O Messianismo Como Elemento Da Cultura Popular E Erudita Na Guerra Do Contestado
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100 Cultura cabocla: o messianismo como elemento da cultura popular e erudita na Guerra do Contestado RUI BRAGADO SOUSA * Resumo Há uma estreita relação entre os movimentos de resistência e cultura popular com o messianismo. Este artigo examina essa aproximação a partir do conceito dialético benjaminiano de “origem” ( ursprung ). A “origem” é um protofenômeno no sentido teológico, quer seja ele o Paraíso ou o comunismo primitivo, uma idade edênica e igualitária na Terra. Literalmente são “saltos” para fora da continuidade histórica linear que rompem com o desenvolvimento meramente evolucionista da História. A quebra da continuidade histórica não volta-se exclusivamente ao passado idealizado, mas também para o futuro, à utopia, ao millenium . Entre a experiência no passado e a expectativa no porvir há o que pode ser denominado de “tempo messiânico”. No contexto da História Cultural, pode-se dizer que o messianismo está inserido tanto na cultura erudita (nas filosofias de Walter Benjamin e Ernst Bloch), como na cultura popular (entre os caboclos do Contestado, no folclore). Estes elementos constituem uma hipótese de circularidade cultural. Palavras-chave: Guerra do Contestado; Messianismo; Circularidade cultural. * RUI BRAGADO SOUSA é Mestre em História (UEM). O messianismo é o sal da terra – e do céu também; para que não só a terra, mas também o céu intencionado não se tornem insípidos. O que o 101 numinoso prometeu o messiânico se dispõe a cumprir ( Ernst Bloch, O princípio esperanç a). Sem a ideia de uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua condição de escravo. Daí a importância do messianismo na história do patriarcado ( Oswald de Andrade , A crise da filosofia messiânica ). O mundo messiânico é o mundo de uma atualidade plena e integral. Só nele existe uma história universal. ( Walter Benjamin , Nota às teses ). Guerra de Contestado 1. Introdução análise do Contestado, afinal o Messias A Guerra do Contestado é seguramente não aparece explicitamente nos o movimento social brasileiro com documentos, é preciso interpretá-lo. maior conotação messiânica e A dificuldade na análise do milenarismo milenarista, ao ponto de alguns produziu interpretações reducionistas e sociólogos a caracterizarem como factuais, de cunho positivista com forte “guerra santa”, ou como um influência de Euclides da Cunha, onde messianismo do tipo clássico. Dentre os os rebeldes sertanejos foram adjetivados diversos elementos que tornam este de forma pejorativa como culturalmente conflito bastante multifacetado, o arcaicos e atrasados e o messianismo messianismo é um dos fatores mais associado à degeneração racial. Os complexos, pois escapa aos olhos do caboclos, portanto, legaram o atributo investigador. Termo evanescente e por inglório de fanatismo e ignorância, vezes hermético, confunde os epíteto que carregam ainda hoje. A pesquisadores e o senso-comum. Assim hermenêutica sociológica do ocorre com as fontes utilizadas na messianismo representou um salto qualitativo quanto à definição Rogério Rosa (2008) chamou de conceitual do termo, porém não houve “historiadores de farda”. O segundo, no 102 um diálogo efetivo entre a sociologia e qual se entendem os movimentos a historiografia, fator que relegou o milenares como expressão dos conflitos messianismo como um epifenômeno na no campo, com viés notadamente recente produção historiográfica. Este sociológico. A hermenêutica trabalho objetiva corrigir esse “hiato” sociológica do messianismo representou na recente literatura do Contestado, um salto qualitativo quanto à definição relacionando a cultura popular dos conceitual do termo, porém não houve sertanejos da “guerra santa” com a um diálogo efetivo entre a sociologia e cultura erudita na filosofia de Walter a historiografia, fator que relegou o Benjamin e Ernst Bloch, uma hipótese messianismo como um epifenômeno na de circularidade cultural. A teoria recente produção historiográfica. E por fornece os conceitos para pensar o fim, no atual momento, nos últimos messianismo como uma tradição vinte ou trinta anos, no qual o sentido cultural no ocidente e a prática (os dos surtos messiânicos é compreendido rebeldes e o monge José Maria) a partir de suas próprias raízes e demonstra a tentativa da construção do referências culturais. milenarismo na terra. Os historiadores strictu-sensu voltaram- O movimento do Contestado é bastante se tardiamente para a análise dos multifacetado, com uma variedade de movimentos de cunho messiânico. Eric atores históricos e cenários que tornam Hobsbawm (1970, p. 12), em Rebeldes o conflito demasiado complexo e Primitivos , afirma que a tendência à permite diversas interpretações. É marginalização dos surtos milenaristas interessante o relativismo de Nilson por parte dos historiadores ocorre por Thomé (1999, p. 13) afirmando que dois motivos. Em primeiro lugar devido para os religiosos ocorreu uma “Guerra à tendência racionalista e “modernista”; de Fanáticos”; para sociólogos, houve e em um segundo ponto, devido ao fato um “Movimento Messiânico”; para de que as inclinações e o caráter político políticos, aconteceu uma “Questão de desses movimentos são, muitas vezes , Limites”; para militares, tratou-se de indeterminados, ambíguos ou mesmo uma “Campanha Militar”; para conservadores. marxistas, foi uma “Luta pela Terra”. De certa forma, o Contestado foi tudo Esta tendência fica evidente no foco das isso e ao mesmo tempo, o que recentes teses sobre a guerra do problematiza e enriquece o fenômeno. Contestado. Delmir Valentini (2009) analisa a atuação da Brazil Railway São três os momentos da historiografia Company , holding criada por Percival nacional sobre os movimentos Farquhar , em 1906 , nos Estados Unidos messiânicos, que diferem tanto em e que atuou na região conflagrada nos termos metodológicos como ramos ferroviário, madeireiro e hermenêuticos. O primeiro pode ser colonizador. Rogério Rodrigues Rosa designado como “euclidiano”, no qual (2008) pesquisou a produção dos se opõem as luzes iluministas da historiadores militares (historiadores de Primeira República ao fanatismo farda) sobre o conflito e o projeto obscurantista colonial, responsável modernizador do Exército no teatro de pelos surtos messiânicos. Geração esta operações. Márcia Janete Espig (2008) eminentemente positivista e militar, que elaborou sua Tese sobre os trabalhadores da Estrada de Ferro São Queiroz, Maria Isaura Pereira de Paulo-Rio Grande e a participação dos Queiros e Duglas Monteiro), até onde se 103 turmeiros na “guerra santa”. Até mesmo pôde pesquisar. as pesquisas que abordam a participação É justamente nesse “hiato” dos Monges do Contestado, como historiográfico que este trabalho se Nilson Thomé (1999), Eloy Tonon insere e justifica-se. Na tentativa de (2008) e Alexandre Karsburg (2012), apreender os movimentos de são abundantes em termos heurísticos, característica messiânica 2 e milenarista 3 documentais e empirismo, porém não como movimentos sociais e políticos, existe uma hermenêutica interpretativa com uma racionalidade específica, a para os conceitos milenares e recente produção historiográfica tende a messiânicos. Este fato nos leva a deslocar o messianismo como um concluir que a sócio-gênese religiosa do epifenômeno, questão secundária que 1 tornou-se um objeto Contestado encobriria a visão do essencial, ou seja, sociológico apenas, enquanto que a a organização política do movimento. historiografia propriamente dita estende Essa tendência é perceptível desde o leque interpretativo para as questões Milagre em Joaseiro , onde Ralph Della materiais, palpáveis e políticas. Cava (1976) busca as origens sociais do Naturalmente há exceções a esta regra milagre que deu origem ao culto a Padre que, embora não enfatizem o elemento Cícero; é fundamentada com a messiânico do confronto, tangenciam descoberta das prédicas de Antônio para uma análise religiosa da questão. Conselheiro, onde se percebe o cunho São os trabalhos de Marli Auras (1984), acentuadamente político das pregações uma interpretação gramsciana sobre a do líder de Canudos; e consolidada com organização social da irmandade Paulo Pinheiro Machado (2004), em sua cabocla; de Todd Diacon (1991), análise em torno das lideranças civis do brasilianista que estudou a dicotomia Contestado. entre o imaginário milenarista e a realidade capitalista do conflito; e de Ivone Gallo (1999), que estabeleceu uma interessante síntese entre o Apocalipse de São João com as imagens representativas dos sertanejos. 2 Algumas definições teórico-metodológicas Entretanto, não há um trabalho de sobre o messianismo cristão encontram-se em pesquisa específico sobre o LANTERNARI, Vittorio, As religiões dos messianismo desde a geração oprimidos, pp. 319 a 339; PEREIRA DE sociológica (Maurício Vinhas de QUEIROZ, Maria Isaura, O messianismo no Brasil e no mundo, p. 27; WEBER, Max, Sociologia das Religiões, p. 16 a 18. Em linhas 1 Por “religiosidade popular” entende-se as gerais, o Messias é alguém enviado por uma manifestações que envolvem crenças e práticas divindade, um líder carismático, para trazer a ligadas ao catolicismo (no caso, ao catolicismo vitória do Bem contra o Mal, restituindo o rústico) que tem um ponto crucial de culto aos paraíso sobre a Terra. Relacionado, segundo santos reconhecidos ou não pela Igreja. A Weber aos povos párias; para Lanternari, aos religiosidade constitui um patrimônio cultural e oprimidos. serve como elemento de identificação, de 3 “O milenarismo representa uma das formas identidade entre uma nação, classe social ou assumidas pela frustração da espera messiânica”