IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM

MESTRADO IX SELINFRAN SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

NAS MALHAS DO DISCURSO, NAS TRILHAS DO TEXTO

ANAIS

20 e 22 de setembro de 2018

FRANCA - SP

Editora ISBN 978-85-60114-72-6 ANAIS

IX SELINFRAN SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN NAS MALHAS DO DISCURSO, NAS TRILHAS DO TEXTO ISBN 978-85-60114-72-6 Setembro de 2018 ORGANIZAÇÃO DO VOLUME: Prof. Dr. Alexandre Marcelo Bueno, Profa. Dra. Vera Lucia Rodella Abriata PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Núcleo de Design - UNIFRAN DIAGRAMAÇÃO: Núcleo de Design - UNIFRAN COMISSÃO ORGANIZADORA: Prof. Dr. Alexandre Marcelo Bueno (UNIFRAN) – Presidente da Comissão Organizadora Profa. Dra. Aline Maria Pacífico Manfrim (UNIFRAN) Profa. Dra. Camila de Araújo Beraldo Ludovice (UNIFRAN) Profa. Dra. Fabiane Teixeira de Jesus (colaboradora – bolsista PNPD CAPES) Prof. Dr. Fernando Aparecido Ferreira (UNIFRAN) Prof. Dr. Juscelino Pernambuco (UNIFRAN) Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano (UNIFRAN) Profa. Dra. Maria Flávia de Figueiredo Pereira (UNIFRAN) Profa. Dra. Marília Giselda Rodrigues (UNIFRAN) Profa. Dra. Vera Lucia Rodella Abriata (UNIFRAN) COMITÊ CIENTÍFICO Prof. Dr. Geraldo Vicente Martins (UFMS) Prof. Dr. Gerardo Ramírez Vidal (Universidad Nacional Autónoma de México) Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza (UERN) Prof. Dr. Juan Nadal Palazón (Universidad Nacional Autónoma de México) Profa. Dra. Luciana de Oliveira Barros (UNINCOR) Profa. Dra. Lucia Teixeira (UFF) Prof. Dr. Pedro Farias Francelino (UFPB) Prof. Dr. Renan Belmonte Mazzola (UNINCOR) Prof. Dr. Ricardo Lopes Leite (UFC) Profa. Dra. Tatiana Bubnova (Universidad Nacional Autónoma de México) Profa. Dra. Terezinha Richartz Santana (UNINCOR

APOIO: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (proc. no 18/12571-6) CONFERENCISTAS E ARGUIDORES CONVIDADOS

Profa. Dra. Débora Raquel Hettwer Massmann (UNIVÁS) Prof. Dr. Geraldo Tadeu Souza (UFSCar) Prof. Dr. Guilherme Adorno (UNICAMP) Profa. Dra. Luciana Nogueira (UNIVÁS) Profa. Dra. Luciana Barros (UNINCOR) Profa. Dra. Norma Discini (USP) Prof. Dr. Renan Belmonte Mazzola (UNINCOR)

AVALIADORES DE PAINÉIS

Ana Cláudia Ferreira da Silveira Fabiane Teixeira de Jesus Flavia Karla Ribeiro Santos Renata Cristina Duarte Rosana Letícia Pugina Samuel Cardoso Santana APRESENTAÇÃO

Entre os dias 20 e 22 de setembro de 2018, ocor- Profa. Ma. Ana Cláudia Ferreira da Silveira; Profa. reu na Universidade de Franca (UNIFRAN), a nona Ma. Flávia Karla Ribeiro Santos; Profa. Ma. Renata edição do Seminário de Pesquisa em Linguística Duarte; Profa. Ma. Rosana Letícia Pugina; Prof. Me. da UNIFRAN (SELINFRAN), organizado pelo Pro- Samuel Cardoso Santana. grama de Mestrado em Linguística da UNIFRAN. Pela primeira vez, o SELINFRAN obteve o apoio O evento, que ocorre de modo ininterrupto desde financeiro da FAPESP, que possibilitou a vinda de sua criação, tem como objetivo ser um espaço de dois palestrantes que engrandeceram o evento, já discussão teórica e analítica a partir da apresenta- bastante conhecido na região. A Profa. Norma Dis- ção de trabalhos de estudantes de pós-graduação, cini proferiu a palestra de abertura do evento, no sobretudo da Unifran, que contam, assim, com a dia 20 de setembro, participando ainda de uma ou- oportunidade de terem seus trabalhos comentados tra mesa no dia 21, ao lado dos professores Vera por renomados pesquisadores da área de Linguísti- Lucia Abriata e Alexandre Marcelo Bueno. O Prof. ca com enfoque nas teorias que sustentam as pes- Geraldo Tadeu Souza participou da mesa redonda quisas do Programa (Semiótica de linha francesa, no dia 21, com a participação do Prof. Juscelino Per- Análise do Discurso Francesa, Estudos Bakhtinia- nambuco e da Profa. Luciana Barros. nos, Retórica e Linguística Textual). Além disso, o evento teve a presença maciça de O evento, cujo tema deste ano foi “Nas malhas do pesquisadores e professores da Univás, como parte discurso, nas trilhas do texto” (Cf. site: www.selin- do primeiro ano de convênio entre as instituições. fran.net), contou com a participação de docentes e Assim, o SELINFRAN teve a palestra do Prof. Dr. discentes do Mestrado em Linguística da Universi- Guilherme Adorno, da Universidade Vale do Sapu- dade de Franca. Além disso, o evento contou com caí e a participação das professoras Débora Raquel a participação de docentes e pesquisadores do Es- Hettwer Massmann e Luciana Nogueira na mesa de tado de São Paulo e de Minas Gerais. Vieram para o Análise do Discurso, junto com a professora Marília evento pesquisadores da USP, da UFSCar-Soroca- Giselda Rodrigues, da UNIFRAN. ba, da Univás e da Unincor (as duas últimas institui- Estes anais são uma amostra significativa da pro- ções, em decorrência dos convênios firmados entre dutividade dos alunos de Mestrado do Programa, os programas de pós-graduação). assim como representam a qualidade das pesqui- A edição deste ano teve 21 apresentações orais sas desenvolvidas no âmbito da universidade, ainda de mestrandos que estão em seu segundo ano de mais levando-se em conta que todos os trabalhos pesquisa. Nessa atividade, as apresentações foram apresentados neste documento estavam, ainda, em comentadas pelos convidados externos especialis- fase de desenvolvimento pré-qualificação. Desse tas em suas respectivas áreas. Foram eles: Profa. modo, há um conjunto pertinente de trabalhos re- Dra. Débora Raquel Hettwer Massmann (UNIVÁS); presentativos das diferentes linhas de pesquisa e Prof. Dr. Geraldo Tadeu Souza (UFSCar); Prof. Dr. ramos teóricos desenvolvidos há mais de dez anos Guilherme Adorno (UNIVÁS) Profa. Dra. Luciana no Programa de Mestrado em Linguística da Uni- Barros (UNINCOR); Profa. Dra. Luciana Nogueira versidade de Franca, cujo amadurecimento apare- (UNIVÁS); Profa. Dra. Norma Discini (USP); Prof. Dr. ce de modo evidente na condução dos trabalhos Renan Belmonte Mazzola (UNINCOR). ora publicados. Deseja-se, assim, que os trabalhos Além disso, foram apresentados trabalhos em 25 aqui presentes sirvam de incentivo aos demais alu- painéis, com mestrandos que ingressaram este ano nos e pesquisadores na área de Linguística e, em no Mestrado em Linguística da Unifran ou de alunos especial, nos estudos discursivos, para o prosse- de iniciação científica da mesma instituição, vindos guimento de suas reflexões acerca dos objetos que de cursos como Letras, Psicologia e Jornalismo. dizem respeito à nossa realidade social e ao nosso Nessa atividade, os comentadores são egressos do momento histórico e político.. Mestrado em Linguística da Unifran que estão rea- lizando doutorado ou já se tornaram doutores por Franca, dezembro de 2018 outras instituições: Profa. Dra. Fabiane Teixeira de Prof. Dr. Alexandre Marcelo Bueno Jesus (PNPD CAPES/UNIFRAN); Profa. Dra. Vera Lucia Rodella Abriata TEXTOS A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DA MARCA E 110 SUAS RELAÇÕES COM O CONSUMIDOR DE MODA Fernanda Fontanetti GOMES ENTRE O PARTICULAR E O UNIVERSAL: UMA Alexandre Marcelo BUENO 8 QUESTÃO A RESPEITO DO AUDITÓRIO EM RETÓRICA ANÁLISE DE UM TRABALHO DE CONCLUSÃO Alan Ribeiro RADI 123 DE CURSO (TCC) DO CURSO DE GRADUA- ÇÃO EM MEDICINA SOB UMA PERSPECTIVA Maria Flávia FIGUEIREDO DA LINGUÍSTICA TEXTUAL Renato Tadeu BARUFI CABEÇA DINOSSAURO E NHEENGATU COMO Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE 15 REFRAÇÃO DO CONTEXTO HISTÓRICO E SO- CIAL DE UM PAÍS UM OLHAR BAKHTINIANO PARA O CONTEX- Cláudia de Fátima OLIVEIRA 133 TO DO USO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS NA Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE FORMAÇÃO DOCENTE Terezinha Gorete Vilela SOARES EMBALANDO SONS E SEDUZINDO O OLHAR: Juscelino PERNAMBUCO 26 A PERSUASÃO NAS CAPAS DE DISCOS DA TROPICÁLIA REFLEXÕES BAKHTINIANAS E SUAS CON- Delzio Marques SOARES 148 TRIBUIÇÕES PARA UMA ENTREVISTA EM HOMENAGEM AO DIA INTERNACIONAL DA Fernando Aparecido FERREIRA RELIGIÃO José PESSONI FILHO RELAÇÕES DIALÓGICAS NA OBRA O ÚLTIMO 36 PAPA, DE LUIS MIGUEL ROCHA Aline Maria Pacífico MANFRIM Eliana Lucca KABARITI JOANA E MARIE-ANGE: AS RELAÇÕES DIA- Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE 158 LÓGICAS EM DOIS RIOS, DE TATIANA SALEM LEVY A JORNADA DO HERÓI: O DESPERTAR DAS Lia Andrade Pucci SANTOS PAIXÕES NO TEXTO MULTIMODAL 46 Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE Giovanni Aurélio de BRITO Maria Flávia FIGUEIREDO O CHARACTER DESIGN COMO UMA ESTRA- 170 TÉGIA RETÓRICA – CONSTRUÇÃO DO ETHOS A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA E O META- DE CARL FREDERICKSEN EM UP. 56 DISCURSO EM A RESISTÊNCIA, DE JULIÁN Rodrigo Aparecido de SOUZA FUKS. UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA Fernando Aparecido FERREIRA Graciely Andrade MIRANDA Vera Lucia Rodella ABRIATA DISCURSO JURÍDICO E PODER: EXCLUSÃO E 183 MARGINALIZAÇÃO NA REFORMA DA PREVI- AS RELAÇÕES DIALÓGICAS NO JOGO DE DÊNCIA 67 XADREZ E O ATO RESPONSÁVEL EM UMA Renato Marinzeck da SILVA CENA DO FILME RAINHA DE KATWE, DE Luciana Carmona Garcia MANZANO MIRA NAIR Greice Aparecida Cabral MIRANDA O NOVO DECRETO DE CURSOS A DISTÂNCIA, Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE 194 EM PERSPECTIVA BAKHTINIANA Priscila da Silva Oliveira JACINTHO QUAL CORPO ME PERTENCE? UMA ANÁLISE Juscelino PERNAMBUCO 78 DISCURSIVA DO CORPO NA MODA Pâmela Tavares de CARVALHO “ERA A POESIA PLÁSTICA DA VIDA, ERA A Luciana Carmona Garcia MANZANO 206 FESTA DA FORMA E ERA A FESTA DA COR”: UMA ANÁLISE RETÓRICA DAS PINTURAS DE HALLELUJAH: O DESPERTAR DAS PAIXÕES ANITA MALFATTI EXPOSTAS NA INDIVIDUAL 90 POR MEIO DA CANÇÃO DE 1917 Priscila Antunes de SOUZA Nayara Christina Herminia dos SANTOS Maria Flávia FIGUEIREDO Fernando Aparecido FERREIRA

ENTRE O PARTICULAR E O UNIVERSAL: UMA QUESTÃO A RESPEITO DO AUDITÓRIO EM RETÓRICA

Alan Ribeiro RADI1 SELINFRAN Maria Flávia FIGUEIREDO

RESUMO Por constituir a instância que avalia a qualidade de uma argumentação, por intermédio da adesão ou não à tese defendida, o auditório assume uma grande importância no processo persuasivo. Essa instância geralmente é dividida em particular e universal na literatura da teoria retórica. No entanto, os fatores que norteiam essa subdivisão são obscuros e pouco compreendidos. Dessa forma, nossa pesquisa tem como objetivo aclarar quais são os fatores que permeiam os fundamentos dessa subdivisão. Para isso, nos auxiliarão os pensadores da teoria Retórica, tais como Aristóteles (2011), Reboul (2004), Tringali (1988) e Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005); de igual maneira o corpus, em que averi- guaremos a ocorrência de alguns conceitos de auditório particular e universal (assim como os estabelecemos) para testar a validade de nossas hipóteses. O corpus é constituído por seis textos de diversos gêneros e possui em comum a temática gay e homofóbica. PALAVRAS-CHAVE Retórica; auditório universal; auditório particular; discurso homofóbico. ABSTRACT 8 The audience assumes a great importance in the persuasive process, since it is the body that evaluates the quality of an argument, by means of the adhesion or not to the thesis defended. This instance is usually divided into particular and universal in the literature of rhetorical theory. However, the factors guiding this subdivision are obscure and poorly understood. Thus, our research aims to clarify what are the aspects that permeate the fundamentals of this subdivision. For this, we will count on the thinkers of Rhetoric theory, such as Aristotle (2011), Reboul (2004), Tringali (1988) and Perelman and Olbrechts-Tyteca (2005); in the same way the corpus, through which we will investigate the occurrence of LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA some concepts of private and universal auditorium (as we have established them) to test the validity of our hypotheses. The corpus consists of six texts of different genres and has in common the gay and homophobic themes. KEYWORDS Rhetoric; universal audience; private audience; gay discourse; homophobic discourse 1 Capes/FAPESP (2016/17438-7) IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução Objetivamos, com nossa pesquisa, rever a conceituação tradicional de A Retórica concentra em seu cerne auditório universal e auditório parti- três instâncias que a habilitam de se cular, bem como estabelecer clara- enquadrar nos estudos da linguagem.

mente quais são os critérios que nos SELINFRAN São elas: orador, auditório e o próprio levam a determinar cada uma dessas discurso, que medeia a relação entre subdivisões. Posteriormente, preten- as duas anteriores. Das três, a ênfase demos estabelecer até que ponto é de nossa investigação repousará sob possível um orador manter um dis- a figura do auditório. Essa escolha se curso que satisfaça as necessidades justifica em função da grande rele- do auditório universal; até que ponto vância exercida pelo conceito de au- o orador deseja alcançar esse auditó- ditório no processo retórico, uma vez rio, ou ainda, se seu propósito comu- que é ele quem dará o veredito final nicativo visa atender às demandas acerca de toda exposição argumen- desse auditório. Refletiremos tam- tativa realizada pelo orador. bém sobre como o auditório, com A importância conferida ao audi- base em seus interesses, concebe a tório no fazer argumentativo pode figura de seu orador e exige, ou não, ser observada nos dizeres a seguir: que ele esteja atento aos valores uni- “a retórica é uma prática significante versais. Por meio dessas reflexões, e comunicativa que só se efetua na esperamos poder responder outros relação entre dois termos interde- questionamentos, tais como: Em que pendentes: o orador e o auditório, o circunstâncias um orador é levado emissor e o receptor da mensagem. a considerar o auditório universal? Sem um elemento não há o outro” Frente à expansão da democracia (TRINGALI, 1988, p. 31). A relação de em nossa sociedade, de que forma interdependência é bastante eviden- os auditórios particulares outorgam te; sem auditório que julgue, a expo- a seus oradores uma postura radical, 9 sição do orador se torna desnecessá- em termos ideológicos? De que ma- ria. E, sem orador que trate de algum neira o imbricamento de interesses tema, não há necessidade de um au- entre orador e auditório influencia a ditório para julgar. postura do orador? Ressaltamos, então, com base no Com base nessas reflexões, alme- exposto acima, que a decisão de em- jamos propor uma conceituação para preender uma pesquisa mais deta- cada tipo de auditório que seja con- lhada sobre a instância do auditório, dizente com a nossa realidade demo- principalmente no que diz respeito à crática e tecnológica, no que concer- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA sua subdivisão em particular e uni- ne à amplitude da capacidade que os versal, advém do fato de ele ser o ter- discursos têm de se estender a ou- mômetro que averigua a capacidade tros auditórios. E, ainda, refletiremos exercida pelo orador de formular um sobre como essa realidade exerce discurso que o persuada eficazmen- alguma influência sobre aqueles que te. desejam atender ao auditório univer- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX sal e aqueles que não se preocupam auditório de um discurso produzido se o contrariar. na atualidade graças às tecnologias. Consideremos que o objetivo dos Logo, dizer que todos os habitantes estudos retóricos concentra-se na da terra são o auditório universal nos SELINFRAN busca por demonstrar de que forma parece pouco esclarecedor e, tam- algumas escolhas, em detrimento de bém, pouco suficiente para resolver outras, angariam maior adesão para o problema que levantamos. os discursos. Para o sucesso do pro- Propomo-nos, dessa maneira, a cesso persuasivo, é necessário que o considerar como fator definidor do auditório, no papel de juiz, sinta con- auditório universal a aprovação de fiança naquele que discursa em favor discursos com base no valor qualita- de uma tese. Portanto, a instância do tivo do raciocínio argumentativo. Ora, auditório deve ser considerada como entendemos que existe um fator nor- base para a formulação de um dis- teador da teoria retórica que diz res- curso que atenda suas demandas. peito à busca por aquilo que é bom, Com base no exposto, acreditamos justo e louvável para o maior número que nossa pesquisa poderá contribuir possível de indivíduos. Lembremos para esse campo teórico por analisar que “a retórica é útil porque o verda- e refletir sobre como a instância ar- deiro e o justo têm naturalmente mais gumentativa do auditório atua e in- valor do que os seus opostos” (ARIS- fluencia na construção dos discursos TÓTELES, 2011, p. 42). Com base nes- persuasivos. Também ressaltamos sas considerações, o estagirita deixa que os estudos dessa instância, que claro que os procedimentos retóricos até agora se realizaram, possuem la- devem ser empregados na busca dos cunas que carecem ser investigadas valores de verdade e justiça. O fato de forma que construam uma con- de evidenciar esses valores equivale cepção de auditório condizente com a falar de ética. Dessa maneira, o au- 10 a realidade atual e, assim, permita no- ditório universal é aquele que busca vas formas investigativas acerca das encontrar respostas para seus ques- possibilidades argumentativas com tionamentos em discursos proponen- enfoque nessa instância. tes de acordos em que o direito de liberdade de todos fique preservado. 1. Do referencial teórico Assim, argumentar para o auditório A partir de nossos objetivos de universal não implica agradar a todos pesquisa, traremos algumas consi- os seres humanos do planeta Terra, derações sobre o que seja o auditó- e sim fazer com que todos aqueles LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA rio universal. Para propor a definição que comungam com a noção de éti- desse conceito, corremos o risco de ca fiquem satisfeitos, embora os que levar em conta fatores numéricos. Se preferem os valores particulares de- assim o fizermos, vamos nos deparar saprovem o que foi proposto sob a com um conceito impreciso; porque perspectiva da ética. Por isso, o au- todos os seres humanos do planeta ditório universal não é uma instancia Terra têm potencial para constituir o quantitativa e nem fisicamente repre- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX sentável, pois se trata de um princí- desse tema. Tendo formulado nossas pio de superação. Vejamos: hipóteses e possíveis definições para Em suma, o auditório universal esses conceitos, partiremos para a pode ser apenas uma pretensão análise qualitativa do corpus a fim de

ou mesmo um truque retórico. averiguar a aplicabilidade de nossas SELINFRAN Mas achamos que ele pode ter hipóteses. Os textos componentes função mais nobre, a do ideal do corpus são: argumentativo. O orador sabe A. Propaganda para o dia dos na- bem que está tratando com um auditório particular, mas faz um morados de 2015 da empresa Boticá- discurso que tenta superá-lo, di- rio. Título: O BOTICÁRIO - Comercial rigindo a outros auditórios possí- Dia dos Namorados – Casais. veis que estão além dele, consi- B. Propaganda do desodorante derando implicitamente todas as da Old Spice. Título: Comercial Old suas objeções. Então o auditório universal não é um engodo, mas Spice - O chamado - Malvino Salva- um princípio de superação, e por dor. ele se pode julgar da qualidade C. Campanha de boicote à empre- de uma argumentação (REBOUL, sa Boticário por Silas Malafaia. Título: 2004, p. 93-94). Pr. Silas Malafaia Critica Propagan- Consideremos, ainda, os seguintes das que Incentivam o Homossexua- dizeres: “Daí a fraqueza relativa dos lismo. argumentos que só são aceitos por D. Artigo da Veja sobre o PAPA auditórios particulares e o valor con- e suas considerações acerca do ho- ferido às opiniões que desfrutam uma mossexualismo. Título: Papa diz que aprovação unânime, especialmente cristãos deveriam pedir desculpas da parte de pessoas ou de grupos aos homossexuais. que se entendem em muito poucas E. Artigo do site Deli sobre a pro- coisas” (PERELMAN; OLBRECHTS- 11 paganda da Old Spice. Título: O HO- -TYTECA, 2005, p. 35). Com base no MEM HOMEM da Old Spice e o pre- exposto, concluímos que a ampliação conceito. dos discursos, pelo auxílio das mídias, não interfere na conceituação de au- F. Artigo do Blog “diário de um ditório universal, no entanto, exige gay” sobre a propaganda da Old Spi- maior esforço na seleção dos argu- ce. Título: Propaganda HOMOFÓBI- mentos para aqueles que querem ser CA 2014 – Chame o CONAR?. ou parecer mais éticos. 2. O auditório universal e a argu- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Com vistas a responder os ques- mentação tionamentos que norteiam este tra- Dada a extensão do corpus sele- balho, realizaremos uma pesquisa de cionado para nossa pesquisa, apre- cunho bibliográfico acerca das defi- sentaremos apenas um recorte dele nições de auditório universal e parti- neste texto. O recorte é constituído cular, bem como as reflexões acerca pela notícia da Veja online acerca do IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX posicionamento do Papa Francisco juízos de uma pessoa ou de um gru- no que concerne ao respeito para po de pessoas como meio de prova com os homossexuais, bem como a favor de uma tese” (PERELMAN; as atitudes tomadas pela para OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 348). SELINFRAN com eles. Os enunciados proferidos O que linguisticamente materializa o pelo Papa, que deram origem à no- uso dessa espécie de argumento é o tícia, foram enunciados em um voo fato de o Papa citar o que o “Cate- de retorno da Armênia, após visita cismo da Igreja Católica” diz acerca apostólica no ano de 2016, enquanto do acolhimento de homossexuais na dialogava com jornalistas. O objetivo igreja. O Catecismo é uma obra de global da notícia consiste em apre- exposição da fé católica, bem como sentar uma diferença do posiciona- de seus preceitos, rituais e dogmas. mento de Francisco, se comparado a No tocante às possíveis autoridades outros pontífices, em relação ao jul- invocadas nesse tipo de argumento, gamento moral referente à homosse- consideremos que xualidade. O título da notícia é: “Papa [...] são muito variáveis: ora será diz que cristãos deveriam pedir des- ‘o parecer unânime’ ou ‘a opinião culpas aos homossexuais”. comum’, ora certas categorias Observemos o seguinte excerto da de homens, ‘os cientistas’, ‘os fi- notícia: “Em conversa com jornalistas lósofos’, ‘os padres da igreja’, ‘os no voo de volta da Armênia, o pon- profetas’; por vezes a autoridade tífice foi questionado sobre o mas- será impessoal: ‘a física’ ‘a doutri- na’ ‘a religião’, ‘a bíblia’; por vezes sacre à boate Pulse, em Orlando, e se tratará de autoridades desig- lembrou que, segundo o catecismo, nadas pelo nome (PERELMAN; homossexuais ‘não devem ser discri- OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. minados, mas respeitados e acom- 350). panhados no plano pastoral” (VEJA, 12 2016, s/p.). Levando-se em conta que Dessa maneira, tratamos em nos- o assunto tomado pelos jornalistas so objeto de estudo, da invocação refere-se a um acontecimento cau- de uma autoridade impessoal, mais sador de grande comoção social, o especificamente, uma doutrina, ou atentado homofóbico à boate Pulse, seja, o Catecismo da igreja católica. o pontífice elabora uma reflexão de O documento citado apresenta o que acolhimento que nega toda e qual- a instituição Igreja Católica entende quer forma de discriminação a ho- como o melhor a se fazer no que toca mossexuais. Em caráter de reforço ao acolhimento dos homossexuais. O LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA argumentativo, o líder religioso lança fato de o orador apresentar, de início, mão de um argumento de autoridade a visão da igreja mostra que ele não para respaldar seu posicionamento. fala somente por si, mas atua como A esse respeito, consideremos que “o porta voz da instituição religiosa que argumento de prestígio mais nitida- ele representa. Esse aspecto diz res- mente caracterizado é o argumento peito à argumentação voltada para de autoridade, o qual utiliza atos ou um auditório particular, constituído IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX pelos católicos que comungam dos Esse movimento evidenciado mostra valores especificados no documento como o Papa não limita seu discurso citado. somente para os fiéis católicos. O fato Vejamos mais um excerto da no- de o religioso reconhecer o direito de tícia: “Eu acho que a Igreja não de- liberdade e respeito inerente a cada SELINFRAN veria pedir desculpas apenas à uma indivíduo sem intervenção violenta pessoa gay que tenha ofendido, mas ou opressiva, nos remete à máxima também aos pobres, às mulheres que universal de direito à liberdade e à foram exploradas e às crianças que vida, que consta da Declaração Uni- foram forçadas a trabalhar” (VEJA, versal dos Direitos do Homem, inclu- 2016, s/p.). Nesse enunciado, fica sive. Esse fato esclarece o trecho da evidente que o religioso apresenta notícia em que se afirma que Fran- muito mais do que o ponto de vista cisco “é criticado pelos setores mais da religião sobre o assunto em ques- conservadores da Igreja Católica por tão, mas sua própria opinião. O uso quebrar alguns paradigmas em rela- do verbo achar, usado logo no iní- ção à sexualidade” (VEJA, 2016, s/p.). cio do enunciado, não diz respeito à Assim, o processo discursivo desen- imprecisão do pensamento, e sim a volvido pelo orador, embora esteja uma forma encontrada pelo religioso embasado em valores universais, não de mostrar como ele percebe essa consegue agradar a todos os indiví- questão, e essa percepção não ne- duos, pois alguns comungam apenas cessita ser necessariamente idêntica de valores pertencentes a grupos es- à da igreja, tanto que o tema da notí- pecíficos/particulares. cia é a forma com a qual ele se dife- Considerações finais rencia em relação ao pensamento de Conforme já dissemos, nossa pes- outros pontífices nesse quesito. Ain- quisa busca rever as reflexões ine- da no enunciado analisado, Francis- rentes à instância argumentativa do co considera que a discriminação de 13 auditório, principalmente no que diz homossexuais, assim como atos de respeito à sua subdivisão em particu- violência contra os mesmos, equiva- lar e universal. Dedicamo-nos, neste le a outros equívocos cometidos pela trabalho, a apresentar algumas refle- igreja em contextos históricos passa- xões acerca do conceito de auditó- dos e carecem de pedido de perdão. rio universal. Dentre elas, queremos Até aqui, pudemos perceber o ressaltar que, com base na análise movimento realizado pelo orador na de um recorte do corpus, pudemos

construção de seu logos; nesse pro- evidenciar que o fator determinante UNIFRAN DA LINGUÍSTICA cesso, ele se apropria dos valores ca- na constituição do auditório universal tólicos como ponto de partida para não tem relação alguma com quanti- sua reflexão. No entanto, também dade ou mesmo representação física, reconhece os erros já cometidos por mas relaciona-se aos valores éticos sua instituição religiosa e a neces- próprios do organizador dessa teo- sidade de reparação desses erros. ria, Aristóteles. Dessa maneira, com IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX base nos valores éticos da atualida- Reboul (2004), que o auditório uni- de, podemos empreender análises versal não é físico, nem é imaginário qualitativas que evidenciem se de- ou inalcançável, mas se trata de um terminado logos, por intermédio dos princípio que, se respeitado, promo-

SELINFRAN argumentos selecionados, atende ve superação e amplia a qualidade da às demandas do auditório universal. argumentação. Evidenciamos, ainda, apoiados em

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011. 14 BOTICÁRIO. O BOTICÁRIO - Comercial Dia dos Namorados – Casais. YouTube. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2016. DELI. O HOMEM HOMEM da Old Spice e o preconceito. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2016 DIÁRIO, de um gay. Propaganda HOMOFÓBICA 2014 – Chame o CONAR?. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2016. MALAFAIA, S. Pr. Silas Malafaia Critica Propagandas que Incentivam o Homossexualismo. YouTube. Dispo- nível em: . Acesso em: 9 jul. 2016. OLD SPICE. Comercial Old Spice – O chamado – Malvino Salvador. YouTube. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2016. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA L. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução Maria Erman- tina Galvão G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. REBOUL, O. Introdução à retórica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. TRINGALI, D. Introdução à retórica: a retórica como crítica literária. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1988. VEJA. Papa diz que cristãos deveriam pedir desculpas aos homossexuais. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2016. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX CABEÇA DINOSSAURO E NHEENGATU COMO REFRAÇÃO DO CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL DE UM PAÍS

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Cláudia de Fátima OLIVEIRA SELINFRAN Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE

RESUMO Nos anos 1980, o Brasil passava pelo período pós-ditatorial. Nesse cenário a banda paulistana Titãs lançava o álbum Cabeça Dinossauro, com letras de cunho crítico, ideológico e irônico, frente às instituições Igreja, Estado e Família. Em 2015, a banda lançou o CD Nheengatu, com críticas às mesmas instituições. O objetivo deste estudo é investigar de que maneira as letras mantêm relações dialógicas presentes no contexto da produção da época e atual, a partir das reflexões do filósofo russo Bakhtin. Os enunciados registrados marcam o con- texto histórico, político e social em épocas distintas. Para o suporte teórico, as considerações de Bakhtin (2003) jazem na ideia de que os discursos represen- tam uma alteridade constitutiva, entendendo que os juízos de valor expressos por um locutor incorporam os discursos alheios. PALAVRAS-CHAVE Titãs; relações dialógicas; letras de música; Bakhtin. ABSTRACT In the 1980s, went through the post-dictatorial period. In this scenario the São Paulo band Titãs released the album Cabeça Dinossauro, with lyrics of critical, ideological and ironic character, in front of the Church, State and Fa- 15 mily institutions. In 2015, the band released the CD Nheengatu, with criticisms to the same institutions. The purpose of this study is to investigate how the letters maintain dialogic relations present in the context of the production of the time and current, from the reflections of the Russian philosopher Bakhtin. The recorded statements mark the historical, political and social context at dif- ferent times. For theoretical support, Bakhtin’s (2003) considerations lie in the idea that discourses represent a constitutive otherness, understanding that the value judgments expressed by a speaker embody the discourses of others.

KEYWORDS Titans; dialogical relations; lyrics; Bakhtin. UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

2 CAPES - Concessão de Bolsa/Taxa PROSUP IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução dores que lhes renderam suspensões. Os anos 1980 marcam, historica- Em 1981, nasciam os Titãs do Iê-Iê mente, no Brasil, em especial na se- que, a princípio, não demonstraram gunda metade, a abertura política e, habilidade musical surpreendente, SELINFRAN por conseguinte, o fim da ditadura mas priorizavam um figurino e uma militar. Época marcada pela presença coreografia que já sugeriam certa iro- da censura, mas também pela pre- nia, que se evidenciava nas letras de sença de grandes produções em ter- músicas ora apresentadas. mos intelectuais, sobretudo na MPB. A repercussão sobre a banda deu Uma década antes, especificamente série a uma sucessão de shows na em 1971, foi fundado na cidade de capital paulista, em locais consagra- São Paulo o Colégio Equipe, fruto da dos como o Rose Bombom, Madame dissidência do grêmio estudantil da Satã e Radar Tantan. Em 1984, a ban- USP, devastado pela polícia da épo- da muda de nome. Passa a se chamar ca. Esse colégio abrigava a prole da Titãs e lança seu primeiro LP, com a militância esquerdista e de intelec- exclusão das canções “Bichos Escro- tuais da capital paulista. Nesse con- tos” e “Charles Chacal”, a fim de evitar texto, a cultura transbordava, fazen- problemas com o Departamento de do-se presente em peças, palestras, Censura e Diversões Públicas. “Soní- shows e afins. Não raro, a polícia da fera Ilha” foi escolhida para ser o car- época reprimia tais atividades de for- ro-chefe, ao lado de “Toda Cor”, pelo ma truculenta e ostensiva. selo WEA. De imediato, aquela passa Nesse colégio foram matriculados a ser a mais pedida na Rádio Jovem Sérgio Britto, , Paulo Pan, seguida por outras rádios. Vie- Miklos , ram, na sequência, as apresentações e . Interessados em produ- nos programas de auditório, ícones zir manifestações artísticas, os Titãs dos anos 1980. 16 dão os primeiros acordes que seriam É importante salientar que esta o embasamento de questionamentos pesquisa está em desenvolvimento. ideológicos de uma nação nos anos O corpus é constituído das letras das subsequentes e que perdurariam até seguintes canções: “Polícia”, compo- os dias hodiernos. Foi nesse cenário sição de e “”, que os primeiros shows começaram composição de e Sérgio a surgir, ao lado de nomes icônicos Brito; “Igreja”, composição de Nan- da MPB, como , Isauri- do Reis e “Senhor”, composição de nha Garcia, , Nelson Tony Bellotto; “Família”, composição LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Cavaquinho e Cartola. As primeiras de Tony Belloto e Arnaldo Antunes e parcerias musicais deram início com “Flores pra Ela”, composição de Má- Arnaldo Antunes e Paulo Miklos, ain- rio Fabre e Sérgio Brito. A escolha da no colégio, com, desde homena- das canções justifica-se por terem gens irônicas a aulas entediantes até sido identificados, em suas letras, as- a promoção de barulhos ensurdece- pectos vivenciados no contexto his- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX tórico dos anos 1980 até o momento Para Bakhtin, a palavra, sozinha, atual, partindo-se da hipótese de que na prosa, é descentralizada, uma vez os fatos históricos e políticos coinci- que é de conhecimento do autor- dem em épocas distintas e são evi- -criador que vem a palavra marcada denciados nos álbuns ora analisados. por outras vozes. Portanto, o autor SELINFRAN O período histórico estudado em será apenas uma outra voz, a trazer muito contribuiu para a produção de novas vozes que, por conseguinte, recursos dialógicos que continham a trarão demais vozes. Para o filósofo, repressão, bem como todo o contex- uma vida somente possui sentido se to histórico do momento vivenciado. vista do exterior, englobada no hori- zonte de outrem. O objetivo principal dessa pes- quisa é verificar como as letras dia- Assim, os pilares da ordem social logam com o contexto social, histó- são frequentemente abordados em rico e político, em épocas distintas, a enunciados, e, a partir do momento saber, anos 1980 e 2010, a partir das em que tais enunciados são expos- reflexões bakhtinianas acerca do dia- tos, fica evidente a presença de trans- logismo. formações sociais, passíveis de tom de criticidade. As mudanças sociais As letras, na dissertação, serão buscam a libertação de um corpus analisadas em pares e pertencem ao social preso às tradições e às impo- álbum Cabeça Dinossauro (TITÃS, sições. Se um enunciado traz consi- 1986) e a Nheengatu (TITÃS, 2015). go essas marcações, ele dialoga com O corpus de análise da pesquisa é outros anteriores e traz à tona vozes constituído das letras: “Polícia”; “Far- que ficarãoa posteriori marcadas em dado”; “Igreja”; “Senhor”; “Família” e outras vozes. Portanto, as mudanças “Flores pra Ela”. sociais relativas às instituições tradi- As composições versam sobre cionais, bem como a definição de pa- 17 questões relacionadas ao papel da péis na sociedade questionam a rea- Família, Igreja e Estado. Diante disso, lidade e as situações políticas. Esses as letras serão analisadas a partir de questionamentos só podem ocorrer uma análise quantitativa em função a partir do viver e da língua, por meio da quantidade de letras analisadas do discurso, que há de dialogar com presentes no conteúdo e qualitativa, outras vozes, em tom de concordân- frente às questões dialógicas a serem cia ou discordância. exploradas. Nesse sentido, o corpus selecio-

nado procura analisar, por meio do UNIFRAN DA LINGUÍSTICA 1. Os pressupostos teóricos gênero letra de música, análises de A análise do corpus aqui proposta vozes que permeiam o enunciado e está fundamentada nos conceitos de o ecoam, perfazendo constantes diá- relações dialógicas, ideologia, enun- logos, os quais tomam novas dimen- ciado e gêneros, de acordo com as sões de sentido e possibilitam novos reflexões de Mikhail Bakhtin. significados. Nesse contexto: IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX O destinatário do enunciado compreensão responsiva se dá a par- pode, por assim dizer, coincidir tir do conhecimento de mundo acio- pessoalmente com aquele (ou nado pelo outro, que responderá ao aqueles) a quem responde o discurso do um. enunciado. No diálogo cotidia- SELINFRAN no ou na correspondência, essa A relação, portanto, entre o viver coincidência pessoal é comum: e a língua só pode ser compreensível aquele a quem eu respondo é no nível do discurso, por fazermos meu destinatário, de quem, por parte da história e dela nos consti- sua vez, aguardo resposta (ou, tuirmos e com ela interagirmos com em todo caso, uma ativa compre- base em nosso conhecimento. Cada ensão responsiva). [....]Ao cons- época e grupo social possui seu re- truir o meu enunciado, procuro pertório. defini-lo de maneira ativa: por outro lado, procuro antecipá-lo, e Toda manifestação do indivíduo essa resposta antecipável exerce, está envolvida na continuidade do di- por sua vez, uma ativa influên- álogo, cuja função é possibilitar algu- cia sobre o meu enunciado (dou ma maneira de comunicação com o resposta pronta às objeções que enunciado proposto, pois toda forma prevejo, apelo para toda sorte de expressão é considerada como de subterfúgios, etc.). Ao falar, efeito do próprio diálogo. Assim, po- sempre levo em conta o fundo demos ressaltar a propagação pro- aperceptível da percepção do vocada por meio de diferentes mani- meu discurso pelo destinatário: festações da palavra, o que remete à até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimen- integração de vários sentidos, mani- tos especiais de um dado campo festados de diferentes formas. cultural da comunicação: levo em Outro caráter de grande importân- conta as suas concepções e con- cia que deve ser ressaltado é o ter- vicções, os seus preconceitos (do mo ideologia, que se apresenta como meu ponto de vista), as suas sim- 18 um dos eixos centrais das reflexões patias e antipatias – tudo isso irá de Bakhtin e dos integrantes de seu determinar a ativa compreensão responsiva do meu enunciado Círculo, uma vez que os problemas por ele (BAKHTIN, 2003 p. 301- que este conceito abarca foram tra- 302). balhados de forma muito peculiar por esses estudiosos da filosofia da Percebemos que, ao proferir um linguagem. discurso, aguardamos, ainda que im- plicitamente, a resposta do outro, já A questão da ideologia, refletida que, nesse discurso, estamos respon- no corpus analisado, salienta as ques- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA dendo ao discurso de outrem. A res- tões e pensamentos em comum dos posta aguardada pode ser explícita, brasileiros que viveram este período, ou, minimamente, uma compreensão de revolta política e social. Desta for- responsiva. As objeções e subterfú- ma, o cronótopo evidencia e justifica gios por nós inseridas no discurso já o sentido dos ideais propostos mani- trazem consigo marcas de aceitação, festados através da letra e da expres- criticidade, ironia ou repulsa. A ativa são da música. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Entendemos, portanto, que enun- sujeitos. Para ele, o diálogo é forma ciados congruentes, ainda que dis- composicional do discurso, uma con- tantes na questão tempo-espacial cepção estreita do dialogismo. Aqui- possuem relações intrínsecas entre lo que se profere vem do outro, não si, relações de dialogismo, uma vez vem da gramática ou das gramáticas. SELINFRAN que cada tempo e espaço trazem É a consciência, portanto, um jogo consigo marcas históricas e ideológi- de vozes, de valores que presidem a cas que podem intercambiar entre si. organização do discurso, dado pelo O posicionamento e a confrontação outro. Compreender significa avaliar. ético-axiológicos medeiam os discur- São, portanto, os enunciados aqui- sos. As convicções dos participantes lo que o enunciador produz com do diálogo são determinadas pela consciência, uma vez que o processo sua leitura de mundo. Nesse âmbito, de enunciação se constitui por meio consideramos relevantes os estudos de vozes sociais. Quando um enun- produzidos por Mikhail Bakhtin, que, ciado se encerra, não há acabamento em sua trajetória busca as últimas final, frente à presença de respostas causas do fenômeno da linguagem, e réplicas. com interesse pela história, cultura e pelo sujeito e, em cuja obra destaca- Nessa perspectiva, enquanto efei- -se a alteridade e as relações dialógi- tos da alteridade, buscamos a ma- cas entre posições sociais. nifestação da linguagem como uma das vertentes do processo compo- É, para Bakhtin, trabalho do crítico sicional, seja por meio da ironia, seja o recolhimento dos dados materiais por meio da crítica direta ou velada, para a reconstituição do contexto his- sob um viés histórico e social, a partir tórico e a explicação deste por meio de uma confluência de discursos, que das leis sociológicas, psicológicas forma um tabuleiro social, merecedor e biológicas, tendo a interpretação de uma análise do contexto de pro- 19 como diálogo. Assim, ao analisarmos dução do enunciado. Pode-se inferir, enunciados, buscaremos vozes so- a partir de tal assertiva, que os discur- ciais que se cruzam e intercambiam sos, não isentos de responsabilida- em uma cadeia repleta de réplicas de, que abarcam fatores contextuais e tréplicas, localizando pontos com históricos, são passíveis de controle fundamentações sociológicas, bio- e vigilância, em especial em regimes lógicas e psicológicas. É, portanto, a autoritários ou pós-autoritários e de relação dialógica uma réplica social. censura social, por serem formas de Destarte, tem-se como balizamen- contestação de valores pré-estabe- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA to das ideias do filósofo russo que o lecidos socialmente ou impostos por discurso do outro influencia de den- instituições que regem ad eternum as tro para fora o discurso do autor, que sociedades, justamente por estarem se reflete no discurso e lhe dá tom e situados em determinado tempo e significado externo, nascendo, assim, espaço, o que lhes delimita questões o sentido a partir do encontro de dois histórico-ideológicas. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX A concepção bakhtiniana permeia quisa em sua completude, obtendo- o princípio de que a palavra, sozinha, -se, assim, uma dimensão oportuna na prosa, é descentralizada, uma vez para analisar o objeto de estudo por que é de conhecimento do autor que completo.

SELINFRAN vem a palavra marcada por outras 2. O caráter contestatório de “Po- vozes. Portanto, o autor será apenas uma outra voz, a trazer novas vozes lícia” que, por conseguinte, trarão demais A primeira letra a ser analisada vozes. Para ele, uma vida somente em nossa pesquisa “Polícia” (TITÃS, possui sentido se vista do exterior, 1986), nasce numa atmosfera de em- englobada no horizonte de outrem. bate entre uma enunciação contes- tatória acerca da opressão e a força Assim, os pilares da ordem social policial repressiva, provinda das or- são frequentemente abordados em dens emanadas pelo Estado. Nesse enunciados, e, a partir do momento cenário, a banda Titãs ganha força em que tais enunciados são expos- discursiva e passa a receber especial tos, fica evidente a presença de trans- atenção da mídia, da crítica e, sobre- formações sociais, passíveis de tom tudo, da censura estatal. A letra foi de criticidade. As mudanças sociais composta em função da prisão por buscam a libertação de um corpus porte e tráfico de drogas sofrida por social preso às tradições e às impo- Bellotto e Antunes, de forma indevi- sições. Se um enunciado traz consi- da e truculenta. A letra, polêmica, foi go essas marcações, ele dialoga com tida como uma possibilidade de se outros anteriores e traz à tona vozes tratar uma problemática vigente que que ficarãoa posteriori marcadas em rege a sociedade, no sentido da vio- outras vozes. Portanto, as mudan- lência institucionalizada, não ligada ças sociais relativas às instituições diretamente à criminalidade, mas à tradicionais, bem como a definição opressão das leis e autoridades po- 20 de papéis na sociedade questionam liciais, por meio da força atuante do a realidade e reivindicam situações Estado. Trata-se de uma crítica direta políticas. Essas situações só podem às ações policiais e, sobremaneira, a ocorrer a partir do viver e da língua, forma como a sociedade enxerga a por meio do discurso, que há de dia- instituição. logar com outras vozes, em tom de concordância ou discordância. “Fardado”, segunda letra a ser analisada, congruente com “Polícia”, Em se tratando de uma amostra- composta em 2015, aborda a explo- gem parcial do corpus, o presente

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ração vivenciada e não sentida pelo resumo procura apontar aspectos re- policial militar, em meio às manifes- lacionados à fundamentação teórica tações do ano de 2013. A truculência apresentada, com ênfase em apenas se repete na mesma cidade em que algumas particularidades a serem Belloto e Antunes foram detidos, São aplicadas, as quais serão realmente Paulo, na Avenida Paulista, dessa vez, aprofundadas na elaboração da pes- contra manifestantes diversos, mui- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX tas vezes, sem motivo, mostrando, Nesse contexto, surge “Igreja”, cuja novamente, o despreparo da força letra polêmica ganhou mais força po- policial, que deveria ajudar e prote- lemizante quando um dos integran- ger, mas para e prende. tes da banda, Arnaldo Antunes, dei- SELINFRAN A faixa “Fardado”, composta por xou de participar das apresentações Sérgio Britto e Paulo Miklos, soa quando a música era tocada, por não como uma atualização da letra de ter certezas religiosas nem ateístas. “Polícia”, composta quase vinte e Na época da composição, a banda nove anos antes. Embora o país te- Titãs passava ao público a imagem nha mudado nas esferas social, his- de ter em seu bojo jovens rebeldes e tórica e econômica, não houve tantas revolucionários, fato confirmado pelo alterações em relação à instituição fato de o LP Cabeça Dinossauro tra- apresentada. A abordagem da letra zer consigo somente letras de cunho frente à polícia também passou por crítico ao corpo social e às imposi- alterações. Em “Polícia”, o uso da pri- ções estatais, o que o torna referên- meira pessoa “Eu sei” evidencia um cia de protesto e politização. pensamento bem claro acerca do in- A letra de “Senhor”, datada de dividual em meio à presença implíci- 2015, traz à tona, novamente, ques- ta da ditadura. Já em “Fardado”, soa tões religiosas que permeiam as im- mais o coletivo, como um convite à posições advindas da instituição Igre- reflexão, devido à abertura. Mesmo ja, vez que, ainda que o catolicismo com divergências nesse sentido, as tenha perdido força evidente nesses congruências são evidentes, vez que, últimos 30 anos, evidencia-se a ques- apesar de as letras terem enfoques tão da culpa, da ideia de pecado, do diferentes, a crítica se faz bastante inferno e da opressão da instituição. parecida. Em “Polícia”, permeia-se a Um fragmento da oração Pai Nosso é ideia de que a polícia é necessária, alterado, demonstrando a perpetua- em que há uma situação inimaginável ção da insatisfação vigente. 21 sem ela, no país. No entanto, o que se Desse modo, a faixa “Senhor”, em vê é uma força truculenta, desprepa- 2015 traz à baila uma repaginação de rada para exercer sua função e que, “Igreja”, composta em meados dos muitas vezes, também é explorada. anos 1980. Ainda que a Igreja Cató- “Igreja”, letra também analisada lica tenha passado por transforma- em nosso corpus, foi composta por ções e uma abertura sob a égide do Nando Reis, inspirada em uma decla- Papa Francisco, as similitudes de im- ração do cantor Roberto Carlos so- posição da instituição ainda se fazem LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA bre o filme Je Vous Salue Marie, de presentes. Godard. A insatisfação com a Igreja Na sequência, percebemos a ne- Católica, tradicional guardiã de cos- cessidade da demonstração dos lu- tumes, também fazia sentido frente à gares estabelecidos socialmente juventude da época e se perpetuou dentro do corpo familiar em “Famí- pelos anos ulteriores. lia”, em especial, o papel da mulher, IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX da mãe e da filha. Nesse contexto, da axiologia vivenciada. Para tanto, “Flores pra Ela”, gravada em 2015, procuraremos demonstrar, por meio evidencia a violência, agora não so- da análise da letra de “Polícia”, como mente psicológica, contra a mulher, essas vivências, embora ocorridas há

SELINFRAN que é só uma mulher, que aceita, es- mais de 30 anos, ainda permeiam as pera, se submete e, por fim, morre e situações sociais vividas pelos citadi- recebe flores do marido. nos. A análise da letra de “Família” leva Em 13 de novembro do ano de à percepção de que a imagem fe- 1985, o guitarrista da banda Titãs, minina se põe como fragilizada, em Tony Bellotto, após sair da casa do contraponto à da masculina, em vá- então vocalista Arnaldo Antunes, foi rios momentos. Pressupõe o tradicio- abordado por uma revista de rotina, nalismo familiar, em “Papai, mamãe, cujo objetivo era proteger a popula- titia”, “Vovô, vovó, sobrinha’ e a pre- ção paulistana de assaltantes. Nessa sença de “Cachorro, gato, galinha”, ocasião, portava ele uma quantidade os dois primeiros, animais domésti- de heroína e, então, foi preso após cos, presentes nos lares tradicionais, uma revista truculenta. Àquela altura, e o último, a galinha, frequentadora a prisão de um músico de uma ban- tradicional dos quintais tão comuns da que fazia sucesso imensurável nas das casas dos anos 1980, bem como rádios e na TV garantia notoriedade o patriarcalismo, representado pela a todos que fizessem parte da ope- figura do pai. ração. Tony revelou que a droga veio Mário Fabre e Sérgio Britto, em de uma compra com seu parceiro, Nheengatu, compuseram a letra de Arnaldo, que também foi preso por “Flores pra Ela”, canção que aborda crime passível de reclusão, sem direi- o abuso físico do homem em relação to à fiança, por distribuição de dro- à mulher, a submissão feminina e o gas, ainda que de forma gratuita. 22 feminicídio. Sob essa perspectiva, a A prisão suscitou uma discussão mesma mulher, mãe, que tem medo na imprensa, com a participação ati- de barata, frágil e filha, que não pode va de artistas e intelectuais. Após os sair de casa, submissa, retratada na trâmites legais, Arnaldo, condenado letra de “Família”, nos anos 1980, res- a três anos de reclusão por tráfico, e surge em Flores pra Ela”, sob uma Tony, a seis meses, cumpriram a pena nova ótica de submissão e fragilida- em regime aberto por bons antece- de. dentes e trabalho declarado. Assim, as manifestações discursi- A partir desse evento, foi compos- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA vas perpassam as questões dialógicas ta “Polícia”, música-protesto que evi- em relação aos sujeitos que vivencia- denciava na letra e na agressividade ram essa época que se refletem nas da execução a presença do despre- letras de música a serem analisadas paro policial, frente à polêmica cau- neste trabalho, por meio da constru- sada pela prisão dos compositores, ção verbal que espelha determina- visto que, por se tratar da questão IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX das drogas, deixava clara a necessi- ção citadina, por meio de um sujei- dade de outros cuidados com os por- to indeterminado, que não se pode tadores e não de forças oriundas de ou não se quer dizer quem é. Em um ordens estatais. contexto histórico, entendemos que SELINFRAN É nesse marco que se configura a não marcação explícita do sujei- a presença da normatização das re- to demonstra a necessidade de não gras impostas pelo Estado, por inter- poder mostrá-lo, visto que a censura médio da força policial imposta, aqui ainda se fazia presente nessa época demonstrada. “Polícia”, composta no e, de certa forma, punia aqueles que ano de 1985, comprova a ineficácia produziam discursos considerados do objetivo da presença dessa insti- inadequados para o momento, mini- tuição, por meio dos versos “Dizem mamente, por meio da vedação da que ela existe pra ajudar/ Dizem que radiodifusão das canções. ela existe pra proteger”. O vocábulo Em “Eu sei que ela pode te parar / “Dizem” pressupõe não ser verdade a proteção e a ajuda supostamente Eu sei que ela pode te prender”, per- oferecida pela força policial, mas evi- cebemos a voz de uma primeira pes- dencia a presença de uma truculên- soa, no caso, alter-ego dos autores, cia fortemente apresentada nos ver- Belloto e Antunes, alegando, com sos “Eu sei que ela pode te parar, eu propriedade, saberem o que a força sei que ela pode te prender”. policial faz com o cidadão comum. Dessa forma, na letra de “Polícia”, Em seguida, em “Polícia para torna-se evidente o clamor pelo re- quem precisa/Polícia para quem pre- pensar a atitude da instituição supos- cisa de polícia”, temos, notavelmen- tamente protetora da população: te uma afirmação daquilo que seria necessário para a população, não Dizem que ela existe pra ajudar só na época de sua produção, mas 23 Dizem que ela existe pra proteger em qualquer época. Implicitamente, Eu sei que ela pode te parar ocorre a afirmação de que não há a Eu sei que ela pode te prender necessidade da força policial como Polícia para quem precisa ela ocorre, visto que ela deveria ocor- Polícia para quem precisa de polícia rer apenas para aqueles que preci- Dizem pra você obedecer sam dessa força. Cabe ressaltar que, Dizem pra você responder ainda que o acento diferencial entre Dizem pra você cooperar “para” (preposição) e “pára” (verbo) Dizem pra você respeitar não houvesse sido abolido, em ter- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Polícia para quem precisa mos sonoros, podemos perceber um Polícia para quem precisa de polícia. trocadilho, em que se diz que a Polí- O termo “dizem”, em “Dizem que cia para (do verbo parar) quem pre- ela existe pra ajudar/Dizem que ela cisa e, ao mesmo tempo, que a polí- existe pra proteger” denota a voz do cia é para (preposição) quem precisa senso comum, advinda da popula- ser parado. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Por fim, nos últimos versos, em médio da autotutela, em que vigia o “Dizem pra você obedecer/Dizem aforismo da lei do mais forte. Com o pra você responder/Dizem pra você advento da organização social cor- cooperar/Dizem pra você respeitar”, porificada pelo Estado, passou-se da

SELINFRAN o mesmo termo utilizado nos primei- justiça privada para a justiça pública, ros versos da letra (“Dizem”) é em- em que o Estado, suficientemente pregado de modo a demarcar a ati- fortalecido, impõe-se sobre os par- tude da própria força policial, visto ticulares e prescinde da voluntária que obediência, resposta, coopera- submissão desses por meio da auto- ção e respeito são abordados como ridade. imposição, em especial pelo fato de o termo “obedecer” vir à frente dos Nessa perspectiva, observa-se a demais. Nesse contexto, torna-se evi- presença da instituição Polícia, com dente a contraposição entre aquilo o intuito de manter a ordem social. que se deve fazer e o que é, de fato, No entanto, esta não cumpre seu pa- feito pela polícia à população. pel, em função de fatores históricos e As palavras dos outros são, tam- culturais já arraigados, que serão de- bém, expostas nos shows dos Titãs, monstrados em “Fardado”, letra a ser até os dias atuais, já que, em todas as analisada na sequência da pesquisa. apresentações, antes de “Polícia” ser Considerações finais executada na voz de Sérgio Britto, há a execução de outra canção por ele, Nosso estudo desenvolveu-se a dos anos 1950, “Acorda, Maria Boni- partir das reflexões sobre as relações ta”: dialógicas entre a letra de música “Polícia” e o cidadão comum, presen- Acorda, Maria Bonita te em épocas distintas, 1986 e 2018. Levanta, vai fazer o café Embora haja um interregno tempo- 24 Que o dia já vem raiando ral, buscamos analisar que a letra traz E a polícia já está de pé. críticas em relação ao pensamento citadino e às questões sociais e histó- Percebe-se, a partir do contexto ricas permeadas em épocas distintas. ora empregado, relações de cunho dialógico entre as duas letras e entre Obtivemos, portanto, a verificação épocas sociais distintas, uma, mar- de que, passados trinta anos, as for- chinha de carnaval de 1956 que alude ças impositivas advindas do Estado à personagem Maria bonita, mulher se fazem presentes, ainda que a po- de Lampião, morta em 1938, e outra, pulação a ela reaja de forma diversa, LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA rock, de 1985, ambas alertando sobre uma vez que em uma primeira aná- a presença da polícia, o que revela a lise, há ainda resquícios da presença necessidade do temor à instituição. da ditadura militar no Brasil e no se- Sabe-se que muito antes do sur- gundo, jaz a força da população pre- gimento do Estado, os conflitos in- sente nas populações que se torna- terpessoais se resolviam por inter- ram marco histórico nos anos 2010. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Portanto, em um Estado civilizató- presente nas letras analisadas. Tal as- rio, o cidadão, dito comum, embora sertiva ganha mais contornos a par- ceda seus desejos ao aparato social, tir do momento em que as canções se faz presente não como um ser se popularizam e tendem, ainda que alienado, que aceita as imposições inconscientemente, a levar o citadino SELINFRAN vindas das instituições, mas se põe à contestação a respeito das forças contra as forças impostas por elas, impostas pelas instituições estatais. aspecto extremamente relevante e

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SELINFRAN Delzio Marques SOARES Fernando Aparecido FERREIRA

RESUMO O disco de vinil de 12 polegadas (LP) foi a principal mídia da indústria da mú- sica no século XX, e a capa que embalava o disco, articulando elementos persu- asivos por meio do projeto gráfico, promovia o produto e colaborava na adesão a uma nova proposta musical. Assim, o corpus desse estudo compreende as capas de sete LPs da Tropicália, movimento musical que floresceu entre 1967 e 1968. O objeto desta pesquisa será, pois, as capas desses LPS e terá como objetivo geral compreender como elas promoveram a proposta musical do movimento. Como objetivo específico demonstrará quais recursos argumen- tativos foram empregadosem seus projetos gráficos. Os fundamentos teóricos que sustentarão este estudo são os da Retórica aristotélica e os de pensadores modernos como Reboul, Meyer e outros. Também utilizaremos conceitos da Linguística Textual, de Marcuschi e Cavalcante. As noções de Barthes acerca da retórica da imagem e a metodologia proposta por Dondis para os estudos da linguagem visual serão ainda adotados como instrumental teórico que sus- tentará a análise. Justifica-se tal investigação pelo pouco que se tem dedicado à linguagem visual e suas possibilidades persuasivas no âmbito dos estudos retóricos. 26 PALAVRAS-CHAVE Retórica; Tropicália; capa de disco; música brasileira; texto sincrético. ABSTRACT The 12-inch vinyl record (LP) was the music industry’s main media in the 20th century, and the cover that wrapped the disc, articulating persuasive elements through graphic design, promoted the product and collaborated in the adhesion to a new musical proposal. Thus, the corpus of this study includes the covers of seven LPs from Tropicália, a musical movement that flourished between1967 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA and 1968. Therefore, the object of this research will be the covers of these LPS and it will have as general objective to understand how they promoted the musical proposal of the movement. As a specific objective, it will demonstrate what argumentative resources were used in its graphic projects. The theoretical framework that will support this research are those of Aristotelian Rhetoric and those of modern thinkers sucha as Reboul, Meyer and others - as well as IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX concepts of Textual Linguistics, by Marcuschi and Cavalcante. Barthes’ notions about image rhetoric and the methodology proposed by Dondis for visual lan- guage studies will be adopted as an instrumental and systematization of the

analysis. Such an investigation is justified by the little that has been devoted to SELINFRAN visual language and its persuasive possibilities in the field of rethoric studies. KEYWORDS Rhetoric; Tropicalia; record cover; Brasilian music; syncretic text.

27 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução tivo, 1968) , Grande Liquidação (Tom Zé, 1968), Nara Leão (1968) e A Ban- As capas de disco (LP3), inicial- mente utilizadas como uma forma de da Tropicalista do Duprat (Rogerio proteção e embalagem do produto, Duprat, 1968). SELINFRAN então com pouco ou quase nenhum Ainda que a Tropicália tenha sido apelo visual, evoluíram com a indús- objeto de vários estudos, em diferen- tria da música e tornaram-se um item tes perspectivas, as capas dos LPs do essencial na divulgação e comercia- movimento não receberam a mesma lização do produto, ao incorporarem atenção. O presente trabalho justifi- elementos do design gráfico e das ca-se diante dos poucos estudos de- artes plásticas em sua criação. Mas a dicados às capas de discos no Brasil, capa, um display nas vitrines das lo- de uma maneira geral, e em especial jas cuja função é promover a venda aos discos da Tropicália dentro da do disco, como parte de uma estraté- perspectiva teórica da Argumenta- gia de marketing, também “embala” ção e Retórica. o som, formando um todo discursivo que articula elementos argumentati- Considerando a capa de disco vos. Nesse sentido, ela pode ajudar a como um texto persuasivo, a investi- construir o ethos de um artista4 e/ou gação terá como objetivo geral com- vender uma nova proposta musical. preender como as capas dos sete LPs da Tropicália promoveram o movi- Denomina-se Tropicália o movi- mento e sua proposta musical. Como mento musical capitaneado pelos ar- objetivo específico buscaremos de- tistas e , monstrar quais recursos argumenta- que floresceu entre outubro de 1967 e dezembro de 19685 . Nesse perío- tivos foram empregados nos projetos do foram lançados sete LPs, seis de- gráficos de cada uma dessas capas. 28 les de autoria individual e um coleti- A parte frontal das sete capas se- vo, “Tropicália ou Panis et Circencis”, rão analisadas qualitativamente e historicamente citado como o disco abordadas como um texto sincrético, manifesto do movimento. que faz uso das linguagens verbal e O corpus deste estudo compreen- visual, investigando os sentidos cons- de a parte frontal das capas desses truídos e, por consequência demons- sete LPs: Caetano Veloso (1968), Gil- trando os elementos persuasivos de berto Gil (1968), Os Mutantes (1968), cada uma, tendo em vista o contex- Tropicália ou Panis et Circencis (Cole- to retórico e sócio-cultural dos anos

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA 1960. Uma análise de cunho qualitati- 3 Abreviação do inglês Long Playing.que designa o disco, produzido em vinil, com 12 polegadas de diâme- vo comparativo, visando compreen- tro, que difere do Single, disco compacto, produzido em der os sentidos do conjunto de ca- vinil, mas com 7 polegadas de diâmetro. 4 Adota-se o termo “artista” para referenciar pas, nos levará a conclusões sobre o de maneira geral o músico, compositor ou intérprete a quanto este conjunto refletiu visual- quem é creditada a autoria do disco. 5 Período estabelecido por Carlos Calado, em mente a proposta do movimento Tro- seu livro Tropicália: A história de uma revolução musical picália (1997, p. 297). IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX 1.Fundamentação teórica car no auditório (pathos) e a lógica do seu discurso (logos). 1.1. A retórica aristotélica ... uma de suas maiores quali- Sistematizada por Aristóteles, dades reside no fato de ela ser

“a Retórica ocupa-se da arte da comu- uma técnica aplicável a qual- SELINFRAN nicação, do discurso feito em público quer assunto. Pois proporciona com fins persuasivos.” (ALEXANDRE simultaneamente um método JUNIOR, 2015, p. XXVII). Dessa forma de trabalho e um sistema críti- a retórica pressupõe a existência de co de análise, utilizáveis não só um orador comunicador, um discurso na construção de um discurso, persuasivo e um auditório a ser per- mas também na interpretação suadido. A Retórica é necessária para de qualquer forma de discurso que, ao se apresentar os dois lados (ALEXANDE JUNIOR, 2015, XX- de uma questão, um efeito de verda- VIII). de prevaleça. Para que esse efeito de A partir desse comentário, so- verdade tome o seu lugar, para além bre a qualidade e a atualidade da re- do bem falar o orador tem que apre- tórica aristotélica, podemos expan- sentar provas, ou seja, fazer demons- dir seus conceitos-chave e dizer que trações baseadas em raciocínios lógi- cos. Ainda segundo Alexandre Junior todo aquele que busca persuadir é (2015, XXVIII), a retórica aristotélica um orador, seja para vender um dis- “é, sobretudo, uma retórica da pro- co ou emocionar com uma música. O va, do raciocínio, do silogismo retóri- discurso, meio pelo qual esse orador co; isto é, uma teoria da argumenta- persuade, pode materializar-se numa ção persuasiva”. Aristóteles (2015, p. apresentação audiovisual ou numa 13) estabelece dois modos de prova: capa de disco. O auditório, a quem inartísticas (não técnicas) ou artísti- esse orador moderno dirige seu dis- cas (técnicas). As provas inartísticas curso, configura-se num interlocutor 29 são aquelas que existem e não são ou em um grupo adepto de um estilo produzidas pelo orador, tais como musical. documentos escritos e testemunhos, A interação entre orador e auditó- ou seja, não dependem da capacida- rio é sempre permeada por emoções, de criativa do orador, ainda que delas ou paixões, que Aristóteles define venha a fazer uso. As provas artísti- cas são aquelas que podem ser pro- como sendo “as causas que fazem duzidas pela técnica retórica do ora- alterar os seres humanos e introdu- dor, da sua capacidade criativa, e ele zem mudanças nos seus juízos, na as desenvolve no âmago do discurso. medida em que comportam dor e UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Esses meios artísticos de prova, ou prazer.” (2015, p. 85). Levar um au- modos de apelo, são três e consti- ditório-consumidor a aderir a uma tuem-se num tripé retórico de que se nova proposta musical começa por vale o orador: o seu próprio caráter leva-lo a se apaixonar pela capa do (ethos), as emoções que pode provo- disco que embala essa proposta. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX 1.2. A sintaxe da linguagem visual guns exemplos de figuras, que estão ao dispor do orador retórico, faça ele Assim como um cartaz publicitá- uso da linguagem verbal, visual ou rio, a capa de disco pode capturar a verbo-visual. atenção do auditório-consumidor ao SELINFRAN vê-la numa vitrine, por conta de suas Parafraseando Pierre Fontanier, o consideráveis dimensões de 31x31 linguista José Luiz Fiorin (2016, p. 28) cm. Fotografia, tipografia, ilustra- faz a seguinte definição: “A figura é ções, formas e cores são alguns dos um desvio, que incide sobre a pala- elementos que formam o manancial vra, a frase ou o discurso. Além disso, de recursos argumentativos que de- é uma construção livre, que está no signers e artistas gráficos têm a seu lugar de outra”. dispor para criar a capa de disco, fa- 1.4. A retórica da imagem zendo uso de uma sintaxe própria da linguagem visual. Para “desembalar” a retoricidade das capas dos sete LPs de Tropicália Segundo Dondis (2015, p. 29), “ os adotaremos como modelo de análise resultados das composições deter- a teoria de Roland Barthes acerca da minam o objetivo e o significado da Retórica da Imagem. Tomando como manifestação visual e tem fortes im- objeto de análise um anúncio publici- plicações com relação ao que é rece- tário da Panzani, uma marca france- bido pelo espectador”. Dessa forma, sa de massas e molhos industrializa- atuando como um verdadeiro rétor, dos, Barthes estabelece três níveis de que faz uso de provas técnicas para análise para um texto sincrético, isto construir seu discurso persuasivo, o é, um texto que faz uso da lingua- artista gráfico faz uso da composição gem verbal e visual. O primeiro nível para criar os argumentos persuasivos de análise diz respeito à mensagem da capa de disco. Como resultado linguística, que pode exercer a fun- desse processo composicional alme- 30 ção de ancorar um sentido à imagem ja ressaltar detalhes que valorizem a (ancrage) ou ter com a mesma uma imagem do artista (ethos) ou de um relação estrutural de revezamento movimento musical, estabelecer uma (relais) na construção de sentido. Re- identificação com o auditório-consu- velar a mensagem icônica não codi- midor (pathos) e ao mesmo tempo ficada é o segundo nível de análise, conduzir a compreensão (logos) da que nos fornece os sentidos denota- própria capa, tomada como discurso. dos da imagem literal, aquilo que ve- 1.3. Figuras de retórica mos de imediato. O terceiro nível de

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA análise busca os sentidos conotados Umas das formas de se intensi- da imagem simbólica, que se encon- ficar, ou atenuar, o sentido de algum tram na mensagem icônica codifica- elemento do discurso, segundo Fio- da. Nesse nível, todos os elementos rin (2016, p. 10), é o uso de operações da imagem são articulados em fun- enunciativas denominadas figuras. ção do conhecimento de mundo de Metáfora, metonímia e ironia são al- cada indivíduo, produzindo sentidos IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX onde Barthes diz situar a retórica da um lado para outro em busca de sen- imagem. tidos. A esse frenesi visual podemos associar o efeito da polissemia da 2. Capa de Grande liquidação: imagem, que conforme nos esclare- Uma leitura retórica e sincrética ce Barthes (2015, p. 33), “produz uma SELINFRAN interrogação sobre os sentidos”. Com o propósito de acalmar o frenesi visual e compreender os sen- tidos da imagem icônica, buscamos ancoragem em sua mensagem lin- guística. Numa capa de disco, assim como numa peça publicitária, a men- sagem linguística pode constituir-se de legendas, rótulos, títulos, etc. Diversas frases, palavras e palavras incompletas constituem a mensagem linguística do nosso corpus. Para de- cifrar essa mensagem linguística só o que necessitamos é o conhecimento Figura 1 - Capa do LP “Grande Liquidação”, de da língua, segundo Barthes (2015, p. 1968. 29). Dessa forma, de imediato depre- Fonte: imagem escaneada pelo autor, a partir do endemos um sentido do conjunto, relançaento do LP em vinil, que replica a capa ori- ginal. um sentido denotado: trata-se de pa- lavras e frases que associamos à pro- Esse LP, o primeiro6 da carreira fo- moção de vendas de produtos. Pela nográfica de Tom Zé, foi lançado em sua profusão e pelo uso estilizado da dezembro de 1968, logo após o ar- tipografia, remetem-nos a um centro 31 tista vencer o IV Festival da Música comercial de uma metrópole, com Popular Brasileira. Promovido pela suas placas e painéis de anúncios. TV Record, sua fase final em 09 de No entanto, ao analisa-los individu- dezembro de 1968, apresentou como almente, alguns desses anúncios re- vencedora, pelo júri especial, a sua canção “São São Paulo”. velam peculiaridades. Com “TOM-ZÉ” ancoramos um sentido de autoria do O primeiro olhar para essa capa, LP. Mas, o fato do nome do artista que nos revela uma “imagem literal estar duplicado, acima e abaixo de

no sentido puro”, segundo Barthes sua fotografia, sendo apresentado no UNIFRAN DA LINGUÍSTICA (2015, p. 36), não se dá de forma con- mesmo contexto dos anúncios, onde fortável. Como a olhar para um mo- alguns deles não parecem realistas saico, os olhos começam a pular de ou adequados, com por exemplo 6 Anteriormente Tom Zé havia gravado um com- pacto duplo, em 1965, interpretando duas de suas com- “LEVE 2 PAGUE 3”, promovem uma posições. Em maio de 1968 participou da gravação do confusão de sentidos. Há aqui uma disco coletivo “Tropicália ou Panis et Circencis”, onde compôs e cantou na canção “Parque Industrial”. ironia, sugerindo sentidos conotados IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX também na mensagem linguística, gráfica da letra da canção São Pau- que deverão ser decodificados. lo, meu amor” (sic), referenda a de- Em depoimento7, Tom Zé declara claração de Tom Zé e esclarece que que “foi... (...) eu orientei -- natural- havia uma intencionalidade persuasi- SELINFRAN mente -- o pessoal... da::... que tra- va. Dessa forma tomaremos Tom Zé balhava em capa de disco... da gra- como sendo o artista-orador dessa vadora rozenblit... pra sair daquela capa-discurso. Ao direcionar o artista maneira -- senão eles não tinham a gráfico no processo composicional, o menor ideia do que era”. Continu- artista-orador apresentou-lhe provas ando com seu depoimento, esclare- técnicas e argumentos para a criação ce que sua intenção foi trazer para a da capa-discurso. Tomaremos o per- capa do disco uma representação do curso orientado pelo artista-orador centro da cidade de São Paulo, onde para retomarmos nossa busca para passou a morar a partir de 1968, vin- os sentidos conotados da imagem do de Salvador-BA, mas já tendo alí simbólica, que Barthes no diz se en- passado uma temporada em 1965, contrarem na mensagem icônica co- hospedado no Hotel Itapuã. Cita e dificada. situa essa área central da metrópole As formas multicoloridas são re- na região da Avenida São João e Rua presentações das vitrines e fachadas Aurora, que “era todo de vitrines” e das lojas. Tomando as quatro faixas repleta de pontos comerciais, numa verticais pretas como referência, po- época em que o conceito de vendas demos perceber cinco blocos, que a crédito estava em plena ascenção. representam e denominaremos “pré- Outra questão associada ao centro dios10”. da cidade era o negócio da prosti- O terceiro prédio, ao centro, en- tuição que espalhava-se pela mesma contra-se afastado, indicação dada região. por linhas que desenham uma calça- 32 Essas duas temáticas – vendas a da e criam um efeito de perspectiva, crédito e prostituição – são desenvol- direcionando o olhar para uma porta, vidas na sua canção “São São Paulo cuja abertura é disfarçada por corti- ”8, vencedora do IV Festival da Músi- nas em forma de fitas vermelhas. Ao ca Popular Brasileira, e principal can- lado da porta, uma mulher em trajes ção do disco “Grande Liquidação”. sumários se contrapõe a outra com- Quando Satoru Nagai9, arquiteto pletamente vestida. Sobre a porta e artista gráfico, escreve que a arte um letreiro com a mensagem linguís- que fez para a capa é “interpretação tica “Tom-Zé”. No segundo andar te- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA mos a única fotografia da capa, que 7 Depoimento concedido ao autor através áudio gravado e enviado pelo aplicativo WhatsApp, em 21 de identificamos como retrato do nosso fevereiro de 2018. artista-orador, sobre fundo branco de 8 Os temas mencionados são descritos nos se- guintes versos: “Por mil chaminés e carros / Caseados cantos arredondados. As formas que à prestação” e “Pecadoras invadiram / Todo centro da a contornam dão um efeito de pro- cidade”. 9 NAGAI, S. Disponível em http://satorunagai. 10 Para efeito dessa análise, consideraremos ape- com.br/index.htm. Acesso em 18 de ago de 2018. nas um “prédio”. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX fundidade e sugerem estar Tom Zé Conforme Rodrigues (2007, p. 62) em uma televisão. No terceiro andar, “as características da cultura de mas- dois letreiros comportam as mensa- sas da indústria fonográfica, as quais gens linguísticas “Grande Liquida- o grupo...” tropicalista “... almejava,

ção” quase colada à mensagem lin- eram diretamente ligadas à lingua- SELINFRAN guística “Tom-Zé”, aqui em uma caixa gem que o design pode oferecer”. maior11. Esclarecendo, ele cita Villas-Boas, se- Esse prédio representa uma casa gundo o qual “a linguagem do design de strip-tease que, segundo Tom Zé, gráfico está diretamente ligada à in- eram muito populares na região onde dustrialização, à sociedade de mas- viveu. Essa representação é denota- sas, à representação visual de dados da pelo desenho da mulher seminua, valores simbólicos” (200b :812, apud mas que sentidos conotados podem RODRIGUES, 2007, p. 62) sugerir a justaposição desse dese- Nesse sentido verificamos que no nho com outro que representa uma projeto gráfico dessa capa, o pro- mulher totalmente vestida, tendo em gramador visual, orientado pelo ar- volta da cabeça uma auréola? Enten- tista-orador, buscou representar a demos que, ao contrapor uma mulher metrópole e seus inúmeros eventos seminua com uma santa na porta de simultâneos, símbolos de uma socie- uma casa de strip-tease, o artista-o- dade industrializada. A predominân- rador representa o sentimento dúbio cia do uso do preto e o lilás, no fun- do homem que frequenta esse am- biente, que pode ser tanto de peca- do, remetem a um ambiente noturno, do como de redenção. A placa com à cidade e seus brilhos à noite. Para seu nome sobre a porta, sugere que emular esse universo da cultura de o bordel pertence ao artista-orador, e massas, tomado por anúncios e pro- sendo ele um músico, por conseguin- pagandas, faz uso de recursos visuais te temos a conotação de que a mú- que remetem à linguagem das histó- 12 sica é um comercio que se faz num rias em quadrinhos e de “grafismo 33 ambiente de prostituição. Em outro inspirado na literatura de cordel13”. possível sentido conotado, temos o Se por um lado associamos a lingua- produto disco de Tom Zé como ma- gem das HQs à estética da Pop Art14, terialização do consumo, logo consu- que tem sua origem na releitura dos mir o LP pode levar à salvação, mas produtos da sociedade industrial, por também ao pecado. De maneira mais outro os traços do cordel remetem a obvia podemos interpretar que a um arcaísmo literário, típico das regi- mensagem linguística sobre a porta e ões mais artesanais do Brasil. Existe o retrato do artista-orador ao centro, um certo primitivismo na linguagem UNIFRAN DA LINGUÍSTICA conota que o próprio Tom Zé está 12 Essa associação é percebida pelo uso de qua- dros, requadros, onomatopeias, letreiros e desenhos, que entre a salvação e o pecado. formam o instrumental básico na criação de histórias em quadrinhos. 11 Conforme nos relata o artista-orador, essa pro- 13 NAGAI, S. Disponível em http://satorunagai. ximidade fez com que “Grande Liquidação” fosse adota- com.br/index.htm. Acesso em 18 de ago de 2018. do como título do disco, pois a intenção inicial era que 14 Movimento artístico de vanguarda, que se de- fosse interpretada apenas como mais uma faixa publici- senvolveu a partir dos trabalhos do artista plástico Andy tária, comum em ocasiões de promoção de vendas. Wharol, na década de 1960. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX gráfica adotada. É a linguagem pu- enunciador disposto a transformar a blicitária, mas traduzida no estilo da ordem estabelecida dissimula-se na literatura de cordel, remetendo aos IRONIA” de Maria Flávia Figueiredo entalhes e à fragmentação da xilo- (2016, p. 197) e compreendemos que

SELINFRAN gravura. Esse modus operandi gráfi- o artista-orador Tom Zé criou uma co está em perfeita consonância com capa-discurso coerente com a pro- as questões conceituais do discurso posta transformadora da Tropicália, tropicalista, pois conforme Favaretto, pois soube dissimular-se na ironia no tropicalismo “as contradições cul- para comunicar e persuadir. turais são expostas pela justaposição O artista-orador não se furta em do arcaico e do moderno.” (1996, p. ser crítico e irônico com a sua pró- 52). pria imagem, ao colocar sua fotogra- Considerações finais fia dentro de uma televisão, em meio aos anúncios, conotando que “como Conforme nos diz Celso Favaretto, artista pop, também ele era um pro- “o trabalho dos tropicalistas não fazia duto à venda” (DUNN, 2009, p. 128), distinção, entre o emprego das técni- oferecido em grande liquidação e cas, tornadas possíveis pela situação ofertado mais de uma vez, signifi- industrial e o envolvimento comercial, cado possível para a duplicação da e a critica da sociedade e da produ- mensagem linguística que traz o seu ção artística.” (1996, p. 124). Essa re- nome. lação crítica pode ser percebida nas canções, na forma midiática com que Considerando que o artista-ora- se relacionavam com os meios de co- dor Tom Zé estava com seu nome em municação e na forma como condu- plena ascensão, esse ethos prévio o ziam o projeto gráfico das capas de qualificaria a ser moldado para ser seus LPs. vendido com o ethos de um artista comportado, fazendo coro com os O artista-orador Tom Zé oferece, 34 artistas não vinculados à Tropicália e embalado com essa capa-discurso bem ao gosto de uma certa parcela uma coleção de canções. Ao orien- do auditório-consumidor da época. tar o processo de composição de seu No entanto, seu compromisso com o projeto visual, levou o artista gráfico a discurso e o ethos tropicalista leva-o fazer uso das ferramentas do design a desconstruir esse ethos projetado, para articular elementos persuasivos, fazendo do LP “Grande Liquidação”, por meio de imagens simbólicas que tanto na capa quanto nas canções, revelam ironia ao serem decodifica- um disco que faz “uma crítica satírica

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA dos os seus sentidos conotados. da indústria cultural, com suas falsas Tomemos ironia no sentido de dissi- promessas de felicidade e plenitu- mulação ou expressão contrária, que de para os consumidores urbanos.” Fiorin (2016, p. 35) dá a essa figura de (DUNN, 2009, p. 128). retórica. Adicionemos a máxima “um IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

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Eliana Lucca KABARITI

SELINFRAN Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE

RESUMO A proposta deste trabalho é analisar a obra de Luis Miguel Rocha (2008), O último Papa, que narra uma ficção investigativa sobre a causa da morte do papa João Paulo I. O papa fora supostamente assassinado por descobrir esquemas de corrupção e crimes por membros importantes da cúria Romana. O trabalho tem como objetivo investigar as relações dialógicas através de enunciados que dialogam com valores axiológicos e sociais do momento histórico, bem como verificar as vozes que dialogam em seus diversos estilos e gêneros propostos por Bakhtin (2011). O romance dialoga com valores sociais e históricos pois tra- ta de um tema polêmico culturalmente e variado em seus valores axiológicos. O arcabouço teórico está em consonância com os pensamentos de Mikhail Bakh- tin (2011), quanto aos seus conceitos de relações dialógicas e gênero. PALAVRAS-CHAVE Relações dialógicas; Gênero; O Último Papa; romance. ABSTRACT The purpose of this work is to analyze the book of Luis Miguel Rocha (2008), The Last Pope, which tells an investigative fiction about the cause of the death of Pope John Paul the I. The pope was supposedly murdered because he disco- 36 vered schemes of corruption and crimes by members of the Roman Curia. The work aims to investigate the dialogical relations through statements that dia- logue with axiological and social values of the historical moment, as well as to verify the voices that dialogue in their different styles and genres proposed by Bakhtin (2011). The novel dialogues with social and historical values because it deals with a controversial theme culturally that is varied in its axiological values. The theoretical framework is in line with Mikhail Bakhtin’s (2011) thoughts on his concepts of dialogical relations and gender. KEYWORDS The last pope; dialogical relations; novel. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução vi, Jean-Marie Villot, Paul Marcinkus, Carmine Mino Pecorelli, Aldo Moro e O último papa, escrito por Luis Mi- outros, de acordo com a Revista GGN guel Rocha, escritor português, tor- (2013), trazendo uma possível res- nou-se best-seller do New York Ti-

posta a um conteúdo temático muito SELINFRAN mes, em 2009. O autor dedicou o seu polêmico: a morte do papa João Pau- trabalho, nos últimos anos de vida, ao lo I. A morte do papa na época foi um estudo da história da Bíblia, do Va- assunto muito falado porque há pou- ticano e de assuntos ligados à Igre- co tempo havia sido o conclave para ja católica, não como religião, mas escolhe-lo e em apenas trinta e três como instituição. Em O último Papa, dias seu papado fora acabado com expõe uma teoria sobre a misteriosa uma morte repentina. O vaticano di- morte de Albino Luciani, o Papa João vulgou que o papa sofreu um enfarto Paulo I, a qual env olve a loja maçôni- no miocárdio; embora outras notícias ca italiana Propaganda Due (Loja P2, na época divulgaram outras causas Propaganda Dois) e outras agências morte. Não se sabiam ao certo o que secretas internacionais, como a CIA acreditar, porem o Vaticano é quem (Central Intelligence Agency). Suas diria a realidade. E assim permaneceu obras reproduzem investigações e até os dias de hoje. estudos que estavam em andamen- to até a sua morte, aos 39 anos, em Através de seus personagens Ro- 2015. cha dialoga entre questionamentos e respostas com o leitor que também Os enunciados de Rocha na obra responde aos enunciados traçados instiga o leitor a querer desvendar o pelo autor quanto a polêmica histó- mistério da morte do papa contado rica conhecida mundialmente, tendo no texto, porque narra uma trama em vista uma axiologia cultural-his- que envolve a instituição católica, a tórica que participa desse diálogo qual é tida historicamente como in- através dos detalhes de cada lugar, falível, amorosa, acolhedora e hones- 37 que também coincidem com lugares ta, porém, em seu romance de ficção, culturalmente conhecidos a muitos está envolvida em lavagem de dinhei- interagindo o leitor fazendo-o sentir ro ilícito em empresas que comercia- como parte de todo contexto, imagi- lizavam produtos condenados pela nar como seria ver a crença religiosa Igreja, como pílulas, preservativos e ruir conforme a narração da obra e armamentos, ou ainda com ligações dialogando com questões axiológi- com a máfia e com outros crimes que cas, culturais e históricas. envolviam membros importantes e atuantes da Igreja. Os personagens mencionados aci- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ma, cujos nomes coincidem com no- No livro, o narrador dá vida a per- mes de pessoas que fizeram parte da sonagens ficcionais de nomes criados história do Vaticano, assim determi- por ele e outros, cujos nomes coin- nados por Daniele Ferrazza, da Tribu- cidem com de pessoas que fizeram na Di Treviso (jornal Italiano), em 6 de parte da história como Roberto Cal- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX novembro de 2015. Conforme a fon- sos estilos e gêneros propostos por te, foram pessoas atuantes na Igreja Bakhtin (2011). e no Vaticano, por isso, marcaram a Para dar início à pesquisa, a pri- história da Itália, dos Estados Unidos, meira leitura foi feita para o reconhe- SELINFRAN da Espanha e de Portugal, com ênfa- cimento do enredo, dos personagens se para a Central Intelligence Agency e da trama. A segunda leitura foi em- (CIA). basada em investigações e pesquisas Luis Miguel Rocha não deu um sobre os personagens, os lugares e nome ao suposto assassino do papa os fatos históricos. Na terceira leitura, no seu romance, apenas lhe conce- foram feitos recortes, os quais justi- deu uma sigla: J.C. Com base nisso, ficam e ilustram as reflexões citadas não se sabe se é uma abreviação de juntamente com excertos da obra seu nome verdadeiro ou apenas um dos enunciados que estamos anali- pseudônimo, porém, ao final da tra- sando quanto ao seu gênero. Foram ma, o autor descreve uma carta es- também retirados do livro, excertos crita por J.C., na qual pede para que que ilustram as análises quanto às re- toda a trama seja contada em gênero lações dialógicas, e aos enunciados ficcional misturada à realidade. As- que dialogam com o polêmico tema sim, indiretamente, J.C. assume ter religioso e a axiologia social-histórica matado o papa dando assim um des- de uma grande população. fecho ao romance. Os excertos analisados constam Para as pessoas, na história, social- no trabalho por ordem da leitura do mente nada é certo quanto à morte livro e de acordo com os estudos e do papa João Paulo I. A maioria acre- pensamentos de Bakhtin. dita apenas no que foi divulgado pela 1. Arcabouço Teórico mídia na época sobre o fato, o que Os enunciados dessa obra foram 38 está em consonância com o laudo oficial dado pelo Vaticano: a causa da utilizados para mostrar como as rela- morte foi infarto. A partir daí, várias ções dialógicas são produzidas atra- conspirações diferentes foram cria- vés de um estilo de linguagem de das sobre esse assunto. Entretanto, questionamentos e respostas diretas pouco se aprofundou nos estudos e ou indiretas que compõem o sentido nas investigações. Toda a história fi- de investigação. O assunto abordado cou “no ar”, pois muitas pessoas não no romance é conhecido pela socie- acreditaram no que o Vaticano divul- dade, por ter sido muito divulgado gara. pelas mídias sociais da época e ainda LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA pode ser encontrado em jornais, re- O objetivo deste trabalho é investi- vistas e documentários sobre a his- gar as relações dialógicas através de tória. enunciados que dialogam com valo- res axiológicos e sociais do momen- O arcabouço teórico está embasa- to histórico, bem como verificar as do nas concepções de Mikhail Bakh- vozes que dialogam em seus diver- tin (1997) sobre a elaboração dos IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX discursos e em como cada sujeito se constantemente, ora um ora outro. manifesta através do posicionamen- Nesse contexto, os enunciados bri- to axiológico. gam entre si, contestam-se e ameni- Sobre isso, Bakhtin (1997, p. 354) zam diálogos que também dialogam afirma que: com o receptor dessa obra escrita. SELINFRAN [...] A relação existente entre as O estilo de linguagem comum a réplicas de tal diálogo [o diálo- uma conversa cotidiana compõe a go real (conversa comum, dis- obra de Luis Miguel Rocha, porém cussão científica, controvérsia os enunciados produzidos nos diálo- política etc)] oferece o aspecto gos podem ou não serem acordados mais evidente e mais simples da axiologicamente por seus receptores relação dialógica. Não obstante, relacionando-se assim dialogicamen- a relação dialógica não coincide te. de modo algum com a relação existente entre as réplicas de um Diante disso, para Bakhtin (1986, p. diálogo real, por ser mais exten- 72), sa, mais variada e mais complexa. O diálogo por sua clareza e sim- Dois enunciados, separados um plicidade é a forma clássica da do outro no espaço e no tempo comunicação verbal. Cada répli- e que nada sabem um do outro, ca, por mais breve e fragmentária revelam-se em relação dialógica que seja, possui um acabamento mediante uma confirmação do específico que expressa aposi - sentido desde que haja alguma ção do locutor, sendo possível convergência do sentido (ainda responder, sendo possível tomar, que seja algo insignificante em com relação a essa réplica, uma comum no tema, no ponto de posição responsiva. vista, etc). Segundo Bakhtin, toda forma de Assim, as relações dialógicas acon- diálogo é comunicação, seja ela ver- tecem independentemente do espa- bal ou não verbal desde que haja um 39 ço ou do tempo em que ocorrem. locutor e um receptor que ouve e ou- A partir dessa reflexão de Bakhtin tro que responde, a comunicação é (1997), fica claro que as relações que uma interação entre dois sujeitos; o ocorrem no texto vão muito além de receptor e locutor que dialogam atra- uma fala e de uma resposta, elas se vés dos sentidos que os enunciados conversam através dos seus senti- trazem para o texto. dos e não somente do que se é fa- lado, são axiologias que convergem Bakhtin (2011, p. 261) entende enunciado como objeto de interação conhecimento de mundo e opiniões UNIFRAN DA LINGUÍSTICA de várias vozes, as quais dialogam verbal: sem nem mesmo serem conhecidas O emprego da língua efetua-se umas às outras. Porém, com um co- em forma de enunciados (orais e nhecimento histórico e social bastan- escritos) concretos e únicos, pro- te extenso, os enunciados podem ga- feridos pelos integrantes desse nhar sentidos, uma vez que dialogam ou daquele campo de atividade IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX humana. Esses enunciados refle- as que existiram na história. Quanto tem as condições específicas e ao espaço, ele descreve lugares, ci- as finalidades de cada referido dades, igrejas, museus e monumen- campo não só por seu conteú- tos com grande riqueza de detalhes, SELINFRAN do (temático) e pelo estilo da lugares que pelosnomes e descrições linguagem, ou seja, pela seleção também coincidem com os reais, ele dos recursos lexicais, fraseológi- cos e gramaticais da língua, mas os conhece socialmente e descreve acima de tudo, por sua constru- aproximando o leitor que também ção composicional. tem seu conhecimento social e histó- rico do lugar para perto do texto tal O gênero para Bakhtin está asso- qual a riqueza de detalhes e compre- ciado ao estilo nos quais os enuncia- ensão espacial. Mistura também fatos dos se manifestam dentro de um con- que vieram à tona na mídia da época texto, cada gênero possui sua própria com seu romance transformando em finalidade de expressão e organiza o aventura com ficção e investigação. texto de acordo com seu tema. O romance mexe com as crenças 2. O último Papa: um exercício de dos fiéis da Igreja católica, que mes- análise bakhtiniana mo sendo um romance escrito por Nossa pesquisa aqui apresentada Rocha como ficcional faz ruir a muitos tem com proposta analisar o roman- a imagem da Santa Igreja como ins- ce O último Papa, escrito em 2006, tituição, não como entidade religiosa, por Luis Miguel Rocha, escritor nasci- uma vez que revela uma suposta ver- do em Portugal, na cidade do Porto. dade estudada e investigada pelo au- Desde então, Rocha passou a dedicar tor e recontada no seu livro. Pois ao a sua escrita e as suas pesquisas ao estudar sobre o autor se dão conta Vaticano. Começou a sua vida pro- de que o assunto é investigado por fissional como técnico da produtora ele como pesquisador dos fatos. Aos 40 na qual era responsável pela exibição leitores que conhecem historicamen- das missas na TVI. E foi justamente a te ou puderam vivenciar a época em Igreja católica e o Vaticano, com os que ocorreu a morte do papa verão seus alegados segredos e conspira- semelhanças na história com a ficção, ções, que serviram de tema ao ro- e supostamente podem se envolver mance que o tornou célebre. Ele foi com a trama devido sua semelhan- o primeiro autor português a entrar ça acreditando que o papa possa ter para o topo da lista dos best-sellers sido realmente assassinado. do The New York Times. Morreu em O romance contado por Rocha LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA 2015, aos 39 anos, vítima de cancro. envolve também pessoas e aconte- A obra de Luis Miguel Rocha é fic- cimentos que não coincidem com os cional, ao menos é assim que ele a fatos históricos porque mistura com descreve, porém, muitos dos nomes a investigação um romance que mis- dos personagens atuantes na narra- tura também vários outros estilos ção coincidem com nomes de pesso- dentro do gênero romance. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Na obra, o narrador se posiciona conhecimento cria uma história cheia como investigador da história, mo- de aventuras em cima de um assunto tivado pelos misteriosos segredos tão polêmico, por ser polêmico con- que rodeiam a Igreja, o Vaticano e o segue dialogar com várias vozes ao

suposto assassinato do Papa em se- mesmo tempo. SELINFRAN tembro de 1978, Papa este que exer- A maior parte dos funcionários pú- ceu o seu papado por apenas 33 dias. blicos do Vaticano é formada por clé- No romance analisado, o Papa rigos católicos, é o território da Santa João Paulo I, Albino Luciani, supos- Sé e também o local de residência do tamente fora assassinado porque re- Papa. cebeu uma lista escrita por Carmine Desse modo, quando o Papa resol- Pecorelli, especialista em escândalos veu trocar os funcionários incrimina- políticos e fundador do OP-Osserva- dos e destituí-los de seus cargos, por tore Politico, um semanário italiano, meio dos quais ganhavam muito di- com nomes de membros da cúria Ro- nheiro e poder, esses tramariam uma mana envolvidos em negócios de la- maneira de matar o papa. O narrador vagem de dinheiro com a maçonaria. conta como naquele dia em que o Mino Pecorelli, como era chamado, papa morreu toda a rotina do lugar enviou essa lista ao Vaticano e, por foi mudada, seus enunciados tomam esse motivo, o Papa decidiu expulsar forma de mistério, de tensão, até a os membros envolvidos no assunto. guarda Suíça, que é historicamente No corpus, grande parte das ques- conhecida como infalível não conse- tões trazidas a esse texto sobre a Ins- guiu evitar o assassinato do papa na tituição Católica são representadas ficção de Luis Miguel Rocha. de forma ficcional e dialogam com Jean-Marie Villot, secretário de os receptores de forma a envolve-los Estado do Vaticano, também perso- nesse contexto através de sua axiolo- nagem nos crimes, arquitetou, jun- 41 gia e seus conhecimentos históricos. tamente com Paul Marcinkus e Licio Os diálogos que se manifestam no Gelli (mestre venerável da loja ma- texto causam ao leitor dúvidas quan- çônica P2), o assassinato, mandan- to aos fatos conversados que envol- do J.C. entrar no palácio e sufocar o vem o Vaticano em negócios ilícitos. Papa com o seu travesseiro. No romance o papa João Paulo I des- cobre uma lista de nomes de pesso- Em 2006, o personagem Valdemar as de dentro do Vaticano envolvidas Firenzi encontrou essa lista e outros nesses negócios, por isso resolveu documentos relacionados nos Arqui- expulsá-los da instituição para que vos Secretos do Vaticano. Ao reme- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA muitos escândalos fossem evitados, xer nessa história, enviou os achados pois isso causaria grandes prejuízos para algumas pessoas, nesse ponto a Igreja e aos seus fiéis. O autor co- toda a trama se inicia. nhece historicamente os fatos que Os diálogos presentes no texto são rodeiam o Vaticano, e através desse enunciados criados a partir da vivên- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX cia de cada personagem. Sarah é a Sarah e Rafael foram perseguidos protagonista, por meio de sua his- durante quase o romance todo. Seus tória, todo o conteúdo narrativo se perseguidores queriam a lista que desenrola. Após receber a lista dos Sarah recebera contendo os nomes SELINFRAN nomes dos envolvidos do Vaticano dos envolvidos nos crimes, esses ti- Sarah passa a ser perseguida, po- nham interesse em acabar com a lista rém, o pai, ex integrante P2, enviou e assim acabar de vez com qualquer um homem para protegê-la, que a prova que os incriminasse. Porém, salva muitas vezes da morte. A per- não seria fácil tirar a lista das mãos sonagem estava sendo perseguida de Sarah, não antes de responderem por pessoas interessadas em eliminar a todas as perguntas que tinha a fa- essa lista para que essa história fosse zer. Por que recebera a lista? Por que esquecida para sempre. A protago- queriam matar o papa? Quem matou nista, entretanto, quis saber do que o papa? Como mataram o papa? Es- se tratavam esses crimes. Nesse mo- sas e várias dúvidas para uma pessoa tão curiosa como uma jornalista que mento, os sujeitos dialogam entre si, Sarah é. narrando a história dentro do contex- to ativo e vivenciado pelos persona- O capturador sempre no encal- gens. ço dos dois fugitivos, ora conseguiam despistar ora corriam para consegui- Nesse excerto Rocha descreve rem escapar. O assistente do “velho” a loja maçônica coincidentemente não o deixava sem notícias, cada como é historicamente: “P2, sigla de passo dado era de seu conhecimen- Propaganda Due é uma loja secreta to; e não hesitariam e mata-los, em- de inspiração maçônica que visa tão- bora não fosse a intenção, não antes -somente conquistar o poder político, de pegarem a lista. militar, religioso e financeiro de todas 42 as comunidades nas quais se insere.” “Velho” é o grande chefe, é um (Rocha, 2006, p. 117). (ANEXO 1). senhor que só se pronuncia pelo te- lefone, comandando toda persegui- Os questionamentos de Sarah a ção e mandando matar quem o atra- Rafael, o enviado pelo pai para pro- palhar. Rocha descreve esse senhor tege-la, eram as dúvidas que tinha idoso como velho como se fosse quanto a sua ligação com a trama; uma pessoa inofensiva e boa; como porem suas respostas conversam culturalmente e socialmente se en- dialogicamente com o leitor que por tende uma pessoa com tanta vivên-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA sua vez também espera a resposta. cia. Porém esse idoso, por mais que Há uma manipulação do autor nos carrega junto a si uma bengala para seus enunciados, ele usa de sua pró- ajudar a se segurar, é uma pessoa al- pria axiologia e conhecimento histó- tiva, forte, cruel que é capaz de tudo rico para responder a trama e induz para conseguir o que quer; matar os receptores a seguir junto com suas uma pessoa é um ato corriqueiro se compreensões. não lhe mais interessar que este fique IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX vivo. Os enunciados subestimam o puladores de Rocha ´que não afirma velho induzindo o leitor a pensar que ter sido morto por J.C., mas dá indí- esse não seria capaz de fazer mal, cios e indiretas que sim. A morte do mas esse é diferente, esse é capaz de papa gerou polêmica entre ficção e a

atrocidades, e o velho ficcional é o história que por sua vez também não SELINFRAN mais poderoso e não podem contar fora culturalmente e axiologicamen- com a bondade dele. te concluída em questionamentos e O narrador conta que agentes de mistérios. uma agência de inteligência (CIA) se O último Papa é um romance com envolvem na trama por fazerem par- estilo investigativo cheio de segre- te da Loja maçônica P2 e ajudam aos dos e mistérios a serem desvendados interesses dos criminosos e os prote- e resolvidos. Em seu romance Rocha gem, porém os nomes dos persona- consegue desvendá-los e resolver gens relacionados na lista que estão toda trama contando com seu enten- ligados a lavagem de dinheiro e cri- dimento do que é certo e acabando mes pertencem à cúria Romana. com as redes de intrigas e armações Através dos diálogos entre autor, de facções criminosas. receptor, axiologias, tema e fatos his- Ao final com tudo resolvido, a lista tóricos presentes na obra, o narra- guardada em seu devido lugar Ra- dor convida o leitor a participar das fael volta ao seu trabalho habitual, investigações, as quais o instigam um padre, que surpreendeu Sarah ao responder axiologicamente os vários descobrir que seu suposto romance questionamentos criados na obra com Rafael seria impossível. Rafael para investigar sobre o crime apre- era padre missionário em uma cida- sentado no romance. de pequenina na Polônia, e ajudava Sarah enfim é capturada, mas não a catequisar crianças e pessoas que precisavam de suas palavras e não sem impor condições: que suas per- 43 guntas sejam respondidas pelo gran- mais de suas qualificações de herói de chefe, só por ele. Aquele velho que guerreiro. Rocha mencionou como o mandante Rafael fora também um integran- de toda captura, pois só ele seria ca- te da loja maçônica P2, que também paz de responder aos questionamen- a abandonou quando descobriu que tos de Sarah e de todas as pessoas trabalhavam com lavagem de dinhei- envolvidas nas relações dialógicas ro e negócios ilícitos. Porem sabia do discurso. O diálogo entre os dois demais sobre muitas pessoas envol- deu as respostas que o leitor tan- vidas. Por saber demais sobre as pes- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA to esperava, conversando com suas soas que participavam da loja resol- compreensões e cultura histórica. veu trabalhar como espião de defesa Um diálogo que conclui a trama po- do bem e aos negócios lícitos. rem deixa os leitores decidirem se o Rocha termina sua obra comum fi- papa fora mesmo assassinado ou não nal feliz, o bem vence o mal; mas não de acordo com os enunciados mani- tanto para Sarah, apesar de ter sido IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX salva e estar viva não conseguiu ter o vadas. A ficção se mescla a história herói para ela, apenas como um ami- através das relações dialógicas que go. envolvem os leitores e sua cultura, a própria história e a axiologia social

SELINFRAN Considerações finais e histórica do autor. Os enunciados Os conteúdos dos enunciados são do autor que carregam sua axiologia constitutivamente ideológicos, eles histórica e social dialogam com as já são respostas as suas próprias vo- respostas de seus ouvintes que são zes interiores, que já foram compre- também ricas axiologicamente e que endidas anteriormente e internaliza- geram novos enunciados como res- das por ele através de outras vozes. postas e assim formando as relações O narrador da obra dá aos leitores dialógicas. As várias vozes que apa- meios para dialogar com ele, porque recem no enredo são atuantes nos cada receptor tem uma compreen- enunciados porque participam direta são, tem seus valores que acordam ou indiretamente de todo o conteú- ou discordam do falante, de acordo do anunciado, cada um, com o seu com o seu conhecimento de mundo, conhecimento e axiologia, tal qual com suas próprias compreensões e como quem os recebem que tam- incorporações de outras vozes, a isso bém compreendem a narrativa de Bakhtin chama de relações dialógi- maneiras diferentes, e também res- cas. ponde concordando ou discordando No romance analisado, ao narrar a do conteúdo apresentado, embora a ficção o autor livra-se das responsa- compreensão de cada um aos enun- bilidades das investigações feitas so- ciados não anule o conhecimento e bre os assuntos abordados na obra, compreensão do outro, apenas os al- pois ao conta-los de forma ficcional teram. se desprende a verdades a serem pro- 44 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 6. Ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 45 BAKHTIN, M. O problema do autor. In Estética da criação verbal. 6. Ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. 2.Ed Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BAKHTIN, M. Teoria do Romance I A estilística. 1. Ed Revisão: Cecília Rosas. São Paulo. Editora 34, 2015. BRAIT, B. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. FARACO, C. A. Autor e autoria. In BRAIT, B. (Org.). Bakhtin conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. FARACO, C. A. Linguagem e Diálogo – As ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

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Giovanni Aurélio de BRITO

SELINFRAN Maria Flávia FIGUEIREDO

RESUMO Considerando a multiplicidade de sentidos produzidos por um texto mul- timodal, esta pesquisa relaciona a teoria retórica a recursos midiáticos com o objetivo de entender o modo como tais recursos despertam paixões no auditório. Nesse sentido, selecionamos, como corpus desta pesquisa, duas ani- mações e dois vídeos. Essa escolha se deu em razão desses textos serem peças midiáticas em que distintos recursos imagéticos, ancorados em textos verbais, são utilizados. Para proceder à análise, utilizamos obras de Aristóteles, Perel- man e Olbrechts-Tyteca, Abreu, Figueiredo e Fiorin. Procederemos a uma aná- lise de cunho qualitativo e comparativo, visando a compreender os processos que atuam no despertar das paixões no auditório e sua consequente adesão. PALAVRAS-CHAVE Storytelling; paixões; Retórica; Design. ABSTRACT Considering the multiplicity of meanings produced by a multimodal text, this research relates rhetorical theory to media resources in order to unders- tand how such resources arouse passions in the auditorium. In this sense, we selected, as a corpus of this research, two animations and two videos. This choi- 46 ce was made because these texts are media pieces in which different imagery resources are used anchored in verbal texts. For the analysis, we use works by Aristotle, Perelman and Olbrechts-Tyteca, Abreu, Figueiredo and Fiorin. We will conduct a qualitative and comparative analysis, aiming to understand the processes that act in the awakening of the passions in the auditorium and its consequent adhesion. KEYWORDS Storytelling; emotions; Rhetoric; Design. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução autores como Perelman & Olbrecht- s-Tyteca, Abreu, Fiorin, entre outros A capacidade de o orador des- da ordem da narrativa, como Eisner, pertar emoções, com o uso de es- Barthes e do design, como Lupton e tratégias retóricas ilustradas pelos

Farina. Abreu (2009) já dizia que “um SELINFRAN recursos de presença, exerce grande argumento ilustrado por um recurso influência na adesão de um auditório. de presença tem efeito redobrado Dessa forma, o uso da retórica por sobre o auditório”. Para averiguar a meio dos efeitos de presença, auxi- força persuasiva das storytellings, se- liado pelos recursos midiáticos, cons- lecionamos como corpus as seguin- titui um argumento amplo e essencial tes peças: na adesão de um auditório heterogê- neo acostumado com a exposição • What makes a hero: animação tecnológica contemporânea. produzida pela TED Ed que é uma organização sem fins lucrativos, de- Considerando a infinidade de inter- dicada à divulgação de ideias. pretações que podem ser geradas no auditório, com foco na possibilidade • Empieza Algo Nuevo: vídeo de influenciar as reações, ressaltamos IKEA, rede sueca de móveis, produzi- a necessidade de uma aproximação do pela agência SCPF de Barcelona; entre a teoria retórica e os conceitos • Dark Christmas: vídeo da rede de design voltados à comunicação. de supermercados alemã EDEKA Este estudo, portanto, se propõe a in- produzido pela agência alemã Jung vestigar de que maneira recursos do von Matt; design podem contribuir para uma ação midiática com base na retórica. • Hospital de Amor - A queda: animação 3D assinada pela WMc- Compreender a influência da re- Cann e Zombie Studio e Loud após tórica e sua aplicação por meio da a mudança do nome de Hospital do abordagem de conceitos essenciais Câncer de Barretos para Hospital de 47 sob a perspectiva de diversos autores Amor. é o grande desafio. Tratar-se-á, pois, de uma reflexão acerca das emo- Em função das infinitas possibili- ções despertadas no auditório por dades que o corpus proporciona, op- meio da mensagem visual, no viés da tamos por entender quais recursos manifestação retórica além do texto multimídia corroboram para odes- verbal. As emoções despertadas no pertar das paixões fazendo com que auditório por meio dos storytellings a história de fato funcione como ar- gumento a favor da tese defendida são impactadas e personificadas pela UNIFRAN DA LINGUÍSTICA mensagem visual. Analisar o processo no contexto em que foi contada. sob a ótica da retórica, especialmen- 1. Embasamento teórico te em relação às paixões aristotélicas, irá colaborar na construção da men- Para embasar as análises busca- sagem persuasiva. Para isso o arca- mos compreender os efeitos da men- bouço teórico contempla as obras de sagem persuasiva e as emoções nela IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX construídos, em relação ao auditó- de meios para a expressão visual do rio. Na sequência, adentraremos nas conteúdo. Existem como polaridades teorias de comunicação visual. Na de um continuum, ou como aborda- intenção de compreender quais re- gens desiguais e antagônicas do sig-

SELINFRAN cursos imagéticos contribuem para nificado”. com o despertar das paixões, trilha- Dondis (2007, p. 23, apud Figueire- mos o seguinte percurso: iniciamos do et al) apresenta como “a caixa de em Barthes, no seu trabalho “A retó- ferramentas de todas as comunica- rica da imagem”(1990), onde busca- ções visuais [...] a fonte compositiva mos subsídio para a análise do texto de todo tipo de materiais e mensa- multimodal, bem como sua aplicação gens visuais, além de objetos e ex- junto ao campo da percepção, da periências.” Dessa forma, os recursos produção criativa e do design, au- audiovisuais expostos na obra criam xiliados por Donis A. Dondis (2007) uma significação primeira ao espec- em seu trabalho Sintaxe da lingua- tador. Saber quais elementos favo- gem visual, e Modesto Farina (2006) recem o despertar das paixões é de em Psicodinâmica das cores, seguido suma importância na mensagem in- pelo estudo da narrativa visual por tencional e persuasiva. Em relação à Will Eisner (1999) em sua obra Qua- mensagem conotada, destacamos as drinhos e arte sequencial. Os estudos associações provenientes da jornada aristotélicos, bem como as contribui- do herói com a vida pessoal, reforça- ções de Michel Meyer (2007), Perel- da pela mensagem verbalizada pelo man e Olbrechts-Tyteca e Figueiredo narrador no epílogo. (2016), foram evocados para consoli- dar a aplicação da teoria retórica no No que diz respeito à linguagem que concerne às paixões nas produ- audiovisual, nos servimos das cores ções audiovisuais. para a presente análise, pois são ele- mentos essenciais dotados de pro- 48 Barthes propõe três mensagens: a funda significação. Dondis (2007, linguística, relativa ao texto verbal, a p.64) expõe que a cor está impreg- icônica codificada, também conheci- nada de informação e é uma expe- da como denotada, e por fim a icô- riência visual que todos temos em nica não codificada, conhecida como comum. Buscando compreensão do conotada. A mensagem linguística é papel da cor, Modesto Farina sinte- percebida tanto pela narração, quan- tiza: “Tecnicamente a palavra ‘cor’ é to pelas palavras-chave exibidas em empregada para referir-se à sensa- cada etapa da jornada. Em relação à ção consciente de uma pessoa, cuja LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA mensagem denotada, os elementos retina se acha estimulada por energia visuais com toda primazia executam radiante”. (FARINA, 2006, p. 1). Em um espetáculo à parte no entendi- relação ao aspecto persuasivo das mento do enredo. Em relação às téc- cores, Barthes nos fala que toda ima- nicas de comunicação, Dondis (2007, gem que visa à comunicação possui p. 139) acrescenta: “As técnicas visu- uma intencionalidade; tal persuasão ais oferecem [...] grande variedade IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX se dá desde o estilo, construção, tex- teorias apresentadas com a única fi- turas e cores, que corroboram para nalidade de descobrir quais elemen- construir tal intencionalidade. Assim tos colaboram com o despertar das as cores desempenham um papel de paixões. A estruturação da análise

suma importância persuasiva no pro- se dará conforme a necessidade das SELINFRAN jeto, pois, segundo Farina (2006, p. partes expondo as intervenções das 2), “influenciam o ser humano e seus teorias pertinentes. efeitos, tanto de caráter fisiológico Acreditamos, ao final, compreen- como psicológico, intervêm em nos- der os processos que melhor atuarão sa vida, criando alegria ou tristeza, no despertar das emoções no auditó- exaltação ou depressão, atividade ou rio, bem como sua adesão. passividade, calor ou frio, equilíbrio ou desequilíbrio, ordem ou desor- 2. What makes a hero: uma leitura dem etc”. O adequado uso das cores retórica produz sensações e reflexos devido Apresentamos aqui uma breve à vibração que trabalha em nossos análise de um trecho do vídeo What sentidos, podendo, segundo Farina makes a hero, animação produzida (2006, p. 2),“atuar como estimulante pela TED Ed, que é uma organiza- ou perturbador na emoção, na cons- ção sem fins lucrativos, dedicada à ciência e em nossos impulsos e de- divulgação de ideias, sob a forma de sejos”. conversas curtas e poderosas através Em relação às narrativas visuais, da ajuda de animadores profissionais. Eisner (1999, p.101) recorda que “a O vídeo é baseado no monomito “A ‘leitura da postura’ ou do gesto hu- Jornada do Herói”, extraído da obra mano é uma habilidade adquirida, de Joseph Campbell O Herói com Mil que a maioria dos seres humanos Faces, popularmente conhecida em tem, em grau mais elevado do que se uma leitura adaptada ao cinema por imagina”. Fato esse que a percepção Christopher Vogler. Com 4´33´´, nar- 49 e a experiência vivenciada corrobo- ra, o percurso de transformação do ram com nosso repertório particular homem comum em herói, por meio de informações e sentidos. Tais pos- da seguinte sequência: chamado, turas comunicam desde o perigo até decisão, dúvidas, provações e novos o amor. desafios; os quais surgem no meio do caminho proporcionando a aprendi- Relacionar os princípios de Eis- zagem dentro de cada escolha, ver ner, bem como identificar os demais Figura 1. itens colaboradores na construção de sentido, constitui o objetivo des- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ta pesquisa e, portanto, o nosso de- safio.Procederemos a uma análise de cunho qualitativo e comparativo, onde propõe-se uma descrição da estrutura do vídeo, perpassando plas IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

Figura 1 – Ciclo da Jornada do Herói. Fonte: http://sobresagas.com/coluna-sobre-herois/ Com o objetivo de melhor compreender as paixões despertadas no auditório a quem o vídeo se destina, coube aqui destacar algumas das possíveis paixões bem como analisá-las quanto seu aspecto persuasivo. Em relação às paixões que podem ser despertadas, esclarecemos que são 14 as paixões aristotélicas: a cólera, a calma, o temor (medo), a confiança, a inveja, 50 impudência, o amor, o ódio, a vergonha, a emulação, a compaixão, o favor (assis- tência), a indignação e o desprezo. No discurso multimodal, utilizamos de diversos meios com vistas ao despertar das paixões, ou seja, provocar reações no auditório. No vídeo, identificamos as se- guintes paixões que foram despertadas ao longo da narrativa. São elas:

• Calma; • Favor; LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA • Confiança; • Temor; • Vergonha; • Cólera. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

Figura 2 – Adaptação da Figura 1 com vistas a identificar as paixões manifestadas no ciclo da jornada. Para que possamos analisar as paixões e os recursos visuais que favorecem a apresentação das mesmas, com certo nível de detalhe, utilizaremos as imagens nas quais identificamos tais paixões. Como análise piloto, trataremos, neste resu- mo, somente da paixão do favor. 1.1 A Paixão do favor

51

Figura 3 –“Assistance” e a manifestação da Patixão do Favor LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Na verbalização do narrador, ouvimos: “Duas horas: a ajuda. O herói precisa de um auxílio. Provavelmente de alguém mais velho, mais sábio.” Se analisarmos o verbo transitivo “precisa”, temos como sinônimo os termos carente, necessitado. Aquele que é tomado pela paixão do favor sai de si e tenta descobrir a carência e necessidade do próximo. “[...] é prestar serviço, descobrir a necessidade alheia, entendendo-se que quem responde dessa maneira não o faz por interesse.” IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX (MEYER, 1999. p. XLV). Temos como momento da rotina que se inicia, uma início da sequência denotada nosso figura de baixa estatura, longa barba herói num cenário amplo e ilumina- e grande calvície, assinalando uma do, que recebe uma espada de um avançada idade, demonstra um gran-

SELINFRAN ancião. A informação textual, ancora- de vigor, proveniente da diferente luz da pela legenda “Assistance”, prepara de seus olhos. Entende-se aqui a fi- de forma clara ao espectador para a gura de um sábio, alguém qualifica- ajuda vindoura, a experiência da pai- do, que de forma altruísta oferece um xão do favor. Meyer (1999, p. XLV) auxílio, uma luz para aquele que está afirma que, sendo uma das paixões desprovido. O personagem necessi- aristotélicas, o favor se dá através da tado se encontra disposto a ouvir o obsequiosidade. É uma resposta na- que o sábio tem a oferecer. Apesar tural ao outro. Dessa forma a paixão da carência, apresenta certa pron- do favor nos impele, por motivações tidão, com os pés firmes, demons- diversas, a prestar um serviço desin- trando equilíbrio, uma disposição, teressado trazendo com isso a opor- esquentando a tibieza proveniente tunidade e a dignidade para que o da indiferença. Dondis nos fala que outro também se iguale a nós. No “a mais importante influência tanto caso do vídeo, o herói deixa sua si- psicológica como física sobre a per- tuação apática de lado, aceita o cha- cepção humana é a necessidade que mado e dignamente auxiliado por um o homem tem de equilíbrio, de ter os instrumento que inspira confiança, pés firmemente plantados no solo e sobrepõe o estágio que se encontra- saber que vai permanecer ereto em va, de um derrotado, para o de um qualquer circunstância, em qualquer guerreiro. A paixão do favor tem essa atitude, com um certo grau de certe- característica de trazer dignidade, za.” (1991, p. 32). Ao receber a espada, suprimindo a distância entre os pa- nosso herói começa a tomar forma; res, o necessitado e aquele que mi- com as mãos empunhadas no senti- 52 nistra o favor, tanto que Meyer (1999, do de aceitação da ajuda é iluminado p. XLV) afirma: “[...] favor, porém, ex- em suas costas pelo brilho do sol que prime uma relação assimétrica que, se intensifica lentamente. Tal cena faz deseja suprimir.” alusão à figura de um escolhido, al- Ainda sob a ótica imagética, na guns padrões cinematográficos utili- busca de um sentido que Barthes in- zam recursos como iluminação, trilha titularia “ingênuo ou inocente”, de as- sonora, bem como poses que figu- pecto denotativo, observamos nosso ram o protagonista quando esse des- cobre ou aceita a missão. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA herói numa paisagem ampla com um belo nascer do sol, ainda enfraque- Eisner, em sua obra, já dizia: cido, construído também sob uma “não se sabe muito sobre o local ou paleta de cores frias,representada o modo de armazenamento no cére- por cores claras como azul e um leve bro dos incontáveis fragmentos de acinzentado – o que indica o raiar do lembrança que se tornam compre- dia, o início da labuta diária. Nesse ensíveis quando dispostos em certa IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX combinação.” (EISNER, 1999, p.100). A utilização de linguagens reco- Abrangendo a esfera da identificação nhecíveis em diversas produções ci- do personagem com um estereóti- nematográficas reforçam os aspec- po hollywoodiano – a do escolhido, tos de percepção e reconhecimento. SELINFRAN a teoria retórica nos ilumina sobre a Uma emoção vivida em um deter- disposição do orador que deseja per- minado tempo, quando evocada, é suadir seu auditório: deverá gerar co- somada à emoção atual. Em relação munhão, criar identificação, para que, ao uso da imagem, Barthes (1990, de uma forma psicológica, o auditó- p. 31) observa: “[...] o espectador da rio se sinta importante, comovido, imagem recebe ao mesmo tempo a partícipe do contexto argumentativo. mensagem perceptiva e a cultural, e O recurso de presença é essa moda- veremos mais adiante que esta con- lidade que atua diretamente sobre a fusão de leitura corresponde à função nossa sensibilidade. Perelman & Ol- da imagem de massa (de que trata- brechts-Tyteca (2014, p. 132) nos es- mos aqui)”. Essa questão de como a clarecem que se trata de um dado imagem e a imitação de padrões pre- psicológico, que exerce uma ação viamente reconhecidos se dão nos é no nível perceptivo do auditório. Eis- esclarecida por Barthes (1990, p. 27): ner (1999, p.100) sintetiza: “o desen- “segundo uma antiga etimologia, a volvimento inexorável da tecnologia palavra imagem deveria estar ligada das comunicações desde a aurora da à raiz de imitari”. história intelectual do homem serviu para universalizar imagens da experi- Dessa forma, por exemplo, uma ência humana comum.” pessoa poderá querer imitar seu herói, adotando não apenas seu as- Objetivando dar peso à análise, fa- pecto físico, mas também seus ide- remos uma pequena inserção acerca ais, seus objetivos ou suas atitudes da intertextualidade, que utilizada diante de certas situações. Imitar, em 53 pela Linguística Textual, estuda as re- português, manteve todos esses sen- lações de um texto com outros ante- tidos do latim imitari. riormente produzidos. Tais fatores corroboram imensa- A esse respeito, Roland Barthes mente na mensagem persuasiva so- (1974, p. 59 apud Figueiredo et al) bre os espectadores. A exemplo dis- declara: so, citamos a animação dos estúdios O texto redistribui a língua. Uma Disney A espada era a Lei, onde, com das vias desta desconstrução a finalidade de “despertar emoções”.

é permutar textos, farrapos de a ambientação e os efeitos da luz re- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA textos que existiram ou existem forçaram o despertar da paixão con- em volta do texto considerado fiança, no caso do herói, ao receber a e finalmente dentro dele; todo o espada. texto é um intertexto; outros tex- tos estão presentes nele, em di- Temos na sequência, Aragorn, um versos níveis, sob formas mais ou dos personagens principais do fil- menos reconhecíveis. me O Retorno do Rei, terceiro filme IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX da saga “O Senhor dos Anéis”. Vale dores. Já no ponto de vista epidícti- ressaltar que essa saga constitui um co, o vídeo propõe mecanismos que exemplo claro de utilização do enre- favorecem a adesão do auditório, por do da Jornada do Herói. meio da promoção dos valores co-

SELINFRAN Uma vez que ambos os filmes A( muns sobre os quais há concordância espada era a lei e O retorno do Rei) e por apresentar uma pessoa quali- são conhecidos, as cenas em desta- ficada por executá-los, em identifi- que acabam por constituir uma rela- cação com a possibilidade de todos ção intertextual de copresença que serem os protagonistas. se dá de forma implícita através da Considerações finais alusão. Cavalcante (2013, p.152) nos Finalmente, ressaltamos a perti- ensina que: “a alusão é uma espécie nência desta pesquisa aos estudos de referenciação indireta, como uma retóricos uma vez que tratamos de retomada implícita, uma sinalização um assunto de grande importância para o coenunciador de que, pelas contemporânea e de alto poder per- orientações deixadas no texto, ele suasivo. Após percorrermos a traje- deve apelar à memória para encon- tória acerca das motivações, causas, trar o referente não dito” e meios persuasivos, buscamos, na teoria retórica, uma sólida base para prosseguir nossos estudos. Percebemos também a infinitude de possibilidades passiveis de análise, mas, visando dar uma mínima contri- buição à interrelação da retórica com o design, optamos pela análise aqui exposta. 54 Na jornada do herói, temos uma representação das fases da vida, em que rotina, sonho, partida, desânimo, foco, persistência e reconhecimento Figura 4 –Intertextualidade com “A Espada era a se espelham na jornada humana. Pre- Lei” e “O Retorno do Rei”. tendemos, com as demais análises a Em termos de persuasão, os auto- serem efetuadas, relacionar os recur- res do vídeo “A jornada do herói” tra- sos imagéticos às teorias de sintaxe balham o despertar das paixões por visual, narrativas e retórica, contri-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA meio da narrativa visual permeada de buindo para o entendimento do des- elementos que conduzem à emoção pertar das paixões em textos multi- através de um visual coeso, que ex- modais. plora a a identificação dos especta- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

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Graciely Andrade MIRANDA15

SELINFRAN Vera Lucia Rodella ABRIATA

RESUMO Esta pesquisa analisa o romance “A resistência”, de Julián Fuks (2015) com base no instrumental teórico da semiótica francesa. O texto relata a história de um narrador que rememora a vida pretérita familiar, marcada pela adoção de um irmão durante a ditadura militar argentina O narrador cria, pois, uma histó- ria na qual rememora o drama familiar de seus pais que fogem de seu país com o irmão adotivo e migram para o Brasil. Nosso objetivo é analisar o modo como os acontecimentos familiares vividos pelo narrador, no pretérito, repercutem em sua memória no presente da enunciação e como ele compõe o retrato do ator que exerce o papel temático de seu irmão, protagonista da narrativa. Uti- lizamos elementos do percurso gerativo de sentido e da semiótica das paixões. PALAVRAS-CHAVE A resistência; enunciação; memória; percurso gerativo de sentido; ABSTRACT his research analyzes the novel “A resistência”, by Julián Fuks (2015) based on the theoretical framework of French semiotics. The text tells the story of a narrator who recalls the past family life, marked by the adoption of a brother 56 during the Argentine military dictatorship. The narrator creates, therefore, a story in which he recalls the family drama of his parents fleeing his country with the foster brother and migrate to Brazil. Our objective is to analyze how the familiar events lived by the narrator in the past, repercussions on his memory in the present of the enunciation and how he composes the portrait of the actor who plays the thematic role of his brother, protagonist of the narrative. We use elements of the generative path of meaning and the semiotics of passions KEYWORDS A resistência; enunciation; memory; generative path of meaning, pas- sion. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

15 Apoio: PROSUP/CAPES (taxa) IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução Sebastián rememora o drama da fa- mília à procura da interação com o Na literatura brasileira contempo- filho adotivo, arredio, e procura es- rânea, escritores têm utilizado a me- boçar o perfil do irmão por meio do mória como fonte de inspiração e, ao relato. SELINFRAN mesmo tempo, têm feito releituras de acontecimentos históricos para cria- Este estudo se apoia em uma rem suas narrativas. Nesses textos, a metodologia qualitativa de revisão memória, de caráter não linear, passa bibliográfica sobre a obra do autor a se constituir de passagens evoca- e sobre a teoria semiótica francesa, das em que há deslocamento da ca- idealizada por Algirdas Julien Grei- tegoria de tempo com o intuito de se mas e os aportes teóricos de seus recuperar o passado no presente. As sucessores, especialmente Denis novas formas de narrar revelam-nos Bertrand (2003), por nos mostrar os também o diálogo do texto literá- caminhos da semiótica na literatura, rio com o texto histórico, como é o Fontanille e Zilberberg (2001), que caso de A resistência, de Julián Fuks desenvolve os conceitos de aconte- (2015), romance ganhador de vários cimento e campo de presença, im- prêmios importantes, em especial, o portantes para nosso trabalho, e de prêmio Jabuti em 2016. O romance Mariana Luz Pessoa de Barros (2015, apresenta quarenta e sete capítulos, 2016), por desenvolver o conceito de de curta extensão nos quais o narra- memória a partir do instrumental te- dor se questiona sobre a origem do órico da semiótica tensiva. irmão, na tentativa de entender como O objetivo geral de nosso trabalho e quais foram os motivos que o leva- é analisar a construção da memória ram ao silenciamento e isolamento do narrador com base nas duas for- do convívio familiar. mas discursivas de construção da A obra relata a história de um casal memória como categoria analítica 57 de médicos argentinos que imigram dos discursos autobiográficos: a me- para o Brasil nos anos 1970 durante a mória do acontecido e a memória-a- ditadura civil militar em seu país. Ati- contecimento (BARROS, 2016). vistas políticos eles deixam a Argen- Nessa perspectiva, procuramos tina às pressas logo após terem ado- responder às seguintes questões: tado um menino cuja mãe seria uma como os acontecimentos vividos por vítima do regime ditatorial, conforme Sebastián, como sujeito da enuncia- se observa ao longo da história. Ao ção – a vida familiar, que se transfor-

se mudarem para o Brasil, a mulher, ma com a adoção do irmão no perío- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA psiquiatra, muito embora pensasse do turbulento da ditadura argentina, não poder ter seus próprios filhos, o exílio dos pais e a posterior vivência torna-se mãe de duas outras crian- do exílio no Brasil – são reconstruídos ças, uma menina e um menino, cujo por ele como narrador, no presente nome é Sebastián, o narrador do ro- da enunciação enunciada? O texto mance. Da perspectiva do presente, manifesta a memória/acontecimen- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX to? Como o narrador cria a figura do uma imagem-simulacro do passa- ator “irmão” como ser de ficção lite- do”. Esse ato faz com que a memória rária? seja ativada, filtrada, selecionada e Procuramos, portanto, analisar o recriada a partir da experiência pre- SELINFRAN modo como os acontecimentos vivi- sente e sentida no presente. Para a dos pelo narrador, como sujeito do semioticista, os gêneros autobiográ- enunciado no pretérito, tais como o ficos mostram a visão do enuncia- conflito familiar e o conflito social, dor sobre a vida contada, levando são recuperados pela experiência em conta as expectativas que possui do narrador no presente da enuncia- com relação a seu enunciatário, pois ção enunciada. Utilizamos o referen- este participa da construção do sen- cial teórico da semiótica discursiva tido do discurso-enunciado, o que com o objetivo de apreender os pa- faz com que o sujeito da enunciação péis actanciais, temáticos e patêmi- seja compreendido pela teoria semi- cos que os atores desempenham no ótica como formado pelo enunciador texto. Visamos também apreender o e pelo enunciatário. modo como os acontecimentos his- Barros classifica o discurso da me- tóricos ressoam na subjetividade do mória de duas formas: a memória narrador e de sua família por meio do acontecido e a memória-aconte- da apreensão de percursos temáti- cimento. Na memória do acontecido, co-figurativos. Da semiótica tensiva, o enunciatário aproxima-se do texto utilizamos as noções de campo de pelo viés do inteligível. O enunciador presença e de acontecimento e, de manifesta uma forma de construir o memória, sistematizada por Barros mundo que cria o efeito de conhe- (2015).Este trabalho justifica-se por cido. O discurso da memória é res- analisar um relevante texto literário ponsável por materializar o passado contemporâneo, e visa a contribuir lembrado diante do sujeito da enun- 58 com o campo da semiótica francesa, ciação. Nesse discurso, o passado é observando o modo como o narra- presentificado, trazendo para o ago- dor tece o diálogo do texto literário ra da enunciação um simulacro, uma com o texto histórico, que repercute imagem do então. Na memória-acon- na memória do narrador Nossa hi- tecimento, há um contrato baseado pótese é a de que prevalece no texto nos afetos e nas sensações: o enun- a manifestação da memória-aconte- ciatário é capturado por meio de im- cimento. pactos, ou seja, ele se aproxima do 1. Alguns pressupostos teóricos texto pelo sensível. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Em A memória do acontecido Para explicar a primeira, a semio- e a memória-acontecimento: um es- ticista faz uma analogia entre a me- tudo semiótico dos gêneros autobio- mória e uma “figura do arquivo”, pois gráficos, Mariana Luz Pessoa de Bar- esse tipo de recordação cria a ilusão ros (2016, p. 359) diz que “a memória de acabamento e que o fato acon- aparece àquele que se recorda como teceu previamente ao texto. Assim, IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX o passado relembrado apresenta-se 361), “a intensidade diz respeito à mais legível devido à descrição minu- força com que somos afetados pe- ciosa e à grande quantidade de infor- las grandezas que penetram nosso mações nele contidas. Para a autora, campo de presença, e a extensidade a memória do acontecido “faz do diz respeito à extensão temporal, em SELINFRAN passado lembrado, assim como do primeiro lugar, e também espacial do texto, objeto que deve ser analisado campo controlado pela intensidade.” e explicado à distância, e cuja susten- Já o acontecimento é visto como “o tação é fornecida pelo efeito de refe- sincretismo entre o andamento e a rência.” (BARROS, 2015, p. 211). tonicidade, que compõem o eixo da Já a memória-acontecimento surte intensidade, o acontecimento é aqui- o efeito de que sua discursivização lo que surpreende o sujeito, que sa- é engendrada ao longo do texto. Ao tura seu campo de presença, e que, contrário da memória do acontecido, num primeiro momento, é ininteligí- ela não cria a ilusão de acabamento e vel. Pode apenas ser sentido”. (ZIL- é dotada de dinamicidade e instabili- BERBERG, apud BARROS, 2015, p. dade, dado que “é capturada em seu 362) devir, em sua ação de fazer aparecer e desaparecer o passado lembrado”. Em A resistência (2015) há a remis- Trata-se de uma memória que de- são ao discurso histórico, por meio monstra uma alta carga sensível vin- da alusão à ditadura argentina.. Nes- da do sujeito que produz o texto e se sentido, Barros (2009, p. 351-364), que também provoca grande engaja- no artigo “Uma reflexão semiótica mento afetivo. Como o próprio nome sobre a ‘exterioridade’ discursiva” já diz, a memória-acontecimento tem mostra que a Semiótica Discursiva ancoragem na intensidade, cuja toni- trata também do que é exterior ao cidade, para dizer o mínimo, é máxi- texto, isto é, estabelece uma relação 59 ma e cujo andamento extremamente entre texto e contexto. Para examinar acelerado (BARROS, 2015, p. 211). essa relação presente na construção Dessa perspectiva, convém lem- dos sentidos dos textos, atua de três brar que, para Fontanille e Zilberberg modos: pela organização linguístico- (2001, p. 125), campo de presença, -discursiva dos textos, tendo em vis- “por um lado, é o domínio espácio- ta seus percursos temáticos e figura- -temporal em que se exerce a per- tivos, que revelam as determinações cepção, e, por outro, as entradags, as histórico-sociais inconscientes; pelas estadas, as saídas e os retornos que, relações intertextuais e interdiscur- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ao mesmo tempo, a ele devem seu sivas que os textos e os discursos valor e lhe dão corpo”. Assim, toda mantêm com outros textos; e pelas grandeza que penetra no campo é relações entre a semiótica do mundo avaliada a partir de sua extensão e natural e a das línguas naturais, ou ainda da intensidade da percepção seja, as ligações entre palavras e coi- de um sujeito. Para Barros (2016, p. sas, entre língua e mundo. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Matte e Lara (2009), ao refletirem irmão é adotado. Se digo assim, sobre a exterioridade discursiva res- se pronuncio essa frase que por saltam que : muito tempo cuidei de silenciar, reduzo meu irmão a uma condi- [...] a enunciação é uma instân- ção categórica, a uma atribuição SELINFRAN cia-membrana do texto, mem- essencial: meu irmão é algo, e brana permeável que administra esse algo é o que tantos tentam as trocas entre o fora e o dentro enxergar nele, esse algo são as do texto. O “dentro” do texto é marcas que insistimos em pro- seu conteúdo imanente, o discur- curar [...]. Meu irmão é adotado, so propriamente dito. O texto é mas não quero reforçar o estig- o lugar da manifestação desse ma que a palavra evoca, o estig- discurso, seu corpo perceptível ma que é a própria palavra con- e apreensível. As leituras de um vertida em caráter. (FUKS, 2015, texto não são ilimitadas: sua es- p. 9, grifos meus). trutura interna direciona o olhar do leitor. (MATTE; LARA, 2009, Sebastián, no papel actancial de p. 83). narrador, revela-se modalizado pelo não querer e pelo não poder-fazer, ou Por isso, além da interdiscursivida- seja, ele não quer e não pode utilizar de inerente, apreensível pela análise o atributo “adotado” para caracteri- semiótica do discurso, o texto tam- zar a figura do ator “irmão”, pois essa bém manifesta a intertextualidade palavra, para ele, evocaria um estig- para delimitar ou redirecionar seu ma, passando a fazer parte da essên- sentido de imanência. A Semiótica cia de seu caráter. Modalizado pela entende que a exterioridade é cons- inquietação, o narrador resolve usar truída a partir das estruturas do pró- o atributo adotivo para caracterizá- prio texto em análise – as estruturas -lo: “Meu irmão é filho adotivo”, cons- intratextuais – ou por meio do diálogo trução frasal que, além de confortá- que é estabelecido com outros tex- -lo, imagina que contribuiria para sua 60 tos. Assim, as relações do texto com aceitação social e o absolveria das sua historicidade podem ser apreen- “mazelas do passado”. As “mazelas didas tanto pela análise de temas e do passado” é figura que remete ao figuras do discurso quanto pelosos tema da opressão ditatorial do mo- laços intertextuais e interdiscursivos. mento em que o irmão foi adotado, 2.A construção da memória em A a ditadura militar argentina, que vai resistência levar seus pais, tendo recém adotado No início da narrativa, Sebastián, o o irmão, a fugirem para o Brasil.

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA narrador, apresenta um dilema con- Outro desafio para o narrador é cernente ao uso da palavra “adota- organizar suas memórias que ele re- do”, com a qual caracterizaria o ir- lata serem muitas vezes inventadas, mão: pois ou não se lembra delas com fi- Meu irmão é adotado, mas não delidade ou não vivenciou fatos que posso e não quero dizer que meu envolveram a família, por ainda não ter nascido. Assim ao se referir a um IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX acontecimento passado, o parto do pelas panturrilhas [...] Não que- irmão, que se dera em Buenos Aires, ro imaginar a estridência desse ele faz uso da anáfora com a reitera- choro [...] Não quero imaginar os ção da oração “Não quero imaginar”, braços estendidos de uma mãe inicialmente para aludir ao espaço em agonia, mais um pranto aba- SELINFRAN fado pelo estrondo de botas pelo disfórico no qual teria se dado o piso, botas que partem e o le- nascimento do irmão em sua ima- vam consigo: some a criança [...] ginação, já que ele só nascera pos- (FUKS, 2015, p. 11, grifos meus). teriormente, no Brasil: um “galpão gélido e sombrio”. A seguir embora Enfim, ele se questiona: “Então, o simule recusar-se a recriar o aconte- que falar do nascimento dessa crian- cimento, modalizado pelo /não que- ça? A ninguém importa esse momen- rer/ imaginar esse momento, na ver- to mais do que a esse ser” (FUKS, dade, inventa-o, imagina-o, levando 2015, p. 12); e completa observando o enunciatário a sensibilizar-se pela que tal acontecimento não poderia intensidade do sofrimento dos sujei- estar associado nem à salvação de tos nele envolvidos: o irmão e a mu- sua família, - e fica implícito que isso lher que lhe dera à luz. O estado de teria se dado ao se tornar conjunta alma de sofrimento do primeiro se com o filho adotivo, - nem à ruína de manifesta pela antítese: inicialmen- uma mulher, aquela que, no momento te mudo, ao ser agarrado por uma em que nascera seu irmão, dele fora “mão robusta”, solta um “choro estri- obrigada a tornar-se disjunta. dente”. Por sua vez, o estado de in- Assim, vida e morte, salvação e ru- tensa agonia da mãe se revela tanto ína entrelaçam-se no acontecimento pela figura metonímica de seus bra- do parto de seu irmão, imaginado ços estendidos ao entregar a crian- pelo narrador. A figura “imaginar”, ça quanto pelo seu “pranto abafado”, reiterada nessa passagem, nos reme- por tornar-se disjunta do filho. Essa te, por outro lado, à isotopia da cria- 61 disjunção da mulher daquele que se- ção literária do romance. Assim, a re- ria seu irmão adotivo, é performance criação do irmão adotivo como ator realizada por um antissujeito, figura- no livro que escreve se dá por meio tivizado pelas “botas que partem e de lembranças aparentemente frag- o levam consigo”. Observa-se, pois, mentadas de sua memória,. que o papel actancial de antissujeito, Como o romance é narrado em no contexto, figurativiza os próprios flash-back, as memórias do narrador soldados da ditadura militar, os quais vão seguindo uma ordem aleatória, foram os responsáveis por separar a UNIFRAN DA LINGUÍSTICA não cronológica e, como narador, no mãe de seu filho papel temático de irmão, a primeira Não quero imaginar um galpão lembrança que ele relata é a de uma amplo, gélido, sombrio, o silêncio viagem de carro, dirigido pelo seu asseverado pela mudez de um pai, na qual estão presentes ele, o menino franzino. Não quero ima- irmão, a irmã e uma prima. Na oca- a mão robusta que o agarra ginar sião, a prima ressaltava as diferenças IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX existentes entre ele e o irmão quando seu lado, e também não consigo Sebastián, ainda criança, sem pensar, inventá-lo. Como se passaram declarou: “Ele é adotado”. Dessa re- oito anos naquele estado é uma memoração, da imprecisão do relato, questão que não sei responder, é mais uma noção do real que

SELINFRAN a única certeza que ele guardou foi ” (FUKS, 2015, p. 21, a do incômodo que tornou a sentir aqui se evade grifos meus). ao relembrar a declaração feita, que de forma ambígua, pode ter soado Percebe-se nessa passagem que o como uma negação do laço fraterno. narrador, sente-se incompetente para Embora não fosse segredo para ne- lembrar-se de dados de sua infância nhum membro da família, o assunto “real” com fidelidade, mas há algo sobre adoção havia sido silenciado. que não esquece, que não lhe escapa “[...] o que era palavra se tornou in- à memória: a lembrança de que o seu dizível, calou-se a verdade como se irmão, mais velho, o protegia todas as assim ela se desfizesse.” (FUKS, 2015, vezes que andavam juntos em meio p. 14) a qualquer multidão. Era ele quem guiava os seus passos, não porque a Sebastián vasculha sua memória mãe pedia com o intuito de uni-los, à procura de seu irmão. Por meio de mas porque o gesto costumeiro da anáforas que se sucedem nessa pas- proteção do irmão a ele, como sujei- sagem, o narrador esforça-se para to adjuvante, ficara gravado em sua recordar-se de fatos, porém, tudo o memória. que encontra são fragmentos que ele declara serem inconfiáveis, pois Sebastián, contudo, procura as considera poderem conter lapsos razões do afastamento que se dera de memória, ou restos de discursos entre ele e a família na infância. Re- os quais ele se revela incompetente lembra então uma brincadeira de para atribuir a alguém. Por não ob- criança entre eles quando criavam 62 ter êxito, recorre à memória inventa- barricadas com almofadas, traves- da “Essa história poderia ser muito seiros, colchões para saltá-las. Para diferente se dela eu me lembrasse” essa brincadeira, o irmão convocava (FUKS, 2015, p. 21). Dessa forma, des- a irmã e ele para uma missão. “Quer creve o quarto onde dormiam, ele e o que construamos juntos uma gran- irmão: os móveis e objetos que com- de barricada, sem saber ainda, sem punham o ambiente, os brinquedos... suspeitar, que a grande barricada Oito anos eles dormiram juntos no também nos cindirá.” (FUKS, 2015, p. mesmo quarto, tempo suficiente para 26). [...] “Uma brincadeira não sei se

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA unir os dois, contudo, não se lembra recupero intacta de algum recôndi- sobre o que conversavam, brincavam. to da memória ou se invento ago- ra [...] Vejo ou invento meu irmão a Era fértil a imaginação daquela época, fecunda ficção que hoje nos convocar calado [...] quer que me abandona. Não consigo lem- apanhemos todas as almofadas, [...]” brar como era passar um minu- (FUKS, 2015, p. 26, grifos meus). Os to, dez minutos, uma hora ao saltos do irmão eram espetaculares, IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX destemidos. O perigo na brincadeira Na sequência do relato, o narrador era um dos poucos motivos que fa- traz para o presente, a imagem de zia o irmão sorrir, mas logo esse sor- uma mesa posta para o jantar. Desta riso desaparecia, dada a volatilidade vez, ele, já moço, está em Buenos Ai- do pacto entre irmãos. No entanto res e sozinho. Melancólico, começa a SELINFRAN a brincadeira causara um estrago: a pensar como sua família e principal- irmã ao saltar, caiu e quebrou um dos mente o seu irmão estariam naque- dentes permanentes: “Essa noite es- le momento em São Paulo, sentados peramos em silêncio a volta da nossa à mesa durante e após a refeição. O irmã [...]”. (FUKS, 2015, p. 27). Desse que o incomodava sempre era o si- episódio, Sebastián lembra o silêncio lêncio que se fizera frequente entre da espera pela volta da irmã do den- eles devido ao afastamento do irmão: tista, dos seus soluços, do semblante severo do pai. O dente da frente da Nem sequer podíamos ouvir sua irmã havia se partido ao meio: “Nun- voz quando ele enfim se rendia ao jantar, seus olhos eram então ca mais ele seria o mesmo” (FUKS, uma triste cortina de pálpebras, 2015, p. 27). mas tão largo era seu recolhi- É importante ressaltar o modo de mento, tão ressonante seu silên- o narrador relatar as memórias, fre- cio, que parecia ocupar o espa- quentemente oscilando entre o “ver” ço inteiro e nos coagia também e o inventar”. Essas figuras remetem a calar. (FUKS, 2015, p. 30, grifos respectivamente aos efeitos de sen- meus). tido de verdade e de ficcionalidade, Outro incômodo para o narrador o que contribui para criar a isotopia era a saída frequente do irmão an- metadiscursiva apreensível no texto. tes da sobremesa, na oportunidade Convém lembrar que na memória- que tinham de conversar quando to- -acontecimento, há um contrato ba- dos estavam reunidos, após a refei- seado nos afetos e nas sensações: o ção, “tempo de reaver em palavras 63 enunciatário é capturado por meio um passado que não se quer distan- de impactos, ou seja, ele se aproxi- te, ocasião para esquadrinhar a vida ma do texto pelo sensível. É o que se em suas muitas minúcias anódinas” observa nessa passagem na qual se (FUKS, 2015, p. 30). nota a fusão entre o estado de alma O narrador, em um processo meta- do irmão e do narrador, enquanto su- discursivo, à medida que traz à tona jeito do enunciado. as memórias do passado, e as difi- Na minha lembrança os olhos do culdades da família em relação ao ir- meu irmão estavam lacrimosos mão adotivo, também vai refletindo, UNIFRAN DA LINGUÍSTICA [...] Ele estava sentado no ban- como observamos, sobre a escritu- co da frente. Se chorava, decerto ra da obra. Para isso, usa a memória continha qualquer soluço [...] O tanto pessoal quanto social. “Isto não caso é que não me olharia, não viraria para trás. Talvez fossem é uma história. Isto é história. Isto os meus, os olhos lacrimosos. é história e, no entanto, quase tudo (FUKS, 2015, p. 14). o que tenho ao meu dispor é a me- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX mória, noções fugazes de dias tão Nesse percurso, o narrador ques- remotos, impressões anteriores à tiona: “Por que não consigo lhe pas- consciência e à linguagem, resquícios sar a palavra, lhe imputar nesta ficção indigentes que eu insisto em malver- qualquer mínima frase?”. Em dúvida,

SELINFRAN sar em palavras.” (FUKS, 2015, p. 23, ele pergunta mais uma vez: “Estarei grifos meus). com este livro tratando de lhe rou- Foi o irmão quem sugeriu ao nar- bar a vida, de lhe roubar a imagem, rador criar o romance e ele, por meio e de lhe roubar também, furtos me- das lembranças, dos acontecimen- nores, o silêncio e a voz?” (FUKS, tos, materializados na escritura do 2015, p. 25). texto, procura aproximar-se de seu Ele não consegue decidir se o seu irmão, entendê-lo melhor e curar fe- romance se constitui como uma his- ridas, cujas cicatrizes parecem ainda tória, e,se ele, com sua escritura, teria se revelar no momento da narração. conseguido criar o efeito de sentido Mas, ao longo da história, o narrador de verdade para o romance. Obser- declara não estar atingindo o seu ob- va-se ainda nessas passagens a iso- jetivo: “Procurei meu irmão no pouco topia figurativa que remete ao tema que escrevi até o momento e não o da criação literária de caráter ficcio- encontrei em parte alguma.” (FUKS, nal: 2015, p. 23). Para o narrador, sujeito [...] irmão que emergisse das pa- do saber, “nenhum livro jamais pode- lavras mesmo que não fosse o ir- rá contemplar ser humano nenhum, mão real, e, no entanto, resisto a jamais constituirá em papel e tinta essa proposta a cada página, fujo sua existência de sangue e de car- [...] Queria tratar do presente, ne.” (FUKS, 2015, p. 23, grifos nos- desta perda sensível de contato, sos). desta distância que surgiu entre nós, e em vez disso me alongo Há situações em que o irmão pare- nos meandros do passado, de 64 ce ser uma incógnita, o que desper- um passado possível onde me ta a paixão do medo no narrador de distancio e me perco cada vez não se revelar competente para criar mais.[...] Queria escrever um livro a obra: “falei do temor de perder meu que falasse de adoção, um livro irmão e sinto que o perco a cada fra- com uma questão central, uma se.” (FUKS, 2015, p. 23). O medo apa- questão premente [...](FUKS, rece como uma preocupação que se 2015, p.41). presentifica no momento da enuncia- Nesta passagem, o narrador si- ção e é um sentimento do qual o nar- mula sentir-se frustrado com a cria- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA rador não consegue se desvencilhar, ção da obra que teria sido falha em pois é na escritura do romance que seu propósito de reconstruir o perfil ele se propõe resgatar a história do do ator irmão com fidelidade, o que irmão, perseguindo nas lembranças se evidencia na passagem: “queria, recuperadas o perfil do ator, desde creio, que o livro fosse para ele, que seu nascimento. em suas páginas falasse o que tan- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX tas vezes calei, que nele se redimis- a memória estabelecidos por Ma- sem tantos dos nossos silêncios. Não riana Luz Pessoa de Barros. A nosso será assim, não foi assim, já consigo ver tanto a memória do acontecido saber” (FUKS, 2015, p. 96). quanto a memória- acontecimento SELINFRAN O tempo que levou para a elabo- estão presentes na obra na medida ração da obra também o incomoda: que as lembranças surgem no campo “Penso no tempo: se desconheço a de presença do narrador que apre- família, se tão pouca noção dela me senta um comportamento difuso, tautológico, diante dos acontecimen- resta, este é um livro velho. Penso no tempo: quantos anos levei para es- tos que ora simula lembrar ora ima- crevê-lo, por quantos meses me iso- ginar. lei, há quanto tempo as histórias não Releio agora a narrativa desse são as mesmas, os conflitos se dis- episódio, desse clímax da nossa solveram?” (FUKS, 2015, p. 133, grifo história, e lamento por um instan- meu). te ter me esquecido de falar das lágrimas: como se contar quanto Após ter concluído o romance, chorávamos enquanto meu ir- ele entrega-o aos seus pais para que mão explodia em verbo pudesse possam fazer considerações sobre alterar o sentido de tudo, ou pu- a obra. Entre questionamentos, crí- desse aumentar sua intensidade. ticas e elogios, sua mãe conclui: “vá Depois me refaço e me vejo a in- em frente, Sebastián, você fez o que dagar por que tanto me interes- sam as lágrimas, por que tanta tinha que fazer, e até é possível que vontade de apelar a esse recur- ” alguém leia nisto um bom romance so fácil da dramaticidade. (FUKS, (FUKS, 2015, p. 137). 2015, p. 126, grifos meus). Ao final, o narrador, tomado pela Desse modo, nossa hipótese é que paixão do medo, entrega o livro para a movimentação metadiscursiva nos 65 o seu destinador, o irmão, pois o pro- orienta para o aumento da inteligibi- pósito de escrevê-lo fora em atenção lidade quando o narrador reflete so- a um velho pedido seu. Nesse mo- bre o ato de escrever. Assim, quando mento, o livro já não interessa ao nar- Sebastián para de escrever – “Releio rador, mas sim o restabelecimento do agora a narrativa” – e reflete sobre a contato com seu irmão que o sancio- narrativa – “lamento ter me esqueci- na positivamente e parecem dissipar do de falar...”, nota-se a manifestação nesse momento a incomunicabilida- da memória do acontecido, relacio- de que existia entre eles. nada ao inteligível. Ele sempre simula LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Considerações finais a desconfiança na palavra, e é jus- tamente essa problematização que o Por meio do referencial teórico faz oscilar entre as duas memórias, da semiótica francesa, procuramos, ou seja, as dimensões do sensível e em nossa pesquisa, analisar como a do inteligível se relacionam no tex- memória é construída no romance A to: quando há numa fusão completa resistência, à luz dos estudos sobre do narrador com o passado vivido, IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX apreende-se a memória-aconteci- dos estados de coisa e do inteligível mento em que o sensível, os estados que se manifestam nas reflexões so- de alma prevalecem, em detrimento bre o processo de escritura da obra. SELINFRAN

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Greice Aparecida Cabral MIRANDA16 Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE SELINFRAN

RESUMO Uma partida de xadrez é um confronto, um diálogo de perguntas e respostas silenciosas, sem neutralidade e carregado de marcas históricas e sociais. A pes- quisa tem como objetivo analisar uma cena do filme Rainha de Katwe, de Mira Nair que constitui o corpus deste trabalho. Como suporte teórico, espera-se investigar como as relações dialógicas e o ato responsável dos sujeitos que se confrontam e refletem, sob a constituição da personagem como sujeito no ato existir-evento e seu posicionamento axiológico, que possibilitam a construção de sentidos e apreensão do mundo. A análise apoia-se na revisão bibliográfica qualitativa. Espera-se com esta análise verificar e compreender como a perso- nagem Phiona se constitui de modo único e irrepetível, permitindo-lhe cons- truir sentidos e compreensão responsiva do mundo que a cerca. PALAVRAS-CHAVE Ato responsável; relações dialógicas; xadrez; Rainha de Katwe. ABSTRACT A chess match is a confrontation, a dialogue of silences, questions and answers, without neutrality which loads stories and social tags. The research looks to analyze the scene of the film Queen of Katwe, by Mira Nair that are part 67 of this work. As theoretical support, you expect to investigate as dialogical rela- tion and the responsible act of the subjects that confront and reflect, under the constitution of the character as subject in the act of existing and in its axiologi- cal position, that allows the constructions of sense and the apprehension of the world. The analysis is based on the qualitative bibliographic review. It is hoped with this analysis to verify and understand how the Phiona character in a rather non-repetitive way, allowing the constructed and responsible understanding of the world around him. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA KEYWORDS Responsible acts; dialogical relations; chess; Queen of Katwe.

16 Apoio: PROSUP-CAPES (bolsa) IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução em engenharia, mas que, sem exercer a profissão, dá aulas em um projeto Uma combinação de arte, ciência e social conhecido como Pioneiros. A esporte, assim se dá umas das várias protagonista descobre, por meio do

SELINFRAN definições do jogo de xadrez, conhe- xadrez, um objetivo de vida e um exí- cido como um jogo de estratégia e mio talento. tática no qual jogadores se confron- tam entre dois reinos, movendo trinta A partir desse momento, Phiona e duas peças em um tabuleiro de ses- fará parte pela primeira vez com o senta e quatro casas, alternadas em universo enxadrístico, trilhando um cores claras e escuras. Existem várias caminho de descobertas e escolhas lendas sobre sua origem e atualmen- em que vão se formando os diálogos te é designado por Xadrez Ocidental sociais; é a partir daí que Phiona co- ou Xadrez Internacional, enxadrista é nhece Robert, o Treinador, responsá- a designação de um jogador. O filme, vel por fazer com que ela entre em inspirado na obra Rainha de Katwe, contato com o jogo de xadrez e se de Tim Crothers, é uma história verí- torne, mais tarde, a Rainha de Ka- dica, a partir da qual surgiu uma re- twe. As referências sobre o jogo de leitura como filme, dirigido por Mira xadrez são constantes nas relações Nair lançado em 2016, e que compõe dialógicas que vão sendo construí- o corpus desta pesquisa. A reprodu- das ao longo do filme, assim como o ção cinematográfica nos traz de for- ato responsável em cada partida que ma atual e original: a história de Phio- Phiona se depara, confrontando posi- na Mutesi, uma garota Ugandense ções axiológicas. Durante o decorrer que através do xadrez descobriu um do filme, Phiona conviverá dialogica- propósito de vida. mente com seu treinador e com sua mãe, personagens que ocupam luga- O filme, como gênero fílmico, traz res diferentes na sua vivência, um de uma possível abordagem de como o 68 superação e o outro de conformida- jogo de xadrez, um diálogo silencioso de, que serão essenciais em uma das de perguntas e respostas a cada jo- cenas escolhidas. Na cena, Phiona gada, estabelece relações dialógicas enfrentará seu primeiro oponente em e de responsividade sobre o lugar um campeonato escolar, fato que ini- que Phiona ocuparia na sociedade ciará a construção enquanto sujeito social. Pretendemos verificar quais os Phiona é uma garota africana, mo- efeitos de sentidos produzidos por radora da favela de Katwe em Ugan-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Phiona e apreendidos por ela, susci- da que vive com sua mãe viúva que, tados na construção de suas estra- sem a presença masculina, faz tudo tégias utilizadas, quais discursos e o que está ao seu alcance para cui- quais respostas se entrecruzam nos dar da família. Phiona terá seu pri- enunciados produzidos, bem como meiro contato com o xadrez através quais posicionamentos axiológicos do seu irmão Brian que participa do eles carregam para que ela pudesse projeto liderado por Robert, formado IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX através de suas peças se aproxima- várias pessoas do discurso, mas a rem do seu objetivo em dar o xeque- enunciação que ocorre carregada -mate. Nesse sentido, as posições de juízos de valor, emoções, paixões, axiológicas serão um dos pilares da dirigida a um enunciatário, diferen-

justificativa da pesquisa ora em an- te das unidades da língua que são SELINFRAN damento, em meio às concepções do neutras e seladas entre si. Assim, “ as filósofo russo Mikhail Bakhtin. unidades da língua não são dirigidas O objetivo principal deste trabalho, a ninguém, enquanto os enunciados amparado nos estudos sobre o dialo- têm um destinatário” (FIORIN, 2016, gismo de Mikhail Bakhtin, é analisar p. 26). as relações dialógicas e o ato respon- Assim, através do conceito de dia- sável. Isso se dará por meio de análi- logismo, Bakhtin conceitua o diálogo ses do diálogo estabelecido entre a como uma manifestação a partir da personagem do filme Rainha de Ka- interação entre sujeitos sociais, que twe, Phiona e Pritchard, como um su- ultrapassa a presença de interlocuto- jeito capaz de concordar, discordar, res, que é prenhe de respostas e que completar e aplicar os elementos lin- nos faz responsáveis enquanto assu- guísticos mobilizando suas experiên- mimos essa linguagem. Essa compre- cias históricas e sociais ativados para ensão é constituída por relações de emitir uma resposta a uma determi- sentidos, se caracterizando como re- nada jogada, a ser complementada lações dialógicas. por meio do diálogo. Faraco descreve (2016, p. 66): 1 Fundamentação Teórica Assim, quaisquer enunciados, se O corpus desta pesquisa é postos lado a lado no plano do constituído pela simples e silencio- sentido, “acabam por estabele- sa tensão de um jogo, suas relações cer uma relação dialógica” [...] Mesmo enunciados separados dialógicas e o ato responsável. Para o um do outro no tempo e no es- 69 filósofo russo e seu Círculo, a lingua- paço e que nada sabem um do gem é dialógica por natureza e, assim, outro, se confrontados no plano o dialogismo é a condição do sentido do sentido, revelarão relações do discurso, o princípio constitutivo dialógicas [...]. da linguagem. O diálogo, através da Bakhtin observa que as relações interação verbal, é a forma clássica dialógicas não são capazes de serem de comunicação, é a manifestação da reduzidas às relações de ordenações palavra, do discurso do outro que se lógicas, linguísticas, naturais ou psi- encontra entre cada enunciado, em cológicas. Dessa forma, o filósofo as- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA cada réplica, e não o diálogo face a segura que se não há palavra, não há face em sua forma composicional. linguagem, sendo assim, não haverá Nesse sentido, para Bakhtin, o im- relação dialógica. “As relações dia- portante não é o diálogo comum, lógicas pressupõem linguagem, no entendido em uma conversa entre entanto elas não existem no sistema IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX da língua” (BAKHTIN, 2017, p. 323). construir estratégias e sentido para Compreendemos assim, que as rela- ganhar a partida. ções dialógicas são extralinguísticas, Nos estudos sobre o ato responsá- sem separação do campo discursivo, vel no universo bakhtiniano, a palavra haja visto, que a linguagem acontece

SELINFRAN está sempre direcionada a alguém, na comunicação dialógica dos seus dialogicamente, e quando entramos usuários, e é nessa comunicação dia- em contato com esse enunciado es- lógica que é constituída originalmen- tamos aptos a emitir uma resposta, te o campo da vida da linguagem. nos tornando assim responsáveis por Essas relações dialógicas são re- essa resposta. lações de valor (semântica), entre Bakhtin, em sua obra Para uma os inúmeros enunciados na comu- filosofia do ato responsável(1993), nicação discursiva. Seja qual forem apresenta-nos dois mundos que se os enunciados, equiparados em um confrontam, uma separação entre o plano do sentido, terminam em re- mundo da cultura e o mundo da vida, lações dialógicas: “Dois enunciados, reciprocamente impenetráveis, sen- quaisquer que sejam, se confronta- do um definido pela abstração, e o dos em um plano de sentido (não outro pela realidade única e irrepetí- como objetos e não como exemplos vel. Nossa existência única não pode linguísticos), acabam em relação dia- ser realizada por outra pessoa e, con- lógica” (BAKHTIN, 2017, p. 323). Mas forme Bakhtin: se o enunciado ocorrer propositada- Aqui está o ponto de origem da mente em análise linguística, sua ca- ação responsável e de todas as racterística dialógica é reexaminada categorias do dever concreto, assim, tomada no sistema da língua e único e necessário. [...]. Eu tam- não no diálogo da comunicação dis- bém participo no Ser de uma ma- cursiva. neira única e irreptível: eu ocupo 70 um lugar no Ser único e irrepetí- Neste sentido, refletimos como se vel, um lugar que não pode ser dá o conceito das relações dialógicas tomado por ninguém mais e que e através do pensamento bakhtinia- é impenetrável a qualquer outra no a vida é consequentemente dialó- pessoa. No dado ponto único onde eu agora estou, ninguém gica, e ser é conviver, e é justamente jamais esteve no tempo único e nessa troca que acontece o diálogo. no espaço único do Ser único. Para contextualizar a análise, é ne- E é em torno deste ponto único cessário ressaltar que foi feito um que todo o Ser único se dispõe

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA recorte no corpus da pesquisa rea- de um modo único e irreptível. Aquilo que pode ser feito por lizando uma análise apenas de uma mim não pode nunca ser feito cena de confronto, em uma arena por ninguém mais. A unicidade em que o tabuleiro propiciará a Phio- ou singularidade do ser presen- na conhecer as questões sociais, as te é forçadamente obrigatória tensões entre valores e através disso (BAKHTIN, 1993, p. 58). IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Assim, o fato de o meu não-álibi gico, no qual o sujeito responde por no ser permanecer único e concreta- seus atos no mundo, no qual são res- mente no dever do ato realizado res- ponsáveis por eles. O ato responsável ponsavelmente, um evento que não corresponde ao ato ético, envolven- tenho conhecimento mas reconheço do o conteúdo do ato, seu processo SELINFRAN unicamente e singular. valorado pelo sujeito em respeito ao Na perspectiva bakhtiniana toda seu próprio ato. ação humana é pertinente de uma Quando dizemos algo, nos diri- resposta. Ao atuar o sujeito respon- gimos a alguém, esse alguém (ser) de primeiramente porque emite uma interfere no próprio jeito de dizer. resposta, e em seguida por assumir Ora, dizer é dizer-se. O sujeito é um uma responsabilidade e uma posição. agente, que organiza os discursos, A responsividade é concernente à responsável por seus atos e responsi- linguagem, por ser essencial à ação vo ao outro, assim o ato responsável humana, que é concernentemen- se dá através do centro de valores: te responsiva, na qual o sujeito se o do eu e o do outro, na interação e constitui como respostas à ação de nas relações dialógicas, consideran- outrem, concretamente, assumindo do sempre a singularidade, humana, uma posição. única e insubstituível conservando a alteridade. Neste sentido Sobral (2016) nos explica sobre a Responsabilidade: Sendo assim, compreendemos a nossa responsabilidade no ato even- “Responsibilidade” requer expli- to, nossa participação única e irrepe- cação. Trata-se de um neologis- tível, nosso lugar no tempo e no es- mo em língua portuguesa que paço. Aquilo que pode ser feito por proponho com o objetivo de tra- duzir o termo russo, não neológi- mim, não poderá ser feito por nin- guém mais. co, otvetstvennost’, que une res- 71 ponsabilidade, o responder pelos Em se tratando de uma apresenta- próprios atos, a responsividade, ção parcial fazemos, nesse contexto, o responder a alguém ou a algu- uma breve análise do que será discu- ma coisa. O objetivo é designar tido em nossa pesquisa, cujo emba- por meio de uma só palavra tan- to o aspecto responsivo como o samento teórico será mais ampliado, da assunção de responsabilidade em função do conteúdo ora analisa- do agente pelo seu ato, um res- do. ponder responsável que envolve 2. Rainha de Katwe: o filme: pri-

necessariamente um compro- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA misso ético do agente (SOBRAL, meiras análises 2016, p. 20). Rainha de Katwe é uma reprodu- Responsabilidade e responsivida- ção cinematográfica lançada pelos de estão associadas ao agir ético do estúdios Disney no ano de 2016 e di- sujeito. Bakhtin afirma que todo dis- rigida por Mira Nair. Como dito pre- curso é responsável, porque é dialó- viamente, o filme enquanto gênero IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX fílmico traz consigo o lugar da mu- universo enxadrístico, no qual nem lher em uma sociedade ugandense fazia a mínima ideia do que era e onde impera a pobreza e a violência. como se jogava xadrez. Assim ela co- Para isso, abordaremos as relações meça a frequentar o projeto e inician- do uma longa jornada, estabelecen- SELINFRAN dialógicas e o ato responsável de duas posições axiológicas diferentes do relações de amizade com outros na cena escolhida de rainha de Ka- participantes e interagindo com eles twe: Phiona e Pritchard, dois jovens através do xadrez. Com o decorrer africanos, com criações diferentes, do filme, Phiona ainda conviverá com mas que vivenciam um mesmo cená- sua situação real, fatos que a levarão rio político de guerra, violência, fome a questionar sua responsabilidade no e miséria. Ao entrar em contato com ato existir-evento. os diálogos sociais durante a partida Conforme o tempo vai passando, os oponentes, Phiona e Pritchard se Phiona vai se aperfeiçoando e com posicionarão axiologicamente peran- os dias de treinos no projeto vai com- te a realidade negativa e cruel que os preendendo mais a complexidade do cerca. jogo ao ponto de derrotar todos os Phiona é uma garota africana, anal- participantes do projeto. Isso cha- fabeta, moradora da favela de Katwe, ma a atenção do seu treinador que na cidade de Kampala em Uganda, começa a perceber que Phiona tem que vive com seus três irmãos (Night, um raciocínio diferenciado para jo- Brian e Richard) e sua mãe Harriet, gar xadrez. Questionado pelos alu- viúva que, sem a presença masculina, nos de quando seria o momento de faz tudo o que está ao seu alcance enfrentarem outros participantes da para cuidar da família. Phiona e Brian cidade, Robert direciona sua atenção vendem milho pelas ruas para aju- a esse pedido e procura a Federação dar nas despesas precárias de casa. de xadrez local, para inscrever seus 72 Phiona é uma criança que com toda “pioneiros” no torneio escolar Padre dificuldade exibe curiosidade, ques- Grimes, no King’s College em Budo. tionamentos e coragem. Apesar de muitas recusas e dificulda- des, Robert consegue a participação Em um dia comum de venda, de- de seus alunos como convidados, já pois de seguir seu irmão, Phiona che- que os pioneiros não frequentam a ga até um barracão no qual se en- escola. contram crianças de várias idades, meninos e meninas que participam É chegado o dia do torneio, todos do projeto liderado por Robert Ka- animados até chegarem ao campus LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA tende, formado em engenharia, mas do King’s College e se depararem que, sem exercer a profissão, dá au- com uma estrutura jamais imagina- las em um projeto social conhecido da por eles. Desse modo, o posicio- como Pioneiros. namento axiológico dos pioneiros se instala em uma realidade fora da A partir desse momento, Phiona vivencia de cada um, porém Robert fará parte pela primeira vez com o IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX como sujeito dialógico, interage com À medida que os participantes vão seus alunos retomando esses valores adentrando o recinto e procurando axiológicos para que cada um se po- seus lugares, a câmera vai se elevan- sicionasse diante de sua posição úni- do, mostrando ao fundo as mesas ca no evento.

com toalhas vermelhas, os tabuleiros SELINFRAN Na preterida cena, Phiona enfren- devidamente postados com peças de tará seu oponente Pritchard em que alta qualidade, o relógio marcador de iniciará a construção do seu ato no tempo da partida e o bloco de ano- existir-evento, sua responsabilidade, tações das jogadas. Todas as mesas seu posicionamento axiológico. uniformemente organizadas em filei- ras, cada qual com seu número res- A cena em questão revela, no pla- pectivo, as cadeiras fazem conjunto no visual, a chegada dos competi- com as mesas, todas de madeira, o dores ao salão no qual será realiza- que nos remete uma coleção antiga e do o torneio Father Grimes Schools bem conservada para a importância Championship. Esse local concretiza do torneio. não só uma ancoragem com rique- zas de detalhes, mas também ancora A próxima imagem da cena nos os jogadores em um salão nobre, de mostra a mesa número um (que ge- estrutura arquitetônica antiga, com ralmente é cedida aos jogadores de móveis de madeiras rústicas e bem rating1 mais alto no xadrez), com um arquitetadas, as bandeiras ao fundo competidor em pé, apoiado na cadei- suspensas nos remetem o valor e a ra à espera de seu adversário, ao fun- importância da instituição, juntamen- do da imagem o que podemos per- te com o acervo dos quadros e mu- ceber ser um tipo de pódio coberto rais expostos na parede de toda as com pano grená, repleto de meda- turmas e corpo docente, que partici- lhas e troféus. param da história desse colégio, as- Esse competidor em pé, à espera sim como os banners de boas-vindas, 73 de seu oponente é Pritchard, o opo- de apoio aos participantes na entra- nente de Phiona, devidamente unifor- da. mizado, nos remete através do bra- Os competidores, por serem de são em seu agasalho ser estudante várias instituições, se apresentam de- do King’s College e por estar na mesa vidamente uniformizados, cada qual número um, assim como Phiona (atu- com suas cores e símbolos escolares, al campeã dos pioneiros) é também devidamente identificados por cra- um competidor forte. chás. A imagem é bem focada, junta- mente com a iluminação e fotografia, Phiona, ao adentrar o recinto e vi- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA com cores vibrantes em tons laranjas, sualizar seu oponente, Pritchard, em que coloca em relevo o tom medieval sua primeira fala sugere ao seu trei- do salão. O texto musical que abre nador Robert, que não conseguirá jo- a cena acompanha a animosidade gar, porque seu competidor é muito em que se movem os competidores. forte. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Phiona: Treinador eu não consi- Phiona encara Pritchard, sem dizer go. Ele é o melhor. nenhuma palavra vai dialogando com Robert: Algum de nós tem que suas peças respondendo às provoca- jogar neste tabuleiro. Porque não ções apenas no tabuleiro. Assim ela

SELINFRAN você? vai criando um ponto de origem de suas ações responsáveis e aos pou- Após esse diálogo com seu trei- cos vai entrando em contato com sua nador Robert, Phiona apresenta um participação única e irrepetível. enunciado carregado de sua insigni- ficância, de poder ser e estar ali no Por meio das falas proferidas por torneio, mas Robert responde a esse Pritchard sobre os bons movimentos enunciado, para que ela se assuma e boas jogadas de Phiona é possível enquanto sujeito social, mostrando evidenciar como os posicionamen- tos sociais e culturais do masculino o valor de sua participação. A partir se sobrepõem sobre Phiona naquele disso então, o que se torna possível instante. observar é que Phiona está a cami- nho de seu primeiro jogo oficial. No decorrer da cena, no momen- to em que Robert assiste ao jogo de Ao avistar sua oponente, Pritchard sua aluna, o presidente da federação demonstra certa surpresa, mas as- que também observa, tece a seguinte sim que os jogadores se observam, fala: se acomodam em seus lugares. Pos- Coordenador do evento: Boa es- postamente, o presidente da federa- tratégia, colocando sua jogadora ção faz a abertura e dá o sinal para mais fraca na mesa do campeão. o início do torneio. Em seguida, Pri- tchard e Phiona se cumprimentam e Robert ouve atentamente a fala a tensão logo se inicia com um gesto e apenas com um olhar, responde a esse enunciado. Percebe-se na fala do inesperado de Pritchard ao limpar a coordenador um descrédito quanto a 74 mão depois do cumprimento. Phiona estratégia de Robert e seus pioneiros. observa o fato e continua a esperar a Na continuação da cena, os colegas jogada de abertura. O que é possível de Pritchard também se interessam a de se observar a partir desse trecho é assistir à partida e comentam: que começa a se instaurar aí concei- tos sociais se formando entre esses Amigos de Pritchard: Ela tem dois sujeitos. dois peões a mais que Pritchard! Pritchard! Pritchard! Pritchard! O jogo se inicia com uma abertura Phiona segue observando o jogo, seguida de lances equilibrados, e no LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA seu oponente e seus amigos, em um decorrer das jogadas, Pritchard en- posicionamento silencioso, sem al- cara Phiona e seus movimentos bem ternativa de qualquer resposta verbal jogados e pronuncia a seguinte fala: mas uma atitude responsiva apenas Pritchard: Tem um olhar afiado, com suas peças, emitindo com segu- amiguinha. Acho que tenho uma rança seu posicionamento diante o boa briga em minhas mãos. confronto. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX No próximo momento presente da contato com os enunciados, nós nos cena do filme, Phiona faz uma jogada colocamos aptos a dar uma resposta que chama a atenção de Pritchard, e essa resposta não precisa ser ime- que responde a jogada e diz a se- diata, consensual, de acordo, conflito guinte fala: ou discórdia. SELINFRAN Pritchard: Nada de ataques sor- Após essa jogada, Pritchard sente, rateiros, aqui não é o gueto! através de seus gestos, que a perda A fala de Pritchard é constituída, da dama foi muito inesperada. Desse neste momento de uma linguagem modo, o diálogo enxadrístico em que carregada cultural e socialmente po- Phiona se limitou a permanecer lhe litizada na Uganda, já que o país vem deu condições de atuar responsavel- sofrendo várias tomadas de poder, mente às questões que Pritchard foi entre líderes militares que governam enunciando desde o início da partida. com violência, com falta total de co- Essa jogada que atraiu a atenção dos nhecimentos econômicos, levando observadores em questão, inclusive a do presidente da federação e da co- Uganda a miséria, criando várias “tri- ordenadora do evento, que reconhe- bos” de resistência (que continuam ceram a vantagem que Phiona levava uma guerra civil, sorrateiros tentando no confronto em relação ao seu opo- a libertação do país de acordo com nente. seus métodos que acabam não se diferenciando do governo presente), A partir do dizer de Phiona ao seu favelados encontrados em guetos, oponente, é possível demonstrar mercadores que por alguma posição como as reflexões bakhtinianas são em favor do governo foi beneficia- capazes de explicar os fenômenos do e por fim, as famílias tradicionais de constituição axiológica do sujeito que se mantém apoiando sempre o por meio da linguagem das relações governo atual. Sendo assim Pritchard dialógicas. Uma vez que todo discur- relaciona a jogada de Phiona, como so proferido nas jogadas feitas por 75 uma força resistente, tentando virar o Phiona estão baseados nos discursos jogo. que ela ouviu de sua mãe e de seu treinador, e que consequentemente Phiona, pela primeira vez responde configuram nesse enunciado os po- a Pritchard não só verbalmente como sicionamentos axiológicos e de res- em uma jogada espetacular. Phio- ponsabilidade. na faz uma jogada com seu cavalo e captura a dama de Pritchard, (uma Em seguida, após uma jogada de das peças mais importantes do jogo), Pritchard demonstrando nervosis- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA é nesse momento, nessa tensão que mo, ouve-se uma narrativa da co- Phiona se assume como sujeito dialó- ordenadora do evento ao fundo em gico e responsável no evento. que Phiona faz sua última jogada: “Xeque-mate!”. Assim, Phiona vence Phiona: Não preciso ser sorrateira. a partida e conclui sua participação Através do princípio constitutivo impenetrável e irreptível nos dizeres de Bakhtin, quando nós entramos em da coordenadora do evento: IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Coordenadora: Ela te cerca, até Considerações finais não ter para onde ir. E depois te Nesta pesquisa, nosso objetivo foi espreme como uma píton, tama- mostrar, por meio do xadrez, um diá- nha agressividade em uma garo- logo de perguntas e respostas silen-

SELINFRAN ta é um belo tesouro. Como um membro do corpo administra- ciosas, da palavra que está sempre tivo da Federação de xadrez de direcionada a alguém, dialogicamen- Uganda, é uma honra presentear te orientada ao exterior, ao outro; da com uma medalha à garota, que palavra que quer ser ouvida e enten- joga com tremenda força. A me- dida, sobretudo, respondida. dalhista de ouro do BUDO des- Por meio da cena do filme anali- te ano do time infantil de Katwe, sada, foi possível evidenciar, através Phiona Mutesi. da teoria bakhtiniana, o personagem Podemos analisar a fala da coor- Phiona se firmar axiologicamente pe- denadora, como uma fala suscin- rante os valores impostos e construir tamente política e social em que a por meio dessas relações dialógicas, mesma compara Phiona a uma “co- o seu próprio ato responsável. O con- bra píton” (conhecida pela sua agres- fronto com Pritchard e os diálogos sividade, calmaria para atacar uma instaurados influenciaram discursiva presa no momento certo, um animal e axiologicamente Phiona a tomar peçonhento que muitas vezes cau- posições no contexto social, a partir sa medo e aversão), uma qualidade dos valores em que acreditava. de certa forma observada por ela, Sendo assim, a partir do momento em uma pessoa do gênero feminino constituído por Phiona na realização e pobre, isso é raro na “sociedade Ugandense” e nesse contexto a co- de pensamentos, sentimentos, pala- ordenadora encerra dizendo ser uma vras, ações e jogadas, se forma em honra, contemplar Phiona por todo uma atitude responsiva que ela assu- 76 seu posicionamento enxadrístico, so- me num plano como um todo, con- cial e cultural. textualizando-se na vida real, unitá- ria e única. Dessa forma, o que se pode per- ceber é que toda a relação dialógica Importante salientar que, como a entre Pritchard e Phiona a encoraja pesquisa está em construção, há a em seguir adiante, mesmo com toda hipótese de se encontrar, posterior- adversidade exterior e interior. Dessa mente, a verificação de que a abor- forma, o Xadrez, assim como seu trei- dagem bakhtiniana fornecerá aporte nador, lhe apresenta o caminho para para a compreensão da cena estu- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA seguir em frente, pois oportunizará a dada no percurso dessa análise, bem Phiona se sentir segura enquanto su- como contribuirá para análises futu- jeito social. ras de outros aspectos enxadrísticos IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

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Pâmela Tavares de CARVALHO

SELINFRAN Luciana Carmona Garcia MANZANO

RESUMO De uma comunhão entre discurso, corpo e moda, visto este último como acontecimento discursivo, objetiva-se, com a pesquisa, observar o funciona- mento dos discursos da moda, assim como buscar os espaços de (in)visibili- dade dos corpos ditos “não-padrão” no interior do dispositivo da moda. Para tanto, as práticas de interpretação embasadas no interior do arcabouço teóri- co da Análise do Discurso de orientação francesa, a partir dos postulados de Michel Pêcheux e Michel Foucault, nortearão os caminhos desta pesquisa. Do imenso arquivo sobre a moda, analisar-se-á um corpus constituído por discur- sos extraídos de revista populares de moda nas quais se pode observar um ordenamento do dizer que produz, estabiliza e faz circular um feixe de senti- dos, materializando dizeres sustentados pela memória discursiva, apagando ou deixando implícitos outros. PALAVRAS-CHAVE Discurso; Moda; Corpo ABSTRACT From a communion between speech, body and fashion, considering the latter as a discursive event , it is aimed, with the research, to observe the workings of 78 fashion speeches, as well as to seek the spaces of (in)visibility of the so - called “ non-standard “ bodies inside the fashion device . To this end, the practices of interpretation based on the theoretical framework of French Discourse Analysis , based on the postulates of Michel Pêcheux and Michel Foucault, will guide the paths of this research . From the immense archive on fashion, we will analyze a corpus consisting of discourses extracted from popular fashion magazines in which one can observe an order of saying that produces, stabilizes and circu- lates a bundle of meanings, materializing statements sustained by discursive memory , deleting or leaving implicit others .

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA KEYWORDS Speech; Fashion; Body. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução diferentes e novas técnicas que são Tal qual um plano das mais diver- postas sobre eles, pois o corpo ves- sas manifestações midiáticas con- tido será sempre um corpo vigiado. E aqui, por entender, como Foucault

temporâneas, a moda apresenta-se SELINFRAN como um sistema que abarca múl- (2008), o corpo como lugar no qual tiplas facetas de usos e significados se inscrevem as leis sociais, por meio culturais. Em uma sociedade em que de práticas e discursos, objetiva-se a multiplicidade de produções tex- com a pesquisa observar o funciona- tuais e imagéticas circula por entre mento dos discursos da moda, con- capas e páginas induzindo formas e siderando-a como um dispositivo de normas sociais, em que as ideologias poder, e buscar os espaços de (in)vi- são vistas não mais contidas no ver- sibilidade dos corpos ditos “não-pa- bo, mas também nas imagens, todo drão”. discurso produzido tem seu designo, No tocante aos objetivos da pes- remarca lutas, embates e relações quisa, a fim de estabelecer uma comu- de resistência a dados exercícios de nhão entre discurso, corpo e moda, poder nas práticas sociais. Compre- utilizar-se-á, no batimento constante ender, pois, o funcionamento do dis- entre descrever e interpretar, as fer- curso na sociedade é considerável ramentas constitutivas do arcabou- para lançar o olhar sobre o corpo em sua dimensão histórica que, por sua ço teórico da Análise de Discurso vez, é constituinte e constituído por de orientação francesa, para que, a discursos que demarcam, a exemplo, partir dos postulados de Michel Pê- padrões estéticos, “modos de ho- cheux e Michel Foucault, possamos mem e modas de mulher”17 . compreender o funcionamento dos discursos que buscam caracterizar, Falar de moda é, portanto, mer- esquadrinhar e nomear o corpo fe- gulhar nas tramas de um dispositivo minino em um processo de objetiva- 79 que, por determinadas formas de ser ção/subjetivação forjado pelo regime e de se comportar pautadas na aqui- de poder/saber que ampara os dis- sição de saberes específicos, ancora- cursos da moda, evidenciando seu das a discursos de especialistas que dão forma ao universo fashion, con- aspecto histórico-social por meio de tribuem para a construção de subje- enunciados materializados em tex- tividades e, sobretudo, estabelecem tos e imagens extraídos de revistas o que fazer, o que dizer e certamen- populares de moda.

te o que e como vestir, constituindo Logo, diante das vertiginosas UNIFRAN DA LINGUÍSTICA “verdadeiros dispositivos identitá- transformações em curso na socie- rios” (GREGOLIN, 2007, p. 161). dade pós-moderna, acredita-se que Tecidos esses incrementos, não é o estudo possa contribuir no deslocar possível pensarmos em corpos livres, de sentidos já cristalizados, suscitan- contudo é necessário observar as do debates e reflexões de relevância 17 Título da obra escrita por Gilberto Freyre, pu- em desconstruir estereótipos acerca blicada pela Editora Global no ano de 2009. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX do corpo da/na moda, tecendo no- sequentemente a subjetivação, que vos caminhos para que profissionais rege a forma de ser, de comportar e e estudantes construam uma visão de agir do sujeito. crítica, um espaço de ruptura aberto Do exposto, a priori, pode-se, SELINFRAN a possibilidades de interpretar e, por então, destacar a centralidade que que não, aceitar a multiplicidade cor- o conceito, formulado pelo filósofo pórea nesse deslizante terreno esté- francês, dá à produção da tríade po- tico. Afinal, há de se questionar: “que der – saber – sujeito no percurso da corpo me pertence”? Indo um pouco arquegenealogia, o que correspon- mais além, talvez possa-se partir do de a dizer que o pertencimento ao próprio entendimento de Michel Fou- dispositivo é a condição da ação e a cault (2010, p.283), segundo o qual possibilidade de deslocamento des- “[...] o objetivo hoje em dia não seja te solo sobre o qual nos produzimos descobrir o que somos, mas recusar e que é a possibilidade de qualquer o que somos”. produção de si. 1. Notas sobre dispositivo Neste cenário, o vestir-se à Dispositivos disciplinares, de moda é, assim, um ato pautado na poder, de saber, de sexualidade. O aquisição de saberes específicos que termo “dispositivo” aparece na obra proporcionarão ao indivíduo criar de Michel Foucault na década de 1970 em/para si mesmo simulacros de e designa as técnicas, estratégias e identidades por meio da sua exterio- formas de assujeitamento operadas ridade, de sua aparência, para que, pelas relações de poder, nas quais com esse passaporte, possa circular o filósofo “insiste na importância de socialmente, uma vez que, nas pa- se ocupar não do ‘edifício jurídico da lavra de Lipovetsky (2009, p. 43), a soberania dos aparelhos de estado, moda é o “primeiro grande disposi- das ideologias que o acompanham’, tivo a produzir social e regularmente 80 mas dos mecanismos de dominação: a personalidade aparente, estetizou é essa escolha metodológica que en- e individualizou a vaidade humana, gendra a utilização da noção de ‘dis- conseguiu fazer do superficial um positivos’” (REVEL, 2005, p. 39, gri- instrumento de salvação, uma finali- fos do autor). dade da existência”. Conceito operacional, o dispo- 2. Tomando a medida: saber – po- sitivo representa-se por uma rede de der – sujeito elementos heterogêneos, orienta es- No que diz respeito ao poder,

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA tratégias distintas, em outros termos, Foucault rompe com as concepções abarca as múltiplas relações de po- clássicas do termo, concebe-o não der e as dimensões de seu exercício, como algo localizado e observado permitindo compreender os diversos em uma instituição determinada ou domínios da realidade social. O exer- Estado e sim do ‘governo’ dos outros, cício do poder, portanto, produz in- no qual seu sentido está diretamente definidamente a objetivação e con- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX ligado à forma de conduzir os indi- Dessa forma, ao analisar o lugar da víduos de uma sociedade, pois seu formação dos saberes, a reflexão fou- exercício é agir sobre a probabilida- caultiana opera uma abordagem de de de ação dos sujeitos que, sejam um poder produtor de verdades que eles individuais ou coletivos, se distri- ordena a sociedade. Sob essa expla- SELINFRAN buem em um espaço onde possibili- nação, tomando como problemática dades de condutas, reações e modos desta escrita a moda, o ato de vestir, de comportamento podem se reali- assim como outros elementos cultu- zar. Trata-se de ler o poder não como rais, são habilidades apreendidas, ou algo concentrado ou distribuído, mas seja, é da ordem do saber, posto que como exercício de um sobre os ou- trata-se de um processo pelo qual o tros que concretiza-se nas ditas so- sujeito se modifica/é modificado -du ciedades ‘de controle’, marcadas pe- rante a atividade de conhecer. Vestir- los limites da modernidade, em que -se, então, é uma prática que requer há uma máxima da normalização e técnicas e, por isso, envolve normas disciplinaridade por meio dos meca- culturais e expectativas em relação nismos de comando distribuídos pe- ao corpo (CASTRO, 2007), poden- los corpos e cérebros dos indivíduos. do, neste sentido, ser entendido, para Com o estudo acerca do poder, além de uma técnica corporal, como Foucault, então, apresenta um instru- um saber que traceja, que situa e que mento de análise capaz de explicar determina formas de existência cole- a produção dos saberes, como pe- tivas e/ou individuais. ças nas relações que constituem os Dada a importância da noção de dispositivos, estabelecendo uma li- dispositivo para a obra de Michel gação profunda e fundamental entre Foucault e suas eventuais contribui- poder e saber. Não se trata, pois, de ções para a Análise do Discurso, fa- uma analítica geral do poder, mas do z-se necessário observar que da re- poder como uma prática social cons- 81 lação entre saber e poder emergem tituída historicamente, no qual pode- -se observar a produção de saberes. subjetividades, ou mesmo a figura denominada sujeito, que constitui-se Nessa perspectiva, não devemos a partir de condições socio-ideológi- considerar isoladamente o saber e cas que o transpassam por meio do o poder, uma vez que o exercício do discurso. Este como canal e produtor poder dá forma a instrumentos efe- do poder, determina quais saberes tivos do saber tais como “métodos devem, ou não, ser tomados como de observação, técnicas de regis- verdade. UNIFRAN DA LINGUÍSTICA tros, procedimentos de investigação e de pesquisa”, o que significa dizer Alicerçado nos pressupostos até que os mecanismos de poder não se aqui apresentados, Foucault estabe- exercem “sem a formação, a organi- lece a noção de um sujeito obedien- zação, sem por em circulação um sa- te, visto como uma realidade fabrica- ber, ou melhor, aparelhos de saber”, da, que existe em muitas e diferentes como delineia Foucault (1999, p.40). modalizações, que é produzido e sus- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX tentado por um poder pouco notado e de difícil denúncia, ou seja, por um poder que circula por meio de peque- nas técnicas tramadas em uma rede

SELINFRAN de instituições. Desta forma, pensan- do o sujeito como construto do dis- positivo tem-se, então, um campo aberto aos processos de objetivação e, consequentemente, de subjetiva- ção, marcados pelo poder/saber na constituição dos sujeitos. Posto que o modo de objetivação não é o mes- mo de acordo com o tipo de saber de que se trata (FOUCAULT, 2010), cabe, aqui, investigar de que modo esses processos se dão no interior do discurso relativo ao campo da moda, uma vez que é de sua natureza a im- posição e procedimentos relativos às formas identitárias dos sujeitos. Figura 1: Moda Moldes (abril de 2016) Fonte: Arquivo Pessoal 3. Riscando o molde: marcação de um corpo possível Do jogo entre elementos verbais e imagéticos, Especial plus size, anun- No movimento de descrição e in- cia a chamada da revista, no espaço terpretação da materialidade discur- de sua capa. Frente à perspectiva siva, construídas dentro das relações foucaultiana de discurso, poderíamos de saber e poder que legitimam os questionar porque esse enunciado e discursos da moda e constroem iden- 82 não outro em seu lugar? Segundo tidades sobre o sujeito mulher gorda, Fernandes (2012, p.13), “as escolhas tomar-se-á como foco, mediante a re- lexicais e seu uso revelam a presença corrência e singularidade, a capa pu- de diferentes discursos que, por sua blicada na revista Moda Moldes, um vez, expressam a posição de sujeitos veículo de comunicação notadamen- acerca de um mesmo tema”. Destar- te conhecido por voltar-se a assuntos te, ao observamos a capa de forma referentes ao universo feminino, a fim panorâmica, da edição em análise, de observar os espaços autorizados veiculada nacionalmente no ano de à circulação de corpos (im)possíveis

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA 2016 e, também, comercializada du- na moda, objetivando analisar, a par- rante o ano de 2018, a edição marca- tir de sua estrutura material verbo- da pelo enunciado “ESPECIAL PLUS -visual, o funcionamento dos discur- sos que configuram o corpo da/para SIZE”, em forma e lugar de destaque moda, por meio de enunciados que junto ao nome da revista, Moda Mol- circulam/circularam na capa da revis- des, um signo linguístico em estilo ta abaixo ilustrada. vertical cujas iniciais encontram-se IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX em linhas maiúsculas no centro supe- rem o enunciado” (FOUCAULT, 1987, rior da capa, revela um outro tipo de p.107). Gordo, gordura, corpulência, público que não aquele para o qual, obeso e plus size são termos que in- tradicionalmente, se direciona a in- tegram um heterogêneo espaço de dústria da moda. sentidos. SELINFRAN Ao apresentar o volume por meio A partir da compreensão de que da adjetivação especial, seguido pela há sempre batalhas discursivas na nomeação plus size, a revista, como constituição de sentidos em uma so- um sujeito discursivo que constrói ciedade, o vocábulo “especial”, como para si um lugar institucional de di- regularidade enunciativa, em um sis- zer legitimado, estabelece um espa- tema de dizibilidades controlado por ço social que autoriza a esse corpo, regimes de poder, joga, pois, com o dito e visto pelo olhar do outro como efeito de positivo, circunda o corpo, gordo, em contraposição àquele con- discursivizado nas capas das revistas, siderado magro, uma condição de como um mecanismo de proteção e existência e, ao posicioná-lo no dis- valorização que atenua o estado de curso da moda, por meio da expres- estigma, dado pelo adjetivo plus size, são plus size, permite sua entrada em ao segregar o corpo e/ou o consumi- um campo do dizível, promovendo dor de moda que, amalgamado por efeitos de sentido de um reconheci- outras instâncias, como a publicida- mento social vinculado ao acesso à de, a medicina e o capitalismo, cola- moda. Um corpo incluso que, na rela- bora “para regulamentar as diferen- ção entre o imaginário e o simbólico, ças e determinar padrões estéticos, afirma ser o plus size não um gordo, em termos daquilo que é próprio e mas sim uma nominalização para ta- impróprio, adequado ou inadequado, manhos maiores, (re)criando sen- normal ou anormal” (NOVAES, 2010, tidos que deslocam o corpo acima p. 34). 83 do peso, o gordo, do lugar da feiura, Nesse contexto de produção enun- do desmazelo, do atraso físico para ciativa, a moda que emerge e se ins- a posição da beleza, da salubrida- creve no espaço das revistas, Moda de, do fashion. Nesse deslizamento, Moldes Especial Plus Size, oferece ao o discurso se faz na tensão entre o sujeito-leitor mulher gorda um acor- mesmo e o diferente, entre algo que do entre pessoas, assim como entre se mantém na memória e algo que se o Estado e o cidadão (FOUCAULT, renova a cada enunciação. Assim, o 2008), um pacto que, envolto à ló- termo plus size, resultado de um pro-

gica “você lê, nós lhe falamos/ mos- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA cesso que o constitui em uma ordem tramos o que e como fazer”, instaura discursiva, faz circular novos sentidos uma governamentalidade orienta- e estabelece ao sujeito uma nova po- da por uma tecnologia de poder, a sição social, já que “o sujeito do enun- moda; por outro lado, um biopoder ciado (...) é uma função vazia poden- que atua sobre o corpo, sobre o de- do ser preenchida por indivíduos até talhe, sobre o indivíduo, já que a este certo ponto indiferentes, ao formula- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX interessa a vida, a conduta, o modo Ao estabelecer, no contrato de lei- de se portar, de se vestir. “É o mo- tura, uma relação de finalidade, di- mento em que a política se biologi- z-se para esse leitor-sujeito aquilo za e a vida se politiza. É o tempo da de que ele necessita, valorizar o seu

SELINFRAN biopolítica” (KATZ, 2012, p. 22), crian- corpo. A revista surge, então, como do condições de possibilidades para o elemento que o salva da lástima do que o corpo da mulher seja subjeti- peso, do conflito corpóreo. Alguém, vado pelo esquadrinhamento entre o na posse de um saber enuncia para gordo e o magro, o bonito e o feio, o outro frente à urgência de um preci- leve e o pesado, o manequim 38 e o sar saber e, nesse jogo, na tentativa 48, na moda e fora de moda. Em se de subjetivação, o sujeito, que ora se apropria do próprio corpo, ora é tratando de biopolítica, apropriado pelo outro, é chamado a [...] o corpo do sujeito, além de assumir uma posição. Desse modo, ainda continuar a sofrer a ação é possível perceber um primeiro mo- de técnicas disciplinares, é esti- vimento enunciativo que objetiva e, mulado a falar de si mesmo para consequentemente, subjetiva o sujei- mais bem se governar ou ser go- vernado. Com a noção de biopo- to-leitor que, a partir de tal enuncia- der e com suas técnicas orienta- do, passará a gerir suas escolhas em das para que o sujeito se torne uma simulação de autonomia, pois objeto de conhecimento de si onde há poder há liberdade. mesmo (uma genealogia da éti- A utilização da palavra valorizar ca), [...] exerce-se um poder so- não só institui um deslocamento de bre a vida e para manter a vida, tipos específicos de vida que se efeitos de sentidos, como também relacionam com tipos de corpos, produz novas possibilidades de obje- saberes e discursos, constituindo tivação e subjetivação. Às mulheres tipos de sujeito (MENDES, 2006, cabem os valores eufóricos da bele- 84 173). za, do cuidado e da felicidade, assim como os valores disfóricos do des- Em primeiro plano, o enunciado, leixo, da feiura, da falta de cuidado, “83 ideias para valorizar o corpo”, a quando objetivadas em magras ou destacar a principal chamada da re- gordas. No entanto, o vocábulo valo- vista, no contraste entre o quente da rizar joga com os verbos em modo cor vermelha e o neutro da cor bran- imperativo no interior dos enuncia- ca junto à saliência não só das cores, dos, “Invista em produções elegantes mas também do marcador de quan- para fazer sua carreira DECOLAR”,

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA tidade – 83 – guia o olhar e a aten- “Arrase em diferentes celebrações ção daquela que se subjetiva gorda com vestidos maravilhosos”, no pro- e opera na produção de um efeito cesso de objetivação/subjetivação, a de verdade, por um deslizamento de fim de justificar as práticas a serem sentidos que vai opacificando a cor- realizadas por um sujeito mulher gor- reção do corpo e reluzindo a estima, da, possivelmente insatisfeita com marcado pelo verbo valorizar. seu corpo, uma vez que esta é margi- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX nalizada em relação ao público con- É, assim, instaurado o governo de si sumidor de moda, evidenciando a que, na relação do sujeito-leitor com exclusão em um movimento de inclu- o corpo subjazem os enunciados que são (AGAMBEN, 2004), no qual a ex- dão voz ao espetáculo Moda Moldes: ceção serve somente para garantir a E1: Invista em produções elegan- SELINFRAN continuidade da regra universalizan- tes para fazer sua carreira DECO- te, ou seja, é um modo de ser gorda LAR. na moda, logo, plus size, legitimando E2: Arrase em diferentes celebra- a hegemonia inconteste do corpo ções com vestidos maravilho- magro da e para a moda. Valorizar sos. o corpo, por meio dos saberes insti- E3: Skinny, reta, flare... Existe um tuído pela moda, é, então, o antídoto modelo IDEAL PARA VOCÊ. aos insultos de uma imagem corpo- E4: Truques de moda – dicas infa- ral fora de ordem que, certamente, líveis para valorizar a silhueta dis- produzirá objetivação e subjetivação farçar quadris, pernas, braços... no público feminino da revista, sob a Observar as revistas como um lu- ordem de uma biopolítica do corpo gar de discurso nos leva a conside- que age por meio de uma tecnologia rar que suas configurações enquanto do poder, normatizando a fabricação produto de consumo atua na produ- de sujeitos. Assim, antes de ser “plus ção de sentidos. De acordo com Ali size”, há um “modo permitido de ser (2009, p. 67), “uma revista tem cinco plus size”. segundos para atrair a atenção do lei- Conforme Foucault (2008), for- tor na banca. Nessa fração de tempo, mas de controle e dominação con- a capa tem de transmitir a identida- vocam o sujeito a lançar um olhar de e o conteúdo da publicação, deter responsável sobre si, construindo as o leitor, levá-lo a pegar o exemplar, abri-lo, compra-lo”. Isto posto, as ex- próprias verdades sobre o seu corpo, 85 pressões decolar, vestidos maravilho- ora, já não é mais o Estado contro- sos, ideal para você, disfarçar quadris, lando o sujeito com suas biopolíticas, pernas, braços, dadas em destaque, mas o próprio sujeito se responsabi- nos enunciados acima, pelas capas lizando por um equilíbrio numa eter- das revistas, incidem sobre a otimiza- na vigilância visual. A opulência das ção do corpo em termos de sistema carnes e a magreza das formas tor- de recompensas em vista de condu- na-se a Via Crucis do corpo na con- tas almejadas, atribuem ao sujeito, no temporaneidade (LISPECTOR, 1988). laço saber – poder, aspectos valora- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Com isso, as estratégias do biopoder tivos nas práticas de si e estas, por na imagem e no vestuário se disse- sua vez, manter-se-ão ativas na sub- minam, banalizam-se, naturalizam-se. jetividade. Esta, a subjetividade, tor- A norma é internalizada, naturalizada na-se, portanto, um direito à diferen- e reproduzida, inclusive pela ampla ça, à mudança, que acometida pela maioria dos profissionais de moda. relação consigo mesmo, permite ao IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX sujeito-leitor operar ações sobre seu PRÁTICOS de tamanhos 48 ao 58”? corpo, por meio do vestuário, para se As formas de conhecimento ex- inscrever em um espaço “fashionista” pressas em representações sociais que antes a ele era negado. Os senti- confirmam que, independente da SELINFRAN dos se estabelecem em um processo época, as sociedades produzem ver- gradativo de causas e consequências. dades para controlar os movimentos, Destarte, a moda transcende para surpreendentes, do discurso. No que uma experiência estética em que o tange à moda, o saber, advindo das corpo e as roupas conectam o sujeito linhas de visibilidades e dizibilidades, a um mundo exterior a ele. Contudo, parte de uma normatização, nos or- o controle, camuflado na recompen- denamentos biopolíticos, ancorados sa oferecida, desemboca num saber a um saber científico, como a antro- que dá sustentação a um poder que pometria, para normalizar o que é se volta sobre o sujeito. ser gordo e o que é ser magro, o que Em consonância com essa via dis- é certo ou errado, o que e como se cursiva e pensando com Fernandes vestir, em suma, como apresentar os corpos sob a égide de um processo (2012, p. 58): disciplinar. Nas palavras de Foucault A noção de poder implica rup- (2005, p. 45): tura com estruturas políticas, governo, lugares assumidos em As disciplinas sãs extraordinaria- mente inventivas na ordem des- instituições etc., compreendidos ses aparelhos de formar saber e como um posto de quem coman- conhecimento, e são portadoras da. O poder, nessa acepção, é de um discurso que não pode ser focalizado em micro instâncias, o discurso de direito, o discurso é um exercício integrante do co- jurídico. O discurso da discipli- tidiano, e integra a construção de na é alheio da lei; é alheio ao da 86 identidade dos sujeitos, por meio regra como vontade soberana. de suas inscrições nos discursos, Portanto as disciplinas vão trazer nas práticas discursivas. Acres- um discurso que será o da regra, centa-se a isso, o saber como o não o da regra jurídica, derivada que permite o que pode dizer e da soberania, mas o da regra na- como dizer; o que pode fazer e tural, isto é, da norma. Elas defi- como fazer. nirão um código que será aquele, não da lei, mas da normalização Todavia, que saberes são esses [...]. (grifos nossos). próprios da moda que normatizam Por entre os enunciados, que in- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA para normalizar, além de produções elegantes para conquistar sucesso cidem diretamente na alfabetização profissional e os vestidos maravilho- normalizadora dos sujeitos, tem-se sos para arrasar nas festas, o mode- à disposição, daquele que deve ser lo de calça ideal (“Skinny, reta flare... dócil, logo, submisso, sessenta e seis páginas, em ambas as revistas que Existe um modelo de calça IDEAL integram um manual de estilo ocupa- PARA VOCÊ”), e os “54/50 MOLDES IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX do por um time de especialistas, con- dos, identificados e nomeados, por sultores de estilos, modelistas, entre meio de um número correspondente outros profissionais, que anunciam a medidas corporais, por uma fun- técnicas disciplinares acerca do que ção especialista em uma racionali-

pode, o que deve e como vestir, afinal dade biopolítica. A revista, por meio SELINFRAN “ninguém entrará na ordem do dis- da medida corporal, solidificada em curso se não satisfazer a certas exi- tabelas e nomenclaturas como G gências ou se não for, de início, qua- (tam.48/50), GG (tam.52/54), EG lificado para fazê-lo” (FOUCAULT, (tam.56/58), atua no detalhe da vida, 2000, p. 37). A revista, portanto, mi- nas linhas do corpo e na experiência diatiza uma superprodução de saber do vestir-se, do modelar-se. que abarca as visibilidades enuncia- Por conseguinte, ao enunciar a se- tivas do corpo. Conforme Milanez quência “54 moldes práticos”, “50 (2006, p. 193): moldes práticos” sinalizando-a na ur- (...) mostra a enunciação de um gência da cor vermelha e no negrito discurso primeiro que se preten- da corpo preta, em forma maiúscula de relatar, mas com um formato e longilínea, as revistas lançam mão (segundo) de relato: Por meio de tecnologias do controle de um dessas configurações de papéis, corpo em metamorfose ao mesmo confirmam-se três posições ocu- tempo em que impinge ao sujeito-lei- padas: a) pela Ciência, lugar que é ocupado por inúmeras pessoas tor, na ênfase pelo adjetivo prático, a e nomes próprios que asseguram responsabilidade e a “liberdade” para ao leitor um “efeito real”, à me- agir sobre as próprias formas, por dida que animam o discurso da meio dos recursos de modelagem ciência; b) pelo público leitor, que que podem desfigura-lo e colocá-lo estará sempre assimilando a ima- dentro das perspectivas, da moda, gem do seu leitor, construindo, que o desenham e o inscrevem como portanto, na revista, uma imagem plus size, uma vez que é possível, por 87 que a ele se identifique, retratan- meio da modelagem do vestuário, do a sua contemporaneidade; c) construir sobre o corpo “(...) formas pelo divulgador, que assumindo diferenciadas cujo objetivo não se- um papel de intermediador vai sempre de um lugar ao outro, ria só o de revesti-lo, mas também mantendo o seu caráter ambíguo o de redesenhá-lo com [contornos de autor original e escritor trans- diferenciados]” (MARIANO, 2011, p. parente. 77). Nesse sentido, a regularidade do adjetivo prático reforça a objetiva- Nessa rede discursiva, ao marcar

ção do sujeito(s) mulher(es) gorda(s) UNIFRAN DA LINGUÍSTICA no enunciado a expressão “tamanhos como não consumidor de moda, as- 48 ao 58”, marca-se o corpo em um sim como produz o efeito da neces- processo classificatório estabeleci- sidade do controle da vida por meio do pela normalização que, orientada do controle sobre as vestes do pró- pela norma, permite que os sujeitos prio corpo. sejam esquadrinhados, individualiza- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Condicionado e regulamentado texto sincrético, a moda em sua teia pelas relações de poder e saber, pelo de docilização disseca o corpo com social e histórico, os discursos das re- régua e compasso e este, distribuído vistas, ao se apropriarem de outros no eixo vertical e horizontal, penetra discursos para legitimar sua fala no em retas, curvas, diagonais e perpen- SELINFRAN dizer sobre o outro, constroem um diculares no terreno de construção espaço de autoridade, um lugar de da objetivação/subjetivação do sujei- saber a verdade sobre o corpo (im) to-mulher gorda. possível na e para a moda. Caminhar Em um espaço promocional, a entre as palavras e as imagens no fo- moda ao normatizar e fazer circu- lhear das laudas, possibilita-nos, pois, lar, por meio de práticas discursi- conhecer técnicas para um governo vas, uma forma corporal emergente, de si que, ancoradas a uma biopolíti- pela nomeação plus size, age como ca do corpo, transformam os sujeitos, um preenchimento estratégico do possibilitando novas subjetividades dispositivo de controle do corpo no no deslizar, pelo fio do discurso, do estabelecer das fronteiras de mode- gordo para o plus size. lação, determinando espaços de per- Arremates finais tencimento, assim como espaços de exclusão: ora, não é qualquer corpo Como espelho da cultura que o que pode e/ou deve ser mostrado, produz, o corpo é, portanto, invadido nem todo gordo pode ser plus size. e guiado pelas narrativas midiáticas Destarte, o corpo subjetivado como da moda que, sob a égide de uma gordo não se liberta das dolorosas vontade de verdade, esquadrinham, amarras que, ao longo dos tempos a modelam as formas do corpo, de- confinaram. Mudam-se, pois, as no- terminando o que pode e o que não meações, produzindo um efeito de pode ser dito e/ou visto em seus di- inclusão, um corpo possível na/para ferentes espaços, em cada instância a moda, contudo, sobre este, existem de circulação. E aqui, no tocante às 88 ainda modos de formatação, na qual estratégias discursivas postas em os padrões continuam sendo iguais, ação no espaço da revista Moda Mol- porém contados de outra(s) manei- des Especial Plus Size, edição nº 21, ra(s) por meio do conjunto enunciativo do LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

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Priscila Antunes de SOUZA18 Maria Flávia FIGUEIREDO SELINFRAN

RESUMO Hallelujah, composta por Leonard Cohen em 1985, foi gravada por mais de 300 artistas. Estudar o alcance retórico dessa canção é necessário por sua re- levância no contexto musical e reconhecimento internacional. Ademais, a estru- tura em que foi composta fornece ao artista possibilidades quanto à interpreta- ção, permitindo que seja utilizada com distintos fins persuasivos. Comocorpus , selecionamos dois arranjos distintos: de Rufus Wainwright, na voz de John Cale (filme: Shrek) e a versão original do compositor Leonard Cohen (filme: Watch- men). Neles, buscaremos depreender os elementos musicais e suas variações interpretativas com vistas a desvelar seu alcance persuasivo no contexto em que foram enunciadas. Utilizaremos, para tanto, teorias advindas de duas áreas do conhecimento: Retórica e Música. Quanto à retórica, valeremos das propo- sições de Aristóteles (2015), Meyer (2007) e Figueiredo (2006, 2010). Quanto aos aspectos psicomusicais, exploraremos os estudos de Copland (1939), Slo- boda (2008), Gorbman (1967), Agawu (2012) e Meyer (1956). Procederemos à análise qualitativa do corpus indicando quais recursos da composição e suas modificações podem influir no envolvimento do ouvinte, despertando, assim, a(s) paixão(ões) adequadas ao contexto. Esperamos que a análise permita evi- denciar a maneira como diferentes execuções de uma mesma canção pode despertar paixões distintas e, consequentemente, atingir auditórios diversos. PALAVRAS-CHAVE Hallelujah; Retórica; Música; Paixões. ABSTRACT 90 Hallelujah, composed by Leonard Cohen in 1985, was recorded by more than 300 artists. Studying the rhetorical reach of this song is necessary for its re- levance in the musical context and international recognition. In addition, the structure in which it was composed gives the artist possibilities for interpre- tation, allowing it to be used with different persuasive purposes. As a corpus, we selected two distinct arrangements: from Rufus Wainwright, in the voice of John Cale (film: Shrek) and the original version of the composer Leonard Cohen (film: Watchmen). At both of them, we will seek to understand the musical ele- ments and their interpretive variations in order to reveal their persuasive reach LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA in the context in which they were enunciated. Therefore, we will use theories from two areas of knowledge: Rhetoric and Music. As for rhetoric, we will use the propositions of Aristotle (2015), Meyer (2007) and Figueiredo (2006, 2010). Regarding the pisicomusical aspects, we will explore the studies of Copland (1939), Sloboda (2008), Gorbman (1967), Agawu (2012) and Meyer (1956). We will proceed to the qualitative analysis of the corpus indicating what resources 18 Apoio: PROSUP/CAPES (taxa) IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX of the composition and its modifications can influence the listener’s involve- ment, thus awakening the passion (s) appropriate to the context. We hope that the analysis will show how different performances of the same song can awake different passions and, consequently, reach different audiences. SELINFRAN KEYWORDS Hallelujah; Rhetoric; Music; Passions.

91 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução cutada com instrumentos distintos, interpretada por outros cantores, ou A música é algo que faz parte da quando afetada por qualquer mu- vida do ser humano, sendo uma das dança de tom, harmonia, tessitura, principais características sociais e

SELINFRAN potência vocal etc., é capaz de cau- culturais que nos distinguem dos de- sar emoções distintas em seus ou- mais seres, assim como a linguagem. vintes. Consequentemente, a música Analisando os estudos retóricos também pode ser estudada como recentes, percebemos que poucos um objeto retórico. trabalhos tratam especificamente da função retórica da música. Na verda- Diante disso, são essas transforma- de, as pesquisas que encontramos ções e o decorrente estímulo emo- apenas sinalizavam para a teoria mu- cional dessas variações da música sical no Período Barroco, quando a que interessam à retórica, pois uma música passou a ser pensada como mesma canção, sofrendo mudanças instrumento de persuasão, dando estruturais/composicionais/interpre- origem a uma teoria musical baseada tativas, pode exercer diferentes im- nos afetos. Essa vertente, conheci- pactos sobre determinados auditó- da como Retórica Musical, tem seus rios. fundamentos na Retórica Clássica e Frente a essas considerações so- compartilha de seu objetivo: enten- bre a importância da música na per- der a constituição do processo de suasão e/ou o despertar de emoções persuasão. quando da sua execução, vemos que A canção pode ter infinitas roupa- a função retórica das canções vai gens por isso a ela pode se aplicar o além da Retórica Musical, que diz res- estudo da retórica, como bem definiu peito apenas à forma como a música Aristóteles (2015, p. 62, grifo nosso): é composta e executada. “Entendemos por retórica a capaci- A grande questão que aqui esta- 92 dade de descobrir o que é adequa- mos tentando entender é se a músi- do a cada caso com o fim de persu- ca nos comunica emoções, se ela é adir”. Da mesma forma, Perelman e capaz de nos fazer compreender os Olbrechts-Tyteca (2005, p. 4, grifos significados diversos daquilo que nos dos autores) afirmam que “o objetivo é transmitido e, assim, nos persuadir dessa teoria é o estudo das técnicas do que nos é proposto em um deter- discursivas que permitem provocar minado contexto. ou aumentar a adesão dos espíritos Como mencionado, nossos estu- às teses que se lhes apresentam ao dos revelaram que o despertar das assentimento”.

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA emoções por meio da música foi es- Assim, as distintas modificações tudado na Teoria Musical no perío- por que passam uma canção em do Barroco, porém, nesta pesquisa, suas diferentes execuções faz com demos um passo a mais: tentamos que seus efeitos sobre o auditório se descobrir como os afetos são des- alterem. Uma mesma música, quan- pertados por meio de canções que do modificada em seus arranjos, exe- não foram compostas, levando em IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX consideração as etapas retóricas do men trazer a versão original do com- processo persuasivo. positor e de Shrek apresentar uma Neste estudo, portanto, almeja- versão mais popular, em um momen- mos elencar as possíveis respostas to em que canção passou a ter mais visibilidade internacional. do ouvinte/espectador frente a duas SELINFRAN execuções musicais de uma mesma Como procedimento de análise, canção em contextos distintos. Para empreendemos, inicialmente, um es- tanto, analisaremos a forma em que tudo qualitativo da partitura da can- foi executada, os tipos de instrumen- ção com vistas a detectar as figuras tos utilizados, a interpretação, o tom, de retórica nela contidas. Em segui- a tessitura, o timbre, o volume e a in- da, efetuamos um estudo comparati- tensidade apresentados, etc. vo entre as duas interpretações para traçar um quadro das características 1. Fundamentação teórica musicais de cada uma delas. Poste- Fundamentamos nossa pesquisa riormente, ainda por meio do estudo na Teoria Retórica, em especial: Aris- qualitativo, faremos uma análise entre tóteles (2000), Figueiredo (2006, música e cena e, em seguida, depre- 2010), Meyer (2007) e Perelman enderemos as paixões possivelmente (2005). Quanto às Teorias Musical e despertadas em função dos elemen- Cognitiva, baseamo-nos nos estudos tos musicais presentes em cada uma de: Agawu (2012), Gorbman (1987), das execuções aliadas ao contexto Meyer (1956), Copland (1974), Sacks fílmico em que ocorreram. (2007) e Sloboda (2008). Por meio da utilização do méto- 2. Metodologia do indutivo, partindo dos resultados da análise do corpus desta pesqui- Como critério de seleção do cor- sa, almejamos chegar a generaliza- pus, buscamos encontrar, dentro do ções que nos permitam entender os cenário musical, uma canção que possíveis efeitos causados pela mú- fosse de conhecimento internacional sica nos mais distintos contextos de e que tivesse sido gravada e interpre- 93 enunciação. tada por vários artistas em diferentes contextos. Assim, a canção Hallelujah 3. Análise piloto do corpus foi escolhida por ter sido gravada por A música Hallulujah analisada sob mais de 300 artistas e ter sido exe- a lupa da Retórica Musical, eviden- cutada em reality shows, seriados de ciou que a retoricidade musical des- TV, filmes, casamentos, como canção sa peça não é complexa, talvez pelo natalina, entre outros. fato de não ter sido composta den- Como contexto de execução, es- tro das regras dessa teoria. Por outro LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA colhemos o cinema, aqui represen- lado, as figuras de retórica são mais tado pelos filmesWatchmen e Shrek, abundantes: sendo o primeiro uma adaptação de O primeiro período da canção é história em quadrinhos e o segundo, estático no registro grave, mas o se- uma animação. A seleção desses fil- gundo, ao aumentar a melodia para mes se deu em razão de em Watch- conectar-se ao refrão, gera uma se- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX quência de motivos19 (m) em que a altura melódica/tom aumenta. Essa sequên- cia apresenta a figura retórica de acumulação, também denominada gradação ou clímax, em que a intensificação do sentido é crescente, como no exemplo 1 abaixo:

SELINFRAN EXEMPLO 1 ACUMULAÇÃO

No segundo período, há uma forma de intertextualidade entre a linguagem musical e a poética. Quando, na primeira estrofe, o compositor canta: “E vai assim, a quarta, a quin- ta, o menor cai e o grande ascende – Well it goes like this: the fourth, the fifth, The minor fall and the major lift”, é como se estivesse fazendo uma auto-explicação da harmonia, pois na expressão “a quarta” está fazendo referência à subdominan- te (IV)20; quando canta “a quinta” refere-se à dominante (V); quando diz “a menor cai” refere-se à submediante (VI, acorde menor); e, por fim, a expressão “o grande ascende” refere-se novamente à subdominante (acorde maior F – Fá maior); além de concordar em “ascende - lift” com o ponto mais “elevado” do grupo melódico. Deste modo, podemos perceber que a música e a poesia estão se significando mutuamente, dando origem à figura retórica de acumulação chamada enumera- ção:

94 EXEMPLO 2 ENUMERAÇÃO LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

19 Motivo é uma unidade melódica pequena, equivalente a uma “palavra musical”, sua extensão mais comum é a de um compasso. 20 Os graus da escala e os acordes que são formados são chamados de tônica (primeiro grau, I), supertônica (se- gundo, II), mediante (III), subdominante (IV), dominante (V), submediante (VI) e sensível (VII). Eles são criptografados com algarismos romanos, conforme mostrado entre parênteses. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Nos final de todos os versos, antes de cada refrão, a palavraHallelujah é sem- pre pronunciada, o que nos chama a atenção para a antecipação do motivo que se desenvolverá durante o refrão. Esse recurso resulta na figura retórica da apóstrofe, pois, após cada verso cantado, há o distancimento do sentido de cada um deles em relação à enuncia- SELINFRAN ção da palavra Hallelujah para que o refrão venha à tona. EXEMPLO 3 APÓSTROFE

A figura retórica de repetição chamada reduplicação pode ser encontrada desde a primeira frase musical, quando podemos ver que a semifrase anteceden- te (compassos 3-4) é reduplicada com a semifrase consequente (compassos 5-6) 95 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX .EXEMPLO 4 REDUPLICAÇÃO SELINFRAN

No refrão, encontramos figuras claras de repetição: • o motivo 1 é ascendente; 96 • o motivo 1a é uma variação descendente do primeiro (repetição); • o motivo 1 é repetido na segunda frase (figura retórica de reduplicação); e • o motivo 1b traz a figura retórica da amplificação do motivo 1a. Ao final, no coro, há uma repetição do refrão, gerando novamente a figura retórica da reduplicação. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX EXEMPLO 5 AMPLIAÇÃO SELINFRAN

No refrão, também identificamos asfiguras retóricas de repetição chamadas de: • palilogia, que é a “repetição de uma oração ou verso” (FIORIN, 2014, p. 127), que ocorre quando a palavra Hallelujah é repetida várias vezes dentro do refrão, • ritornelo, palavra italiana também utilizada para designar a barra de repeti- ção contida nas partituras. EXEMPLO 6 PALILOGIA E RETORNELO

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LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Após a análise da partitura, um quadro comparativo com as características musicais das duas execuções de Hallelujah serão examinadas:

SELINFRAN QUADRO 1 Características musicais das duas execuções de Hallelujah

Watchmen Shrek Executada em C (Dó) Executada em C (Dó) Foi utilizado o terceiro grau A nota de junção é o Em (Mi maior para dar harmonia, ou seja, menor), dentro do campo harmô- para fazer a junção entre as no- nico na escala musical. tas (quando sai de uma nota e vai para outra, como se fosse uma ponte). Execução com guitarra, baixo, Execução apenas no piano, um bateria, strings e coral em volume fundo com strings e coral com baixo com predominância de vo- mais intensidade vocal. zes femininas. Tocada e interpretada em velo- Tocada e interpretada mais rit- cidade e andamento mais lentos, mada, com andamento um pouco com pausas. mais rápido Timbre do intérprete: grave, Timbre do intérprete: médio, rouco, cavernoso, escuro, encor- fluido, claro, nasalado em alguns pado. trechos. Parte da interpretação é fa- Em alguns momentos, aumen- 98 lada/sussurrada – intercalando ta o volume da voz e, em outros, canto e fala. o abaixa, rallentando a canção Em certos momentos, o intér- Em vários versos, enfatiza os prete canta ou pronuncia as pa- acentos frasais, gerando a sensa- lavras de forma pausada, dando ção de staccato, voltando à flui- a impressão de “picar” as frases. dez normal do ritmo apenas no refrão. O intérprete faz uso da técnica vocal do portamento, o que em LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA alguns trechos dá a sensação de desafinação.t Depois de verificados os aspectos musicais, apresentaremos a análise dentro de cada cena em que a canção é executada:3.1. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX 3.1. Watchmen As notas menores e a voz quando abaixa de volume, transmite a triste- A música é entoada quando am- za com mais intensidade. bos super-heróis se entreolham, se aproximam e se beijam. A voz rouca Toda vez que o refrão Hallelujah é do intérprete nos remete a um clima cantado, é mostrada a conexão entre SELINFRAN de sensualidade e, apesar de a músi- os personagens Fiona e Shrek. ca ter contexto espiritual e com men- Hallelujah, por si só, é uma músi- ções bíblicas, a voz murmurada dian- ca com tom dramático, com temá- te da cena traz eroticidade. tica religiosa, composta de forma Quando os amantes caem um so- simples, sem deixar de ser sofistica- bre o outro, canta-se o primeiro Hal- da, indo ao encontro do que a cena lelujah e o refrão é entoado quando pede, ou seja, a transmissão de senti- de seu orgasmo. mentos de amor, algo aparentemente simples, mas, ao mesmo tempo, mui- Ao final da cena, toca-se a última to complexo, como a melodia dessa estrofe da canção. A voz sussurrada canção. do intérprete, ao invés de remeter a um clima de sensualidade, faz com Apresentaremos, nesse momento, que o espectador sinta certo des- a análise qualitativa de cada uma das conforto, pois produção/fotografia/ execuções da canção em que se evi- exageros/botões/fogos/roupas se denciam as possíveis paixões desper- contrapõem com uma canção sobre tadas. a qual o espectador já traz consigo Iniciaremos a exposição pela exe- memórias de “sacralidade”. Também cução presente na cena do filmeWa - em razão desse contexto, o Hallelujah tchmen. Nela, os personagens Júpiter executado parece transmitir a sensa- e Coruja, super-heróis aposentados e ção de que “finalmente os persona- ex-namorados no passado, saem na gens conseguiram ficar juntos”. nave para voltar a ajudar as pesso- 99 as. Após um salvamento, de volta à 3.2. Shrek nave, inicia-se a cena de sexto entre A cena começa quando a música ambos. é executada em seus primeiros acor- A paixão do amor pode ser des- des, numa discussão entre Shrek e o pertada em algumas pessoas após se Burro. Nos arpejos do piano, Shrek lembrarem de um momento seme- vai caminhando triste, o que faz com lhante que vivenciaram, ainda mais que nossos sentimentos sejam agu- quando esse momento foi entoado çados, quando então a música é can- por alguma canção. A emoção trazi- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA tada. O primeiro Hallelujah é entoado da pela música a quem assiste à cena quando Shrek se olha num espelho do filme pode também ser intensifi- quebrado. cada pela beleza plástica dos perso- As cenas vão evoluindo conforme nagens, interpretação, fotografia, ou sobem as notas musicais e quando o todos esses elementos em conjunto cantor aumenta sua potência vocal. com a canção executada. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX A paixão do amor pela música ou entoada. Ademais, o auditório pode pelo compositor da canção pode ser sentir amor em relação aos persona- suscitada em alguns espectadores. gens, os quais nutrem sentimentos Prova disso é quando a autora da bio- uns pelos outros. SELINFRAN grafia de Leonard Cohen ,no livro I´m Essa paixão também pode ser your man (SIMMONS, 2016, p. 313- suscitada na cena do Burro com a 314), relata que “A versão de Leonard Dragão, porque a atitude de um em também ressurgiu em Watchmen – O relação ao outro nos faz ficar empa- filme, do ano seguinte, fornecendo a ticamente ligados aos personagens, música de fundo para uma cena de pois nos transmitem pureza de co- sexo entre dois super-heróis. A maio- ração. Essa cena acontece quando é ria daqueles que conheciam a canção entoada a última estrofe da canção, ficou com um sorriso zombeteiro no e é também quando o intérprete usa rosto”. um volume vocal mais alto. Nesse A cena pode suscitar cólera naque- momento, a palavra hallelujah é pro- las pessoas religiosas ou que tenham ferida quando eles (Burro e Dragão) certo pudor, e também naqueles que se entreolham, gerando ainda mais são contra cenas desse tipo, ainda empatia dos espectadores com os mais envolvendo uma música que faz personagens. menção a Deus e à bíblia. A paixão do desprezo pode ser As paixões da vergonha e da im- suscitada quando da cena do prín- pudência podem ser suscitadas nos cipe querendo um elogio ou satisfa- espectadores quando há outras pes- zendo seu ego. Nesse momento, a soas perto na exibição da cena. Umas música parece mais alta porque o in- sentirão vergonha, outras se delicia- térprete coloca mais volume na voz, rão, não se importando com os que o que nos dá a sensação de desprezo 100 estão ao seu redor, sentindo, assim, e de querer vingança contra o prín- impudência. Acreditamos ainda que, cipe, podendo, inclusive, despertar a para algumas pessoas, a música pode paixão da cólera em relação a esse acentuar a sensualidade da cena. Por personagem. essa razão, a paixão da vergonha Quando, no início, Shrek caminha pode vir à tona com mais intensida- até sua casa, ele suspira e a música de. nos fornece elementos para criar a Elencaremos, agora, as possíveis compaixão em relação a ele, pois, em paixões despertadas pela música sua cabeça, sua amada o acha des-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA escolhida dentro da cena do filme prezível. A música é iniciada apenas Shrek, em que o personagem Ogro com instrumentos, mas, quando a volta para casa e a princesa Fiona se voz passa a integrá-la, por ser meio prepara para casar com o príncipe. grave, pode intensificar ainda mais Talvez a paixão do amor seja a esse sentimento em relação ao ogro. mais suscitada, provavelmente em A compaixão também pode ser função das cenas aliadas à música despertada em relação ao Burro, que IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX foi tentar ajudar e acabou sendo en- não for adequada ou se não se en- xotado pelo amigo. Nesse momento, caixar dentro dos valores de hierar- ele sai caminhando em direção con- quia do auditório, ela pode se tornar trária, cabisbaixo. Nesse trecho, a mú- a grande vilã, destruindo todo o dis-

sica ainda está no seu início, quando curso apresentado. SELINFRAN começa em volume baixo e não há Oliver Sacks (2015, p. 11), em seu acréscimos de muitos instrumentos livro Alucinações musicais, menciona ou vocais, o que pode dar a sensação o músico Schopenhauer para con- de mais obscuridade e solidão. seguir descrever de que maneira a Ainda em relação a essa paixão, o música, por meio de suas estruturas, espectador também pode ser aco- pode afetar as emoções humanas: metido pela tristeza, pois as cenas Nós, humanos, somos uma es- mostram um personagem pensando pécie musical além de linguísti- no outro, ou na sua própria vida, de ca. Isso assume muitas formas. forma cabisbaixa e com tristeza no Todos nós (com pouquíssimas olhar. A música, por ser executada exceções) somos capazes de em tom mais baixo, C (dó), pode nos perceber música, tons, timbre, despertar o sentimento de tristeza, intervalos entre notas, contornos melódicos, harmonia e, talvez no ainda mais com essa melodia mais nível mais fundamental, ritmo. calma, tocada basicamente de forma Integramos isso tudo e “constru- arpejada no piano, o que nos remete ímos” a música na mente usando a sentimentos mais sombrios. muitas partes do cérebro. E a essa apreciação estrutural, em grande Considerações finais medida inconsciente, adiciona-se A música por si só pode despertar uma reação muitas vezes inten- emoções em quem a ouve, pois, de- sa e profundamente emocional. pendendo da forma como é compos- “A inexprimível profundidade da ta, dos instrumentos escolhidos, da música”, escreveu Schopenhauer, 101 interpretação, arranjos, timbre, den- “tão fácil de entender e no en- tanto tão inexplicável, deve-se ao tre outros elementos, pode remeter o fato de que ela reproduz todas ouvinte à sua própria história de vida, as emoções do mais íntimo do às suas tradições ou cultura. nosso ser, mas sem a realidade e Assim, diante das análises apre- distante da dor. [...] a música ex- sentadas, juntamente com as teorias pressa apenas a quintessência da vida e dos eventos, nunca a vida musical, psicoafetiva e retórica, po- e os eventos em si”. demos chegar à conclusão de que, LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA se a escolha da música for a correta, Diante do que aqui demonstra- sabendo o orador a quem ele a está mos, fica perceptível o poder da mú- apresentando, ela pode ser o grande sica em persuadir, comunicar e expli- elemento que fará com que o auditó- car situações quando as palavras e rio se persuada frente a um discurso. o visual não conseguem, pois nossa Ao contrário, se a música escolhida mente é capaz de entender os sons IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX e transformá-los em afetos quando apresentada e, quando aliada à ima- a música é executada no momen- gem, ao momento correto, possui o to oportuno. Então, podemos dizer poder de nos convencer daquilo que que a capacidade retórica da música nos é proposto. SELINFRAN depende das formas como ela nos é

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109 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DA MARCA E SUAS RELAÇÕES COM O CONSUMIDOR DE MODA

Fernanda Fontanetti GOMES

SELINFRAN Alexandre Marcelo BUENO

RESUMO Uma marca de moda se constrói com a história da sociedade, em um jogo de divergências e convergências de valores, que em cada recorte de tempo reflete os modos de ser e pensar o mundo, disseminando, assim, nas tramas do tecido social, um conjunto de valores sócio-histórico-culturais. Ao expressar de forma integradora, nas diferentes manifestações discursivas seu conjunto de valores, uma marca procura instituir sua presença e propiciar uma leitura mais preci- sa de seu projeto de sentido por parte do consumidor de moda. O objeto de estudo são as campanhas de reposicionamento da marca de moda brasileira, a Riachuelo, que, através de diferentes suportes midiáticos, dialoga com seus consumidores, demarcando, assim, sua existência. Sob a luz da semiótica grei- masiana, o presente trabalho busca restituir, pelo percurso gerativo de sentido, o universo de valores e trocas nas relações com o mundo. PALAVRAS-CHAVE Semiótica Francesa; Moda; Identidade; Marca; Consumidor. ABSTRACT A fashion brand is built with the history of society, in a game of divergences and convergences of values, which in each time cut reflects the ways of being 110 and thinking the world, thus disseminating in the fabric of the social fabric, a set cultural values. By expressing in an integrative way, in the different discur- sive manifestations its set of values, a brand tries to institute its presence and to provide a more accurate reading of its design of sense by the fashion consu- mer. The object of study is the repositioning campaigns of the Brazilian fashion brand, Riachuelo, which, through different media, dialogues with its consumers, thus demarcating its existence. In the light of greimasian semiotics, the present work seeks to restore, through the generative course of meaning, the universe of values and exchanges in relations with the world.

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA KEYWORDS French semiotics; Fashion; Identity; Brand; Consumer. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução de aquisição de bens e serviços. Em outras palavras, a expansão do con- Em um mercado altamente padro- sumo, por conta da massificação, es- nizado e global, os discursos profe- tende a propagação da moda para ridos pelas marcas são considerados áreas diversas que, por estar no cam- SELINFRAN elementos importantes de afirmação po do social, possibilita a análise da de sua existência e demarcadores indústria da moda como geradora de de diferenças perante seus consu- significações, por meio dos discursos midores e a concorrência. As mar- das marcas e dos indivíduos pelo uso cas ganham lugar central na cultura do vestuário. contemporânea e, junto com a comu- nicação, passam a se tornar agentes A denominação de moda enquan- na fabricação do espaço social. Como to um fato social total que envolve in- veiculadora de sentido, uma marca se divíduos e grupos sociais, muito além desenvolve no centro do cruzamento do seu caráter vestimentar, possibi- de três dimensões presentes nos es- lita vislumbrar a moda como um fe- paços sociais: a economia, o consu- nômeno que permite compreender o mo e a comunicação. Segundo a afir- sujeito e sua história. De certo modo, mativa de Semprini (2010, p. 56), as a lógica da construção da identidade marcas surgem no mercado e se de- da marca e dos indivíduos do mun- senvolvem com o consumo e retiram do culmina pela busca do sentido, sua força do contexto sociocultural que corresponde a uma maneira de do universo em que está inserida. organizar, de dar significado à pró- pria existência. Ao analisar o papel É por estar no meio deste univer- da significação, percebe-se a comu- so que a marca tem condições de nicação como dimensão pertinente articular nos contextos sociais a for- da significação, ou seja, como base mação de sentido. Entende-se que a para a veiculação de valores pelos democratização da moda e do con- discursos sociais que se entrecruzam 111 sumo trouxe consigo inúmeras mu- tanto no projeto de criação da marca, danças no comportamento de com- como na constituição da identidade pra dos consumidores, nas formas do consumidor de moda e que justifi- de expressão da identidade dos indi- cam o propósito da pesquisa. víduos e na constituição das marcas do mundo contemporâneo. Por isso, As práticas sociais e formas de carrega consigo uma conexão mais consumo na sociedade contemporâ- direta com valores e práticas espe- nea colaboram para a expansividade cíficas da cultura contemporânea. de tais discursos, especialmente com LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Além disso, com a crescente expan- o advento da internet e a globaliza- são industrial e tecnológica, nota-se ção que contribuíram de forma sig- uma difusão na variedade de tipos nificativa para as modificações nos de produtos disponíveis, novas for- modos de dialogar e consumir pro- matações de mercado, fácil acessibi- dutos, transformando crucialmente lidade aos sistemas de informação e a maneira de pensar o mercado e IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX o espaço social em que estão inse- seus valores. Ao ultrapassar os con- ridos. Neste aspecto, em especial, tornos que a constitui e esbarrar en- emergem os questionamentos que tre os sujeitos, surgem os propósitos serão investigados neste trabalho. De deste projeto: o de averiguar os efei-

SELINFRAN que modo uma marca pós-moderna tos de sentido pelos discursos pro- constrói seus universos de valores? feridos pela marca e o modo como Qual a importância da relação entre estabelecem sua presença perante marca e consumidor na construção os consumidores. Logo, busca-se, ao de suas identidades? Quais universos analisar as diferentes formatações de valores são discursivizados pela das campanhas de reposicionamento moda contemporânea? da marca de moda brasileira Riachue- Esta complexidade que envolve o lo, restituir, pelo percurso gerativo de universo discursivo das marcas de sentido proposto pela semiótica grei- moda exige esforços constantes no masiana, respostas sobre as hipóte- intuito de compreender e elaborar ses que suscitam o problema de pes- estratégias que sejam assertivas no quisa a ser investigado. âmbito do consumo simbólico. A car- 1. Metodologia ga simbólica que vem acoplada ao A metodologia utilizada para a produto de moda determina a disse- análise dos objetos que compõe o minação de valores, assim como for- corpus e que servirão para sustentar nece pistas da aceitabilidade ou não as hipóteses a serem testadas é de- de tais valores veiculados com os nominada hipotético-dedutiva e bus- produtos, de modo que os sujeitos ca restituir, pelo percurso gerativo de os usam para construir simulacros sentido proposto pela semiótica grei- de si mesmo, ou seja, as representa- masiana, o universo de significações ções que irão mostrar no âmbito so- presentes no interior do texto. cial. Deste modo, a moda se constitui 112 tanto pelo poder de integração como 2. Fundamentação teórica também de individualização do sujei- O problema da significação apare- to, este paradoxo marca a dualidade ce em meios às inquietações atuais e do homem enquanto ser social que está posicionada entre o homem e a é, ou seja, ser diferente para se des- história. A construção de um univer- tacar perante o grupo, mas também so de significações já é uma caracte- suficientemente igual para poder fa- rística exigida no cenário do mercado zer parte dele. contemporâneo, pois inúmeros enun- O objeto de estudo do presente ciadores lutam por sedimentar-se LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA trabalho está fundamentado na aná- em um espaço social saturado pelo lise das campanhas de reposiciona- imaterial, pela construção simbólica e mento da marca de moda brasileira, discursiva da marca. a Riachuelo, que busca, através de di- Para compreender a atividade hu- ferentes suportes midiáticos, dialogar mana e o mundo de que faz parte, com seus consumidores afirmando as ciências do homem questionam IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX o sentido de um e do outro. Deste Por isso, considera-se como signi- modo, é pelo estudo da significa- ficante elementos que possam des- ção que as ciências humanas se co- pertar as significações e que, através nectam. De acordo com Landowski, da percepção, podem ser reconhe- (2017), o universo é uma espécie

cidos como externo ao homem. Os SELINFRAN de discurso que lemos. Os campos significados são considerados as ma- da semiótica e moda se relacionam nifestações das significações que re- quando é pensado sobre o sentido cobrem os significantes. Pelo caráter da vida, em que a busca pelo sentido de imanência percebido entre signifi- tem um caráter de ordenar, ou seja, cante e significado, a união entre am- procurar uma lógica entre as coisas bos é denominada de conjunto sig- do mundo significante que apare- nificante. Por serem observáveis no cem diante do sujeito. A semiótica se contexto do mundo natural, os sig- apresenta como uma prática que visa nificantes são percebidos pelo plano a organizar as relações como forma perceptivo e podem estar relaciona- de resgatar as condições de emer- dos aos diferentes canais sensoriais gência de sentido, se debruçando no que envolvem a percepção que são questionamento do sentido da vida de ordem visual, tátil, olfativa, audi- e sobre o papel da significação na tiva e gustativa. Deste modo, uma compreensão da existência humana. marca de moda destituída de valor Na moda, a busca pelo sentido não desperta interesse perante os perpassa toda a vida de um sujei- consumidores, já que é pelo caráter to, seja pela forma de expressar sua relacional dos termos, pela percep- subjetividade através da constru- ção da diferença, que se explica o ção de sua aparência, de afirmar sua modo de existência da significação. posição como indivíduo do mundo Para Semprini (2010, p. 55), a linha de ou de compreender sua maneira de discriminação está no próprio inte- ser e estar no mundo. Para Greimas rior do universo das marcas. (1973), o mundo humano só se define 113 enquanto humano quando significa A padronização do mercado leva a alguma coisa. O universo das signi- este destituir de personalidade, pro- ficações rodeia o homem desde seu dutos com características idênticas, nascimento até sua morte. Os indiví- imperceptíveis perante o olhar do duos são bombardeados pela onipre- consumidor, leva-nos a refletir sobre sença e caráter multiforme das signi- a importância das promessas e bene- ficações que os solicitam o tempo o fícios destacados, ou seja, das carac- todo. As significações do mundo que terísticas simbólicas acopladas aos

se apresenta diante dos indivíduos produtos e marcas e como estes as- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA são apreendidas no nível da percep- pectos têm se tornado relevantes nos ção através do contato com o mun- processos de decisão de compra dos do natural, ou seja, é por meio das consumidores, muito mais do que qualidades do mundo sensível que se seus aspectos funcionais. Este con- torna possível percebê-las enquanto junto de significados cria o universo universo significante. que compõe a marca, que de certo IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX modo reflete sua visão de mundo, ticas mínimas de base que revelam estabelecendo uma conectividade as diferenças, ou seja, cada uma das com os consumidores que buscam se oposições recebe qualificações se- apropriar destes elementos e instituir mânticas denominadas positivas ou

SELINFRAN pontes entre estes mundos criados negativas, sendo o termo considera- pelas marcas. do como um valor positivo (eufórico) As manifestações dizem respeito ou negativo (disfórico) e que aparece às diferentes formas de comunicação inscrito no texto. utilizadas pela marca para com seu Pressupondo um equilíbrio pre- consumidor e devem apresentar-se cário entre identidade e diferen- de maneira coerente em diferentes ça (ou no plano da percepção suportes para que possam ser perce- entre continuidade e desconti- bidas e reconhecidas. O que Greimas nuidade), o sentido não pode consequentemente configurar-se (1973) afirma é que a significação -in ele também – como sujeito – se- depende da forma de manifestação não no interior de uma margem do significante, porque diferentes estreita, em uma zona intermedi- ordens significantes podem estar as- ária onde as coisas não nos pa- sociadas ao mesmo significado21. Ao recem tediosamente idênticas buscar explicar a estrutura elementar umas às outras, nem insuporta- da significação, Greimas utiliza a afir- velmente privadas de relações mação feita por Saussure de que a entre si (LANDOWSKI, 2014, p. língua é marcada por oposições. Es- 16). tas oposições são descontinuidades Na moda, estes aspectos são fun- percebidas no plano da percepção damentais, especialmente pelo fato que revelam diferenças e que irão de o produto de moda ser uma for- moldando o mundo ao redor do su- ma de expressão da subjetividade jeito e para o sujeito. individual, ou melhor, a escolha do 114 É possível resgatar pelo percurso vestuário tem a ver com as decisões gerativo de sentido, no nível das es- de cada indivíduo, com quem ou o truturas fundamentais, as primeiras que se mesclar ou diferenciar, servin- articulações da substância semân- do como expressão da individualida- tica, ou seja, oposições mínimas de de do sujeito e revelando aspirações sentido, sendo considerada a pri- e valores. Ao consumir uma marca, meira etapa do percurso gerativo de pode–se dizer que está relacionada à sentido e a instância mais abstrata aceitação de valores, como também e profunda. O reconhecimento das de afeiçoar-se às suas propostas me- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA estruturas elementares do discurso diante a aceitação de um contrato fi- se dá através das oposições semân- duciário estabelecido entre marca e 21 Em trabalhos posteriores ao livro Semântica consumidor. Na teoria semiótica, os Estrutural escrito por Greimas, a semiótica passou a uti- valores aparecem investidos em ob- lizar a denominação de forma de expressão para o sig- nificante e forma de conteúdo para o significado. Com o jetos que são apenas considerados surgimento do conceito de semissimbolismo, o signifi- um local de inscrição de tais valores. cante do plano de expressão assume o estatuto de pro- dutor de significação também. Por isso, diferentes enunciados po- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX derão expressar o mesmo universo que a marca constrói sua narrativa, de valores, pois o objeto é conside- com uma densidade de conteúdo e rado apenas o local sintático de sua uma riqueza de detalhes geradora de manifestação: “O reconhecimento mundos possíveis, universos imagi- SELINFRAN de um valor permite, portanto, pres- nários que representam o mundo da supor que o objeto é o local sintáti- marca: “Em outros termos, as estru- co de sua manifestação” (GREIMAS, turas narrativas simulam a história da 2014, p. 35). busca de valores da procura de senti- Na construção de uma marca, uma do” (BARROS, 2001, p. 28). São estes forma-marca se apresenta como este mundos que alimentam a imaginação local sintático, para valorizar o proje- e que geram empatia e atração por to e abrigar o sentido, fazendo o con- parte dos consumidores. O mundo sumidor reconhecê-lo pela sua unici- possível faz parte do imaginário do dade de conteúdo. O sentido que se espaço social, devido ao fato de se encontra no interior da marca refere- localizar entre o polo de produção e -se ao conjunto de atributos que po- de recepção de troca permanente de dem ser considerados tudo o que a significações sendo alimentado de marca acredita e como pretende ser forma cíclica por ambos os lados. É vista pelo consumidor. Tais elemen- como se fosse um circuito fechado, tos correspondem ao universo da interligando tanto enunciador quan- identidade da marca e demarcam o to enunciatário, que se nutrem e se seu posicionamento. reconstituem com base neste circuito ininterrupto de interação. Deste modo, é preciso construir Por um lado, elas captam o ar dos um cenário rico que desperte o ima- tempos, os sinais e as mensagens ginário do consumidor para, pos- que circulam no espaço social e teriormente, buscar suportes con- pelos quais não são autoras. Por 115 cretos, ou seja, territórios onde as outro, remodelam esses elemen- manifestações emergirão: “Os tex- tos, combinando-os e organizan- tos publicitários estão presentes nos do-os em mundo possíveis que mais variados suportes e meios de elas reinjetem no espaço social, comunicação” (VOLLI, 2016, p. 16). contribuindo assim para alimen- Quando o consumidor entra em con- tar as novas recepções e um tato com as manifestações da marca, novo ciclo de trocas (SEMPRINI, o espaço de recepção se torna um 2010, p. 286). lugar de interação, onde o projeto Logo, o ponto principal da inter- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA e o próprio universo das manifesta- secção da teoria semiótica em rela- ções estão continuamente interliga- ção à construção identitária de uma dos com as mudanças que ocorrem marca e do consumidor de moda no contexto sociocultural da vida apoia-se no fato de que todo o uni- dos consumidores e com suas moti- verso de sentido, ou seja, as signifi- vações perante as propostas da mar- cações sempre estarão presentes no ca. É no centro do projeto de sentido interior do texto, prontas para serem IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX reveladas e, ao tocar o consumidor, de um percurso gerativo, com o pla- têm condições de alterar a percep- no de expressão” (BARROS, 1990, p. ção que este tem de si mesmo e do 80). mundo a sua volta. Uma marca de No semissimbolismo, tem-se a moda constrói-se nesta relação em SELINFRAN possibilidade de restituir na própria que a troca é essencial para dar con- imagem a ligação entre o plano de tinuidade a sua sobrevivência. Além disto, como afirma Carvalhal (2015), é expressão e de conteúdo através das encontrar o caminho onde a vida da categorias que os constituem. marca toca com a vida dos consumi- No plano de conteúdo, o nível mais dores e se misturam, onde possa ter profundo é o nível dos valores, em espaço para trocas, relacionamentos que estão posicionados os valores marcados por um jogo de valores essenciais que norteiam uma socie- que se entrecruzam e por ser cambi- dade e também denominado de nível áveis por conta da afinidade, se tem fundamental. Como afirma Barros, maior chance de fazer parte da vida “Em semiótica, as estruturas profun- dos consumidores conferindo senti- das são as estruturas mais simples do às suas escolhas. que geram as estruturas mais com- plexas” (2002, p. 15). 3. Análise de resultados e discus- sões Na análise da campanha da mar- ca, as oposições mínimas de senti- O objeto de análise deste trabalho do recuperadas através do discurso é a campanha de reposicionamen- principal giram em torno dos valores to da Riachuelo, lançada em março opositivos: individualidade vs. alteri- de 2017, em que o enunciador exibe dade, liberdade vs. opressão e vida para o enunciatário um novo contra- vs. morte. to enunciativo (seja você seja feliz), de modo que o discurso de individu- alidade e felicidade aparecerá, redun- 116 dantemente, em todas as campanhas publicitárias até o presente momen- to. O vídeo de reposicionamento da Riachuelo é veiculado em diferentes plataformas midiáticas e, por se tra- tar de um texto sincrético, acondicio- na tanto elementos escritos, verbais, como imagéticos, de modo que, pela LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA relação semissimbólica, cada uma das linguagens utilizadas serve de suporte e complementaridade para a construção do sentido, uma vez que “O texto resulta da junção do plano Riachuelo:: Seja você. Seja feliz! de conteúdo, construído sob a forma Disponível em: < www.youtube.com/watch?v=l- -7NRkB4U4w>Acesso em: 28 agosto 2018. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX O enunciador inscreve também, vestimento de tais valores. Quando além da liberdade, uma outra cate- o destinatário se afeiçoa a este sis- goria semântica, a vida que se opõe tema de valores, passa a reconhecê- a morte, para demonstrar toda a di- -lo como um conjunto de verdades namicidade da marca de moda frente ou de parecer verdadeiro, passando a um mercado regido por constantes a dar credibilidade à marca e esta- SELINFRAN transformações e a excessiva padro- belecendo, deste modo, um contrato nização. A própria pulverização do fiduciário com o destinador manipu- consumo leva marcas como a Ria- lador. Como afirma Greimas, “Na era chuelo a empenhar-se em destacar da manipulação em que vivemos, a estes traços distintivos de caráter distância entre a verdade e a certeza, constitutivo de sua identidade como entre o saber e o crer, é particular- delimitadores de diferenças perante mente visível” (2014, p. 124). a concorrência e como portadora de Além disto, a marca, enquanto um universo de valores que atenda destinador-manipulador, pode utili- a nichos variados de consumidores, zar outras maneiras para despertar que se conectem, contudo, em elos o fazer deste destinatário, ou seja, o em comum para preservar suas indi- agir do sujeito sobre o mundo. Nesta vidualidades, de modo a se reconhe- campanha, a Riachuelo utiliza da ma- cerem nas propostas oferecidas pela nipulação por sedução por mostrar marca. que, ao adquirir o produto, é possí- Em um nível superior a este, os va- vel o acesso a um mundo imaginário lores do nível mais profundo são co- aberto a auto expressão do sujeito, locados em uma estrutura narrativa, cheio de emoção e de relacionamen- organizados com base em uma gra- tos. Segundo Volli (2016, p. 92), a mática narrativa. No esquema narra- ideia é a de que o cerne de qualquer tivo canônico proposto por Greimas, tipo de história consiste uma ação ou a marca Riachuelo, enquanto desti- performance que conjuga o sujeito 117 nador manipulador, busca, pelos di- que a realiza com o que de concreto ferentes suportes midiáticos, seduzir e abstrato possa representar para si o destinatário, ou melhor, o consumi- o valor. dor de moda a entrar em conjunção Ademais, a marca utiliza também com o universo de valores ofereci- uma outra estratégia de manipulação, dos por ela. Segundo Barros (2002, que se dá pela provocação, quando p. 37), o destinador manipulador é delega ao consumidor a responsabili- quem determina os valores que serão dade ou o livre arbítrio de que a bus- visados pelo sujeito. ca da felicidade ou da expressividade UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Os produtos da marca servem de sua individualidade depende ex- como suporte para disseminação de clusivamente dele. Porém, para con- valores e são considerados adjuvan- seguir alcançar seus objetivos é pre- tes, pois, na realidade, são apenas ciso uma certa competência modal, o um lugar sintático que abriga o in- consumidor de moda precisa adquirir IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX habilidades e meios de conquistar o gurativo exaustivo, desperta no enun- valor econômico para a compra do ciatário um crer-verdadeiro devido à produto, ou seja, necessita de um po- semelhança com o mundo natural. der-fazer inicial para poder entrar em

SELINFRAN conjunção com objeto que lhe abrirá as portas do universo de valores da marca. Em uma etapa posterior, este des- tinatário realiza a performance, ao efetuar a compra, seja na loja física ou on-line, e em seguida é sanciona- do positivamente de forma pragmáti- ca pela compra do produto e escolha de um look criado pelo próprio con- sumidor, que quando reconhecido e aceito pela marca, pode ser postado nas redes sociais por ter correspon- dido às expectativas do enunciador. No nível mais próximo da mani- festação, o discursivo, os valores das narrativas são enriquecidos com as figuras do mundo, abrindo um le- que de infinitas possibilidades, como afirma Fiorin: “No nível discursivo, as formas abstratas do nível narrativo são revestidas de termos que lhe dão concretude” (2009, p. 41). 118 O percurso temático da vida apa- rece figurativizada por um grupo de Riachuelo: Seja você. Seja feliz! pessoas que dançam livremente em Disponível em: < www.youtube.com/watch?v=l- meio a um deserto. Em outra cena, -7NRkB4U4w>Acesso em: 28 agosto 2018. se apresenta figurativizada por um Já o percurso temático da individu- grupo de pessoas que transitam no alidade aparece na abertura da cam- cenário urbano do centro de Las Ve- panha figurativizada por um recorte gas, considerada a cidade do entre- de espelho em que o enunciatário re-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA tenimento e que abriga também os conhece o simulacro de si mesmo ao simulacros das grandes cidades do dialogar com o enunciador. Do mes- mundo, ou seja, a marca usa a iconi- mo modo, o enunciador, a Riachuelo, zação com a finalidade de produzir aparece figurativizada por uma mo- um efeito de realidade pela ilusão re- delo feminina, loira, de cabelos lon- ferencial. Para Barros (2002, p. 118), a gos que segura um espelho na mão iconização, pelo seu revestimento fi- em direção ao enunciatário. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX São ainda pelas figuras da se- as topológicas, que dizem res- mântica discursiva que se cria o efei- peito à distribuição espacial das to de realidade, assim como as figu- figuras no texto (a parte superior ras do plano de expressão também e inferior, a direita e a esquerda, periférica e central, delimitador

competem para gerar a referenciali- SELINFRAN delimitado); as eidéticas, relativas dade textual, ou seja, os efeitos de re- aos contornos e às linhas e, espe- alidade da semântica discursiva são cialmente, às suas características provenientes de uma cobertura figu- (se curvas, retas, contínuas ou rativa que na expressão são concreti- quebradas); e, por fim, as cate- zados sensorialmente: “As figuras de gorias cromáticas, respeitantes à expressão combinam-se e confun- presença das cores na superfície, dem-se com as metáforas e as me- sua quantidade, intensidade e sa- tonímias discursivas na tarefa de pro- turação (VOLLI, 2016, p. 81). duzirem uma nova leitura do mundo” Na imagem de abertura da campa- (BARROS, 2002, p. 154). nha, figurativizada por uma mulher Esta metodologia de comunicação que segura um pedaço de espelho, através do semissimbolismo permite é possível observar em termos de que o destinatário reconheça na pró- categorias semânticas as oposições pria imagem a ligação entre o plano mínimas do nível fundamental indivi- de expressão e de conteúdo através dualidade vs. alteridade. Percebe-se de categorias que os constituem: “O no plano de expressão a categoria princípio pelo qual a organização da topológica superior vs. inferior, que expressão, principalmente visual, se mostra uma marca plural no plano encontra em relação de correspon- superior em oposição a um consumi- dência pelo menos parcial com a dos dor único posicionado no plano infe- conteúdos é fundamental em publici- rior. Já na categoria eidética primei- dade” (VOLLI, 2016, p. 81). Um texto ro plano vs. segundo plano nota-se visual em publicidade tem condições que o cliente aparece na posição de 119 de seduzir o leitor sobre certas posi- destaque e a marca em segundo pla- ções de sentido. no, na categoria cromática opaco vs. brilhante, o cliente passa a ser o foco A análise é feita através do reco- das atenções pelo brilho posicionado nhecimento dos formantes plásticos na parte inferior onde pressupõe-se que compõe a imagem e que são fazer uma referência ao consumidor. produzidos através de três grupos de categorias denominadas de eidé- Em outro recorte da campanha, a ticas, topológicas e cromáticas. Os imagem aparece figurativizada por formantes são complexos percep- pessoas que dançam livremente no UNIFRAN DA LINGUÍSTICA tivos capazes de veicular sentido e deserto, sendo possível observar em aparecem quando há aplicação dire- termos de categorias semânticas as ta das categorias em uma imagem. oposições mínimas do nível funda- mental vida vs. morte. No plano de Podemos identificar três grandes grupos de categorias relevantes: expressão, observa-se a categoria IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX topológica superior vs. inferior com a ção como por provocação. É preciso vivacidade das pessoas em oposição estabelecer um contrato fiduciário, ao deserto. Já na categoria eidética ou seja crer ou parecer crer, com o vertical vs. horizontal observa-se a destinador manipulador, a marca Ria-

SELINFRAN vida nas pessoas e ausência de vida chuelo. A provocação por parte do no deserto e a categoria cromática destinador se faz presente na afir- claro vs. escuro a claridade da vida mativa do texto verbal (“ser mais, ser e do céu limpo contrapõe a ausência menos ou ser mais ou menos”), que de luz e inferior próxima ao deserto. questiona a incapacidade do destina- Nos vídeos da campanha da tário em tomar uma posição e decidir. marca, questões de enquadramen- Posteriormente, tenta o destinatário to direcionam para a perspectiva da a partir em busca da emoção que o imagem, que sugere a posição de fará sentir-se vivo, ou seja, mesmo observado para marca Riachuelo, com risco, o parecer crer no contrato que se mostra em uma posição su- oferecido pelo destinador poderá ser perior à do observador, o consumi- compensador. A Riachuelo, enquan- dor, que aparece representado pelo to destinador-manipulador, oferece espelho, sugerindo a sua dominância também sua essência aos destinatá- na relação. Pela posição do objeto no rios. contexto da imagem, é possível, pelo enquadramento, referir-se ao con- ceito de papéis sociais: “Este ponto pode ser socialmente significativo: um olhar vindo de baixo correspon- de à posição de fiéis perante o altar, ou dos súbditos perante o trono; um olhar próximo sugere familiaridade” 120 (VOLLI, 2016, p. 89). Na abertura do vídeo, o simulacro do enunciador representado pela mo- delo olha diretamente para o enun- ciatário, de modo a estabelecer a re- lação de interação através do contato visual. Este olhar é projetado para fora do vídeo de modo a convidar o Riachuelo: Seja você. Seja feliz enunciatário a entrar na relação. Nas Disponível em: < www.youtube.com/watch?v=l- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA interações sociais entre a marca e o -7NRkB4U4w>Acesso em: 28 agosto 2018. consumidor, observa-se um sujeito A marca demonstrar que o ajustar- de estado modalizado pelo ser, mas -se é muito mais do que dissolver-se também um sujeito do fazer que age na multidão e sim ter a segurança sobre o outro pelo querer ser e dever de reconhecer a si mesmo, em sua ser, tanto na manipulação por sedu- essência, na identidade do outro. É IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX quando a marca declara para o des- Considerações Finais tinatário: “não tenha medo de dividir A identidade de uma marca de tudo com todos, somos todos iguais moda constrói-se no decorrer de sua porque temos enormes diferenças”. trajetória, sendo concebida de dentro A relação se baseia em estar aberto para fora, de modo que, através uma SELINFRAN ao outro, pautado em um fazer con- análise no seu interior, tem-se acesso juntivo e mesmo com a probabilidade ao sujeito da enunciação e ao univer- do risco iminente de uma ruptura, ao so de significações que a constitui. optar por uma relação estabelecida Assim, no caso particular da marca pela realização mútua. Como aponta Landowski, “Na verdade, é também, Riachuelo, observa-se a construção é sobretudo frente a si mesmo que de uma tentativa de indicação para será preciso que cada um deles tenha determinados estilos de vida que re- a força de “manter-se” (2002, p. 23). presentariam os valores defendidos pela marca, pois sustentariam a sua A Riachuelo intenta propor o regi- identidade. A análise demonstra que me de ajustamento quando finaliza a manipulação para a compra é dei- seu discurso com o seguinte enun- xada apenas implícita para se desta- ciado: “Aceite. Respeite. Abrace e car os valores voltados a um estilo de beije. Seja você. Seja feliz”. vida livre, aventureiro e contemporâ- Consequentemente, a interação neo. não mais se assentará sobre o fazer crer, mas sobre o fazer sen- tir, - não mais sobre a persuasão entre inteligências, mas sobre o contágio, entre sensibilidades: fazer sentir que se deseja para fazer desejar, deixar ver seu pró- prio medo, e por este fato mes- mo amedrontar, causar naúsea 121 vomitando, acalmar o outro com sua própria calma, impulsionar – sem empurrar! – só por seu pró- prio ímpeto, etc. (LANDOWSKI, 2014, p. 51). A interação por ajustamento se dá pelo aceitar, mas respeitando o ou- tro concomitantemente. O risco e o medo se desfazem no instante em UNIFRAN DA LINGUÍSTICA que a busca pelo sentido recobre a existência humana com uma nova carga valorativa trazida pela escolha de arriscar-se pelo universo da expe- riência perceptiva. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

122 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RESUMO O objetivo desta pesquisa é analisar um Trabalho de Conclusão de Curso do curso de medicina, recentemente publicado em revista científica e verificar como são utilizadas as estratégias de textualização propostas pela Linguística do Texto, como os conhecimentos prévios do aluno são ativados e empregados na construção de sentidos desses textos. O arcabouço teórico será fundamen- tado pela Linguística do Texto, ancorando-se nas teorias propostas por Koch (1983, 2002, 2004, 2011), Marcushi (1983, 2008) e Beaugrande & Dressler (1981), mais especificamente ao que concerne os estudos sobre o processamento tex- tual e os critérios de textualização. A metodologia que orientará o trabalho será de caráter qualitativo e consistirá na análise dos textos contidos no TCC produzido pelo aluno. PALAVRAS-CHAVE Trabalho de Conclusão do Curso; Linguística do Texto; estraté- gias de textualização; estudantes de medicina. ABSTRACT The objective of this research is to analyze a Course Completion Work of the medical course, recently published in a scientific journal and to verify how 123 the textualization strategies proposed by Linguistics of Text are used, as the previous knowledge of the student are activated and used in the construction of these texts. The theoretical framework will be based on the Linguistics of the Text, anchoring itself in the theories proposed by Koch (1983, 2002, 2004, 2011), Marcushi (1983, 2008) and Beaugrande & Dressler (1981), more specifi- cally textual processing and textuality criteria. The methodology that will guide the work will be qualitative and will consist of the analysis of the texts contai- ned in the TCC produced by the student. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA KEYWORDS Course Completion Work; Linguistics of the Text; textualization strategies; medical students. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução científica com um “olhar linguístico” (como são ativadas as estratégias de Esta pesquisa teve início com textualizações) visto por estes obser- questionamentos levantados a partir vadores que desenvolvem este traba- de estudos da linguística moderna na lho. SELINFRAN perspectiva da Linguística do Texto. Por exemplo, as estratégias usadas O objetivo geral da pesquisa é am- pelo estudante de medicina no ato pliar os estudos na Linguística Textu- da realização do Trabalho de Conclu- al que seguem a linha da análise do são do Curso (TCC), diante de regras texto com todas as teorias modernas, e normatizações pré-estabelecidas. suas definições e conceitos. O objeti- Atuantes de outra esfera científica, vo específico, como previamente re- mas que tem materializado no texto latado acima, visa investigar o texto os seus conhecimentos adquiridos, produzido pelo aluno na perspectiva escrevem com finalidades específicas da linguística textual, verificar como da área médica. Mesmo assim per- são utilizadas as estratégias de tex- mitem serem analisados na área das tualização e como os conhecimentos ciências humanas, como veremos no prévios do aluno são ativados e em- decorrer do trabalho. pregados na construção de sentidos desses textos. Esses textos confeccionados pe- los estudantes de medicina, e outras Os materiais necessários para formas de avaliações produzidas de compor o corpus desta pesquisa fo- acordo com a grade curricular de ram os textos produzidos pelos alu- cada semestre, são avaliados pelos nos, como relatamos anteriormente. docentes e preceptores do curso, ob- Compassadamente, foram sendo ob- jetivando especificamente a aprova- servados e selecionados no decorrer ção ou a reprovação, de acordo com dessa pesquisa, respeitando, porém, a pontuação adquirida pelo aluno. as orientações e a evolução das in- 124 A grande quantidade de relatórios vestigações bibliográficas. Optou-se, descritivos, resumos, descrições de numa segunda etapa, por avaliar os procedimentos praticados, relatos de textos contidos dentro de um mes- casos clínicos, relatos de experiên- mo trabalho, definindo assim a me- cias, revisões de literatura, respostas todologia qualitativa como forma de descritivas de questões em provas análise. O trabalho escolhido no mo- bimestrais, o trabalho de conclusão mento foi publicado no ano de dois de curso e outros textos fez surgir o mil e dezessete na Revista Brasileira objeto desta pesquisa, embora per- de Cirurgia de Cabeça e Pescoço que

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA maneça em outra área científica. Com tem sede na cidade de São Paulo. É referências da Linguística Textual, composto de dez páginas, desde a mais especificamente nas estratégias introdução até as referências biblio- textuais, como descrito na funda- gráficas, e contém 32 parágrafos. mentação teórica adiante, ficou este Todas as leituras e revisões de re- objeto, que é o texto produzido pelo ferências levantadas nesta pesquisa aluno, passível de uma investigação foram direcionadas para considerar- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX mos o texto, sua textualização e o de descrever e explicar a língua den- contexto, como ancoragem teórica tro de um contexto, considerando as suas condições de uso. 1. Fundamentação Teórica eaugrande e Dressler (1981, p. 37),

Para se conseguir chegar aos ob- SELINFRAN cuja obra constitui um dos marcos jetivos propostos, os estudos dentro iniciais desse período, descrevem da Linguística Textual foram escolhi- que o texto é originado por uma dos como principal base teórica. Es- multiplicidade de operações cogniti- pecificamente, os estudos das estra- vas interligadas: “um documento de tégias de textualização, aplicando os procedimentos de decisão, seleção critérios propostos por Koch (2004) e combinação”, de modo que cabe- e Marcuschi (2008). ria à Linguística Textual desenvolver A Linguística Textual, a princípio, modelos procedurais de descrição pode ser aceita como um ramo da textual, capazes de dar conta dos linguística moderna, a qual toma o processos cognitivos que permitem texto como objeto de estudo e de- a integração dos diversos sistemas pende, principalmente, da definição de conhecimento dos parceiros de do que se conceitua como texto e de comunicação, na descrição e na des- todos os estudos e teorias linguísti- coberta de procedimentos para a sua cas que a embasam. É o que expla- atualização e tratamento no quadro naremos a seguir. das motivações e estratégias da pro- Para Marcuschi (apud BENTES, dução e da compreensão de textos. 2001), o surgimento da Linguística Segundo Koch (2003, p. 79), Textual deu-se, simultaneamente, de O texto se constitui enquanto tal forma independente em vários paí- no momento em que os parcei- ses, dentro e fora da Europa Conti- ros de uma atividade comunica- nental, e com propostas teóricas di- tiva global, diante de uma mani- versas. Havendo, assim, não só uma festação linguística, pela atuação 125 gradual ampliação do objeto de aná- conjunta de uma complexa rede de fatores de ordem situacional, lise da Linguística Textual, mas tam- cognitiva, sociocultural e intera- bém um progressivo afastamento da cional, são capazes de construir, influência teórico-metodológica da para ela, determinado sentido. Linguística Estrutural Saussuriana. Outros autores que desenvolvem O objeto de investigação da Lin- pesquisas usando as estratégias de guística Textual não é a palavra ou a textualização apresentam critérios e frase, mas, sim, o texto, uma vez que fatores, como pontos principais, de- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA os textos são formas específicas de pendendo do enfoque de cada um. manifestação da linguagem. Dentro Podemos citar: Marcuschi (1983), que desta perspectiva, a Linguística Tex- denomina como Fatores de Contex- tual ultrapassa os limites da frase e tualização os elementos decisivos concebe a linguagem como intera- para a interpretação. Giora (1985) ção. Assim, justifica-se a necessidade (apud Koch, 2004) apresenta a Con- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX sistência e a Relevância como requisi- como os elementos subjacentes à tos básicos para um texto ser coeren- superfície textual entram numa con- te. Também Koch e Travaglia (1989) figuração veiculadora de sentidos”. acrescentam o critério de focalização A situacionalidade, porém, somen- SELINFRAN além desses descritos. te é entendida quando se considera A contextualização dentro dos es- o texto como uma unidade em fun- tudos atuais da LT é o que mais contri- cionamento que tem um sujeito pro- bui para que o texto seja um produto dutor e os interlocutores numa rela- elaborado pelo autor com proprieda- ção temporal e espacial semelhantes, des e conhecimentos específicos, um fazendo com que haja uma coesão e resultado abrangente e “aberto” à vi- coerência adequada. são dos interlocutores. As estratégias Segundo Koch (2004, p. 40) cognitivas usadas ainda dependem do tempo, condições de elaboração, ... é preciso lembrar que o texto crenças, objetivos, lugar, circunstân- tem reflexos importantes sobre a situação, visto que o mundo cia diversas e outros fatores que in- textual não é jamais idêntico ao terferem nesta produção. mundo real, ao construir um tex- São os setes critérios de textuali- to o produtor reconstrói o mun- zação postulados por Beaugrand & do de acordo com suas experiên- Dresller (1981) (apud Koch, 2004, p. cias, seus objetivos, propósitos, 35) que embasam o desenvolvimento convicções, crenças, seu modo de ver o mundo (KOCH,2004, p. desta pesquisa e foram eleitos como 40). principais elementos para análise do corpus. Embora tenha recebido de Este critério (situacionalidade) outros estudiosos da LT algumas res- tem muita importância na análise do salvas, os critérios são divididos em corpus por serem o escritor e interlo- dois, que estão centrados no texto cutor de diferentes áreas científicas. 126 (coesão e coerência), e cinco centra- A intencionalidade refere-se aos dos no usuário: situacionalidade, in- diversos modos de como os sujeitos formatividade, intertextualidade, in- usam os textos para perseguir e re- tencionalidade, aceitabilidade alizar suas intenções comunicativas. A coesão pode ser de- A aceitabilidade é a contraparte da finida como sendo a forma como os intencionalidade. Em sentido restrito, elementos linguísticos, presentes na refere-se à atitude dos interloculocu- superfície textual, interligam-se e in- tores de aceitarem a manifestação terconectam-se por meio de recursos linguística do parceiro como um tex- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA também linguísticos, de modo a for- to coeso e coerente, que tenha para mar um “tecido” (tessitura) ou uma eles alguma relevância. unidade de nível superior ao da frase. A intertextualidade compreende as A coerência, de acordo com diversas maneiras pelas quais a pro- Beaugrande e Dressler (apud Koch, dução/recepção de um dado texto 2004, p. 40), diz respeito ao “modo depende do conhecimento de outros IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX textos por parte dos interlocutores, dita-se que é impossível nos comu- ou seja, dos diversos tipos de relação nicarmos verbalmente sem a utiliza- que um texto mantém com os outros ção de um gênero. Tal afirmação só textos. é utilizada por aqueles que tratam a

A informatividade diz respeito, por língua em seus aspectos discursivos SELINFRAN um lado, à distribuição da informa- e enunciativos e não simplesmente ção no texto e, por outro, ao grau de pelo seu aspecto estrutural e formal previsibilidade/redundância com que Segundo Koch (2004,p.161), os a informação nele contida é veicula- gêneros devem ser vistos como ar- da. Quanto à distribuição da informa- cabouços cognitivos-discursivos de- ção, é preciso que haja um equilíbrio terminados pelas necessidades te- entre informação dada e informação máticas das diversas práticas sociais nova. Koch (2004, p. 41) ainda pro- Para esta pesquisa, definiremos o põe que sejam acrescentados graus gênero científico acadêmico (TCC), no critério de informatividade e as- também conhecido como monogra- sim descreve: fia. Este gênero se enquadra assim Há portanto, graus de infor- para representar as escritas acadê- matividade: um texto cuja a micas que divulgam resultados, re- informação seja toda apresenta- visam a literatura num determinado da da forma mais previsível terá tema ou ainda dissertações com ob- baixo grau de informatividade; jetivos e conclusões de estudos aca- se a informação for introduzida, dêmicos. Tal gênero tem uma finali- pelo menos em parte, de forma menos esperada, menos previsí- dade acadêmica que é a obtenção de vel, haverá um grau médio de in- uma aprovação no final de cursos em formatividade; e se toda informa- todos os âmbitos universitários. ção for apresentada de maneira Neste gênero, os critérios de tex- imprevisível, o texto terá um grau tualização parecem seguir uma certa máximo de inforrmatividade e 127 padronização. Incluindo as descri- exigirá um grande esforço de processamento (KOCH, 2004, p. ções e outros textos produzidos pelo 41). aluno, todos conservam uma coesão e coerência já estabelecida dentro Todo embasamento teórico da deles. O que se diverge em partes Linguística do Texto, resumidamente são os critérios da situacionalidade apresentados acima, e as definições e a informatividade. Isso pode deter- de textos de todos os autores teori- minar um texto mais elaborado pelo zadas, servem para podermos reali-

produtor, mas preso ainda dentro UNIFRAN DA LINGUÍSTICA zar o fator principal da pesquisa que desse mesmo gênero acadêmico. é a análise do corpus, sabendo que todos os textos estão inseridos den- 2. Análise do corpus tro de um gênero textual. Para o processo de seleção do cor- Dentro da linguística moderna, e pus de análise da pesquisa, foram ne- também na linguística textual, acre- cessários dois momentos diferentes. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX No início, foram observados todos os ou símbolo específico da área mé- textos dos alunos que estavam agru- dica foram considerados elementos pados de acordo com as finalidades implícitos dentro do texto. Também da grade curricular do curso. Após não se preocupou em analisar as fra-

SELINFRAN um tempo de investigação com lei- ses separadamente como em uma tura, releitura e seleção, constatou-se correção gramatical, pois isso é uma que, para atender as necessidades característica da fase transfrástica dos objetivos específicos da pesqui- da LT e poderia descaracterizar os sa, poucos textos selecionados bas- trechos e parágrafos como um tex- tavam. Numa segunda etapa, deci- to propriamente conceituado pela LT. diu-se eleger o trabalho de conclusão Perceber a coesão é a intenção desta de curso (TCC) como foco principal primeira leitura, o que valida a análise da análise do corpus. e permite que o texto seja ainda ava- Os trabalhos foram fragmentados liado pelos outros critérios. em textos menores (parágrafos e tre- Para verificar a coerência dos chos), para melhor verificar o proces- textos deste corpus, alguns funda- samento textual, os conhecimentos mentos da linguística textual, espe- adquiridos e aplicar os critérios de cificamente da textualização, foram textualização. usados. Especificamente sobre esta Obedeceu-se a uma ordem de lei- coerência, Koch (2004) esclarece tura dos parágrafos e trechos e apli- que a construção de um texto não cação dos objetivos. Primeiramente, depende somente do modo como se foram avaliados os critérios direta- combinam os elementos linguísticos, mente ligados ao texto: a coesão e mas também dos conhecimentos a coerência. Após esta avaliação, fo- prévios do produtor e interlocutor ram aplicados os critérios centrados sobre o mundo, e sobretudo em que no interlocutor: Aceitabilidade, Inten- tipo de mundo esse texto se insere, 128 cionalidade, Intertextualidade, Infor- pois um texto incoerente só pode ser matividade e Situacionalidade. considerado como tal se também o interlocutor não perceber nas sequ- A aplicação do critério da coesão ências (trechos ou frases) uma uni- é feita de modo rápido numa primei- dade de sentido. ra leitura, verificando como os ele- mentos coesivos (os pronomes, os Seguindo os fundamentos que verbos, as conjunções, os advérbios, designam a coerência de um texto, as concordâncias nominais e outros numa segunda leitura procurou-se analisar todos os elementos linguís-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA elementos) se entrelaçam para for- mar uma unidade de sentido harmô- ticos que então constroem uma co- nica. Os textos com frases descone- erência razoável dentro dos textos. xas e sem sentido foram poucos e A princípio, usamos nessa segunda excluídos na primeira fase da análise leitura, uma aceitabilidade maior pela do corpus. Os erros ortográficos sem visão do avaliador, justificado pelo relevância, alguns termos e signos gênero científico em que o texto se IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX encontra. Isso graças à ativação do Para início da análise, foram esco- conhecimento de mundo arquivado lhidos quatro parágrafos extraídos na memória do interlocutor dentro do TCC, como relatamos acima. Este desse mundo textual (gênero TCC). primeiro trecho selecionado foi escri-

Embora limitado a regras e normati- to na segunda página na seção (resu- SELINFRAN zações específicas, é amplo e aberto. mo) e copiado integralmente, como Desse modo, nos textos selecionados segue abaixo. e analisados, não foram observadas A DO22 não é realizada por um nenhuma incoerência linguística. grande número de cirurgiões mesmo que a técnica propor- Agora é importante relembrarmos cione avanços satisfatórios da que os fatores usados na construção região craniofacial. Os alonga- da coerência (Koch, 2006, p 71) de- mentos ósseos são mais estáveis pendem do conhecimento de mundo e têm baixo índice de recidiva, do produtor e do interlocutor. sendo que os avanços permitem até 20 mm em todo o esqueleto Os critérios centrados no usuário craniofacial e tecidos adjacentes, são todos aplicados, sendo que a In- o que não é facilmente propor- tertextualidade, a Aceitabilidade, a cionado por procedimentos sem Intencionalidade foram aplicados de a DO. uma forma menos intensa, enquan- Este é um texto que, quando se to a Situacionalidade e a Informati- lê pela primeira vez, apresenta certa vidade tiveram maior relevância na dificuldade de interpretação, consi- análise. A informatividade (que é a derando o interlocutor que não atua especificidade do corpus) ainda foi na área médica, mas para um leitor/ aplicada em graus diferentes, confor- avaliador da mesma área, que con- me o objetivo desta pesquisa. textualiza o tema e a localização do parágrafo, fica mais rápida a interpre- Baseado nos graus de informati- tação. Linguisticamente, observa-se 129 vidade propostos por Koch (2004), que se trata de uma informação que os parágrafos foram classificados em tem uma coesão satisfatória, pois os baixo, médio e alto grau, como vere- elementos e as concordâncias das mos abaixo. frases formam uma unidade de in- O TCC selecionado para análise formação (um texto). A coerência do conteúdo tem como tema: Distra- se verifica quando se contextualiza ção osteogênica nas anormalidades este parágrafo com o tema e tam- faciais: uma revisão. Este trabalho é bém pela posição que ocupa no TCC LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA composto de dez páginas, divididos (seção: conclusão). Estes dois crité- conforme as normas do curso em rios estão centrados no texto. Dos seções assim descritas: resumo, abs- outros cinco critérios, a situacionali- tract, introdução, método, revisão de dade tem muita relevância neste pa- rágrafo como também em todos os literatura, discussão, conclusão e re- outros, pois como relatamos ante- ferências bibliográficas. 22 Distração Osteogênica IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX riormente, a situação em que estão demos dizer que isto é esperado em os usuários (produtor/leitor) permite todos os trabalhos (TCC) separados uma interpretação adequada. Outro e observados, como relatamos ante- SELINFRAN critério aplicado é a informatividade riormente. Considerando o interlocu- e os seus graus, de acordo com Koch tor da mesma área do relator, pode- (2004). Podemos classificar o texto -se dizer que apresenta um nível de como detentor de um grau médio de conhecimentos prévios e enciclopé- informatividade, pois apresenta uma dicos razoável. certa previsibilidade das informações Este outro parágrafo descrito abai- descritas, e existe ainda um equilíbrio xo, para ser analisado, está situado na entre informações novas e informa- segunda página da seção (resumo). ções esperadas. Considerando o in- terlocutor da mesma área do relator, A distração osteogênica (DO) pode-se dizer que apresenta um bom é definida como a formação de nível de conhecimentos prévios e en- novo osso após deslocamento ciclopédicos, pois é o primeiro pará- gradual e controlado de frag- mentos ósseos obtidos por oste- grafo da seção (conclusão) que jus- otomias. tifica a revisão bibliográfica do TCC. Neste parágrafo, o produtor dis- Este outro parágrafo abaixo foi es- põe os elementos coesivos para for- crito na quinta página da seção (mé- mar uma unidade em funcionamen- todo). to. E de forma coerente, informar a Para a realização da revisão de definição do termo que se denomi- literatura foram utilizadas as ba- na “distração osteogênica’. O crité- ses eletrônicas Medline, PubMed rio de situacionalidade também fica e Bireme, com as seguintes pa- evidente aqui, pois os propósitos e lavras-chaves: osteogênese por 130 distração e anormalidades faciais, convicções do produtor estão em juntamente com seus respectivos outra esfera científica, o que torna a termos na língua inglesa. interpretação do leitor de outra área um pouco desconfortável. Ainda um Observa-se que o texto tem coe- interlocutor da mesma área terá que são pela forma como dispõe os ele- contextualizar o texto com seus co- mentos que se interligam, formando nhecimentos científicos. A informa- uma unidade. E coerência, embora tividade pode ser classificada aqui informe somente as bases eletrôni- de alto grau, pois é uma informação cas usadas para a realização da revi-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA nova para o leitor que não atua na são, interpretado normalmente, sem área médica, enquanto para o inter- muita dificuldade. Quando aplicados locutor da mesma área ainda é ines- os critérios de textualização, mais es- pecificamente a informatividade, po- perada, pois está na seção (resumo) demos classificar em um baixo grau no primeiro parágrafo, onde aparece de informatividade, pois apresen- pela primeira vez o termo DO. Consi- ta uma previsibilidade alta, ou seja, dera-se com um bom nível de conhe- quase inexiste nova informação. Po- cimento prévio. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Este outro parágrafo está descrito Podemos considerar aqui um grau na quinta página na seção (introdu- de informatividade alto, pois o texto, ção): como um todo, faz uma afirmação Apesar dos diversos estudos re- conclusiva. Toda informação conclu-

alizados em modelos animais, a siva na esfera médica, baseada em SELINFRAN padronização das técnicas para revisão bibliográfica ou pesquisa es- tratamento das anomalias cra- tatística, tem alto valor científico, pois niofaciais tem sido limitada de- as novas e melhores informações são vido à falta de estudos baseados aquelas que respondem aos questio- em evidências. namentos científicos dos problemas Aqui o critério de coesão também biológicos com dificuldade de serem foi ativado pelo produtor de uma for- solucionados. Por exemplo, quando ma correta, de modo a formar uma afirma que: “...Os movimentos [...] de- unidade em funcionamento que de vem permanecer”. Esta informação é modo coerente informa ao leitor o muito relevante e muito informativa. seguinte: “...a padronização das téc- Assim, este trecho conclusivo ilustra nicas... tem sido limitada... devido à muito bem esses diferentes graus falta de estudos...”, proporcionando de informatividade proposto por sentido ao texto. A situacionalidade, Koch(2004). critério centrado no usuário, também é relevante aqui, pois a interpretação Considerações finais do leitor depende dos conhecimentos Durante o desenvolvimento deste da mesma área. A informatividade, trabalho, os estudos linguísticos fo- classificaremos aqui, é de alto grau, ram sendo intensificados na tentativa pois é uma informação nova mesmo de responder aos questionamentos considerando o leitor da mesma área. levantados e também atingir os ob- O aluno aciona conhecimentos enci- jetivos propostos, o que enriqueceu clopédicos prévios de alto nível de a pesquisa no sentido teórico e tam- investigação bém ajudou a melhorar as investiga- 131 No parágrafo abaixo também fo- ções científicas. ram aplicados todos os critérios de Considerando desde os textos ob- textualização, como estamos anali- servados antes da análise do corpus sando até o momento, mas com ên- até o momento atual da pesquisa, ve- fase ao grau de informatividade que rifica-se uma evolução gradual no as- é o critério mais relevante no corpus pecto geral da dissertação. Os ques- desta pesquisa. Vejamos: tionamentos de pequena relevância A técnica não deve substituir foram sendo esclarecidos e os que

os tratamentos cirúrgicos necessitavam de estudos aprofunda- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA convencionais com osteotomias dos e aplicação das teorias mais res- tradicionais. Os movimentos tritas com grau de dificuldade maior que podem ser realizados de estudo tornaram-se objetivos. satisfatorialmente com os procedimentos convencionais Acreditamos que a análise do Tra- com um único estagio cirúrgico, balho de Conclusão do Curso do alu- devem permanecer.” no de medicina sob a perspectiva da IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX linguística textual que surgiu de pe- mesmo, mais completo no que refere quenos questionamentos fica, a cada aos objetivos propostos inicialmente. recorte ou descrições derivadas do SELINFRAN

132 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Terezinha Gorete Vilela SOARES SELINFRAN Juscelino PERNAMBUCO

RESUMO Esta pesquisa objetiva investigar como se dá a formação docente no que se refere ao trabalho com as tecnologias digitais e propor alguns princípios para uma nova proposta de ensino dessas tecnologias à luz das reflexões de Bakhtin e de seu Círculo. O corpus da pesquisa constitui-se da análise da Resolução CNE/CP nº 2/2015 do Ministério da Educação (MEC) que define as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a formação inicial em nível superior. Assim, o estudo se concentra na caracterização desse documento oficial normativo como um gênero do discurso e na verificação do modo como se travam nele as relações dialógicas. A fundamentação teórica baseia-se nas reflexões de Bakh- tin e de seu Círculo, bem como nos trabalhos de seus comentadores, tais como Faraco (2009), Brait (2005/2016/2017), Grillo (2016), Marchezan (2016), Fiorin (2017). Quanto às tecnologias e o seu uso no ensino, a pesquisa tem apoio teó- rico nos estudos de Tajra (2012), Rojo (2015) e Cerny et al. (2017). PALAVRAS-CHAVE Bakhtin; gênero discursivo; dialogismo; tecnologias digitais; di- retrizes curriculares nacionais para a formação docente. ABSTRACT This objective research investigate as it takes place the a teaching formation 133 as for the work with the digital technologies and to consider some principles for a new proposal of education of these technologies to the light of the reflections of Bakhtin and its Circle. The corpus of the research consists of the analysis of Resolution CNE/CP nº 2/2015 of the Ministry of Education (MEC) that it defines the Directives Curricular National (DCNs) for the initial formation in superior level. Thus, the study is concentrated in the characterization of this normative official document like a type of the speech and since if they stop in it the dia- logic relations. The basis theoretical it is on the reflections of Bakhtin and its

Circle, as well as in the works of its commentators, such as Faraco (2009), Brait UNIFRAN DA LINGUÍSTICA (2005/2016/2017), Grillo (2016), Marchezan (2016), Fiorin (2017). How much to the technologies and its use in education, the research has theoretical support in the studies of Tajra (2012), Rojo (2015) and Cerny et al. (2017). KEYWORDS Bakhtin; discursive type, dialogism; digital technologies; directive cur- ricular national for the teaching formation. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução Dessa forma, a incorporação dos Esta investigação tem como foco recursos tecnológicos no processo a formação do professor no uso das de formação dos professores torna- tecnologias digitais no contexto edu- -se necessária, uma vez que estamos SELINFRAN cacional. Esse tema é um convite à no meio de uma convergência tecno- reflexão sobre o ambiente escolar de lógica digital e se percebe que muitos deles não fazem uso desses recursos, aprendizagem ocupado por alunos pois ainda não recebem instruções com os seus celulares e submersos adequadas sobre seu uso. Esses re- nas mídias digitais, comunicando-se cursos representam uma constante entre si e acessando diversas infor- na vida em sociedade, propagando mações, e pelo professor, presente e informação, divulgando conhecimen- responsável pela mediação dos co- tos científicos e a escola nem sem- nhecimentos. pre está preparada para possibilitar Nesse contexto, a centralidade que aos alunos condições de ampliar as os professores ocupam nos espaços habilidades para o uso desses meios. do conhecimento solicita novas ati- Tajra (2012) defende que a tecnolo- tudes e modos de encaminhamen- gia digital é uma maneira sistemáti- to da busca de conhecimento dos ca de elaborar, levar a cabo e avaliar alunos por meio das tecnologias di- os processos de aprendizagens, em- gitais. Nossa hipótese de base con- pregando combinações de recursos tém a ideia de que o professor, como humanos e materiais para conseguir agente ativo, deve ser o primeiro a se aprendizagens mais efetivas e efi- preparar para saber atuar diante de cientes. Segundo ela, a incorporação tantas mudanças trazidas pelas tec- das tecnologias provoca “um proces- nologias digitais na atualidade. so de mudança contínuo não permi- tindo mais uma parada, visto que as A escola encontra-se em uma en- mudanças ocorrem cada vez mais 134 cruzilhada entre o ensino tradicional rapidamente e em curtíssimo espaço e a ampliação das habilidades dos de tempo” (TAJRA, 2012, p. 125). alunos no uso dos meios tecnológi- cos, das mídias e das comunicações, O corpus da pesquisa constitui-se ficando com a responsabilidade de da análise da Resolução CNE/CP nº monitorar os desdobramentos que a 2/2015, de 1º de julho de 2015, produ- tecnologia digital provoca, assumin- zido e aprovado pelo Conselho Pleno do a verificação do que é pertinen- (CP) do Conselho Nacional de Edu- te ou não para o ensino e a apren- cação (CNE) em consonância com o LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA dizagem. Dessa forma, justifica-se a Ministério da Educação (MEC), que pesquisa sobre o modo como se dá define as Diretrizes Curriculares Na- orientação oficial por meio de reso- cionais (DCNs) para a formação ini- luções e a formação do docente para cial docente em nível superior e o uso o uso dos recursos tecnológicos no das tecnologias digitais. A citada Re- ensino. solução é direcionada para a organi- zação dos cursos de graduação em IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX licenciatura, formação pedagógica ção do modo como se travam nele as para graduados não licenciados e se- relações dialógicas para o tema pro- gunda licenciatura. Além de norma- posto. O objetivo específico está em tizadoras e reguladoras da formação descobrir como acontece a formação

docente, as DCNs dimensionam tam- do docente para o uso das tecnolo- SELINFRAN bém a expectativa social e ideológica gias digitais e os modos de uso des- acerca do que se espera do profissio- tas nas ações pedagógicas. nal docente, o egresso do curso de Esta pesquisa é de cunho quali- formação docente. tativo e bibliográfico, sendo que in- As DCNs consideram que a con- vestigaremos, primeiramente, toda solidação das normas nacionais para a bibliografia referente aos gêneros a formação docente é indispensável do discurso e às relações dialógicas para o projeto nacional da educa- em Bakhtin, seu Círculo e seus co- ção brasileira; a concepção sobre co- mentadores e, simultaneamente, en- nhecimento, educação e ensino são caminharemos uma análise do docu- basilares; a preparação profissional mento normativo, em busca de sua docente requer aprendizagem autô- compreensão como gênero discursi- noma e contínua ao longo da vida; e vo e como dialoga com a comunida- que o currículo de formação é o con- de docente que trabalha com as tec- junto de valores que contribui para a nologias digitais. construção e o desenvolvimento do Com a finalidade de analisar esse aprendizado. tema, foram feitas leituras e um le- Esta Resolução apresenta uma es- vantamento bibliográfico sobre os treita relação entre os sujeitos por assuntos em diversos livros, teses, meio do diálogo promovido pela dissertações e artigos, entre os anos enunciação, um ponto de tensão en- de 2013 e 2018, em bibliotecas virtu- tre as vozes do Conselho Nacional de ais, a partir das palavras-chave: Bakh- 135 Educação (CNE), as Instituições de tin, formação inicial docente, ensino Ensino Superior (IES) e os sujeitos superior e tecnologia educacional di- em formação acadêmica e escolar. gital. Nesse contexto, esta pesquisa tem A partir de um percurso metodoló- como objetivo investigar como se dá gico que toma como ponto de parti- a formação do docente no que se re- da a análise de textos que constituem fere ao trabalho com as tecnologias gêneros da esfera jurídico-normativa, digitais e propor alguns princípios analisaremos a constituição da Reso- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA para uma proposta de ensino des- lução Normativa CNE/CP nº 2/2015 sas tecnologias à luz das reflexões de na sua dimensão global. Nosso pro- Bakhtin e seu Círculo. Para isso, con- pósito é verificar como esse texto centra-se na caracterização de um se organiza como gênero e qual é documento oficial normativo como o conjunto de valores que preside à um gênero do discurso e na verifica- sua organização. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX 1. Fundamentação teórica Não se produzem enunciados fora das esferas de ação, o que A fundamentação teórica baseia-se significa que eles são determi- nas reflexões de Bakhtin e de seu Cír- nados pelas condições específi- culo (2011), bem como nos trabalhos SELINFRAN cas e pelas finalidades de cada de seus comentadores, tais como Fa- esfera. Essas esferas de ação raco (2009), Brait (2005/2016/2017), ocasionam o aparecimento de Grillo (2016), Marchezan (2016), Fio- certos tipos de enunciados, que rin (2017), entre outros autores estu- se estabilizam precariamente e diosos do filósofo. Quanto às tecno- que mudam em função de altera- logias digitais e o seu uso no ensino, ções nessas esferas de atividades a pesquisa tem apoio teórico nos es- (FIORIN, 2017, p. 68). tudos de Tajra (2012), Rojo (2015) e Esfera ou campo é o conceito que Cerny et al. (2017). Bakhtin (2011) utiliza para nomear os ambientes em que os discursos são A linguística defendida por Bakh- produzidos, entram em circulação e tin é considerada uma translinguís- são recepcionados. Ele estabelece tica porque ultrapassa a visão de que o sujeito enuncia a partir de uma língua como sistema. Para o autor, dada esfera ou campo da atividade não se pode entender a língua iso- humana, e que a noção de esfera fa- ladamente, para se observar os sen- cilita a compreensão da natureza e tidos de uma enunciação, é preciso da classificação do gênero. Diante considerar os fatores extralinguísti- disso, Rojo (2015, p. 68) afirma que cos nas análises, como o contexto da “é a finalidade, o funcionamento e a situação de comunicação (da fala, a especificidade da esfera/campo em relação do falante com o ouvinte) e seu tempo e lugar histórico que de- o contexto social no sentido amplo terminam as características do gê- (dimensão social, momento histórico nero discursivo no que ele tem tanto e socioideológico). Ao se apropriar 136 de estável como de flexível”. Fiorin de determinado enunciado, o sujeito (2017) nos fornece alguns exemplos leitor (interlocutor) se torna sujeito de esferas: familiar, acadêmica, tec- ativo responsivo, pois, ao compreen- nológica, publicitária, literária, coti- dê-lo, se posiciona em relação a ele diana, escolar, religiosa, jornalística, em um processo ativo. jurídica, científica, didática, comer- Destarte, o ponto de partida na cial, pessoal, de entretenimento, ín- teoria dos gêneros é o vínculo que tima, entre muitas outras existentes. existe entre o uso da linguagem e as Grillo (2016) afirma que a noção de LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA atividades humanas. Essas atividades esfera está presente em toda a obra se realizam em esferas diversificadas de Bakhtin e que os seus conceitos e infinitas, cada campo de utiliza- revelam uma atenção à diversidade ção da língua elabora os seus tipos das manifestações culturais huma- de enunciados, ou seja, não há como nas. Isso se constitui como uma alter- produzir enunciados fora de uma es- nativa para pensarmos as especifici- fera de ação. Segundo Fiorin: dades das produções ideológicas e IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX para compreendermos a origem e a de um gênero discursivo. Até mesmo classificação dos gêneros. nos simples diálogos entre amigos, o discurso é organizado com o intui- Assim, cada esfera elabora seus to de prover a comunicação clara e gêneros ou pode comportar um re- objetiva, ou seja, repassar a ideia do SELINFRAN pertório de gêneros do discurso. Rojo falante. Em outras palavras, a enun- (2015, p. 68-69) afirma que “o que a ciação é moldada pelos gêneros dis- esfera/campo define é um amplo le- cursivos: que de possibilidades: um rico reper- tório de gêneros variados que se am- Nós aprendemos a moldar o nos- so discurso em formas de gêne- plia à medida que a esfera/campo se ro e, quando ouvimos o discur- expande”. so alheio, já adivinhamos o seu O conceito de esfera contempla gênero pelas primeiras palavras, uma situação específica de dizer, o adivinhamos um determinado tempo e lugar histórico (cronotopo volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do dis- na perspectiva bakhtiniana), os parti- curso), uma determinada cons- cipantes da enunciação, as possibili- trução composicional, prevemos dades de relações sociais e um leque o fim, isto é, desde o início temos de conteúdos temáticos possíveis. a sensação do conjunto do dis- curso que em seguida apenas se Sendo assim, a esfera define ma- diferencia no processo de fala neiras de dizer e enunciar. O filósofo (BAKHTIN, 2011, p. 283). (2011) considera que o enunciado é uma unidade da comunicação dis- Os gêneros discursivos incluem a cursiva, que pode ser falado ou escri- variedade de diálogos do cotidiano to, pressupõe-se como ato da comu- e também enunciados da vida social, pública, institucional, artística, filosó- nicação social, é uma unidade real de fica etc. Dessa maneira, são concebi- um discurso, além de ser um elemen- dos com finalidades comunicativas to expressivo que mostra a relação e expressivas de interação, manifes- 137 subjetiva, emocional e valorativa do tações e lutas com os nossos pensa- falante com o conteúdo de um obje- mentos. Nas palavras de Bakhtin: to e do sentido do seu enunciado. O enunciado é pleno de tonalida- Na teoria bakhtiniana, toda enun- des dialógicas, e sem levá-las em ciação faz parte de um gênero discur- conta é impossível entender até sivo, que se define pelo seu propósi- o fim o estilo de um enunciado. to comunicativo e forma linguística. Porque a nossa própria ideia – É na dialogia do enunciado que es- seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo tão inseridos os gêneros dos discur- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA de interação e luta com os pen- sos, o que é possível de se perceber samentos dos outros, e isso não pela temática, composição e estilo da pode deixar de encontrar o seu enunciação. Portanto, só nos comu- reflexo também nas formas de nicamos, falamos e escrevemos por expressão verbalizada do nosso meio de gêneros do discurso. Logo, pensamento (BAKHTIN, 2011, p. não há comunicação sem a formação 298). IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Para Bakhtin (2011), o trabalho com Por um lado, o dialogismo diz a língua opera através de enunciados respeito ao permanente diálogo, concretos em seu aspecto expres- nem sempre simétrico e harmo- sivo. Assim, o estilo está indissolu- nioso, existente entre os diferen- SELINFRAN velmente ligado ao enunciado e aos tes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, gêneros do discurso. O enunciado se uma sociedade. É nesse sentido manifesta por estilos e são correias que podemos interpretar o dia- de transmissão entre a historicidade logismo como o elemento que da sociedade e linguagem. instaura a constitutiva natureza Nota-se, dessa forma, que a rique- interdiscursiva da linguagem. Por za e a diversidade dos gêneros dis- outro lado, o dialogismo diz res- peito às relações que se estabe- cursivos são infinitas e respeitam as lecem entre o eu e o outro nos questões ideológicas de cada época, processos discursivos instaura- os efeitos de sentido discursivo, as dos historicamente pelos sujei- vozes e as apreciações de valor que tos, que, por sua vez, se instau- o sujeito do discurso faz, cabendo ram e são instaurados por esses novas interpretações em cada nova discursos (BRAIT, 2005, p. 94- atividade humana. Conforme Bakh- 95) tin (2011, p. 294) “em cada época, em De certa forma, o termo dialogismo cada círculo social, em cada micro- está em uma perspectiva mais volta- mundo familiar, de amigos e conhe- da para o produto da enunciação, nas cidos, de colegas, em que o homem relações das vozes e nos atos da co- cresce e vive, sempre existem enun- municação dialógica. Conforme Mar- ciados investidos de autoridade que chezan (2016), o diálogo, na relação dão o tom”. com o gênero, torna-se um conceito Mikhail Bakhtin define o dialogis- fomentador e organizador de uma 138 mo como o permanente diálogo exis- reflexão, por consequência, o próprio tente entre os diferentes discursos, o conceito de gênero é caracterizado processo de interação interdiscursivo com base no diálogo. da linguagem, que ocorre tanto na É a partir do diálogo do contex- escrita como na leitura, pois o texto to enunciativo que se estabelecem não é visto isoladamente, mas, sim, as relações dialógicas com as vozes correlacionado com outros discursos mais próximas e as mais distantes, similares ou próximos. Assim, o dialo- as quais são entendidas por Bakhtin gismo se manifesta nas relações que (2011) como relações dialógicas no se estabelecem entre o eu e o outro, LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA pequeno e no grande tempo, pois, nas diversas vozes presentes em um para ele, não existem limites e nada mesmo discurso e nas relações de está absolutamente morto, uma vez vozes de um discurso com outro. É, que as formas podem ser renova- portanto, resultante de um enfrenta- das e, consequentemente, estabele- mento de vozes. Brait (2005), ressal- cer novos contextos. Para o filósofo ta que, Bakhtin (2011, p. 401), “o texto só tem IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX vida contatando com outro texto réplicas e a busca de sentido, susci- (contexto). Só no ponto desse con- te respostas e confrontos ao dito, e tato de texto eclode a luz que ilumi- acolha a palavra do outro para confir- na retrospectiva e prospectivamente, má-la ou rejeitá-la, permitindo, dessa

iniciando dado texto no diálogo”. maneira, a geração de uma significa- SELINFRAN ção responsiva. Os efeitos de sentidos são encon- trados nas manifestações reais da lín- O filósofo russo (2011) esclarece gua no interior de uma enunciação. que as relações dialógicas são pos- Sendo assim, as categorias linguísti- síveis entre enunciados integrais, e cas ganham sentido e identidade no também em uma palavra isolada se conjunto da enunciação. Conforme nela chocar dialogicamente duas vo- Fiorin (2017, p. 22): “Todo discurso zes, isto é, se uma representar partes que fale de qualquer objeto não está significantes de outra voz. Sendo as- voltado para a realidade em si, mas sim, as relações dialógicas são bem para os discursos que a circundam”. mais amplas que o diálogo no senti- do restrito, por isso, pode ocorrer em Faraco (2009) comenta que Bakh- relação ao todo do enunciado, em tin caracteriza as relações dialógicas partes separadas e em relação a uma como relações de sentido que se es- só palavra do seu interior. Dessa for- tabelecem entre enunciados ou mes- ma, Bakhtin (2011, p. 327) afirma que mo no seu interior, fazendo referência “A relação com o sentido é sempre à interação verbal, e não visa apenas dialógica. A própria compreensão é ao evento face a face, mas também à dialógica”. dialogização interna do discurso. Dessa forma, uma análise dialógi- Para Bakhtin (2011), onde há enun- ca adequada é possível a partir de ciado, há relação dialógica, pois nele observações que levem em conta o tem sujeito enunciador, interlocutor material linguístico e as suas ramifi- (que pode ser o enunciador) e um cações. Brait (2016) nos diz que, para 139 contexto de vozes sociais e indivi- o entendimento do discurso em uma duais emoldurado. É a partir dessas perspectiva dialógica, necessita-se múltiplas vozes que essas relações se de um olhar particular para as práti- constituem. Segundo Fiorin (2017, p. cas discursivas, levando-se em conta 31), “os fenômenos presentes na co- os contextos linguísticos e os mais municação real podem ser analisa- amplos, os extralinguísticos. Sendo dos à luz das relações dialógicas que assim, a dialogia é o confronto do en- os constituem”. toamento e dos sistemas de valores

Segundo o filósofo (2011), para que que posicionam as visões de mundo UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ocorram relações dialógicas, é preci- em determinado campo de visão. so que qualquer material linguístico 2. Análise piloto do corpus tenha entrado na esfera do discurso, seja um enunciado, isto é, ganhe au- Nosso corpus de pesquisa consti- tor, materialize-se, torne-se concreto, tui-se da análise da Resolução CNE/ assuma uma posição social, permita CP nº 2/2015, de 1º de julho de 2015, IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX produzida e aprovada pelo Conselho Dessa forma, a Resolução tem um Pleno do Conselho Nacional de Edu- caráter legal. Mesmo não se configu- cação (CNE), em consonância com o rando como Lei, tem funções regu- Ministério da Educação (MEC), que latórias emanadas de órgãos oficiais SELINFRAN define as Diretrizes Curriculares Na- públicos destinadas a disciplinar de- cionais (DCNs) para a formação ini- terminado assunto de interesse inter- cial docente em nível superior e o no. Portanto, é uma enunciação em uso das tecnologias digitais. Ao ana- que o enunciador tem autoridade lisarmos esta Resolução, partimos do para resolver, decidir e deliberar so- pressuposto bakhtiniano de que ele é bre algo. Sendo assim, espera-se que um enunciado, faz parte de um gêne- o interlocutor envolvido tome conhe- ro discursivo e de uma esfera da ativi- cimento acerca do enunciado, aja em dade humana, pois é inexaurível e, ao conformidade com o conteúdo pres- se tornar enunciado, ele ganha rela- crito e se revista de vigilância para tiva conclusibilidade, há em seu con- fazer cumprir uma determinação, es- texto objetivos determinados, isto é, tabelecendo uma relação de cumpli- posicionamentos de valores do autor cidade entre autores e interlocutores no texto perante uma ideia definida. no cumprimento das normas estabe- A Resolução CNE/CP 2/2015 cons- lecidas. titui no gênero do discurso norma- Essa Resolução corresponde a um tivo, com todas as características tipo relativamente estável de enun- de um gênero secundário, confor- ciado, cujas características se apro- me a descoberta bakhtiniana (2011, ximam do agrupamento dos gêne- p. 263). Trata-se de um documento ros discursivos secundários, gêneros oficial normativo que possui funções estes considerados mais elevados deliberativas e normativas. Segundo e oficiais, pois não permitem muita o dicionário Aurélio da Língua Por- flexibilização porque são mais insti- 140 tuguesa (FERREIRA, 1988, p. 566), tucionalizados e estabilizados, pos- Resolução significa “ato ou efeito de suindo peso específico e maior em resolver-se”, “decisão, deliberação”, relação a outros tipos de discursos. isto é, tem potencial para deliberar. Conforme Cury, Conforme Cury, É nessa hierarquia que um Pare- A resolução é um ato normativo cer e especificamente uma Re- emanado de autoridade específi- solução, enquanto atos adminis- ca do poder executivo com com- trativos, emanados de um órgão petência em determinada maté- colegiado normativo, criado por LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ria regulando-a com fundamento lei, ligado à administração públi- em lei. O Conselho Nacional de ca, de acordo com o art. 1 da Lei Educação, por lei, é um órgão n. 9.131/95, possuem atribuições normativas, deliberativas e de as- com poderes específicos para sessoramento ao Ministro de Es- expedir uma resolução (CURY, tado da Educação (CURY, 2006, 2006, p. 43). p. 49). IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Nesse tipo de discurso, o gênero sumidos nas esferas acadêmicas de não pode ser efetivamente primário, formação. É possível inferir que a for- pois aparece em situações comuni- ma composicional traduz o projeto cacionais mais complexas e formais. de dizer do enunciador, uma solicita-

O discurso é considerado autoritário, ção do que seja prudente e adequa- SELINFRAN o que é comum nos documentos ofi- do ao ensino da formação docente. ciais pelo princípio prescritivo, pois O estilo da Resolução obedece a remete à voz de uma alta esfera públi- um rigor técnico, padrão uniforme e ca. Assim, é um discurso que provo- certo grau de formalidade, comum ca reações, tensões e embates pelas nos documentos oficiais em que a palavras interiormente persuasivas e linguagem se centra em um voca- pelo viés pedagógico que o constitui, bulário mais rebuscado, calcada no pois apresenta um novo documento uso de formas linguísticas estereo- norteador e organizador de ensino. tipadas. Enfim, trata-se de um texto Com base nisso, a Resolução instaura padronizado com objetivos claros e novas possibilidades e novos pontos concisos. de vista, os quais causam reação-res- posta nos interlocutores. A enunciação do documento pos- sui discurso de legalidade, estrutura O conteúdo temático da Resolu- rígida e hierárquica e sustentação de ção impõe-se como a finalidade do legitimidade. A Resolução, por se tra- texto, sendo que o domínio de senti- tar de uma normatização, é, portanto, do está direcionado para a estrutura- advinda de outros pareceres e reso- ção dos cursos de formação docen- luções revogadas. É, nesse contexto, te, para os quais a Resolução é um resultante de outras discussões, sen- instrumento norteador para a elabo- do, portanto, uma enunciação ple- ração de Projetos Pedagógicos dos na de ecos e ressonâncias de outros Cursos (PPCs). Diversos elementos enunciados com os quais está ligada na estrutura do documento eviden- pelo tempo, pelo espaço e pela iden- 141 ciam essa temática, conforme Bra- tidade das esferas de produção, cir- sil (2015a) “formação docente para culação e recepção discursiva. Em todas as etapas e modalidades”; “a resumo, participa de interações vivas docência como ação educativa”; for- e intensas com outros discursos com mação para “diferentes visões de os quais possui elos precedentes (já- mundo”; e a formação com “garantia -ditos). Da mesma forma, será mate- de padrão de qualidade”. rialidade para os discursos que o su- cederão.

A forma composicional da Resolu- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ção é objetiva e tem direcionamento Sob esse viés, essa relação de um e remete à ideia de legalidade. Devi- enunciado com outros da cadeia de do à sua força, os sentidos do discur- sucessão revela ligações ora de con- so passam a ser legalmente válidos cordância ora de discordância ou e oficialmente produzidos e distribu- de refutação, numa arena na qual ídos por órgãos competentes e con- se criam novos efeitos de sentidos e IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX muitos embates, o que abre espaços põe-se uma relação de intimidade para questionamentos, os quais são entre os falantes e os ouvintes, pois voltados para a correção, a implanta- a Resolução envolve sujeitos com ção, a modificação ou a supressão de objetivos comuns e vinculados aos SELINFRAN certas práticas para atender as diver- processos educacionais de formação sas mudanças ocorridas nas legisla- docente no nível da graduação. Nela, ções educacionais e nas transforma- ressoam vozes oficiais e sociais da ções pelas quais passam a sociedade educação brasileira, as quais são au- e o mundo do trabalho. Dessa forma, torais e ideologicamente marcadas, fica evidente que o enunciado foi pois o discurso direciona-se às co- constituído a partir de apreciações munidades acadêmica e escolar. Há, valorativas de muitos autores em portanto, uma vinculação de vozes, perspectivas social, ideológica e his- IES, estados, escolas, alunos, famílias tórica. e professores. Em síntese, é um tipo de enuncia- Os autores da Resolução são su- ção que não se fecha em si mesmo, jeitos ativos no discurso e possuem tem objetivo determinado, revela, no voz dominante. É essa posição ativa seu contexto, acentos de valor e de e avaliativa do sujeito que delimita a apreciação de sentido, possui ele- escolha dos meios linguísticos e dos mentos com especificidades discur- gêneros de discurso para realizar o sivas, tem posições assumidas e sofre enunciado. Dessa forma, o sujeito influências conforme os momentos autor do discurso entra em conta- sócio-históricos de produção. Como se trata de um enunciado oficial, é in- to com a linguagem pela interação, vestido de autoridade, tem tom valo- ocupando uma determinada posição rativo porque não é neutro, tem ideo- impregnada de valores perante uma logia, remete a posições axiológicas e ideia definida. 142 impõe sentidos. Não há possibilidade A produção dessa Resolução é de neutralidade na sua constituição traçada no âmbito nacional pelos au- nem a criação de reações passivas. tores MEC, CNE e CP, liderada pela Assim, é uma instância de produção União e formulada com a participação de sentidos à medida que se cerca de sujeitos interessados no contexto de parâmetros normatizadores e dia- educacional de formação, portanto, o lógicos para o contexto da formação seu conteúdo reflete e refrata o uni- docente. verso ideológico e social de esferas Esta Resolução apresenta uma es- públicas educacionais. Dessa forma, LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA treita relação entre os sujeitos por a sua formulação se constitui em situ- meio do diálogo promovido pela ação de apoio mútuo, pois a política enunciação, um ponto de tensão en- nacional de formação de professores tre as vozes do eu e do outro, contex- ancora-se em consensos construídos to de voz de um autor para os seus com os organismos normativos edu- interlocutores. Dessa forma, pressu- cacionais, existindo a cooperação e a IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX colaboração de outros entes federa- lhes é outorgada. Para isso, adotam tivos e instituições. determinadas posturas de acordo com a situação concreta e real pela Dentro dessa perspectiva, fica evi- qual são orientados. São sujeitos que dente que a produção da Resolução

se reúnem para construir os projetos SELINFRAN é consenso de vozes coletivas que pedagógicos de formação e promo- criam e sustentam os discursos do ver a implantação dos cursos nas IES documento. As principais vozes pro- mediante as orientações normativas dutoras do discurso são das esferas das reformas educacionais definidas públicas educacionais – do MEC, do pelas DCNs, sob o olhar de uma le- CNE e de seu Conselho Pleno –, mas gislação vigente. é possível perceber que há consonân- cia com outras vozes indiretas, como O discurso da Resolução tem tam- as de níveis políticos, econômicos, bém interlocutores indiretos. São governamentais, educacionais e téc- eles: nico-científicos, pois o discurso faz (1) os sujeitos em formação docen- parte de uma esfera pública educa- te, ou seja, os egressos dos cursos, cional e a sua produção depende de que fazem parte da esfera acadêmica outras reflexões e elos com as legisla- de formação, os quais se beneficiam ções pertinentes em vigor, portanto, e justificam os projetos de formação. há outras vozes que aderem ao dis- Nesse contexto, são considerados curso, assim como há outras esferas ativos no processo de sua formação, inseridas no discurso da Resolução. porém não são sujeitos ativos do di- Diante disso, o processo de pro- zer, são, na realidade, receptores do dução é marcado por dialogicidade que é elaborado e executado pelas e alteridade, possui contexto social, IES. ideológico e político, apreciação va- (2) os sujeitos alunos que fazem lorativa de várias instâncias de poder, parte da esfera de formação escolar, 143 inclusive do estado que detém o po- ou seja, para quem são direcionados der sobre esse nível de ensino atra- e justificados todos os projetos de vés de suas políticas públicas educa- formação educacional “atentos às cionais. características das crianças, adoles- O discurso da Resolução está di- centes, jovens e adultos que justifi- recionado para um interlocutor dire- cam e instituem a vida da/e na esco- to, representado pelos diversos seg- la” (BRASIL, 2015a, p. 2). mentos das Instituições de Ensino É na formulação dos projetos pe-

Superior (IES) e pelos profissionais dagógicos (PPC) nas IES que os dis- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA responsáveis pela criação e pela ges- cursos das DCNs se cruzam e pro- tão dos cursos de formação docen- movem embate pela assumidade e te, os quais não podem ser passivos, adesão do que nela está prescrito, mas sujeitos ativos responsivos, que a Resolução dispõe, no artigo 7º, no ocupam lugares e papéis sociais es- Parágrafo único, que “o PPC, em ar- pecíficos, conforme a situação que ticulação com o PPI e o PDI, deve IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX abranger diferentes características e que contemplem novas formações e dimensões da iniciação à docência” olhares, pois a Resolução dispõe, no (BRASIL, 2015a, p. 7). São os atos Artigo 1º, Inciso XI, sobre “a compre- constitutivos da Resolução que po- ensão dos profissionais do magisté- SELINFRAN tencializam a construção do currículo rio como agentes formativos de cul- de formação, que vão torná-lo mais tura e da necessidade de seu acesso próximo e possível de ser vivenciado permanente às informações, vivên- por sujeitos em formação. Assim, as cia e atualização culturais” (BRASIL, DCNs são pensadas e organizadas 2015a, p. 5). por sujeitos autores que colocam em As DCNs instituem, por meio do processo e movimento determinados artigo 8º, como dever da IES para a contextos, convicções, percepções, formação docente inicial e continua- posições e intenções para prescre- da, que os egressos (futuros docen- ver e normatizar um tipo de ensino tes) estejam aptos a: como compromisso público de Esta- do, e em conformidade com as con- Atuar com ética e compromis- cepções que as pautam de que a so [...], compreender o seu pa- pel na formação [...], trabalhar educação tem que ser de qualidade na promoção da aprendizagem e “construída em bases científicas e do desenvolvimento de sujei- e técnicas sólidas em consonância tos [...], dominar os conteúdos com as Diretrizes Curriculares Nacio- específicos e pedagógicos e as nais para a Educação Básica” (BRA- abordagens teórico-metodológi- SIL, 2015a, p. 4). cas do seu ensino [...] relaciona- rem a linguagem dos meios de A Resolução dispõe no artigo 7º, comunicação à educação, nos no Inciso VIII, que a IES deve permi- processos didático-pedagógicos, tir que o profissional seja preparado demonstrando domínio das tec- para o “desenvolvimento, execução, nologias de informação e comu- 144 acompanhamento e avaliação de nicação para o desenvolvimento projetos educacionais, incluindo o da aprendizagem [...] (BRASIL, uso de tecnologias educacionais e 2015a, p. 7-8). diferentes recursos e estratégias di- Diante do exposto, percebe-se o dático-pedagógicas” (BRASIL, 2015a, delineamento das competências e p. 7). Isto deixa explícito a importân- habilidades necessárias para o ser e cia da integração dos recursos das o fazer docente e para que o profis- tecnologias digitais para ampliar co- sional possa oferecer um ensino efi- nhecimentos e criar novas oportuni- ciente. Dessa forma, o uso respon- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA dades. Novas demandas profissionais sável das tecnologias digitais deve fazem parte desta sociedade cada contribuir para o processo de ensino vez mais globalizada. Cabe às IES e aprendizado, pois em se tratando de professores responsáveis pela orga- universitários imersos em uma am- nização dos cursos ouvirem as vozes bientação mais elaborada, de aces- da Resolução e promover a constru- so aos bens culturais e sociais, esta ção de novos projetos e currículos IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX requer ampliação de conceitos de vos aos quais serão submetidos. mundo para colocar-se diante das Essa realidade apresenta um desa- várias vozes que estes representarão fio às IES para que os alunos, futu- após a formação. ros docentes, adquiram competência Sob esse viés, a investigação da de fazer uso das tecnologias digitais SELINFRAN prática pedagógica do professor tor- como apoio ao ensino aprendizagem na-se o princípio formativo que per- e às práticas pedagógicas, portanto, passa o uso de narrativas digitais de essa inserção não se trata de opção, aprendizagem que podem contribuir o que está evidente na Resolução. para a integração entre as tecnolo- Assim, devem ser inseridas nos cur- gias digitais e os currículos, e pro- rículos de formação promovendo a mover novas práticas pedagógicas integração entre os conteúdos ensi- mais autorais, pois a base comum nados e os recursos das tecnologias nacional estabelece, no Artigo 5º, In- digitais, pois a ideia de preparar os ciso VI, que a IES precisa conduzir os professores vai além de desenvolver, egressos para que possam utilizar os simplesmente, as capacidades tec- recursos das tecnologias para o apri- nológicas. Torna-se, pois, primordial moramento da prática pedagógica que os responsáveis pelos processos e a ampliação da formação: “Ao uso educativos considerem estas carac- competente das Tecnologias de In- terísticas e adotem novas posturas e formação e Comunicação (TIC) para atitudes. O professor, para ensinar na o aprimoramento da prática pedagó- modernidade, precisa mobilizar-se e gica e a ampliação da formação cul- adaptar-se às novas realidades. tural dos(das) professores(as) e estu- Considerações finais dantes” (BRASIL, 2015a, p. 6). Nossa investigação orientou-se Sendo assim, as IES e os profes- pela perspectiva metodológica de sores, como responsáveis pela for- Bakhtin e de seu Círculo, amparada mação educacional na atualidade, 145 na concepção ampla de enunciados, devem tornar-se agentes dessas mu- gêneros discursivos, esferas e dialo- danças, uma vez que precisam ser gismo. Assim como se dedicou ao es- capazes de acompanhar, de forma tudo da constituição do documento equilibrada, o ensino e a aprendiza- oficial DCNs e das relações dialógi- gem de seus alunos, conforme pres- cas travadas com a formação inicial crito nas DCNs. Em síntese, “O fazer docente para o uso das tecnologias do professor no contexto da sua prá- digitais. tica pedagógica, perpassa pelo seu processo de formação e das suas O gênero do discurso normativo UNIFRAN DA LINGUÍSTICA condições de trabalho” (CERNY et al., possui forma padronizada porque 2017, p. 299). Dessa forma, será ca- não pode ter um estilo individual, já paz de exercer o seu conhecimento que é um gênero extremamente es- nas atividades profissionais de modo tável e prescritivo. Como o destina- a interagir nos vários atos responsi- tário do enunciado oficial é toda uma IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX comunidade da esfera educacional, da esfera acadêmica educacional e o diálogo é difuso e as relações dia- pelos sujeitos alunos que fazem parte lógicas se estabelecem em um alto da esfera de formação escolar. grau de distanciamento entre quem SELINFRAN A partir da análise dialógica do que prescreve e quem recebe a orienta- é enunciado na Resolução, é possível ção normativa. perceber que existe a preocupação, A produção dessa Resolução é por parte do MEC/CNE, sobre a im- traçada no âmbito nacional pelos au- plantação das tecnologias digitais tores MEC, CNE e CP, liderada pela nos ambientes de formação docente, União e formulada com a participa- assim como foi possível compreender ção de sujeitos interessados no con- a responsabilidade da formulação de texto educacional de formação. Por- projetos pedagógicos pelas IES com tanto, o seu conteúdo reflete e refrata propostas curriculares que, de fato, o universo ideológico e social de es- cumpram o que propõem as DCNs. feras públicas educacionais. A questão da inserção das tecnolo- O discurso da Resolução está vol- gias na formação docente depende tado para um interlocutor direto, do currículo elaborado pela IES. representado pelos diversos seg- Os aspectos levantados no con- mentos das Instituições de Ensino texto das DCNs ratificam a nossa hi- Superior (IES) e pelos profissionais pótese inicial de que há a necessida- responsáveis pela criação e pela ges- de de pensar e planejar novos rumos tão dos cursos de formação docente, para a formulação de práticas peda- assim como há outros interlocutores gógicas antenadas com as realidades indiretos representados pelos sujei- em constante evolução para o uso tos em formação docente, ou seja, os das tecnologias digitais. egressos dos cursos que fazem parte 146 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

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José PESSONI FILHO

SELINFRAN Aline Maria Pacífico MANFRIM

RESUMO Esta pesquisa trata do discurso religioso mobilizado em uma entrevista so- bre o dia internacional da religião veiculado pela TV Cultura no ano de 2015 e disponibilizado na internet por meio do YouTube. As análises realizadas tiveram como suporte as reflexões dos estudos bakhtinianos sobre as relações dialógi- cas e sobre tema e significação. Como resultado, são ressaltados argumentos que identificam o discurso religioso permeando uma sociedade em que coexis- te indivíduos que possuem uma crença religiosa ou não, seja por meio de uma religião para demostrar sua fé em uma divindade, seja pela consideração da re- ligiosidade sem necessariamente se associar a uma religião. O dia internacional da religião foi tratado com o direcionamento constante da ideia de Deus existir tanto pela entrevistadora como pela produção do programa. PALAVRAS-CHAVE Discurso Religioso; Tema; Relações Dialógicas; Entrevista. ABSTRACT This research deals with the religious discourse mobilized in an interview on the international day of religion broadcasted by TV Cultura in the year 2015 and made available on the internet through YouTube. The analyzes made were supported by the reflections of the Bakhtin’s fundamental concepts on dialogic 148 relations and on theme and significance. As a result, video highlights that iden- tify religious discourse permeating a society coexist with individuals who have a religious belief or not, whether through a religion to demonstrate their faith in a divinity, or by the consideration of religiosity without necessarily being one to associated with a religion. The international day of religion was considered with the constant direction of the idea of God existing both by the interviewer and by the production of the program. KEYWORDS Religious Discourse; Theme; Dialogical Relations; Interview. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Considerações iniciais va. É evidente que são os indivíduos responsáveis pela comunicação, mas Todas as formas de ação e inte- é sempre o diálogo que governa em ração entre dois ou mais seres hu- uma comunicação interativa, ou seja, manos, para se comunicarem e para

o discurso entre os indivíduos preva- SELINFRAN interagirem, é necessária a presença lece na comunicação. As relações dia- da linguagem, que se torna impres- lógicas, segundo reflexões bakhtinia- cindível e constante durante a comu- nas, apontam e valorizam o diálogo nicação. Para uma interação social como essencial para a comunicação, em qualquer atividade entre os indi- ou seja, esta relação é extremamente víduos, que exige comunicação, o ato social entre os falantes para que haja de falar é um canal responsável para interação, uma comunicação social, os falantes expressarem com clareza sempre o outro é manifesto, sem o o que pensam. Mas linguagem não outro não há diálogo. Com isso, são as é apenas um simples ato de falar, é relações dialógicas responsáveis na muito mais, pois nela se encontram comunicação, não somente um único respostas, posicionamentos, ideias, indivíduo em si, mas as relações dos opiniões, é necessária uma interpre- diálogos entre os indivíduos que se tação de quem recebe ou assiste comunicam: “O diálogo fundamenta ao diálogo. Sendo assim, a relevân- a linguagem em ato e funciona como cia dos estudos bakhtinianos, para uma réplica social”. (LUDOVICE, 2011 compreendermos melhor estas inte- p. 55). rações sociais que ocorrem entre os seres humanos através da linguagem, O programa em homenagem ao é de suma importância no que con- dia internacional da religião traz valo- cerne às investigações da cadeia co- res aos estudos linguísticos por con- municativa. ta da responsabilidade, organização Compreende-se, assim, que o e direcionamento tanto pela equipe enunciado como totalidade se do programa como também da en- 149 produz num espaço e num tem- trevistadora do debate. Com isso os po reais, podendo ser oral ou es- estudos linguísticos se tornam perti- crito, implicando a existência de nentes para esta investigação. Pode- um auditório de receptores, des- mos perceber que o programa trata- tinatários, ouvintes e/ou leitores, do por ter características e opiniões e de certo modo a reação dessa opostas traz contribuições por con- recepção. Estabelece-se, por- ta do uso da linguagem, constituído tanto, entre o receptor e o autor por dois participantes principais com uma inter-relação, uma interação

posicionamentos opostos frente ao UNIFRAN DA LINGUÍSTICA (BRAIT, 2012, p. 383, grifos da au- tora). tema proposto, os argumentos ma- nifestam em torno de enunciados Os estudos de Bakhtin dão supor- anteriores, no início do programa o te para desdobrarmos as interpreta- direcionamento da apresentação e ções entre um diálogo e também o os depoimentos percebemos a ma- que ocorre na interação comunicati- nifestação da linguagem, tornando- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX -se uma investigação pertinente para presentes na sociedade, reforçan- os estudos linguísticos voltados ao do, assim, Deus como argumentação discurso citado. Para ressaltar a rele- central. No caso do ateísta convida- vância do discurso citado no debate, do, os posicionamentos construídos SELINFRAN investigamos as argumentações que frente ao assunto são circundados os integrantes manifestam para de- pelos questionamentos “por que?” e fenderem seus argumentos, que são “como?” não crer em um ser superior, manifestados através das opiniões utilizando Deus como contraponto do outro no discurso. para expor suas opiniões as quais A partir daí vai propor a Meta- sempre respondem os argumentos linguística que, juntamente com sobre a existência de Deus e não so- a Linguística, estudaria o objeto bre a existência das religiões. multifacetado que é o discurso. A presença de uma entrevista Esse objeto, também denomi- que relata assuntos pertinentes ao nado “relações dialógicas”, está discurso religioso, assunto princi- diretamente ligado ao exame do discurso do ponto de vista da sua pal das argumentações identifica- relação com o discurso do outro das na entrevistadora, a pesquisa [...] (BRAIT 2012, p. 376). tenta responder como que este dis- curso, propiciado pelos argumentos O objetivo do trabalho é investi- e respostas dos entrevistados e en- gar no vídeo argumentos que iden- trevistadora, podem contribuir para tificam o discurso religioso em uma pesquisa e o que se pode relacionar sociedade onde há indivíduos que a investigação destas relações dialó- praticam a fé religiosa ou não, seja gicas para os indivíduos no convívio por meio de uma determinada co- social: “[...] o enunciado não é uma munidade religiosa, para demos- unidade convencional, mas uma uni- trarem suas práticas religiosas, ou dade real, precisamente delimitada apenas consideram a religiosidade: 150 da alternância dos sujeitos do discur- “O discurso, então, passa a ser um so, a qual termina com a transmissão lugar interessante para se observar da palavra ao outro” (BAKHTIN apud o conflito, uma vez que nele apare- LUDOVICE, 2011 p. 48). ce o processo ideológico, ou seja, os sentidos que são valorizados pelos 1. Fundamentação teórica grupos sociais” (VOESE, 2000 p. 76- Uma contribuição que merece 79). Com isso, o dia internacional da destaque revelada pelo Círculo bakh- religião, tema proposto pelo deba- tiniano é a relevância do uso da lin-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA te, foi tratado com o direcionamen- guagem. A linguagem para alguns to constante da ideia de Deus existir estudiosos é apenas o ato de comu- tanto pela entrevistadora como pela nicar. Em termos específicos, o signo produção do programa. No caso do linguístico é apenas uma resposta à filósofo convidado, a construção te- arbitrariedade das palavras, porque mática ocorre por meio de discursos não contempla o outro, mas para o que abrangem as diversas religiões Círculo o uso da linguagem está além IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX desta ação, uma vez que não é ape- 2009, p. 150, grifos do autor). A au- nas um ato de comunicar, já que o tonomia temática é construída quan- uso da língua foca nos sentidos que do o narrador narra um determinado dois ou mais indivíduos usam para enunciado com suas próprias pala-

expressarem esta ação, ou seja, es- vras. Então, um novo tema advém de SELINFRAN tão centrados na manifestação do um tema narrado, já que são novos outro. Por isso, o conceito de uso da porque manifestam novos elementos linguagem se refere às correlações linguísticos e ao mesmo tempo são de significâncias entre os sentidos temas porque propiciaram um novo designados por dois ou mais falan- enunciado. Assim, para construir um tes na comunicação, para esclarecer tema, é preciso dizer sobre um tema que signo linguístico é a ideia estabe- dantes dito (enunciação). lecida no discurso, conforme aponta Assim, enquanto a significação Brait: “A significação existe como ca- é por natureza abstrata e tende pacidade potencial de construir sen- à permanência e à estabilida- tido, própria dos signos linguísticos de, o tema é concreto e históri- e das formas gramaticais da língua” co e tende ao fluido e dinâmico, (2013 p. 202). Em outras palavras, so- ao precário, que recria e renova mente haverá significados na comu- incessantemente o sistema de nicação, quando se permite absorver significação, ainda que partindo o sentido das correlações das signifi- dele (BRAIT, 2013, p. 202). câncias advindas das palavras ditas, Vimos que os depoimentos são uma vez que “Aquilo de que nós fala- voltados a necessidades que os indi- mos é apenas o conteúdo do discur- víduos têm em crer em um ser supe- so, o tema de nossas palavras” (VO- rior, ou seja, o programa mostra que LOCHÍNOV, 2009, p. 150). religião não é uma escolha comum, O estudo sobre o uso da língua tem razões sociais nesta escolha, uma intenção. Sendo assim, as pala- propicia entender como os indiví- 151 duos interagem verbalmente e de vras ditas pelos participantes geram que forma constroem suas próprias concordâncias e discordâncias. Em expressões nesta cadeia comunica- outras palavras, a comunicação so- tiva constituídas por várias dimen- mente terá sentido quando se permi- sões discursivas, em que os temas te absorver o sentido das correlações são adornados pelos temas, ou seja, das significâncias advindas das pala- significados são constituídos e cons- vras ditas: “Aquilo de que nós falamos truídos pelas palavras citadas, que é apenas o conteúdo do discurso, o tema de nossas palavras” (VOLOCHÍ- somente o estudo do uso da lingua- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA gem pode identificar: “Faz parte inte- NOV, 2009, p. 150). grante de sua unicidade temática, na Conforme os integrantes manifes- qualidade de enunciação citada, uma tam seus argumentos para defende- enunciação com seu próprio tema: rem seus pontos de vista no progra- o tema autônomo então torna-se o ma, identificamos a importância dos tema de um tema” (VOLOCHÍNOV, estudos linguísticos porque se apro- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX priam do processo que se manifesta reconhecido por todo mundo e, por durante a interação verbal. O traba- conta do embate ideológico exis- lho investiga como os participantes tente em todo e qualquer discurso, dão suas opiniões e como estruturam buscaremos compreender como as SELINFRAN seus argumentos ao tema proposto. opiniões e argumentos se constroem Os argumentos no debate são uma perante as discussões mesmo por- atividade humana, pois ali está a lin- que o grande número de religiosos guagem e sem ela não há comunica- no Brasil e no mundo geram inúme- ção. A interação social é responsável ras interpretações e conclusões so- pelo convívio social e é pela intera- bre a existência de Deus. ção que vivemos e construímos nos- sa vida, sem contradizer as diferentes O vídeo traz argumentos que se formas de falar ou escrever uma lín- opõem sobre a existência de um ser gua comum. Assim, cada integrante superior. Desse modo, “convivem, da língua se comunica com o outro e pois, na sociedade, diferentes ideo- pelo outro. logias que se (re)configuram inces- Todos os diversos campos da santemente pelas relações conflitivas atividade humana estão ligados que mantêm entre si” (VOESE, 2000, ao uso da linguagem. Compre- p. 76-79). A data que motivou o de- ende-se perfeitamente que o ca- bate é muito prestigiada pela socie- ráter e as formas desse uso se- dade e consideramos um dos pontos jam tão multiformes quanto os que propiciaram a existência do tema campos da atividade humana, o na entrevista tratada. que, e claro, não contradiz a uni- dade nacional de uma língua. O Como delimitação do corpus, op- emprego da língua efetua-se em tamos por investigar como o pro- forma de enunciados* (orais e grama e a entrevistadora elencam o escritos) concretos e únicos, pro- sequenciamento dos depoimentos e 152 feridos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade ideias frente ao tema proposto, assim humana”. (BAKHTIN 2011, p 261). como as perguntas são agregadas no decorrer do vídeo, independente- Fundamentamos a teoria que em- mente da opinião de crer ou não em basa este trabalho nas reflexões do uma religião. As reflexões bakhtinia- círculo bakhtiniano: Bakhtin (1988, nas sobre linguagem destacam con- 2011), Volóchinov (2017), Brait (2016, 2017), Fiorin (2017), Di Fanti (2003), ceitos filosóficos que se concentram Marchezan (2006). Quanto às teorias na interação verbal. É evidente que LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA do gênero entrevista, baseamos nos Bakhtin tem seus conceitos consa- estudos de Ludovice (2011), Cerquei- grados no discurso de outrem, nas ra Neto, Santos (2017), Voese (2000). relações dialógicas da cadeia enun- ciativa: “O dialogismo são as relações 2. Metodologia de sentidos que se estabelecem en- Como critério de seleção do cor- tre dois enunciados” (FIORIN, 2017 p. pus, o dia internacional da religião é 22). Desse modo, segundo Fiorin: IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX O que Bakhtin tinha em mente Consideramos o destaque destes era constituir uma ciência que participantes porque a entrevista se fosse além da linguística, exa- inicia com seus depoimentos. Com minando o funcionamento real isso, podemos entender que a equipe da linguagem em sua unicidade

que organizou o debate na entrevista SELINFRAN e não somente o sistema virtual elencou estes argumentos como prin- que permite esse funcionamen- to” (2017 p. 23, 24). cipais na associação ao tema propos- to. Dessa maneira, observamos que Como contexto temático, obser- o programa composto também de vamos como a equipe se preocupa uma espécie de entrevista com cada em tratar de problemas sociais e, por participante com a temática sobre meio dos depoimentos elencados a existência de Deus, detectamos o pelo programa, trazer aos telespec- direcionamento temático quando os tadores a possibilidade de soluciona- depoimentos são inclinados à exis- rem problemas através da religião, fo- tência de Deus, pois se inicia com um cando na estruturação temática que depoimento de milagre alcançado ressalta o bem-estar que a crença por Merula que tem relevância para possa causar: “Eu superei a infância, aquele que crê em um ser superior, e cheguei na adolescência, casei, tive um médico que trabalha em um dos filhos, me realizei” (MERULA, 2015, hospitais mais famosos do Brasil que 0’28”–0’34”). argumenta sobre os benefícios que a crença pode trazer. Como procedimento de análise, investigamos os pontos importantes Sobre mais estas inferências, ob- servamos que a organização do teste- que o programa ressalta para con- munho de Merula se centra na publi- quistar seu público e como a entre- cação de uma religião e não somente vistadora se preocupa em atender as na existência de Deus. Este aspecto é necessidades do público geral, sendo analisado porque a reportagem traz 153 ele crente ou não. marcas religiosas do passado repre- 3. Análises do corpus sentadas pelo pai e do presente re- presentadas pelo marido. Na argu- O programa tem dois convidados mentação do médico Paulo de Tarso que são entrevistados com mais fre- Lima, embora não se propaga uma quência pela mediadora, mas no iní- religião, observamos que ele tem o cio do vídeo destacamos dois depo- mesmo nome de um dos apóstolos entes que consideramos pertinentes: mais importantes do novo testamen- Merula Steagall, que afirma ter rece- to. Assim, percebemos uma apologia UNIFRAN DA LINGUÍSTICA bido algo impossível segundo a ci- aos conhecimentos religiosos, o cui- ência, e o médico do hospital Albert dado que a equipe de produção do Einstein, Paulo de Tarso Lima, crendo debate tem em construir sentidos que a fé pode curar os pacientes por temáticos nos telespectadores que acreditarem na possibilidade de pos- manifestam um gênero de produção, suir a saúde perante suas doenças. já que os dois depoimentos são de IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX famílias crentes na existência de um legitimar a associação dessas práti- ser superior. cas, dessas instâncias de fé e espiri- Na apresentação do depoimento tualidade conjuntamente com o tra- de Merula, ela relata ter uma família tamento e convivência da doença” SELINFRAN religiosa, da mesma forma o médico, (LIMA, 2015, 2’ 23” – 2’ 34”). porque é evidente que pelo menos Como sempre costumo dizer um dos pais do médico seja religioso. existem provas da existência de Como bem sabemos, é uma cultura faraós, que viveram mais de cin- brasileira nomes bíblicos perante o co mil anos atrás, antes de cristo prestígio religioso dos pais, valendo inclusive, e não existe nenhuma prova de que ele existe, eu não a pena salientar que partimos dos tenho nada contra as religiões, argumentos deles para concluirmos, desde que elas fiquem situadas mesmo porque Daniel Sottomaior é no seu ambiente, nas suas igre- ateísta. Percebemos então que a reli- jas, nos seus cultos, a partir do gião é propagada e não a existência momento em que ela extrapola, de Deus, pois os fatos apontam para e quer ditar regras e normas para a crença, ou seja, do homem para a sociedade impondo seus con- com Deus e não de Deus para com ceitos religiosos, suas doutrinas, o homem, mesmo porque o médico, aí eu já sou desfavorável. [...] vou depois de ser questionado se acre- acreditar no que for comprova- dita em Deus ou não, responde que do pela ciência. (LUDMILA FER- NANDES, 2015, 22’ 25” – 23’ 16”, a possibilidade de o doente crer na grifos nossos). saúde já é um benefício para a cura. Neste momento, a conclusão da exis- Após analisar a introdução da en- tência de um ser superior se torna trevista que se estabelece sobre o vaga por conta das forças interiores tema “Dia internacional da Religião”, das pessoas, argumento de Cortella, a apresentadora é incumbida de 154 como veremos posteriormente. apresentar a intenção da entrevis- ta, que relata ser um debate sobre a Na abertura do programa, as esta- existência de Deus. Mas o primeiro tísticas do bom efeito que a religião comentário de Andresa Boni, após a pode trazer para a sociedade deixa introdução do programa analisado, evidente que o programa constan- percebemos que continua a preocu- temente busca a ciência para com- pação temática, pois apresenta os provar a religião, como também para convidados, Daniel Sottomaior e Má- comprovar os ateus como minoria. rio Sérgio Cortella para debater. Iden- Vale a pena salientar que a ciência é LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA tificamos que a fala de Andresa não um suporte usado constantemente corresponde a presença da opinião pelos integrantes, isto porque tanto ateísta, porque o ateísta não crê na fé crentes como descrentes se baseiam e na existência de Deus: o argumen- no provável para argumentar sobre to entre “Deus e fé” usado pela apre- Deus. “Identificando qual é a crença sentadora no início do debate deixa do paciente, eu posso, como médico, evidente que o direcionamento da IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX entrevista é ao tema proposto e não seu posicionamento ao tema da en- opiniões sobre a possível existência trevista, e não uma mera opinião. de Deus: “Para debater sobre Deus e A segunda pergunta dirigida ao fé nesse dia internacional da religião, ateísta é um pouco diferente da pri- convidamos Daniel Sottomaior, pre- meira: O que te leva a não acreditar SELINFRAN sidente da associação brasileira de em Deus? Analisando minuciosamen- ateus e agnósticos, e também rece- te esta pergunta, percebemos que o bemos o filósofo e educador Mário dia internacional da religião – tema Sérgio Cortella” (BONI, 2015, 2’50” – proposto pelo debate – ganha força 3’03”). porque a própria pergunta afirma a Após o processo introdutório do existência de Deus e apenas questio- debate, a entrevistadora Andresa na o ateísta por qual motivo ele não Boni dirige sua primeira pergunta ao acredita em Deus, ou seja, são per- filósofo Mário Sergio Cortella, que guntas com a mesma intenção de di- tem um posicionamento relevante recionar a existência de Deus. sobre a existência de Deus no deba- Percebemos então a importância te, perguntando: “Você acredita em do direcionamento da pergunta por- Deus?” (BONI, 2015, 3’17” – 3’19”). A que Sottomaior, para responder, pre- resposta é que sim. Mas em qual de- cisa usar o nome de Deus. Por mais les? (CORTELLA, 2015, 3’47”). Cor- que não creia na existência de um ser tella em nenhum momento diz que superior, ele precisa retomar o senti- há um único Deus, ou seja, a opinião do temático em duas instâncias para pessoal não é transparente, pois ana- argumentar seu posicionamento no lisamos a abrangência do tema neste debate. Por isso, inicia responden- argumento, ou seja, não nega a exis- do que os ateístas pensam na ques- tência, mas não opina sobre qual de- tão por uma perspectiva inversa: “O finição sobre Deus é correta, ou seja, que leva as pessoas acreditarem em uma resposta totalmente filosófica. Deus?” (BONI, 2015, 5’ 23” – 5’ 25”). 155 Segundo Cortella, a ideia de Deus é mutável, podendo variar em número O tema religião é tratado como e gênero, de diversas formas de acor- uma existência pelo próprio ateísta e do com a história humana oscilará. não como algo improvável que care- Fica evidente aqui que o tema pro- ce de investigação para existir. Com posto é protegido pelo filósofo, mas isso, não se trata da opinião dele, mas não singulariza a questão. o que pensa sobre o tema, mesmo porque o tema proposto é subjetivo. E disse mais, pois a maioria das pessoas creem em um ser superior e A linguagem é dialógica e pessoas UNIFRAN DA LINGUÍSTICA que cada indivíduo na sociedade es- não podem ser julgadas por suas es- colhe a maneira de denominar esta colhas ou condenadas sem serem ou- força superior, ou seja, Cortella argu- vidas, mesmo porque a ausência da menta sua opinião sobre a existência razão gera marcas fanáticas. O fluxo de Deus com cautela, defendendo de informações disponibilizadas em uma entrevista consciente ou não se IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX resume em uma relação de sentidos tigação do uso da linguagem mani- estabelecidos entre os indivíduos na festada. Isto porque cada integrante sociedade, consagrados reais pela mostra seu ponto de vista ao tema permissão de dialogar, ideia utópi- tratado no debate. Sendo, então, os SELINFRAN ca na área jurídica, segundo Voese estudos linguísticos se tornam de (2000), ou seja, segundo este escla- suma importância para compreensão recimento de Cortella, é possível di- de cada argumento manifestado no zer que poderá haver uma exclusão debate, auxiliando no entendimento social se não levada em conta estas do discurso religioso frequentemente reflexões, buscar liberdade de um presente na sociedade, o que contri- modo geral significa ter permissão bui com o convívio e práticas sociais. do diálogo e, perante o argumento Vale destacar também que são res- de Cortella, isto deve acontecer no saltadas no início do programa esta- discurso religioso, por conta da ne- tísticas do bom efeito que a religião cessidade de se informar. pode trazer para a sociedade, eviden- Considerações finais ciando também a porcentagem dos ateus que são minoria. Logo em se- Este trabalho trata do discurso re- guida, o programa apresenta Merula ligioso presente em um debate em Steagall, que afirma ter recebido algo homenagem ao dia internacional da impossível segundo a ciência, e o mé- religião apresentado pela TV Cultura dico do hospital Albert Einstein, Pau- no ano de 2015. Com apoio dos estu- lo de Tarso Lima, que acredita que a dos linguísticos, investigamos como fé pode curar os pacientes simples- os integrantes do programa expõem mente por acreditarem na possibili- suas ideias, esclarecendo qual a re- dade de possuir a saúde perante suas lação dos argumentos com o tema doenças. Consideramos relevantes as proposto, compreender como as res- estatísticas e os depoimentos destes postas são construídas a cada enun- 156 participantes porque o programa se ciação produzida. Valendo a pena inicia fixando não um debate de pon- lembrar que falar de religião é um tos opostos, de crer ou não crer, mas assunto de grande polêmica, mes- entender de que forma a crença ope- mo porque a religião gera um impac- ra. Vimos uma imposição temática e to cultural muito forte por conta da com isso podemos entender que o maioria das pessoas serem fiéis a uma programa organizou o debate elen- comunidade religiosa. Os argumen- cando estratégias na associação ao tos presentes neste programa tele- tema proposto e não ao debate de

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA visivo têm características dialógicas Deus existir ou não. e, conforme as ideias são expostas, fica evidente a importância da inves- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Lia Andrade Pucci SANTOS SELINFRAN Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE

RESUMO Dois rios, de autoria de Tatiana Salem Levy, é um romance narrado em duas vozes que tem como temática central a paixão de dois irmãos gêmeos – Joana e Antônio – por uma mesma mulher, a francesa Marie-Ange. A relação entre as personagens femininas na obra é ponto de partida para esta análise, que tem interesse em averiguar a existência de relações dialógicas nos discursos de Joana e Marie-Ange, a partir das reflexões do filósofo russo Mikhail Bakhtin. O objetivo é fazer um recorte espaço-temporal na obra e observar, para este es- tudo, as relações dialógicas atreladas aos discursos das duas protagonistas no momento em que elas se encontram, levando-se em conta o contexto sociocul- tural brasileiro em que as personagens estão inseridas e a produção de sentido manifestada linguisticamente pelos discursos analisados. PALAVRAS-CHAVE Romance; relações dialógicas; personagens femininas. ABSTRACT

Dois Rios, by Tatiana Salem Levy, is a novel narrated in two voices that has as its central theme the passion of two twin brothers - Joana and Antônio - for the same French woman, Marie-Ange. The relationship between women in this book 158 is the starting point for this analysis, which aims at the existence of dialogical relations in the discourses of Joana and Marie-Ange, taking into consideration the reflections of the Russian philosopher Mikhail Bakhtin. The objective is to choose a specific moment and space in the novel and observe, for this study, the dialogical relations related to the discourses of the two female characters in the moment they meet each other for the first time, taking into account the Brazilian sociocultural context in which these characters are inserted and the meaning these discourses manifest linguistically. KEYWORDS Novel; dialogical relations; female characters. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução riormente à tomada do poder pelos militares, é também pano de fundo e Joana e Marie-Ange são as pro- contexto histórico de muita relevân- tagonistas do romance Dois Rios e cia no romance, posto que determina junto com Antônio, irmão gêmeo de

uma série de comportamentos e de SELINFRAN Joana, vivem um triângulo amoroso. discursos atrelados às várias vozes Cada irmão narra sua paixão por Ma- sociais e histórico-culturais que com- rie-Ange em uma das partes da obra põem os sujeitos Joana e Marie-Ange e, para esta análise, a parte que cabe à dialógica e ideologicamente. Joana é a que se faz mais importante, já que o que nos interessa investigar, Compreender de que maneira es- para esse trabalho, são as diferentes tes sujeitos femininos configuram relações dialógicas relacionadas aos seus posicionamentos axiológicos, sujeitos femininos Joana e Marie-An- mediante a percepção da figura da ge, especialmente no momento do mulher no século XX, período sócio encontro das duas personagens. histórico em que viviam as persona- gens, é objetivo deste trabalho, que se O conceito das relações dialógi- justifica na medida em que considera cas foi proposto pelos estudos do o discurso literário uma enunciação filósofo russo Mikhail Mikhailoitch capaz de portar um posicionamen- Bakhtin (1895-1975), considerado um to e inscrever sujeitos socialmente dos grandes pensadores do século ativos em conjunturas históricas de XX, em razão de seus escritos filo- produção de sentido, ressaltando a sóficos complexos e inovadores que relevância das análises de textos li- refletiam sobre a linguagem, a partir terários à luz das teorias linguísticas, da premissa de que a língua somen- especialmente em relação à literatura te tem função quando está viva, em contemporânea brasileira. Ademais, é uso e inscrevendo os sujeitos em in- possível que a pesquisa consiga con- terações que são dialógicas, já que tribuir para o campo teórico vincula- os enunciados estabelecem e produ- 159 do aos estudos filosóficos de Bakhtin zem sentido que são constitutivos de e, também, agregue às discussões re- outros enunciados, quando, por eles, ferentes ao feminismo. perpassa, atravessa, ecoa a palavra do outro. A natureza de pesquisa deste es- tudo é de caráter bibliográfico qua- O mar é elemento importante du- litativo, tendo como foco o processo rante toda a obra e aparece em muitas de construção, compreensão e inter- referências durante o percurso narra- pretação das relações dialógicas pre-

tivo. É na praia, inclusive, o encontro UNIFRAN DA LINGUÍSTICA sentes na obra de Tatiana Levy, de de Joana e Marie-Ange, que, recém- modo especial aquelas atreladas às -saída do mar, desperta na professo- personagens femininas. ra uma vontade de resgatar a sede pela vida. A ditadura militar no Brasil O desenvolvimento desta análise e as várias imposições sociais, espe- teve por base o estudo teórico-lin- cialmente à mulher, durante e poste- guístico de conceitos bakhtinianos, IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX como o caráter dialógico da lingua- bios, as mãos, a alma, o espírito, gem, e de contribuições de outros todo o corpo, os atos. Aplica-se estudiosos que, a partir de outros totalmente na palavra, e essa pa- discursos, interagem com as obser- lavra entra no tecido dialógico da SELINFRAN vações feitas nos enunciados de Joa- vida humana, no simpósio uni- versal (BAKHTIN, 2011b, p. 348). na e de Marie-Ange. Assim, o caráter dialógico da lin- A leitura analítica da obra sob a guagem, como parte das reflexões perspectiva de um recorte espaço- bakhtinianas, é, na visão de Faraco -temporal determinado – o encontro (2009), o eixo principal na resolução de Joana e da Francesa – e a análi- de problemas relacionados à filosofia se específica das relações dialógicas da linguagem. Dessa maneira, um dos presentes nos discursos das duas conceitos mais importantes ao qual o protagonistas têm por objetivo, ain- nosso estudo deve se dedicar é o di- da, configurar seus posicionamentos álogo. Por definição, diálogo é, para axiológicos perante os valores e a Bakhtin, “[...] propriedade constituti- postura da mulher brasileira no sécu- va de todo discurso que pressupõe lo XX. comunicação com outros discursos 1. Fundamentação teórica e o discurso do outro, independente- A análise deste corpus – o encon- mente da estrutura dos enunciados” tro de Joana e Marie-Ange – se fun- (FLORES et al., 2009, p. 80). damenta nas reflexões bakhtinianas Os diálogos, para Bakhtin, são, en- sobre diálogo, dialogismo, relações tão, não somente sociais, como tam- dialógicas e ideologia. Bakhtin dire- bém impossíveis de serem repetidos, ciona seus ensaios à investigação do já que são marcados histórica e cul- funcionamento da linguagem, a partir turalmente. O dialogismo, dito pelo de diferentes contextos enunciativos russo como a essência da linguagem, 160 e também busca compreender como acontece quando dois enunciados se são produzidos os sentidos. Como confrontam em um plano discursivo. resultado, a prima filosofia de Bakhtin Nesse sentido, percebe-se que um se constitui enquanto axiológica, ou enunciado se faz de outro enunciado, seja, enquanto uma teorização sobre fato que faz com que os discursos se valores. Para o filósofo russo, viver relacionem com outros. As relações subentende a dialogicidade e, mais, dialógicas se apresentam, portanto, viver é um constante posicionar-se, a não somente no plano do discurso partir das palavras, em relação a va- ou ainda do sentido da linguagem, LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA lores. Em suas palavras, mas são também extralinguísticas e A vida é dialógica por natureza. se estabelecem entre esses discur- Viver significa participar do diá- sos, como afirma Bakhtin: logo: interrogar, ouvir, responder, [...] as relações dialógicas são ex- concordar, etc. Nesse diálogo o tralinguísticas. Ao mesmo tempo, homem participa inteiro e com porém, não podem ser separadas toda a vida: com os olhos, os lá- do campo do discurso, ou seja, da IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX língua como fenômeno integral sujeitos assumam diferentes posicio- concreto. A linguagem só vive na namentos. Sendo o diálogo concebi- comunicação dialógica daque- do dessa forma, é pertinente enten- les que a usam. É precisamente der que qualquer proposição verbal essa comunicação dialógica que

se consagra em uma relação, em uma SELINFRAN constitui o verdadeiro campo da alternância de vozes. vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu E é fazendo uso do verbo que os campo de emprego (a linguagem sujeitos sociais se definem e criam cotidiana, a prática, a científica, a oportunidade de assumirem po- a artística, etc.) está impregna- sições axiológicas frente aqueles a da de relações dialógicas. Mas a quem destinam seus discursos, como linguística estuda a “linguagem” versa Bakhtin (2011, p. 271): propriamente dita com a sua ló- gica específica na sua generali- Neste caso, o ouvinte, ao perce- dade como algo que torna possí- ber e compreender o significado vel a comunicação dialógica, pois (linguístico) do discurso, ocupa ela abstrai consequentemente as simultaneamente em relação a relações propriamente dialógi- ele uma ativa posição responsiva: cas. Essas relações se situam no concorda ou discorda dele (total campo do discurso, pois este é ou parcialmente), completa-o, por natureza dialógico e, por isso, aplica-o, prepara-se para usá-lo, tais relações devem ser estuda- etc.; essa posição responsiva do das pela metalinguística, que ul- ouvinte se forma ao longo de trapassa os limites da linguística todo o processo de audição e e possui objeto autônomo e me- compreensão desde o seu início, tas próprias (BAKHTIN, 2010, p. às vezes literalmente a partir da 209). primeira palavra do falante. Tais reflexões mostram como a É pela interação com o outro que a identidade de um sujeito ideoló- percepção de diálogo é mais comple- 161 xa e abarca um sentido mais amplo: gico se constrói, pois é pelo “outro” um encontro de discursos e de vozes que a consciência do sujeito social que axiologicamente se definem. Já se estabelece, ou seja, todo sujeito o dialogismo se insere no campo de se constitui por vozes sociais e valo- todas as relações de sentido que são res ideológicos, associados a fatores estabelecidas entre esses enuncia- históricos, sociais e éticos e toda vez dos. que um sujeito enuncia, um “outro” também anuncia. Considerada por meio dessa pers- pectiva, a noção de diálogo deve ser A participação responsiva do in- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA apreendida como um revezamento terlocutor confirma, portanto, ser de vozes que ativa “[...] o reconheci- o diálogo um acontecimento entre mento da reciprocidade entre o eu e sujeitos que interagem de manei- o outro” (MARCHEZAN, 2016, p. 117). ra variada e complexa, já que preci- Essa alternância verbal de enuncia- sam fazer da interação uma prática dos em um diálogo permite que os para a produção de sentidos. Logo, a IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX compreensão dos enunciados ocorre vozes que permeiam a sua realidade quando os discursos despertam no social. outro “[...] alguma convergência de De acordo com os pressupostos sentido” (BAKHTIN, 2011b, p. 354), de Bakhtin anteriormente explicita- SELINFRAN ou seja, quando ressoam algo que dos, essa pluralidade de discursos já fora dito ou ecoam dizeres ideo- que se engendram nos enunciados lógicos passados, talvez presentes da alteridade carregam valores que ou mesmo futuros, com os quais se se demarcam ideologicamente, não identifiquem socialmente os sujeitos apenas nas palavras, mas na própria envoltos nessa relação de interação. enunciação, o que permite com que O fruto da compreensão não apenas o sujeito se constitua não somente linguística dos enunciados é a instau- de ações discursivas, mas também ração de variadas relações de senti- de outras atividades humanas, as do, o que caracteriza a dinamicidade quais, quando mediadas pelo discur- da linguagem e sua propriedade he- so, promovem a edificação de uma terogênea. identidade. Ainda, “a constituição dialógica da O dialogismo, dito pelo rus- linguagem evidencia que todo enun- so como a essência da linguagem ciado é um elo na cadeia da comuni- e princípio intrínseco do discurso, cação discursiva, inscrito em um de- acontece quando dois enunciados se terminado momento sócio-histórico” confrontam em um plano discursivo, (FLORES. et al, 2009, p. 79), o que estabelecendo relações de sentido. demonstra, portanto, que para com- Diferentemente do diálogo que, no preendê-lo, é preciso que os sujeitos sentido bakhtiniano, se estabelece conservem e revelem a constituição como toda comunicação realizada social, cultural e política de seus dis- pelo uso de textos – orais ou escri- cursos, pois o diálogo, apesar de su- 162 tos. Nesse sentido, percebe-se que jeito a variações contextuais, se dá um enunciado se faz de outro enun- sempre em relação a um tempo e a ciado, fato que permite com que os um espaço específicos. No caso par- discursos se relacionem com outros. ticular do romance, a ditadura militar As relações dialógicas se apresen- no Brasil e a sociedade conservadora tam, assim, não somente no plano e patriarcal do período pós-tomada do discurso ou ainda do sentido da de poder pelos militares é o contexto linguagem, mas são também extra- sócio histórico a ser relacionado com linguísticas e se estabelecem entre os discursos das personagens femi- esses discursos, como afirma Bakhtin LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ninas. (2015, p.209). Assim, entende-se que é pelo ou- Toda a produção de sentido que se tro que o homem também se esta- instaura, e é manifestada em um exer- belece enquanto sujeito discursivo e cício de comunicação em qualquer ideológico, a partir das relações dia- esfera da atividade humana, é, então, lógicas que institui com as diversas fruto de relações dialógicas, mesmo IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX que tenham transcendido o material Nossa fala, isto é, nossos enun- linguístico, já que a palavra deve ser ciados (que incluem as obras li- compreendida a partir de suas carac- terárias), estão repletos de pala- terísticas discursivas e analisada em vras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis, pela alterida- razão de sua relação com o mundo SELINFRAN de ou pela assimilação, caracte- exterior, de acordo com o pensar filo- rizadas, também em grau variá- sófico bakhtiniano. veis, por um emprego consciente São as relações dialógicas, como e decalcado. As palavras dos ou- fenômeno integral concreto do dis- tros introduzem sua própria ex- curso, que asseguram a constante pressividade, seu tom valorativo, renovação dos sentidos dos enuncia- que assimilamos, reestruturamos, modificamos. (BAKHTIN, 2011c, dos, já que ultrapassam os limites ló- p. 314). gicos impostos linguisticamente pelo sistema, pois, apesar de pressuporem A ocupação do discurso do outro o uso da língua, essas relações não não se dá, no entanto, de maneira são parte constituinte do sistema mecanizada, mas no contato, em uso dessa língua. real da língua, entre vozes que axiolo- gicamente se completam ou se diver- Mesmo que indispensável à con- gem, por exemplo, numa construção cretização dos discursos, a língua, é, constante de inter-relações de senti- então, somente o veículo para que, dos. Em outras palavras, as relações depois de materializados, os enun- dialógicas, por sua fundamentação e ciados se relacionem com outros. caráter multifacetado, são manifes- Isso quer dizer que o modo de pen- tações complexas e não podem ser sar bakhtiniano toma a linguagem analisadas somente pela relação, por não como somatória de unidades vezes mecanizadas, entre as atitudes linguísticas isoladas, fragmentadas, responsivas de um diálogo real. Ain- mas enquanto a materialização dos da, de acordo com Bakhtin, há formas discursos proferidos socialmente por 163 diferentes de incorporar, nos enun- sujeitos que são “textológicos”, os ciados, o discurso do outro. Isso pode quais permeiam as relações de alte- acontecer num exercício de dialogici- ridade e produzem signos que são dade interna, em que o enunciado ci- passíveis de refletir ou refratar valo- tado e o enunciado citante quase não res. se desassociam ou o discurso pode Para Bakhtin e o Círculo, todos os ser inserido de maneira explicita, o enunciados participantes do proces- que ocorre quando o discurso alheio so de comunicação, sendo consti- é declaradamente citado, pelo uso de UNIFRAN DA LINGUÍSTICA tutivos de uma palavra somente ou aspas ou pela paródia, por exemplo. de muitas, são dialógicos e, por isso, Se as relações dialógicas são parte todo e qualquer texto somente tem integrante de todos os discursos e se vida em razão justamente de conta- elas se estabelecem materializadas tarem outros textos, outros enuncia- em diferentes esferas comunicativas, dos. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX é possível compreender a palavra No entanto, para que essas pala- como estrutura que, por sua caracte- vras não sejam apenas e meramen- rística interativa e interdiscursiva, se te aparatos linguísticos, a reverbe- constitui socialmente. ração dos contextos em que elas foram enunciadas e dos valores que

SELINFRAN É pela palavra que o sujeito e seu outrem se estabelecem, como afir- elas corporificam deve acontecer. mam os pensadores Bakhtin e Volo- Somente assim, é possível que uma chínov: atitude responsiva seja tomada e que as palavras – os enunciados, portan- Na realidade, toda palavra com- to – sejam apreendidas como a mate- porta duas faces. Ela é determi- rialização da interação dialógica dos nada tanto pelo fato de que pro- sujeitos sócio históricos. Em outras cede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela palavras, sem o acento de valor que constitui justamente o produ- acompanha os signos ideológicos, to da interação do locutor e do nenhuma forma de enunciação teria ouvinte. Toda palavra serve de condição para a existência. expressão a um em relação ao Como o artigo pretende averi- outro. Através da palavra, defi- guar parcialmente o corpus, apenas no-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação algumas particularidades relaciona- à coletividade. A palavra é uma das às reflexões bakhtinianas foram espécie de ponte lançada entre abordadas na subsequente análise mim e os outros. Se ela se apóia dos trechos selecionados. A funda- sobre mim numa extremidade, mentação teórica apresentada para a na outra apóia-se sobre o meu análise do objeto de pesquisa como interlocutor. A palavra é o territó- um todo terá uma outra perspectiva, rio comum do locutor e do inter- mais completa e complexa, afim de locutor. (BAKTIN; VOLOCHÍNO- colaborar para o aprofundamento de V,1981b, p. 117) outras análises e produzir a pesquisa 164 Sob essa perspectiva, apreende- em sua completude. -se que todo sujeito, como já vimos, 2. Descrição e análise do corpus constrói seus discursos, a depender da comunidade linguística e discursi- Dividido em duas partes, o roman- va a que pertence e dos fatores histó- ce Dois Rios é obra de Tatiana Salem ricos, sociais, culturais e também éti- Levy, autora brasileira e importante cos que se projetam dialogicamente pilar da literatura nacional contem- na constituição de seu caráter. Muitas porânea. A primeira parte é narrada são as vozes sociais que habitam um por Joana, uma professora que, após LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA único sujeito e os valores que car- a morte do pai, se dedica a cuidar regam as suas palavras são sempre da mãe, Aparecida, uma mulher que atravessados por outros valores con- sofre de transtorno obsessivo com- tidos em novas palavras que, pelo pulsivo e que leva a vida de maneira discurso do outro, atravessam-nas. muito peculiar. Antônio, irmão gê- meo de Joana e voz que narra a outra IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX parte do romance, decide fotografar Anjo. O primeiro nome é referência o mundo e parte, enquanto as duas para católicos e ortodoxos àquela ficam presas a casa. Marie-Ange, uma considerada a mãe de Jesus Cris- francesa livre e que não cria muitas ra- to, mulher concebida sem pecado e

ízes, é a personagem que, pelo senti- bem-aventurada, visto que subiu aos SELINFRAN mento que desperta nos dois irmãos, céus e pode interceder por aque- os une depois de uma longa ruptura. les que recorrem a ela por meio de O vilarejo Dois Rios, lugar onde os ir- orações. É então, mulher sem culpa, mãos passavam as férias escolares, muito diferente da condição de Jo- é também a referência que dá nome ana. É também anjo, ser espiritual e à obra, mas os dois rios são também celestial, de acordo com as referên- Joana e Antônio, que narram seus cias judaico-cristãs, visto como autor encontros com Marie-Ange em mo- de muitas passagens milagrosas, em mentos e geografias completamente diversos relatos bíblicos. O que se- diferentes, mas que deságuam nessa mesma foz, nessa mesma paixão, por riam os anjos se “[...] não são todos essa mesma mulher. eles espíritos a serviço de Deus, que lhes confia missões para bem daque- Joana, aos 33 anos, é uma mu- les que devem herdar a salvação?” lher sucumbida pela dor e pelas rup- (Hebreus 1:14) turas. Desde a morte do pai, Jorge, quando ela e Antônio tinham apenas A salvação, referência usada 12 anos, a professora de língua por- por Joana em seu discurso a respeito tuguesa parece apenas sobreviver, de Marie-Ange, é outro elemento re- enraizada à casa em que vive com a ligioso que dialoga com os enuncia- mãe, longe do irmão. A culpa, senti- dos da professora. Como se vê neste mento que a persegue, e o compor- trecho: tamento obsessivo da mãe agravam Olhando para Mari-Ange, era a situação melancólica de Joana e a como se nada mais existisse, eu 165 prendem cada vez mais nessa condi- esqueci a minha mãe e as suas ção de sobrevida. obsessões, esquecia que não era No entanto, logo na primeira feliz e a vida doía, essa mesma frase do romance, percebe-se que há vida que agora afrouxava, e me a possibilidade de mudança: “Foi a levava para um lugar incógnito, num caminho que, entendi des- Marie-Ange quem me salvou” (LEVY, de o início, era a minha salvação. 2011, p. 9). Marie-Ange vem de Cór- (LEVY, 2011, p. 15) sega, mas vem também do mar de Copacabana e quando sai da água Religião, de acordo com Pinto UNIFRAN DA LINGUÍSTICA desperta em Joana um amor arreba- (2009, p. 69), é a presença de alguns tador, capaz de reconecta-la com a elementos, como a orientação de vida e com a vontade viver. A fran- normas morais, de mitos, de ritos e cesa “de sorriso doce” tem em seu símbolos, da comunidade social, além nome referências religiosas: Maria e da relação com a espiritualidade. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Na Bíblia, o livro sagrado dos cris- de um pai que acolhe seu filho depois tãos que delineia regras morais a se- que o mesmo desperdiça toda a he- rem seguidas, as palavras “salvar” e rança e volta para a casa arrependido, “salvação” têm duas possíveis asso- talvez da mesma maneira como fazia Aparecida ao acolher o filho. Outro

SELINFRAN ciações: a primeira, o livramento do perigo ou da destruição, a segunda, possível diálogo, em relação à essa si- o livramento do pecado, já que “o pe- tuação dos encontros entre Apareci- cado é o que causa a morte. Assim, da e Antônio, é com a profecia bíblica quem é livrado do pecado tem a es- sobre a volta do Messias à terra. Na perança de nunca morrer, ou seja, de obra, Joana chama à Deus de profeta viver para sempre” (JOÃO 3:16,17). e assim descreve o retorno do irmão à casa: “Às vezes penso que minha “Meu pai era ateu convicto” (LEVY, mãe não faz outra coisa senão espe- 2011, p. 37), diria Joana, já para sua rar a sua volta, a cada hora, a cada mãe, “[...] não cultuar Jesus e Nossa minuto, como quem espera o retorno senhora, pecado mortal” (LEVY, 2011, do profeta” (LEVY, 2011, p. 92). p. 37). Aparecida enchera a casa com No romance, a passagem que ex- imagens e santinhos após a morte do plicita o encontro, na areia de Copa- marido com medo “de não alcançar cabana, entre as duas personagens, a redenção” pelo pecado de ter vivi- no exato momento que Marie-An- do tantos anos sem adorar a Deus e ge surge das águas, é emblemática busca salvar-se da morte, na espe- e pode ser observada enquanto re- rança da vida eterna, de acordo com ferência ao nascimento de Afrodite, a segunda associação encontrada deusa grega da beleza e do amor, na Bíblia. Já Joana busca outro tipo que, segundo a mitologia, teria nasci- de salvação, depositando no “anjo” do da espuma das águas do mar, tal francês a esperança da mudança, da qual representou Sandro Boticcelli felicidade, como se vê neste excerto: em sua pintura, O nascimento de Vê- 166 “Depois de anos imaginando a mão nus, nome que essa deusa recebe na que me salvaria, quando já não acre- mitologia romana. ditava na sua existência, ela surgiu” (LEVY, 2011, p. 12). Ainda de acordo com as mitolo- gias, essa deusa seria responsável Há ainda, na obra, uma referência pela perpetuação da alegria e do a uma das passagens bíblicas mais prazer referentes à vida, algo muito conhecidas, a parábola do filho pró- próximo do que trouxe Marie-Ange digo, quando Joana relata o compor- para os dias, antes tão sombrios, de tamento da mãe, com “[...] risadas Joana. O mar ainda pode ser visto LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA soltas ao ar [...]” (LEVY, 2011, p. 91), como símbolo de renovação, como ao receber o irmão que volta para a representação “[...] da dinâmica da casa “[...] como se tivesse partido na vida. Tudo sai do mar e tudo retor- semana passada, como se tivesse ido na a ele: lugar dos nascimentos das dar uma voltinha [...]” (LEVY, 2011, p. transformações, dos renascimentos.” 91). Em Lucas 15:11-13, há a passagem (CHEVALIER; CHERRBRANT, 1990, p. 592) IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX A chegada da estrangeira deter- pada: sim, eu tinha matado meu mina uma nova concepção de vida à pai. E foi assim que vi as primeiras Joana, que percebe dois momentos raízes nascerem dos meus pés, claros que a definem: a vida antes e fincando-me à casa e ao passa- do, enquanto Antônio tomou a depois de Marie-Ange, como se nota SELINFRAN liberdade para si, como se ela só neste trecho: “Antes desse momento, pudesse pertencer a uma pessoa, felicidade para mim era uma sauda- e prosseguiu (LEVY, 2011, p. 75). de” (LEVY, 2011, P. 19) e nesse outro: “[...] Nenhuma razão e a certeza de O Código Civil (1916) que vigora- que ali, naquela manhã de praia, mi- va à época, por exemplo, não previa nha vida mudaria de forma definiti- igualdade jurídica e formal entre ho- va. [...] a minha vida se dividiria ao mens e mulheres, pois eram os pais meio: antes e depois de Marie-Ange” e maridos que detinham os poderes (LEVY, 2011, p. 13). Antes deste en- de decisão sobre elas, considera- contro, Joana só sentia culpa, a culpa das cidadãs de segunda categoria e que o irmão dizia ser dela pela morte obrigadas a cumprir, perante a lei, as do pai e também culpa pela condição vontades patriarcais. Como se vê na de ser mulher e precisar cumprir com redação do artigo 240, já revogado, certos preceitos que lhe cabiam en- “Art. 240. A mulher, com o casamen- quanto filha, irmã e esposa, caso um to, assume a condição de compa- dia constituísse família, como se vê nheira, consorte e colaboradora do neste excerto: “Eu e a culpa que me marido nos encargos de família, cum- mantém presa a esta casa. Eu e essa prindo-lhe velar pela direção material culpa que ele pôs em mim e nem sei e moral desta” (BRASIL, 1916) se é minha. Eu, a culpa, minha mãe, o O episódio das festas oferecidas preto, o branco, o zigue-zague e ele por Jorge e Aparecida, no período pelo mundo” (LEVY, 2011, p. 27). pós-ditadura, corrobora essa reali- Esses preceitos têm raízes históri- dade, como se observa no relato de 167 cas, políticas e sociais, já que Joana Joana: nasceu em meio à ditadura militar Quando eu era criança, nos anos brasileira (1964 -1985) e vivia em um 80, volta e meia havia festas na Rio de Janeiro do século XX, ainda minha casa. Com o fim da dita- muito patriarcal e pouco favorável à dura, os revolucionários forma- liberdade de escolha das mulheres, vam uma comunidade de amigos enquanto os homens detinham o po- que se reuniam para discutir po- der de escolha sobre suas vidas e, lítica, arte e sexo em encontros que se estendiam noite adentro. como fez Antônio, pregavam às mu- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA [...] Quando penso nessas noites, lheres responsabilidades relaciona- a imagem que se sobressai é da das à família e a casa, como é possí- minha mãe sentada num canto vel analisar no excerto que se segue: do sofá [...]. Ela passava o dia Com o tempo, à força de ouvir o arrumando a casa, ia à feira, ao eco da voz do meu irmão, termi- supermercado [...]. Reorganizava nei por acreditar que eu era cul- os sofás para haver espaço para IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX a dança, sempre com ternura e gar dela em algumas situações. alegria, animada com a ideia de Se fosse comigo, a história seria receber gente e, sobretudo, ser a mesma. (LEVY, 2011, p. 82-83). útil para o homem que ela nun- O que se pode perceber é que todo ca deixara de amar (LEVY, 2011, SELINFRAN p. 82). esse conjunto de vozes sociais, polí- ticas e culturais, a mitologia grega, o Joana, ainda criança, achava Código Civil de 1916 e a ditatura mili- que sua mãe não sabia dançar e, por tar brasileira operam e se apresentam isso, se afastava dos convidados. Já nos discursos de Joana, impondo-lhe madura, ela reflete que o pai e todos também uma perspectiva ideológica, que frequentavam a casa mal perce- como mulher que era, em relação ao biam o isolamento da mãe, aquela contexto em que vivia. mulher filha de um policial, que fora criada para “[...] acreditar que o pa- Considerações finais pel da mulher era apoiar o homem” As relações dialógicas estabe- (LEVY, 2011, p. 83). lecidas pelos sujeitos femininos no Joana ainda continua: momento do encontro das protago- nistas confirmam o que já fora dito As pessoas deviam achar natu- anteriormente e reafirma as reflexões ral (que minha mãe) se calasse, bakhtinianas de que a linguagem, por afinal não tinha assunto, não fu- mava maconha, quase não bebia. ser dialógica, é também ideológica. Já era uma sorte estar ali, ao lado O sujeito Joana é influenciado ide- deles, uma sorte ter sido resga- ologicamente por outros sujeitos fe- tada pelo meu pai. (LEVY, 2011, p. mininos, como Marie-Ange e Apare- 82). cida e também por outras vozes que E, por fim, reafirma a condição perpassam os discursos das perso- precária com que a mulher era tra- nagens e que foram identificadas por 168 tada naquele momento, no Brasil, e meio de palavras, expressões e refe- que, mesmo depois de uma geração, rências metafóricas, por exemplo, e ela ainda se sente como a mãe em constrói, no decorrer dessas relações muitas situações: dialógicas, atos responsivos condi- Só com o passar dos anos minha zentes com o contexto histórico so- mãe foi aceita pelo grupo. Rela- cial a que eram impostas as mulheres tivamente aceita. Ela se esforça- no século XX e outros atos responsi- va porque amava o meu pai. [...] vos bem distantes dessa expectativa Hoje em dia, quando estou em e contrários às imposições da épo-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA casa e me sento numa das extre- ca, como assumir a paixão por uma midades do sofá, sinto meu cor- outra mulher e resolver abandonar a po feito o dela e assisto à diver- culpa que a perseguia. são dos convidados do meu pai, escuto as gargalhadas como se Outras relações dialógicas e outros estivessem presentes. Tenho esse posicionamentos axiológicos per- hábito esquisito de me pôr no lu- meiam o romance. O sujeito Antônio IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX ainda é plausível de análise e seus buir para a concepção ideológica de discursos merecem devida atenção Joana. em outros trabalhos, já que estes enunciados podem também contri- SELINFRAN

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rodrigo Aparecido de SOUZA SELINFRAN Fernando Aparecido FERREIRA

RESUMO A empatia do público pela animação Up – Altas aventuras (2009) é compro- vada pelo sucesso comercial e crítico que o filme obteve e pelos dois prêmios Oscar que conquistou. Como em qualquer filme de animação, detalhes como os designs dos personagens e dos cenários, os enquadramentos e as cores da animação foram antecipadamente elaborados para funcionarem como intensi- ficadores dos sentidos pretendidos na narrativa, agindo assim retoricamente. Fundamentado na retórica aristotélica, este trabalho tem por objetivo espe- cífico analisar e compreender o papel do design na construção do ethos do personagem protagonista de Up. Além do próprio filme, o corpus da pesquisa também será composto pelo livro The art of Up, cujo autor é o diretor do filme, Tim Hauser. Nessa obra, o diretor-orador mostra detalhadamente as “artes con- ceituais” (concept arts) desenvolvidas para a animação, ou seja, como os per- sonagens, cenários e outras representações visuais foram elaboradas de ma- neira a corroborar com o discurso expresso no roteiro da animação. Compondo o arcabouço teórico, além de Aristóteles, as obras de autores como Perelman e Olbrechts-Tyteca, Ferreira, Fiorin, Reboul, Meyer e Arnheim serão evocadas. PALAVRAS-CHAVE Retórica; Animação; Ethos; Character design; Up-Altas 170 Aventuras

ABSTRACT The public’s empathy for the animated film Up (2009) is proven by commer- cial and critical success, plus two Oscar awards it has won. As in any animated film, details such as the designs of the characters and the scenarios, the frames and colors of the animation were pre-designed to function as intensifiers of the intended narrative meanings, thus acting rhetorically. Based on the Aristotelian rhetoric, this research has the specific objective of analyzing and understanding LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA the role of design in the construction of the ethos belonging to the protagonist of Up. In addition to the film itself, the research’s corpus will also be composed by the book The Art of Up, whose author is the director of the film, Tim Hauser. In this book, the speaker-director shows in detail the “concept arts” developed IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX for animation, in other words, how the characters, scenarios and other visual representations were elaborated to corroborate the discourse expressed in the animation script. Composing the theoretical framework, besides Aristotle, the works of authors such as Perelman and Olbrechts-Tyteca, Ferreira, Fiorin, Re- boul, Meyer and Arnheim will be evoked. SELINFRAN

KEYWORDS Animated film; Ethos; Character design; Up.

171 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução diovisual interessante que façam os espectadores aderirem à diegese. Entendida como um conglome- Toda a concepção do filme é feita rado teórico, a Retórica possui suas para que o auditório-espectador seja várias vertentes e subáreas. Quando

SELINFRAN convencido e “abrace” a tese do di- se busca referências de estudos no retor-orador. As paletas de cores campo dessa grande área são en- dos cenários, as estruturas visuais contrados vários pesquisadores que de cada personagem, a maneira com apresentam resultados muito rele- que cada um se movimenta, os efei- vantes para a comunidade científica, tos sonoros e músicas, os diálogos, porém, uma área ainda é carente de os enquadramentos de cena, todos maiores investigações, a da retórica orquestrados e editados, elaborados dos textos não-verbais e sincréticos. com um determinado objetivo. Isso É muito comum que os textos verbais demonstra intencionalidade, desejo sejam corpora mais recorrentes devi- de convencimento, portanto, o cará- do à correlação com as tradicionais ter retórico desse texto multimodal. áreas de conhecimento da Linguísti- ca. Nesse sentido, é oportuno que o Neste trabalho, especificamente, autor deste projeto possua formação analisaremos o uso dos textos não- nas áreas de design, área que por ex- -verbais na construção do ethos do celência trabalha com a elaboração protagonista de um filme de ani- de textos não-verbais e multimodais. mação, verificando como recursos Sendo a área de design, especifica- da linguagem visual contribuem na mente, uma área de conhecimento construção da imagem do persona- multi e transdisciplinar, podendo fa- gem e como isso corrobora com o cilmente se conectar às áreas da Lin- discurso do diretor-orador. guística e da Retórica. 1. Fundamentação teórica Para tanto, este projeto propõe 172 Para a fundamentação teórica contribuir para a pesquisa retórica de desta pesquisa, serão utilizados os textos não-verbais e sincréticos, por preceitos aristotélicos da retórica e meio de uma análise que toma por seus conceitos fundamentais. Alguns corpus um filme de animação. Filmes desses conceitos foram atualizados e de animação são os filmes que usam propostos por Perelman e Olbrechts- personagens não reais. Personagens -Tyteca, Ferreira, Reboul e Meyer. desenhados ou criados com o auxílio de softwares gráficos. Sendo a animação um texto dis- cursivo, tem como objetivo principal

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Enquanto texto, o filme de anima- a persuasão. Persuadir o auditório a ção possui vários aspectos que me- imergir na diegese e a se envolver, recem ser explorados e analisados aderindo à tese do orador. É tangen- retoricamente. Desde o processo da ciar o campo da retórica. A retórica, sua concepção, o filme de animação ótica pela qual o corpus desse capí- busca recursos narrativos e visuais tulo será analisado, pode ser defini- para se materializar numa peça au- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX da como “o estudo das técnicas dis- ao caráter pessoal do orador, quando cursivas que permitem provocar ou o discurso é proferido de tal manei- aumentar a adesão dos espíritos às ra que nos faz pensar que o orador teses que se lhes apresentam ao as- é digno de crédito”. Ethos é uma di-

sentimento” (PERELMAN e OLBRE- mensão relativa à imagem que o ora- SELINFRAN CHTS-TYTECA, 2005, p. 04). dor constrói de si no seu discurso, Aristóteles mostra o dispositivo visando passar, inicialmente, confia- básico da teoria da retórica e da per- bilidade e segurança. Porém, ethos suasão. Define o tripé retórico: ethos, também pode se referir não somente pathos e logos. ao orador, mas a outrem ou a perso- nagens. É importante ressaltar tam- Há três tipos de meios de persua- bém a colocação de Ferreira (2015, p. são supridos pela palavra falada. 90): “Modernamente, o termo sofreu O primeiro depende do caráter ampliação de sua significação e hoje pessoal do orador; o segundo, de levar o auditório a uma certa dis- se aceita como ethos a imagem que o posição de espírito; e o terceiro, orador constrói de si e dos outros no do próprio discurso no que diz interior do discurso”. O personagem, respeito ao que demonstra ou assim como o orador, pode ter um parece demonstrar (ARISTÓTE- ethos construído. Sendo uma perso- LES, 2013, p. 45). nificação dentro de um gênero textu- O logos se associa ao discurso do al, o personagem também discursa. diretor-orador, do que é composto Seu ethos também produz sentido e como foi estruturado. E como co- de confiança e influencia na decisão locado por Ferreira (2015, p. 17) “O do auditório-espectador sobre a tese discurso pode revestir-se de diversas do diretor-orador. tipologias, numa dependência direta Em nossa pesquisa, ainda serão da questão subjacente ou expressa- utilizados autores que tratam teori- mente colocada”. Característica que camente sobre o design, a percepção 173 fica expressa nos estilos e recursos visual e sobre as práticas de concept visuais que o filme de animação usa e character design. Teorias vão orien- nos textos não-verbais. tar quando se tratar da produção dos Já o pathos se refere às emoções textos não-verbais empregadas na que o discurso desperta no auditó- construção do protagonista. rio-espectador. Como a tese do dis- Para melhor entendimento e defi- curso foi recebida emocionalmente, nição de character design, é impor- quais paixões mobilizaram o auditó- tante conhecer as fases de produção rio-espectador a aderir à tese apre- de filmes de animação. São três gran- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA sentada. des fases: pré-produção, produção E ethos é inicialmente retratado na e pós-produção, que também são relação íntima com o orador. O que compostas por etapas menores. é verdade. O mestre estagirita ainda Destas fases, vale ressaltar a de aponta: “A persuasão é obtida graças pré-produção, especificamente uma IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX de suas etapas, a de concept. Nela que são concebidas todas as estruturas visu- ais que serão utilizadas no filme. Paleta de cores, objetos, roupas, cenários e os personagens. Estes últimos são estudados e projetados a partir da prática do que é conhecido como character design.

SELINFRAN O character design projeta a partir de passos básicos: forma, tamanho, va- riações e silhuetas. São passos iniciais que começarão a dar personalidade aos personagens. 1.2. Forma

Figura 01 - Exemplos de formas básicas na elaboração de rostos de personagens. Nesse passo, o designer pensa em como estruturar as formas básicas de um personagem. Diferentes formas evocam diferentes sentidos. Disse Tom Bancroft: “The overall shape will speak for the character’s personality even before he or she utters a word” (BANCROFT, 2006, l.445). Em outras palavras, a forma básica aplicada no design de um personagem já evoca sentidos. Cada geometria evoca sentidos diferentes. Formas circulares, por exemplo, “evoke appealing, good cha- racters and are typically used to connote cute, cuddly, friendly types. Consider 174 Santa Claus, or endearing, fuzzy animals” (BANCROFT, 2006, l.513-515). LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

FIGURA 02 – Personagens com formas circulares. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Já as formas triangulares “easily lend themselves to more sinister, suspicious types and usually represent the bad guy or villain in character designs” (BAN- CROFT, 2006, l.513-515). SELINFRAN

FIGURA 03 – Personagens com formas triangulares. 1.3. Tamanho

FIGURA 04 – Exemplo de dimensões diferentes em um mesmo personagem. Bancroft ainda fala das dimensões das formas em relação ao próprio persona- gem e no mundo onde ele será inserido: “Interesting size relationships between shapes make for a stronger design with more visual interest” (BANCROFT, 2006, l.528). 1.4. Variações 175 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

FIGURA 05 –Exemplo de variação de dimensões. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Nessa etapa, o designer precisa deixar claro as diferenças, as variações. Lida com o contraste da técnica e da estrutura visual do personagem, desde a espes- sura de traços e contornos, curvatura ou retidão das linhas e justaposição entre dimensões. Conforme explica Bancroft (2006, l.566), “Creating more variety in SELINFRAN your design will give it vitality and a push that will turn a good design into a great one!”. 1.5. Silhueta

FIGURA 06 – Exemplo de formação silhueta. Outro item importante trata das formas negativas criadas no design de cada personagem, dentro ou fora do espaço que ocupa, perpetrando suas formas. Mais uma vez, Brancrof assinala: “the spaces or gaps between the shapes you are creating, will help to define your character visually. Also, the variety of negative shapes and their interplay with one another, as well as with the positive shapes, 176 makes for stronger, more interesting silhouettes” (BANCROFT 2006, l.584-587). As formas básicas de cada personagem já dão pistas sobre a personalidade antes que se mostre sua história. Seu design pode reforçar sua personalidade ou o ethos que deverá ser construído na diegese. E como MEYER (2007, p. 35) aponta, O éthos é um domínio, um nível, uma estrutura – em resumo, uma dimensão –, mas isso não se limita àquele que fala pessoalmente a um auditório, nem mesmo a um autor que se esconde atrás de um texto cuja “presença”, por esse motivo, afinal, pouco importa. O éthos se apresenta de maneira geral como aquele ou LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA aquela com quem o auditório se identifica, o que tem como resultado conseguir que suas respostas sobre a questão tratada sejam aceitas. Luiz Antonio Ferreira corrobora com o conceito de que a imagem do orador é constituída mais do que com a verbalização e seu conteúdo apresentados ao au- ditório. Nas palavras do autor, “O ethos retórico, então, pode ser entendido como um conjunto de traços de caráter que o orador mostra ao auditório para dar uma IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX boa impressão. Incluem-se nesses traços as atitudes, os costumes, a moralidade, elementos que aparecem na disposição do orador.” (FERREIRA, 2015, p. 21) Então é válido que se construa uma estrutura visual (design do personagem)

que sirva como identificação com o auditório-espectador para que o diretor-ora- SELINFRAN dor possa apresentar e/ou reforçar sua tese. Em outras palavras, que sirva como argumento estratégico na produção de sentidos e promoção da adesão do audi- tório-espectador. 2. Metodologia Com o objetivo de analisar o emprego de recursos visuais na elaboração do ethos de um personagem, tomamos como objeto de estudo o filme de animação UP - Altas aventuras, lançado em 2009 pela produtora Disney-Pixar, e também o livro The art of UP, escrito pelos diretores do filme, Tim Hauser e Pete Docter, tam- bém lançado em 2009. Do filme de animação será usado o seu prólogo como recorte para análise, que será de cunho qualitativo, amparada pelos pressupostos teóricos seleciona- dos. Entendido em termos da retórica como o exórdio, o prólogo do filme apresen- ta a história do personagem protagonista, Carl, desde sua infância até sua velhice. Já o livro The Art of Up foi selecionado justamente pelo fato de conter ilustrações e explicações em detalhes de toda a concepção visual do filme. A publicação reú- ne textos explicativos, depoimentos e imagens que revelam como o diretor e sua equipe conceberam toda a estrutura visual utilizada para compor a animação. Um velho numa casa voadora? Essa foi a primeira indagação dos diretores quan- do começaram a pensar em Up. Carl Fredericksen é um idoso de 78 anos, vende- dor de balões que, após perder o amor de sua vida, perde junto todos os seus so- nhos e vontade de viver, fechando-se numa vida monótona e solitária. E para não perder seu lar – lembrança de sua história romântica – para uma construtora, de- 177 cide então instalar uma quantidade enorme de balões em sua casa e leva-la para uma viagem rumo à América do Sul. A trama se estabelece quando Carl descobre que um pequeno escoteiro estava em sua varanda. A aventura se inicia quando o idoso parte para a sua viagem acompanhado do garoto, atravessando uma floreta tropical e enfrentando um vilão que outrora foi seu herói de infância. 3. Análise piloto Aqui é importante que se entendam as leis básicas da percepção visual que vão embasar a análise das formas visuais do texto não-verbal. Ao produzir estru- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA turas visuais dos personagens, como etapa inicial, são utilizadas formas básicas: círculos, quadrados, triângulos, etc. Uma das leis básicas da percepção visual diz “[…] qualquer padrão de estímulo tende a ser visto de tal modo que a estrutura resultante é tão simples quanto permitem as condições dadas” (ARNHEIM, 2011, p. 55). Quando se visualiza a estrutura visual de personagens, a tendência é que se associe inicialmente as formas mais básicas. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX A análise será feita a partir da evolução do design do personagem. Dos textos não-verbais empregados na evolução da sua estrutura visual. O design do perso- nagem Carl é bem peculiar e foge do convencional de heróis protagonistas. É no exórdio do filme que se mostra como seuethos foi construído. Mostra a SELINFRAN evolução do design do personagem enquanto criança até sua velhice.

178 FIGURA 07 – Evolução do personagem no exórdio do filme. Na figura 07, tem-se 4 momentos-chave que mostram o envelhecimento do personagem, consequentemente a construção do seu ethos na história. O objeti- vo principal do diretor-orador é revelar como Carl tornou-se um homem ranzinza, amargo e nada de bem com a vida na velhice. Perdeu sua visão colorida de mun- do que sempre foi clara desde sua infância. No momento 1, tem-se Carl, criança sonhadora, exploradora, cheia de energia e alegre, além de um tanto tímida. Para a construção visual do personagem nesta idade, foram utilizadas formas arredon-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA dadas, circulares, com cores vivas e alegres. As formas arredondadas remetem ao conforto, à tranquilidade de uma linha curva constante sem quebras ou interrup- ções. Formas circulares evocam simpatia. O círculo é um bom exemplo. Parece o mesmo, seja como for que o olhemos (fig. 8 A), mas, no ato de ver, lhe conferimos estabilidade impondo-lhe o eixo vertical que analisa e determina seu equilíbrio enquanto forma (fig. 8 B), e acrescentando em seguida (fig. 8 C) a base horizon- tal como referência que completa a sensação de estabilidade (DONDIS, 1997). IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

Figura 08 – Personagem Baymax, amável robô do filme de animação Big Hero 6. 179 Figuras 08 A, B e C – Esquemas elaborados pelo autor de acordo com o livro referenciado na citação. Com relação à paleta de cor do personagem, a cor amarela é vibrante, clara e também expansiva, conota simpatia e alegria. Neste momento do filme, Carl rea- liza proezas e aventuras imaginárias que são interrompidas quando ele encontra uma garota, Ellie, sua futura melhor amiga e esposa. O que leva ao momento 2, onde se vê Carl já adulto em seu casamento. Ele é estruturado com feições mais adultas e retangulares, um topete exuberante, característica jovial, além da expressão de felicidade. Sua pele ainda é corada e rosada como na infância. No momento 3, o protagonista já é retratado como um homem maduro com cabelos UNIFRAN DA LINGUÍSTICA grisalhos. Vestes mais tradicionais e algumas poucas rugas. Além de um olhar abobado para sua esposa, Ellie. Esses três momentos demonstram a construção do ethos do protagonista como sendo uma pessoa que vive uma vida de sonhos realizados em plenitude. Suas características visuais e suas expressões ainda de- monstram tranquilidade. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Existe um marco importante entre o momento 3 e 4. A morte de Ellie. Após perder sua esposa, Carl se encontra abatido, o que é percebido no momento 4. Sua estrutura toda é configurada com base em formas quadradas: seu rosto, om- bros e dedos. Não que não existissem essas formas anteriormente, porém, eram

SELINFRAN amenizadas de acordo com a idade retratada.

FIGURA 09 – Estudo encontrado no livro The Art of Up, mostra como foi planejada a estrutura visual do pro- tagonista desde criança até sua velhice. Na idade avançada essas características retangulares são evidenciadas e ga- nham maior peso e importância no design do protagonista. Conforme o testemu- nho de Daniel Lopez Muñoz, designer, parte da equipe de produção de UP: Carl is a box, a heavy brick, because of how close to ground he has sunk. After the death of his wife, he has shut off the world around him. So he’s stuck in his ways, very square. Impenetrable, unmovable. There’s heaviness to his soul. It’s easy to read that he has been throught a lot (HAUSER e DOCTER, 2009, p. 40). Scott Clark, supervisor de animação do filme, também comenta sobre a forma do protagonista: “Carl, from belt to neck, is pretty stiff. He’s like a turtle. He can’t 180 turn his head, but turns his whole body. That’s built into the character design, but it’s also humans work. As we get older, our skeleton fuses and it hurts to twist and bend” (HAUSER e DOCTER, 2009, p. 48). A forma quadrada remete à estagnação, estabilidade e falta de motilidade. Seus ângulos retos nos cantos tendem a se direcionar à totalidade de uma área, o que a relaciona com o peso e equilíbrio. Formas quadradas “usually depict charac- ters who are dependable or solid, or play the heavy” (BANCROFT, 2006, l. 507). Portanto, uma figura quadrada não apresenta nenhum desafio ou provocação à percepção visual, pelo contrário, suas noções de estabilidade, estagnação e so- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA briedade são logradas, assim como explica Dondis: Na teoria da percepção da Gestalt, a lei da pregnância (Prägnanz) define a orga- nização psicológica como sendo tão “boa” (regular, simétrica, simples) quanto o permitam as condições vigentes. Nesse caso o adjetivo “bom” não é tão desejável , e nem mesmo um termo descritivo, levando-se em conta o significado preten- dido; uma definição mais precisa seria emocionalmente menos provocativa, mais simples e menos complicada,[...] (DONDIS, 1997, p. 42-43) IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

FIGURA 10 – Estudo da evolução das formas do protagonista. Finalizando o design de Carl, percebe-se várias rugas bem demarcadas em seu rosto, sobrancelhas grossas e espanadas, cabelos brancos, olhos bem fechados e espremidos. Uma estrutura hiperbólica para o nariz. Usa óculos de armações escuras e quadradas, aparelho de audição e uma bengala ortopédica de quatro pontas. Suas roupas possuem cores sóbrias em tonalidades de marrom, branco e preto. Uma caracterização bem próxima do ethos de um velho rabugento; estereó- tipo de um idoso ranzinza que não espera muita coisa da vida, objetivo do dire- tor-orador.

181 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

FIGURA 11 – Estudo de expressões do protagonista. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Conclusão estado, eufórico ou disfórico, ele se situa. Quando em estado de euforia, Enquanto texto, o filme UP-Altas as cores escolhidas são alegres e se Aventuras precisava ancorar os con- usa formas aconchegantes. Quando ceitos de estado eufórico e disfórico SELINFRAN em estado de disforia, se emprega da concretização de sonhos na vida. tonalidades mais sérias e sóbrias, es- Um personagem foi criado justamen- maecidas. te para ancorar esses conceitos. Uma vida cheia de sonhos e aventuras que Portanto, o uso das técnicas de fora interrompida pelo luto. Para re- produção de textos não-verbais, re- forçar esses estados, o diretor-ora- lacionadas ao character design, mos- dor usou as técnicas character de- tra-se uma técnica com alto potencial sign para desenvolver e construir o como estratégia retórica na constru- ethos do protagonista. Analisando ção dos ethe de personagens. O em- estes textos não-verbais, provindos prego dos conceitos de percepção desta técnica, percebe-se a eficiên- visual na elaboração dos textos não- cia na construção do ethos de Carl -verbais pode auxiliar em várias di- Fredricksen. Em qual fase da vida o mensões na construção do discurso protagonista se encontra e em qual retórico.

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Renato Marinzeck da SILVA 23

Luciana Carmona Garcia MANZANO SELINFRAN

RESUMO O código jurídico é essencialmente rebuscado, permeado de expressões eru- ditas, com uso de expressões gramaticais exageradamente cultas. Tal consta- tação gera uma problemática técnica em que uma parcela da população, nota- damente a mais carente de serviços e marginalizada pelas forças de segurança pública, não compreende o discurso jurídico e a linguagem que emana deste. Esta pesquisa, inscrita na Análise do Discurso, visa analisar o funcionamento do discurso que se constrói por meio desse formato de linguagem e que, apesar de ser o modo pelo qual se estabelece a proteção jurídica à população cidadã, não a contempla enquanto sujeito partícipe de sua própria proteção. Após a realização da análise piloto, foi possível observar que o discurso instaura uma necessidade de proteção a direitos e utiliza expressões que amenizam toda re- ferência à perda (expressiva) de direitos perpetrada pela proposta. PALAVRAS-CHAVE Análise do Discurso. Discurso Jurídico. Exclusão. Reforma da Previdência.

ABSTRACT The legal code is essentially far-fetched, permeated with erudite expressions, with the use of overly cultured grammatical expressions. This finding generates a technical problem in which a portion of the population, notably the most de- 183 prived of services and marginalized by public security forces, does not unders- tand the legal discourse and the language that emanates from it. This research aims at analyzing the functioning of discourse that is contradicted through this language format, and which, despite being the way in which legal protection is established for the citizen population, does not contemplate it as a participant in its own protection. After conducting the pilot analysis, it was possible to ob- serve that the discourse establishes a need for protection of rights, and uses expressions that ease any reference to the (significant) loss of rights perpetra- ted by the proposal. UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

KEYWORDS Speech analysis. Legal Discourse. Exclusion. Reform of Social Security 23 Apoio: PROSUP/CAPES (taxa) IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX .Introdução Certamente, tal fato pode ser ex- plicado pela necessidade dos ope- O direito, historicamente, atua radores do direito de gerarem uma como uma disciplina social, tendo em certa exclusividade no uso do códi- vista que, desde os seus primórdios, SELINFRAN go jurídico, pois o seu uso rebuscado busca regulamentar e normatizar as que cotidianamente se vê, gera uma relações dentro da sociedade. En- barreira instransponível à população tender o direito não é tarefa fácil, já leiga. que, ao mesmo tempo em que prote- ge as liberdades dos cidadãos frente 1. Fundamentação téorica ao Estado, regula e limita tais direi- Segundo Foucault, o discurso é: tos quando necessário à proteção de determinadas garantias individuais e um conjunto de regras anônimas, coletivas. históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que de- Por outro lado, conforme salienta finiram, em dada época, e para Ferraz Junior, o direito, igualmente: uma área social, econômica, ge- ográfica ou linguística dada, as é um instrumento manipulável condições de exercício da função que frustra as aspirações dos enunciativa (2008, p. 136). menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e O direito, e o discurso jurídico que dominação que, por sua comple- emana deste, define variadas espé- xidade, é acessível apenas a uns cies de subjetividade, formas de sa- poucos especialistas (2001, p. ber e relações entre os homens e a 32). verdade (Foucault, 2002). Como bem pontuado pelo autor, Igualmente, o discurso representa o direito é utilizado como ferramen- o poder pelo qual se luta ou de que ta de controle sobre toda a socieda- se busca apoderar (Foucault, 2014). de, principalmente, por meio de seu 184 Neste sentido, o discurso jurídico ser- conjunto de leis, que serve de base ve de justificador dessa ordem legal para todo controle sobre a popula- de poder, dentro de uma determina- ção. Neste controle, o discurso jurí- da ordem social e política. dico possui importância cabal, como legitimador da ordem social e políti- Tal poder, dentro do discurso jurí- ca vigente. dico, se configura na formulação de enunciados e julgados, assim como O discurso jurídico é, em regra, na elaboração de leis. Desta forma, a rebuscado, cercado de expressões produção é controlada, selecionada, LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA eruditas e por vezes latinas, com uso por meio de procedimentos criados das expressões gramaticais que exa- pela sociedade, visando dominar a cerbam a norma. Não por outro moti- sua emergência (Foucault, 2014). vo, diz-se que é formado por uma lin- guagem chamada de culta, ou como Podemos observar, além da justifi- diziam os romanos, sermo urbanus cação da ordem política/legal, a no- ou sermo eruditus. ção de uma produção controlada do IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX saber e da verdade, que igualmente sentar aquela proposta de emenda, a irá justificar determinados interesses sua necessidade e importância, con- legitimadores do poder vigente. clamando os membros do Congresso A verdade não existe fora do po- Nacional a votarem favoravelmente. der ou sem poder, já que cada socie- No presente trabalho, optamos SELINFRAN dade possui seu próprio regime de pela análise das formações discur- verdade, ou, como postula Foucault sivas presentes na justificativa, pois (2007), sua “política geral de verda- nela encontra-se presente a ideologia de”, seus discursos acolhidos e que do governo que subscreve a propos- são instados a funcionar como verda- ta de Emenda Constitucional. Segun- deiros. do Foucault: No caso desta pesquisa, observa- no caso em que se puder des- mos o uso do discurso jurídico para crever, entre um certo número justificar e fundamentar uma reforma de enunciados, semelhante siste- que se provará prejudicial às cama- ma de dispersão, e no caso em das mais empobrecidas da popula- que entre os objetos, os tipos de ção, as quais justamente possuem enunciação, os conceitos, as es- mais dificuldade em entender o con- colhas temáticas, se puder definir teúdo presente na legislação. uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcio- De fato, como bem determinado namentos, transformações), dire- por Diná Tereza de Brito: mos, por convenção, que se tra- ta de uma formação discursiva O discurso jurídico caracteriza-se (2008, p. 43). por descrições científicas e/ou uso de termos técnicos em pra- Desta forma, como bem definido ticamente todas as suas aplica- por Foucault, tais escolhas definem ções. Isso, logicamente, é o que as formações discursivas, que dão a faz a linguagem ali empregada ver a ideologia dominante em deter- ser diferenciada, específica, com- minado grupo político/social. Anali- 185 plexa, muitas vezes ininteligível à sando o corpus escolhido, é possível maioria dos falantes (2009, p. 4). distinguir as marcas linguísticas que O corpus que servirá de embasa- definirão regularidades presentes na mento ao estudo proposto será o justificativa da proposta de emenda conjunto de leis que perfazem a re- constitucional. forma da previdência (PEC 287/2016), Neste sentido, Cleudemar Alves notadamente, sua justificativa à refe- Fernandes afirma que: rida proposta. o discurso apresenta-se relevan- A redação das propostas de Emen- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA te para se compreender as mu- das Constitucionais possui duas par- danças históricas e sociais que tes básicas, sendo a primeira, o texto possibilitam a combinação de da lei propriamente dita, que traduz a diferentes discursos em certas ideia proposta pelo governo; e a se- condições sociais específicas, re- gunda, a justificativa à proposta. Nela, sultando na produção de outros o governo explica a razão de apre- discursos (2012, p. 24). IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX No caso do corpus estudado, o 2. Metodologia indivíduo emissor da justificativa le- A metodologia que será aplicada gislativa se inscreve como sujeito do sobre o objeto de estudo é compos- discurso, motivando ainda uma ação ta pelos seguintes estágios: i) coleta SELINFRAN social, materializada em mecanismos e triagem de textos e figuras presen- de poder e dominação. Isto porque, tes na PEC 287 e outras leis que pos- ao buscar o convencimento dos con- sam embasar o trabalho; ii) leitura do gressistas e da população em geral, material recolhido; iii) separação do já que a proposta é pública, tais for- material e de seus recortes, os quais mações buscam impor sua verdade constituirão o corpus da pesquisa; e ideológica/política/moral, tornando- iv) análise da materialidade. -se uma espécie de representação do Já a metodologia de pesquisa pro- poder (BRITO, 2009). põe: revisão bibliográfica dos teóricos Tal representação é formada pela de base da AD, como Michel Pêcheux relação de domínio sobre a verdade, e Jean-Jacques Courtine, seguida seja da lei, seja dos dados produzidos pela leitura dos postulados de Michel Foucault e de estudiosos do discurso na proposta de emenda, ou mesmo que articulam as reflexões de Michel do brocardo jurídico, muitas vezes in- Pêcheux e Michel Foucault, como decifrável à maioria dos cidadãos. Gregolin, Fernandes, Navarro, dentre O poder representado no discurso outros. jurídico se torna mais latente na dis- Posteriormente, iremos direcionar ciplina infligida aos cidadãos simboli- as fontes que serão analisadas, ave- zados nas normas jurídicas, utilizadas riguar as alternativas de acesso às como ferramentas de controle, além fontes, bem como realizar sua leitura, de uma verdadeira hierarquia exer- constatar pontos-chave do material 186 cida por quem “manda” sobre quem que poderá compor as reflexões teó- deve prestar obediência (FOUCAULT, ricas e analíticas. 2005). Dessa forma, tal discurso, ma- 3. Análise piloto do corpus terializado nas leis e práticas judici- árias, produz determinadas subjeti- No recorte selecionado a seguir, vidades, formas de saber e relações trazemos, em forma de imagem, entre o homem e a verdade (FOU- como modo de apresentar ao leitor um acesso à formulação original do CAULT, 2002). documento, o final da justificativa da

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA As referidas relações são obvia- proposta de emenda, em que pode- mente influenciadas pelo momento mos notar que quem chancela (digi- histórico e social que circunda quem talmente) o referido texto é o então produziu o discurso, além das posi- Ministro do Planejamento, Henrique ções políticas e econômicas adota- de Campos Meirelles. Tendo em vista das pelo sujeito. que a proposta trata de uma ampla reforma da Previdência, o fato de tal IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX normativa não ser apresentada pelo Ministro do Trabalho ou da Previdência So- cial nos apresenta indícios que produzem efeitos de sentido em torno de um deslizamento de funcionalidade, dado que, supostamente, espera-se que a pro- posta de reforma no âmbito da Previdência Social esteja a cargo do ministério homônimo. Esse deslizamento permite a compreensão de que parece não haver SELINFRAN uma preocupação de gestão desta pasta do Estado, especificamente, como um interesse em melhorar ou aperfeiçoar o órgão determinado para a gestão dos temas relacionados à Previdência Social. Deste modo, esse deslizamento nos per- mite observar o funcionamento de um interesse meramente atuarial, financeiro e econômico.

Figura 1 No enunciado da Figura 2, vemos, num primeiro momento, o substantivo “aper- feiçoamento”, que leva a um paradigma de leitura cujo efeito pode ser interpreta- 187 do como uma melhora ao que já é, em tese, perfeito. Entretanto, posteriormente, observamos a expressão “alterações”, que possui o sentido de modificação total do que se propõe. Logo, vemos que, apesar de promover um tom conciliatório em seu início, o termo “alterações” acaba funcionando como oposto ao “aperfei- çoamento”, dando a ver que o objetivo do texto é modificar completamente as regras atuais de aposentadoria. Tais artifícios buscam minorar os efeitos de perda e estão presentes a todo momento no texto da justificativa em análise. Além disso, a materialidade do texto nos traz o sentido de urgência e indispen- sabilidade para “garantia do sistema, e implantação gradual das alterações”. No- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ta-se claramente outra forma de diminuição dos efeitos de corte dos benefícios, pela implantação gradual das alterações, ou seja, tais cortes não serão sentidos de uma vez ou para todos. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

Figura 2 Quanto ao recorte selecionado na Figura 3, observamos o uso das expressões “distorções e inconsistências” para exemplificar o atual modelo previdenciário. Estas produzem efeitos de sentido depreciativos do modelo que se busca alte- rar e orientam um paradigma de leitura que perpetua sentidos construídos no tempo curto da história brasileira sobre a defasagem do modelo de gestão da contribuição previdenciária. A ideia de “enfrentamento” complementa esse efeito de sentido aliado à compreensão de atraso, ao somar o sentido de urgência e de ataque aos benefícios que se busca cortar ou alterar. A expressão “readequação” novamente nos traz a minoração do sentido de perda dos benefícios assistenciais a que cita.

Figura 3 Outra estratégia recorrente no corpus estudado, que podemos observar com o exemplo a seguir, na Figura 4, é a utilização de tabelas, projeções e estudos de variadas instituições como IBGE24 e DATAPREV25 para legitimação de afirmações utilizadas no texto. Tal artifício busca construir um efeito de verdade aos argu- mentos lançados na proposta de emenda, já que se utiliza de fundamentações 188 técnicas/científicas referendadas por instituições que adquirem socialmente um lugar legítimo de dizer. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

24 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 25 Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Segundo Foucault (2007), tais órgãos seriam parte do regime de verdade ins- tituído pelo poder vigente e possuem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. SELINFRAN

Figura 4

Outro artifício frequentemente usado é o uso de dados e experiências do ex- terior, como, por exemplo, tabelas da OCDE26, que delimitam ocorrências nos países europeus. Tal utilização busca o efeito de sentido de legitimação dos da- dos e fatos exemplificados, visando demonstrar que os resultados alcançados por medidas instituídas fora do país podem ocorrer igualmente dentro dele, e 189 que, além disso, é um indicativo de que o Brasil caminha para uma posição de emergência dentre os países mais desenvolvidos. De igual forma, tal estratégia promove sentidos que se inscrevem no imaginário social de que tudo o que vem de fora é bom, e pode/deve ser utilizado com sucesso em qualquer outro país, sem considerar suas diferenças e peculiaridades políticas, econômicas e sociais. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

26 Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

Figura 5 A justificativa da proposta de emenda constitucional também discute o corte de direitos de algumas parcelas populacionais, entre elas, as mulheres. O discur- so materializado no corpus suscita efeitos de sentido que nos remetem a ideias machistas, conservadoras e patriarcais. 190 Nos exemplos abaixo, temos, num primeiro momento, um jogo de palavras, entre o termo “passado”, que nos remete a conceitos ultrapassados, defasados e o “futuro”, que remete à modernidade ou ao que deve ser utilizado a partir de agora. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

Figura 6 IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX De igual forma, temos a inserção, no mesmo recorte, de um ideário conserva- dor/patriarcal, “no passado era a concentração da responsabilidade pelos afaze- res domésticos nas mulheres” que inscreve a mulher como matrona do lar, única cuidadora e protetora dos filhos. Tal afirmação induz à ideia de que a mulher que

trabalha, na atualidade, não cuida mais dos filhos ou da casa, já que a citada “du- SELINFRAN pla jornada” só seria realizada pelas mulheres de antigamente. O funcionamento do discurso, aqui, promove um apagamento das práticas sociais cotidianas na contemporaneidade, em que a mulher ainda se inscreve como única responsável pela gestão da casa e pelo cuidado com os filhos, além do exercício de sua profis- são. Esse apagamento produz dois efeitos: o primeiro deles (re)atualiza uma me- mória calcada em um imaginário de que o feminismo, compreendido como uma disputa da mulher contra o homem, inscreve a exigência de que absolutamente todas as práticas políticas, econômicas e sociais sejam exatamente “iguais” para mulheres e homens, o que apaga a força do movimento que luta pela igualdade de oportunidades e direitos entre os gêneros. Nesse viés de compreensão, o Es- tado garante que os deveres serão igualitários, sem que existam, historicamen- te, oportunidades e/ou direitos; posteriormente, o efeito de sentido (re)atualiza um imaginário social de que o feminismo “deu certo”, portanto, a exigência de alteração do tempo de contribuição da mulher é o resultado lógico dessa luta: novamente, apaga-se toda a complexidade da atuação profissional da mulher em diversos setores laborais em que ainda existe disparidade de gênero. As expressões “ao longo dos anos / forte tendência / futuro próximo / mudan- ça acelerada” inserem efeitos de sentido de urgência, construindo, para o leitor, a ideia de que as mudanças informadas, que em tese seriam benéficas às mulheres, têm ocorrido de forma acelerada, o que justificaria a urgência na aprovação da reforma pretendida.

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Figura 7 Uma Formação Discursiva patriarcal/machista pode ser observada de modo regular na materialidade do texto da justificativa da Emenda. No enunciado da Figura 7, em que identificamos a minoração de efeitos de sentido sobre o precon- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ceito ao trabalho feminino, por meio do termo “diferença de tratamento” antece- dido da conjunção “Embora” e seguido pelo período “é importante considerar a mudança acelerada e gradativa dessa realidade”. A justificativa da mudança ace- lerada é formulada por uma articulação com dados estatísticos e produz um efei- to de verdade por meio da estratégia discursiva da legitimação do discurso ins- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX titucional, enfatizando os verbos no para designar o trabalho doméstico pretérito “caiu” e “diminuiu” e silen- se inscreve em um campo de senti- ciando, novamente, a complexidade dos associados a atividade leve ou da situação que envolve a necessá- básica, pois nos remete às tarefas es-

SELINFRAN ria dedicação da mulher, ainda hoje, colares das crianças. aos afazeres domésticos. A queda Considerações parciais na porcentagem declarada no texto se mostra significativamente tímida, Como resultados parciais, após a dado o período compreendido pela realização da análise piloto sobre a geração dos dados: em 10 anos, 3,6% justificativa formulada junto à PEC de mulheres “deixaram de se dedicar 287/2016, foi possível observar que o exclusivamente aos afazeres domés- discurso jurídico, por meio da lingua- ticos”. No fio do discurso, o advérbio gem utilizada, usa expressões que “exclusivamente” funciona como um amenizam toda referência à perda de dado completo, porque, na esteira ar- direitos presentes em tal proposta. gumentativa do desaparecimento da Igualmente, identificamos na mate- “dupla jornada”, silencia a possibili- rialidade discursiva uma Formação dade de interpretação de sua incom- Discursiva patriarcal e conservadora, pletude: mulheres que deixam de se principalmente na discussão sobre o dedicar exclusivamente aos afazeres corte de direitos previdenciários das domésticos podem estar dentro do mulheres. Além disso, tal proposta contingente das que precisam se de- busca legitimar uma construção de dicar a eles concomitantemente ao verdade por meio de um dizer asso- exercício de sua atividade profissio- ciado ao campo estatístico/científico, nal. Além disso, observamos a cons- com exemplos retirados de experiên- trução da figura da mulherdo lar que cias internacionais, que funcionam realiza apenas tarefas domésticas. como provas de irrefutabilidade so- Tal expressão promove efeitos de bre as afirmações lançadas. Tais artifí- 192 sentido de diminuição da importân- cios obscurecem o entendimento do cia ou mesmo do peso do trabalho leitor para os prejuízos que referidas doméstico. Ou seja, quem trabalha propostas irão causar à população, o em casa só faz isso, pois tal atividade que confirma a tese da exclusão do não possui importância ou dificulda- sujeito de direito lançada em nossos de alguma. Mesmo o termo “tarefa” objetivos. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Priscila da Silva Oliveira JACINTHO SELINFRAN Juscelino PERNAMBUCO

RESUMO Objetivamos analisar o novo marco regulatório que regulamenta o Ensino a Distância (EaD) no Brasil, o Decreto nº 9.057, de 25/05/2017, e buscar os valo- res que presidiram à disposição deste documento como um gênero do discur- so jurídico-normativo, conforme as reflexões de Mikhail Bakhtin e seu Círculo. Esse documento orienta o funcionamento pedagógico do EaD, tendo em vista o credenciamento exclusivamente para oferta de cursos a distância. A meto- dologia adotada será de cunho bibliográfico, por meio da leitura das obras de Bakhtin (1997) e seus comentadores, como Brait (2013), Morson e Emerson (2008), Marcuschi (2008), e qualitativo, com base na comparação do decre- to anterior e o mais recente no que se refere ao conteúdo temático, estrutura composicional e estilo. O resultado que se espera é a verificação dos valores que orientam esse tipo de gênero na concepção bakhtinina como uma forma de pensar o mundo. PALAVRAS-CHAVE Gênero do discurso jurídico-normativo; Bakhtin; Decreto 9.057/2017; Oferta de cursos EaD na educação superior.

ABSTRACT

We aim to analyze the new regulatory framework that regulates distance 194 education in Brazil, Decree nº. 9.057, dated 05/25/2017, and seek the values that presided over the provision of this document as a genre of legal-norma- tive discourse, according to the reflections of Mikhail Bakhtin and his Circle. This document guides the pedagogical functioning of the EaD, in view of the accreditation exclusively for offering courses at a distance. The methodology adopted will be a bibliographical one, by reading the works of Bakhtin (1997) and his commentators, such as Brait (2013), Morson and Emerson (2008), Mar- cuschi (2008), and qualitative, based on the comparison of the decree previous and the most recent in terms of thematic content, compositional structure and LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA style. The expected result is the verification of the values that guide this type of gender in the conception of Bakhtin as a way of thinking the world.

KEYWORDS Gender of legal-normative discourse; Bakhtin; Decree 9,057 / 2017; EAD offer in higher education.Security IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução lhe é superior (nesse caso o de- creto regulamentar é, também, Legislação, de acordo com o Di- simultaneamente, inconstitucio- cionário Eletrônico Houaiss (2014), nal, porque contrariou – pelo me- é definida como “complexo de leis nos – a hierarquia) (NUNES, 2011, do sistema jurídico de um país ou de p. 117). SELINFRAN determinado campo de suas ativida- Considerando essa organização des”, como a legislação brasileira ou hierárquica do ordenamento jurídico a legislação fiscal. Nas palavras de brasileiro e as características particu- Rizzato Nunes (2011, p. 116), a legis- lares do gênero jurídico-normativo, lação é um “‘ordenamento jurídico’, este trabalho almeja analisar o novo [...] um conjunto enorme de normas e marco regulatório do Ensino a Dis- princípios jurídicos legislados”, e es- tância (EaD), o Decreto nº 9.057, de sas normas jurídicas tanto podem ser 25 de maio de 2017 (BRASIL, 2017b), escritas quanto não escritas, a exem- no que tange à oferta de cursos de plo do costume jurídico. As normas graduação e de pós-graduação a dis- jurídicas escritas, partindo da esfera tância pelas instituições de ensino federal, são, nessa ordem, a Consti- superior brasileiras. Este documento tuição Federal, as Leis complemen- normativo regulamenta o artigo 80 tares, as Leis ordinárias, as Medidas da Lei de Diretrizes e Bases da Edu- provisórias, as Leis delegadas, os De- cação (LDB) nº 9.394, de 20 de de- cretos legislativos, as Resoluções, os zembro de 1996 (BRASIL, 1996). Decretos regulamentares e ainda as portarias, as circulares, as ordens de Entre outras novidades, a nova serviço, e assim por diante, explica normatização traz uma oportunidade Nunes (2011, p. 116). Além disso, exis- para as instituições de ensino supe- te uma hierarquia do ordenamento rior (IES) de menor porte apostarem jurídico a ser obedecida e da qual a no regime de parceria, flexibilidade Constituição Federal ocupa o topo. A que, por outro lado, também traz 195 esse respeito, o pesquisador afirma responsabilidade e a necessidade de que acompanhamento por parte da Se- cretaria de Regulação e Supervisão A estrutura do ordenamento ju- rídico organizado é hierárquica. da Educação Superior (Seres). Por hierarquia legal, entende-se Com esse marco regulatório, assim que umas normas são superiores destacado pela regulação da ofer- a outras, isto é, algumas normas ta de EaD, o Ensino Superior espera para serem válidas têm de respei- criar um ambiente que concilie a saú-

tar o conteúdo, formal e material, UNIFRAN DA LINGUÍSTICA de econômico-financeira das empre- da norma jurídica superior. As- sim, por exemplo, se diz que uma sas, no caso, as IES, com as exigên- lei ordinária é inconstitucional, cias e as expectativas do mercado quando contraria a Constituição; consumidor, os alunos. Além disso, que um decreto regulamentar é as IES esperam contemplar a fiscali- ilegal, quando contraria a lei que zação do cumprimento das normas IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX regulatórias com auditorias técnicas 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a e o estabelecimento dos indicado- qual pertence o artigo que o Decreto res de qualidade27. Outra exclusivida- regulamenta, quanto a Portaria Nor- de dessa nova regulamentação é o mativa n° 11, de 20 de junho de 2017,

SELINFRAN credenciamento exclusivo EaD que, que estabelece as normas a serem durante a pesquisa, pretendemos es- seguidas pelas IES para que possam miuçar em seus detalhes, bem como ofertar cursos superiores a distância explicar como funciona a regulação em território brasileiro. no universo do Ensino Superior. Adotando a perspectiva bakhti- Ainda na esteira da hierarquiza- niana, propomos examinar o corpus ção do ordenamento jurídico, no que desta pesquisa com base no aparato concerte à relação dialógica entre os teórico concernente aos estudos so- diferentes tipos do gênero jurídico- bre gênero e sobre dialogismo desen- -normativo (Decreto, Lei e Portaria), volvidos pelo filósofo da linguagem, cabe assentar que, para a regula- Mikhail Bakhtin. Nesse sentido, o ob- mentação de que trata o Decreto nº jetivo geral dessa pesquisa é analisar 9.057, de 25 de maio de 2017 (BRA- textos do gênero jurídico-normativo SIL, 2017b) funcionar efetivamente, no que se refere ao entendimento do isto é, orientar o oferecimento de modo que funciona a relação entre cursos a distância pelas IES brasilei- os textos intrínsecos ao ordenamen- ras, fazendo valer os direitos e os de- to jurídico (Leis, Decretos, Portarias, veres de IES e de alunos, em atenção etc.), concebidos, nesta pesquisa, ao que preconiza o artigo 80 da LDB, como tipologias do gênero jurídico- são estabelecidas normas para que -normativo, em nosso caso, voltados as instituições sejam credenciadas e para a educação superior. os cursos sejam oferecidos em con- Partimos da hipótese de que esses formidade com a lei. Essas normas textos jurídicos que ocupam cada 196 são validadas e regulamentadas pela qual uma posição na hierarquia nor- Portaria Normativa n° 11, de 20 de ju- mativa parece apresentar caracterís- nho de 2017 (BRASIL, 2017a). ticas que servem a uma função de- Assim sendo, ao Decreto nº 9.057, terminada dentro de cada situação de 25 de maio de 2017, estão intrinse- comunicativa relacionada à esfera camente relacionadas tanto a Lei nº jurídica. Essas características pecu-

27 Os indicadores de qualidade do Ensino Supe- liares a cada texto do gênero jurídi- rior subsidiam o MEC nas atividades de regulação, por co-normativo serão evidenciadas à meio das quais o ministério regula, ou seja, credencia e recredencia as universidades, centros universitários e medida que explorarmos a relação LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA faculdades e autoriza, reconhece e renova o reconhe- dialógica entre o Decreto que integra cimento de cursos. A avaliação positiva é critério ainda para a participação dos estabelecimentos de ensino nos nosso corpus, a Lei que ele regula- principais programas do MEC destinados à ampliação do menta e a Portaria que o normatiza, acesso à educação superior. Para participar do Programa Universidade Para Todos (ProUni) e do Fundo de Finan- tendo em vista as palavras de Lara ciamento ao Estudante de Ensino Superior (Fies), por (2014, p. 94) para quem “o gênero exemplo, as instituições e os cursos precisam apresentar indicadores satisfatórios (conceitos 3, 4 e 5 na escala de se situa na zona de tensão entre um 1 a 5) nas avaliações (BRASIL, 2010). IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX conjunto de restrições (ou de regu- Os cursos EaD estão crescendo laridades) e um horizonte de possi- em todo o Brasil e torna-se urgente bilidades (ou de variações possíveis), uma pesquisa sobre o modo como questão que passa, naturalmente, se organizam esses cursos no que se

pela existência de gêneros mais (ou refere a valores, finalidades, posicio- SELINFRAN menos) padronizados, como, aliás, o namento do homem que busca esses próprio Bakhtin [...] reconhecia”. cursos tendo em vista as suas res- Retomando os esclarecimentos postas ao seu existir. sobre o nosso objetivo específico, Dados do Ministério da Educação nossa busca é pela identificação de (MEC) mostram que, após a publica- como o Decreto nº 9.057, de 25 de ção do Decreto em questão, o núme- maio de 2017, dialoga com os demais ro de polos credenciados subiu de 7 textos jurídico-normativos anteriores mil para 15 mil. Assim, explica-se o e ulteriores a ele, considerando não aumento de oferta de cursos a dis- somente a interligação e/ou interde- tância. A previsão, segundo empre- pendência de sentido e de imposição sas relacionadas a educação, é que do fazer deôntico que existe entre o ensino a distância corresponda a eles, mas também para responder- mais de 51% do mercado nos próxi- mos a alguns questionamentos que mos cinco anos. O crescimento do permeiam nossa investigação, tais setor representa uma oportunidade como: i) quais componentes carac- principalmente para aqueles que não terizam um texto do gênero jurídi- tinham acesso à universidade. co-normativo; ii) quais valores um Assim, pretende-se proporcionar a texto do gênero jurídico-normativo possibilidade de acesso ao ensino de exprime e/ou defende; iii) seria pos- qualidade com bom custo-benefício sível considerar a existência mesma para esse público. Trata-se, enfim, da de uma tipologia de gêneros jurídico- análise de um gênero discursivo jurí- -normativos dentro do ordenamento dico-normativo, que rege o cotidiano 197 jurídico? de milhares de alunos de nível supe- Como objetivo específico, nossa rior, bem como das instituições que proposta é apresentar princípios para ofertam esses cursos e das institui- uma proposta de análise de textos do ções que fiscalizam a oferta e a qua- gênero jurídico-normativo no âmbito lidade desses cursos. Em nosso en- da oferta de cursos a distância por tendimento, os textos que enunciam Instituições de Educação Superior. os discursos jurídico-normativos em Esse objetivo justifica-se pelo fato de exame regem uma interação humana que gêneros do discurso da esfera específica no interior de uma situa- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA jurídica ainda são pouco estudados, ção comunicativa cotidiana e, como conforme a visão bakhtiniana, que esclarecem Carmelino e Pernambuco tem como foco o posicionamento do (2008, p. 16), o foco da obra bakhti- homem diante da vida e do mundo e niana está justamente na competên- sua relação com o outro. cia de refletir a existência humana de IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX forma original, buscando produção para se firmar com Aristóteles, de sentido e significação do discurso, passando por Horácio e Quinti- sobretudo o discurso cotidiano. liano, pela Idade Média, o Renas- cimento e a Modernidade, até os Por fim, considerando a contribui- SELINFRAN primórdios do século XX (grifo ção da pesquisa para a sociedade do autor). e para a comunidade acadêmico- Os estudos, nesse momento, eram -científica, como a produção cientí- concentrados na literatura, pois as fica busca adequar a realidade para origens são caracterizadas pela tradi- melhor analisá-la e, posteriormente, ção poética de Platão e pela tradição instigar, e até mesmo promover mo- retórica de Aristóteles, notadamente dificações nessa realidade, a discus- quando, em sua Poética, Aristóteles são sobre de que maneira um gênero identifica e classifica os três tipos pu- discursivo jurídico-normativo produz ros de gêneros – lírico, épico e dra- sentido com base em uma perspec- mático – em que a teoria da literatura tiva bakhtiniana pode ser relevante embasa seus estudos, relata Macha- para que se possa ultrapassar a esfe- do (2012, p. 151-152). ra acadêmica e propiciar, à comuni- dade específica a que essas norma- Essa fixidez da visão aristotélica tizações se dirigem, o início de um no âmbito dos estudos sobre gêne- ro em literatura perdura ao longo dos processo de transformação da forma séculos até o surgimento da prosa como são reconhecidas as normati- comunicativa que reivindica “outros zações de ordem jurídica. parâmetros de análise das formas in- 1. Fundamentação teórica terativas que se realizam pelo discur- so” (MACHADO, 2012, p. 152). Embora pareça, num primeiro mo- mento, que as discussões sobre gê- Dessa perspectiva interacional neros foram estabelecidas no mundo destaca-se o trabalho de Mikhail 198 contemporâneo, ou seja, são ele- Bakhtin, que examina os gêneros dis- mentos apenas de um estudo atual, cursivos com base no “dialogismo do há muito tempo existem reflexões processo comunicativo” e as diferen- sobre esse tema, não apenas com o tes formas de manifestações discur- objetivo de desvendar como a men- sivas nos usos das linguagens. Nasce, te humana processa a comunicação daí, sua grande preocupação com a verbal, mas também de que maneira prosa, com ênfase no romance, que é, se dá o uso da linguagem na vida co- nas palavras Machado (2012, p. 153), tidiana. É possível recuperar o estudo “um gênero de possibilidades com-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA sobre gêneros ainda na Antiguidade binatórias não apenas de discursos Clássica. Conforme menciona Mar- como também de gêneros”. cuschi (2008, p. 147): De mais a mais, de acordo com o A expressão “gênero” esteve, na pensamento bakhtiniano, os gêne- tradição ocidental, especialmen- ros organizam-se, estabelecem-se e te ligada aos gêneros literários, transformam-se na interação social, cuja análise se inicia com Platão no uso da língua, já que IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX A riqueza e a variedade dos gê- plural e heterogênea dos enunciados. neros do discurso são infinitas, Além disso, é importante mencionar pois a variedade virtual da ati- que o dialogismo, tal como ponde- vidade humana é inesgotável e, rado nos textos bakhtinianos, infere cada esfera dessa atividade com- uma visão bem mais vasta, que per- SELINFRAN porta um repertório de gêneros mite a ideia de consciência, de refle- do discurso que vai diferencian- do-se e ampliando-se à medida tir, de questionar, de atuar do sujeito que a própria esfera se desenvol- e de vida como constituídos por atos ve e fica mais complexa (BAKH- dialógicos. A eficácia e a contempo- TIN, 1997, p. 280). raneidade presentes na condição do existir humano colocam a vida do ho- Dessa perspectiva, conforme ocor- mem, constituída de atos dialógicos, re essa interação social são produzi- em todo espaço-tempo da sua exis- dos enunciados que se manifestam tência na relação eu/outro. mediante um conteúdo temático, uma construção composicional, um Assim, como há inúmeras lingua- estilo, e ainda obedecem a deter- gens, manifestações dialógicas, for- minados critérios de classificação, mas humanas de interagir com o ou- como a divisão em gêneros primários tro, Bakhtin (1997, p. 344) afirma que e secundários. mesmo uma coisa sendo vista pela primeira vez, a tomada de consciên- Ao mesmo tempo, esses gêneros cia dela já estabelece uma relação podem hibridizar-se, isto é, assumir dialógica com ela, que “não existe a forma de outro gênero, imitando mais só em si e para si, mas para al- suas características segundo a situa- gum outro”. ção comunicativa (FIORIN, 2008, p. 61-70), processo que acontece fre- A palavra do locutor permanece quentemente no romance, gênero para ser ouvida e respondida por um que melhor se adapta à mutabilidade outro e, no encontro de ideias e de 199 nas interações sociais e nos usos lin- vozes, se modifica em outro e modi- guísticos. fica o outro, pois interage com seu outro. São sempre outros que se for- Outro conceito decisivo para esta mam no espaço-tempo da sua exis- pesquisa é a de dialogismo, pensa- tência, por meio da linguagem e ter- da e debatida por Bakhtin, e ideali- ritório dessas relações (BESSA, 2016, zada por Fiorin (2008, p. 18) como p. 17). um “princípio unificador”, um concei- to fundante dentro da proposta do Há uma tendência generalizada,

Círculo de Bakhtin de constituir um principalmente, na esfera escolar de UNIFRAN DA LINGUÍSTICA modo diferente de aprender a lingua- se levar em conta na análise e pro- gem nas mais diversas esferas da ati- dução dos gêneros do discurso ape- vidade humana. nas a sua constituição característica em torno do conteúdo temático, es- Em outros termos, o reconhecimen- trutura composicional e estilo. Essa to da natureza dialógica da lingua- preocupação exclui uma distinção gem põe em evidência a constituição IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX que é decisiva para se compreender das formas da língua, do modo o gênero do discurso, sem confusão concebido, por exemplo, por com o aspecto formal apenas. É im- Saussure [...], que opõe o enun- portante que se perceba a diferença ciado (a fala), como um ato pu- SELINFRAN entre a estrutura composicional e a ramente individual, ao sistema da língua como fenômeno puramen- forma arquitetônica. te social e prescritivo para o in- Bakhtin (1997) sugere como pos- divíduo (BAKHTIN, 1997, p. 304) sibilidade de distinção que é preciso (grifo do autor). ter em mente que a unidade do tex- No caso de nosso objeto de análise, to não se define tão somente por sua o decreto, acreditamos que se encai- forma externa, autônoma na aparên- xa na categoria estritamente oficial, cia, mas por seu plano, isto é, suas in- o qual recusa qualquer manifestação terdependências, relações, posições de individualidade, uma vez que é um valorativas, dialógicas, por suas con- gênero normativo, altamente prescri- dições concretas de vida, enfim. Essa tivo, portanto, pertencente à esfera é a forma arquitetônica, aspecto que jurídica de comunicação. Entretanto, se vincula à relação eu para o outro é preciso que delimitemos ainda mais – o outro para mim, presente nos dis- o lugar onde esse gênero decreto, cursos, nos gêneros, nos textos. promulgado por uma entidade fede- Dessa maneira, para que haja co- ral que é a Presidência da República, municação, o locutor recebe, ao mes- se encontra. mo tempo, formas prescritivas da Pensando nos enunciados que língua e formas também prescritivas compõem o discurso associado aos do enunciado, que são os gêneros preceitos jurídico-legais, ou seja, que do discurso. Em comparação com as é dominado por um alto grau de nor- formas da língua, os gêneros do dis- matividade, o decreto, nosso objeto 200 curso são mais flexíveis, ou seja, mais de análise, estaria inserido na esfera fáceis de combinar e mais ágeis. En- de circulação legalista, constituído tretanto, seu valor normativo é impe- de forma estável dos elementos que rativo, pois o falante os recebe, não constituem um gênero – o conteúdo os cria (BAKHTIN, 1997, p. 304). Por temático, a construção composicio- isso, Bakhtin (1997, p. 304) faz, nes- nal e o estilo – e munido de uma fina- se sentido, uma crítica ao posiciona- lidade, que é a de regulamentar uma mento saussuriano no que tange à lei, dentro da esfera jurídica. Nesse normatividade, ou caráter coletivo da sentido, tais características servem língua, e ao caráter livre, portanto, in- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA para classificá-lo como um gênero dividual da fala. Diz o filósofo: normativo, pertencente à sapiência [...] o enunciado, em sua singula- da conformidade legal, de caráter ridade, apesar de sua individua- puramente oficial. lidade e de sua criatividade, não pode ser considerado como uma Para concluirmos, recorremos a combinação absolutamente livre Guilherme Lima Cardozo (2016) para identificarmos quais características IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX devem ser observadas em um gêne- que deve ser concisa – trata-se de ro de caráter normativo peculiar à es- um preâmbulo; o órgão designado fera jurídica. O pesquisador esclarece como “competente para a prática do que quando temos um objeto que ato e sua base legal”; o objeto da lei;

pertence à esfera jurídica, precisa- e, por fim, consta “o âmbito em que SELINFRAN mos observar se o texto faz parte do a lei é aplicada”. Logo, devido a esse gênero textual jurídico ou legal, pois rigor estrutural, é pouco provável que “o gênero textual jurídico é bem me- um texto legal passe a ser reconhe- nos abrangente que o legal, haja vista cido como tal se antes não tiver sido possuir uma comunidade discursiva sancionado por outros órgãos, como, mais restrita”, stricto sensu, uma vez por exemplo, o “chefe do Poder Exe- que o texto jurídico apenas integra o cutivo da instância em que o projeto cotidiano dos “operadores do direi- foi elaborado” (CARDOZO, 2016, p. to – advogados, magistrados, pro- 66). motores, etc.”, ao passo que o texto Além disso, é pouco provável en- legislativo abrange os operadores do contrar erros ou inadequações de direito e a população em geral. Nesse língua em um texto legal, visto que é caso, fala-se em comunidade legis- revisado muitas vezes até a promul- lativa lato sensu (CARDOZO, 2016, gação, assim como, do ponto de vis- p. 61). Assim, a primeira característi- ta da clareza e da precisão, impera a ca do texto legal que o pesquisador “preferência pelo uso de e expressões elenca é “o fluxo que ele estabelece em seu uso comum”. Assim como o com outros textos da mesma natu- texto jurídico, o texto legal se afasta reza, buscando a remissão perfeita, da linguagem ordinária, mantendo-se a fim de que o texto possa sanar in- dentro de uma comunidade especí- tegralmente a dúvida acerca do as- fica, nesse caso, a legislativa. No en- sunto daquele que o lê” (CARDOZO, tanto, a legislação deve ser cumpri- 2016, p. 65). Isso pode ser feito por da pela sociedade. Por isso, no que 201 meio da referência a outro texto legal concerne à expressão de ideias, são dentro do mesmo Código, articula- usadas sempre as mesmas palavras ção interna, ou menção explícita ou para exprimi-las, descartando-se as sinonímias e designando “expressa- implícita a um texto legal pertencen- mente o dispositivo objeto da remis- te a outro Código (CARDOZO, 2016, são”. Também, os textos legais usam, p. 65) para que a informação seja em seu discurso, verbos no imperati- mais completa. vo, “principalmente no que concerne Quanto à estrutura, é extrema- ao Direito Público, onde a vontade

mente detalhada: na parte preliminar, soberana do Estado se impõe, em UNIFRAN DA LINGUÍSTICA o texto legal apresenta a epígrafe, ou nome do interesse público”. Nesse seja, “o título designativo da espécie sentido, frequentemente há uso dos normativa, escrita em caracteres mai- modalizadores dever e não poder, e úsculos, o respectivo número e o ano de “estruturas iniciadas por é obriga- da promulgação”; a ementa, mesmo tório, em vez de, é permitido”, escla- que a “indicação do objeto da lei”, rece Cardozo (2016, p. 67-69). IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Por fim, como as situações a que texto argumentativo, preocupação o texto legal se reporta não são con- que nos remete, ademais, a apresen- cretas, esse texto é impessoal e ge- tar e a entender o contexto social e neralista, sem referência a autor ou a histórico a que pertencem o Decreto

SELINFRAN receptor da norma, que é dirigida a nº 9.057, de 25 de maio de 2017, a Lei “toda pessoa, todo aquele, etc.”, ou nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 “a uma classe genérica de pessoas, – especialmente no que concerne ao como em o menor, os tutores, o ad- artigo 80 dessa Lei –, e a Portaria quirente, ou àqueles que se encon- Normativa n° 11, de 20 de junho de tram em determinada situação, como 2017. Destacamos que esta Portaria em o militar em serviço ativo, a pes- Normativa faz parte do novo decreto, soa natural sem residência habitual, que estabelece normas em conformi- etc., mas nunca a um sujeito espe- dade com o novo decreto de 2017. cificamente”, conclui o pesquisador Assim sendo, os procedimentos (CARDOZO, 2016, p. 69). metodológicos adotados têm início Expusemos até aqui os conceitos na escolha de nosso corpus, pois, de gênero e de dialogismo que da- embora a pesquisa tenha como mote rão sustentação ao nosso trabalho, o Decreto nº 9.057, de 25 de maio de uma vez que pretendemos analisar, 2017, esse documento regulamen- nos textos do gênero jurídico-norma- ta o artigo de uma Lei e precisa ser tivo referentes à esfera pedagógica normatizado para fazer valer as dis- da Educação a Distância, mais até do posições que o integram através de que a sua estrutura composicional, a uma Portaria Normativa. É nesse sen- axiologia, o conjunto de valores que tido que não podem ser excluídas da presidem a organização de cada um composição do corpus de análise a deles e o modo como se se travam Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de neles as relações dialógicas. 1996 e a Portaria Normativa n° 11, de 20 de junho de 2017. 202 2. Metodologia O passo seguinte é definir, por meio Através de uma abordagem quali- da leitura atenta desses textos, as tativa, pretendemos analisar dois di- características – elementos textuais, ferentes decretos - o novo Decreto nº discursivos, estilísticos, composicio- 9.057/2017 e o anterior, o Decreto nº nais, entre outros – que comprovem 5.622/2005 (BRASIL, 2005) - no que que são textos do gênero jurídico- se refere à clareza de sua elaboração -normativo, além de identificar quais e à disposição dos elementos ade- dessas características são peculiares quados ao gênero jurídico-normati- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA ao Decreto, à Lei e à Portaria, e que vo. os tornam tipos diferentes de gêne- Nesse sentido, ainda analisaremos ros jurídico-normativos conforme a linguagem do texto jurídico-nor- orientam as interações humanas, so- mativo, as mudanças que provoca no ciais e jurídicas no cotidiano da edu- receptor, o que faz dele também um cação superior a distância mediante IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX necessidade de Governo Federal e Decreto nº 9.057/2017 no primeiro IES fazerem cumprir as normas esta- princípio são as assinaturas de Michel belecidas nos textos analisados. Temer, presidente da República, e de Quanto ao procedimento de análi- José Mendonça Bezerra Filho, minis- se, cujo piloto apresentamos a seguir, tro da Educação, ao final documento, SELINFRAN será norteado pelas reflexões teóricas ou seja, o decreto é emitido por au- sobre gênero e dialogismo propostas toridades superiores, pelo chefe de por Bakhtin (1997), bem como pelos Estado brasileiro. trabalhos de Brait (2013), Morson e O marco regulatório também pos- Emerson (2008), Marcuschi (2005; sui uma estrutura composicional con- 2008), Fiorin (2008), entre outros siderada normatizada, extremamente pesquisadores. rígida, com predominância de formas ditas respeitosas. Além disso, como 3. Piloto de análise o decreto é um gênero secundário, Tomaremos como corpus dois do- nos termos previstos por Bakhtin cumentos: o Decreto nº 9.057, de 26 (1997, p. 282), em razão da prepara- de maio de 2017 e o Decreto anterior ção do discurso, que é formal, apre- nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005. senta linguagem verbal sofisticada e O Decreto nº 9.057/2017 foi publica- conserva um estilo verbal próprio de do a fim de resolver um problema que documentos judiciais. A organização não estava sanado no campo da re- textual é cerimonial, na qual são utili- gulação do ensino superior, mais pro- zadas expressões específicas da área priamente no que concerne à oferta jurídica, com jargões e jurisprudên- de cursos na modalidade a distância. cias. As mudanças do Decreto nº Quanto ao conteúdo temático, po- 9.057/2017 e da Portaria Normativa demos assegurar que, independente- nº 11/2016 criam condições favoráveis mente do assunto tratado, um decre- para a expansão das instituições e to tem como elemento constitutivo 203 muda de maneira radical a competi- dar cumprimento efetivo a uma or- ção entre as universidades que bus- dem – no caso em exame, regula- cam a liderança do mercado. Até en- menta um artigo específico da LDB. tão, era preciso esperar dois ou três No que tange ao estilo, percebemos anos para ter um pedido limitado de que o Decreto nº 9.057/2017 é um abertura de polos com a tramitação enunciado com características que concluída pelo Ministério da Educa- revelam um estilo oficial, descrito por ção, conforme legislação anterior. Bakhtin (1997, p. 284) como um esti- LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Adotando como paradigma os lo muito estável, prescritivo ou nor- princípios de estrutura composicio- mativo, sendo, portanto, um gênero nal, conteúdo temático e estilo, pro- discursivo que permite pouca refle- postos por Bakhtin (1997) e, sobretu- xão sobre a individualidade autoral do, a forma arquitetônica de ambos. (BAKHTIN, 1997, p. 284). Uma característica que enquadra o Além disso, soma-se à organização IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX protocolar a presença de expressões pela nova legislação poderá contri- exclusivas usadas em situações for- buir para o desenvolvimento da edu- mais e marcada pelo uso da norma cação brasileira, pois a finalidade é culta. Notamos, ainda, que por ser a ajudar o país a alcançar a Meta 12 do

SELINFRAN linguagem do decreto muito formal e Plano Nacional de Educação (PNE), específica, implica enunciatários que que determina a elevação da taxa entendam esse enunciado específico, bruta de matrícula na educação su- dirigido aos públicos da área jurídica perior para 50% e a taxa líquida em e da área da regulação do ensino su- 33% da população de 18 a 24 anos. perior. A excessiva burocracia para a so- Por fim, observamos também que licitação de autorização de funcio- o Decreto nº 9.057/2017 é uma im- namento de polos de educação a portante ferramenta utilizada para distância é um dos pontos que foi garantir o cumprimento de uma das reduzido com esses novos documen- finalidades do ensino superior, que é tos legais. As visitas para a autoriza- a desburocratização dos processos e ção dos polos demoravam às vezes alinhamento das metas entre os inte- mais de dois anos, demonstrando grantes da esfera pedagógica do en- que o MEC não tinha estrutura para sino a distância. fazer esse tipo de trabalho, além de os investimentos realizados pelas IES Considerações finais ficarem congelados por todo esse Em análise preliminar, pudemos período, sendo ainda necessária a constatar que a forma arquitetônica manutenção dos locais, já que os po- de ambos não se diferencia, já que los não podiam funcionar antes da deixam antever que a preocupação é autorização. mais política do que social, mais com Por sua vez, cabe reconhecer que o ganho de aprovação popular do essa flexibilização traz desafios ao que propriamente com o tratamento 204 MEC e a outros órgãos e associações pedagógico do EaD. envolvidos com educação a distân- Em tempo, há um reconhecimen- cia, no sentido de garantir a qualida- to de que a flexibilização instaurada de do ensino para os alunos. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SELINFRAN Nayara Christina Herminia dos SANTOS1 Fernando Aparecido FERREIRA

RESUMO Anita Malfatti foi uma artista paulistana precursora da Arte Moderna no Bra- sil. Em 1917 apresentou ao país 12 pinturas na “Exposição de Arte Moderna Anita Malfatti”. Almejamos com este trabalho compreender retoricamente a produção artística de Malfatti; verificar a intertextualidade das suas pinturas com obras modernistas europeias e as paixões que elas despertaram no audi- tório da época. Como referencial teórico para as análises, utilizaremos autores da Retórica, como Aristóteles, Meyer, Reboul, Perelman e Olbrechts-Tyteca; da Linguística Textual, como Koch, Cavalcante; e da retórica da imagem e da pin- tura, como Barthes e Carrere e Saborit. Sobre Malfatti, sua obra e o contexto cultural de sua época, consideraremos os trabalhos de Batista e Amaral. Como resultados parciais, as obras revelam a intenção de Malfatti em apresentar para o auditório brasileiro um novo padrão estético, por meio de um discurso inova- dor, dissociando-se das escolas de arte da época. PALAVRAS-CHAVE Retórica; Linguística Textual; Pintura; Pathos; Modernismo Brasileiro.

SUMMARY 206 Anita Malfatti was a paulistana artist precursor of the Modern Art in Brazil. In 1917 he presented the country with 12 paintings at the “Anita Malfatti Modern Art Exhibition”. We aim at this work to understand rhetorically the artistic pro- duction of Malfatti; to verify the intertextuality of their paintings with European modernist works and the passions that they awoke in the auditorium of the time. As a theoretical reference for the analysis, we will use Rhetoric authors such as Aristotle, Meyer, Reboul, Perelman and Olbrechts-Tyteca; of Textual Lin- guistics, such as Koch, Cavalcante; and the rhetoric of image and painting, such as Barthes and Carrere and Saborit. About Malfatti, his work and the cultural LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA context of his time, we will consider the works of Batista and Amaral. As partial results the works reveal Malfatti’s intention to present to the Brazilian audience a new aesthetic standard, through an innovative discourse, dissociating himself from the art schools of the time. 1 Bolsista CAPES IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX KEYWORDS Rhetoric; Textual Linguistics; Picture; Pathos; Brazilian Moder- nism. SELINFRAN

207 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Introdução O principal propósito deste traba- lho é compreender um movimento A modernização das artes plásti- artístico ou uma exposição de artes cas brasileiras ocorreu em 1917, com a plásticas como um discurso retóri-

SELINFRAN histórica exposição de artes de Anita co que apresenta argumentos sobre Catarina Malfatti, artista plástica bra- uma dada questão – no caso, sobre sileira que, após retornar da Europa, as possibilidades estéticas e repre- na efervescência do movimento ex- sentacionais das artes plásticas. pressionista, expôs ao público bra- sileiro obras que revolucionaram as Para tanto, evidenciaremos o dis- artes plásticas nacionais naquele mo- curso retórico produzido pelas seis mento. pinturas2 da artista plástica Anita Mal- fatti, recorte sincrônico da exposição A historiadora brasileira Marta de 1917, aqui vistas como um texto e Rossetti Batista descreve a trajetória um discurso retórico, pois, conforme de Malfatti no livro Anita Malfatti no Ferreira (2010, p. 49), “todo discurso tempo e no espaço (2006). Pela leitu- é, por excelência, uma construção re- ra da obra, fica manifesta a dicotomia tórica, uma vez que procura conduzir que sempre permeou sua vida, seja o auditório numa direção determina- no que se refere às artes plásticas ou da e projetar um ponto de vista, em a outras vicissitudes. Malfatti esteve busca de adesão”. constantemente diante de bifurca- ções conflituosas, tais como a sua A escolha desse corpus se motivou maneira singular de enxergar a arte e se justifica pelo fato de ser elabo- e a maneira acadêmica publicamente rada, essencialmente, por texto visual aceita de pintar. Entre momentos de pictórico, para efetuarmos uma aná- êxtase e de superação. lise de como se dá seu processo re- tórico. Ela esteve na vanguarda da arte 208 moderna, trazendo inovações artís- O trabalho contribui para ampliar os estudos sobre como artes plásti- ticas da Europa, como o expressio- cas podem agir retoricamente trans- nismo, o fauvismo e até referências mitindo intenções e opiniões. E como, do cubismo. Também se libertou de por meio da linguagem plástica e ensinamentos acadêmicos da épo- pictórica, cumpre etapas retóricas e ca e mostrou à sociedade brasileira se estrutura como texto, produzindo possíveis formas de arte, movendo- sentidos e remetendo a outros textos -se entre o nacional e o internacional. e discursos. Malfatti lidou com questionamentos LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA muitas vezes irascíveis, sobre sua 1 Fundamentação Teórica arte e até sua sanidade e, ao mesmo Este trabalho se fundamenta sobre tempo, foi ovacionada e aclamada o alicerce teórico da Retórica, com os pelos mesmos motivos. Dissociou-se estudos de autores como Aristóteles do clássico e abriu portas para o ino- (2015), Meyer (1993), Reboul (2004), vador. 2 Lalive, Tropical, Estudante russa, Japonez, O Homem amarello, A mulher do cabello verde. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), poética, construindo e disseminando Fiorin (2014), McCoy (2010); e da Lin- sua estrutura. guística Textual, com Koch (2004), Os autores afirmam ainda que é Cavalcante (2013), Tavares (1978); essa relação entre diferentes mo- além de autores que tratam da retó- mentos, ações e visões da arte que SELINFRAN rica da imagem e da pintura, como nos aponta um sentido global para o Barthes (1982) e Carrere e Saborit termo arte. E explicar o conceito de (2000). Sobre Malfatti, sua obra, o arte - na medida do possível - envol- contexto cultural de sua época e so- ve observar a conjunção de certos bre noções das artes plásticas, con- objetos e ações, com a realização de sideraremos os trabalhos de Batista uma função estética (CARRERE; SA- (2006), Amaral (1970), Gombrich BORIT, 2000, p. 24, tradução nossa). (1950) e Strickland (2004). Os autores complementam, poste- Como introito, a definição que riormente, que a arte é uma ativida- Aristóteles (2015, p. 62), o grande de humana que começa com elabo- formulador da teoria retórica, nos dá, ração de coisas ou acontecimentos, afirma que, “entendamos por retóri- destinados a cumprir uma função, ca a capacidade de descobrir o que é referir-se a um acontecimento sensí- adequado a cada caso com o fim de vel-inteligível, de qualquer realidade persuadir”. (CARRERE; SABORIT, 2000, p. 25). Podemos compreendê-la como O funcionamento da pintura de- uma competência que o orador pos- monstra como sua expressão ocorre, sua ou desenvolva de encontrar, den- já que a maneira como a enxergamos tre as várias opções acessíveis, àque- se perfaz distinta do resto dos outros la que em cada caso persuadirá de fenômenos comunicativos, relacio- forma adequada, ou seja, a maneira nando aqui os seus níveis de expres- mais propícia, em cada situação, de sividade, como ocorre a experiência 209 obter adesão de um auditório. Com- estética que ela conduz, além de suas preende-se também que a persuasão características físicas e dos procedi- é o objeto da retórica, porquanto po- mentos técnicos empregados em sua de-se caracterizá-la por ser a arte de elaboração. bem falar ou de demonstrar eloquên- cia em um discurso. Porquanto, como expressa Carre- re e Saborit (2000, p. 27) na pintura, Como nosso objeto, a arte tem a as pequenas variações do seu plano definição dada pelos autores Carrere expressivo, seus matizes de cor, a mi- e Saborit (2000, p. 23), que confir- croestrutura de camadas pictóricas UNIFRAN DA LINGUÍSTICA mam uma certeza, a de que em oca- sobrepostas, etc., tornam-se relevan- siões ela designa certo tipo de objeto tes do ponto de vista de seu signifi- e em outras fala sobre um fazer (re- cado. alizar algo, inventar). Em alguns mo- mentos, expressa a realidade exterior Em uma análise mais profunda de a ela, e em outros, ilustra sua própria uma pintura, há de se recorrer às re- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX presentações figurativas, ou seja, o a resposta à questão dada pode ser signo icônico - como os autores ci- provável ou verossímil. tados explicam, e que advém da no- Devido à lógica da retórica, ela ção do filósofo Roland Barthes, assim se constitui de características que a SELINFRAN como evocar noções e percepções tornam singular, pois “é preciso um abstratas, tratadas aqui como signo orador, um auditório ao qual se dirija plástico. E, com isso, a pintura des- e uma ‘mídia’ por meio da qual eles pertará o pathos do auditório, que, se encontrem, para comunicar o que em consonância a Meyer (2007, p. pensam e trocar pontos de vista. Essa 36), “é a fonte das questões e estas ‘mídia é sempre uma linguagem, que respondem a interesses múltiplos, pode ser falada ou escrita, mas tam- dos quais são provas as paixões, as bém pictórica ou visual” (MEYER, emoções ou simplesmente as opini- 2007, p. 22, grifo nosso). ões”. Aristóteles faz alusão ao ethos, lo- Para a compreensão de uma pintu- gos e pathos, instâncias que estru- ra, deve-se levar em conta o conhe- turam o discurso retórico, dando-lhe cimento enciclopédico do ouvinte, substância. O ethos diz respeito ao anunciando sua experiência estética, caráter, honra ou virtude atribuídos pois, para os autores Carrere e Sabo- ao orador do discurso. Dessa forma, rit (2000, p. 28-29) essa experiência Meyer (2007, p. 26) diz que do pon- se conclui ante a manifestação ex- to de vista do orador, o determinante pressiva de uma pintura ou qualquer para o discurso é se ele agradará o tipo de arte, pondo em jogo – dentro auditório, e a maneira utilizada para de um contexto – toda uma série de esse intuito pode ser tanto por meio competências por parte do auditó- de um discurso agradável ou belo, rio, sua memória, seus conhecimen- como por meio de um argumento ra- tos conscientes ou inconscientes, cional. 210 seus afetos e tudo isso. Em uma rede A instância do logos se refere à transtextual, que estabelece relações linguagem ou à imagem utilizada no labirínticas por meio do conhecimen- discurso, a mensagem que se passa to enciclopédico, essa abstração de- para o auditório. Já no que se refe- fine o conjunto de saberes universais. re ao pathos, este está associado ao Para tanto, a arte da retórica pos- auditório pelas emoções ou paixões que está disposto a sentir por meio sui uma lógica própria que a per- do discurso. meia, dando a ela o seu contorno de faculdade que, visando compreen- Para Reboul (2004, p. 48), “o patos LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA der o processo persuasivo, objetiva é o conjunto de emoções, paixões e descobrir a argumentação mais ade- sentimentos que o orador deve sus- quada a cada evento comunicativo, citar no auditório com seu discurso”. centrando-se em alguma questão Nota-se que o pathos são as emo- previamente colocada, e em que se ções, paixões do auditório, e que es- pode duvidar ou não, ou seja, quando sas emoções devem ser despertadas pelo orador, pelo seu discurso. IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX 2 Metodologia de Pintura Moderna Anita Malfatti, em 1917, e compõe o arsenal de pin- Como método, iniciamos com a turas responsáveis pelo estopim do revisão bibliográfica e levantamento Modernismo no Brasil, sendo consi- das obras de Malfatti que compõem

derada a mais famosa da exposição. SELINFRAN o corpus, por meio de bases de da- dos online, tais como Google acadê- mico, e pesquisa em bibliotecas. Em princípio, a análise contempla- ria doze pinturas documentadas na biografia de Malfatti, elaborada por Batista (2006). Contudo, após leitura e documentação das pinturas, verifi- cou-se que das doze obras menciona- das somente seis foram encontradas na biografia referida e no catálogo de obras de Malfatti, também com- pilado pela historiadora. Necessário salientar que nem mesmo documen- tação do paradeiro das outras seis pinturas foi localizada e que, após a pesquisadora entrar em contato com a Edusp3, a resposta recebida foi de Figura 1 – O homem amarelo. não haver registro de tais obras.4 Fonte: BATISTA, 2006, p. VII. A abordagem do trabalho é qua- Na biografia de Malfatti, Batista litativa, por analisar a retoricidade (2006, p. 159) explicita que a pin- nas seis obras de Malfatti, apresenta- tura O homem amarelo - “sua obra mais famosa [...], resolvida em planos da em 1917, na Exposição de Pintura 211 Moderna Anita Malfatti, averiguando chapados de amarelos, vermelhos e aspectos linguísticos, retóricos e pic- marrons, com algumas delimitações tóricos. de verde” - foi pintada tendo como modelo um pobre imigrante italiano 3 Análises e, nas palavras da própria artista, “Era 3.1 O homem amarelo um que entrou para posar. Tinha uma A pintura O Homem Amarelo, em expressão tão desesperada”. sua segunda versão 5, é uma das pin- A pintura é feita de maneira defor-

turas icônicas de Anita Malfatti. A mada, abstratizante, com pose inusi- UNIFRAN DA LINGUÍSTICA obra foi apresentada na Exposição tada para a arte da época, porquanto

3 Editora do livro Anita Malfatti no tempo e no não se encaixa na superfície do su- espaço – biografia e estudo da obra (2006). porte/quadro, e não está perfeita- 4 As obras em questão são: Simphonia Colorida, Capanga, Caboclinha, Retrato de D. Nelly S. Campos, Co- mente alinhado ao assento. Suas fei- sette e Egypcia. ções são assimétricas, remetendo ao 5 A primeira versão foi pintada à carvão e pastel, em 1915/16. expressionismo, “arte do sentimen- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX to”, com nuances distorcidas e exa- publicações de Mário de Andrade, geradas, e particularidades cubistas, Oswald de Andrade e outros críticos como a figura angulosa, com o uso e artistas que aderiram ao trabalho de linhas e contornos grossos. de Malfatti e a viram como “divisora SELINFRAN Para tanto, como indício do desta- de águas” e estopim para o moder- que que O homem amarelo obteve, o nismo. escritor Mário de Andrade concluiu: Para tanto, a obra de arte possui “parece absurdo, mas aqueles qua- blocos pictóricos que agem retori- dros foram a revelação. E ilhados na camente por meio de figuras e as- enchente de escândalos que toma- pectos linguísticos, além de possuir ram a cidade, nós, três ou quatro, de- intertextualidade com outras obras lirávamos de êxtase diante de quadro expressionistas e fauvistas. que se chamavam O homem amarelo, Depreende da pintura sua intertex- A mulher de cabelos verdes”. A en- tualidade com outras obras, para tan- chente de escândalos a que se referia to Cavalcante (apud KRISTEVA 2012, o autor foi a ocorrida na semana da p. 145-146, grifo nosso) alude que exposição em 1917, pois, agindo reto- “todo texto é um mosaico de cita- ricamente, acarretou o despertar de ções de outros textos”. Por isso, com paixões no auditório da época. suas pinceladas fortes e aparente- Como exemplo dos pathe desper- mente sem direção, que aos poucos tados pela exposição de Malfatti, há e em toda sua extensão compõem a reações eufóricas e disfóricas que obra dando-lhe sua composição ori- acometeram o público da época, pois ginal e pelo uso expressivo das cores, elas foram desde a ira, cólera, ódio O homem amarelo possui intertextu- até amabilidade, amizade e devoção alidade por alusão com a obra mais por Malfatti. emblemática do expressionismo, O 212 Das paixões de ira, de cólera e de grito, de Edvard Munch, uma vez que, ódio, temos o artigo escrito pelo au- para a autora, a alusão “é uma espé- tor Monteiro Lobato, na semana da cie de referenciarão indireta, como exposição, em 1917, publicado no jor- uma retomada implícita, uma sinali- nal Estado de S. Paulo, sob o título zação para o coenunciador de que, de A propósito da exposição de Ani- pelas orientações deixadas no texto, ta Malfatti como resposta ao evento. ele deve apelar à memória para en- Esse mesmo artigo seria publicado contrar o referente não dito” (CA- mais tarde com o título de Paranóia VALCANTE, 2012, p. 152).

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA e Mistificação. Neste artigo, Lobato Pode-se observar também que a toma Malfatti como “louca” e sua obra pintura possui a figura retórica de como “estranhas psicoses”. Compa- linguagem alegoria, pois o homem rando suas pinturas a desenhos dos da pintura é visto de uma forma um pacientes em um manicômio. pouco abstrata e sua cor também se- Já configurando ospathe de ami- gue esse mesmo enredo. Além disso, zade, amabilidade e devoção temos a pintura convida ao conotativo, po- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX dendo, dessa forma, ser vista de for- Outra figura retórica utilizada na ma não-literal. obra analisada é a elipse cromática, Alegoria vem do grego allos, “ou- ou seja, a omissão ou supressão de tro”; agorein, “falar”; allegoreno, “falar alguma cor, muito utilizada em obras de outro modo”. Dessa forma, O ho- impressionistas. Nesse caso, a omis- SELINFRAN mem amarelo surge, alegoricamente, são de cores que se utilizariam em como uma expressão de um estado uma obra acadêmica e que corres- interior, mais do que uma representa- pondem à analogia do “real”. ção ‘naturalista’ de um homem sen- Há muitos fatores que agem reto- tado, mas que perde a característica ricamente na pintura e, para tanto, de ordinário devido à mensagem lin- cita-se aqui a transformação icôni- guística que o ancora, além dos tons ca que, conforme Carrere e Saborit amarelos utilizados. Por conseguinte, (2000, p. 286), possui um caráter segundo Tavares (1978, p. 374): “Nas definitivamente retórico de transfor- pinturas, nas esculturas, enfim, nas mações concretas quando envolvem artes plásticas é a alegoria bastante desvio de uma norma local ou geral, empregada com o valor de símbolo”. ou seja, a manifestação de tendên- Na pintura, a mensagem verbal se cias novas, com novos códigos, como refere ao título que lhe é dado (e até “antecipo de otro arte”, isto é, precur- na falta do mesmo), sua função de- sor de uma arte nova, uma prévia da nominativa, ou seja, “O homem ama- arte por vir. relo”. Conforme Barthes (1982, p. 32), Semelhante fator que exerce re- a “função denominativa corresponde toricidade na obra é a alteração da bem a ancoragem de todos os senti- superfície, porque altera nossa per- dos possíveis (denotados) do objeto, cepção e consideração da obra e, pelo recurso a uma nomenclatura”, logo, da própria noção da pintura que aduz muito mais que uma ana- (CARRERE; SABORIT, 2000). O que logia do homem real, mas sim toda a vemos em O homem amarelo é que 213 complexidade e modernidade que a ele salta aos olhos por ser elaborado pintura expôs em 1917. Como disso- com contornos fortes e postos em ciativa, ela surgiu nomeando o qua- relevo, ultrapassando o “limite” da dro de forma totalmente original e superfície, saltado do quadro, como contemporânea, já que dar cores di- que se apresentasse seus traços e a ferentes da “realidade” a uma pintura si mesmo. não era utilizado nas artes plásticas A figurasinédoque também inte- até aquele momento histórico. gra a pintura e é a “substituição de LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA Ainda conforme o autor (1982, p. um termo por outro de extensão 33), “a ancoragem é a função mais desigual”, conforme Tavares (1978, frequente da mensagem linguística”, p. 375), aplicada ao gênero quadro, por isso, nesse caso, ancora um senti- parte do corpo representando a to- do voltado às cores utilizadas em sua talidade; há também a repetição hi- confecção. perbolizada das cores utilizadas e IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX nas formas acentuadas pelas linhas Ainda conforme Batista (2006, p. grossas. 184, grifo nosso), “a estrutura da obra Outra figura que compõe a obra é e a colocação da figura na tela se as- a Aliteração cromática cálida, ou seja, semelham a suas composições nor- SELINFRAN a insistência de uma mesma cor, cau- te-americanas. Mas nesta tela a pin- sando consequências sinestésicas no tora ‘se contém’ em maior proporção auditório e, dessa forma, despertan- do que em Tropical, tanto em relação do conhecimentos e opiniões. à abstração, às deformações, quanto à cor”. 3.2 Lalive: “A mal feita” Com base no descrito pela histo- Anita enviou para o Salão de Be- riadora, percebemos como Malfat- las Artes, no Rio de Janeiro, em 1917, ti se modera para se enquadrar em o quadro Lalive, provavelmente pin- um estilo mais ou menos acadêmico, tado também em 1917. O quadro é utilizando o conceito que Aristóteles de grandes dimensões, não possui dá à retórica, usando o que persua- preocupações nacionalistas da épo- dirá em cada caso. No caso especí- ca em que foi exposto e retrata uma fico, de participar de uma mostra do figura de mulher, “temática predileta Salão Nacional de Belas Artes e de de Anita Malfatti” (BATISTA, 2006, p. persuadir seus organizadores de que 184). deveria ser aceita para figurar entre as outras pinturas da exposição na- cional de 1917. Batista (2006, p. 186) complementa: “Do rosto – ainda algo sintético em relação ao academismo da época – somem as deformações, assimetrias e atenuam-se os planos marcados”. 214 A maneira sucinta como Malfatti se utilizou dos signos pictóricos dá ao rosto de Lalive uma delicadeza e uma astúcia que promovem a adesão do auditório, já que o semblante indica compaixão. Por isso, Lalive pode cau- sar a paixão da amabilidade, porque possui uma expressão solícita e um sorriso afável. LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA

Figura 2 – Lalive A historiadora (2006, p. 186) pros- Fonte: Pinterest, 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2018 bituais pinceladas da tinta diluída, há entretanto uma deliberada procura de pintura ‘mais suave’; recorre mes- IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX mo a uma cor não utilizada até en- de cores ou, em menor escala, dife- tão: o tom rosa do vestido, que cobre renciando elementos entre si” (2013, grande área da tela”. p. 49). Dessa forma, a cor assume um Como a cor utilizada por Malfat- papel muito importante como signo ti era uma novidade plástica para a pictórico, já que, como uma extensão SELINFRAN época, compreendemos aqui que a de toda a pintura, pode promover as pintura, assim como Carrere e Sabo- emoções do espectador, persuadin- rit discorreram, vem como uma trans- do-o. missora de conhecimento, trazendo Ressalte-se, também, que o uso um discurso elaborado com signos das tonalidades da cor rosa pode tra- pictóricos relativamente novos. duzir a feminilidade de Lalive, pois, Para Kress e Leeuwen, a cor possui conforme Heller (2007, p. 214 apud muitos intuitos e realiza atos: CARVALHO, 2016, p. 55), a cor atin- ge, sobretudo, “o público feminino, A cor também pode ser utilizada tendo em vista os valores cultural- para transmitir significados inter- mente associados no ocidente a esta pessoais, realizando atos de cor cor, relacionada com a feminilidade, e, assim, fazendo coisas para si ou para os outros, tais como im- com o romantismo e com o artificial”. pressionar ou intimidar o espec- Na pintura, vislumbramos alguns tador com um endereçamento toques da cor azul que também de poder, alertar contra perigos transmite calma, assumindo um con- pelas pinturas em tonalidade la- traponto com a cor rosa (KRESS; ranja, ou mesmo relaxar indivídu- VAN LEEUWEN, 2002 apud CAR- os hostis e agressivos por meio do uso do rosa em ambientes fe- VALHO, 2013, p. 53), - que pode ser chados (KRESS; VAN LEEUWEN, visto como calma, mais assume um 2002, p. 348 apud CARVALHO, toque mais quente. 2013, p. 49). O azul e o branco correspondem 215 Como ponderam Kress e Leeuwen, ao frio, à calma, e de acordo com a cor rosa pode relaxar indivíduos Dondis (1991, s.p) “azul é passivo e hostis e agressivos e, por isso, pode- suave”. Dessa forma, os pontos em mos argumentar que a cor pode ins- azul em Lalive complementam a su- pirar paixões como a calma. Porquan- avidade transmitida pela pintura. Ba- to, conforme Aristóteles (2015, p. 121), tista (2006, p. 186) continua: “a calma pode ser definida como um Parece que, para finalizar a obra, apaziguamento e com uma pacifica- a pintora atendeu às sugestões

ção da cólera”. do meio, pois se a composição UNIFRAN DA LINGUÍSTICA do quadro e a estrutura da figura Segundo Carvalho, “a cor frequen- são sucintas, há concessões à de- temente desempenha a função textu- coração e a “suavização” – como al ao promover coesão, criando uni- pinceladas “luminosas” no cabe- dade e coerência entre os elementos, lo e no olhar; como a colocação bem como ao realizar a coordenação de “enfeites”, colar no modelo e IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX ramagens no sofá. As mãos e os seus olhos perceptivelmente maiores braços continuam os seus. que o “normal” acadêmico. Dessa forma, empreendemos a Podemos dizer, então, que os olhos suposição de que talvez as concep- de Lalive assumem uma expressivida- SELINFRAN ções que Malfati fez na tela a fizeram de pictórica proveniente do tamanho ser aceita para figurar na exposição que possuem, estão hiperbolizados, nacional de 1917, o que não provo- pois seu excesso garante seu intuito cou tantos rumores ou comentários pictórico, chamando atenção para si. como a tela O homem amarelo. Observamos a figura da repetição Ainda consoante a Batista (2006, nas cores utilizadas por toda a exten- p. 186), a tela Lalive não recebeu men- são do quadro, já que está quase que ção ou medalhas. A única referência completamente preenchido da cor da imprensa saiu na página com ca- rosa, pois a repetição ocorre no nível ricaturas de Raul, em que Lalive foi da cor, quando há insistências em um comentada com um trocadilho infa- matize específica, em toda a pintura. me, “que se valia do nome da dona A repetição da cor rosa produz de mãos expressivas: ‘A. MALFATTI / também a figura da sinestesia, uma A mal feita’”.6 vez que por meio da cor sentimos Dessa forma, com o auxílio de Car- sensações de tranquilidade. Por isso, rere e Saborit (2000, p. 174), obser- a pintura assume dimensão retórica, vamos como se dá o processo de já que se utiliza de intenções senso- pintar um quadro. Os autores nos riais, enriquecendo o discurso e for- pedem que imaginemos o pintor em talecendo a intenção a pintora-ora- frente a uma tela em branco, pensan- dor. Como Carrere e Saborit (2000, do, pincel em riste. E completam que p. 357) enunciam que mesmo sem o “la acción debe preceder a la reflexi- tema do sensorial, as cores podem 216 ón, la reflexión debe proceder de la assumir esse papel de transparecer acción”7. Dessa forma, o processo se uma sensação. faz ao mesmo tempo e pode sim ser Concebemos também a figura re- manipulado conforme intuito. tórica da alegoria, já que Lalive apa- Conjeturamos aqui que o título da rece alegoricamente como um sím- obra como parte linguística que a an- bolo da vida, da boa recepção, do cora, conforme Barthes, pode ser vis- prazer em sorrir, da calma, de um es- to como uma analogia de à la vie, “a tado sentimental pura e elevado. vida” em francês. Dessa forma, o ter-

LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA A pintura Lalive, assim como O ho- mo Lalive, visto como “a vida” anco- mem amarelo, possui intertextualida- ra a figura de uma mulher sorridente de por alusão com obras do fauvis- sentada em um sofá, olhando dire- mo, pela utilização explosiva da cor tamente para seu espectador, com rosa, até porque a cor do vestido se 6 Raul, “O salão cômico”, Revista da Semana, Rio de Janeiro, 1917. funde com a cor da modelo, como se 7 A ação deve preceder a reflexão, a reflexão a mulher Lalive fosse tudo o que há deve vir da ação (tradução nossa). IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX a sua volta. Em suma, ela engloba a retóricas, tropos e a contextualização vida. com escolas artísticas surgidas na Europa, tais como expressionismo, Considerações Finais fauvismo, cubismo.

Por todo o exposto, concebe-se as SELINFRAN A pintura despertou paixões no particularidades linguísticas, retóri- público da época (1917), seu audi- cas e argumentativas da pintura, ex- tório, revelando sua intenção, seja pressando intuitos da artista e agindo transmitir uma mensagem ou apenas retoricamente para atingir o auditó- persuadir o espectador de sua pró- rio, demonstrando para tal o uso de pria beleza, valor e/ou condição ar- procedimentos previamente escolhi- tística. dos, de acordo com cada intenção para persuadir. Dessa forma, ela pode Portanto, ela se mostrou como ser analisada como um texto pictóri- transmissora de conhecimentos so- co ou como um texto retórico. bre a realidade artística existente in- ternacionalmente e sobre ela mesma, Compreendemos que a pintura asseverando sua complexidade de agiu como texto retórico, atingindo discursar tanto sobre conhecimen- seu público, demonstrando para tal tos quanto sobre a expressão de si o uso de procedimentos previamente mesma, mostrando distinções frente escolhidos, de acordo com cada in- a outros discursos e se dissociando tenção e, dessa forma, desperta pai- dos mesmos, apresentando mecanis- xões e opiniões. mos retóricos para se colocar como A pintura demostra, por meio dos um discurso novo diante dos existen- seus signos pictóricos, os seus as- tes naquele momento histórico e cul- pectos linguísticos, tais como figuras tural.

217 LINGUÍSTICA DA UNIFRAN DA LINGUÍSTICA IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM SEMINÁRIO DE PESQUISA IX SELINFRAN REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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