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Nome Elizama Almeida1 [email protected]

Categoria II Estudante do ensino universitário – Nível Mestrado

País Brasil

Instituição Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio)

Tutor Marília Rothier Cardoso [email protected]

Título do trabalho Paulo Rónai no Museu da Literatura Brasileira ou Como construir pontes

1 Elizama Almeida é mestranda na Puc-Rio com o projeto de pesquisa “Um museu que não nasceu: e a criação do Museu da Literatura Brasileira na década de 1970” e doutoranda do Programa de Materialidades da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Pesquisadora do Instituto Moreira Salles, faz parte do grupo de investigação sobre arquivos literários lacuna. Contato: [email protected]. 1

1. Ponte “Em anexo, estou-lhe mandando algum material para o Museu Literário”, escreve o húngaro Paulo Rónai a Lygia Fagundes Telles em uma carta inédita de 4 de outubro de 1975. A missiva permite imaginar se teria sido datilografada na mesma máquina de escrever que ele trouxe em 1941, quando chegou ao Brasil, aos 33 anos, com apenas duas malas e ombros que suportavam um mundo em guerra. O documento, até agora desconhecido, integra a Coleção Museu da

Literatura Brasileira, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP). Na linha seguinte, Rónai segue: “Foi o que encontrei de momento. Para originais e cartas de amigos, vou precisar de mais tempo”. Diante desse trecho, surge uma espécie de esfinge entre o documento e o pesquisador, como se dissesse “decifra-me ou te devoro”: a que Museu Literário Paulo se refere? Que documentos teria enviado? Qual a relação entre Rónai e Lygia, àquela altura já amplamente conhecida autora brasileira? Por que ela estaria coletando materiais?

Em 1977, a escritora paulista entregaria, ao IEB, cerca de 230 documentos que fariam parte deste Museu da Literatura Brasileira (MLB), que ela vinha idealizando há dois anos. Como a historiografia nos adianta, o referido Museu não nasceu por motivos biográficos distintos. Neste mesmo ano, morreu o marido de Lygia, Paulo Emílio Sales Gomes, crítico e fundador da Cinemateca Brasileira, de modo que ela passou a ocupar o lugar dele na presidência dessa importante instituição de cultura dedicada ao cinema nacional. E José Geraldo Nogueira, escritor que a estava auxiliando no MLB, foi eleito para Academia Paulista de Letras em 1978. O projeto do museu literário, então, teve de ser abortado e os documentos coletados naquele período permaneceram inéditos ao longo dos últimos 40 anos. O objetivo de Telles era bastante claro. Conforme afirma em entrevista a um periódico da época, o MLB seria um “centro de estudos e pesquisas grande o bastante para ser realmente representativo da nossa literatura”; e ela apostava ainda que “isso tudo prestará um dia um serviço inestimável à pesquisa e à reflexão crítica”. Rónai, então, não apenas passaria a integrar a constelação dos 70 literatos brasileiros no universo desse museu-arquivo, como seu nome e endereço são os primeiros em uma lista de doadores de documentos, antecipando os do poeta Carlos Drummond de Andrade e do ficcionista Pedro Nava, por exemplo (Fig. 1). Apesar de não ser numerosa a remessa inicial que, de fato, Paulo enviara para compor a sua parte no Museu, os 9 itens são perfeitamente ilustrativos de importantes episódios da vida pessoal e profissional do húngaro em terras brasileiras. Há a supracitada carta de 4 de outubro

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de 1975; cartão de participação de seu casamento com Nora Tausz em 1952; convite para cerimônia de posse da cadeira de francês no Colégio Pedro II em 1958; convite para palestra sobre Rui Ribeiro Couto na Sociedade de Estudos de Moçambique em 1972; convite para evento em homenagem a Carlos Drummond de Andrade promovida pela Aliança Francesa e pelo Serviço Cultural da Embaixada da França em 1973; e cartaz do curso “A tradução vivida” que aconteceu no Centro de Estudos Superiores da Aliança Francesa. Constam, também, três fotografias: uma de Paulo em sua biblioteca e duas da cerimônia em que foi condecorado com a Ordem Nacional do Mérito pela Embaixada Francesa. Esse magro conjunto documental ganha outra dimensão se investigado não como uma fonte de pesquisa, mas como uma ponte para pesquisa. Ponte entre os episódios a que correspondem, pontes entre as pessoas ali envolvidas, pontes entre diferentes tempos e, nesse instante, pontes entre países.

Fig. 1. Lista com nome dos doadores manuscrita por Lygia Fagundes Telles. Coleção Museu da Literatura Brasileira/IEB

2. Comunidade Os caminhos profissionais e biográficos de Lygia Fagundes Telles e Paulo Rónai se encontram e, nesse sentido, cabe dedicar um espaço para verificar essa proximidade. Um primeiro passo diz respeito ao estabelecimento de vínculos de cada um deles com as suas respectivas comunidades e as práticas políticas aí envolvidas. Aos 19 anos de idade, Lygia, junto com outras cinco mulheres, destoava do grupo de mais de cem homens formados na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em São Paulo, naquele 1941 — mesmo ano em que Paulo chegava ao Brasil. Mãe tardia de um

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filho apenas, divorciou-se na década de 1960: essas informações não devem passar despercebidas. Pelo contrário, dão pistas de sua autonomia no decorrer de um século em que as mulheres ainda precisavam reivindicar tópicos básicos, como o direito à contracepção e ao divórcio. Mais recentemente, em 2016, ela foi a primeira mulher brasileira a ser indicada para o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto da obra. Mas sua prática política não se limitou a feitos pessoais, se estendendo para o coletivo a que pertencia (isto é, o dos agentes da cultura). Sobre esse aspecto, há um quase desconhecido episódio que é necessário destacar: no mesmo período em que dava início ao museu literário durante a ditadura militar de Ernesto Geisel, Lygia liderou uma comitiva que foi a Brasília, capital do país, para entregar pessoalmente o “Manifesto dos Mil” ao ministro da Justiça, Armando Falcão. Esse documento constituiria a maior demonstração pública da classe artística desde a Passeata dos Cem Mil, em 1968, e trazia, entre os abaixo assinados, nomes de expressão para as letras, tais como Rubem Fonseca, Antonio Candido e . Se é possível aproximar a literatura de uma noção sobre política e pensar a política como uma capacidade de criar laços, a própria idealização do Museu da Literatura Brasileira resulta de um esforço tanto de reunir autores contemporâneos quanto de reabilitar “poetas importantes, esquecidos ou nunca lembrados”. “A profissão de escritor”, afirmou Lygia, “por si só é muito difícil e marginalizada no Brasil” e, com o apoio da Secretaria de Cultura e Tecnologia e o Conselho Estadual de São Paulo, a institucionalização não apenas dos materiais que envolvem os livros, mas os autores desses livros, seria um modo de colocar no centro do debate a profissão/profissionalização do ofício de escritor. Esse arranjo institucional para uma outra política pública ecoava uma nova virada dos estudos da museologia capitaneada pelo francês Hughes Bohan-Varine. Em 1972, houve o congresso do Conselho Internacional de Museus (ICOM) no Chile que buscou repensar a função dos museus na América Latina, levando em conta sua dimensão social. De uma forma quase intuitiva, portanto, Lygia vai ao encontro da proposta de Varine, presidente do ICOM no período. Lembrando o museólogo francês, Maria Helena Pires Martins afirma, no Dicionário crítico de política cultural (1997), que (...) a nova museologia deve partir do público, ou seja, de dois tipos de usuários: a sociedade e o indivíduo. Em lugar de estar a serviço dos objetos, o museu deveria estar a serviço dos homens. Em vez do museu “de alguma coisa”, o museu “para alguma coisa”: para educação, identificação, confrontação, conscientização, enfim, museu para uma comunidade, função dessa mesma comunidade. (p. 157)

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O Museu da Literatura Brasileira se alinharia de algum modo ao conceito de “ecomuseu”, que se baseia, segundo Varine, em considerar “coleção” em vez de “patrimônio”; “comunidade” em vez de “público”; e “território” em vez de “edifício”. Vale sublinhar o protagonismo que, no ecomuseu, ganham os membros da comunidade em que se insere. A instituição não existe como força alheia e indiferente ao seu entorno, muito pelo contrário — ela é habitada por pessoas que são agentes na formulação e construção de seus espaços de memória. Fazendo um arco entre tempos e países, estava o jovem Rónai Pál e seu “apetite de línguas” (ANDRADE, 1977). Recém-ingressado nos cursos de filologia e línguas neolatinas da Universidade Pázmany Péter, dedicava-se à tradução de poemas franceses como quem buscasse construir uma primeira ponte entre idiomas diferentes. Pál ergueria uma segunda ponte, em 1938, entre a Hungria e um país mais distante da Europa, o Brasil. O português que, pelo aspecto escrito, lhe dava a impressão de um “latim falado por crianças ou velhos” (RÓNAI, 2014, p.31), em determinado momento deixaria de ser apenas uma gramática a dominar e se tornaria a principal escapatória da onda nazista que assassinaria, nos anos seguintes, sua noiva Magda Péter, seu irmão Feri e muitos dos companheiros linguistas com os quais sentava-se em um dos cafés da Szabadsag tér (Praça da Liberdade) para discutir e articular traduções e artigos a serem publicados na Nouvelle Revue de Hongrie. Para o jovem professor, a salvação da morte veio pela palavra. Já em terras brasili, o naturalizado Paulo Rónai (per)segue o ofício acadêmico dividindo o tempo entre tradução e magistério. Sua produção intelectual foi surpreendentemente fértil até mesmo para um nativo. Os brasileiros de muitas gerações devem a ele a preparação de três dos principais instrumentos da formação educacional à época: livros didáticos, dicionários e manuais de latim. Também Rónai compartilhava a tarefa hercúlea com Aurélio Buarque de Holanda de organizar e traduzir contos de diversas línguas reunidos na publicação Mar de histórias: Antologia do conto mundial. A empreitada rendeu dez volumes lançados de 1945 a 1963. A lista de intensas atividades segue: assinaria prefácios de livros de Lima Barreto, e João Guimarães Rosa, tornando-se o organizador da obra deste após sua morte. Também não se furtaria a abrir o volume Histórias escolhidas (1964) com o ensaio “A arte de Lygia Fagundes Telles”. Sua intimidade com a língua portuguesa era tanta que Carlos Drummond de Andrade, tido por muitos como o maior poeta brasileiro, confiava a Rónai a revisão de seus poemas.

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Das traduções para o português, muito abundantes, destaca-se o clássico Os meninos da rua Paulo (1952), de Ferenc Molnár, esse “livro de criança em mãos de adultos” e “fonte de perpétuas emoções” (RÓNAI, 2014, p. 251). Não se pode deixar de reconhecer especialmente seus quinze anos de empenho na “gigantesca empreitada de passar para o vernáculo as obras completas de Balzac” (ANDRADE, 1977), que deu “origem a 17 alentados volumes, num total de 12 mil páginas, 7 mil notas de rodapé e uma regozijadora sensação de dever cumprido”.

(MARTINS, 2020, p. 220) Assim como Lygia Fagundes Telles, Paulo direciona toda essa experiência pessoal para a comunidade à qual pertencia. Usando o conhecimento da língua latina, ele define o vocábulo traducere como “levar alguém pela mão para o outro lado”; e aqueles que atualmente optam pela tradução como ofício possível no Brasil, aí chegam sustentados pela mão firme de Rónai. A fim de regulamentar os direitos do tradutor, por exemplo, ele redige e envia um projeto-lei ao Ministério do Trabalho em 1975. E poucos anos antes, funda junto com seus pares – Raymundo Magalhães Júnior, Clóvis Ramalhete Maia, Marco Aurélio de Moura Matos e Daniel da Silva Rocha – a Associação Brasileira de Tradutores (ABRATES). Se até aquele momento o tradutor, tanto de obra literária como de obra técnico- científica, batalhava sozinho com as letras, as editoras e o parco orçamento, a ABRATES institucionalizaria as necessidades da comunidade. Os frutos dessa articulação logo se materializariam no I Encontro Nacional de Tradutores, organizado em conjunto com o Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. As 150 vagas iniciais rapidamente se transformaram em 300, tamanho o interesse de universitários, profissionais e intelectuais na construção de um campo de estudos tradutórios. A qualificação e valorização desse profissional seguiriam sendo temas constantes em entrevistas e artigos assinados por Paulo. Embora o projeto-lei não tenha sido aprovado e ainda hoje a profissão não seja regulamentada, em 1988 a categoria passaria a, pelo menos, ser reconhecida pela Confederação Nacional das Profissões Liberais. Ensinar e traduzir — verbos de sua existência — são duas atividades indiscutivelmente gregárias e é por meio delas que Paulo Rónai faz da literatura brasileira um lugar de encontro, conforme ele mesmo afirma: Com a tríplice herança cultural que o destino me impôs – judeu, húngaro, brasileiro, e, ainda por cima, professor de latim, francês e italiano, como poderia não trabalhar na aproximação dos indivíduos e dos povos, no contato das culturas e dos corações? (RÓNAI apud SPIRY, 2009, p. 7)

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3. Presença A presença de documentos de Paulo Rónai no Museu da Literatura Brasileira dá notícias da perfeita integração do autor e da sua relevância para a intelectualidade deste país. A carta que envia a Lygia não ultrapassa uma página, mas é suficiente para deixar evidentes traços de sua personalidade, muito bem resumida como “livro e coração abertos ao mundo”. (DRUMMOND, 1977)

Fig. 2. Carta inédita de Paulo Rónai a Lygia Fagundes Telles de 4 de outubro de 1975. Coleção Museu da Literatura Brasileira/IEB

Setembro de 1975 havia sido produtivo para ele, o que confirmava a energia com que se aplicava ao trabalho. Viajara a São Paulo, cidade de Lygia, para ministrar um curso de tradução na Aliança Francesa; além disso, nas colunas de jornal multiplicava a novidade da segunda edição de seu livro Como aprendi o português e outras aventuras (1958). Lamentando não ter encontrado Telles quando estivera na capital paulista no mês anterior, anuncia nova ida em breve. Dessa vez, seu compromisso seria na consagrada Universidade de São Paulo, para compor a banca de livre-docência de Leyla Perrone-Moisés, professora e crítica de Literatura Francesa na época. Pingam nos parágrafos gracejos que só faz o estrangeiro confortável na língua aprendida. Rónai inicia a carta com afeto e, para transmiti-lo, opta pelo termo saudade — que consta da família de palavras intraduzíveis, como a italiana culaccino (a marca arredondada do copo molhado que descansa sobre a mesa), a árabe gufra (quantidade de água que a mão pode conter) e a russa pochemuchka (alguém que, por curiosidade, faz muitas perguntas): “Querida Lygia, nós também estamos com imensa saudade de você” (grifo meu). Para se referir ao seu

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novo livro, usa o diminutivo “–inho”, se escondendo atrás da modéstia, expressando, assim, sua característica timidez; ainda sinaliza que, ao chegar em São Paulo, gostaria de “bater um bom papo”, expressão idiomática coloquial equivalente a conversar longamente, de modo agradável. Já no final da carta, aproveita a ambiguidade causada pelo pronome oblíquo “–lo” seguido do verbo “trocar” para uma pequena piada. Envia um abraço a Paulo Emílio, marido de Lygia, na esperança de poder trocá-lo por outro e esclarece, entre parênteses, que a troca era referente ao abraço, não ao Paulo Emílio. São dos primeiros anos da década de 1970 as fotografias que estão na Coleção Museu da Literatura Brasileira. Na primeira imagem (Fig. 3), vê-se uma plateia na qual se destaca Rónai com a mão sobre o braço da poltrona — não como se descansasse inteiramente, mas como se preparado para, a qualquer momento, descruzar as pernas e se levantar ao ouvir seu nome. Do lado esquerdo de Paulo, estão Nora Rónai, sua esposa desde 1952, e as filhas Cora e Laura. Na fileira seguinte, logo se reconhece Clarice Lispector, autora que ele admirava e de quem havia prefaciado o livro Laços de família (1960). Todos olham para frente atentamente. Uma anotação manuscrita no verso da fotografia entrega o local do evento — Embaixada da França no Rio de Janeiro — e acusa a presença do embaixador e do adido cultural franceses, ao lado de Lispector, cujos nomes não se registram. A ocasião, que parece guardar certa solenidade, se explica na foto seguinte (Fig. 4): de perfil, o embaixador espeta no terno escuro de Paulo Rónai a medalha de Cavaleiro da Ordem Nacional do Mérito.

Fig. 3. Paulo Rónai acompanhado de Nora, Cora e Laura, c. 1971. Fig. 4. Paulo recebe medalha da Ordem Nacional do Mérito, c. 1971. Coleção Museu da Literatura Brasileira/IEB

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A condecoração seria um agradecimento formal a Paulo pelo trabalho genuíno e constante a favor das letras francesas iniciado em solo húngaro e que se estendia pela América do Sul em palestras e cursos. Prova disso também se encontra no Museu da Literatura Brasileira com o convite do lançamento de Réunion, edição bilíngue de 77 poemas de Carlos Drummond de Andrade publicada pela Collection Aubier-Montaigne (Fig. 5). Embora a tradução dos textos não seja da autoria de Rónai, sua responsabilidade não seria menor. No Teatro Maison de France, em outubro de 1973, se encarregaria de apresentar esta dupla estreia: era a primeira vez que a poesia drummondiana ganhava versão francesa e a primeira vez que a editora publicava um autor de língua portuguesa. O próprio Paulo registra esses fatos no extenso ensaio “Drummond, a ‘Reunião’ em francês”, no Jornal do Brasil, em 26 de maio do mesmo ano. A trinca língua francesa, ensino e prática tradutória fica bem representada pelo cartaz que anuncia o curso “A tradução vivida”, apoiado pelo Centro de Estudos Superiores da Aliança Francesa no Rio de Janeiro (Fig. 6). Essa série de aulas se repetiria nas cidades de São Paulo e Porto Alegre, em 1975, e daria origem a um livro fundamental de Rónai para o campo da tradução publicado com o mesmo título das conferências.

Fig. 5. Convite para lançamento do livro Réunion, de Carlos Drummond de Andrade. Fig. 6. Cartaz do curso “A tradução vivida”, ministrado por Paulo Rónai. Coleção Museu da Literatura Brasileira/IEB

Especificamente sobre sua atividade como palestrante, Paulo envia a Lygia um convite para o evento “Meu Rui Ribeiro Couto”, promovido pela Sociedade de Estudos de

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Moçambique em homenagem ao autor do poema “A moça da estaçãozinha pobre”, que Rónai traduziu ainda na Hungria quando começava a se interessar pelo português (Fig. 7). Embaixador do Brasil na Iugoslávia, Couto seria uma espécie de tutor de poesia brasileira para o jovem tradutor, esclarecendo-lhe dúvidas da língua e da cultura. O embaixador-poeta também sugeriria ajustes em Mensagem do Brasil: os poetas brasileiros da atualidade (Brazilia üzen: Mai Brazil költök), antologia que reuniu 33 poemas de 23 autores nossos. Paulo tudo fez: selecionou, traduziu, prefaciou e publicou. Essa iniciativa solitária anteciparia sua presença física em solo tropical, e o seu empenho, distante e obstinado em tornar nossa literatura conhecida em seu país, logo seria reconhecido pela classe cultural e pelo governo brasileiros. Pela “primeira vez na Europa Central liam-se versos brasileiros e se podia entrever a existência do Brasil, até então só conhecido como produtor de café”. (RÓNAI, 2014, p. 37) Repercutida nos periódicos em meio às notícias da guerra que iniciava seus horrores, em 1939, Brazilia üzen teve importância de valor biográfico. Por meio dela, o judeu húngaro não aportaria no Brasil como quem fugisse, mas, empunhando na mala a carta em que o presidente Getúlio Vargas o cumprimentava pela antologia, era convidado especial da Divisão de Cooperação intelectual da Legação Brasileira. Junto com Otávio Fialho, ministro das Relações Exteriores à época, Ribeiro Couto não apenas teria intervido a nível diplomático como abriria ao amigo as portas dos contatos de profissionais das letras que aqui poderiam ajudá-lo, franqueando a Paulo, assim, muitas amizades duradouras, como as de Cecília Meireles e Jorge de Lima, cujos poemas ele havia incluído na publicação, e com quem agora poderia conviver. Não é sem razão, então, que, ao revirar papéis para enviar a Lygia, Rónai tenha selecionado precisamente o convite dessa palestra, na qual contou episódios que fariam “realçar o nobre peito do Embaixador do Brasil na Iugoslávia e sua enorme generosidade”.

Fig. 7. Convite para palestra “Meu Rui Ribeiro Couto”. Coleção Museu da Literatura Brasileira/IEB

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Enfim, incluiu o convite do evento que celebraria sua admissão como professor de francês do prestigioso Colégio Pedro II (Fig. 8). A cerimônia encerraria um concurso que se arrastava há absurdos seis anos (1951-1957) e ganhara projeção nacional nos jornais pelo enredo que envolvia episódios fraudatórios com favorecimentos a determinados participantes, mudanças contínuas de integrantes da banca examinadora, culminando, até, na morte de um dos candidatos aprovados para a segunda fase. Depois da avaliação da prova escrita, defesa pública e entrega da tese Um romance de Balzac: A pele de Onagro, Paulo conquistaria o primeiro lugar do certame. Sem dúvida, isso seria uma satisfação profissional, é verdade, mas indicaria igualmente uma pequena folga no orçamento, cujas dívidas com empréstimos para resgatar os membros de sua família que sobreviveram à guerra e garantir-lhes uma casa com algum conforto fizeram Paulo assumir um volume desmedido de trabalhos, aulas, revisões e traduções, por muitos anos, sem descanso.

Fig. 8. Convite para cerimônia de posse no Colégio Pedro II. Fig. 9. Participação de casamento de Nora Tausz e Paulo Rónai. Coleção Museu da Literatura Brasileira/IEB

Não surpreende que tenha separado, para o Museu da Literatura Brasileira, o cartão de participação de seu casamento com Nora Tausz, celebrado em 9 de fevereiro de 1952 (Fig. 9). A rapidez com que a jovem arquiteta havia surgido, menos de três meses antes, se converteria em uma relação sólida e duradoura. Juntos até o final da vida de Paulo, o casal assinaria alguns trabalhos em dupla (ele como autor e ela como capista), teria duas filhas (Cora e Laura) e viajaria de volta à Europa para ministrar conferências e palestras. Refazer o caminho que há, trinta anos, ambos vieram na terceira classe de um navio cobertos com nada além de angústia, incerteza e medo, teria valor simbólico de cura.

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A relação com Nora daria a Rónai uma tranquilidade afetiva até então não experimentada. Desde que ele chegou ao Brasil, em 1941, valeu-se de todos os esforços possíveis para tentar salvar sua noiva húngara, Magda, que lá ficara. Casado com ela por procuração, para formalizar o laço e apressar a liberação do visto, Paulo amealhou os recursos que pôde e suplicou a amigos que tinham capacidade política para intervir nessa situação. Foram quatro anos custosos, todos em vão: com a Hungria tomada pelas tropas alemãs, Magda, a mãe dela e outras oito pessoas que estavam escondidas no edifício da Legação portuguesa em Buda foram denunciadas a Gestapo e assassinadas em janeiro de 1945. Esse episódio causaria em Rónai um “remorso persistente”, como ele mesmo definiu. Passaria a aplicar as forças restantes no trabalho excessivo tanto para lidar com a fratura emocional como também para conseguir recursos financeiros suficientes para trazer parte da família que sobrevivera: a mãe, Gisela Rónai, as irmãs, Clara e Eva, e os cunhados, Américo e Estevão. O casamento com Nora e o nascimento das filhas — o casal brasileiro por naturalização, e elas brasileiras desde o berço — ampliariam o clã Rónai. Reunido ao seus, “oferecendo-lhes a possibilidade de recomeçarem a existência em um país mais feliz” (MARTINS, 2020, p. 229), realiza uma aspiração de sua vida. O reagrupamento da antiga família e a constituição de uma nova seria o assentamento final nesta segunda pátria.

4. Retornos A matéria “Um museu para a literatura brasileira” afirma que a instituição “pretende encarar o escritor como testemunha de seu tempo, recriando o contexto que envolveu sua obra, o que não é representado somente pelos livros editados”. “A família, os cachorros, os amigos, tudo faz parte da obra”, completa Lygia (Fig. 10). Se, em um primeiro momento, não estão ali manuscritos ou textos autorais, a pequena porção de documentos de Paulo Rónai nesta coleção corresponde à exata demanda do MLB. Respondendo a uma missiva anterior, à qual não temos acesso, a carta de Paulo traz três cortes: uma espécie de passado recente (“o que encontrei de momento”), uma ação em andamento representada pelo gerúndio (“estou lhe mandando”) e uma promessa com vias de futuro (“vou precisar de mais tempo”). Sem saber o que Telles teria escrito a ele, os caminhos ficam abertos para especulações: como teria contado sobre o projeto do Museu? Que palavras usara para convencê-lo a participar? Quais materiais teria pedido? Será que justificava que os itens do seu contexto importavam também?

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Na outra ponta, Paulo Rónai está em sua “brilhoteca”, no sítio Pois É, na região serrana de Nova Friburgo, para onde se mudara em 1962, abandonando a agitada cidade do Rio de Janeiro (Fig. 11). Ao remexer suas gavetas, prateleiras ou pastas em busca de atender o pedido da amiga, Paulo parece ter percebido completamente o objetivo do Museu e, embora não seja volumoso o material remetido, não deixa muita dúvida de que cada item foi pensado pontualmente. Cada item era um retrato da história de sua vida até ali: estão presentes a família, a língua francesa, os amigos (nas figuras de Rui Ribeiro Couto e Carlos Drummond de Andrade), o magistério, os livros.

Fig. 10. Matéria de jornal sobre o Museu da Literatura Brasileira. Fig. 11. Paulo Rónai em sua “brilhoteca”, nome dado à biblioteca do sítio Pois É. Coleção Museu da Literatura Brasileira/IEB

Se, por um lado, instituições de guarda, como arquivos, estão comumente ligados a demandas apenas de conservação e preservação, o Museu da Literatura Brasileira se distinguiria dessa tradição por se propor ser ainda espaço de reflexão crítica, disponibilizando seu acervo para consulta de pesquisadores e interessados. Um museu, portanto, distante do sentido clássico, que não estaria devotado à construção de um passado, mas atento ao tempo presente, à vida presente. Não à toa, grande parte dos autores cuja documentação comporia essa instituição estava circulando, publicando, movimentando a engrenagem da literatura naquele instante. Curioso notar como Paulo Rónai, apesar de incluído neste cenário, afirma a prevalência de sua atividade mais como educador do que como autor: “Escritor nas horas vagas, sou professor por vocação e destino” (2014, p. 109). É justamente esse “meio escritor” que, no

MLB, se unirá a um time notável de poetas, cronistas e prosadores como Antônio Carlos Secchin, , Erico Verissimo, , Henriqueta Lisboa, Hilda Hilst, Jorge Amado, Menotti Del Picchia, Paulo Mendes Campos, Paulo Setúbal e Pedro Nava — muitos dos quais se tornaram seus amigos pessoais.

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Lançando mão das lições do latinista que foi Rónai, a etimologia da palavra retornar é quase profética. Composta pela partícula “–re” seguida de “–tornare”, guarda em si o significado de voltar, fazer um movimento circular. No painel do Museu da Literatura Brasileira voltam, portanto, nomes de autores cujas obras Paulo se dedicara a traduzir na Hungria no período em que produziu Brazilia üzen: Mai Brazil költök. O pouco conhecimento da língua e da cultura de um país que, inicialmente, o jovem aprendia por esforço solitário não impediu sua sensibilidade apuradíssima ao ler e selecionar os poemas que melhor dariam conta da literatura brasileira na década de 1930. Assustado com o início do movimento antissemita, não poderia imaginar que seu acervo estaria, tanto anos depois, junto com os de que 4 dos 23 poetas que ele anunciou do outro lado do Atlântico. O livro do acaso está aberto ao meio e o círculo, então, se completa no Museu da Literatura Brasileira. Aliás, o adjetivo pátrio brasileiro, justaposto ao nome de Rónai, requer atenção. Na dobra das identidades — judeu, húngaro, brasileiro —, na dobra dos espaços — jornais, salas de aulas, editoras e auditórios —, na dobra dos países — Hungria, França, Brasil —, estava Pál-Paul-Paulo, formas distintas com que teve de assinar seu nome próprio em 85 anos de vida. O escritor e amigo Guimarães Rosa diz que Rónai passou por “um abrasileiramento radical, um brasileirismo generalizado” (ROSA apud SOUZA, 2015, p.14). Em verso, seu outro parceiro Carlos Drummond de Andrade compartilha de semelhante opinião. Por ocasião do lançamento de Como aprendi o português e outras aventuras, publica o poema “Mestre-aprendiz” em sua homenagem:

O português, como o aprendi, Paulo Rónai conta, fagueiro. Outra façanha dele eu vi: aprendeu a ser brasileiro.

A presença de Paulo Rónai no museu literário se coloca na contramão. Não é o registro daquilo que, mais outra vez, ele teria feito a favor das letras brasileiras, mas aquilo que as letras brasileiras, enquanto instituição de memória, teriam feito por ele. A gaveta deste arquivo, aberta com quatro décadas de atraso, firma, portanto, sua tripla relevância. A primeira é deixar evidente a integração absoluta de Paulo em terras tropicais tanto em termos de amizade, como em termos de profissionalismo e interesse público. Além disso, com um montante de cerca de 300 manuscritos, fotografias, cartas e recortes de jornais, em que cada um manifesta uma narrativa possível, o MLB também se configura como um outro e efetivo espaço para que a comunidade acadêmica possa pesquisar. A trinca se completa porque o

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registro deste museu que não nasceu abastece com novidades os campos da museologia, da historiografia e do patrimônio cultural brasileiro. O percurso de Rónai constrói, portanto, uma ponte pela língua: faz a poesia produzida no Brasil chegar à Hungria; e, ao se entranhar na cultura brasileira, traz consigo rastros da cultura húngara, jogando luzes sobre ela. Na introdução de Antologia do conto húngaro (1957), esse trabalho em mão dupla fica evidente:

Nasceu este volume do desejo de contar ao Brasil, minha pátria de adoção, a Hungria, país onde nasci e me criei, fui feliz e sofri, e de onde me exilei sem trazer outro patrimônio a não ser uma cultura. Reconstruir pela escrita a primeira parte da minha vida equivaleria, para mim, à construção de uma ponte sobre abismo que a separa da segunda. (grifos meus – p. 29)

Ao sair da sua casa, na Alkotmány utca, número 12, levando a incerteza no corpo e trazendo em seu passaporte a inscrição “SEM VALIDADE PARA RETORNO”, ali pisaria de novo em 1964, contrariando o carimbo. A convite da Universidade Eötvös Loránd, Rónai cumpriu uma agitada agenda de conferências, palestrando também na Associação dos Escritores

Húngaros, Pen Club local e Sindicato dos Pedagogos, além de dar entrevistas a TV e rádio. Décadas depois, sua atualidade permanece. Pela análise dos inéditos documentos confiados a este, até então, desconhecido Museu da Literatura Brasileira, Paulo Rónai volta agora a seu país natal em modos de pesquisa. O livro do acaso está, novamente, aberto ao meio e o círculo se completa: retornare.

Outras aventuras

Esse trabalho só foi possível graças à comunidade formada em torno desse tema. Destaco Elisabete Ribas, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), e Ana Cecília Impellizieri, autora do livro-referência sobre Paulo Rónai. No círculo mais próximo, agradeço à Marília Rothier, minha orientadora; aos colegas da Puc-Rio, Alexandre Bruno Tinelli, João Pedro Fernandes e Ramon Ramos; às companheiras da lacuna, grupo de estudos sobre arquivos literários; e a Bruno Buccalon, jovem arquiteto, como Nora Tausz.

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Fontes ANDRADE, Carlos Drummond de. “Paulo no sítio Pois É”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 abr. 1977. BENNETT, Tony. The birth of the museum: history, politics, culture. Nova York: Routledge, 1995. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul; São Paulo: Fapesp, 12ª ed., 2009. ESQUEDA, Marileide. Paulo Rónai: O desejo da tradução e do traduzir. Campinas: IEL, Unicamp, 2004. (Doutorado em Linguística Aplicada) . Rónai Pál: Conflitos entre a teoria e a prática da tradução e a profissionalização do tradutor. Campinas: IEL, Unicamp, 1999. (Mestrado em Estudos da Linguagem) JULIÃO, Letícia. Apontamentos sobre a história do museu. Disponível em: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/Museus/File/caderno-diretrizes/cadernodir etrizes_segundaparte.pdf. Acesso em 10/10/2019. MARTINS, Ana Cecilia Impellizieri. O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo Rónai. São Paulo: Todavia, 2020. MARTINS, Maria Helena Pires. “Ecomuseu”. In: COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Editora Iluminuras, 1997. RÓNAI, Nora. O desenho do tempo – Memórias. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. RÓNAI, Paulo. Como aprendi o português e outras aventuras. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2ª ed., 2014. . Não perca o seu latim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1980. . HOLANDA, Aurélio Buarque. Antologia do conto húngaro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. ROSA, Guimarães apud SOUZA, Eneida Maria de. “A Hungria/sertão de Guimarães Rosa”. In: Conexão Letras, Porto Alegre, vol. 10, nº 13, 2015. SPIRY, Zsuzsanna Filomena. Paulo Rónai: um brasileiro made in Hungary. São Paulo: FFLCH- USP, 2009. (Mestrado em Estudos Linguísticos e Literários)

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