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Cultura : o messianismo como elemento da cultura popular e erudita na Guerra do Contestado

RUI BRAGADO SOUSA *

Resumo Há uma estreita relação entre os movimentos de resistência e cultura popular com o messianismo. Este artigo examina essa aproximação a partir do conceito dialético benjaminiano de “origem” ( ursprung ). A “origem” é um protofenômeno no sentido teológico, quer seja ele o Paraíso ou o comunismo primitivo, uma idade edênica e igualitária na Terra. Literalmente são “saltos” para fora da continuidade histórica linear que rompem com o desenvolvimento meramente evolucionista da História. A quebra da continuidade histórica não volta-se exclusivamente ao passado idealizado, mas também para o futuro, à utopia, ao millenium . Entre a experiência no passado e a expectativa no porvir há o que pode ser denominado de “tempo messiânico”. No contexto da História Cultural, pode-se dizer que o messianismo está inserido tanto na cultura erudita (nas filosofias de Walter Benjamin e Ernst Bloch), como na cultura popular (entre os caboclos do Contestado, no folclore). Estes elementos constituem uma hipótese de circularidade cultural. Palavras-chave: Guerra do Contestado; Messianismo; Circularidade cultural.

* RUI BRAGADO SOUSA é Mestre em História (UEM).

O messianismo é o sal da terra – e do céu também; para que não só a terra, mas também o céu intencionado não se tornem insípidos. O que o 101 numinoso prometeu o messiânico se dispõe a cumprir ( Ernst Bloch, O princípio esperanç a). Sem a ideia de uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua condição de escravo. Daí a importância do messianismo na história do patriarcado ( Oswald de Andrade , A crise da filosofia messiânica ). O mundo messiânico é o mundo de uma atualidade plena e integral. Só nele existe uma história universal. ( Walter Benjamin , Nota às teses ).

Guerra de Contestado

1. Introdução análise do Contestado, afinal o Messias A Guerra do Contestado é seguramente não aparece explicitamente nos o movimento social brasileiro com documentos, é preciso interpretá-lo. maior conotação messiânica e A dificuldade na análise do milenarismo milenarista, ao ponto de alguns produziu interpretações reducionistas e sociólogos a caracterizarem como factuais, de cunho positivista com forte “guerra santa”, ou como um influência de Euclides da Cunha, onde messianismo do tipo clássico. Dentre os os rebeldes sertanejos foram adjetivados diversos elementos que tornam este de forma pejorativa como culturalmente conflito bastante multifacetado, o arcaicos e atrasados e o messianismo messianismo é um dos fatores mais associado à degeneração racial. Os complexos, pois escapa aos olhos do caboclos, portanto, legaram o atributo investigador. Termo evanescente e por inglório de fanatismo e ignorância, vezes hermético, confunde os epíteto que carregam ainda hoje. A pesquisadores e o senso-comum. Assim hermenêutica sociológica do ocorre com as fontes utilizadas na messianismo representou um salto

qualitativo quanto à definição Rogério Rosa (2008) chamou de conceitual do termo, porém não houve “historiadores de farda”. O segundo, no 102 um diálogo efetivo entre a sociologia e qual se entendem os movimentos a historiografia, fator que relegou o milenares como expressão dos conflitos messianismo como um epifenômeno na no campo, com viés notadamente recente produção historiográfica. Este sociológico. A hermenêutica trabalho objetiva corrigir esse “hiato” sociológica do messianismo representou na recente literatura do Contestado, um salto qualitativo quanto à definição relacionando a cultura popular dos conceitual do termo, porém não houve sertanejos da “guerra santa” com a um diálogo efetivo entre a sociologia e cultura erudita na filosofia de Walter a historiografia, fator que relegou o Benjamin e Ernst Bloch, uma hipótese messianismo como um epifenômeno na de circularidade cultural. A teoria recente produção historiográfica. E por fornece os conceitos para pensar o fim, no atual momento, nos últimos messianismo como uma tradição vinte ou trinta anos, no qual o sentido cultural no ocidente e a prática (os dos surtos messiânicos é compreendido rebeldes e o monge José Maria) a partir de suas próprias raízes e demonstra a tentativa da construção do referências culturais. milenarismo na terra. Os historiadores strictu-sensu voltaram- O movimento do Contestado é bastante se tardiamente para a análise dos multifacetado, com uma variedade de movimentos de cunho messiânico. Eric atores históricos e cenários que tornam Hobsbawm (1970, p. 12), em Rebeldes o conflito demasiado complexo e Primitivos , afirma que a tendência à permite diversas interpretações. É marginalização dos surtos milenaristas interessante o relativismo de Nilson por parte dos historiadores ocorre por Thomé (1999, p. 13) afirmando que dois motivos. Em primeiro lugar devido para os religiosos ocorreu uma “Guerra à tendência racionalista e “modernista”; de Fanáticos”; para sociólogos, houve e em um segundo ponto, devido ao fato um “Movimento Messiânico”; para de que as inclinações e o caráter político políticos, aconteceu uma “Questão de desses movimentos são, muitas vezes , Limites”; para militares, tratou-se de indeterminados, ambíguos ou mesmo uma “Campanha Militar”; para conservadores. marxistas, foi uma “Luta pela Terra”. De certa forma, o Contestado foi tudo Esta tendência fica evidente no foco das isso e ao mesmo tempo, o que recentes teses sobre a guerra do problematiza e enriquece o fenômeno. Contestado. Delmir Valentini (2009) analisa a atuação da Brazil Railway São três os momentos da historiografia Company , holding criada por Percival nacional sobre os movimentos Farquhar , em 1906 , nos Estados Unidos messiânicos, que diferem tanto em e que atuou na região conflagrada nos termos metodológicos como ramos ferroviário, madeireiro e hermenêuticos. O primeiro pode ser colonizador. Rogério Rodrigues Rosa designado como “euclidiano”, no qual (2008) pesquisou a produção dos se opõem as luzes iluministas da historiadores militares (historiadores de Primeira República ao fanatismo farda) sobre o conflito e o projeto obscurantista colonial, responsável modernizador do Exército no teatro de pelos surtos messiânicos. Geração esta operações. Márcia Janete Espig (2008) eminentemente positivista e militar, que elaborou sua Tese sobre os

trabalhadores da Estrada de Ferro São Queiroz, Maria Isaura Pereira de Paulo-Rio Grande e a participação dos Queiros e Duglas Monteiro), até onde se 103 turmeiros na “guerra santa”. Até mesmo pôde pesquisar. as pesquisas que abordam a participação É justamente nesse “hiato” dos Monges do Contestado, como historiográfico que este trabalho se Nilson Thomé (1999), Eloy Tonon insere e justifica-se. Na tentativa de (2008) e Alexandre Karsburg (2012), apreender os movimentos de são abundantes em termos heurísticos, característica messiânica 2 e milenarista 3 documentais e empirismo, porém não como movimentos sociais e políticos, existe uma hermenêutica interpretativa com uma racionalidade específica, a para os conceitos milenares e recente produção historiográfica tende a messiânicos. Este fato nos leva a deslocar o messianismo como um concluir que a sócio-gênese religiosa do epifenômeno, questão secundária que 1 tornou-se um objeto Contestado encobriria a visão do essencial, ou seja, sociológico apenas, enquanto que a a organização política do movimento. historiografia propriamente dita estende Essa tendência é perceptível desde o leque interpretativo para as questões Milagre em Joaseiro , onde Ralph Della materiais, palpáveis e políticas. Cava (1976) busca as origens sociais do Naturalmente há exceções a esta regra milagre que deu origem ao culto a Padre que, embora não enfatizem o elemento Cícero; é fundamentada com a messiânico do confronto, tangenciam descoberta das prédicas de Antônio para uma análise religiosa da questão. Conselheiro, onde se percebe o cunho São os trabalhos de Marli Auras (1984), acentuadamente político das pregações uma interpretação gramsciana sobre a do líder de Canudos; e consolidada com organização social da irmandade Paulo Pinheiro Machado (2004), em sua cabocla; de Todd Diacon (1991), análise em torno das lideranças civis do brasilianista que estudou a dicotomia Contestado. entre o imaginário milenarista e a realidade capitalista do conflito; e de Ivone Gallo (1999), que estabeleceu uma interessante síntese entre o Apocalipse de São João com as imagens representativas dos sertanejos. 2 Algumas definições teórico-metodológicas Entretanto, não há um trabalho de sobre o messianismo cristão encontram-se em pesquisa específico sobre o LANTERNARI, Vittorio, As religiões dos messianismo desde a geração oprimidos, pp. 319 a 339; PEREIRA DE sociológica (Maurício Vinhas de QUEIROZ, Maria Isaura, O messianismo no Brasil e no mundo, p. 27; WEBER, Max, Sociologia das Religiões, p. 16 a 18. Em linhas 1 Por “religiosidade popular” entende-se as gerais, o Messias é alguém enviado por uma manifestações que envolvem crenças e práticas divindade, um líder carismático, para trazer a ligadas ao catolicismo (no caso, ao catolicismo vitória do Bem contra o Mal, restituindo o rústico) que tem um ponto crucial de culto aos paraíso sobre a Terra. Relacionado, segundo santos reconhecidos ou não pela Igreja. A Weber aos povos párias; para Lanternari, aos religiosidade constitui um patrimônio cultural e oprimidos. serve como elemento de identificação, de 3 “O milenarismo representa uma das formas identidade entre uma nação, classe social ou assumidas pela frustração da espera messiânica” etnia. Caracterizada pelo culto aos santos (no (...). “Elas enunciam uma mudança radical, uma caso do Contestado, São Sebastião, São Miguel salvação coletiva, iminente, total. Afirmam o e São Jorge), por peregrinações e romarias e por sentido da história. Apelam ao agir humano” ritos e cerimônias. (DELUMEAU, 1997, p. 18).

No entanto, a A metodologia da expectativa de História Cultural 104 ressurreição do permite estabelecer Monge José Maria e aproximações, de fundação de uma correspondências cidade sagrada em (circularidade) e Taquaruçu tornaram o resgatar alguns Contestado, sem elementos dúvida, o mais marginalizados na explicitamente Monge José Maria. Autor: Willy Zumblick recente historiografia, messiânico e Fonte: www.zumblick.com.br como a festa, sempre milenarista dos três intimamente ligada movimentos. Assim sendo, acreditamos com o messianismo. As festas sempre que relegar um dos aspectos mais ricos tiveram papel de destaque no calendário e complexos da “guerra santa” como cristão do sertanejo, porém, uma vez secundário, mesmo com objetivos instituídos os “quadros santos” esses nobres, seria encobrir um dos traços momentos que eram exceção passaram mais importantes da cultura cabocla 4. A a ser regra geral, fenômeno que Duglas partir do conceito de tradição cultural Monteiro (1974) chamou de “festa pode-se compreender o fenômeno permanente”, onde por um curto messiânico do Contestado, e assim período, os caboclos aproximaram-se do espera-se retirar o véu de fanatismo que “Reino de liberdade”. Nesse ponto, (ainda) envolve o conceito; afinal, como pode-se tecer uma relação entre a festa afirmou Paul Ricoeur, “somos filhos permanente com utopia e messianismo. bastardos da memória judaica e da Roger Caillois faz relação entre os “dias historiografia secularizada do século de festa” e a rememoração da Idade de XIX”. Ouro. No artigo “A festa” , publicado na Nouvelle Revue Française , em 1939. 2. Metodologia: história social da Caillois afirma que a festa apresenta-se cultura e circularidade cultural como uma atualização dos primeiros Assim como a língua, a cultura tempos do universo, da Urzeit , da era oferece ao indivíduo um horizonte original eminentemente criadora. A de possibilidades latentes – uma Idade de Ouro, a infância do mundo jaula flexível e invisível dentro da como infância do homem, responde a qual se exercita a liberdade condicionada de cada um. ( Carlo essa concepção de um paraíso terrestre Ginzburg , O queijo e os vermes ). onde tudo é dado de início e ao sair do qual foi preciso ganhar o pão com o suor do próprio rosto. É o reino de

4 Por “cultura cabocla” compreendo a Saturno ou de Cronos , sem guerra e sem experiência histórica, a tradição e o contato com comércio, sem escravidão nem os monges peregrinos da região Sul, desde o propriedade privada ( apud LÖWY, primeiro João Maria (Agostini) até o segundo 1989, p. 105). É nesse contexto que João Maria e o “Messias Caboclo” José Maria. surge a figura da idade edênica do A cultura, nesse sentido, é uma forma de identidade , “uma espécie de teatro em que passado, o que faz a grandeza e a várias causas políticas e ideológicas se importância dos dias de festa é permitir empenham mutuamente”. Concebida dessa o encontro com “uma vida anterior”, diz maneira, a cultura “pode se tornar uma cerca de Mikhail Bakhtin. proteção: deixa a política na porta antes de entrar” (SAID, 1995, pp. 13-14).

As festividades – escreve Bakhtin – são Gramsci), através do exemplo do uma forma primordial , marcante, da moleiro friulano Menochio. Se por um 105 civilização humana. Durante a festa, é a lado há dicotomia cultural, por outro há própria vida que se representa, e por circularidade, influxo recíproco entre certo tempo, o jogo 5 se transforma em cultura subalterna e cultura hegemônica vida real. Mikhail Bakhtin consolida (ou cultura popular e erudita). É com termos fundamentais na História conceito de circularidade cultural, cultural, como carnavalização da cultura formulado por Bakhtin e consolidado e realismo grotesco, 6 na obra sobre as por Ginzburg que procuramos uma relações entre François Rabelais e a metodologia específica para o mundo cultura popular. Essa penetração da camponês da Primeira República. cultura popular no seio da ideologia “superior” (em Rabelais, mas também Um exemplo reconhecido de em Shakespeare, Boccaccio e circularidade cultural no Brasil é a tese Cervantes) ocorre no Renascimento de Jacqueline Hermann sobre o devido à decadência das fronteiras sebastianismo português, intitulada No linguísticas, entre a literatura oficial e Reino do desejado . Os traços judaicos não-oficial, latim e línguas vulgares; em de mística escatológica nas trovas de parte pela decomposição do regime Gonçalo Anes Bandarra, a tradição de feudal e teocrático da Idade Média. Joaquim de Fiore, a presença e a força “Mil anos de riso popular foram assim desses aspectos milenaristas e incorporados na literatura do escatológicos Jacqueline Hermann Renascimento” (BAKHTIN, 1996, p. (1998) procura apreender como “cultura 62). popular portuguesa quinhentista”. Esta cultura popular portuguesa da era dos A crítica de Carlo Ginzburg é que os descobrimentos integrava um cenário protagonistas que Bakhtin tentou bem mais amplo e complexo, descrever – os camponeses e artesãos – conformando o que Hermann denomina falam quase que exclusivamente através como “cultura artesã apocalíptica”. de Rabelais. Ginzburg deseja uma Pode-se estabelecer uma ponte ou um sondagem direta, sem intermediários ao corolário das definições de Jacqueline mundo popular. Ginzburg busca Hermann sobre o messianismo penetrar no que chama de cultura das português com o caso do Contestado, classes subalternas (lembrando como uma “cultura campesina messiânica”. 5 No clássico Homo Ludens : o jogo como elemento da cultura, Johan Huizinga (2012), afirma que o jogo antecede a própria cultura, De Edward Thompson emprestamos os reside no mito, no ritual, no próprio jogo de conceitos de “tradição cultural” e palavras: a metáfora. O jogo se torna uma experiência, relacionando a resistência necessidade urgente na medida em que o prazer popular, os costumes e a tradição por ele provocado o transforma numa religiosa. “Essa cultura expressa os necessidade. Seu ambiente dominante é a festa, que implica na interrupção da vida cotidiana. sistemas de poder, as relações de 6 O termo “grotesco” surge no século XV, propriedade, as instituições religiosas deriva de “ grotta ”, ou gruta de escavações onde etc., e não atentar para esses fatores foram encontrados formas de arte opostas ao simplesmente produz uma visão pouco convencional, ao sublime; são formas profunda dos fenômenos e torna a deterioradas, invertidas, eróticas, deformadas. Importante ter em mente que o conceito está análise trivial” (THOMPSON, 1998, p. presente no ensaio de Benjamin sobre Eduard 288 e 289). Seu conceito de “economia Fuchs e o erotismo. moral”, descrito em Costumes em

Comum, também auxilia a compreensão existência rural para a urbana, da de que toda desorganização histórica criação de porcos a Picasso, do lavrar o 106 das condições sociais acarreta na solo à divisão do átomo. A construção desarticulação dos conceitos e das da cultural está, portanto, desde sua representações dos homens e, por origem epistemológica, relacionada com conseguinte, de suas representações a natureza e com o trabalho. Com base religiosas. De acordo com Ronaldo em suas raízes etimológicas no trabalho Vainfas (1997), o campo teórico da rural, a palavra primeiro significa algo cultura popular em Thompson valoriza como “civilidade”; depois, no século a resistência social e a luta de classes XVIII, torna-se mais ou menos em conexão com as tradições, os ritos e sinônima de “civilização”, no sentido de o cotidiano das classes populares, em um processo geral de progresso um contexto histórico de transformação, intelectual, espiritual e material. A pois a cultura popular é rebelde, mas o é cultura é o sinônimo e a antítese da em defesa dos costumes. São inter- civilização. relações recíprocas entre os dois 3. O messianismo, erudito e popular universos culturais que de certo modo, escreve Vainfas (1997), aproximam-se A afinidade eletiva entre utopia dos conceitos de circularidade libertária e religião, política e formulado por Ginzburg. “Pois não messianismo tende a chagar ao grau de existe desenvolvimento econômico que fusão, teoricamente nas obras de Walter 8 não seja ao mesmo tempo Benjamin, Ernst Bloch e do jovem 9 desenvolvimento ou mudança de uma Lukács. A forma original em gestação, cultura” (THOMPSON, 1998, p. 304). a figura inédita que se esboça nessa alquimia espiritual complexa na obra Partindo das premissas desta Escola e benjaminiana e blochiana, é a de uma de uma citação magnífica de nova concepção de história e de Hobsbawm (1998, p. 87) de que “o temporalidade que Michael Löwy, historiador das ideias pode não dar o emprestado uma expressão de George mínimo para economia, e o historiador econômico desprezar Shakespeare, mas o historiador social que negligencia um 8 Bloch cita Os Irmãos Karamazov onde dos dois não irá muito longe”, torna-se Dostoievski escrevia que o “socialismo é a Torre de Babel que se constrói para fazer o céu coerente afirmar que o historiador da descer sobre a terra ” e faz uma analogia entre cultura deve abordar tanto o mundo das Jó do Antigo Testamento - como sendo um ideias e cultura, como a sociedade Prometeu hebraico, defendendo energicamente material, a base econômica. Afinal, o direito e a rebelião - e o personagem Ivan como demonstra Terry Eagleton (2011), Karamazov: “Creio em Deus, más recuso o seu 7 mundo” (MUNSTER, 1993, p. 65). Cultura denotava no início um 9 Em obra sobre a evolução política de Lukács e processo completamente material, o que os intelectuais revolucionários da primeira foi depois metaforicamente transferido metade do século XX, Michael Löwy (1979) para as questões do espírito; da cita as memórias de Marianne Weber, a esposa de Max Weber, que descreve o jovem Lukács como “agitado por esperanças escatológicas na 7 A origem da palavra “cultura”, do latim culter, vinda de um novo Messias” e considerando designa a relha de um arado, deriva de trabalho “uma ordem social fundada na fraternidade e agricultura, colheita e cultivo. A raiz latina da como pré-requisito da Salvação”. Um epigrama palavra cultura é colere, com significado bastante irônico e bem humorado resumia com diverso, desde cultivar a adorar e proteger. perfeição a visão de mundo desses jovens Também pode significar, via o latim cultus, no intelectuais: “Como se chamavam os quatro termo religioso “culto”. evangelistas? Marcos, Mateus, Lukács e Bloch”.

Lukács, chamou de “messianismo escapar às distinções tradicionais entre histórico” ou “concepção romântico- religião e vida secular, sagrado e 107 messiânica da história”. Oposta à profano (Durkheim), natural e concepção estritamente quantitativa da sobrenatural (Max Weber), temporalidade, que percebe o transcendente e imanente (Eliade). O movimento da história como um termo ateísmo-religioso – proposto por continuum de aperfeiçoamento Lukács a propósito de Dostoievski – constante, de evolução irreversível, da permite delimitar essa figura paradoxal acumulação crescente, da modernização e buscar o ponto de convergência cujo motor reside no progresso messiânica entre o sagrado e o profano. científico, técnico e industrial, em suma A obra mais densa e elaborada de como contraponto ao paradigma do Benjamin é certamente a Origem do progresso, o messianismo histórico ou drama barroco alemão . Inicialmente concepção romântico-milenarista da apresentada como tese de livre docência história está em ruptura com essa ou Habilitação na Universidade de filosofia do progresso e com o culto Frankfurt, tem como propósito inicial positivista do desenvolvimento distinguir a forma desse drama, científico e técnico. Propõe uma enquanto “drama trágico” concepção qualitativa , não (Trauerspiel )11 , da tragédia ( Tragödie ), evolucionista do tempo histórico, na e procura demonstrar as afinidades qual a volta ao passado representa o existentes entre a forma literária do ponto de partida necessário para o salto drama trágico e a forma artística da em direção ao futuro, em oposição à alegoria 12 . A tese foi esboçada em 1916 visão linear, unidimensional, puramente num curto texto chamado “Drama quantitativa da temporalidade enquanto barroco e tragédia”. O fragmento é uma progresso cumulativo (LÖWY, 1989). das primeiras formulações do que Quanto a essa concepção da História de Michael Löwy chama de “crítica Benjamin, Michael Löwy (2005, p. 95) teológica” ao tempo mecânico, e adverte que o vínculo entre a era messiânica e a sociedade sem classes não pode ser compreendido unicamente 11 Trauerspiel deveria traduzir-se, literalmente, em termos de secularização, 10 uma vez por “drama lutuoso”, que não corresponde a nenhuma designação do gênero em português. que o religioso e o político conservam, Optei por “drama trágico” para fugir à tradução, em Benjamin, uma relação de comum em línguas românticas, de “drama reversibilidade recíproca, de tradução barroco” que não está no termo original nem mútua, que escapa a qualquer redução designa também nenhum gênero dramático unilateral: “em um sistema de vasos particular (nota do tradutor João Barrento). Neste momento, utiliza-se o termo “drama comunicantes, o fluido está trágico”, seguindo as explicações de Barrento; necessariamente presente em todos os contudo, alguns autores ainda fazem uso do ramais simultaneamente”. Tendem a termo drama barroco, e outros preferem não traduzi-lo, mantendo o termo em alemão: “Origem do trauerspiel alemão”. 10 Max Weber (1983) define a secularização 12 “O sentido literal não é o sentido verdadeiro. como um processo pelo qual o conjunto de Deve-se aprender uma outra leitura que busque fenômenos saídos das representações religiosas sob as palavras do discurso seu verdadeiro que desaparecem ao incorporarem-se nas pensamento, uma prática que os estóicos sociedades históricas. Weber compreende a chamam de hyponoia (subpensamento) e à qual secularização como um movimento trazido Filo de Alexandria dará seu nome definitivo de intimamente pela dialética histórica própria do alegoria (de allo , outro e agorein , dizer)” cristianismo. (GAGNEBIN, 1999, p. 34)

constitui um dos fundamentos especialistas na obra de Walter filosóficos de sua rejeição às ideologias Benjamin no Brasil, uma estratégia 108 do progresso. Para Walter Benjamin, interessante é entendê-lo como uma não se pode pensar nenhum espécie de “estrutura” histórica, algo acontecimento empírico isolado que não como uma ideia platônica, porém tenha uma relação necessária com a historicizado. Para o filósofo da constelação temporal específica em que Unicamp Márcio Seligmann-Silva acontece. Mas o tempo da história é (2008), ursprung – literalmente proto- diferente do tempo da mecânica, ele salto – significa saltar e fazer pontes pondera. O tempo dos calendários ou entre fragmentos da redenção, isto é, dos ponteiros do relógio não contém o uma rememoração do evento original que ele chama de “tempo preenchido”, que se transforma em tradição cultural. pois são mecanicamente ascendentes, Jeanne Marie Gagnebin (1999, p. 10) quantitativos, em detrimento do tempo reitera que ursprung designa a origem vivido, ou da experiência. “A esta ideia como salto [ Sprung ] para fora da do tempo preenchido chama-se na sucessão cronológica niveladora e linear Bíblia – e esta é a sua ideia histórica tradicional; pelo seu surgir a origem dominante – o tempo messiânico” quebra a linha do tempo 15 . (BENJAMIN, 2011, p. 262). Com uma visão crítica da modernidade, No livro dobre o Drama trágico, a da civilização industrial, o messianismo dialética benjaminiana distingue aquilo é incorporado como expressão milenar que, na experiência histórica, nos afeta a das esperanças, sonhos e aspirações dos partir das origens ( ursprung ): “O que é párias e excluídos da história, como próprio da origem [e não gênese] nunca uma “tradição dos oprimidos”, utópica e se dá a ver no plano factual, cru e subversiva, e como a fonte de uma visão manifesto. O seu ritmo só se revela a descontínua da temporalidade. um ponto de vista duplo. A origem (...) Contrariamente ao tempo dos relógios tem a ver com a pré e pós-história dos ou calendários, vazios e homogêneos, a fatos” (BENJAMIN, 2011, p. 34). O tradição dos oprimidos está carregado e conceito de “origem” 13 é certamente preenchido de “tempo atual” ou “o bastante complexo e obscuro. Segundo agora” que faz explodir o continuum da filósofo Romero Freitas 14 , um dos história, no qual há estilhaços do tempo messiânico, “pois nele cada segundo era 13 “A origem não é só ‘ Entstehung ’ (um a porta estreita pela qual podia penetrar surgimento, um nascimento milagroso), mas o Messias” (BENJAMIN, 1994, p. sobretudo, ‘ Ursprung’ (momento original que 232,Tese XVIII B). sempre se renova). Daí a frase misteriosa de Walter Benjamin: ‘ Ursprung ist der Ziel’ (A O Contestado representou “um salto de origem é o alvo); ou para citar Ernst Bloch “A tigre em direção ao passado”, como Gênese é o fim”. A criação com fundamentação que nos antecede, torna-se o movimento pelo qual estamos chegando à plenitude” (FURTER, movimentos messiânicos, como desdobramento 1974, p. 57). de uma tradição profética que faz parte de toda a 14 De acordo com o professor Romero Freitas, cultura ocidental, marcada pelo judaísmo e com quem mantivemos correspondência, os cristianismo. Ver a revista Artefilosofia, Dossiê estudos sobre Benjamin encontram-se em um Walter Benjamin. Ouro Preto, n.6, abril 2009. nível maduro no Brasil, mas são poucos os 15 Na definição de Peter Szondi, o “tempo trabalhos que associam a teoria messiânica da verbal de Benjamin não é o pretérito perfeito, história e o conceito de “origem” benjaminiano mas o futuro do pretérito em todo o seu empiricamente. Para Freitas há uma afinidade paradoxo: ele é futuro e, mesmo assim, entre a ideia ou origem em questão com os passado.” (Dossiê Benjamin, Artefilosofia).

diria Walter Benjamin (1994, p. 230) na Ernst Bloch – “um vasto sistema do XIV Tese “Sobre o conceito de messianismo teórico”. Theodor Adorno 109 história”. Um salto dialético sobre o afirma que “a perspectiva do fim livre céu da história para explodir o messiânico da história e da passagem continuum , aquele tempo linear, para a transcendência é o centro em evolucionista, vazio e homogêneo, o torno do qual tudo se ordena em Geist tempo dos vencedores em suma. Mas der Utopie. esse “salto de tigre” não significa Ao abordar o tema das utopias meramente um retorno ao passado 16 concretas , Bloch não está apenas idealizado de uma sociedade pré- interessado na valorização barata do industrial. Inversamente, ele também elemento irracional da humanidade, volta-se para o futuro, para a utopia do pelo contrário, na superação do Reino. Entre o passado e o futuro ele elemento sociológico e econômico nega o presente opressor, resgatando as vulgar e na introdução do elemento energias da tradição e a utopia vindoura. religioso e metafísico como um impulso Para analisar a função histórica das que acompanha a consciência utopias, do porvir, do ômega, é revolucionária, rompendo assim com o necessária uma visita ao pensador Ernst conceito historicista de linearidade. Para Bloch. romper com o saber puramente Walter Benjamin e Ernst Bloch podem contemplativo e idealista das utopias, ser representados como o deus romano Bloch as articula com a filosofia da Janus. Na mitologia romana, Janus (ou práxis de Marx e com a ontologia da Jano) é um deus biforme que mantém “consciência antecipadora” ao que uma face para o que foi e outra para o “ainda-não-veio-a-ser”. Nesse processo, vir-a-ser, ou seja, uma para o passado e o homem compreendido como um ser outra para o futuro, uma é o velho e a ainda em formação é remetido em outra é o jovem. É também o deus das direção do futuro, ao novum , ao devir. O transformações e o guardião dos portais impulso ou interrupção que nos move e caminhos. Como “irmãos siameses”, necessariamente rumo ao novo é ambos representam a mais pura tradição abordado por Bloch de uma forma judaica, impregnados de messianismo bastante peculiar e distinta às pulsões teórico, com a diferença apenas que freudianas; a fome, as profecias, os Bloch volta-se para o horizonte do movimentos messiânicos e amanhã, do porvir, das utopias escatológicos são os motivadores das concretas; enquanto que Benjamin irrupções históricas e cuidadosamente analisa a experiência em vez da articulados às utopias. expectativa. Benjamin e Bloch sintonizam a vontade utópica, na qual o sonho primordial e a “luz do futuro” se fundem. Esses filósofos alemães e 16 O termo utopia, do grego u-topos , significa judeus mantiveram uma intensa relação originalmente “nenhum lugar”, o que ainda não recíproca de crítica e amizade durante existe, uma aspiração que está em contradição toda a década de 1920, período de com o existente, com a ordem estabelecida. ascensão nazista. Todavia, “restringir ou até orientar o utópico ao modo de Tomás Morus seria como querer reduzir a eletricidade ao âmbar-amarelo, do qual Desde Espírito da Utopia , obra de 1918, ela recebeu o seu nome em grego e no qual ela até Ateísmo no Cristianismo , publicado foi percebida pela primeira vez” (BLOCH, em 1968, há – nas palavras do próprio 2005, p. 25).

Essa dimensão 31) – “um corpo de utópica está presente doutrina, ‘um 110 em Bloch desde suas evangelho caboclo’, obras de juventude, com sua face mas é em O Princípio anedótica, Esperança que sua miraculosa, seus filosofia da história aspectos morais e ganhará sociais”. É fundamentação conveniente lembrar prática. Na primeira que o segundo João parte de sua obra- Maria previu prima, o autor trata de acertadamente, em conceitos ontológicos linguagem profética, como “ainda-não-ser” Monge José Maria. Autor: Willy Zumblick futuras guerras, a ou “ainda-não- Fonte: www.zumblick.com.br vinda de “gafanhotos consciente” e “sonhos acordados”; de aço” (serrarias), que comeriam toda a enfim, das potencialidades imanentes do madeira, de “dragões que soltam fogo ser-humano que ainda não foram pelas ventas” (trens), e que a cidade de exteriorizadas, mas que possui uma Curitibanos viraria “tapera” 17 . O força dinâmica e projeta o homem sociólogo Cesar Goes (2007) demonstra necessariamente para o futuro. Ligando que a relação entre os personagens, suas a dimensão de Esperança ao conceito práticas e o contexto social que estão de Antecipação , de utopia e práxis, inseridos, permite compreender como a Bloch consegue integrar perfeitamente formação de narrativas proporciona, este conceito teológico-filosófico ao através da circulação das mesmas, um projeto de uma filosofia da práxis sistema de crença . Goes busca as revolucionária e transformadora. formas que articulam esse sistema na “sociologia da experiência”. *** “Quem tem, mói; quem não tem, mói O “tempo messiânico”, do qual escreve também, e no fim todos ficarão iguais” Benjamin enquanto teoria, tem sua (Provérbio sertanejo supostamente fundamentação prática nas prédicas do atribuído a José Maria). Este preceito monge José Maria e, de maneira geral, ético resumia as novas relações sociais e nos costumes do sertanejo durante toda econômicas entre os sertanejos. De a Guerra do Contestado (1912-1916). acordo com Maurício Vinhas de Queiroz, que o recolheu no jornal O “Messias caboclo” José Maria Diário da Tarde, esta norma significava certamente soube aproveitar a tradição que os bens possuídos pelos adeptos de de João Maria presente nos sertões do José Maria anteriormente ao Paraná e Santa Catarina até os dias movimento, eram postos em comum. atuais. O primeiro João Maria, Giovanni “Quem possuía gado e lavouras, tudo Maria de Agostinho (1801-1869) deixou um legado de santidade e devotos por 17 conta da lenda das águas santas, por “Os meus povos devem ir em minha companhia para verem as pedras de Curitibanos onde andou. chorar sangue”. Profecia atribuída a José Maria, segundo a narração de Antonio Ferreira dos Em torno da figura mítica de João Santos, filho mais velho do líder e devoto do Maria, formou-se – nas palavras do Monge, Euzébio Ferreira dos Santos folclorista Euclides Felippe (1995, p. (ASSUMPÇÃO, 1917, p. 221).

entregava ao consumo geral; quem 4. Considerações finais possuía dinheiro, contribuía com o que 111 Uma das características do complexo pudesse dispor; quem nada possuía, de estilo de escrita alegórica de Walter tudo poderia participar também”. É o Benjamin é que a metodologia aplicada que atesta o depoimento de um rebelde, a determinado ensaio, crítica ou tese Zaca Pedra, “(...) o que eles tinham era ocorre simultaneamente e inerente ao repartido. Tudo era irmão. O que um 18 objeto analisado. Isso por vezes tinha, tinha que repartir” (VINHAS DE complica a compreensão da obra, por QUEIROZ, 1981, p. 142). O código outras, no entanto, torna-se ético dos camponeses tem claramente esclarecedor. Dito isto, pode-se traçar uma inspiração bíblica: “Ninguém um paralelo entre o estilo literário e a afirmava serem seus os bens que metodologia benjaminiana e algumas possuía, mas tudo lhes era comum” peculiaridades do Contestado. No (Atos 4, 32). ensaio sobre As afinidades eletivas de José Maria ficou conhecido entre as Goethe , Benjamin distingue a função do regiões de Palmas (PR) e Curitibanos crítico e do comentador. Enquanto a (SC) por ser um notório curandeiro, crítica busca o teor de verdade de uma conhecedor das plantas medicinais, obra, o comentário atinge apenas o seu alfabetizado e leitor das lendas de teor factual, esta distinção fica evidente “Carlos Magno e os doze Pares de na brilhante alegoria de uma fogueira: França”. As práticas deste terceiro Se quiser-se contemplar a obra em monge constituem, de acordo com a expansão como um a fogueira em tese de Marli Auras (1984), “o processo chamas vívidas, pode-se dizer então pedagógico de organização da que o comentador se encontra irmandade cabocla”. E sua morte em diante dela como o químico, e o outubro de 1912 pode ser considerado crítico semelhante ao alquimista. uma “parúsia cristã” em pleno século Onde para aquele apenas madeira e cinzas restam como objeto de sua XX. Imediatamente após perecer na analise, para este tão somente a primeira batalha do Irani, em outubro de própria chama preserva um enigma: 1912, correu a crença de sua o enigma daquilo que está vivo ressurreição. Isso fica patente no fato de (BENJAMIN, 2009, pp. 13-14). que o monge não foi enterrado, mas As palavras de Walter Benjamin, apenas coberto com algumas tábuas, aparentemente desconexas de uma para que pudesse retornar. E uma vez relação empírica com Contestado, frustrado a segunda vinda, um ano após ganham fundamentação prática se sua morte os camponeses voltaram a resgatarmos alguns relatos sobre o culto reunir-se em Taquaruçu, a “Jerusalém a São João Maria. Na literatura cabocla” à sua espera. Tal processo folclórica, nas reminiscências dos reavivou a guerra que estava em franciscanos, ou ainda na literatura latência desde 1912 e persistiu até 1916 militar existem descrições sobre a com a intervenção do Exército com quase metade de seus efetivos, deixando um saldo de aproximadamente dez mil 18 Um exemplo temático: no conjunto de mortos. aforismos intitulado “Rua de Mão Única”, Benjamin (1995, p. 61) interrompe o texto para expor seu estilo de citação: “Citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passante a convicção”.

utilização dos restos do fogo que o materialismo histórico e teologia – é Monge fazia nos pousos ao relento, possível escapar das armadilhas 112 utilizadas como verdadeiras relíquias metodológicas que marcaram a pelos sertanejos. “As cinzas do fogo que produção marxista de meados do século o velho monge fazia eram avidamente XX. Entre eles, a explicação causal dos disputadas e colocadas em breves surtos messiânicos como mero reflexo suspensos ao pescoço, a fim de do atraso econômico e cultural do Brasil afugentarem ‘coisas ruins’ como no período de “crise do latifúndio semi- diziam”, narra o Tenente Pinto Soares feudal” (FACÓ, 2009), ou como (1931, p.13). O carvão feito pelo Monge sintoma de uma “crise estrutural” tornou-se sagrado para seus devotos, (VINHAS DE QUEIROZ, 1981). Esta utilizados como patuás ou em receitas abordagem difere também da analise de cura. sociológica de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976) e seu conceito de Este exemplo demonstra como os “anomia social” e da busca por um “tipo comentadores, como químicos, viram ideal” para apreender o messianismo apenas o teor factual do movimento e dos sertanejos do Contestado. associaram-no a conceitos pejorativos e reducionistas como “fanatismo”, O messianismo judaico e cristão contém “obscurantismo”, “misticismo” e duas tendências, intimamente ligadas e “ignorância”. Todavia, numa analise contraditórias ao mesmo tempo: uma crítica ou “alquimista”, é a vida que se corrente restauradora voltada para o propaga no simples resquício de uma restabelecimento de um estado ideal do fogueira. passado, uma idade de ouro perdida, Há um conceito sociológico uma harmonia edênica rompida; e uma consolidado por Max Weber, este corrente utópica , aspirando a um futuro “alquimista das ciências sociais” – radicalmente novo, a um estado de como o definiu Michael Löwy – que coisas que jamais existiu. Justamente o permite uma melhor síntese entre uma ponto de referência entre Walter análise crítica esboçada através de Benjamin e Ernst Bloch, ou seja, referenciais como Benjamin e Ernst Benjamin preocupa-se com a Bloch e o quiliasmo dos camponeses do experiência perdida, enquanto Bloch Contestado. É o conceito de “afinidade volta-se para o horizonte da expectativa eletiva”. Löwy (1989) justifica o vindoura, das utopias. Entre a emprego do conceito criticando a experiência e a expectativa ocorre a sociologia pautada nas terminologias insurreição messiânica. Aparente conceituais da física e da biologia, de conservador, o movimento do inspiração comtiana. Propõe utilizar um Contestado tem caráter explicitamente campo semântico mais vasto, como das monarquista, o que seria contraditório e religiões, dos mitos, da literatura e até reacionário em se tratando de uma das tradições esotéricas, pois “não revolta revolucionária. Mas a volta ao tomou Max Weber o conceito de passado é um salto em direção ao carisma da teologia cristã, e Mannheim futuro, ao novum . o de ‘constelação’ da astrologia No ensaio sobre Eduard Fuchs o ponto clássica?” central da filosofia da história A partir dos conceitos de Walter benjaminina fica patente. O conceito de Benjamin e Ernst Bloch – que que “não há um documento de cultura concebem uma aproximação entre que não seja também um documento de

barbárie”. A desastrosa recepção da _____. Charles Baudelaire : um lírico no auge técnica capitalista, para Benjamin, do capitalismo. Obras escolhidas volume 3. São 113 extrapola o fato de a técnica só servir à Paulo: Brasiliense, 1996. sociedade para a produção de _____. Ensaios Reunidos : escritos sobre mercadorias. As questões que a Goethe. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009. humanidade coloca à natureza – escreve _____. Origem do drama trágico alemão . Benjamin (2012, p. 145) – são Edição e tradução João Barrento. Belo codeterminadas pelo estágio de sua Horizonte: Autentica, 2011. produção. “Este é o ponto em que o BLOCH, Ernst. O princípio esperança. positivismo fracassa, porque, na Tradução de Nélio Schneider. Rio de Janeiro: evolução da técnica, só foi capaz de Eduerj: Contraponto, 2005; 2006. (3 volumes). reconhecer os progressos da técnica, _____. Thomas Munzer , o teólogo da revolução. não os retrocessos da sociedade”. Tradução de Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. A linearidade do Positivismo impediu CARDOSO, Ciro. F.; VAINFAS, Ronaldo. que os observadores militares Domínios da História : ensaios sobre teoria e euclidianos compreendessem o metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997. fenômeno complexo como o DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro ; messianismo. Nossa metodologia tradução de Maria Yedda Linhares. Rio de dialética teve como objetivo revisar a Janeiro: Paz e Terra, 1976. temática no centenário da guerra do DELUMEAU, Jean. Mil anos de : Contestado, e retirar a semântica uma história do paraíso. Tradução de Paulo negativa que recaiu sobre os sertanejos, Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. como meros fanáticos, jagunços e EAGLETON, Terry . A ideia de cultura; ignorantes. Ao abordar o messianismo tradução Sandra Castello Branco. São Paulo: como uma manifestação cultural, Editora da Unesp, 2011. devolvemos aos sertanejos sua ESPIG, Márcia Janete. Personagens do dignidade, racionalidade e bravura. Contestado : os turmeiros da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande (1908-1915). Pelotas: UFPel, 2011. Referências FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos : gênese e lutas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. ANDRADE, Oswald de. A crise da filosofia messiânica. In: Obras completas . Rio de FURTER, Pierre. A Dialética da Esperança : Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. uma interpretação do pensamento utópico de Ernest Bloch. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. AURAS, Marli. Guerra do Contestado: a organização da irmandade cabocla. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Florianópolis: Ed. UFSC; São Paulo: Cortez narração em Walter Benjamin . São Paulo: Editora, 1984. Perspectiva, 2009. GALLO, Ivone Cecília D’Avila. O Contestado: BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na o sonho do milênio igualitário. Campinas, SP: Idade Média e no Renascimento : o contesto de Editora da Unicamp, 1999. François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UNB, 1993. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes : o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e pela Inquisição. Revisão Hilário Franco Jr. São política : ensaios sobre literatura e história da Paulo: Cia das Letras, 2006. cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado : a construção do sebastianismo em Portugal _____. Rua de mão única . Obras escolhidas (séculos XVI e XVII). São Paulo: Cia das volume 2. São Paulo: Brasiliense, 1995. Letras, 1998.

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