―ARREDA HOMEM, QUE AÍ VEM MULHER...‖: DIMENSÕES DO CORPO NA PERFORMANCE DA POMBAGIRA

Tulani Pereira da Silva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico- raciais, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Relações Étnico-Raciais.

Orientadora: Profa. Dra. Elisângela de Jesus Santos.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

FOLHA DE ASSINATURAS

―ARREDA HOMEM, QUE AÍ VEM MULHER...‖: DIMENSÕES DO CORPO NA PERFORMANCE DA POMBAGIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico- raciais, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Relações Étnico-Raciais.

Tulani Pereira da Silva

Banca Examinadora:

______Presidente, Professora Dra. Elisângela de Jesus Santos (orientadora/ CEFET-RJ)

______Professor Dr. Luis Felipe dos Santos Carvalho (CEFET-RJ)

______Professora Dra. Tatiana Damasceno (UFRJ)

SUPLENTES:

______Professora Dra. Maria Cristina Giorgi (CEFET-RJ)

______Professora Dra. Valquíria Pereira Tenório (IFSP/ campus Matão)

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

―À Nívia Maria, minha mãe, meu pilar e escudo. Em especial à vovó Zilda, que (in)conscientemente, me mostrou os meandros de ser mulher. À memória não lembrada de vovó Noely, que sem ter em meu arquivo uma imagem sequer de seu sorriso, sintetizou em uma existência o que é ser Pombagira.‖

SARAVÁ!

Agradecer não é tão simples quanto parece. É um ato de humildade e reconhecimento. A construção deste trabalho não foi uma tarefa fácil, logo os agradecimentos se dirigem a poucas e significativas pessoas, que de fato me acompanharam durante este processo. Agradeço a força suprema do universo, que chamamos de Deus, energia incriada, nem homem e nem mulher, nem isso ou aquilo, mas que figuramos às nossos imaginários limitados de gênero. Aos sagrados Orixás, emanações da natureza. Em especial a Oxum por manter em equilíbrio meu ori. A Oxalá por me desacelerar. Aos guerreiros das minhas batalhas diárias: Oyá e Ogum. Agradeço a Exu, potência geradora do movimento, por me apresentar as encruzas da vida e me desafiar a cada dia. Às Pombagiras, divinas mulheres com quem tanto aprendo, por me guiarem, protegerem e mostrarem que apesar de me ser caro, a sociedade falocêntrica pode e deve ser subvertida. Aos meus familiares, por vezes ser o apoio necessário e outras por ser minha provação. Em especial, a minha mãe Nívia Maria, mulher de coragem de quem me orgulho cada vez mais e sinto a certeza de ter feito a escolha certa, no plano espiritual, em pedir para ser sua filha. Ao meu pai, Rildo Pereira, por me mostrar os caminhos, me possibilitar fazer escolhas e ser aquele quem me inspirou a lutar pela minha dança. Aos meus amigos, os poucos que tenho e não preciso nomear, pois por si só já sabem quem são… muito obrigada por me acompanharem e compreenderem esta trajetória árdua e desafiadora que é estar entre a arte, a academia e o terreiro. A Fraternidade Espírita Cristã. Casa, morada, recanto, meu lugar, campo... onde cresci e aprendo tanto sobre a vida espiritual e a Umbanda. Em especial, a Dulce Monteiro, por abrir as portas. A Cabocla Jandira, por me permitir chegar. A Vovó Cambinda, por cada escuta e cada fala atenta. A Pombagira Rainha por ser voz e representar através dela, tantas moças que giram por lá. Ao professor Dr. Tadeu Mourão, por me auxiliar a encontrar a encruza. A minha orientadora, professora Dra. Elisângela Santos, mulher de fibra, paciência e determinação. Que sem perder a ternura não desistiu de mim, me mostrando com muita generosidade que a vida é feita de prioridades. Agradeço as professoras Dra. Maria Cristina Giorgi e Tatiana Damasceno pelas atenciosas contribuições. Ao professor Dr. Luís Felipe Carvalho, pelo carinho e ajuda

com a riqueza de seus apontamentos. Aos demais professores e funcionários do PPRER, por participarem deste processo e auxiliarem na minha trajetória acadêmica. Aos queridos colegas do PPRER (pois esta dissertação é, de fato, fruto de um coletivo), com carinho especial aos da linha ―Campo Artístico e Construção de Etnicidades‖ e também àqueles de outras linhas de pesquisa, cuja veia artística pulsa em seus corpos e escritas: Alessandro Conceição, Aline Vilaça, Eneida de Oliveira, Humberto Manoel, Renan Moutinho e Tatiana Rosa. Aos membros do Coletivo de Negrxs do CEFET e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) do CEFET, sou grata por agregarem discussões e experiências valiosas. Em especial a Aleksandra Stambowisky, por abrir a gira na encruza e pelo nosso formidável encontro. A Vilma Neres, pelo talentoso olhar através das lentes e tamanha generosidade em contribuir com suas fotografias! Ao querido Zeca Ligiéro, meu guru! Grande Zé do morro de Santa Teresa, compadre das Pombas, que caminha comigo. Sempre solícito de forma desinteressada, torcendo pelo meu crescimento. A Companhia Folclórica do Rio-UFRJ e em especial a minha mestra Eleonora Gabriel, por me apresentar a cultura popular e quão fascinante é cada descoberta e aprendizado dos seus saberes. Ao Projeto em Africanidade na Dança Educação (PADE-UFRJ) e em especial a Alexandre Carvalho, meu mestre querido, a quem estendo minha gratidão por toda vida pelos ensinamentos sobre o axé da religiosidade afro-brasileira. A todas as mães de santo, senhoras, mulheres e zeladoras das casas de axé com quem convivi e acompanhei tantas vivências sobre as macumbas, mandingas e mirongas: Mãe Nara de Oxóssi, Mãe Nani de Oxum, Mãe Maria de Xangô e Mãe Tânia de Jagun. Por fim e não menos importante, mas também intencionalmente, Oxalá vem encerrando o xirê… agradeço a Marlene Medrado, que na academia, me ensinou a agir com objetividade, e no terreiro sendo Iyá Marlene de Lufan, me ensinou que devagar também é pressa. Com carinho e respeito, dedico minha gratidão a todos, que nomeados ou não, contribuíram e agregaram para a construção deste trabalho, firmando ponto na encruzilhada. Axé! Saravá!

―Ela caminha pela estrada, ela caminha Pela estrada, eu caminhei. Eu caminhei e uma mulher eu encontrei…‖ Victor Garcia

RESUMO

A presente dissertação tem por tema o estudo da performance da Pombagira na umbanda através da ótica das relações étnico-raciais, investigando suas práticas corporais no campo artístico. O objetivo desta pesquisa é identificar, na realidade de uma instituição religiosa, a existência de possíveis características que estejam ligadas a uma representação de feminino independente e subversivo. Nosso problema de pesquisa que se apresenta, está centrado na seguinte questão: Será que a performance da Pombagira, a partir das práticas rito-litúrgicas dessa determinada instituição religiosa, nos aponta para características de um feminino emancipador? Para tal, realizamos abordagem qualitativa, uma pesquisa etnográfica junto à Fraternidade Espírita Cristã (FEC). Procura-se na observação participante – por meio dos elementos artísticos que compõem a performance da Pombagira no ritual: imagens (cenário, vestimenta e objetos), música (canto e percussão) e cena (dança, teatralidade e jogos corporais) – sentidos produzidos através deste corpo-mulher que se conectem a imagens de um feminino provido de algumas heranças artísticas e culturais negras, que apresentem (ou não) uma confrontação aos papeis sociais de dominação sociocultural e política atribuídos à mulher.

Palavras-chave: Pombagira. performance. etnografia. corpo. relações étnico- raciais.

ABSTRACT

The present dissertation deals with the study of Pombagira‘s performance in umbanda through the optics of ethnic-racial relations, investigating their corporal practices in the artistic field. The objective of this research is to identify, in the reality of a religious institution, the existence of possible characteristics that are linked to an independent and subversive feminine representation. Our research problem is centered on the following question: Does Pombagira's performance, based on the ritual and liturgical practices of this particular religious institution, point us to the characteristics of an emancipatory feminine? For this purpose, in the qualitative approach, we conduct an ethnographic research with the Fraternidade Espírita Cristã (FEC). It seeks participant observation – through the artistic elements that compose Pombagira's performance in the ritual: images (scenery, dress and objects), music (singing and percussion) and scene (dance, theatricality and body playing) – senses produced through of this woman-body that connects to images of a feminine with some black artistic and cultural heritages that present (or not) a confrontation with the social roles of social, cultural and political domination attributed to women.

Keywords: Pombagira. performing arts. ethnography. corpo. ethnic-racial relations.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Grupo mediúnico da Fraternidade Espírita Cristã na década de 90 57 Figura 2: Reiki 59 Figura 3: Evento com tema junino realizado pela FEC em 2015 61 Figura 4: Congá antigo da FEC na década de 1990 86 Figura 5: Betel 87 Figura 6: Espaço onde as entidades dão consulta 87 Figura 7: Sala do reiki 88 Figura 8: A linha do oriente, suas pedras e cristais 88 Figura 9: Secretaria da FEC. 89 Figura 10: Secretaria da FEC vista de dentro 89 Figura 11: Tesouraria 90 Figura 12: Cozinha 90 Figura 13: Dispensa 91 Figura 14: Pátio 91 Figura 15: As plantas sagradas 92 Figura 16: Assentamentos dos médiuns 92 Figura 17: Sabaçaria. 93 Figura 18: Templo 94 Figura 19: Evangelização infanto-juvenil - sala do ciclo I 94 Figura 20: Evangelização infanto-juvenil - sala do ciclo II 95 Figura 21: Evangelização infanto-juvenil - sala do ciclo III 95 Figura 22: Vestiário masculino de médiuns 96 Figura 23: Vestiário Feminino de médiuns 97 Figura 24: Sala inativa 97 Figura 25: Sessão de psicografia na prece para os desencarnados 101 Figura 26: Passagem do defumador antes da gira de descarrego 105 Figura 27: Exu Tranca Rua dançando 107 Figura 28: O tridente de fogo 112 Figura 29: Cruzamento do templo 114 Figura 30: Médium em transe na representação corporal do machado de Xangô 116 Figura 31: Médiuns ―batendo cabeça‖ no congá 117 Figura 32: A gira e a tecnologia 120

Figura 33: O sino e outros utensílios de trabalho 121 Figura 34: Congá da FEC em 2016 123 Figura 35: Pombagira dança para o congá 124 Figura 36: Pombagira entre as labaredas 125 Figura 37: Ponto riscado da Cabocla Jandira 126 Figura 38: A encruzilhada no traçado 127 Figura 39: Pombagira sobre saltos 129 Figura 40: O gestual das mãos 131 Figura 41: Imagens guardadas na sabaçaria 133 Figura 42: Ogã tocando tambor durante a gira de descarrego 135 Figura 43: Pombagira segurando a saia 145 Figura 44: Pakalala: o estado de alerta 146 Figura 45: Pakalala na umbanda: a postura da Pombagira manifestada em médium da assistência 146 Figura 46: O sorriso da Pombagira 153 Figura 47: Emblema da FEC 183 Figura 48: Fachada da FEC 183 Figura 49: Cruzeiro 183 Figura 50: Caboclo Sete Flechas saudando o congá 184 Figura 51: Pai Cipriano 184 Figura 52: Cabocla Jandira benze filho de Ogum 184 Figura 53: Mironga de preta velha 184 Figura 54: Pombagira Rainha 185 Figura 55: Pretos velhos em terra 185 Figura 56: Ibejada 185 Figura 57: Encerramento dos trabalhos do ano na praia 185 Figura 58: Estrela de seis pontas florida 186 Figura 59: Prece na praia. Fotografia 186 Figura 60: O afago de Vovó Cambinda 186 Figura 61: Pedidos ao mar 186 Figura 62: Agradecimentos de mãe Dulce 187 Figura 63: Rosas. Fotografia: Tulani Pereira. 187 Figura 64: Trabalho aos Exus e Pombagiras. Fotografia: Tulani Pereira. 187 Figura 65: Apresentação artística do PADE-UFRJ no 18º aniversário da FEC 188 Figura 66: Assistência em festa de Natal 188

Figura 67: Grupo de médiuns da FEC em 2016 188 Figura 68: Almoço fraterno 189 Figura 69: Bingo durante evento 189 Figura 70: 18º aniversário da FEC em janeiro de 2016 189 Figura 71: Feijoada fraterna 2016 190 Figura 72: Brechó da FEC 190 Figura 73: ―Pisa em saltos, seus pés descalços…‖ (Xandy Carvalho) 191 Figura 74: O ogã e o tambor 191 Figura 75: O cigarro de Seu Tranca Rua 192 Figura 76: Pombagirando 192 Figura 77: Pombagiras Ciganas 193 Figura 78: Salve a maladragem! 193 Figura 79: Zé Pelintra 194 Figura 80: Cantar, dançar e batucar 194 Figura 81: Caboclos aplicando passe durante a gira de descarrego 195 Figura 82: Fraternidade entre médium e consulentes 195 Figura 83: Descarregando com a espada de Ogum 196 Figura 84: Encruza no templo 196 Figura 85: Reverência a Oxalá 197 Figura 86: O mais velho e o mais novo 197 Figura 87: Corrente para saída da assistência 197 Figura 88: Assentamentos do congá 198 Figura 89: Ponto riscado em preto e branco 198 Figura 90: Os tambores 198 Figura 91: Morubixaba Dulce e Tulani Pereira 199

SUMÁRIO

Apresentação 13 Introdução 17 1- Nas interfaces das macumbas 24 1.1 – Laroiê! Exu é Mojubá! Saravá Pombagira! 25 1.2 – ―Refletiu a luz divina em todo seu esplendor...‖ 43 1.3 – Situando a encruzilhada: uma pesquisa de campo numa Casa de...? 54 2 - O corpo e suas heranças negras: ritual e jogo na performance afro-brasileira 62 2.1 – Performance: o corpo em ação 63 2.2 – Ritual e jogo na performance afro-brasileira 67 2.3 – Performance afro-brasileira: o cantar-dançar-batucar 71 2.4 – Como se fosse a primeira vez: entrando no campo (des)conhecido 77 2.4.1 – Entre escritas de um diário de campo 80 2.4.1.1 – Tempo 81 2.4.1.2 – Espaço 85 2.4.1.3 – Dinâmica 98 2.4.2 – A performance da Pombagira na Fraternidade Espírita Cristã 102 3 - “Tranca Rua vem na frente dizendo quem ela é…”: Dimensões do corpo na performance da Pombagira 118 3.1 – Corpo e imagem 119 3.2 – Corpo e música 134 3.3 – Corpo e cena 142 3.4 – ―Filha, mas aqui não é uma Casa de umbanda...‖: Conflitos e tensões 155 Considerações Finais 163 Referências 169 Anexo A - Hino da Umbanda 174 Anexo B - Textos do Primado de Umbanda utilizados na FEC 175 Anexo C - Transcrição da entrevista 178 Anexo E - Sob as lentes da fotógrafa negra Vilma Neres: Gira de Descarrego em 28/10/2016 191

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Apresentação

―Abre a roda, deixa a Pombagira trabalhar. E ela tem, ela tem peito de aço. Ela tem peito de aço e coração de sabiá.‖1

Nasci numa família descendente de valores cristãos, de um lado católicos e de outro, evangélicos. Meu pai e minha mãe, que descendem do rigor da educação nordestina (família materna) e o conservadorismo do interior do estado do Rio de Janeiro (família paterna), geram uma menina, moradora da baixada fluminense. Carrego em meu nome (Tulani), sonoridade e escrita particulares, de origem africana banto, com uma ancestralidade que já morava em mim, antes mesmo de vir ao mundo. Ainda criança, não sabia o que representava, mas apenas entendia que era diferente daqueles que me cercavam. E a diferença, por toda a vida, foi demarcadora de minha história. Durante muito tempo, ao longo de minha trajetória, aprendi a naturalizar as diferenças entre os gêneros dentro de casa. Não aquelas que rotulam os sujeitos enquanto homem e mulher, mas sim as relações de poder, atribuições e papeis que a sociedade espera deles. Sem perceber, a cobrança de alguns membros da família (sobretudo as mulheres) sobre mim pesava para que eu desenvolvesse habilidades primorosas no cuidado com o lar, como saber fazer uma faxina impecável e cozinhar com primazia, por exemplo. Não saber lavar e engomar uma camisa de botão era quase um crime hediondo. ―Mas você tem que saber fazer...‖ Retrucavam elas – mãe, avó e tias. O corpo sempre foi um tabu, um assunto não comentado nas conversas da família. O sexo, era tão polêmico quanto falar dele. Minha educação podava meu corpo, anulava minhas possibilidades de descoberta sobre ele. Desde criança, não podia sentar de perna aberta, ficar sem camisa na frente dos outros ou falar palavrão. Nem pensar! Andar sem companhia na rua, chegar em casa depois do entardecer, ou pela noite alta, sempre proibido.

1 Ponto cantado para Pombagira de domínio popular. 14

Todas as questões impostas ao meu corpo em relação às condutas a serem seguidas vinham regadas de boas doses de restrições, e eu, sempre muito obediente, acatava sem questionar. Por outro lado, por me situar no contexto de família empobrecida, nordestina, residindo na baixada fluminense e destituída de condições dignas de direitos, cresci observando a melhoria da estrutura financeira, intelectual e da qualidade de vida de alguns dos meus parentes, centralizada nos estudos e no trabalho, onde pude ratificar em muitas das situações a autonomia e iniciativa das mulheres da família. Por inúmeras vezes, além das atribuições do lar, vislumbrava minha mãe, tias e avó estudando e/ou trabalhando para conquistarem seu lugar ao sol. Assistia essas mulheres de corpo domesticado em tantas questões, ao mesmo tempo, protagonizando os pilares da família, vendendo legumes na feira, trabalhando como professoras, no comércio, entre muitas outras tarefas as quais poderia enumerar. Nesta caminhada, deparei-me também num encontro muito feliz com a arte através da dança e nela descobri que o corpo era um potente lugar de descoberta. Mesmo assim, ainda muito disciplinada ao não me permitir sentir o meu próprio corpo, continuava dividida entre as expectativas da sociedade a meu respeito e as curiosidades do corpo. Ao mesmo tempo que ouvia ―você tem que saber cuidar da casa!‖, também escutava ―você tem que trabalhar pra ter seu dinheiro e não depender de homem nenhum!‖. Mas como isso? Algo me inquietava. Percebia um reconhecimento da condição de subalternidade por parte das minhas matriarcas em relação ao sistema de dominação, e ao mesmo tempo ímpeto e vontade de burlar esse sistema. E a pergunta ecoava em minha mente: ―mas porque elas continuam nesse casamento? Nesse trabalho? Nessa condição?‖ Foi aí então que percebi o quanto a arte possui o poder de comunicar. Entendi que toda angústia, alegria ou reflexão que eu quisesse compartilhar poderia ser potencializada por ela. Compreendi quanta gente eu posso atingir, alcançar com minha dança, e que ela não podia ser a minha incerteza. A dança tinha de ser minha libertação, o meu protesto e meu processo de crescimento. Depois que a dança me proporcionou este (auto)conhecimento, foi na religiosidade que tudo se aprofundou e foi dilatado no campo do sensível. Transitei da igreja católica – onde fora criada desde meu nascimento – para o espiritismo kardecista. Sentia uma afinidade tamanha com as elucidações da doutrina espírita, mas aos 14 anos a umbanda se apresentou na minha vida. 15

Sem esperar muito, fui acompanhar minha mãe ao terreiro (e até hoje não sei o motivo de sua ida) e lá, surgiu a curiosidade de me consultar. Foi ouvindo sábias palavras de uma velha preta que reencontrei minha ancestralidade. A umbanda se mostrou para mim conjugação do corpo, da arte e da religiosidade no mesmo espaço, entretanto as questões sobre o lugar do feminino ainda estavam latentes, gerando reflexões. Mas da umbanda, nunca mais me afastei. Como se não bastassem todos os porquês, a afirmação enquanto umbandista me fez sentir na pele a existência do racismo, até então velado para mim. A rejeição ou não aceitação pelos membros familiares em relação à minha escolha religiosa me trouxe à cruel realidade do racismo que para tantos sujeitos nunca foi novidade. E eu, negra disfarçável, deslizava na categorização que a sociedade me dava a respeito do meu corpo, chamando-me de ―morena‖ ou ―mulata‖. Ao ingressar na universidade, as reflexões se interligaram de forma crítica. Foi no contexto acadêmico que todas as angústias por mim vividas enquanto mulher, artista, negra e umbandista vieram à tona. Dei-me conta de que todas essas questões experenciadas no meu corpo e sobre meu corpo poderiam ser minha pesquisa. E de fato, mais tarde, veio a ser. Foi aí que as Pombas vieram a mim. Foi assim, que ao pensar em toda conjuntura de pontos de contato somadas de tempo em tempo na atribuição de papeis, nas exigências e expectativas familiares e da sociedade como um todo, fui percebendo que enxergava na figura da Pombagira a mulher que eu queria ser. Pombagira para mim era a personificação de tudo ou boa parte do que eu gostaria de ser/fazer e a sociedade patriarcal estava de prontidão a me apelidar de ―filha da puta‖ ou, quem sabe, me olhar como a própria. O fascínio por tanta coragem para assumir o corpo e vontade sobre ele, mostrou que meu caminho não podia ser outro a não ser a encruzilhada. Pombagira é o riso largo, a gargalhada solta, a paixão efêmera, a frase direta e sarcástica, a dança livre e descompassada, o girar da saia. É o olhar sedutor e descomprometido, é o prazer do corpo, a rápida e instantânea de se sentir uma mulher poderosa. É dizer sim ou não quando se quer. É saber que se pode querer, é ser o que se quer ser. É respeitar sua vontade, mesmo não sendo aceita pelas condições do meio e transgredir a regra. Isso é Pombagira! Quando descobri isso, todas as minhas pesquisas se conduziram no sentido de discutir o feminino e seus papeis na sociedade. Meu fazer artístico transbordou por 16

tantas linguagens, que o movimento e a dança não podiam ser meu teto e fui beber nas fontes dos estudos da performance para enriquecer minhas criações. Enfim, todas as performances que criei ao longo de minha carreira versavam sobre esses lugares que a mulher foi dominada e projetada para ocupar na sociedade, bem como os processos de transformação que vêm sofrendo, protagonizando e se emancipando na história, na sociedade, enfim. Ao apresentar esta dissertação, proponho um encontro com todas essas interfaces de questões, permitindo uma discussão sobre gênero e suas relações de poder, arte, corpo e religião (umbanda) no campo das relações étnico-raciais. Estar nesta condição de pesquisadora na academia oportuniza que mais uma boca de mulher preta que não espera receber a voz concedida, mas que se empodera de seu direito, a falar deste corpo, desta mulher e ancestralidade que flui para as conquistas que ainda não alcançamos, mas em breve conquistaremos. Pombagira é minha dança, é meu movimento político. Na academia é a demanda de cada dia e minha voz! Pombagira seja minha luta, meu manifesto, os esforços de cada um para igualdade de direitos. Pombagira seja nossa inconformidade latente que movimenta de dentro para fora e movimenta o mundo lá fora. Não poderia expor essa escrita sem antes apresentar a encruza que se fez em minha vida de forma tão afroperspectivada – que não separa as relações pessoais, acadêmicas, religiosas e artísticas – para entender e conhecer com mais sensibilidade o que aqui está produzido. Por isso, observando as esquinas e a fluidez das ruas, para cada olhar, certamente encontrará uma moça...

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Introdução

―Foi uma rosa que eu plantei na encruzilhada...‖2

Dando continuidade a descrição sucinta de todo o caminho percorrido pela autora – pessoalmente, artisticamente e religiosamente – destacamos que este serve de impulso para abordar as questões sobre o feminino através da performance da Pombagira. O título deste trabalho, ―‗Arreda homem, que aí vem mulher…‘: dimensões do corpo na performance da Pombagira‖, propõe como pesquisa tratar das manifestações artísticas no âmbito da religião afro-brasileira da umbanda. Apontamos enquanto tema para tal análise os estudos da performance (SHECHNER, 2003; 2012) com ênfase nas práticas performativas afro-brasileiras (LIGIÉRO, 2011), evidenciada como área de conhecimento através do ritual e jogo, em destaque. Nosso estudo se debruça sobre os sentidos encerrados na representação feminina da figura mítica da Pombagira. Neste estudo, destacamos as performances manifestadas na umbanda, elencando questões a respeito das representações simbólicas do feminino presentificado pela entidade da Pombagira, e que nesta pesquisa busca identificar se esta entidade se confronta (ou não) com imagens concebidas por uma visão eurocêntrica de dominação da mulher. Tendo em vista as relações de poder estabelecidas desde os processos históricos de colonização no Brasil, observamos uma depreciação das representações sobre o negro (MUNANGA, 2015, p. 23-24). O desrespeito e a dificuldade de entendimento das formas rituais vividas através das religiões de matriz africana pode ser representativa de continuidade destes processos. Em muitos casos, não se mostrando notória ao corpus social, exibe-se a demonização das divindades africanas e entidades afro-brasileiras. No caso da Pombagira, isto torna ainda mais agravante (BARROS, 2010, p. 49-40; MOURÃO, 2012, p. 78). Nosso imaginário popular, construído em bases eurocentradas, aponta a umbanda e tantas outras religiões negras como adoradoras do demônio, com um discurso deturpado, divergente das visões cosmológicas afrodiaspóricas. Esta atribuição de inferioridade do negro, ligado ao conceito determinista biológico de raça,

2 Ponto cantado para Pombagira de domínio popular. 18

confere um dos elementos utilizados como argumento de soberania do dominador branco (QUIJANO, 2005). Neste sentido, não se torna uma reflexão distante das relações de poder e ressaltarmos que a ideologia pregada na demonização dessas entidades afro-brasileiras, é também, a mesma ideologia judaico-cristã apoiada em valores morais que destacam, inclusive, as diferenças entre gêneros, atribuindo à mulher características e atribuições castradoras – onde seus princípios, corpo e formas de pensar são regradas para servir a esses sistemas de dominação. Por tamanha ideologia enraizada em solo brasileiro, as relações de subalternidade do negro e inferiorização da mulher reservaram à Pombagira o lugar/cargo de diabo-mulher, ou mulher do diabo. Na condição de Exu feminino, se responsabiliza pela subversão das regras que favorecem ao masculino, e consequentemente mal interpretada, é associada à figura da prostituta, devassa e imoral (MOURÃO, 2012, p. 74; SILVA, 2015, p. 80). Entretanto, qual a representação que a Pombagira possui aos olhos de quem a vê de dentro do terreiro? Na umbanda, possui o poder de agir em diversas esferas energéticas, consegue atuar, sobretudo, na convivência entre os seres humanos, com conhecimento profundo nas questões das relações conjugais e os percalços do amor. Neste sentido, nosso intuito é debater sobre essas imagens de feminino, buscando na realidade de uma instituição religiosa essas representações. Fazendo isso, pretende-se refletir, com base na performance da entidade Pombagira, se este corpo-mulher revela (ou não) características de um feminino emancipador. Objetivamos dissertar sobre uma visão do feminino buscando em referências negras os elementos artísticos que compõem a performance da Pombagira, apresentando seus laços cosmológicos, artísticos e culturais com suas heranças afrodiaspóricas dos nagôs e bantos no Brasil. Propomos também discutir a questão dos papeis sociais ocupados pela mulher e confrontaremos, segundo a análise da performance, a imagem da Pombagira com o estereótipo da mulher idealizada pelas referências morais de uma sociedade falocrática e patriarcal, reconhecendo a representação feminina e as simbologias ligadas a ela no imaginário popular sobre esse sagrado feminino afro-brasileiro. Através da análise da performance da Pombagira, realizaremos um mergulho profundo nos campos artístico e cultural para possibilitar um debate sobre relações de poder entre gêneros. Buscamos lançar o olhar poético (artístico) sobre o corpo nestes aspectos para identificar nos elementos que compõem sua performance – imagens (indumentária, cenário e objetos), música (pontos cantados, canto e percussão) e cena 19

(dança, teatralidade e jogos corporais – movimentos que compõem seu repertório gestual ritualístico) um diálogo entre corpo e espaço cênico (ritual), formando um encadeamento da performance afro-brasileira, cujo conceito discutiremos mais adiante. Nossa problematização também se centra no entendimento da relação da performance da Pombagira com referenciais de um sagrado feminino advindo de heranças africanas, com imagens femininas presentes no universo das representações das principais etnias negras sequestradas para o Brasil. Falamos aqui, não de uma Pombagira negra, mas sim de um ritual que se fundamenta em um modo de fazer ligado às práticas performativas afro-brasileiras (LIGIÉRO, 2011, p. 153). Nossa perspectiva é que essas visões da mulher confrontam as colonialidades do poder que se impõem sobre a/o cor/po feminino, preconizando princípios de dominação (QUIJANO, 2005) das formas de pensar e que se desenrolam, consequentemente, em diversos aspectos das relações humanas, bem como nas relações entre dominadores e dominados. A imagem deste corpo afro-brasileiro (movimento e gestualidade) na forma Pombagira, pode representar ação, protagonismo e empoderamento feminino não submetido ao patriarcado, propondo uma reflexão que instiga observar os processos artísticos e míticos imbricados na performance desta entidade. A partir desta percepção, trabalharemos junto aos referenciais teóricos para todo o conjunto de episódios que integram artes visuais/imagens (cenário, objetos e indumentária), musicais (pontos cantados, percussão e canto) e cênicas (gestos, interpretação e danças) somadas às ritualísticas (ação mágico-religiosa e liturgias) da Pombagira oferecendo elementos que conversam com os estudos sobre performance afro-brasileira (LIGIÉRO, 2011, p. 107). Ao realizarmos essa escolha pela performance afro-brasileira, fazemos uma associação entre a figura da Pombagira em consonância com a imagem de mulher autônoma, buscando afirmar que através dos fenômenos artísticos – especialmente os que estão acerca de sua corporalidade, inseridos em sua performance – evidenciam o corpo feminino independente, livre e corajoso, que subverte os valores sociais ocupados pela mulher idealizada pela moral da cristandade. Uma possível comprovação desta afirmação pode se dar através da análise das questões corporais e as implicações em torno do objeto estudado, inteirado às pesquisas de campo, as epistemes e elucidações referenciadas a respeito da performance da Pombagira, procurando identificar no seu vocabulário artístico- 20

corporal elementos em confrontamento com o estereótipo de comportamento feminino idealizado pela herança religiosa colonizadora. Com relação a metodologia para esta dissertação, damos relevo em primeiro lugar aos processos artísticos e vivências do corpo como rota metodológica para pensar, problematizar e discutir questões, conforme aponta a afroperspectividade (NOGUERA, 2014, p. 174). É a oralidade, o fazer, o experimentar. É vivendo dança, vendo dança, fazendo dança e pensando dança que se construiu essa escrita. E no momento em que ela passou a ser segundo plano, a escrita deixou de ter axé. Portanto, mesmo correspondendo ao que o rigor acadêmico exige, deixamos aqui registrado, sobretudo nas referências bibliográficas (pois afinal, também são material de pesquisa), alguns espetáculos e performances que serviram de inspiração para esta produção, sendo elas principais motivadoras de toda a escrita. Nossa metodologia se estrutura desde o levantamento bibliográfico, através da leitura de livros, artigos e outros textos acadêmicos (dissertações e teses) sobre o tema articulado às relações étnico-raciais (inclusive produções acadêmicas do PPRER/CEFET) bem como a reflexão acerca dos assuntos tratados. Destacamos aquelas que estabelecem relações para com a proposta de pesquisa e outras reflexões no campo artístico e das relações étnico-raciais. Além disso, aproveitamos as reflexões provocadas através de filmes e documentários sobre o assunto em questão, a fim de que todos os materiais que possam contribuir, juntamente com as diretrizes da professora orientadora do trabalho, o direcionamento dos rumos da pesquisa, inclusive na escolha das técnicas utilizadas nos processos metodológicos. Após algumas leituras e o perfil da instituição religiosa apresentado nas reuniões de orientação, decidimos abordar enquanto procedimento metodológico, com base na realização de uma abordagem qualitativa, o desenvolvimento de uma pesquisa etnográfica. O trabalho de campo utilizando a observação participante conduz todas as relações estabelecidas entre os aspectos observados e experiências em campo juntamente com os conceitos trabalhados, para propor reflexões acerca do objeto de estudo elencado.3 Em conformidade com a experiência da autora deste trabalho enquanto umbandista, a pesquisa etnográfica se realiza na instituição religiosa a qual é

3 A relação de proximidade que se estabelece em proporção significante entre pesquisador e pesquisado(s) é caracterizada por uma expressão conhecida por insider. Para saber mais, ler HODKINSON (2005) em ―‘Insider Research‘ in the Study of Youth Cultures‖ in Journal of Youth Studies, v. 18, p. 131-149, recomendado no artigo de AMARAL (2010), citado nas referências desta dissertação. 21

frequentadora desde o ano de 2006. É importante delinear que esta pesquisa foi motivada segundo as experiências vividas neste espaço antes e durante a produção deste trabalho de mestrado, e por este mesmo motivo, sua realização neste espaço se torna relevante. Tal etnografia foi iniciada no mês de abril de 2015 e mantém sua continuidade até o presente momento. No tocante a respeito das tessituras da pesquisa etnográfica, Sérgio Ferretti acrescenta: Lamentamos que continuem a ser publicados trabalhos apoiados em procedimentos tão superficiais e com incursões pouco cautelosas e desgastantes, em esfera fora do âmbito de qualificação profissional do autor, com resultados irresponsáveis, que contribuem para a continuidade de preconceitos culturais. (FERRETTI, 2009, p. 27)

Tal citação do autor aponta para um cenário preocupante em relação a produção acadêmica com pesquisas nas casas de axé. Remete-se a uma prática antiga, mas ainda presente, da visão colonizadora de apropriação dos conteúdos que são produzidos em detrimento de um interesse particular, desvinculado de um compromisso com a produção de conhecimento crítico, que de fato contribua para a desconstrução dos preconceitos a que essas instituições religiosas estão subordinadas. Ao considerar a metodologia de pesquisa no campo das religiões de matriz afro-brasileiras, o autor observa que alguns pesquisadores acham que o povo de santo não deve escrever sobre religião afro por não dominarem adequadamente a escrita. A seguir, o autor observa que tais debates se referem à lutas ideológicas pela hegemonia neste campo e que os estudos desenvolvidos por membros de religiões de matriz afrodiaspóricas tem se tornado cada vez mais comuns, diminuindo a distância entre oralidade e escrita. Esta questão é vivenciada na prática a partir da observação participante realizada pela autora desta dissertação, sendo o espaço de pesquisa, também o seu lugar de convívio religioso, onde acompanha e se encontra familiarizada com as relações, rituais e procedimentos da Casa4 há anos. Uma oportunidade singular em falar e problematizar a discriminação étnico-racial. Esta comunidade religiosa apresenta características ímpares no que diz respeito à conjuntura de práticas que lá se estabelecem. O espaço estudado possui uma diversidade de influências cosmológicas, apresenta características distintas das comumente encontradas nos procedimentos

4 Utilizaremos Casa com letra maiúscula para nos referir ao espaço religioso do campo onde nossa pesquisa se concentra. 22

rito-litúrgicos de casas tradicionais de umbanda, fazendo desta comunidade pesquisada um grupo particular e enriquecedor para o campo das relações étnico- raciais, o que fatalmente torna a pesquisa intrigante. Na tentativa de flexionar as questões epistemológicas e metodológicas com as práticas de pesquisa junto às informações do campo, buscamos integrar as discussões teóricas aos dados gerados na etnografia, articulando-os ao longo de toda a dissertação, de modo que possibilitem uma discussão mais enriquecedora e aproximem teoria e prática na escrita do trabalho. No primeiro capítulo, apontamos abordagens que dialogam com aspectos da arte, cultura e religiosidade afro-brasileira. Apresentamos uma breve contextualização histórica, do ponto de vista da diáspora: o trânsito do orixá Èsù cultuado no candomblé africano até sua chegada no Brasil, cedendo espaço e aspectos míticos para a construção de Exu na umbanda até encontrarmos uma Exu-mulher, a entidade Pombagira. Discorremos sobre os aspectos míticos em torno desta entidade, atribuições e representações simbólicas no cenário social, bem como as discussões etimológicas da palavra Pombagira. Ainda no mesmo capítulo, colocamos breves seções trazendo cenário histórico em que se forma a religião da umbanda e partir de quais cosmologias, segundo a agregação de heranças religiosas diversas, desenvolvendo um culto plenamente híbrido e genuinamente brasileiro. Também conjugando as epistemes à etnografia em curso, mencionamos algumas informações iniciais que nos aproximarão do campo, buscando dar sobrevoo, através de sua história de fundação, bem como traçar o perfil da instituição pesquisada, detalhando aspectos gerais da Casa Fraternidade Espírita Cristã (FEC). No segundo capítulo, apontamos algumas informações necessárias à compreensão dos estudos da performance (SCHECHNER, 2003), apresentando o próprio conceito de performance e suas categorias. Trazemos questões sobre a performance afro-brasileira, cuja discussão contempla a presente pesquisa, expondo a tríade cantar-dançar-batucar. Além disso, articulamos o estudo das motrizes culturais aplicado às práticas performativas afro-brasileiras, sublinhando a umbanda como componente desta conjuntura (LIGIÉRO, 2011). Ainda no segundo capítulo, apresentamos a continuidade dos dados gerados a partir da etnografia, descrevendo o trabalho desenvolvido na instituição religiosa de maneira mais sistemática. Pontuamos o delineamento de três categorias que sustentam a estrutura institucional e sua prática ritualística: Tempo, Espaço e 23

Dinâmica. Esses pequenos grupos temáticos detalham com mais objetividade, como a FEC se estrutura, se organiza e atua. Além disso, seguimos discorrendo sobre a etnografia em curso com os principais aspectos do campo centrados na questão da performance da Pombagira, relatando o ritual em que a entidade se manifesta na Casa estudada. Dando continuidade, seguiremos com o objetivo de apresentar as características identificadas na leitura dos corpos dos médiuns, quando incorporados no ritual ―gira de descarrego‖, no sentido de descrever os componentes, práticas/ações e jogos cênicos de sua performance. Destacamos a questão da descrição dos elementos artísticos no ritual que são observados do ponto de vista da centralidade do corpo feminino e através das discussões propostas, além de destacar as possíveis relações cosmológicas que estabelecem com um sagrado feminino advindo de heranças rituais negras. Por último, complementamos com o terceiro capítulo, incluindo a análise da performance da Pombagira, que propõe um debate a partir das relações étnico-raciais no campo artístico. Pontuamos elementos que se mostram pertinentes às discussões sobre embranquecimento, processos de dominação do corpo e sexualidade, além das marcas sociais da dominação eurocêntrica, que engendram discriminações e subalternizações da entidade Pombagira. A maneira como o corpo articula representações que se relacionam ao empoderamento, protagonismo feminino nas abordagens sobre a libido e subversões (ou não) de ideologias patriarcais, são aspectos que conversamos no sentido de entender, no âmago da performance, quais as implicações, conflitos e tensões que se mostram ao debate.

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1- Nas interfaces das macumbas

No capítulo que segue, nosso debate privilegiará os conceitos e aspectos da pesquisa que estão em torno das encruzas das macumbas. Destacamos o uso do termo macumba para congregar a questão da religião, cultura, práticas performativas e artísticas como reflexos de uma herança afrodiaspórica. Na primeira seção, apresentamos os contornos históricos, entre aspectos sociais e culturais, nas manifestações artísticas e religiosas que se inserem na afro- brasilidade. Para tal, iniciamos falando de Èsù, Orixá iorubá africano e seu trânsito África-Brasil. Delineamos os processos de construção de Èsù, desde sua mítica enquanto Orixá do candomblé, até Exu na quimbanda, e posteriormente suas representações na umbanda. Ao realizar as encruzas dessas discussões no feminino, trazemos uma escrita dedicada a falar da Pombagira, sua imagem mítica e as atribuições que se deram, refletidas na sociedade segundo as leituras de corpo, sexualidade e valores a partir dos modelos eurocentrados que se estabeleceram. Na segunda seção, nos dispomos a contextualização histórica do culto da umbanda, no sentido de formar um arcabouço de conhecimentos que conectem aspectos culturais e sociais desta religião às práticas artísticas e performativas afro- brasileiras que trataremos mais adiante. Faremos apontamentos sobre dois principais mitos fundacionais da umbanda, compreendendo aspectos sociais e históricos. Sendo assim, na terceira seção, enveredamos para as correntes sócio- históricas e descreveremos sucintamente informações iniciais sobre a instituição religiosa estudada. Apresentamos o histórico de fundação da instituição e alguns dados gerais da pesquisa de campo para que as epistemes se relacionem ao corpus da pesquisa de maneira encadeada desde o início da composição de nossa escrita. Apontamos as estratégias metodológicas, técnicas utilizadas e os desafios para composição desta dissertação. Dando continuidade a informações sobre a instituição, trazemos breves informações sobre o perfil do local, buscamos o entendimento como principais objetivos de trabalho e atividades desenvolvidas na Casa. Além disso, buscamos o entendimento da forma como os conhecimentos sobre a umbanda e suas influências conversam diretamente com as práticas realizadas no espaço do campo.

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1.1 – Laroiê!5 Exu é Mojubá! Saravá Pombagira!

Laroiê! Salve as moças que moram nas encruzilhadas! Às donas do encanto da noite, pedimos licença para trilhar um caminho de firmeza, de fé e resistência! Esse feminino, ainda tão desconhecido, pelos desencontros das verdades manipuladas segundo as relações de poder na sociedade, usa neste trabalho, espaço para discussão das questões sobre gênero, a partir do viés religioso da umbanda. Ninguém melhor do que elas, as Pombagiras, para contemplar um panorama complexo de problematizações acerca das imagens do feminino através dos olhares artísticos que se articulam com as relações étnico-raciais. Sendo assim, trataremos nesta seção, abordagens teóricas que versam sobre esta figura mítica através dos contextos históricos da diáspora africana. Delinearemos uma trajetória que se estende desde Èsù, Orixá do panteão iorubá, (PRANDI, 2000; VERGER, 2002; SANTOS, 2012) até a constituição da entidade Pombagira (MOURÃO, 2012; SILVA, 2015), destacando, em ambos, seus atributos e representações simbólicas no imaginário coletivo a partir das leituras e processos de transformação que também sofreram no Brasil. Além disso, traremos pontos interessantes sobre o próprio contexto da umbanda (ORTIZ, 1978; OLIVEIRA, 2003; LIGIÉRO, 2013; JURUÁ, 2013), descrevendo segundo os autores utilizados neste capítulo, de que maneira seu percurso de formação foi conduzido e quais influências cosmológicas configuraram suas características. Para conectar as elucidações propostas, traremos informações sobre a pesquisa de campo realizada para iniciar a construção de uma ponte entre os conceitos e teorias apresentadas com o espaço religioso observado, como também seus procedimentos rito-litúrgicos. Apresentar esta figura mítica e seu universo tão cheio de mistérios aos olhares desconhecedores das encruzas das verdades, dela mesma e as alheias, compete-nos uma tarefa árdua e desafiadora, visto as conjunturas de um imaginário coletivo que deprecia sua história, conhecimento e atributos. As narrativas sobre a Pombagira, assim como ela, são repletas de encontros e interações entre aspectos culturais, artísticos e religiosos diversos. Apesar dela não alcançar seu status enquanto sujeito (por ser um espírito, segundo as referências

5 Saudação de Exu na umbanda. 26

apresentadas ao longo desta dissertação), ocupa um patamar significativo no imaginário coletivo, a ponto de ser adjetivada a tantas características humanas, passando por um processo de personificação. Ela é mulher. Uma entidade que labuta na religião da umbanda enquanto espírito feminino, agindo na vibração energética de Exu. Mas afinal, que mulher é esta? O que ela faz? Para compreendermos um pouco melhor sobre esta entidade e quais os encadeamentos de sua atuação, adentraremos nos contextos históricos afrodiaspóricos que compõem os seus atributos. Antes de mergulharmos com profundidade nas questões do feminino através da figura de Pombagira, iniciaremos nossa discussão a partir da cosmogonia iorubá para entender de onde surgiu a Pombagira e a partir de quais aspectos da ancestralidade africana. Pombagira tem a ver com Exu? Mas Exu, quem és tu? Quando falamos em Exu, geralmente vem à nossa mente alguma informação distorcida. No documentário ―Dança das cabaças – Exu no Brasil‖ (2006), por exemplo, verificamos um entrevistador saindo às ruas em meio a metrópoles urbanas, indagando às pessoas o que é Exu. Muitas das respostas estavam relacionadas ao entendimento de Exu como sendo algo ruim, um espírito mal, o diabo. Apresentando-o como um ser desordeiro, associando-o às desgraças e insucessos humanos. Tais respostas presentes nos discursos dos entrevistados revelam não só um imaginário em que esta divindade está estigmatizada e associada a elementos negativos, como também um desconhecimento sobre a mesma, conferindo um valor de senso comum impregnado de preconceito que reproduz o racismo. Mas afinal, o que de fato vem a ser Exu? Ele é o diabo? Ou não é? Buscando no seu significado, de acordo com vivências em comunidades de terreiro de candomblé, afirma-se que Exu (Èsù) é uma palavra de origem iorubá6 que significa esfera. Pensando no campo das ciências exatas, a geometria analisa a esfera como sendo um objeto tridimensional perfeitamente simétrico, de superfície curva, onde seus pontos se encontram de forma equidistante para com o centro. Incorporando este conceito da geometria, assim como a esfera, Exu não tem começo nem final. Mesmo assim, é sabido que esta definição configura apenas uma perspectiva sobre a representação da esfera, sendo ela uma das possibilidades de sentidos que pode se encontrar com Exu. No entanto, esta divindade, por assumir

6 Corresponde a um grupo étnico-linguístico da África Ocidental, localizando-se consideravelmente em países como Nigéria, Togo e parte do Benin (VERGER, 2002). 27

múltiplas perspectivas, nos evidencie que talvez apenas a definição geométrica nos seja precária. Èsù, para os iorubás, é uma das deidades que compõem o panteão africano, chamados Orixás. São considerados ancestrais divinizados, cuja correspondência está ligada à natureza (VERGER, 2002, p.18). Dentre essas energias, cada Orixá domina uma força da natureza: as matas, águas do mar e/ou rios, raios, trovões ou pântanos, por exemplo. Estes Orixás apresentam características humanas, estabelecendo uma relação de proximidade com os seres humanos, e seu arquétipo se relaciona com os aspectos que estão em torno do seu campo de domínio na natureza. Por exemplo, se pensarmos no Orixá Oxum, estamos falando de uma bela e encantadora mulher, extremamente vaidosa, que possui o domínio sobre as águas doces dos rios, lagos e cachoeiras. Trata-se também de um poder de amor e doação, pois cuida com carinho, e muitas vezes excesso de proteção, dos seus filhos. Ela é aquela que tem o poder sobre a gestação de todas as mulheres. É também uma figura muito política, pois adora negociar. Sabe dialogar com os outros Orixás para que estabeleça relações favoráveis ao seu reino, podendo ser também muito astuta e feiticeira nas horas necessárias, quando desagradada ou não atendida em seus caprichos e vontades. Assim como as águas dos domínios de Oxum, ela é doce, agradável e de beleza incomparável. É o líquido que dá a manutenção da vida, mas pode também se apresentar de forma violenta, a ponto de afogar ou levar alguém, quando em estado revolto. O som de suas águas, se mostram muito similares ao som de suas pulseiras douradas quando as movimenta durante seu banho. Neste sentido, se nos voltarmos a Èsù, complementamos que este se aproxima não só da representação simbólica da esfera geométrica. Ele também é considerado uma divindade ancestral africana. Assim como descrito sobre Oxum, ele também possui seus atributos. Èsù é o Orixá do movimento e da comunicação, sendo considerado o princípio dinâmico deles, e assim como a esfera, sua potência circunda de forma cíclica e constante. Èsù é o pré-movimento, aquele que vem antes do movimento. É o combustível de todos os motores, de tudo aquilo que se move. Ele é força propulsora e princípio dinâmico cuja energia excita qualquer matéria para que se mobilize, e não só isso, Èsù também é aquele que interfere, modifica e transgride conforme a necessidade (SANTOS, 2012, p. 140-141). 28

Dessa forma, Èsù se mostra nas relações cotidianas do caminho de cada um. Onde há dois caminhos se encontrando, lá estará Èsù. Com tamanha popularização, Exu ficou conhecido como o dono das encruzilhadas, pois é lá que as pessoas, vidas e relações se encontram e se estabelecem. Por isso mesmo, há tamanha importância da interferência de Exu em tudo que se realize. Por ser o mediador de tudo que há, Exu comanda as transações. Está presente nos negócios, nas trocas e câmbios, lida com o dinheiro e o faz circular. Ele é o dono do comércio e é exibido através de esculturas na entrada de todos os mercados da África. Exu é o mensageiro entre o Òrun (céu) e o Ayé (terra), mantendo a comunicação entre os planos material e espiritual dos iorubá. ―Ritual algum pode ser feito sem que antes Èsù seja reverenciado, pois ele é a energia que precisa ser equilibrada para que haja comunicação entre o mundo humano e o sagrado mundo dos Orixás‖ (MOURÃO, 2012, p. 55-56). A partir da citação de Tadeu Mourão, refletimos que Èsù é o poder gerador do caos e da ordem no universo. E é aí que mora o grande perigo, pois Èsù é quem gera o equilíbrio entre estas duas forças. Segundo a crença iorubá, quando algo não está indo bem, é porque não estão em dia com Èsù, pois é ele quem promove a realização daquilo que se pede. Muitas histórias contam confusões geradas a partir das mediações de Èsù entre aqueles que não lhe dedicaram as devidas oferendas, ou as conquistas favoráveis àqueles que lhe devem respeito e reverência. Èsù adora brincar, é um verdadeiro moleque! A partir disso, ganha alguns apelidos como brincalhão, esperto e trapaceiro. Um verdadeiro trickster (SILVA, 2015, p. 23). Com toda essa personalidade audaciosa que possui, Exu vive testando o caráter, inteligência e pudores de todos a seu redor, sejam humanos ou deuses (MOURÃO, 2012, p. 56). É o mediador das relações entre os seres, prega peças, adora dar desafios e questionar os outros. Possui o dom de inverter as situações, subverter regras e comportamentos, e por isso mesmo, ao representar o dinamismo entre todas essas questões, justifica-se porque não se faz nada sem Èsù. Ele é inteligente, astuto e está ligado à sexualidade e fertilidade. Assim como todo Orixá, possui atributos e simbologias sagradas. Neste sentido, está representado em um falo ereto, como signo de fecundidade (MOURÃO, 2012, p. 58-59; SILVA, 2015, p. 17). Isto, obviamente, muito espantou os europeus que estabeleceram os 29

primeiros contatos com os africanos. Suas culturas em oposição correspondiam a formulação de conceitos divergentes sobre corpo, sexo e pecado. O falo contém o sêmen da vida, que perpetua a existência. Apesar de ser considerado uma afronta e indecência aos olhos europeus, significa vitalidade, continuidade da família e prosperidade aos iorubás. Por este mesmo motivo, o sexo não é considerado algo imoral para os africanos. Ele é, também, um elemento sagrado e um caminho de encontro para com o divino. Em contrapartida, os colonizadores cristãos visionaram tal aspecto como obscenidade, visto que o corpo e consequentemente o sexo, já representam para eles a própria manifestação do pecado. Em uma de suas paramentas, Èsù carrega um ogò – objeto cilíndrico, associado ao falo, como uma espécie de porrete. Pierre Verger (1902-1996) relata em sua obra a finalidade deste instrumento, sintetizando as atribuições deste Orixá, não só como mensageiro, mas também como guardião:

Como Orixá, diz-se que ele veio ao mundo com um porrete, chamado ogò, que teria a propriedade de transportá-lo, em algumas horas, a centenas de quilômetros e de atrair, por um poder magnético, objetos situados a distâncias igualmente grandes. Exu é o guardião dos templos, das casas, das cidades e das pessoas. É também ele que serve de intermediário entre os homens e os deuses. Por essa razão é que nada se faz sem ele e sem que oferendas lhe sejam feitas, antes de qualquer outro Orixá, para neutralizar suas tendências e provocar mal-entendidos entre os seres humanos e em suas relações com os deuses e, até mesmo, dos deuses entre si. (VERGER, 2002, p. 76, grifo nosso)

Visto tais características descritas pelo autor sobre este Orixá, percebemos que ele é dotado de contradições, pois ainda que protetor, prestativo e generoso, quando contrariado ou desrespeitado, pode ser vingativo, irascível e cruel. Por outro lado, ressalta-se a questão da diferença de cosmovisão entre africanos e cristãos-católicos, por exemplo, onde essa característica ambivalente e contraditória de Èsù é admitida. Demonizar o caráter transitório de Èsù tornou-se algo favorável para a cosmovisão europeia, pois também serviu para agregar uma série de atributos essencialmente negativos para Èsù. A sobreposição dos valores cristãos para com a cosmologia iorubá constrói uma incoerência, visto que as dicotomias de bem e mal, provenientes da visão cristã não é algo comum aos iorubás, onde se associa o bem ao divino e sagrado, e o mal ao demoníaco e diabólico. Todos os Orixás possuem personalidade ambivalente, podendo assumir as duas possibilidades, assim como verificamos anteriormente sobre Oxum. 30

Partindo do pressuposto que os Orixás são divindades que possuem características humanizadas, podendo manifestar emoções como amor, egoísmo, raiva, indulgência, ciúme, etc. Por seu caráter ambíguo, contraditório e sensual, Èsù é frequentemente associado ao diabo cristão, por não corresponder à conduta de castidade, elevação e bondade cristã. Entretanto, essa índole instável, muito se assemelha às dos humanos, e talvez por isso, Èsù seja o mais humano dos Orixás. Dentre eles, o mais próximo das vicissitudes da vida terrena. Tal referência que se tem de Èsù/diabo se confere também pela ligação que ele apresenta com o movimento, não só das coisas, mas da própria vida em si, seja nas relações interpessoais ou na estrutura corporal do ser humano. O pesquisador Vagner da Silva afirma que ―cada ser humano possui seu próprio Exu, chamado Exu Bara, o senhor que traz o movimento ao corpo‖ (SILVA, 2015, p. 60). Trata-se de uma relação extremamente profunda, que está para além do domínio da manutenção da vida através de seu falo fértil. O Bara do corpo seria o próprio movimento que possibilita o trânsito de todos os processos biológicos do organismo humano, permitindo que o homem respire, se alimente e que o sangue circule por todo seu corpo. Que a vida pulse em produção de células e de defesas para este corpo (SANTOS, 2012, p. 141). Sem Èsù, nada disto seria possível. Mesmo que o corpo, para os europeus, esteja num campo de compreensão extremamente distante do pensamento iorubá e o falo de Exu muito tenha causado espanto, ainda sim percebemos que sua característica transgressora e ―luxuriosa‖ aparece centralizada na figura masculina. Em minoria considerável, encontraremos a representação de Exu através da figura feminina entre os iorubás, conforme afirma Ellis (1890) na obra de Vagner da Silva:

Entre os iorubás, Exu é uma entidade frequentemente masculina. Entretanto, conforme informa A. B. Ellis (1890, p. 41), Exu pode ser representado por uma figura feminina, provida de seios longos e pontudos e outros acessórios necessários. (ELLIS apud SILVA, 2015, p. 76, grifo do autor)

Poucas esculturas e outras obras imagéticas ilustram um Èsù-feminino iorubá, cuja estética é dotada de seios fartos e nus. Entretanto, questionamos o seguinte: se Èsù-masculino põe seu falo à mostra, representando a fecundidade, porque então Èsù-feminino não expõe sua vagina também? Apesar de Vagner Silva (2015, p.77) apontar que ―[...] Exu não se deixa restringir à divisão de gênero, ainda que sua sexualidade seja retratada visualmente por meio de um falo ereto‖, cabe ressaltar a 31

percepção de relações de poder entre os gêneros (principalmente porque o falo aparece muito mais e de forma explícita), demarcando a preponderância do masculino sobre o feminino. Neste sentido, o corpo mais uma vez se apresenta como uma questão a ser problematizada. Notamos uma significativa contradição entre Exu ser o domínio de toda a dinamização do universo, propulsor da vida no próprio corpo e este ser igualmente perseguido. A demonização de Èsù é componente significativo do processo de colonização do Brasil e o desdobramento disso se mostra, inclusive, nas liturgias do candomblé constituídas no país, ressignificando a sua representação. ―Se Èsú abrir ou fechar caminhos, não é por acaso como o sugerem alguns autores, mas resultado do símbolo complexo que ele representa. Seu papel como sensor dos caminhos está estreitamente ligado à sua função de princípio de reparação‖ (ELBEIN DOS SANTOS & DOS SANTOS apud SANTOS, 2012, p. 191). É possível observar essa representação ressignificada nas festas dedicadas aos Orixás do candomblé no Brasil, como por exemplo no ritual do padê (pàdé) – palavra em iorubá que segundo Verger, significa encontro – explicita bem esta representação de Èsù com caráter tendencioso ao mal:

Antes de começar o xirê dos Orixás no barracão, faz-se sempre o padê, palavra que significa ―encontro‖ em iorubá; um encontro, principalmente com Exu, o mensageiro dos outros deuses, para acalmá-lo e dele obter a promessa de não perturbar a boa ordem da cerimônia que se aproxima. (VERGER, 2002, p. 72)

O padê se caracteriza como um ritual de início de trabalhos no candomblé, e sendo o start de todos os outros, o primeiro Orixá (Èsù) é saudado nele. No ritual convocam Èsù pedindo a ele que proteja e mantenha o êxito nos trabalhos espirituais. Entretanto, Verger nos reforça um estereótipo de Èsù com caráter ambivalente, mas com tendências ruins, pois segundo sua citação, precisa ser acalmado para não perturbar. Essa ideia de Èsù no ritual disposto a se pôr como ―zombeteiro‖ é discutido no documentário ―Dança das cabaças – Exu no Brasil‖, onde explica-se que algumas lideranças de terreiros costumam atrelar o ritual do padê ao termo ―despachar Exu‖. Ora, mas se Èsù é o transportador de axé e uma casa de santo necessita de força e proteção para que seus Orixás dancem e derramem suas bênçãos, como vamos despachar Èsù? Como afastá-lo para não incomodar, se é dele que necessitamos para enviar/transportar nossos pedidos e axé? 32

Ao confrontar estas duas interpretações sobre o ritual do padê, reiteramos que esta ambiguidade tão presente em Èsù, há muito vem sendo interpretada de maneira equivocada. Tal engano ocorre ao evidenciar este Orixá com uma inclinação para o mal, quando na verdade, Èsù não é bom nem ruim (pois bem e mal não existem para ele), apenas justo. Ademais, destacamos que durante o processo de colonização, muito se valeu da utilização da demonização de Èsù como sinônimo de proteção. O desconhecido, que é quase ou o próprio diabo, veste uma imagem amedrontadora para o branco colonizador católico. Para o negro, subalternizado e escravizado, assumir Èsù como seu compadre, representava um ―não mexe comigo, que eu não ando só...‖, como afirma por Adailton Moreira no documentário ―A boca do mundo: Exu no Candomblé‖ (2009): ―[...] Se Exu é o mal, pode nos proteger contra o mal do outro‖. Este entendimento sobre Èsù-demônio muito se reflete nas iniciações para este Orixá no Brasil. Algumas casas de candomblé perpetuam em suas práticas uma orientação herdada por anos, de liderança a liderança, o conceito de Èsù do colonizador e realizam a feitura de seus neófitos para outro Orixá, quando o jogo de búzios indica que ele é filho de Èsù. Em contrapartida, apesar de haver poucos iniciados para Èsù, parece que aquele que dele é filho se considera uma verdadeira cabeça sorteada. ―Para muitos adeptos, ser ―filho de Èsù‖ é visto como um estigma, e em uma população que já carrega os estigmas de cor da pele e da pobreza, evita-se acrescentar mais este‖ (SILVA, 2015, p. 35). Os estigmas morais atribuídos a Èsù como espírito maligno, perverso, sensual e malandro, além dos estigmas de sua origem (etnia) negra e condição social de subordinação (desigualdade) se entrecruza com questões de gênero? Imaginemos todas essas questões agregadas à mulher, cuja sociedade seja falocrática, machista, heteronormativa, patriarcal e cristã? Bem-vindos ao mundo das putas: As Pombagiras. Antes de propormos uma discussão sobre as Pombagiras, faz-se necessário expor o processo que levou Èsù-Orixá a aparecer também como Exu-entidade. Durante todo o processo de colonização do Brasil, Exu interagiu com muitas outras vertentes culturais e práticas religiosas. A partir dessas trocas, Exu aparece também na umbanda, entretanto agora, não mais como Orixá africano, e sim como uma entidade. Entendendo as transformações ocorridas com o advento do espiritismo francês no final do século XIX, codificado por Allan Kardec (1804-1869), além das práticas católicas enraizadas à força em solo brasileiro conjuntamente com a pajelança 33

indígena sobrevivente, surgem cultos por todo o Brasil conjugando essas práticas rito- litúrgicas. O culto da umbanda, descreveremos algumas contextualizações históricas necessárias na próxima seção, surge como anúncio de uma dessas práticas já existentes em solo brasileiro. Partindo desse contexto, Exu se apresenta como um espírito. Uma vida que se findou no plano material e continua sua existência no plano espiritual, trabalhando na condição de entidade. Exu aparece assim, de maneira tão brasileira. Malandreando as regras, é o compadre de todas as horas na caminhada da vida, pois acompanha, de maneira tão humana os problemas das pessoas. Interfere nos acontecimentos, desviando ou não as bonanças/malefícios que os cercam. Exu recebe outro conceito a partir da umbanda, cuja visão cosmológica se ampara na visão do espiritismo como processo evolutivo:

Assim, por influência da teoria de evolução espiritual kardecista, a umbanda organizou suas entidades em grupos ou ―linhas‖, hierarquizando-as segundo estágios evolutivos. A categoria dos Exus representa então o degrau mais baixo dessa hierarquia, e dela fazem parte os espíritos condenados ao reino das trevas e das sombras porque na terra tiveram uma vida desregrada. (SILVA, 2015, p. 56)

Segundo a afirmação de Vagner da Silva, podemos perceber que suas funções cosmológicas muito se aproximam, e não só isso, mas que as atribuições entre Exu- Orixá e Exu-entidade recebem categorias desqualificadas, caracterizando um distanciamento da luz. É certo que o legado de conhecimentos da doutrina espírita contribuiu para que a umbanda organizasse suas entidades em categorias, isto é, linhas de atuação segundo a vibração que possuem. Neste sentido, Exu seria o menos iluminado entre os atuantes na lei da umbanda. Quando nos referimos aos Exus de umbanda, destacando àqueles espíritos de pessoas que já tiveram vida terrena e atualmente encontram-se desencarnados. Afirma-se que tais espíritos tiveram uma vida repleta de excessos de qualquer espécie – sexo, drogas, boemia, vadiagem, prostituição ou algum desvio de caráter – e ao adentrarem nas zonas umbralinas (plano espiritual) reconheceram suas falhas e assumem a função de trabalharem como Exus para expurgar, superar e resgatar seus karmas (MOURÃO, 2012, p. 72-75). Ou seja, neste sentido, Exus atuam para promover um processo de transformação a partir de suas condutas tortas, fazendo com que as mesmas sirvam de lição para seus consulentes e possibilite a evolução 34

coletiva dos seres. Assim, de acordo com as experiências que possuem em vida, atuam de variadas formas para ajudar os humanos, sejam em questões de saúde, relacionamento, emprego ou proteção dos inimigos. A partir daí, consulentes dirigem- se a seu Tranca-rua, dona Maria Padilha, seu Tiriri, Zé Pelintra, Exu Veludo, Exu Caveira, entre outros. É extremamente relevante refletir qual é a perspectiva de ―vida desregrada‖ que se absorve na ideologia da umbanda, visto que a visão também é compartilhada pelas premissas cristãs e kardecistas. Os excessos do corpo, mais uma vez, são evidenciados como condutas imorais e não aceitas. Tais entendimentos, derivam ainda, de uma visão eurocêntrica de corpo, de comportamento e de crescimento espiritual individual e/ou coletivo, hierarquizando os espíritos atuantes na umbanda. Apontam o comportamento de Exu contrastante com o das entidades de outras linhas como os caboclos e pretos velhos por exemplo, que caracterizam a linha da direita, e sublinham Exu – o impuro, dono dos excessos – sendo o menos evoluído de todos, na linha da esquerda. Essa divisão tênue entre linha da direita e da esquerda trata-se de uma herança eurocêntrica de dicotomias entre bem e mal, onde Exu oriundo do culto da quimbanda, corresponde às baixas vibrações. A quimbanda assim, seria comparada à prática da magia associada ao mal, segundo os rótulos empreendidos à racionalização do mundo dos espíritos e da teoria da evolução. ―A quimbanda se apresenta portanto como a dimensão oposta da umbanda, ela é sua imagem invertida; tudo que se passa no reino das luzes tem seu equivalente negativo no reino das trevas‖ (ORTIZ, 1978, p. 81). É nesse entremeio que o feminino divino se infiltra nas possibilidades e mostra a face Exu-mulher ao plano terreno. Assim como os Exus masculinos, as Pombagiras carregam os estigmas sociais da marginalidade na sociedade, porém agora com mais uma demarcação de diferença: o gênero. Ser Exu-mulher acarretou para elas muitas discussões que trataremos a seguir. As Pombagiras são espíritos femininos7 que se mostram na vibração de Exu, cuja construção mítica passa pelo mesmo caminho dos Exus masculinos. Também

7 Torna-se imprescindível frisar que um espírito não possui sexo/gênero, entretanto existem o que chamamos de formas-pensamento, ou forma de apresentação dos espíritos, assumindo uma roupagem específica quando atuantes no plano terreno, sendo uma espécie de cartão de apresentação de seus atributos e linha de trabalho. Isto ocorre não só com a questão do gênero como também de outras características como a ideia de tempo/idade (ao vislumbrar uma entidade de preto-velho ou de criança, por exemplo), mesmo sabendo que espírito não tem idade. É importante ressaltar que nem sempre toda entidade Maria Padilha, por exemplo, 35

relacionada ao comportamento desregrado, sua figura está associada à promiscuidade devido a assumir a imagem da mulher sexualmente ativa e não submissa às normas da sociedade falocrática (MOURÃO, 2012, p. 70-71). Na lei da umbanda, seu processo de evolução se dá através do trabalho espiritual peculiarmente baseado em seu principal lema: na experiência da rua. Para entender um pouco melhor sua íntima relação com os caminhos e encruzilhadas, adentremos um pouco mais no universo banto para compreender as terminologias que ao longo das transformações e corruptelas, tornou-se a palavra Pombagira. Pombagira é uma palavra que deriva do tronco linguístico de origem banto. Os ancestrais bantos, denominam-se como o nome inquice (inkisi), também são divinizados em estreitas relações entre os povos de região Congo-Angola e o culto às forças da natureza, apresentando atributos particulares com cada função cosmológica que cumprem. Dentre alguns deles, encontramos Aluvaiá, Mavambo, Pambu Njila (PEIXOTO, 2016) ou Mpambunjila (MOURÃO, 2012) e Bombogira (CARNEIRO apud AUGRAS, 2000). Suas representações míticas muito se aproximam das divindades de outros troncos linguísticos, assim como Ésù (Orixá iorubano) ou até mesmo Legba/Elegbara (Vodun daomeano), por similaridade de características (SILVA, 2015, p. 26). Além dos inquices, na obra de Augras também encontramos termos bantos como njila/njira, por exemplo (que significa rumo, caminho), uma proximidade íntima às forças que estariam ligadas ao controle dos portões e o cruzamento dos caminhos e encruzilhadas (AUGRAS, 2000, p. 32). Dentre essas divindades, Bombogira (e suas variantes Bombojira, Bombongira e Bambojira) e Pambu Njila ou Mpambunjila, apesar de aparecerem como inquices masculinos, quando chegam em solo brasileiro passam a corresponder à faceta feminina, porém agora ressignificadas. O culto a essas divindades bantos e seus atributos contribuíram, juntamente com outras cosmogonias - ameríndias e europeias – a uma ampla conjuntura de práticas religiosas que desembocariam, entre tantas

possui a mítica de ter vivido na Espanha e tenha sido amante do rei de Castela, conforme relata Meyer (1993) na obra que descreve toda a história de Maria Padilha. O nome que a entidade carrega consigo representa um codinome de uma falange (grupo de espíritos) que atuam naquela vibração. Sendo assim, os espíritos se agrupam por afinidades vibratórias e a relação que suas vidas terrenas e particulares se aproximam daquela forma-pensamento, por isso trabalham com um nome em comum, explicando a multiplicidade de Marias Padilha, Mulambo, Navalha, etc. Neste sentido, mesmo sabendo que o espírito pode assumir outras roupagens fluídicas, quando afirmamos ser a Pombagira um espírito feminino, nos referimos à sua forma de apresentação na umbanda. 36

religiões e macumbas, na umbanda. Pombagira, nomeada também com separação como Pomba-gira (AUGRAS, 2000, p. 28) ou Pombogira, vem a ser então, uma corruptela desses inquices ―feminilizados‖ ao desembarcar com os angolanos e congoleses na diáspora africana em território fértil às interações. Tadeu Mourão, em ―Encruzilhadas da cultura: imagens de Exu e Pombajira‖ (2012), usa a grafia com letra ―j‖, delineando o inquice Mpambunjila, e se baseia na indicação do dicionário Houaiss da língua portuguesa que sugere o uso da palavra com ―j‖, aderindo à origem de sua palavra nas línguas étnico-linguísticas banto (MOURÃO, 2012, p. 47) Entretanto, para devidos fins, deixaremos sabido que a escolha do uso de ―Pombagira‖ ao longo das escritas desta pesquisa confere um aspecto para além de sua origem mítica. Assumir as corruptelas sofridas dos nomes dos inquices bantos aos Exus femininos na umbanda, representa reconhecimento de um hibridismo característico dessa religião. Além disso, usar ―Pomba‖ e não ―Pombo‖, faz alusão ao feminino materializado na simbologia mágico-religiosa dos pássaros fêmea, representando o poder das temidas Iyámi Oxorongá ou Iyámi-Ajé, que para os iorubás, traduz o poder feminino, cujas imagens sintetizam o poder da origem do mundo. Em Iorubá, Iyámi-Ajé significa ―Minha mãe feiticeira‖. São divindades ancestrais femininas que guardam o segredo da criação. Seu culto não permite a participação dos homens e sua potência mítica tem grande influência em todos os procedimentos rito-litúrgicos iorubás. Representadas por pássaros, são muito temidas, pois além de grandes feiticeiras, são impiedosas:

Na simbologia iorubá, o pássaro representa o poder procriador da mãe. As penas do pássaro, como as escamas do peixe aludem ao número infinito de descendentes, que estão, por assim dizer, implicitamente presentes no corpo materno. Nada pode aquecer o velho pássaro porque ele mesmo é fonte de calor, de vida. Esse poder é essencialmente misterioso, secreto, escondido no âmago do corpo da mãe, casa e morada. O medo de ficar preso para sempre dentro do corpo materno é claramente assumido, pois que cilada é essa, senão a própria vagina aterradora? (AUGRAS, 2000, p. 19)

Podemos refletir na simbologia do pássaro, a intimidade que a ―Pomba‖ pode estabelecer com o poder feminino atemorizante. A força e resistência da mãe, tão oculta e misteriosamente instigante. Já no caso do uso entre ―Pombagira‖ ou ―Pombajira‖, o termo ―gira‖ pode ser uma gira em sua abordagem religiosa, no sentido ritual na umbanda, onde acontecem 37

as invocações das entidades com os pontos cantados e toque de tambores para o trabalho de incorporação. Do ponto de vista artístico, ―gira‖ seria uma das conjugações do verbo ―girar‖, que além da imperatividade, tão intrinsecamente ligada à imponência do Exu-mulher, também sugere o movimento, neste aspecto aqui, tão ligado à Exu e ao corpo, mas sobretudo com destaque à dança. Os giros (voltas) são o marco da dança das Pombagiras, que rodeiam seus corpos, saias e fluídos para distribuir seus encantos. Neste sentido, por conta das questões do hibridismo cultural (corruptelas), aspectos característicos da umbanda, atributos de Exu e suas relações com o corpo na arte, fazemos a opção pelo uso da palavra ―Pombagira‖. Seguindo as considerações sobre Pombagira, no campo das funções cosmológicas é assim como Èsù-Orixá, herdeira do domínio das encruzilhadas, abre e fecha caminhos, conduz e desfaz as demandas de energia, instaura e organiza o caos para que o universo estabeleça seus ciclos, tessituras e harmonia. Assim como os Exus masculinos da umbanda, as Pombagiras também estão presentes nas portas das casas, nos caminhos e encontros de caminhos. Administram as trocas, sejam elas negociadas no comércio ou nas relações cotidianas. Estão nos trânsitos humanos, nos mercados, nas praças, esquinas, portões e todo tipo de percurso. Dentre as funções que cumprem, Exus e Pombagiras também agem como protetores das casas de umbanda, sendo extremamente necessários a qualquer objetivo que se deseja realizar no terreiro. Possibilitam a segurança e êxito dos trabalhos, impedindo que qualquer energia interfira (MOURÃO, 2012, p. 77). Desfazem os trabalhos de magia da mais alta densidade e violência, pois no que se acredita enquanto prática da caridade na umbanda, eles são justamente os profundos conhecedores das trevas e sabem interferir na desordem para reestabelecer as estruturas vitais das coisas, pessoas e vibrações. Ademais, entre tantas atribuições, que qualidade especial tem a Pombagira na ação mágico-religiosa? Para entendermos com mais profundidade suas atribuições, observam-se que as casas de umbanda apresentam pontos cantados que evocam a Pombagira com características de uma mulher feiticeira, fazendo alusão às bruxas ibéricas e práticas de feitiçaria popular portuguesa (MOURÃO, 2012, p. 70). Elas demonstram ter uma postura de destaque sobre os domínios da magia. Na obra de Marlyse Meyer (1993), há a transcrição de um processo da Inquisição de Lisboa em 1640, registrada sob o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, que versa:

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Eu te conjuro vinagre, pimenta e enxofre em nome de fulano, com três da padaria, três da cutilaria, três do açougue, três do terreiro, três do haver do peso, todos três, todos seis, todos nove se ajuntarão no coração de Fulano entrarão, se mais são, ou menos são, 56 diabos se ajuntarão, à torre do Primão se treparão, nove varas de amor apanharão, na mó de Caifás as aguçarão, no coração de Fulano as cravarão, que não possa estar, nem sossegar, até comigo não vir estar; Dona Maria de Padilha com toda a sua quadrilha me trazeis fulano pelos ares e pelos ventos; Marta perdida que por amor de um homem fostes ao inferno, assim vos peço que do vosso amor repartais com fulano, que não possa dormir, nem sossegar, até comigo vir estar. (MEYER, 1993, p. 15)

O nome de Maria de Padilha, amante do rei de Castella no século XIV, mais tarde, na pesquisa de Marlyse Meyer, empresta o seu nome a uma das mais empoderadas entidades da umbanda: Pombagira Maria Padilha. Percebe-se, como este nome citado recebe grande associação ao mundo das bruxas, mulheres feiticeiras, e consequentemente, as Pombagiras. Quando o assunto se trata as relações interpessoais, é neste momento em que elas se mostram. Se a questão diz respeito à vida conjugal e os conflitos dessa relação, lá estará Pombagira. Ela é especialista nas questões das afetividades, pois em se tratando de assuntos tão delicados, sua larga experiência de mulher da rua, lhe concede conhecimentos sobre situações das maiores adversidades possíveis. Pombagira é feiticeira talentosa nas artimanhas do coração, e conhece os segredos do amor. Lida com problemas como relações extraconjugais, inveja alheia, arruma marido/esposa, apimenta a relação, desfaz feitiço e realiza como ninguém a mediação dos percalços de uma vida a dois.

As pombagiras são poderosas feiticeiras que se dedicam sobretudo às questões de amor e sexo. Elas têm poções e feitiços para conseguir marido (ou esposa), para romper casamentos, para terminar casos amorosos extraconjugais e ensinam truques para aumentar o prazer sexual do(a) parceiro(a). Além disso, receitam também garrafadas especiais para o aborto ou para aumentar a fertilidade, se o caso for engravidar para manter a relação. (LIGIÉRO; DANDARA, 2000, p. 157)

Entre tantas funções as quais poderiam se associar a atuação dos Exus da umbanda, esse encargo das vulnerabilidades da carne, as traições e os jogos de sedução e/ou conquista estão por conta das Pombagiras. Apesar de uma imagem posta completamente inferiorizada, é ao Exu-mulher que os humanos recorrem para resolver os casos mais embaraçosos de suas relações. Nas temperanças da vida, as Pombagiras podem resgatar relacionamentos desgastados. Podem reavivar o desejo sexual, ou até mesmo combater a infidelidade do marido, dificultando seu êxito na cama com as amantes e até torná-lo um homem 39

extremamente encantado por sua esposa, aniquilando as concorrências graças aos feitios de Pombagira (MOURÃO, 2012). Mas porque a figura da Pombagira está associada a uma imagem de feminino construída por uma desqualificação social? Ora, na trajetória de Èsù-Orixá desde África até o Brasil, os processos que demarcaram as diferenças entre os deuses africanos e a visão cosmológica europeia evidenciam uma prática discriminatória, mesmo que ainda velada por fato negado socialmente. Ao inserirmos na figura da mulher as características de uma divindade, até então apenas masculina, porém subversiva, nos deparamos não só com os valores de conduta moral disseminados entre os indivíduos, mas também esbarramos nas relações entre homens e mulheres, onde a centralidade do poder nas mãos femininas representa ameaça ao masculino. No caso da Pombagira,

[...] esta seria um trickster feminino que desafia a ordem patriarcal da sociedade brasileira por meio da não aceitação da subordinação da mulher aos papéis domésticos tradicionais de esposa e mãe. Embora ela possa também ser vista como mãe, é como ―mulher da rua‖, e não ―da casa‖, que a Pombagira assume o estereótipo da prostituta. Nesse sentido, seu poder decorre do domínio que manifesta sobre seu corpo e sua vontade, ainda que isso lhe custe uma reputação social estigmatizada. (SILVA, 2015, p. 78)

Neste sentido, fica evidente perceber como o apelido de prostituta e rainha do cabaré lhe foi facilmente atribuído. Ela representa não só a força das encruzilhadas, mas também a soma de todas as potencialidades da rua, sintetizando o poder de Exu, até então centralizado no masculino. Para ela não há limites. Para ela, a mulher pode e deve ser/fazer o que quiser. Pombagira então é a própria encruzilhada, sendo o encontro de tudo que vem, passa ou fica na rua. Ao observar a subversão das regras no comportamento da Pombagira, percebemos a reprovação de sua conduta parte de um sistema de educação patriarcal e cristã que organiza socialmente os papeis aos quais são atribuídos ao feminino. Na maior das referências judaico-cristãs, reconhece-se a figura de Maria, mãe do menino Jesus, como referência de pureza, castidade e santidade. Se houvesse a necessidade de afirmar uma figura bíblica à Pombagira, sem dúvida, esta seria Maria Madalena, a prostituta. Quando um fiel dedica à Maria de Nazaré a atribuição das graças a Deus onipotente por qualquer graça alcançada, por outro lado, a Pombagira representa a força das demandas que os humanos não sabem lidar, muito menos os homens não podem controlar. Traição, impotência sexual, inveja são solucionados com maestria pelas Pombagiras, mesmo não recebendo mérito algum. 40

A questão da associação das Pombagiras com o cabaré, a prostituição, promiscuidade ou ―vida fácil‖ remete ao ideal kardecista dos espíritos que se concentram na crosta terrestre em busca de evolução, tal qual pensamento compartilhado pela umbanda. Mas a Pombagira, de fato, é uma prostituta? O que acontece é que muitas mulheres em períodos diferentes da história aderiram a comportamentos que não correspondiam às expectativas da construção social de representação feminina. Essas mulheres foram diferentes no sentido de sua afirmação individual. Muitas foram sim, prostitutas, cortesãs e concubinas. Mas também foram trabalhadoras, mães solteiras, professoras, entre outras características que a colocavam enquanto mulheres que atravessaram o tempo e valores do cenário em que viviam. Tempo de machismos, patriarcados e normatividades domesticadoras do corpo feminino. Por isto, tão mal vistas, já que seu empoderamento passou a ser a pedra, a pulga atrás da orelha dos machistas. Tal subversão implica em não somente nas relações entre homens e mulheres, enfrentamento dos valores impostos pela instituição igreja católica em tempos de disputas de poder político-ideológico. Não bastasse ser a pedra no sapato do patriarcado, resolveu ser a mosca que posou na sopa da cristandade, conferindo à Pombagira, a demonização e atribuição de mulher do diabo! Podemos notar isto no ponto cantado a seguir:

Pombagira quebrou a perna na carreira que ela deu Pombagira quebrou a perna na carreira que ela deu O inferno pegou fogo, a mulher do diabo não morreu! Não morreu, a mulher do diabo não morreu. (Ponto cantado para Pombagira. Domínio público)

A associação de mulher de Lúcifer tornou-se discurso pertinente que contribuiu para a estratégia de inferiorizar os atributos de Pombagira, afinal, para o patriarcado, um par de pernas e saias não podem dominar o mundo! Entretanto, é importante dizer que em muitas casas de umbanda esse discurso se valeu de formas variadas. Quando pensada de forma positiva, muito se aproveitou do processo de demonização da Pombagira como tática de defesa aos intolerantes que violentavam ou reprovavam as religiosidades afro-brasileiras. Pombagira passou então a ser um escudo de defesa para aqueles que não gostavam de serem incomodados, e neste sentido deve ser lida como representação expressiva das práticas de enfrentamento do racismo e machismo em nossa sociedade. 41

Por outro lado, a incorporação dos machismos perpetuados pelos processos de demonização se impregnaram, sobretudo, nas casas. A partir daí as Pombagiras parecem levar a culpa de impulsionarem a sexualidade e desejos da carne de suas médiuns, necessitando de trabalhos e oferendas que amenizem os efeitos de sua energia lascívia:

É voz recorrente nos terreiros que muitas oferendas são feitas para mulheres que ―têm Pomba-gira de frente‖, o que significa, fatalmente, forte impulso para ter vida sexual desregrada. Por esse motivo, a oferenda visa a apaziguar a terrível entidade, de modo que ela dê descanso às pobres moças, permitindo-lhes vida mais decente. (AUGRAS, 2000, p. 34)

Entende-se que as ideologias contidas nos entendimentos sobre a Pombagira resumiam um objetivo pensado de modo a marginalizar sua autonomia, imponência e não servilismo ao sistema falocrático. Na questão das características de Pombagira, é extremamente considerável destacar o debate sobre corpo feminino, no sentido de melhor compreendermos as questões do regramento do corpo como símbolo de dominação masculina e que exibe a Pombagira como sinônimo de imoralidade. A Pombagira é a mulher sem pudores. Mulher de sete maridos (AUGRAS, 2000, p. 33). Se observarmos esta afirmação, podemos nos remeter a um pensamento, inicialmente, cercado de resquícios valorativos do conservadorismo cristão, pois a sociedade institui os princípios que serão considerados aceitáveis ou abomináveis em relação a/ao cor/po. A estrutura de poder centralizada no masculino de matriz judaico-cristã atribui ao feminino, além das tarefas domésticas, o desígnio divino de ser mãe, comparado ao dom sagrado de Maria de Nazaré. O corpo feminino se referencia, segundo a linha de pensamento eurocêntrica, no caminho da castidade e pureza. Logo, o sexo fora da perspectiva da procriação não é aceitável. E não havendo como escapar das dicotomias de bem e mal, apesar da obediência e conduta exemplar de Maria aos cristãos, a responsabilidade do pecado e das tentações do corpo, são atribuídas ao feminino. Para os cristãos, isto começa desde que Eva desobedeceu a regras do paraíso, do Éden. Logo, tudo que se encontra em direção contrária ao que se entende como aceitável aos cristãos, é pecado, imoral, errado, paganismo, bruxaria. Mediante a tantas qualidades contrastantes com esse referencial judaico- cristão, a Pombagira vem nos surpreender com a outra face da moeda, e propõe de maneira direta e objetiva a libertação do corpo feminino. Na observação da iconografia 42

das Pombagiras, Tadeu Mourão comenta a respeito de Maria Padilha, uma das mais conhecidas Pombagiras:

Representada seminua, com apenas uma pequena saia cobrindo seu quadril, a mais famosa Pombajira é figurada em sua representação imagética, com um largo sorriso que parece anunciar sua gargalhada característica. Não apenas a risada, mas também as mãos na cintura figura outro gesto comum às incorporações de Maria Padilha. (MOURÃO, 2012, p. 124)

Em suas pesquisas, Tadeu Mourão comenta sobre as esculturas de Pombagiras. Ao analisar a estética dos corpos femininos, evidencia também a presença da Pombagira ―mulata‖ como símbolo da mestiçagem. Sobre a questão do imaginário coletivo sobre o corpo da mulata, Abdias do Nascimento acrescenta:

Já que a existência da mulata significa o produto do prévio estupro da mulher africana, a implicação está em que, após a brutal violação, a mulata tornou-se só objeto de fornicação, enquanto a mulher negra continuou relegada à sua função original, ou seja, o trabalho compulsório. Exploração econômica e lucro definem, ainda outra vez, seu papel social. (NASCIMENTO, 1978, p. 20)

Esse corpo da mulata, ao nosso olhar, pode se valer de associação com a Pombagira ao estabelecer uma representação que é muito cara, por atender às características reprováveis aos valores cristãos e estar submetido aos interesses sexuais do patriarcado. Mesmo objetificada e hipersexualizada, por outro lado, essa potência das ruas representa, caracterizada pela postura de enfrentamento, com sorriso nos lábios, as mãos na cintura e uso de pouca roupa, revela o corpo em sua máxima autonomia. Autonomia na escolha do que fazer com o próprio corpo, poder e domínio sobre a própria corporalidade. Por isso Pombagira gargalha, dança, seduz, mexe com a libido, bebe, fuma e de tudo o que quiser experimenta, no mais extremo prazer, até a última dose. O esgotamento de seu próprio prazer é seu principal lema e se utiliza dessa sexualidade livre, sem amarras de regras para seu corpo como mecanismo de empoderamento feminino:

Esse potencial (hoje em plena expansão) se expressa no simbolismo da fêmea sexualmente ativa e auto-orientada na busca do próprio prazer. Essa busca, conscientemente dissociada da função de maternidade, confere à mulher a noção exata de seu poder magnetizante sobre os machos da espécie. Em linguagem pop, as pombagiras seriam as sacerdotisas do ―Pussy Control‖, ou o poder de controlar os homens por meio da vagina. (LIGIÉRO; DANDARA, 2000, p. 156) 43

Sua experiência no sexo não poderia lhe dar, senão, o codinome de devassa, mundana, rameira. Entretanto, sua condição de marginalidade vem defender uma categoria invisibilizada e submetida a processos de dominação. A Pombagira é, na verdade, a comadre, amiga e fiel confidente das mulheres. ―É como se assistíssemos ao retorno do reprimido. Todas as representações moralizadas, todas as repressões dos aspectos concretamente sexuados do poder feminino voltam nessa figura selvagem da rainha das encruzilhadas‖ (AUGRAS, 2000, p. 39).

1.2 – ―Refletiu a luz divina em todo seu esplendor...‖8

Nesta seção que se inicia, trataremos dos aspectos históricos e sócio-culturais que contribuíram para a formação da religião da umbanda. Em seguida, traremos algumas informações sobre a pesquisa de campo realizada para dar corpo a este trabalho, delineando as técnicas utilizadas, desafios e tensões que permeiam entre pesquisadora e comunidade religiosa na abordagem qualitativa. Além disso, apresentamos alguns dados iniciais gerados a partir da observação participante, pensando em ressaltar informações importantes que já nos aproximarão do campo, no sentido de identificar o perfil da instituição analisada, bem como delinear as principais características da casa e das práticas realizadas neste espaço. Destacamos alguns fatos históricos importantes, percebendo que as epistemes referenciadas nas fontes bibliográficas indicam a umbanda como um resultado de cultos já inseridos e praticados em solo brasileiro, e há muito que se considerar, entretanto, que a legitimidade do anúncio desta religião enquanto novo culto e essencialmente brasileiro é reconhecida, porém as práticas que se dão nela não são inéditas, visto que

[...] o catimbó, como a macumba, tem registros comprovados de sua existência desde o final do século passado, fornecendo importantes dados sobre as trocas e intercâmbios entre tradições mágicas e religiosas eminentemente orais. Podemos entendê-las como inter- relações culturais que antecederam a umbanda e que criaram condições favoráveis ao seu surgimento e desenvolvimento. (LIGIÉRO; DANDARA, 2013, p. 81)

8 Primeiro verso do hino da umbanda. Para ler na íntegra, consultar o Anexo A. 44

Os autores Zeca Ligiéro e Dandara nos alertam quanto a existência da macumba e até mesmo do catimbó como práticas comuns e que antecedem ao nascimento da umbanda. Independente das influências que conspiraram para a formação da umbanda, fato é que a encruzilhada que perpassa por todos esses cultos (catimbó, macumba e umbanda) possui uma tríade de elementos a se destacarem através de suas liturgias. Primeiro, no aspecto da evocação e emanação das energias por meio das cantigas, do toque percussivo e da dança. Segundo, pela utilização de componentes imagéticos e materiais que variam entre ingredientes naturais (comidas, bebidas e ervas) e outros objetos ritualísticos. Por último, e não menos importante, ressaltamos toda a dinâmica da mecânica de incorporação de espíritos e/ou divindades, assim como se procede nos cultos aos ancestrais ameríndios e africanos, delineando um rito, um modo de fazer sua comunicação com o sagrado de maneira específica. Em contrapartida ao candomblé, que preza pela manutenção e permanência de suas tradições ligadas às nações africanas às quais desenvolviam suas práticas, a macumba possibilitava historicamente, com toda flexibilização que dispunha, a hibridação de diferentes tradições, incorporando práticas diversas, sem uma preocupação com a essencialização ou a estruturação de um culto ―puramente africano‖. É importante frisar a existência desses cultos como fertilizadores que propiciaram condições favoráveis ao surgimento da umbanda, entretanto, ressaltamos que se evidencia também a necessidade de atuar em espaço de igualdade com as outras religiões socialmente reconhecidas e aceitas. Trata-se de amplificar as vozes de seus praticantes e expandir os espaços ocupados por seus grupos que se encontravam, até então, muito mais escondidos, subalternizados e excluídos socialmente que nos dias atuais. Com relação ao contexto da umbanda e seus mitos fundadores, vislumbramos de maneira evidente uma encruzilhada histórica com as práticas das macumbas e tantos outros cultos similares, reunindo informações valiosas que ampliam um campo de conhecimentos diversos que se estabelecem dentro das conjunturas entre a hegemonia e a subalternidade, encontrando estratégias e negociações para conversarem (ou não) e permanecerem na constituição de seu hibridismo, como afirma Nestor Garcia Canclini (2013). Nosso diálogo conduz aos contextos sócio- históricos e culturais que contornam essas narrativas, oferecendo possibilidades de 45

discussão com ênfase nas relações de poder e no contexto das relações étnico- raciais. Apresentamos agora a mais conhecida narrativa do surgimento da umbanda contada através da história de Zélio Fernandino de Moraes, cujos fatos e acontecimentos são indispensáveis para compreender as relações de poder que se estabeleceram entre as práticas espiritualistas do século XX, a pulverização do entendimento de progresso e evolução espiritual propagada pelos kardecistas, e por consequência, a não aceitação de espíritos que traziam em sua bagagem de conhecimentos da etnicidade dos sujeitos explorados pelo branco colonizador. As escritas de autores como Ligiéro e Dandara (2013), Mourão (2012) e Oliveira (2003) apontam a narrativa de Zélio, que também se articula ao relato da história da umbanda encontrada na página virtual no terreiro do Pai Maneco (2015), apresentando inclusive, uma gravação da voz do próprio Zélio contando alguns fatos. Juntamente a esses dados, apoiamo-nos em relatos organizados por Juruá (2013) na Coletânea Umbanda – Manifestação do Espírito para a Caridade. Interessantíssimo destacar que não só esta versão para a formação da umbanda é concebida, como também uma outra afirmação em que a primeira história seria consequência de um planejamento espiritual no plano físico, como encontrado no material utilizado como referência de estudo aos médiuns da instituição religiosa analisada no trabalho de campo. Diga-se de passagem, que o escrito citado trata-se de um livro psicografado pelo espírito Ramatis e intitulado ―Umbanda pé no chão‖, onde toda a história da umbanda aqui contada pelo viés de Zélio é identificada como um desdobramento de uma prática já vigente em outra existência/plano astral, antecedendo a história do próprio Zélio. Essa segunda narrativa se relaciona com os fatos descritos na publicação de trabalhos do I Congresso Brasileiro do Espiritismo de umbanda (1942), apontamentos de Renato Ortiz (1978) e mais uma vez nas obras de Juruá (2013) e de Ligiéro e Dandara (2013). Estes últimos autores são utilizados como referência para nossas escritas, visto que não há, no contexto acadêmico, legitimidade para escritos psicografados. No que tange à primeira narrativa, tudo se iniciou quando o jovem Zélio Fernandino de Moraes, que morava no distrito de Neves, localizado na cidade de Niterói, muda os rumos de sua vida. Quando o rapaz se aproximava da maioridade etária e se preparava para ingressar no regimento militar, começou a apresentar um comportamento não compreendido por sua família: falava com tom manso e suas 46

palavras pareciam carregar uma pronúncia muito característica, como um sotaque de região diferente da sua, parecendo um senhor de idade que viveu em outro tempo. Estranhando toda a situação, a família de Zélio o leva ao médico com certa urgência, temendo que o mal que o acometia se tratasse de um distúrbio mental/psicológico. Para surpresa de todos, não houve recurso da medicina que desse conta de diagnosticar tais sintomas (quiçá resolvê-los), e o médico que o examinou, seu tio Epaminondas de Moraes – psiquiatra que na época era diretor do hospício de Vargem – sugeriu à família que o encaminhasse a um padre, a fim de cuidar de questões espirituais que pudessem estar gerando transtornos em seu comportamento. Recorrendo ao auxílio do padre, todos os procedimentos católicos do ritual de exorcismo foram realizados, entretanto, nada surtia efeito. Algum tempo passado do ocorrido, o jovem Zélio passa por uma estranha paralisia que os médicos não sabiam como explicar, tampouco curar. Entretanto, em um dia inesperado, Zélio se ergueu de seu leito e anuncia que estará curado no dia seguinte, e realmente o fica, para espanto de todos. Seguido desta sequência de acontecimentos, sua mãe, Leonor de Moraes, o leva para uma rezadeira local chamada dona Cândida, que incorporava um preto velho chamado Tio Antônio. Ao ser atendido, finalmente Zélio foi diagnosticado. Seu quadro, segundo o preto velho, indiciava características evidentes de mediunidade e assim Tio Antônio o aconselhou desenvolvê-la e utilizá-la para trabalhar fazendo a caridade. Foi aí então que o pai de Zélio, Joaquim Fernandino da Costa – já conhecedor e simpatizante da codificação espírita de Allan Kardec – recebe a sugestão de um amigo a levá-lo até a Federação Espírita de Niterói. No dia quinze de novembro de 1908, Zélio vai a este local e é convidado a ocupar um lugar na mesa. Durante a sessão, motivado por uma sensação desconhecida, se levanta e diz: ―Aqui está faltando uma flor‖, se dirigindo até o jardim, onde pega uma flor e a posiciona no centro da mesa. Esta situação gera um estranhamento diante dos hábitos do grupo e certo ―burburinho‖ entre os presentes, contrariados pela atitude do jovem. Retomada a atividade da reunião, Zélio incorpora o espírito de um índio, e quase que como em ―efeito dominó‖, outros médiuns presentes na sessão incorporam espíritos de caboclos e pretos velhos. Durante a comunicação que se estabeleceu, notou-se uma não aceitação da manifestação desses espíritos naquele local por parte do dirigente do trabalho. Indagou o espírito do caboclo incorporado em Zélio, o porquê de tolher a participação destes espíritos, impedindo-os de sequer deixar suas mensagens. Acaso os 47

consideravam inferiores por conta de sua origem e cor? As respostas e questionamentos posteriores ecoavam em torno das características que essas entidades traziam, afirmando que se tanta luz assim possuíam, porque se comportavam falando daquele jeito, como espíritos atrasados? Além de indagado sobre estas questões, também é perguntado sobre seu nome, assim o espírito manifestado respondeu:

Se julgam atrasados os espíritos de pretos e índios, devo dizer que amanhã estarei na casa deste aparelho, para dar início a um culto em que estes pretos e índios poderão dar sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E se querem saber meu nome que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim. (GUIMARÃES; GARCIA, 2016)9

O mesmo espírito que, incorporado em Zélio, trazia características de um índio brasileiro que, em outrora encarnação, foi também padre jesuíta. Esta aparência na figura de um homem branco e católico, foi percebida por um médium vidente presente no local. Na verdade, só ratificou a atitude constante dos kardecistas em classificar a condição evolutiva dos espíritos:

O que você vê em mim, são restos de uma existência anterior. Fui padre jesuíta e o meu nome era Gabriel Malagrida. Acusado de bruxaria, fui sacrificado na fogueira da Inquisição, em Lisboa, no ano de 1761. Mas em minha última existência física, Deus concedeu-me o privilégio de nascer como Caboclo brasileiro. (JURUÁ, 2013, p. 18)

Neste trecho, nota-se explicitamente a exclusão dos espíritos de negros escravizados e índios, bem como sua atuação no plano físico, podando-os de compartilharem seus saberes e de utilizar o espaço terreno para trabalhar. Isto mostrou que mesmo tendo a possibilidade de apresentar-se com uma de suas existências enquanto de padre jesuíta, por outro lado foi interpretado ―atrasado‖ quando assume uma ―roupagem‖ étnica de índio brasileiro. Neste sentido, ao anunciar sua missão com Zélio, a proposta do Caboclo das Sete Encruzilhadas era promover a prática de um novo culto que reconhecesse e agregasse os saberes e conhecimentos específicos desses espíritos, até então, atuantes em parte deles nas macumbas, catimbós, xangôs do Nordeste e tantos outros, para a prática do bem e da caridade.

9 História da umbanda: Caboclo das Sete Encruzilhadas. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2016. 48

Sendo assim, no dia seguinte, em local (residência da família Moraes) e horário combinados, torna a se manifestar o Caboclo das Sete Encruzilhadas. Dentro da casa, os membros da Federação Espírita, familiares de Zélio, amigos e vizinhos. Nos arredores do ambiente, inúmeros desconhecidos curiosos que se dirigiam para conferir/verificar o fenômeno. Vislumbram através do caboclo o anúncio de uma nova religião que atenderia aos humildes e necessitados, através dos inúmeros grupos de espíritos de índios e negros, atuando para a prática do amor e da caridade, à luz do pensamento de evolução espírita kardecista e do evangelho do Jesus Cristo. Essa religião se chamaria Umbanda. Mais uma vez, as encruzilhadas tornam a marcar presença nos enlaces de nosso debate. Ao apresentar em seu nome as encruzilhadas, o caboclo traz simbolicamente aquilo que, mesmo tão associado a Exu, faz valer na própria umbanda como um todo, articulando olhares, agregando conhecimentos e práticas. Também é necessário nos ater que o propósito da umbanda, não só dedicado a trabalhar com esses espíritos excluídos da seara da caridade pelos humanos kardecistas, também se prontificou a atender grupos socialmente excluídos. A humildade sendo mola propulsora para atender os mais humildes. Sobre essa confluência de práticas, Ramatis aponta que:

A umbanda, no Brasil, é a consequência de uma lei religiosa muito natural - a evolução moral! Prevendo a decadência do catolicismo pelos seus dogmas envelhecidos, o advento libertador e mentalista do espiritismo e o consequente progresso científico no mundo, os mestres espirituais elaboraram o esquema de uma doutrina religiosa capaz de aproveitar as sementes boas da Igreja católica, incluindo nos seus postulados o estudo da reencarnação e a lei do karma. Assim, foi delineada a doutrina que se conhece por umbanda, despida de preconceitos racistas pela origem africana, no sentido de agrupar em sua atividade escravos, pretos, brancos, nativos, exilados, imigrantes descendentes de todos os povos do mundo sediados em solo brasileiro. Ademais, os pretos-velhos, conselheiros paternais, tolerantes e generosos, substituem a contento os sacerdotes ou pastores, cuidando seriamente dos problemas e rogativas dos filhos. Embora não sendo diplomados pelas academias científicas do mundo, eles são os alunos devotados à escola do Cristo! Jamais negam a sua ajuda amorosa, aconselhando sem censura e amando sem interesse. Há grande diferença entre o preto-velho, que orienta e conforta pessoalmente os crentes desgovernados na vida profana, em comparação ao sacerdote ou pastor, que sobe ao púlpito para excomungar severamente os pecados dos homens! (RAMATIS; MAES apud LIGIÉRO; DANDARA, 2013, p. 84-85)

O livro ―Iniciação à umbanda‖, tantas vezes referenciado neste trabalho, nos acrescenta esta citação valiosa, cuja escrita é de autoria do espírito Ramatis. Apesar de não reconhecida em contextos acadêmicos, a escrita de materiais para estudo, de 49

ordem psicografada, tem para os espíritas e umbandistas certa credibilidade por serem conhecimentos trazidos do astral (plano espiritual), visando promover um aprimoramento pessoal e coletivo daqueles que se referenciam em suas instruções. Inclusive, o mentor espiritual citado, compôs em parceria com os médiuns Hercílio Maes e Norberto Peixoto a empreitada de produzir vastos materiais psicografados, onde em sua maioria, compartilham conhecimentos sobre a umbanda. No próprio espaço onde a pesquisa de campo foi realizada, muitas dessas referências são utilizadas por seus membros – médiuns e frequentadores – para leitura e consulta. A partir das afirmações do Caboclo das Sete Encruzilhadas e do mentor Ramatis, o propósito da umbanda estava firmado: ajudar tanto no processo evolutivo com conhecimento sobre a vida espiritual (kardecistas), aprimoramento moral com a permanência dos valores cristãos (católicos) quanto na cura de males da matéria e do espírito (práticas de cura afro-ameríndia), sem a cobrança para atendimento de seus consulentes, tampouco fazendo uso de sacrifícios de animais. Seguido o anúncio e inauguração da umbanda, Zélio Fernandino de Moraes passa a atender na Tenda Espírita Nossa Senhora das Graças, fundada por ele mesmo. E foi só o começo, onde posteriormente contribuiu para fundação de tantas outras tendas, terreiros e grupos/fraternidades umbandistas a partir da história de Zélio, que se encruza com as macumbas, a umbanda ou vice-e-versa. Nas análises da palavra umbanda, buscamos algumas relações com possíveis heranças negras provenientes da região Congo-Angola. Na língua quimbundo, a palavra kubanda é um verbo que significa desvendar ou a arte de curar (LOPES apud MOURÃO, 2012, p. 60-61), onde a palavra mbanda teria o mesmo significado. Esse termo teria sofrido corruptelas até se transformar no vocábulo Umbanda. Thompson (1993) aponta para um significado similar, que se destaca no tronco linguístico banto, dizendo que o termo,

umbanda, o nome dado a Zélio para começar a nova religião, é próximo da palavra banda, em quicongo, ‗iniciar, começar um trabalho‘ para o quimbundo de Angola, a palavra umbanda essencialmente significa ‗trabalhar positivamente com medicinas. (THOMPSON, 1993, p. 97)

Na verdade, os significados quase que se complementam, entre a inauguração de um novo trabalho em prol da caridade e apropriação da prática da cura. Além da citada referência banto, uma outra possibilidade para os significados atrelados a esta palavra, fazem ligações com as interpretações orientais na língua do sânscrito:

50

O vocábulo UMBANDA é oriundo do sanskrito, a mais antiga e polida de todas as línguas da terra, a raiz mestra, por assim dizer, das demais línguas existentes no mundo. Sua etimologia provém de AUM- BANDHÃ, (om-bandá) em sanskrito, ou seja, o limite no ilimitado. O prefixo AUM tem uma alta significação metafísica, sendo considerado palavra sagrada por todos os mestres orientalistas, pois que representa o emblema da Trindade na Unidade, Pronunciado ao iniciar-se qualquer ação de ordem espiritual, empresta à mesma a significação de o ser em nome de Deus. Pronuncia-se om. A emissão deste som durante os momentos de meditação, facilita as nossas obras psíquicas e apressa a maturação do nosso sexto sentido, a visão espiritual. BANDHÃ, (Banda) significa movimento constante ou força centrípeta emanante do Criador, a envolver e atrair a criatura para a perfectibilidade. Uma outra interpretação igualmente hindu, nos descreve BANDHÃ (Banda) como significando um lado do conhecimento, ou um dos templos iniciáticos do espírito humano. (FERNANDES, 1942, p. 10).

A partir da publicação desta tese da Tenda Espírita Mirim, representada por meio de Diamantino Coelho Fernandes, os autores Ligiéro e Dandara realizam uma severa crítica no tocante das relações étnico-raciais que permeiam as discussões sobre a instauração da umbanda e o reconhecimento de suas heranças africanas.

Esses preconceitos são tão fortes que, no já citado I Congresso de Espiritismo de umbanda (1941), apesar de todos conhecerem os estudos etimológicos que apontavam para a origem africana (banto) da palavra ‗umbanda‘, foi adotada a improvável versão de que o termo deriva da expressão sânscrita Aum Bandhã. Embora a origem africana da palavra tenha sido ratificada no Congresso de 1961, a oposição gerada vinte anos antes, contra o reconhecimento desse simples fato etimológico, demonstra a contribuição das obras intelectuais para a formação da ideia que um povo ou grupo tem de si e do mundo. Para definirem-se como praticantes de uma religião elevada e evoluída, os congressistas umbandistas precisavam ‗desafricanizar‘ a umbanda. (LIGIÉRO; DANDARA, 2013, p. 113)

A citação critica uma atitude, do ponto de vista étnico e racial, repleta de relações de poder entre a visão eurocêntrica sobre o vocábulo ‗umbanda‘ e o reconhecimento de sua origem banto nas etnias afrodiaspóricas. Entretanto, ressaltamos esta afirmação para a questão da conjuntura sócio-histórica de dominação cultural e religiosa branca que influencia nossos discursos até hoje, e por este mesmo motivo, destacamos também a necessidade da própria umbanda de se inserir no contexto, seja por parte de um planejamento do plano espiritual, que assim como a energia organizadora do caos de Exu, encontra as brechas para articular suas formas de inserção do conhecimento, ou por parte dos membros envolvidos que, mesmo agregando os africanizados neste arranjo, justificam o advento da nova religião como propulsora do avanço da humanidade para que a comunidade espírita a 51

reconheça e conceda visibilidade. Fato é que a legitimidade do termo umbanda é reconhecida a partir do discurso kardecista, pelo peso que os imaginários coletivos, repletos da superioridade branca, dão credibilidade à versão espírita. Outra versão para a fundação da umbanda se remete a mesma como sendo uma antiga prática milenar, da lendária e submersa cidade de Atlântida (FERNANDES, 1942; ORTIZ, 1978; LIGIÉRO; DANDARA, 2012). Esta narrativa nos leva a pensar num processo cronológico inverso, apontando a umbanda como sendo anterior às práticas de cultos aos ancestrais no continente africano. A tão comentada aumbandhã seria o conjunto das leis divinas, ou de Deus. Esta narrativa aponta para um conjunto de conhecimentos e práticas que passavam não somente pela religião, como também pela filosofia de vida, arte e ciência, que compunha todo um sistema organizado na Lemúria. Apesar de não ser concretamente provado, afirma-se que a Lemúria era um continente que, para estudiosos ao longo da história, fazia parte do planeta e submergiu por completo após desastres catastróficos por fenômenos geológicos. Essa versão da história é relatada em algumas aulas fechadas em grupo de estudos observado no campo. Independente da veracidade dos fatos ou não, Atlântida é narrada em muitas histórias, inclusive nas obras literárias de Platão, em que remonta lendas contadas na antiga Grécia sobre esta civilização ou até mesmo em histórias fictícias em filmes. Atlântida seria uma lendária ilha localizada no continente lemuriano, que possuía uma sociedade fortemente avançada nos aspectos tecnológicos, com ótimas condições climáticas e de subsistência, além de armamento e exército altamente preparados. Enfim, poderia ser o paraíso, se não fossem submergidos no oceano. Durante a pesquisa de campo desenvolvida para esta dissertação, afirmam médiuns palestrantes e dirigentes de estudos sobre o assunto, inclusive algumas entidades, que de fato Atlântida existiu. Entretanto, não nos cabe aqui realizar um juízo de valor sobre esta verdade, mas sim de que forma esta narrativa se encontra com a umbanda. O conjunto de práticas que regiam a organização da sociedade atlante eram dirigidas e orientadas por indivíduos que conheciam profundamente as leis cósmicas astrais. Tratavam-se de sacerdotes, líderes e magos que dominavam a manipulação de energia através da magia. Imbuídos pelo sentimento de vaidade, egoísmo e orgulho, se corromperam e passaram a agir em benefício próprio, gerando o desequilíbrio coletivo que se tornou, posteriormente, num grande problema de desajustes kármicos. 52

O que até então, do ponto de vista do espiritismo, considerado como demasiadamente evoluído, integrando um conhecimento global, passou a compor um cenário de fragmentações. Neste sentido, o apagamento da história dessa civilização foi necessário para se ―começar do zero‖. Centenas de espíritos que passaram por vidas como atlantes reencarnaram, em considerável parte, no continente africano. Isto justifica, também, o discurso de que antigas civilizações como a dos egípcios, por exemplo, dominavam técnicas específicas para construção de seus templos, além de conhecimentos sobre medicina, matemática, entre outros aspectos como a crença da vida após à morte, não esquecendo de delinear suas práticas rituais com tantos deuses. Pensando em tantas áfricas, não poderíamos deixar de delinear as inúmeras civilizações nagôs/iorubás, congolesas, angolanas entre outras que trouxeram ―intuitivamente‖ seus saberes sobre magia da antiga Lemúria, desdobradas nos cultos aos seus Orixás, Inquices e Voduns. Em algum momento essa costura de narrativas pode até ter significância ou fazer algum sentido para os membros da instituição observada, mas fato é que consideram em suas narrativas que as práticas sagradas desenvolvidas por esses espíritos encarnados/pessoas já se encontrava completamente distante das práticas harmoniosas de Atlântida antes de seu afogamento. Em outras palavras, segundo esta versão da narrativa (que foi observada sendo discursada em campo), os espíritos que reencarnaram na África já haviam deturpado todo o legado de conhecimentos aprendidos em vidas passadas. Portanto, por direcionamento e decisão do plano espiritual, a umbanda (aumbandhã) estaria planejada para (re)nascer em solo brasileiro por conta da diversidade de raças e etnias agrupadas nos convívios da colonização, cujas cosmologias poderiam ser agregadas para a retomada deste conhecimento universal e integral – aumbandhã. Apesar de inusitada, e mesmo não possuindo (ainda! Como afirmam...) uma comprovação da sua veracidade, esta seria a segunda narrativa sobre a umbanda, sendo a mais aceita pelo grupo mediúnico da instituição religiosa por nós analisada. A narrativa de Zélio de Moraes é reconhecida, mas apenas como acontecimento programado por consequência de um planejamento espiritual. Esta narrativa também esbarra em alguns momentos com as escritas do I Congresso Brasileiro do Espiritismo de umbanda de 1941, sobretudo no tocante à questão das práticas africanas e cultos religiosos afro-brasileiros instaurados no Brasil se valerem de práticas fetichistas, supersticiosas e deturpadas. 53

Vale enfatizar a seriedade dos textos registrados neste congresso, que apesar do firme compromisso em divulgar, informar e fortalecer o culto de umbanda no Brasil, por outro lado disseminam e enxertam um discurso completamente racista. Não só os do congresso como os de muitas literaturas espíritas. Mesmo entendendo que as questões sobre a vida espiritual giram em torno de uma fala em que o espírito não possui cor ou raça, torna-se questionável quando observamos o ―carro chefe‖ do debate que elucida as concepções sobre a imortalidade do espírito fazer parte de uma corrente de pensamento colonizadora, afinal a doutrina espírita codificada por Kardec vem de uma perspectiva eurocentrada. Neste sentido, é necessário nos atermos para essas leituras. Quanto a questão dos mitos fundadores destacados, explica-se a confluência de elementos que compõem a umbanda. Motivados pela sede de conhecimento e busca por aprimoramento moral, amparam-se nas teorias da evolução preconizada pela doutrina espírita. Dela também se valem da visão de vida após a morte, da lei da reencarnação, lei de causa e efeito ou lei do karma e uso do livre arbítrio como forma de impulsionar a evolução individual e coletiva dos espíritos encarnados e desencarnados. Nas práticas ameríndias, buscam os saberes e determinação exemplificados pela figura dos caboclos e índios, conhecedores dos poderes terapêuticos e curativos de suas pajelanças. Na perspectiva africana, ressaltam-se as oralidades e as heranças congo- angola da quimbanda, no domínio e prática da magia, e o culto aos Orixás (cultura iorubá) apesar de agora brancos10. Destacamos ainda, o convívio que os africanos escravizados nos proporcionaram com os Orixás e também no aspecto da participação do corpo de forma ativa e artística dentro do ritual, em que trataremos mais adiante. Já nas tradições cristãs, versus a oralidade, se apresentam as escritas dos registros bíblicos, sobretudo dos ensinamentos do evangelho de Jesus, sendo eles os mais levados em conta pela comunidade religiosa na Casa pesquisada. Além desses pilares, pontuamos algumas outras influências que possam se mostrar na umbanda, não em aspecto geral ou genérico, mas que por ventura venha a se destacar com especificidade em alguma casa/tenda/terreiro de umbanda. Trata-se de uma religião aberta a essas possibilidades de atuação em mais um campo para espíritos de etnias/culturas outras. Apontamos aqui para as tradições orientais, como as do budismo, confucionismo ou hinduísmo, por exemplo, ou até mesmo as tradições

10 Afirma-se em muitos casos a utilização do termo umbanda branca para designar uma prática suavizada, uma umbanda ―pura‖, que segundo Renato Ortiz (1978), se difere dos rituais denominados bárbaros e fetichistas. 54

árabes (apesar de também serem africanas, se mostram numa perspectiva diferente do grupo afrodiaspórico) e de povos ciganos (LIGIÉRO; DANDARA, 2013, p. 55). Após o advento do Caboclo das Sete Encruzilhadas e do anúncio da umbanda, algumas regras são instituídas por ele mesmo para que a realização dos trabalhos se efetue: o uso da roupa branca e simples, sem uso de atabaques e palmas, tendo apenas cânticos suaves. Além disso, não se realiza nenhum tipo de sacrifício de animais. O trabalho seria conduzido na perspectiva da caridade desinteressada em benefício próprio, e para tal, o atendimento deveria ser totalmente gratuito. Neste sentido, a umbanda vem agregar valores, conhecimentos e práticas das mais diversas cosmogonias, procurando beber nas fontes de suas filosofias, saberes e ritos. O que em outras palavras significaria ―separar o joio do trigo‖, a umbanda une o que cada religião teria, na perspectiva da evolução, de bom a acrescentar no sentido da caridade e do progresso coletivo de espíritos encarnados e desencarnados que se ligam aos processos cármicos da crosta terrestre.

1.3 – Situando a encruzilhada: uma pesquisa de campo numa Casa de...?

Antes de mais nada, há de se destacar que as narrativas sobre a fundação da umbanda estabelecem pontos de contato com a história da instituição religiosa pesquisada. O trabalho de campo em curso se situa nesta pesquisa de forma a produzir intercessões entre aspectos religiosos e culturais, desdobradas na questão artística como encruza de análise. Há um hibridismo natural efervescendo constantemente na umbanda em geral e neste espaço pesquisado, onde a confluência diversos aspectos cosmológicos conversam para (sobre)viverem às mais novas relações de tempo e espaço que, simultaneamente, promovem e acompanham as transformações do todo. Neste sentido, destacamos quanto ao espaço em que se realizou a pesquisa de campo tratando-se de uma Casa espírita cujas práticas litúrgicas se dão através da umbanda. A instituição chamada Fraternidade Espírita Cristã (FEC) está localizada na avenida Estácio de Sá, lote 17 - quadra 32 - Parque Novo Rio - São João de Meriti - RJ. Algumas descrições mais detalhadas a respeito de como o trabalho neste espaço acontece serão abordadas mais adiante, no próximo capítulo. 55

Dentre o breve histórico descrito por alguns médiuns que participaram do processo de formação da instituição, cujo nome viria a se tornar Fraternidade Espírita Cristã (FEC), e que permanecem vinculados à instituição até hoje, relatam essa história que é contada anualmente na cerimônia de aniversário da Casa, onde é celebrada seu tempo de fundação, na ocasião da observação em janeiro de 2016, a FEC comemorou seu décimo oitavo aniversário. No curso da pesquisa de campo, foi iniciada em abril de 2015 e encerrada em dezembro de 2016, totalizando vinte meses de imersão. No blog da instituição, um breve texto redigido por Anselmo Cabral, um de seus médiuns fundadores, conta essa história que se inicia com o trabalho do Centro Espírita Sagrado Coração de Jesus (CESCJ). Na época, o CESCJ era dirigido pelo médium Adilson Gouveia. Os trabalhos espirituais da casa eram orientados à luz da doutrina espírita kardecista e no evangelho cristão como válvula propulsora da evolução individual e coletiva de seus médiuns e frequentadores. No ano de 1997, o dirigente espiritual da casa veio a óbito e as portas do CESCJ se fecharam por um ano. No ano seguinte, no mês de janeiro, na pretensão de reiniciar os trabalhos previstos para o ano de 1998, os membros da casa se reúnem e o quadro mediúnico recebe oficialmente a notícia de que a instituição não retomaria seus trabalhos até a segunda ordem (permanecendo fechada por tempo indeterminado), deixando como sugestão aos médiuns que se reunissem para pensarem coletivamente em ações a fim de prosseguir com seus compromissos assumidos com a espiritualidade. É assim que no mesmo ano, a médium do CESCJ, Noemi de Almeida, sugere uma reunião aos interessados em prosseguir com os estudos e trabalhos espirituais e o local sugerido para realizar esta empreitada seria sua própria residência. Dentre as discussões propostas na reunião, Dulce Monteiro (também médium da CESCJ), que mais tarde viria a se tornar a dirigente espiritual da FEC, incorpora a Cabocla Jandira. Ao se manifestar, a entidade acolhe atenta aos anseios, dúvidas e questões de todos os presentes, incentivando-os a prosseguir na jornada a que se propuseram com o plano espiritual. As discussões dos encontros centralizaram na ideia de criar uma nova instituição com a finalidade de dar continuidade às práticas aprendidas até então na antiga Sagrado Coração de Jesus. Entretanto, desde que tudo isto fosse equalizado com os conhecimentos da doutrina espírita e do evangelho de Jesus para sua propagação e elevação moral dos envolvidos. 56

Dentre os debates realizados, o nome da instituição levaria estes princípios aos quais se propuseram em seus planejamentos. No enlace entre espiritismo e cristianismo, alcançaram o nome Fraternidade Espírita Cristã, onde a palavra fraternidade estabelece as encruzilhadas com os dois pilares de sustentação da dinâmica da instituição:

Depois de várias sugestões, algumas até espirituosas, concordou-se que o nome da instituição deveria estar vinculado ao Cristianismo e o Espiritismo. Obviamente por serem, estes, parâmetros de nossas ações e compromissos com o plano espiritual. Como ‗fora da caridade não há salvação‘, o termo Fraternidade, como sinônimo de amor ao próximo, harmonia, paz e concórdia, compunha a tríade que daria nome a esta Sagrada Instituição. Estava lançada a pedra fundamental da instituição que passaria a se chamar Fraternidade Espírita Cristã – FEC e sua data de fundação em 20 de janeiro de 1998. (CABRAL, 2011)11

Posteriormente, enquanto as reuniões aconteciam na residência da Noemi voluntariosamente, a tentativa de encontrar um local que pudesse servir de sede para atender às demandas de trabalho do pequeno e aventureiro grupo era árdua. Ao encontrar um pequeno espaço cedido da propriedade de um amigo do grupo, foi dada a largada para se iniciarem os trabalhos da FEC. Em contato com Carlos Henrique Luzze, também médium da CESCJ, ele sugere um imóvel de sua propriedade. Em visita coletiva ao local disponibilizado para fundar a Casa, dentre os quais estavam reunidos Noemi, Dulce e Anselmo, novamente a espiritualidade da umbanda se faz presente. A Cabocla Jandira incorpora novamente. Ela mesma então inspeciona o espaço, direciona algumas orientações sobre o local, e a Cabocla comunica que ali, naquele pequeno espaço físico localizado no município de São João de Meriti – RJ (Baixada fluminense), estaria iniciando a missão de instituir a FEC, compenetrados na dedicação pela doutrina espírita:

O tempo urgia. Nesse mesmo momento, mais uma vez, a nossa irmã Jandira se fez presente por meio da médium Dulce e, após algumas considerações e análises sobre o ambiente em que se encontrava, sentenciou: este será o endereço da mais nova casa de Deus entre os homens. Este espaço passaria a se chamar Fraternidade Espírita Cristã – FEC. A partir desse momento, esse pequeno grupo de irmãos, em encontros quase que diários, se reuniam para repensarem o projeto a ser executado, definirem as prioridades, diretrizes e procedimentos a serem implementados para tornar a Fraternidade Espírita Cristã uma realidade aos nossos trabalhos. Pois bem, aos peregrinos do CESCJ foram necessários quarenta dias até que efetivamente a nossa Instituição, a Fraternidade Espírita Cristã,

11 Fraternidade Espírita Cristã: nossa história. Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2015. 57

abrisse oficialmente as suas portas a todos os irmãos encarnados e desencarnados, falangeiros12, socorristas, e assistentes. E assim, sob o amparo de nosso Senhor Jesus Cristo e de nossos mentores espirituais iniciamos os nossos trabalhos na Fraternidade Espírita Cristã, a FEC. (CABRAL, 2011)13

Figura 1: Grupo mediúnico da Fraternidade Espírita Cristã na década de 1990.

Fotografia: acervo da FEC.

Ressaltamos aqui, que a direção espiritual da Fraternidade14 afirma ser esta Casa uma instituição espírita cristã, e não casa de umbanda. Daremos foco sobre esta discussão no que tange a afirmação da diretriz espiritual da Casa mais adiante no terceiro capítulo. O ponto de contato em que tamanhos princípios de dominação eurocêntrica se enraízam com a umbanda, no caso deste relato de fundação da Casa, não está somente inserida no hibridismo da religião da umbanda. Fato é que apesar da forte presença do cristianismo e kardecismo nos conhecimentos compartilhados na FEC, a prática litúrgica de todos os trabalhos espirituais acontecem e passam sob direção e orientação espiritual das entidades de umbanda, o que na prática, se mostra em evidência em momentos pontuais das atividades desenvolvidas.

12 Espíritos que atuam na umbanda de acordo com determinadas linhas energéticas dos Orixás e que se organizam em grupos, que se denominam falanges espirituais. 13 Idem a citação anterior. 14 Fraternidade iniciada com letra maiúscula, para este trabalho, refere-se à instituição Fraternidade Espírita Cristã (FEC). 58

Para entendermos um pouco melhor a realidade e o contexto da Casa em que estamos mergulhando, entendemos que é uma instituição que prima pelo universalismo cristão, a partir da doutrina espírita, codificada por Allan Kardec. Neste sentido, a Casa se apoia no uso de práticas de atendimento espirituais diversos, se baseando na tríade do kardecismo (amor, caridade e fraternidade). Mas afinal, que seria este universalismo? Todos que ali trabalham, desempenham atividades de atendimento a pessoas com as mais diversas necessidades, seja da matéria ou do espírito. A FEC atua, no campo religioso, como Casa de caridade, com trabalhos de orientação, doutrinação e atendimento espiritual. Além disso, enquanto instituição social, desenvolve ações que atendam àqueles mais necessitados materialmente. Na questão dos trabalhos espirituais realizados, a Fraternidade desenvolve estudos doutrinários dirigidos por médiuns da Casa ou por algum guia espiritual incorporado no médium15. São organizados sequencialmente de acordo com a literatura kardecista. Tais estudos são direcionados aos frequentadores da Casa e ao grupo mediúnico. Quanto aos trabalhos de orientação espiritual, se dão através das consultas direcionadas aos frequentadores necessitados. As entidades (espíritos doutrinados) incorporam nos médiuns e acolhem os consulentes, ouvindo as suas dificuldades, problemas ou perturbações, depois os aconselham sugerindo algum tipo de tratamento espiritual ou atendimento social. No que tange aos trabalhos espirituais realizados para o tratamento dos consulentes, existem os mais diversos tipos. Acontecem correntes de mentalização (preces e cânticos), passes magnéticos (limpeza e energização de vibrações acumuladas no corpo físico e espiritual), sessões de comunicação com os espíritos através da psicografia e psicofonia16. Além disso, realizam também as sessões de desobsessão, que consiste num tratamento espiritual para neutralizar processos perturbadores entre encarnados e

15 Indivíduo que serve como instrumento de comunicação entre os espíritos encarnados e desencarnados, possuindo categorias que os classificam de acordo com suas faculdades mediúnicas, isto é, a forma como se comunicam, seja ela através da visão, audição, incorporação ou de forma sensitiva/intuitiva. Para melhor compreensão, ler: KARDEC, Allan. Médiuns escreventes ou psicógrafos. In: O livro dos médiuns. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2009, p. 279-286. 16 Tratam-se de formas de comunicação entre espíritos desencarnados para com os encarnados, onde se manifestam no médium de forma total com a incorporação (psicografia) ou parcial (psicofonia), ditando mensagens a serem registradas pela escrita através do médium. 59

desencarnados. Geralmente acontece quando uma pessoa apresenta algum incômodo e histórico de malefícios manifestados no corpo físico e vida material, que em alguns casos se dá pela presença de um ou mais espíritos interferindo na sua vida cotidiana, da qual se alimentam energeticamente de seus fluidos vitais, podendo levar o encarnado a doenças, inclusive à morte. Este tipo de tratamento é contínuo, leva tempo e é extremamente perigoso, pois segundo o que a FEC pratica baseada na literatura espírita, deve ser realizado em local seguro (com proteção espiritual orientada), com médiuns preparados e envolve um trabalho delicado de convencimento. O(s) espírito(s) obsessor(es) são convidados a se manifestarem pela incorporação e são doutrinados pelos dirigentes das sessões, podendo ser um médium ou uma entidade incorporada nele17. Outros tratamentos realizados na Fraternidade contam com as práticas de cura orientais, onde um grupo de médiuns da Casa se dedica a realizar sessões terapêuticas com reiki, shiatsu, acupuntura, cromoterapia, florais de Bach, auriculoterapia, etc. Para ser atendido por alguma dessas terapias, é necessário realizar consulta com alguma entidade e ser indicado pela mesma a esse tipo de tratamento. O tratamento é aplicado por médiuns não incorporadas que estudaram cursos de formação nas áreas de terapia holística e são acompanhados pela Cabocla Jandira.

Figura 2: Reiki. Fotografia: Tulani Pereira.

No que diz respeito à visão da FEC enquanto instituição social, realizam algumas pequenas ações que intentam ajudar pessoas e/ou outras instituições necessitadas, geralmente por conta de questões socioeconômicas. Desenvolvem campanhas para arrecadar mantimentos e roupas que se destinam a doações,

17 Este tipo de tratamento foi narrado por Vovó Cambinda, pois não pôde ser acompanhado na observação participante, pelos motivos os quais explicaremos mais adiante. 60

contando com a ajuda de médiuns, frequentadores e casas coirmãs (como preferem intitular). A partir desse apoio, realizam doações mensais de agasalhos e demais utilitários de vestuário, como também cestas básicas a famílias cadastradas ao programa da Fraternidade e acompanhadas pela direção da instituição material e espiritual. Fora a questão das doações, também desenvolvem palestras de temas sobre conhecimentos gerais que visam ampliar os conhecimentos de seus frequentadores sobre diversas questões do cotidiano, pois entendem que o acesso a informações pode desenvolver a construção de senso crítico, a parte intelectual individual e coletiva dos envolvidos nas atividades da Casa. Complementando o caráter filantrópico da FEC, há atendimento médico e odontológico gratuito aos mais necessitados, contando com profissionais voluntários que realizam consultas uma vez ao mês. Atualmente, possuem espaço e material para atendimento, mantendo uma sala para tal e outra separada com medicamentos destinados a doação quando sob prescrição médica; entretanto a entidade não conta com médicos ou dentistas voluntários no momento. Relatos afirmam que a Casa já teve alguns profissionais da área da saúde que já atuaram nesta atividade, porém agora, aguardam novos voluntários. Ainda sobre as dinâmicas realizadas na Fraternidade, desenvolvem-se eventos para arrecadação de fundos para manter a instituição financeiramente, pois trata-se de um espaço físico que é alugado, além de seus gastos corriqueiros como água, luz, gás e telefone. Neste sentido, realizam reuniões e outras ações para arrecadar dinheiro como rifas, almoços, encontros dançantes (chá da tarde, baile, etc.), cine pipoca, venda de livros espíritas e de lanches na cantina. Além disso, contam com doações mensais de membros beneméritos e outras instituições, das quais atualmente, encontramos uma casa espírita kardecista e uma loja maçônica.

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Figura 3: Evento com tema junino realizado pela FEC em 2015. Fotografia: acervo da FEC.

Neste sentido, compreender os diversos tipos de cuidado e atendimento (material e espiritual) destinado àqueles que se envolvem com a Casa, seja como frequentador/consulente ou membro/médium, corresponde a uma tarefa muito complexa, pois é muito difícil identificar com profundidade a plenitude das ações realizadas nesta instituição religiosa. Apresentam-se, tão diversas e híbridas, e ao mesmo tempo, completamente encadeadas e interligadas. Por outro lado, toda esta mescla de tratamentos e maneiras de comunicação com os espíritos, seja nos seus mais diversos procedimentos e formas de manifestação, provoca reflexão não apenas sobre a questão das relações que esta Casa estabelece com as ideologias de evolução kardecista, mas também com relação aos princípios que agrega com as intenções de caridade. Falamos de uma caridade que se mostra com eminência no atendimento predominante aos marginalizados – premissa tão evidenciada tanto no espiritismo kardecista quanto na umbanda – visto o quadro de frequentadores no bairro em que a instituição se localiza (negros e pardos, moradores da baixada fluminense e de baixa renda). Desta forma, também é possível dar enfoque a questão da concretização dos trabalhos espirituais que se realizam na FEC por esforço e direcionamento das entidades de umbanda, mesmo com o hibridismo que se apresenta nela, contudo que supera a afirmação do universalismo espírita e cristão. 62

2 - O corpo e suas heranças negras: ritual e jogo na performance afro-brasileira

Ao pensar no termo ―heranças negras‖, que ideia nos vem à mente? Qual subjetividade está no em torno dessa expressão? Ora, quando definimos a palavra ―herança‖, nos referimos a uma imagem simbólica de coisas, elementos materiais ou não, que são transmitidos de uma geração a outra, assim como uma mãe deixa uma herança ao filho: seja um imóvel, carro e dinheiro ou uma forma peculiar de preparar uma receita da família. Nossa abordagem, neste capítulo, tangencia a amplitude do imaterial. Portanto afirmamos o termo heranças negras enquanto um conjunto de conhecimentos, saberes, práticas, formas de pensar e se comunicar específicas, protagonizadas através do legado cultural de povos africanos. Levando em consideração limites territoriais, existem muitas áfricas dentro da África. Limitamos nossa referência então a partir dos povos submetidos ao processo de escravização. Ao citar questões ligadas à religiosidade afro-brasileira, sobretudo na umbanda, trazemos à tona as africanidades dos povos bantos e iorubás. Aproximando o tema central deste capítulo a partir do título apresentado, apontamos na escrita, as abordagens que reúnem as práticas rituais da umbanda, o corpo em suas potências artísticas e culturais através da performance. Inicialmente, na primeira seção, trataremos conceitos básicos como o de performance e suas categorias, e na segunda seção deste capítulo, a questão do ritual e do jogo observados do ponto de vista dos estudos da performance. Adentrando mais em nosso debate na terceira seção, trataremos as práticas performativas afro-brasileiras, introduzindo a questão das motrizes culturais, pontuando os seus principais aspectos. Evidenciamos o corpo e fazemos considerações sobre a tríade cantar-dançar-batucar na umbanda, alcançando a performance da Pombagira. Ademais, na quarta seção, outros acréscimos da etnografia em curso, contendo breves apontamentos da prática de pesquisa, conflitos e tensões da observação participante. Ainda nesta subseção, destacamos o apontamento sucinto referente a definição de categorias para descrição do campo, segundo a análise dos rituais do espaço observado. Na subseção seguinte, finalizamos com ênfase na questão da 63

performance da Pombagira, descrevendo um ritual específico da FEC a partir da observação participante (FERRETTI, 2013)18.

2.1 – Performance: o corpo em ação

Muitos significados são aplicados à palavra performance. Nas mais diversas atividades humanas, volta e meia escutamos a utilização do termo, por exemplo, quando alguém diz que a performance da bailarina foi esplêndida, que a performance do músico é tropicalista, ou até mesmo que a performance do atleta não foi tão boa porque não atingiu o recorde... Sim, usamos a palavra performance no sentido de validar a execução de uma tarefa, no funcionamento de uma atividade. Tanto afirmamos, que de fato, esta aplicação da palavra não deixa de ser verdade. Performance é tudo isso sim, mas vai um pouco mais além. Todavia, não se resume o entendimento de performance apenas enquanto desempenho, mas também enquanto ação preparada e desenvolvida a outros. Durante os anos sessenta do século vinte, no esforço para entender as práticas humanas, pesquisadores do campo das artes, antropologia e outras ciências sociais investiram nos estudos da performance como campo de pesquisa. Performance, mesmo ao se vincular a estas áreas de conhecimento, é por si só e antes de mais nada, o estudo do comportamento, a discussão sobre a ação demonstrada e expressiva, conforme nos afirma Schechner:

Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar. (SCHECHNER, 2003, p. 27)

Trata-se de uma tarefa desafiadora conceituar performance, pois seus significados tantos abrangem campo muito amplo no que diz respeito às suas categorias. Para que possamos compreender com mais nitidez, destaquemos o

18 Ainda sobre questões metodológicas nas pesquisas que contemplam o universo religioso afro-brasileiro, Sérgio Ferretti lembra que Eunice Duhran (1986, p. 17-37) propõe o uso do termo correlato ―participação observante‖ para os militantes que pesquisam em movimentos nos quais militam, (FERRETTI, 2013, p. 33), como é nosso caso. 64

aspecto da performance através do protagonismo do corpo enquanto produtor das ações e práticas performáticas. Nos múltiplos contextos sociais e culturais, toda ação do corpo está inserida de acordo com sua conjuntura, assim como toda produção humana se desenvolve a partir das possibilidades do corpo e de sua interação com o meio. O homem aprende a manipular recursos, desenvolve técnicas e produz conhecimentos. É neste sentido que a performance vem aplicar estudo a essas práticas. Por exemplo, nas ações cotidianas, nas profissões, nas relações interpessoais, etc (SCHECHNER, 2003, p. 28- 29). Uma professora de matemática do ensino fundamental que realiza seu planejamento, delimitando conteúdos didáticos e metodologias de trabalho a desenvolver em uma determinada turma, compete uma performance. Um político que diante da população de determinado local, realiza seu discurso com a intenção de se candidatar à determinado cargo do governo, também está realizando uma performance. Ou até no caso de uma pessoa que tradicionalmente faz uma receita especial e a serve para toda a família, também está a performar. Todas essas atividades são observadas do ponto de vista dos estudos da performance como comportamentos duplamente exercidos. Afinal, que de fato vem a ser isto? Schechner (2003) acrescenta que a performance é uma ação para qual nos preparamos, treinamos para que seja realizada diante de uma ou mais pessoas (2003, p. 27). Portanto, tais exemplos citados acima, correspondem a essas características. Neste sentido, para que sejam executadas, levam tempo para serem desenvolvidas, ou seja, ensaiadas. O comportamento duplamente exercido nada mais é do que a própria ―[...] redundância das ações cotidianas‖ (SCHECHNER, 2003, p. 27). Ao observar o caso da professora de matemática, a cada ano que passa, os alunos que chegam são novos e ela precisa ensinar novamente determinada fórmula para se chegar ao resultado. Quanto ao político, ao realizar seu discurso, sempre retoma a importância da educação, saúde e segurança para a população, por exemplo. Ou ainda na questão da receita, a adição de determinado ingrediente ou o ato de prestar atenção e desligar o fogão na hora certa para que a comida não passe do ponto. Todos estes são comportamentos duplamente exercidos. Analisando a questão do comportamento duplamente exercido aplicado por Schechner, destacamos que estas ações cotidianas são recortes de comportamentos 65

que se constroem repetidamente, no sentido de produzir determinado efeito: Ensinar a matéria matemática, conquistar votos dos eleitores e alimentar/impressionar a família com uma receita. Estes pedaços de comportamentos estão ligados a continuidade de ações que se rearranjam. A professora estuda durante anos para chegar à sala de aula, o político aprimora seus discursos a cada nova eleição e a comida não fica tão saborosa de início para que depois de algum tempo seja preparada adequadamente. Tais aspectos evidenciam o quão ritualística é a vida e igualmente necessária que assim seja sua estrutura. Sobre a questão do ritual, que abordaremos com mais detalhes adiante, entende-se que nossas práticas são cercadas de papeis da vida diária:

Rituais são uma forma de as pessoas se lembrarem. Rituais são memórias em ação, codificadas em ações. Rituais ajudam pessoas (e animais) a lidar com transições difíceis, relações ambivalentes, hierarquias e desejos que problematizam, excedem ou violam as normas da vida diária. (SCHECHNER, 2012, p. 49-50).

No âmbito da discussão sobre ritual, independentemente de serem sagrados ou seculares, mostram-se como formas de orientar e organizar as ações das pessoas, no sentido de se conectarem também a um estado coletivo, ao seu tempo e espaço físico/social. A vida cotidiana nos promove treinamentos que acontecem constantemente e de acordo com a rotina (ritual), a fim de promover ações que se relacionem com as circunstâncias e a vida de cada indivíduo. Desde atos individuais a eventos de larga escala podem corresponder a um comportamento duplamente exercido. Pensando neste caminho, as procissões, passeatas e manifestações públicas, por exemplo, também são performances que se valem de comportamentos duplamente exercidos. O que de fato é importante analisar, é que em todos os aspectos, o corpo protagoniza o ritual, seus modos de conduzir ações, restaurar comportamentos e produzir efeitos. No tocante às práticas humanas, diferentes ações podem ser investigadas pelos estudos da performance e serem analisadas a partir de categorias, que segundo Schechner podem se distinguir ou se sobreporem. A seguir, delimitam-se oito tipos de performance: na vida diária, nas artes, nos esportes e outros entretenimentos populares, nos negócios, na tecnologia, no sexo, nos rituais (sagrados e seculares), na brincadeira. Richard Schechner (2003, p. 30) delineia que estas categorias não foram criadas com o intuito de limitar o campo, até porque se analisarmos do ponto de vista da vida diária enquanto tipo de performance, poderíamos incluir nela todos as outras 66

sete situações apontadas por ele. Contudo, há de se destacar que estas categorias teóricas foram delimitadas para situar o largo universo de possibilidades de estudo e análise das práticas performativas na sociedade. Conforme já exemplificado, a performance na vida diária se dá nas relações sociais estabelecidas a partir do cotidiano, assim como afirmamos na questão do preparo da receita. Não só na culinária, mas em tantos outros aspectos do dia-a-dia, entender os modos de fazer de uma ação cotidiana confere ao corpo um preparo, muitas vezes inconsciente, sem compreensão real de que determinado comportamento está sendo aprendido e reproduzido. Na questão das artes, torna-se um universo dentro de outro, pois da mesma maneira em que a vida diária pode englobar todos os tipos de performance, o campo artístico se torna igualmente potente pela capacidade de mover as coisas de lugar. A arte possibilita abordagens das mais diversas questões da vida, seja através de uma imagem, da música ou do corpo em cena. Ela sintetiza e reflete pensamentos e práticas de um contexto, com as quais os envolvidos na performance, se dispõem ao preparo para que se construa e apresente ao público ou envolvidos no entorno. Com relação aos esportes, cabe aqui em nossa abordagem destacar a ênfase na questão das práticas corporais como viés de eficácia nas atividades que se realizam nos esportes. Esta categoria é pouco estudada por pesquisadores dos estudos da performance, assim como o sexo, entretanto, seria uma boa oportunidade de busca pelo entendimento deste tipo de performance para além do ideal de competição que situam o treinamento e a repetição de suas práticas. Os negócios exemplificam bem o que é um comportamento duplamente exercido, sendo esse muitas vezes realizado de forma consciente, pois a questão do poder de persuasão e liderança são características que se mostram necessárias às relações de negócio. A ―chave do negócio‖ é a eficiência e a máxima produtividade. No campo comercial por exemplo, para que os negócios cumpram o êxito necessário, o vendedor aprende com as falhas, observa outros colegas de trabalho, segue as orientações dadas por seu chefe... Neste caminho, conscientemente ―lapida‖ seu poder de convencimento e ensaia sua performance de venda do produto. Na tecnologia, observamos os recursos tecnológicos como uma extensão da própria performance humana, pois na verdade, são criados com a finalidade de produzir eficácia diante das necessidades do homem, desempenhando efeitos simbólicos e/ou resultados que se organizam no dia-a-dia das pessoas, respondendo às expectativas e demandas do mundo globalizado. 67

O que significa a frase ―ser bom de cama?‖. No sexo, a performance é observada a partir da evidenciação do prazer: seja o sexo para agradar o parceiro, a si próprio ou ambos. Todos conferem uma relação de ação para o objetivo/finalidade: proporcionar o prazer desejado. Seria de extrema importância a motivação de estudos dessa categoria com relação à atuação do corpo e representações dele, principalmente no tocante das relações de gênero. Nos rituais, evidenciam-se as práticas – entre os animais e os homens – encaradas como filetes de comportamento, que fixam as diferentes etapas da vida, constroem sentidos e comunicam significados, além de equilibrar possíveis conflitos da coletividade. Nos rituais humanos, o efeito gerado a partir das atribuições dadas a cada ritual organiza a vida e seus acontecimentos, seja no âmbito secular (vida diária) ou sagrado (vida religiosa). Na brincadeira, nossa palavra-chave se chama possibilidades. Mesmo num ―faz de conta‖, a performance aparece com uma gama de regras que compõem a execução de determinado movimento, ação ou exibição. No entanto, é na brincadeira que vislumbramos a flexibilidade do comportamento, onde não deixa de ser duplamente exercido, mas também faz com que seja único, pelo fato de que ―[...] pedaços de comportamento podem ser recombinados em variações infinitas‖ (SCHECHNER, 2003, p. 28).

2.2 – Ritual e jogo na performance afro-brasileira

A questão da performance, por estar atrelada a um comportamento restaurado, que é transmissível e repetido na vida diária, possui uma íntima ligação com a ritualização (SCHECHNER, 2012, p. 49). Na verdade, o ritual consiste em partes, faixas de comportamento que reprisados, produzem os sentidos para diversas relações e formas de organizar a vida social. Neste sentido, torna-se relevante realizar algumas considerações sobre a questão do ritual para nosso estudo. De acordo com o argumento de Schechner, podemos pontuar que ―os rituais são pensamento em/como ação‖ (2012, p. 58). O autor reitera inclusive, que a ritualização não expressa apenas uma conexão entre comportamento humano e o sagrado, conforme a questão do ritual no âmbito religioso, mas que exprime as ações de todas as circunstâncias do homem. Desta forma, os 68

rituais se fazem presentes na necessidade de atribuir sentidos entre ação ritual e pensamento, seja entre ou fora da vida social cotidiana. Entende-se que o ritual está para além das práticas do homem. Destaca que homens e animais procuram na ritualização, por exemplo, formas de se comunicar ao atribuir significados para gestos, posturas e ações. Animais, estabelecem em seus próprios corpos, práticas que transmitem significados para permanência, sobrevivência e conquistas. Em contrapartida, o homem, diferentemente dos animais, constrói sua forma particular de restaurar seus comportamentos.

Os rituais humanos vão além da ritualização animal em dois pontos- chave. Rituais humanos marcam um calendário da sociedade. Eles transportam pessoas de uma fase da vida para outra. Os animais não são conscientes da puberdade, páscoa, casamento ou morte enquanto ―passagens da vida‖. Animais não confabulam sobre vida após a morte ou a reencarnação. Animais não fazem juramento de fidelidade ou trocam presentes de aniversário. Os rituais humanos são como pontes sobre as águas turbulentas da vida. (SCHECHNER, 2012, p. 63)

Neste sentido, observamos que para além do corpo, o ritual humano é uma continuação do ritual animal. O homem reproduz comportamentos de acordo com sua cultura e cenário sócio-histórico mas, se respalda em outras maneiras de comunicar suas finalidades para além de seus movimentos: adornando, usando objetos, símbolos e vestindo a aparência de seus corpos. Neste sentido, encara os ritos de passagem como uma sucessão de passagens de um estágio da vida a outro. No que diz respeito ao consenso entre a performance e o ritual, a sensação que o comportamento duplamente exercido nos transmite é a de estado de permanência organizada:

Rituais oferecem estabilidade. Eles também ajudam as pessoas a realizar mudanças em suas vidas, transformando-as, fazendo-as passar de um estado ou de uma identidade à outra. Mas o que dizer dos próprios rituais? Eles dão a impressão de permanência, de ―ter sempre sido‖. Essa é sua face publicamente representada. (SCHECHNER, 2012, p. 83)

Além de interpretar o ritual como estágios da vida em circunstâncias religiosas, o corpo participa e atua na concepção do ritual no aspecto artístico, quando se apresenta enquanto performance estética. Sobre a questão artística há de se enfatizar que em muitas práticas performativas, como as afro-brasileiras em evidência nesta pesquisa, utilizam a dança, o teatro e a música, por exemplo, como linguagens 69

integradoras de seus rituais sagrados. Mas então, quando é que sabemos quando a performance é ritual ou estética (artística)?

A mudança de um ritual para performance estética ocorre quando uma comunidade participativa se fragmenta, tornando-se ocasional, com clientes pagantes. O movimento da performance estética para o ritual acontece quando um público formado por indivíduos se transforma em uma comunidade. As possibilidades de movimento em qualquer uma das direções estão presentes em todas as performances. (SCHECHNER, 2012, p. 83)

Ao observarmos o argumento de Schechner, analisamos tal situação do ponto de vista do espaço do campo. Porque a performance da Pombagira e tantas outras que acontecem na FEC são performances rituais? Ora, porque de fato, não só está explícita a ritualização de comportamentos com uma finalidade previamente definida – principalmente no aspecto do transe, em que o médium é transportado para outro estado (passagem) – e pelo espaço em que a performance ocorre, mas também pela questão da participação dos que estão no entorno deste acontecimento de forma integrada, diferente de uma plateia em um teatro que observa a performance como expectador, como pagante e com um olhar crítico, descrente de uma ligação sagrada. Em contrapartida, ao analisar a questão da performance atrelada ao ritual no sentido de dar organização às práticas cotidianas, que função teria o jogo? Que relação este estabelece, junto ao ritual, para as práticas performativas? Na obra de Schechner organizada em português por Zeca Ligiéro, encontramos uma citação de Victor Turner, que apelida o jogo de ―o coringa do baralho‖ (2012, p. 92). Ora, interpretando esta imagem simbólica do coringa, que possibilita mudar a jogada, torna-se mais inteligível nosso entendimento. Conforme nos indica Schechner, ao confirmar a afirmação de Turner, o jogo vem nos trazer a sensação de estar ―fazendo algo que não é pra valer‖ (2012, p. 91). Ambos, ritual e jogo são como órgãos vitais para a existência da performance. O comportamento restaurado é estruturado pelo ritual, mas ele é condicional. E quem dá a possibilidade de ser ou não ser inteiramente rígido a todo tempo é o jogo.

O ritual tem seriedade, ele é o martelo da autoridade. O jogo é mais livre, mais permissivo – afrouxando precisamente aquelas áreas onde o ritual está pressionando, flexível onde o ritual é rígido. [...] O jogo é a faca de dois gumes, ambíguo, se move em diferentes direções simultaneamente. (SCHECHNER, 2012, p. 91)

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De forma casual ou formal, o jogo vem acrescentar à performance a questão da espontaneidade. O jogo cerca o comportamento duplamente exercido com o inesperado. Retomemos o caso da receita, explicitado como performance da vida diária. Suponhamos que esta receita seja um bolo tradicional com um ingrediente secreto da família. A avó, matriarca da família, secretamente ensinou para a mãe. A mãe por sua vez, também ensinou à filha. Atualmente, quem performa para sua família fazendo o bolo é a filha. No caso desta performance, algumas possibilidades de mudança podem acontecer: o modo de adicionar os ingredientes, a quantidade de cada um, a forma de mexer a massa do bolo, o tempo em que o bolo fica no forno... sem falar das condições externas. Será que no tempo da vovó, o forno era à lenha? Será que a filha, ao preferir ser mais rápida usando uma batedeira elétrica, corre o risco de o bolo ficar diferente por não bater a massa com uma colher? Ou ainda que o ritual seja rigidamente seguido, e se de repente o gás do fogão acabar bem na hora em que o bolo está assando? Todas essas possibilidades são aspectos do jogo, que dão frouxidão e flexibilizam as circunstâncias, e mesmo assim, não descaracterizam o ritual. Ainda que os planos sejam mudados no em/entre, a performance não se deslegitima. Além disso, temos a sensação de ―como se‖. O ser humano, em muitas situações da vida, usa partes do jogo como artefato de sua performance, na atividade de ―fazer crer‖ (SCHECHNER, 2012, p. 95), mistura-se ao ritual, criando as nuances entre a seriedade e a jocosidade. Tomemos como exemplo um vendedor de canetas na entrada de um prédio onde se realizará, em poucos minutos, a prova de um concurso público. O vendedor anuncia: ―Caneta preta e caneta azul para prova! Caneta da sorte... comprou, passou!‖. A performance se situa na finalidade de vender o produto caneta, se valendo da brincadeira e da possibilidade do jogo, tornando seu ritual – venda de canetas – uma atividade em estado de humor (flexibilizada). Mostra a caneta ―como se‖ fosse a salvação dos candidatos à vaga do concurso e sua tarefa de ―fazer crer‖ que o necessário era adquirir a caneta para passar na prova. Se isto é jogo, então o que é jogar? Necessitamos aprofundar e problematizar um pouco além. O jogo disponibiliza a possibilidade de sermos criativos, explorar o regulado, deslizar nas escolhas e sentirmo-nos ―como se‖, então o jogar é o desdobramento desse leque em expressão? Schechner denota para duas breves categorias de jogar. 71

A primeira categoria especificada pelo autor é o tipo de jogar restrito às regras. Então, os jogadores têm conhecimento das regras e as seguem rigorosamente, aceitando suas estipulações. Já na segunda categoria, trata-se de uma forma de jogar com o inesperado, onde nada pode ser previsto e as regras podem mudar a qualquer momento.

Jogar pode ser física e emocionalmente perigoso. E porque o é, os jogadores precisam se sentir seguros, procurando espaços e momentos especiais para o jogo. Os perigos de jogar são mascarados pela assertiva de que o jogo é ―divertido‖, ―voluntário‖, ―efêmero‖, ou uma ―atividade de lazer‖. (SCHECHNER, 2012, p. 96)

Na verdade, o extraordinário não está somente na possibilidade de mudança, mas no risco que o jogo proporciona. Nem tão rígido, nem tão flexível. Nem muito um, nem tanto . Neste sentido, entre as tensões do ordenamento e do imprevisível, ritual e jogo caminham juntos. São proporcionalmente indispensáveis para o equilíbrio da performance. Já o jogar, como o próprio Schechner afirma, é estado de humor inseparável dos jogadores.

2.3 – Performance afro-brasileira: o cantar-dançar-batucar

Antes de iniciarmos nossa abordagem sobre a performance afro-brasileira, falaremos brevemente sobre a dimensão do corpo nos estudos da performance e a importância desse corpo para o africano. Ligiéro (2011) diz que a performance permite olhar para ela criticamente e possivelmente vislumbrar as práticas culturais diversas da sociedade como reflexo dos aspectos da vida cotidiana. Caminhando neste percurso, o corpo protagoniza em todos os aspectos notados pelas ciências, sobretudo nas ciências humanas. No tangente à performance, o corpo faz vínculo entre toda produção e reflexão humana. Aderindo também às contribuições do filósofo Renato Noguera que afirma:

A filosofia afroperspectivista define o pensamento como movimento de ideias corporificadas, porque só é possível pensar através do corpo. Este, por sua vez, usa drible e coreografias como elementos que produzem conceitos e argumentam. (NOGUERA, 2014, p. 174)

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Para a afroperspectiva, o corpo é mais que carne e osso, extravasando os canais de percepção sobre o mundo ao seu redor ou um apanhado de sistemas que impulsionam a vida orgânica em seu funcionamento. Ele é um todo complexo, que se comunica com tudo que há. Reiterando a fala sobre Exu e o bara do corpo, este corpo de fato é uma encruzilhada. O corpo negro é um encontro, que assim como a encruzilhada, atravessa caminhos. Encontra-se com o outro e com a natureza, e não somente, o corpo é visto como parte da natureza e igualmente sagrado. O corpo é canal de comunicação com as forças da natureza, que por sua vez, estão integradas a plenitude de um todo, feito pequenas centelhas divinas que compõem o universo. Em se tratando de performance, a autora Sandra Haydée Petit (2015), enfatiza a dança como canal de comunicação desse protagonismo do corpo no mergulho à ancestralidade afrodiaspórica. ―Dançar, na perspectiva afroancestral aqui tratada, remete a uma visão circular do mundo, na qual início e fim se encontram em eterna renovação‖ (PETIT, 2015, p. 72). Por isso o espaço sagrado/religioso para a cosmovisão afrodiaspórica está centrada, mais do que em qualquer assentamento ou terreiro, no próprio corpo. É ele quem recebe o Orixá, é ele quem dança para e com os deuses. É através deste corpo que o legado de saberes será transmitido através da oralidade, do canto, da dança. Obviamente, a performance afro-brasileira se valerá, entre tantos aspectos, nessa dimensão de corpo. A partir do entendimento construído em nossa escrita, fica fácil ver a encruzilhada de cima e se torna nítida essa circularidade que junta início e fim se aproximarem tanto de Èsù/Exu. Por que as práticas performativas afro-brasileiras se valem de tanta riqueza artística expressada no corpo, que mistura sagrado e profano, num curto tempo-espaço? Para aprofundarmos um pouco mais essa questão, trataremos do conceito de motrizes culturais para compreender esta complexidade.

O conceito de motrizes culturais será empregado para definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas, e se refere à combinação de elementos como dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações no mundo afro-brasileiro. (LIGIÉRO, 2011, p. 107)

O conceito de motrizes culturais vem agregar no sentido de perceber que a questão da existência de uma ―matriz cultural‖, que legitima uma identidade afro- 73

diaspórica, está para além disso. Está para além do entendimento da matriz africana como se fosse apenas uma, pois vem problematizar também a questão das práticas performativas, possibilitando questionar e compreender com mais profundidade essas referências étnicas múltiplas. Afinal, se não ―matriz‖, porque ―motriz‖? Simplesmente pelo fato de que ―as dinâmicas das motrizes culturais processam o corpo do performer19 como um todo‖ (LIGIÉRO, 2011, p. 110). Se até então a palavra matriz nos remete a ideia de fonte ou origem de algo, a palavra motriz nos aproxima dessa dinâmica do corpo, ou seja, do movimento. Sobre o conceito de motrizes culturais africanas, Zeca Ligiéro afirma que:

O adjetivo motriz, do latim motrice de motore, que faz mover, é também substantivo, classificado como força ou coisa que produz movimento. Portanto, quando procuro definir motrizes africanas, estou me referindo não somente a uma força que provoca ação, mas também a uma qualidade implícita do que se move e de quem se move; neste caso, estou adjetivando-a. Portanto, em alguns casos, ela é o próprio substantivo e em outros, aquilo que caracteriza uma ação individual ou coletiva e que a distingue das demais. (LIGIÉRO, 2011, p. 111)

Aderindo à perspectiva de Ligiéro através do conceito de motrizes culturais, podemos notar, nas mais diversas práticas performativas afro-brasileiras, que o performer corporifica sua história, memória e ancestralidade. Esta condição de corporificar vem se tornar uma qualidade inerente ao corpo, na dimensão da restauração de comportamentos ancestrais afrodiaspóricos. Com relação às motrizes culturais, em que sentido elas conversam com as dinâmicas da performance afro-brasileira? Há de se ressaltar que a questão das performances afro-brasileiras, assim como em tantas outras performances negras, possui a incrível característica de agregar a brincadeira e o ritual em suas práticas, de forma que atuem conjugadas. Zeca Ligiéro (2011) na obra ―: estudo das performances brasileiras‖, aponta para algumas questões de grande relevância para que analisemos as práticas performativas afro-brasileiras: O emprego dos elementos canto, dança e música; a utilização do ritual e jogo de maneira conjunta, seja simultânea ou não; o culto a divindades e entidades ancestrais através do culto ou do transe; a presença de um mestre, isto é, uma liderança que preserva o conhecimento a ser transmitido por

19 Performer é uma palavra de origem da língua inglesa. Na regra gramatical do idioma, a partícula no final er indica a transformação do verbo em adjetivo, como por exemplo em dance: do verbo dançar, dancer: dançarino. Logo, perform: do verbo performar e performer: aquele que realiza performance, performante. Mesmo assim, nos estudos da performance, utilizamos a palavra em inglês. 74

meio dos ritos de iniciação; a utilização do espaço em roda, cercado por expectadores no entorno. A pesquisa etnográfica em curso dialoga de forma direta no sentido de perceber que de acordo com os apontamentos do autor, o espaço do campo estudado (FEC), independentemente das diferentes correntes ideológicas e religiosas que estão afinadas à instituição, trata-se de um local de práticas performativas afro-brasileiras. Ligiéro (2011, p. 123) inclusive, ratifica isto em suas obras ao apresentar a religião da umbanda enquanto uma das práticas performativas afro-brasileiras, inclusive destacando a questão do ritual para povo de rua (Exus e Pombagiras) como um exemplo explícito de união entre ritual e jogo. Com relação às características destacadas pelo autor, adentraremos posteriormente nestas questões mais focadas na discussão sobre o campo, entretanto, reconhecemos a importância do canto, dança e música enquanto componentes artísticos que compõem o ―combo‖ ritual e jogo na umbanda. Em tratando-se destes três aspectos, Ligiéro (2011) informa que esta tríade (cantar-dançar-batucar), expressão originalmente criada pelo filósofo e pesquisador congolês Fu-Kiau20, contempla as características da performance afro-brasileira.

Ao considerar a junção das artes corporais às musicais e, sobretudo, acrescido do uso do canto como algo simultâneo e percebido como uma unidade dentro da performance africana, Fu-Kiau destaca, um dispositivo que, sem dúvida, continua sendo característico das performances da diáspora africana nas Américas – não é possível existir performance negra africana sem este poderoso trio, e o mesmo é aplicável às performances afro-brasileiras. (LIGIÉRO, 2011, p. 108- 109)

Ao refletir sobre o argumento de Ligiéro, entendemos que este trio funciona como uma unidade indissociável, que atua de maneira conjunta e/ou transversal, onde a dança, a música e o canto se interligam, se misturam, se aglutinam. Retomando a questão do corpo e seu protagonismo na performance, é importante perceber que esta ênfase dada ao corpo é ratificada em sua máxima expressividade no tocante da performance afro-brasileira. Estes aspectos evidenciam práticas presentes no slogan ―tem que dizer no pé‖, no bater ritmado das palmas ou no batuque, cuja forma de mostrar esses recortes de comportamento reafirmam uma identidade afrodiaspórica, interpretadas genuinamente brasileiras. Pensar neste triângulo de aspectos que estrelam unidos uma performance

20 Ver FU-KIAU in THOMPSON, Robert Farris. Face of Gods (1993) e Kongo gesture (2003). Indicações coletadas na obra de Ligiéro (2011). 75

das heranças negras referenciadas remonta uma prática ancestral vinda de além-mar nos navios negreiros. Ao repensar na questão da dinâmica dos rituais sagrados a partir do conceito de motrizes culturais aplicado às práticas performativas afro-brasileiras, e tendo em vista a presença do cantar-dançar-batucar em sua prática, podemos considerar que a religião da umbanda – centralidade de nossa pesquisa – trata-se de uma motriz cultural que engloba faixas de comportamento que transportam o performer para um estado coletivo, espaço-tempo extra-cotidiano e ancestral. Quanto aos aspectos apontados por Zeca Ligiéro no tocante a umbanda enquanto motriz cultural, destacamos a presença do ritual e do jogo como um plus, um acréscimo que empresta autenticidade às performances afro-brasileiras. Tal característica, presente em tantas tradições populares brasileiras, descreve uma forma muito peculiar de produzir efeitos e sentidos, reunindo a brincadeira e o ritual, muitas vezes simultaneamente no mesmo espaço. Falar de brincadeira no ritual e/ou ritual com jogo, ninguém melhor que Exu para agregar esses dois elementos em sua performance com tanta propriedade. No ritual da umbanda para a Exus e Pombagiras, popularmente conhecidos como de ―povo de rua‖, o espaço sagrado do terreiro é reconfigurado na imagem da encruzilhada. Apesar da umbanda receber influências variadas e não preservar a questão de seu culto como puro e unicamente africano, ela potencializa no ritual de Exus e Pombagiras, como uma viagem ao espaço da encruzilhada na performance: as entidades fumam cigarros ou charutos, consomem bebidas alcoólicas, usam roupas características de sua existência mítica, petiscam guloseimas... o ambiente possui decoração própria que transporta seus médiuns, através do transe, onde as entidades se manifestam, dançam, cantam e gargalham acompanhados de palmas e toque de atabaques ritmados. Enquanto isso, escutam e aconselham seus consulentes, que na relação de íntimos amigos e camaradas, conversam sobre os diversos problemas do mundo dos humanos. E o que dizer da performance das Pombagiras na umbanda? Antes de mais nada, é importante dizer que tanto o ritual para Exus, quanto para as Pombagiras se configura de acordo com as particularidades de cada casa de umbanda, e se organiza segundo suas premissas religiosas, ou até mesmo as da liderança que possuem. Todo o conjunto cênico promovido na performance estabelece conexões com as demais linguagens artísticas, movimentadas com o triângulo cantar-dançar-batucar. O 76

ambiente do terreiro possui decoração característica das Pombagiras, geralmente com o uso de rosas, cujo elemento é frequentemente utilizado por elas e é associado a imagem desta entidade feminina. Quanto aos figurinos, as Pombagiras apresentam nas saias rodadas e longas o seu ―cartão de apresentação‖. Podem utilizar as mais diferentes combinações de cores, pois cada Pombagira traz seu fundamento, entretanto, a cor vermelha e/ou preta é algo recorrente em muitos dos seus figurinos. Transitam de pés descalços pelo terreiro, algumas até, utilizam joias como anéis, colares, brincos e pulseiras entre outros adornos para o corpo. Seus objetos favoritos são os cigarros, algumas vezes acompanhados de luxuosa cigarrilha, rosas nas mãos e taça transbordando de bebida alcoólica. Outros apetrechos podem aparecer dependendo da entidade. As Pombagiras Maria Navalha, por exemplo, podem carregar uma navalha e/ou um chapéu panamá em seu figurino. No caso das Pombagiras ciganas, podem usar uma pandeirola, punhal, tarô ou baralho cigano. Algumas Pombagiras gostam, por exemplo, de usar perfume e assim por diante, sempre trazem consigo algum elemento que tenha uma representação simbólica de sua imagem mítica. Quando invocadas através do ponto cantado, as Pombagiras se manifestam incorporando nos médiuns utilizando algum comportamento usual de seu ritual. Algumas se atiram ao chão, caindo ou deslizando de joelhos e curvando-se com o tronco para trás. Além disso, as Pombagiras realizam o anúncio de sua chegada com muita gargalhada. Giram, dançando em movimentos sincopados, exibindo poses e olhares intimidadores. No tocar dos atabaques, os ogãs[26] desenvolvem células rítmicas muito próximas às do samba por exemplo, executadas por três tambores (não obrigatórios na quantidade ou uso), sendo um grande (grave), um médio (médio) e um pequeno (agudo), onde coordenam a base do toque, a cadência, os contratempos e improvisações acompanhadas de palmas. Realizam cantigas que versam sobre fundamentos das Pombagiras e atributos que remontam sua imagem mítica, ou ainda que pedem ajuda e proteção dessa entidade. Ainda sobre o ponto cantado, observemos:

Tentaram me matar na porta do cabaré. Tentaram me matar na porta do cabaré. Ando de noite, ando de dia, só não mata quem não quer! Ando de noite, ando de dia, só não mata quem não quer! (Ponto cantado de Pombagira, domínio público)

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Outro aspecto do ponto cantado e sua relação com o ritual e o jogo, é que na letra do ponto, um ―recado‖ pode ser dado subjetivamente. A famosa ―indireta‖ pode ser versada e rimada, ou até improvisada e referir-se a uma postura ou atitude de alguém diante de determinada situação, fazendo algo sério parecer brincadeira. Durante a execução da performance, é na dança, no movimento encenado ou num ponto cantado que a Pombagira mistura o ritual e a brincadeira. Enquanto exibe beleza e sensualidade conforme manda seu figurino, adornos e cenário, subverte as regras e afrouxa as amarras do ritual, ao mesmo tempo em que atende aos pedidos de seus consulentes, realiza seus feitiços, curas e aconselhamentos. Aqueles que se encontram no entorno também são parte do ritual. Apesar de não estarem performando, encontrando-se na transportação para um outro ―eu‖ através do transe, assumem a perspectiva de expectadores e se integram àquele coletivo observando, batendo palmas, cantando, consultando alguma entidade ou até mesmo o contrário, quando a Pombagira vai até o consulente sem motivo aparente, lhe oferece uma bebida e de repente começa a dar recados, conselhos ou até mesmo um puxão de orelha. Tudo isso proporciona o que de fato conduz todos os envolvidos a um estado de coletividade e os localiza numa relação temporal e espacial própria do terreiro. Para finalizar esta seção, reiteramos que no tocante ao comportamento duplamente exercido, como no caso da performance da Pombagira. O que de fato nos interessa nos estudos da performance (LIGIÉRO, 2012, p. 69) para análise, é de que maneira ela permeia uma reflexão sobre a interatividade dos corpos, performantes e ―expectadores‖, vinculando-os a um estado coletivo, extravasando por entre canais de conexão nas mais diversas vertentes artísticas, que nos permitam discutir sobre este espaço que é sagrado e que entrecruza ritual e jogo no mesmo local. A partir disso, podemos nos ater aos aspectos que permeiam a performance na umbanda e, consequentemente, da Pombagira enquanto uma recuperação de práticas ancestrais afrodiaspóricas que reconfiguram o cenário cultural brasileiro, mantendo-se resistentes aos sistemas de dominação branca e colonizadora.

2.4 – Como se fosse a primeira vez: entrando no campo (des)conhecido

Nesta pesquisa algumas situações tão simples para o pesquisador são, ao mesmo tempo, observadas com complexidade. Essa binaridade ou contradição, é feito 78

Exu nos mostrando como tudo é questão de ponto de vista. Vejamos o seguinte desafio: como realizar a etnografia de um espaço religioso cuja pesquisadora está inserida há anos neste local? Trata-se de uma questão delicada, pois ao passo que se torna instigante e valorosa pelo convívio, acessibilidade e conhecimento vivencial, é também ilusório por tanto tempo de incorporação e reprodução de comportamentos.

Assim como o pesquisador observador silencioso ou lurker implica limitações e benefícios para os resultados da pesquisa, o chamado insider (Hodkinson, 2005) também compromete a narrativa etnográfica, com a inserção de elementos autobiográficos e seu pré- conhecimento e/ou participação da cultura observada (AMARAL, 2010, p. 131)

Fato é que não há ―receita de bolo‖ infalível para que não se cometa erros e garanta acertos. Fato é, também, que não se trata de avaliar ou atribuir juízos de valor, mas sim discutir sobre a pesquisa, elucidar epistemes e propor reflexões. Não nos atrevemos a explicar a totalidade da realidade de uma comunidade religiosa, até porque os dados gerados compõem uma leitura realizada a partir do olhar de uma pesquisadora. Preferimos emitir um sistema complexo de práticas, segundo uma perspectiva, pois não há como escapar dela, e nem queremos. É sabido que as perspectivas do passado sobre metodologias de pesquisa implicavam em questões de imparcialidade para qualquer estudo, como sendo uma exigência importante e necessária, no sentido de equilibrar questões epistemológicas e metodológicas às práticas de pesquisa. Por outro lado, ao analisarmos o contexto do terreiro que nossos pés pisam, problematizamos o seguinte: de fato, essa racionalidade e rigidez que ecoam nas práticas de pesquisa, não seriam reflexo de uma colonialidade enraizada nos antigos padrões acadêmicos? Estamos acostumados e reproduzir formas de pensar do dominador, por outro lado, se pensarmos numa corrente diferente, esta pesquisa exibe o outro lado da moeda ao evidenciar exatamente o contrário, ao possibilitar o pesquisador a falar de seu lugar e do que conhece, vivencia e convive a tantos anos. Em breve resenha, Valladares (2007) realiza sucinto apontamento sobre a observação participante, contribuindo para nossa pesquisa ao tratar da relação com o campo e dificuldade de sua realização. A observação participante, implica num processo lento, em que o pesquisador não possui total controle da situação. Neste sentido, é extremamente importante estabelecer relações consistentes, a fim de que possam lhe ceder informações 79

valiosas sobre o campo, dosadas ao uso do bom senso de saber a hora certa de intervir e perguntar (VALLADARES, 2007). De fato, não estamos presos a um estado de neutralidade/imparcialidade e assumimos esse posicionamento. Por isso, destacamos a importância de estar atento aos mínimos detalhes, saber aguçar os sentidos (VALLADARES, 2007), conforme também ressalta Roberto Cardoso de Oliveira (2000) na importância de olhar, ouvir e escrever como fatores determinantes da pesquisa social. O olhar e o ouvir sendo exercitados juntamente ao escrever:

Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar (OLIVEIRA, 2000, p. 31-32)

Estar atento às minúcias é observar tudo e qualquer coisa com total importância creditada. Dilatar a percepção é esperar que a qualquer momento algo possa ocorrer; o esperado (já conhecido) é observado nos mínimos detalhes, como se nunca tivesse sido observado antes, e tudo tem de ser registrado no caderno de campo. Essa sistematização acessa um estado de atenção que faz com que o observador participante, mas para nós aqui participador observante, mesmo que inserido e conhecedor do espaço e rituais, desde o momento em que se reconhece realizando sua pesquisa, passe a olhar para tudo e todos como se fosse a primeira vez. Buscando encontrar uma maneira de equalizar a experiência do campo e o distanciamento necessário, nos valemos do argumento de Melucci (2009) que trata da discussão sobre a auto-reflexividade. Entre tantas complexidades na pesquisa social, cabe ao pesquisador não só observar o campo do seu ponto de vista, mas também ter a capacidade de se colocar no lugar do outro, pois as conversas entre esses pontos de vista vão incorporar o discurso científico. ―O tema da reflexividade evidenciou que os conteúdos de uma narração não são independentes dos modos de sua produção‖ (MELUCCI, 2009, p. 15). Isto ressalta que tanto a escrita quanto a prática de pesquisa são igualmente importantes e integradas. Sem falar que o discurso que se transforma em conhecimento através da linguagem, segundo o autor, depende do lugar que o observador ocupa na pesquisa. Após este sobrevoo e para melhor entendimento, procuramos dar pano de fundo à nossa pesquisa com breves apontamentos partindo do registro em caderno de campo. Na primeira subseção, pontuamos também três categorias a se 80

desenvolverem e que disponibilizarão um panorama de todo o conjunto de práticas realizadas na FEC. São elas: tempo, espaço e dinâmica. Na questão do tempo, escrevemos indicando a organização do calendário interno e dos afazeres da Casa a partir dele. Em quais dias da semana os membros se encontram e realizam atendimentos, além dos eventos, rituais e como os organizam. Na categoria espaço, apresentamos de que maneira o espaço físico é dividido segundo funcionalidades para socialização, atendimento/tratamento espiritual, realização de rituais e outros espaços de trânsito, livre acesso ou restrito. Destacamos como a estrutura desses espaços estão repletos de hibridismos e imagens. Quanto à categoria dinâmica, sintetizamos todo o sistema de trabalho conjugado às categorias tempo e espaço, apontando as hierarquias, funções e relações de poder envolvidas na atuação religiosa e filantrópica da Casa. Utilizaremos também a etnografia na subseção seguinte para descrever sucintamente um dos rituais realizados na instituição escolhida para análise, uma vez apresentada a história da instituição e seu perfil enquanto espaço religioso. Nesta última, privilegiamos a questão do ritual ―gira de descarrego‖, realizado nas últimas sextas de cada mês na FEC. Nosso intento, visto que este é o único ritual em que o ―povo de rua‖ realiza sua performance, é enfocar a performance da Pombagira, para trazer alguns conflitos e tensões percebidos durante a participação observante.

2.4.1 – Entre escritas de um diário de campo

A partir desta breve descrição do histórico da FEC, somamos às tessituras que compõem o sistema da Casa, complexos e híbridos. Neste momento, intentamos nos debruçar sobre os registros realizados em caderno de campo, com o propósito de apontar os dados gerados segundo a participação observante, que motivou também a delimitação de categorias; três categorias que agregam informações valiosas sobre a estrutura do local analisado durante o desenvolvimento da etnografia, a saber: tempo, espaço e dinâmica. Na questão do tempo, descrevemos toda a organização temporal do trabalho. Da estrutura das atividades que se realizam de acordo com o calendário. Em quais 81

dias da semana se encontram e realizam atendimentos, além dos eventos e rituais que se concentram semanalmente, quinzenalmente, mensalmente e anualmente. Na categoria espaço, apresentamos de que maneira o espaço físico é dividido segundo as funcionalidades da Casa. Um espaço para cada finalidade: para socialização, atendimento/tratamento espiritual, realização de rituais, reuniões e outros espaços de trânsito, livre acesso ou restrito. Quanto à categoria dinâmica, sintetizamos todo o sistema de trabalho conjugado às categorias tempo e espaço, apontando as hierarquias, funções e relações de poder envolvidas na atuação religiosa e filantrópica da Casa. Para tal sistematização e descrição sucinta, nos inspiramos nas etnografias das obras ―Repensando o sincretismo‖ (2013) e ―Querebentã de Zomadonu: Etnografia da Casa das Minas do Maranhão‖ (2009), ambos de Sérgio Ferreti.

2.4.1.1 – Tempo

Organizar o tempo de trabalho na FEC é algo bastante complexo. Em geral, as casas tradicionais de umbanda se organizam a partir do calendário de datas comemorativas devotadas às divindades e entidades cultuadas no cenário religioso afro-brasileiro, que em geral, possuem diretrizes cristãs. Esse calendário festivo também é delimitado segundo algumas convenções que são estabelecidas por organizações federadas de espiritismo ou de umbanda. No caso da Fraternidade, a instituição referência que estabelece algumas diretrizes segundo fundamentos esotéricos da umbanda para as práticas do culto é o Primado de umbanda, cuja federação tem sua fundação no Rio de Janeiro, datada no ano de 1952. Em documento do Primado, existem orientações com relação a realização de rituais, organização das hierarquias, etc. Tais questões abordaremos na categoria dinâmica. A Fraternidade Espírita Cristã, criou seu calendário a partir de uma autonomia própria, mas também motivada por alguns trabalhos que já eram desenvolvidos no antigo CESCJ. A primeira estrutura de organização do trabalho espiritual se dá a partir da realidade dos membros da Casa, que em maioria são trabalhadores. Logo, dispõem em sua maioria o horário da noite para se dedicarem às atividades. Nesse fluxo de disponibilidade, a segunda prioridade se destina a dar objetividade ao tipo de 82

atendimento espiritual. Como o turno noturno é curto, os tratamentos espirituais precisam se dividir em dias diferentes da semana. Eis que se estrutura o calendário semanal: ● Às segundas-feiras das 19:00 às 21:00, com estudo fechado para o corpo mediúnico e/ou trabalho de desobsessão, restrito aos médiuns21; ● Às terças-feiras, no primeiro momento, de 19:00 às 20:15, com palestra doutrinária, baseada na literatura do ―Evangelho Segundo o Espiritismo‖ de Allan Kardec. Ao mesmo tempo, acontecem aulas do mesmo assunto, direcionadas ao público infanto-juvenil da FEC. Ambas as atividades são abertas ao público. No mesmo dia, simultaneamente às palestras, acontece o tratamento espiritual – reiki, shiatsu, cromoterapia, aromaterapia, acupuntura e auriculoterapia. Este último é restrito aos membros da assistência que se encontram em tratamento indicado pela espiritualidade da Casa. No segundo momento, após pausa de 15 minutos para lanche, entre 20:30 e 21:00 acontece a corrente de mentalização (preces e cânticos) com todos os membros – médiuns e assistência – seguida de passe magnético; ● Às quartas-feiras, de 19:00 às 20:15, com palestra doutrinária, baseada na literatura de ―O Livro dos Espíritos‖ de Allan Kardec22. Ao mesmo tempo, acontecem aulas sobre temas diversos da umbanda e atividades lúdicas, direcionadas ao público infanto-juvenil da FEC. Ambas as atividades são abertas ao público. Simultaneamente às palestras, acontecem as consultas com as entidades de umbanda, sempre intercalando a cada quinzena entre caboclos e pretos velhos. No segundo momento, após pausa de 15 minutos para lanche, entre 20:30 e 21:00, as consultas continuam (pelo tempo que for necessário). Em simultâneo, a palestra é finalizada e a assistência é direcionada para os passes magnéticos;

21 Vale reforçar que esta foi a única atividade da Casa que não foi autorizada a nossa presença. A direção da Casa alega que as reuniões de desobsessão servem para tratar espíritos enfermos, perdidos ou presos ao plano material, sedentos por se nutrirem de energia dos encarnados. Para acompanhar este tipo de trabalho, requer preparo espiritual, doutrinário, emocional e psicológico. Portanto, além de não estabelecer uma relação direta com a questão da performance das Pombagiras, nossa imersão nesse contexto não pôde ser realizada 22 Durante o andamento da etnografia, houve mudanças no calendário semanal da Casa. As palestras de terça e quarta trocaram de dia. O evangelho passou a ser estudado às quartas e não mais nas terças, e vice-versa. O livro dos espíritos deixou de ser um tema fechado e abriu espaço para palestras com temas diversos sobre mediunidade, evangelho, gênesis segundo o espiritismo e umbanda. Entretanto esta mudança ocorre a partir de agosto de 2016 por questões conflituosas em que médiuns responsáveis pelas palestras se afastam da Casa. Este assunto será abordado mais adiante, no terceiro capítulo. 83

● Às quintas-feiras, de 19:00 às 21:00, com grupo de estudos interessado em aprofundar conhecimentos sobre espiritismo, o antigo testamento bíblico, umbanda e novo testamento bíblico. Atividade restrita a membros da assistência convidados pela espiritualidade da Casa, com o propósito de prepará-los para futuramente integrarem o corpo mediúnico da FEC, se assim desejarem. Esta é a estrutura base que distribui o atendimento espiritual da Casa. Além desses dias, existem outros encontros que são encadeados num sistema de organização mensal. São apenas quatro: ● Primeira segunda-feira de cada mês, de 19:00 às 21:00, com prece para os desencarnados (orações dedicadas aos espíritos de pessoas que já morreram), composta de palestra sobre espiritismo, sessão de psicografia e psicofonia (registro de mensagens aos consulentes através da escrita e da escuta mediúnica), e passe magnético. Atividade aberta ao público; ● Terceiro domingo de cada mês, de 17:00 às 20:00, com gira festiva ou de desenvolvimento. Neste caso, quando se trata de uma data comemorativa do calendário, como por exemplo em abril (dedicado a Ogum, no dia 23), a gira é festiva e aberta ao público. Neste caso, as giras festivas da FEC acontecem nos meses de janeiro (Oxóssi e abertura dos trabalhos do ano), abril (Ogum), maio (pretos velhos), julho (Nanã), setembro (Ibejada) e dezembro (fechamento dos trabalhos do ano). Quando o calendário não passa por data comemorativa, ou seja, nos outros meses não citados, a gira é fechada aos médiuns da Casa e é realizada para desenvolvimento mediúnico (fevereiro, março, junho, agosto, outubro e novembro), sobretudo a incorporação (transe); ● Terceira terça-feira de cada mês, de 19:00 às 20:15, com palestra de informativo sobre atualidades ou alguma temática relacionada a doutrina espírita, umbanda, auto-ajuda, etc. Neste dia do mês, esta atividade substitui a palestra de estudo do evangelho, que acontece toda terça-feira. Simultaneamente, os mesmos atendimentos de tratamento espiritual e evangelização infanto-juvenil acontecem, bem como a corrente de mentalização e passes de 20:15 às 21:00. Ao fim do atendimento, são distribuídas cestas básicas a famílias necessitadas que frequentam a Casa (neste último caso, aquele que deseja receber doação, precisa frequentar as palestras de terceira terça-feira do mês); 84

● Última sexta-feira de cada mês, de 19:00 às 21:00, com a gira de descarga do templo com Exus e Pombagiras. Este ciclo mensal inclui algumas atividades que são somadas às semanais. Existem determinadas semanas em que a Casa está com atividade intensa. Por exemplo, na última semana do mês, existem ocasiões em que os trabalhos coincidem e os médiuns se encontram na segunda, terça, quarta, quinta, última sexta do mês e primeira segunda do mês seguinte. É importante citar que qualquer ritual realizado na FEC respeita rigorosamente o horário de início. Entretanto, quando há a necessidade, os trabalhos podem se estender um pouco mais no horário. Isto muito costuma acontecer nos dias de quarta- feira, em que as entidades estão dando consulta aos consulentes. Houve momentos em que, quando menos esperávamos, estávamos observando os trabalhos serem finalizados entre 22:00 e 23:00 horas da noite de quarta. Isto nos recorda uma frase muito citada por Vovó Cambinda: ―Filho de fé tem hora pra começar, mas não tem hora pra acabar...‖. Por último, outra forma de organizar o tempo são as atividades esporádicas, que visam promover trabalhos espirituais específicos, cerimônias, solenidades ou eventos da Casa. Estes, acontecem anualmente: ● Festa de aniversário da FEC: solenidade com convidados de outras casas, preces e coquetel para a assistência; ● Cerimônia de Páscoa: ritual sempre realizado na sexta-feira santa, pela cabocla Jandira; ● Feijoada Fraterna: evento de socialização todo mês de maio para arrecadar fundos para a Casa; ● Iniciação de novos médiuns: geralmente acontece no mês de julho. Os médiuns se reúnem para realizar uma gira na cachoeira e lá fazem o ritual de iniciação chamado amaci. Os médiuns já iniciados, em alguns casos, trocam de cordão (material usado na cintura para indicar o grau hierárquico) a partir da decisão da espiritualidade que dirige a casa; ● Almoço Fraterno: evento realizado uma vez por ano, geralmente em novembro, também usado para arrecadar fundos; ● Festa de Natal: festa com programação de apresentações artísticas, fala de membros da Casa e externos, corrente de orações, brincadeiras, doações de brinquedos para crianças, etc. 85

● Batismos e/ou casamentos: a FEC realiza batismo de crianças e ou adolescentes que é feito de forma muito similar à igreja católica. É feito na gira de terceiro domingo, sempre em data definida pela espiritualidade. Quanto a casamentos, a FEC já realizou apenas duas cerimônias, em dia de sábado, separado das giras. Também é muito similar a uma cerimônia cristã/católica. No contexto geral da Casa, cada atividade desenvolvida pela FEC exige que seu grupo de médiuns seja corpo presente e atuante ao máximo de dias possíveis. Poucos são os membros da Casa que se dedicam com total dedicação aos trabalhos realizados, mas esses médiuns existem. Em geral são aqueles que possuem cargos de alta responsabilidade nos rituais, como por exemplo os médiuns chefes de terreiro (mãe de santo e mãe pequena) e os que possuem entidades que dão consulta, e outros médiuns com menos responsabilidades, mas com uma realidade de vida mais disponível, como donas de Casa e aposentados, por exemplo.

2.4.1.2 – Espaço

Pode-se dizer que o espaço talvez seja uma das categorias mais interessantes que discutiremos, pois ela não só está ligada à produção esquemas imagéticos e a imaginários, mas também se liga ao que o visual pode contar sobre a vida da Casa, sua história e memória. No curso de nossa etnografia, o tempo foi percebido e sentido na sua fluidez, mas o espaço estava lá desde sempre, posto e disponível aos nossos olhares. Pretendemos fazer uma descrição objetiva dos pedaços que compõem o todo que é a FEC. Nosso caminho perpassa pela história da Casa também, onde acessamos memórias neste espaço de vivências pessoais da autora. A estrutura física que hoje compõe a FEC, é nada mais do que uma vila formada por 3 casas que compartilham um mesmo quintal. Recordo-me da década de noventa, quando tinha por volta de cinco anos de idade e brincava correndo pelo quintal que era residência de primos meus. Anos mais tarde, retornamos ao mesmo lugar que parece já não ser mais a casa dos parentes. Logo na entrada, passando do portão, encontramos um corredor com uma entrada de cada lado da parede. À direita, uma garagem grande, porém com cadeiras e bancos enfileirados, um pequeno altar 86

com a imagem de Jesus Cristo, muitas pessoas assistindo à palestra ministrada por dois médiuns.

Figura 4: Congá antigo da FEC na década de 1990. Fotografia: acervo da FEC.

Assim tudo começa, numa garagem, como na fotografia acima. E pela narração de membros fundadores da FEC, nessa garagem era feito de tudo: palestras, passes, giras... na garagem do lado esquerdo, nada incomum. Uma sala, do mesmo tamanho que a outra garagem. Pouca iluminação, vemos banquinhos e pessoas sentadas nelas. Eram pretos e pretas velhas dando consulta. Esta memória é do ano de 2004 e a FEC fora fundada há apenas seis anos antes. Depois de longo tempo sem retornar àquela Casa que conhecera, voltamos em 2006. Ao entrar na Fraternidade, o caminho é diferente. As garagens já não comportam mais o número de pessoas. Agora, o quintal dos fundos já estava construído como templo. Mais amplo, comportava mais pessoas e mais confortável. Ao longo dos anos, uma salinha sem utilidade passou a ser usada para as crianças que acompanhavam seus responsáveis fazerem atividades e de lá surgiu o grupo da evangelização infantil, que mais tarde, pelo quantitativo de crianças e conforme os anos foram seguindo, se tornou departamento infanto-juvenil. Podemos perceber que a estrutura do espaço físico da FEC se constituiu de maneira gradativa, aos poucos. Atualmente, a Fraternidade Espírita Cristã tem em seu espaço físico dois andares. No primeiro segue: ● Betel: hoje corresponde a uma das garagens da Casa. Logo após a entrada, à direita. É uma das primeiras partes da Casa. Este é utilizado como pequeno templo 87

para consultas com as entidades. Paredes pintadas de verde claro, com iluminação em lâmpadas azuis. Essa iluminação cromática tem a ver com o entendimento da Casa de trabalho espiritual de cura. Dentro do betel também tem um pequeno altar (congá), um banco largo onde se sentam três médiuns para o trabalho de descarrego espiritual de consulentes que vão se consultar. O consulente fica em pé diante deste banco (que tem um grande crucifixo de madeira atrás dele) e os três médiuns sentados um ao lado do outro, realizam um passe coletivo, descarregando toda a energia negativa. Nesta sala também é curioso que o espaço físico vazio do betel tem pequenos espaços delimitados pelas entidades. Cada uma fica em um cantinho específico dessa sala e esse espaço é marcado com um copo d‘água. Este cantinho é fixo e o caboclo ou preto velho sempre dá consulta neste mesmo local;

Figura 5: Betel. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 6: Espaço onde as entidades dão consulta. Fotografia: Tulani Pereira.

● Sala do reiki: corresponde à garagem do lado esquerdo, na mesma proporção e direção do betel. Ao adentrar nesta sala, temos a nítida certeza da presença 88

das práticas exotéricas da Casa. Paredes pintadas de lilás, uma estrela de seis pontas (estrela do oriente) ilustrada no chão. A sala parece um consultório médico, com três macas, uma mesa e armários com utensílios para os tratamentos de cura e terapias holísticas (reiki, shiatsu, acupuntura, cromoterapia, florais de Bach e auriculoterapia). É repleto de pedras, cristais coloridos, dos mais variados tamanhos e formatos em recipientes sobre pequenas bancadas com toalhas coloridas. É de fato, uma imagem muito próxima das estéticas do oriente;

Figura 7: Sala do reiki. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 8: A linha do oriente, suas pedras e cristais. Fotografia: Tulani Pereira.

● Secretaria: corresponde a antiga sala de uma das casas do terreno. Geralmente é espaço de convívio, comercialização de produtos (livros, rifas, alimentação, etc.) principalmente dos médiuns e os frequentadores mais próximos; 89

Figura 9: Secretaria da FEC. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 10: Secretaria da FEC vista de dentro. Fotografia: Tulani Pereira.

● Tesouraria: uma sala mais restrita, com um pequeno espaço dedicado à organização burocrática da Casa. Nele se armazenam equipamentos e toda a documentação da FEC;

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Figura 11: Tesouraria. Fotografia: Tulani Pereira.

● Cozinha: ao contrário das casas de candomblé, por exemplo, que tem a cozinha como um espaço importante e de grande fluxo de atividades, na FEC é um pouco diferente. Ela é utilizada para o preparo de alimentos dos próprios médiuns quando necessário em dias de gira nos domingos. Fora isto, serve mais de acesso rápido ao templo. A assistência não tem acesso a esta parte do espaço;

Figura 12: Cozinha. Fotografia: Tulani Pereira.

● Dispensa: pequeno cômodo anexo à recepção, secretaria e cozinha (estes todos estão lado a lado) com muitas estantes. Armazena os mantimentos, materiais de limpeza e higiene pessoal de uso da Casa e destinados para doações aos necessitados. Também é área restrita;

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Figura 13: Dispensa. Fotografia: Tulani Pereira.

● Banheiro dos médiuns: faz parte da estrutura de uma das casas do terreno e está próximo da cozinha, dispensa, secretaria e recepção. Por ser próximo a áreas mais restritas, somente médiuns o utilizam. ● Pátio: consideramos o maior espaço de socialização da FEC, pois logo que se entra na estrutura física da Fraternidade, se acessa o pátio. Ele é que dá acesso ao que podemos chamar de estrutura administrativa (mais restrita) compondo a secretaria, tesouraria, dispensa, cozinha e banheiro dos médiuns. No pátio também existe um cantinho consagrado que é o cruzeiro. Uma estrutura física feito uma escada de três degraus, toda branca e com um crucifixo de mármore branco. Ali ficam velas, copos d‘água e ramos de ervas que os pretos velhos utilizam para dar passe ou benzer as pessoas. Tem uma simbologia espiritual grande, muito similar à representação cristã do cruzeiro dos católicos;

Figura 14: Pátio. Fotografia: Tulani Pereira. 92

Figura 15: As plantas sagradas. Fotografia: Tulani Pereira

● Sabaçaria: pequena saleta anexa ao betel e que tem uma porta de saída que dá para o pátio. Esta salinha armazena objetos dos rituais das giras e das consultas com as entidades. Guardam ali os cachimbos, fumos, charutos dos caboclos. Nela tem muitos banquinhos, utilizados pelos pretos velhos, as ervas utilizadas nos passes, utensílios dos vovôs e vovós como guias (colares de contas), jogo de búzios da vovó Cambinda, e cuias de madeira onde servem água, boldo, café e caldo de cana. Possuem também prateleiras com muitos copos d‘água, cada um com o nome de um médium marcado nele. É o assentamento de cada médium. Servem de campo magnético de absorção das energias negativas. Toda vez que um médium chega na Casa para o trabalho, tem de trocar a água de seu copo por uma nova;

Figura 16: Assentamentos dos médiuns. Fotografia: Tulani Pereira.

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Figura 17:Sabaçaria. Fotografia: Tulani Pereira.

● Banheiros da assistência: está na parte do pátio, ao lado da porta de saída da sabaçaria. Foi construído após a ampliação da FEC e de uso da assistência; ● Templo: o maior e principal espaço físico da Casa. Após o pátio, podemos acessá-lo por dois corredores, sendo um em cada lateral da Casa onde abriga a parte administrativa da FEC. O corredor da esquerda é de acesso exclusivo a médiuns e o da direita, de acesso da assistência. Chegando nos fundos da parte administrativa, lá está o templo. Amplo, com piso escuro, paredes em branco (porém, atualmente em obras). Possuem um grande altar na parede dos fundos (congá) que descreveremos melhor mais adiante. À direita do congá, os tambores, à esquerda do congá, um púlpito para palestrar e enunciar as preces. No entorno do salão do templo, muitas cadeiras para os membros da assistência e no meio, bastante espaço aberto para realização dos trabalhos. Muitos rituais são realizados no templo: palestras, prece para os desencarnados, estudos fechados, giras, correntes de mentalização, passes e pequenos eventos da Casa.

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Figura 18: Templo. Fotografia: Tulani Pereira.

Esses espaços, ao contrário do que a maioria das casas de axé fazem, não são imóveis próprios. Pelo contrário, cada parte da estrutura da Casa (desde as garagens, cômodos e ―quintal‖) é alugada e paga mensalmente. Outra coisa, a FEC é exclusivamente espaço religioso, não sendo residência de ninguém. Todos os médiuns, quando se dirigem ao trabalho espiritual, saem de suas casas para desenvolvê-lo, inclusive a mãe de santo. Tal realidade difere das casas de axé tradicionais, onde geralmente, a mãe de santo reside no terreiro. No segundo andar, encontramos uma estrutura menos complexa e com utilização mais específica: ● Sala do ciclo I da evangelização infanto-juvenil: é um pequeno cômodo dedicado às crianças com faixa etária de 5 a 11 anos. Uma sala bastante colorida, com as paredes decoradas, prateleiras com bastante material para colorir, brinquedos e mesa para realizarem atividades.

Figura 19: Evangelização infanto-juvenil - sala do ciclo I. Fotografia: Tulani Pereira. 95

● Sala do ciclo II da evangelização infanto-juvenil: um cômodo ao lado da sala do ciclo I, possui uma lousa fixa na parede, cadeiras e mesa. Sua decoração é menos infantilizada, pois dedica-se aos adolescentes a partir de 12 até os 16 anos;

Figura 20: Evangelização infanto-juvenil - sala do ciclo II. Fotografia: Tulani Pereira.

● Sala do ciclo III: consiste numa pequena sala, decorada com estante, livros e materiais para jovens a partir de 17 anos. Pequeno espaço de convívio e reuniões. Também realizam as preces entre eles. Fica exatamente em cima da estrutura administrativa da FEC e dá acesso para a cozinha do segundo andar, banheiro, almoxarifado e salas dos ciclos I e II da evangelização infanto-juvenil.

Figura 21: Evangelização infanto-juvenil - sala do ciclo III. Fotografia: Tulani Pereira.

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● Cozinha: utilizada para fazer os lanches dos ciclos I e II da evangelização infanto-juvenil da FEC. ● Almoxarifado: é acessado pela cozinha da evangelização infanto-juvenil. Guarda objetos utilizados esporadicamente como estantes, escada, materiais utilizados nas apresentações artísticas da evangelização infanto-juvenil; ● Banheiro: também acessado pela cozinha e de uso exclusivo da evangelização infanto-juvenil. Seguindo, logo acima das ―garagens‖ onde se encontram o betel e a sala do reiki, encontramos outra estrutura no andar acima: ● Vestiário dos médiuns: divide-se em duas salas, uma para os homens e outra para as mulheres. Tome nota que os vestiários, antes de serem construídos no atual local, ficavam onde atualmente corresponde a sala dos ciclos I e II da evangelização infanto-juvenil. Contém armários de guarda volumes com o nome de um médium em cada porta. Lá eles armazenam seus pertences e trocam de roupa;

Figura 22: Vestiário masculino de médiuns. Fotografia: Tulani Pereira.

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Figura 23: Vestiário Feminino de médiuns. Fotografia: Tulani Pereira.

● Banheiro: é o banheiro que os médiuns utilizam para tomar banho, principalmente quando tem atividades em que eles precisam chegar mais cedo para arrumar a FEC, fazer faxina, obras, etc. ● Consultório: é uma sala atualmente sem aproveitamento, que estava em construção para utilização de médicos e dentistas voluntários. Há alguns anos atrás, a FEC já realizou consultas gratuitas mensais com médicos voluntários juntamente com o trabalho da terceira terça-feira do mês (palestra de utilidade pública e doação de cestas básicas), inclusive já chegou a comprar cadeira e material para dentista, mas não chegou a iniciar o atendimento. Atualmente, a Casa não possui mais voluntários, portanto, essa sala está inativa, com projeto de tornar-se uma futura biblioteca da Casa.

Figura 24: Sala inativa. Fotografia: Tulani Pereira.

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2.4.1.3 – Dinâmica

A estrutura sendo observada do ponto de vista das categorias tempo e espaço, em nossa abordagem, não dá conta do nível de complexidade das atividades que são desenvolvidas na FEC. Segundo o dicionário Aurélio23, o vocábulo ‗dinâmica‘ quer dizer: ―Estudo das forças ou do movimento quantitativo dos corpos; Conjunto de forças que visam o desenvolvimento ou o progresso de algo; Relação entre os níveis de intensidade dos sons‖. Para nossa escrita, nos atemos ao termo dinâmica quanto ao desenvolvimento, processo prático das atividades que a Casa realiza. Esse complexo que organiza a Casa, do ponto de vista do trabalho espiritual em ligação entre tempo-espaço, constrói tessituras esquemáticas que se conectam, que para nossa discussão, se aproxima da estrutura de um rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 14). Cada espaço físico e material da Casa foi construído e organizado inicialmente em proporções pequenas, e mais tarde foi se expandindo, ocupando lugares/espaços que até anos atrás estavam vazios/desocupados, dando continuidade ao trabalho espiritual (ao longo dos anos) de forma progressiva. Cada espaço/tempo, apesar de ser constituído em esqueletos formais e lineares, onde cada coisa tem seu dia, hora e lugar para acontecer, a dinâmica de trabalho que dá combustível para esses espaços/tempos, se remete – em nossa abordagem – a essa perspectiva rizomática. Ela é constituída de um sistema encadeado, altamente conectado e expansivo, onde as pequenas partes funcionam simultaneamente e cada parcela desse todo forma uma estrutura híbrida. Para entender melhor esse sistema-rizoma, inicialmente mergulhamos na estrutura hierárquica da Casa, baseado no Primado de umbanda, onde os cargos são divididos em sete graus24 com nomenclaturas do tronco linguístico Tupy. Esse grau é dado às entidades que os médiuns possuem, e são referidos na língua Nheêngatú: ● 1º Grau: Bojámirins – Entidades dos médiuns Iniciantes (I);

● 2º Grau: Bojás – Entidades dos médiuns de Banco (B); ● 3º Grau: Bojáguassús – Entidades dos médiuns de Terreiro (T); ● 4º Grau: Abarémirins – Entidades dos Sub-Chefes de Terreiros (SCT); ● 5º Grau: Abarés – Entidades dos Chefes de Terreiros (CT);

23 Disponível em: . 24 Disponível em: . 99

● 6º Grau: Abaréguassús – Entidades dos Sub-Comandantes Chefes de Terreiros (SCCT); ● 7º Grau: Morubixabas – Entidades dos Comandantes Chefes de Terreiros (CCT). Cada sigla entre parênteses citada na lista acima corresponde a um cargo que o médium recebe de acordo com o grau que sua entidade se enquadra, ou seja, se é Morubixaba, Abaréguassú, etc., pois depende do trabalho que esses guias desenvolvem. Segue abaixo as nomenclaturas de acordo com o a atribuição que o médium recebe dentro do ritual: ● 7º Grau - Nomenclatura – CCT - (Comandante Chefe de Terreiro); ● 6º Grau - Nomenclatura – SCCT – (Sub-Comandante Chefe de Terreiro); ● 5º Grau - Nomenclatura – CT – (Chefe de Terreiro); ● 4º Grau - Nomenclatura – SCT – (Sub-Chefe de Terreiro); ● 3º Grau - Nomenclatura – T – (Terreiro); ● 2º Grau - Nomenclatura – B (Banco); ● 1º Grau - Nomenclatura – I (Iniciando). Existe um outro cargo que é muito ativo na Casa, que os médiuns chamam de sabaçeiro. Ele é responsável por ser ―os olhos espirituais na Casa‖. Esse médium, raras as vezes fica incorporado e está sempre assistindo, observando e coordenando o trabalho dos outros médiuns. Também adquire a percepção da frequência energética da Casa e pode dar instruções e sinalizar para os médiuns, caso alguma coisa imprevista acontecer ou der errado para que as devidas providências sejam tomadas. Cada trabalho que se desenvolve é sempre coordenado por algum médium de grau alto. Isso se exemplifica nitidamente nas giras, onde quem sempre coordena, evoca com os pontos cantados e organiza os trabalhos é a cabocla Jandira, entidade da comandante-chefe de terreiro Dulce. Existem necessidades que alguns médiuns de grau mais abaixo assumem alguma responsabilidade na ausência de outrem, o que não impede que o trabalho seja realizado. Essa questão das hierarquias e o poder na Casa são bastante flexíveis, o que difere um pouco da realidade de casas de axé mais tradicionais, em que o tempo de iniciado influencia no trabalho que será desenvolvido, como é no candomblé, por exemplo. Apesar de não ser uma constante, percebemos que alguns médiuns se apegam a um imaginário hierárquico, mas percebemos que isto também se reflete na prática, quando por exemplo, um médium ainda bojá (2º grau) desenvolve a incorporação, mas suas entidades não podem dar consulta. Já um abaré (5º grau) 100

pode fazê-lo. Isto também é fundamentado teoricamente, pois os estudos fechados dos médiuns acontecem em pequenos grupos que são divididos em níveis de conhecimento doutrinário. Os mais novos têm aulas com um médium mais velho (de grau mais elevado) e os médiuns mais antigos tem aulas com uma entidade mais graduada da Casa, geralmente a própria cabocla Jandira ou Caboclo Sete Flechas. Em quase todas as atividades realizadas na Casa, este sistema hierárquico é o condutor dos rituais e do desenvolvimento de tudo que acontece na FEC, inclusive nas relações interpessoais. A seguir falaremos um pouco sobre a dinâmica de trabalho de algumas atividades que se destacaram em relação a esses sistemas hierárquicos. Na sala do reiki, por exemplo, toda e qualquer trabalho desenvolvido por lá só tem participação de médiuns de grau alto, acompanhado por um sabaceiro25 e dirigido pela Cabocla Jandira incorporada na mãe Dulce. Os médiuns que participam deste ciclo de tratamentos espirituais passam por formação em cursos de reiki e outras terapias orientais. É com muita nitidez que percebemos imperar os conhecimentos fundamentados em estudos espiritualistas. Mesmo que procurando contemplar formas de tratamento que atendem às necessidades espirituais de seus frequentadores com um olhar mais esotérico, ainda sim sua transmissão não se atenta a uma forma afroperspectivada. Notamos uma predominância corporal verticalizada, contida e pouca presença da oralidade como transmissão de conhecimento, salvo os momentos em que as intervenções da Cabocla Jandira se fazem presentes por conta de seu grau hierárquico. No tocante às consultas com as entidades da Casa, já percebemos uma dinâmica diferente. De fato, a incorporação nos parece a forma de comunicação e tratamento em que os consulentes que frequentam a FEC mais frequentam. Lá, frente a frente com o caboclo ou preto velho, o legado de conhecimento sobre as questões espirituais e os ensinamentos transmitidos através da oralidade, nos remetem a uma forma afroperspectivada e parece revelar a faceta afrodiaspórica da umbanda, independentemente de estar baseada nos princípios espíritas e cristãos. As entidades se distribuem espacialmente no betel pela ordem hierárquica e a entidade chefe do trabalho de consulta (Vovó Cambinda) distribui as tarefas aos demais médiuns. Nessa dinâmica de trabalho que organiza a consulta com o trabalho de limpeza no banco (que é sempre realizado com cânticos que falam sobre temas

25 Alto grau hierárquico da FEC, definido pela direção espiritual da Casa. Este cargo exerce a função de organizar o ritual, instruir médiuns e fiscalizar outras funções hierárquicas abaixo dela e que estão sob sua responsabilidade. Vovó Cambinda nos diz que o sabaceiro representa os olhos espirituais no plano físico da Casa. 101

como caridade, fraternidade, espiritismo e Jesus Cristo), consulentes que vão a Casa pela primeira vez não têm permissão para se consultar com a entidade de maior grau hierárquico, a não ser que outra entidade que o receber o indique. Todo tratamento acaba sendo coordenado pela Vovó Cambinda, que além da representação da mais velha e experiente na imagem da preta velha, acaba sendo a figura centralizadora do poder, tomando decisões, aconselhando e administrando o ritual. Nas palestras, o sistema se configura a partir do conhecimento doutrinário. De fato, quem assume tais responsabilidades na Casa, nem sempre possui um grau hierárquico elevado, por exemplo, mas legitima sua função quando demonstra conhecer com propriedade as questões da vida espiritual e da doutrina espírita. Os consulentes costumam demonstrar prestígio aos palestrantes como exemplo, quase até signo de admiração e/ou referência. Tal referência se assemelha ao sistema que é configurado no ritual da prece dos desencarnados, pois também existem palestras, entretanto como essa é orientada pela Vovó Cambinda incorporada, torna a se centralizar o domínio de conhecimento à figura ancestral da preta velha. Neste último ritual, a psicografia também é um exemplo nítido de organização hierárquica, inclusive na ordem em que os médiuns se posicionam próximos à mesa.

Figura 25: Sessão de psicografia na prece para os desencarnados. Fotografia: acervo da FEC.

Quanto às reuniões da evangelização infanto-juvenil, o pouco que pudemos acompanhar nos fez perceber que a dinâmica de trabalho se constitui de pequenos filetes de reprodução do que se compartilha nas palestras aos adultos, entretanto com abordagens adaptadas. Médiuns de grau iniciante trabalham na evangelização infanto- 102

juvenil, o que nos leva a pensar numa possível prioridade que se dá aos trabalhos do reiki, das consultas e palestras, pois sempre acontecem em simultaneidade e complementaridade. Esse sistema que vai conjugando tempo e dando sentido aos espaços reflete a dinâmica das giras, agregando a incorporação, oralidade, dança e música e deixa a centralidade dos corpos kardecistas em menos evidência. Visto que a estrutura hierárquica faz valer seu poder, todo o sistema de incorporação das entidades e distribuição de tarefas se dá do maior grau para o menor grau. Um fato interessante que se mostra na Casa em diversos aspectos, principalmente nas giras, é que esta questão da hierarquia não é inflexível. Se em algum momento determinadas peças do tabuleiro faltarem, o jogo continua com outras peças. Esta metáfora, em outras palavras, significa que ninguém é insubstituível naquela Casa. As hierarquias existem para organizar este todo dinâmico. Sendo assim, qualquer médium pode desenvolver tarefas de responsabilidade em alguma atividade específica, e no caso da ausência de quem usualmente desenvolve determinada atividade, o próximo a assumir essa ausência segue a ordem de sequência hierárquica. Vale lembrar que este sistema vale para os rituais, mas nas relações sociais e outras performances que acontecem na Casa, como por exemplo os eventos realizados e até mesmo os encontros que os médiuns fazem para limpar a FEC, a hierarquia se dilui, e médiuns assumem funções diversas independente do grau. Entretanto, a figura da mãe de santo, sempre será o destaque e esta sim, sempre terá sua imagem de poder simbolicamente reconhecida em qualquer performance.

2.4.2 – A performance da Pombagira na Fraternidade Espírita Cristã

Dando continuidade, seguimos nossa produção com o objetivo de apresentar as características identificadas na leitura dos corpos dos médiuns (performers), quando incorporados no ritual em que a entidade da Pombagira se manifesta na Casa observada. Nosso esforço é no sentido de descrever os componentes, práticas/ações e jogos cênicos de sua performance. Destacamos a descrição dos elementos artísticos no ritual que evidenciam a centralidade do corpo feminino nas discussões propostas, 103

além das possíveis relações cosmológicas que estabelecem com uma prática ritual advinda de heranças afrodiaspóricas. Antes de apontar as considerações em torno da performance da Pombagira, é de extrema importância situar em que perspectiva nossa investigação acerca desse ritual se direciona. Para início de conversa, acreditamos que a performance da Pombagira necessita ser vista não somente da perspectiva artística e cultural, mas também daquela visão religiosa que os membros da FEC incorporam em suas práticas. Colocar-se no status da auto-reflexividade nos motiva a observar que no tocante da análise do corpo, a performance não pode ser enxergada unilateralmente. Vamos lá, afinal, quem é o performer? É o médium ou é a Pombagira? Quem faz a beleza da manifestação expressiva do comportamento da Pombagira se mostrar? Levando em conta a realidade da FEC, entendemos que este aspecto do corpo precisa ser observado enquanto uma relação de participação de ambos – médium e entidade – pois não haveria transe com a ausência de um deles. Acreditamos que, mesmo intitulada ―performance da Pombagira‖, quando se mostra disponível ao nosso estudo na questão do corpo, trata-se de uma performance conjunta, entre o visível e o invisível. Sim, pois é desta maneira que eles (membros da FEC) acreditam. Deste modo, para nossa pesquisa, o palpável é o corpo do médium, suas possibilidades expressivas, suas capacidades e limitações articulares, habilidades rítmicas e motoras coordenadas ao espiritual na manifestação da entidade. Nosso intento não é atribuir parte disso ou daquilo a algo que não é visto, pois só podemos olhar o que é para nós material. Sem dúvida, cabe delinear que é inegável, mesmo com todo esforço em observar a questão do ritual, que a existência de uma força sobrenatural é notória para a conjuntura daquele espaço e que muitos corpos participam dele. Dentre os rituais realizados na FEC, muitos deles contam com a participação das entidades e Orixás da umbanda, conforme já explicitado nos trabalhos desenvolvidos pela Fraternidade. Partindo desse pressuposto, apenas uma performance afro-brasileira tem o envolvimento de Exus e Pombagiras. Há de se considerar que estas entidades possuem uma finalidade definida na Casa, cuja responsabilidade não foge de seu principal atributo: organizar o caos. Por isto, o ritual da gira de descarrego que acontece mensalmente na Fraternidade recebe o apoio protagonizado por Exus e Pombagiras. Antes dos 104

médiuns corporificarem as manifestações das entidades, eles cumprem diversos rituais que se antecedem a gira. Os corpos ali, já compõem performances no próprio rito de preparação. Durante esse processo, os médiuns adentram a Casa, se cumprimentam (sobretudo, cumprimentam primeiramente a mãe de santo) e se dirigem imediatamente ao vestiário. Lá se preparam para o ritual, alguns tomam banho (o que é opcional), vestem o uniforme da casa e em seguida vão ao preparo de seu assentamento individual, – trocam a água de um copo de vidro com o nome do médium registrado – ao término desta etapa, quando sobra algum tempo antes do gira, geralmente circulam nos espaços de socialização e conversam com os membros da assistência. Alguns médiuns com determinadas funções preparam água com álcool para lavar as mãos dos consulentes que chegam. Estes últimos só podem entrar no templo após lavarem suas mãos com este preparado. Outros itens que são selecionados para o ritual, como: fumo, bebidas (água, boldo e café), velas, incenso, defumador e fósforo, são separados e preparados para a gira. Estes ficam reservados a função do(s) cambono(s), cargo dos médiuns que servem de assistentes das entidades quando manifestadas no transe, auxiliando no preparo dos objetos que as entidades utilizam em seus rituais. Os ogãs preparam a afinação do couro dos tambores para os toques e assim, tudo está pronto para começar pontualmente. Os corpos, até então, performam interagindo com os ingredientes, cheiros, calor e sons. Ainda assim, como nas outras giras, o ritual é direcionado e acompanhado pela Cabocla Jandira. Inicia-se com a passagem do defumador, como em qualquer outra gira. É um pequeno objeto feito de metal com um recipiente pequeno pregado por correntes nas extremidades. Ali, um dos médiuns colocam ervas que são incineradas e espalham uma fumaça com aroma característico, muito parecido com de incensos. O médium responsável por esta atividade tem de segurar o objeto pelas correntes para não se queimar e movimentá-lo para que a fumaça se espalhe. Ele movimenta o objeto com movimentos pendulares, realizando no espaço o desenho de uma cruz com a fumaça por todas as extremidades do terreiro, enquanto a assistência e outros médiuns cantam:

Nossa Senhora incensou seus amados filhos para o mal do seu lado retirar. Aldeia de caboclos dá licença pro mal sair e o bem entrar. (Ponto cantado registrado em trabalho de campo. São João de Meriti, 2015) 105

Em seguida, o médium que segura o defumador se posiciona de costas para o altar e o balança em movimento pendular para que a fumaça se propague. Os outros médiuns, posicionados em filas de acordo com a hierarquia em que se encontram, vão um a um se dirigindo à frente do defumador e ficam parados durante alguns segundos de frente e de costas para ele, depois retornam ao seu local de origem.

Figura 26: Passagem do defumador antes da gira de descarrego. Fotografia: Tulani Pereira.

Já neste processo inicial, percebemos a interação os expectadores com a performance. Participam cantando e batendo palmas, acompanhando todo o processo de iniciação da gira. Finalizado o processo, cessa-se o toque, o canto e o bater palmas. Mãe Dulce fala a frase ―salve o defumador‖, ―salve a umbanda!‖, e todos respondem batendo palmas dizendo ―salve!‖. Prosseguem posicionados e com a assistência no entorno de pé. Todos colocam a mão direita no peito e o braço esquerdo erguido com a palma da mão virada para frente, assim cantam o hino da umbanda, seguido da leitura de prece de abertura dos trabalhos. Neste momento da prece26, todos os médiuns se curvam e ajoelham. A assistência (expectadores) permanece de pé. Dão continuidade invocando a Cabocla Jandira cantando, tocando atabaque e batendo palmas. A entidade prontamente se manifesta na médium Dulce, dirigente espiritual da Casa. Em seguida, um cambono (médium que auxilia a entidade com seus objetos e materiais ritualísticos) entrega-lhe seu charuto. Após sua chegada, finaliza-se o toque, canto e palmas. Em todos os trabalhos com transe, a entidade

26 Confira a prece de abertura dos trabalhos espirituais no Anexo B. 106

Cabocla Jandira sempre pergunta se todos estão se sentindo bem e todos respondem ―Graças a Deus!‖. A Cabocla então começa a convocar outros médiuns fazendo um gesto com a mão, somente apontando para aqueles que devem se dirigir ao centro da roda para receber suas entidades. Jandira anuncia a saudação de Exu27 e todos respondem ―Laroiê!‖, batendo palmas. Este é o momento em que Exus masculinos começam a incorporar nos médiuns escolhidos. Os pontos cantados começam um após outro, direcionados pela Cabocla Jandira. Ao passo que as entidades vão incorporando, sempre se dirigem à Cabocla e realizam um gesto de cumprimento em frente ao congá (altar). Como a gira de descarrego sempre obedece a uma organização, a cada mês esse processo se repete de forma quase que idêntica. Este processo é bastante curioso, pois os expectadores, mesmo sem poder acessar as entidades, parecem denunciar um grande respeito pelos guias espirituais que ali trabalham. Sempre que alguma entidade passa próximo dos membros da assistência, geralmente os expectadores erguem as mãos como se estivessem saudando a entidade que por ali está passando, e ao mesmo tempo, recebendo um pouco de seu axé. Na continuidade dos ritos, vão invocando inicialmente os Exus masculinos, que se apresentam nem sempre nesta ordem, mas como que em um grupo, são invocados sucessivamente: Exu Caveira, Exu Sete Encruzilhadas, Exu Tranca Rua, Exu Tiriri, Exu Marabô e Exu Veludo. Ambos realizam cumprimento apoiando um punho sobre o outro quase que formando o desenho de uma letra ―x‖ com o antebraço e com a palma das mãos para o chão. Os dedos se enrijecem e absorvem um formato como se fossem garras. Este cumprimento também é executado entre eles, para a entidade dirigente, para o atabaque e para a porta de entrada da assistência.

27 Em algumas giras de descarrego, a Cabocla Jandira inicia os trabalhos invocando a falange dos boiadeiros, que segundo Vovó Cambinda, é uma linha intermediária utilizada entre Oxóssi (caboclos) e Exu. Foram observadas algumas sessões em que esses boiadeiros se manifestam para iniciar a limpeza. Dançam realizando movimentos como se estivessem laçando gado e só depois é que os Exus são invocados. 107

Figura 27: Exu Tranca Rua dançando. Fotografia: Vilma Neres.

Após esse trajeto corriqueiro, alguns se deslocam realizando movimentos com as mãos ainda enrijecidas, porém livres do gesto de cumprimento, como se estivessem fazendo uma limpeza no local. Varrem, empurram e arrastam energias negativas com seus gestos ao som dos toques e pontos cantados. Seus deslocamentos variam de acordo com a entidade e a disponibilidade corporal do médium. Algumas entidades caminham normalmente, outras andam com as pernas flexionadas e com o tronco levemente fletido para frente, outros até se deslocam arrastando uma das pernas. Aos poucos sem perceber, em determinado momento, iniciam os pontos cantados para Pombagira. É evidente a mudança do clima no espaço do ritual. O que até então estava dominado por faces com olhares intimidadores bastante sérios, alguns sorrisos fechados ou até mesmo expressão invocada, jeito sarcástico e brincalhão, foi invadido por uma série de gargalhadas e sorrisos escancarados. Isto é muito nítido na reação dos expectadores também. Porque os que até então apresentavam expressões sérias e até um pouco tensas por conta das entidades masculinas presentes, alguns sorrisos 108

e uma certa empatia pelas moças começam a se revelar nos rostos dos consulentes, que parecem se identificar com o jeito mais receptivo e caloroso das Pombagiras. Os médiuns recebem um adicional explícito. Os corpos ganham quadril. A partir de então as Pombagiras começam a chegar. É curioso perceber que antes de acontecer o transe, o médium fica em um estado de ―em/entre‖. No caso das Pombagiras, o médium transita entre ele mesmo e a transportação para a entidade. Um movimento muito característico desse estado é o desequilíbrio, a falta de firmeza nas pernas e os joelhos perdem a resistência, literalmente cambaleando, até que a entidade se manifeste. Um certo eixo transitório. Esse desequilíbrio nos chega como a corporificação da energia das Pombagiras. Pode significar o próprio mistério feminino e de todo movimento que elas representam enquanto entidades que lidam com a magia constantemente. E é a todo instante que o corpo se encontra em eterno desequilíbrio, pois até em movimentos minuciosos como a respiração e o deslocar dos membros em uma caminhada, este desequilíbrio se mostra. A Pombagira é, então, na perda e recuperação do eixo, a própria representação da transformação, cuja imagem mítica tem relação com sua função na Casa, que é de transformar as energias e trabalhá-las em benefício dos seus. Quando as Pombagiras chegam, algumas têm o arremate de se lançarem no chão. Elas deslizam os joelhos pelo chão, se curvam, estendendo a coluna toda para trás e imediatamente soltam aquela inebriante gargalhada e vão cumprimentar as ponteiras do ritual (congá, atabaques e porta de entrada). A dança das Pombagiras parece ser mais ritmada e coordenada à música tocada no ritual. Dançam realizando um passo mancado, giram bastante, além de estarem sempre com as mãos posicionadas na cintura, como se segurassem uma saia. Em alguns momentos as mãos parecem segurar rosas, e realmente, algumas Pombagiras utilizam rosas de verdade para trabalhar. Colocam nas mãos, no decote da blusa ou no cabelo. Dentre outros apetrechos, fumam cigarros (assim como os Exus masculinos), mas não consomem nenhum tipo de bebida ou comida. Suas roupas mantém o uniforme de médiuns usando o tradicional jaleco branco, e só. Neste aspecto, alguns Exus e Pombagiras, quando incorporados em médiuns de cargo alto na hierarquia, interagem com os membros da assistência, dirigindo-se a algum deles para falar algo ou realizar um passe. Entre eles, conversam e gargalham ou então contam piadas aos 109

médiuns fora de transe, mandam indiretas e falam frases de duplo sentido, sempre brincando. Nessa dinâmica cênica, percebemos que as poucas falas das Pombagiras estão mais envolvidas nas questões do coração, nos problemas afetivos e relacionamentos conjugais. Volta e meia interferem em conflitos por fofoca ou mentira. Quando atuam neste aspecto, quase sempre trazem algum aconselhamento ou soltam uma frase que quase sempre surpreende os expectadores, pois logo arregalam os olhos ou começam a rir. Percebe-se principalmente a atuação das Pombagiras na limpeza do templo e realizam trabalhos com as rosas que carregam dançando. Uma em especial, a Pombagira Cigana da Estrada, posiciona sete rosas amarelas no chão em frente a entrada de frequentadores. Dispõe as rosas como se fosse ponteiros de um relógio, com a parte das pétalas para fora e a ponta do caule para dentro. Ela dança em frente às rosas enquanto fuma cigarro, em seguida as recolhe. Depois, usa as rosas para dar passe em todos os consulentes e por fim as distribui uma para cada pessoa de sua escolha. Diz a Cigana que entrega a quem esteja precisando no momento e os aconselha a fazer pedidos e deixar a rosa na rua, numa estrada. Alguns outros aspectos são muito interessantes na observação da performance. Na FEC as Pombagiras e Exus falam poucos palavrões durante o ritual e quando xingam, o fazem em voz baixa, talvez esse seja o motivo que tanto surpreende os expectadores. Os pontos cantados também não possuem xingamentos, tampouco são utilizados pontos que evidenciem palavras como demônio, diabo, inferno ou capeta. Muitos pontos cantados na FEC, inclusive, passam por modificações para que sejam utilizados nos rituais; analisaremos com mais profundidade no próximo capítulo. Ainda na observação do aspecto do corpo, pela ausência de elementos como figurino e adereços, outros aspectos do corpo se evidenciam no sentido de trazer imagens de objetos e elementos da performance. Muitos movimentos com as mãos como se movimentassem a barra de uma saia, em alguns momentos inclusive, as Pombagiras manipulam o tecido do jaleco, fazendo dele a sua saia. No caso da Pombagira Maria Padilha, algumas simulam segurar rosas e/ou cigarros, além de raras vezes observarmos uma Pombagira na ponta dos pés, como se utilizasse salto alto. Essa questão dos pés descalços, inclusive, representa ―[...] um contato direto do corpo com a terra, com o mundo dos ancestrais, pois o corpo é o meio e a forma de expressão para a comunicação sagrada‖ (SABINO; LODY, 2011, p. 75). 110

Em relação a outras corporalidades, no tocante às Pombagiras Ciganas, conduzem os movimentos como se manipulassem, ora uma rosa ora uma pandeirola nas mãos. Com relação à pandeirola, os movimentos de suas mãos adquirem uma qualidade quase que vibratória, como se chacoalhassem o objeto enquanto dançam. Por fim, aproveitam de um bom e longo momento de muitos quadris se movimentando e ombros sacudindo, além dos olhares sedutores e instigantes, ratificam o quanto a presença da sensualidade é algo que transpira dos corpos dos performers, mesmo que com muita sutileza. Mesmo quando são corpos masculinos, onde percebemos que a questão da feminilidade fica mais vetada, podemos perceber ainda sim, traços dessa sensualidade e jogo da performance da Pombagira. É importante ressaltar que pouquíssimos médiuns homens incorporam Pombagiras, apesar de existir uma quantidade considerável dos mesmos. Para aqueles que incorporaram Pombagiras, observamos a performance sem dança, apenas com a Pombagira transitando pelo espaço e dialogando com o entorno. Não colocavam mãos na cintura ou apresentavam trejeitos ―femininos‖, mas o olhar penetrante e sorriso sedutor denunciavam a mulher que ali estava manifestada. Dada a finalização da parte do ritual em que as Pombagiras trabalhavam, a Cabocla Jandira convoca a falange (grupos de espíritos) dos malandros. Nesse momento, percebe-se que algumas Pombagiras vão embora para dar passagem aos Zés. Aqueles médiuns homens, cujo ritual das Pombagiras não incorporaram, em boa parte, começam a manifestar Zé Pelintra. Neste ritual não se realiza nenhuma menção a um tipo de malandro específico, mas todos sem exceção carregam em seus corpos uma movimentação que transita entre a perda e recuperação de eixo, deslizando entre a figura do sambista e outras vezes, do capoeirista. Zé Pelintra ginga como ninguém, sorri estridentemente e gargalha, sempre no tom da brincadeira do ―homem 7-1‖, espertalhão e trapaceiro, mas que denota bons conselhos para desviar os contratempos da vida de seus consulentes. No ritual da FEC, este momento é muito particular dentre os que antecedem a parte dos malandros. Quando convocam os Exus masculinos, somente estes trabalham manifestados. Quando convocam as Pombagiras, somente estas permanecem no espaço do terreiro dançando e girando. Quando chamam os malandros, ainda que a maioria dos médiuns incorpore Zé Pelintra, algumas Pombagiras permanecem incorporadas junto aos malandros. É interessante notar a relação entre Exus masculinos dos malandros e Pombagiras. Cumprimentam-se e se comportam como velhos companheiros da rua. Os malandros cortejam as Pombagiras 111

pegando na sua mão e dando um leve beijo, às vezes o fazem também com algumas mulheres da assistência. Notamos que na questão do uso de algum aparato para o corpo, alguns Exus e Pombagiras fumam cigarro e esta exceção é concedida à entidade que recebe autorização para fumar pelo grau hierárquico de seus médiuns. A questão da hierarquia na Casa faz muita diferença não só no momento da gira, mas em todas as outras atividades para equilibrar as funções do ritual. Na FEC acredita-se que este ―direito‖ de fumar não se trata de um privilégio, e sim uma condição que auxilia no trabalho. Entidades que podem consumir o fumo, são aquelas que usam dele para realizar os trabalhos de limpeza e desmancho de energias negativas, assim como também usam desse artefato para facilitar o estado de transe entre médiuns e entidades espirituais. Entre o inusitado e o inesperado, a performance das Pombagiras, assim como a dos Exus no geral, são completamente atraentes porque não se pode prever, apesar da organização do ritual e liturgia específica, o que pode ocorrer, como por exemplo, muitas vezes acontece durante o ritual, membros da assistência incorporarem algum Exu ou Pombagira. Toda esta performance, cercada por elementos cosmológicos das motrizes culturais, pode ser definida, a partir das relações que se estabelecem com os envolvidos, o que Zeca Ligiéro (2011, p. 123) chama de happening, característica marcante do ritual de Pombagiras e Exus. Finalizada a parte dos malandros, o ponto cantado de despedida é realizado e os médiuns retornam ao estado de seu ―eu‖ pessoal. Algumas entidades cujo médium possui cargo hierárquico para realizar atividades de responsabilidade na gira permanecem ―em terra‖ para prosseguir a limpeza do terreiro. Em geral juntam-se Exus e Pombagiras, e cada médium com aquela entidade que mais trabalha, pois na umbanda, o mesmo médium pode receber vários Exus e Pombagiras, não se limitando a trabalhar apenas com uma entidade. Ao prosseguir com o ritual, os ogãs cessam o toque dos atabaques e pontos cantados e ainda em performance sob orientação da entidade dirigente que ainda permanece coordenando tudo. A Cabocla Jandira pede que crianças com idade inferior ou igual a doze anos se retirem do espaço por alguns minutos. Afirma-se na Fraternidade que até completar esta idade, as crianças não possuem ainda o amadurecimento espiritual necessário, e se participarem deste ritual, podem absorver uma carga de energia muito densa no momento da limpeza, cuja consequência pode prejudicá-los espiritualmente. 112

Dando seguimento, sem estar em transe, algum médium com o cargo de ―sabaceiro‖ pega álcool e o entorna no terreiro, desenhando o formato de um tridente centralizado no chão do templo. Depois disso, pega uma vela acesa e coloca a chama do fogo em contato com o álcool ao chão. Cabocla Jandira orienta que todos permaneçam de pé batendo palmas, passando a mão no corpo como se limpassem as sujeiras dele, cantando um ponto. Este momento é o ponto de ápice da performance, pois realiza um encontro entre expectadores e performers, onde o estado de coletividade é culminante no propósito de realizar a limpeza pessoal e das energias acumuladas durante o ciclo de trabalhos realizados na FEC no mês. Todos permanecem vibrando, cantando e realizando gestos de limpeza com seus corpos, enquanto os Exus e Pombagiras dançam em volta do tridente de fogo. Mantém o estado de tocar-dançar-batucar até que a última chama da grafia de Exu se apague, e todos gritam extasiados ―Laroiê!‖.

Figura 28: O tridente de fogo. Fotografia: Vilma Neres.

É neste momento em que percebemos qual o valor dessas entidades, e a importância da figura mítica da Pombagira. Ela complementa este cenário ritualístico, incorporando uma função de equilíbrio da Casa. A elas é atribuída a finalidade de manter a ordem do terreiro, de eliminar a negatividade, limpando e descarregando qualquer energia densa. Finalizam este momento realizando mais um ponto cantado para que os Exus e Pombagiras ainda ―em terra‖ se desliguem dos corpos de seus médiuns, então, cumprimentam os pontos de passagem do altar, dos atabaques e porta de entrada, dançam, dão auto-passe nos corpos de seus médiuns e vão embora. Ao voltarem do transe, os médiuns que a minutos atrás sorriam e se movimentavam 113

felizes e agitados, retomam um comportamento próprio de seus corpos, porém ainda um tanto desconcentrados, como se tivessem acabado de acordar, mas com semblante de bastante cansaço. O ritual segue, agora com mais agilidade e objetividade, para dar continuidade ao que fora iniciado com Exus e Pombagiras, ocorre agora com os Caboclos e Orixás. Os Caboclos dão passe em todos os consulentes e médiuns fora de transe, que ao final do passe, lavam suas mãos em água corrente misturada com álcool. Enquanto os passes ocorrem, realizam toques e pontos cantados para o Orixá Oxum. Logo após todos retornarem as suas posições, alguns médiuns pegam objetos que compõem o altar – copos d‘água, copo com água e conchas do mar dentro, cristais e pedras – que afirmam ser os assentamentos da Casa. Cada um com um objeto, fazem 3 pequenas filas e conduzem estes objetos para fora do templo, caminhando lentamente de costas, até saírem do espaço do salão. Ao passo que eles caminham recuando, a Cabocla Jandira caminha avançando em direção a eles segurando um objeto metálico em formato de espada com fitas nas cores verde, vermelha e branca penduradas no cabo da espada, simbolizando o Orixá Ogum. Todos na assistência permanecem de pé com as palmas das mãos direcionadas para a performance, cantando, mentalizando e saudando as águas do mar ao acompanhamento do rufar dos atabaques e do som de um pequeno sino, similar ao que é utilizado no ritual das missas católicas. Durante alguns minutos lá fora, os médiuns que se retiraram lavam as pedras e cristais com água corrente e trocam a água dos copos por uma nova. Cabocla Jandira permanece na porta de entrada aguardando a chegada dos médiuns com a espada de Ogum nas mãos. Os médiuns retornam formando a mesma fila e passam pela porta de entrada. Jandira fica na porta observando tudo, e os assentamentos (objetos que materializam o axé, a energia da Casa ou de determinado Orixá e/ou entidade) retornam para seus devidos lugares no congá. Somente quando a Cabocla coloca a espada de ogum de volta no congá e retoma seu posto é que o toque, ponto cantado e postura da assistência e médiuns cessa. Todos falam a saudação de Oxum e batem palmas. Quase chegando no fim do ritual, realizam o que a Cabocla Jandira chama de ―cruzamento do templo‖. Dois médiuns sabaceiros se dirigem ao centro do templo, um com um pedaço de pemba (uma espécie de pedra de giz branca) e outro com um copo com água e uma vela acesa na mão. Enquanto isso, os ogãs tocam e cantam acompanhados pelo coro da assistência:

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Encruza, encruza... Encruza terreiro encruza Encruza, encruza... Encruza, terreiro encruza Encruza terreiro, encruza, Na fé de Oxalá, encruza... (Ponto cantado registrado em trabalho de campo. São João de Meriti, 2015)

Os dois sabaceiros caminham até o centro do terreiro. Um posiciona o copo com água e a vela em pé no chão, enquanto o outro traça três vezes a grafia de uma cruz no chão ao lado dos objetos. Daí se erguem novamente, pegam o copo com água e a vela juntamente com a pemba e realizam a mesma coisa em outras partes do templo. Repetem esse processo em cada canto do terreiro, totalizando 5 cruzes, com uma no centro e outras quatro em cada ponta do espaço do ritual. Um movimento interessante é que cada vez que se dirigiam a uma extremidade do terreiro para realizar a grafia, caminham do centro do terreiro até a direção escolhida de frente e depois de realizada a grafia com a pemba, voltavam caminhando de costas até o centro do templo novamente e reforçavam a grafia da cruz do meio.

Figura 29: Cruzamento do templo. Fotografia: Vilma Neres. 115

Notamos que só a partir dessa passagem pelo meio do espaço é que se podia transitar para as outras extremidades. Na verdade, olhando do ponto de vista espacial, as pequenas cruzes encadeadas, formavam uma cruz maior que era desenhada pela trajetória da caminhada dos sabaceiros para a realização da performance. Não sabemos ao certo se esta grafia de encruzilhada tem alguma relação estreita com Exu, mas fato é que simbolicamente, ela representa a proteção necessária ao espaço ritual. Após finalizada esta parte, os caboclos observam os médiuns conduzirem o copo d‘água e a vela para a porta de entrada e posicionam esses objetos no canto da entrada no chão, onde ali, também desenham uma cruz. A Cabocla Jandira pega novamente a espada de Ogum e repete todo o processo realizado pelos sabaceiros com a espada. Ela caminha e passa a ponta da lâmina em cada cruz desenhada, fazendo o mesmo trajeto e ida à extremidade do espaço e passando sempre pelo centro do terreiro. Ao término desta performance, o ponto cantado pára e Jandira pede que quando o ponto seja cantado novamente, que todos os ―filhos‖ façam o sinal da cruz: Encruza, encruza... Encruza ―seus filho‖, encruza. Encruza, encruza... Encruza, ―seus filho‖ encruza. Encruza ―seus filho‖, encruza, Na fé de Oxalá, encruza... (Ponto cantado registrado em trabalho de campo. São João de Meriti, 2015)

Prontamente, os membros da assistência interagem com seus corpos, riscando com as mãos e dedos, o sinal da cruz na testa, no peito, no dorso das mãos... fazem o sinal da cruz, cantando e batendo palmas, como que conectados ao rito pela cantiga e através do ato de ―cruzar‖ seus corpos. Em seguida, os caboclos, um a um, pegam a pemba e desenham nos corpos de seus médiuns uma cruz no centro da testa, no meio do peito na direção do esterno, ou seja, um pouco abaixo do pescoço e também no dorso das mãos. Eles revezam esta pedra de pemba e depois de realizar a grafia, passam o giz para outro caboclo, para que realize o mesmo em seu médium. Por último a Cabocla Jandira pega a pemba e faz a mesma grafia nos corpos dos médiuns que não estão em transe e nos ogãs. Enquanto cantam ao som do toque e a assistência acompanha batendo palmas, cada médium posicionado na roda, dispõe as mãos para que a cabocla desenhe em seu corpo. Ao fim da etapa do ritual, o toque e o ponto cantado cessam e todos gritam ―salve a lei da pemba!‖. A pemba tem como finalidade abrir os portais do plano 116

espiritual, quando riscada no chão, feito uma grafia, uma assinatura. Pode reestabelecer o equilíbrio e essência dos médiuns quando riscada neles.

Figura 30: Médium em transe na representação corporal do machado de Xangô. Fotografia: Tulani Pereira.

Em seguida, o trabalho da gira é continuado com toques e pontos cantados para o Orixá Xangô e depois Ogum. Os médiuns incorporam os espíritos falangeiros que trabalham nas linhas destes Orixás, sucessivamente. Na Fraternidade, não se acredita que é possível uma pessoa incorporar um Orixá, pois sua energia é de tão elevada potência que desintegraria o corpo físico. O que eles acreditam é que existem irmãos espirituais que atuam na vibração de determinado Orixá, diferente do candomblé, que vê na manifestação do Orixá, a incorporação de um ancestral africano. Ao fim desta etapa, todos realizam filas de acordo com a hierarquia estabelecida e realizam uma cantiga para saudar Oxalá. Todos os médiuns e caboclos (inclusive Jandira) se ajoelham diante do congá. Nesta hora, ninguém incorpora, pois Oxalá é para o grupo, a força suprema do criador. Ao final da cantiga, todos os guias e entidades retornam a seus postos e começam a dançar antes de irem embora e os médiuns são transportados de volta. Toda a assistência fica de pé e os médiuns se posicionam no terreiro para as preces de encerramento. 117

Ao fim das preces o público é convidado a se retirar motivados por um canto em estima de que Deus os abençoe, e então a assistência passa por um corredor de médiuns enfileirados que imantam suas mãos em direção ao corredor até que todos saiam.

Figura 31: Médiuns ―batendo cabeça‖ no congá. Fotografia: Vilma Neres.

No espaço de socialização fora do salão da FEC, a assistência conversa, as pessoas se cumprimentam, falam sobre coisas que viram, que as impressionou ou até experiências mediúnicas que viveram. Lá dentro, o ritual ainda continua, e os médiuns conversam e batem a cabeça no congá (iniciando do menor grau para o maior grau). Daí todos os médiuns saem do salão e cumprimentam alguns frequentadores que ali ainda permanecem, finalizando as performances da gira de descarrego. Os expectadores neste momento, comentam entre si sobre as experiências vividas lá dentro, os alertas e recados recebidos, ou até as incorporações de entidades em alguns casos, quando um médium da assistência por ela é surpreendida. O ritual descrito atua de forma conjunta e não simultânea na participação entre entidades da direita (Orixás e Caboclos) e Exus e Pombagiras, entidades da esquerda. Onde tem Exu e Pombagira, não tem Orixá. Quando Orixás vêm, os Exus e Pombagiras já se foram. Ficou evidente que tanto um quanto o outro apesar de possuírem funções previamente definidas no ritual, trabalham em conjunto, mas não simultaneamente, por conta da divergência de vibração energética, mesmo focados no propósito de descarrego do terreiro, que sem dúvida, é cumprido pontualmente.

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3 - “Tranca Rua vem na frente dizendo quem ela é…”: Dimensões do corpo na performance da Pombagira

Dando prosseguimento às escritas, esta terceira parte constitui-se de um arcabouço de reflexões que dialogam juntamente aos aportes teóricos das relações étnico-raciais a respeito do corpo na performance da Pombagira. Seguimos trazendo algumas discussões referentes a análise da performance da Pombagira na FEC. Para tal, organizamos nosso texto de forma a observar o corpo em seu diálogo com demais linguagens artísticas. Assim sendo, indicamos três pontos de observação desse corpo-mulher na performance da Pombagira: 1. Corpo e imagem, no sentido de entender as conversas do corpo com os objetos, indumentária, cenário e outros sentidos que dialogam com imagem na performance; 2. Corpo e música, ao compreender o diálogo incessante entre corpo e canto, ritmo, toque percussivo, pontos cantados e os componentes que integram a musicalidade presente; 3: Corpo e cena, mergulhando nas questões referentes aos elementos cênicos como teatralidade, dança e jogos corporais (gestos/ações) que versam sobre essa Pombagira. Nossas perguntas são incessantes. Que aspecto são atribuídos à Pombagira? Será que este feminino apresenta características emancipadoras, de uma mulher independente, livre e protagonista de sua própria história? Será que seu corpo é simbolicamente apontado como ponto de fusão entre empoderamento e subversão? A que tipo de representação a Pombagira está associada? Essas questões serão discutidas e refletidas neste terceiro capítulo, propondo a análise da performance da Pombagira na FEC, ao observar a conjuntura de práticas da Casa, no sentido de perceber esse feminino especificamente a partir do contexto. No que diz respeito aos aportes teóricos, pensamos na questão do hibridismo cultural trazido por Néstor García Canclini na obra ―Culturas Híbridas‖ (2003). No tocante à questão da performance, realizaremos algumas discussões a partir das considerações sobre o corpo como repertório em alguns capítulos na obra de Diana Taylor (2013), além das contribuições de Judith Hanna (1999) no tocante a representações do corpo na dança. Tangenciando a questão do feminino e do corpo, agregaremos as contribuições teóricas de Mariana Leal de Barros através da tese ―‗Labareda, teu nome é mulher‘: análise etnopsicológica do feminino à luz de pombagiras‖ (2010). Ainda sobre corpo, 119

refletiremos acerca de algumas considerações de Michel Foucault em contato com trechos da obra ―História da sexualidade‖ (1988). Além disso, apoiamo-nos nas escritas de Aleksandra Stambowisky (2016) para discutir musicalidade e pontos cantados de Pombagira. Por último, agregamos algumas contribuições de Judith Butler (2003). Para fechar nosso aporte teórico, acrescentaremos algumas considerações de Roberto Cardoso de Oliveira referenciadas na questão da etnicidade como fator de estilo, na obra ―O trabalho do antropólogo‖ (2000). Somamos as reflexões sobre etnografias em espaços religiosos nos inspirando nas obras de Sérgio Ferretti em ―Querebentã de Zomadonu‖ (2009) e ―Repensando o sincretismo‖ (2013). Ainda na questão das relações étnico-raciais, contamos com as colaborações de Muniz Sodré (1997), Kabengele Munanga (2008; 2015), Frantz Fanon (2008) e Noguera (2014). Na questão do campo artístico, acrescentamos a falas de Rosamaria Bárbara (1999), Jorge Sabino e Raul Lody (2011), além da obra de Sandra Haydée Petit (2015).

3.1 – Corpo e imagem

Imagem. Toda performance está intrinsecamente relacionada a construção de sentidos imagéticos e identidade (LIGIÉRO, 2011, p. 69). Este subtítulo diz respeito ao tangível, ao palpável; a toda imagem que se pode visualizar, ao que está explícito aos olhos. Todo e qualquer objeto cênico utilizado no contexto da performance, será trazido a nossa escrita tudo que se veste, tudo que se desenha, tudo que se usa, tudo que se manipula, tudo que dá forma. Para nossa escrita, a noção de corpo não se separa do espiritual, ―[...] cada parte do espaço visível (aiê) tem uma contrapartida no orun. O duplo é externo ao indivíduo, mas não dicotomizado em termos de funcionamento‖ (SODRÉ, 1997, p.30). A partir dessa perspectiva, consideramos enquanto espaço cênico, o salão da Fraternidade Espírita Cristã onde acontecem as giras, onde as Pombagiras se manifestam. Este espaço cênico é composto não só pela delimitação espacial do ritual, mas se estende a toda estrutura do entorno até mesmo ao espaço onde a 120

assistência se acomoda. Para iniciarmos nossa discussão, faremos breve descrição do espaço (físico e ritual/cênico) e de alguns elementos nele utilizados. Ao passar pelo corredor de acesso ao espaço cênico, qualquer frequentador que adentrar no salão do templo se depara com a penumbra do ambiente. Sim, na gira de descarrego as luzes são apagadas e toda a iluminação é feita por lâmpadas de tonalidade azul, o que deixa o espaço cênico com uma aparência de noite de luar. Coincidentemente ou não, o objetivo é apenas espiritual no sentido de conduzir o trabalho, pois acredita-se que essa tonalidade de luz ajuda no fluir das energias. A gira de descarrego acontece sempre no horário da noite, mas até mesmo nas giras festivas de terceiro domingo – que se iniciam a tarde e terminam à noite – tais lâmpadas são utilizadas somente a noite. Logo, este tipo de iluminação não é uma exclusividade de Exus e Pombagiras. Fato há de se reconhecer que neste ritual em que os ―compadres e comadres‖ aparecem, o cenário da madrugada fica sugestivo com este tipo de luz. Com relação a outros elementos presentes no espaço da performance, observamos hibridismos não só de diferentes cosmovisões, mas a presença das tecnologias do mundo globalizado inseridas que se misturam a espaço ritual que retoma, na performance, alguns signos míticos de uma ancestralidade afrodiaspórica. Além do projetor, data show e mesa de som, usa-se principalmente caixa de som amplificadora e microfone para que a voz tenha alcance a todo o espaço cênico da performance.

Figura 32: A gira e a tecnologia. Fotografia: Tulani Pereira.

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Canclini (2013) sobre a realidade da modernidade, numa possível relação entre o popular e o culto, tendo estes como propulsores dos padrões que delimitam o que é culto na sociedade (CANCLINI, 2013, p. 63). Se assim realizarmos uma leitura desta ideia para a nossa pesquisa, podemos observar uma referência da umbanda enquanto religião popular que busca se melhorar através da intercessão da ideia de culto através desses recursos tecnológicos exemplificados. Sob a ótica destes traços da modernidade, na busca da eficiência, em outras palavras, parece-nos essa uma tentativa de aproximação da ideia de evolução. O defumador é utilizado no início do ritual, assim como em outros processos em que há preparação para incorporação das entidades na Casa, seja no dia de gira de terceiro domingo (festiva/desenvolvimento) ou última sexta (descarrego) e no dia de consulta às quartas. É interessante observar que, na gira de descarrego, o defumador não só prepara o ambiente e médiuns para o ritual, como tem a representação de proteção e limpeza energética para o próprio descarrego. Neste espaço híbrido, a concentração de energia para a performance e para a gira se centraliza no congá. O altar agrega uma série de símbolos imagéticos em seus objetos, onde além do próprio congá, citaremos alguns a seguir. Sempre se toca o sino da Casa quando há chegada de alguma entidade. Este sino fica sob responsabilidade de um médium ocupante de cargo de guardião, sabaceiro ou de alguma entidade que dê consulta na Casa. Observamos que na chegada dos falangeiros dos Orixás, caboclos, pretos velhos e crianças, ou até mesmo demais falanges como a de boiadeiros – geralmente o toque é invocado na gira de descarrego: o sino toca para anunciar a chegada dessas entidades.

Figura 33: O sino e outros utensílios de trabalho. Fotografia: Tulani Pereira. 122

Entretanto, no momento de chegada dos Exus e Pombagiras, este sino se ausenta do anúncio. Sem atribuir juízo de valor algum com relação a essa prática, observamos que este objeto utilizado no ritual pode ter uma representação simbólica que reforça a umbanda a partir de uma divisão entre linha da direita e linha da esquerda. Sobre essa bipartição, Renato Ortiz (1978) aponta perspectivas embranquecedoras em que se baseia a dicotomia da umbanda de bem e mal:

Em princípio, existem quatro gêneros de espíritos que compõem o panteão umbandista; podemos agrupá-los em duas categorias: a) espíritos de luz: caboclos, pretos-velhos e crianças – eles formam o que certos umbandistas chamam de triângulo da umbanda; b) espíritos das trevas –- os exus. Esta divisão corresponde à concepção cristã que estabelece uma dicotomia entre o bem e o mal; enquanto os espíritos de luz trabalham unicamente para o bem, os exus em sua ambivalência, podem realizar tanto o bem quanto o mal, mas representam sobretudo a dimensão das trevas. (ORTIZ, 1978, p. 65)

De fato, somos arrematados por práticas e imaginários coletivos que se expressam nas formas mais simbólicas e que denotam a visão judaico cristã. Felizmente, observamos nesta Casa muitas falas das entidades e seus próprios médiuns que Exus e Pombagiras não são espíritos trevosos e que os caboclos e pretos velhos também estão buscando evolução tanto quanto os compadres e comadres, mas é perceptível, que as perspectivas evolucionistas sempre reservarão uma categoria subalternizada para o povo de rua. Além do sino, outros objetos que compõem o congá partem do princípio da reunião de elementos naturais: cristais e pedras que funcionam como assentamentos – catalizadores energéticos com princípios elementares (forças dos Orixás) – e também velas e copos d‘água, representando outras forças naturais. Um dos copos d‘água, se diz ser da cabocla Jandira e possui búzios dentro. Apresentam-se dispostos de forma centralizada, no altar, uma grande bíblia e, mais acima na parede, um crucifixo com a imagem de Jesus Cristo. Tudo ornamentado sobre uma rica toalha de renda branca e alguns incensos.

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Figura 34: Congá da FEC em 2016. Fotografia: Tulani Pereira.

A cosmovisão da umbanda agrega a multiplicidade: elementos cristãos, esotéricos, orientais, indígenas e africanos. Apesar desta premissa agregadora, Ligiéro em ―Iniciação a umbanda‖ atenta para a centralidade cristã nos altares umbandistas:

Nos altares de umbanda, é comum vermos a figura tranquilizadora do Cristo de braços abertos, oferecendo seu amor e caridade indistintamente a todos. Sua cabeça aureolada emite a luz do conhecimento espiritual que esclarece questões e apazigua conflitos, abrandando o ardor dos espíritos inflamados. Paz na Terra às pessoas de boa vontade. (LIGIÉRO; DANDARA, 2013, p. 125)

Na obra de Norberto Peixoto (2008), referência para estudos na Casa,

O congá é o mais potente aglutinador de forças dentro do terreiro: é atrator, condensador, escoador, expansor, transformador e alimentador dos mais diferentes tipos de energias e magnetismo. Existe um processo de constante renovação de axé que emana do congá, como núcleo centralizador de todo o trabalho na umbanda. Cada vez que um consulente chega à sua frente e vibra em fé, amor, gratidão e confiança, renovam-se naturalmente os planos espiritual e físico, numa junção que sustenta toda a consagração dos orixás na Terra, na área física do templo. (PEIXOTO, 2008, p. 59)

Nesta perspectiva, o corpo na performance da Pombagira está ligado a este cenário de modo unilateral, baseado no objetivo espiritual que a Casa preconiza: canalizar energia para este local especial no espaço da Fraternidade. 124

Figura 35: Pombagira dança para o congá. Fotografia: Vilma Neres.

Em determinado momento da performance, quando maioria das entidades já desincorporaram, todos os envolvidos – performers e expectadores – se preparam para a descarga de fogo. Então, como já descrevemos, um médium pega álcool e o derrama no chão, deixando o líquido formar o desenho de um tridente. Todos obrigatoriamente ficam de pé e as crianças de até 12 anos de idade precisam se retirar do recinto28. Em seguida, a cabocla Jandira pega uma vela acesa e coloca o fogo em contato com o álcool, acendendo um tridente grande em chamas. Enquanto isso, Exus e Pombagiras trabalham em torno do tridente, até que toda a chama de fogo cesse e finalize a limpeza.

28 Através das experiências da autora desta dissertação ao frequentar casas de axé, percebe- se a construção de um imaginário social em que Exus e Pombagiras não se aproximam de crianças. Na verdade, essa conduta da FEC de afastar os pequenos de até 12 anos se justifica por um acreditar que, até esta idade, a mediunidade das crianças está completamente aflorada sendo possível que durante a descarga de fogo, a carga energética negativa que está sendo eliminada possa vir a ser absorvida por eles, cujo processo de vulnerabilidade e necessidade de amadurecimento espiritual são grandes. Todavia, cabe ressaltar que de acordo com a observação de outros espaços religiosos, percebeu-se que na prática, esse imaginário de que criança não combina com Exu nem Pombagira é equivocado. 125

Figura 36: Pombagira entre as labaredas. Fotografia: Vilma Neres.

Trata-se de um momento extremamente significativo da performance, do diálogo corpo-imagem. O auge da performance ocorre no instante em que o ritual é realizado com a descarga de fogo. Enquanto o fogo consome o combustível, as Pombagiras dançam em torno das chamas. Esta questão sintetiza a função das Pombagiras na FEC, ponto tão bem explicitado pela Pombagira Rainha: ―Porque nós, nós só estamos vindo aqui pra descarregar‖29. Este momento é culminante na gira, pois além do que acontece com quem atua efetivamente no ritual, toda a assistência participa batendo palmas, batendo pés e vibrando pela limpeza espiritual de seus corpos. Enquanto isso, o atabaque é tocado freneticamente, acompanhado do seguinte ponto cantado em coro forte:

Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver! Eu quero ver esse fogo santo, eu quero ver! Eu quero ver esse fogo santo, eu quero ver! Eu quero ver em seu terreiro o fogo descer! (Ponto cantado registrado em trabalho de campo. São João de Meriti, 2015)

Este fogo, Exusíaco, socialmente demonizado pelos valores judaico cristãos, é santificado no ritual de acordo com o ponto cantado. Coincide tal perspectiva com uma prática, segundo eles, que busca uma evolução espiritual? Seguindo, analisemos nas escritas de Silva (2015) uma outra representação contida nas labaredas através da forma do tridente como um dos símbolos de Exu Orixá, que consequentemente formata simbologias à Exus e Pombagiras na umbanda:

29 Trecho que compõe entrevista realizada com a Pombagira Rainha na FEC. Confira a transcrição na íntegra no anexo C. 126

Os garfos de pontas triplas ou duplas, por serem sínteses das ideias de encontro, transição, passagem e sexualidade, se tornaram potentes símbolos transnacionais do orixá, vistos em seus pontos riscados e ferramentas. (SILVA, 2015, p. 53)

Levando em conta essas características, deparamo-nos com a seguinte tensão: Existem conflitos entre a imagem do tridente e a letra do ponto cantado durante a performance? Para nós aparenta apenas uma confluência de elementos cosmológicos que se mostram num convívio híbrido, mas repleto de uma ideologia hegemônica, do embranquecimento de Exu e Pombagira, das práticas performativas que ressignificam as afrodiasporidades. Outros elementos imagéticos que compõem a performance da Pombagira voltam-se aos pontos riscados. Sobre eles, Ligiéro e Dandara versam:

Os ancestres na umbanda são denominados pretos-velhos, caboclos, Exus ou pombagiras, de acordo com o conteúdo que, simbolicamente, trazem do mundo dos mortos. Cada qual tem o seu ―ponto riscado‖ – ícone que evoca as suas qualidades, os distingue e convoca no ciberespaço da umbanda. (LIGIÉRO; DANDARA, 2013, p. 170)

Na FEC, o ponto riscado é pouquíssimo utilizado. Mesmo assim, se atribui à forma do riscado aos fundamentos das entidades, falanges espirituais e elementos da natureza/Orixás. O ponto riscado na fotografia está centralizado no templo da Casa e é pintado com tinta, por este mesmo motivo, trata-se de um ponto riscado fixo. Ele representa a falange da Cabocla Jandira, líder espiritual da FEC e fica diante do congá.

Figura 37: Ponto riscado da Cabocla Jandira. Fotografia: Vilma Neres. 127

Outro risco feito na performance da Pombagira, apesar de não ser realizado por ela ou no momento em que ela está manifestada, aparece no ritual de descarrego, é o cruzamento do templo (termo utilizado e divulgado na FEC por seus próprios membros). Neste momento se desenham cruzes nas quatro extremidades do salão do templo e uma no meio com uma pedra de giz branca, cujo nome popular é conhecido por pemba. Tocamos na questão deste traço da cruz, porque a imagem do crucifixo, apesar de estar comumente atribuída simbolicamente ao cristianismo pode ser percebido também no universo banto. Ligiéro e Dandara (2013) afirmam existir uma correlação entre a imagem da cruz cristã com o mesmo traço de uma encruzilhada. Essa forma de traçado é realizada no ponto riscado do cruzamento do templo na FEC e sua representação compõe uma cosmovisão afrodiaspórica banto:

Todos esses diagramas, ou assinaturas de espíritos, bem como os pontos riscados da umbanda, têm sua matriz comum no cosmograma congo chamado genericamente dikenga, do qual assimilaram a simbologia da cruz, o uso de círculos, linhas paralelas e transversais. (LIGIÉRO; DANDARA, 2013, p. 179)

Figura 38: A encruzilhada no traçado. Fotografia: Tulani Pereira.

Há de se refletir em relação a este cruzamento do templo, pois é possível que haja um hibridismo cultural entre a representação simbólica do crucifixo cristão e o fundamento da cosmovisão banto, como proteção espiritual. Durante nossas pesquisas, pudemos identificar intercessões entre essas duas formas de traçado. 128

E o que se pode dizer em relação ao ponto riscado em que o traço não se mostra com a pemba? De fato, o corpo protagoniza a assinatura da história e memória na performance. Os poucos Exus e Pombagiras que assinam seus pontos riscados o fazem com seus próprios corpos, sem uso da pemba. Utilizam uma parte do corpo e escrevem no chão, desenhando seus símbolos, sem o uso de tinta ou outro material que produza pintura do chão. As Pombagiras quase não fazem isso, a única em que se observou delinear um ponto riscado utilizou rosas para assinar uma estrela de seis pontas, símbolo da linha do oriente e da falange das ciganas. A presença do corpo ao construir sentidos ganha uma dimensão potencial muito grande. Jorge Sabino e Raul Lody (2011) falam sobre uma perspectiva outra desse corpo:

Fala-se aqui de outro conceito e compreensão de corpo, de formas de representar e de comunicar: por gestos, pela sutileza de olhares, pelos detalhes das mãos; são muitos os sinais que servem para dizer as coisas do cotidiano, da festa, distinguindo assim, hierarquias e gêneros que marcam estilos e formas de dançar de matriz africana. (SABINO; LODY, 2011, p. 82)

Nossa visão de corpo concentra ações que se integram às linguagens artísticas, desenvolvendo uma totalidade imagética na performance da Pombagira, o que nos permite observar seus contextos, práticas e possibilidades através dessa expressividade enquanto pilar de nossa pesquisa. Em acréscimo a este corpo, a indumentária possui papel fundamental nesta prática performativa afro-brasileira. Ao contrário do que se possa pensar enquanto uma vestimenta de Pombagira, a FEC procura não ir ao encontro do que supostamente possa se conceber enquanto vestes para o trabalho espiritual próprios do universo umbandista: nada de saias rodadas ou vestidos nos tons vermelho e preto. A representação da Pombagira no universo da Casa é desconstruída por meio do uso de roupa somente branca. Assim, as Pombagiras se vestem como qualquer outra entidade da FEC: usam calça branca, jaleco branco e cordão na cintura de acordo com a função de seu médium. Isto significa, para a Casa, uma leitura mais evoluída e menos mistificada sobre a Pombagira. Por outro lado, do ponto de vista artístico-corporal sob viés étnico- racial, é justamente na configuração destes elementos que se mostram novas possibilidades. A princípio, nada de atraente aos olhos além de uma única cor, pouco movimento nos tecidos, além de total tentativa de encobrimento do corpo. Fato curioso 129

é que as Pombagiras revelam a silhueta da mulher, mesmo forçosamente embrutecidas por dentro do jaleco, mostrando-se em suas sensualidades.

Figura 39: Pombagira sobre saltos. Fotografia: Vilma Neres.

Notamos quadris acentuados por dentro de pares de calças e o repuxar das bordas do jaleco, sustentados pelas mãos na cintura. Ali, os tecidos se tornam saias e bailam junto ao girar dos corpos, extasiados pelo rufar dos tambores. Mesmo de pés descalços, algumas até com calçados brancos, percebemos o marcar dos pés que denotam um caminhar faceiro, outros inclusive indicam o uso de salto alto, evidenciados pelos pés na meia ponta. De acordo como Zeca Ligiéro (2012), é neste momento em que se ratifica que a performance ajuda a contar histórias e a representar memórias, pois se vê nitidamente determinados elementos que remetem ao tempo mítico das entidades, como citaremos a seguir alguns exemplos. Um dos elementos cênicos e performáticos mais usados pelas Pombagiras são as rosas. Consideradas grandes símbolos das Pombagiras, aparecem durante a performance, mas somente nas mãos de algumas moças. Essa ―exclusividade‖ traz significados específicos. De acordo com a leitura da Casa, trata-se de um merecimento, uma ação que tem a finalidade de limpar o ambiente e as pessoas. É concedido aos médiuns de funções com mais responsabilidades na Casa e que já 130

possuem uma inserção maior no trabalho espiritual, conhecimento doutrinário e desenvolvimento mediúnico. Sobre a ótica de trabalho do merecimento, observamos que a mesma possui uma perspectiva muito próxima a um sistema meritocrático que delimita as funções de cada um dentro da hierarquia da Casa e mesmo em contextos sociais mais ampliados. Em acréscimo às questões da meritocracia, observamos em reuniões fechadas e até mesmo nas palestras e estudos da Casa, a fala de um membro pautada no posicionamento contrário às políticas de cotas raciais, sob justificativa meritocrática, ratificando a visão evolucionista kardecista com base na lei do karma, pautada na ideia de que ―aqui se faz, aqui se paga‖. Ainda acerca da indumentária, há outros elementos imagéticos que se mostram na forma, no corpo e no movimento das Pombagiras, mas de fato não se encontram materialmente ali, visíveis. A FEC não faz uso de comidas grandes e oferendas. Do mesmo modo, as Pombagiras não possuem autorização para utilizar vestimentas vermelha e preta, como também não consomem bebidas alcoólicas e tampouco usam taças, cigarrilhas, joias, etc. Tudo isto é visto como algo desnecessário na FEC, pois se acredita que todos esses elementos imagéticos representam misticismo, um reforço ao estereótipo da Pombagira-puta. Por outro lado, no corpo em cena que se movimenta durante a performance, as Pombagiras que se manifestam exibem esses objetos representados em seus corpos durante a dança. Um simples gesto com as mãos e notamos o acolhimento de uma taça ―invisível‖ ou até mesmo na leveza dos dedos que indicam supostamente um cigarro em sua mão. Esta questão do uso ritual do fumo é muito importante, pois além de construir uma representação poética e estética da Pombagira, o cigarro que elas usam no ritual possui significados específicos e o próprio uso é moralmente justificado pelos sentidos que adquirem durante a realização do trabalho espiritual. 131

Figura 40: O gestual das mãos. Fotografia: Vilma Neres.

Na FEC entende-se que o uso do fumo, independente da entidade que seja, possui a finalidade de plasmar energia para a realização do trabalho, ajuda na incorporação dos médiuns e apenas algumas entidades têm autorização para fumar (assim como o caso do uso das rosas). Isto transmite uma certa credibilidade à entidade, pois a assistência se prende à materialidade dos objetos usados no ritual, como é o caso do fumo. A crença na materialidade ritual na manifestação da Pombagira parece somente se efetivar se de fato a entidade fizer uso de fumo ou possuir determinados trejeitos correspondentes a um estereótipo de Pombagira, como sensualidade, deboche, etc. Na dinâmica interna da Casa, o uso ritual do fumo foi aspecto problematizado em conversas e reuniões observadas entre médiuns. Houve a tentativa de abolir o uso do fumo, afirmando ser ele signo do atraso espiritual e do entrave do processo evolutivo da Casa como um todo. Entretanto, observemos que este aspecto do fumo não está envolto no resquício de cultura eurocentrada, portanto, fica a seguinte questão: Será que essa é mais uma tentativa de apagamento das características marcadamente associadas à marginalidade de grupos negros cujas cosmovisões compõem o imaginário e a performance da Pombagira? Além disso, observamos que o fumar em si, no gesto e na ação, constrói uma corporalidade feminina da mulher transgressora à regra, empoderada (justamente porque não obedece à regra), abusada, ousada, imponente. Nenhuma relação de 132

poder opressora, como a colonialidade, poderia permitir este corpo-mulher se manifestar desta forma. No que tange a outros diálogos imagéticos com o corpo, introduzimos um adendo sobre a ausência de algumas imagens que supostamente poderiam aparecer, como por exemplo a própria questão da indumentária e dos objetos cênicos, mas por conta da questão da reconstrução do ritual na FEC de forma singular em relação ao que comumente é encontrado em outras casas de umbanda em relação a esses aspectos, citamos algumas considerações. O espaço físico do ritual, como está visualmente acessível a olhos curiosos, não apresenta nenhum tipo de imagem (escultura), a não ser o crucifixo centralizado no topo do congá. Sobre a questão das imagens, o que já observado em outras casas de umbanda costuma ser muito notável em seus espaços físicos, na FEC é algo quase nulo. A relação das imagens, sobretudo de santos católicos, estabelece uma relação com o sincretismo religioso (LIGIÉRO; DANDARA, 2013) em seu contexto histórico de perseguição cristã às religiões afrobrasileiras. Sérgio Ferretti (2013, p. 98) afirma que o sincretismo pode se agregar a múltiplos sentidos em relação aos aspectos desses cultos e está comumente associado a confluência, cruzamento, hibridação e equivalência. Sobre a ideia romantizada de sincretismo, que estaria relacionada a uma equivalência harmônica, poderíamos afirmar que a FEC procura desconstruir essa visão. É um espaço muito preocupado em não nutrir o pensamento de seus frequentadores com conexões que aproximam e/ou associam a imagem de santos católicos ou a Orixás personificados, por exemplo. Por outro lado, percebemos em materiais fotográficos mais antigos da Casa, que essa condição atual trata de um processo de desvinculação, visto que algumas imagens de santos eram utilizadas anos atrás e estão guardadas, inclusive, sem utilidade, mas que foram recebidas de presente por membros da assistência e permanecem escondidas numa pequena sala que armazena os utensílios para os rituais. Este espaço é chamado ―sabaçaria‖.

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Figura 41: Imagens guardadas na sabaçaria. Fotografia: Tulani Pereira.

Nas giras de descarrego, além do crucifixo centralizado na parede do congá, nenhum outro tipo de imagem, além do corpo das Pombagiras, aparece. Com relação a outros elementos imagéticos e objetos cênicos, elas não consomem bebidas (alcoólicas ou não) e comidas, tampouco alimentos e bebidas são servidas à assistência. O ato de comer e compartilhar o alimento com os seus, é algo muito raro na Casa. Tal atitude expressa o desencontro com uma perspectiva que é própria das práticas de casas de axé, compartilhar o alimento. As Pombagiras, beber ou comer durante a gira é algo que simplesmente não é praticado na FEC e, assim como o fumo, passa pelo mesmo processo de diminuição do ato de comer ou beber, sendo vistos como atraso da evolução espiritual. O que tais conversas entre corpo e imagem propiciam e que são importantes de ser destacadas? Observando cuidadosamente percebemos que a Casa é repleta de heranças cristãs embranquecidas e intensamente ligadas ao controle permanente dos corpos femininos em todos os aspectos da imagem, da forma e da estética. Podemos discutir o quanto essas práticas reforçam laços culturais, artísticos e religiosos de uma visão colonizadora que imprimem suas características mais discretas e imperceptíveis de poder.

Algumas críticas mais radicais produzidas pelo Ocidente hoje são resultados de um desejo interessado em manter o sujeito do Ocidente, ou o Ocidente como sujeito. A teoria dos ―sujeitos efeitos‖ pluralizados dá a ilusão de um abalo na soberania subjetiva, quando, muitas vezes, proporciona apenas uma camuflagem para esse sujeito do conhecimento. (SPIVAK, 2010, p. 20-21)

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As colonialidades de poder e a forma como se infiltram no cotidiano do ritual reforça posicionamentos que reprimem comportamentos, imagens entre outros traços afrodiaspóricos da performance da Pombagira. Essa soberania subjetiva, de fato reforça que o sujeito subalterno é um efeito do discurso dominante.

3.2 – Corpo e música

Neste segmento, nosso intuito é propor uma discussão a respeito da música enquanto linguagem artística em conversa com o corpo. Que corpo é esse que dança, gesticula e se expressa, entre tantas maneiras, com singularidades e que produz som e poesia? Que som é esse, senão uma composição que conjuga entre tantas etnicidades, heranças afrodiapóricas que remontam o tempo, reconfiguram o espaço e resgatam a memória? Pretendemos aqui, dar destaque às sonoridades que compõem a performance da Pombagira, evidenciando a musicalidade presente nos aspectos em que som e corpo, música e dança se mostrem em indissociável relação. ―[...] a dança e a música, associadas ao mito, têm a função de uma literatura nas sociedades de tradição oral e possuem uma pluralidade de sentidos‖ (BÁRBARA, 1999, p. 155). Para enaltecer esta performance, reafirmamos, segundo as colocações de Ligiéro (2012, p. 108-109) que toda performance onde se contemple o trio ―cantar- dançar-batucar‖, abriga uma performance afro-brasileira. Ainda que, na realidade da FEC, muitas práticas performativas estejam ressignificadas sob outros pontos de vista, esta tríade se mostra, apesar dos acordos e convenções, permanente. O primeiro elemento a ser citado, o tambor:

A ação de percutir os atabaques está na habilidade corporal desses músicos instrumentistas, a qual se dá como uma verdadeira dança que acompanha os diferentes momentos dos toques. Sem dúvida, há o sentimento integrador entre o corpo e o instrumento que buscam formar única voz. Vozes dos couros, do ferro, da cabaça e do próprio corpo. É a total integração entre os instrumentos e as coreografias. Há uma liberdade criadora na produção dos sons e dos recursos que cada instrumentista terá, dando reconhecimento aos seus estilos musicais. (SABINO; LODY, 2011, p. 91)

Canal de comunicação. Instrumento ritual de chamamento que aproxima, convoca o lado espiritual a participar, manifestar-se, dançar e compartilhar seu axé. Durante a participação observante nas giras, percebemos uma sonoridade percussiva 135

muito familiar e em alguns momentos próxima à cadência rítmica do samba, no toque denominado cabula. Na FEC, apesar de toda dinâmica de trabalho construída, a presença do tambor é algo que desde sua fundação nunca se perdeu. Mesmo assim, seu uso é específico e pontual: apenas nas giras festivas, de desenvolvimento e de descarrego.

Figura 42: Ogã tocando tambor durante a gira de descarrego. Fotografia: Vilma Neres.

As vivências em comunidades de terreiro indicam que o ato de tocar o tambor confere uma função exclusiva aos homens, sendo tal cargo chamado de ―ogã‖. O ogã é o responsável por proferir as cantigas, tocar e manter a energia através da linguagem musical, de maneira que esta evoque as divindades e entidades no ritual, promova vibração e impulsione corpos a entrarem no transe, dançarem e se movimentarem. Possuindo 3 tambores, a FEC funcionou durante tempo considerável com apenas 1 único ogã. Este mesmo ogã se afastou e mais tarde, incorpora o grupo mediúnico de outra casa. Posteriormente, três novos ogãs assumem, filhos adolescentes de médiuns da FEC que desde crianças cresceram no convívio da Fraternidade, inseridos na evangelização infanto-juvenil. Ao completar um ano da etnografia por nós iniciada, os três ogãs foram se afastando por questões de estudo e 136

trabalho. Atualmente a Casa conta com ajuda do antigo ogã, que vai a FEC para tocar nas giras uma ou duas vezes ao mês. Nesses entremeios, muitas dificuldades foram enfrentadas para se manter ao menos um ogã da Casa. Algumas giras contaram com a presença de ogãs convidados e até mesmo financiados para atuar na Casa. Isso expressa o quanto a presença do toque na gira é considerada fundamental e parte constituinte do ritual, elemento do qual não se abre mão. Retomando a questão do tambor e sua intrínseca relação com um domínio de poder masculino, ressaltamos a questão da figura do homem na centralidade do poder, como uma forma de essencialização da presença do patriarcado enquanto sinônimo de normatividade. A representação do homem na lida com os tambores nos cultos afrobrasileiros implica em símbolos de poder e prestígio, conferindo lugar especial na hierarquia do ritual, pois ele é importante mediador da gira. Seguindo nesta perspectiva, uma experiência vivenciada na FEC consistiu ótima oportunidade para a desconstrução dessa essencialização do lugar do homem como figura exclusiva na lida com o tambor. Durante a gira festiva de Oxóssi de 2015, cujo ritual abre os trabalhos do ano, não estava presente o ogã antigo da Casa e nem os três jovens que o substituíram. Diante disso, fui prontamente convocada pela Cabocla Jandira para assumir o posto, pelo conhecimento de alguns toques de percussão. Durante três ininterruptas horas, e com a ajuda de mais outros dois voluntários da assistência (homens), houve gira com uma mulher tocando o tambor. Nesta oportunidade, foi possível refletir sobre as desconstruções que a FEC procura realizar. Esta, por exemplo, oportunizou que a mulher ocupasse um papel social, dentro do contexto da Casa extremamente respeitável. Por outro lado, torna-se necessário dizer que esta ocupação do feminino neste espaço de dominação masculina somente aconteceu na falta de uma figura masculina que o fizesse. Sendo assim, não se trata de uma ruptura epistêmica na lógica da Casa e sim uma compensação. Evidentemente, não desmerecemos o movimento realizado pela casa, entretanto destacamos que esta conjuntura reflete os sistemas de dominação do patriarcado. Nesta perspectiva do local, o espaço do terreiro na FEC se mostra um ambiente cercado pela musicalidade em diversas atividades que se cumprem no ritual. No tocante a performance das Pombagiras, a questão musical é extremamente presente, elemento esse que compõe a tríade apresentada por Fu-Kiau uma vez citada neste trabalho através da obra de Ligiéro (2011): o cantar-dançar-batucar. 137

O cantar, um dos pilares desse trio, está presente nas cantorias que se realizam para evocar as Pombagiras. As cantigas feitas no ritual são denominadas pontos cantados e trata-se de um componente importante nas práticas rito-litúrgicas da umbanda.

Os pontos cantados são orações ritmadas, poesia e axé produzindo movimento, força e vida. Alimento, consolo e desafio. Amarração, resposta e tessitura de saberes e ações que mesclam passado e presente em um processo de (re)invenção. Tradição oral que se (re)vive a cada enunciação. (CARVALHO, 2016, p. 18-19)

Os pontos cantados são produzidos por homens, pois afinal, o cargo de ogã é a eles conferido, onde são treinados para tal por não possuírem transe mediúnico e se preparam a partir de uma série de preceitos (CARVALHO, 2015, p. 21). O canto é sistematizado em modo responsorial, e nesse sistema ritualizado do canto, da voz solo com coro, se faz presente uma forte herança dos batuques negros, repletos de signos religiosos que influenciaram significativamente não somente as sonoridades das religiões de matriz africana, como as principais diretrizes da sonoridade brasileira (TATIT, 2004, p. 22). Na umbanda, o ogã inicia cantando um trecho do ponto cantado e em seguida, todos respondem em coro cantando a resposta ao ponto puxado pelo solista. Na FEC, os pontos cantados são utilizados para as mais diversas finalidades. Assim como em qualquer casa de umbanda, existem pontos cantados para iniciar ou encerrar o trabalho espiritual, para defumar o templo (terreiro), para evocar e/ou saudar as entidades, transmitir conforto àqueles que procuram a Casa em busca de alívio para suas aflições. Os pontos servem também de resposta ou desafio, sendo assim conhecidos popularmente como pontos de demanda (CARVALHO, 2015, p. 54). No caso das Pombagiras, os pontos cantados enunciados na FEC fazem menção à fundamentos e a constituição identitária da própria entidade envolvida no trabalho espiritual: quem elas são, de onde vem, onde e como agem, para que trabalham e onde trabalham (em qual linha de vibração energética). Muitos pontos cantados conhecidos popularmente em casas ditas mais tradicionais na umbanda não são proferidos na FEC por decisão da espiritualidade dirigente da Casa. Durante a etnografia, na maioria das giras, observou-se que os pontos cantados eram proferidos não só pelos ogãs, mas também eram acompanhados principalmente por uma das médiuns que fica com um microfone cantando os pontos para garantir que o canto possa ser efetivamente ouvido por toda a assistência. 138

Os pontos cantados que compõem o ritual, não só os de Pombagiras, mas como todos os de Exus masculinos, passam por um processo de ressignificação de sentidos ou até mesmo de representações. A seguir, introduziremos alguns exemplos de pontos cantados utilizados na gira de descarrego para saudar as Pombagiras. A questão em que tocamos ao falar de ressignificação se refere a uma substituição de determinadas palavras e/ou termos, até mesmo trechos da letra de pontos cantados, com o intuito de aproximá-los a perspectiva ideológica da Casa de evolução espiritual.

Vem Pombogira Auê, quem me chama? Mas ela é uma mulher encantada, Ela é Pombogira rainha da estrada. (Ponto cantado registrado em trabalho de campo, São João de Meriti, 2015. Grifo nosso)

Chamamos a atenção primeiramente para a utilização do termo ―pombo‖ ao invés de ―pomba‖, o que comumente acontece na FEC percebemos que alguns pontos cantados oscilam entre Pombagira e Pombogira. Na palavra em destaque, visualizamos um exemplo de substituição para com a letra original, que é cantada segundo domínio popular:

Vem Pombogira Auê, quem me chama? Mas ela é uma mulher desgraçada, Ela é Pombogira rainha da estrada. (Ponto cantado de Pombagira, domínio público. Grifo nosso)

Observemos que o trecho agora em destaque coloca a mulher em lugar de depreciação e realiza discursivamente a desqualificação de sua imagem. Desgraçada é algo sem graça, sem luz? Essa versão do ponto cantado, já foi ouvido desta forma em outras de nossas experiências em terreiros de umbanda no Rio de Janeiro. Não é nossa intenção aprofundar discussões sobre os discursos que se encerram nas modificações de pontos cantados realizados na FEC, mas fazemos a provocação de que o chamamento da Pombagira como mulher desgraçada parte de uma cosmovisão e enunciador específicos. Se observarmos com mais cuidado, podemos perceber que o próprio entendimento de ―mulher desgraçada‖ pode estar a serviço das dominações patriarcais. A título de curiosidade inicial, com qual intuito a FEC se dispõe a modificar os pontos cantados? Durante nosso trabalho de campo e em breve conversa com a Pombagira Rainha, perguntamos sobre a questão dos pontos cantados e suas modificações. A 139

Pombagira concedeu sua fala afirmando que a proposta é desconstruir o estereótipo de Pombagira como sendo o mal, hipersexualizada, mulher que vem do inferno e é ―mulher‖ (no sentido de esposa) do diabo. Percebe-se, e isto não ocorre somente na FEC, segundo nossas observações e conforme aponta Aleksandra Stambowisky de Carvalho (2016) há uma onda de subalternização da figura da mulher reproduzida nas narrativas presentes nos pontos cantados. Neste componente, a mulher é vista sob a perspectiva do julgamento moral e em relação de dependência, afirmação e olhar masculino que busca compor representações sobre ela, seu corpo e seu ser mulher. Para compor o título desta dissertação, escolhemos o trecho de um ponto cantado bastante significativo que ilustra bem esta fala:

Arreda homem, que aí vem mulher Arreda homem, que aí vem mulher Ela é a Pombogira rainha do cabaré Ela é a Pombogira rainha do cabaré Tranca Rua vem na frente, dizendo quem ela é Ela é a feiticeira rainha do cabaré. (Ponto cantado registrado em trabalho de campo, São João de Meriti, 2015)

Este ponto cantado representa com profundidade as questões que permeiam as relações hierárquicas constituídas entre gêneros. Visto a poética contida na letra, pretendemos discuti-la do ponto de vista artístico. Notemos que a letra faz menção à Pombagira como sendo a mulher do cabaré, correlata a ideia de promiscuidade e vida mundana. Um homem, Tranca Rua vai na frente, para dizer quem ela é. E mais uma vez o sistema do patriarcado fala pela mulher e da mulher, não perdendo tempo para nomeá-la de feiticeira, diminuindo seu poder e sexualidade.

A nobreza de Pombagira (rainha), deriva de seu matrimônio com Lucifér; é a partir dessa relação que ela conquistou prestígio e poder, o que, em nossa visão, esvazia o protagonismo da entidade feminina, constituindo uma prática sexista, o que colabora para a desigualdade de gênero e uma pseudo-dependência feminina. (CARVALHO, 2016, p. 109)

Através da valiosa pesquisa de Aleksandra Stambowisky de Carvalho sobre pontos cantados, ratificamos aqui um não somente a presença das perspectivas sexistas, separadoras e discriminatórias entre gêneros, onde esta mulher Pombagira é posta a serviço subjugado ao homem, mas também percebemos uma atmosfera embranquecedora que a FEC respira, numa tentativa contínua de suavizar os sentidos que se encerram na representação dessa Pombagira. Vejamos outro ponto cantado coletado em pesquisa de campo na FEC: 140

Que mulher é aquela Que vem quase nua Bebendo cachaça e caindo na rua Ela é Maria Padilha Ela é Maria Padilha. (Ponto cantado de Pombagira, domínio público. Grifo nosso)

Este ponto cantado é dedicado a Maria Padilha, uma das falanges mais conhecidas de Pombagiras. Nele, podemos analisar a figura de Pombagira interpretada segundo um arquétipo comumente conhecido, delineada pela vulgaridade, com o corpo à mostra, munida de vícios. Na FEC, ao nos depararmos com a mesma versão melódica e quase que idêntica na letra, entretanto, com pequenas alterações:

Que mulher é aquela De lua em lua Bebendo marafo e caindo na rua Ela é Maria Padilha Ela é Maria Padilha. (Ponto cantado registrado em trabalho de campo, São João de Meriti, 2015).

Esta versão utilizada na FEC, propõe uma leitura de uma mulher andarilha, que transita ao cair da noite – ―de lua em lua‖ – apresentando um dos fundamentos principais de Exu, substituindo os sentidos reproduzidos em torno de uma imagem com relação às ideias de libertinagem e voluptuosidade do corpo feminino. Além disto, substitui a palavra cachaça, utilizada popularmente para designar a bebida de aguardente, por marafo – estritamente reconhecida em determinados contextos. Notamos que ao analisar os pontos cantados a partir do contexto de ressignificação da entidade Pombagira, há uma tentativa de amenizar as características atreladas a esta entidade, propondo uma possível adequação da mesma em um encadeamento de regras consideradas aceitáveis para ascensão espiritual. Vejamos um último ponto cantado:

Ô ciganinha, ciganinha... da sandália de pau Ô ciganinha, ciganinha... da sandália de pau Onde ela passa Faz o bem, não faz o mal (Ponto cantado registrado em trabalho de campo, São João de Meriti, 2015).

Este último ponto, é um exemplo de modificação, onde o trecho ―faz o bem, não faz o mal‖ é originalmente conhecido por ―faz o bem ou faz o mal‖. Esses imaginários sobre Pombagiras são recorrentes – a prostituta, a feiticeira, a andarilha, diáboa, etc. Observemos a fala segundo as pesquisas de Mariana Leal de Barros: 141

Mas tudo o que eu vivia naqueles encontros, me remetia também a algum outro lugar, seja da minha história de vida, seja do que apenas sabia ou intuía que havia existido. Circulava em meu imaginário associações com deusas da antiguidade clássica, feiticeiras, divindades africanas, e tantas outras possibilidades de femininos ―ativos‖ e ligados a um certo erotismo, que me levava a refletir que a Pombagira talvez seja - também, mas não apenas - uma elaboração atual e ―brasileira‖ de tudo isso que um dia foi. (BARROS, 2010, p. 182)

O fato da aceitação das proposições cristãs como condição para redenção/evolução desses espíritos – no nosso caso de discussão, as Pombagiras – é muito grande, logo, promove liturgias outras que se distanciam das cantigas de domínio público como as anteriormente discutidas. As dicotomias de bem e mal, são levadas em conta e geram uma particularização da performance, denotando para um apagamento de características reprovadas por uma visão moralista, e tendo relevo, principalmente, na questão da sensualidade. Neste sentido, muitos pontos cantados usados nas giras da FEC que trabalham com Exus Pombagiras são apropriados com outros significantes e significados, onde palavras e trechos das cantigas de domínio público com sentido não aceito ou interpretadas a partir de uma imagem demonizada segundo às visões judaico-cristãs, são substituídos por outros dizeres.

Ademais, além dos sentidos ressignificados que insistem em suavizar a imagem demonizada e despudorada de Pombagira, vale apontar que a linha da esquerda – onde as comadres atuam – perpassa por questões delicadas de racismo visto a categorização desses espíritos como inferiores além da conotação marginalizada de seu culto enquanto prática de baixo espiritismo (ORTIZ, 1978, p. 42). Cabe-nos ressaltar também os diálogos presentes entre as sonoridades da umbanda e corpo na performance da Pombagira. Ao observar as entidades incorporadas, notamos um diálogo intenso entre música e dança e isto reverbera não somente nos médiuns, como também nos frequentadores. Durante as observações em campo, houve algumas giras em que o atabaque não fora utilizado pela ausência dos ogãs da Casa. Neste caso, a gira é conduzida somente com os pontos cantados e acompanhamento das palmas. Os médiuns começam a entrar em transe, geralmente por ordem hierárquica. As Pombagiras dançam e se movimentam de acordo com o pulso dos atabaques. Elas acompanham a velocidade, as improvisações dos toques, sincronizando movimentos desequilibrados e giros. 142

O tambor é quase uma entidade. É uma espécie de ponto de parada. Quando médiuns incorporam, em algum momento passam perto do tambor. O reverenciam e realizam movimentações em frente a ele. Em algumas casas de umbanda, já foi observado em pesquisas de campo que as Pombagiras se movimentam em frente aos tambores, enquanto os ogãs o tocam. Esta poderia ser uma própria expressão da subversão feminina ao patriarcado, em que as próprias desafiam os homens com o olhar e bailam despudoradamente perante eles. Entretanto, essa realidade se modifica um pouco na FEC, pois encontramos Pombagiras completamente moldadas para corresponder a um sistema de doutrina, onde se propõe quase que um sistema de conduta. É muito difícil vermos Pombagiras dançarem, se insinuarem ou se movimentarem de forma exacerbada perante ao tambor. Logo se entende que qualquer tipo de ação que se aproxime da ideia de voluptuosidade, da mulher do cabaré e seu jeito mundano, precisa ser educado, podado, combatido. Apesar da performance estar completamente integrada ao dançar-tocar- batucar, a mesma passa por uma fina e delicada peneira que elimina não só muitos elementos afrodiaspóricos da performance – a improvisação tanto da música quanto da dança, a originalidade dos pontos cantados – como estabelece um lugar para a mulher que está posto segundo estereótipos de um imaginário sobre Pombagira. O ser este corpo-mulher, muitas vezes parece que se confunde com uma preocupação em não ser: Não ser o perfil da prostituta, feiticeira, mulher do diabo. Não ser luxuriosa, desbocada, imoral. Não ser. Não sendo o estereótipo para ser uma Pombagira.

3.3 – Corpo e cena

Mesmo com tantas questões com relação às tensões existentes no âmago da performance, acreditamos ser este subitem de larga importância, não só porque revela o corpo em primeiro plano, mas porque o protagoniza nas representações da Pombagira, no sentido de contar história e memória, fundamentos, aspectos sociais e conflitos relacionados ao feminino que se presentifica na FEC através desta entidade. Nossa intenção é que esta parte da dissertação fale sobre os elementos que compõem a performance da Pombagira nos remetendo à questão da corporalidade como principal fonte de análise. Portanto, nosso debate endossa a riqueza contida nos 143

movimentos, nas danças, na teatralidade, com toda a gestualidade e ações que contém minuciosos significados e mensagens a que chamamos de jogos corporais. Compartilhamos a perspectiva de Sandra Petit (2015) em relação às expressões negras, sobretudo às danças que a autora chama de afroancestral:

Dançar, na perspectiva afroancestral aqui tratada, remete a uma visão circular do mundo, na qual início e fim se encontram, em eterna renovação. [...] Para negras e negros desterrados brutalmente da África para as Américas e cujos algozes procuraram por todos os meios destituir de humanidade, a dança foi uma elo indispensável para a sobrevivência física e espiritual. Assim, para nós, descendentes desses povos, a dança significa mais do que filosofia e cosmovisão, significa existir. (PETIT, 2015, p. 72-74)

Quando tocamos na questão dessa herança negra, nos remetemos a este modo de fazer, conduzir a performance. Fazendo, sendo, gerando movimento. Através do corpo, da música, da dança. Essa é uma prática ritual que as Pombagiras nos apresentam com alguns minuciosos elementos herdados da cosmovisão afrodiaspórica. Para começar falando de Pombagira e sua performance, partindo do prisma do corpo, a primeira questão percebida em torno do ritual da FEC, são corpos quase que ―iguais‖. Toda esta unicidade entre as Pombagiras lá é muito comum devido à própria perspectiva de educação mediúnica proveniente do espiritismo kardecista. Qualquer pessoa que entre na Casa para participar da gira de descarrego, vai se deparar com Pombagiras com comportamento muito similar. Mesmo sempre pretendendo não reforçar o estereótipo da puta, as comadres se movimentam com muita graça e sensualidade. Às vezes, parece até que a gente sente e vê, no corpo de seus médiuns, a beleza que carregavam quando em vida. Seu movimento usual, quando chegam ―em terra‖ é uma mudança de nível corporal. Da base de pé, elas se agacham e ajoelham com as pernas levemente separadas. Curvam a coluna para trás e algumas quase deitam, posicionam as mãos na cintura e lançam os cabelos para trás. Gargalham. Gargalham muito. Gargalham sem parar. Após essa chegada, dirigem-se à liderança espiritual incorporada (Cabocla Jandira) e a cumprimentam em frente ao congá. Mesmo em determinados momentos, percebe-se que o cumprimento dirige-se mais ao congá, pois quando a cabocla está posicionada em algum outro lugar, as Pombagiras fazem seu cumprimento da mesma forma e no mesmo lugar. 144

Assim como no congá, existem outros pontos do espaço que são considerados ―parada obrigatória‖. As Pombagiras cumprimentam também os tambores, as portas de acesso ao templo e a entidade da mãe pequena, Cabocla Jussara. Esses pontos espaciais muito tem a ver com fundamentos muito específicos da performance da Pombagira. Elas cumprimentam a chefia mais alta da Casa, no caso os caboclos, que permitem sua chegada no ritual. Isso mostra o quanto a FEC cultiva uma umbanda que estabelece relações de poder, delineando sempre a superioridade da linha da direita, que manda, sobre a da esquerda, que precisa de autorização. Os corpos pombagirando, ao cumprimentar os tambores, em alguns momentos dançam em frente a ele. É nessas horas em que temos nítida a certeza que a dança é o que junta os outros elementos artísticos. O cantar e o batucar parecem sem sentido sem o corpo, presente e expressivo, na performance. A cena protagonizada pelo corpo através da tríade cantar-dançar-batucar parece atrair muito mais consulentes à FEC do que em dias de estudo, palestra e corrente de mentalização. Só não mais que os dias de consulta com as entidades, mas diríamos que tanto quanto. Seja lá pela necessidade de limpeza dos miasmas negativos, ou pela urgência de pedir um aconselhamento, as sessões em que as incorporações se fazem fundamentais são bastante procuradas pelo público. Isso pode ser um nítido sinal da necessidade que a comunidade religiosa da FEC apresenta de se sentir esse sagrado mais próximo, de corpo presente: abraçando, dançando, conversando, cantando, etc. Ao dançarem, as Pombagiras exploram recorrentes movimentações. As mais presentes dentre elas são os giros, contínuos e leves. Em conversa com a Pombagira Rainha, ela mesma nos diz que ―os giros representam a transformação de energia sexual em energia espiritual‖. Sobre essa relação da sexualidade com a espiritualidade, Mariana Leal de Barros comenta em sua tese:

O nome ‗prostituta sagrada‘, que parece constituir no próprio nome um paradoxo, aqui, como também o parece ser a figura da pombagira na umbanda, refere-se à congruência da sexualidade com a espiritualidade. (BARROS, 2010, p. 194)

Nesta perspectiva, o corpo da Pombagira apresenta diversos códigos que nos parecem em suas características, remeterem-se a esta representação de feminino orientada pela Pombagira Rainha. Movimentos outros comumente observados como as mãos na cintura e o requebrar dos quadris ou rebolado. Conduzindo-os quase como quem desenha um símbolo do infinito (similar a um número oito deitado) com ele. Além das formas descritas, também se ressaltam algumas qualidades de movimentação, observando-os do ponto de vista da dinâmica do movimento (MOTTA, 145

2006, p. 154-160): movimentos vibratórios (quando ―tremem‖ os ombros ou tronco‖), ondulantes (curvas sinuosas com o quadril ou membros, principalmente os superiores) e percutidos (movimentos precisos e de uso máximo da potência muscular)30. Somado à conjuntura do quadril, encontramos as mãos repousadas sobre a cintura, em uma postura intimidadora, com sutil toque de sensualidade e mistério. Na fotografia abaixo, é possível visualizar a imagem da Pombagira nesta postura, inclusive, denunciando a existência de uma saia, que pelas circunstâncias das regras na Casa, faz o jaleco se tornar uma.

Figura 43: Pombagira segurando a saia. Fotografia: Vilma Neres.

Comparando este gestual da Pombagira, encontramos escultura do Congo, cuja postura em que se coloca é conhecida por Pakalala (LIGIÉRO, 2007, p. 94). Este termo é usado para designar uma pose que traduz o estado alerta, pronto para atacar ou defender:

30 Essas são algumas das qualidades de movimentos apontadas pelo Sistema Universal da Dança (SUD), criado pela professora Helenita Sá Earp. Para saber mais sobre a SUD, ver Motta (2006).

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Figura 44: Pakalala: o estado de alerta. Fonte: Internet.31

Este estado de alerta nos parece muito semelhante à postura da Pombagira e quiçá, uma oportunidade de refletir sobre a corporalidade própria dela não só a partir de uma similaridade, mas também de uma possibilidade de influência das expressões corporais afrodiaspóricas em sua performance. A mulher astuta que está sempre de prontidão para defesa ou ataque.

Figura 45: Pakalala na umbanda: a postura da Pombagira manifestada em médium da assistência. Fotografia: Vilma Neres.

31 Disponível em:

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Dentre outras movimentações, destacam-se: leve balançar dos ombros, pequenas dissociações das partes do corpo, mudanças de nível espacial em momentos pontuais, transições do eixo, movimentações simultâneas de diferentes partes do corpo, exploram outras bases de apoio do corpo como ficar de joelhos e na meia ponta. Este último, exibe uma movimentação com pernas e pés, uma espécie de mancado, que todas as Pombagiras doutrinadas de lá o fazem. A gestualidade sensual da Pombagira é percebida de forma muito minuciosa, e os movimentos aqui descritos se revelam na prática de forma muito discreta. Notamos que em determinados momentos, quando alguma Pombagira se manifesta de maneira muito exibicionista ou rebola despudoradamente, alguma entidade chefe ou com hierarquia responsável pela Casa dirige-se a ela e conversa na tentativa de conter a movimentação. É comum percebermos um clima de estranhamento ou olhares reprovadores a tudo que seja identificado como comportamento divergente ao que é pregado pela doutrina da Casa. Sobre este regramento do corpo e da sexualidade, Foucault nos trará reflexões apontando que:

Esse discurso sobre a repressão moderna do sexo se sustenta. Sem dúvida porque é fácil de ser dominado. Uma grave caução histórica e política o protege; pondo a origem da Idade da Repressão no século XVII, após centenas de anos de arejamento e de expressão livre, faz- se com que coincida com o desenvolvimento do capitalismo: ela faria parte da ordem burguesa. (FOUCAULT, 1988, p. 11)

As considerações de Foucault denotam para uma perspectiva hegemônica (burguesia) que reflete consideravelmente as formas de expressão dessa Pombagira. A necessidade de corresponder a um padrão de comportamento (doutrina), significaria em outras palavras, obedecer a valores reconhecidamente aceitáveis por esses sistemas de dominação do corpo. Os corpos dos médiuns são tão domesticados, que se perde a compreensão que Renato Nogueira (2014) nos apresenta como afroperspectiva, onde há a leitura de que corpo, arte e espiritualidade não se dissociam e o entendimento de tempo não passa pelo crivo da evolução, como na visão da FEC:

Afroperspectividade define o tempo dentro do itan iorubá que diz: ―Bara matou um pássaro ontem com a pedra que arremessou hoje‖. O tempo não é evolutivo, tampouco se contrai ou pode ser tomado como um círculo ou uma linha reta; mas, de modo simples diz que o passado é definido pelo presente e o futuro é um conjunto de encruzilhadas, isto é, destinos (odu). (NOGUERA, 2014, p. 176)

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Contrapondo essa afroperspectiva, os médiuns, de corpos tolhidos, parecem reproduzir uma dissociação do trabalho espiritual das giras de outras atividades da FEC. Tanto que a dança como linguagem só se mostra nesse ritual quando existe a possessão, do contrário, os médiuns se encontram na gira, acordados e batendo palmas. O momento do transe é o êxtase máximo do corpo, pois quando em completa consciência, são raras as vezes em que expressam sua ligação com o sagrado corporalmente através da dança. Outro aspecto pertinente ao corpo se destaca na questão das discussões específicas sobre o corpo feminino. Nas particularidades da performance da Pombagira, é notório que este comedimento é cobrado aos corpos das mulheres em larga proporção. Nesse quesito, a estética do corpo feminino infelizmente passa por um processo de domesticação e castração não só das Pombagiras, como também é muito nítido desde a ―educação‖ das médiuns. Foucault aponta para as relações de poder entre homens e mulheres e como a questão da sexualidade é manejo que expressa essas relações de poder:

Não se deve descrever a sexualidade como um ímpeto rebelde, estranha por natureza e indócil por necessidade, a um poder que, por sua vez, esgota-se na tentativa de sujeitá-la e muitas vezes fracassa em dominá-la inteiramente. Ela aparece mais como um ponto de passagem particularmente denso pelas relações de poder; entre homens e mulheres [...]. Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias. (FOUCAULT, 1988, p. 98)

As mulheres que compõem o grupo mediúnico da Casa são proibidas de usar brincos, colares, anéis, pulseiras, piercings, ou qualquer adorno que seja acessório ao corpo dentro do ritual. Tudo bem, pois esta regra é equivalente a homens e mulheres. Mas quando se trata das formas do corpo, elas são instruídas a utilizar roupas para revesti-lo por debaixo do jaleco, como uma espécie de segunda pele, com o intuito que não apareça marca de calcinha, sutiã, decote ou que saliente o formato dos quadris, cintura e seios. Além disso, os médiuns de modo geral são orientados a não fazerem tatuagens, pois segundo vovó Cambinda, elas fazem marcas no espírito também. Aqueles que já as possuem, não fazem mais desde a orientação dada em relação a tatuagens. Vestígios de corpos domesticados.

[...] foi na família "burguesa", ou "aristocrática", que se problematizou inicialmente a sexualidade das crianças ou dos adolescentes; e nela foi medicalizada a sexualidade feminina; ela foi alertada em primeiro lugar para a patologia possível do sexo, a urgência em vigiá-lo e a 149

necessidade de inventar uma tecnologia racional de correção. Foi ela o primeiro lugar de psiquiatrização do sexo. Foi quem entrou, antes de todas, em eretismo sexual, dando-se a medos, inventando receitas, pedindo o socorro das técnicas científicas, suscitando, para repeti-los para si mesma, discursos inumeráveis. A burguesia começou considerando que o seu próprio sexo era coisa importante, frágil tesouro, segredo de conhecimento indispensável. A personagem investida em primeiro lugar pelo dispositivo de sexualidade, uma das primeiras a ser "sexualizada" foi, não devemos esquecer, a mulher "ociosa", nos limites do "mundo" — onde sempre deveria figurar como valor — e da família, onde lhe atribuíam novo rol de obrigações conjugais e parentais [...]. (FOUCAULT, 1988, p. 114)

As relações de poder comentadas por Foucault referem-se a valores hegemônicos em que percebemos relações com ações simbólicas e comportamentos que se regram na dinâmica da Casa e na performance das Pombagiras. As relações entre corpos também são bastante controladas e as Pombagiras pouco encostam umas nas outras ou se esbarram. Elas dançam sozinhas, mas também dançam umas com as outras ou acompanhadas de algum Exu masculino – geralmente Zé Pelintra ou Tranca Rua. Quando dançam em parceria, apresentam comportamento muito cortez, o que nos endereça a uma visão bastante eurocêntrica, com papéis de gênero estritamente definidos na dança, o que de fato ratifica que: ―As metáforas de movimento distinguem o masculino do feminino. Os padrões de papel sexual dançados servem para lembrar aos integrantes da platéia suas respectivas identidades e papéis‖ (HANNA, 1999, p. 123). Além das danças, toda a teatralidade do corpo se mostra na performance. Os gestos e ações se fundem feito peças de um quebra-cabeça configurando a imagem. Nesse caso, o jogo, que é corporal, é observado através das abordagens que as Pombagiras fazem. A dinâmica de trabalho na FEC não permite que um membro da assistência possa ir até as Pombagiras, mas elas se quiserem, podem ir até alguém e dar um recado, desde que sua hierarquia lhe dê autorização. As hierarquias são levadas muito a sério, apesar de haver uma busca incessante de desconstruí-la, visto que a ideologia que subalterniza a linha da esquerda delimita que as Pombagiras na FEC não têm autorização para dar consulta, por exemplo. Sobre Pombagiras e Exus não poderem dar consultas, tocamos nesta questão em conversa com a Pombagira Rainha, pois esta seria uma das mudanças adotadas pela FEC no processo histórico de fundação da Casa em relação ao CESCJ. A Rainha nos relata que as Pombagiras e Exus estão lá na FEC somente para descarregar a Casa. Que as mudanças ocorreram porque era necessário desenvolver e evoluir. Esta forma de enquadramento das Pombagiras na função de limpeza do terreiro aproxima- 150

nos de uma discussão até de reprodução da subalternização racista e sexista em que se colocam estas entidades. Visto que o aconselhamento, a orientação e abordagem desses espíritos seriam seu campo de trabalho espiritual no sentido de proteger e auxiliar aos seus (PRANDI, 1996; MOURÃO, 2012; BARROS, 2015), onde está na FEC o espaço que possibilite sua atuação? Questionando este conflito, voltamos a uma fala de Vovó Cambinda durante uma das inúmeras conversas durante as observações em campo: ―Exu no xirê, é o mais distante da luz...‖. E ainda, apesar de tentarem a todo custo desconstruírem a visão demonizada de Exus e Pombagiras, essa fala ainda ecoa e sempre retorna nos fazendo lembrar que eles não são o mal, mas tem seus lugares estabelecidos. Categorizar as entidades em linhas evolutivas na umbanda é algo comum, sendo importante lembrar em que circunstâncias essa linha da esquerda é associada - atrasados espiritualmente. Mesmo assim, Pombagira possui, por característica própria, a subversão. Ainda assim, sem poder conversar ou dar consultas, sempre observamos durante a gira uma ou outra infiltrando sua comunicação em meio às proibições. Enquanto desfila pelo templo, às vezes solta uma frase intimidadora, um recado. Outrora dança e interrompe seu bailado para falar uma sacanagem, uma (in)direta ou palavrão. Esse jeito transgressor da Pombagira, conforme já citado, muito contribuiu para uma associação ideológica cristã com algo diabólico (BARROS, 2010, p.130-131). Além desse título subalternizado, que observa a performance da Pombagira e seus contextos sócio-históricos com uma relação de poder colonizadora, contornamos a necessidade de uma discussão teórica não só no aspecto religioso, mas também no campo das relações entre gêneros, que em nosso recorte, se volta à questão dos sistemas de dominação do corpo feminino, da objetificação da mulher e da castração de sua sexualidade. Em se tratando da questão da sexualidade feminina, observamos nos aspectos corporais um apagamento de toda gestualidade de movimentos que dão ênfase à sexualidade da Pombagira. Adentrando ainda mais na questão étnico-racial, tal comportamento erotizado é atribuído simbolicamente às mulheres negras, comenta Vagner da Silva:

O mesmo pode se afirmar sobre a Pombagira, que representaria mulheres de comportamento moral ou sexual tido como reprovável. Quando incorporadas, manifestam gestos expansivos e eróticos, utilizam ―palavrões‖ ou expressões jocosas e de duplo sentido, consomem bebida alcoólica e fumam. Este imaginário, em muitos casos, reproduz, no plano mítico, o poder de sedução atribuído às 151

mulheres negras e mulatas, cuja sexualidade e erotização foram apanágios da visão deturpada impingida pela sociedade brasileira às mulheres africanas e posteriormente mestiças no regime escravocrata e no contexto urbano pós-abolição. (SILVA, 2015, p. 80)

O virtuosismo do corpo é visto como algo que está passando dos limites, que precisa ser educado. Quanto mais doutrinado o corpo do médium, mais evoluído é. Quanto menos movimentos ―inesperados‖, ―bruscos‖ ou ―violentos‖ apresentarem, mais elevados. Durante este processo doutrinário, se estabelecem regras domesticadoras, que amenizam a expressividade sedutora da Pombagira, e que quase chegam a oprimi-la. Mas a que visão esta castração da corporalidade da mulher está relacionada? O autor Kabengele Munanga (2008) nos fala a respeito do processo de embranquecimento como mecanismo de aniquilação do negro, sua identidade e aspectos culturais.

Uma tal sociedade seria construída segundo o modelo hegemônico racial e cultural branco ao qual deveriam ser assimiladas todas as outras raças e suas respectivas produções culturais. O que subentende o genocídio e etnocídio de todas as diferenças para uma nova raça e uma nova civilização, ou melhor, uma verdadeira raça e uma verdadeira civilização brasileiras, resultantes da mescla e da síntese das contribuições dos stocks raciais originais. (MUNANGA, 2008, p. 85)

Com relação aos efeitos deste processo para o povo negro, completa dizendo que

O embranquecimento do negro realizar-se-á principalmente pela assimilação dos valores culturais do branco. [...] Historicamente, todas as condições foram reunidas para que se chegasse a um impasse de assimilação. [...] Nas condições contemporâneas da colonização, esta é incompatível com a assimilação. Tudo leva a crer que ela foi apenas um mito, pois o caminho da desumanização do negro escolhido pelo colonizador não poderia integrá-lo. Pelo contrário. Criou sua desestabilidade cultural, moral e psíquica, deixando-o sem raízes, para melhor dominá-lo e explorá-lo. (MUNANGA, 2015, p. 38-41)

Certamente, é possível vislumbrar a assimilação dos aspectos culturais e ideológicos do colonizador nas práticas rito-litúrgicas da FEC, conferindo um processo contínuo e persistente de embranquecimento. Este processo de aprendizado na educação mediúnica na FEC é muito singular, pois médiuns novos, quando iniciam seus processos de desenvolvimento, aprendem o fazer no durante. Diferente da experiência do Candomblé, que já fora 152

observado em outras pesquisas de campo em Casas de axé, os médiuns aprendem e treinam as danças rituais para facilitar as movimentações durante o processo do transe. Na FEC, o cavalo32 percebe, observa e seu corpo apreende na lida diária entre cada experiência de uma nova gira e uma nova incorporação. Estes traços do aprendizado e do apagamento do virtuosismo também são processos naturais dos corpos de cada um, pois também são notórias as singularidades de médiuns jovens para outros mais idosos. As movimentações, apesar de possuírem algumas convenções, se particularizam pela limitação articular, força e potência muscular de seus médiuns. Mas fora do contexto biomecânico, olhar corpos de mais velhos e mais novos representa tempos diferentes. O mais velho dança diferente em referência a uma umbanda remota e seu corpo tem memória, em cada fibra muscular, gota de suor e mancado curto, o que Diana Taylor chama por repertório:

O repertório, por outro lado, encena a memória incorporada - performances, gestos, oralidade, movimento, dança, canto -, em suma, todos aqueles atos geralmente vistos como conhecimento efêmero, não reproduzível. (TAYLOR, 2013, p. 49)

Visto que a visão ideológica que se reproduz no corpo é aprendida e pertence a esse arcabouço de memória incorporada, alguns códigos corporais observados nos chegam com a necessidade de ser retomados com relevo e postos em debate, a seguir. Damos um destaque à corporalidade das Pombagiras Ciganas, por possuírem uma gestualidade muito específica. Elas dançam com movimentos ondulantes, principalmente nos membros superiores, em especial nas mãos. Seus quadris se evidenciam menos do que as outras Pombagiras. Trata-se de uma sensualidade mais graciosa. Já as outras Pombagiras exploram movimentos mais sensuais, acentuando quadris e ombros com despudor. Esta última, parece um outro tipo de sensualidade, feroz e intimidadora. A outra, uma sensualidade ―ingênua‖, que transpira encantamento. Quanto ao que diz respeito às ciganas, vovó Cambinda elucida em referência aos estudos da Casa mencionando serem elas Exus intermediários. Seriam um grupo de espíritos com energia mais sutil, um pouco mais evoluídos. Então nos fica a percepção de que quanto menos impulsiva e menos agressiva a sensualidade da performance, mais evoluída é. E as Pombagiras Ciganas exemplificam bastante esta observação.

32 Nome popularmente conhecido no âmbito da umbanda e atribuído ao médium que incorpora as entidades. 153

Sobre a gestualidade da chegada das Pombagiras no ritual no momento em que seus médiuns entram em transe, de tantas e repetidas vezes em observá-las se lançando ao chão, uma questão nos chegou. Notamos que pouquíssimos Exus masculinos fazem a mesma coisa. Questionamos: esse comportamento da Pombagira é transgressão ou submissão? Do mesmo jeito, retomamos o caso do ―dançar para o tambor‖. Será uma relação de servidão para com quem o toca, sendo ele homem? Ou será uma relação de transgressão à regra, subversão dos valores patriarcais e empoderamento feminino através da sedução de Pombagira enquanto dança/ sorri/ se insinua?

Figura 46: O sorriso da Pombagira. Fotografia: Vilma Neres.

Alguns apontamentos são importantes de serem discutidos no tocante a este tema. Os pesquisadores Tadeu Mourão (2012), Mariana Leal de Barros (2010) e Monique Augras (2000), em suas obras, vêm apontar que a própria subversão é uma questão do caráter da Pombagira o que de fato percebemos que tal característica é um forte também dos Exus masculinos, mas de qualquer forma, estes autores nos indicam que esta transgressão, não de um modo geral apenas, faz parte também de uma não servidão ao masculino, de uma mulher que dispensa os papeis sociais impostos ao patriarcado. 154

Pode ser uma escrita ingênua, que apesar do discurso da própria Pombagira Rainha nos parece podar as possibilidades expressivas dessa corporalidade feminina, mas nossos apontamentos não deixam de contemplar uma visão de uma pesquisadora, autora desta dissertação, imersa no contexto de um espaço religioso. Ao observar as Pombagiras na FEC, com tantas regras de comedimento, vê-las se jogarem no chão e gargalharem, nos figuram características da mulher subversiva citada pelos autores, mas que faz sua transgressão se aproveitando de um código corporal aceito pelo contexto do ritual e utiliza dele para assumir esse empoderamento feminino. Oportunidades são poucas para externar sua sensualidade, imponência e encantamento. Toda essa relação íntima que as Pombagiras possuem com a sexualidade e a libido tem um porquê de ser, relatado na entrevista realizada com a Pombagira Rainha, onde a mesma conta sobre as Pombagiras a partir de uma leitura espírita, que retoma a história da antiga Aumbandhã de Atlântida, afirmando que as comadres já existiam por lá:

Exu e Pombagira, são agentes mágicos. São as fórmulas de Deus, não é coisa do mal, não faz o mal. Os Exus, eles são levados a um patamar bem alto e a Pombagira tem a história dela. Quando os magos brancos da Atlântida, eles sempre faziam um ritual pra louvar essas entidades. E nesse, e nesse trabalho que eles faziam, tinha uma procissão. E nessa procissão, tinha um estandarte com uma pomba no meio de asas abertas. Essa pomba significava pra todos os atlantes da época, pra todos os filhos da época [...] Mas aí ela fazia com que, ela fazia com que trouxesse uma informação pros homens, principalmente os iniciados, pra eles na linha das Pombagiras, na linha que tinha pra servir de auxílio pra que eles pegassem as energias sexuais e transformassem em energias mentais. Isso trabalhava dentro da kundalina. Cê já ouviu falar em kundalina? Aí então eles faziam com que essa pomba trazia a pureza, as asas dela abertas quer dizer que elas estavam sempre girando. Aí ficou como Pombogira.‖ (Entrevista realizada em trabalho de campo. São João de Meriti, 2016)

Esta perspectiva de que as Pombagiras estão ligadas à libido não é recente, tanto nas referências citadas ao longo da escrita quanto na FEC, mas tocamos na questão de que essas energias sexuais são trabalhadas de forma muito controlada, pois muito mais se observa uma ligação da performance com a atribuição de Pombagira para o trabalho de descarrego do que qualquer correlação que possa também estabelecer por meio da sexualidade. E ainda assim, quando é voltada a esse tipo de energia, ela é tolhida. Ao observarmos a função de descarrego que a performance da Pombagira cumpre no ritual da FEC, vemos o quanto a concepção de evolução coloca os espíritos da esquerda (Exus e Pombagiras) à serviço dos direita 155

(caboclos, pretos velhos, etc), sendo exímios conhecedores em lidar com energias densas, as Pombagiras almejam uma vaguinha no próximo degrau da evolução e para tal, observamos uma associação próxima da mulher preta escravizada (esquerda), que suas anula sua identidade, poda o corpo e as vontades e dá espaço aos quereres do colonizador para ganhar as ―regalias‖ cedidas pelos brancos (direita).

Compreendemos agora porque o negro não pode se satisfazer no seu isolamento. Para ele só existe uma porta de saída, que dá no mundo branco. Donde a preocupação permanente em atrair a atenção do branco, esse desejo de ser poderoso como o branco, essa vontade determinada de adquirir as propriedades de revestimento, isto é, a parte do ser e do ter que entra na constituição de um ego. Como dizíamos há pouco, é pelo seu interior que o negro vai tentar alcançar o santuário branco. A atitude revela a intenção. (FANON, 2008, p. 60)

Estas colocações só ratificam que a Casa, apesar de sempre bem- intencionada no seu trabalho espiritual, aponta para Pombagiras vedadas por todos os lados, repletas de uma representação dominada por valores cristãos, ideologias coloniais, um sistema encadeado e complexo, repleto de racismos e sexismos.

3.4 – ―Filha, mas aqui não é uma Casa de umbanda...‖: Conflitos e tensões

Apesar de não ser inédito o aparecimento de algumas tensões nas questões discutidas ao longo desta dissertação, existem aquelas que se fazem necessárias trazer ressalto para problematizá-las. A primeira delas, com relação a performance da Pombagira, é que apesar de conversarmos a todo tempo refletindo sobre o feminino, cabe destacar que elas não incorporam apenas em mulheres, mas também em homens. E que esses corpos masculinos se expressam também em sua feminilidade. Eis que neste caso, nos chega a tensão, que é muito comum na realidade da FEC, onde os médiuns homens dificilmente incorporam Pombagiras. Em determinados momentos parece até que eles se seguram para não incorporá-las, como se fosse algo vergonhoso. Nota-se que no momento em que as Pombagiras são evocadas, sempre tem um Exu masculino incorporado que volta e meia passa e fala uma brincadeira direcionada aos homens, relacionada ao transe de Pombagiras. Parece testá-los para conferir se seguirão 156

firmes no propósito de ―prender‖ essas entidades ou se vão desamarrar esse paradigma sócio-espiritual. Os poucos médiuns homens que as incorporam são homossexuais por afirmação e quando suas Pombagiras chegam, geralmente apresentam uma gestualidade mais sutil, com mais leveza. Parecem preocupadas em não influenciar nos movimentos com tantos trejeitos extremamente femininos, não põem a mão na cintura, colocam-na para trás, não mexem os quadris. Ao mesmo tempo, quando fora do transe, durante o andamento da gira, seus médiuns parecem tensos com os olhares de fora em relação ao comportamento que apresentam quando se toca e canta para Pombagira. Como se fosse uma reprovação a qualquer tipo de movimento em falso que não pode parecer libidinoso, tampouco afeminado. De fato, essa atitude reprovadora exemplifica o quanto os frequentadores e membros da Casa se prendem a um entendimento binário não só dessas entidades no seu sentido mítico (bem e mal) mas também em relação às categorizações de homem e mulher. A tamanha presença da binaridade atenta para as considerações sobre gênero que a autora Judith Butler faz, indagando:

[...] que configuração de poder constrói o sujeito e o Outro, essa relação binária entre ―homens‖ e ―mulheres‖, e a estabilidade interna desses termos? Que restrição estaria operando aqui? Seriam esses termos não problemáticos apenas na medida em que se confrontam a uma matriz heterossexual para a conceituação de gênero e do desejo? O que acontece ao sujeito e à estabilidade das categorias de gênero quando o regime epistemológico da presunção da heterossexualidade é desmascarado, explicitando-se como produtor e reificador dessas categorias ostensivamente ontológicas? (BUTLER, 2003, p. 8)

E é bem verdade que as Pombagiras, quando incorporadas em médiuns homossexuais, de fato costumam atrair olhares curiosos ou de estranhamento, e porque não falar até em olhares que reprimem? E este sistema de doutrina espírita é tão intenso que contamina não só as entidades e médiuns, como também os frequentadores da Casa, que reproduzem os mesmos olhares de estranhamento. Mas sabemos que não se trata apenas de uma concepção religiosa, e sim de um sistema de dominação política e ideológica que é muito maior e poderosa, engendrando valores e normas sociais. Observar a performance não apenas como expectador, mas também como pesquisador requer um desprendimento do olhar colonizador.

Enquanto os pesquisadores da performance adotaram prontamente o projeto de levar a sério as encenações incorporadas, vistas como uma maneira de entender como as pessoas gerenciam suas vidas, 157

absorveram também o posicionamento ocidental da antropologia, que continuava a lutar com sua herança colonial. (TAYLOR, 2013, p. 33- 34)

Com relação a esses valores que se infiltram em nosso imaginário e as influências que estão impressas na Casa, nos deparamos com a questão da herança cultural e religiosa cristã, onde Exus e Pombagiras na FEC são proibidos de se manifestarem no período da quaresma, por exemplo. Apenas realizam uma saudação com ponto cantado, sem incorporação. Ou seja, só existem palmas e canto, e ainda assim, as comadres e compadres não podem se manifestar. Se na quaresma, entendem que se trata de um período de recolhimento e vigilância pelas vulnerabilidades da carne, parece que o corpo não participativo no trabalho espiritual com a incorporação passa batido. O tambor também não é utilizado. No ritual da Casa se construiu uma relação de poder entre as expressões musicais e a ausência da percussão inspira mais confiança, de algo espiritualizado. O tambor vibra, atrai a energia para as incorporações. Logo, o corpo/tambor não compreende esse patamar de erudição, pois pode ser instrumento que exacerba uma busca de centralidade, equilíbrio e estado de mansidão ou elevação espiritual. Entretanto, observando estas questões por outra perspectiva, mesmo num contexto que há uma pressão para se diluir a presença do corpo no ritual, ainda assim, só se realiza o trabalho de equilíbrio da Casa com Exu/Pombagira. Na última gira observada durante a etnografia, havia apenas onze médiuns e onze membros na assistência. O ogã que comumente toca não estava lá, então outro fora convidado. Ele tocava mais devagar e a frequência da energia da Casa parecia muito baixa. Logo, durante os pontos cantados para Pombagiras, a cabocla Jandira convida três médiuns e frequentadoras da Casa para trabalharem com suas Pombagiras. Quanto mais corpos e dança preenchiam o espaço do ritual, mais rica a performance ficava e consequentemente a energia fluiu, como diriam os pretos velhos, mais formosa. Apesar deste protagonismo das Pombagiras na manutenção do ―clima‖, da estabilidade energética do ritual, retomamos a questão principal observada que é o controle do corpo e da expressividade gestual ligada a sexualidade. Durante a entrevista que nos serviu de direcionamento para melhor compreender estas tensões, um trecho muito nos intriga quando é questionado se as mulheres também participavam ajudando na transformação da energia da libido, no ritual dedicado às Pombagiras na antiga Atlântida: ―Não, os homens que tem muito libido, a mulher só tem se o homem forçar, né. Então ela fazia com que transformasse essa energia que era sexual em mental‖, afirmou a Pombagira Rainha. 158

A fala da Rainha nos toca em pontos muito delicados, pois o seu discurso resgata um corpo feminino submisso, até obediente, que está na condição de espera e passividade em relação à iniciativa masculina para que a energia sexual seja trabalhada, e nas relações humanas isto se desdobra quanto a dependência da mulher em relação ao homem para que o ato sexual aconteça e ela seja permitida ao sexo nas questões da libido. O corpo subjugado, considerado menor numa perspectiva eurocêntrica e dominadora influencia fortemente as práticas da FEC. Esta mesma questão, mais tarde, eclode numa tensão em que Casa passa a enfrentar por posicionamentos ideológicos divergentes entre seus membros. Nesta descrição de como todos esses conflitos se iniciam do ponto de vista da participação observante, não há como negar, neste momento, a escrita com uso da primeira pessoa. Antes eu estava romântica. Apaixonada pela pesquisa e obviamente, pelas Pombagiras. Só enxergava mulheres empoderadas, subversivas e sedutoras. Acontece que durante uma consulta despretensiosa com vovó Cambinda, eis que surge uma pergunta a qual nem me recordo mais, onde comentei sobre a FEC ser uma Casa de umbanda. Eis que vovó me corrige: ―Filha, mas aqui não é uma Casa de umbanda. Aqui é uma Casa espírita. O próprio nome já diz: Fraternidade Espírita Cristã!‖. A partir de então, tudo aquilo que eu construíra – minha identidade, minhas referências, convicções e certezas – foram por água abaixo. Refleti por meses sobre esta resposta que me foi dada. Revisitei vivências de anos atrás, resgatei memórias e experiências da etnografia. Percebi que era hora de recomeçar, (re)observar, (re)fletir, (re)pensar, (re)estruturar... E assim foi feito. Chegamos na Fraternidade Espírita Cristã, na semana seguinte, entendendo que estávamos em contato com uma Casa espírita em que a direção espiritual é coordenada por entidades de umbanda e não o contrário. Ali não era terreiro, ou pelo menos não era apenas um terreiro. Pouco tempo depois, tensões na comunidade ao entorno da FEC, com disputas armadas entre polícia e tráfico local fazem a Casa mudar sua rotina, terminando trabalhos semanais mais cedo por conta de tiroteios repentinos, periculosidade, etc. Os problemas nos arredores aumentam a ponto de acontecerem tiroteios diariamente e isto se reflete com total influência na Casa, estimulando a direção material da Casa a fazer adaptações. A dirigente da Casa decide então suspender os trabalhos e atendimentos na FEC por tempo indeterminado. Esse tempo, quem ditou foi o próprio 159

tempo. O durante foi muito difícil e nosso contato com os membros da Casa teve sua continuidade mesmo à distância. A FEC permanece fechada por um mês, sem atendimento, nem reuniões fechadas entre médiuns. Nesse entremeio, o principal conflito que se instaura é a decisão por retomar os trabalhos da Casa. Muitos médiuns preferem não se arriscar indo a FEC (principalmente os que residem na localidade, pois vivenciam a tensão de perigo do bairro) e a dirigente da Casa tenta motivar um possível retorno das atividades. Com opiniões diferentes, as pessoas começam a se juntar para decidir os rumos da FEC e muitas questões são retomadas para a discussão. Aí é que surge o verdadeiro conflito. O principal motivo de debate fica em segundo plano e abre espaço para muitas reuniões e discussões sobre como manter as práticas da Casa segundo uma perspectiva evolucionista. Surgem conflitos políticos entre o cargo de dirigente espiritual da Casa e presidência da instituição FEC. O cargo de Morubixaba é responsável por assumir o ritual e o presidente da Fraternidade Espírita Cristã por assumir a parte administrativa. Ambos os cargos estavam concentrados na mãe Dulce até meados de 2016. Mais tarde, durante as discussões, alguns médiuns começam a persuadi-la a renunciar do cargo de presidente e continuar apenas como Morubixaba. E deu certo, ela abre mão do cargo para dedicar-se exclusivamente a direção dos rituais. Mais tarde, outra médium assume a presidência da FEC através de nova eleição durante a reunião de retorno em agosto do mesmo ano – época em que a Casa permaneceu fechada. De acordo com o regimento interno da Casa, as decisões tomadas em relação a FEC são compartilhadas entre Morubixaba e presidente. Entretanto essas normas internas de gestão compartilhada concedem determinados poderes à presidência da Casa, o que ocasiona conflitos de interesses e decisões com a dirigente dos rituais, como por exemplo a gira do mês de setembro, dedicada a ibejada (espírito das crianças). Em virtude do alto grau de perigo no bairro, muitos médiuns da FEC se afastaram e pediram licença das atividades que desenvolviam na Casa. O grupo de trabalhadores da umbanda diminuiu. Recebemos uma mensagem da eleita presidente da Casa por aplicativo do celular comunicando que a gira de setembro fora suspensa para evitar qualquer transtorno com a violência do bairro e que a Casa estava sem estrutura de médiuns para realizar a gira. Minutos depois, recebemos uma mensagem da Morubixaba dizendo que a mensagem da presidência fora um equívoco e a gira do mês de setembro estava confirmada, sim! 160

Logo percebemos que as decisões conflitantes estavam repletas de interesses nas questões que permeiam as práticas rito litúrgicas da Casa. Durante muitas conversas fechadas entre os médiuns, notamos que alguns membros questionavam a necessidade da continuidade dos rituais das giras, entre trabalhos de desenvolvimento da umbanda com incorporação (transe), e outros que queriam mantê-la. Acontece que a incorporação não é um evento exclusivo da umbanda, mas a forma de organizar seu ritual é muito específica. Isso incomodava algumas pessoas. Bater palma, cantar e tocar tambor pra ―santo rodar‖ era perda de tempo. E transparecia que a tentativa de efetivar o principal trabalho de assistência e caridade da Casa, como alguns defendiam, nenhuma relação tinha com as giras e os trejeitos corporais que as entidades utilizavam para trabalhar. Logo, isto estava sendo apontado como algo desnecessário. Um investimento de tempo em vão. A FEC então parece se dividir. Médiuns se exaltam, discutem. Muitas fofocas. Conflitos e tensões. Membros da Casa começam a pedir desligamento. Um a um. A Morubixaba permanece firme e não abre mão dos trabalhos de umbanda. Surgem comentários de que ela é autoritária. E os novos dilemas se apresentam entre o prosseguimento no trabalho da Casa da forma como é dirigida ou propostas novas para ―evoluir‖. Eis que em um fatídico dia, após a saída de alguns membros da Casa ao fim de um trabalho de quarta-feira, muitas discussões e debates calorosos levam a Morubixaba a passar mal com hipertensão. Seja pelo clima de tensão ou não, na mesma semana, ainda do mês de agosto, chega a última sexta feira do mês e com ela a gira de descarrego. E pasmem, a Morubixaba falta, pela primeira vez, uma atividade de trabalho espiritual da Casa por não estar se sentindo bem. E mesmo na posição de pesquisadora e autora desta dissertação, chega a ser espantoso deparar-se com um convívio de dez anos cercado por uma presença inabalável. Mas é nesse momento que nos damos conta que a mãe de santo é humana e não tem como ser onipresente ou infalível. Independentemente de qualquer ausência, a premissa principal da Casa é que o trabalho seja realizado. Pela ordem hierárquica, a mãe pequena da Casa assume a condução da gira. No entanto, para nossa surpresa, ao se apresentar na gira, a Cabocla Jussara (entidade espiritual da mãe pequena) diz que não vai ficar com essa responsabilidade e repassa a condução da gira para o Caboclo Sete Flechas. Coincidência ou não, esta médium que possui grau mais elevado depois da 161

Morubixaba, cujo cargo é de mãe pequena, também é mãe carnal do médium que incorpora o Caboclo Sete Flechas. A gira assumida por ele correu bem e frequentadores da Casa muito comentaram a respeito do compromisso e amadurecimento com que seu Sete Flechas conduziu a gira. Em cada momento do ritual, ele parava para explicar algo sobre a finalidade daquela liturgia, tomando para si ainda mais a responsabilidade de dar continuidade ao entendimento dos conhecimentos sobre umbanda, e naquela ocasião, com relação às giras de descarrego. Esta postura da Casa difere um pouco da realidade de algumas casas de axé, que possuem grande preocupação com a questão dos segredos:

Nas religiões afro-brasileiras o problema do segredo é muito sério e complexo. Se, por um lado, pode contribuir para aumentar o prestígio de um grupo, impedindo a banalização, por outro lado, como constatamos anteriormente (FERRETTI, S., 1985, p. 89), muitos segredos não foram transmitidos e acabaram desaparecendo ou sendo esquecidos. O excesso do segredo é, portanto, responsável pela perda de algumas tradições. (FERRETTI, 2013, p. 30)

No fundo esse sempre foi o compromisso da FEC, de estudar questões sobre a vida espiritual e desvendar conhecimentos, mas sabemos que a situação vivida por diversas comunidades de terreiros com relação ao contínuo preconceito que sofrem, é uma das recorrentes justificativas para manterem suas práticas com restrições a terceiros, influenciando consideravelmente na continuidade das práticas de seus cultos. Retomando a questão do conflito instaurado e atual problema vivido pela Casa, entre agosto e novembro, somaram ao total doze médiuns que se desligaram da Casa. Muitos, inclusive, com grandes responsabilidades na Casa. Entre reuniões e conversas, passando inclusive pela possibilidade de finalizar definitivamente com a FEC, o trabalho prossegue com poucas pessoas. A partir dessa nova realidade com poucos membros, a Morubixaba subverte as regras e anula o regimento interno que dita a gestão compartilhada, retomando normas do antigo regimento da Casa redigido em 1998, ano de fundação da Fraternidade. Este último e mais antigo, dá plenos poderes exclusivamente à Morubixaba. Autoritária? Centralizadora? Antidemocrática? Talvez. Quanto mais integrada a presença do pesquisador no campo, mais delicado fica ao tocar em determinadas questões. Apesar de muitas percepções, do ponto de vista das relações étnico-raciais, com profunda ligação a uma representação das colonialidades de poder, da dominação do corpo da mulher e do embranquecimento 162

da identidade negra, não podemos encobrir nossos olhos com ingenuidade. Pois a atitude política da dirigente espiritual desta Casa, nos chega feito as mães pretas que abortavam seus filhos pretos para dizer não à escravidão. Esta mãe de santo, centralizadora sim, tomou para si a responsabilidade de resistir. De (re)existir. Mesmo com tanta pressão ao redor, ela está lá, na altura de nossa escrita, a menos de 24 horas de completar seus 74 anos de idade. Com uma história de 43 anos de umbanda. Uma umbanda de legado, de conhecimento, de memória. Pois essa umbanda não se aprende nas literaturas, e sim na prática, no cotidiano e convívio. No ouvir a fala do mais velho. E essa mais velha continua naquela Casa, em nome da caridade, mas também por muito amor a umbanda. E toda essa resistência, centralizadora e autoritária, apesar de toda perspectiva evolucionista, subverte o sistema e insiste em resistir. Esta mulher é, também, uma Pombagira na encruza da FEC.

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Considerações Finais

A responsabilidade que carregamos é grande. Concluir uma dissertação não significa encerrar o trabalho, pois na verdade ele nunca termina. Como tudo na vida nunca está acabado, pronto. O universo não é estático, parado. Por isso Exu existe. O movimento é necessário. Parafraseamos um trecho em iorubá, comumente traduzido por lideranças de terreiros de candomblé que muito sintetiza esta afirmação: ―Esú matou um pássaro ontem, com a pedra que ele atirou amanhã‖. Esse Orixá e entidade, energia administradora do caos e propulsora do movimento nos revela suas facetas. De fato, Exu é visto com complexidade se nos prendermos a uma visão dicotômica. Exu não cabe entre o bem e o mal, o certo e o errado, o sagrado e o profano. Suas características serviram para enxertar um largo processo histórico e social da supremacia da branquitude, visto que a perspectiva judaico-cristã o demoniza e não está preparada para enxergar o corpo como lugar de encontro, celebração e ligação com o espiritual. Nesse processo entre as encruzilhadas da vida, pensar nosso objeto de estudo a partir relações étnico-raciais, significa para nós, salientar o quanto as religiões afro- brasileiras congregam diferentes práticas e características cosmológicas, entretanto nos expressam um resultado dessas relações políticas, ideológicas, sociais e culturais. A perspectiva dominante na umbanda é a visão eurocêntrica da evolução e dos valores morais cristãos. Por conta desses aspectos, o campo artístico nos serve, ou melhor dizendo, nós nos servimos ao campo artístico para abordar tal temática no sentido de evidenciar de forma sensível e poética a subversão que a Pombagira representa. Quando nos conduzimos a refletir sobre as Pombagiras, ampliamos nossa necessidade de discussão por um viés muito mais delicado. A condição dessa Exu- mulher confere um estado de subalternidade ainda mais complexo, por conta dos processos de dominação e castração da mulher na sociedade falocêntrica e patriarcal em que estamos inseridos. Mesmo assim, ela ainda por si só não basta ser Pombagira, pois está fadada a compor uma binaridade enquanto faceta feminina de Exu, dependente de sua outra polaridade para existir, a masculina. Tão incoerente é este pensamento, que Exu na verdade, representa ambiguidade, e não binaridade, como a ótica eurocêntrica enxerga. 164

Portanto, é de suma importância destacar os estudos da performance enquanto valioso campo para compreender com mais minuciosidade este corpo-mulher. Através da potência do corpo na observação da performance é possível pontuar a riqueza dos aspectos artístico-culturais e as representações de um determinado grupo. Para nós, a performance afro-brasileira conforme Ligiéro acrescenta em suas obras (2011; 2012), corresponde a esse recuperar práticas vindas de uma ancestralidade negra, onde o ato de cantar, tocar tambor e dançar, são características marcantes que legitimam essa prática performativa. Nessa categoria, pudemos contar com a possibilidade de imersão na vida cotidiana de uma Casa. Foram vinte meses de contato ao total, somados a uma experiência de dez anos de convívio anteriores. Observamos pessoas entrarem, permanecerem, outras saírem... Assistimos a eventos das mais variadas situações às ―rotinas‖ mais surpreendentes. Procuramos aprender e compreender as diversas faces de um mesmo acontecimento, nos desprendendo das antigas amarras acadêmicas criticadas por Ferretti:

Uma etnografia coerente, que faça boa descrição, nem sempre, ou poucas vezes, consegue coincidir com uma interpretação correta. Uma descrição criteriosa, não apressada, mostra a diversidade dos fatos. Comporta evidentemente uma seleção de dados e de opiniões e, mesmo que se pretenda objetiva, está ciente de que a pretensa neutralidade científica é uma ficção. (FERRETTI, 2013, p. 245)

Voltamo-nos a todo cuidado e respeito necessários para esta Casa, porque de fato, não pretendemos essencializar a Pombagira, tão pouco sua performance, e ―por isso mesmo as generalizações neste campo são sempre limitadas e devem ser aceitas com cautela, como já dissemos [...] Em tais circunstâncias, critica-se o distanciamento do antropólogo, a ausência de ênfase na sacralidade e no emocional em sua abordagem‖ (FERRETTI, 2013, p. 36). A partir da participação observante, concluímos que a Fraternidade Espírita Cristã, assim como afirmou Vovó Cambinda, é uma instituição espírita cristã, que trabalha para a caridade, com o objetivo de promover acesso a conhecimentos sobre a espiritualidade, além de cuidar da matéria e do espírito. Todo tratamento proposto por esta Casa é assistido e realizado pelas entidades de umbanda. Independentemente deste fato, a diretriz espiritual e ideológica da FEC, faz menção às premissas da doutrina espírita kardecista e qualquer prática rito-litúrgica que por lá aconteça obedecerá a esta perspectiva. Sendo assim, se aproxima de uma visão evolucionista, meritocrata e eurocêntrica. 165

Com relação a performance estudada nesta Casa, não pretendemos categorizar quem é ou não, quem parece mais ou menos, quem é pior ou melhor Pombagira porque se expressa comedida. Se ela bebe ou fuma, se usa vermelho e preto. Acreditamos que o próprio desprendimento desses signos dicotômicos e das representações estereotipadas nos lança uma possibilidade de observar tais corpos de maneira mais afroperspectivada (Noguera, 2014). É neste sentido que apoiamo-nos mais uma vez na fala de Sérgio Ferretti, ao afirmar que

Lamentamos que continuem a ser publicados trabalhos apoiados em procedimentos tão superficiais e com incursões pouco cautelosas e desgastantes, em esfera fora do âmbito de qualificação profissional do autor, com resultados irresponsáveis, que contribuem para continuidade de preconceitos culturais. (FERRETTI, 2009, p. 27)

Nosso esforço está no intento de desconstruir esse tipo de prática equivocada criticada por Ferretti. Isso denota o quanto é significativo que cada vez mais os próprios membros das comunidades de terreiro ocupem os espaços acadêmicos e preencham as lacunas deixadas por pesquisas que reforçam as diferenças de forma discriminatória. Por esta razão, não podemos negar que a performance da Pombagira na FEC está repleta de características que correspondem a padrões hegemônicos e que imprimem um apagamento do protagonismo e empoderamento feminino. O comedimento vigiado pela doutrina da Casa corresponde a uma conduta de sistema falocêntrico e domesticador do corpo da mulher. Sempre que as Pombagiras se movimentam, percebemos que elas estão voltadas a uma preocupação em não parecer o estereótipo da puta.

Mas tanto a pura quanto a puta, revelam-se expressões do desejo masculino. A Maria cristã comporta o que seria suportável aos homens, a puta o que é desejável, mas por isso mesmo, odiável e marginalizável. Quero dizer ―marginalizado‖, mas não ―excluído‖, posto que o erótico – que não podia ficar sem lugar – coube no espaço do prostituído e demoníaco. (BARROS, 2010, p. 324)

Até mesmo quando há uma tentativa de busca por um corpo-mulher não-puta, não-libidinosa, não-sexualizada, ainda sim, concordamos com Mariana Leal de Barros que estamos enquadrando a mulher a uma necessidade do masculino. Estamos limitando a Pombagira a uma representação de mulher dominada, domesticada, submissa. Cada pequeno gesto que procura não exagerar ou não parecer que está como a própria Pombagira Rainha nos diz ―a ultrapassar o normal‖, nos transporta, por outro lado, a um indício de subversão do próprio sistema. Como? 166

Após algumas reflexões, nossa indagação centrou-se em: ―Por que as Pombagiras continuam naquela Casa?‖. Mesmo com todo esse regramento, sempre há um sorriso no canto da boca ou uma gargalhada, acompanhada de rosas e mãos nas cadeiras. Por vezes, escutamos um ―tô de olho, hein moço(a)!‖ ou até um intimidador ―boa noite...‖. Seu bailado é sensual, mas controlado. Então elas continuam, permanecem e Pombagiram transpondo os olhares, curiosos ou vigilantes, sendo apenas Pombagiras, cantando e dançando ao som da batucada. Apesar da Fraternidade ser um espaço religioso que agrega diversas influências cosmológicas, entendemos que os elementos artísticos que compõem a performance da Pombagira legitimam uma performance afro-brasileira denotada por Zeca Ligiéro em sua obra (2011). Mesmo assim, é importante frisar que existe uma cosmovisão hegemônica que direciona as outras e que imprime colonialidades de poder, ressignificando, diluindo e embranquecendo as práticas. Consequentemente, buscam dominar a sexualidade e corpo da mulher. Tais perspectivas adotadas pela Casa são uma escolha da própria espiritualidade que lá atua e independente de qualquer apontamento que façamos, reforçamos que é dessa forma que a Casa se propôs a funcionar e prossegue. Entendemos também que as tensões que a Casa vivencia atualmente, são na verdade, resultado das encruzilhadas estreitas que se construíram entre a incansável insistência de dominação do colonizador e àquelas práticas que tentam sobreviver a opressão, como a própria umbanda no recorte de nossa pesquisa. Concluímos que se tratam de conflitos políticos de interesses que partem de cosmovisões divergentes e que disputam por espaço na FEC. Mesmo assim, a matriz/motriz umbandista persiste e resiste graças ao movimento realizado pela Morubixaba Dulce de mantê-la. Com relação ao esforço da dirigente da Casa e uma possível perspectiva para manter esse legado umbandista na Fraternidade Espírita Cristã, descrevemos uma cena observada no ritual de descarrego, sendo a última gira acompanhada ao longo de vinte meses de etnografia. Estávamos no ritual, observando como o clima de leveza e paz de espírito transparecia no rosto dos consulentes. Era fim de gira e os caboclos (os únicos ainda incorporados em seus médiuns) estavam se preparando para partir e todos cantavam:

Tambor, você fica aí até quando eu voltar Tambor, você fica aí até quando eu voltar Adeus a umbanda, adeus tambor Adeus babalaô e Orixá (Ponto cantado registrado em trabalho de campo, São João de Meriti, 2016) 167

Restavam dois caboclos que dançavam satisfeitos com o semblante de missão cumprida: Cabocla Jandira e Caboclo Sete Flechas. Ela, incorporada em seu cavalo e dirigente da casa, a médium Dulce. Ele, incorporado no médium Leonardo. Um corpo de uma senhora idosa dançava entre passos marcados e curtinhos, com toda limitação articular e memória de uma umbanda de mais de quarenta anos nos pés. Ao lado dela, um corpo viril de um jovem homem que rodopiava e lançava flechas pelo espaço com vigor e precisão. Ela, perto de finalizar seu ciclo e ele apenas intensificando sua trajetória como médium na umbanda. Ninguém mais restava em transe, apenas eles. Dançavam, e se cumprimentavam, feito um código secreto de irmãos. Neste momento, nos recordamos da primeira gira de descarrego observada na casa. Era abril de 2015 e um Exu Tranca Rua incorporado em Leonardo passa perto da porta de entrada e enquanto o registro em caderno de campo era feito, ele nos dita: ―Escreve aí sobre ele...‖ e sai de transe. A princípio, não compreendemos o porquê de escrever sobre o médium Leonardo, mas na última gira de 2016 (aqui narrada), ao observar a mais velha e o mais novo, começamos a juntar as peças do quebra- cabeça. Este jovem médium começou seu trabalho na umbanda ainda muito novo, aos 14 anos. Hoje, com 34 anos, passou recentemente por situações conflituosas de depressão, síndrome do pânico e ficou, inclusive, durante 1 mês em tratamento espiritual e proibido de que suas entidades dessem consulta. Coincidentemente ou não, essa fase pessoal dele foi no mesmo período em que a casa entrou em crise por seus conflitos internos. Nos parece que este médium apresenta grande potencial a assumir a responsabilidade da Casa quando a dirigente Dulce partir. Esta percepção só nos chegou quando soubemos que houve uma gira de descarrego em que Dulce não compareceu. Apesar de não estarmos presentes nesse dia, nos chegaram comentários de que fora o Caboclo Sete Flechas, incorporado no médium Leonardo que assumiu a direção da gira. Sem dúvida, vislumbrar a última gira da etnografia observando a performance desses dois caboclos, em que o corpo velho e o novo se juntam, nos remete a tempo, espaço e dinâmica dialogando entre o ritual e o jogo, gerando encruzilhadas, encontros. Transporta-nos a repertórios, memórias e identidade. 168

Finalizando este texto, e não o estudo, nosso intento visa investir e dar continuidade a esta pesquisa, aprofundando a questão dos elementos artísticos, das vivências da performance e das representações da Pombagira. Pensamos em ampliar esta pesquisa no campo das relações étnico-raciais e das artes cênicas, para debater sobre as colonialidades e processos de dominação através do contato com diferentes casas de umbanda. Além disso, a continuidade desta pesquisa ecoa na prática artística, afinal de contas, não há episteme ou abordagem teórica que dê conta da complexidade de informações encadeadas numa performance artística. Continuamos dançando, girando, Pombagirando... Provocando reflexões, desconstruindo e desenvolvendo. Sigamos na luta, com pés descalços, olhar direto e saias rodadas exalando perfume de rosas... Laroiê!

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174

Anexo A - Hino da Umbanda

Fonte: Registrado em trabalho de campo, São João de Meriti, 2016.

Refletiu a luz divina Em todo seu esplendor É do reino de Oxalá Onde há paz e amor

Luz que refletiu na terra Luz que refletiu no mar Luz que veio de Aruanda Para tudo iluminar

Umbanda é paz e amor Num mundo cheio de luz É a força que nos dá vida e a grandeza nos conduz.

Avante filhos de fé, Como a nossa lei não há... Levando ao mundo inteiro A bandeira de Oxalá!

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Anexo B - Textos do Primado de Umbanda utilizados na FEC

Prece de abertura dos trabalhos espirituais:

Sob a graça de nosso Pai Tupã, pedimos que a irradiação do Sol de Oxalá baixe sobre os nossos Guias e nossas cabeças, possibilitando a boa direção dos trabalhos que se efetuarão neste Templo;

Que do Oriente, Xangô-Caô, com seus profundos e místicos ensinamentos, vele por todos nós e pelos nossos trabalhos, dando-lhes a mais absoluta firmeza e segurança;

Que o bondoso e sacrossanto coração de nossa mãe Oxum ajude-nos a extrair do nosso íntimo, o fel dos maus instintos;

Que Iemanjá, dispondo de poderosas forças de purificação, permita que as suas sagradas águas venham lavar as impurezas dos nossos corações;

Que Xangô, do alto de sua pedreira, nos mande a faísca de um raio luminoso, a fim de podermos tratar com serenidade a justiça, os nossos semelhantes;

Que Ogum, com a sua gloriosa espada nos proteja e nos defenda de qualquer influência perturbadora ou maléfica, fazendo o bem predominar sempre onde quer que estejamos;

Que Oxóssi, das profundezas das matas nos envie, conjuntamente com as suas ervas, o bálsamo da consolação, tornando bem esclarecidas as nossas mentes, na missão de bem fazer ao próximo;

A Iofá pedimos que a bondade, a paciência e o carinho de seus velhos africanos venham ajudar-nos a manter a paz e harmonia o nosso templo, fazendo-nos sentir a felicidade inundar todas as almas.

Salve o Rei da Umbanda, Arcanjo Miguel!

Salve os Arcanjos Gabriel e Rafael!

Salve todos os Caboclos!

Salve todos os Pretos Velhos!

Salve todos os Orixás!

Salve a Umbanda! 176

Permiti nosso Pai Tupã, que em vosso sagrado nome, iniciemos os trabalhos espirituais que vão realizar-se neste templo.

Que assim seja!

Prece de Encerramento dos Trabalhos Espirituais

Permiti nosso Pai Tupã que vos agradeçamos o haverdes consentido baixasse os nossos Guias e nossas cabeças, a irradiação do sol de Oxalá, possibilitando a boa execução dos trabalhos realizados neste templo;

A Xangô-Caô, que do oriente fez vibrar sobre nós os seus ensinamentos mantendo as nossas mentes em absoluta firmeza e segurança;

A Iemanjá, consentindo que na prodigiosa força da purificação de suas águas, lavássemos todas as impurezas dos nossos corações;

À nossa mãe Oxum, permitindo que o seu bondoso coração extraísse do intimo dos nossos, o fel dos maus instintos;

A Xangô, que do alto de sua pedreira projetou em nossas mentes, luminosas irradiações, que nos permitirão tratar com mais serenidade e justiça, os nossos semelhantes;

A Ogum, que nos protegeu com a sua flamejante espada, defendendo-nos de todas as influências perturbadoras, anulando a maldade e fazendo predominar o bem em todas as situações por que passamos;

A Oxóssi, que nos enviou de suas matas, o bálsamo consolador extraído de suas ervas, ungindo as nossas mentes para a missão de bem fazer ao próximo;

A Iofá, pela paciência, bondade e carinho com que os seus velhos africanos, ajudaram-nos a manter a paz e harmonia o nosso templo, de onde sentimos se irradiar a felicidade para todas as almas.

Salve rei da umbanda Arcanjo Miguel!

Salve os Arcanjos Gabriel e Rafael!

Salve todos os Caboclos!

Salve todos os Pretos Velhos!

177

Salve todos os Orixás!

Salve a Umbanda!

Permiti nosso Pai Tupã, que em vosso sagrado nome, demos por encerrados os trabalhos espirituais realizados neste templo.

Que assim seja!

Significado dos termos em tupy utilizados para designar as entidades espirituais em ordem decrescente

7º Grau - Morubixaba – palavra de origem tupy que corresponde ao chefe das tribos indígenas brasileiras.

6º Grau - Abaréguassú – palavra de origem tupy que significa homem mais elevado – bispo.

5º Grau – Abaré – palavra de origem tupy que significa missionário – homem de Cristo – homem diferente – um padre.

4º Grau - Abarémirim – palavra de origem tupy que significa sacerdote menor.

3º Grau – Bojáguassú – palavra de origem tupy que significa discípulo, súdito de nível considerável, nível maior.

2º Grau – Bojá – palavra de origem tupy que significa discípulo, súdito, servo de nível médio.

1º Grau - Bojámirim – palavra de origem tupy que significa discípulo, súdito, neófito, iniciante, discípulo novo – pequeno, novo.

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Anexo C - Transcrição da entrevista

Entrevista realizada com a Pombagira Rainha no dia 28/10/2016

Pombagira Rainha: Tudo bem, moça? Entrevistadora: Tudo bem. Muito prazer em conhecer a senhora. Brigada primeiramente por poder conceder essa, essa fala. Eu pretendo ser rápida, tá? Se o ogã, se o ogã não me atrapalhar muito, que eu tô até nervosa. Risos Entrevistadora: senhora pode responder pra mim por favor, o que que é ser Pombagira? Pombagira Rainha: Vou contar pr‘acê. Cê sabe que as Pombogira são agente mágicos. Os Exus, são agentes... vamo pra lá! Entrevistadora: Ficou melhor... Pombagira Rainha: Exu e Pombagira, são agentes mágicos. São as fórmulas de Deus, não é coisa do mal, não faz o mal. Os Exus, eles são levados a um patamar bem alto e a Pombagira tem a história dela. Quando os magos brancos da Atlântida, eles sempre faziam um ritual pra louvar essas entidades. E nesse, e nesse trabalho que eles faziam, tinha uma procissão. E nessa procissão, tinha um estandarte com uma pomba no meio de asas abertas. Essa pomba significava pra todos os atlantes da época, pra todos os filhos da época, via como... vai cantar ponto que não é daqui... Mas aí ela fazia com que, ela fazia com que trouxesse uma informação pros homens, principalmente os iniciados, pra eles na linha das Pombagiras, na linha que tinha pra servir de auxílio pra que eles pegassem as energias sexuais e transformassem em energias mentais. Isso trabalhava dentro da kundalina. Cê já ouviu falar em kundalina? Aí então eles faziam com que essa pomba trazia a pureza, as asas dela abertas quer dizer que elas estavam sempre girando. Aí ficou como Pombogira. Entrevistadora: Então essa energia que elas transformavam em uma energia mental, era uma energia... Pombagira Rainha: Isso. Os homens tinham que pegar a energia sexual, a libido, no caso, e transformar em energia mental. Aí... Entrevistadora: Entendi. Eram só os homens que faziam isso? Pombagira Rainha: Ela fazia através dos homens. E ela trazia, elas são agentes mágicos que trazia também a firmeza, a pureza... 179

Entrevistadora: Ah, então é, ela enquanto entidade fazia aí esse, essa transformação. Pombagira Rainha: Essa transformação mental... Entrevistadora: As mulheres não podiam... Pombagira Rainha: Não, os homens que tem muito libido, a mulher só tem se o homem forçar, né. Então ela fazia com que transformasse essa energia que era sexual em mental. Entrevistadora: E essa energia sexual era ruim... ou não? Pombagira Rainha: Não era ruim, mas não era só energia sexual, porque tudo é a mente. A mente está acima de tudo. Aí ficou depois com a umbanda popular achando que elas eram a parte de sensualidade que não tem nada a ver. Ess... Essas energias que ela trazia era pra ajudar, fazer o bem. Sendo agente mágico ela é uma célula de Deus. Então elas faziam isso, aí ficaram rotuladas como se fossem libidinosas, como se fossem sensuais, mas não tinha nada que ver com isso. Entrevistadora: Entendi, então, mas qual seria o lado bom dessa sensualidade? Já que não é só coisa ruim, né? Então também tem o lado... Pombagira Rainha: Claro, tem o lado bom, claro... é uma necessidade, mas que não viva só disso. Entrevistadora: Entendi, pra trazer então seria um equilíbrio... Pombagira Rainha: Trazer o equilíbrio. Entrevistadora: Entendi. E a moça podia dizer pra mim, é... o quê que tem de diferente na Casa antiga do seu cavalo pra essa Casa aqui? Pombagira Rainha: Era o misticismo. Aqui já nós já não temos misticismo. Aqui nós trabalhamos sempre Deus. Aqui também é que os Exus só vem descarregar o templo. É o descarrego porque eles são os guardiões de qualquer templo. Entrevistadora: Então qual, qual seria a importância então desse trabalho que é feito aqui nessa Casa com as Pombagiras? Pombagira Rainha: De limpar. Entrevistadora: Limpar? Pombagira Rainha: Limpar tudo e trazer a sensibilidade pra cada um. Entrevistadora: Aflorar o lado da emoção? Pombagira Rainha: Emoção e a parte prática, também. Pra haver equilíbrio. Entrevistadora: Então é o... ela cuida da parte da sensibilidade do ser humano? Pombagira Rainha: Juntamente com a... com a energia da kundalini. Entrevistadora: Que seria a energia do chákra básico? Pombagira Rainha: O chákra básico, né... 180

Entrevistadora: E... a Casa aqui, ela é muito ligada né, ao kardecismo, à visão do espiritismo, né? Pombagira Rainha: Porque a umbanda é feita do kardecismo, o cristianismo e africanismo. Nós temos o kardecismo, que nós temos as leis de Kardec. Cristianismo que é com Deus. E o africanismo, as giras, essa parte ritualística. Entrevistadora: E por quê que vocês quando formaram a Fraternidade, vocês resolveram mudar o que tinha de lá e pro que acontece aqui? Pombagira Rainha: É o desenvolvimento, a evolução. Entrevistadora: A evolução? Pombagira Rainha: É. Que lá já tava começando a haver essa evolução. Entrevistadora: Lá tinha o que de diferente? Era a roupa...? Era... Pombagira Rainha: É, eles lá usavam o colorido. Mas eu vou dizer uma coisa pra‘cê que cê num sabe. O vermelho e preto, num é a cor do Exu. A cor do Exu é o cinza. Cinza, o branco e o preto. O branco é a reunião de todas as cores. E o preto é a negação das cores. É as duas, os dois símbolos. O bem e o mal. Nós trabalhamos com o bem. E por isso que nós usamos o branco aqui, porque o branco é todas as cores. A gente quer trabalhar com as outras cores, basta o branco que é o suficiente. Entrevistadora: Que já reúne tudo? Pombagira Rainha: Reúne tudo. Entrevistadora: Entendi. E o cinza seria a mistura do branco e o... Pombagira Rainha: Do branco com o preto. É a verdadeira cor do Exu é o cinza. Entrevistadora: Que é o equilíbrio? Pombagira Rainha: Agora dependendo da, do grau de cada falange aí é a tonalidade que é mais clara ou mais escura. Entrevistadora: Entendi. E... por quê que as Pombagiras precisam, né, pra... pra acontecer o trabalho, por quê que tem que dançar, tem que girar, por quê que tem que... Pombagira Rainha: Ah, aí tem que sempre, não só com as Pombagiras. Todos tem que dançar que é pra descarregar o cavalo. Entrevistadora: Só o cavalo ou tem um propósito... Pombagira Rainha: E a Casa também. Entrevistadora: Então não tem como haver limpeza na Casa se não for, é... dançando, batendo palma, cantando... Pombagira Rainha: Faz parte, além de fazer parte da ritualística, faz parte do descarrego também. 181

Entrevistadora: Ah, entendi, entendi. Acho que, deixa eu ver se tem mais alguma coisa... Por quê que os Exus e as Pombagiras não dão consulta na Casa? Pombagira Rainha: Porque nós, nós só tamos vindo aqui pra descarregar. Entrevistadora: Então o papel deles aqui na Casa é desempenhar somente a limpeza? Pombagira Rainha: Descarrego. A limpeza espiritual. Entrevistadora: Então os, as outras entidades, os caboclos e os pretos velhos não têm envolvimento com essa parte de limpeza? É outra coisa? Pombagira Rainha: Os caboclos são que orientam os Exus. Quando o Exu começa a extrapolar, o caboclo que tá do lado já começa a cortar. É eles quem são os compadres, são os servos da entidade, do caboclo, preto velho. Entrevistadora: Entendi. Agora, última coisa, é... Eu vejo, já fui em outras Casas eu já vi outros jeitos de dançar da Pombagira, por exemplo. E tô estudando o corpo. E aqui eu percebo, não sei se a moça vai concordar comigo, que é, tem uma forma muito igual de movimentar, né. Uma forma educada, doutrinada. Que aqui tem a educação do médium, né. É... você acha que essa forma de se movimentar, como é que ela é... Pombagira Rainha: Elas tem que ficar girando um pouco pra poder as energias circularem. Entrevistadora: E onde você acha que a sensualidade aparece aí? Pombagira Rainha: Só mesmo o rótulo. Aí como já tem o rótulo, elas têm que fazer o seu fundamento que é a sensualidade. Entrevistadora: a mão na cintura... Pombagira Rainha: É, outras não tem nem a mão na cintura, mas segura a saia... isso aí já tudo já é o fundamento da Pombagira. Entrevistadora: Entendi. Entendi... então ela faz porque ela tem que trabalhar o mental das pessoas? Pombagira Rainha: Isso. E é o fundamento. Tudo tem seu fundamento. O caboclo vem sempre protegendo o chákra.... Eu: Então é se prendendo ao estereótipo? Que a pess... A gente vem pra cá procurando... se não fizer isso, não é Pombagira? Pombagira Rainha: Também. Entrevistadora: Teria mais alguma coisa? Pombagira Rainha: Eu acho é, que não é bem sensualidade. É um modo de movimentar por causa do rótulo. Entrevistadora: Qual seria esse rótulo? Pombagira Rainha: A kundalini ativa. 182

Entrevistadora: Ah, então essa, esse movimento aqui tem a ver com a ativação da... Pombagira Rainha: Ativação da kundalini. Provocantes, né. Entrevistadora: Ah, então é o quadril, essa parte aqui de baixo... Pombagira Rainha: Essa parte. Entrevistadora: Esse movimento do quadril então tá movimentando energia da kundalini? Pombagira Rainha: A kundalini começa com esse movimento aqui em baixo pra poder a kundalini também desenvolver... Entrevistadora: É impressão minha ou parece que é um movimento meio de um infinito, um oito? Pombagira Rainha: É. Não é impressão não, é isso mesmo. Entrevistadora: E você acha que aqui em ca... aqui nessa Casa é meio comedido ou não esses movimentos? Pombagira Rainha: Depende do que o caboclo admite. Se começar a ultrapassar o normal, já é... Entrevistadora: E qual seria o normal? Pombagira Rainha: Não é, não é provocar. Entrevistadora: É a intenção então, no caso? Pombagira Rainha: Só a intenção. Entrevistadora: E me conta a sua história? Pombagira Rainha: Ah, minha história? Entrevistadora: A sua história. Pombagira Rainha: Ah, a minha história é muito grande, muito antiga... Entrevistadora: Me conta uma coisa curiosa da sua história... Uma curiosidade. Não precisa contar a história toda. Uma coisa curiosa da sua história. Pombagira Rainha: É que as Pombagiras, foi o que eu falei pra você é que é aquela pomba, né. Que quer dizer que é a pureza, mas o falangeiro tem cada um tem sua história diferente. O jeito lá já viveu... Entrevistadora: Então o que você mais aprendeu nessa encarnação que quando você viveu que você aprendeu pra hoje tá aqui trabalhando, ajudando a gente, o que você mais aprendeu com essa existência? Pombagira Rainha: Nós aprendemos que toda vivência que a gente tem, que os filhos precisam disso, precisam de mostrar, parece um espetáculo mas não é um espetáculo. É mostrar que tá aqui pra trabalhar e pra trabalhar pro bem. Tá bom, filha? Entrevistadora: Tá bem, brigada. 183

Anexo D - Fraternidade Espírita Cristã, uma história

Figura 47: Emblema da FEC. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 48: Fachada da FEC. Fotografia: acervo da FEC.

Figura 49: Cruzeiro. Fotografia: Tulani Pereira. 184

Figura 50: Caboclo Sete Flechas saudando o congá. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 51: Pai Cipriano. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 52: Cabocla Jandira benze filho de Ogum. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 53: Mironga de preta velha. Fotografia: Tulani Pereira. 185

Figura 54: Pombagira Rainha. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 55: Pretos velhos em terra. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 56: Ibejada. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 57: Encerramento dos trabalhos do ano na praia. Fotografia: Tulani Pereira. 186

Figura 58: Estrela de seis pontas florida. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 59: Prece na praia. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 60: O afago de Vovó Cambinda. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 61: Pedidos ao mar. Fotografia: Tulani Pereira. 187

Figura 62: Agradecimentos de mãe Dulce. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 63: Rosas. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 64: Trabalho aos Exus e Pombagiras. Fotografia: Tulani Pereira. 188

Figura 65: Apresentação artística do PADE-UFRJ no 18º aniversário da FEC. Fotografia: Tulani Pereira.

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Figura 66: Assistência em festa de Natal. Fotografia: Tulani Pereira.

Figura 67: Grupo de médiuns da FEC em 2016. Fotografia: Tulani Pereira. 189

Figura 68: Almoço fraterno. Fotografia: acervo da FEC.

Figura 69: Bingo durante evento. Fotografia: acervo da FEC.

Figura 70: 18º aniversário da FEC em janeiro de 2016. Fotografia: acervo da FEC. 190

Figura 71: Feijoada fraterna 2016. Fotografia: acervo da FEC.

Figura 72: Brechó da FEC. Fotografia: acervo da FEC.

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Anexo E - Sob as lentes da fotógrafa negra Vilma Neres: Gira de Descarrego em 28/10/2016

Figura 73: ―Pisa em saltos, seus pés descalços…‖ (Xandy Carvalho)

Figura 74: O ogã e o tambor.

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Figura 75: O cigarro de Seu Tranca Rua.

Figura 76: Pombagirando. 193

Figura 77: Pombagiras Ciganas.

Figura 78: Salve a malandragem! 194

Figura 79: Zé Pelintra.

Figura 80: Cantar, dançar e batucar. 195

Figura 81: Caboclos aplicando passe durante a gira de descarrego.

Figura 82: Fraternidade entre médium e consulentes.

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Figura 83: Descarregando com a espada de Ogum.

Figura 84: Encruza no templo. 197

Figura 85: Reverência a Oxalá.

Figura 86: O mais velho e o mais novo.

Figura 87: Corrente para saída da assistência. 198

Figura 88: Assentamentos do congá.

Figura 89: Ponto riscado em preto e branco.

Figura 90: Os tambores. 199

Figura 91: Morubixaba Dulce e Tulani Pereira.