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INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA

DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

A CIBERCULTURA E O CINEMA DE :

UM ESTUDO A PARTIR DO DÍPTICO TETSUO

Marta Sofia da Luz Marcos Pinho Alves

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação

Orientador:

Prof. Doutor José Luís Garcia

Junho, 2007

À memória dos meus avós, Constança Carmelita Luz e João da Graça Marcos

2 RESUMO

Esta dissertação centra a sua análise na relação entre a cibercultura, a figura do cineasta Shinya Tsukamoto no contexto do cinema nipónico e o díptico da sua autoria constituído pelos filmes homónimos, Tetsuo (Tetsuo: O Homem de Aço, 1989) e Tetsuo II: Body Hammer (Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992). Numa primeira etapa, elaboramos uma proposta de compreensão do conceito de cibercultura, noção recente e ainda pouco estabilizada, tentando esboçar aqueles que se nos afiguram como os seus elementos mais relevantes. Esta contribuição é realizada através do cruzamento do pensamento de diversos teóricos e de algumas das principais aproximações conceptuais delineadas em torno daquela categoria. Na sequência desta sistematização, procedemos a uma análise detalhada do imaginário conceptual e artístico de Tsukamoto, inserindo-o no contexto da cinematografia do seu país de origem e das relações que esta tem mantido desde a sua génese com o Ocidente. O propósito desta parte da pesquisa é estabelecer pontos de relacionamento entre o cinema de Tsukamoto e o âmbito cibercultural contemporâneo. De forma a aprofundar esta reflexão, na derradeira parte da investigação efectuamos uma análise ao díptico Tetsuo com o objectivo de aceder à forma como se expressa aquele imaginário quer do ponto de vista do conteúdo, quer ainda dos pontos de vista narrativo, expressivo e técnico.

Palavras-chave: Cibercultura, Cinema, Shinya Tsukamoto, Tecnociência

3 ABSTRACT

This study analyses the relation between cyberculture, the filmmaker Shinya Tsukamoto, in the broad context of Japanese cinema and his two homonym , Tetsuo ( Tetsuo: Iron Man, 1989) and Tetsuo II: Body Hammer (Tetsuo II: The Body Hammer, 1992). First we try to understand the recent and not yet stabilized notion of cyberculture, determining its most relevant aspects. This contribution is done by analyzing the thought of different thinkers and some of their main ideas in that field of discussion. After that, we present a detailed analyse of Shinya Tsukamoto’s conceptual and artistic imaginary, in the context of the cinematography of Japan unveiling its relations with Occidental cinema from its beginning. We try to establish some relation points between the cinema of Tsukamoto and the field of cyberculture. In the last part of our investigation we analyse the diptych Tetsuo in order to understand how that imaginary is expressed in terms of it’s themes and narrative, expressive and technical elements.

Key words: Cyberculture, Cinema, Shinya Tsukamoto, Technoscience

4 AGRADECIMENTOS

A todos os que contribuíram para este trabalho:

Ao Prof. Doutor José Luís Garcia, orientador desta dissertação, pelas iluminadas lições que me proporcionou em cada uma das nossas muitas reuniões e conversas, pelas pertinentes e sensatas opiniões, propostas, conselhos e correcções, pela constante disponibilidade e interesse pelo progresso do trabalho e, especialmente, pelo permanente incentivo e amizade que me dedicou.

Às minhas colegas e amigas Ana Maria Pessoa e Margarida Graça que, desde o primeiro dia, me integraram na sua equipa de trabalho de tantos anos e com quem tenho podido aprender tanto a nível pessoal e profissional.

Aos meus pais, Atílio e Dália Alves, por todo o apoio e estímulo manifestado ao longo deste trabalho. E pela viagem a Londres.

Ao Pedro, por ter partilhado comigo este percurso, por ter visto comigo todos os filmes, por ter ouvido e comentado entusiasticamente o meu relato das leituras, por ter acreditado sempre que iríamos chegar ao fim.

A Wim Wenders que me ajudou a superar muitas das minhas angústias em relação ao processo de escrita, ao ter revelado: (…) Como de cada vez que tenho de escrever alguma coisa, chegarei muito tarde, depois do deadline. Nunca a escrita me saiu de outro modo. A escrita é o medo: um argumento, uma carta, é sempre o mesmo, as frases chegam inevitavelmente tarde demais, esta parece ser a sua essência. (editorial para o caderno n.º 400 de Cahiers do Cinéma em A Lógica das Imagens, 1990)

A todos os autores que me enriqueceram intelectualmente com as suas ideias, a sua escrita e as suas imagens.

5 ÍNDICE

Notas Prévias 8

1. INTRODUÇÃO 10 1.1. Apresentação do estudo 10 1.2. Motivação e pertinência 13 1.3. Objectivos e questões de investigação 15 1.4. Metodologia 18 1.5. Estrutura 21

2. CIBERCULTURA: UMA PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO 22 2.1. Aproximações ao conceito 23 2.2. Conclusão 42

3. SHINYA TSUKAMOTO: CONTEXTO E TEMÁTICAS DA SUA FILMOGRAFIA 44 3.1. O contexto do imaginário 46 3.2. Génese dos filmes: origens temáticas e expressivas 54 3.3. O trabalho do realizador no contexto do cinema japonês 60 3.4. Temáticas recorrentes na obra de Shinya Tsukamoto 74 3.5. Conclusão 77

4. CIBERCULTURA NO CINEMA DE SHINYA TSUKAMOTO: O DÍPTICO TETSUO 79 4.1. Os filmes 80 4.1.1. Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço ) 80 4.1.2. Tetsuo II: Body Hammer ( Tetsuo II: O Ciberpunk ) 84

4.2. Monstros de Tamanho Normal – O corpo como lugar de intervenção 90 4.3. O Grande Mundo Analógico – Regresso ao território 99 4.4. Game Over – Visões do fim e do recomeço 103

6 4.5. Conclusão 115

5. EPÍLOGO 118

BIBLIOGRAFIA 122 Bibliografia citada 122 Bibliografia consultada 129

FILMOGRAFIA 133 Filmes analisados 133 Filmes consultados 133

ANEXO Filmografia de Shinya Tsukamoto como cineasta 137

7 Notas prévias:

Ao longo do texto principal desta dissertação os filmes mencionados serão sempre referidos pelo seu título original, sendo o título português (à excepção dos casos em que este não exista) e o ano de produção indicados entre parênteses. No caso dos filmes japoneses, será indicado o seu título original adaptado ao alfabeto latino e, à semelhança dos restantes, será indicado o título português e o ano de produção. No entanto, sempre que estes não possuam um título em português, indicaremos entre parênteses o título em inglês para uma melhor compreensão do significado, embora por vezes este possa não ser literal. No caso de existir necessidade de esclarecimentos adicionais estes serão acrescentados em nota de rodapé.

Como se explicitará na introdução desta dissertação, o objecto de estudo toma como base a figura do cineasta Shinya Tsukamoto e o díptico constituído pelos seus filmes homónimos Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989) e Tetsuo II : Body Hammer (Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992). Assim, de modo a tornar clara a exposição das ideias apresentadas salientamos que quando pretendermos aludir a cada um dos filmes em particular indicaremos o seu título completo, com a indicação entre parênteses do título português e ano de produção e quando pretendermos fazer referência ao díptico utilizaremos apenas a designação Tetsuo . A não utilização do itálico na grafia do nome Tetsuo indica que nos estamos a referir à personagem presente em ambos os filmes.

No Japão o nome de família antecede o nome próprio: por exemplo, Tsukamoto (nome de família), Shinya (nome próprio). Contudo, neste trabalho, para não suscitar dúvidas quanto à identidade dos autores a que pretendemos aludir, optámos pela convenção ocidental já que foi de acordo com esta formulação que os seus nomes se tornaram conhecidos no Ocidente.

8

Buy it, use it, break it, fix it, Crash it, change it, mail it - upgrade it, Charge it, point it, zoom it, press it, Snap it, work it, quick - erase it, Write it, cut it, paste it, save it, Load it, check it, quick - rewrite it, Plug it, play it, burn it, rip it, Drag and drop it, zip - unzip it, Lock it, fill it, call it, find it, View it, code it, jam - unlock it, Surf it, scroll it, pause it, click it, Cross it, crack it, twitch - update it, Name it, read it, tune it, print it, Scan it, send it, fax - rename it Touch it, bring it, pay it, watch it, Turn it, leave it, stop - format it . (…)

Daft Punk, Technologic

9 1. INTRODUÇÃO

1.1. Apresentação do estudo

No subsolo de Metropólis, uma miríade de trabalhadores indiferenciados emula comportamentos maquínicos operando, ininterrupta e sincopadamente, dispositivos mecânicos. Tal como em Powerhouse Mechanic de Lewis Hine, a performatividade do corpo funde-se com a engrenagem técnica. À superfície, o cientista obcecado com o contínuo incremento da eficácia produtiva anuncia a criação do robô humanóide capaz de superar a falibilidade orgânica.

HAL insurge-se contra a vontade humana e comanda, com o seu cérebro de silício, a aniquilação da tripulação da nave espacial Discovery. O computador despreza, contudo, a imprevisibilidade do comportamento do seu oponente, factor que redunda na sua derrota. Assistimos ao desmantelamento da máquina e ao ressurgimento do humano.

Perante o olhar omnipresente dos ecrãs publicitários que povoam um cenário eternamente nocturno, culmina o confronto entre o Homem e o seu duplo artificial, modelado à sua imagem e semelhança. O andróide, que ousa questionar o criador sobre a finitude do seu tempo vital, reconhece na morte a diluição da memória, artifício fundador da subjectividade que o equivale ao humano.

As máquinas de inteligência artificial venceram a batalha contra a Humanidade. Os humanos foram tornados escravos e a realidade redefinida em função dos interesses do opressor. Um grupo de resistentes realistas, oriundos das profundezas telúricas, prega pelo Messias que conseguirá desactivar o computador central e restituir a liberdade à raça humana.

A evocação dos filmes Metropolis (Metrópolis , 1927) de Fritz Lang, 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço , 1968) de Stanley Kubrick, Blade Runner (Blade Runner – Perigo Iminente, 1982) de Ridley Scott e The Matrix (Matrix , 1999) de Andy e Larry Wachowski com que iniciamos esta dissertação pretende aludir ao modo como

10 as figurações fílmicas da ciência e da tecnologia têm vindo a penetrar no imaginário ocidental contemporâneo actuando, mediante as suas estratégias de simbolização específicas, linguagem própria e vasto repertório imagético, como um esquema matricial de compreensão e familiarização com o novo ambiente tecnológico e contribuindo para a modelação das suas estruturas de configuração imagística no que concerne ao momento presente e ao futuro. É nossa intuição que estas narrativas contribuem, em certa medida, para uma habituação ao futuro que não se afigura assim como irrompendo de modo abrupto na familiaridade do nosso quotidiano. Scott Bukatman afirma, nesta esteira de pensamento, que as mesmas permitem a edificação do que designa como “a space of accommodation to an intensely technological existence. Through language, iconography and narration, the schock of the new is aestheticized and examined”. (2002 [1993], p.10). Deste modo, podemos considerar que o cinema se afigura como um sistema de produção de sentido demiurgo mas, simultaneamente, depositário de referências e de quadros interpretativos da realidade. N. Katherine Hayles, na sua reflexão sobre ciência e literatura afirma resistir à ideia da existência de um fluxo unidireccional na relação entre a arte e representado privilegiador do segundo elemento. Nas palavras da autora, “the cross-currents are considerably more complex than a one way model of influence will allow”. (1999, p. 21). É um facto, como expressa a autora, que vários conceitos provenientes do campo ficcional ficaram plasmados ao domínio da realidade. Mas como teremos de admitir, o cinema, como qualquer produto artístico, é sem dúvida um manifesto das várias épocas em que foi sendo produzido. Michel Maffesoli, sociólogo e estudioso do conceito de imaginário considera mesmo que “[n]ão é a imagem que produz o imaginário, mas o contrário. A existência de um imaginário determina a existência de conjuntos de imagens. A imagem não é o suporte mas o resultado. (…) O imaginário é alimentado por tecnologias. A técnica é um factor de estimulação imaginal. Não é por acaso que o termo imaginário encontra tanta repercussão neste momento histórico de intenso desenvolvimento tecnológico (…).” Para além disso, refere ainda o autor, “[a] publicidade e o cinema lidam com arquétipos. Isto significa que o criador deve estar em sintonia com o vivido. O arquétipo só existe porque se enraíza na existência social. (2001, p.76) Da mesma opinião partilham os autores de Esthétique du afirmando que “(…) incluso antes de su reproducción, todo objeto transmite a la

11 sociedad en la que se hace reconocible, una cantidad de valores que él representa y «cuenta»: todo objeto es en el mismo un discurso. Es una muestra social que, por su posición, se convierte en un eje del discurso de ficción, puesto que tiende a recrear a su alrededor (mejor dicho, quien lo mira tiende a recrearlo) el universo social al que pertenece. Toda figuración, toda representación conduce a la narración, aunque sea embrionaria, por el peso del sistema social al que pertenece lo representado, y por su ostentación. (Aumont [et al.], 1989 [1983], p. 90). Assim, estas representações são invariavelmente a expressão das preocupações ou anseios da época em que são concebidas. Ignacio Ramonet assinala a este respeito a inevitabilidade de assumirmos o cinema como um “ indicador sociológico ”. De acordo com o autor “a análise do filme e dos seus signos (na estrutura, na narrativa, na forma ou na economia) permite-nos descobrir com bastante precisão as tendências implícitas da sociedade que o produz. Sociedade de que ele constitui, enquanto produto cultural, um dos sintomas ou reveladores sociais privilegiados.” (2001 [2000], p. 86). Neste âmbito, o cinema tem proposto leituras múltiplas das diversas épocas assinalando posturas de esperança ou desalento. Se a distopia parece por vezes prevalecer, isso prende-se necessariamente com a necessidade de através deste mecanismo simbólico serem expressas as inquietações do homem em relação ao que o futuro parece destinar- lhe em função do momento presente. É também esta a intuição de Bukatman quando assinala: “[t]echnological spaces and objects prevail in the public imagination and serve as loci for the anxieties that arise in response to rapid change: diabolical factories and locomotives are superseded by melt-downable reactors; such machineries of destruction as thunderous tanks and machine guns are nothing against the power of a neutron bomb; the Little Tramp among the grinding gears of Chaplin’s Modern Times (1936) is replaced by the mushroom cloud montage of Kubrick’s Dr. StrangeLove (1963). Technology, after all, always creates a crisis for culture, and the technologies of the twentieth century have been at once the most liberating and the most repressive, evoking sublime terror and sublime euphoria in equal measures.” (2002 [1993], p. 4). Nesta linha de pensamento, é relevante ter em conta que nas últimas décadas são profusos os exemplos de personagens originadas na fusão entre o humano e a tecnociência, como robôs, ciborgues, andróides, clones e hologramas, o que pode ser observado como um reflexo incontroverso da intromissão dos produtos da técnica e da

12 ciência nos vários domínios da vida social. A sua presença é agora mais aterradora ou aliciante, dependo destas serem colocadas ao serviço da Humanidade ou em sua oposição, já que a tecnociência as contempla, a curto prazo, como criaturas possíveis e não como meros produtos ficcionais. É certo que estas efabulações não encontraram no cinema a sua única expressão ou sequer a sua génese. Antes do cinema já a literatura e as artes visuais eram lugares privilegiados de simbolização de expectativas e ansiedades associadas a uma nova era tecnológica de matriz científica. Mas este medium , arquitecto de mundos fantásticos e de cenários de transformação, portador de enorme verosimilhança pela intervenção do movimento, foi, sem dúvida, e é ainda hoje (apesar de tantas vezes vaticinada a sua morte), capaz de mobilizar enorme poder de atracção. Podemos ainda considerar que mesmo as visões mais pessimistas acerca da tecnologia não deixam de a celebrar. Os aparatos técnicos sofisticados, os gadgets tecnológicos reluzentes, os cenários urbanos futuristas, os entes robóticos ou virtuais, a exploração de lugares extra-terrestres ou extra-territoriais nunca deixaram de fascinar os espectadores esperançosos na construção de um mundo futuro capaz de comportar esses artifícios extirpados do seu anunciado aspecto nefasto. Na sequência do que afirmámos, o objectivo do nosso estudo consiste em identificar e caracterizar, na actual produção cinematográfica, certos aspectos relevantes relacionados com o cenário tecnocientífico contemporâneo, que designamos por cibercultura. Isto é, tentaremos compreender de que modo a cibercultura transporta os seus inputs para as temáticas e as histórias do cinema e como essa influência se expressa no imaginário e galeria imagética dos produtos cinematográficos. Com este intuito, reflectiremos primordialmente acerca do que poderá ser entendido por cibercultura, tentando traçar um esboço das principais noções associadas a este conceito para depois nos determos num trabalho de análise fílmica.

1.2 Motivação e Pertinência

Ao procurarmos pensar acerca das razões que nos conduziram à selecção do tema do nosso estudo constatámos que o sentido das nossas preocupações reflexivas se dirigiu, em primeira instância, para uma tentativa de compreensão do termo cibercultura. Recorrentemente utilizado em múltiplos contextos discursivos o termo confunde-se com

13 a sua formulação plural, ciberculturas (David Bell , 2001), ou com outros termos como tecnocultura (Constance Penley e Andrew Ross, 1991), cultura pós-moderna (Mark Poster, 2000 [1995]), cultura contemporânea (Bragança de Miranda e Eduardo Prado Coelho, 2000), ou cultura digital (Charlie Gere, 2002) para além de apresentar enorme complexidade em virtude da carência de estabilização num significado concreto e unívoco, apesar dos já bastante vastos contributos para a clarificação teórica dos seus pressupostos e elementos fundamentais. Deste modo, optámos por tentar encetar uma problematização do conceito conducente não a uma tentativa de produzir resultados categóricos, já que a sua actualidade e constante reconfiguração nos negam essa possibilidade, mas antes no sentido de intentar a sua problematização. Para o efeito, foi nosso objectivo identificar o pensamento principal que se tem delineado em torno do conceito, tentando determinar quais as principais linhas de pensamento teórico assim com as suas aproximações e dissemelhanças. Neste percurso pudemos verificar que para a generalidade dos pensadores, ainda que com matrizes de pensamento muito diferenciadas, por vezes claramente antagónicas, estavam presentes no conceito de cibercultura alguns elementos comuns, que embora entendidos de diferentes formas, permitiam traçar algumas especificidades. O nosso propósito foi tentar a identificação e clarificação desses elementos. Sendo a noção de cibercultura frequentemente utilizada para aludir à situação cultural do Ocidente nos nossos dias, em particular, na sua profunda permeabilização do tecido social pela tecnociência, julgámos pertinente tentar compreender de que forma este afecta o campo artístico, em particular o cinema, área de investigação privilegiada na nossa actividade docente. A interpretação e análise destas questões encontra-se no cruzamento de áreas tão diversas embora complementares como a sociologia e as ciências da comunicação, a filosofia e as teorias do cinema. Na abordagem destas temáticas, certos documentos cinematográficos, como aqueles a que já aludimos, mas ainda outros como Clockwork Orange ( Laranja Mecânica ), as séries Terminator e Robocop , Videodrome ou Crash , aparecem hoje como relevantes pela forma inusitada ou hiperbólica como as abordaram ou ainda pelo modo como ficaram plasmados no imaginário ocidental contemporâneo, tornando-se ícones dos assuntos tratados. Mas por esta mesma razão, por terem definido as características

14 fundamentais do cinema sobre a tecnologia, por se terem tornado fontes imagéticas e ideológicas onde muitos outros produtos visuais foram beber, foram abundantemente discutidos, trabalhados. Foi assim nossa pretensão resgatar outro cinema que, optando por estas temáticas como tema central não tivesse ainda sido tão vastamente analisado. Assim sendo, recuperámos dois filmes que nos parecem convocar alguma originalidade por terem sido realizados num contexto de total independência da Indústria Cinematográfica, por assumirem um carácter marcadamente artesanal nos seus recursos técnicos e expressivos e pelo acentuado experimentalismo que manifestam na sua construção narrativa e temática, filmes estes que tivemos oportunidade de ver cerca de dez anos antes do início da realização desta dissertação no FantasPorto , Festival Internacional de Cinema do Porto, e que foram na altura desencadeadores de elevado interesse e entusiasmo pelo carácter vanguardista que nos pareciam apresentar. O facto de serem duas obras muito pouco debatidos no circuito mainstream e de não ser conhecido qualquer estudo sistemático acerca dos mesmos ou da obra do seu autor no caso português, conduziu-nos a fazer uma aproximação ao seu trabalho no sentido de compreender a origem das temáticas e do imaginário aí presente.

1.3. Objectivos e questões de investigação

Esta dissertação centra a sua análise na relação entre a cibercultura, a figura do cineasta Shinya Tsukamoto no contexto do cinema nipónico e os filmes homónimos da sua autoria, Tetsuo (Tetsuo: O Homem de Aço, 1989) e Tetsuo II: Body Hammer (Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992 1). Estes filmes elegem uma premissa comum que se estabelece como fio condutor de ambos: a paulatina transmutação de um homem no seu derivado maquínico. Tetsuo 2 representa um homem vulgar, em ambos os casos um trabalhador

1 O complemento de título de Tetsuo II é Body Hammer no original nipónico. A tradução literal seria Corpo Martelo mas distribuidora portuguesa FantasPorto optou pelo complemento de título O Ciberpunk , recorrendo à associação estabelecida pelo público e pela crítica entre a temática do primeiro filme e a ideologia do movimento cyberpunk . 2 Tetsuo é um nome próprio masculino bastante vulgar no Japão e a nossa pesquisa não nos conduziu a outra interpretação inequívoca para a evocação deste termo. No primeiro filme da série em nenhum momento há qualquer menção ao nome do protagonista. O autor poderá ter optado por este nome para tornar clara a alusão ao homem comum, mais concretamente, como veremos, ao trabalhador assalariado japonês, não sendo relevante determinar se esse é efectivamente o nome da personagem principal. No segundo filme, a personagem central é nomeada no decorrer da acção pelo nome Tomoô Taniguchi (um nome aliás semelhante ao do que desempenha o papel do homem convertido em máquina, Tomoworo Taguchi). Supomos que apesar desta referência, a manutenção do título do filme se deve à

15 assalariado, que, após um momento de grande tensão emocional, vê emergir do seu corpo elementos protésicos, metálicos, que substituem progressivamente a sua matéria orgânica até à sua completa transmutação num monstro mecânico. Após denunciação do enorme sofrimento provocado pela mutação, que num primeiro momento é incapaz de controlar, e diagnosticada a irreversibilidade do processo, assiste-se ao apaziguamento do herói que abandona uma atitude de incredulidade e questionamento para se converter à sua nova condição. Algo diferenciados em termos narrativos e expressivos, os dois filmes são considerados por nós como um díptico ou duas variações para uma mesma temática. Significa o que afirmámos que na nossa perspectiva Tetsuo II: Body Hammer (Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992) é mais do que uma sequela do primeiro filme, na medida em que não propõe a continuidade narrativa de uma história já anteriormente relatada mas antes reelabora a sua premissa, aprofundando ou reformulando elementos que aparecem na primeira reflexão de modo esquemático. Não obstante, em Tetsuo (Tetsuo: O Homem de Aço , 1989), ser já possível detectar algumas preocupações temáticas em relação aos efeitos da urbanidade e da tecnologia sobre o homem comum, estas surgem ainda de modo superficial ou meramente indiciário, subentendendo a génese de algumas ideias ainda não suficientemente consolidadas. Neste primeiro filme, aquela que virá a ser a preocupação dominante do realizador ao longo do seu trabalho posterior, encontra-se ainda camuflada por preocupações que, embora reflictam já a noção de uma plena imbricação do indivíduo com a tecnologia, radicam numa obsessão com os medos, as angústias e os desejos associados à sexualidade, onde predomina uma visão do individual sobre o colectivo. Poder-se-á considerar que o segundo filme marginaliza as questões que assumem predominância no primeiro, para recuperar alguns fios temáticos já antes tecidos.

coerência temática que estabelece com o anterior e, como dissemos, devido ao facto do nome Tetsuo assumir aqui um carácter simbólico. De notar que uma das personagens centrais do filme Akira , anime de 1988 realizado por Katsuhiro Ôtomo com base na manga homónima do mesmo autor, que é igualmente alvo de mutações extraordinárias e detentor de capacidades telecinéticas chama-se também Tetsuo. Shinya Tsukamoto afirma não ter sido influenciado por essa personagem para criar Tetsuo “It’s an interesting coincidence that Akira and Tetsuo were made around de same time” (…) The manga Akira existed prior to that, of course. There is a character called Tetsuo in Akira , but in the manga he didn’t transform so much as in the film. I wasn’t influeneced by the manga when I made Tetsuo , but is really striking that two films that talk about such familiar things were made at the same time.” (Mes, 2005, p.60)

16 É em virtude desta complementaridade, desta unidade temática e expressiva, que consideramos pertinente estudá-los conjuntamente. A opção pela análise de apenas um destes filmes iria obliterar muitos dos aspectos que queremos enfatizar e que se impõem precisamente pela sua recorrência ou reformulação. Assim, no capítulo dedicado à análise dos filmes, optaremos inicialmente por uma breve exposição da história de cada um ressaltando a sua dimensão narrativa e expressiva para em seguida os analisarmos como um conjunto, tendo em conta três núcleos temáticos. Esta análise contempla as principais temáticas de Shinya Tsukamoto associadas à noção de cibercultura. As categorias foram escolhidas com o intuito de articular relações entre estas três temáticas intrínsecas ao pensamento cibercultural e o díptico Tetsuo . Com este estudo pretendemos contribuir para a reflexão sobre as características do imaginário associado à cibercultura e a forma como este se manifesta no cinema, em particular na obra do realizador Shinya Tsukamoto, observada no quadro da cinematografia nipónica. Para além disso, procuramos compreender, mediante a análise temática de dois filmes da autoria desse cineasta, de que forma o imaginário da cibercultura se encontra enraizado nas temáticas aí expressas, assim como na sua mobilização de recursos narrativos, expressivos e técnicos. Partindo dos tópicos antes delineados, apresentamos, em seguida, algumas questões susceptíveis de reflexão: Que entendimentos são possíveis ter do conceito de cibercultura? O que pode ser entendido pelo conceito de cibercultura? Quais os elementos caracterizadores desse conceito cibercultura? De que modo se enraíza este conceito no quadro do impulso tecnocientífico contemporâneo? Quais as dimensões da vida social em que a cibercultura de manifesta prioritariamente? Quais as grandes transformações da vida social decorrentes da cibercultura? Como é que essas transformações são manifestadas no campo artístico e, em particular, no cinema? Naturalmente, a resposta a estas questões não poderá consistir num exame aprofundado já que estão balizadas pela análise de apenas dois trabalhos fílmicos traduzindo-se antes num contributo para a investigação. Outra questão que seria pertinente, mas que as características e extensão do nosso trabalho não permite considerar, seria determinar de que modo estas propostas de leitura

17 da realidade configuradas pelo cinema, condicionam a nossa percepção da tecnociência e ajudam a definir os seus padrões e representações figurativas.

1.4. Metodologia

Uma obra de arte, ou no contexto mais restrito que nos ocupa neste trabalho, um objecto fílmico pode ser apropriado de diferentes formas: contribuindo para uma reflexão aprofundada acerca do contexto em que foi construído (político, ideológico, social, cultural, histórico) ou permitindo um pensamento estruturado pelas marcas deixadas de modo indelével pelo seu autor. O significado da obra encontra-se primordialmente na mobilização de códigos específicos, na selecção temática, nos modos de representação formais e de conteúdo que lhe são próprios. É esse modo específico que convoca a sua descodificação. Mas isso não significa que obra fique agrilhoada à intencionalidade do seu autor. Na perenidade da obra fílmica, característica que pode ser atribuída com mais propriedade a alguns dos objectos cinematográficos mais do que a outros, é possível elaborar novas apropriações do seu significado que revelam mundividências, interpretações que são já o resultado do olhar que sobre elas se deposita enquadrado por novas perspectivas. A validade do objecto artístico não está assim exclusivamente nas suas intenções comunicativas mas nas múltiplas leituras e sentidos interpretativos que pode convocar. Não interessa extrair-lhe significados, pois daí se depreende que este seria apriorístico à sua identificação, como se a obra de arte consistisse numa caixa negra, mas atribuir- lhos. É neste sentido que os teóricos do cinema Jacques Aumont e Michel Marie afirmam que para quem analisa um filme “lo esencial es convencerse de que el contenido del film no constituye nunca un resultado inmediato, sino que debe, en cualquier caso, construirse. ” (1993 [1988], pp.132-133). Como propõem os mesmos autores, o objectivo da análise não consiste em aceder às intenções do autor (supondo, como tal, que estas intenções seriam para o cineasta absolutamente claras) mas permitir que o analista possa colocar- se questões criativas perante a obra analisada (Aumont, Marie, 1993 [1988], p. 283). Por essa razão defendem que o analista do filme tem toda a liberdade no processo de

18 descodificação da obra fílmica já que a sua relação com o filme se situa num contexto diferente da do seu autor. (1993 [1988], p. 284) Quanto aos procedimentos optámos neste trabalho por uma análise de carácter temático. Sobre este tipo de análise, centrado nos conteúdos expressos pelo filme, os autores antes citados enfatizam a necessidade de alguma prudência já que “(...) tanto en el cine como en todas las producciones significantes, no existe contenido que sea independiente de la forma a través de la cual se expresa. La idea de una interacción entre la forma y el contenido no es en absoluto nueva: sin salir de los discursos sobre el cine, podemos encontrarla tanto en Eisenstein como en Bazin, e incluso más recientemente en Metz, que afirma que el verdadero estudio del contenido de un film debe suponer necesariamente el estudio de la forma de su contenido, ‘de lo contrario, no estaremos hablando del film, sino de los distintos problemas generales que constituyen su punto de partida, los cuales no hay que confundir en modo alguno con su verdadero contenido, en que el fondo reside en el coeficiente de transformación que él mismo aplica a esos contenidos.” (Aumont, Marie, 1993 [1988], pp. 131-132) Também Andrew Tudor afirma partilhar da mesma noção ao tornar expresso que “ [ainda que se pretenda] (…) seguir o princípio de auteur não é suficiente escolher as oposições temáticas mais claras; fazer isso conduz ao risco de perder aquilo que faz de um filme especificamente cinema . É também necessário saber como funciona o cinema, os seus meios de expressão a níveis que não os da superfície narrativa, numa palavra, que linguagem fala um determinado filme” (1985, pp. 157-158). Assim, quanto à metodologia a utilizar optámos por escolher três núcleos temáticos a partir dos quais analisaremos os filmes. Como núcleos temáticos principais, ou subtemas, identificámos o corpo, os ambientes, e os futuríveis. Começaremos com a referência a alguns aspectos do enredo para que se torne compreensível não podendo, como afirmámos antes, deixar de referir os elementos expressivos e técnicos que estão imbricados nos elementos que queremos enfatizar. Quanto aos instrumentos da análise fílmica Aumont e Marie enfatizam que, quaisquer que sejam os métodos de análise, não existe uma fórmula universal. Os autores aludem a três grandes tipos de instrumentos de análise fílmica que designam como instrumentos de descrição, de citação e documentais. O primeiro instrumento, tendo em conta o predomínio narrativo da generalidade dos filmes, descreve frequentemente as grandes

19 (ou menos grandes) unidades narrativas embora seja também interessante a possibilidade de descrever certas características da imagem ou do som. Quanto ao segundo consideram que este procede do primeiro representando um estado intermédio entre o filme e o distanciamento analítico e, quanto ao último, dizem que se distingue dos restantes na medida em que não descreve nem cita o filme mas relaciona o tema com informações procedentes de fontes exteriores (Aumont, Marie, 1993 [1988], pp. 54-55). No nosso trabalho, optámos por recorrer ao cruzamento dos diversos instrumentos aqui descritos, procurando numa primeira fase fazer alusão às grandes unidades narrativas dos filmes de modo individualizado, enfatizando os seus diversos recursos estéticos e expressivos. Neste aspecto destacámos vários elementos significativos atribuindo particular relevância à banda sonora. Se fazemos aqui menção a este elemento isso deve-se ao facto dos dois filmes em análise valorizarem particularmente o som na construção dos seus ambientes mas também ao facto de Aumont e Marie, salientarem, por diversas vezes no seu livro, a displicência dos analistas fílmicos em relação a este elemento. No entanto, não fizemos aqui uma identificação sistemática das suas partes constitutivas do ponto de vista narrativo. Optámos por não nos deter em sequências, cenas, planos ou fotogramas, claramente delimitados. Esta escolha é justificada pela complexidade narrativa inerente aos dois filmes que nos obrigou a vê-los como um todo. Para além disso, ao decidirmos compartimentar o filme nas suas unidades narrativas estaríamos a utilizar uma metodologia de análise demasiado rígida que não nos permitiria o cruzamento com os outros instrumentos de análise. Como afirmam os teóricos, a descrição pode tornar-se demasiado exaustiva e desinteressante sem expressar adequadamente o objecto (Aumont, Marie, 1993 [1988], p.73). Quanto ao segundo instrumento, este também foi considerado. Procurando manter-nos fieis aos enunciados do díptico Tetsuo incorremos num trabalho analítico de forma a compreender de que forma aborda a temática da cibercultura tendo em conta os três núcleos temáticos seleccionados. Por último, recorrendo ao instrumento descritivo, procurámos recolher dados acerca do que pode ser entendido pelo conceito de cibercultura de forma a compreender como esta transporta os seus inputs para os filmes em análise e ainda delinear um percurso de construção do imaginário do realizador de forma a compreender qual a génese das sua expressão e intuições temáticas.

20 1.5. Estrutura

Para além deste capítulo introdutório, onde se apresenta o objecto de estudo, sua pertinência, objectivos, questões de investigação e opções metodológicas, desta dissertação constam mais três capítulos e um epílogo. No capítulo dois apresentamos a parte fundamental do referencial teórico que orientou a investigação. Procuramos desenvolver uma problematização do conceito de cibercultura visando trazer alguns contributos para a reflexão acerca do mesmo. Para isso tentamos compreender o que designa este termo e quais as suas especificidades mediante a identificação das principais linhas de pensamento já formuladas acerca desta matéria. O capítulo seguinte aborda a génese do trabalho do cineasta Shinya Tsukamoto numa tentativa de ilustrar o seu percurso e a construção das suas estruturas temáticas e imagéticas. Esboçar o percurso deste realizador, focalizando o percurso das suas vivências, afigura-se-nos crucial para aceder às fontes e conexões sociais da construção do imaginário que introduz na sua cinematografia permitindo-nos compreender certas opções temáticas, narrativas, estéticas e técnicas. No capítulo quatro procedesse à análise do díptico Tetsuo , identificando mediante três núcleos temáticos fundamentais o seu contributo para o pensamento acerca do conceito de cibercultura. Os núcleos temáticos seleccionados tentam fazer o cruzamento entre o pensamento cibercultural e o cinema de Shinya Tsukamoto. Assim, para clarificar o que pretendemos expressar, a análise de cada categoria terá como base uma reflexão que pretende cruzar várias linhas de pensamento acerca desse tema. No termo deste trabalho apresentamos um epílogo em vez de uma mais convencional conclusão. Esta opção resulta do facto de termos optado por elaborar uma breve síntese no final de cada capítulo. Em seguida apresentamos a bibliografia e filmografia citada e consultada. Finalmente apresentamos em anexo a filmografia de Shinya Tsukamoto enquanto realizador.

21 2. CIBERCULTURA: UMA PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO

É como se tivéssemos inventado um automóvel sem travão nem volante, só com acelerador, de modo que a nossa única possibilidade de controlo consistisse em fazer a máquina aumentar a velocidade. Durante um certo tempo, numa estrada recta, podemos sentir-nos seguros, até mesmo, quando aumentamos a velocidade, gloriosamente livres; mas assim que quisermos reduzir a velocidade, mudar de direcção ou regressar descobriremos que nada havíamos previsto para este grau de controlo humano – a única possibilidade disponível é «Mais Depressa, Cada Vez Mais Depressa»! Lewis Mumford (2001 [1952]), Arte e Técnica , p. 95

Hoje em dia tudo é neo, trans, pós. O «novidismo» (invenção minha) e o beyondism, o ir além (invenção de Daniel Bell), propagam-se. Se não «se supera», se não se ultrapassa e galga, hoje em dia não se existe. Giovanni Sartori (2000 [1999]), Homo Videns , p. 184

A ubiquidade contemporânea do termo cibercultura 3 concorre para a generalização da ideia do advento de uma nova formulação cultural que se vem instalando de modo indelével, incontestável e indetenível na civilização ocidental. Uma mutação em curso que aparenta ser o resultado de condições nunca anteriormente manifestadas, como tal, em ruptura com um momento precedente, propiciadas pela intervenção e exuberância do actual ímpeto tecnológico.

3 Etimologicamente a palavra cibercultura é constituída por dois vocábulos polissémicos. O primeiro desses vocábulos é ciber- que provêm da palavra cibernética, cunhada por Norbert Wiener em 1947 para designar o “estudo do controlo e das comunicações”. Por sua vez, esta palavra advém de outro termo. Segundo Breton e Proulx, “Wiener indicou que o termo cibernética provinha da palavra grega para designar o «piloto» cuja forma latina derivada fornecia a palavra «leme». Também teria podido acrescentar que essa família de radicais conduzia igualmente a «governo», como a «forma de pilotagem do social».” (1997 [1989], p. 106). A palavra é completada com o termo cultura que é originado na expressão latina cultivo , referente ao aproveitamento produtivo da terra, e posteriormente aplicado à mente, passando a associar-se ao domínio da produção e fruição artística. O termo cultura é hoje bastante mais amplo e complexo, principalmente após a dilatação do seu significado proposta pela corrente teórica dos Cultural Studies . Este termo passou a abarcar um mais vasto conjunto de fenómenos, deixando de se relacionar apenas com o contexto da arte para assumir também uma conotação antropológica.

22 No contexto académico, enfatiza-se a dificuldade de apreensão conceptual do termo mediante uma definição clara e unificada. A complexidade inerente ao mapeamento do seu território, se não mesmo a inexequibilidade desta tarefa, é sinalizada pela instabilidade decorrente da sua acentuada actualidade e constante reconfiguração e pelo impedimento da sua fixação num objecto concreto, consequência da extensão a domínios múltiplos. Perante um cenário tão vasto e incerto, supõe-se que encontrar resultados categóricos conducentes à sua estabilização num significado unívoco redundaria na cedência a uma superficialidade teórica com efeitos poucos profícuos. Isto não significa, contudo, que esta temática não tenha sido já objecto de abundante reflexão. Deste modo, o presente capítulo tem como objectivo efectuar uma aproximação teórica ao conceito de forma a expor de modo sucinto algumas das principais ideias que têm sido desenvolvidas, intentando dar nota do vasto pensamento já realizado em torno do mesmo e salientando diferentes abordagens e perspectivas que lhe têm sido dedicadas. Como tivemos oportunidade de explicitar na parte introdutória deste trabalho, pretendemos com esta síntese elaborar uma sistematização de algumas noções associadas à cibercultura, não procurando encerrá-la num significado mas contribuindo para a enunciação de alguns dos elementos que se afiguram essenciais para sua caracterização. Consideramos ser possível esboçar algumas intuições acerca da especificidade deste conceito que possam contribuir para a reflexão acerca da sua presença tão assídua. Em função deste procedimento, tentaremos propor uma problematização dos principais elementos que lhe são inerentes, principalmente mediante o confronto de perspectivas de diferentes autores que se têm debruçado a matéria. Por fim, procuraremos, mediante os dados apurados, traçar as principais características do imaginário associado ao contexto cibercultural no sentido de verificar de que modo este se manifesta no campo artístico e, em particular, no domínio do cinema que constitui o objecto do nosso estudo.

2. 1. Aproximações ao conceito

O elemento que se nos afigura essencial na cibercultura é a noção de um cenário contemporâneo absolutamente permeabilizado pela tecnologia. Isto é, a percepção acerca da emergência de uma nova situação cultural radica no pressuposto da total imbricação entre cultura (aqui encarada num sentido lato, antropológico, tal como foi

23 discutida no âmbito da corrente dos Cultural Studies ) e tecnologia. Se se pode pensar, como assinala Erik Davis em Tecnognose: Mito, Magia e Misticismo na Era da Informação , que a cultura resultou sempre de um encontro com a tecnologia (2002 [1998], p.25), é passível de ser assumido que a tecnologia passou a ser observada hoje como factor central, deixando de ser pensada como limitada ao seu anterior papel colaborativo. Como afirma Fernando Ilharco em Filosofia da Informação , “[o] que é evidente é que a tecnologia não é mais uma variável mas uma constante – uma constante dotada de uma espécie de transparência, que se não nota, que porventura essencial, intuitiva e instintivamente nos fornece o contexto e as possibilidades de acção” (2003, p. 110). Para Hermínio Martins, o fenómeno tecnológico constitui-se hodiernamente como mais do que um conjunto de artefactos, sendo detentor de uma racionalidade própria – técnica, instrumental, mecanicista – que a partir da década de 1980 se tornou totalizante (2005). No imaginário da designada civilização ocidental, a tecnologia, ou de modo mais adequado a tecnociência, já que a primeira consolidou, no decorrer do século XX, uma matriz científica, que produziu uma “interpenetração da investigação científica e da invenção técnica” (Martins, 1996, p.171), tornou-se o cenário em função do qual e sob cujas determinações se configuram o mundo, a subjectividade e a vida social, assim como as suas manifestações estéticas e artísticas. Os diversos aspectos da vida contemporânea figuram imersos numa nova atmosfera resultante do binómio ciência/tecnologia. Este aparece embebido nas rotineiras tarefas quotidianas associadas à vida laboral mas também no lazer; na vida íntima e no convívio social; no ar que respiramos e nos alimentos que ingerimos; na geração e preservação da vida; na configuração dos espaços e territórios; nos negócios e nas transacções financeiras; no exercício da acção política, nos conflitos bélicos e nos actos de diplomacia e auxílio internacional; nas medidas securitárias; nos media; nas mais depuradas e alternativas manifestações artísticas assim como nas Indústrias Culturais; nos sonhos mais bizarros; e em muitos outros domínios que esta enumeração seria incapaz de esgotar, temendo ultrapassar a razoabilidade da sua extensão. A assunção da permeabilidade da tecnologia nos mais amplos contextos remete para a noção de que esta não se entretece simplesmente com a cultura, antes reivindica e obtém o seu lugar, tornando-se omnipresente e arrogando-se destino de qualquer acção. Os

24 actuais experimentos tecnocientíficos, nos domínios da biotecnologia e nanotecnologia, da computação, da robótica e da inteligência artificial assim como as suas anunciadas concretizações e potencialidades orientadas no sentido da convergência, combinados com a aterritorialidade do ciberespaço, a ubiquidade das redes de circulação de dados, os mercados transnacionais e os media globais, propõem uma vasta gama de possibilidades de reconfiguração do mundo e do ser humano. A capacidade de actuar criativamente sobre si próprio e sobre o mundo, mediante a utilização de meios e artefactos, coloca o homem no cerne desta reflexão que evoca, não raramente, a possibilidade de uma transformação da sua natureza originária. É um facto que a importância da tecnologia e a sua penetração no quotidiano não é uma questão exclusivamente actual. Os últimos dois séculos e meio foram imbuídos de uma ideia de progresso social (ou do seu legado) radicado no desenvolvimento tecnológico e num pensamento de matriz racionalista. Novas percepções de tempo e espaço, motivadas pela aceleração da vida moderna, pelo acesso a novas escalas de observação do universo e ainda pela gestação de uma noção de futuro, que adveio da exequibilidade de concretização de transformações no tempo vital de uma geração, romperam com anteriores paradigmas fornecendo uma reperspectivação da realidade. A nova situação tecnológica anunciou igualmente a cessação do total desamparo do homem em relação às indómitas forças divinas e aos fenómenos naturais, colocando-o no posto de comando. No entanto, esta predominância da tecnologia aparenta surgir contemporaneamente não apenas como um incremento, um aumento quantitativo em relação a momentos anteriores também fortemente dominados pelo impulso tecnológico. Agora a tecnociência, matriz do pensamento cibercultural, erige-se no seio do imaginário contemporâneo como arquitecta de um momento inédito, em que são depositadas, simultaneamente, todas as expectativas e todos os receios. Nas suas realizações e possibilidades esta destrói fronteiras antes estabilizadas, expandido até domínios inimagináveis a experiência humana e reconfigurando a capacidade cognitiva dos indivíduos. O que hoje é (potencialmente) permitido ultrapassa largamente a imaginação mais fantasiosa e efabulante, pela sua capacidade de reestruturar não apenas o mundo mas também, e de forma significativa, o próprio ser (humano). Os entusiastas desta nova sociedade exaltam os seus anunciados benefícios e promessas democratizantes enquanto os seus detractores propõem a contestação e a luta contra as

25 suas antevistas injustiças e perversidades. Contudo, a ideia de que estará a ser atingido um ponto sem retorno, parece ser consensual. A transmutação contemporânea aparenta ser intrínseca à própria natureza da tecnologia. Isto porque a metamorfose encontra a sua fundamentação na conversão dos sistemas analógicos em digitais, representada pelo computador, metonímia da nova formulação cultural. O digital, que se estabelece como alicerce e aspecto singular da cibercultura, sugere uma indistinção entre os produtos que engendra e os sistemas no âmbito dos quais estes circulam. Não é apenas a linguagem, o signo arbitrário, que se admite ser submetível à digitalização, à codificação, mas também a matéria, mediante uma transmutação em abstracções lógico-matemáticas, em dados informacionais, que a autorizam a circular sem delimitações de tempo ou espaço e descorporizada, no continente desterritorializado, no topos ilimitado do ciberespaço. A partir de agora, alega-se a possibilidade de tudo ser convertível em informação. Segundo Allucquère Rosanne Stone, “[n]o tempo do um e do zero, começámos a valorizar o poder da informação, uma vez que virtualmente tudo pode ser convertido em fluxos de dados – filosofia, cromossomas, riqueza, este texto, o som da minha voz. O processo de conversão anula o espaço e o tempo; a informação é essencialmente ilimitada” (1999, p.70). A abundância informacional propiciada pelos sistemas digitais e o seu fluxo multidireccional ininterrupto configuram-se como os grandes signos do momento cibercultural. A informação tecnológica institui-se como “fundamental e decisivo background de entendimento da nossa época” (Ilharco, 2003, p. 128). Nesta perspectiva, a informação assume o lugar do real, torna-o a realidade onde se originou muito menos apelativa. Esta é também a intuição de Bragança de Miranda quando afirma que “se hoje temos uma linguagem universal esta parece confundir-se com a da tecnologia, que tende a funcionar como um transdutor, um tradutor generalizado, de toda a existência. Não há nada que não possa ser traduzido tecnicamente, que não possa ser convertido tecnologicamente.” (2001, p.4). Estas noções, como afirmámos antes, são extensíveis ao ser humano. As principais propostas incluídas no reequacionamento do sujeito tendem para a supressão gradual da sua matriz orgânica, falível e perecível mediante múltiplas etapas de uma longa jornada de mutação. Aí admite-se a hipótese de hibridação do corpo orgânico com próteses e dispositivos tecnológicos conducentes à exponenciação ou geração de novas faculdades

26 cognitivas e perceptivas, à qual subjaz a noção defendida por investigadores do campo da Inteligência Artificial (IA) que admite que “a mente é essencialmente computacional [e que, como tal,] (…) os seus laços com um corpo orgânico são essencialmente contingentes” (Martins, 1996, p.174). Nesta concepção, o corpo carnal é entendido como objecto acessório, como local de alojamento temporário da mente, sendo esta observada como único elemento definidor do humano. A génese desta ideia foi delineada, segundo Philippe Breton, por Alan Turing e John von Neumann quando, na década de 1940, conceptualizam o computador. De acordo com o mesmo autor “[o] projecto de construir uma réplica do homem via seu cérebro e unicamente seu cérebro, contém em si mesmo uma representação do humano como variante de um ser informacional. Esta representação impõe uma abordagem do humano sob o ângulo quase exclusivo da sua inteligência, definida como capacidade de tratar e trocar informação, e portanto de calcular e comunicar” (1997 [1995], p. 139). Procurando sintetizar o argumento das actuais teses fortes da IA, Hermínio Martins alude a esta noção indicando que âmbito deste quadro conceptual “[o] facto das mentes humanas parecerem essencial e inextrincavelmente relacionadas com o cérebro e com o corpo humanos não faz, de facto, qualquer diferença: é uma característica contingente da biologia humana particularista e não um requisito necessário e universal para os processos da mente cujas descrições sistémicas funcionais podem ser realizadas em sistemas inorgânicos bem como em «fleshware» de mentes humanas biologicamente corporizadas” (1996, p.195). Neste contexto, várias pesquisas são hoje conduzidas pelos mais reconhecidos institutos e laboratórios internacionais, intentando o total mapeamento do funcionamento da mente humana, baseado nesse pressuposto da completa desvinculação da matéria orgânica que a sustenta, enquanto investigadores das áreas da robótica, da computação e da inteligência artificial, tentam dotar máquinas da capacidade de pensar e produzir tarefas de modo mais célere e eficiente do que os humanos. Isto origina a noção de que todas as coisas se situam no mesmo patamar ontológico o que faz ruir as fronteiras entre o físico e o não físico e entre o biológico e o artificial. Até hoje, no contexto do mundo concreto (já o mesmo não se pode afirmar para o universo ficcional), nunca na história da humanidade se colocara a questão de distinguir entre o vivo e o não vivo. Apesar da vontade milenar do homem de assumir o poder demiurgo e quase divino de moldar um

27 ser à sua imagem e semelhança, existiu sempre um elemento intangível, inimitável, incapaz de ser apreendido pela capacidade da representação humana. Contudo, as novas tecnologias aliadas à ciência encerram a promessa de captar essa intangibilidade capaz de criar a simulação perfeita indistrinçável da realidade. Se assim for, se for possível captar tecnologicamente a intangibilidade da condição de estar vivo, o que distanciará o real do artificial, o que distinguirá o humano do seu simulacro, qual o elemento que será capaz de afirmar a sua supremacia sobre outras formas de vida? Ainda que ao ser humano não se coloque para já de modo definitivo a questão da alteridade, como no confronto final entre Deckard e Roy Batty, personagens centrais do filme Blade Runner (Blade Runner - Perigo Iminente , 1982), é certo que este está mediante transformações evidentes que afectam não apenas o corpo, a matéria, traduzidas nas inúmeras próteses tecnológicas construídas para lhe ampliar os sentidos ou substituir partes defeituosas ou inoperantes, mas também os seus modos de estar no mundo e de se relacionar com os outros. As tecnologias promovem cada vez, de modo mais eficiente e simplificado, o multitasking e a externalização da memória e dos sentidos. Somos cada vez mais capazes de realizar várias tarefas em simultâneo e valorizados por essa eficácia, ainda que esta possa redundar numa cada vez maior superficialidade das tarefas executadas, e confiamos mais facilmente no registo dos aparelhos técnicos do que nas recordações que somos capazes de evocar, enredados que estamos num ideal de objectividade e proficiência. Alteram-se também as formas de relação com o mundo, que configuram novas modalidades societais e formas de sociabilidade e a tentativa de fuga para universos alternativos. Procura-se uma espécie de Second Life capaz de configurar uma nova identidade extirpada das frustrações e normas do quotidiano e assim mais próxima do eu verdadeiro, porque configurado sem condicionalismos externos, apenas configurado pela vontade individual, num espaço desrealizado, sem limitações ou compromissos. Hermínio Martins em Aceleração, progresso e experimentum humanum , alude à “avalanche imparável de mudança tecnoeconómica”, à “maximização dos fluxos (…) energéticos, informacionais (…) [e de] stocks”, e à “obsolescência”, “virtualização”, “precarização” e “fluidificação de tudo” (2003, p.20). Na sua perspectiva, esta velocidade associada ao ímpeto tecnológico, não sendo um fenómeno recente, terá sido alvo de uma intensificação configurando-se como a principal aceleração dos nossos

28 dias, outra marca indelével da cibercultura. No mesmo artigo o autor refere-se ao que designa como as duas grandes correntes aceleracionistas do pensamento contemporâneo que, como explica na fase final da sua reflexão, culminam no mesmo tipo de resultados, a ultrapassagem da natureza originária do humano. O autor refere-se em primeiro lugar à corrente a que chama Panglossianismo Dinâmico ou Aceleracionismo Panglossiano que, segundo o mesmo, concerne ao pensamento que parte da noção de que o mundo está a tornar-se um lugar melhor em virtude do impulso tecnológico e que crê que uma desaceleração deste impulso crescente e cada vez mais célere poria em causa a própria civilização (2003, p.25). A segunda tendência de pensamento relativa à aceleração é designada por Martins por Aceleracionismo Escatológico , já que para os seus defensores “o crescimento super-exponencial ou hiperbólico no sentido matemático (e não retórico da palavra) (Kurzweil, 1999; 2001) das tecnologias da computação, tem um sentido grandioso, quase transcendente, para além das satisfações comezinhas da boa vida para todos nós, que podem decorrer deste crescimento, e de facto sabe-se que se torna possível e mesmo inevitável uma «transição de fase», uma mutação inédita, que se poderia denominar ontológica (ou des-ontológica), porque afecta o mais intimo da natureza do ser (humano), dos Daseine , para um futuro pós-humano, pós-biológico, dispensando a inteligência natural e o corpo biológico, ambos obsoletos e superados pela aceleração tecnocognitiva” (2003, pp. 26-27). O autor afirma com alguma ironia que estamos “condenados” a viver em função desta dinâmica aceleracionista embora não consigamos descortinar o significado desta modalidade existencial (Martins, 2003, p.20). Partilhando da ideia de urgência e aceleração constante associada aos nossos dias, Mark Dery assinala em Velocidade de Escape: Cibercultura no Fim de Século que “[e]stamos a passar, a uma velocidade estonteante, de uma tranquilizadora era sólida de hardware para uma era de software desconcertantemente espectral, na qual circuitos demasiado pequenos para serem vistos e código demasiado complexo para ser compreendido controlam uma parte crescente do mundo à nossa volta” (Dery, 2000 [1995], p. 10). A sua perspectiva acerca do devir deste aceleracionismo está em sintonia com a visão categorizada por Hermínio Martins como Aceleracionismo Escatológico , pois segundo o autor “[a cibercultura] retumba com fantasias transcendentalistas de libertação em relação a toda a espécie de limites, tanto metafísicos como físicos. Associada a esta perspectiva está a noção defendida pelos seus signatários de um

29 resultado inevitável que consistirá na «ascensão de uma pós-humanidade superevoluída e tecnicamente melhorada»” (Dery, 2000 [1995], p. 17). Sobre estas tendências reflecte igualmente Erik Davis que se refere à cultura contemporânea como ”uma cultura hipertecnológica e cinicamente pós-moderna aparentemente atraída como um enxame de borboletas pelas chamas vacilantes da mentalidade pré-moderna.” (Davis, 2002 [1998], p.15). Mediante uma linguagem metafórica e explorando o sentido dos paradoxos, o autor sustenta a tese de que o Ocidente, apesar de supostamente ter passado a definir-se, a partir da era moderna, por um pensamento céptico e racionalista baseado no desenvolvimento económico e na ideia de progresso foi incapaz de rejeitar os “impulsos místicos” que se tornaram parte integrante da tecnologia. Neste contexto refere-se a Lewis Mumford que alguns anos antes aludira ao que designou como “o mito da máquina”. De facto, em Arte e Técnica , conjunto de conferências publicadas em livro em 1952, Mumford afirma que “apesar da nossa desvalorização do simbolismo, transformámos a Máquina no símbolo da própria vida e transferimos a nossa obsessão em relação a esse ídolo particular para todas as fases da história humana” (Mumford, 2001 [1952], p.40). Para Davis, ultrapassada a era industrial assistimos hoje à emergência e consolidação de um novo mito, o mito da informação (Davis, 2002 [1998], p. 16-17). Na reflexão sobre aceleracionismo não é possível deixar de fazer referência ao pensamento de Paul Virilio que tem feito incidir a grande maioria do seu trabalho precisamente na ideia de velocidade associada à era contemporânea. O autor que se afirma um dromólogo, expressão da sua autoria que tem raiz no termo grego dromo que exprime a ideia de corrida, considera que “[o] mundo moderno vive a revolução da aceleração (…) Com a revolução da velocidade da luz, da cibernética, da informática, da telemática, chegamos à velocidade absoluta. Pela primeira vez na história, o homem toca um limite cósmico. Não é mais o limite da superfície terrestre, dado que vamos à lua, mas o cósmico” (2001, p.15). No entanto, ao contrário de outras visões, também pouco optimistas, em que se considera que a velocidade e os novos meios electrónicos acentuam as distâncias entre os indivíduos inviabilizando ou, pelo menos, desincentivando formas de sociabilidade vis-à-vis e não mediada, Virilio considera, observando o fenómeno da velocidade por outro ângulo, que este produz uma aproximação tão intensa entre os indivíduos “que, em breve, tornará insuportável a

30 convivência entre os seres”. Na sua perspectiva, “[n]ão haverá mais espaço físico nem temporal separando as pessoas. A cibernética e as viagens supersónicas comprimem o mundo como numa prisão cujas paredes se movessem diminuindo o espaço existente” (Virilio, 2001, p.14). Perante o novo cenário em permanente e célere reelaboração, sobre qual tentamos descortinar alguns traços relevantes, vários autores apresentam diferentes posicionamentos tentando equacionar propostas para a sua compreensão e apropriação. Pierre Lévy, autor de Cibercultura: Relatório para o Conselho da Europa no quadro do projecto «Novas Tecnologias: cooperação cultural e comunicação» , é declaradamente um entusiasta da tecnologia e de alguns contextos que esta aparenta configurar no momento presente. Os seus principais argumentos, no documento acima mencionado, consistem em atribuir à cibercultura, que o autor faz derivar directamente da constituição do ciberespaço4, uma característica determinante que designa por “universal sem totalidade” (2000 [1997], p. 113). Esta designada “essência” da cibercultura significa, na perspectiva do autor, que existe uma potencialidade de universalização no acesso à participação no ciberespaço que não significa, contudo, um fechamento do sentido associado a este processo. Nas palavras do autor, “ [o] universal da cibercultura é tanto desprovido de centro como de linha directriz. É vazio sem conteúdo especial. Ou por outra, ele aceita todos já que se contenta em pôr em contacto um ponto qualquer com qualquer outro, seja qual for a carga semântica das entidades que se relacionarem” (2000 [1997], p. 113). Na perspectiva de Lévy, ao contrário do que ocorre com os media tradicionais, na rede o significado não surge pré-determinado nem é imposto ao receptor mediante um modelo vertical. Antes, este constitui-se horizontalmente aceitando a participação de todos e colocando-os no mesmo patamar de importância, permitindo que o contacto se estabeleça pela “interacção geral” (2000 [1997], p. 122). Empenhado em explicitar de que forma esta interacção pode ser constitutiva de uma “inteligência colectiva”, expressão da sua autoria que significa, grosso modo , que cada participante do ciberespaço poderá contribuir como uma unidade para a constituição de um cérebro global capaz de espelhar a diversidade das diferentes

4 Ciberespaço é um termo da autoria do autor de ficção científica William Gibson utilizado pela primeira vez na obra Neuromancer datada de 1984. Nessa obra o autor descreve-o como “uma alucinação consensual”. Apesar de ter a sua origem na literatura este termo foi adoptado pela linguagem corrente para se referir ao espaço aterritorial, distribuidor de fluxos informativos, situado no cerne das redes de circulação de dados como a Internet.

31 partes individuais, o autor afirma que nesta reflexão “[o] ênfase é posto na atitude geral face ao processo das novas tecnologias, sobre a virtualização em curso da informação e da comunicação e na mutação global da civilização que daí resulta” (2000 [1997], p. 17). Para o autor, cibercultura significa, deste modo, “(…) o conjunto das técnicas (materiais e intelectuais), as práticas, as atitudes, as maneiras de pensar e os valores que se desenvolvem conjuntamente com o crescimento do ciberespaço” (Lévy, 2000 [1997], p. 17). Apesar de situar a cibercultura neste domínio restrito constrangido ao que designa por ciberespaço, Pierre Lévy não deixa de antecipar algumas críticas em função das quais elenca um conjunto de questões que poderão pôr em causa as suas propostas. Em defesa da sua argumentação apresenta algumas respostas que afirma, contudo, não serem peremptórias. Quanto à questão se “a cibercultura será uma forma de exclusão?” (Lévy, 2000 [1997], p. 258), considera que não, já que de acordo com a sua argumentação, o número de excluídos será cada vez menor e os acessos à Internet serão cada vez mais facilitados e menos dispendiosos. Neste contexto, é relevante equacionarmos o seu pensamento relativamente à ideia de uma explosão e aceleração das comunicações. O autor afirma com ênfase: “[a] quantidade bruta dos dados disponíveis multiplica-se e acelera-se. A densidade de ligações entre as informações aumenta vertiginosamente nos bancos informáticos, os hipertextos e as redes. Os contactos transversais entre os indivíduos proliferam anarquicamente. É a inundação caótica das informações, o fluxos dos dados, as águas tumultuosas e os turbilhões da comunicação, a cacofonia e o psitacismo ensurdecedor dos media, a guerra das imagens. As propagandas e contra propagandas, a confusão dos espíritos. A bomba demográfica também representa uma espécie de dilúvio, uma cheia demográfica espantosa. Em 1900 a Terra tinha pouco mais de um bilião e meio de habitantes. No ano 2000 seremos perto de seis biliões. Os homens inundaram a Terra. Um crescimento global tão rápido e maciço não tem precedentes históricos.” (2000 [1997], p. 14). Em todo o excerto transcrito o autor utiliza metáforas alusivas à força das águas, a um poder diluviano. Estas são bastante ilustrativas da pujança e velocidade que o autor quer imprimir aos acontecimentos relatados. Aqui está a essência da sua reflexão sobre cibercultura, que tem como ponto de partida esta mudança mas que igualmente acentua a multiplicação acentuada da quantidade de dados disponíveis a cada momento. Não só a civilização contemporânea é

32 alvo de uma exponenciação sem precedentes da velocidade dos fluxos como simultaneamente estes transportam uma inusitada dose de informação considerada potenciadora de um mundo globalmente mais informado e em maior comunhão. No que concerne à pergunta se “a diversidade das línguas e das culturas” fica ameaçada? (Lévy, 2000 [1997], p. 261), pensa, pelo contrário, que a cibercultura origina “o fim dos monopólios de expressão pública”. Há hoje, na sua óptica, uma “variedade crescente das formas de expressão” apenas possíveis no ciberespaço, uma “disponibilidade progressiva dos instrumentos de filtragem e navegação” que colmatam o excesso informativo e ajudam o indivíduo a seleccionar a informação mais pertinente para si, e ainda “o desenvolvimento das comunidades virtuais e dos contactos interpessoais à distância”. Segundo afirma, o facto de existirem ainda algumas barreiras à diversidade cultural é ultrapassado pela razão de estas nunca terem estado tão diluídas como no momento presente. Considera que a diversidade depende exclusivamente da capacidade de intervenção do indivíduo e das organizações que podem contribuir para a sua orientação. Pierre Lévy refere-se também à utilização maioritária da língua inglesa na Internet, o que não considera um problema. Para o autor esta é a mais adequada quando se pretende atingir um público internacional, embora não descarte a possibilidade da versão em língua inglesa aparecer paralelamente a uma versão na língua originária. (Lévy, 2000 [1997], p. 266). Considera ainda que muitas outras línguas estão representadas na Internet dependendo a intervenção apenas da iniciativa dos falantes das línguas minoritárias (Lévy, 2000 [1997], p. 264). Uma terceira questão equaciona se “a cibercultura não é sinónimo de caos e de confusão?” (Lévy, 2000 [1997], p. 266). A este respeito acredita que a rede possui as suas próprias estruturas e hierarquias mas que estas se constituem no seu seio ao contrário de lhe serem impostas pelo exterior. Assim, “desapareceram definitivamente as selecções, as hierarquias ou as estruturas de conhecimento pretensamente válidas para todos e em todas as circunstâncias, a saber o universal totalizante ” (Lévy, 2000 [1997], p. 268). Nesta noção reforça-se mais uma vez a sua defesa do conceito de “universal sem totalidade”. A última questão proposta pretende avaliar se “ a cibercultura está em ruptura com os valores fundamentais da modernidade europeia?”. O autor pensa que isso não acontece, já que a informática e o ciberespaço “realizam praticamente todas as formas de universalidade, de fraternidade, de estar em grupo, de reapropriação de base dos

33 instrumentos de produção e comunicação” (Lévy, 2000 [1997], p. 270). Contudo, é feita aqui uma ressalva pela afirmação da ideia de que apesar de destruir os poderes antigos estes meios contribuem igualmente para a constituição de novos poderes que classifica como “menos visíveis e mais instáveis, mas não menos virulentos” (Lévy, 2000 [1997], p. 270). No entanto, Lévy não se detém nesta noção que carece de aprofundamento ao longo de todo o relatório. Assim, este autor insiste numa noção optimista acerca de um novo cenário de participação numa rede de interligação mundial, atribuindo a possibilidade da sua gestão aos cidadãos. Este acredita que “[n]em a salvação nem a perdição residem na técnica. (…) Os instrumentos que construímos dão-nos poderes mas, colectivamente responsáveis, temos a escolha nas nossas mãos.” Contrariando em certa medida o entusiasmo expresso por Lévy, António Fidalgo recorre a uma esclarecedora metáfora para explicitar o seu pensamento acerca da Internet. Salienta o autor que “[u]tilizando a imagem de feira da ladra para descrever a Internet é-se conduzido inevitavelmente à ideia de uma estrutura sem centro, sem pontos nevrálgicos, onde cada ponto se encontra em pé de igualdade com os outros pontos” (Fidalgo, 2001, p.4). Contudo, o pensador contraria esta noção associada ao momento da sua explosão da sua utilização generalizada, considerando que, tendo sido apropriada pelas dinâmicas económicas “[m]ais do que uma feira da informação, a Internet é hoje mais um local de enormes armazéns (malls) de informação, onde não há lugar à cooperação, mas sim à concorrência” (Fidalgo, 2001, p.5). Apesar de salientar que continua a haver aí espaço para manifestações de outra natureza, para grupos menores “arredados dos grandes centros de informação”, acredita que a sua participação e representatividade apresenta na Internet uma tendência decrescente (Fidalgo, 2001, p.5). Manuel Castells, autor bastante citado no que concerne às dinâmicas geradas pelas redes de comunicação, partilha em alguns pontos as noções de Lévy, apesar de aparentar uma maior contenção. No capítulo A info-exclusão: Uma perspectiva global incluído no livro da sua autoria A Galáxia Internet: Reflexões sobre a Internet, Negócios e Sociedade , Castells, baseando-se em dados emanados pelo U.S. Commerce Department’s National Telecommunications and Information Administration , referentes ao ano 2000, apresenta um estudo acerca da info-exclusão. Este termo é definido pelo autor como referente não apenas àqueles que não têm acesso à Internet mas também aos

34 que são incapazes que a utilizar de uma forma informada e crítica. Centrando-se na realidade estadounidense, conclui que a info-exclusão é dependente de factores como a etnia, a empregabilidade, os rendimentos auferidos, a residência ou não em zonas urbanas, o grau de escolaridade ou até o tipo de tecnologia disponível para o acesso. Reportando-se ao contexto mundial, afirma que a “rápida difusão da Internet está a avançar de maneira desigual por todo o planeta” (Castells, 2004 [2001], p. 300). Efectivamente, é possível constatar a partir de dados disponíveis em www.internetworldstats.com, datados de Novembro de 2006, que actualizam os fornecidos pelo autor, que para um total de aproximadamente um bilião de utilizadores da Internet a nível mundial, o que corresponde a 16,7% da população mundial, 36,4% são referente ao continente asiático, 28,4% à Europa e 21,1% à América do Norte, sendo os valores correspondentes a África e ao Médio Oriente de 3% e 1,8% respectivamente. Isto apesar do crescimento extraordinário das utilizações de 625,8% no caso africano e de 479,3% no Médio Oriente no período compreendido entre o ano 2000 e o ano de 2006 5. Perante a informação apresentada, Castells conclui que os países em vias de desenvolvimento pelo “facto de estarem desligados, ou superficialmente ligados, à Internet [ficam à margem] (…) do sistema reticular global” (Castells, 2004 [2000], p. 311). “É devido a isto”, sustenta, “que a afirmação tantas vezes ouvida relativamente à necessidade de começar «pelos problemas reais dos países do terceiro mundo», ou seja, a saúde, a educação, a água, a electricidade e outras necessidades, antes de se pensar no desenvolvimento da Internet, revela um profundo desconhecimento das questões que realmente importam hoje em dia. Com efeito, sem uma economia e um bom sistema de gestão baseados na Internet, é praticamente impossível que um país seja capaz de gerar os recursos necessários para cobrir as suas necessidades de desenvolvimento, numa base sustentável, ou seja, económica, social e ecologicamente sustentável” (Castells, 2004 [2000], p. 311). Em seguida, o autor apresenta a sua proposta. Embora ressalve a pertinência do conhecimento e da resolução política, parte da assunção de que nem tudo pode estar vinculado a este mecanismo pelo que considera fundamental que nos

5 Neste tópico optamos por não recorrer aos dados disponibilizados por Castells, referentes a Setembro de 2000, em virtude de estes apresentarem uma desactualização em relação a dados mais recentes. Neste sentido recorremos a informações apuradas em 2006. No entanto, apesar da diferença dos números e de alguma disparidade entre as previsões apresentadas e a sua concretização, na generalidade as conclusões são similares.

35 adaptemos globalmente ao novo modelo de desenvolvimento sustentado na Internet (Castells, 2004 [2000], p. 312). A sua convicção é a de que necessitamos “de uma economia baseada na Internet, impulsionada pela capacidade de aprendizagem e geração de conhecimentos, capaz de operar dentro das redes globais de valor e apoiada por instituições políticas legítimas e eficazes. É do interesse geral da humanidade que um modelo ajustado a tais critérios seja encontrado enquanto ainda estamos a tempo” (Castells, 2004 [2000], p. 313). Castells explica este posicionamento reforçando a noção que a Internet não é uma mera tecnologia mas antes “o instrumento tecnológico e a forma organizativa que distribui o poder da informação, a geração de conhecimentos e a capacidade de ligar-se em rede em qualquer âmbito da actividade humana” (2004 [2000], p. 310). Outros autores com uma matriz de pensamento diferenciada consideram que a assunção de uma sociedade organizada em função da tecnologia e dos novos fluxos de informação não se constitui como uma inevitabilidade e que a noção de globalização tecnológica tende a abranger de facto uma parcela muito reduzida do planeta, facto que assume enorme preponderância nas suas reflexões. Vários desses pensadores têm enfatizado a ideia de que se é uma evidência que a tecnologia está presente no quotidiano ocidental e que esta assume um papel determinante nas nossas vivências diárias não podemos, no entanto, considerá-la como panaceia para todos os problemas. Acima de tudo, afirmam os mesmos, terá de ser a acção política a tomar as rédeas do controlo da tecnologia de modo a não permitir que esta venha a assumir um papel de liderança. Mais ainda, consideram que esta é subsidiária de um modelo de mercado que privilegia invariavelmente um número muito limitado da população mundial. Langdon Winner é um dos teóricos que nos alerta para o excessivo entusiasmo associado às percepções acerca das potencialidades da tecnociência nos nossos dias e para a necessidade do seu refreamento urgente que coloque a humanidade numa atitude crítica. É neste contexto que afirma que “[n]os media populares, bem como nas declarações dos líderes empresariais e políticos, encontramos uma aceitação incondicional da noção de que um universo conduzido pela tecnologia é algo muito importante e que qualquer esperança de uma intervenção humana razoável passa ao lado da questão fulcral.” (2003b, p.80). Assim, julga necessária uma inflexão nesta tendência de pensamento. Apesar de, segundo afirma, algum trabalho já ter sido desenvolvido no

36 sentido de compreender a mudança tecnológica como algo diferente de uma “força unilinear e unívoca” (Winner, 2003b, p.81) é sua convicção que permanece a ideia do que designa como “tecnologia autónoma – a noção de que a tecnologia segue o seu próprio curso e estabelece as condições essenciais da vida humana”. Aliás, o autor é categórico na afirmação de que esta noção é talvez mais acentuada nos nossos dias do que em algum momento anterior da história (2003b, p.82). Para justificar esta intuição alude à lei de Moore que determina que a capacidade computacional duplica a cada dezoito meses, tendência que não se prevê que decresça pelo menos no quadro das próximas duas décadas. Esta lei sustentaria a percepção da inevitabilidade ou irreversibilidade deste processo. 6 Winner, fazendo referência aos relatórios anuais emanados pelas Nações Unidas e, mais especificamente, ao relatório intitulado O Nosso Futuro Comum , datado de 1987, produzido pela Comissão Mundial para o Ambiente e o Desenvolvimento , realça problemas como o aumento da desigualdade que não estão desvinculados das mudanças tecnológicas e dos seus efeitos. Desse documento destaca que “[a] Internet, por exemplo, apoiada pelos seus proponentes como promessa da democracia para o futuro, tem sido até agora extremamente desigual” (2003b, p. 83). Para além disso salienta que, “[a] partir destes dados básicos, os autores fazem um aviso sério: «Quando as pessoas destes dois mundos vivem e competem lado a lado, a vantagem de se estar conectado derrota os marginais e os pauperizados, cortando a sua voz e as suas preocupações na conversação global»” (Winner, 2003b, p. 83). Como vimos antes, esta é uma preocupação também expressa por Manuel Castells, que vê como única solução para os países em vias de desenvolvimento a sua urgente adequação aos sistemas de comunicação global. Winner, por seu turno, apresenta grande cepticismo em relação a estas ideias colocando diversas questões, entre as quais: “Como é que o mundo como um todo aparece à medida que estas inovações têm efeito? De onde vem, por exemplo, o apoio financeiro para as propostas de inovação e onde, falando honestamente, irão recair os custos económicos e benefícios?” (2003b, p. 87). Também em sentido diferente do de Castells, o mesmo considera que é preciso colocar em primeiro lugar “as questões presentes e reais da humanidade” antes de nos rendermos ao entusiasmo com

6 Gordon Moore, um dos fundadores da Intel, percebeu, no final dos anos 1960, um padrão na indústria que ajudara a criar. Moore convenceu-se que este crescimento sem precedentes iria continuar indefinidamente.

37 uma anunciada civilização global e tecnológica (Winner, 2003b, p. 89). A este propósito afirma: “To this day, in venues like the Human Development Reports published each year by the United Nations, the dream is alive and well; it remains possible, the U.N. staff insists, to direct the powers of science and technology for the benefit of human beings everywhere, including those who have enjoyed little of the bounty so far” (Winner, 2003a, p.2). Insistindo nas assimetrias já identificadas, Ignatio Ramonet enfatiza que a suposta liberdade associada às tecnologias de informação não é consumada já que exclui à partida uma parte do mundo. De acordo com o autor “[h]á, por exemplo, menos linhas telefónicas na África negra do que em toda a cidade de Tóquio.” (1999, p.75) o que representa, na sua perspectiva, o perigo real da acentuação das diferenças entre os seres humanos aqui divididos nas categorias de “info-ricos” e “info-pobres”. Ainda na mesma linha reflexiva, José Gil afirma que a visão utópica da sociedade sujeita às determinações da tecnologia não toma em consideração “as realidade económico-sociais do mundo de hoje”. (2003, p. 15). Pelo conjunto de razões referidas anteriormente pode surgir uma pergunta como aquela que Carlos Pacheco coloca no artigo intitulado o Espelho do Abismo : “Não obstante (…) os significativos avanços nas ciências, na medicina, na produção industrial e alimentar, e até na luta pelos direitos cívicos e sociais, acaso será razoável falar de uma sociedade mundial mais justa e equilibrada?” (2006, p. 16). A esta pergunta o autor procura responder com dados factuais: “(…) de uma população mundial de 6000 milhões de pessoas, 4700 milhões são pobres e mais de 1000 milhões sobrevivem com menos de um dólar; outra parte, num total de 2700 milhões, vive com dois dólares. A este drama de pobreza extrema juntam-se os doentes por fome ou desnutrição, estimados em 840 milhões, dos quais 300 milhões são crianças.” (Pacheco, 2006, p. 16). Sobre estas noções, Mike Davis, ultrapassando a mera enunciação de números (que não deixam, contudo, de ilustrar o fosso social e económico tantas vezes ocultado pela adesão pouco reflexiva manifestada em relação ao processo tecnológico em curso) apresenta, na sua mais recente obra intitulada Planet of the Slums , informações profusamente descritivas. Estas relatam o distanciamento entre uma parte do mundo hipertecnologizada, que se questiona acerca das consequências da tecnologia no seu quotidiano, e outra parte em que a ausência de condições básicas de sobrevivência coexiste com a máxima opulência e acesso aos produtos luxuosos do primeiro mundo.

38 A título de exemplo, pensemos na Índia, país onde existem alguns dos centros de estudo e investigação mais avançados do planeta mas no qual, simultaneamente, um terço da população é iletrada e em que cibercafés coexistem com oficinas de escrita, onde máquinas de escrever obsoletas e enferrujadas operadas por funcionários servem as necessidades de comunicação escrita de muitos habitantes inabilitados para ler ou escrever. Davis, faz no seu livro um importante retrato acerca da vida nos espaços urbanos contemporâneos, em particular nos países designados como pertencentes ao Terceiro Mundo, acentuando a pobreza extrema, a ausência de condições de saneamento básico, o crescimento exacerbado dos bairros de lata e a insegurança aí presente. Como contraponto alude aos bairros ricos que designa como “fortified, fantasy-themed enclaves and edge cities, disembedded from their own social landscapes but integrated into globalization’s cyber-California floating in the digital ether” (Davis, 2006, p. 120). Num dos tópicos mais perturbantes desse documento, intitulado Living in Shit , o autor dá nota dos problemas de saneamento existentes em muitos bairros de países do Terceiro Mundo, onde grupos muito elevados de habitantes têm de partilhar um número mínimo de latrinas infectas, com as implicações que isso acarreta não apenas ao nível da saúde pública mas também no que concerne à humilhação a que esses indivíduos são sujeitos (2006, p. 140). No entanto, a solução para o problema tem sido encarada pelo chamado Primeiro Mundo como uma oportunidade de negócio. Como afirma o autor, “(…) one of the great achievements of Washington-sponsored neoliberalism has been to turn public toilets into cash points for paying off foreign debts – pay toilets are a growth industry throughout Third World slums.” (Davis, 2006, p. 141). Ao expor estes dados, Mike Davis torna claro de que modo as diferenças persistem no mundo contemporâneo e demonstra a falta de indícios de uma eventual transformação desta realidade à luz do panorama de actuação política. Salienta-se, em contrário, o adensamento do abismo entre ricos e pobres que privilegia os detentores do poder. Relacionada com esta ideia está igualmente a denúncia do filme-mosaico da autoria de cinco realizadores, entre os quais Wim Wenders. Intitulado Invisibles ( Invisíveis, 2007), o filme dá nota, em registo documental, de cinco situações em países diferentes em que os seus habitantes vivem sem ser notados pela comunidade internacional. No primeiro destes segmentos, da autoria da realizadora espanhola Isabel Coixet, uma mulher boliviana, imigrante em Espanha, recebe cartas da sua irmã residente no país natal.

39 Através dessas cartas, que são lidas em voz off enquanto assistimos ao quotidiano laboral da imigrante, sabemos que a sua filha criança morreu da doença de Chagas (Tripanossomíase Americana ), doença que acabará também por vitimar o cunhado. No final do segmento somos informados que esta doença letal, que afecta actualmente cerca de 18 milhões de pessoas, é provocada pela picada de um mosquito e é frequente em zonas acentuadamente pobres da Bolívia e outros países da América do Sul. Ainda assim, nenhum laboratório farmacêutico manifesta interesse em desenvolver pesquisa para o seu tratamento, podendo a doença ser combatida com os fármacos actualmente disponíveis apenas numa fase precoce de difícil diagnóstico. Em oposição, durante a rodagem do filme, 1800 novos medicamentos para emagrecimento aguardavam a obtenção de patente. Recuperemos aqui o que expressa Patrice Flichy no texto intitulado Are we really getting rid of our physical bodies in cyberspace? : “the goal of developing risk-free human relations also appears in the writings of the futurologist Gilder who considers that tomorrow's computer networks will enable us to «visit third-world countries without drinking their water»” (2001, p. 17). Aqui está presente uma ausência de preocupação com os problemas reais de uma parte do mundo que a outra, beneficiária do impulso tecnológico, opta por não problematizar. A este propósito parece-nos de toda a relevância resgatar a conclusão do texto A Crítica Política da Tecnologia como Tarefa da Sociologia Contemporânea da autoria de José Luís Garcia. De acordo com o autor “o paradoxo do período actual pode ser formulado da seguinte forma: quando manifestamente deixou de ser descabido interrogar se uma determinada tecnologia contribui para aumentar ou diminuir a crise ambiental, as condições de justiça na sociedade ou mesmo para alterar de forma extrema a natureza da condição humana tal como a temos conhecido, o lastro do nosso olhar teima em fixar-se na sua mera utilidade e contribuição económica. E até muitos daqueles que lançam um olhar crítico sobre as nossas sociedades profundamente desiguais, assim como para o rumo de potência e riqueza que a história económica tomou, tendem a esquecer ou a negligenciar a importância e o padrão da evolução tecnológica. (…)” (Garcia, 2002, 79- 80). A tendência de acentuação da presença da tecnologia e da ciência no quadro da vida quotidiana parece ser dominantemente pensada como um factor positivo na medida em que se apresenta como facilitadora da realização de múltiplas tarefas e propiciadora de novas e estimulantes propostas de experimentação do mundo. E é um facto

40 inquestionável que esta veio facilitar algumas tarefas do nosso quotidiano. Contudo, a história recente tornou-nos conscientes das profundas e dilacerantes consequências que a experimentação cientifico-tecnológica pode proporcionar e somos confrontados diariamente com alguns dos novos resultados, por exemplo, ao nível da degradação do meio ambiente para além de sabemos que apenas uma parte significativamente pequena da população mundial tem acesso aos seus propalados benefícios. Contudo, persiste um discurso preponderante que continua a valorizar este incremento constante e sobretudo a encarar este projecto como um processo sem retorno. Autores que procuram reavivar um entendimento mais crítico sobre esta matéria têm visto nesta perspectiva a constituição de uma ideologia. Esta «ideologia tecnológica» parece sustentar alguns pressupostos que Dominique Wolton sintetiza em três ideias fundamentais: “mudança tecnológica é sinónimo de progresso”, “é urgente adaptar-se- lhe, sob pena de atraso”, “toda a crítica é sinónimo de medo de mudança e defesa de arcaísmos” (2000 [1999], p.23). Por outras palavras teríamos de assumir que a qualquer mudança tecnológica é sempre positiva, isto é, implica uma melhoria, não podemos ficar à margem deste processo sob pena de abdicarmos dos seus anunciados benefícios e problematizar os seus resultados significa assumir uma postura catastrofista. Como assinala José Luís Garcia “com frequência extraordinária, a tese da «autonomia da tecnologia» é (mal) compreendida como uma manifestação, em versão pessimista, de determinismo tecnológico devido à sua imagem de uma sociedade capturada pelo movimento de mudança permanente provocado pelos avanços tecnológicos e pelo condicionamento dos fins humanos às exigências do progresso científico-tecnológico e do seu padrão” (2003, p.129). No que concerne à ideia de aceleração, o mesmo autor fala na existência de uma “perspectiva eufórica (…) conectada com o crescimento económico” que coexiste com “uma visão oposta de incerteza e indeterminação sobre o destino humano e degradação do ecossistema como consequência dos principais modelos e sistemas tecnocientíficos contemporâneos.” (Garcia, 2002, p.80). Hermínio Martins pensa igualmente acerca destas noções advertindo para o facto da decisão política ou social ser preterida em favor da regulamentação efectuada mediante a tecnologia e a economia (2003, p. 25). Nas suas palavras, “[o] remédio para os danos, desastres e acidentes tecnológicos de todo o tipo é sempre mais e melhor tecnologia, mais investimento na pesquisa e desenvolvimento, e na sua implementação rápida: la

41 tecnique d’abord, nunca o social d’abord ou o politique d’abord.” (2003, p. 25). Ainda tendo em conta a mesma preocupação José Luís Garcia salienta “O pressuposto modernista que sustentou a convicção quase universal de que o progresso tecnológico e o bem humano são coincidentes permitiu a rarefacção das preocupações éticas, filosóficas e da linguagem dos valores em geral ou a inscrição dessas preocupações numa mera perspectiva utilitária. Neste processo, o próprio ideal de política como empresa ao serviço da razão prática pôde transformar-se e soçobrar predominantemente em tecnocracia” (Garcia, 2002). George Bassala, historiador da tecnologia, afina pelo mesmo diapasão, salientando que “nem o registo histórico nem a nossa compreensão do papel actual da tecnologia na sociedade justificam um regresso à ideia de que existe uma conexão causal entre avanços na tecnologia e um melhoramento global da raça humana” (2001 [1988], p.230). José Gil intervém também nesta reflexão alertando para a tendência de submissão de todos poderes ao domínio totalizante da tecnologia que, como afirma, mantém uma relação inextrincável com o capitalismo: “O que se passará realmente com o progresso acelerado dessas tecnologias num mundo em que esse mesmo progresso é dominado pelo capitalismo – ninguém o poderá dizer, hoje. Uma das características do discurso utópico que o acompanha é a de pressupor que as novas tecnologias acabarão (supondo-se mesmo que o façam já) por impor o seu domínio a todas as outras formas de poder: ao poder político, ao poder económico, ao poder dos afectos e da vontade do homem” (2003, p.16). Aludindo à dominância da visão capitalista mas elaborando a sua reflexão de forma mais enfática, Winner questiona-nos: “(…) [W]ho decided that market settings and market motives are the best means for deciding humanity’s long term future?” (2003a, p.13)

2.2. Conclusão

Neste capítulo tentámos evidenciar algumas características relevantes associadas à cibercultura. Como tópico fundamental destacámos, em primeira instância, uma profunda imbricação entre tecnologia e cultura que se manifesta em diversos domínios da vida social contemporânea. Esta é originada pela conversão dos sistemas analógicos em digitais que permitem uma mais intensa e profusa circulação de dados e a possibilidade de transformação em dados abstraccionais e matemáticos de objectos

42 materiais e imateriais. Aqui parece radicar a essência do cenário cibercultural, proporcionador de uma noção de aceleração propaladamente indetenível e exponencial e da civilização tecnológica. Confrontámos entendimentos distintos sobre o significado da relação entre tecnologia e cultura no mundo contemporâneo. Estas posições podem ser enquadradas em dois grandes grupos, por um lado, as que salientam os riscos, perigos e incertezas associadas a estas dinâmicas e, por outro lado, as que vêem nestas possibilidades a abertura a novas configurações sociais e humanas. Apesar do texto apresentado poder denotar uma certa partilha por posições de carácter mais crítico não deixamos, contudo, de considerar os aspectos mais dilemáticos dos dois posicionamentos

43 3. SHINYA TSUKAMOTO: CONTEXTO E TEMÁTICAS DA SUA FILMOGRAFIA

(…) [U]p to the age of thirty, I felt protected by the city, as if it were my mother, a sister city with which I had grown up. However I was afraid of the countryside where my grandparents lived, where everything was surrounded by darkness. So each time I returned to , I was relieved to smell gas and exhaust fumes. Yes, I was afraid of nature. One I have reached the age of thirty, I started to see Tokyo in a different light: a crossroads for people coming from every direction, surrounded by nothing but cement. At that time, I used to spend most of my time at home. I worked a lot by fax machine or in the area close to my home and the world reached me through television, news programmes or newspapers. Basically I was using my mind alone to live, almost without using my body. This is where that image of the city which is shrinking and the people living in it sardined into small rooms, working only by computer, comes from. The mind expands and the body reduces itself. Shinya Tsukamoto (2004), La Mutazione Infinita di Tetsuo il Fantasma di Ferro

O presente capítulo inicia-se com uma exposição do percurso pessoal e artístico de Shinya Tsukamoto desde os primeiros anos de vida até ao início da década de 1990, data da conclusão do díptico Tetsuo , objecto de análise desta dissertação. A nossa opção por esta limitação temporal, que necessariamente oblitera grande parte do trabalho do autor, até aquele que pode ser considerado a sua produção mais madura e mais depurada do ponto de vista expressivo e técnico, relaciona-se com a indispensabilidade de nos restringirmos a dados concernentes ao objecto de estudo seleccionado. Ainda assim, estes dados podem resultar, por vezes, algo extensos ou originadores de digressões temáticas. Esta reflexão sobre o realizador é justificada pela tentativa de compreender alguns pressupostos centrais dos dois filmes que são objecto de análise desta dissertação. Apreender o seu percurso permite-nos perceber certas opções associadas ao seu trabalho

44 a que de outra forma não poderíamos aceder. Isto não significa, contudo, que atribuamos ao díptico Tetsuo uma clausura semântica baseada em supostas intenções do autor. Pelo contrário consideramos, como enfatizam Aumont e Marie acerca da tarefa de análise fílmica, que “si una parte de las intenciones del cineasta consiste en permanecer inaccesible ante el analista, este ultimo es libré, a la inversa, de desarrollar su trabajo sin sentirse limitado por las fronteras de esta intencionalidad del creador.” (1993 [1988], p.283). No entanto, aceder às influências declaradas que o autor procura expor na sua obra, às suas obsessões temáticas e preocupações de carácter filosófico, ao seu percurso de vida, às experiências efectivadas, aos constrangimentos ou dificuldades identificadas na produção dos filmes e às suas estratégias de superação, oferece contributos válidos para uma leitura mais aprofundada de uma obra que é intencionalmente complexa, eivada de simbolismos e acentuadamente experimentalista na sua concepção e concretização. Esta aproximação permite-nos compreender ainda muitas das opções técnicas e estéticas mobilizadas que, em muitos casos, mais do que deliberadamente alternativas são o resultado da tentativa de debelar dificuldades orçamentais. Na segunda parte deste capítulo a nossa atenção centra-se no período respeitante à produção do díptico Tetsuo procurando compreender o seu contexto e vicissitudes que determinaram a própria natureza dos filmes em si mesmos e na forma como foram apropriados pelo público. Seguidamente faremos uma pequena derivação temática que pretende situar o cinema deste realizador no quadro da produção cinematográfica nipónica e as relações desta cinematografia com o Ocidente. Tom Mes, biógrafo de Tsukamoto, enfatiza a ideia de que este realizador abriu as portas para o reconhecimento do cinema japonês contemporâneo no Ocidente depois de décadas de um acesso fragmentado e pouco elucidativo, atribuindo-lhe mesmo a responsabilidade pela atenção que foi posteriormente dedicada a outros cineastas da sua geração. (Mes, Sharp, 2004, p. 143) Embora esta ideia não aparente ser consensual entre os diversos estudiosos do cinema nipónico, que continuam a apresentá-lo como um realizador marginal, pensamos que é importante reportarmo-nos a este tema tentando demonstrar algumas das nossas intuições. Finalmente, apresentaremos uma breve panorâmica sobre a obra posterior de Tsukamoto, no sentido de demonstrar a recorrência temática dos seus trabalhos, que

45 apesar de reformulados do ponto de vista estético, técnico e até narrativo, e tendo abandonado o género fantástico ou de ficção científica que esteve presente na primeira fase, continuam a incluir o mesmo tipo de reflexões.

3.1. O contexto do imaginário

Shinya Tsukamoto nasce a 1 de Janeiro de 1960 na capital japonesa, Tóquio, num período de vastas mutações urbanas decorrentes da reconstrução arquitectónica da cidade devastada pelos bombardeamentos norte-americanos de 1945. Impulsionadas pelo crescimento económico assinalável e pelo entusiasmo gerado pela preparação para a recepção dos Jogos Olímpicos de 1964, que visavam devolver ao Japão alguma notoriedade internacional, as edificações em curso tomaram conta da cidade. Shinya Tsukamoto recorda esta fase da sua infância com uma sensação de asfixia, como se todos os espaços vazios que circundavam a sua zona residencial, o bairro de Shibuya 7, se fossem preenchendo subitamente cerceando o seu espaço de liberdade. Tsukamoto explica esta sensação ao autor de Iron Man. The Cinema of Shinya Tsukamoto , Tom Mes, dizendo “compared to children who grew up in the countryside, who could play on the mountains or fish in the river, us kids were really underprevileged. I was kind of boxed in between the buildings and construction sites.” (2005, p.16). A lembrança destes cenários de construção acelerada e permanente, conjugada com a constatação de quietude e fixidez de alguns espaços recônditos que mantinham ainda o aspecto da pós- aniquilação gerada pela guerra, marcaram a memória do realizador oferecendo contributos para a definição de grande parte dos seus ambientes fílmicos. Como refere Alberto Momo, “(…) at a certain point, these buildings/brothers [assim designados porque haviam emergido durante a infância de Tsukamoto e acompanhado o seu crescimento, tornando-se familiares] just become too big compared to his (our) size and their presence became threatening and opressive. It is therefore not just by chance that in the director’s films the skyscrapers and towers are often shot below looking up, like a little brother who looks fearfully and incredulously up at how monstrously big his helder brother has grown” (2005, p.7). A cidade que antes se caracterizava pelas casas

7 O bairro de Shibuya , situado na parte ocidental de Tóquio, é contemporaneamente uma importante zona comercial e de entretenimento construída em torno da estação ferroviária com a mesma designação.

46 térreas de madeira, cenário permanente do cinema de Yasujiro Ozu, era agora povoada pelos enormes arranha-ceús de betão, legitimados pela política de expansão vertical do início dos anos 1970, e esventrada por um complexo sistema de estradas que ocupavam todos os espaços vazios. O Shinkansen , na altura considerado o comboio tecnologicamente mais avançado do mundo entra em funcionamento em 1961 e, ainda nesse período, inicia-se a construção da extensa rede ferroviária subterrânea que passará a determinar os fluxos urbanos. Nesta fase, Tsukamoto é um admirador da literatura de 8, escritor nipónico de histórias de mistério e terror (muito populares durante os anos que correspondem à infância do realizador), e das séries televisivas da época como Ultra-Q, protagonizadas por monstros sequiosos de destruição. A sua preferência centrava-se, contudo, nos eiga , os filmes de monstros gigantescos cujo protagonista mais popular é 9. Tsukamoto admite que gostava particularmente de outro desses monstros, Gamera , tendo alterado a sua preferência quando compreendeu, mais tarde, o significado ideológico do réptil enfurecido que se tornou ícone da era atómica. Estimulado pelos kaiju eiga a que assistia nas salas de cinema durante as férias de verão na companhia da mãe, Mieko, e do irmão Koji, dois anos mais novo, e pelas séries televisivas de imagem real ou de animação que sustentavam igualmente esse imaginário de criaturas fantásticas, Tsukamoto explora a sua criatividade desenhando e alimentando o sonho de tornar-se autor de animação.

8 Como assinala Tom Mes (2005, p.16) Edogawa Ranpo é o pseudónimo do escritor Taro Hirai, uma tentativa de tradução fonética para o japonês do nome do autor que constituía a sua principal fonte de inspiração, . O trabalho de Rampo foi mais tarde adaptado ao cinema pelo realizador em Sôsejii ( Gemini, 1999 ), o único filme de Tsukamoto editado em Portugal ( Atalanta Filmes ) para além dos que são objecto de análise nesta dissertação. 9 Godzilla é a adaptação fonética do nome do monstro da ficção nipónico originalmente designado Gojira . No entanto, a designação Gojira era já na sua génese uma formulação híbrida resultando da mistura da palavra inglesa gorilla e da palavra japonesa kujira que significa baleia . Gojira , filme realizado em 1954 por Ishiro Honda e produzido pela Toho, mega estúdio cinematográfico de uma das épocas douradas do cinema japonês (que se mantém em funcionamento e produziu alguns dos filmes de Tsukamoto), obteve um sucesso imediato em particular devido ao trabalho de efeitos especiais da autoria de Eiji Tsuburaya, posteriormente criador de outros monstros cinematográficos como Rádon , Varon , Matango , Monthra , Gidora , entre outros (Tessier, 2003 [1997], p.64). A história da personagem pré-histórica acordada pela explosão nuclear conheceu também um enorme sucesso nos EUA, mas pareceu adequado aos distribuidores ocidentais alterar a sua denominação original devido à sua sonoridade lhes parecer demasiado “asiática” o que a tornava alegadamente pouco atractiva para o público do Ocidente. Aliás, não apenas o nome da criatura foi alterado, mas também o filme de Honda foi alvo de modificações que passaram mesmo pela inclusão de novas cenas filmadas em Hollywood. Só recentemente, em 2004, por ocasião da comemoração do seu 50º aniversário, o filme estreou nos E.U.A. em versão descrita como “original e integral”.

47 Durante os anos iniciais da sua vida, Tsukamoto desenvolve uma relação de grande proximidade com o irmão, que se interromperá durante a juventude, para voltar a fortalecer-se na idade adulta, quando começam a trabalhar juntos em algumas produções do realizador. Quanto à mãe, Tsukamoto atribui-lhe a importância concedida às mulheres na sua cinematografia. Sobre o pai, Kazuo Tsukamoto, diz a Tom Mes “my father liked cars and fancy clothes, and he would prefer to spend his money on those things than on his family” (2005, p.19). Foi, contudo, este alegado hábito do pai de comprar objectos supérfluos que colocou Tsukamoto em contacto com a sua primeira câmara, uma câmara de 8mm. A partir de 1974, com apenas 14 anos, Tsukamoto reúne os seus amigos de escola e, contando com a colaboração do irmão 10 , começa a realizar filmes de modo regular. Os temas eleitos são inspirados nos kaiju eiga e nas histórias de autores de manga 11 . Por esta altura, Tsukamoto começa a exibir os seus filmes na escola e a alcançar enorme sucesso entre os colegas que se oferecem para participar nas suas produções. O próprio autor, apesar de consciente da enorme inexperiência destes primeiros exercícios (em relação à exibição dos quais manifesta, ainda hoje, enorme relutância) considera-os válidos na medida em que lhe serviram como laboratório para questões técnicas complexas que viria mais tarde a aprimorar. Pensa igualmente que muitas das ideias que posteriormente veio a desenvolver já estavam aí esquematizadas. Durante os seus anos de liceu e primeiros anos de faculdade, Tsukamoto descobriu o cinema para além dos kaiju eiga que haviam marcado de modo indelével a sua adolescência. Cada vez mais envolvido na realização de filmes, embora ainda de modo amador e encarando estes filmes como exercícios para trabalhos futuros, sentiu necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre cinema. Foi por essa altura, como relata a Tom Mes, que viu o filme Soylent Green de Richard Fleischer ( À Beira do Fim , 1973) o que considerou uma experiência reveladora das potencialidades criativas da arte

10 Shinya Tsukamoto relata que desde as primeiras experiências que fez com a câmara de 8 mm ficou impressionado com a capacidade de representação do seu irmão Koji. Em 1995 atribuiu-lhe o papel principal no seu filme Tôkiô Fisuto ( Tokio Fist ) 11 De acordo com o guia Termos essenciais do Japão Contemporâneo , editado pelo site Clubotaku, manga “é a designação japonesa para banda desenhada. (…) Existe ainda o termo Komikku, que não é mais do que uma tradução do termo americano “comic”, mas não pegou no público em geral.” Sobre esta temática consultar Manga: Sixty Years of Japanese Comics de Paul Gravett (2004, Laurence King Publishing). O livro inicia-se com a tentativa de definição do termo e com a constatação da sua vastidão e complexidade.

48 cinematográfica: “watching a movie about people who were turned into food was very exciting, because I felt that in film you could do anything.” (2005, p. 25) Também durante este período, Tsukamoto abriu os seus horizontes a outras experiências fílmicas que incluíram não apenas o visionamento de produções ocidentais, de que foi consumidor ávido, mas também de alguns dos principais filmes dos grandes mestres do cinema japonês. Tsukamoto lamenta não ter dedicado mais tempo nessa época à contemplação de algumas obras da indústria cinematográfica nipónica que hoje considera fundamentais para a sua cultura cinematográfica. Ainda assim, a atenção centrou-se em por sugestão de um amigo que lhe disse que era impossível fazer cinema sem conhecer o legado deste autor. O realizador considera que só depois desta experiência compreendeu as possibilidades expressivas da iluminação, elemento que mobiliza de forma enfática em toda a sua filmografia. Afirma de modo categórico “I discovered then that you can work with light to manipulate the image.” (2005, p. 25). Tsukamoto cita também como referências fundamentais para a sua obra alguns nomes notáveis do cinema japonês, ainda que pouco conhecidos no ocidente, que terá descoberto nesse período. Seishun no Satetsu ( Bitterness of Youth, 1974 ) de Tatsumi Kumashiro é um dos primeiros filmes nipónicos a que assiste fora do género dos kaiju eiga , que exercerá sobre si enorme influência e terá profundas repercussões sobre o seu trabalho. A obra de Sogo Ishii, realizador que frequenta a mesma Universidade que Tsukamoto alguns anos antes, e, em particular, os filmes Kuruizaki Sandâ Rodo ( Crazy Thunder Road , 1980) e Bakuretsu Toshi ( Burst City, 1982) influenciarão alguns dos seus trabalhos futuros, principalmente pelo carácter experimental, podendo mesmo ser encontradas algumas similitudes temáticas, em particular nos filmes em análise. Ainda em termos estilísticos, quer na utilização do som, que assume uma importância crucial nos seus filmes, quer nas imagens fragmentadas e no ritmo alucinado, é possível detectar algumas das influências provenientes do trabalho de Ishii. O momento da entrada na universidade inaugura uma nova etapa na vida de Tsukamoto que se traduz num desapontamento com o seu trabalho fílmico. O autor, satisfeito até certo ponto com a sua eficácia técnica, lamenta a ausência de profundidade de conteúdo nas suas obras. Esta constatação conduz a uma ruptura que se prolonga por um extenso

49 período. No entanto, Shinya Tsukamoto canaliza a sua criatividade para outras actividades que estavam já presentes no seu quotidiano, o teatro e as artes plásticas. Tsukamoto começa a frequentar a Universidade de Nihon em 1978 onde opta por estudar Pintura a Óleo 12 . Apesar de o seu interesse pelo cinema continuar latente, como virá a assumir mais tarde, nesse período de total desencantamento com a sua expressão fílmica não vê qualquer interesse em aprofundar os estudos nesta área. No mesmo ano, constitui na Universidade uma trupe teatral que designa Yumemaru (que significa literalmente Círculo de Sonho ). É através deste grupo de teatro que Tsukamoto conhece Nobu Kanaoka que se tornará uma colaboradora assídua dos filmes que realizará no início da sua carreira e que lhe darão reconhecimento internacional. Kanoaka irá desempenhar papéis fundamentais nos dois filmes em análise e também nos dois filmes anteriores a Tetsuo (Tetsuo: O Homem de Aço , 1989), Futsû Saizu no Kaijin ( The Phantom of Regular Size , 1986) e Denchû Kozô no Bôken ( The Adventures of Denchu Kozo, 1987) que podem ser considerados esboços ou trabalhos preparatórios do díptico Tetsuo . Se damos importância ao que relatámos até este momento é porque para perceber a forma como o autor trabalha a temática da cibercultura isso implica dar nota dos seus ambientes de inspiração e das múltiplas influências a que foi exposto. Na sua incursão na escrita, encenação e representação teatral, Tsukamoto foi fortemente influenciado pela cena experimentalista e underground que teve o seu auge no Japão entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970. Estas tendências influenciaram diversos performers , actores e artistas plásticos que estiveram envolvidos nestas produções. É neste contexto que Tsukamoto conhecerá Kei Fujiwara, a protagonista feminina de Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989) e também sua assistente de realização e operadora de câmara. Depois de terminado o filme, caracterizado por um trabalho de intensa vitalidade criativa e desgaste causado pela inexperiência na produção e recursos escassos, os dois nunca mais estarão em contacto (à excepção de uma carta que Tsukamoto lhe dirige para lhe dizer o quanto apreciou a sua actuação numa peça de

12 É curioso referir que este interesse artístico é comum a dois grandes mestres do cinema nipónico, Akira Kurosawa e Kenji Mizoguchi, que introduziram elementos dessa sensibilidade plástica no seu trabalho fílmico. Também Tsukamoto, em particular nos seus trabalhos mais recentes, apresenta indícios dessa formação clássica na composição de muitos planos. Mas, logo desde o início da sua expressão fílmica, é notória a preocupação com a distribuição dos elementos no plano visual assim como com a iluminação e a cor.

50 teatro a que assistiu escondido entre a assistência). Kei Fujiwara reconhecerá o talento criativo de Tsukamoto ao realizar Organ (1996), filme que rende uma clara homenagem ao trabalho estético e narrativo do realizador. Tsukamoto afirma que durante o seu tempo de faculdade encena cerca de dez peças de teatro mas que todas são variações de apenas três temas sobre os quais labora obsessivamente, a saber: a primeira sobre operações plásticas em que os indivíduos de uma cidade acabam todos com o rosto igual, uma segunda acerca de crianças que vendiam planos de suicídio a adultos deprimidos e a terceira a versão original, depois adaptada ao cinema de Denchû Kozô no Bôken (Mes, 2005, p.34). Estes três temas têm ainda um mote comum, a asfixia e depressão motivadas pela urbanidade decorrentes, em larga medida, do ímpeto tecnológico da vida contemporânea na grande metrópole que são transportados posteriormente para os seus filmes. É possível encontrar nestas formulações temáticas e estéticas a forte influência dos textos independentes e abstractos de Shuji Terayama e Juro Kara, os nomes fundamentais do movimento underground de 1960/70, que desenvolveram trabalho artístico no campo teatral e cinematográfico. A criatividade e o dinamismo de Tsukamoto e do grupo Yumemaru estendem-se ao próprio espaço de representação das suas performances teatrais. Optam por não ficar confinados a um espaço fixo, construindo uma tenda que possa ser deslocada e montada em diversos locais para servir de palco e concebem e constroem os seus próprios cenários. Depois de concluir o curso universitário em 1982, Tsukamoto é conduzido a fazer opções acerca do seu futuro. Partindo da convicção firme de que pretende desenvolver um trabalho criativo sem ter de se submeter às regras rígidas da rotina de um comum trabalhador assalariado 13 , opta por declinar o apoio da família na obtenção de um emprego, o que lhe dificultaria a tarefa de o abandonar como era seu intento logo que tivesse condições para se dedicar às actividades artísticas. Julga também que se conseguir obter um lugar numa produtora terá oportunidade de ter acesso a câmaras de

13 No Japão, a expressão trabalhador assalariado designa habitualmente os empregados de escritório. Esta é uma personagem recorrentemente retratada na filmografia de Tsukamoto, à qual se atribui uma estética e uma conduta específica. Esta personagem é protagonista dos dois filmes em análise sendo interpretada por Taguchi. Em Tokyo Fisuto ( , 1995) e Baretto Baree ( , 1998), Shinya Tsukamoto interpreta o papel de trabalhadores assalariados. Para construir a personagem que encarna no segundo filme mencionado, o autor baseou-se na sua curta mas marcante experiência enquanto trabalhador numa produtora de publicidade.

51 35 mm que poderá vir a utilizar. Tsukamoto trabalha durante cerca de 18 meses numa produtora de anúncios publicitários, a Ide Productions . Para conseguir o objectivo de se tornar realizador da empresa (que no início lhe atribui outras funções), Tsukamoto faz longas jornadas de trabalho. Sobre essa experiência afirma “I was living a really salaryman live. That was an important experience for me in many different ways. I learned a lot about how society worked, the pressure you have to live with if you’re a corporate employee working long hours. It was a major inspiration for Tetsuo ” (em Mes, 2005, p.35). Contudo, o esforço e dedicação que imprime a essa tarefa não produz resultados gratificantes já que Tsukamoto é obrigado a abandonar o seu estilo particular quando realiza filmes para conhecidas marcas publicitárias e a conformar-se com as normas e os estilos narrativos e estéticos do mainstream . Em 1985, Tsukamoto dedica-se mais uma vez ao teatro fundando o grupo teatral Kaiju Shiatâ , que significa monstro marinho . Como afirma Mes, “Tsukamoto picked up his theatre work where we he had left off, with the same love of experimentation and the same devotion to build the right ambience with all means at his disposal” (2005, p.36). Este regresso conduzirá em breve ao abandono do emprego na produtora pois as duas actividades tornam-se inconciliáveis. O novo grupo é composto por antigos membros da Yumemaru e por novos colaboradores como os reconhecidos actores do teatro experimental Kei Fujiwara e o seu marido Kenji Nasa, que fora membro da companhia de Juro Kara que tanto influenciara Tsukamoto com o seu experimentalismo. As actuações são feitas numa tenda da autoria do grupo que tem a forma do monstro marinho que lhe atribui a designação. O grupo lida com todas as tarefas necessárias à concepção das peças, desde os adereços e guarda-roupa, até à iluminação, música e som. A experiência permite-lhes, ao longo do tempo, um cada vez maior aperfeiçoamento dos recursos. No entanto, o grupo não abdica da índole artesanal que imprime aos seus materiais cénicos e instrumentos técnicos. Às influências anteriormente assinaladas agrega-se a estética e a filosofia do movimento Punk, em particular a atitude do-it- yourself (DIY) , expressas nas suas estratégias de improvisação, aproveitamento de materiais, recusa de sofisticação dos equipamentos e trabalho em equipa para montagem de todos os elementos. Esta está ainda presente nas temáticas encenadas pelo grupo, plenas de negativismo na conceptualização da sociedade. Nos filmes realizados

52 posteriormente poderemos identificar vários elementos identificadores desta influência, podendo mesmo considerar-se que perpassa a sua obra de uma forma plena quer nos recursos técnicos, expressivos ou simbólicos 14 . No início de 1986, Tsukamoto decide voltar a filmar com a câmara de 8mm. Este novo entusiasmo é suscitado pelos bons resultados das suas performances teatrais não apenas devido ao conteúdo mas, fundamentalmente, devido aos cenários e adereços que a equipa consegue elaborar. Tom Mes relata a reflexão que o autor fez nesse momento da sua vida e que o levou a querer filmar novamente: “When kaiju shiata held its final performance of The Adventure of Denchu Kozo in late October 1986, the prospect of simply thowing their handiwork into the bin gave him the idea of mounting a film version of the story” (2005, p.39). É neste momento que Tsukamoto opta por reiniciar a actividade de cineasta. Até ao momento tinha absorvido uma série de influências e definido de modo claro e, até certo ponto obstinado, os seus principais interesses temáticos. Shinya Tsukamoto retoma a sua expressão fílmica, após um interregno de sete anos que lhe permitiu conhecer e consolidar novas linguagens e campos de experimentação artística. Em 1987, realiza Denchû Kozô no Bôken ( The Adventures of Denchu Kozo ), o filme que viria a assinalar o início da sua filmografia oficial. No entanto, a primeira incursão cinematográfica deste novo período acontece no ano anterior e consiste numa curta-metragem de 18 minutos que tem como objectivo inicial a experimentação de novas técnicas, nomeadamente, a animação stop-motion , que virá a utilizar de forma sistemática no díptico Tetsuo . Este recurso, que evoca a mais elementar técnica cinematográfica, foi uma das soluções criativas encontradas por Tsukamoto para debelar as insuficiências de orçamentos praticamente inexistentes necessários à concretização de alguns efeitos especiais mas assinala também o início da manifestação de uma expressão própria muito particular que virá, mais tarde, a aperfeiçoar-se. Este é um trabalho de cariz artesanal, muito distanciado da complexidade tecnológica já presente noutros trabalhos cinematográficos do mesmo período (que servem, ainda

14 Um exemplo claro é o X impresso na t-shirt de Yatsu, personagem interpretada por Shinya Tsukamoto em ambos dos filmes do díptico Tetsuo , símbolo comum nos trabalhos gráficos associados ao estilo Punk. Esta simbologia permite igualmente estabelecer uma continuidade entre os dois filmes. A personagem usa a t-shirt estampada com um X no final do primeiro filme, mais concretamente na sequência do confronto final, e também na cena inicial do segundo filme. Para além do raccord evidente, este elemento visual tem o intuito de caracterizar psicologicamente a personagem contribuindo para reforçar a generalização da sua designação como cyberpunk, a forma como ficou conhecida.

53 assim, de fonte de inspiração para o realizador como The Fly de ( A Mosca , 1986) ou Alien 15 de Ridley Scott ( Alien: O oitavo passageiro , 1979), entre outros), mas que é denunciadora da acentuada dimensão experimentalista que continuará a pautar o seu trabalho e se aplicará aos seus exercícios de construção fílmica. Por esta razão, Tom Mes estabelece uma comparação entre Shinya Tsukamoto e um dos pioneiros da história do cinema, George Mèlies: “Both man aimed at creating fictional worlds on film and explored the inherent possibilities of the medium in order to bring that world and their imagination to life on the screen” (2005, p. 46). O trabalho técnico que Tsukamoto desenvolveu neste período, em particular na animação fotograma a fotograma com pessoas, em vez de objectos inanimados, tem sido considerado devedor da influência de Jan Svankmajer, realizador checo, que ao longo da sua carreira desenvolveu trabalhos de natureza semelhante 16 , embora Tsukamoto não reconheça de forma explícita esta influência.

3.2. Génese dos filmes: origens temáticas e expressivas

Apesar de insatisfeito com a construção narrativa do primeiro exercício fílmico deste período (filmado em apenas cinco dias nas instalações da Ide Productions ), Tsukamoto edita uma versão final do filme, que denomina Futsû Saizu no Kaijin ( The Phantom of Regular Size , 1986) 17 , procurando analisar os resultados técnicos e expressivos obtidos.

15 Em Alien , Tsukamoto destaca em particular o trabalho do artista plástico suíço, H. R. Giger, designer dos cenários e das criaturas que povoam o filme e que lhe valeram a atribuição de um Óscar em 1980. 16 Apesar de recorrentemente utilizada por Jan Svankmajer, esta técnica e a sua aplicação criativa não é exclusiva do autor, sendo utilizada por diversos artistas. William Kentridge, artista vídeo sul-africano, aplica também de modo recorrente esta técnica nas suas instalações. Exemplos da aplicação desta técnica são as suas obras expostas pela primeira vez em Portugal no âmbito do festival Temps d´images 2005 . No conjunto de trabalhos apresentados no Museu do Chiado estiveram integradas as instalações Jouney to the Moon (2003) e 7 Fragments for Georges Méliès , incluindo Day for Night (2003), bem como os filmes de animação Felix in Exile (1994) e History of the Main Complaint (1996). 17 A única edição vídeo deste filme foi feita pelo PIA Film Festival (PFF), depois de ter sido atribuído o prémio principal do Festival ao realizador pelo filme Denchû Kozô no Bôken ( The Adventures of Denchu Kozo , 1987). Como o filme premiado tinha a duração de apenas 45 minutos, isso permitiu a inclusão na edição vídeo da curta-metragem e ainda de um documentário sobre o realizador e do trailler do filme Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989), na altura já praticamente concluído. Depois desta edição (disponibilizada apenas no Japão) Tsukamoto não autorizou mais nenhuma edição de Futsû Saizu no Kaijin ( The Phantom of Regular Size , 1986). Nos conteúdos extra do DVD Shinya Tsukamoto, La Mutazione Infinita di Tetsuo il Fantasma di Ferro editado pela Rarovideo, visione underground, em Setembro 2004, concretamente no documento audiovisual Una videocosa di Enrico Ghezzi , este crítico de cinema faz um comentário à obra de Tsukamoto, em particular aos filmes da série Tetsuo. Atrás de Ghezzi, um televisor que ocupa quase a totalidade do enquadramento, exibe integralmente o filme de

54 Este filme apresenta já, embora de modo esquemático, a história de Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989), contando também com o mesmo elenco e o mesmo grupo de personagens principais do filme posterior. É também neste período, de acordo com Tom Mes, que se inicia a colaboração entre Tsukamoto e Tomoworo Taguchi, o protagonista do díptico Tetsuo e interveniente na restante filmografia do realizador. Taguchi era na altura o vocalista da banda musical de inspiração Punk denominada Bachikaburi e estava simultaneamente envolvido na cena teatral underground onde estabeleceu o primeiro contacto com Tsukamoto. Tendo iniciado a sua carreira cinematográfica no papel do trabalhador assalariado de Tetsuo , é hoje um actor conceituado e um dos poucos elementos da equipa inicial de Tsukamoto que continua a colaborar com o seu trabalho. Futsû Saizu no Kaijin (The Phantom of Regular Size , 1986), o título da curta-metragem e a ideia que lhe subjaz estaria presente de forma explícita nos dois filmes realizados em seguida. De acordo com Tom Mes, o título foi traduzido de forma imprecisa para a língua inglesa estando o termo Kaijin mais próximo da noção de “monstro” ou de “homem monstruoso” do que de fantasma, “which reveals not simply Tsukamoto’s love for monster movies, but is identification with the monster. This identification makes the monster regular sized, makes it human. When he sees himself as the monster, he sees himself as spurned by society, misunderstood, a freak among man.” (Mes, 2005, p. 41) Mesmo que optemos por não aprofundar a dimensão autobiográfica que Mes atribui à ideia dos “monstros de tamanho normal” 18 , teremos necessariamente de referir o aparecimento desta frase como epígrafe, quer nos dois primeiros filmes atrás enunciados quer em Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989), o que denuncia a preocupação do autor em invocar esta temática. Contudo, a expressão que os encerra, Game Over ,

1986. Depois da exibição, Ghezzi explica que as imagens que vimos são provenientes de uma filmagem clandestina efectuada durante a exibição do filme numa sala de cinema. 18 Numa entrevista concedida a Enrico Ghezzi (que integra os conteúdos extra do DVD Shinya Tsukamoto, La Mutazione Infinita di Tetsuo il Fantasma di Ferro , Rarovideo, visione underground, Setembro 2004), Tsukamoto afirma que quando era jovem tinha muitos complexos associados ao seu aspecto físico (por exemplo, devido ao facto de ter os braços peludos o que, segundo afirma, não é comum entre os japoneses). Isso fê-lo identificar-se grandemente com as personagens de Freaks ( A Parada dos Monstros , 1932), de Tod Browning, quando viu o filme no cinema. O filme exibe, numa mescla de documentário e ficção, indivíduos com deformidades reais que actuam como atracções num circo. Como afirma Claude Beylie sobre a temática deste filme: “(…) trata-se de (…) um mergulho «nos abismos do eu doente» que nos ensina que a desumanidade mais terrível que podemos conhecer é o nosso próprio eu. O slide show de loucura torna-se um fascinante espectroscópio da nossa própria monstruosidade.” (1997 [1989], p. 89)

55 demonstra também a tentativa de encerramento de um ciclo que finalmente se concretiza nos filmes posteriores. Estes abandonam o prefácio e o posfácio anteriormente recorrentes passando a assumir maior complexidade e densidade temática, o que não significa, contudo, a ultrapassagem das preocupações originárias do autor mas antes a sua reelaboração. Denchû Kozô no Bôken ( The Adventures of Denchu Kozo , 1987) conta a história de um adolescente afectado por uma extrema deformidade, um poste eléctrico que emerge das suas costas, que o torna alvo de escárnio por parte dos seus colegas de escola, à excepção de Momo, a rapariga destemida que o defende. Contudo, esta malformação torna-se um benefício quando, transportado para o futuro, Denchû Kozô, literalmente “o rapaz do poste eléctrico”, é conduzido a lutar contra um trio de vampiros que pretende mergulhar a humanidade nas trevas eternas. O rapaz opõe-se-lhes (depois de lhe ser revelado, pelo seu antecessor, o seu destino como iluminador de uma nova era) e evita que estes completem o seu desígnio de fazer eclodir a escuridão perpétua. Para essa tarefa é auxiliado por uma velha professora que o faz acreditar na sua força interior e que, no final, se revela ser a sua amiga de escola do tempo passado. É ainda ajudado pelos próprios vampiros que, afectados pela luxúria, corrompem a virginal criatura que alimenta a bomba de obscuridade e que deveria permanecer intocada até ao momento da sua plena maturação correspondente à finalização do projecto. A tecnologia, que se entretece com o humano e que é mobilizada para o bem, digladia-se com a sua utilização perversa. O autor apresenta-nos uma luta entre as possíveis mobilizações dos recursos tecnológicos numa oposição maniqueísta simbolizada pela luz (o poste eléctrico que ilumina) e as trevas (o mundo ideal dos vampiros), em que a primeira força resulta vencedora, salvando o mundo da destruição depois de um conflito decisivo. Nos filmes posteriores, e em particular nos filmes em análise, Tsukamoto introduzirá uma reflexão eivada de maior ambiguidade em relação à capacidade do indivíduo de utilização da tecnologia em prol dos seus intentos e relativamente ao desfecho de tal relacionamento. Este filme, filmado com a câmara de 8 mm com que iniciara as suas experiências cinematográficas, é vencedor, em 1988, do prémio principal do PIA Film Festival

56 (PFF) 19 . Este prémio constitui um incentivo especial para Tsukamoto já que surge no momento em que está quase finalizado o seu filme seguinte, Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989), cujo processo de elaboração fora tão complexo e intenso que conduzira ao desgaste físico e emocional do realizador e de toda a sua equipa que gradualmente abandonara o projecto. O processo de produção de Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989) fora iniciado imediatamente após a finalização de Denchû Kozô no Bôken ( The Adventures of Denchu Kozo , 1987) que se iniciara também, sem qualquer interregno, após Futsû Saizu no Kaijin ( The Phantom of Regular Size , 1986). Neste período de intensa laboração, Tsukamoto exige bastante da sua equipa. Todo o esforço exigido é também assumido pelo próprio autor que, para além das múltiplas tarefas que assume nas diferentes etapas de produção dos filmes, participa também como actor. Embora nestes primeiros filmes não assuma nunca o papel principal, a sua participação é bastante marcante, em particular nos dois filmes do díptico Tetsuo em que desempenha o papel do antagonista 20 . Durante cerca de dois anos, utilizam a casa de Kei Fujiwara e do seu marido como centro de produção tornando-se este espaço também o cenário das filmagens de interior de Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989). Alojada num espaço exíguo e dispondo de um orçamento mínimo, a equipa recorre ao esforço de improvisação já ensaiado no teatro experimental e utiliza detritos metálicos que encontra em lojas de electrónica e de hardware para elaborar a caracterização dos cenários e das personagens principais. Os efeitos de caracterização implicam excesso de maquilhagem e colagem de peças metálicas com fita-cola extra-forte directamente no corpo dos actores. Estes processos obtêm ao longo do tempo de produção algum aperfeiçoamento permitindo melhorar a performance dos actores e minimizar o esforço. A personagem central, o homem assalariado que se transforma gradualmente em monstro metálico, interpretado por Taguchi, aparece nas cenas prévias à mutação com a sua própria roupa. As cenas

19 O PFF realiza-se anualmente na cidade de Tóquio desde 1977. De acordo com a descrição que apresenta no seu site oficial, o PFF tem com tema principal a descoberta e desenvolvimento de novos talentos na área do cinema (http://www.pia.co.jp/pff/english/top.html, 10/11/2006). 20 Shinya Tsukamoto continuará, até à actualidade, a participar nos seus filmes também como actor, assumindo, por diversas vezes, o papel de protagonista. Aliás, embora considere a realização a sua principal actividade profissional, Tsukamoto tem também uma já vasta filmografia como actor em filmes dirigidos por outros realizadores quer para cinema quer para televisão. De entre estes, de destacar a sua participação em Dead or Alive 2: Tôbôsha de 2000 e Koroshiya 1 ( Ichi the Killer ) de 2001 ambos realizados por Takeshi Miike, outro realizador da nova geração do cinema nipónico.

57 filmadas no interior da casa de Fujiwara implicam a utilização do seu próprio mobiliário como material cenográfico o que pressupõe, por vezes, a sua destruição. Para este terceiro filme, Tsukamoto opta por abandonar a câmara de 8 mm com que filmara até aí e começa a filmar com uma câmara de 16 mm que compra em segunda mão com o pouco dinheiro de que dispõe. O realizador faz esta opção partindo do pressuposto que isso facilitará a sua exibição futura em salas de cinema. Para além disso, Tsukamoto percebe que optando por esse formato consegue obter novos resultados expressivos, nomeadamente as tonalidades e o grão da película, que lhe parecem adequados às suas opções narrativas. Associado ao novo formato, Tsukamoto mantém o registo a preto e branco que já utilizara nos filmes anteriores. Esta combinação, estudada minuciosamente, visava enfatizar uma das suas dominantes temáticas, a representação do metal: “Pour Tetsuo, je voulais faire resortir une dominante argentée. Pour obtenir une belle palette de gris argentée sur un filme en noir et blanc, le 16 mm est indispensable. Le choix du noir et blanc n’est donc pas seulement dû à mon penchant pour les films futuristes italiens, mais plutôt à la nécessité de restituer l’aspect physique du fer.” (em AAVV, 2000, p.68). Todas as dificuldades decorrentes da falta de orçamento, aliadas à inexperiência da equipa, à convivência permanente e à dilatação excessiva do tempo previsto para a conclusão do projecto (que se prolonga por um ano e meio) são agravadas pelo perfeccionismo e perseverança de Tsukamoto na obtenção dos efeitos idealizados. Estes factores geram um conflito indissolúvel no seio do grupo de trabalho, conduzindo a que, gradualmente, todos abandonem o projecto. O único elemento do grupo de trabalho inicial que continua actualmente a trabalhar com Tsukamoto é Taguchi, o que é justificado pelo actor com o facto de ao longo da produção de Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989), ter tido a possibilidade de não viver na mesma casa que o resto da equipa o que lhe permitia, ao final do dia, afastar-se do projecto. Tsukamoto, isolado durante a pós-produção, elabora a edição do filme recorrendo a acelerações bruscas e às imagens captadas fotograma a fotograma, as soluções criativas já anteriormente ensaiadas para superar a ausência de acesso a outro tipo de efeitos especiais mais sofisticados para os mesmos resultados narrativos e expressivos. A preocupação com a banda sonora do filme, que considerava um elemento crucial mas que não se sentia habilitado para realizar, obrigou-o a procurar angariar mais dinheiro

58 para a conclusão do filme. Através de um acordo com a Japan Home Vídeo, em que se comprometia a atribuir-lhe os direitos da versão para vídeo (Mes, 2005, p.54), Tsukamoto consegue o financiamento que lhe permite contratar Chû Ishikawa. Este compositor, que se tornaria o responsável pela banda sonora de todos os seus filmes posteriores (à excepção de Hiruko: Yôkai Hantâ ( , 1991)), mostra-se capaz de compreender o registo sonoro metálico e excessivo que Tsukamoto pretende imprimir ao seu filme. Esta empatia gera-se também em torno das influências musicais partilhadas por ambos que se situam na música Punk, electrónica e New Wave do final dos anos 80. Concluído o processo de elaboração do filme, Tsukamoto está completamente falido. O próprio realizador transporta o filme até ao cinema Nakamo Musashino Hall , uma pequena sala de Arte & Ensaio onde sabia existir um projector de 16 mm, e negoceia a sua exibição. Pouco tempo depois, um crítico de cinema japonês, Yôichi Komatsuzawa, que tivera acesso ao filme propõe-lhe inscrevê-lo para competição na próxima edição do FantaFestival em Roma, a decorrer em Junho do ano seguinte. Tsukamoto aceita e envia para Roma a única cópia do filme (este é exibido sem legendas pois o realizador não tem dinheiro para pagar a tradução). Na edição 1989 do FantaFestival de Roma 21 , Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989) obtém o prémio principal. Depois da obtenção do prémio na Europa, Tsukamoto obteve reconhecimento imediato no Japão o que lhe permitiu superar os constrangimentos financeiros com que tivera que lidar até esse momento. Após falhada a possibilidade de realizar um projecto financiado pelo PFF, surgiu a proposta de adaptar ao cinema um manga de Daijirô Moroboshi. Este projecto, que viria a intitular-se Hiruko: Yôkai Hantâ ( Hiruko the Goblin , 1991), foi escrito e realizado por Tsukamoto mas contou com uma equipa vasta e especializada que interveio em todas as fases de produção do filme. Mesmo na escrita do guião, que consistiu na adaptação e fusão de duas histórias do autor de manga , Shinya Tsukamoto contou com a colaboração de um guionista da indústria cinematográfica nipónica, Kaizô Hayashi. Rompendo com o estilo independente e pouco convencional de Tsukamoto, este filme foi realizado de acordo com as regras da Toho, estúdio responsável pela produção, tendo ficado Tsukamoto à margem do processo de elaboração dos efeitos

21 O FantaFestival de Roma teve a sua origem em 1981, tendo-se dedicado desde a génese ao cinema Fantástico. Em Setembro de 2006 realizou a sua 26ª edição.

59 especiais, e igualmente do processo de edição, o que lhe terá retirado a dimensão autoral claramente expressa na sua restante filmografia. Este período não assinala apenas uma transformação na carreira do realizador mas um marco excepcional para o cinema nipónico no ocidente. Após a decadência dos grandes estúdios nos anos 1970, o cinema japonês desaparecera quase completamente da cena internacional, à excepção de algumas aparições muito pontuais em Festivais europeus. O ano de 1989, data da morte do imperador japonês Hirohito assinalou o fim e o começo de uma nova era no Japão, tendo a nova etapa sido designada por Hensei , o que significa literalmente “realizar a Paz Total” (Henshall, 2005 [1999], p. 237). Esta data assinalou também um recomeço para o cinema nipónico ao nível da sua notoriedade internacional. Fará sentido neste momento da nossa reflexão elaborar uma digressão temática que nos permita explicitar de forma mais clara, embora necessariamente sucinta, o percurso do cinema nipónico, do ponto de vista da técnico e expressivo, em particular nas suas relações com o Ocidente. Estas noções permitirão compreender melhor as rupturas e inovações propostas pelo cinema de Tsukamoto e alguns dos seus contemporâneos. Contudo, não é nossa pretensão tentar esboçar uma história do cinema nipónico mas apenas identificar algumas ideias essenciais acerca dessa cinematografia que iluminem a compreensão da matéria em análise.

3.3. O trabalho do realizador no contexto do cinema japonês

A atribuição, em 1951, do galardão máximo do Festival Internacional de Cinema de Veneza a Akira Kurosawa pelo seu filme Rashomon ( Às Portas do Inferno , 1950) permitiu ao Ocidente o acesso a uma vasta e profícua cinematografia até aí desconhecida. Gerador de grande entusiasmo internacional, este filme obteve no mesmo ano o prémio para melhor filme estrangeiro da academia de Hollywood. Não obstante o seu reconhecimento nos circuitos internacionais ter ocorrido apenas no início da década de 1950, após finda a II Guerra Mundial e próximo do término da ocupação pelos E.U.A., concretizada em 1952, o advento do cinema no Japão aconteceu muito mais cedo.

60 A primeira projecção de imagens em movimento teve lugar na cidade de Kobe em 1896 através do kinetoscópio 22 de Edison. No ano seguinte, apenas alguns meses após as primeiras exibições públicas do cinematógrafo em Paris, Gabriel Veyne e Constant Girel, operadores de câmara dos irmãos franceses Louis e Auguste Lumière, chegaram ao Japão para registar cenas do quotidiano. As imagens que obtiveram, relacionadas com a vida diária das cidades nipónicas, foram exibidas no país no ano seguinte. Em 1998 foi realizado o primeiro filme japonês e, pouco depois, em 1903, inaugurada a primeira sala de cinema em Tóquio. Cedo o cinema japonês adoptou um método de organização semelhante ao de Hollywood, ficando os seus estúdios de produção agrupados num número limitado de companhias cinematográficas que controlavam toda a indústria. Em 1912, assinalou-se o nascimento da primeira dessas companhias, a Nikkatsu , resultante da fusão de quatro outras de menor dimensão. A Nikkatsu , assim como a Shochiku (fundada em 1920), a Toho (fundada em 1935), e as posteriormente criadas Daiei (fundada em 1941), Shintoho (fundada em 1947, a partir de uma cisão da Toho) e Tohei (fundada em 1951) assumiram um papel crucial na Indústria Cinematográfica desse país, tendo albergado alguns dos nomes fundamentais da história do cinema japonês e sido responsáveis por uma elevada produção comercial que atingiu o seu pico máximo no ano de 1960, com uma produção de 552 filmes 23 . Esta quase simultaneidade na adopção das técnicas ocidentais de reprodução mecânica de imagens em movimento é denunciadora de um relacionamento estreito entre o Japão e o Ocidente no período que corresponde ao final do século XIX e início do século XX. Esta relação explica-se mediante um fluxo bidireccional. Os ocidentais, em particular os europeus, mas também os norte-americanos, por via da influência directa da Europa, manifestavam nessa época um fascínio exacerbado pela estética nipónica. A atracção

22 O Kinetoscópio é um aparelho de projeccção de imagens da autoria do estadounidense Thomas Edison. Este dispositivo caracterizava-se por possibilitar apenas visionamentos individualizados, ao contrário do cinematógrafo da autoria de Louis e Auguste Lumière, que permitia a projecção para vastas audiências. Edison convenceu-se de que o visionamento individual de imagens em movimento teria mais sucesso ao constatar, no domínio na audição de música gravada, a falta de entusiasmo do público com os concertos fonográficos em oposição aos elevados lucros decorrentes da venda de gramofones para utilização doméstica (Costa, 1986, p. 71) 23 Nesse ano foram produzidos no total 555 filmes, sendo três da responsabilidade de produtores independentes. Como referência, é interessante notar, de acordo com os dados da UniJapan (Tessier, 1997, p.101), que a produção cinematográfica japonesa em 1946, imediatamente após a II Guerra Mundial, foi de 69 filmes, tendo este número aumentado para 370 em 1954, menos de dez anos depois e para 516 em 1958, até atingir o seu apogeu no ano já referido.

61 incidia especificamente, e numa fase inicial, nos modos de representação expressos no estilo de pintura ukiyo-e (gravura japonesa) desenvolvido no Japão no período Tokugawa (1600-1868), que se veio a transformar numa forte fonte de inspiração para a arte e a cultura ocidental. Este entusiasmo, que se prolongou até à década de 30 do século XX, ficou conhecido como no ocidente como “japonismo”24 , fenómeno que assumiu manifestações diversas mas que se destacou por originar um movimento pictórico baseado na celebração e reapropriação da estética nipónica. Este interesse foi de tal forma intenso que encontrou expressão para além do domínio artístico tendo-se plasmado igualmente na vida mundana, nos espectáculos de entretenimento, ou na moda. As temáticas enfatizavam um universo onírico, espiritualizado, de harmonia com a natureza e destacavam figuras singulares dessa cultura como os samurais e os seus códigos de honra e as geishas , símbolos de sensualidade. Embora este interesse pelo Japão tivesse sido apropriado de diferentes formas, como a inserção dos modos de conduta nipónicos na vida ocidental ou encarando as suas propostas como fonte de renovação estética (o que é manifesto em correntes artísticas como o impressionismo ou o modernismo), a alegada singularidade e exotismo dessa cultura assumiu-se como principal motivação passando a ser encarada como sinal de elegância. Este último, o aspecto mais superficial do entusiasmo gerado em torno da cultura nipónica no Ocidente, foi simultaneamente o mais evidente e duradouro. 25 Terá sido a promessa de originalidade, de cenários inusitados e eivados de excentricidade, a motivação dos dois operadores de câmara franceses quando decidiram deslocar-se a terras nipónicas para obter imagens.

24 O termo “japonismo” é da autoria do crítico de arte francês, Philippe Burty, tendo sido cunhado como título de uma série de artigos publicados a partir de 1872, na Revista La Renaissance Littéraire et Artistique. 25 Assiste-se contemporaneamente a um fenómeno semelhante que arriscamos designar como neo- japonismo . Verifica-se, na Europa e nos E.U.A., uma tentativa de apropriação da estética e cultura nipónica actual, em particular nas suas manifestações mais pop ou ligadas às Indústrias Culturais (música, cinema, anime, manga, videojogos, indumentária das tribos urbanas, etc.). É perceptível neste fenómeno, tal como no japonismo do final do século XIX e início do século XX, o fascínio com o exotismo supostamente associado ao universo cultural, artístico e social japonês. Contudo, é interessante notar que muitas das referências encontradas na cultura nipónica são já apropriações japonesas de produtos culturais nascidos no Ocidente. Por exemplo, a JMusic , ou música contemporânea japonesa, é inspirada, quer em termos musicais quer na estética que lhe está associada, na música pop ocidental; o estilo urbano Lolita , que se traduz numa maneira de vestir com múltiplas variações, é baseado na personagem criada pelo escritor russo Vladimir Nabokov para o livro homónimo de 1955 e nas suas representações visuais criadas pelo cinema de Stanley Kubrick ( Lolita , 1962, personagem interpretada por Sue Lyon) e Adriene Lyne (Lolita , 1997, personagem interpretada por Dominique Swain).

62 Mas como indicámos anteriormente, verificou-se um duplo fluxo de aproximação. O Japão retribuiu este fascínio pelo exótico com um deslumbramento dirigido à técnica e à ciência ocidental. Depois de séculos de isolamento e impermeabilidade a influências externas, o Japão abriu-se ao mundo durante a Era , iniciada em 1869. Em grande parte resultado da pressão desencadeada pela colonização inglesa e estadounidense, o país colocou grande empenho na importação de tecnologia. As novas tecnologias provenientes do Ocidente traziam o selo da modernidade. Nestas estavam incluídos também os mecanismos de reprodução mecânica da realidade como a fotografia e o cinema. Como refere Isolde Standish em A New History of Japanese Cinema : “Cinema (…) came at the very time that Japan was transforming its economic base and society into that of a major international power. During these turbulent times of social change, cinema become both a force and a metaphor for change, as concepts such as ‘progress’ and ‘achivement’ were increasingly linked to individual endeavour” (2006 [2005], p.18). De acordo com o mesmo autor, as técnicas e os materiais cinematográficos importados do Ocidente afectaram à partida os seus modos de representação. Embora as tradições artísticas nacionais como o teatro kabuki original e as suas formulações literárias e pictóricas clássicas tenham contribuído para a atribuição de algumas especificidades ao cinema nipónico, a observação da realidade mediante uma perspectiva definida em função dos modos de olhar ocidentais terá resultado num compromisso com padrões estrangeiros que não afectou apenas a sua estética ou estilo mas igualmente o seu conteúdo. Isolde Standish refere-se à proveniência ocidental de todo o equipamento utilizado para o registo fílmico e alude ao facto de com esses materiais se importarem simultaneamente modos específicos de observação dos objectos representados: “As the Japanese in the early days of cinema were dependent on the importation of film stock, cameras and projection equipment from the West, it follows that they were constrained by the ideological motivations that led to the development and use of specific technologies and the rejection of others” (Standish, 2006 [2005], p.20). E procurando clarificar esta noção o autor conclui afirmando: “ (…) the seasonal kakejiku (hanging picture scrolls) that adorned the walls of the affluent classes, depicting humans in miniature proportions to the landscape, reflect a mode of seeing the world based on a eastern view of the human being’s significance en relation to the natural world. Within

63 this basic Confucian conception of ‘reality’, deep focus, that selectively privileges people and, at times, objects, is superfluous. Therefore, at a simplistic level it can be argued that when the Japanese adopted technology, they also imported with it an inherent way of re-presenting the world, a conceptual mode that was not neutral but ideological (in its broadest sense).” (Standish, 2006 [2005], p.21). O cinema japonês é capaz de criar, desde os seus primórdios, uma indústria florescente de grande adesão popular. A sua primeira fase é associada a duas figuras singulares: os onnagata , provenientes do teatro kabuki , actores especializados na representação de papéis femininos que excluem as mulheres das telas de cinema numa fase inicial, e os benshi . Estes últimos, literalmente «homens falantes», acompanhavam os filmes mudos com as suas descrições vívidas e expressivas acerca do que se passava na tela. Os benshi adquiriram tal popularidade que tinham o poder de condicionar a produção dos filmes, assegurando que estes estavam preparados para integrar as suas performances, apresentadas ao vivo durante a projecção. Organizados num sindicato próprio e convocando greves sucessivas para reivindicar os seus direitos laborais, conseguiram adiar o surgimento do cinema sonoro no Japão. Acerca destas figuras Isolde Standish considera existir alguma ambiguidade histórica quanto ao papel que desempenham. Não contestando a sua comprovada popularidade durante do período do cinema mudo, que foi muitas vezes prevalecente à dos próprios actores que surgiam na tela, o autor considera que esta figura, mais do que simbolizar uma arreigada influência das artes dramáticas nipónicas que imporia à arte cinematográfica os seus modos de representação, funcionaria antes como agente de integração na cultura japonesa de algo não familiar, funcionando como uma ponte de ligação entre dois territórios antes separados e desprovidos de qualquer identidade comum. Sobre esta matéria, Isolde Standish afirma: “Western commentators on Japanese cinema have generally attributed the inclusion of benshi in the early silent Japanese cinema experience to ‘the traditions and peculiarities of Japanese culture’ and cited their existence as proof of Japan’s difference from Western cinematic traditions. (…) However, in their analysis of the benshi tradition, Hiroshi Kumatsu and Charles Musser make the following astute observation: ‘[T]he benshi cannot be characterized in terms of an oppositional or alternative practice vis Western and particulary Hollywood cinema but rather as an accommodation with the dominant Western cinemas’ (Kumatsu and Musser 1987: 83).

64 (…) Kumatsu and Musser conclude, ‘the benshis position required them to mediate between Japanese audiences that were comparatively unfamiliar with Western representational methods and some Japanese producers who wanted to embrace the most extreme practices of Western cinema’ (Kumatsu and Musser 1987: 88)” (2006 [2005], p. 23). Uma outra característica deste cinema, na sua fase inaugural, é a linguagem fílmica adoptada que se caracteriza essencialmente por planos gerais de longa duração em que a câmara permanece frontal à acção, uma influência herdada da tradição teatral. De acordo com Keiko McDonald, “Most early footage showed what theater audiences saw: entire scenes shot in one long take showing full length. This fixed approach to camera work remained a defining characteristic of Japanese cinema even after the long shot and long take were joined by other more specifically cinematic devices” (2006, p.2). Quanto aos géneros cinematográficos dos primórdios do cinema nipónico estes eram essencialmente dois. Como já antes referimos, o início da Era Meiji assinalou a entrada do Japão numa época moderna. Assim os filmes que se centravam em temas anteriores a essa Era passaram a ser designados por jidai-geki , ou filmes de época, e os posteriores a essa data, subordinados a temáticas contemporâneas, por gendai-jeki (McDonald, 2006, p. 2). Cada um dos géneros foi prevalecendo em alturas específicas, consoante as orientações da Indústria e as opções efectuadas pelos grandes estúdios. Logo em 1916, o movimento Shingeki (Novo Teatro ou Teatro ocidentalizado), fortemente atraído pelo cinema de D.W. Griffith, e em particular pela técnica de montagem paralela, contestou os modos convencionais do cinema japonês, exigindo inovações técnicas. Segundo McDonald estas alterações deveriam consistir na utilização de entretítulos em substituição dos benshi , adopção de música ocidental em vez da música tradicional japonesa, atribuição dos papéis femininos a mulheres em vez de aos onnagata e uma representação mais realista (2006, pp.3-4). A Shochiku , a segunda grande major a surgir no país, nasce associada a este movimento conseguindo impor a tendência gendai-jeki . Nos anos 1920 houve, contudo, um ressurgimento do jidai-jeki , dominado pela Nikkatsu . Surgida posteriormente, como havíamos já assinalado, a Toho , opta por assumir uma postura mais eclética dedicando a sua atenção aos dois géneros em simultâneo e às variações daí decorrentes.

65 Ainda antes do advento do sonoro estreiam-se alguns realizadores que ficarão conhecidos como referências fundamentais do cinema nipónico. Entre os mais conceituados, o primeiro a iniciar a sua carreira é Kenji Mizoguchi que se estreia em 1922. Ainda na década de 1920, Teinosuke Kinugasa e Yasujiro Ozu realizam os seus primeiros filmes. Mikio Naruse entra na indústria em 1930. Estes autores, que trabalharão durante toda a sua carreira no seio dos grandes estúdios, virão a aprimorar o seu trabalho deixando um legado complexo e diversificado quer a nível estético quer estilístico. Contribuirão, assim, para a consolidação de uma indústria forte que perdurará durante largo período com material bastante diferenciado. No entanto, poucos cineastas nipónicos se notabilizarão no ocidente. Mesmo os mais destacados como Kenji Mizoguchi, várias vezes premiado em Veneza, ou Teinosuke Kinogasa, Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1954, permanecem em ciclos muito restritos de reconhecimento. A obra de Yasujiro Ozu, autor considerado, hoje, um dos principais representantes do cinema nipónico, só foi reconhecida muito tardiamente no Ocidente. Como se afirma na parte introdutória do livro dedicado ao realizador editado pela Cinemateca Portuguesa “Os ingleses são (…) os primeiros a mencionar os filmes de Ozu no Ocidente, seguidos pelos americanos e, muito mais tarde, pelos franceses, apesar de Georges Sadoul dedicar-lhe um elogioso verbete no seu Dicionnaire des Cinéastes , de 1963. A sua morte passou despercebida no Ocidente. (…). Em fins dos anos 70, Tokyo Monogatari [ Viagem a Tóquio , 1953] é exibido comercialmente nos Estados Unidos e na Europa. É só então que Ozu é verdadeiramente ‘descoberto’ pelos espectadores ocidentais. A ignorância que prevalecera por tanto tempo é substituída pela adoração, com retrospectivas, números especiais em revistas especializadas e livros (em Julho de 1994, tem lugar, pela primeira e até agora única vez, a distribuição comercial de um filme seu em Portugal: Banshun (Primavera Tardia).” (Rodrigues [et al.], 1999, p.9) Estes são factos surpreendentes visto que, de acordo com a mesma fonte, o realizador morreu em 1963 e desenvolveu a grande maioria da sua obra, constituída por 54 filmes, entre 1927 e 1962. O cineasta japonês mais citado internacionalmente, Akira Kurosawa, iniciou o seu percurso no cinema em 1943. Dono de uma obra ampla, este hoje aclamado mestre do cinema nipónico teve um percurso irregular, fruto das suas opções ideológicas e interesses temáticos. O reconhecimento que obteve no ocidente valeu-lhe

66 simultaneamente algumas críticas. Como refere Max Tessier “Dès Rashomon, une partie de la critique occidentale, toujours prompte à reprendre les choses à son compte, avait déclaré que Kurosawa était un cinéaste «occidentalisé»” (2003 [1997], p.44). Estas críticas terão tido origem no facto de Kurosawa ter adaptado ao cinema várias obras literárias ocidentais e de se ter assumidamente inspirado em alguns trabalhos fílmicos realizados no Ocidente. Este argumento não colhe a apreciação de Tessier que o contesta argumentando que todo olhar cinematográfico é já o resultado intertextual de múltiplas referências: “(…) On s’aperçoit aujourd’hui que tout cela ne veut rien dire, car tout cinéaste japonais contemporain est formé en fait dès l’école par une double culture qui conditionnera son œuvre selon ses goûts personnels. (…) Même s’il est vrai que l’œuvre de Kurosawa doit plus au cinéma occidental que celui d’Ozu (qui lui-même citait tant les films hollywoodiens dans ses œuvres de jeunesse!) il n’en est pas moins vrai que sa culture authentiquement nippone imprègne la conception même de plusieurs de ses filmes” (2003 [1997], p. 44). 26 É um facto, contudo, que os derradeiros filmes da carreira de Kurosawa, que lhe rendem enorme sucesso internacional, são produzidos com financiamento ocidental depois deste apoio lhe ser recusado no seu país. Dersu Uzala (Dersu Uzala – A Águia das Estepes ) de 1975 é financiado pela União Soviética, em cuja cinematografia Kurosawa tinha buscado forte inspiração, Kagemusha (A Sombra do Guerreiro ) realizado em 1980, é feito com dinheiro proveniente dos E.U.A. e Ran (Ran, Os Senhores da Guerra ) de 1985, com dinheiro francês. O acesso ao cinema nipónico no Ocidente foi durante largo período bastante fragmentário estando principalmente dependente dos Festivais destinados a um público iniciado. Num registo mais comercial, destacou-se, por exemplo, Ishiro Honda, realizador menor cujo nome ficou ocultado por detrás da sua mais célebre criação, Gojira (Godzilla , 1954) . Mas mesmo se recorrermos às excepções dos filmes de género como os kaiju eiga (filmes de monstros) ou os filmes de samurais, mais adequados ao mainstream , constata-se que a sua distribuição não era representativa da quantidade

26 É importante relembrar a este propósito que o cinema realizado no Ocidente foi visto desde muito cedo no Japão tendo produzido certamente algumas influências. Um terramoto de grande magnitude teve lugar a 1 de Setembro de 1923 em Tóquio e Yokohama, localizações da grande maioria dos estúdios cinematográficos nipónicos. Os danos que daí advieram resultaram na destruição de muita da produção efectuada até esse período e provocou também uma acentuada diminuição da capacidade de produção. Em virtude do grande entusiasmo do público com o cinema e da incapacidade de resposta por parte dos estúdios, houve lugar para a importação de cinema proveniente da Europa e dos E.U.A que foi largamente visto e apreciado.

67 produzida e que, muitas vezes, estes eram vistos em versões mutiladas ou adaptadas ao estilo ocidental. Deste modo, embora conotado com uma ideia de elevada qualidade estética e técnica e considerado original nas suas temáticas, o cinema nipónico foi reduzido a alguns nomes-chave sem que o Ocidente tivesse noção da proficuidade e volume da sua produção. Isto deve-se em parte ao facto de, depois desta cinematografia ter obtido a atenção internacional, a sua indústria ter começado a produzir filmes para seduzir o desejo de exotismo dos ocidentais. As companhias escolhiam os filmes a exportar, apostando nos filmes de “samurais, gueishas e kimonos” (Tessier, 2003 [1997], p.41). Se, na década de 1930, como afirma McDonald, “[s]ome directors (…) set out to prove that mass-market appeal could accommodate highbrow scripts as well as best-seller spin-offs”, torna-se óbvio algum tempo depois que as empresas passam a privilegiar o mercado em detrimento da qualidade dos conteúdos. (2006, p.4) Durante a guerra o cinema nipónico serve de instrumento de propaganda à semelhança do que ocorre com outras cinematografias. Durante a ocupação subsequente à guerra a indústria é alvo de apertado controlo por parte do Comando Supremo Aliado, que bane, através da censura, todos os temas de carácter nacionalista. Como afirma Kieko McDonald, “[t]he traditional jidaijeki genre suffered most, deprived of its motivation themes of feudal loyalty and heroic self sacrifice.” (2006, p.6). No entanto, após a restauração da independência nacional oficializada pelo tratado de Paz de S. Francisco, a Indústria Cinematográfica japonesa iniciou um novo ciclo produtivo bastante auspicioso. O género jidai-jeki voltou em força depois de ter sido proibido durante a ocupação e, no caso do gendai-jeki , o fim da censura permitiu uma muito maior flexibilidade na selecção das temáticas a abordar. É nesta altura, como afirmámos anteriormente, que o cinema japonês obtém consagração a nível internacional. Para além do reconhecimento atribuído a Kurosawa em 1951, Mizoguchi é premido dois anos consecutivos, em 1952 e 1953, com o Leão de Prata do Festival de Veneza, Kinogasa recebeu, em 1954, a Palma de Ouro em Cannes e Hiroshi Inagaki venceu em 1955 o Óscar para melhor filme em língua estrangeira com Miyamoto Musashi I de 1954. Como sublinha Max Tessier, contrariamente à noção generalizada originada na distribuição internacional dos filmes japoneses, no Japão “(…) ce n’étaient pas les

68 «grands films d’auteur» qui étaient des succès, à des rares exceptions près, mais, comme ailleurs, des films d’action, des mélodrames, des comédies, et des films des nombreux genres spécifiques au cinéma japonais.” (2003 [1997], p.57). Os anos 1950 que assistem ao reaparecimento do cinema japonês caracterizam-se por uma revitalização da Indústria que origina uma desmultiplicação dos seus dois géneros principais em múltiplos géneros e subgéneros e uma sofisticação técnica e estilística. De entre os vários novos géneros, aquele que é considerado de maior actualidade é o kaiju-eiga , onde se incluem os monstros como Gojira símbolos da fúria contra a opressão suscitada pela tecnologia, mas também outros filmes de ficção científica decalcados da matriz hollyodiana. Outro género também bastante popular é o dos filmes sobre a máfia japonesa, ou yakuza-eiga . Para além de muitos outros géneros tornados importantes nos circuitos comerciais há ainda a evidenciar a animação. Neste género o pioneiro foi Osamu Tezuka, autor do ícone da animação japonesa Astro-Boy . Depois de um pico produtivo atingido em 1960, a indústria iniciou o seu declínio. Este é justificado por vários factores mas é atribuído em particular a um fenómeno que se aplica também ao Ocidente nesse mesmo período, a incapacidade do cinema competir com a televisão e outras formas de entretenimento que tinham emergido anos antes e que começavam agora a consolidar-se no quotidiano dos cidadãos. Novos circuitos de produção e distribuição cinematográfica começaram a surgir, factor que se combinou com a pouca frequência das salas e o desenvolvimento da televisão e de outros meios de difusão de imagens, como o vídeo. Contudo, este não é o único factor que justifica o declínio da indústria e do filme de género que tinha marcado a década anterior. Influenciados pela Nouvelle Vague francesa, os cineastas nipónicos começam a procurar alternativas aos modos convencionais de fazer cinema, abandonando as velhas fórmulas narrativas e os modos de filmagem habituais. Este é o período da consagração estilística e ideológica no seio das majors de autores como Nagisa Oshima, na Shoshiku, e Shoei Imamura, na Nikkatsu , pelos seus filmes violentamente expressionistas e de teor sexual. Um dos trabalhos de maior impacto desta fase é o desenvolvido por Nagisa Oshima que realiza, em 1975, o seu filme farol Ai no Korida ( Império dos Sentidos ). Conotado com as novas vagas, o realizador procurou encontrar formas de representação desafiadoras de alguns temas tabu da sociedade nipónica, como o racismo ou a sexualidade, pondo cobro à

69 auto-censura que sempre havia marcado os filmes de estúdio, e filmou com particular arrojo o primeiro filme nipónico a representar a sexualidade de forma explícita, quebrando com a norma que determinava que nunca se mostrasse o acto sexual de uma forma óbvia e abolia terminantemente a exibição de pêlos púbicos, considerados repugnantes. Visto como um manifesto político e cultural na Europa, o filme de Oshima é considerado insultuoso à luz da mentalidade japonesa pelo que não é exibido no seu país, à excepção de algumas versões censuradas que são mostradas em ciclos restritos. Sobre essa matéria assinala Max Tessier: “Le film fut montré à Tokyo, dans la version censurée, et avec des sous-titres français pour bien souligner qu’il s’agissait d’un film étranger et pornographique! ” (2003 [1997], p.88). Shoei Imamura 27 persegue também os mesmos ideais temáticos e estilísticos que dificultam a sua relação com os estúdios. As opções tomadas pelos dois cineastas levam-nos a abandonar a Indústria onde iniciaram as suas carreiras fundando ambos produtoras independentes. Esta nova vaga é um período de contestação ideológica e estilística que ocorre no seio das majors mas é também efectuada por cineastas independentes como Hiroshi Teshigahara e Shuji Terayama que marcam diferenças significativas na matriz de produção do cinema japonês ao realizarem trabalhos de cunho experimentalista e assumidamente provocatório. É o momento do rompimento dos grandes tabus da sociedade nipónica. Os grandes estúdios tentando sobreviver à acentuada crise que se verifica nesse período, aproveitam esse momento de alguma liberalização em torno das temáticas sexuais para criar um novo género que possa recuperar algum público. A Nikkatsu é pioneira em tentar sobreviver produzindo filmes de orçamento médio, dedicados a temáticas soft-porn, género que ficou conhecido como romanporuno 28 , ou seja, uma espécie de pornografia

27 Shoei Imamura é premiado em Cannes em 1983 pelo filme Bushi-Ko Narayama (Balada de Narayama) e em 1997 com o seu filme derradeiro Unagui (A Enguia ), vencedor ex-equo da Palma de Ouro com o filme do realizador iraniano Abbas Kiorostami, Ta'm e Guilass (O Sabor da Cereja). 28 Veja-se o que diz sobre esta matéria Isolde Standish: “‘ Romanporuno ’ as a term had been coined by Japanese film reviewers and critics in the 1960s to make a distinction between ‘ pinku ’ films deemed to have some artistic merit and those to be classified purely as low-level ‘soft-core’ pornography. When in the early 1970s Nikkatsu decided to change the production policy towards the production of erotic films, they co-opted the term ‘roman poruno’ to define their studio-based genre, and to distinguish this term from earlier usage they joined the two words together to form the one word ‘romanporuno’ (2005, p. 343).

70 romântica, onde se ocultavam sempre os órgãos genitais e os pêlos púbicos e o coito nunca era mostrado de forma explícita. Estes filmes, descendentes dos anteriores pink eiga (filmes cor-de-rosa), representavam a institucionalização de um género que antes fora marginal, realizado por cineastas independentes e com baixo orçamento. Representando temáticas sexuais para cativar mais público e mais receitas face à feroz competição do vídeo e da televisão, limitava-se, à excepção de algumas propostas mais criativas ou ousadas, a repetir formulas estereotipadas e a reforçar os preconceitos instituídos mostrando o acto sexual através de planos de conjunto e tapando pudicamente os protagonistas com lençóis ou com as próprias roupas. No final dos anos 1970 assinala-se a generalização do vídeo e o colapso final das majors . Os clubes de vídeo são mais adequados para a oferta de conteúdos de cariz pornográfico pois são garantia de maior privacidade para os seus consumidores. A Nova Vaga que havia despontado no período do início da decadência do sistema dos grandes estúdios atinge também o seu pico nos anos 1970 tornando-se gradualmente cada vez menos produtiva. Apenas mediante a animação, dos estúdios Ghibli onde se destaca o trabalho de Miyazaki e a obra farol de Otomo, Akira , que conhece enorme reconhecimento internacional, o Japão consegue mostrar o seu potencial cinematográfico. Há excepção destes exemplos episódicos, os anos 1980 são lugar de um vazio na produção cinematográfica nipónica e de forma ainda mais clara no que concerne à sua internacionalização. Como afirmam Mes e Sharp, apenas os filmes de Oshima, Merry Christmas, Mr. Lawrence e de Imamura Bushi-Ko Narayama (Balada de Narayama), ambos seleccionados para a edição de 1983 do Festival de Cannes e os dois filmes de Kurosawa, ambos financiados com capital estrangeiro, Kagemusha (A Sombra do Guerreiro ) e Ran (Ran, Os Senhores da Guerra ), são dignos de nota no plano internacional nessa década (2005, p. XXI ). Ainda de acordo com Mes e Sharp, esta estagnação aparente não impediu o desenvolvimento, a partir da segunda metade da década de 1970, de alguns trabalhos da autoria de jovens realizadores independentes munidos de câmaras de 8mm e de escassos recursos. “This development took over a decade to come to boil, resulting in a full- blown re-emergence in the 1990s when a new generation of filmmakers appeared, the vast majority coming from roots that lay outside the traditional film industry. They came from 8mm underground experimentalism, from the ranks of film critics, from the

71 erotic “” or porn, from television, and from the straight-to-video filmmaking that had shot up in the late ’80 in the wake of the boom in home video player ownership.” (2005, p. XXI ). Esta confluência de intervenções, novas técnicas, temas e tendências criativas fez emergir no Japão uma nova cinematografia cujo principal impulso foi conferido pelos independentes e pelo apoio e estímulo do PFF que, como já tivemos oportunidade de assinalar, premiou Tsukamoto em 1988 pela curta-metragem que assinala oficialmente o início da sua carreira de cineasta. Tom Mes não hesita em considerar Shinya Tsukamoto um autor que contribuiu para a revitalização estética e temática do cinema nipónico e atribui-lhe mesmo a responsabilidade pelo retorno de atribuição de visibilidade e notoriedade internacional a uma cinematografia que estava nos anos 1990 completamente esquecida. De acordo com a ideia que o autor transmite ao longo de todo o livro dedicado ao trabalho do cineasta, Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989), demonstrou de forma cabal a vitalidade e força criativa da cinematografia nipónica que, ao contrário do que era uma ideia generalizada no ocidente, não se limitava aos grandes mestres do passado e permitiu despertar um interesse renovado pelas suas temáticas e formas de expressão. Revelou ainda que esta possuía características próprias e originais, decorrentes das suas idiossincrasias culturais, mas estava igualmente em consonância com as novas tendências temáticas e expressivas do cinema ocidental. É aliás Tsukamoto o próprio a reforçar esta noção ao afirmar peremptoriamente que as grandes influências para a construção de Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989) são provenientes de duas obras ocidentais dos anos 1980 consideradas hoje obras de culto, Blade Runner ( Blade Runner – Perigo Iminente , 1982) de Ridley Scott e Videodrome ( Videodrome – Experiência Alucinante , 1983) de David Cronenberg, aos quais atribui a paternidade do seu filme. Para além disso, Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989) foi analisado no ocidente como parte integrante da corrente da estética e temática ciberpunk 29 em voga nesse período, preocupada com os efeitos da sociedade hipertecnologizada sobre o indivíduo.

29 De acordo com o site Cyberpunk Project (http://project.cyberpunk.ru/idb/cyber_punk.html) o termo aqui utilizado foi cunhado pelo autor de ficção científica Bruce Bethke, num conto homónimo publicado em 1983 na revista Amazing. Este neologismo tinha como intuito estabelecer uma conexão entre a atitude Punk e a alta tecnologia. Apesar da sua origem, o conceito generalizou-se a partir da cunhagem de outro termo, cyberspace (ciberespaço), da autoria de William Gibson na obra Neuromancer e obteve múltiplas derivações para o seu significado que o tornam de complexa definição.

72 Tsukamoto torna-se, deste modo, conhecido no ocidente como o realizador ciberpunk, embora o próprio afirme que até lhe ter sido atribuído esse epíteto desconhecia o significado do conceito. Ainda na perspectiva de Mes, com este filme Shinya Tsukamoto criou um novo público para o cinema nipónico: “These were not the cinephiles that had grown up with Akira Kurosawa, Yasujirô Ozu and Kenji Mizoguchi and who discussed the work of the New Wave in the pages of Sight & Sound , Film Comment or Cahiers du Cinéma. This was a new generation of fans, who regarded Tetsuo: The Iron Man not as a rupture with an established image of Japanese cinema, but as a film that fitted snugly into a pantheon of genre works that included Ridley Scott’s Blade Runner , James Cameron’s The Terminator , ’s Eraserhead and the work of David Cronenberg, Sam Raimi and Clive Barker” (2005, p.59). Assim, Tsukamoto teria contribuído para fazer regressar o cinema nipónico à cena internacional, trilhando caminho para outros realizadores como , hoje o seu mais reconhecido representante. Esta não é uma ideia de todo consensual sendo questionada por vários autores que dedicam especial destaque a Takeshi Kitano e que dirigem apenas algumas linhas marginais ao trabalho de Tsukamoto ou excluem o seu contributo. Para Keiko McDonald este é um autor de pouca relevância a quem atribui uma referência apenas por ter sido galardoado pelo PFF (2006, p.14). Estas noções dever-se-ão provavelmente ao facto de Tsukamoto se ter mantido sempre num grande espírito de independência e marginalidade em relação à Indústria recusando mesmo alguns convites que lhe foram dirigidos por Hollywood, por não aceitar sujeitar a sua expressão estilística e temáticas a fórmulas predefinidas e estereotipadas. As principais referências contemporâneas da cinematografia japonesa são realizadores que estão associados a um cinema com uma forte dimensão autoral embora cada vez mais deixe de lhes ser associada uma ideia de esoterismo ou excentricidade. Entre estes podemos citar como nomes fundamentais Takeshi Kitano, , , Sogo Ishii, Sabu, e entre outros.

73 3.4. Temáticas recorrentes na obra de Tsukamoto

Na mesma altura em que concretiza Hiruko: Yôkai Hantâ ( Hiruko the Goblin , 1991), Tsukamoto tem já em mente a realização de um novo Tetsuo . Com as receitas que obtém com a realização do primeiro, o realizador funda a sua própria produtora que designa Kaiju Theater 30 e recupera o espírito independente que havia marcado a sua carreira à excepção do seu último trabalho. Tsukamoto realiza Tetsuo II: Body Hammer ( Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992). Como acontecera já com Hiruko: Yôkai Hantâ ( Hiruko the Goblin , 1991), o realizador utiliza o formato de 35 mm que assegura a possibilidade de exibição do filme em qualquer sala de cinema e utiliza também pela segunda vez o registo a cores em vez do preto e branco, a que regressará, contudo, outras vezes ao longo da sua obra. Contrariamente ao que sucedera com o primeiro filme, em que o autor dispusera de um orçamento praticamente nulo, consegue agora obter um financiamento de cerca de um milhão de dólares mediante o envolvimento nesta produção da companhia discográfica Toshiba EMI. O orçamento disponível, que ultrapassou em mais de 100% as previsões iniciais, permitiu a Tsukamoto a utilização de recursos de que não dispusera no seu primeiro filme. Para além da introdução de novos elementos visuais e da disponibilidade de diversos espaços cénicos, Tsukamoto pode contar com a colaboração de Chû Ishikawa desde a fase de pré-produção. Tendo em conta a relevância atribuída por Tsukamoto ao registo sonoro de cada um dos seus filmes, a possibilidade de trabalhar com este profissional desde o primeiro momento permitiu uma pormenorizada planificação de toda a banda sonora. Ishikawa conta a Tom Mes: “(…) with Tetsuo I just made many pieces of music and Tsukamoto selected what he liked. That worked fine on Tetsuo , but on Tetsuo II he gave me directions about the kind of music he wanted for various parts of the film: ‘In this scene the character does this, so I want the music to have the same kind of feeling.’ Our collaboration added a certain life to the film. Working on Tetsuo was fun too, but we made Tetsuo II very consciously, it was a step-by-step process. (em Mes, 2005, p. 85)

30 Esta designação tem origem no nome escolhido para a segunda trupe teatral em que colabora. O realizador explica o seu significado: “ (…) l’image que j’avais en tête était celle d’um grand poisson qui nage entre les buildings de Tokyo et ne cesse de grandir. (em Expert en Metal, 2000, p. 68)

74 Tetsuo II: Body Hammer ( Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992) cria um universo diferenciado em relação ao primeiro filme já que o autor abandona o registo onírico que o desobrigava de estabelecer conexões lógicas entre os seus diversos momentos narrativos, para adoptar uma estrutura linear em que procura justificar a conduta das suas personagens. Esta tentativa de organização racional da sua torrente criativa antes definida pelo seu carácter visceral e inusitado, faz aparentemente diminuir o entusiasmo gerado em torno da sua obra. Tsukamoto, que desta vez pôde acompanhar o seu filme pelo circuito dos festivais, revela desapontamento quando recorda a reacção do público, que por vezes abandonava as salas antes dos créditos finais. O realizador revela alguma ambivalência em relação aos filmes que o notabilizaram. Por um lado, lamenta que, apesar de ter já um vasto trabalho pós-Tetsuo , continue a ser reconhecido simplesmente como o cineasta cyberpunk ou como o autor desse filme mas, por outro, é ele próprio incapaz de libertar-se do estigma, alimentando a possibilidade de vir a realizar um novo filme com o mesmo protagonista. Tsukamoto admite a hipótese da criação de um Tetsuo voador, ideia que desde sempre o fascinou, e de vir a realizar esse novo filme nos EUA. Esta ideia esteve já próxima de se concretizar com a colaboração de , um admirador da sua obra, tendo-se admitido a hipótese de ser Tim Roth a desempenhar esse papel. Tsukamoto recuou quando receou perder a autonomia e independência na concretização do projecto. Este continua por concretizar mas mantém-se no horizonte de expectativas do realizador. Desde Tetsuo II: Body Hammer ( Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992) até ao momento presente, Tsukamoto já realizou mais seis longas-metragens 31 para além de outros trabalhos. Inspirou vários realizadores asiáticos e ocidentais. Mantém o mesmo espírito de determinação e independência que o caracterizou desde o primeiro momento e continua a questionar-se sobre os mesmos dilemas. Apesar das diferenciadas incursões temáticas que desenvolveu após o dítico Tetsuo , todos os seus filmes assentam ainda nas mesmas obsessões, o que faz com que a cada um dos seus filmes possa considerado um novo opus de Tetsuo . Não se limitando à representação de monstros ou criaturas com deformidades, manifesta sempre nas suas obras a tentativa de ruptura com o ambiente circundante, o que conduz as personagens a um momento catalizador de uma transformação irrevogável e libertadora face a um poder castrador e asfixiante. O

31 Ver filmografia do realizador

75 instante de catarse física ou emocional resulta do rompimento com uma existência letárgica e a tomada de consciência; do desvelamento de uma situação que atingiu um ponto culminante e que agora deve cessar para conduzir ao apaziguamento do herói. Como Gojira que caminha determinado pelas ruas de Tóquio semeando um rasto de destruição que afirma a sua força vital e a necessidade de rompimento da apatia, também Tetsuo , a figura simbólica que designa o homem comum em cada um dos seus filmes, provoca a aniquilação para depois do seu momento catártico se apaziguar. Após o total arrasamento da cidade, Kana declara, inebriada pela beleza do recomeço, que tudo agora lhe parece calmo! No trabalho subsequente ao díptico Tetsuo , Shinya Tsukamoto continua a explorar os mesmos temas introduzindo-lhes, contudo, novas matizes de carácter expressivo, narrativo e técnico. Relembremos que o enfoque particular do labor conceptual do realizador incide sobre duas personagens simbólicas, a cidade, ilustrada pelos seus opressores arranha-céus e labirintos de metal e betão, representativa da vida contemporânea urbana e hipertecnologizada e o trabalhador assalariado, o seu vulgar habitante atomizado e altamente disciplinado. Embora plenos de continuidades, que nos permitem reconhecer, de modo incontestável, os traços particulares deste cineasta são igualmente observáveis algumas variações e rupturas em relação aos filmes antecedentes o que se considera importante destacar para a compreensão deste imaginário. Comparativamente ao díptico Tetsuo analisado de modo mais aprofundado nesta dissertação é assinalável uma descontinuidade que pode ser extensível aos dois filmes anteriores a Tetsuo , que considerámos como ensaios para o mesmo, e ainda a Hiruko: Yokai Hanta (Hiruko the Goblin , 1990), trabalho feito por encomenda que intermedeia os dois Tetsuo , já que os filmes subsequentes abandonam o registo de ficção cientifica. A metáfora da transformação do homem numa criatura metálica incapaz de controlar o seu impulso destrutivo dá lugar a uma maior convencionalidade representativa. O autor não abdica, contudo, do cunho hiperbólico, simbolista e mesmo surrealista mas torna os seus cenários e personagens verosímeis para um contexto realista. Este é um cinema que se mantém dinâmico na sua abordagem conceptual das suas temáticas continuamente revisitadas, introduzindo em cada filme elementos que denunciam olhares renovados. Se é obvio que o alargamento dos orçamentos disponíveis para a produção dos seus filmes

76 permite um maior investimento técnico quer ao nível da filmagem quer ao nível da pós- produção e o aprofundamento da sua experiência enquanto realizador lhe proporciona um aprimoramento estilístico e narrativo, é também notório que estas dimensões da sua obra continuam ao serviço da sua intenção expressiva que continua a desenvolver-se em torno das mesmas noções. Os filmes posteriores de Tsukamoto mantêm o corpo como protagonista, único elemento orgânico habitante da grande metrópole. Embora relatando histórias distintas obedecem sempre a uma exposição da oposição entre a assepsia e a esterelização, traduzida no comportamento dos protagonistas e nos ambientes retratados, que corresponde a um pensamento racional, mecânico e ausente de emoções e à revelação da fisicalidade e das sensações, sejam estas traduzidas pela fúria, pela sujidade e deformações do corpo, pela doença ou pela sexualidade, que conduz a uma mutação dos protagonistas.

3.5. Conclusão

Ao procurarmos delinear os contornos dominantes do imaginário de Tsukamoto, pudemos constatar que se estruturou primordialmente em função das vivências pessoais e profissionais do cineasta e das fortes influências artísticas e culturais que foi identificando ao longo deste percurso. No entanto, também concebemos isto como o resultado da insistência de Tsukamoto em procurar sistematicamente debelar os constrangimentos técnicos e financeiros que encontrou, em particular, na fase mais precoce do seu trabalho. Por esta razão optámos por nos deter no percurso do realizador até à construção das duas obras que formam o díptico que nos propusemos analisar. Os recursos técnicos e expressivos por si mobilizados estão enraizados nas debilidades financeiras que constrangeram o início da sua carreira, mas igualmente num modo próprio de conceber a realização cinematográfica, numa concepção de acentuada independência em relação à indústria considerada constrangedora da originalidade e do fulgor criativo. Tsukamoto é essencialmente um autor da materialidade que introduz na sua prática de cineasta os princípios que advoga mediante a mensagem das suas obras: um regresso à materialidade, ao físico, ao palpável. Aliás, no que concerne a este tópico, é notório que

77 estas dificuldades não foram até hoje totalmente superadas em virtude da vontade do realizador em permanecer independente das grandes produtoras, continuando a produzir filmes de carácter experimentalista e, como tal, arredados daquilo que pode ser considerado um circuito mais comercial. Se nos demorámos na elaboração deste capítulo respeitante ao realizador dos filmes que constituem o objecto de estudo desta dissertação foi por considerarmos que a aproximação ao seu percurso conceptual e artístico nos torna mais aptos para compreender a complexidade do seu trabalho, por vezes incompreendido ou superficialmente analisado por ausência de enquadramento. É notória a forma como o seu cinema e temáticas abordadas são profundamente intersectadas pelo seu percurso de vida, assinalado não só pelas múltiplas influências e condicionalismos a que já tivemos oportunidade de aludir, mas de forma igualmente acentuada pela sua nacionalidade condicionadora de modos de apreensão do mundo social, cultural, histórico e simbólico. Embora não estendamos, como tivemos oportunidade de expressar, que o cinema tsukamotiano esteja, de alguma forma, agrilhoado a um modo de ser específico da cinematografia nipónica (até porque esta foi desde a sua génese permeabilizada e constituída mediante múltiplas influências, grandemente constituídas por um modo de observação ocidental), pensamos que permanecem aí algumas idiossincrasias significativas. No próximo capítulo exporemos as principais ideias presentes no díptico Tetsuo tendo em conta a problemática em discussão nesta dissertação.

78 4. A CIBERCULTURA NO CINEMA DE SHINYA TSUKAMOTO: O DÍPTICO TETSUO

No capítulo precedente procurámos caracterizar o imaginário subjacente à etapa inicial da obra de Shinya Tsukamoto, o que nos permitiu explicitar a matriz temática do seu trabalho, o qual continuará a manifestar-se até à actualidade apesar de algumas reformulações conceptuais, técnicas e estéticas. No presente capítulo, centraremos a nossa atenção num dos focos centrais desta investigação, constituído pelos filmes Tetsuo ( Tetsuo I: O Homem de Aço, 1989) e Tetsuo II: Body Hammer ( Tetsuo II: O Ciberpunk, 1992), que consideramos constituir um díptico, ou duas variações para uma mesma temática. Pretendemos com esta parte do nosso estudo estabelecer uma conexão entre o díptico Tetsuo, o tema da cibercultura e as problemáticas que se lhe associam, demonstrando de que forma esta temática está aí expressa de forma profunda, não apenas nos conteúdos abordados mas também através dos recursos estéticos e técnicos que mobiliza. Procederemos, numa primeira parte, a uma exposição de cada um dos filmes de modo parcelar. Embora tenhamos assinalado a pertinência de os analisar como uma unidade, optamos agora por os apresentar individualmente, para que possamos dar nota de forma mais clara das suas aproximações, continuidades e também dissemelhanças. Em seguida, tendo em conta as categorias de análise identificadas, realizamos uma abordagem da perspectiva do díptico sobre cada uma daquelas no âmbito de uma breve reflexão acerca dessas ideias no contexto contemporâneo e ligando, necessariamente, com o que antes esboçámos acerca do conceito de cibercultura. È nossa intenção que a reflexão que desenvolveremos possa ajudar a compreender como é que as noções associadas à cibercultura se encontram retrabalhadas e reflectidas no campo artístico e, no nosso caso, na obra concreta deste cineasta. Tentaremos perceber qual a perspectiva da obra em análise em relação ao tema a partir do modo como aborda cada uma destas categorias.

79 4.1. Os filmes

4.1.1. Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989)

Filmada num preto e branco granulado com uma câmara de 16 mm, a acção de Tetsuo (Tetsuo: O Homem de Aço , 1989) não decorre na Tóquio futurista, colorida e vibrante, mas numa metrópole pós-industrial esventrada pelo metal que irrompe das suas entranhas como do corpo do protagonista. Os ambientes apresentam a decadência simultaneamente áspera e poética das representações da cidade de Nobuyoshi Araki, marcados por uma encruzilhada de cabos telefónicos e postes eléctricos a rasgar a paisagem, caracterizada por uma geometria simultaneamente assimétrica e compacta, ausente de espaços vazios, impregnada de betão e detritos metálicos. A metalização do orgânico é evidenciada continuamente pelo pulsar do aço que se harmoniza com as tonalidades cinzentas do espaço representado. Apesar dos diálogos esparsos, praticamente inexistentes, o registo sonoro é hiperbólico, ensurdecedor. A música é estridente, os ruídos pungentes, dilacerantes. Os sons orgânicos são convertidos em sonoridades metálicas. Para além do excesso sonoro, é notório o exagero da expressão, da maquilhagem, dos adereços e da exposição promíscua da carne e do metal. A narrativa complexa abdica da convencionalidade das relações de causa e efeito e da operacionalidade do tempo cronológico para optar por um registo onírico que apresenta segmentos narrativos individualizados que indiferenciam a fantasia e a realidade, o registo factual e o subjectivo. As personagens, que permanecem sem ser nomeadas ao longo de todo o filme, assumem um carácter fluído, intermutável, sendo todas alvo de mutações físicas e psicológicas. As sequências animadas, eivadas de elementos simbólicos no limiar no imperceptível, interpelam o subconsciente do espectador. A composição visual é arrojada, plena de efeitos inusitados e experimentalistas, como a insistência nos pontos de vista diagonais e nos planos exageradamente próximos, pornográficos, que adensam uma sensação de calor, de asfixia, de ausência de espaço. A iluminação de cariz expressionista, principalmente utilizada nas cenas da casa do protagonista, evidência os contrastes de claro-escuro e orienta a percepção volumétrica dos objectos, imprimindo um impacto

80 profundo na leitura visual da expressão fisionómica e dos espaços apresentados. Há uma recorrência frequente à câmara ao ombro que torna a observação voyerista , interdita; a frequente aceleração ou desaceleração da imagem e a utilização da técnica de stop motion redundam numa expressão surrealista. Em certos segmentos do filme, alguns fotogramas são compostos por estruturas e texturas ampliadas ao ponto de se perder a referência quanto à sua proveniência, reduzindo-as por vezes ao seu elemento modular ou padrão. Com uma duração de 1/24 de segundo o olho regista apenas fragmentos e impressões, cuja coerência apenas é reconstituível num visionamento fotograma a fotograma. Um homem procura refúgio num território povoado por despojos metálicos que se assemelha a uma antiga zona industrial. A câmara evidencia os detritos de baixa tecnologia que caracterizam o cenário, percorrendo-o lentamente e detendo-se em cada objecto. Num espaço exíguo, cujas paredes exibem imagens de corpos musculados, esventra a sua perna direita e introduz-lhe uma barra metálica. O corpo transpira e contrai-se de dor. O tempo passa. A carne atormentada revolta-se contra a tecnologia invasora; consumida por larvas rejeita a fusão com o metal. Frustrado pelo fracasso da intervenção biomecânica o homem avança pelas ruas da cidade em gritos de dor acompanhados de um latejar monocórdico e metálico. A visão de um automóvel que se aproxima a grande velocidade antecede um grande plano da sua parte frontal e o som de uma travagem. A sequência termina com um registo sonoro distinto, lascivo, libidinoso. Máquinas industriais pesadas em laboração incessante e nuvens de vapor. Mediante posicionamentos de câmara diagonais e sob uma luz intermitente que obedece a ritmos sonoros pungentes, assistimos a uma dança espasmódica. Um homem de óculos e de fato e gravata contorce-se ao ritmo alucinante das pancadas do metal. Estes planos são intercalados com imagens de laboração das máquinas e pontuados por uma música em crescendo que contrasta com imagens em câmara lenta da performance do protagonista de cujo corpo irrompem múltiplas protuberâncias metaliformes. O mesmo homem, em casa, em frente ao espelho. Após terminar de se barbear com uma máquina eléctrica detecta um pequeno fragmento metálico no rosto. Ao tentar extraí-lo percebe que está amalgamado com a sua carne. Observamos os objectos eléctricos que habitam a sua casa decadente e diminuta. Uma televisão continuamente ligada, uma

81 ventoinha em máxima potência, uma cafeteira em ebulição, parecem obter poderes animistas accionando-se autonomamente. O telefone através do qual fala com a namorada reduz-se à sua performatividade técnica sendo-lhe suprimida a dimensão semântica pela contínua, exaustiva, obsidiante, repetição da palavra Estou , código de acesso accionador da eficácia do dispositivo. Agora identificado como o comum trabalhador assalariado nipónico, o homem sai da carruagem do metropolitano que utiliza todos os dias para dirigir-se ao local de trabalho e senta-se num lugar vazio da estação ao lado de uma mulher de aparência discreta. Uma liga de detritos metálicos, uma espécie de casulo de ferro, capta a atenção de ambos. A mulher, atraída pelo estranho objecto, toca-lhe. Subitamente transmutada persegue o homem com uma determinação inabalável. Após algum tempo de fuga pelos corredores labirínticos de metal e betão da estação ferroviária, o homem vê-se encurralado pela sua perseguidora que o observa com olhares lascivos ao mesmo tempo que amputa partes do seu próprio corpo. Apesar de empenhada em manter uma pose sensual, destrói os sinais da sua feminilidade arrancando violentamente um dos seios. Dentro do casulo metálico habita um ser de aspecto humano que controla a conduta da mulher. Este é o homem da cena inicial que iniciou um processo de reconversão biotecnológica. Depois do confronto e debelada a ameaça, o homem em fuga apercebe-se da sua própria força destrutiva resultante da profusão de elementos metálicos que, ininterruptamente, irrompem do seu corpo, remodelando-o, substituindo os seus componentes orgânicos. Uma alucinante corrida pelas ruas da cidade mistura-se com uma fantasia sexual de registo onírico em que observa a namorada transformada numa exótica divindade munida de um adorno fálico de dimensões ampliadas. Esta executa uma dança sensual, ritualista, com uma expressividade que lembra a mulher artificial, diabólica e sedutora, interpretada por Brigitte Helm em Metrópolis (Fritz Lang, 1927). Num recinto anódino, vazio, onde se percebe, contudo, uma atmosfera escaldante indiciada pelo vapor e pela transpiração, a mulher sodomiza o protagonista que se entrega ao acto erótico numa manifestação de prazer submisso e atemorizado. O clímax da relação é assinalado pelo culminar da viagem a alta velocidade pelas ruas da cidade que termina num letreiro com a indicação no parking que preenche integralmente o plano.

82 O homem está de novo em casa após o que parece ter sido um pesadelo. A namorada dorme tranquilamente ao seu lado. Mantém-se, contudo, os indícios da transmutação. Este detecta pedaços de metal incrustados por todo o corpo que lateja e se contrai continuamente. Procurando ignorar a indetenibilidade do processo de transmutação, o casal envolve-se numa relação sexual intensa. Os corpos comprimem-se e entrelaçam-se num frenesim sexual. A excitação conduz à transformação do pénis numa broca mecânica. A namorada manifesta simultaneamente repulsa e atracção pela sua nova condição de homem mecânico, de máquina sexual. Mutila-o diversas vezes para conseguir controlá- lo mas esta necessidade de defesa torna-se simultaneamente um jogo de prazer. A atracção pela nova anatomia do homem de ferro torna-se inevitavelmente demasiado perigosa. O falo mecânico perfura a mulher. Num plano memorável, o jorrar do seu sangue preenche a negro a cortina branca em segundo plano. Regressamos à cidade esventrada pelos detritos de baixa tecnologia. O homem da cena inicial emerge do seu casulo metálico como se tivesse atingido o culminar de um processo de maturação. Em casa, também o trabalhador assalariado aparece agora totalmente transmutado. Apenas alguns pedaços do rosto original permitem atribuir-lhe um reduto de humanidade. Na televisão, controlada por uma força externa, vemos imagens do automóvel do início do filme. Estas imagens, que evocam as memórias atormentadas do protagonista, repetem-se incessantemente. Pela primeira vez vemos o sucedido. O momento trágico que espoleta o desenrolar dos acontecimentos é acompanhado de uma música lasciva, uma câmara bamboleante e uma luz intermitente como que representando um momento de prazer. O trabalhador assalariado e a namorada atropelaram o homem da cena inicial (creditado como Yatsu no genérico final) e o acidente despertou-lhes excitação sexual. Transportaram-no no automóvel até aos arrabaldes da cidade e envolveram-se sexualmente, estimulados pelo seu olhar agonizante e impotente. O acto sexual permite um duplo voyerismo, o casal excita-se com a carne dilacerada do homem moribundo e este assiste atentamente ao coito entre o casal. O desenlace da relação entre as três personagens corresponde ao momento em que a erecção mecânica conduz à morte violenta da mulher.

83 O antagonista corporiza-se, vai ao encontro do homem de ferro e promete-lhe a concretização de um novo mundo. Perante a promessa desse mundo renovado surge um cenário de trevas e destruição, construído por estruturas metálicas e fios retorcidos. Vemos o protagonista num cenário intra-uterino, a romper uma espécie de placenta e a ser novamente enleado numa série cabos metálicos. Após este momento assistimos à decomposição de um corpo como um anúncio da obsolescência ou desaparecimento da carne. Os dois homens iniciam uma luta pela supremacia que é travada nas ruas de uma cidade deserta e caótica. O final ocorre num barracão industrial abandonado, um ambiente natural para as personagens retratadas. O homem de ferro, que parecia submetido ao domínio do seu oponente, penetra-o com o seu pénis mecânico e amalgama-se com a sua matéria. Vemos os dois homens num útero comum onde, em posição fetal e ligados por uma espécie de cordão umbilical, encenam uma dança sensual. No final, transformados numa criatura una com duas cabeças explicam que o seu ódio se converteu numa espécie de amor e fazem promessas de futuro: transformaremos o mundo numa gigantesca bola de metal.

4.1.2. Tetsuo II: Body Hammer (Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992)

Obedecendo a uma estrutura linear, embora com recurso a alguns flashbacks , Tetsuo II: Body Hammer (Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992) é um filme mais convencional do que o anterior do ponto de vista narrativo. Filmado em 35 mm, mobiliza a cor como elemento expressivo destinado à caracterização de ambientes antagónicos. As tonalidades frias, azuladas, visam expressar a metrópole asseptizada, estéril, onde os arranha-ceús de metal e betão são os protagonistas 32 . Por oposição, os tons sanguíneos, flamejantes assinalam uma conduta alternativa, marginal, onde o corpo, o impulso carnal, se impõe. Para além destes cenários que pela sua dominância cromática se diferenciam de forma clara, o autor recorre ainda ao tom sépia para a identificação dos flashbacks . A sequência que antecede o epílogo, assinalada pela total transmutação do protagonista

32 Sobre a opção pela tonalidade azul para caracterizar este ambiente, Tsukamoto explica: “I wanted to use the colour blue to express the clinical atmosphere of Tokyo” (…) “It’s the colour reflected by all the windows in the office buildings around town” (em Mes, 2005, p. 81).

84 num monstro metálico, à semelhança do primeiro filme, é pontuada pelos tons negros, num registo expressionista. O registo sonoro mantém-se estridente, perturbador, pontuando a angústia do protagonista no processo de desvelamento da sua nova condição. A sonoplastia ajuda a caracterizar os ambientes apresentando-se quase hipnótica, lenta, nas cenas iniciais da família do protagonista e nas primeiras evocações das suas memórias de infância em contraste com a aceleração dos momentos de maior tensão emocional. É também determinante na caracterização da cidade, onde predominam ruídos tecnológicos, em que se destacam sons de automóveis e de toques de telefone. Ao contrário do registo surrealista do filme anterior, aqui os acontecimentos apresentam uma ordem cronológica pelo que é possível identificar relações de causa-efeito. Embora a transmutação do protagonista permaneça sem uma explicação realista, o autor preocupa-se em identificar justificações, completamente obliteradas no primeiro filme. A casa habitada pela família do protagonista, ao contrário do minúsculo e decrépito apartamento do primeiro filme, é asséptica, luminosa, ordenada, tranquila. Esta está em total contradição com o universo obscuro, ruidoso, caótico do submundo onde habita o antagonista e o seu séquito. À solidez da cidade, com os seus edifícios de metal e betão opõe-se a fluidez de mundo subterrâneo, marcado pela fundição do metal, pelo suor que escorre dos corpos de atletas que se exercitam permanentemente, pelos longos banhos de imersão do líder dos marginais ou pela arma mais letal do submundo, o óxido que aspergido sobre os homens de ferro produz a sua total corrupção. O filme inicia-se com uma alusão à cena clássica de A Clockwork Orange (Laranja Mecânica , 1971) de Stanley Kubrick. Um grupo de marginais agride um homem num viaduto subterrâneo, numa demonstração da mais pura ultra-violência . Neste caso, o agredido é um trabalhador assalariado embriagado 33 . A luta não se faz corpo a corpo mas à distância. Observamos uma mão que aparece em primeiro plano com o dedo indicador esticado simulando uma arma e ouvimos o som de um disparo. O trabalhador cai por terra. Percebemos então que um dos marginais tem o poder de converter a sua mão numa arma. Impressionado com o que acabou de presenciar, o outro marginal

33 Se recordarmos o monólogo do velho sem-abrigo da cena aqui homenageada será possível compreender a importância da sua alusão no contexto do filme em análise. Este discurso faz referência às enormes realizações da humanidade no campo tecnológico para terminar com uma visão pessimista que alude a uma consequente desvalorização do humano e dos laços de solidariedade entre os indivíduos.

85 presta-lhe reverência. Num grande plano observamos um coração de ferro e o ouvimos o seu batimento metálico. Uma fábrica labora freneticamente. As máquinas de ferro, como vulcões em erupção, expelem matéria incandescente. Um trabalhador assalariado habitante da grande metrópole reside com a família, a mulher e o filho, numa casa limpa, ampla e luminosa no coração da cidade. Acorda uma manhã, após um sonho que lhe recordara, ainda que de forma fragmentária, a infância apagada da sua memória. A recordação é de tranquilidade, de um tempo que antecede a actualidade. O homem assiste às dinâmicas quotidianas da grande cidade. As gentes caminham de modo ordeiro e indetenível, como autómatos em busca de lugares predestinados. Os arranha-ceús, demasiado altos, omnipresentes, definem os limites do enquadramento. O olhar panóptico que impõem sobre os seus servos preenche todos os espaços. Demasiado elevados impedem um vislumbre do seu limite configurando-se como infinito. Há uma insistência nos planos oblíquos, acentuadamente contrapicados que enfatizam a pequenez do protagonista face aos edifícios que lhe servem de cenário. A multidão organiza-se em função de uma força simultaneamente invisível e indómita e permanece indiferente ao homem que perscruta o real e que constata não lhe pertencer. O homem, que mais tarde saberemos chamar-se Taniguchi, detém-se nos espaços que o circundam e aparece desfocado, isolado, perante os que passam indiferentes à sua atitude contemplativa. Posicionado de costas para o espectador, no início do um extenso corredor, alongado pela profundidade de campo, percebemos que iniciará um demorado percurso. Taniguchi passeia com a mulher, Kana, e o filho, Minori, num centro comercial. A câmara torna-se instável, os movimentos desconexos. A criança que acompanha os pais é subitamente raptada por dois homens musculados, vestidos de negro e de cabeça rapada. O protagonista é inoculado com uma substância desconhecida. Depois de uma perseguição intensa pelos corredores metálicos do centro comercial que conduzem ao topo do arranha-céus, a criança parece a salvo. O silêncio impera num cenário azul. A mulher mergulha solitária numa piscina imensa, isolando-se do mundo. Taniguchi evoca novamente o sonho da infância perdida.

86 Kana incentiva o marido fazer exercício físico. Inicialmente débil é subitamente dotado de uma força física inexplicável. A família celebra o seu sucesso. Regressados a casa, Minori é novamente raptado. Uma música desesperada, nervosa, pontua o percurso dos pais novamente até ao topo de um edifício de metal e betão para resgatar a criança. Pleno de fúria contra os raptores, o homem apodera-se de uma força destruidora inusitada, e converte o seu peito num canhão de onde eclodem múltiplas protuberâncias metaliformes, armas de fogo entranhadas na carne que são apontadas ao opressor. Obstinado, o homem dispara compulsivamente contra o seu alvo atingindo a criança que deveria salvar. Kana assiste à morte brutal do filho e à surpreendente transformação do seu assassino. Quando acorda do que lhe parece ter sido um pesadelo, Kana percebe que foi agredida e que o marido desapareceu. O homem é levado à presença do líder dos raptores do seu filho. Numa fábrica metalúrgica em plena laboração, homens musculados de cabeça rapada exercitam os seus corpos ao ritmo de ruídos industriais. Como demónios que habitam um cenário infernal, iluminados por uma luz alaranjada, os homens emitem sons guturais enquanto exibem os corpos nus e musculados. Os seus movimentos são executados em harmonia com o ritmo das máquinas. Neste submundo orientado para a violência, Yatsu, o homem-máquina do pré-genérico comporta-se como um deus treinando homens para se converterem em armas. Taniguchi é recebido por um cientista que o trata como uma cobaia. Estimulando-o sensorialmente através de um monitor ligado directamente ao cérebro procura induzir- lhe memórias que espoletem a sua fúria. Numa cena a fazer lembrar o tratamento Ludovico encenado no filme de Kubrick já anteriormente evocado, o homem é ligado a uma máquina que emite imagens de violência. Neste caso, contudo, o objectivo é contrário. O instinto de violência que a norma social se encarregara de reprimir deverá agora, pela sua estimulação, voltar a manifestar-se. A droga inoculada tornaria o corpo capaz de manifestar os instintos de violência ao contrário de os reprimir até à náusea. Seria o processo de aniquilação do constrangimento social. A força de destruição do homem manipulado revela-se ainda mais poderosa do que o esperado. O líder dos rebeldes telúricos congratula-se com o resultado da experiência e aniquila o cientista, mero veículo para a concretização dos seus desígnios.

87 Aproveitando a força inusitada, o prisioneiro foge do cativeiro para procurar a mulher. Convicto das potencialidades da técnica capaz de transmutar homens em armas poderosas, Yatsu inocula o seu homem de maior confiança e envia-o em busca do fugitivo. Em seguida injecta a nova droga em cada um dos seus seguidores. Os planos de inoculação dos indivíduos são intercalados com planos muitos breves, pontuados por um som explosivo, onde vislumbramos de muito perto os edifícios que povoam a cidade. Numa luta titânica, o fugitivo afirma uma força sem precedentes e enfraquece o seu opositor. Doente algum tempo após ter tomado a droga, o skinhead percebe que a força do homem comum provém de outra fonte. O mesmo detecta Kana, em casa, ao perceber que um pequeno objecto electrónico que tinha no bolso do casaco que vestia no dia do primeiro rapto de Minori, tinha protegido o marido da inoculação. O homem regressa a casa para defender a mulher. Esta, assustada pela descoberta, procura fugir acabando raptada por Yatsu. Taniguchi persegue o seu opositor. Motivado pela sua pura determinação e munido de artilharia pesada que irrompe dos seus membros, pedala furiosamente numa velha bicicleta conseguindo acompanhar o automóvel que transporta Kana. Tendo atingido o culminar da sua transmutação, o homem-máquina vai até ao esconderijo do oponente. Yatsu revela que depois de perceber o resultado da experiência pode compreender que o homem metálico era afinal o seu irmão há muito desaparecido. Num cenário nocturno de trevas e destruição assinalado pela presença de máquinas industriais de grande dimensão em constante laboração, os irmãos envolvem-se num derradeiro confronto. Yatsu, moribundo, usa as suas últimas forças e liga-se ao irmão mediante uma espécie de cordão umbilical metálico que lhe transmite informações directamente para o cérebro. Num momento de puro surrealismo, Tsukamoto mobiliza uma multiplicidade de influências rendendo-lhes homenagem num trabalho de detalhe extraordinário, filmado fotograma a fotograma. Objectos imperceptíveis, indistrinçáveis, metamorfoseiam-se aludindo a uma panóplia inesgotável de estímulos visuais alojados na mente humana. Observada pormenorizadamente esta composição imagética de cariz simbólico denuncia uma construção exaustiva, obsessiva, meticulosa, de elementos significantes. É composta por fotografias de fetos, cordões umbilicais,

88 imagens microscópicas, imagens televisivas tremendamente ampliadas, poses pornográficas, fotografias de Robert Mapplethorpe, preservativos, cabeças robóticas, falos gigantes. Protagonista e antagonista surgem nus. Tsukamoto de cabeça rapada assume uma pose divina. Taguchi aparece perfurado com pinças e ganchos metálicos na mais pura inspiração punk ou sado-masoquista. Múltiplos ecrãs emitem as memórias de Taniguchi. Entramos numa nova dimensão espacio-temporal. Um homem, pai de dois rapazes, executa passes de ilusionista revelando a capacidade de fundir metal com elementos orgânicos. Com movimentos de prestidigitador e palavras mágicas funde um gato com uma cafeteira. Aperfeiçoando a sua técnica, perante uma atitude de simultânea incredulidade e deslumbramento, adquire a capacidade de, pelo poder da sua vontade, fundir as mãos dos rapazes com os revólveres que estes empunham. À semelhança do famoso plano de Videodrome (Videodrome - Experiência Alucinante , 1982) de David Cronenberg, as armas amalgamam-se com o corpo dos rapazes. O pai assume a tarefa de os treinar para fazerem pleno uso da sua extraordinária capacidade. Pede-lhes que unifiquem a sua vontade com a da arma e que disparem. O mais jovem, Yatsu, acede à vontade do pai enquanto o mais velho desiste. Avançamos no tempo. Os dois rapazes assistem ocultos a um momento de intimidade entre os pais. A mãe dos rapazes faz uma felação a uma arma enquanto o marido a acaricia. No clímax da relação a arma dispara acidentalmente quase matando a mãe que cai sobre a cama. O filho mais velho, numa manifestação provável de uma primeira erecção motivada pela cena sensual protagonizada pelo casal, dispara compulsivamente sobre os pais, expondo o prazer sentido numa analogia entre a violência e uma explosão de energia sexual. Assistimos ao esfacelamento dos corpos, à sua completa destruição, que culmina no plano de pormenor da dilaceração total do rosto do pai. Yatsu conclui que o irmão encontrou beleza na destruição. O homem de ferro reconhecendo a natureza maquínica e destruidora como irreversível roga à mulher que o destrua com uma arma oxidante. A mulher recusa e protege-o. Ligando-se através de múltiplos cabos metálicos a todos os seguidores de Yatsu que se deslumbram com a sua magnificência bélica, converte-se num monstro de várias cabeças que circula pelas ruas de Tóquio provocando a sua destruição.

89 Um bebé forma-se num ambiente amniótico. No epílogo do filme vemos a família novamente reunida. Taniguchi, Kana e Minori passeiam como turistas pelas ruas agora amplas da cidade devastada. O céu aparece no horizonte desocultado pela destruição. Tudo parece calmo!

34 4.2. Monstros de Tamanho Normal – O corpo como lugar de intervenção

A oposição entre a carne morta e pesada («meat», no calão computacional) e o corpo etéreo da informação – o eu desprovido de corpo – é um dos dualismos que definem a cibercultura. Mark Dery (2000 [1995]), Velocidade de Escape , p. 55

O ciborgue 35 , figura consensualmente entendida como etapa iniciática da metamorfose do humano associada à nova era tecnológica, é o conceito sintetizador de uma miríade de possibilidades de fusão entre homem e máquina e aglutinador de uma galeria infindável de modalidades. Múltiplas vezes representado na literatura de ficção científica e ilustrado no cinema e na banda desenhada (ou ainda em algumas das suas derivações, como os videojogos), este tem assumido várias formulações servindo até como termo enunciativo para entes homólogos como autómatos, robôs e andróides 36 . É possível considerar que esta figura encontra um paralelo com a formulação de criaturas artificiais que sempre esteve presente na história da humanidade, já que se estas procuravam atribuir ao homem um poder demiurgo pela hipótese de criação de entes

34 O título deste capítulo recupera a expressão utilizada em epígrafe no primeiro filme do díptico em análise. 35 Este termo tem a sua génese na junção das palavras cyb ernetic e org anism (cyborg ), tendo sido originalmente cunhado em 1960 por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, para designar um ente biónico capaz de adaptar-se a diferentes ambientes no contexto das viagens espaciais. O conceito foi utilizado pela ficção científica e fantástica tendo-se adaptado a múltiplos contextos. Dada a polissemia que o conceito assumiu, a intelectual feminista Donna Haraway apropriou-se deste para referir-se a um ser capaz de ultrapassar os convencionais dualismos sociais/simbólicos humano/animal, animal humano (organismo)/máquina e físico/não físico (Haraway, 1984). De acordo com Samantha Holland “[t]hese hardware based cyborgs exhibit android form, robot power and cybernetic intelligence and are design to function in extremely hostile environments”. Nesta linha de pensamento, o ciborgue de Haraway pretende resistir ao mundo hostil das ideias propondo uma sociedade pós-género. (2000 [1995], p. 39) 36 O termo ciborgue designa a hibridação entre organismo e tecnologia tendo como génese o primeiro elemento, enquanto os termos autómato, robô ou andróide são alusivos a constructos tecnológicos integrais (embora no caso da ficção lhes tenha sido sempre atribuída a possibilidade de adquirirem características humanas, como a capacidade de sentir emoções ou de reflectir sobre as suas acções).

90 similares ao humano, a capacidade de este usar a sua carne como matéria-prima moldável, permeável à enxertia ou manipulável desde a sua génese, confere-lhe um poder ainda mais elevado. Perante um imaginário cada vez mais frequentado por estas criaturas, o corpo originário passa a estar simbolicamente condenado a uma irrevogável obsolescência que não corresponde já à corrupção pré-determinada de cada organismo individual após findo o seu período vital mas a um fenómeno de transespeciação, se não de pura eliminação da espécie. Este corpo orgânico cessa de ser encarado como locus de reconhecimento do sujeito, como elemento congregador de identidade e sinalizador da sua presença e alteridade, para passar a ser observado como o seu habitáculo transitório. É colocado perante a esquizofrenia da sua própria incapacidade de distinção, passando a definir-se como lugar de simbiose e como processo, o que se intensifica com as diversas hipóteses de intervenção já concretizáveis. A observação detalhada da anatomia humana mediante múltiplos instrumentos invasivos e não invasivos, a sequenciação do genoma humano e a sua tradução num código manipulável, a digitalização total de um cadáver dissecado para estudo minucioso 37 , o aperfeiçoamento ou remoção de cada uma das partes consideradas inestéticas ou disfuncionais mediante aparelhos cirúrgicos e próteses biónicas são possibilidades que aparentam desmantelá-lo, conduzindo-o à assunção de um carácter desconexo e intercambiável. Neste vasto repertório de inventariação, penetração e exploração do corpo pelo objecto, cada órgão pode ser monitorizado, perscrutado, esquadrinhado, dissecado individualmente como um sistema autónomo e passível de ser também autonomamente reparado, substituído ou suprimido. De acordo com Anne Balsamo é exercida sobre o corpo uma vigilância permanente autorizada e incentivada pelos mecanismos tecnocientíficos: “Medical authorities encourage us to monitor consumption of sugar, caffeine, salt, fat, cholesterol, nicotine, alcohol, steroids, sunlight, narcotics, through the use of such devices as electronic scales, home pregnancy kits, diabetes tests, blood pressure machines and fat callipers. These devices function as a set of visualization techniques that contribute to the fragmentation of the body into organs, fluids, and ‘bodily states’, which in turn promote a self-conscious self-surveillance whereby the body becomes an object of intense

37 Faz-se aqui uma alusão ao The Visible Human Project (VHP), projecto realizado em 1994 que consistiu na tradução de um corpo humano integral numa imagem digital acessível através da rede (Santos, 2003, p. 150).

91 vigilance and control.” (2000 [1995], p. 216). Esta constante vigilância que o corpo convoca revela a sua vulnerabilidade indicativa da percepção do mesmo como um invólucro transitório, com prazo de validade, o que o torna desadequado para a realização das potencialidades da mente, pelo que se formula a expectativa de uma possibilidade de descarnação. Significa isto que, no culminar de um processo ancestral que sempre procurou a redenção e perfectibilidade do humano, a tecnociência leva hoje estas noções ao seu expoente máximo admitindo a fusão gradual do sujeito com a máquina até ao seu completo desmantelamento orgânico e substituição por peças de silício, originador da figura do ciborgue. Ou ainda, numa visão mais radical, o seu desaparecimento enquanto matéria presente e perceptível mediante a total imersão, fluida e descorporizada, nas vastas redes de dados do ciberespaço. Estas ideias relacionam-se com a cada vez mais acentuada entrega a uma vontade indómita de exceder certas fronteiras que antes se consideravam inultrapassáveis, radicada numa vontade do sujeito de exercer autoridade sobre o seu corpo antes subsumido e vilipendiado em função de ditames impostos pelo exterior. E esta fascinação com um mundo tecno-lógico e exponenciador da capacidade intelectual e performativa parece ter sublimado o receio do desaparecimento do humano. Neste quadro conceptual, é possível considerar que ciência associada à tecnologia é hoje considerada a entidade que tudo pode, vista como um novo deus disseminador de uma noção de perda do telos existencial e da crença que só um novo universo o pode restituir. O díptico Tetsuo acentua uma definição teratológica dos seus protagonistas. Há uma referência óbvia às personagens monstruosas reincidentes no imaginário cinematográfico (e, em particular, no cinema nipónico, após o sucesso de Gojira e dos seus sucessores), constatando-se simultaneamente uma alusão a uma dimensão normal que toma como referência aquilo que nos é mais próximo ou familiar – a figura humana. Os monstros de tamanho normal são os indivíduos comuns, representados pelo mortificado trabalhador japonês, que abdica da sua vontade própria em função das normas sociais e das rígidas obrigações laborais. Os habitantes do território citadino actuam como partes atomizadas de uma vasta engrenagem. Agem como indivíduos isolados na multidão, esmagados entre o metal e o betão, vêem o mundo em tons mortiços através das vidraças dos arranha-céus, sentem-se minúsculos, insignificantes

92 perante a dimensão hiperbólica dos edifícios que povoam a cidade e são eles próprios monstros insensibilizados, caminhando sem se deter perante nada, incapazes de se desviar um milímetro do seu caminho pré-determinado. Estes são entes alienados, anestesiados, arredados da sua fisicalidade que se comportam como autómatos comandados pelas dinâmicas, ritmos e exigências despóticas da grande cidade. A sujeição à civilização tecnológica, aqui inequivocamente representada pela grande urbe, isenta o homem da faculdade e da responsabilidade da decisão e da acção. A tecnologia é encarada como uma potência indómita à qual o homem só pode submeter a sua servidão. Esta é uma forma de sujeição que lhe determina que se isente de pensar e inquietar, que use o seu cérebro como uma máquina cada vez mais célere, eficiente e produtiva. No extremo oposto desta vida constantemente em auto e hetero- monitorização para detectar comportamentos desviantes, estão os proscritos do sistema, os marginais ou auto-marginalizados que por não se adequarem aos elevados padrões de exigência e submissão se situam à margem. Em Tetsuo todos os seres humanos – ou pós-humanos? – são ciborgues. Quer perante a inscrição no seu corpo orgânico de peças metálicas quer pela assunção de condutas maquínicas, todos os homens e mulheres transmutaram a sua natureza originária. Contudo, o vasto repertório de comportamentos mecanizados que as personagens ostentam mediante os seus corpos dóceis e ritualizados e a parafernália metaliforme que irrompe abruptamente da carne dilacerada do protagonista, não é, de todo, o resultado de uma celebração da conversão do orgânico em inorgânico ou o sinónimo de uma adesão ao potencial sedutor dos códigos binários e genéticos. Paradoxalmente, o recurso à imagética cibernética tem como propósito revitalizar a importância do corpo carnal originário, sendo este o verdadeiro objecto central do díptico Tetsuo como, de resto, de todo o cinema tsukamotiano até ao momento actual. A personagem principal parece pressentir o que assinalou Mumford há já largo tempo atrás: “[a] salvação reside não na adaptação pragmática da personalidade humana à máquina, mas sim na readaptação da máquina, ela própria um produto das necessidades da vida em matéria de ordem e organização, à personalidade humana.” (Mumford, 2001 [1952], p.18) O díptico apresenta um homem vulgar que, perante um momento de ruína e catarse emocional, reformula a sua conduta em relação ao universo circundante. Embora estes momentos catalisadores ocorram de formas diferenciadas em cada um dos filmes,

93 sendo, no primeiro, o resultado do que a personagem identifica como uma maldição imposta por um demónio vingativo e, no segundo, proveniente da sua vontade consciente, é certo que, em ambos os casos, acabam por desembocar num elogio à libertação das amarras éticas, sociais e culturais de uma sociedade altamente racionalizada e tecnologizada que usurpa aos indivíduos o seu sopro vital. Se bem que possa parecer contraditória a proposta do regresso às emoções concretizada precisamente pela transformação do corpo orgânico numa amálgama de carne e peças metálicas, na conversão do humano em ciborgue, esta alicerça-se na ideia de um corpo frágil e inapto para lutar contra o seu opositor, cuja única via para o combate passa pela necessidade de munir-se das mesmas armas mobilizadas pelo opositor. Dominado pela máquina, o homem vê como solução a utilização da força dos artefactos maquínicos para a combater. Este é, assim, um cinema sobre a corrupção ou o declínio do corpo que, numa guerrilha feroz e insana, põe em prática todas as suas tácticas de sobrevivência; um esforço de um corpo inábil que apesar de todos os obstáculos tenta resistir. As diferentes personagens presentes no díptico salientam perspectivas distintas em relação ao poder do ímpeto tecnológico. No prólogo de cada filme é a celebração da tecnologia que se impõe mediante a figura de Yatsu. Muitas vezes definido como fetichista tecnológico, a personagem funciona, porém, como impulsionador da tomada de consciência acerca do fascínio e aprisionamento provocado pela civilização tecnocientífica. Na cena inicial de Tetsuo ( Tetsuo: O Homem de Aço , 1989), o fetichista, enclausurado num território ínfimo adornado com cartazes de corpos atléticos, prepara a sua perna orgânica para a inclusão de um tubo metálico, rasgando-a com uma faca que lhe inscreve um golpe profundo; em Tetsuo II: Body Hammer ( Tetsuo II: O Ciberpunk , 1992), a mesma personagem, ocultada pela escuridão nocturna num viaduto subterrâneo, converte a sua mão carnal num revólver que desfere um tiro certeiro e mortal num trabalhador assalariado, acção celebrada pelo som compassado e estridente do seu coração metálico. Todavia, este prosélito da tecnologia que idealiza ser capaz de dominá-la, termina frustrado nos seus intentos. A carne nunca se deixa submeter, resiste. A tentativa de construir um corpo híbrido pela inclusão de peças metálicas no seu interior, causa a sua convulsão e rebeldia que se manifesta pelas larvas que devoram a carne rejeitando o implante. A inoculação dos

94 rebeldes telúricos seguidores de Yatsu com uma arma pretensamente apta a converte-los num exército de máquinas destruidoras, corrompe-lhes a pele como um cancro. O elogio da metamorfose tem invariavelmente resultados desastrosos. A hibridação entre homem e máquina apenas resulta quando é fruto do questionamento do homem acerca do mundo que o circunda mas, ainda nesse contexto, é lancinante, penosa, inestética. O indivíduo nunca se torna ágil ou equilibrado. Pelo contrário, as partes tecnológicas que o permeabilizam, preparando-o para o combate, tornam-se cada vez mais rígidas, pesadas, desarticuladas, inábeis, disformes. A tecnologia com que se funde é lowtech , obsoleta, industrial, e não clean e asséptica. Há no díptico Tetsuo uma oposição a uma visão higienizada, uma recusa ao abandono do aspecto grotesco e visceral. Nesta lógica, a carne mantém-se viva, em evolução ou degenerescência, e reage ao contacto com a tecnologia, enleia-se em torno desta, funde-se com o ferro e o metal. Coloca-se a tónica na permanência do orgânico que se torna inexpugnável. O metal não inibe as pulsões do corpo, antes intensifica-as. O díptico não apresenta o ciborgue eficiente da ficção científica, melhorado e optimizado. É antes um freak que atemoriza e que se oculta consciente da sua deformidade. As partes orgânicas não se harmonizam com o mecânico. O constructo híbrido é putrefacto, viscoso, defeituoso, abjecto, hediondo, infecto. A tecnologia torna-se ubíqua mas não se naturaliza, não se entretece de forma subtil ou invisível tornando-se claro que ocupa o lugar da carne que lhe resiste. Outros filmes, como as séries Terminator ou Robocop , na sua propalada visão distópica de uma civilização dominada pela tecnologia, terão gerado mais entusiasmo com o corpo tecnologicamente transmutado, em virtude das suas armaduras reluzentes, dispositivos eficazes e altamente esteticizados, do que miscelânea emética de fluidos, pústulas e excreções metálicas de Tetsuo . Nos filmes de Tsukamoto há sempre algo reprimido, amordaçado, que se revela após um momento de sacrifício do corpo que contribui, não para o repudiar mas para o reanimar, para o fazer voltar a sentir. O protagonista é submetido a um processo de questionamento, de reelaboração da sua identidade, que equaciona o seu relacionamento com o meio circundante. Neste processo, a cidade é o veículo simbólico de artificialização do humano. Inserido num regime de ruído e incerteza que o impede de experienciar os sentidos e de vislumbrar qualquer telos existencial, o homem, antes convertido em máquina, opta por abandonar a sua conduta pré-determinada, lutando

95 contra a cidade opressora no seu próprio território. Neste sentido, o antagonista encontra-se representado nos edifícios e dinâmicas pré-determinadas da grande metrópole verticalizada, omnipresente e omnipotente reflexo da dominação da tecnociência sobre a natureza, do artificial sobre o natural. O homem é o único elemento orgânico que permanece na grande metrópole, o único que pode dar nota da enorme desfiguração da realidade produzida pela tecnologia. Mas isso só pode ocorrer num momento de paragem e contemplação que suscite uma ruptura em relação aos procedimentos impostos pela vida quotidiana e que permita ao humano recuperar os seus ritmos próprios, ser o único responsável e decisor da sua própria conduta. A tomada de consciência, após um momento-chave que o conduz a repensar a sua natureza, desencadeia a destruição que é a revolta contra a situação de apatia em que se viu mergulhado e que é agora incapaz de suportar. A consciência da sua dependência do mundo mecanizado e tecnologicizado restitui-lhe também o contacto com a sua natureza primordial. Embora a permanente hibridação da carne com o metal possa iludir a percepção desta ideia, tendo o díptico sido tantas vezes apropriado como um elogio à transmutação do humano num ser melhorado, este advoga o perigo da erosão do sujeito que para além de dever estar habilitado para actuar racionalmente deve estar apto para expressar os seus instintos e o resultado emotivo das suas reflexões e da percepção dos sentidos. Está aqui contida uma preocupação com a noção de um ser humano cada vez mais mecanizado. Ieda Tucherman assinala esta “(…) maquinização do mental [que] rompe o estatuto ontológico do humano” considerando que lhe são extirpadas a “a liberdade da vontade, a disponibilidade à experiência, a potência e a intensidade que constituíram o seu estilo” (2004, p. 159). Ainda de acordo Tucherman, o humano “tornou-se um sistema que processa informações, assim como tantos outros sistemas” (2004, p. 159). O que o pensamento contemporâneo parece ainda não ter tornado consensual é se esta é uma já uma condição irrevogável ou se há ainda, oportunidade, como propõe Tetsuo , para resgatar a parte menos disciplinada ou mais pulsional da dimensão humana. De acordo com Jean Baudrillard, “[d]urante séculos, fizeram-se esforços encarniçados para convencer as pessoas de que não tinham corpo (…); hoje teima-se sistematicamente em convencê-las do próprio corpo . (2005 [?], p. 136) Como justificar o actual culto do corpo? Existe uma aparente noção contraditória quando se propõe

96 simultaneamente o seu aprimoramento, numa lógica de melhoramento da dimensão física do humano e a tentativa, por outro lado, de passagem para um estádio extra- corpóreo, simbolizado pela possibilidade de deambulação no ciberespaço, um lugar desterritorializado em que a materialização do ser é encarada como um acessório intermutável em função dos contextos de interacção ou disposição. Cremos que o actual culto do corpo consiste afinal na sua negação. É preciso ocultar, extirpar, tudo o que no corpo diz respeito à sua existência real, tudo o que não se enquadra nos rígidos padrões de perfectibilidade. Pretende-se um corpo remodelado, aperfeiçoado, que se revê não num ideal orgânico, húmido, com as suas viscosidades próprias, mas num corpo-máquina. São profusamente divulgadas as preocupações estéticas que originam tentativas de melhoramento do corpo mediante cirurgias estéticas, a veneração dos corpos perfeitos da publicidade e do cinema, os distúrbios psicológicos múltiplos como a anorexia, bulimia, a ortorexia ou a vigorexia que parecem fazer ecoar a noção de que existe um crescente reconhecimento da importância do corpo quando o que ocorre é nada mais do que a fuga ao mesmo, numa tentativa de o manter saudável, sem sinais de corrupção ou tentando demonstrar a seu carácter maleável e obediente perante a vontade suprema do seu proprietário. Reflectindo sobre esta noção, Mark Dery salienta que “(…) a musculação concebida simultaneamente como uma raiva contra a máquina é uma prática que paradoxalmente produz humanos que se parecem e se comportam como máquinas.” (2000 [1995], p.353)” Neste momento da nossa reflexão fará sentido acolher as interpelantes questões colocadas por José Gil em Monstros : (…) até que grau de deformação permanecemos ainda homens?” (…) Até onde podemos levar o artifício sem prejudicar a nossa identidade humana «natural»?” (2006 [1994], pp. 12-13). As modificações que se perspectivam e as já realizáveis têm uma acentuada vertente de experimentação baseada numa noção de soberania individual sobre o próprio corpo que permite que este possa ser reelaborado, moldado de acordo com a nossa vontade. Como afirma Kevin Robins “[t]he technological imaginary is driven by the fantasy of rational mastery of humans over nature and their own nature” (Robins, 1996, p.137). Esta ideia é explicitada por Bukatman num excerto da sua obra significativamente intitulada Terminal Identity que julgamos pertinente transcrever. Como refere o autor, “[t]he denial of the flesh signaled by contemporary concerns with hygiene, cosmetic surgery,

97 and eating disorders represents a desire to transcend the animalistic cycles of birth, life and death. The hyperbole of the body is another sign of denial, to be found in the stardom of Stallone and Schwarzenegger, as well as in the panoply of gruelling workout tapes for sale (of course, in these cases the body is already transformed into a kind of machine). Under the conditions of postmodernity, the comforting belief in the eternity of afterlife has yielded to the anxieties surrounding a fear of non existence. Spirit is denied, body is denied – all that remains is the rational and the mechanical.” (Bukatman, 2002, pp.287-288). Baudrillard acentua que este constante descontentamento e tentativa de aperfeiçoamento da nossa matriz orgânica adensa uma propensão consumista privilegiadora da organização económica contemporânea. Este afirma que o que acontece hoje com o corpo é um fenómeno semelhante ao que aconteceu outrora com a força de trabalho: “[i]mporta que [o corpo] seja «libertado e emancipado» de modo a ser racionalmente explorado para fins produtivistas” (2005 [?], p.143). No que concerne à corporalidade, o díptico enfatiza de também de forma extrema a dimensão da sexualidade. Esta é aí representada como sinónimo de violência e morte sempre mediada por artefactos tecnológicos. Em todos os encontros eróticos existe uma atracção falocêntrica e o desfecho é trágico, conduzindo à morte ou mutilação de um dos intervenientes. Ainda que existam sempre indícios de prazer, o desenlace assinala que a opção pela desnaturalização do contacto só pode terminar de modo nefasto. Para além disso, é frequente que um dos corpos apareça submisso, encarnando não um sujeito mas um objecto de prazer. Esta submissão poderá ser enquadrada por aquilo que Breton designa por estatuofília, ou atracção por criaturas inertes, que conforme acentua se aproxima do “«pigmalionismo», isto é, do fascínio erótico que exercem os parceiros passivos, quer se trate de humanos simulando uma rigidez de estátua, ou de manequins à imagem dos humanos (1997 [1995], p. 181)”. A única relação que perdura é a do casal Taniguchi, uma relação não erotizada baseada noutro tipo de afectos que se expressam quando o protagonista diz à mulher, enquanto esta entoa uma canção, que lhe faz lembrar a sua mãe. Em Vitaru ( Vital, 2004), filme posterior de Tsukamoto, este encontrará uma forma antagónica de expressar a sexualidade. Esta é representada sem artifícios, no limite entre a vida e a morte. Um casal asfixia-se mutuamente levando ao expoente máximo a experienciação do corpo. O orgasmo é representado na natureza,

98 num cenário idílico, numa versão do paraíso executada pelo imaginário de Henri Rousseau.

4.3. O Grande Mundo Analógico 38 – Regresso ao território

O ponto de fuga para o horizonte do Quattrocento é superado agora pelo do Novecento: há hoje uma saída nas alturas… Uma contragravidade artificial permite ao homem perder a atracção telúrica, essa estabilidade do espaço gravitacional que desde sempre orientou as suas vulgares actividades. Tudo oscila neste final de século, não só as fronteiras geopolíticas, mas também as da geometria perspectiva. Paul Virilio (2000 [1995]), Velocidade de Libertação , p. 23

Tsukamoto filma a dimensão vertical e o olhar panóptico da fria metrópole enfatizando a estrutura impessoal dos edifícios e a sua densa acumulação mostrando-os em acentuados planos contra-picados. Ilustra igualmente a vulnerabilidade e o aspecto frágil da comunidade que vive e trabalha sob as sombras constantes das torres monstruosas simbolizadoras de força e poder. Os arranha-céus não têm cor. Nada, para além do betão e do metal, parece capaz de brotar do solo estéril da cidade. O território é inóspito, monótono e inabitado. Os homens, de uma certa forma, estão ausentes. O ambiente, húmido e quente, parece tirar a energia às personagens, deixando-as extenuadas, exauridas. A cidade é capaz de absorver qualquer aspiração ou emoção genuína do indivíduo. Numa exaltação furiosa da máquina, o díptico declara que a evolução tecnológica não é mais do que a auto-destruição humana. O mundo tornou-se mecânico, privado de qualquer sentido moral, estético ou emocional. A cidade de Tetsuo é uma cidade entrópica, plena de aço, concreto e cabos eléctricos que cruzam o espaço. Os locais são gélidos na sua tonalidade cinza ou azulada, isentos de ornamentação, exclusivamente

38 O título deste subcapítulo é uma alusão à expressão em epígrafe em Denchu Kozo no Boken , filme inicial da filmografia oficial de Tsukamoto a que aludimos em fase anterior do nosso trabalho e que, como tivemos oportunidade de explicitar constitui um dos ensaio para as ideias apresentadas posteriormente no díptico Tetsuo .

99 funcionais e inestetizados. Os cidadãos que circulam no quotidiano diurno da cidade são seres indistrinçaveis, envergando fato e gravata de tons escuros. Como em Treze Gestos de um Corpo de Olga Roriz executam movimentos diários pré-programados, inconscientes, repetidos ad nauseam. O processo tecnológico é aparentemente indetenível, inobstaculizável, e ninguém ousa pensá-lo. Ninguém se detém para perscrutar a realidade, sentir os seus ritmos, escutar os seus sons, até que um homem opta por fazê-lo. A tecnologia digital que se torna cada vez mais ubíqua na civilização contemporânea ocidental assume uma característica de invisibilidade pela sua penetração no quotidiano. É esta a intuição expressa por Scott Bukatman ao afirmar que “[t]he newly proliferating electronic technologies of the Information Age are invisible, circulating outside the human experiences of space and time. That invisibility makes them less susceptible to representation and thus comprehension at the same time as the technological contours of existence become more difficult to ignore” (2002 [1993], p. 2). Referindo-se à mesma questão, Charlie Gere problematiza-a considerando que quanto menor for a consciência social e política acerca desta noção, menor será igualmente a capacidade de questionamento. Como proposta o autor sugere que encaremos esta omnipresença tecnológica como culturalmente determinada em vez de a olharmos como “natural” ou “inevitável” (Gere, data, p. 201). A indisponibilidade do indivíduo para esta tomada de consciência torna-o crescentemente manipulável, um alvo fácil de estratégias de detecção que cerceiam a sua liberdade e de planos de adesão ao consumo. A invisibilidade da tecnologia torna-a potencialmente mais invasora originando um homem cada vez mais detectável, localizável, incapaz de permanecer anónimo. Esta origina o controlo, a iluminação total, a ausência de refúgio e o desaparecimento da imprevisibilidade. Recordemos aqui a imagem da prisão de THX 1138 (1971), filme da autoria de George Lucas, um lugar em que o confinamento é substituído pela vastidão infinita e a escuridão pela claridade total, em que todos os prisioneiros vestidos de branco circulam num espaço igualmente alvo sem muros ou limites. Esta é a metáfora da ubiquidade tecnológica da civilização contemporânea, um espaço no qual a ausência de barreiras e de horizonte é precisamente aquilo que aprisiona. Mas como o seu protagonista podemos optar por efectuar a caminhada da consciencialização e desembocar finalmente num local inóspito mas real.

100 Segundo Robins, o que alimenta hoje a utopia é uma noção de transcendência que está situada no âmago do imaginário tecnológico “Na medida em que os locais reais de qualquer parte foram esgotados, torna-se necessário encontrar novos tipos de lugar e fronteira para suportar as necessidade do imaginário moderno. Agora a nova fronteira abre-se em direcção ao ciberespaço, o lugar da vida virtual, e é aí que os autoproclamados pioneiros da nova tecnocultura acreditam ir encontrar um novo começo” (2003, p. 32). Mas como enfatiza Virilio “(…) O virtual é a atopia. (…). A utopia é um lugar. Um lugar ideal onde se tenta a aventura da unidade, da justiça, da unidade da beleza, da verdade, etc. É uma espécie de “cidade santa”, mesmo se é laica, onde se busca a realização do ideal. A atopia é a ausência de lugar. Efetivamente, a Internet, o cibermundo, é atópico, sem lugar, sem território. Não se trata apenas de uma atopia territorial, mas também corporal, o que a torna mais grave. É um não-lugar e um não-corpo. Sou um homem do corporal. Creio em três corpos: o do planeta (ecológico); o corpo territorial (planeta), sem o qual não há corpo social (a espécie humana); sem corpo social, não há corpo animal, de homem ou de mulher. Sou um homem de três corpos” (2001, p.8). Tetsuo mostra uma rejeição da invisibilidade da tecnologia, impondo, por oposição, a sua presença material representada pelos cenários plenos de detritos tecnológicos. Toda a parafernália de artefactos e instrumentos metálicos é disforme e grotesca. Os objectos maquínicos são sólidos, escuros, deteriorados, equivalendo-se ao orgânico com fluidos, guinchos e imperfeições. A alusão ao grande mundo analógico significa precisamente a impossibilidade de negar a sua presença. Os elementos metálicos estão presentes em todos os cenários brutalistas por onde circulam os protagonistas, nas escadarias de aço, no cimento dos edifícios, na maquinaria pesada das fábricas que lhes servem de refúgio, nas suas casas, repletas de instrumentos eléctricos, nos seus corpos e desejos e nas memórias que evocam mediante múltiplos ecrãs (neste caso, num sinal de que mesmo as recordações de momentos passados só podem ser acedidas de modo mediado). O território fundamental do filme inicial é a casa do protagonista, espaço desordenado onde confluem múltiplos aparelhos que parecem dotados de uma vida autónoma. Aí o indivíduo vive constrangido pelo espaço diminuto, acentuado pelos planos isentos de profundidade de campo, que parecem plasma-lo contra os objectos. Esta é uma casa escurecida e decrépita que produz uma sensação de clausura e asfixia. No segundo

101 filme, Tetsuo habita uma casa distinta, ampla e luminosa, onde todas as coisas parecem ter um lugar pré-definido. Contudo, a contradição entre as duas habitações é apenas aparente. Na primeira está representada a materialidade e a ausência de espaço de respiração que remetem exactamente para a penetração excessiva da tecnologia nos lugares contemporâneos enquanto que a segunda, expressa a convicção humana do conforto propiciado por esta mediante a exibição de uma área asséptica e higienizada. Esta ideia de esterilização passará a ser recorrentemente utilizada por Tsukamoto no seu cinema posterior mas sempre em oposição com o seu contrário. A família Taniguchi que parece aqui habitar um espaço idealizado está refugiada num mundo em que a tecnologia se instaurou como totalizante impregnando todas as rotinas. Quando finalmente o protagonista rompe com a apatia e arrasta a sua família para este processo de desvelação, proporciona-se uma oclusão do espaço asséptico substituído pelas trevas e pela organicidade provenientes de um universo instintivo e pulsional. A incolumidade dos espaços marcados pelas suas tonalidades frias significam para Tsukamoto os momentos prévios à revelação do mundo concreto, quando o indivíduo não questionou ainda o seu comportamento hetero-programado. As tonalidades quentes, sanguíneas e vibrantes revelam que este foi de novo posto em contacto com a experiência das emoções. A procura de rejeição do mundo artificializado conduz o herói aos vastos espaços industriais de baixa tecnologia onde residem os seus opositores. Estes que procuram dominar a tecnologia, reconhecem a sua materialidade que para Tetsuo se revela apenas no primeiro contacto entre os dois mundos. Afinal, ele próprio já observara essa materialidade e já tivera a possibilidade de experimentar o seu controlo, mas o seu poder revelou-se tão devastador que optou por extirpá-lo da memória.

102 4.4. Game Over 39 – Visões do fim e do recomeço

O horizonte torna-se um ponto de interrogação infinito e, como os cartógrafos de antigamente, entrevemos monstros de bocarra escancarada e utopias forjadas pela imaginação para lá dos confins dos nossos miseráveis e provisórios mapas. Erik Davis, Tecnognose , 2002 [1998], pp. 13-14

Tokyo Must be Destroyed é o título de um interessante artigo da autoria de Ken Hollings (2001) que relembra as inúmeras vezes em que a cidade nipónica se reergueu das suas próprias cinzas. O provocatório incitamento à destruição da metrópole surge-lhe da noção de que esta parece dotar-se da capacidade de um renascimento ainda mais vigoroso após cada demolição. Tornada capital oficial do Japão em 1869, no dealbar do período Meiji (1968-1912), Tóquio (“cidade oriental”) foi reelaborada a partir da antiga cidade de Edo, território constantemente fustigado por avassaladores incêndios, terramotos e erupções vulcânicas, reconstruída após o massivo tremor de terra de 1925, e restaurada depois dos bombardeamentos aliados decorridos durante II Guerra Mundial, que causaram a destruição de cerca de 750 mil edifícios e a morte de 100 mil habitantes 40 . Como afirma Hollings, utilizando como metáfora o epítome dos monstros ficcionais nipónicos, há algo de perturbador neste processo de constante recomeço: “(…) Tokyo’s vast centre- less sprawl seemed to expand into time and space, eternally rising unchanged from it’s own rubble. The more Godzilla demolished it, the more it came back, determined to survive” (2001, p. 248). A proposta de Tetsuo no que concerne à percepção do futuro inscreve-se igualmente nesta concepção. Se o primeiro filme culmina no apocalipse, no momento de efectivação do arrasamento do cenário urbano, o segundo sugere, num breve mas significativo epílogo, o momento da pós-aniquilação. Neste momento em que o

39 A expressão que dá o título a este capítulo, Game Over , é utilizada por Tsukamoto na formulação original anglo-saxónica como epílogo do filme Tetsuo ( Tetsuo I: O Homem de Aço, 1989) e nos dois filmes anteriores, Denchu Kozo no Boken e a curta-metragem Futsu Saizu no Kaijin . 40 Sobre esta matéria consultar : From Stone Age to Superpower da autoria de Kenneth G. Henshall, datado 1999 e reeditado em 2004. Para esta dissertação consultámos a edição portuguesa intitulada História do Japão , lançada em 2005 pelas Edições 70.

103 horizonte é finalmente desocultado, restando apenas os escombros dos edifícios que antes obstruíam a sua visibilidade, a família Taniguchi deambula pelo agora amplo território e olha-o como se o observasse pela primeira vez, exaltando a sua tranquilidade. A velocidade frenética que caracterizara todo o percurso das personagens dá lugar, momentaneamente, à lentidão do modo contemplativo, e o registo sonoro, antes intrépido e extasiante, é substituído pelo silêncio. O plano que inicia a sequência mostra-nos o rosto do protagonista, regressado à sua formulação orgânica, sobre o fundo azul do céu. O cenário é dominante, ocupando a personagem apenas o canto inferior direito do enquadramento. Só então o plano se dilata para deixar ver as outras personagens e as ruínas da cidade. Recorrendo a imagens fixas, Tsukamoto convida os espectadores a examinar a devastação. Convertidas em fotografias, estas imagens tornam-se testemunhos. Os destroços predominam apelando ao repertório imagético mediaticamente construído, de guerra, morte e devastação. Neste contexto faz sentido relembrar o que assinalou Susan Sontag em Olhando o Sofrimento dos Outros , seu último livro, acerca da diferença entre as imagens em movimento e as imagens fixas. Para a autora “[i]magens contínuas (televisão, vídeo, cinema) rodeiam-nos incessantemente, mas quando se trata de nos lembrarmos, a fotografia morde mais fundo. A memória congela as imagens; a sua imagem de base é a imagem individual. (…) A fotografia é como uma citação, uma máxima ou um provérbio. Todos nós armazenamos mentalmente centenas de fotografias, disponíveis para serem lembradas instantaneamente” (2003, p. 29). O díptico origina-se na noção de que a civilização tecnológica contemporânea converteu os homens em seres automatizados que se mobilizam não em função dos seus instintos ou emoções mas de rotinas produtivas. Enquanto outros filmes nos revelam a preocupação do ser humano estar a ser substituído por máquinas aqui a inquietação reside no facto do próprio homem se converter no seu derivado maquínico. Este sofreu as consequências da sua própria criação. Dominado pela urgência e ideal de proficiência imposto pelo quotidiano, actua automatizado, dessensibilizado. Tetsuo é o indivíduo que se autonomiza da multidão alienada e se converte no Messias que proporciona a redenção. O objectivo é acordar os sentidos, deixar de sentir a náusea do corpo. Assim, o herói mobiliza-se para uma destruição salvídica, purificadora. O tema que se encontra no cerne dos kaiju eiga é retomado, embora aqui a demolição seja

104 feita a uma escala mais reduzida: a do indivíduo. Há uma nova oportunidade de construir a cidade, símbolo da civilização, mais uma hipótese de recriar o território em harmonia com valores diferentes dos que levaram ao seu arrasamento. Neste sentido, se o monstro gigantesco certificava os estragos provocados pela tecnologia no contexto ambiental, o monstro de tamanho normal obriga a pensar o tecido social: que sociedade construímos? De que modo nos relacionamos com o outro e com nós mesmos? Assim como o Japão se adaptou à tecnologia ocidental como estratégia defensiva, numa simbiose entre a sua cultura e as ideias provenientes do Ocidente, Tetsuo converte-se em ciborgue, hibrida-se com a tecnologia, como estratagema de combate contra o antagonista. O que se pretende expressar não é uma vontade de mutação ontológica definitiva mas transitória, forjada para alcançar os objectivos de restituição do mundo analógico. O Novo Mundo anunciado não é um mundo imputrescível, operante e hipertecnologicizado, mas o regresso ao humano, às sensações, ao corpo orgânico. É certo que em Tetsuo é permanente a ideia de mutação. Esta ocorre para além corpo, enleada na irrupção veloz e indetenível das imagens, nos planos curtos, na velocidade frenética das percussões sonoras. Contudo, este não é o seu lugar inicial mas antes a consequência. Deste modo se compreendem os resultados sempre frustrados daqueles que deliberadamente procuram a fusão com a tecnologia. A decisão de inscrever no seu corpo o instrumento tecnológico já não é uma decisão do indivíduo, submetido ao poder tirânico da ciência. Por isto falha a experiência de Yatsu que procura fundir-se com uma barra de ferro, a invaginação erotizada do falo mecânico, ou o efeito da máquina inoculante que pretende converter homens em máquinas. A tentativa de apropriação da ciência pelo homem, que teria a capacidade de convertê-lo num deus, não mais é possível, já que esta se entronizou e assumiu esse poder. Só o homem comum, frágil mas determinado a não se deixar corromper e a aceitar a sua condição originária, tem a força necessária, imputada pela sua convicção, para poder lutar contra o domínio opressor. Passada a fase meditativa do epílogo, as personagens permanecem imóveis mas a imagem e som voltam a exaltar-se denunciando o recomeço de um novo ciclo. Após o genérico final, o rosto de Minori, o filho ressuscitado, preenche o enquadramento o que nos indica que o ciclo de reconstrução e destruição irá recomeçar. Game Over indica o fechamento de uma via mas simultaneamente uma possibilidade de recomeço em que

105 novos caminhos podem ser trilhados, novas conquistas efectuadas, embora o resultado possa ser a necessidade revisitada de começar de novo. Este clamor distópico em relação à tecnociência não encontra contudo ressonância em muitos dos discursos contemporâneos. Pelo contrário, muitos pensadores ambicionam o novo cenário traçado por Tetsuo , o de um mundo governado pelo impulso tecnológico que encararam, desde já, como presente e irrevogável mas simultaneamente promissor. Ainda num mundo físico e material propõem que deve ser o corpo, o organismo a moldar-se. Mas crêem que a última fronteira possa ser ultra-antropológica, pós-humana, significando uma a passagem para uma nova fase em que o corpo, ainda que já transmutado, enxertado, esvaziado, exaurido, deixe de ser necessário. Assim, a progressiva metamorfose, encarada como ampliadora dos sentidos e potenciadora de novas formas de percepção da realidade, é vista como uma etapa preparatória, já em curso, para níveis mais avançados de transmutação. A transformação integral permitirá a efectivação de uma existência pós-humana em que mentes descarnadas e amplificadas habitarão um éden ciberespacial. David Porush colocando a questão, “What aspect of humanity makes us human?”, recuperada por Kevin McCarron no seu artigo intitulado Corpses, Animals, Machines and Mannequins: The Body and Cyberpunk (2000 [1995], p. 264) relativiza a importância do corpo constituído de matéria orgânica afirmando categoricamente: “(…) The technology is us, man.” (2000 [1995], p. 264). Nesta perspectiva, Martins refere que a ultrapassagem do corpo, a passagem para um estágio pós-humano, mais do que um desejo, parece traduzir-se numa inevitabilidade: “Para podermos sobreviver, temos de abraçar o processo de transformação tecnoeconómica, tecnocibernética, possivelmente nanotecnológica, muito abrangente e acelerado (não temos outro remédio), que não nos deixará sobreviver – pelo menos não nos deixará sobreviver como humanos , como homo sapientes, ou pelo menos como entes de carne, sangue e osso (2003, p. 27). O movimento transhumanista (também designado, de modo abreviado, por >H ou H+) enquadra-se nesta visão. Consolidado a partir de 1980 conta com vários participantes onde se incluem grupos com matizes de pensamento algo diferenciadas. Considerado um movimento intelectual internacional, tem forte sustentação nos E.U.A. onde estão localizados fisicamente os seus núcleos mais activos que enquadram personalidades

106 pertencentes a diversas áreas profissionais: académicos, engenheiros, cientistas, matemáticos, médicos, performers, entre outros. Do ponto de vista ideológico, o transhumanismo defende a aplicação da tecnociência com o propósito de aumentar as aptidões físicas e cognitivas dos humanos e suprimir os aspectos negativos desta condição, tendo como finalidade última a superação da morte. No seio desta corrente enquadram-se várias linhas de pensamento de entre as quais se destacam a singularidade (singularity ) e o extropianismo ( expropianism ). Segundo Martins o primeiro autor a utilizar a palavra singularidade terá sido John von Neumann referindo-se “às transformações tecnológicas em curso no seu tempo como se estivessem a caminho de uma mutação absolutamente extraordinária” (2003, p. 50). Mas como Martins também assinala “[n]ão ficou claro se von Neumann tinha verdadeiramente em mente a passagem para o pós-humano, ou algo mais mundano, por assim dizer, mais aquém dessa fronteira, como os ciborgs.” (2003, p. 50). Este termo, por vezes substituído por The Spike (Martins, 2003 p.50), passou a ser utilizado de modo mais corrente nos anos 1980 pela elite da digital generation ou, seja pelos pensadores associados a contra-cultura desse período que ficaram conhecidos como digerati . A singularidade tem como objectivo fundamental a criação, através da IA ou mediante uma interface entre cérebro e computador, de entidades superiores que ultrapassem as capacidades humanas. Para os auto-designados singularistas , a primeira experiência relevante foi levada a cabo numa praça de touros espanhola, em 1969. De acordo com o documentário da BBC, intitulado Human Version 2.0 (2006), o neurocirurgião José Delgado, mobilizando conhecimentos obtidos após anos de investigação, conseguiu controlar a agressividade inata dos touros. Instalando eléctrodos nas partes do cérebro do animal responsáveis pela agressividade e pelo movimento, comandados por um controlo remoto, o cientista conseguiu torná-lo apático, inibindo a sua natural atitude defensiva. Sem reflectir sobre as consequências éticas desta actividade, Delgado congratula-se por ter aberto caminho para a compreensão do funcionamento do cérebro, o que aproximou a ciência da compreensão do cérebro humano. Hoje, muitas outras experimentações em animais continuam a ser concretizadas tendo em vista esta finalidade. A par destas práticas, outras têm sido realizadas no domínio da IA para avaliar as suas possibilidades de crescimento e exponenciação. Ray Kurzweil, autor do site

107 http://www.kurzweilai.net, dedicado ao tema da singularidade, e figura fundamental deste pensamento, considera que o cérebro humano será completamente compreendido ao mesmo tempo que as máquinas tiverem atingido a capacidade que este detém actualmente – isto conduzirá à singularidade. Para estas previsões o pensador toma como referência a lei de Moore 41 , considerando que esta se aplica tanto à ciência dos computadores como à neurociência. A meta prevista por Kurzweil para a fusão da mente humana com a máquina é o ano de 2029. Convicto dos seus prognósticos, o pensador acredita que a tecnociência actual dispõe dos mecanismos para melhorar as capacidades humanas e libertar-nos de uma vez por todas da matéria orgânica, deteriorável e com prazo de validade. Por essa razão, Kurzweil procura manter saudável o seu corpo precário até que este possa ser substituído por materiais mais duráveis ou se torne pura e simplesmente dispensável pela possibilidade de descarregar directamente a sua mente no ciberespaço. Nesta luta contra a corrupção da carne, o pensador afirma tomar 250 comprimidos por dia com o objectivo de “reprogramar a sua bioquímica”, com os quais diz ter sido capaz de vencer a diabetes tipo II, eliminar a sua predisposição genética para doenças cardiovasculares e atrasar o processo de envelhecimento. O seu objectivo é manter-se saudável por mais 15 anos “quando tivermos novas tecnologias provenientes desta aceleração da biologia e da biotecnologia o que irão proporcionar um aumento radical da esperança de vida.” (Kurzweil, 2006). No documento intitulado Human Body Version 2.0 , publicado no seu site em 2003, Kurzweil, partindo de dados apresentados como provenientes de fontes científicas, relata as suas previsões detalhadamente explicitando qual o percurso de substituição dos órgãos em que podemos incorrer e o que é já possível à biotecnologia concretizar. O autor diz que a palavra-chave desta transformação são os nanobots , ou seja, “blood-cell-sized robots [that] will provide the means to radically redesign our digestive systems, and, incidentally, just about everything else” (2003, p.5). No mesmo texto, afirma igualmente que há ainda um longo percurso a percorrer sendo o aparelho digestivo o primeiro a poder ser substituído. Numa fase mais avançada deste processo, em que praticamente toda a matéria orgânica tiver sido eliminada ou substituída pelos dispositivos artificiais, a pele será trocada por um revestimento mais sofisticado e resistente capaz de responder melhor às actuais mudanças do meio ambiente e,

41 Sobre a lei de Moore ver o que dissemos no capítulo 2 desta dissertação

108 finalmente, poderemos chegar ao cérebro, considerado a última fronteira. Nesse momento, a maquinalidade será internalizada. De acordo com o autor: “A variety of techniques are being developed to provide the communications bridge between the wet analog world of biological information processing and digital electronics. (…) We are rapidly growing more intimate with our technology. (2003, pp. 12-13). Por volta de 2030, “[w]hen we want to enter a virtual-reality environment, the nanobots will replace the signals from our real senses with the signals that our brain would receive if we were actually in the virtual environment. ” (2003, p.14) Hans Moravec, professor do Robotics Institute da Universidade de Carnegie Mellon, afirma algo semelhante, num artigo escrito em colaboração com Frederik Pohl para a revista OMNI. No texto, datado de 1993, intitulado Souls in Silicon , os autores afirmam: "Your body is certainly going to die. There's nothing we can do about that; but that death doesn't have to be, well, fatal . You're a possible candidate for a mind transplant"42 (p.66). Mediante um registo de ficção científica, os dois pensadores vão explicando como poderá o corpo humano abandonar o seu invólucro carnal inábil e altamente disfuncional para vir a assumir uma existência muito mais estimulante. Mas cedo afirmam que o que nos parece hoje do domínio da ficção poderá rapidamente converter- se em realidade: “(…) nuclear power, spaceships, television, and robots were also science fiction once and now they're all over the place” (Pohl, Moravec, 1993, p.67) Antecipando alguma nostalgia antropocêntrica que possa advir da sua proposta, explicam de que forma os aparentes prazeres ou benefícios da corporalidade podem ser superados. Entre outros exemplos referentes à percepção corpórea referem-se à preocupação com a apresentação de uma boa imagem física dizendo: “[t]he mere lack of

42 Hans Moravec, o cientista e autor de ficção científica, explica detalhadamente como seria possível a um indivíduo comum ver a sua mente removida do cérebro e colocada dentro de uma máquina para aí passar a habitar liberta dos constrangimentos do corpo. Segundo Charles Platt, autor do artigo intitulado “Superhumanism”, publicado na revista Wired de Outubro de 1995, vários autores têm dirigido duras críticas a Moravec: “Joseph Weizenbaum, professor emeritus of computer science at MIT, complains that Moravec's book Mind Children: The Future of Robot and Human Intelligence is as dangerous as Mein Kampf . Respected mathematician Roger Penrose has written a long essay for The New York Review of Books in which he twice uses the word «horrific» to describe some of Moravec's concepts. Book reviewer Poovan Murugesan denounces Moravec as «a loose cannon of fast ideas» who suffers from «irresponsible optimism»”. De acordo com Lagdon Winner “The question of what will become of ordinary humans in this brave new world is for Moravec of little concern. (…) Pushing the logic of the post-humanist dreams to their ultimate conclusion, he imagines that anthropoid throwbacks will be unted down and shot” (2003a, p.7).

109 a body won't keep your friends from seeing you just as you were, or as much handsomer as you wish. (…) All you need for the purpose is a TV monitor. You can be the one who controls the image it shows, and that image can be you, made up out of the data bits your computer mind will generate for you” (Pohl, Moravec, 1993, pp. 70). Quanto às capacidades mentais salientam que o cérebro computacional proporcionará uma velocidade de funcionamento bastante mais elevada do que a do cérebro orgânico o que permitirá que os seres assim transmutados possam ser muito mais eficientes do que os seus muito menos evoluídos amigos carnais: “(…) Computer functions go far faster than organic synapses; you can do in seconds what takes your meat friends hours to accomplish” (Pohl, Moravec, 1993, pp. 70). O extropianismo , outra versão do transhumanismo , que tem colaboradores comuns com o movimento singularista , teve na sua génese um conjunto de princípios 43 que afirmam visar o contínuo melhoramento da condição humana mediante a tecnologia e propõe a sua consecução mediante uma prática actuante e pró-activa. Erik Davis afirma que os extropianos consideram os seus objectivos transhumanistas como mais uma etapa da evolução humana. Como tecnologias da transformação adoptam “máquinas cerebrais e técnicas de visualização, regimes de meditação e drogas de intensificação cognitiva, redes de computador e programas neurolinguísticos” (2002, [1998], p.157). O designado Extropy Institute (ExI), sede deste movimento, defendia que os seus seguidores poderiam contribuir para alcançar as suas metas desenvolvendo investigação ou voluntariando-se para testar novas tecnologias. Este instituto foi recentemente desactivado pelos próprios fundadores sob a alegação de que os seus objectivos tinham sido, pelo menos por agora, concretizados. Não obstante o encerramento do ExI, os extropianos continuam a defender a necessidade de afirmação do seu Proactionary Principle (ProP) que, segundo Natasha Vita-More (última presidente do Instituto), “can help society by bridging the growing gap between conservative views and progress- oriented views, and educating society about the future” (2006). Os extropianos declaram ainda: “(…) Transhumanists were born into an enlightened world where perpetual progress based on science and creativity seemed inevitable. However, recent years have seen a backlash against advancements toward extending health, enhancing intelligence,

43 Estes princípios foram definidos por Max More no final dos anos 1980. Em http://www.extropy.org/principles.htm é possível ter acesso à sua versão 3.11, actualizada pelo mesmo autor em 2003.

110 understanding emotions, and the ever-increasing control we now can take over our own destinies. We now face an unprecedented battle for the future of humanity. Groups intent on halting scientific advancement are growing in their political influence over governments and legislation.” (http://www.extropy.org/) Outras perspectivas podem ser identificadas no que concerne a esta matéria sendo que o próprio conceito de avanço científico não parece ser consensual. Simultaneamente ao entusiasmo gerado pela tecnociência e pelas suas propaladas virtualidades, onde se inclui a possibilidade futura e desejável de uma existência para além do corpo, constrói- se um pensamento de questionamento ou mesmo de contestação. Este pensamento tem contribuído para colocar também algumas questões fundamentais. Entre os que contestam a “fé no progresso tecnológico, vulgo «fé na ciência»” (Martins, 2003, p. 27), talvez o exemplo mais excessivo seja o do matemático Theodore Kaczynski, tornado conhecido pelos media como Unabomber , após ter endereçado correspondência com explosivos a vários cientistas nos E.U.A. Autor de um manifesto intitulado Industrial Society and Its Future 44 , Kaczynski lamenta que os limites impostos pela natureza não estejam a ser respeitados pela civilização tecnológica, razão pela qual justifica a sua necessidade de intervenção. Bill Joy constata a surpreendente clareza e pertinência de algumas das considerações do manifesto de Kaczynski embora discorde da sua actuação. Joy 45 , em Why the future dosen’t need us , artigo publicado na revista Wired em Abril de 2000, afirma: “Kaczynski's actions were murderous and, in my view, criminally insane. He is clearly a Luddite, but simply saying this does not dismiss his argument (…)” A partir daqui o autor questiona-se acerca das consequências do processo tecnológico em curso que promete remeter o humano para um segundo plano num mundo governado por máquinas. Impossível deixar de lembrar neste contexto cientista imaginado por Katsuhiro Otomo em Akira (1988) que prevê resultados desastrosos provenientes dos seus experimentos científicos mas é incapaz de os deter perante o fascínio que o seu poder e incerteza exercem sobre si.

44 O manifesto do Unabomber pode ser lido na Internet em http://www.thecourier.com/manifest.htm. Este manifesto foi publicado nos jornais New York Times e Washigton Post , a 19 de Setembro de 1995, com autorização das autoridades estado-unidenses que esperavam assim conseguir detectar a identidade do autor até aí desconhecida, expectativa que se confirmou. 45 Será importante salientar que Bill Joy foi durante largo período integrante do grupo dos digerati tendo este seu artigo de carácter crítico sido mal recebido pelos seus colegas apologistas do ímpeto tecnológico.

111 Muitos outros autores têm colaborado para o questionamento deste excessivo entusiasmo com as produções da tecnociência. José Luís Garcia, reflectindo sobre esta matéria afirma que “o nosso tempo tem uma espécie de invisibilidade sobre o avanço tecnológico, que considera um bem em si, como algo necessário ao crescimento económico e este como algo que não se pode travar” (2006, p. 33). Na sua perspectiva esta visão acerca dos benefícios e indetenibilidade do processo tecnológico é algo que já está a ser desmentido por algumas das suas consequência, nomeadamente ao nível do meio ambiente e deverá assim dar lugar a uma atitude de questionamento e de percepção de que é necessário identificar outras vias. Este entusiasmo com a tecnociência tem sido encarado pelos pensadores críticos como neo-gnóstico. Mark Dery menciona vários autores que pensam num tom místico e milenarista onde encerram a proposta de uma pós-humanidade. De acordo com o autor estas descrições e desejos estão fundamentados numa espécie de determinismo tecnológico que pode cair no perigo de não considerar algumas realidades concretas, uma espécie de fé num deus ex machina de final de século. (Dery, 2000 [1995], p.21). Hermínio Martins utiliza o termo “gnosticismo tecnocientístico” para referir-se ao “(…) casamento das realizações, projectos e aspirações tecnológicos com os sonhos caracteristicamente gnósticos de se transcender radicalmente a condição humana”(1996 [1993], p.172), noção que o autor encara como uma tecnoutopia muito distante da tentativa de resolução dos problemas reais. Garcia alerta-nos ainda para que não permaneçamos ingénuos em relação às anunciadas transformações, crentes na sua dimensão fantasiosa e na dificuldade de as pôr em prática. De acordo com o autor “as objecções a esta possibilidade, que certos meios científicos têm por hábito apresentar, não nos deve conduzir ao equívoco” já que, como sustenta o autor, “não se deve (…) negligenciar o facto de que a acumulação de práticas biomédicas está já, em diversas áreas, a alterar as capacidades físicas e comportamentais (esses são os casos notórios de muitos âmbitos do desporto de alta competição e a geração de fármacos como o Prozac e o Viagra).” (Garcia, 2006, p. 36). No que diz respeito à engenharia genética, área a que este pensador tem dedicado a sua investigação através do prisma da teoria social, afirma que esta nos “[confronta] com a tentação de modificar a natureza humana tal como a conhecemos até hoje e de «aperfeiçoar» as suas características a diversos níveis, desde logo através da selecção de embriões humanos”.

112 (2006, p. 36). Chama ainda a atenção para o facto das mutações genéticas hoje já abundantemente efectuadas no campo da agricultura e também com animais terem como horizonte próximo a vida humana. Na sua óptica “[p]odemos vir a chegar a uma espécie de eugenismo de mercado muito rapidamente.”, “há investigadores, das áreas das biologias e da genética, que acreditam que a evolução humana pode ser dirigida pelo próprio homem, implicando a transmutação da espécie humana. E põem-se a especular sobre a existência possível de fusões homem-máquina, máquina-homem.” (Garcia, 2005, p. 6) No quadro do novo e complexo cenário cibercultural e das diferentes formas de o perspectivar, que equaciona visões distintas acerca do devir da espécie humana, Laymert Garcia dos Santos elabora uma síntese em que identifica quatro Variações sobre o futuro do humano . No ensaio com o mesmo título (2003), estas diferentes perspectivas são expostas mediante o recurso à argumentação de diferentes autores que tem reflectido sobre o assunto. O autor alude em primeiro lugar à perspectiva de Bill Joy expressa no seu artigo anteriormente citado nesta dissertação, salientando que, na sua óptica, o problema coloca-se no perigo de extinção do humano pelo surgimento de uma espécie artificial capaz de o substituir. Esta possibilidade é, na opinião de Joy, cada vez mais plausível devido ao poder que novos desenvolvimentos tecnológicos como a engenharia genética, a nanotecnologia e a robótica têm vindo a adquirir. Na confluência da evolução destes três campos estaria a criação de artefactos mais desenvolvidos que os humanos e capazes de se auto-replicar. Temendo esta ultrapassem da espécie humana concretizável a curto prazo tendo em conta os desenvolvimentos em curso, Joy propõe a imposição de limites ao ímpeto de criação tecnológica. Em seguida, Santos dá nota do pensamento de Donna Haraway. Começando por aludir ao pensamento expresso pela autora no seu recorrentemente citado Manifesto Ciborgue , escrito em 1985, o autor salienta que esta encara o futuro do humano não como o resultado de uma competição natural e artificial “mas como uma mutação da própria espécie humana” (Santos, 2003, p. 154). Como salienta Santos, na interpretação da autora, esta transmutação está já em curso com o advento do ciborgue figura que se inscreve não apenas na fusão entre sujeito e objecto mas está presente igualmente no plano sócio-político. Para Haraway a principal questão trata-se de compreender a extensão da imbricação entre humano e tecnologia que nos

113 leva à conclusão de que estas duas dimensões são já indissociáveis. Na sua perspectiva, é a imersão da cultura tecnológica que faz com que estejamos já incluídos na categoria de ciborgues. No entanto, é aqui importante salientar, ultrapassando o trabalho de síntese que temos vindo a comentar, que Haraway repensou o seu aforismo que afirma que já somos todos ciborgues , explicitando que a sua reflexão está constrangida a uma parte restrita do mundo contemporâneo. Segundo Claudia Springer, a autora terá dito numa entrevista concedida a Andrew Ross e Constance Penley que a sua frase é inexacta “porque suprime as diferenças entre o trabalho realizado por mulheres privilegiadas nos países do primeiro mundo e descarta as mulheres das nações do terceiro mundo que trabalham em fábricas, produzindo componentes microeletrônicos (p.13). Em seguida, o autor sintetiza o pensamento de N. Katherine Hayles expresso em particular no seu livro intitulado How we Became Posthuman de 1999. Este começa por atribuir alguma similitude entre o pensamento de Hayles e de Haraway para em seguida os diferenciar salientando que “(…) enquanto Haraway enfatiza a dimensão científica e histórico-política dessa construção, Hayles está mais interessada em como ela implica uma transformação da subjectividade (…)” (2003, p. 157). Assim sendo, e perante a argumentação da autora que admite que as transformações tecnológicas contemporâneas, como a Inteligência Artificial, têm repercussões na reconstituição do humano, Santos supõe que Hayles, mais do que perspectivar uma derivação do ciborgue equaciona a hipótese de extinção do humano, da substituição deste por uma nova espécie pelo que acaba por aproximá-la do primeiro autor mencionado. Contudo, também enfatiza que a perspectiva desta não partilha do pessimismo de Joy, pois segundo afirma a autora este é o preço a pagar por nos tornarmos seres processadores de informação. Como refere o teórico, “[p]ara ela não se trata de saber se nos vamos tornar pós-humanos, mas que tipo de pós-humanos seremos.” (Santos, 2003, p. 159). Hayles afirma, contudo, que esta noção não assinala a morte do humano mas apenas o fim de uma certa concepção de humano. Finalmente, Santos alude ao posicionamento de Gilles Deleuze sobre a mesma matéria referindo-se a esta como a visão mais radical. Esta última variação assume uma desontologia humana que dão origem ao que Deleuze designa como uma forma-Além do Homem (2003, p. 161), uma entidade resultante da hibridação entre biologia e

114 silício, que não é ainda o desaparecimento total do homem mas o advento de uma formulação melhorada. Para Hermínio Martins, toda esta reflexão conduz à assunção por parte dos transhumanistas que “o homem deixará de ser um mero homo faber (…) [para] tornar-se finalmente o faber hominis, o Homem construtor do Homem, e não por qualquer processo de desenvolvimento espiritual embora um Homem de certo modo tacitamente autodeífico.” (Martins, 2003, p.62). Neste percurso de “Experimento-Sobre-o-Homem- pelo-Homem” o autor identifica três estádios sucessivos de evolução humana concretizados no “homem biológico comum”, “os ciborgues nas suas várias fases, da mera aquisição de próteses até à fase final da interface cérebro-máquina e a modificação tecnológica do sistema nervoso central” e finalmente a “descarnação e passagem ao ers virtualissimum, verdadeiramente pós-humano”. (2003, p. 63). De acordo com Robins, “[é] muito provável (…) que continuemos a usar as tecnologias como um meio de nos distanciarmos e separamos dos acontecimentos do mundo e que prefiramos imergir num mundo alternativo de acontecimentos virtuais. Mas devíamos, pelo menos, reconhecer que existe uma possibilidade alternativa. Na sua óptica “ o imperativo é reinstalarmo-nos no mundo, não no mundo abstracto mas no mundo histórico e político” (2003, p.53). Reforçando uma noção que visa abandonar fantasias transcendentalistas e optimizadoras da capacidade humana e que tem em conta o mundo concreto, em que estas expectativas podem ser concretizáveis a curto prazo para um número muito reduzido da população mundial, Dery salienta que “faríamos bem em lembrarmo-nos que – pelo menos no futuro previsível – estamos para ficar, nestes corpos, neste planeta” (2000 [1995], p.29).

4.5. Conclusão

Pela sua narrativa de cariz onírico e matriz surrealista, mais acentuada em Tetsuo (Tetsuo I: O Homem de Aço ), mas ainda com bastantes reminiscências em Tetsuo II: Body Hammer ( Tetsuo II: O Ciberpunk ), e devido à sua linguagem plena de simbolismos, o díptico é incapaz de se libertar de uma multiplicidade de interpretações ambivalentes. Este tem sido comummente pensado como uma glorificação da transmutação do humano em máquina, numa espécie de passagem para um grau

115 superior de evolução antropomórfica. Submetidas a uma relação inexorável com a tecnologia que se lhes impõe em modalidades diversas, quase todas as personagens são alvo de mutações que implicam a inscrição no seu corpo orgânico de objectos metálicos, convertendo-as em amálgamas de carne e metal. A hibridação do homem com instrumentos tecnológicos originou a noção de que os filmes fariam parte de uma galeria de representações artísticas celebradoras do ímpeto tecnocientífico crescente, o que agradou aos partidários dessa visão. O facto de se iniciar com uma personagem que procura, mediante uma prática sacrificial, a transformação da sua morfologia interna com objectos metálicos, reforçou estas perspectivas o que fez atribuir a Shinya Tsukamoto a designação de cineasta ciberpunk. Muitos pensadores ou meros persuadidos no potencial da tecnociência contemporânea, que recorrem não apenas a simulações artísticas dessa exaltação mas inscrevem no próprio corpo, mediante as mais diversas práticas, a vontade de transmutação da sua natureza orgânica, observaram aí representada a súmula dos seus desejos. Esta ideia acentua-se quando o díptico mostra a eclosão do corpo débil do vulgar trabalhador assalariado, figura permanente da paisagem de Tóquio e do cinema de Tsukamoto, protuberâncias metaliformes que o dotam de uma força sem precedentes. No entanto, como procurámos delinear mediante três diferentes perspectivas, o olhar sobre o corpo humano, sobre a configuração dos ambientes e sobre os futuríveis, ou visões acerca da configuração do futuro, o díptico procura antes o questionamento dessa celebração. Tsukamoto representa um ciborgue inestético e disfuncional, cenários plenos de detritos metálicos e de baixa tecnologia diferenciados das visões idealizadas das cidades futuristas e uma visão de futuro catastrofista que considera que apenas pelo arrasamento total, pelo recomeço é possível a harmonia. No díptico Tetsuo, após um momento revelador em que o indivíduo comum põe em causa a civilização tecnológica, um sentimento de permanente desconforto. A esse indivíduo é imputada a tarefa de lutar contra uma sociedade dessensibilizada, asseptizada, que comanda as condutas dos homens que aí habitam, mas esta é uma tarefa dolorosa, sacrificial. Aí o herói assume uma função messiânica, anunciadora da dimensão humana que é necessário reconquistar. O cinema tsukamotiano assume a função de anunciar-nos que na civilização tecnológica contemporânea já não é o ser humano quem controla a acção. Quem o faz é a máquina

116 tecnológica e o sistema que a engendrou. Trata-se afinal de uma experiência religiosa em que nos submetemos à vontade de um deus que nos monitoriza, manipula e tranquiliza. Esta é também a intuição de Robins que afirma que “as tecnologias funcionam para mediar, para diferir, mesmo para substituir, a interacção com o mundo. Usamo-las para evitar o contacto com o mundo e com a sua realidade (…). Não há nada que receemos mais do que ser tocados pelo desconhecido. As nossas tecnologias mantêm o mundo à distância. Fornecem os meios para nos isolarmos da perturbadora imediatez do mundo do contacto” (2003, p. 37). A sua proposta é que resgatemos a posição do individuo no lugar de comando, permitindo que a acção política se exerça em lugar de substitui-la pela potencia decisora da tecnologia. Na perspectiva de Garcia “[a] arte poderia inserir-se assim no âmbito alargado das correntes de pensamento sobre as relações entre ciência, tecnologia e sociedade, pondo em questão a ideia da absoluta neutralidade do empreendimento científico e participando, com a sua especificidade, nos dilemas de biologia filosófica e nos debates em torno de como habitar sabiamente o nosso mundo e do futuro da condição humana” (2007, p.96). A diferença mais significativa entre o díptico Tetsuo e os filmes subsequentes do mesmo realizador, para além da perda do registo de ficção científica, é a noção de que pode existir uma convivência pacífica entre a sociedade e o indivíduo. Para que este escape à dessensibilização que lhe é imposta não mais é necessária a solução radical da aniquilação da cidade, símbolo da urbanidade e da tecnologia. A partir da tomada de consciência é possível uma coexistência pacífica entre ambas as facções. Os seus filmes abandonam assim uma dimensão messiânica para se contentarem com a noção de que se o indivíduo estiver desperto para as suas próprias emoções e sentimentos, expressas através do seu lado físico a tecnociência não poderá mais submete-lo.

117 5. EPÍLOGO

Como tivemos oportunidade de expressar ao longo deste trabalho é longa e profusa a imbricação entre a tecnologia e o cinema. De facto, a tecnologia de base científica e os seus efeitos sobre as múltiplas dimensões da condição humana têm sido objecto de recorrentes abordagens por parte do cinema, desde os seus primórdios. Na célebre sessão pública do café do boulevard des Capucines em Paris que assinala simbolicamente, no crepúsculo do século XIX, o nascimento da técnica cinematográfica 46 , é o poder encantatório da máquina de registar e distribuir imagens que prevalece quando os espectadores reagem emocionados pela impressão de realidade motivada pela ilusão do movimento. Escasso tempo depois é a própria máquina representada, a magnificência autoritária da locomotiva que se aproxima furiosamente da estação de La Ciotat, que surpreende a plateia, num misto de atemorização e fascínio 47 . É interessante notar que embora, claramente, os primeiros anos do cinematógrafo tenham sido marcados pelo deslumbramento com o aparelho técnico que representa com grande eficácia os objectos do real sobre os quais deposita o seu olhar, um dos seus primeiros filmes – precisamente aquele que, nesses anos fundadores, gerou mais relatos de espanto e inquietação – seja o que trata precisamente o tema da máquina. A locomotiva a vapor, metonímia do ímpeto tecnológico nascido da Revolução Industrial, é a protagonista do filme, o seu objecto central. Perspectivado a partir de um olhar oblíquo que sugere que se deterá apenas para além do ecrã, o comboio deste filme inaugural denota já a vocação do cinema para extrapolar o mero registo objectivo e factual – que ilusoriamente lhe fora atribuído, mas que é incapaz de resistir a uma visão mediada – e a predisposição para a assunção do tema da tecnologia

46 Como acontece com a invenção de qualquer artefacto tecnológico, o cinema não decorre de um momento inspirado de um criador solitário mas de múltiplos contributos e cruzamentos. A sessão realizada na cave do café situado no boulevard des Capucines em Paris a que aqui se faz referência é considerada a primeira sessão pública de exibição de cinema para uma audiência pagante e foi realizada a 28 de Dezembro de 1895, data com que se assinala vulgarmente o nascimento do cinema. Uma outra forma de assinalar o nascimento de uma invenção é através da data da sua patente. O cinematógrafo de Louis e Auguste Lumiére foi patenteado a 13 de Fevereiro de 1895 com a designação aparelho que serve para a obtenção e visão de provas cronotográficas . (Alves, 1986, p.79) 47 Referimo-nos aqui ao filme da autoria de Louis e Auguste Lumière, intitulado no original L’Arrivée d’un Train en Gare de La Ciotat , que em apenas um plano com a duração de cerca de 50 segundos mostra a chegada de um comboio a uma estação ferroviária. De acordo com Claude Beylie, este filme foi exibido publicamente cerca de um mês após a sessão de cinema que anuncia o advento do cinema a que aludimos na nota anterior, e não nessa primeira sessão como muitas vezes é sugerido de modo impreciso. (1997 [1989], p.20)

118 como algo que lhe é próprio. A este propósito vale a pena lembrar uma resposta de Wim Wenders, quando questionado acerca da representação frequente de comboios na sua cinematografia: “O comboio, com todas as suas rodas, pertence simplesmente ao cinema. É uma máquina, assim como uma câmara cinematográfica. Ambos provêm do século XIX, de uma época mecânica. Os comboios são «câmaras a vapor sobre carris»” (1990, p. 55). A existência de um vínculo inexorável entre cinema e tecnologia é reconhecida por Arnold Hauser, no ensaio intitulado A Era do Cinema : “A máquina é a sua origem, o seu medium e o seu assunto mais adequado. Os filmes fabricam-se e mantêm-se ligados a um aparelho, a uma máquina, num sentido mais estrito do que os produtos das outras artes. A máquina, aqui, ergue-se entre o indivíduo criador e a sua obra e entre o indivíduo receptor e a sua fruição da arte. O que se move, como motor, mecanicamente, automaticamente, é o fenómeno fundamental do filme. (…) Os prodígios e os estratagemas maliciosos dos instrumentos, autómatos e veículos são os seus assuntos mais antigos e eficientes.” (1989[1957], p.68). Na perspectiva do teórico, tecnologia é para o cinema simultaneamente a sua matriz e o seu tema fundamental. É a própria natureza tecnológica do cinema que, desde a sua origem, o torna o lugar privilegiado para a simbolização da tecnologia. A história do cinema e as várias etapas que a constituem têm sido invariavelmente definidas em função de alterações tecnológicas que afectam continuamente a sua ontologia. Estas variações, e necessariamente rupturas com o seu modo de ser prévio, têm igualmente produzido marcas indeléveis na configuração e reconfiguração da linguagem, das formulações estéticas e narrativas e das opções temáticas da obra fílmica. O cinema começa por ser apenas máquina: cinematógrafo, curiosidade técnica, depois (se não quase em simultâneo) brinquedo de feira, manifestação pueril, fútil e popular. As imagens em movimento nascem mudas, monocromáticas e bidimensionais, mas rapidamente a nova técnica enceta um percurso de renovação e reinvenção tecnológica. É de capital relevância o primeiro marco de mutação tecnológica do cinema: a passagem do mudo para o sonoro. Fredric Jameson alude a esta transmutação como algo de essencial. Na sua perspectiva, para cada uma dessas etapas pode ser definida uma história autónoma na medida em que mudo e sonoro são “(…) two distinct evolutionary

119 species or subspecies (…) of which the later, drove the former out and made it extinct” (1992, p. 157). Esta disjunção, assinalada por Jameson, põe em evidência a já abundantemente documentada, penosa e reconfigurante adição do som à imagem fílmica. Apesar do cinema nunca ter sido realmente silencioso 48 , a partir do final da década de 1920 começa a exibir regularmente som sincronizado com a imagem e registado na película. Outras alterações são de assinalar, como a passagem do monocromatismo para a cor (primeiro através do sistema technicolor, que apresenta como grandes representantes Gone With the Wind ( E Tudo o Vento Levou ) e The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz ), ambos de 1939 e realizados por Victor Fleming e, em seguida, com a película a cores criada pela KODAK) e a procura de superação das limitações da bidimensionalidade através das tentativas algo frustradas, embora com sucesso temporário, como os ecrãs panorâmicos (por exemplo, o Cinerama, portentosa exibição de tecnologia abandonada devido à sua inadaptação ao cinema narrativo), películas de maiores dimensões capazes de ampliar as imagens (70 mm em vez das convencionais de 35 mm), lentes de ângulo de visão alargado (Cinemascope), ou ainda o designado cinema a três dimensões. A estas tentativas juntaram-se outras ainda mais fantasiosas e pontuais, como a de transformar o cinema numa experiência sinestésica. Aldous Huxley descreve bem esses ensaios de construção de um admirável mundo novo cinematográfico ao imaginar o cinema perceptível propiciador dos “(…) mais inacreditáveis efeitos tácteis” ( 2003 [1932], p.47). O mesmo efectua Adolfo Bioy Casares que engendra, em A Invenção de Morel , um aparato ainda mais notável capaz de reproduzir com tal exactidão a realidade que a representação deixaria de se lhe distinguir. Estaríamos perante uma espécie de dispositivo aproximado ao almejado pela contemporânea realidade virtual, sem a parafernália obsoleta e incómoda das datagloves . O percurso de reinvenção tecnológica do cinema é longo e acompanha a sua história em múltiplas abordagens: simbólica, económica, social, política, entre outras. Apesar de tudo, o cinema encontra-se hoje perante uma nova e determinante fronteira: na sua delineação aliam-se sistemas digitais, realidade virtual e computação.

48 A generalidade dos espectáculos cinematográficos era acompanhada de música ao vivo, interpretada por vezes por apenas um pianista outras vezes por uma orquestra completa. No Japão, os Benshi, performers que explicavam os filmes à audiência iletrada tornaram-se de tal forma populares que superaram a notoriedade dos actores e dos realizadores.

120 Com a intervenção do digital, o som é capaz da maior eficácia e subtileza, permitindo representar com igual impacto os trovões duma noite tenebrosa de tempestade ou o mais leve restolhar da folhagem num dia de suave brisa de verão. Na imagem constroem-se os cenários mais surpreendentes e actores contracenam com personagens ou ambientes virtuais com o maior realismo. O digital reorganiza o cinema nas suas mais diversas dimensões: produção, registo, reprodução, exibição, distribuição. Citemos a este propósito João Mário Grilo que alude também à obra de Casares antes referida: “Morel não dormia, simplesmente mudou de casa, isto é, de máquina.” (2006, p. 63). Isto significa que, num futuro próximo, um futuro que já começou, a matéria bruta a partir da qual se fabrica a imagem deixará definitivamente de ser o real para passar a ser a linguagem binária do computador. Como aponta o autor “[n]ão se trata, pois, de uma simples operação de tradução de uma continuidade visível numa descontinuidade ainda visível (como seria o caso da imagem televisiva), mas de uma operação de composição , a partir de uma descontinuidade não visível ( mas apenas legível, pela linguagem do ordenador), numa descontinuidade apenas pontual e ocasionalmente visível.” (Grilo, 2006, p. 63). Nesta relação tão próxima que lhe determinou a sua essência e atribuiu uma linguagem única, a arte cinematográfica assumiu a tecnologia como um dos seus temas fundamentais. No momento em que a ideia cibercultural preenche o nosso cenário civilizacional, o cinema não resiste a representá-lo. Dota-se para isso das antigas narrativas que o precederam e que desde cedo incluiu no seu imaginário, alicerça-se nas histórias e arquétipos que ele próprio concebeu e recorre ainda aos conceitos do presente, novos ou revisitados, onde busca inspiração.

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132 FILMOGRAFIA Nota: Esta filmografia faz referência a todos os filmes citados ao longo da dissertação. No que concerne ao trabalho de realização de Shinya Tsukamoto, elaborámos uma filmografia completa que é possível consultar em anexo. As referências aos filmes estão organizadas de acordo com os seguintes critérios: 1. Optou-se pela ordenação pela ordem alfabética do título original do filme. Indica-se, assim, em primeiro lugar o título original seguido da sua tradução portuguesa entre parênteses recto. 2. No caso dos filmes japoneses, a grafia do título é adaptada ao alfabeto latino. Ainda no que concerne aos filmes nipónicos, quando o filme não tem um título português, indica-se o título em língua inglesa, entre parênteses rectos. 4. Cada referência constante desta filmografia obedece à seguinte ordenação: título original, título traduzido, realização, data e local de produção.

Filmes Analisados

Tetsuo [Tetsuo: O Homem de Aço], Shinya Tsukamoto, 1989, Japão

Tetsuo II: Body-Hammer [Tetsuo II: O Ciberpunk], Shinya Tsukamoto, 1992, Japão

Filmes Consultados

2001 – A Space Odyssey [2001: Odisseia no Espaço], Stanley Kubrick, 1968, E.U.A., Reino Unido

A.I [A.I.: Inteligência Artificial], Steven Spielberg, 2001, E.U.A

Akira, Katsuhiro Ôtomo, 1998, Japão

Alien [Alien: O Oitavo Passageiro], Ridley Scott, 1979, E.U.A., Reino Unido

Baretto Baree [Bullet Ballet], Shinya Tsukamoto, 1998, Japão

133

Blade Runner [Blade Runner – Perigo Iminente], Ridley Scott, 1982, E.U.A

Bakuretsu Toshi [Burst City], Sogo Ishii, 1982, Japão

Clockwork Orange [Laranja Mecânica], Stanley Kubrick, 1971, Reino Unido

Crash, David Cronenberg, 1996, Canadá, Reino Unido

Dark City [Cidade Misteriosa], Alex Proyas, 1998, Australia, E.U.A

Denchu Kozo no Boken [The Adventures of Denchu Kozo], Shinya Tsukamoto, 1987, Japão

Eraserhead [No Céu Tudo é Perfeito], David Lynch, 1977, E.U.A.

EXistenZ, David Cronenberg, 1999, Canada, Reino Unido, E.U.A.

Fly, The [A Mosca], David Cronenberg, 1986, Canada, Reino Unido, E.U.A.

Freaks [A Parada dos Monstros], Todd Browning, 1932, E.U.A.

Gattaca, Andrew Niccol, 1997, E.U.A.

Gojira [Godzilla], Ishiro Honda, 1954, Japão

Heizu [Haze], Shinya Tsukamoto, 2005, Japão

Human Version 2.0, BBC, 2006, Reino Unido

134 Inosensu: Kôkaku Kidôtai [Ghost in the Shell 2 – Inocência], Mamoru Oshii, 2004, Japão

Johnny Mnemonic, Robert Longo, 1995, Canadá, E.U.A

Kôkaku Kidôtai [Ghost in the Shell – Cidade Assombrada], Mamoru Oshii , 1995

Matrix, The, Andy e Larry Wachowski, 1999, Australia, E.U.A

Matrix Reloaded, The, Andy e Larry Wachowski, 2003, E.U.A

Matrix Revolutions, The, Andy e Larry Wachowski, 2003, E.U.A

Metropolis [Metrópolis], Fritz Lang, 1927,Alemanha

Minority Report [Relatório Minoritário], Steven Spielberg, 2002, E.U.A

Robocop [Robocop: O Polícia do Futuro], Paul Verhoeven, 1987, E.U.A

Rokugatsu no Hebi [], Shinya Tsukamoto, 2002, Japão

Soseiji [Gemini]; Shinya Tsukamoto, 1999, Japão

Strange Days [Estranhos Prazeres], Katherine Bigelow, 1995, E.U.A

Terminator, The [O Exterminador Implacável], James Cameron, 1984, E.U.A

Terminator 2: Judgment Day [Exterminador Implacável II: O Dia do Julgamento], James Cameron, 1991, França, E.U.A

THX 1138, George Lucas, 1971, E.U.A

135 Tokyo Fisuto [Tokyo Fist], Shinya Tsukamoto, 1995, Japão

Videodrome [Videodrome – Experiência Alucinante]; David Cronenberg, 1983, Canada, E.U.A.

Vitaru [Vital]; Shinya Tsukamoto, 2004, Japão

136

ANEXO Filmografia de Shinya Tsukamoto como Realizador

137 FILMOGRAFIA DE SHINYA TSUKAMOTO COMO REALIZADOR

PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS FÍLMICAS (filmes indisponíveis)

1974 GENSHI-SAN Duração: 10 mins. Registo: 8 mm; cor

1975 KIODAI GOKIBURI MONOGATARI Duração: 50 mins. Registo: 8 mm; cor

TSUBASA Duração: 25 mins. Registo: 8 mm; cor

1976 DONTEN Duração: 60 mins. Registo: 8 mm; cor

1977 JIGOKUMACHI SHOBEN GESHUKU NITE TONDA YO Duração: 120 mins. Registo: 8 mm; cor

1978 SHIN TSUBASA Duração: 40 mins. Registo: 8 mm; cor

1979 HASU NO HANA TOBE Duração: 90 mins. Registo: 8 mm; cor

138 1986 FUTSU SAIZU NO KAIJIN [THE PHANTOM OF REGULAR SIZE] Duração: 18 mins. Registo: 8 mm; cor Argumento, Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Elenco: , Shinya Tsukamoto, Key Fujiwara, Nobu Kanoaka

FILMOGRAFIA OFICIAL

1987 DENCHU KOZO NO BOKEN [THE ADVENTURES OF DENCHU KOZO] Duração: 45 mins. Registo: 8 mm; cor Produção: Kaijyu Theater Produtor: Shinya Tsukamoto Argumento, Fotografia, Montagem, Efeitos Especiais: Shinya Tsukamoto Música: Nobu Kanoaka, Junt Joint Junk, Bachikaburi Elenco: Nairaki Semba, Nobu Kanoaka, Tomorowo Taguchi, Shinya Tsukamoto, Kenji Nasa, Key Fujiwara.

1989 TETSUO [TETSUO: O HOMEM DE AÇO] 49 Duração: 67 mins. Registo: 16 mm; p/b Produção: Kaijyu Theater Produtor: Shinya Tsukamoto Assistente de realização: Key Fujiwara Argumento, Fotografia, Montagem, Efeitos Especiais: Shinya Tsukamoto Música: Chû Ishikawa Elenco: Tomorowo Taguchi (trabalhador assalariado), Key Fujiwara (namorada), Shinya Tsukamoto (Yatsu), Nobu Kanoaka (mulher no metro), (vagabundo), Naomasa Musaka (médico)

49 Editado em Portugal pelas edições Fantasporto , Colecção 20 ANOS FANTAS, Prémio Especial do Júri Fantasporto '92

139 1990 HIRUKO: YOKAI HANTA [HIROKU THE GOBLIN] Duração: 90 mins. Registo: 35 mm; cor Produção: There’s Enterprise Inc. / Kaijyu Theater Produtores: Toshiaki Nakazawa, Masamichi Higuchi, Toshiyasu Nakamura Assistente de realização: Shigeru Sakurada Argumento: Shinya Tsukamoto baseado na manga da autoria de Daijiro Moroboshi Fotografia: Masahiro Kishimoto Montagem: Yoshitami Koroiwa Efeitos Especiais: Eiichi Asada Música: Tatsushi Umegaki Elenco: , Masaki Kudo, Megumi Ueno, Yasuaki Tsukahara, Daisuke Yamashita, , Hideo Murota, Kimiki Yo, Chika Asamoto

1992 TETSUO II: BODY HAMMER [TETSUO II: O CYBERPUNK] 50 Duração: 83 mins. Registo: 35 mm; cor Produção: Toshiba – EMI / Kaijyu Theater Produtores: Hiroshi Koizumi, Shinya Tsukamoto, Fuminori Shishido, Fumio Kurokawa, Nobuo Takeuchi, Horomi Aihara Assistentes de realização: Hiroyuki Kojima, Shinichi Kawahara, Kiyohide Otani Argumento, Fotografia, Montagem, Efeitos Especiais: Shinya Tsukamoto Música: Chû Ishikawa Elenco: Tomorowo Taguchi (Tomoro Taniguchi – trabalhador assalariado), Shinya Tsukamoto (Yatsu), Nobu Kanoaka (Kana), Keinosuke Tomioka (Minori), Min Iwata (mãe de Taniguchi), Su-Jim Kim (pai de Taniguchi), Hideaki Tezuka (líder dos skinheads), Toraemon Utazawa (cientista).

50 Editado em Portugal pelas edições Fantasporto

140 1993 MTV JAPAN THO#1 Duração: 50 segs. Registo: 16 mm; p/b Produção: MTV Japão Produtor: Ideaki Oguri Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Música: Nine Inch Nails Nota : Separador de programação

1995 TOKYO FISUTO [TOKYO FIST] Duração: 87 mins. Registo: 35 mm; cor Produção: Kaijyu Theatrer Produtor: Shinya Tsukamoto Assistentes de realização: Kiyohide Otani Argumento: Shinya Tsukamoto, a partir de uma história de Hishashi Saito e Shinya Tsukamoto Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Música: Chû Ishikawa Elenco: Kaori Fujii; Shinya Tsukamoto; Koji Tsukamoto; Naoto Takenaka; Naomasa Musaka; Koichi Wajima; Chû Ishikawa; Nobu Kanoaka; Tomorowo Taguchi

1998 BARETTO BAREE [BULLET BALLET] Duração: 87 mins. Registo: 35 mm; p/b Produção: Shinya Tsukamoto / Kaijyu Theater Produtor: Shinya Tsukamoto Assistentes de realização: Shinichi Kawahara; Kiyohide Otani; Takeshi Koide; Hisakatsu Huroki Argumento, Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Música: Chû Ishikawa

141 Elenco: Shinya Tsukamoto; Kirina Mano; Tatsuya Nakamura; Takahiro Murase; Kyoka Suzuki; Tomorowo Taguchi; Su-Jin Kim; Masato Tsujioka; Kazuyuki Izutsu; Koji Tsukamoto; Katijah Badami; Takahiro Kandaka; Makoto Shiozaki, Takahide Sakuma; Samuel Pop Aning

1999 SOSEIJI [GEMINI] 51 Duração: 84 mins. Registo: 35 mm; cor Produção: Sedic Internacional / Marubeni Produtor: Toshiaki Nakazawa; Taishi Nishimura Assistente de realização: Kiyohide Otani Argumento: Shinya Tsukamoto a partir da história Soseiji: Aru Shikeiin ga Kyokaishi ni Uchiaketa Hanashi da autoria de Edogawa Rampo Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Música: Chû Ishikawa Elenco: ; Ryo; Yasutaka Tsutsui; Shiho Fujimura, Naoto Takenaka; ; Renji Ishibashi; Akaji Maro; Su-Jin Kim; Tomorowo Taguchi; ; Shungiku Uchida; Eri Yu; Koji Tsukamoto

2003 ROKUGATSU NO HEBI [A SNAKE OF JUNE] Duração: 77 mins. Registo: 35 mm; p/b (colorizado a azul) Produção: Kaijyu Theater / Shinya Tsukamoto Produtor: Shinya Tsukamoto Assistente de realização: Shinichi Kawahara; Takeshi Koide; Hisakatsu Kuroki Argumento, Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Música: Chû Ishikawa Elenco: Asuka Kurosawa; Shinya Tsukamoto; Yugi Kotari; Susumo Terajima; Tomorowo Taguchi; Takuji Suzuki; Mansaku Fuwa; Ikko Suzuki

51 Editado em Portugal pela Atalanta

142 TOKAGE Duração: 50 mins. Registo: Hi-vision (televisão) Produção: NHK Enterprise 21 / Kazumo/ Kaijyu Theatrer Produtor: Makoto Ueda; Naonori Kawamura; Shinya Tsukamoto Argumento: Baseado na história de Banana Yoshimoto Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Música: Kensaku Tanikawa Elenco: Ryo

2004 VITARU [VITAL] Duração: 86 mins. Registo: 35 mm; cor Produção: Shinya Tsukamoto / Kaijyu Theatrer Produtor: Shinya Tsukamoto; Keiko Kusakabe; Kiyo Joo; Koichi Kusakabe; Shinichi Kawahara Assistente de realização: Shinichi Kawahara; Takeshi Koide; Hisakatsu Kuroki Argumento, Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Música: Chû Ishikawa Elenco: Tadanobu Asano; Nami Tsukamoto; Kiki; Kazuyoshi Kushida; Lily; Jun Kunimura; , Go Riju; Hana Kino

2005 FIMEIRU [Female] Segmento TAMAMUSHI Duração: 22 mins. [duração total do filme 118 mins.] Registo: 35 mm; cor Produção: Female Film Partners Produtor: Shusaku Matsuoka; Shinya Tsukamoto; Shinichi Kawahara Assistente de realização: Takeshi Koide; Hisakatsu Kuroki Argumento: Shinya Tsukamoto baseado na história de Mariko Koike Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Música: Chû Ishikawa

143 Elenco: Tadanobu Asano; Nami Tsukamoto; Kiki; Kazuyoshi Kushida; Lily; Jun Kunimura; Ittoku Kishibe, Go Riju; Hana Kino

HEIZU [HAZE] Duração: 49 mins. Registo: DV; cor Produção: Kaijyu Theatrer Produtores: Shinya Tsukamoto; Shinichi Kawahara Assistente de realização: Takeshi Koide; Yuji Anbe Argumento, Fotografia, Montagem: Shinya Tsukamoto Música: Chû Ishikawa Elenco: Shinya Tsukamoto; Kaori Fujii Nota: originalmente integrado na sexta edição do projecto Digital Short Films by Three Filmakers , apresentado na 58º Festival de Cinema de Locarno, realizado em 2005, Heizu foi exibido conjuntamente com Wordly Desires de Apichatpong Weerasethakul e Magicians de Song Il-gon e tinha a duração de cerca de 30 mins.

2006 AKUMU TANTEI [] Duração: 106 mins. Registo: 35 mm; cor Produção: Kaijyu Theatrer Produtores: Shinya Tsukamoto; Shinichi Kawahara; Yumiko Takabe; Taku Uhiyama Argumento, Montagem: Shinya Tsukamoto Fotografia: Shinya Tsukamoto; Shida Takayuki Música: Chû Ishikawa Elenco: ; Hitomi; Masanobu Ando; Ren Ohsugi; Shinya Tsukamoto

144 FONTES:

Akumu Tantei em Cinema. Festa Internazionale di Roma – RomaFilmFest [online], URL: http://www.romacinemafest.org/catalogoEng.asp?ID_WEB_FILM=70, obtido em 10/03/2007

Edwards, Russell (2006) , Nightmare Detective em “Variety”, 15 Out. [online], URL: www.variety.com/index.asp?layout=print_review&reviewid=VE1117931879&category id=31, obtido em 18/02/2007

Jeonju Internacional Film Festival (2006) em Cinedie Asia, 17 Maio [online], URL: http://www.asia.cinedie.com/jiff_06-p3.htm, obtido em 26/09/2006

Mes, Tom (2005), Shinya Tsukamoto filmography em Tom Mes (2005) Iron Man: The Cinema of Shinya Tsukamoto , Surrey, FAB Press, pp. 209-216

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