Experimentalismo e Indústria fonográfica nos anos 1970: o caso do Som Imaginário Maria Beatriz Cyrino Moreira 1 1- Que som é esse?

O grupo Som Imaginário, surgiu em 1969 a partir de uma ideia do então produtor musical de José Mynssen que consistia na junção de músicos que pudessem traduzir estilisticamente as novas propostas artísticas de Milton. A música do artista se voltava às sonoridades do rock n´roll , porém, não deixava de lado seus traços característicos anteriores, como a música mineira e o jazz. Assim, o Som Imaginário estreou a turnê intitulada Milton Nascimento e Ah... o Som Imaginário! e gravou o LP que marcou a mudança estética do músico, Milton (1970) 2. O grupo, formado por integrantes com diferentes backgrounds musicais (o trio de jazz , Luis Alves e Robertinho Silva e os jovens músicos apaixonados pelo pelo rock Zé Rodrix, Fredera e Tavito) acompanhou diversos outros artistas durante os primeiros anos da década de 1970, como , Odair José, Taiguara e . Com Gal o grupo realizou a turnê intitulada Deixa Sangrar , na qual a cantora, com vocais e atitudes inspiradas em Janis Joplin, demonstrava sintonia com os ideais contraculturais e sonoridades psicodélicas. Além de ter acompanhado diversos artistas, o Som Imaginário gravou três álbuns autorais, intitulados Som Imaginário (1970), Som Imaginário (1971) e Matança do Porco (1973). Atualmente, os canais de informação virtual e a mídia em geral atribuem ao grupo inúmeros papéis e rótulos. Em sua maior parte, consideram o Som Imaginário como um representante do rock progressivo brasileiro ; o apontam como importante precursor da música instrumental brasileira e outros ainda garantem que o Som Imaginário representa um desdobramento direto do tropicalismo e de suas experimentações, assim como outros artistas deste mesmo período. O estudo que dá origem a este artigo, em linhas gerais buscou, através de um estudo musicológico que envolveu a busca de informações sobre o grupo em arquivos e

1 Universidade Estadual de Campinas. FAPESP. 2 Milton Nascimento. LP. Milton Nascimento. Odeon. 1970.

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. 2 uma análise minuciosa da narrativa musical, clarificar a história do grupo e, através dela, compreender mais profundamente um momento histórico brasileiro de muitas implicações na vida cultural e social do país, que é a transição da década de 1960 para os anos de 1970. Neste artigo, à luz do objeto proposto, pretendo discutir três categorias que nos dão margens para elaborar questionamentos e discussões acerca dos conflitos e das ambigüidades reveladas naquele momento histórico específico da MPB, principalmente a indústria fonográfica e o experimentalismo.

1 – Para não viver “fora do ar” – indústria fonográfica no início dos anos 1970

Sabemos que durante os anos 70, concomitantemente ao período em que viveu o “milagre econômico”, o país assistiu ao crescimento da indústria cultural. Este desenvolvimento econômico possibilitou que a classe média, beneficiada pelo sistema de crédito, tivesse acesso a bens de consumo produzidos em larga escala pelo setor empresarial, que recebia um número cada vez maior de investimentos estrangeiros. O setor fonográfico, no período de 1965 a 1972 observou um crescimento de 400% em suas vendas de disco. Com isso, a mentalidade empresarial era desenvolvida e aprimorada (RIDENTI, 2000, p.56) e dentro dos estúdios, diversos profissionais como produtores executivos e diretores artísticos eram responsáveis por etapas na confecção dos álbuns de seu casting . A indústria fonográfica passou a hegemonizar o processo de produção e circulação das canções, à medida que os “segmentos” se hierarquizavam dentro do mercado, ampliando a quantidade de gêneros e consequentemente de grupos distintos de consumidores. Assim, podemos dizer que este período é marcado por uma transição de posturas mercadológicas por parte dos grandes estúdios e das gravadoras, e cada uma delas, apresentava características próprias na hora de supervisionar um artista. O caso do Som Imaginário esclarece esta situação. Em 1969 a Odeon, gravadora responsável por parte dos discos de Milton Nascimento até este ano, foi vendida para uma multinacional, a EMI. Entretanto, diretores como Milton Miranda e Mariozinho

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Rocha, habituados com procedimentos mais artesanais na produção de discos, ainda eram responsáveis por boa parte dos lançamentos. De acordo com Zuza Homem de Mello, Milton Miranda depositava grande confiança na carreira de Milton permitindo que o artista gravasse o que quisesse, quando quisesse. Desta maneira, o autor afirma que o sucesso de vendagens de Milton Nascimento “demorou a acontecer, atingindo números satisfatórios apenas no ano de 1975 com o disco Minas” (MELLO, 2003, p.249). O jornalista Aramis Millarch afirma em artigo de 1974, que Miranda era responsável por produções bem acabadas, álbuns de capa dupla que valorizava o trabalho do produtor, trabalhando tanto na linha comercial como nas produções mais sofisticadas. O grupo Som Imaginário, obteve aval da Odeon para gravar seus LPs autorais, tendo direito a horas a fio de gravação, sem direcionamentos estéticos ou supervisão de qualquer outro profissional que não fosse os próprios músicos. Encontramos evidências destes fatos no Jornal Folha de São Paulo, de 1971: “Odeon vai deixar que Milton Nascimento, o Som Imaginário, Equipe Mercado, A tribo e o Conjunto Módulo 1.000 façam um elepê com plena liberdade. Nada comercial. Cada um vai produzir sua parte”. O ambiente de liberdade propiciado pelo momento de transição da indústria fonográfica, o aquecimento do mercado de discos, a alta das vendas e a segmentação do mercado fomentaram a produção de inúmeros artistas desta época, contrariando as perspectivas negativas que visualizam o pós-68 como um período de “vazio cultural”. VARGAS (2010, p.89), afirma que esta condição da expansão do mercado criou mais visibilidade a um “artista dentro de um espectro de gosto mais específico”, mesmo porque este mesmo mercado estava sempre em busca de novidades. É importante especificar que o campo da música popular brasileira era regido ainda com base em uma orientação ideológica nacional-popular e engajada – e grupos que incluíssem em seus discursos musicais elementos estrangeiros e sonoridades elétricas ligadas ao rock eram quase sempre vistos como objetos puramente comerciais. Desta forma, duas ações entravam em conflito dentro da indústria fonográfica – “resistir” e “cooptar” (NAPOLITANO, 2006, p.127). A primeira, abarcaria os significados postos pelo ideário nacional-popular de protesto, crítica a ditadura e priorização de elementos culturais vindos da “tradição brasileira”. A segunda, estaria ligada à assimilação destas

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. 4 informações musicais estrangeiras e ao mesmo tempo à aceitação das regras comerciais impostas pela racionalização da indústria fonográfica. Os dois primeiros discos, de canções, são bastante influenciados pela música estrangeira. Entretanto, ambos se aproveitam da facilidade e liberdade de criação, itens que, a medida do tempo, contribuíram para diferenciar os “artistas comerciais” de um grupo selecionado de “artistas de prestígio” ligados a sigla MPB. O terceiro disco do grupo, gravado em 1972 após o afastamento de alguns de seus membros, é lançado em um momento de reacomodações dos elementos nacionais e internacionais. Não se comprometendo politicamente através de um dos binômios da canção crítica da década de 60, letra e melodia, consistia em faixas completamente instrumentais. Neste disco, a incorporação de gêneros estrangeiros já era mais aceita por parte de um segmento jovem já consolidado. Retomando alguns elementos considerados “brasileiros”, como o samba, Matança do Porco ganha uma roupagem orquestral, garantindo o “status” mais elevado dentro do campo da MPB. Ao mesmo tempo, o disco sabe aproveitar o formato LP que atingia maior popularização entre os consumidores, permitindo que o produto das gravadoras não fosse simplesmente uma canção de sucesso, mas sim um “trabalho com maior consistência estética e conceitual, aquilo que podemos chamar de “obra autoral”. (VARGAS, 2010, p.92) Assim, Matança do Porco ganhou uma unidade estética bem definida, enfatizadas principalmente pela reutilização dos temas musicais presentes no disco nas chamadas “vinhetas”, fonogramas de curta duração que combinavam a formação do Som Imaginário (piano, baixo, guitarra, bateria) com as formações orquestrais.

3 - Categorias de análise da produção pós-tropicalista – alguns apontamentos

Em seu mais recente artigo sobre experimentação na década de 1970, o historiador Herom Vargas, levanta algumas discussões acerca das categorias de análise da produção pós-tropicalistas. Utilizarei os apontamentos do pesquisador para refletir sobre a produção musical do Som Imaginário e discutir sobre os limites entre estas categorias, que, a grosso modo, na visão do autor, podem muitas vezes estancar as intenções das criações artísticas do pós-70, considerando-as, na maioria das vezes, como respostas a

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. 5 determinadas instâncias, sobretudo às pressões das ações censórias do governo militar, que ao meu ver, ainda dominam boa parte dos discursos sobre a música popular brasileira daquela época. Vargas distingue três visões diferentes, elaboradas por três diferentes pesquisadores que tentaram responder ao conteúdo artístico ambíguo e conflituoso presente neste período. A primeira delas é chamada discurso da “fresta”, desenvolvida por Gilberto Vasconcellos em 1977, que observa um “discurso sem voz, obscuro ou silencioso” nas letras das canções de protesto, onde os compositores indicam suas reivindicações de maneira implícita. A segunda, construída por Britto (2003), associa que as construções poéticas deste período, embora tenham sido influenciadas pelos valores e ideais da contracultura norte-americana, se caracterizam pela oposição de uma “visão hedonista e solar que afirma o aqui e agora” (BRITTO, 2003, p.198) para lhes conferir sentidos mais “noturnos” e “negativos” baseados em temas como solidão, viagem sem volta, separação, loucura e fim do sonho. Por fim, temos o termo “canção de esgar” ou “canção de confronto” descrito por Bozetti (2007) como discursos desconstruídos que procuram se manifestar contra os “padrões culturais, estéticos e políticos estabelecidos” no contexto ditatorial. Os intérpretes, ao invés de focarem apenas na articulação do texto e da melodia, combinam outras atitudes, como gritos e silêncios como um gesto de “incompreensão”, resultando numa canção “sem discurso” ou que “beira o incomunicável”. Vargas questiona todas estas categorias de análise, reconhecendo que, embora sejam importantes pontos de partida, não respondem a toda e qualquer produção musical pós-tropicalista. O pesquisador defende assim uma categoria de “canção experimental”, que pode se pautar numa busca destes compositores pela pura prática da experimentação, “cujos objetivos estavam circunscritos às questões de pesquisa estética” (VARGAS, 2012, p.17). Embora entenda a digressão de Vargas sobre estas categorias estanques e sua preocupação em ampliar os debates sobre a canção experimental, acredito que algumas observações às suas afirmações devem ser feitas antes que se faça surgir outra categoria de análise estanque, que tenha como único argumento de existência uma suposta fixação do artista em explorar sonoridades pouco comuns. Umberto Eco, coloca, que se ação do artista em direção a novas experiências e a novos modos de formar já defina “experimentação”, “toda invenção artística é uma experimentação em todos os tempos e lugares” (ECO, 1986, p. 227). No campo da estética, a avaliação de novos

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. 6 materiais e modos de formar como experimentais podem significar muito, no entanto, não nos responde os significados mais amplos destes documentos inscritos dentro de um determinado contexto histórico, sendo assim, historicamente construídos. Recorrendo novamente a Eco, o aparecimento de uma nova arte esteticamente válida não se deve apenas ao uso de um material novo, embora a matéria seja um estímulo para novos modos de formar (ECO, 1986). Embora os pensamentos desenvolvidos por Eco se refiram a música erudita de vanguarda, podemos repensar algumas de suas afirmações a este contexto. Desta forma, percebemos que, as informações da contracultura, principalmente aquelas ligadas às sonoridades psicodélicas do rock dos anos 60, trouxeram novas “matérias” possíveis de serem utilizadas na criação do músico popular brasileiro. Não quero dizer aqui, que antes dos anos 60, experiências baseadas no rock estrangeiro não tenham ocorrido. Sabemos que houve outras experimentações com o rock e a música popular brasileira desde 1950. No entanto, as experiências com este gênero só se tornaram “experimentais” a partir da ambientação histórica da qual estamos discutindo: a MPB dos anos 1960 e início dos anos 1970, instruída pelos valores do nacional-popular como legitimadores de suas características estritamente nacionais. A incorporação pura e simples destas matérias novas também não responde aos conflitos e as narrativas sugeridas pelos discursos musicais desta época. Assim, uma pesquisa experimental é, nos termos de Eco, uma “dialética formativa – feitas de sugestões do meio e de propostas pessoais e de um contato vivo e dialogante do artista com a matéria – diferente da idéia de intuição-expressão de que fala a estética idealista” (ECO, 1986, p.229) É preciso então entender, que a “canção experimental” da qual estamos falando (situada entre os anos de 1960 e 1970) surge em um contexto específico, onde o debate entre “posição política e ideológica” e “mercado” rearticula e realoca os elementos disponíveis no grande bazar da música popular brasileira. A posição estética do artista entra em conflito com sua posição dentro da indústria cultural e do mercado, resultando em diversos álbuns que poderão, em maior ou menor grau, abalar as estruturas de um discurso que não expressa mais a realidade cultural daquele meio; e ainda - se o artista “continuasse a falar usando os velhos termos produziria um discurso ambíguo e desonesto” (ECO, 1986, p. 231)

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4 – Limites e continuidades das categorias sobre a produção musical do Som Imaginário

O que podemos observar de peculiar no pós-tropicalismo, momento no qual se insere o Som Imaginário, é que estes posições antagônicas (nacional X internacional, engajado X alienado, arte política X arte comercial) e discursos ambíguos irão ditar boa parte da produção da música popular brasileira pós-tropicalista. O Som Imaginário, por exemplo, obteve total liberdade em estúdio para gravar seu primeiro álbum e eram considerados artistas pertencentes à linha de “prestígio” da Odeon, entretanto, as narrativas musicais deste disco estavam quase que totalmente permeadas por elementos da música estrangeira, desde sua instrumentação, suas progressões harmônicas e suas letras 3, elementos esses associados à linha comercial da gravadora, aos artistas mais “comerciais”. As definições e tentativas de “encaixar” os objetos em categorias estanques ficam mais difíceis quando analisamos a canção “Gogó (um alívio rococó)”, pertencente ao segundo álbum do grupo. Em função da ampla liberdade que tinham nos estúdios da Odeon, esta canção se inicia com um processo que podemos chamar de “experimental”; uma Introdução longa (1 minuto e 22 segundos) onde podemos ouvir, vozes, instrumentos elétricos, percussões num conjunto confuso e talvez “incomunicável”, para usar um termo de Bozetti. A harmonia sugerida, embora não aconteça de forma ritmicamente dividida, aos moldes da harmonia tradicional (certos acordes durando tantos tempos em cada compasso) recai sobre uma improvisação em modo frígio, seguido de uma cadência dominante-tônica bastante comum. Na forma da canção, podemos observar seções bastante heterogêneas tanto no que se refere a linguagens harmônicas quanto ao ritmo. 4 Embora até agora a canção tenha nos soado como uma experiência experimental, tendendo para o “incomunicável” (“canção de esgar”) quando se inicia os versos, veremos um discurso essencialmente de “fresta”, através das figuras de linguagem

3 Instrumentação: exploração dos efeitos da sonoridade da guitarra em detrimento de sua função ritmo- harmonica acompanhadora, progressões harmônicas que remetem aos Beatles (principalmente nas canções “Nepal” e “Make Believe Waltz” do primeiro álbum) e letras em inglês e que tratam de temas associados a contracultura, como as drogas e a liberdade de expressão em “Poison” e “Sábado”, por exemplo, também do primeiro álbum. 4 “Gogó”, de acordo com a pesquisa da qual se desdobra este artigo, é um dos exemplos que mais ousou na forma da canção.

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. 8 utilizadas e os sentidos que procuram escamotear. A palavra “gogó” significa a parte do pescoço no homem onde fica localizado o pomo de adão e de acordo com o Dicionário Banto, a palavra tem origem nas línguas africanas bantas (do sul da África) principalmente o quicongo e o ioruba vindos de países como Angola, Congo e Nigéria. (LOPES, 2003:110) Gogó se utiliza então, de outros signos verbais para se referir ao procedimento adotado pela tortura ditatorial, a asfixia através de estrangulamento. A letra diz: “Trago em meu gogó, todo o nosso amor, cure o meu dodói, por favor. Sinto em meu gogó, tanta contração, não agüento mais, tanta dor”. Em relação a sonoridade desta seção, também temos algumas surpresas: não se trata te um encadeamento tonal, mas sim de sonoridades modais sobre um baixo pedal, através da exploração dos modos de mixolídio e mixolídio #4. Discurso poético e musical caminham juntos na construção da canção - a cadência formada pelos acordes bVII- I7M (demonstrada na dissertação como de uso recorrente da prática harmônica da Bossa Nova) caminha junto a tentativa de “encobrir” o significado real do discurso poético, através do tema “amor e dor”. Chama-nos atenção em seguida, a última seção da canção, onde é revelada uma verdadeira ambigüidade de discursos: O ritmo de uma marchinha de carnaval é escolhido para acompanhar as vozes dos músicos, que brincam com as rimas da palavra gogó. O padrão básico de tônica dominante característico das marchinhas de carnaval é substituído pelo padrão tônica e tônica em sua forma diminuta, destacando o trítono deste acorde como uma alusão a sonoridade “rebelde” do rock. Entretanto, para arrematar a mistura de estilos, Wagner Tiso utiliza a escala alterada (super-lócria) para improvisar sobre esta seção. Desta forma, se considerarmos os aspectos estético-musicais, observaremos que boa parte dos elementos não são necessariamente “novos” ou “experimentais”. Todos estes elementos podem nos revelar alguns significados importantes, porém sua amplitude certamente se estancará se retirados do contexto em que estão inseridos.

A liberdade em que foram criados e gravados os dois primeiros álbuns do Som Imaginário não corresponde em parte, ao mesmo processo que gerou o terceiro disco instrumental do grupo Matança do Porco . Embora Wagner Tiso usufruísse ainda da liberdade garantida pela Odeon, a construção da narrativa musical do álbum apresenta

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. 9 elementos mais formais, arranjos pré-concebidos e pensamentos harmônicos ligados ao código tradicional da harmonia tonal. Não quero aqui estabelecer hierarquias entre álbuns “mais” ou “menos experimentais”, apenas demonstrar que, aqueles elementos considerados como “alienantes” e “estranhos” à dicção “aceitável” do código de conduta Mpbista dos anos 60, quando presentes em composições já lhe garantiam o rótulo de “experimentais”. Estes elementos foram cada vez mais absorvidos pela indústria fonográfica e pelo mercado. É possível recorrer novamente a Eco, quando este se refere a apropriação da arte de vanguarda pelas instâncias midiatizadas. Para o autor, no momento em que a arte se apresenta como ruptura no interior de uma sociedade, esta, tenta iludir a denúncia de uma crise, chamando esta arte de “experimental” – neutralizando sua ação rompedora (ECO, 1986, p. 233). Reconheço que muitos artistas no final dos anos 70, que não tinham mais espaço dentro das gravadoras por trabalharem com procedimentos experimentais, optaram por uma produção a margem da indústria fonográfica, entretanto, estes novos artistas não tinham também um acúmulo de capital cultural como o de Wagner Tiso, por exemplo, que havia arranjado, composto e tocado com diversos artistas da MPB na década de 60. Mas este seria um assunto para próximas discussões.

Conclusão

Este artigo, sendo um recorte de uma pesquisa musicológica mais ampla, procura reavaliar a produção do Som Imaginário a partir das condições históricas que circundavam as produções da música popular brasileira na transição dos anos 1960 para 1970. Para isso, tentou demonstrar que um dos fatores fundamentais que possibilitou um tipo de produção musical com características experimentais está profundamente conectado com uma fase de transição da indústria fonográfica em direção a maior racionalização de seus processos interiores. Em segundo lugar, procurei discutir um pouco da categoria proposta por Vargas de “canção experimental”, tentando demonstrar que para garantirmos sua aplicação mais efetiva é necessário observamos a fundo o entorno histórico do objeto, e não o aplicarmos somente ao nível estético da canção. No caso da transição dos anos 1960 para 1970,

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. 10 algumas características foram eligidas como parte de um discurso “experimental”, como por exemplo, o uso de elementos considerados “estrangeiros” e “estranhos” à cultura brasileira. A produção musical do Som Imaginário demonstra que era possível ser em parte “experimental” e ao mesmo tempo estar integrado ao segmento de “prestígio” dentro campo da música popular brasileiro que, via de regra, priorizava as obras musicais que estivessem conectadas com o ideal nacional-popular. Por fim, concordo com Vargas quando este diz que é muito difícil explicar todas as manifestações “experimentais” deste período como apenas uma insatisfação com a censura e a repressão (VARGAS, 2012, p.21), reduzindo um debate complexo, cheio de contradições e ambigüidades à meras experiências ideológicas políticas, ignorando toda a capacidade da arte de modificar, renovar, criticar e reverter os processos, mesmo que inserida nas instâncias midiáticas.

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