de uma gerência autoritá- ria, tem agido de modo “maquiavélico”, ou seja, criando e provocando a manutenção dos opostos que se culpabilizam entre si: - são os binarismos instituídos de pais- professores, professores-diretores, professores-especialistas (trabalhadores sociais), en- tre-especialistas, todos a controlar os processos relacionais e técnicos através das tecno- logias de vigilância e contenção dos riscos da organização revolucionária entre os traba- lhadores, e entre estes e a comunidade. As instituições de culpabilização e competição entre trabalhadores em geral na escola, da escola-empresa e das famílias-clientes, têm, então, dificultado veementemente a intensificação da escola como máquina de resistên- cia e usina de transformação. No que tange à relação entre os professores-executores vemos a desconfiança; no plano de ações destes com os ditos técnicos – psicólogos e pedagogos -, e a irrupção de sentimentos de persecutoriedade, devido ao medo de serem descobertos em seus fracassos, avaliados como incompetentes aos olhos dos vigilantes psicopedagógicos. Sobre a composição entre o sentimento de persecutoriedade e culpabilização pelos professores, esta ganha intensidade quando os psicólogos se recusam a realizar encaminhamentos, gerando nos psicólogos ressentimentos por não conseguirem realizar o trabalho institucional isoladamente. Vemos que, sem a construção de uma campo de alianças, planos de consistência de outros modos de subjetivação não se produzem. Machado explicita alguns impasses no diálogo professor-psicólogo:

Na relação da psicologia com a educação, alguns psicólogos avaliam inade- quados os pedidos de atendimento individual feitos pelos professores, ficando ressentidos pelo fato de esses mesmos professores não quererem aquilo que os psicólogos propõem como forma de trabalho. E, desse ressentimento, de- rivam muitas interpretações de “resistência”, incompetência e má vontade 234

daqueles que não agem da maneira valorizada como sendo a melhor (alguns psicólogos apontam como resistência o fato de grupos de professores recusa- rem certas propostas de trabalho e discussão). Essa maneira de proceder tam- bém tem estado presente na ação de alguns professores com os pais e as mães de seus alunos. (MACHADO, 2008: 6; grifos meus).

A produção coletiva de desconfiança no trabalho vem se constituindo como um dispositivo de manutenção da ordem, do controle e da vigilância da escola-empresa. A construção da confiança entre os atores, entre especialistas e executores na escola é im- prescindível para a consecução da análise coletiva da ordem médica e empresarial que, em suas hierarquizações das condutas gerais, tem efetivado processos de adoecimento no magistério. E como transformar sofrimento em luta? Na etapa dos adoecimentos, como linha de fuga e resistência aos automatismos cotidianos que amputam as inventividades e transformações no trabalho e no aprendiza- do, classificam-se aí os reais sofrimentos nas categorias psiquiátricas de depressão, das fobias como a síndrome do pânico, e da síndrome de burnout (ou de exaustão no trabalho) como transtornos de personalidade, isto é, intrínsecos ao sujeito em uma su- posta esfera intra-psíquica isolada. Com isto, o sofrimento dos professores também é medicalizável numa descon- textualização das relações de poder que o engendram e se isolam no corpo individuali- zado e psicologizado. Davi Harper (2008) nos alerta sobre a medicalização da noção de paranoia, pondo em evidência sua raiz psiquiátrica tida como natural, e a ocorrência de sua natu- ralização:

[…] Concepts like paranoia serve both s psychiatric and everyday explanato- ry categories thus an investigation of such categories needs, by definition, to be inter-disciplinary. The work of writers like Thomas Pynchon, Philip K. Dick (see e.g.: Freedman, 1984; Parker, 1996; Sutin, 1995), together with crime and spy writers has contributed to the embeddedness both of conspira- torial and surveillance-aware narratives in modern culture. O`Donnell (1992) has traced some of the contours of this fascination, arguing that the work of a variety of authors evidences the rise of a “cultural paranoia” flowing from the construction of a “knowing” subject, noting that “paranoia, like power after Foucault, ranges across the multi-discursivity of the contemporary ex- istence” (1992: 181). (HARPER, 2008, P. 2-3)

A emergência do conceito de paranoia cultural nos permite o uso da paranoia produzida em meio às relações de poder e, neste estudo em específico, como efeito das tecnologias de vigilância nas relações de trabalho na escola, como contraponto que de- sinventa a psiquiatrização do conceito de paranoia. A seguir, Harper (2008) discute a 235

cultura do panóptico (ou vigilância) como uma condição de possibilidade para a para- noia, tendo como referência a literatura de George Orwell com 1984, e a teor dos ques- tionamentos provocativos nos textos e imagens da famosa série (britânica) de TV dos anos de 1960, conhecida como The Prisoner, como precursora da descrição de Foucault do Panopticon de Bentham:

[…] Of course, both 1984 and The Prisoner predate Foucault's (1977) de- scription of Bentham’s panopticon but it is with his work that we see a the- oretical elaboration of the panoptical organization of space in Western culture and how this indicated a shift from physical regulation by others to govern- ance of the self by the self. Rabinow (1984) notes, in a resumé of a foucaultian view of surveillance in culture, that “through spatial ordering, the panopticon brings together power, control of the body, control of groups and knowledge ... it locates individuals in space, in a hierarchical and efficiently visible organization” (19). The cultural and spatial organization of society means that we are continually surveyed, constantly regulated by a panoptical gaze. Surveillance, while conceptually distinct from suspicion, is materially and discursively connected to it […]. (HARPER, 2008, p. 3-4; grifos meus).

Quais questionamentos necessários ao caminho da desinstitucionalização das condutas? Como operar a desinvenção da dicotomia especialista-executor na escola, assim como as desigualdades e divisão entre psicólogos e professores tão enrijecidas, impostas pela hierarquização gerencial das condutas? Como construir um não-lugar para o psicólogo na relação na escola, se vemos ambos nas grades: técnicos e não técnicos? O psicólogo deve atuar diretamente no espaço da escola pública fundamental? (seria a única possibilidade, ou podemos vê-la de outro ângulo, reposicioná-la e desinventá-la?) Que outros modos haveria de trabalho da psicologia com a escola? Comecemos por desinventar algumas instituições adoecedoras e medicalizantes e, com Dejours, questionar as supostas univocidades nos sentidos de termos como resis- tência, na sua produção social e política em negativo, tendo como referência ambientes educacionais formais com a escola pública de nível fundamental. Desta forma, podere- mos desconstruir o lugar de retrocesso e das faltas, atribuído, por grupos dominantes na cena escolar, em sua significação no corpo do educador, para, a partir daí, pensarmos não-lugares e renomeá-los em suas potencialidades. Isto, na medida em que consiga- mos avançar nas lutas e engendrar novas práticas coletivas. Dejours (2004) nos fornece algumas pistas sobre os sentidos de resistência nos processos de adoecimento:

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O sofrimento afetivo, absolutamente passivo, resultado do encontro com o real ao mesmo tempo que marca uma ruptura da ação, ele não é apenas o re- sultado ou o fim de um processo que une a subjetividade ao trabalho. O so- frimento é, também, um ponto de partida. Nesta experiência se concentra a subjetividade. O sofrimento se torna um ponto de origem na medida em que a condensação da subjetividade sobre si mesma anuncia um tempo de dilata- ção, de ampliação, de uma nova expansão sucessiva a ele. O sofrimento não é apenas uma conseqüência última da relação com o real; ele é ao mesmo tem- po proteção da subjetividade com relação ao mundo, na busca de meios para agir sobre o mundo, visando transformar este sofrimento e encontrar a via que permita superar a resistência do real. Assim, o sofrimento é, ao mesmo tempo, impressão subjetiva do mundo e origem do movimento de conquista do mundo. O sofrimento, enquanto afetividade absoluta, é a origem desta in- teligência que parte em busca do mundo para se colocar à prova, se transfor- mar e se engrandecer. Neste movimento que parte do real do mundo como re- sistência à vontade e ao desejo, para se concretizar em inteligência e em po- der de transformar o mundo – neste movimento então – a própria subjetivida- de se transforma, se engrandece e se revela a si mesma. (DEJOURS, 2004, p. 28-29)

As grades curriculares são leis externas a sobredeterminar o ritmo do trabalho interno na escola. Inserem-se nas diretrizes curriculares nacionais a forjar cartilhas com o que deve ser ensinado, com isso aprofundando o abismo existente entre os currículos- conteúdos burocráticos e a realidade social das comunidades de baixa renda usuária dos serviços públicos de educação. São heteronomias, assim como (1) a política nacional de municipalização da E- ducação, que se engendra desde o período ditatorial-militar e por isso acompanhada de políticas de privatização do ensino público, da moldagem empresarial das relações esco- lares, com a implantação políticas de treinamento-e-avaliação de competências, e (2) o Plano Nacional para Educação Especial, que, recentemente, vem inviabilizando o mo- vimento de Educação Inclusiva. Estas três principais são políticas externas que têm excluído os professores do magistério da sua construção e implementação. Há, com isso, um verdadeiro abismo entre quem projeta burocraticamente as políticas pedagógicas e quem as executa na es- cola. Entre fins de 2011 e início de 2012, o segmento escolar que vai do ensino da al- fabetização à antiga 5.ª série é municipalizado nas escolas estaduais de Antares, aconte- cimento que tem seus efeitos ao trabalho do educador, como o exemplo do aumento do número de alunos nas turmas das escolas municipais, cujos educadores devem receber os alunos do CIEP e mais três escolas estaduais. Considerando que a gestação de tal política governamental se faz desde os anos de 1970, - com as modificações da educação engendradas pelos paradigmas de privati- 237

zação, implantação da escola-empresa com os ideários de eficiência, treinamento e ava- liação de competências no magistério, normativos de aderência e conformidade, desna- cionalização, e desindustrialização do país -, isto seria então uma diretriz de municipali- zação ou de “prefeitorização” ? O modelo de municipalização brasileiro, acompanhado de um processo corrente de privatização da Educação pública e do modo como se estrutura historicamente, vi- vemos o risco do aumento do fosso social entre ricos e pobres ao longo dos anos:

Em muitos lugares, a municipalização se tornou o que o pesquisador Vitor Pissaia, secretário de Educação da pequena Cândido Rodrigues (SP) e mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), chama de “prefeitorização”. Ou seja, a transferência de responsabilidades aos mu- nicípios não prevê recursos suficientes e tampouco apoio técnico para enfren- tar a gestão de uma rede complexa, que exige diferentes expertises, quer se- jam administrativas, quer sejam pedagógicas. Segundo ele, o secretário traba- lha sozinho, sem contar com equipe pedagógica, e acaba virando um apaga- dor de incêndios [...]. Para Pissaia, essa precariedade foi um dos fatores que estimularam o grande crescimento dos sistemas apostilados, que oferecem aos prefeitos um pacote de serviços que suprem as diversas lacunas enfrenta- das pelas cidades. A maior parte dos municípios estudados por ele em sua dissertação do mestrado havia adotado sistemas para, de certa forma, suprir o desamparo pedagógico. (CAMARGO apud REVISTA EDUCAÇÃO, 2012; grifos meus)

No que concerne aos sistemas apostilados, nos deparamos com um tipo de tec- nologia, nascida pela instauração da municipalização, como cerceamento e burocrati- zação ao trabalho dos chamados gerentes do ensino, como direção da escola e Secretá- rios de Educação. Nisto se evidencia uma não participação dos administradores, acom- panhado dos ajustes das condutas nas escolas, quando então percebemos a expansão das grades. Em consonância às políticas de municipalização que vêm se empreendendo no Brasil, o Chile se apresenta como mais avançado nos movimentos contestatários da pre- feitorização:

Enquanto o Brasil tenta seguir no caminho de municipalização traçado a par- tir de 1988, no Chile multidões de alunos secundaristas e universitários vêm tomando as ruas, periodicamente, para protestar contra o sistema de ensino vigente, em um processo denominado significativamente de “desmunicipali- zação”. Lá, os “pinguins”, como são chamados os estudantes secundaristas – uma alusão ao uniforme escolar característico do modelo imposto por Augus- to Pinochet, no começo da década de 1980 – e os universitários tomaram as ruas em 2006, com repique em 2011. Os jovens tinham pelo menos três ban- deiras claras: a gratuidade do ensino público, melhor qualidade de ensino e o fim do modelo de municipalização. 238

A tentação de estabelecer uma relação direta e simétrica com o quadro brasi- leiro é grande, mas demanda cuidado. Assim como o Brasil, em que a des- centralização só pode ser entendida ao se levar em conta a história do proces- so me do sistema federativo do país, também há peculiaridades no Chile. Lá, a municipalização não foi uma política isolada. Ela encabeçou uma lista de mudanças introduzidas pelo governo ditatorial na década de 80 com o fim as- sumido de diminuir o tamanho do Estado. A descentralização foi uma forma de transferir despesas para os municípios em meio à grande crise que envol- via a América Latina e, de quebra, debilitar o sindicato dos professores, ex- plica o pesquisador Ernesto Treviño, doutor em Educação por Harvard e dire- tor do Centro de Políticas Comparadas de Educação da Universidade Diego Portales. Na base da argumentação, lembra, estava o direito de escolha dos pais, e a ideia de que a competição das escolas por alunos alavancaria a qualidade, deixando para trás as que ofereciam pior ensino. Por isso, a municipalização se deu a partir de um sistema de “financiamento compartido”. Ao mesmo tempo que o governo federal descentralizou a gestão educacional, introduziu um processo de privatização, traduzido na criação de um sistema de vou- chers. (CAMARGO apud REVISTA EDUCAÇÃO, 2012).

De um lado, as heteronomias engendradas – o trabalho de professores e psicólo- gos prescritos por forças e leis externas: respectivamente, políticas de aprovação auto- mática e medicalização -, de outro, os efeitos na forma das relações de paranoia, amea- ça, competição e desconfiança entre os trabalhadores, e os efeitos reais de adoecimento no magistério, a afetar o quadro de professores. Entre 1998 e 2010, houve a ascensão do número de alunos considerados especi- ais nas escolas comuns em 1.000%. Em 17 de novembro de 2011, o governo federal lança um novo Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – o “Viver sem Limites”, que revoga o decre- to 6.571, considerado por muitos um avanço nas discussões em educação inclusiva, porque concedia o caráter complementar ao atendimento por escolas e classes especiais, como as associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes). No entanto, durante a leitura do relatório do Plano Nacional de Educação (PNE) 2011-2020 na Câmara dos Deputados, em dezembro de 2011, foi exposto que a meta número 4 que dava ênfase à inclusão, abre a possibilidade para a assistência em classes, escolas ou serviços públicos comunitários e ONGs para os alunos especiais, sempre que não for possível a inclusão nas escolas regulares. Se este novo PNE favorece a exclusividade do ensino em escolas especiais ou centros especializados em educação, corremos o risco ainda da aceleração dos processos de medicalização na escola pública e na sociedade, na medida em que aprisiona a auto- nomia do professor com a legitimação das exigências de diagnósticos para os atendi- mentos especializados dentro e fora da escola. Com isso, ata a atividade do trabalho do 239

psicólogo à avaliação do aluno para encaminhá-lo à área médica, diagnosticando múlti- plas doenças do aprendizado. Isto tem sido uma prática que alivia o medo da culpabili- zação do professor pelo fracasso escolar. Como enfatiza Cláudia Grabois, membro da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária (CDHAJ) da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio (OAB-RJ) de Janeiro:

[...] o texto do PNE, que atrela a oferta do atendimento especializado ao “di- agnóstico” da necessidade do aluno, retoma um modelo clínico da educação para pessoas com necessidades especiais, o que pode agravar essa realida- de. “Com o retrocesso para o paradigma da medicalização, as desculpas pa- ra não ter as crianças com deficiência nas salas de aula da rede regular devem aumentar, uma vez que para alguns pareça mais fácil direcioná-las a escolas especiais do que aplicar o direito e colocar todos os aparatos necessários na escola comum”. Essa não é a única crítica feita pela advogada, para quem “todos foram pegos de surpresa” com a mudança da meta número 4. “O tex- to faz parte de uma articulação política que defende os interesses de alguns e responsabiliza a pessoa com deficiência”, afirma, fazendo referência à ex- pressão “sempre que não for possível sua integração nas classes comuns”. (Cf. REVISTA EDUCAÇÃO: GRABOIS apud CAMARGO, 2012)

Através de alguns fragmentos intertextuais, isto é, - outros textos , a exemplo, que versam sobre a questão da inclusão educativa, inseridos previamente nos registros entre os atores e a lhes inspirar o debate -, estudamos o diálogo entre professores e e- quipe técnica, numa reunião pedagógica. Debatemos questões inseridas no contexto micropolítico da educação inclusiva e das práticas de medicalização, revelando-nos impasses entre as demandas de professores pela institucionalização de alunos ao exigi- rem do psicólogo os encaminhamentos de alunos com dificuldades de aprendizagem por problemas no ensino. O NAEE (Núcleo de Atendimento Educacional Especializado do município de Antares) é o órgão para onde os professores encaminham os alunos para que os psicólogos ratifiquem as deficiências e dêem prosseguimento à medicalização e ao envio da criança à escola especial:

Coordenação da equipe técnica: - Será que estamos fazendo pelo aluno quando lutamos no dia-a-dia pelo funcionamento da Lei ? É errando que se aprende. Cada um tem sua respon- sabilidade. Vamos arregaçar a manga e fazer a nossa parte. O que é adaptação curricular? Quem é meu aluno incluso? Aquele que tem laudo? Com severas dificuldades? Para o médico não é aluno incluso o chamado especial. Para que ter adaptação curricular? [...] se meu aluno possui um laudo, posso ter certeza que isto afeta seu aprendizado. Nenhuma turma é cem por cento ho- mogênea, e nem por isso teriam cem por cento de aprendizagem... Como tra- balhar a aprendizagem do aluno!? Precisa conhecer seu aluno, ler o histórico, seu arquivo [na escola], ver se tem laudo na pasta, conhecer a família deste 240

aluno; se você não conhecer, ele pode travar... Para partir para a adaptação curricular precisa saber até onde o aluno vai. Se não conseguir, a culpa é do professor? [...] Pensar em adaptação é pensar o que o aluno precisa aprender para a vida. São nossos desafios maiores dois alunos: um com paralisia cere- bral, e outro com déficit auditivo. Professor 1: - o professor não tem tempo para isso. Coordenação SAFE: - é responsabilidade sim dos professores na adaptação curricular. Professor 1: Não sabemos como fazer e ninguém sabe nos ajudar. E já pedi- mos socorro... Nós nem sabíamos se era possível fazer... Estamos boiando. Professor Z: - Mas como não se preocupar com isso, se não há nenhum cur- so de capacitação pela Secretaria de Educação !? É o que está acontecendo em alguns lugares: a questão da adaptação curricular é difícil sem recursos. Coordenação SAFE: -A equipe técnica propôs ter de sentar e selecionar e dentre os conteúdos o que os alunos necessitam para a vida... Espera-se que ele aprenda o que se planejou para ele.

Nesta última fala, como ensinar o que os alunos precisam para a vida, se o que se pretende e se propõe com este discurso é a redução, duplipensada como expansão, quando a gerente de equipe, destaca a palavra vida, que nos daria a noção de expansão, se as práticas não evidenciassem o contrário, considerando ainda que, mesmo o neces- sário para a vida, nunca se encontraria na escola? No que se refere ao aprender o que se planejou para ele, é notável a não inclusão do aluno no processo ensino-aprendizagem. É preciso que ele se adapte ao currículo, agora mais reduzido do que quando chegou para seus executores.

Professor 1: - Por que a aluna como déficit auditivo não foi alfabetizada na escola especial?

Ao que, uma outra professora presente, - tutora da aluna em questão e educadora no NAEE -, responde que a aluna precisa ser alfabetizada em libras:

Professor 1: - A diretora da escola especial diz que eu tenho de fazer prova para a aluna...

Dirigindo-se à orientadora educacional, este professor continua: “- vou te cha- mar no dia da prova para você ver se ele faz; ele não faz nada de diferente.”

Coordenação SAFE: - mas aí é uma questão psicológica dela que precisa ser trabalhada, a indisciplina dela precisa ser trabalhada [olhando para mim]. Professor 1: - a professora está sobrecarregada [da escola especial]. O aluno X é “incluso”. Orientadora Pedagógica: - Ele não é incluso. Professor 1: - mas ele é analfabeto. Eu queria saber porque o psicólogo não medica... Professora da escola especial: - psicólogo não medica. 241

Professor 1: - não medica porque é contra a medicalização! Psicólogo: - não, o psicólogo não medica porque não é médico. Professor 1: - mas faz testagem! [...] [...] Coordenadora SAFE: - a equipe da escola especial esteve na escola; se- rá que a equipe não se aproxima do professor!? Professor 2: - sobre alguns alunos... Uma aluna W, nós detectamos proble- mas aos oitos anos, e parece que as pessoas adiam para encaminhar ao NAEE (escola especial)...

Um dos participantes da reunião informa: “- no início, houve uma rejeição. O que o aluno X está fazendo numa escola para doentes? Descobri então o trabalho da alfabetizadora do NAEE.”

Professor 2: - é que parece que não queremos alfabetizar os alunos. Não es- tou dizendo que você não faz os encaminhamentos [dirigindo-se à coordena- dora da equipe técnica]... Professor 3: [alfabetizadora da escola Alpha/ turma 1.º ano] - dois casos. De dois alunos que têm dificuldades na alfabetização, e nada foi feito...

Escola Alpha, em sete de fevereiro de 2012 Uma conversa informal no refeitório e três reuniões em formato de colegiado Em fevereiro de 2012, a gerência da escola Alpha, com mais de dez anos de atu- ação, havia sido substituída. Eu chego e já verifico várias mudanças na organização da escola. Restringem-se os acessos a alguns espaços, como à secretaria escolar e à cozinha onde antes todos circulavam. O território cozinha-refeitório: o último refúgio Vou ao refeitório, próximo à cozinha, como de costume. Parecia um refúgio, um lugar para pensar, e aparentemente de não vigilância. Lá estava a diretora nova perto (do lado de dentro) da porta da cozinha. Vejo que há um aviso na porta: acesso permitido apenas às merendeiras.

Diretora: “- Você pode ver que há várias mudanças na escola.” D. C.: “- É, não pode mais entrar na cozinha...” Dir.ª: “- Foram elas que pediram. Elas têm, agora, um cronograma. - A gente precisa conversar, amarrar bem as informações. Você sabe que esse ano186 as preocupações vão recair sobre esta escola... porque mudou de dire- tora. Então eu preciso saber de tudo o que você faz. Porque eles vão me per- guntar lá embaixo. Eu preciso saber com você, - conversei com a Secretária, Subsecretária, e o Prefeito – que as atenções vão girar em torno desta escola. Você é o psicólogo, é aquele que aponta. Eu moro aqui, no bairro, e sei tudo o que acontece; mas preciso saber com você.

A diretora disse que esteve conversando com o Prefeito, a Sub-Secretária e a Secretária de Educação, que lhe disseram para estar atenta a esta escola. Preciso saber

186 Ano de eleições municipais – 2012. 242

tudo o que está acontecendo na escola. Esta escola vai ser muito visada este ano, por- que mudou de diretora.

Diretora Odete Roitman: “- Tenho trinta e quatro anos de experiência no estado. Moro neste bairro há muito tempo, todos me conhecem”. Acrescenta ainda: “- é preciso estar tudo amarrado com você, na parceria de equipe, e por isso, preciso saber tudo o que você faz.” Pauta da primeira reunião (turno da manhã): Informes: - D`Artagnan veio da escola Gamma para a Alpha. - A Sr.ª Darling, mãe de Wendy, veio na segunda à escola pedir um “crono- grama com tudo o que vai ser feito [com sua filha] na escola” - Diretora: “- Quero ‘trabalho em equipe’, e vou visitar as turmas!” - Segurança: “- Os portões devem ser mantidos fechados!” A diretora fala sobre o ensino enfantil III: “- Principalmente, a rotina é trabalhada. Para tudo na vida a gente tem de ter limites, disciplina. Saber até onde termina nossa liberdade e começa a do ou- tro.” Mãe 1: “- Um aluno [Dennis] tinha chutado a minha filha. Ela tinha ficado com medo. Ele tem muito problema, e mora com a avó. Esta só vinha às reu- niões chorar. E pedir ajuda. Diretora: “- Ele tem um lado negativo. Mas a gente pode reverter. Ele é no- vo, ainda é possível mudar!” Mãe 2: “- Vão entrar mais alunos!? Porque são 13...” Chegam os professores: Helena Campolargo, Beavis e Kari- na. Prof.ª Helena: “- Estive observando que o Eddie (13 anos) tem muita difi- culdade em copiar do quadro. Ele não faz letra cursiva; cobre as letras com caixa alta. A senhora vai ver: só tem duas folhinhas. Ele se cansa fácil. Reco- nhece o 5, do 5 para lá fica confuso. Não reconhece o 9. Ele está naquela fase das vogais. Não tenho só esse aluno com adaptação, eu tenho que estar me dividindo entre eles e passar a matéria do 5.º ano. “- Mary Jane, Beatrice, Davi, não sei… Não poderiam encaminhar o aluno para o centro especializado !?. É que a gente precisa de um respaldo legal: - para o Governo ele teria que fazer a prova do 5.º ano. Mas, a gente sabe que ele não tem condições. E a concentração dele também é muito curta. Prof.º Beavis: “- E o remédio, Gaballon !? Porque o remédio faz manter a concentração... Prof.ª Karina: “- A que horas ele toma? Sabe por quê !? O meu filho tam- bém usa, e o neuropediatra fala para ele tomar antes de ir para a escola. É, mais pode ter o problema de misturar o remédio.” Mãe de Eddie: “- A neuro[logista], Dr.ª Hyde, diz que está tudo normal. De- pois de uma certa idade, ela diz que não era mais com ela, e passou para o neuropediatra. Mãe de Jimmy Cooper: “- Desde 2009, Jimmy faz tratamento com o neu- ropsiquiatra Simão Bacamarte. Ele é hiperativo e tem déficit de atenção.” Diretora: “- Isso já é negativização...”] Prof.º Beavis: “- Ele esquece as coisas.” Prof.ª Helena: “- Ele é um pouco apático. [sobre Jimmy Cooper] A Bela fica ansiosa assim, quando tem muitas coisas para saber. [...]

Nesta penúltima reunião entre as equipes SOPE (OP e OE), SAFE (psicólogo e assistente social), e com a diretora e o diretor adjunto, três mães de alunos e dois profes- sores, a diretora nova relata o “caso” de um aluno que, no 3.º ano (antiga 2.ª série), ain- 243

da não sabe ler nem escrever. Ela insiste em que este aluno deva ser encaminhado para a escola de ensino especial (NAEE). Levando em conta que daquele aluno nada sabíamos, pois era transferido do CI- EP, em seu recente episódio de municipalização, era o nosso primeiro dia de trabalho após as férias e a primeira reunião do ano, a situação revelava-se como um exagero, e nos dava certeza que o desfecho já premeditado para aquele encontro com os pais era convencê-los do encaminhamento. O objetivo único era de encaminhar o maior número de alunos a qualquer custo, e com qualquer dificuldade para a escola especial.

Relatório Majoritário (pré-crime) A administradora da escola me pressiona quanto o encaminhamento e continua a se justificar pela exigência do encaminhamento:

Eu vou brigar sempre com você sobre isso! Ela, [a mãe] não vai te falar nada, ela só chora, não podemos ficar mais com burocracia! Quer papel !? Eu en- caminho! - O aluno deve estar entre seus iguais! Isto é o mais importante: - inclusão social... Eu penso muito nas crianças... Eu ajo em defesa dos direi- tos das crianças. Prof.ª Helena: Eddie Brock tem dificuldade de aprendizagem; Jimmy Coo- per, ele já é alfabetizado e eu vou trabalhar a partir daí com ele. Eu vou fazer minha parte, mas acho que não é suficiente! A coordenação motora dele [de Eddie] é boa. Para ele aprender as letras já vai ser um avanço para ele. Porque ele tem dificuldades de aprendizagem mesmo!! [diz enquanto a mãe de Eddie está em prantos, em lágrimas] Na ficha cadastral de Eddie Brock: Possui algum problema de saúde? Qual? Disritmia. No final deste primeiro encontro do dia: A Diretora: “Vou marcar uma reunião com a Pipa. - Sem muita burocracia, que eu sou prática!” Trabalhei na FUNABEM durante 10 anos!! [Refere-se à antiga Escola-reformatório Filinto Müller, do município]

A mãe do aluno chora muito, e a diretora diz que é um sofrimento em função de um problema de aprendizagem que já se arrasta há tempos. E ela está disposta a superar a diretora anterior, Ágatha, com o alcance de sua superprodutividade: - Através do cumprimento das metas agressivas e lucrativas dos encaminhamentos de alunos ao NA- EE e/ou às especialidades médicas, psicológicas e outras. Eu disse à diretora que seria preciso conversarmos mais sobre a questão, conver- sar com os integrantes da SAFE não presentes, inclusive com a coordenadora: Diretora: “- a coordenadora foi minha aluna! Ela não vai discordar... Tenho certeza que a Pipa vai agilizar este encaminhamento... Nós temos muitos alu- nos com problemas, muitos alunos com problemas... Vocês podem achar que eu sou ansiosa... Eu luto pela Educação, pela confiança que me deposita- 244

ram... Qual o projeto da escola para esses alunos?” [ refere-se à antiga dire- ção, de Ágatha Trunchbull.]

A diretora e os professores saem da sala de leitura onde se fazia a reunião, e po- demos ficar as equipes apenas, com os pais. Escutamos e a mãe do aluno, que diz que estava chorando porque sua mãe falecera há alguns dias. No turno da tarde, em reunião para decidir o encaminhamento, a direção retoma o assunto, e diz querer que o psicólogo o encaminhasse naquele momento. Eu provoquei alguns questionamentos em meio às falas no grupo, e perguntei se ela conhece o traba- lho do psicólogo na escola, e como era a política dos encaminhamentos na escola esta- dual onde trabalhou. A diretora afirma que, nessa escola, eles passavam a responsabili- dade para os pais, pois não havia equipe técnica. No Regimento Interno da Secretaria de Educação era previsto que apenas o (psi- co) pedagogo, o psicólogo ou o fonoaudiólogo da equipe técnica poderia fazer a avalia- ção e o encaminhamento dos alunos para atendimento educacional especializado [A- EE]. A psicopedagoga estava ausente há três meses por conta de uma cirurgia, então entendi em parte o desespero daquelas pessoas. Sabiam que eu não faria o encaminha- mento automático para o NAEE. Questionei a exigência e a obrigatoriedade de que o aluno tivesse aulas de alfabetização à distância, ou seja, na escola especial, e o não ha- ver trabalho da equipe dirigente e técnicos da escola pela alfabetização na própria esco- la, considerando ainda que a unidade tinha aulas de reforço. A gerência estava com pressa pela produtividade dos encaminhamentos médico- assistenciais para a escola especial como caminho para atender no menor prazo possível as demandas da população com relação aos problemas do ensino-aprendizagem. Objeti- vam acelerar comprimindo o tempo necessário para os resultados na linha-de-produção. São regras de eficiência e eficácia que são tensionadas na expectativa de que sejam operacionalizadas na escola. Irrompem os medos com relação às iminentes reclamações dos pais dos alunos, ou da comunidade escolar em um ano de eleições municipais. Com isso, a medicaliza- ção e os registros pré-crime nos encaminhamentos dos alunos para neurologistas e escola especial representam um aparato tecnológico de cuidado, como garantia imediata da contenção dos conflitos de todo tipo na escola: entre pais e entre os trabalhadores, no entanto, o que a escola produz é uma real implosão das tensões inevitáveis, como uma 245

verdadeira bomba-relógio. O que interessa à gerência, à Secretaria e replicantes 187 é manutenção dos atuais grupos no executivo municipal por meio da satisfação total da clientela formada pelas famílias dos alunos. A diretora, com efeito, profere em alto brado que, se o psicólogo não encami- nhasse o aluno, iria cobrar-lhe toda semana um planejamento, assim como faz com os professores. Duas semanas depois, no estágio probatório quinzenal (que recebíamos de todas as seis diretoras), conferiu-lhe as seguintes notas, a despeito de todas as notas cin- co (máximas que recebeu em mais de dois anos de trabalho): O técnico recebeu nota dois em capacidade de iniciativa, nota um em produtivi- dade, nota dois em responsabilidade, e uma nota mínima um em (in)disciplina, sendo que a nota maior foi três em assiduidade. Ela explicou somente a nota em (in)disciplina:

[...] Você faltou com o respeito. Faltou com a disciplina: - não aceitou o fato de que eu queria ajudar uma criança. No quesito recomendações: comunica- ção mais efetiva com equipe. Linguagem menos técnica e mais acessível; no item orientações: conversa em equipe, individual, porém o servidor encon- tra-se resistente ao diálogo; [e, curiosamente,] no quesito final capacitação: terapia ocupacional . (Diário de campo, data; grifos meus)

O psicólogo não atinge as expectativas de produtividade, cuja medição e exame estão numa avaliação de desempenho (estágio probatório). Não atingiu as metas agres- sivas esperadas de medicalização e responsabilização das crianças e adolescentes pelas aprovações automáticas. Não quis mandá-las aos porões da escola especial ou das adap- tações curriculares. Depreende-se que as micropolíticas de medicalização se estendem como institui- ções de controle a céu aberto. A máscara do especialista passa ao corpo da diretora da escola, que espera que o psicólogo seja mais um de seus andróides. Não há tempo à tolerância aos desvios, a aderência e o compliance 188 devem ser totais. Seguindo a

187 Metáfora que utilizo para por em evidência aqueles funcionários da escola que não medem esforços em aderir às grades - regras da escola-empresa, - combatendo os questionamentos e diferenciações possíveis, assim como dão seu aceite porque têm seus interesses em participar do grupo dominante devido a interesses eleitorais. Replicante ou andróide é um conceito utilizado no filme Blade Runner, para indivíduos que são cópias genéticas dos seres humanos, espécies de robôs construídos com o avanço da engenharia genética, baseado na estória futurista de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? São agentes que replicam as normas no sentido das grades gerais: de medicalização, pré-crime, aprovação automática, sistemas apostilados para os secretários de educação e metas eleitorais agressivas para os diretores. 188 Na linguagem corporativo-empresarial, compliance é a conformidade que os funcionários devem ter aos normativos da corporação. Fator necessário à manutenção da disciplina, e para garantir que os trabalhadores defendam as normas da empresa, sejam vigilantes quanto à segurança das informações, 246

missão de muitos estabelecimentos bancários, a escola deve garantir a satisfação total de funcionários, clientes (comunidade-famílias) e fornecedores. Na folha do estágio probatório, havia um espaço para indicações de capacitação para o funcionário. A diretora escreve “terapia ocupacional”. Quando lhe pergunto o motivo da conduta – o porquê da “capacitação” em terapia ocupacional, já que se trata- va de um outro curso de graduação, não um curso afim da área da psicologia -, ela justi- fica: “- Acho que você precisa mesmo de uma terapia ocupacional.” Foi avisado à escola que o psicólogo se ausentaria, na semana da reunião, pois teria que comparecer a uma orientação em seu curso de mestrado, no entanto, sua nota de “assiduidade” reduziu-se a “três”, por motivo de falta. Quando reitera-se o informe da falta, replica a diretora:

Diretora Odete Roitman: “- [...] Apesar de você ter na frente do nome o ‘Dr.’ – ‘doutorado’ -, você não é doutor!”

Nossos questionamentos à ordem de encaminhamentos sem precedentes ao NA- EE desafiam a compressão do tempo, na medida da contenção das queixas da clientela escolar, ou da prevenção dos riscos de conflitos com a corporação educacional. Se o questionamento de um técnico soa como ameaça à ordem soberana de medicalizações e confinamentos na escola, esse superior prontifica-se a examinar o primeiro e encami- nhá-lo a “uma capacitação em terapia ocupacional” como se fosse um tratamento médi- co para a (in) disciplina do psicólogo. Na política de Medicalização e Hierarquia para Todos, com exames-diagnósticos que declaram o não-saber do outro - silenciando-o - ,e prescrições de metas, correções e culpas, quem será o doutor? Enquanto procuramos culpados individualizados, e produ- zimos campos especializados de concentração entre nós, tornam-se cada vez mais invi- síveis as grades. Se não as enxergamos, mais adiada se faz a luta por mudanças necessá- rias, urgentes, e insurgentes! Neste momento, o que nos interessa é a crítica e a contestação às grades implan- tadas pelos fornecedores estrangeiros (neocolonialistas) à escola, e incorporadas por muitos de seus atores. Para contestarmos as práticas de medicalização é preciso enten- der que suas forças não estão em um só lugar, mas em trânsito entre os corpos na escola, petrificando-os com a inoculação de automatismos-máscara de todo tipo: corporativis-

num banco, a exemplo, denunciem os desvios como uma prerrogativa e sejam avaliados pelo não cumprimento. 247

mos empresariais, religiosos, eleitorais, extra-judiciários e policiais, entre outros, se justapõem também como registros pré-crime aos encaminhamentos médico- assistenciais, consolidando visões estigmatizadas da infância e adolescência na escola. A medicalização é parte da estratégia de controle social, ético e político dos cor- pos, e das populações, como do corpus escolar; ao contestar as forças de controle macro e micropolítico que nos fornecem as máscaras, o desafio está na produção astuciosa e tática de registros dissonantes como reposicionamento revolucionário das práticas co- letivas na escola.

Reunião Pedagógica na Escola Gamma, em 29 de novembro de 2011 A orientadora educacional, Gwen, e Dorothy trazem um texto para ‘leitura e reflexão’ com os professores: - Os professores e suas responsabilidades189. Já na sala da reunião, ouvíamos os estouros dos testes explosivos nas (duas) fábricas-de-fogos vizi- nhas da escola Gamma, onde muitos pais dos alunos trabalhavam das sete às dezessete horas (isto eu sabia porque era dificílimo marcar um horário para estar com as famílias, e quando os escutava, passavam correndo pela escola com medo de reclamações no tra- balho), - quando não trabalhavam como caseiros dos sítios das redondezas. Silêncio... Ninguém comentou o assunto, o barulho... mas sabia-se que muitos responsáveis traba- lhavam com fogos como estalinhos, terceirizando o trabalho em suas próprias casas, ao que ganhavam por produção, por caixa-de-estalinho acabada190.

189 MACHADO, João Luís Almeida Machado. O código de ética do educador – os professores e suas responsabilidades. Disponível em: Acesso em: 30 jan 2013. O autor é editor do portal eletrônico Planeta educação – um mundo de serviços para a escola, portal este que é vinculado à Vitae Futurekids – Soluções para Educação, “uma empresa especializada no desenvolvimento de soluções educacionais inovadoras, com o objetivo de levar excelência à Educação Pública, tendo como foco aluno de forma integral, e como vetores de mudança os professores, os gestores educacionais e as famílias.” A organização desenvolveu o programa (software) Gestão Fácil, uma plataforma tecnológica que permite um melhor acolhimento dos dados sobre toda a vida escolar dos alunos, implantado em escolas públicas de alguns municípios paulistas, e tem atuação no treinamento corporativo do tipo empresarial de alunos, professores e “gestores-líderes”, através de seus serviços, como ensino de línguas estrangeiras, tecnologias para adaptação educacional inclusiva para alunos com deficiências e consultorias diversas, assim contribuindo para o “melhoria consistente no desempenho dos alunos, contribuindo para a melhoria nas avaliações de larga escala no âmbito nacional e internacional – Prova Brasil, PISA”, além de “melhorias significativas no IDEB” (Cf. sítio eletrônico da empresa Vitae FutureKids. Disponível em: Acesso em: 31 jan 2013.)

190 Lembro de dois alunos da escola Alpha: (1) Ana, adolescente, que cantava muito bem, e era integrante de um coral (cuja mãe diziam na escola que era prostituta e estava desempregada) diz que sua mãe fazia os estalinhos em casa e, uma vez, pensou que seu braço direito tinha explodido, quando na verdade tinha sofrido séria queimadura do material misturado (diferentes substâncias químicas) e empregado na produção do estalinho, e (2) o menino João, que chegou a escola com um olho queimado.

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Um campo de treinamento e desconfianças na escola-empresa: O CÓDIGO DE ÉTICA DO EDUCADOR191 Os Professores e suas Responsabilidades É inerente a todas as profissões o compromisso, o engajamento, o comprometimento. Esta não é a única regra, mas assume-se que todas as pessoas devam levá-la adiante [...] Isto significa respeito tanto por quem nos contrata e remunera quanto pelas pessoas que atendemos e a quem direta ou indiretamente prestamos serviços. [...] Ao assu- mir compromissos profissionais e assinar contratos de trabalho, não apenas nos com- prometemos com nossos alunos, temos a partir de então um compromisso maior com cada um de nós mesmos. Nossos nomes passam a ser avaliados [...] no âmbito profis- sional[...] a partir [...] dos resultados que somos capazes de obter... No caso dos educa- dores, há certamente [...] direitos e deveres como parte do caminho que devemos trilhar. É justo e necessário que conheçamos e possamos utilizar de nossos direitos quando as- sim for necessário, nunca em demasia, jamais ultrapassando os limites éticos que sabe- mos presentes em nossa profissão. É, por exemplo, o que deve ocorrer quanto às faltas eventuais que ao longo de nossa carreira podem ocorrer. Doenças, intervenções cirúrgi- cas, falecimentos e problemas familiares (com nossos cônjuges, filhos, pais, irmãos, a- vós...) ocorrem [...] Como compromisso ético, é de fundamental importância que nos ausentemos somente quando isto realmente acontecer. Como parte do Código de Ética dos Educadores, num primeiro parágrafo, poderíamos inserir o compromisso da assidui- dade e, também, da pontualidade. Ser o mais frequente possível, faltar apenas quando realmente for muito necessário e chegar um pouco antes do início das atividades escola- res é elemento basilar da ação dos trabalhadores. E é tão elementar que nem consta co- mo parte de qualquer contrato de trabalho que tenhamos que assinar, simplesmente se espera que as pessoas, dotadas de bom senso, assumam este compromisso. [...] Indo um pouco mais além, [...] é preciso que os educadores se ATUALIZEM SEMPRE quanto aos seus SABERES e PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, assim como no que se refere aos seus CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS (enquanto especialistas em história, geogra- fia, letras, matemática, educação física, artes, inglês...), e também a ATUALIDADES. [...] Nesse aspecto, compreender-se como parte de EQUIPES DE TRABALHO, colabo- rando para que estes times tenham o melhor desempenho possível. [...] Penso que nes- ta última proposição esteja sendo poético e/ou filosófico demais, mas num mundo co- mo o nosso, em que tudo é racionalidade e resultado, se não nos dermos o direito de sonhar, o que há de acontecer conosco... Gwen Stacy, O. E.: “- Será como está o meu compromisso como profissional? Meu a- luno não está conseguindo alcançar? O que podemos fazer de diferente? Prof.ª Magali: “- Tem vezes que não depende de você, é do aluno mesmo. Acho que ele tem problema físico mesmo: - de visão e na fala [sobre o aluno Cebolinha]. Agora é que ele está fazendo pontilhado, tem 5 anos... Diretora Mirana, a Rainha Branca: “- O tema hoje é o desenvolvimento do professor, não do aluno! Rainha Branca: “- Sou contra dever de casa, porque muitas vezes um professor não pode trazer algo no dia seguinte. Muitas das vezes a agente cobra da criança aquilo que não pode fazer.” “- Tive uma conversa com uma mãe da aluno, que me disse: ‘- Acho que o meu filho vai ser reprovado por faltas, agora: com o aluno tem conselho tutelar, Ministério Públi- co e etc, e com o professor, o que ocorre quando ele falta?” Prof.ª Magali: “- Vocês que têm curso superior sabem mais.”

191 A citação deste texto de modo bastante extenso, e quase completo se explica porque o ponho com um documento importante e também analisador das tensões hierárquicas, entre integrantes das equipes técnicas que se pensam dirigentes e acima dos professores nas pirâmides organizacionais das escolas de Antares, no que tange as decisões e os encaminhamentos das práticas, condutas e discussões nos espaços coletivos como a RP. 249

Prof.ª Mônica: “- Eu mudei muito. Quando chegamos para trabalhar queremos fazer tudo à risca: - se ele não acertou, vou dar vermelho! Mas, com o tempo, você vai fican- do mais maleável.” Luzia, a recreacionista: “- Caderno que parece rascunho...” Prof.ª de alfabetização, Nilda: “- Sobre o Maximiliano... Ele vem com caderno, roupa sujos, mas ele aprende. Aí vou dar nota no caderno dele!? Ele vai ser sempre assim... Sempre assim...” Assistente Social, Wladimir: “- Saúde: o que podemos tirar da equipe, do professor...” Prof.º Walmir: “- Estou há 23 anos no quarto ano. Não sei se o problema é meu ou do aluno; só sei que não me agrada. Eu não consegui vínculo nenhum com a minha turma. Não sei... De repente é este desgaste meu, tenho problema em casa. Eu não vou ficar pedindo desculpas aos meus colegas de trabalho, senão é como se eu estivesse errado. Descobri uma amiga, Karen [orientadora pedagógica da escola Gamma e da escola Del- ta]. Karen, eu não vou pedir desculpas. Você tem que prestar contas com um batalhão: - não são só aqueles treze ou dezessete que o professor tem de aluno. Tem os pais, e a Se- cretária, Iracebeth, que exige uma resposta. “- Posso não estar dando a aula que eles merecem. Mas eles passaram na Prova Antares. Mas se ficar doente, vou faltar... não estar não é simples, pois você está passando a bola para outro. Então tem mais isso também... A doença física e neurológica, [...], não sei se é física ou neurológica; eu sei que eu tinha... Não tinha vontade de estar com aqueles a- lunos, lidar com a mesma situação. Eu sei que é psicológico. Fiz coisas que um pai não faria com seu filho.” Prof.ª Nilzete: “- Quando você fala na Karen, parece que você não confia na gente. Mas você não falou pra gente... Alguns professores [em uníssono]: “- Acho que você não gostou desta 4.ª série.” Dir.ª Mirana: “- Acho que não é problema da turma.” O. E.: “- acho que é buscar o melhor...” Prof.ª Mônica: “- Vivian tirou licença, e foi readaptada. [Olhando para Walmir] Você deve se avaliar e se tratar! Não que o seu problema seja pior que o meu... Não foi o que aconteceu... Às vezes, a gente está até xingando e a pessoa está lá sofrendo. - Os professores estavam acostumados em trabalhar juntos, mas o trabalho em equipe está acabando por alguns detalhes acontecendo. Sentimos uma falta de compromisso que você não sente; mas que a equipe sente. Você me desculpa... pois para mim você não deve desculpa, satisfação, mas para a Diretora, sim! Falar para o aluno onde está o professor é uma incógnita, quando os professores se atrasam. Não queremos perder nin- guém da nossa equipe, mas pensamos: - por que não pede licença!?

Minayo-Gomez e Barros192 (2002) assinalam questionamentos a um suposto e aparente não-sentido atribuído pela escola-empresa aos processos no campo de articula- ção saúde-trabalho, e que se traduz comumente pelos efeitos de exame e articulação como o burnout e pedidos de licença (de diagnóstico nosográfico e encaminhamento), que caminham na esteira premonitiva das readaptações de profissionais:

As solicitações de afastamento do trabalho por motivos médicos sinalizam ora estratégias que recusam os modos de administração verticalizados, mo- vimentos que buscam fugir das serializações impostas, constituindo-se em importante estratégia política, ora adoecimento e, ainda, defesas que buscam evitar o adoecimento. O gerenciamento do tempo é uma estratégia privilegia-

192 MINAYO-GOMEZ, Carlos & BARROS, M. E. B. de. Saúde, trabalho e processos de subjetivação nas escolas. In: Psicologia: reflexão e crítica n.3, v.15 2002, p-24-52, Porto Alegre. 250

da no estabelecimento da lógica do capital e uma forma de recusa utilizada pelos trabalhadores, como a greve, operação tartaruga, a cera, e, ainda, os pe- didos de licença. [...] (MINAYO-GOMEZ; BARROS, 2002, p.4)

Prof.ª Mônica estava revoltada porque, a cada falta de Walmir, - e foram muitas -, era designada pela diretora, Mirana, para assumir seu posto, digo, sua turma, proviso- riamente. A diretora tinha me pedido para que falasse, nesta RP, sobre o tema das “res- ponsabilidades” do professor, dizendo que os educadores estariam a esperar que a nós, da equipe técnica, fizéssemos o trabalho de ensinar por eles. Logo percebi, com a leitura do texto, que a intenção com este instrumento era mais um apêndice da estratégia geral de cobranças de uniformidade, conformidade, uma operação colaborativa entre O. E. e (psico)pedagoga para a manutenção da ordem, para o controle da aderência aos norma- tivos e políticas de segurança da escola (Gamma)- empresa contra a (in)disciplina dos trabalhadores do ensino. A partir de movimentos como esse, tornou-se visível para mim que certas forças como estas que atuavam nas práticas das duas pedagogas, Dorothy e Gwen, especialistas em (psico)pedagogia e orientação educacional, respectivamente, estavam contribuindo para a garantia da biopolítica de hierarquia para todos, via os ritos sumários de medicalização. A ética empresarial, predominante porque já invadira a E- ducação Pública, é o que fazia com que estes profissionais se considerassem em degraus superiores aos professores - então executores das tarefas mais “braçais” -, e na alta posi- ção de ordenar-lhes certas competências como assiduidade, compromisso, aderência, (in)disciplina, ética? (objetos de avaliação do estágio probatório) Eu sabia que a O. E. tem entre suas atribuições especialistas a atuação em atenção à (in)disciplina de alunos e à relação escola-família; mas e quanto ao cuidado, atenção e controle à (in)disciplina dos trabalhadores do magistério? Em seu turno, tive notícias, através de outros professores e da diretora, de que o professor Walmir estava “com depressão” e fazendo uso intensivo de bebidas alcoóli- cas, durante os vários meses nos quais andava faltando. E, como ele mesmo disse, já no final do ano letivo, estava descontente com a turma que assumira, com a qual não fizera vínculos. Sobre o texto que versa das responsabilidades do professor, quando o escutei pe- la primeira vez nesta RP, logo percebi o tom das cobranças, no compasso da situação real particular da escola Gamma, de descontentamento e desconfiança entre os educado- res, dadas as ausências de um professor e a sobrecarga de uma professora que o cobria assumindo sua turma. Já na escrita desta dissertação é que verifiquei como a ética de 251

controle do tipo empresarial pode, de modo persuasivo, tenaz e incansavelmente, inter- vir na escola, à distância e indiretamente, como o fizeram acontecer os especialistas que escolheram aquele texto pequeno e o levaram para a ‘reflexão’ coletiva na escola. Na verdade, já com a previsão dos seus efeitos de halo sobre os professores, assim como para os especialistas o sentimento de serviço prestado e missão cumprida. Será que quando encarnam o especialista sabem que estão a operar tal tipo de controle empresari- al na escola, - estão convictos!? Ou simplesmente não estão a fim da crítica, de produzir questões em encontros como esta RP, e puseram na roda qualquer texto, agindo no au- tomático!? Daí, depois de toda a tensa e desconfortável discussão, na qual um professor fi- cara em evidência, como depositário fiel das ansiedades do grupo, e de outras questões e conflitos silenciados no trabalho, resolvi provocar um distúrbio naquele sistema de re- petições e cobranças, pois achei que me caberia fazê-lo. Entre as outras questões não ditas e aprofundadas coletivamente entre aqueles trabalhadores, estava a da escola- empresa, seus ditames e efeitos danosos, como o adoecimento e a medicalização tam- bém de professores. O que se evidenciou, ao fim dos debates da RP, foi a saída escolhida e encami- nhada pela autoavaliação e busca de tratamento (médico ou psicológico, penso) como resolução para um dado mal-estar do professor na escola, um (in)cômodo e um senti- mento de (des)vinculação com a sua turma, em suma: movimentos de (des)adaptação na escola, quase sempre mal-vindos. Na fala da professora Mônica, ao final das discussões, Walmir fica em foco, a desconfiança reina entre os professores e os cerca como um es- cudo (entre eles, e conosco, frente à barreira hierárquica especialista). A válvula de es- cape da sugestão para tratamento em saúde individualizado (para Walmir) e fora da es- cola surge então como força que incide consolidando o não falar coletivo e travar dis- cussões sobre as mínimas tensões e conflitos na própria escola, o que nos implicaria falar sobre a Saúde daqueles trabalhadores, em outro foco possível na trajetória já fe- chada e certa daquela RP:

[...] Cabe destacar, ainda, que, em suas diferentes dimensões, os pedidos de licença, nas administrações onde predomina o modo de produção de subjeti- vidade marcado pela repetição, ou seja, que não colocam em questão os mo- dos instituídos de funcionamento social, são esvaziados do seu caráter coleti- vo e passam a sinalizar compromisso/descompromisso pessoal e individual dos docentes. Um individualismo patológico que dificulta ou tenta impedir a integração desses atos numa complexidade viva, a partir de um projeto ético comum. Opera-se um deslocamento quanto aos processos que produziram o 252

adoecimento e as respectivas estratégias defensivas. A possibilidade de o tra- balhador ter reconhecido a importância de lutar pela saúde como estratégia coletiva de resistência coloca em análise os modos de organização do traba- lho na escola que produz, prioritariamente, “subjetividades metástases” (Ne- ves, 1997), amorfas, moldadas ao sabor dos interesses do capital e, portanto, com dificuldades de cultivar resistências às instituições, às técnicas de con- trole e disciplinarização. (MINAYO-GOMEZ; BARROS, 2002, p. 5)

Se no campo de tensões da escola o professor tem sido objeto de culpabilizações e individualizações das questões de saúde no trabalho, visto que algumas táticas de so- brevivência ao ambiente nocivo de trabalho, como ausências e pedidos de licença são criminalizadas como prática desajustada e que tem a oferecer o risco da contaminação coletiva, da equipe, ao procurar ou ser encaminhado à assistência médica para avaliação de sua situação, ele se depara com outro extremo de individualização e isolamento de sua condição com relação à problemática do trabalho na escola.

[...] a busca por ajuda médica ocorre quando as trabalhadoras no limite de su- as forças, quando não suportam mais as situações de mal estar geradas pelo processo e organização de trabalho e ainda quando outros mecanismos de de- fesa engendrados por elas próprias não dão mais conta.

Na triagem o trabalhador é encaminhado para uma clínica especializada, de acordo com o problema de saúde que apresentar. Após exame médico, pode haver indicação para licença-saúde ou, diretamente, para readaptação. No ca- so de recomendação para licença, essa pode se dar de duas maneiras: uma li- cença com alta pré-definida, pois o médico julga ser esse o tempo necessário para que haja a recuperação da saúde, ou sem alta, quando o caso for mais complicado. Nessa segunda situação, é concedida uma licença inicial que po- de ser de 30 a 60 dias, determinando-se assim uma data para o retorno da ser- vidora. Quando há sugestão para readaptação, ocorre também uma avaliação por parte do Serviço Social no que tange à relação limitação-atividade (doen- ça x capacidade). Em seguida, é feito um encaminhamento para a Comissão de Readaptação. É importante esclarecer que a readaptação também pode a- contecer a pedido do trabalhador, estando esse licenciado ou não. Quando é o trabalhador que toma essa iniciativa, a primeira avaliação cabe ao Serviço Social. (BRITO et al., 2001, p. 164-165)193 Deste modo, a questão saúde é isolada das relações de trabalho, individualizada e patologizada no corpo do trabalhador. A saúde do trabalhador é tomada pelos especia- lismos médicos como oposto de doença e isolada como um problema isolado no indiví- duo. De uma ponta à outra – da escola aos assistencialismos médicos, os professores encontram a fragmentação disciplinar e de controle entre saúde e trabalho: - na escola não se pode falar de modo crítico sobre o trabalho, e muito menos colocar em questão as condições de saúde coletiva no trabalho, pois são individualizadas e encaminhadas

193 BRITO, J. ATHAYDE, M., HYPPOLITO, A. et al. (2001). Readaptação profissional: a “ponta do iceberg”? In: ATHAYDE, Milton; BARROS, Maria Elizabeth; Brito, Jussara e NEVES, MARY Yale (orgs.). Trabalhar na Escola? “Só inventando o prazer”. Rio de Janeiro: Eduções IPUB/CUCA. 253

aos técnicos. Nos consultórios médicos, em geral, não se pode tocar na realidade social e ético-política das relações próprias da escola, de trabalho e formação. E um fluxo ex- terno como duplo das práticas internas de medicalização replica a ética do silêncio cole- tivo sobre as questões do trabalho no magistério:

A prática adotada por esse serviço demonstra um atendimento descolado das questões gerais do trabalho, o que leva os especialistas a privilegiar as quei- xas físicas ou mentais apresentadas pelas trabalhadoras e, a partir daí, são prescritos laudos sem a análise do processo de trabalho na escola. Essa práti- ca vem determinando orientações isoladas, tendo como referência o que se classifica como serviços leves ou não leves, caracterizando-se assim numa redução/negação da complexidade que envolve o processo de adoecimento na escola. As experiências narradas pelas trabalhadoras, evidencia, que aquela prática fortalece o quadro de adoecimento, haja vista que a readapta- ção nesses moldes não contribui para a superação do problema, ao contrário concorre para a individualização da doença adquirida no trabalho e para a re- incidência de doenças. [...] (BRITO et al., 2001, p.165)

No mesmo compasso, as decisões continuam a se fazer como um encargo social concentrado à execução por especialistas fora da escola, em articulação entre setores, o que consolida a verticalização hierárquica dura nas relações ao atuar certamente com efeitos à manutenção da ordem interna das escolas.

Fica a cargo dos especialistas a decisão final. A trabalhadora é alijada desse processo. A abordagem individual e “simplista” que, historicamente, vem se constituindo no âmbito da perícia, não permite a troca de saberes e experiên- cias, onde trabalhadoras e técnicos possam, juntos, formular outras possibili- dades que permitam o uso das capacidades produtivas e o aproveitamento do potencial criativo de cada um. (BRITO et al., 2001, p. 165-166)

Eu tinha levado dois textos para ler; escolhi um que considerei naquele momento ser o oposto das regras perfeitas, das palavras e frases em tom hierárquico e conformis- tas e que conduziriam os seus soldados à perfeita ordem e disciplina. O texto destrói certezas e causa estranhezas, pois que fala do desconhecido, da falta de ordem, clareza e significados bem ordenados e previstos; o texto é desconcertante e faz-nos sentir o im- previsto, o impensável e, por isso mesmo, cheio de virtualidades. Assim como as insti- tuições que atravessam a escola, nas relações de trabalho e formação. Pensei em evocar um devir-criança em nós e desconcertar mesmo a todos, naquele momento e naquelas escolas de crianças tão nomeadas como crianças-problema:

Mundo Pequeno do livro "O Livro das Ignorãças"

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I O mundo meu é pequeno, Senhor. Tem um rio e um pouco de árvores. Nossa casa foi feita de costas para o rio. Formigas recortam roseiras da avó. Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas. Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves. Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio. Quando o rio está começando um peixe, Ele me coisa Ele me rã Ele me árvore. De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.

II Conheço de palma os dementes de rio. Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama e de Rogaciano. Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar no horizonte. Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas de Corumbá. Me disse que as coisas que não existem são mais bonitas.

IV Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas, Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos de um mar extinto. Caminha sobre as conchas dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não tinha boca mesmo. "Sonora voz de uma concha", ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares conversamentos de gaivotas. E passam navios caranguejeiros por ele, carregados de lodo. Sombra-Boa tem hora que entra em pura decomposição lírica: "Aromas de tomilhos dementam cigarras." Conversava em Guató, em Português, e em Pássaro. Me disse em Iíngua-pássaro: "Anhumas premunem mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer". Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas: "Borboletas de franjas amarelas são fascinadas por dejectos." Foi sempre um ente abençoado a garças. Nascera engrandecido de nadezas.

VI Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno. 255

- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse. Ele fez um limpamento em meus receios. O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas... E se riu. Você não é de bugre? - ele continuou. Que sim, eu respondi. Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas - Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de gramática.

VI Toda vez que encontro uma parede ela me entrega às suas lesmas. Não sei se isso é uma repetição de mim ou das lesmas. Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim. Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes? Parece que lesma só é uma divulgação de mim. Penso que dentro de minha casca não tem um bicho: Tem um silêncio feroz. Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.

Manoel de Barros

Tinha pensado no mundo pequeno para o discutirmos depois que eu lesse. Só que ninguém discutiu nada. O silêncio foi total após a leitura do texto; percebi olhares de estranheza, e aqueles que buscavam encontrar algum sentido no texto, alguma res- posta, - alguma certeza. Permaneci também em silêncio, e neste momento percebi que talvez o mundo pequeno tivesse provocado algum esquecimento criativo, mesmo que momentâneo, - provisório -, das responsabilidades. O silêncio poderia significar um esvaziamento de sentido das repetições culpabilizantes e individualistas, e a abertura ao pensamento e novas possibilidades. Quis ler e que escutassem (dei uma cópia para cada um) este texto para criar desconcertos entre nós, e o único comentário que ouvi, já du- rante o almoço, foi quando o prof.º Walmir gargalhou dizendo que gostou do texto, com destaque para a parte do “sapo gozar na pedra”, substituindo a lesma pelo sapo na última linha da poesia: - “Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.” Daí soube que houve atenção ao texto, exatamente na frase que contrasta com o “silêncio feroz”. Pacheco (2011) destaca o valor a retenção da oratória, e a resistência possível no silêncio, e potência de se medir esforços pelo que chama se escutatória:

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Escutatória194 A potência do silêncio [...] [...] Silêncio, mais uma vez. Redescubramos a importância do silêncio. Nele estão contidas as respostas para as perguntas essenciais. Por vezes, nos luga- res onde o diálogo acontece, o silêncio pode falar mais alto. Por vezes, duran- te as minhas conversas com educadores, um estranho sentimento me assalta e sinto-me esmagado pelo peso das palavras, ou pela inutilidade do seu uso – só se vê bem com o coração, não é assim? Isso acontece quando algum dos meus interlocutores fica com ar absorto, com o sonho a saltar-lhe das órbitas. Enquanto uns me vê dizer que farão obras maravilhosas, outros retêm-se a um silêncio que me assegura ter esperança de não ter estado a falar em vão. O silêncio é da mesma natureza do sonho. E, se Victor Hugo disse que se deve- rá julgar um homem por aquilo que ele sonha mais do que por aquilo que ele pensa, mais valerá considerá-lo por aquilo que cala do que por aquilo que diz. (REVISTA EDUCAÇÃO, 08/2011)

Sobre as grades e autonomia no trabalho do psicólogo na educação A questão da autonomia no trabalho do psicólogo nos leva ao tema da desvalo- rização do psicólogo no campo educativo, e em particular nas escolas de ensino funda- mental. Não sendo reconhecido como um profissional de educação, mas como um pro- fissional de saúde nas escolas, esta realidade de trabalho também o faz se incluir por uma exclusão. Esta inclusão excludente do psicólogo na educação o tem alijado da par- ticipação direta nos planejamentos político-pedagógicos (PPP´s), se considerarmos que o lugar ético-político certo da psicologia na escola tem sido historicamente exigido e valorizado por sua intervenção de viés clínico médico individualizado e assistencialista a um público reduzido de clientes: os alunos-problema e suas famílias, e pela triagem, diagnóstico e avaliação de encaminhamentos, de um só locus de juiz e guardião das fronteiras da normalidade: - é o sentinela que decide quem sai, quem fica, isto é, a con- figuração dos fluxos de entrada e saída, inclusão-e-exclusão. Vimos tal configuração como trabalho prescrito para este médico das almas na Educação de Antares, e conside- ra-se que a tarefa e o lugar não começam tão somente nas próprias escolas de Antares; não obstante a particularidade de suas forças biopolíticas de controle e soberania, há outras forças históricas que têm a ver com a formação própria de psicólogos e professo- res. Mas será que o psicólogo decide mesmo!? A atuação do psicólogo como preconizado deve se resumir a uma prática com indivíduos, separados uns dos outros, e desta forma não é valorizado para a formação de atividades em grupo nas escolas, nas equipes, e as próprias equipes “de ajuste” com- primem sua intervenção na discussão dos casos clínicos individualizados. A cobrança

194 Texto de José Pacheco. Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal). PACHECO, José (2011). Escutatória – a potência do silêncio. In: REVISTA EDUCAÇÃO. Ano 15 – n.º 172 – p. 24. São Paulo, SP: Ed. Segmento. 257

da escola é, então, por uma atuação isolada, solitária da psicologia. Poderíamos empre- ender esforços de crítica e questionamentos à vida particular dos indivíduos no espaço intimista dos atendimentos individuais nas unidades escolares, no entanto, há reações negativas das equipes dirigentes aos questionamentos de toda ordem nos espaços cole- tivos, como RP, CC e outros, em que os trabalhadores sociais como o psicólogo estari- am em contato com os outros trabalhadores e as comunidades-usuárias. Vejo que rei- nava o medo e por isso o controle à possibilidade de lideranças coletivas e democráti- cas, de organização entre especialistas e não especialistas, medo de que professores, psicólogos, pedagogos e assistentes sociais se unissem em uma organização em resis- tência às ordens gerais: às medicalização, a judicialização dos alunos, o sofrimento, o adoecimento, as relações de ameaça e paranoia no trabalho, a competição entre os tra- balhadores e o clientelismo família-escola em acoplagem ao oportunismo biopolítico- eleitoral na cidade e na escola. Precisávamos coletivamente escavar e enxergar o quan- to estávamos implicados, para começo de conversa e resistência.

Os halos temporais da equipe técnica O lugar reservado às práticas individualizadas pelo psicólogo e (psico)pedagogo era tão certo e valorizado que a contagem do ponto de entrada no NAEE só era proces- sada quando estivéssemos em atendimento, independentemente de que chegássemos às 8 horas ao estabelecimento especial(izado). A jornada dos professores e demais funcio- nários era computada a partir das 7 horas, horário em que o ônibus da prefeitura saía da rodoviária. Todos os integrantes da equipe técnica (SAFE) e pedagógica (SOPE) tinham de preencher uma planilha de controle de frequência recolhendo as assinaturas de cada diretora, e em cada turno de trabalho como registrado neste documento entregue pela coordenadora Pipa à equipe técnica em 22 de fevereiro de 2010:

Cada profissional terá uma planilha de seu próprio Atestado de Frequência que deverá ser entregue a Sr.ª Rosilene Fortes todo dia 13 de cada mês na Se- cretaria de Educação. Essa planilha deve ser preenchida com as datas, horas trabalhadas, nomes das Unidades de ensino e deverá conter somente a assina- tura da Diretora Geral ou Diretora Adjunta (não será aceito assinatura de ne- nhum outro funcionário). Registro a necessidade de estarem assinando tam- bém o Livro de Ponto em todas as Unidades de Ensino [Lembrando: seis para cada dupla SAFE, e doze para o assistente social] que será comparado com a Planilha entregue na Secreduc – Secretaria de Educação.

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Se pensarmos que há pouco contingente profissional de psicólogos nas escolas, em uma mesma unidade escolar, e muito menos nas cidades de pequeno porte como Antares (com menos de 20 mil hab.), a Educação tem sido um campo esvaziado de lutas políticas pelos psicólogos, e mesmo em composição com outros trabalhadores sociais e da Educação. Notadamente, os psicólogos se concentram nas grandes cidades, e não são vistos como parceiros de lutas pelo professor; são objetivados e enquadrados como especialistas em grau acima na divisão social hierárquica do trabalho escolar, organização potencializada pelas gerências do ensino. A genealogia desta subdivisão de funções de dominação entre psicólogo especialista e professor não especialista está no nascimento dos testes, analisador histórico que apresento ainda no capítulo um desta dissertação. Os testes ABC, difundidos amplamente nas três metrópoles nacionais bra- sileiras, de São Paulo a Minas e Rio de Janeiro, consolidam a sua herança inscrita nas práticas do psicólogo, quando verificamos que as intervenções críticas deste “técnico social” na escola soam como avaliações da normalidade (suces- so)/anormalidade(fracasso) dos alunos ao mesmo tempo que do desempenho no traba- lho dos professores. Não era então por acaso que os professores se sentiam culpabiliza- dos quando um psicólogo se deslocava do escopo de atenções ao aluno, e se tencionava a tocar nas questões do trabalho, e, logo, nas implicações mútuas de técnicos e não- técnicos nas práticas de medicalização. Os testes ABC tinham dupla função: a seleção dos alunos fracos, médios e for- tes, onde os fracos deveriam estudar nas escolas especiais, e a vigilância ao trabalho no magistério, assim como a facilitação da avaliação do seu exercício laboral na medida em que os alunos eram selecionados entre escolas regulares e especiais e assim as tur- mas homogeneizadas, em uma época em não havia ainda a profissão de psicólogo no Brasil. O Rio de Janeiro se caracteriza pela coexistência entre as técnicas dos testes psicométricos importada dos paulistas nos anos 20 e 30 e a herança fluminense bem particular das psicoclínicas médico-higienistas dos anos 30 e 40 na educação, trazidas pelo médico-legista e psicanalista Arthur Ramos, e vinculadas ao então Ministério da Educação e Saúde Pública do Distrito Federal. As psicoclínicas, por sua vez, se posi- cionam historicamente na fundação da ética de polícia das famílias, também atuada pelo psicólogo, assistente social, e nas lógicas médico-judicializantes dos encaminha- mentos-fluxos entre escola e organismos como Conselho Tutelar, Ministério Público, entre outros. 259

Esses fatores éticos e políticos nos preocupam, pois que se constituem em desa- fios ao trabalho institucional do psicólogo, e ao exercício de uma psicologia social crí- tica dos atravessamentos políticos, sociais, culturais, éticos e históricos no campo edu- cacional. Produzi neste trabalho questões a partir das relações de medicalização no co- tidiano escolar que afetam a todos: alunos, técnicos, professores e comunidades, e as condições de trabalho não são minimamente favoráveis à intervenção de dimensão ins- titucional e micropolítica, não só na perspectiva ético-política e das técnicas e tarefas – na medida da exigência do alcance individualista médico-assistencial de trabalho – como na perspectiva das lutas econômicas. Os descompassos econômicos e salariais têm reduzido o poder contratual, isto é, das conversações do psicólogo na escola, com os outros atores presentes. As lutas cole- tivas então se esvaziam no sentido das práticas de análise coletiva com professores e pedagogos, o que se revela aliança imprescindível para os processos de desinstituciona- lização e autogestão no ensino nas batalhas conjuntas por saúde e direitos. Como se não bastasse, o estágio probatório dos psicólogos tinha de ser assinado quinzenalmente pe- las seis diretoras das seis escolas, do assistente social, Wladimir, por doze, enquanto os professores e OP´s tinham de colher apenas uma assinatura. As OE´s eram avaliadas em três escolas. Entre 16 e 27 de agosto de 2010, todos os trabalhadores em educação de Antares participaram de entrevistas que dariam início à elaboração do Plano de Carreira e Re- muneração dos servidores da Rede Municipal de Ensino. Em 12 de agosto de 2010, Ira- cebeth e a Sub-secretária enviam o memorando circular n.º 015/2010 à coordenadora da equipe técnica SAFE, com os informes: [...] Tendo em vista a adequação do Plano de Carreira e Remuneração dos servidores da rede municipal de ensino, cabe-nos comunicar que introduzi- remos os trabalhos a partir do próximo dia 16. Para tanto, o Sr. Xxxxxxxxxx, um dos representante da empresa [...] Consultoria e Treinamento Ltda., dará início a “Fase1”, com o levantamento do “Perfil Profissional”, entrevistando individualmente os profissionais, conforme a seguir: [...] L - Secreduc (e- quipe itinerante, funcionários lotados na Secreduc e cedidos para outros ór- gãos) – Dia 27/08 / Horário: de 15h00 às 17h00. [...]

A Secretaria de Educação contratou uma empresa de consultoria e treinamento para a pré-fabricação do PCS da municipalidade. Esta trajetória de terceirização da ela- boração de um documento preconizado pela CF/1988 – Constituição Federal de 1988, e, até 2012 ainda não existente na cidade e em muitos outros municípios do país, nos dá indícios das práticas e técnicas micropolíticas de precarização das relações de trabalho. 260

O uso tecnocrático da terceirização, o recurso à interferência de um terceiro na produção do PCS aparentava a isenção e a imparcialidade das condutas e decisões entre emprega- dor e empregado, entretanto a empresa servia unicamente aos interesses corporativistas da administração pela construção de uma PCS tabloide, o mais econômico possível com relação às condições que pudessem favorecer a saúde no trabalho. Há, decerto, a macro-precarização do trabalho com raízes implantadas no Brasil desde os eventos do Consenso de Washington em 1989, seu receituário de contra- reformas, e que aqui vem se implementando nas “reformas” trabalhista, sindical, educa- cional, tributária, previdenciária, e etc. As regras de privatização e desestatização do Consenso de Washington para a América Latina têm sido implementadas e aprofunda- das por todos os governos brasileiros “democráticos” pós-ditadura militar, até a atuali- dade. O objetivo seria fazer avançar o capitalismo burocrático e atrasado brasileiro atra- vés das ditas “reformas neoliberais”, exigir redução de gastos públicos através das pri- vatizações das empresas públicas, como a da CSN em 1993 e das precarizações gerais das relações de trabalho, o que é visível na contemporaneidade através das contratações temporárias quase eternas de trabalhadores no serviço público de prefeituras, através de cooperativas de trabalho, contratação de trabalhadores como pessoa jurídica visando a economia de tributos e a transferência do ônus para os trabalhadores. A hesitação dos poderes políticos da prefeituras municipais na convocação de concursos públicos não consiste apenas em uma forma de economia, mas no exercício de controle político dos trabalhadores. Se considerarmos que há uma maioria de servidores púbicos contratados, estes podem ser imediatamente substituídos na rotatividade empresarial, e a existência dos trabalhadores concursados passa a ser exceção. A coexistência de trabalhadores com vínculos diversos de trabalho na configuração em: (1) concursados estatutários, (2) con- tratados temporários terceirizados pelas prefeituras a “cooperativas” de trabalho, - com carteira assinada ou não -, e (3) contratados diretamente pela prefeitura, - com contrato formal ou verbal -, têm significado mais divisões e desigualdades entre os trabalhadores de educação, saúde, assistência social, entre outros setores de trabalho social em institu- ições estatais. A precarização e a privatização das relações de trabalho se agudizam nas peque- nas cidades brasileiras, onde o controle e o panopticum do trabalho através de técnicas de precarização contratuais são mais intensos. As estratégias geográficas e geopolíticas locais de vigilância também se coadunam ao controle e, dada a situação da escassez de 261

empregos nestas cidades, muitos se tornam reféns da precariedade e dos binarismos biopolíticos de controle. Reuniões são convocadas nas escolas para a discussão do Plano e os “represen- tantes” dos professores são funcionários próximos da administração municipal, escolhi- dos a dedo, assim com muitos dos representantes de entidades vinculados aos vários Conselhos municipais, de Saúde, Educação, Merenda escolar, e outros. Não obstante termos participado das entrevistas para o PCS, os dois psicólogos e o assistente social da equipe técnica dois anos mais tarde, quando da sua entrada em vigência, a psicologia e o serviço social foram retirados da pauta de atribuições do do- cumento como se não integrássemos os organogramas das escolas municipais. Mesmo sabendo que a equipe técnica estava prevista no Regimento Interno da Secretaria de Educação [como apontado na Introdução], com a ausência do assistente social a admi- nistração nos exclui do Plano com a justificativa de que psicólogo e assistente social são profissionais de saúde, e por isso poderiam ser deslocados – a qualquer hora, sob inte- resse da Prefeitura -, para outra secretaria, como a de Saúde. Os salários dos psicólogos eram pagos com recursos de 40% do FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação -, e permaneciam o mínimo possível; de outro lado, os pro- fessores – com apenas o nível médio nas escolas de Antares – passaram a receber mais do que os trabalhadores sociais com a existência de um piso nacional da classe. Trata-se de mais um fator a aprofundar as grades: as subdivisões, desigualdades, competições, culpabilizações e adoecimento no trabalho (tendo a medicalização da educação como efeito e controle técnico das virtualidades de todos, e entrave à produção da saúde e lutas coletivas). Os impasses ético-políticos, acoplados aos econômicos, nos desafiam a questio- nar os lugares certos para a psicologia na escola pública de ensino fundamental, e na educação, de modo geral, e a pensar coletivamente com os atores escolares um reposi- cionar da atuação direta do psicólogo nas escolas através do trabalho institucional. Em um deslocamento dos efeitos de medicalização nas condutas dos trabalhado- res, tendo como objeto principal os alunos, passo a um outro efeito, que é o da crimina- lização dos trabalhadores dissidentes. Considero dissidentes àqueles trabalhadores que não se aprisionam às grades dos setores e intersetores da cidade, e que, por não aderirem cegamente, sem questionamentos às ordens das compactuações governamentais, são criminalizados. E, mais uma vez, a ética médica e assistencialista atravessa as práticas e 262

técnicas quando os trabalhadores sociais resumem a sua atuação aos encaminhamentos na Educação, à avaliação da concessão de benefícios assistenciais como o Bolsa-Família e o BPC, assim como ao tratamento de usuários na Saúde Mental visando a solicitação de benefícios previdenciários. 263

5 DOS PLANTÕES INSTITUCIONAIS COMO DISPOSITIVOS CRIADORES DE UMA EDUCAÇÃO MINORITÁRIA E REVOLUCIONÁRIA

“a literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior.” Deleuze & Guattari Kafka, Por uma Literatura Menor

Retomo os três analisadores: Wendy Darling, Thomas Sawyer e Alice P. Lidell. Os nomes fictícios que criei para estes estudantes os construí para que fossem metáforas das realidades e tramas desindividualizadas, e os escolhi de modo que extravazassem mesmo o governo autocrático da dinâmica repetitiva dos diagnósticos médicos e assis- tencialistas. Como um devir-criança que pudesse rasgar o tecido patologizante organi- zado como um escudo à crítica no trabalho institucional, pensei na confecção dos nomes literários como tática disruptiva para a análise das relações de poder na educação da pequena cidade de Antares. As práticas e técnicas de Medicalização do fracasso escolar se apresentam, no capítulo um, a partir dos traumas individuais de alunos e famílias, e dos primeiros diag- nósticos de doenças do não aprender na escola em acoplagem aos ritos sumários da e- quipe técnica 2005-2008. Este material foi precursor da produção dos relatórios pré- crime em todo o trabalho, porque me confidenciara histórias de medicalização mesmo antes que eu começasse a trabalhar, e se configurara também como analisador histórico, ao lado dos internatos, manicômios e coronéis. São os primeiros dados que me chama- ram à atenção, que me incomodaram e me exigiram a ponto de decidir uma intervenção sócio-analítica na educação fundamental em seis escolas da municipalidade. Não vis- lumbrei outra possibilidade como aplicar testes psicométricos nem legitimar um setting de atendimentos psicológicos individuais aos alunos e pais. Como o primeiro analisador em Wendy compõe encaminhamentos na análise crítica geral no trabalho? A anormalidade em Wendy nos leva às práticas e técnicas: aos relatórios de sua mãe à escola, afirmando que a filha apresenta TDAH, e a um relatório externo de uma fonoaudióloga de um hospital de reabilitação em saúde que, em um pa- rágrafo do parecer, afirma a idade mental de seis anos para Wendy. A questão é que o desenrolar destes agenciamentos coletivos nos conduzem a uma aparente irredutibilida- 264

de geral da produção das adaptações escolares como técnica de controle (após todos os relatórios de exame e articulação na rede interna e externa: observação e diagnóstico, e encaminhamentos dentro e fora de cada escola de Antares), - e esta é a diferença no relatório Wendy -, além do seu encaminhamento ao estabelecimento especial(izado) de ensino da municipalidade - NAEE. O aspecto compulsivo das adaptações e readaptações na escola (para todos) domina as práticas e, seguindo sua diretriz de equalização, reduz outras possibilidades de trabalho e formação; de outro modo, tal produção faz-se irredu- tível em seu próprio processo de replicação de condutas gerais. Wendy nos reporta às práticas de readaptação na escola, ou seja, a escola como um campo de readaptações generalizadas, e analisa a ponta do iceberg na forma do cor- po dos alunos como coisas, e das adaptações curriculares como técnicas que o mortifi- cam. Esta tipologia específica de exame/avaliação tabloide de alunos tem exigido, nas escolas públicas de ensino, senhas intermediárias de laudos/pareceres de profissionais de Saúde para uma suposta inclusão. A adaptação curricular é tabloide porque implica e opera reduções de possibilidades, e inclui alunos atrasados na aprendizagem dos conte- údos formais e aprovados automaticamente em microclasses especiais dentro das classes regulares. É promovida a inclusão individualizada através da formação de zonas de ex- clusão. O problema é que o que se tem chamado de inclusão é uma integração por vias de uma redução, das compressões individualizadas do tempo e do espaço. Medicalização da (in)disciplina e da loucura. O devir Tom Sawyer e o devir- louco de Alice nos conduzem dos diagnósticos ao controle das relações de trabalho e da rebelião dos trabalhadores contra os adoecimentos e sofrimentos nas teias e tramas da fabricação do medo. O medo se configura como o elo que subdivide os atores da escola, produzindo culpabilizações para todos, mas que também nos serve à desindividualiza- ção de questões na escola como a produção da (in)disciplina, cuja demanda escolar con- sistia na sua individualização patologizada no corpo dos alunos. A análise do paradoxo nosográfico de Alice nos conduz às governamentalização do Estado na escola e na cida- de de Antares, às tramas por baixo dos traumas, à politização dos diagnósticos, ou que interesses políticos e a quem eles servem? O soberano é o Jaguadarte, o Leviatã das histórias infantis, e Alice parece ser a única a arranhá-lo, mordê-lo em nós, traduzido em nossas práticas técnicas normalizadoras da escola, que atuamos como herdeiros éti- co-históricos de uma Medicina Legal. Percebe-se o começo, neste trabalho em específico nas escolas de Antares, de uma modulação empresarial-corporativa das relações de trabalho na Educação. Pista 265

que se desdobra nos capítulos dois e três, quando nos falam das microcompetições entre os diversos atores. É preciso passarmos do diagnóstico às questões do trabalho, da saúde do trabalho e de militância revolucionária na Educação! Quando comecei a trabalhar na educação, pensei que construir encontros e deba- tes críticos com os professores seria um desafio, e os indícios foram as demandas inici- ais pré-diagnosticadas e as solicitações de acompanhamento apenas com os alunos e pais. Um precedente para o meu questionamento contundente de um vício no tipo de atendimento a este grupo específico e bem selecionado de clientes na escola-empresa, era a vontade que eu tinha de estar com os professores do magistério, pensar e trabalhar nas questões do trabalho, eu queria estar com eles, como psicólogo e trabalhador da Educação. Vislumbrando esta direção, durante os dois primeiros anos de trabalho, ca- minhei cego e estrangeiro em um território estranho, que considerava muitas vezes ab- surdo. Tateei, durante muito tempo, entre aproximações e distâncias no cotidiano, como em um devir-autístico, tangenciando superfícies sem enxergar barreiras. Falo das bar- reiras hierárquicas entre os psicólogos (técnicos) e os professores do magistério (não- técnicos). E assim, como se produziam as barreiras, os muros, e como fazer para destru- í-las? As práticas sociais na escola, de um lado a medicalização e a judicialização, e de outro, o autoritarismo das equipes dirigentes – “gestoras” – assim como os fantasmas históricos de coronéis e reformatórios bem vivos nas relações, eram as pistas. Destarte, os três capítulos nos descrevem as práticas na educação de medicaliza- ção do fracasso escolar, da (in)disciplina e da loucura como atribuição de causalidade única nos casos individualizados de alunos e suas famílias culpabilizadas. Criminaliza- se a comunidade usuária dos serviços públicos privatizados. O quarto capítulo versa sobre as relações de trabalho e a produção da saúde entre os trabalhadores da educação, sejam especialistas ou não especialistas. Não há como pensar e fazer desmoronar os edifícios e muros da medicalização como controle para todos na educação sem acessarmos a dimensão do trabalho. Por is- so, continuar a trabalhar de modo concentrado em atendimentos psicológicos individua- lizados nas escolas de nível fundamental, só com alunos e pais, seria incorrer em uma prática secular que tem engendrado culpabilizações entre todos: - entre alunos e profes- sores, entre pais e professores, entre psicólogos e professores nos organogramas hierár- quicos. Medicalização das (des)adaptações gerais na escola. Escola-campo-de- readaptação para as doenças do não aprender nas escolas. Medicalização e criminaliza- 266

ção do medo, controle do devir-louco de Alice através dos fluxos das articulações na rede: entre regularidades e especialidades, entre exclusões e inclusões. A criminologia, a judicialização e a medicalização vão se misturando em problemáticas individualizadas nos corpos dos alunos na busca investigativa da solução das questões institucionais da escola. A questão da judicialização na Escola institui-se subjacente às práticas médico- assistenciais, e percorre a todos os analisadores, de Alice, Wendy e Tom, na medida em que suas forças atuam no controle das (des)adaptações gerais nas escolas públicas de Antares. E todos estes alunos são desadaptados, vistos como os anormais da escola, sendo o que os diferencia o seu percurso específico entre as grades, entre os setores de cuidados especialistas dentro e fora da escola. No que comprimem as possibilidades, operam na direção do aplacar dos devires. Esta operação de controle às virtualidades na escola se alicerça na fundação de grades profundas a todos e entre todos, dadas as pro- duções hierárquicas dos binarismos micropolíticos que alcançam a rede de serviços so- ciais e de saúde na cidade. Falo das dicotomias corporativistas da escola-empresa entre especialistas e não-especialistas, entre coordenação e equipe técnica, entre “gestores” (como Iracebeth, a Sr. ª Secretária de Educação e a Subsecretária) e técnicos, entre “ges- tores” e coordenadores de setores em geral que funcionam para entravar as discussões críticas e as lutas coletivas. O tempo constituía uma questão fundamental para pensarmos novos dispositivos de intervenção nas escolas. Os alunos tinham apenas quinze minutos de recreio, de tem- po livre, para lanchar e brincar. Os professores, em cada turno, tinham trinta minutos livres para qualquer conversa. Toda organização estava pautada para o favorecimento e a consolidação de um domínio do trabalho médico-assistencial e individualizado do psicólogo. Assim, seria preciso mover toda a organização hierárquica da escola para conduzir intervenções em grupo, o trabalho institucional. Não bastaria que eu, como psicólogo, simplesmente decidisse fazer um tipo de trabalho institucional; era preciso construir algum tipo de contrato coletivo. Para problematizar a questão da medicalização e acessar as questões do trabalho na escola é preciso romper com as correntes e grades ético-político-históricas que têm segregado especialistas e educadores, psicólogos e professores do magistério. Os analisadores históricos nos internatos-escola, dos manicômios das cercanias da cidade de Antares e da região sul fluminense, ativados ou desativados e a militariza- ção governamentalizada de 1988 à atualidade, são fatores bem particulares que têm a- 267

gravado a disciplinarização e o controle nas escolas. Analiso que as raízes do tipo de soberania vigente em Antares é herança das antigas práticas populistas, que surgiram com o fascismo. Carlos Chagas, político profissional e jornalista e o tipo especial de coronelismo-clientelismo do Chaguismo é um exemplo de poder político populista her- dado dos tempos da ditadura militar-fascista em solo fluminense. Chagas foi fundador do jornal O Dia que na época, sob sua gerência, se caracterizava pela ética populista que clientelizava servidores públicos fluminenses através de páginas que davam visibilidade aos sindicatos apenas para o cativar dos trabalhadores como fiel público consumidor eleitoral. Se na Introdução me refiro ao coronelismo político eleitoral e ao clientelismo empresarial como integrados na mídia jornalística escrita da região sul-fluminense, é porque se constituem como indícios de tais práticas oportunistas não só pertinentes à mass-mediatização política eleitoreira, mas à vida e instituições gerais: escolas, CAPS, CRAS, CREAS, empresas, fábricas metalúrgicas e siderúrgicas, hospitais gerais e psi- quiátricos, APAES, abrigos estatais para crianças e adolescentes, etc, das macro às mi- cropolíticas das cidadelas do sul do estado. As questões do trabalho na escola-empresa, como a precarização dos vínculos trabalhistas, a coexistência de vínculos diferentes entre os trabalhadores, como os coo- perativados, contratados diretamente pelas prefeituras, concursados estatutários e con- tratados verbais, a hierarquização das relações e as competições desenfreadas têm mi- nimizado a união entre os trabalhadores. Toda a tecnoburocracia que vemos existir hegemonicamente, em cidades como Antares, para a vigilância e o controle dos trabalhadores, tem contribuído para a vigên- cia das ordens de medicalização e judicialização nas escolas. Como a regra geral é a otimização dos recursos humanos através das economias do tempo e das transformações nos manuais normativos empresariais, as questões de Saúde do Trabalho não são discu- tidas no próprio ambiente de trabalho. Logo, o resultado tem sido que os professores são, constantemente, encaminhados para triagens fora de escola, onde as questões do trabalho não são, na maioria das vezes, também valorizadas e pensadas nas consultas com o médico do trabalho. Medicalização da não-aprendizagem, da (in)disciplina e da loucura de alunos anormais, e burn-out! Nascem as Sociedades de Tarjas pretas (Black Label Societies) (Sociedade de Controle + medicalização) para os questiona- dores de toda ordem! Passar do diagnóstico às questões de trabalho e saúde coletiva no trabalho é uma chave possível para desmedicalizar a escola. Pensar no trabalho do professor é pensar 268

no trabalho do psicólogo. No trabalho do psicólogo, inspirado em Adriana Marcondes, a construção dos plantões institucionais como grupos de discussão e decisões com os professores e outros profissionais da Educação é uma possibilidade para o trabalho e análise institucional nas escolas públicas. Na educação fundamental, de um modo geral, o desafio é a produção social e coletiva de uma Educação menor, minoritária e revolu- cionária, como propõe Sílvio Gallo. Tal é o caminho para a desinstitucionalização nas escolas. O plantão institucional como tática no trabalho do psicólogo na educação é uma possibilidade para que coletivizemos as ações com os atores da escola, uma pista para a análise institucional de dentro da escola, ou seja, que poderíamos empreender enquanto trabalhadores da própria escola, diferente de uma atuação por encomenda pela escola pública. A coletivização é a plataforma para que os psicólogos possam organizar, em seu trabalho, as aproximações e distâncias possíveis, pois que são inexoráveis os questi- onamentos a todo tipo de demanda na Educação, que nunca são obrigatórias. Precisa- mos fazer isso, - a análise questionadora das demandas iniciais da Educação (dirigidas aos psicólogos em trabalho institucional) -, para que possamos conduzir a análise de nossas próprias implicações ético-histórico-políticas com vistas à construção de proces- sos de desinstitucionalização nas escolas públicas de nível fundamental. Eis um eterno desafio! Além da união urgente entre os trabalhadores de Saúde e Educação pela Saúde pelo Trabalho e pela Militância apagando as fronteiras verticalizantes entre técnicos-e- não-técnicos, doutores-e-não-doutores, coronéis-e-clientes, é imprescindível a passa- gem-salto dos psicólogos-e-professores questionadores amplificando-se em psicólogos- e-professores militantes na Educação. Fundamental é organizar dispositivos criadores como o plantão institucional nas escolas, dispositivos que possam se constituir como plataformas para a construção de campos de (des)adaptações, campos de (des)territorializações da Educação. Desterritorialização-desinvenção dos campos do- minantes de isolamento e de (re)adaptações para a invenção dos campos da solidão pro- dutiva na aliança entre psicólogos e professores do magistério. De doutores, coronéis e clientes, - todos usuários -, para usina coletiva revolucionária na escola! 269

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