Professora Doutora Patrícia Kátia Da Costa Pina Universidade Estadual De Santa Cruz, UESC, Ilhéus-BA
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Professora Doutora Patrícia Kátia da Costa Pina Universidade Estadual de Santa Cruz, UESC, Ilhéus-BA CRÔNICA, JORNALISMO E LEITURA: AS ARMADILHAS DO IMPRESSO Parece às vezes que escrever crônica obriga a uma certa comunhão, produz um ar de família que aproxima os autores acima da sua singularidade e das suas diferenças. Antonio Candido, “A Vida ao Rés-do- Chão” Este trabalho traz uma proposta que, à primeira vista, e para muitos estudiosos da literatura, pode soar como uma heresia, ou, na melhor das hipóteses, como um absurdo: comparar as técnicas de composição de crônicas utilizadas por Machado de Assis e Sosígenes Costa, de forma a criarem padrões de gosto de consumo do literário e de maneira a driblarem as estratégias de dominação do leitorado desenvolvidas pelas folhas em que publicavam. O herético e absurdo estaria, suponho, em comparar nosso maior nome literário a um ilustre desconhecido da maioria dos homens e mulheres de letras, neste nosso século XXI. Certamente, a pergunta primeira seria: quem é esse Sosígenes Costa? Pois começo este texto fazendo as devidas apresentações, como mandam as regras da boa educação. Sosígenes Costa é do Sul da Bahia, da região do Cacau. Escreveu a partir da década de vinte do século passado. Foi companheiro de luta literária de nomes como Jorge Amado, James Amado, Adonias Filho, Hélio Simões e outros contadores de histórias e cantadores de versos dessa região dura e doce do Brasil. Ele publicou seus versos e suas crônicas em diferentes folhas, mas principalmente no Diário da Tarde de Ilhéus. Ilhéus era o pólo do comércio do cacau. Em pleno Modernismo brasileiro, a cidade fervia. Só que a água dessa fervura era tradicionalista, patriarcal, quase feudal. O jornalismo empreendido nesse momento respondia às necessidades políticas e econômicas dos coronéis que lideravam a economia do fruto de ouro. O Diário da Tarde de Ilhéus foi fundado por Francisco Dórea, em fevereiro de 1928. Nele, Sosígenes Costa publicou boa parte de sua produção literária, ganhando até uma coluna – “Notas Sociaes” – a qual era sempre introduzida por uma minúscula crônica, muitas vezes em versos, seguida de algumas anotações sobre fatos ligados às famílias da alta sociedade local. Não apenas Sosígenes publicava crônicas no Diário: Benjamin Costallat, Menotti Del Picchia, Rubem Braga, Humberto de Campos, entre outros, tinham seus textos divulgados pelo periódico ilheense. Observando aspectos histórico-sociais relevantes e gerais, a sociedade que se constrói no Brasil dessa época é bastante cindida: os operários não tinham consciência de sua condição, as oligarquias exerciam seu poder, a classe média, ao contrário, passou a assumir alguns espaços. É esta a camada da sociedade que passa a participar, ainda que transitoriamente, das esferas de poder. O comerciante torna-se figura social importante. O país supre, na época, boa parte das necessidades internacionais de consumo agrícola. Nosso mercado produtor interno começa a desenhar regiões e sociedades. A partir desse processo, traçam-se os limites da sociedade sul- baiana. Para o plantio e a colheita do fruto de ouro, deslocaram-se para a região incontáveis contingentes de mão de obra, principalmente de Sergipe, mas também do Ceará. Chegam , também, alguns estrangeiros que se inseriram na luta pela terra, na construção do mundo do cacau. A região de Ilhéus e adjacências vai sendo desenhada, então, por uma convergência de práticas culturais variadíssimas. Nas mãos dos fazendeiros, das pequenas e médias indústrias, dos exportadores, estava a chave da economia, da política e da cultura no Brasil desse primeiro século XX. Para que se possa imaginar a concepção de sociedade que se plasmava no mundo vivido e experienciado por Sosígenes Costa, vale a leitura de uma crônica publicada, no dia 28 de março de 1933, por Humberto de Campos, na página dois do Diário da Tarde, intitulada “Elogio do Analfabetismo”, de onde destaco o fragmento a seguir: “Brasileiro que sabe ler o nome não pega mais no cabo da enxada, abandona a lavoura, e vem para a cidade...”(CAMPOS, 1933, p.2). Sua concepção de ordem social, cultural e econômica fica clara no texto em questão e ratifica a posição da folha: há indivíduos privilegiados – os donos das terras – que podem e devem estudar, dominar as letras e os cálculos; há, por outro lado, aqueles que, desprovidos da posse das mesmas e de quaisquer outros bens, devem contentar-se em “servir aos senhores”. Campos termina a crônica: “Quem planta alfabeto não apanha feijão”(CAMPOS, op.cit., idem). Ou seja, para esse intelectual, poucos deveriam ler e escrever, e muitos deveriam, com seu suor cotidiano, sustentá-los, na eterna reprodução de uma ordem social patriarcal, capitalista e, mais que tudo, cruel. No Sul da Bahia, a sociedade traz rígidas marcas de clivagem entre as classes: A formação da burguesia cacaueira foi um processo histórico de aproximação entre uma elite de fazendeiros muito ricos, que passou a comprar e vender amêndoas de cacau, e comerciantes exportadores que se transformaram em fazendeiros, donos da terra e, conseqüentemente, produtores dos frutos de ouro. Os primeiros queriam aumentar seus lucros, enquanto os comerciantes resolviam um grande desejo: ser proprietário da terra, passaporte garantido para ser considerado um autêntico grapiúna. (FREITAS e PARAÍSO, 2001, p.111) Os empregados das fazendas de cacau eram vítimas dessa clivagem, eram ignorados ou tomados como utensílios a serem usados no momento adequado. As regiões isoladas como ilhas, a que se refere Nelson Werneck Sodré, podem bem ser representadas por essa, reinventada por tantos escritores, conhecida como Região do Cacau. Nesse mundo, os coronéis, os grandes fazendeiros, ditavam as normas, controlavam as vidas de todos que deles dependiam: “Era o cacau que lhe dava mais dinheiro e, especialmente, era o cacau que lhe proporcionava ‘status’ no seio da comunidade. Parece que ser seringalista ou pecuarista era menos elogioso do que ser cacauicultor.”(VIEIRA, 2000, p.196-197) Plantar, colher e comercializar o cacau dava-lhes um poder incomensurável, às vezes, superior ao poder do próprio presidente da República, tão distante dessas brenhas. Contra esse poder Sosígenes Costa lutou mansamente, transgredindo com inteligência e criatividade as normas que lhe eram impostas. Seu maior texto crítico, no entanto, não foi publicado na época em que foi escrito, não conseguiu espaço para isso: Iararana só veio à luz por conta da paixão e da persistência de José Paulo Paes, muitos anos depois. Mas as crônicas saíam sempre, ocupando um pequeno espaço recortado na página 4, do Diário. Elas reliam as próprias “notícias” que acompanhavam, desenhando no imaginário dos leitores os contornos de uma elite fútil, consumista, deslumbrada com o brilho do dinheiro abundante. Segundo Aleílton Fonseca, Sosígenes Costa é um poeta do olhar, assumindo de saída, mas à sua maneira, uma condição que é fundamental nos poetas do século XX – no qual se pode delimitar uma poética visual, de uma poesia de tangências imagéticas, em que a visibilidade é a estampa do texto escrito. Sosígenes Costa é um poeta imagético por excelência. Seu olhar se projeta sobre coisas, paisagens, ações, ritos, situações – e ele transmuta, alegoriza, ressignifica, plasmando em linguagem lírica aquilo que visualiza...(FONSECA, 2004, p.93-94) O olhar de Sosígenes, sob o pseudônimo Sósmacos, debruça-se sobre Ilhéus, com suas praias, suas belas jovens, suas praças, sua intelectualidade rara, mas presente. Ele dá visibilidade a esse mundo que se escondia na interioridade do país, mas que se abria para o mar, para os rios, para a terra fértil e enriquecedora. Logo em uma das primeiras edições do Diário da Tarde, no dia 28 de fevereiro de 1928, Sósmacos publica a irônica e metafórica crônica “O Ideal dos Arbustos”, na página 4 do referido periódico, na coluna “Notas Sociaes”. Nessa crônica, Sosígenes Costa leva o leitor a uma das praças mais conhecidas de Ilhéus, repleta de amendoeiras, e desata a discorrer sobre uma ordem da Prefeitura para que as tais amendoeiras fossem podadas. Sósmacos, o cronista sosigeneano, lamenta o desrespeito pela “vocação piramidal” desses vegetais: Pobres amendoeiras imbeles que desejam ser pirâmides, mas que são sacrificadas, no seu sonho recôndito, pelo jardineiro municipal que, muito pouco egípcio, lá por um inesperado dia de sol, com a tesoura inclemente, as apara e decota.(COSTA, 1928, p.4) Metaforicamente, a passagem posta em relevo pode remeter às condições sociais e políticas da época: os donos do poder “podavam” as vocações daqueles que ou estavam sob suas rédeas, ou se aventuravam a querer ultrapassar os limites que lhes eram impostos. No terceiro parágrafo da crônica, “Sósmacos demonstra um verdadeiro desgosto pela sorte dessa vocação contrariada...”(COSTA, op. cit., idem), o que me parece reforçar a construção metafórica do texto: o cronista se utiliza do espaço impresso do dominador para registrar sutilmente sua insatisfação com mandos e desmandos que assolam a região. Mas nem só de metáforas se constróem as táticas de Sosígenes Costa: como poeta, ele traz, na maioria das vezes, a métrica e a rima para o campo da narrativa e cria crônicas que são, em forma e conteúdo, verdadeiros poemas. Com isso, parece-me que ele agrada à elite leitora e simultaneamente se infiltra em suas principais armadilhas. Explico-me: como anotei parágrafos atrás, trazendo para este texto a voz de Humberto de Campos, saber ler, escrever e contar era para poucos. Se os trabalhadores das roças de cacau dominassem esses saberes, entenderiam as bases injustas da sociedade em que viviam e, provavelmente, armar-se-iam contra ela, especialmente em tempos de insinuantes idéias comunistas. Mas muitos coronéis, seus filhos e até suas filhas pertenciam ao universo letrado. Eles eram os leitores desejados por Francisco Dórea, o fundador do Diário da Tarde. Sobre eles a coluna de Sósmacos se debruçava, obrigatoriamente. A orientação ideológica do jornal era a das elites.