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Professora Doutora Patrícia Kátia da Costa Pina Universidade Estadual de Santa Cruz, UESC, Ilhéus-BA

CRÔNICA, JORNALISMO E LEITURA: AS ARMADILHAS DO IMPRESSO

Parece às vezes que escrever crônica obriga a uma certa comunhão, produz um ar de família que aproxima os autores acima da sua singularidade e das suas diferenças. Antonio Candido, “A Vida ao Rés-do- Chão”

Este trabalho traz uma proposta que, à primeira vista, e para muitos estudiosos da literatura, pode soar como uma heresia, ou, na melhor das hipóteses, como um absurdo: comparar as técnicas de composição de crônicas utilizadas por e Sosígenes Costa, de forma a criarem padrões de gosto de consumo do literário e de maneira a driblarem as estratégias de dominação do leitorado desenvolvidas pelas folhas em que publicavam. O herético e absurdo estaria, suponho, em comparar nosso maior nome literário a um ilustre desconhecido da maioria dos homens e mulheres de letras, neste nosso século XXI. Certamente, a pergunta primeira seria: quem é esse Sosígenes Costa? Pois começo este texto fazendo as devidas apresentações, como mandam as regras da boa educação. Sosígenes Costa é do Sul da Bahia, da região do Cacau. Escreveu a partir da década de vinte do século passado. Foi companheiro de luta literária de nomes como , James Amado, , Hélio Simões e outros contadores de histórias e cantadores de versos dessa região dura e doce do Brasil. Ele publicou seus versos e suas crônicas em diferentes folhas, mas principalmente no Diário da Tarde de Ilhéus. Ilhéus era o pólo do comércio do cacau. Em pleno Modernismo brasileiro, a cidade fervia. Só que a água dessa fervura era tradicionalista, patriarcal, quase feudal. O jornalismo empreendido nesse momento respondia às necessidades políticas e econômicas dos coronéis que lideravam a economia do fruto de ouro. O Diário da Tarde de Ilhéus foi fundado por Francisco Dórea, em fevereiro de 1928. Nele, Sosígenes Costa publicou boa parte de sua produção literária, ganhando até uma coluna – “Notas Sociaes” – a qual era sempre introduzida por uma minúscula crônica, muitas vezes em versos, seguida de algumas anotações sobre fatos ligados às famílias da alta sociedade local. Não apenas Sosígenes publicava crônicas no Diário: Benjamin Costallat, Menotti Del Picchia, Rubem Braga, Humberto de Campos, entre outros, tinham seus textos divulgados pelo periódico ilheense. Observando aspectos histórico-sociais relevantes e gerais, a sociedade que se constrói no Brasil dessa época é bastante cindida: os operários não tinham consciência de sua condição, as oligarquias exerciam seu poder, a classe média, ao contrário, passou a assumir alguns espaços. É esta a camada da sociedade que passa a participar, ainda que transitoriamente, das esferas de poder. O comerciante torna-se figura social importante. O país supre, na época, boa parte das necessidades internacionais de consumo agrícola. Nosso mercado produtor interno começa a desenhar regiões e sociedades. A partir desse processo, traçam-se os limites da sociedade sul- baiana. Para o plantio e a colheita do fruto de ouro, deslocaram-se para a região incontáveis contingentes de mão de obra, principalmente de Sergipe, mas também do Ceará. Chegam , também, alguns estrangeiros que se inseriram na luta pela terra, na construção do mundo do cacau. A região de Ilhéus e adjacências vai sendo desenhada, então, por uma convergência de práticas culturais variadíssimas. Nas mãos dos fazendeiros, das pequenas e médias indústrias, dos exportadores, estava a chave da economia, da política e da cultura no Brasil desse primeiro século XX. Para que se possa imaginar a concepção de sociedade que se plasmava no mundo vivido e experienciado por Sosígenes Costa, vale a leitura de uma crônica publicada, no dia 28 de março de 1933, por Humberto de Campos, na página dois do Diário da Tarde, intitulada “Elogio do Analfabetismo”, de onde destaco o fragmento a seguir: “Brasileiro que sabe ler o nome não pega mais no cabo da enxada, abandona a lavoura, e vem para a cidade...”(CAMPOS, 1933, p.2). Sua concepção de ordem social, cultural e econômica fica clara no texto em questão e ratifica a posição da folha: há indivíduos privilegiados – os donos das terras – que podem e devem estudar, dominar as letras e os cálculos; há, por outro lado, aqueles que, desprovidos da posse das mesmas e de quaisquer outros bens, devem contentar-se em “servir aos senhores”. Campos termina a crônica: “Quem planta alfabeto não apanha feijão”(CAMPOS, op.cit., idem). Ou seja, para esse intelectual, poucos deveriam ler e escrever, e muitos deveriam, com seu suor cotidiano, sustentá-los, na eterna reprodução de uma ordem social patriarcal, capitalista e, mais que tudo, cruel. No Sul da Bahia, a sociedade traz rígidas marcas de clivagem entre as classes:

A formação da burguesia cacaueira foi um processo histórico de aproximação entre uma elite de fazendeiros muito ricos, que passou a comprar e vender amêndoas de cacau, e comerciantes exportadores que se transformaram em fazendeiros, donos da terra e, conseqüentemente, produtores dos frutos de ouro. Os primeiros queriam aumentar seus lucros, enquanto os comerciantes resolviam um grande desejo: ser proprietário da terra, passaporte garantido para ser considerado um autêntico grapiúna. (FREITAS e PARAÍSO, 2001, p.111)

Os empregados das fazendas de cacau eram vítimas dessa clivagem, eram ignorados ou tomados como utensílios a serem usados no momento adequado. As regiões isoladas como ilhas, a que se refere Nelson Werneck Sodré, podem bem ser representadas por essa, reinventada por tantos escritores, conhecida como Região do Cacau. Nesse mundo, os coronéis, os grandes fazendeiros, ditavam as normas, controlavam as vidas de todos que deles dependiam: “Era o cacau que lhe dava mais dinheiro e, especialmente, era o cacau que lhe proporcionava ‘status’ no seio da comunidade. Parece que ser seringalista ou pecuarista era menos elogioso do que ser cacauicultor.”(VIEIRA, 2000, p.196-197) Plantar, colher e comercializar o cacau dava-lhes um poder incomensurável, às vezes, superior ao poder do próprio presidente da República, tão distante dessas brenhas. Contra esse poder Sosígenes Costa lutou mansamente, transgredindo com inteligência e criatividade as normas que lhe eram impostas. Seu maior texto crítico, no entanto, não foi publicado na época em que foi escrito, não conseguiu espaço para isso: Iararana só veio à luz por conta da paixão e da persistência de José Paulo Paes, muitos anos depois. Mas as crônicas saíam sempre, ocupando um pequeno espaço recortado na página 4, do Diário. Elas reliam as próprias “notícias” que acompanhavam, desenhando no imaginário dos leitores os contornos de uma elite fútil, consumista, deslumbrada com o brilho do dinheiro abundante. Segundo Aleílton Fonseca,

Sosígenes Costa é um poeta do olhar, assumindo de saída, mas à sua maneira, uma condição que é fundamental nos poetas do século XX – no qual se pode delimitar uma poética visual, de uma poesia de tangências imagéticas, em que a visibilidade é a estampa do texto escrito. Sosígenes Costa é um poeta imagético por excelência. Seu olhar se projeta sobre coisas, paisagens, ações, ritos, situações – e ele transmuta, alegoriza, ressignifica, plasmando em linguagem lírica aquilo que visualiza...(FONSECA, 2004, p.93-94)

O olhar de Sosígenes, sob o pseudônimo Sósmacos, debruça-se sobre Ilhéus, com suas praias, suas belas jovens, suas praças, sua intelectualidade rara, mas presente. Ele dá visibilidade a esse mundo que se escondia na interioridade do país, mas que se abria para o mar, para os rios, para a terra fértil e enriquecedora. Logo em uma das primeiras edições do Diário da Tarde, no dia 28 de fevereiro de 1928, Sósmacos publica a irônica e metafórica crônica “O Ideal dos Arbustos”, na página 4 do referido periódico, na coluna “Notas Sociaes”. Nessa crônica, Sosígenes Costa leva o leitor a uma das praças mais conhecidas de Ilhéus, repleta de amendoeiras, e desata a discorrer sobre uma ordem da Prefeitura para que as tais amendoeiras fossem podadas. Sósmacos, o cronista sosigeneano, lamenta o desrespeito pela “vocação piramidal” desses vegetais:

Pobres amendoeiras imbeles que desejam ser pirâmides, mas que são sacrificadas, no seu sonho recôndito, pelo jardineiro municipal que, muito pouco egípcio, lá por um inesperado dia de sol, com a tesoura inclemente, as apara e decota.(COSTA, 1928, p.4)

Metaforicamente, a passagem posta em relevo pode remeter às condições sociais e políticas da época: os donos do poder “podavam” as vocações daqueles que ou estavam sob suas rédeas, ou se aventuravam a querer ultrapassar os limites que lhes eram impostos. No terceiro parágrafo da crônica, “Sósmacos demonstra um verdadeiro desgosto pela sorte dessa vocação contrariada...”(COSTA, op. cit., idem), o que me parece reforçar a construção metafórica do texto: o cronista se utiliza do espaço impresso do dominador para registrar sutilmente sua insatisfação com mandos e desmandos que assolam a região. Mas nem só de metáforas se constróem as táticas de Sosígenes Costa: como poeta, ele traz, na maioria das vezes, a métrica e a rima para o campo da narrativa e cria crônicas que são, em forma e conteúdo, verdadeiros poemas. Com isso, parece-me que ele agrada à elite leitora e simultaneamente se infiltra em suas principais armadilhas. Explico-me: como anotei parágrafos atrás, trazendo para este texto a voz de Humberto de Campos, saber ler, escrever e contar era para poucos. Se os trabalhadores das roças de cacau dominassem esses saberes, entenderiam as bases injustas da sociedade em que viviam e, provavelmente, armar-se-iam contra ela, especialmente em tempos de insinuantes idéias comunistas. Mas muitos coronéis, seus filhos e até suas filhas pertenciam ao universo letrado. Eles eram os leitores desejados por Francisco Dórea, o fundador do Diário da Tarde. Sobre eles a coluna de Sósmacos se debruçava, obrigatoriamente. A orientação ideológica do jornal era a das elites. Como publicar, sem respeitar as regras? Os “pobres”, os “alugados”, não sabiam sequer ler, o impresso não era para eles. A saída de Sosígenes Costa é minar as estruturas da própria classe dominante, “falando a sua língua”. As elites do cacau formaram-se culturalmente mesclando saberes eruditos e populares, mas privilegiando os primeiros, representados na região, nessa época, por estéticas já relidas no sudeste do país, como a parnasiana e a simbolista. Entendo que uma das mais interessantes táticas de transgressão das regras empreendidas por Sosígenes Costa foi se utilizar das técnicas antigas de composição poética para organizar discursivamente suas crônicas. Com isso, ele falava às elites na forma por elas desejadas, com conteúdos provocadores que poderiam ser percebidos pelos leitores mais astutos. Esse “anzol” de Sósmacos pode ter “pescado” alguns dos filhos e filhas dessa sociedade, orientando-os no sentido de uma revisão crítica dos fundamentos do mundo em que viviam. Cabe ressaltar que as crônicas sosigeneanas são publicadas numa época decisiva para a constituição do gênero, como afirma Antônio Cândido:

Acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e consolidou no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número crescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e os seus mestres. Nos anos 30 se afirmaram Mario de Andrade, , Carlos Drummond de Andrade, e apareceu aquele que de certo modo seria o cronista, voltado de maneira exclusiva para este gênero: Rubem Braga. (CANDIDO, 1992, p.17)

Sósmacos está, então, em excelente companhia... Candido aponta ainda que os cronistas dessa época misturavam clássico e moderno, o que “contextualiza” a escrita sosigeneana. Essa tática pode ter viabilizado o caráter irônico e transgressor do gênero, na Bahia e no restante do país. Já tendo sido apresentado o baiano Sosígenes Costa, imagino que a inquietação permaneça no espírito dos defensores do cânone: e Machado de Assis? O que faria aqui, sendo comparado a esse competente e interessante, mas desconhecido, poeta baiano? A resposta pode ser simples: a grande inquietação que norteia minhas pesquisas há mais de duas décadas concerne à formação do público leitor de literatura. Isso porque vejo que nossa sociedade foi e é superficialmente incentivadora do gosto pela leitura e, paradoxalmente, em suas estruturas mais profundas, sabotadora desse mesmo gosto. O Bruxo fluminense sabia disso bem antes de mim. Daí minha paixão por ele. Machado de Assis tinha plena consciência da necessidade de se ampliarem os segmentos leitores da sociedade oitocentista, bem como dos inúmeros entraves que surgiam para atrapalhar, retardar, o processo. Se Sosígenes Costa luta, no início do século XX, contra a alienação produzida indiretamente pelo fruto de ouro, Machado de Assis, cerca de setenta anos antes, luta também na mudez da palavra, contra o progresso desencontrado que assolava o dezenove, produzindo bolsões de ignorância e pobreza. Com o processo de independência política e de capitalização da sociedade brasileira, ocorrido no século XIX, o leitor, que passou a ser visto como um consumidor de bens culturais em potencial, tornou-se objeto de caça por parte da intelectualidade local: os escritores e os editores de periódicos e livros perceberam cedo que tinham uma “missão” múltipla pela frente: a de criar hábitos de consumo do impresso, a de estabelecer padrões de gosto literário que mantivessem os hábitos criados, a de constantemente ampliar o grupo de indivíduos interessados em ler. Tal empreitada demandava esforço conjunto. Nossos intelectuais do período colonial acostumaram-se a produzir obras de circulação restrita aos grupos formados por eles próprios. Estavam, no dezenove, em face de uma realidade que mudava inclusive a concepção de arte literária tida como adequada até então. Se, até os primeiros anos do oitocentos, ainda se concebia a literatura como produção privilegiada de poucos, com as alterações políticas e sociais que se operavam aqui e no restante do mundo ocidental, a compreensão do objeto literário ganhou novos tons. Nos tempos coloniais, o livro era mal visto, apenas os religiosos poderiam fazer uso de materiais impressos. O Brasil assentava as bases de sua sociedade no escravismo, mesmo havendo algumas bibliotecas particulares em finais do século XVIII, a leitura não era necessária para que a ordem sócio-política se mantivesse em níveis satisfatórios; ao contrário, era até perigosa. Com a chegada da Corte portuguesa em 1808, a situação mudou um pouco: as informações se fizeram obrigatórias, seu registro para comunicação em lugares mais distantes tornou-se importante. Surgem, então, dois periódicos: um, oficial, a Gazeta do Rio de Janeiro; outro, clandestino, feito na Inglaterra, o Correio Brasiliense, de Hipólito da Costa. A Gazeta assemelhava-se ao que posteriormente viríamos a compreender como jornal, quer pelo tamanho, quer pela periodicidade, quer pelo preço; o Correio era doutrinário, assemelhava-se mais a uma revista de caráter contestador. Além dos periódicos indicados, começaram a ser abertas livrarias, o que denuncia a existência de um público leitor “culto”. O saber, o conhecimento, a cultura parecem ter sido, entre os poucos leitores de então, ferramentas, instrumentos de reação às práticas colonialistas de que éramos vítimas. Essa transformação do livro e dos demais impressos, que, de coisas do “diabo” passavam a ser coisas do homem, do mundo, da vida, inclusive de Deus, aponta para mudanças na sociedade, mudanças estas que se concretizaram na Independência e nas questões dela decorrentes. Embora ainda artesanal, a imprensa cresceu de importância a partir de 1830. Passou a ser palco de disputas políticas, passou a ser a voz de dominadores e, também, ainda que timidamente, de dominados, os quais tinham nos jornalistas engajados nas questões sociais seus porta-vozes. Nesses primeiros tempos, a imprensa associou-se à literatura. Nossa intelligentsia escrevia poemas, romances, contos, novelas e... crônicas, editoriais, pequenas reportagens. Os jornais acolheram os homens de letras, veiculando seus textos em meio a anúncios os mais variados, a notícias de guerra, de fuga de escravos, de assassinatos. Narrativa curta, própria do jornal, caracterizada pelo registro circunstancial de acontecimentos contemporâneos a sua publicação, a crônica atendia ao diferenciado público, o qual ganhava contornos específicos na escolha do periódico a ser lido. Estudantes, homens de negócio, senhoras mães de família, mocinhas casadouras, todos eram atraídos pela temática do jornal, por sua ideologia. A crônica se utiliza do monumental – o literário – para romper com ele, ou melhor, para colocá-lo alternativamente. Imagens de um tempo social, narrativas do cotidiano, as crônicas são lugares de memória, colando-se a seu tempo. (NEVES, 1992, p.82) Segundo Jorge de Sá, “Sendo a crônica uma soma de jornalismo e literatura (daí a imagem do narrador-repórter), dirige-se a uma classe que tem preferência pelo jornal em que ela é publicada[...], o que significa uma espécie de censura ou, pelo menos, de limitação: a ideologia do veículo corresponde ao interesse dos seus consumidores, direcionados pelos proprietários do periódico e/ou pelos editores-chefes de redação.” (SÁ, 1987, p.7-8) Elo entre duas linguagens que davam (e dão) conta do mundo a sua volta diferenciadamente, a saber, a literária, via ficcional, a jornalística, via reprodução de fatos, a crônica criou no leitorado oitocentista a vontade de ler, de ler a notícia e a literatura, funcionando como um anzol capaz de fisgar os peixes mais ariscos no mar de oralidade e analfabetismo que era o Brasil de então. Antonio Candido coloca a crônica como texto que despreza o olimpo literário e toma assento na cotidianeidade do homem urbano. Para ele, a crônica “... pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais fantásticas, – sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.” (CANDIDO, 1992, 14) Daí a compreensão da crônica como instrumento de ruptura com as barreiras impostas pelos donos do poder econômico e intelectual aqui proposta: trata-se de um tipo de composição verbal que aciona campos marginalizados da cultura, driblando as armadilhas dos dominadores e procedendo a uma “educação informal”, capaz de tornar críticos seus leitores, além, é claro, de lhes permitir desenvolver o gosto pela leitura literária e não-literária. Na década de 1860, Machado de Assis publica crônicas, sob o título “Ao Acaso”, no Diário do Rio de Janeiro. A paixão desse escritor pelo jornalismo ressalta em vários textos seus. Em 1859, no estudo “O Jornal e O Livro”, ele desenha a supremacia do jornal sobre o livro na sociedade brasileira, destacando que, por ser mais barato, por ter publicação diária, semanal ou quinzenal, o jornal abrangeria um número bem mais significativo de receptores, sendo mais “popular”. Ele é categórico: “O Jornal é a verdadeira forma da república do pensamento.” (ASSIS, 1985[1859], V.III, p.945). Nessa república, o escritor fluminense desenvolveu grande parte de sua produção, formou grupos fiéis de leitores e leitoras, gerou algumas inimizades, cultivou imensas simpatias, participou do e construiu o cotidiano e a história do Brasil durante quatro décadas. Cônscio de que o perfil do jornal lhe daria o perfil do leitor a ser conquistado, Machado de Assis soube ocupar as páginas de periódicos diferenciados, como A Marmota, o Jornal das Famílias, A Estação, o Diário, já apontado, o Correio Mercantil, entre outros. A crônica machadiana apresenta alguns instrumentos de envolvimento e sedução do leitorado: em geral, há uma profusão de assuntos tratados, desde questões políticas nacionais e internacionais, até citações literárias, passando pelo relato de situações humanas e locais, como traições e crimes. Além disso, o cronista cria uma espécie de teatralidade, ao encenar, em diferentes ocasiões, uma interação com leitores e leitoras, o que estabelece certo clima de familiaridade. Pode-se imaginar que o escritor lança mão de uma prática cultural bastante comum em nossas relações cotidianas na época ( e ainda hoje), a da relativização de limites entre o público e o privado, como aponta Sérgio Buarque de Holanda (1995, p.148). Em 27 de setembro de 1864, o cronista começa o texto justificando o atraso de um dia em sua publicação, por estar viajando: “O folhetim demorou- se um dia porque, à hora em que devia preparar-se e enfeitar-se, para conversar com os leitores, corria pelo caminho de ferro...”(ASSIS, 1957[1864], p.158)[grifos meus] A personificação da coluna dá conta de sua importância no mercado cultural da época, enquanto os dois primeiros verbos grifados desmascaram a rubrica “Ao Acaso”. Da pena do cronista não corriam textos improvisados, eles demandavam estudo e aplicação. Isso me remete à crônica sosigeneana que, por seu cuidado formal, também se afasta do espontaneísmo. A próxima expressão grifada permite a compreensão do tipo de discursividade própria da crônica: trata-se de texto construído em tom de oralidade, de prosa familiar e domingueira. Nesse sentido, Antonio Candido afirma sobre a crônica: “...ela fica perto de nós...”(CANDIDO, 1992, p.13). O cronista machadiano quer provocar intimidade com o leitor, quer fazer parte de seus prazeres e afazeres cotidianos. O espaço público do jornal torna-se parte da privacidade familiar. E vice-versa... Abrindo mais parênteses: no caso de Sosígenes Costa, a crônica de Sósmacos aproxima-se do leitorado ilheense por abordar questões cotidianas, reconhecíveis por todos, mas coloca-se, de certa forma, a uma boa distância crítica pelo tratamento irônico dado a tais assuntos. No correr do texto machadiano, a questão do preparo e do cuidado necessários para a publicação semanal se expande e perpassa os demais assuntos tratados: as estradas de ferro brasileiras, o leitor representado como estudante frustrado de música, uma nova invenção que permitiria a qualquer indivíduo criar música de boa qualidade estética, uma nova comédia de um estudante de medicina, o casamento da Princesa Isabel, o falecimento de um poeta. Esse mosaico tem como cola a crítica ao improviso em todas as áreas do fazer humano. Sósmacos não constrói mosaicos, suas crônicas são monotemáticas, curtas, e resvalam sempre pelo lírico. Se, para Machado de Assis, o mosaico jornalístico e reescrito na crônica como estratégia de provocação ao leitor, a composição sosigeneana em um só tema tem o mesmo efeito, não por conta de uma fragmentação do olhar do cronista, mas exatamente pela focalização insistente e profunda em um só objeto a ser narrado e discutido. O cronista, seja o machadiano, seja o Sósmacos sul-baiano, relata fatos e situações que são do conhecimento dos leitores habituais daquela e de outras folhas: ele não precisa ser original nos assuntos, seu valor está na forma como reconta o já sabido, nas reflexões que propõe, nas associações que faz. É a subjetividade de sua interpretação que seduz os leitores, é seu estilo que os atrai. Daí outra característica interessante na crônica machadiana da década de 1860, e que foi sendo burilada com o tempo, a experiência e as alterações no gosto do leitorado: o uso de frases, expressões, palavras em outros idiomas. Machado de Assis conhecia seu público, sabia do grande número de analfabetos no país, sabia que as mulheres enfrentavam condições adversas para se instruírem, sabia que boa parte dos homens tinha uma educação voltada para o comércio, para as finanças, sabia que latim, francês, inglês, alemão eram línguas que poucos dominavam. Como, então, fazia uso delas em suas crônicas? Talvez a resposta esteja na posição de autoridade ocupada pelo cronista em face de seus leitores, como estuda Lúcia Granja (2000). Tal autoridade provinha de seu lugar com intérprete da semana, intérprete cujas elucubrações casavam perfeitamente com as opiniões do público de cada periódico, como se percebe pela seguinte afirmação do cronista: “Tudo isto que acabo de dizer, diria naturalmente o leitor se acaso estivesse na hipótese que figurei.”(ASSIS, op. cit., p.162) Suas colocações, por mais complexas que fossem as formas a revesti-las, por mais estrangeiras e estranhas, combinavam com o que os leitores da folham queriam ler. A mesma autoridade organizava-se retoricamente também pelo uso vocabular elitista, acima referido. Haveria uma espécie de hermetismo voluntário nas crônicas, o qual instituiria certo paradoxo, em relação aos objetivos do texto e à natureza da mídia. Esse hermetismo apontado na crônica machadiana também ocorre na crônica sosigeneana: pelas referências clássicas, pela estrutura métrica de um parnasianismo fora de tempo e de lugar, pelo vocabulário raro, a autoridade de Sósmacos constituiu-se e tentou minar, disfarçadamente, a autoridade dos coronéis que se infiltravam em todos os cantos e recantos da sociedade sul-baiana.Essa construção discursiva desenha um dos perfis de leitor a ser alcançado pela publicação: os intelectuais, os políticos, isso, no Rio de Janeiro de Machado de Assis; no caso baiano, os intelectuais também, mas principalmente as novas gerações nascidas do cacau, os filhos e filhas dos coronéis. Os cronistas de lá e de cá ratificam e sustentam a opinião do leitorado próprio do periódico: “O poder da palavra impressa no texto semanal é tão grande que faz com que as autoridades políticas da nação se rendam a ele.”(GRANJA, op. cit., p.75) O comentário político, central nas crônicas publicadas pelo escritor fluminense na época recortada, e pelo cronista ilheense já no século XX, despertaria o interesse de seus possíveis leitores, num movimento metafórico que faria da página jornalística uma representação simbólica das boticas, das praças, praias, confeitarias, ruas e dos salões da cidade. A crônica constrói-se num espaço de encenação, em que realidade, história, cultura, ficção, imaginação convidam o leitor a participar do jogo narrativo. Assim, é possível pensá-la enquanto tipo de narrativa que pode cumprir as três maiores necessidades do mercado cultural que se formava no Brasil do século XIX e na Bahia do XX: por circular tanto pelo campo ficcional, como pelo documental, real, através de relatos do cotidiano, muitas vezes recheados de humor, a crônica prestou-se muito bem ao papel de formadora de hábitos de consumo do impresso, fosse ele literário ou não, construindo padrões de gosto e ampliando regularmente o leitorado brasileiro. Enquanto tática de dominados, a crônica me parece ter funcionado, nesses dois Brasis distintos, como instrumento de formação de consciência crítica, como elemento gerador de um leitorado atento às diferentes camadas da realidade que se lhes era apresentada a cada texto publicado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Crônicas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre, W. M. Jackson Inc., 1957. V. 23. ______. “O Jornal e O Livro”. In.: ______. Obra completa. 5ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1985. V.III. CANDIDO, Antonio. “A Vida ao Rés-do-Chão”. In.: _____ et alii. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas/Rio de Janeiro, Ed. da UNICAMP/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. COSTA, Sosígenes. Crônicas e poemas recolhidos. Salvador, Fundação Cultural de Ilhéus, 2001. CAMPOS, Humberto de. “Elogio ao Analfabetismo”. In: Diário da Tarde de Ilhéus, 1933, CEDOC/UESC. FREITAS, Antonio Fernando Guerreiro de e PARAÍSO, Maria Hilda Barqueiro. Caminhos ao encontro do mundo: a Capitania, os frutos de ouro e a Princesa do Sul: Ilhéus 1534-1940. Ilhéus, EDITUS, 2001. GRANJA, Lúcia. Machado de Assis escritor em formação: à roda dos jornais. Campinas, Mercado de Letras; São Paulo, FAPESP, 2000. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. MATTOS, Cyro e FONSECA, Aleílton (orgs.). O triunfo de Sosígenes Costa. Ilhéus, EDITUS/UEFS-ED, 2004. SÁ, Jorge de. A crônica. 3ed. São Paulo, Ática, 1987. [Coleção Princípios, 5]