CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO UNISAL – CAMPUS MARIA AUXILIADORA

Antônio de Jesus Santana

CONCEPÇÕES DE E TRAGÉDIA NA MÚSICA RAIZ SERTANEJA COMO ELEMENTOS DE EDUCAÇÃO ENTRE SUJEITOS

Americana 2015

Antônio de Jesus Santana

CONCEPÇÕES DE FELICIDADE E TRAGÉDIA NA MÚSICA RAIZ SERTANEJA COMO ELEMENTOS DE EDUCAÇÃO ENTRE SUJEITOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação, do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, sob a orientação da Profª. Drª. Valéria Oliveira de Vasconcelos.

Americana 2015

Santana, Antônio de Jesus. S223c Concepções de felicidade e tragédia na música raiz sertaneja como elementos de educação entre sujeitos / Antônio de Jesus Santana – Americana: Centro Universitário Salesiano de São Paulo, 2015. 222 f.

Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL/SP. Orientadora: Valéria Oliveira de Vasconcelos Inclui bibliografia.

1. Música sertaneja. 2. Cultura popular. 3. Caipira – Cultura. 3.Educação sociocomunitária. 4. Educação popular. I. Título. CDD 780.42

Catalogação elaborada por Lissandra Pinhatelli de Britto – CRB-8/7539 Bibliotecária UNISAL – Americana

Antônio de Jesus Santana

Concepções de felicidade e tragédia na música raiz sertaneja como elementos de educação entre sujeitos

FOLHA DE APROVAÇÃO

______Profª.Drª. Valéria Oliveira de Vasconcelos – Orientadora UNISAL

______Profª.Drª. Claudirene A. P. Bandini UFSCar

______Profº.Drº. Severino Antônio Moreira Barbosa UNISAL

Dissertação aprovada em 30 /01 / 2015.

AGRADECIMENTOS

- À minha família, razão do meu amor e do meu carinho: Lucineia de Jesus Leite Santana, esposa, grande incentivadora, colaboradora e revisora no processo da pesquisa e da escrita; e aos filhos, Mateus de Jesus Santana e João Pedro J. Santana pelo apoio tecnológico e compreensão de minhas ausências;

- Aos brilhantes mestres Profª.Drª. Maria Luisa Amorim Costa Bissoto, Prof°.Drº. Severino Antônio Moreira Barbosa que, para além de conteúdos, me ensinaram a ler o mundo e me motivaram a repensar minhas práticas em educação;

- À Profª.Drª. Valéria Oliveira de Vasconcelos, que como professora despertou-me para o universo da Educação Popular, como amiga, tomada de um grande amor e carinho, orientou-me no aprendizado da construção do processo científico da pesquisa acadêmica;

- À Profª.Drª. Claudirene A. P. Bandini pela aceitação, apoio e contribuição nos momentos de participação da banca examinadora.

- Aos salesianos da Escola Salesiana São José de Campinas pelo apoio e incentivo;

- Ao amigo Élcio Arestides de Mattos da Silva pelo incentivo e pelos tantos momentos de discussões e trocas de ideias;

- À Vaníria Felippe Tozato que, acima dos eficientes serviços profissionais prestados, pacientemente foi quem me apontou caminhos, incentivou e me fez acreditar na possibilidade de realizar o Mestrado;

- Ao grupo de violeiro de Votuporanga, liderado pelos violeiros Anísio de Oliveira Guimarães e Basílio P. Santana, sujeitos da pesquisa, que me acolheram e oportunizaram muitos dos ensinos presentes na música raiz sertaneja;

- Ao violeiro José Santana de Fátima pelo apoio, interesse e motivação durante todo o processo da Pesquisa Participante;

- Às professoras Lídia Maria Soares Biso e Elisete Soave Vianna pelo apoio técnico, amizade e disponibilidade;

- Ao meu pai, Basílio Pinto Santana, grande “alma” raiz sertaneja, que me ensinou o amor à cultura caipira e pelas mãos de quem o toque da viola sedimentou minh’alma desde tenra meninice;

- À minha mãe, Marcolina de Araújo Santana (in memórian), que com sua sabedoria de vida soube atenuar os rastros da pobreza e por meio da empírica culinária caipira incrustou nas moradas dos meus órgãos receptores, aromas, odores e sabores, regados a afetos, que não existirá mais quem possa repetir na mesma proporção e intensidade.

- E principalmente a Deus, que com suas bênçãos e graças, me permitiu, pela eficiência de seus dons, o pertencimento à cultura caipira, e me presenteou com todas estas pessoas acima, e outras igualmente significativas, para que abrissem comigo, as portas de minha história;

Dedico este trabalho a Dom Bosco pelo ano 200 de seu nascimento no entorno caipira.

RESUMO

O presente trabalho apresenta os passos de uma pesquisa realizada no Programa de Mestrado em Educação do Centro Universitário Salesiano São Paulo (UNISAL). Ressalta-se que essa investigação não emergiu apenas de uma exigência para a obtenção do grau acadêmico. Tratou-se também de um trabalho que decorreu do interesse teórico e inquietações do pesquisador, originários da experiência pessoal de vida rural e de violeiro, na qual teceu as tramas da própria história de vida. Como objetivos buscou-se levantar entre os sujeitos da pesquisa as concepções de felicidade e tragédia presentes na música raiz sertaneja; identificar entre eles algumas músicas que portam em suas letras ideias sobre felicidade e tragédia, além de compreender se estas podem ser vistas como elementos de educação entre sujeitos nos domínios da Educação Popular e Sociocomunitária. Como procedimentos de coleta de dados foram utilizados entrevistas e questionários com integrantes de um grupo de violeiros da cidade de Votuporanga, no interior paulista. A metodologia foi a da Pesquisa Participante. Os dados na pesquisa foram analisados a partir de eixos temáticos/palavras geradoras coletados a partir de rodas de conversa e nas letras da música raiz sertaneja. A bibliografia se baseou nas teorias, princípios e conceitos pedagógicos pela perspectiva Sociocomunitária, com ênfase na participação do sujeito autônomo, na qual o educar é ser autor constituinte do processo do ser e do fazer-se no mundo-vida. Tendo refeito o percurso da cultura caipira pelos sentidos e experiências trazidos pela arte da música raiz sertaneja apontou-se caminhos que, por meio de atividades propositivas, reflexivas e organizadas, suscitem práticas educativas nos espaços existenciais da consciência de si, do mundo e do ser-no- mundo no âmbito da educação Sociocomunitária e da Educação Popular.

Palavras-chave: Música Raiz Sertaneja. Cultura Caipira. Educação Sociocomunitária. Educação Popular.

ABSTRACT

This paper presents the steps of a research which is being conducted in the Education Masters Program at Centro Universitário Salesiano São Paulo (UNISAL). It is important to emphasize that this research does not emerge only from a requirement for obtaining the academic degree, but also from the theoretical interest and concerns of the researcher, originating from personal experience of rural life and ten-string guitar player, in which he wove the threads of his own life history. The goals of this research were to seek among the subjects, the conceptions of happiness and tragedy shown in the traditional root country music; to identify among the subjects, songs that carry ideas of happiness and tragedy in their lyrics, and to understand if these can be seen as elements of education among subjects in the fields of Popular Education and Socio- Communitarian Education. Questionnaires and interviews with members of a group of ten-string guitar players in the city of Votuporanga, in São Paulo were used as means of collecting data. The methodology was the Participant Research. The survey data will be analyzed from themes / generative words collected by the conversation circle and the lyrics of traditional root country music. The bibliography is based on theories, principles and concepts of socio-communitarian perspective, with emphasis on the participation of the autonomous subject, in which educating means being the author of the constituent process of being and doing in the life-world. We hope to reconstruct the route of traditional country culture through the senses and experiences brought by the art of traditional root country music and point out ways that could, through purposeful, reflective and organized activities, raise educational practices in the areas of existential awareness of self, of the world and of being-in-the-world in the context of Socio- Communitarian Education.

Keywords: Traditional Root Country Music. Traditional Country Culture. Socio- Communitarian Education. Popular Education

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...... 20 CAPÍTULO 1 AFINANDO A VIOLA: ARTE, MÚSICA, FELICIDADE E TRAGÉDIA – REPRESENTAÇÕES ...... 40 1.1 SOBRE A ARTE E A MÚSICA ...... 40 1.1.1 A arte e seu potencial educativo ...... 44 1.1.2 A arte e a música ...... 45 1.2 A MÚSICA RAIZ SERTANEJA E O CONTEXTO CULTURAL...... 47 1.2.1 Memória como lugar de permanência cultural ...... 47 1.2.2 Música Raiz Sertaneja: um ponto de vista – música e vida se tocam ...... 49 1.3 CULTURA E CULTURAS...... 50 1.3.1 Cultura caipira - um breve panorama ...... 51 1.3.2 Do nome ao sujeito caipira ...... 53 1.3.3 Origem e originalidade da cultura caipira ...... 54 1.4 A FELICIDADE...... 55 1.3 A TRAGÉDIA...... 61 1.5.1 O trágico na realidade da vida ...... 64 1.5.2 Representações da vida pela tragédia ...... 65 1.6 PESQUISA PARTICIPANTE...... 66 1.7 A RODA DE CONVERSA...... 69 1.8 TEMA GERADOR...... 71 CAPÍTULO 2 O SOM E O CHORO DA VIOLA: O QUE SE ENSINA E O QUE SE APRENDE NA MÚSICA RAIZ SERTANEJA ...... 74 2.1 FORMAÇÃO DA IDENTIDADE CAIPIRA...... 74 2.1.2 Os passos do caipira: marcas entre chegadas e retiradas ...... 81 2.1.3 O Nheengatu: a língua caipirês da cultura. Uma língua brasílica ...... 87 2.1.4 O caipira e seus laços com a terra: ciclos da vida e da natureza ...... 88 2.2 CONCEPÇÕES VITAIS PRESENTES NA MÚSICA RAIZ SERTANEJA ...... 95 2.3 TRAJETÓRIAS DA MÚSICA RAIZ SERTANEJA ...... 99 2.4 VISÃO PANORÂMICA E HISTORICIDADE...... 101 2. 5 A FESTA, O MITO E O RITO...... 112 CAPÍTULO 3 ENTRE PONTEIOS E REPICADOS DA VIOLA: EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA ...... 118

3.1 UM OLHAR SOBRE AS ORIGENS E PROCESSOS DA EDUCAÇÃO ...... 120 3.1.1 Educação Formal e Educação não-formal ...... 121 3. 2 SOBRE A EDUCAÇÃO POPULAR ...... 125 3.2.1 O fazer pedagógico e o sujeito da Educação Popular ...... 130 3.3 EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA: PROCESSO EM CONSTRUÇÃO ...... 132 3.3.1 Educação Sociocomunitária em aproximações (formal, social ou não-formal) . 136 3.4 - EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA: CONFLUÊNCIAS E DESAFIOS ...... 138 3.4.1 Discursos de possíveis práticas no entorno da cultura caipira ...... 138 3.5 A MÚSICA RAIZ SERTANEJA COMO AÇÃO PEDAGÓGICA...... 141 CAPÍTULO 4 O TINIR E OS DEVORTEIOS ENTRE VIOLA E VIOLEIRO: VOZES E RESSONÂNCIAS...... 144 4.1 A VIOLA E O VIOLEIRO ...... 144 4.1.2 O violeiro ...... 147 4.1.3 O feminino e a viola ...... 151 4.2 TESSITURA SOBRE DITOS E DIZERES DOS VIOLEIROS ...... 155 4.2.1. Sobre o velho (idoso) ...... 155 4.2.2 Sobre a felicidade ...... 160 4.2.3 Sobre a família ...... 161 4.2.4 Sobre o casamento ...... 163 4.2.5 Sobre a mulher (ciúme/vingança) ...... 170 4.2.6 Sobre a mulher caipira. (A ajudante, mãe e esposa) ...... 173 4.3 BELAS LIÇÕES NOS VERSOS E REVERSOS DA ESCOLA DA VIDA ...... 185 4.3.1 Sobre a inspiração poética ...... 185 4.3.2 Sobre a boiada ...... 188 4.3.3 Sobre o lazer ...... 193 4.3.4 Sobre a visão de si mesmo. Autoestima e autoconceito ...... 196 4.3.5 Sobre a religiosidade ...... 200 4.3.6 Sobre o amor à terra ...... 205 CONSIDERAÇÕES FINAIS: BOTANDO A VIOLA NO SACO ...... 209 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 216 APÊNDICE ...... 222

MEMORIAL

Algumas Palavras em tempo de travessia da Lua Nova... Começando com Lua Crescente... [...] A escrita: seu início – o olho d`água. Sua travessia – rios a serem navegados. Katia Tavares Arrancando mandioca

Considero a imagem de um pé de mandioca uma metáfora de sabedoria natural socialmente construída. Logo abaixo da exposta ramagem, sustentada pelo caule coruscado e cicatrizado de vívidas folhas, esta tuberosa reserva toda sua riqueza nas raízes aconchegadas nas profundidades dos sulcos da terra. Ao empírico saber do lavrador, certificado pelas rachaduras do crescimento à face do solo, as raízes anunciam o tempo e o momento certo do amadurecimento e a hora da colheita, que se dá por um ritual de força, desprendimento e segredos. Retira-se a terra protetora dos bulbos com uma ferramenta adequada, cercando-se de cuidados para não ferir as raízes horizontadas na extensão do solo, até descobri-las em parte para assegurar o sucesso da empreitada. Assim que cavada a terra sobreposta, é hora de forçar o caule perpendicularmente, ignorando o apego das raízes à sua habituada morada. Extrai-se do solo, com curtos e repetidos impulsos, chocalhando até retirar por inteiro todas as raízes. Se não proceder ao ritual adequadamente, corre-se o risco de perder a qualidade das raízes e até de romper pedaços, ficando assim no interior da terra. Cavar memórias de tantas vivências implica o mesmo ritual de arrancar “pés de mandioca”. Experiências marcantes, sentimentos, lembranças, recordações foram ao longo do meu tempo, reservadas quando plantadas, regadas, cultivadas e processadas na “espiralidade” da vida em seus relacionamentos. Ao longo desta pesquisa, cerquei-me dos devidos cuidados buscando experiências significativas para aluir “memórias mandiocas” que compõem este solo, sem a preocupação de arrancar todas. Arranquei algumas, descobri outras, sabendo, porém, que pontas ou pedaços destas raízes ficaram no interior deste chão. Memórias parecem ter moradas sagradas na mente-alma, alinhando, entre outros, os espaços da imaginação, da criatividade, da fantasia, da ingenuidade, da crença e da esperança. São raízes que fincam a planta no chão da vida.

Proveniente de uma típica família rural, na qual o número de filhos era determinante como suporte de mão de obra na lavoura, sou o quarto filho de uma prole de sete, sendo três antes e três depois de mim. Se por um lado, minha meninice foi fortemente marcada pela situação tida como normal numa família de lavradores, na qual experimentei não raras vezes os limites da vida pobre, também me são caras as memórias de lições inesquecíveis de partilha, carinho, calor, afeto nas endorrelações familiares. Minha mãe Marcolina (in memórian) foi portadora de frágil saúde, com papéis exemplares nos traços de uma cultura patriarcal, deu a cada filho o que sua generosidade e compaixão podiam reservar em sua leitura de mundo, apesar de pouca compreensão das letras, e as pendengas de uma audição deficiente e degenerativa. A linguagem da doação, do amor e do servir foi que marcou sua composição literovital. Ao meu pai, Basílio, artista autodidata nas proporções rudimentares concedidas pelo seu meio, impôs-se o difícil papel de lavrador e provedor do custoso sustento econômico, social e educativo da família. Criativo, como é próprio dos olhares poéticos, enveredou na leitura dos sonhos, das cantorias, na exposição da busca de sentidos, significados e transcendências... Leu, interpretou e recriou linhas escritas nos textos da vida, da natureza e dos acontecimentos. Desenvolveu uma potencialidade de pródigos favores e serviços à arte do cantar, tocar, rezar, do dançar catira, do alegrar e do fazer rir. Situam-se nos cômodos de minha memória as brincadeiras infantis com seus sons, movimentos, sensações, emoções, curiosidades, fadigas corpóreas, aprendizagens e desafios. Brincadeiras que tinham o espaço do terreiro da casa como palco ideal para correr, pular, observar, desenvolver habilidades, interpretar, memorizar e exercitar a criatividade; além, é claro, de resolver problemas! Nasci e cresci cercado de muitos primos e tios que, por morarmos perto, visitávamos uns aos outros com todo tipo de propósito, mas, principalmente, o de brincar e conversar. Enquanto os adultos se recolhiam no interior da casa para as conversas “sérias” de gente grande, o terreiro se tornava o ideal para a barulhenta e inquieta molecada. E assim, principalmente nas noites de lua clara, o bando já se organizava para as tantas brincadeiras coletivas. As brincadeiras coletivas eram marcadas por muitas possibilidades de ensino e aprendizagens advindas das situações de conflitos, competições, solidariedade, companheirismo, superações. Já as brincadeiras

individuais eram grandes momentos de elaborações fantasiosas, em que o imaginário transversava-se em real e com propósito de ser o personagem que quisesse. O que se tinha à disposição virava a própria brincadeira. Desde a tenra meninice fui atraído por um encantamento pela natureza. Dentre meus fascínios destaca-se o encanto pela lua cheia e pela noite de escuridão total... Cada uma com suas peculiaridades, belezas, sons, exalações aromáticas e provocações imperativas às esferas da fantasia, constituídos num jogo intenso de eternas necessidades e/ou contraposições. Uma excita e relaxa o espirito, a outra, o contrai e o coloca em postura de atenção. Esta evoca vibrações e se mostra receptiva ao amor solto e à alegria leve; a outra aguça os instintos de ataque-defesa e remete à esfera do privado; uma se encarrega da ousadia e proteção aos enamorados da vida; a outra acoberta os caminhos aos perigos e aos riscos; numa, risos loucos e sem controle, soltos e bailados; na outra, o silêncio atento sob a pressão dos lábios encerrados; para esta, o canto nostálgico do urutau, para aquela, o sibilar estridente da serpente furtiva. Numa mora o poeta, noutra o insensato. Nelas, em necessidades, o óbvio e o ignoto; a prata e o breu; o prazer e o medo; o domínio e o dominado; a luz e a ausência! E quanto maior a distância entre si, maior a predominância sobre a outra e a exposição de si mesma. Outra marcante experiência de memória infantil junto de meus pais e irmãos foi a do céu estrelado onde passávamos horas a acompanhar os lampejos e cintilâncias da abóboda celestial. A Via Láctea, nas noites escuras, se tornava um verdadeiro presente aos nossos olhos tão interrogativos e fantasiosos e, ao mesmo tempo, sedentos de beleza. Provocados pela vastidão do universo, vinham à tona excitantes sentimentos que rapidamente tomavam conta da mente e nos remetiam à insignificância, à pequenez, à impotência mediante o mistério a tanta exuberância do que acima se punha aos nossos olhos. Muitas e muitas vezes, para evitar a dor no pescoço ao olhar pra cima por tanto tempo, deitávamos ao chão, e aí sim, ao rés do solo, os olhos caminhavam ligeiros por todo o campo da visão, na ânsia do todo, acompanhando cada movimento que viesse a surgir no espaço. Parece que esta ancestral posição permitia a circulação neural no surgimento de perguntas, inquietações, suposições, dúvidas, enfim, tudo terminava por levar ao encantamento da poderosa criação por alguém que fosse infinitamente maior, onipotente e onipresente. Se tudo aquilo como se apresentava era obra da criação, como seria

então o criador? Para tais questões, o coração e a mente só sossegariam ao concordar com o mistério e sua infinita inquietude. As chuvas de raios, apesar dos fascinantes desenhos a pincéis de fogo pelas telas do céu, me incomodavam muito, principalmente quando São Pedro “arrastava os móveis” nos quartos do céu de um lado para outro, rompendo o banal silêncio que cobria a abóboda celeste. Os trovões, impondo-nos o terror, requeriam determinados cuidados como entrar debaixo de uma mesa, não ficar próximo a ferramentas de metal, não segurar tesoura, não usar faca, não ficar sob coqueiros e nem nadar. Também o encanto poético do trocadilho chuva e sol (casamento de espanhol) e sol e chuva (casamento de viúva) eram repetidos aos dados fenômenos da natureza. O arco-íris nos instigava ideias e imaginações com suas promessas do pote de ouro em uma das extremidades e seus mistérios que metiam medo porque quem passasse embaixo dele, mudaria de sexo. Portanto, era bom que se ficasse longe dele! Gostava de ver os pingos de chuva cair dos beirais do telhado, no chão empossado das goteiras. Caíam se transformando em brincalhões palhacinhos que dançavam e desapareciam se dissolvendo na poça, indicando aos nossos olhares que deveriam buscar o próximo da fila. Outra coisa fantástica para se embalar, dormitar e dormir era a cantilena sonora das goteiras na lata ou no balde, que repetidamente iam compondo a monotonia que conduziam facilmente o corpo embreado aos braços da noite. Não tinha prazer maior do que quando o dia amanhecia chuvoso e não era possível ir para a escola ou trabalhar cedo na roça. Então podia dormir até mais tarde e depois tocar viola ou ficar de papo pro ar ocupado em nada fazer. No entanto, não era nada agradável quando se tinha que correr da chuva ou mesmo trabalhar molhado o dia todo, contraindo gripe, tosse ou alguma pendenga na saúde. Nas primeiras chuvas da primavera, a natureza se revestia de cores e de sons marcantes. Dentre os que permanecem como rituais da natureza estão os coaxares dos anfíbios nos açudes e nos brejos na época dos acasalamentos dos sapos, rãs e pererecas, onde uma multidão ensurdecedora de variadas espécies e tamanhos, cantava ao mesmo tempo num coro, miríade de tons, intensidade e martelantes ruídos. Coaxavam até espumar a água. Tais sons eram possíveis de serem ouvidos a quilômetros de distância. Este fenômeno indicava ao lavrador que já se aproximava o tempo de preparar as terras para os novos plantios, pois já estava chegando a força da lua da primavera. Ao

entardecer, as siriluias (aleluias), cigarras, tanajuras, besouros escaravelhos sobrevoavam as lamparinas e o fogo, anunciando à observação do lavrador a época de preparar as sementes para o plantio. Outros insetos que proclamavam que a noite é tempo propício de cantar e bailar a vida na progressão da espécie eram os grilos, que cricrilavam à exaustão dos solfejos, compondo a sinfonia na calada da noite. Seus cricris eram pautados ora por um tempo musical intermediário, ora espaçados por um tempo simetricamente fiel ao anterior, ora num zumbido ininterruptamente pedante e monótono. Lembro-me dos pirilampos, que graciosamente bailavam pelos pastos e campos nas noites de verão calorentas, que pareciam que estavam fazendo inveja aos outros insetos voadores. Exibidos, passeavam com seus faróis acessos, brincando de estrelas, crepitando em zigue e zague, num encantador e impreciso voo de alternados sobe e desce... Atraíam atrás de si um bando de moleques para capturá-los. Os pirilampos eram marcantes pela presença luminosa. A noite na roça era rica de vozes e pios. Até se tinha a impressão de haver certa cumplicidade e cooperação entre todos seus habitantes... Dependendo da intensidade da escuridão ou da claridade e também da estação do ano, ouviam-se vários pios de diferentes serpentes e pássaros; uivos de animais selvagens ou domésticos. Repercutiam como comunicativas mensagens de auguro ou de sorte os cantos de pássaros como a caburé, a coruja na cumeeira da casa, o curiango, que todo dia prometia, mas nunca cumpria em seu enganoso canto: “amanhã eu vou”! Também se ouvia guinchos rasgados dos marrecos noturnos, saracuras do brejo, das pernetas “três potes”; do assovio dos morcegos, corujões, do pássaro “peixe-frito”; além do enredeiro quero-quero, do galo que cantava pontualmente à meia noite e às seis da manhã; dos gargalhos da angolinha e da lamentosa risada do urutau. O canto da acauã (“cancoã”) que trazia a promessa da chuva ou da seca, dependendo da árvore a que se assentava para cantar: se fosse verde, a chuva viria dentro de três dias; se fosse seca, a chuva demoraria ainda algumas luas para chegar. Era incrível como sabíamos distinguir cada um destes cantos, além de prever a distância a que se encontravam os tais habitantes da noite e interpretar suas mensagens... Mas, na verdade, não eram somente os sons que me encantavam e me possibilitavam tais aprendizados. Também a diversidade química que se inscreveu em minhas memórias sensoriais infanto-juvenis e de adolescente, compuseram um variado

festival de sabores, odores e pigmentações. Lembro-me que, nesta fase da vida, aprendi a distinguir muitos tipos de cheiros exalados por folhas, frutos, raízes, flores, animais e solos. Tudo era prazeroso aos septos nasais, desde a química das essências expelida nos ares pelas florescências do cafezal, da laranjeira, dos cipós da mata, da dama da noite, do jaracatiá, do marolo, assim como, dentre outros, o cheiro do gado, da poeira, da relva e da chuva. Os anos de meninice foram carregados de significados, histórias de todos os tipos, escritas em páginas próprias da vida simples, rude e sacrificada da cultura caipira rural. Tenho especial carinho pela lembrança da casa onde nasci. Era uma casa de pau- a-pique, embarreada com saibro branco, cercada de um pomar e de uma pequena mata, onde havia laranjeiras, cipó veludo que abraçavam as moitas do cerrado, espinho agulha, farinha seca, jatobá e outras árvores de grande porte. Quando estava com cinco anos, mudamos para outra casa já nas terras do meu pai. E aí, a vida transcorreu até minha adolescência... Nossa casa permaneceu do mesmo jeito até o ano de 1980, quando chegou a energia elétrica e o fogão a gás. Foi justamente nesse ano que saí da casa de meus pais para tentar a sorte e a vida na cidade grande de tantos sonhos e promessas: São Paulo. E desde então, saí da roça, mas a roça nunca mais saiu de mim! A vida rural era marcada pela interdependência dos fenômenos naturais, e o plantio e a colheita dos cereais dependiam da chuva e do sol em seus tempos certos. Cada ano era um desafio ao agricultor escolher seu produto a ser plantado. Desde muito cedo comecei a trabalhar na lida da roça. Aprendi muitas lições de como plantar, cultivar, colher... Também vivi a forma do trabalho coletivo e os mutirões. No trabalho comunitário sobressaía o espírito de colaboração, ajuda e cooperação entre os envolvidos. No modo de trabalho mutirão, cultivavam-se os estreitamentos dos relacionamentos, prevalecendo o espírito de irmandade e solidariedade. Tudo dado pelo trabalho produtivo, pela alegria de estar próximos e, em muitos casos, pela compaixão. Minha família foi muito religiosa e rezadeira dos terços, novenas e procissões. Nos terços juninos de Santo Antônio, de São João e de São Pedro além da reza, do prosear, das comidas, das danças, tinham também a fogueira, o levantamento do mastro e os fogos de artifícios que se circundavam de mil investidas e encantos aos olhos da molecada, despertando uma alegria geral.

Outras expressões de religiosidade marcantes em nossa família eram: a novena de Natal nos presépios com seus encontros um em cada casa; o Dia de Natal em família com as peculiaridades dos preparativos, da mesa farta; a Páscoa, tida como “Domingo Gordo” (referência à mesa farta); a quaresma como período de sacrifício, de jejum todas as sextas feiras. Também o terço de Finados no cemitério com a participação de todas as pessoas de nossas famílias; a missa do galo; a procissão do Senhor Morto na sexta-feira da paixão; a cantiga para as almas e o ritual de regar a cruz invocando a chuva para as plantações. Em minha meninice foram marcantes os diversos rituais coletivos que a família Santana mantinha em suas tradições. Muitos ensinos-aprendizados, muitas histórias, muitos fatos felizes e trágicos. Num estreito movimento do rito revivendo o mito e o mito refazendo o rito... Também havia os espaços especiais para as cantorias de viola, forrós; dança do catira; folia de Santos Reis; jogatinas de baralhos... O time de bola que era composto por jogadores membros da família Santana. Dentre as tantas maneiras do lazer para o agricultor, vivi a pesca como prática preferida, além da caça com estilingue, bodoque, arapuca ou espingarda. Uma das tradições de minha família era a dança do catira, dança que consiste em bater o pé, sapatear e intermediar com palmas. Os catireiros se enfileiram, dançando e entrelaçando seus passos em “devorteios”1 em cada espaço de verso no canto da moda de viola. É uma dança alegre, expansiva e provocativa. Muito apreciada entre os lavradores e sitiantes do cultivo do café e da agricultura familiar nas regiões sudeste e centro-oeste, a família Santana manteve a tradição desta dança, na região de Votuporanga, no interior paulista. Ainda criança, eu e meus três irmãos aprendemos a dançar catira. Nosso pai e nosso tio João foram, e ainda são os tocadores e cantadores de viola para nosso sapateado. Participamos de muitos festivais regionais e estaduais de catira, e fomos campeões em algumas destas competições. Criamos vinte e sete passos diferentes da dança, em composições chamadas de Palmas, Recortados, Caminhos da Roça e Chuleado2. Cada um destes estilos tem uma configuração corporal de leveza, destreza ou firmeza nas batidas e movimentos. Nas competições dançávamos sem repetir

1 - Expressão que quer indicar que ‘dá voltas’, que vai e que vem, que se entrelaça. 2 - Dança individualizada composta de movimentos leves e rápidos, na qual o catireiro demonstra suas habilidades e provoca gracejos para a plateia. Há variáveis em sua composição, e em muitos casos, é feita sobre um cabo de vassoura, sobre corda, chapéu, ou calçado de esporas.

nenhuma coreografia durante uma hora de dança. Nosso pai, catireiro tradicional, foi o líder e orientador do grupo no toque da viola e nos cantos e espaçamentos das modas de viola. Procuramos manter essa tradição familiar viva, e ainda hoje, somos convidados a participar de festas familiares, festas juninas, apresentações culturais, festivais, festas escolares, outras... Neste espaço familiar de danças, cantos, rituais, celebrações e festas, cresci ao som de violas, sanfonas, cavaquinho, violão e herdei um grande apreço pela Música Raiz Sertaneja. Na verdade, a teia cultural na qual fui me compondo é afinada pelas cordas de muitos instrumentos e pela polissêmica composição de vozes cantadas e ponteadas na Música Raiz Sertaneja. Um instrumento musical é como uma chave mestra que abre muitas portas. Portas que liberam o riso, a alegria, a paixão, o amor, a saudade, o conviver e tudo o mais que a vida produz e que esta arte colabora para se expressar. Gosto de me envolver em grupos, festas, comemorações, e em tantas outras formações devido ao fato de tocar e cantar, principalmente as músicas religiosas e raízes, em que grande parte das pessoas gostam, cantam e acompanham. Este percurso despertou-me o desejo estudar e de conhecer melhor a constituição da cultura caipira a qual pertenço. Na vida acadêmica, a escola de minha infância tornou-se janela aberta para o mundo do conhecimento e das inspirações. Mas minha história de estudante iniciou-se bem antes do primeiro dia de aula através de ansiedades; conselhos dos pais; contos; histórias; façanhas dos que lá já estiveram; do uniforme novo, de longínquas histórias impregnadas de cultura e sabedoria. Meus dias escolares se teceram passo a passo, juntamente com o caminho de cinco quilômetros que percorria a pé para estudar. A minha mais antiga memória da escola é a primeira imagem do corredor das salas de aulas, composto por altas portas azuis de madeira e indicando o número da série, que conforme eu ia entrando, se comunicavam com meu olhar de ansiedade e desafio, até saber qual seria a minha sala. O pátio escolar era amplo e possibilitava a correria da meninada antes das aulas e no recreio. As meninas, de saia e colete azul, blusa branca e fita no cabelo; já os meninos, calça ou shorts azul, sapato preto e meia branca, camisa branca com o número de frisos no bolso relativos à série a que pertencia. No meu segundo ano escolar foi tirada uma foto de cada criança sentada numa mesa que continha o mapa paulista na

parede, uma caneta tinteiro, uma bandeira do Brasil e uma plaqueta sobre a mesa indicando a série escolar. Depois outra foto com a turma e a professora. As guardo com grande cuidado. Ilustração 1 - Foto escolar

Fonte: Santana (1968) – Arquivo pessoal

Entremeando o percurso escolar, em todas as etapas de minha vida, também desenvolvi meu lado artístico. Esse espaço é um lugar de educação muito significativo em minha formação. Nele pude ter voz e vez, alegria e protagonismo, produção e reconhecimento. Estar sintonizado com o mundo da arte me leva a crer que seu uso como elemento educativo fortalece as relações entre educador e educando favorecendo o processo educacional. Saber reconhecer os valores da cultura caipira é o primeiro passo para propô-la como possível forma de partilha de saberes populares aos educandos e aos sujeitos envolvidos em processos de ações comunitárias. Procurei participar de festas juninas, campanhas de saúde, de solidariedade e de fraternidade. Integrei grupos de teatro (religiosos e comédias); fanfarra; música de animação litúrgica; canto coral; canto gregoriano e gospel; roda de samba; grupo de música sertaneja; danças folclóricas regionais como o catira, chula, bumba-meu-boi, maculelê, congada de São Benedito, Tipiti; entre outros. Ensinei grupos de adolescentes no aprendizado da dança do catira, cavaquinho e violão.

A cada fase de minha vida escolar, desde a inicial até a graduação em Filosofia, em Pedagogia e a Pós-graduação em Ensino Religioso Escolar, fui sedimentando minhas habilidades e competências educacionais. São fazeres somados pela experiência do trabalho cultural, comunitário, pelo exercício de professor de História, Filosofia, Antropologia Cultural, Sociologia e Ensino Religioso Escolar. Também se juntam a estas o exercício de Agente Pastoral Escolar, Pastoral Universitária e Pastoral Paroquial, além de catequista, coordenador de grupos de casais e formador bíblico em comunidades religiosas. Enraizado em minha experiência e vivência pessoal, é como se este fazer pedagógico fosse uma peça de bordado, onde as mãos determinadamente vão entrelaçando os fios na construção de sua peça. Tudo se soma numa grande irmandade de saberes: dos conteúdos clássicos às inovações pedagógicas, dos passeios nas montanhas, das auroras contempladas no cume dos morros, dos passeios a pé nos riachos, das matas, sítios e fazendas, dos locais históricos, da animação musical, do teatro e folclore, dos passeios coletivos, dos retiros espirituais, das missões, dos cursos bíblicos, das festas familiares, dos causos, das rodas de conversa, entre outros... Esses relatos de minha experiência de vida portam em si minhas motivações em aprofundar a temática da cultura caipira, para entender melhor sua origem epistêmica, seu patrimônio axiológico e, nesse caso, entender a trama da teia na qual me sinto costurado. Quero, com essa pesquisa, poder vislumbrar minhas próprias marcas e sinais ao percorrer os rastros deixados pelos teóricos ao apontar os direcionamentos da cultura caipira na construção do caminho rumo a seu horizonte. Sendo os espaços da educação o terreno no qual exerço meus afazeres profissionais, posso apontar que a pesquisa está para meu autoconhecimento quanto para minha colaboração em investigar e interpretar os diversos modos de intervenções educativas. Minha motivação pelo mestrado em educação se deu em função do aprimoramento das questões que procuro entender sobre a vida, a cultura caipira, a educação, a autoconstituição e colaborar com a educação popular e sociocomunitária. Meus aprendizados e práticas profissionais, descritas neste memorial contribuíram em muito para a concepção que tenho hoje de ser humano, de educação, de conhecimento, de realidade. 20

INTRODUÇÃO

Primeiras palavras

Nossa concepção de ser humano é permeada pela ideia aristotélica que é a de um animal em distanciamento de sua condição primária (animalesca), em processo de civilização (condição humana). Um ser social ao qual se impõe a tarefa de tornar-se o próprio ser que é. Um ser que pela faculdade da inteligência lhe cabe significar todo seu processo criativo e cultivar todas as razões de suas criações tanto civilizatórias quanto contrárias. Um ser que por ter liberdade de escolhas obriga-se a responsabilizar-se pelas suas decisões e suas ações. Um ser com eterna sede de poder: o dos semelhantes a si mesmo e os dos mistérios e segredos que lhes escapam de suas compreensões e domínios. Alguém que não se conhece, e ao mesmo tempo, busca ser capaz de todas as coisas asseguradas em seu conhecimento. Um ser em evolução, altamente capaz de tudo, em alternância tanto a favor quanto contrário à sua existência e às dos outros. Entendemos também, que o conhecimento serve para dar apoio ao desenvolvimento humano em seu processo evolutivo. Para mostrar ao sujeito as razões primeiras e últimas da sua existência e de suas interações vitais. Como Freire (1987) preconizou: um conhecimento que impulsione a tornar a vida humana mais benéfica, proveitosa e significativa. Para ler o escrito e o não escrito nas linhas e entrelinhas das informações. Para fazer o humano morar no mundo que se encontra. O conhecimento serve para o humano ver e entender o que viu; tatear, sentir e saber por que sentiu no contato com o que além de si se processa; para dar ressonâncias às vozes produzidas por todos os seres que compõem toda a extensão do incessante movimento do que é e do seu devir. Entendemos a construção do conhecimento como o processo de abstração, acomodação do aprendizado, das experiências acumuladas e registradas ao longo do fazer humano. O humano se faz, e no seu fazer, faz-se como aprendiz e apoderador do processo, tornando-se interferente aos seus resultados. O conhecimento é construção resultante de indagações primárias e suas inferências no decorrer do enfrentamento dos desafios impostos de sua realidade vital. Desta forma, a natureza do real se dá a partir do espontâneo (essência e materialidade da natureza física), do constituído pela intervenção cultural (incessantes 21

buscas de auto superação humana e científica) e da manipulação do conhecimento acumulado (propulsor do processo evolutivo). A realidade pode ser apreendida por interferências racionais, experimentais, analogias, metodologias, cientificidades, percepções sensitivas e sensoriais, elaborações empíricas, estruturas fenomenológicas (linguística e hermenêutica) advindas do acesso às várias formas de estabelecer o conhecimento elaborado (crítico) ou do senso comum, dentre outros: tradicional, teológico, cientifico, tácito, empírico, filosófico, tecnológico, pedagógico, tradição cultural, etc. Neste âmbito é que se situam as inquietações e as motivações que nos levaram a este universo da pesquisa sobre a cultura caipira e a análise da música raiz sertaneja como sua principal mediação de ensino aprendizagens entre seus sujeitos. Tendo em mente que um dia saí da roça, mas a roça nunca saiu de mim, e considerando os vestígios trilhados no Memorial acima descrito, a questão de estudo que permeou a presente pesquisa, foi: Como as concepções de felicidade e tragédia, presentes na Música Raiz Sertaneja, podem ser vistas como elementos de educação entre sujeitos? A população-alvo da pesquisa foram sujeitos de um grupo de violeiros da cidade de Votuporanga, região noroeste do interior do Estado de São Paulo, que se preocupa em manter o desafiante trabalho de conservação da cultura caipira, tão fortemente presente na região e, por ser a região, o cenário natal onde o pesquisador consolidou suas raízes culturais. O sujeito da pesquisa é o violeiro por ser ele o intermediário entre o poeta (inspiração, concepção e visão de mundo, processo criativo) e os destinatários das mensagens (ouvinte, admirador) da Música Raiz Sertaneja. O violeiro como mediador dos ensinos aprendizagens se torna o veiculador entre a percepção do poeta escritor e o ouvinte destinatário da música. Observa-se que o termo violeiro é comumente atribuído à dupla ou indivíduo que toca e canta a música de viola. Na pesquisa, consideramos o termo violeiro como aquele que está inserido no grupo, (este em especial), e que de alguma forma, canta, toca, promove e preserva a Música Raiz Sertaneja. Como a pesquisa é na área da educação, as relações passam a ser significativas, pois o violeiro como veiculador da mensagem, torna sua a voz do poeta e vice-versa. Seu cantar, é o cantar do poeta. Ao emprestar sua voz ao poeta, ele o traz à realidade do 22

interlocutor que também se identifica com sua mensagem. Desta maneira, o violeiro é o articulador e o promotor do processo criativo e o mantenedor das ideias circunscritas no âmago da cultura caipira. Os resultados esperados com esta pesquisa poderiam ser alcançados com a maioria dos grupos de violeiros que se constituem na cultura caipira, com a finalidade de manifestar o apreço pela música raiz sertaneja. No entanto, o critério de escolha deste grupo em especial como sujeito da pesquisa se deu em função, primeiramente, por um de seus líderes, o violeiro Basílio Pinto Santana, ser meu pai, e em consequência disto, por ser um grupo com o qual me relacionei com a maioria de seus componentes. A proximidade e consequente facilidade de acesso ao grupo, de intervenção em sua rotina, linguagem e organização foram decisivas para que a pesquisa se desenvolvesse nesse local. Por outro lado, o fato de residir na cidade de Paulínia - a 450 quilômetros de Votuporanga - implicou tempo e disponibilidade para o deslocamento constante até ao grupo, o que dificultou, de certa forma, a execução da investigação. Por ser professor, normalmente meu acesso ao grupo no percurso dessa pesquisa se deu em períodos de férias e recessos escolares. Outro critério de escolha do grupo, apesar de não ser uma ação exclusiva deste em especial, se deu em função de seus violeiros, além da priorização da Música Raiz Sertaneja como forma de expressão artística, também portarem a preocupação de conservar tradições regionais como a Companhia da Folia de Reis e a dança do Catira. A maioria destes violeiros é originária de famílias que cantavam nas festas de Reis, terços, novenas e dançavam catira em mutirões, festas juninas e festas familiares. A multiplicidade da história de cada um soma-se ao feixe da identidade cultural do grupo. Importante salientar que a opção em estudar o grupo com o qual tenho fortes vínculos de pertencimento, exigiu esforço para realizar o distanciamento crítico no momento da coleta dos dados e sua análise, principalmente ao identificar questões que apontaram comportamentos/pensamentos que reforçam a exclusão e a desigualdade social ou fragmentando laços de sociabilidade já consolidados por imagens familiares.

Breve histórico do grupo “Os mensageiros do Oriente”

A pesquisa se desenvolveu com a participação de vinte e uma pessoas, contando com a formação de dois segmentos da música raiz sertaneja: a Companhia de Reis que 23

se denomina Os mensageiros do Oriente e o Catira que se denomina Catireiros do Santana. Na organização grupal as duplas cantam entre si e, normalmente, não há uma fixação exata na formulação dos pares. Dependendo das ocasiões, cantam juntos em formato de orquestra de violas ou separados. O grupo não possui nenhum critério avaliatório das atividades realizadas e nem restrições à adesão de outros violeiros em sua estrutura organizacional, desde que se adeque aos seus objetivos e finalidades. Entre os foliões da Companhia de Reis exige-se perfil adequado a cada uma das vozes necessárias à composição do coro. Os foliões de Reis são fixos nas cantorias.

Ilustração 2 - Roda de cantoria

Fonte: Santana (2013) - Arquivo pessoal

A liderança é dividida entre dois violeiros (os mais antigos e que formaram o grupo) que são responsáveis por articular todo o trabalho cultural e a programação. Desde o início de suas atividades, há dez anos, o grupo mantém a mesma formulação, tendo sofrido poucas variáveis. Na Companhia de Reis, o líder é o violeiro Anísio de Oliveira Guimarães, e no grupo de catira, o mestre catireiro Basílio Pinto Santana. Apesar da constituição do grupo somar a Folia de Reis e o grupo de Catira, as atividades não são necessariamente interdependentes. Raramente os dois grupos se apresentam juntos num mesmo evento. A aproximação dos mesmos ocorre justamente no fato de o violeiro Basílio ser o polarizador dos dois subgrupos. 24

O grupo faz suas apresentações sem nenhum tipo de interesse financeiro, não cobra cachês e, quando recebe qualquer forma de incentivo econômico, o valor fica sob a responsabilidade do líder Anísio Guimarães, que o emprega na conservação dos instrumentos, troca de encordoamentos, suporte técnico, uniformes e, quando necessário, lanche para os ensaios ou apresentações. O grupo não visa saldo reserva para qualquer tipo de investimento. O único meio existente para a captação de receita é a venda de CD gravado por eles com objetivo de divulgação. Ao vender os CDs, o líder Anísio administra o dinheiro e presta conta aos integrantes. O grupo não possui sede fixa. As reuniões para ensaios acontecem semanalmente nas casas dos próprios violeiros, num sistema de rodízio. Aos fins de semana, normalmente sem o cumprimento de um calendário prévio, os violeiros se apresentam em festas e eventos regionais e particulares como: festas de padroeiros, festivais, missas comemorativas, chegadas de Santo Reis, feiras, festas populares, casas de cuidados (idosos, abrigos, outros), associações de igrejas, escolas e festas familiares. Muitas destas atividades estão ligadas às Secretarias de Culturas das cidades circunvizinhas à Votuporanga e, nestes casos, seguem uma programação estabelecida em calendário, com o transporte sendo de responsabilidade dos órgãos promotores do evento. As duplas se apresentam sem nenhum critério preestabelecido. Numa atividade na qual estejam todos juntos, as duplas se formam espontaneamente ou em função das músicas escolhidas e das preferências por sua interpretação. Nos casos de apresentações em festas particulares, quando o convite não é direcionado diretamente a alguma dupla do grupo, então o líder consulta os que têm disponibilidade para atender ao evento. Fazem parte do grupo 17 homens e 04 mulheres, sendo uma delas viúva e as outras três esposas de violeiros (estas últimas participam quando seus respectivos esposos estão presentes). As mulheres não cantam com outros violeiros que não seus esposos. O grupo canta quase sempre em forma de coro e as mulheres se integram no conjunto desses cantares. No caso da viúva, dona Maria Aparecida, o grupo a acolhe em seu fazer cultural tanto por ela pertencer à Companhia de Reis, onde têm posição fixa devido alcançar as alturas das vozes necessárias ao coro como por também gostar de cantar. As mulheres também atuam como porta bandeira dos Reis.

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Ilustração 3 - Roda de conversas da Pesquisa Participante

Fonte: Santana (2013) - Arquivo pessoal

A atividade profissional dos sujeitos da pesquisa é variada, tendo desde aposentados, autônomos e profissionais liberais a funcionários do setor público e professor. Um desenvolve afazeres rurais, no entanto, reside na cidade e tem em atividades urbanas a sua principal fonte de renda. Dentre os pesquisados, nenhum deles está inserido em movimentos de cunho político ou trabalhista. As músicas são animadas por instrumentos como viola, violão, violino, pandeiro, caixa (instrumento de percussão) e bandolim, tocados pelos próprios integrantes. No entanto, nem todos os violeiros tocam instrumentos. As músicas são cantadas ora pelo grupo todo, ora por duplas e até mesmo individualmente. Alguns dos violeiros também fazem parte da orquestra de viola caipira de Votuporanga porém, por iniciativa paralela às atividades do grupo pesquisado. Todos os violeiros são oriundos de famílias de lavradores que viveram do trabalho da terra e que, impulsionados pelo êxodo rural, deixaram suas terras e mudaram para a cidade em busca de melhores condições de vida. Cantam e tocam a música raiz sertaneja desde suas meninices. Aprenderam empiricamente no seio de suas famílias que mantinham a tradição da música raiz e da dança do catira. Não estudaram teoria musical ou frequentaram escolas de músicas. Adquiriram vendo outros violeiros tocarem e cantarem, além do ouvir músicas pelos 26

programas de radiofonia e o uso de publicações de revistinhas sertanejas, pelas quais se tinha o acesso às letras. A preferência pelo estilo da Música Raiz Sertaneja se dá pelas histórias de suas próprias vidas, nas quais o cantar e o dançar historicamente compuseram o lazer, a diversão, o meio de sociabilidade, a expressão e o reconhecimento pessoal. Neste espaço cultural, cada um gestou, germinou e amadureceu suas histórias de amor, trabalho, religiosidade e expressões artísticas. Para melhor apresentar os sujeitos participantes da pesquisa, o fazemos, por meio de um quadro referencial.

QUADRO REFERENCIAL DO PERFIL DOS SUJEITOS DA PESQUISA PARTICIPANTE

Nome: Basílio Pinto Santana - líder do Catira Idade: 87 anos Toca e canta desde que idade: 6 anos Natural de: Alvares Há quanto tempo saiu da roça: 24 anos Florence/SP Estado Civil: Casado Profissão: Aposentado

Número filhos: 7 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Anísio de Oliveira Guimarães - líder da Companhia de Reis Idade: 60 Toca e canta desde que idade: 12 anos Natural de: Alvares Há quanto tempo saiu da roça: 24 anos Florence/SP Estado Civil: Casado Profissão: Aposentado

Número filhos: 01 Onde mora: Votuporanga –SP

Nome: Antonio Leopoldino Lemes Idade: 77 Toca e canta desde que idade: 11 anos Natural de: Monte Há quanto tempo saiu da roça: 20 anos Aprazível/SP Estado Civil: casado Profissão: Aposentado

Número de filhos: 3 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Arlindo dos Reis Santana Idade: 54 anos Toca e canta desde que idade: 5 anos

Natural de: Alvares Há quanto tempo saiu da roça: 0 Florence/SP Estado Civil: divorciado Profissão: motorista, eletricista e lavrador Número filhos: 2 Onde mora: Alvares Florence - SP

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Nome: Benedito de Jesus Leite Idade: 74 Toca e canta desde que idade: 8 anos

Natural de: Cardoso Há quanto tempo saiu da roça: 34 anos

Estado Civil: viúvo Profissão: Aposentado

Número de filhos: 02 Onde mora: Sumaré - SP

Nome: Benedito Mariano de Oliveira

Idade: 64 anos Toca e canta desde que idade: 13 anos Natural de: Alvares Há quanto tempo saiu da roça: 25 anos Florence/SP Estado Civil: casado Profissão: Aposentado

Número filhos: 0 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Eleutério Ferreira Souza

Idade: 66 anos Toca e canta desde que idade: 6 anos Natural de: Andradina/SP Há quanto tempo saiu da roça: 14 anos Estado Civil: casado Profissão: Aposentado

Número filhos: 3 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Guilherma Sanches Moleiro Idade: 74 Toca e canta desde que idade: 9 anos Natural de: Barra Há quanto tempo saiu da roça: 40 anos Dourada/SP Estado Civil: casada Profissão: Do lar (Aposentada)

Número de filhos: 3 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Inocêncio Tadeu Idade: 50 Toca e canta desde que idade: 14 anos Natural de: Santa Clara do Há quanto tempo saiu da roça: 20 anos Oeste/SP Estado Civil: casado Profissão: Aposentado

Número de filhos: 3 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Jesus Catarino de Souza Leite

Idade: 60 Toca e canta desde que idade: 15 anos Natural de: Votuporanga/ Há quanto tempo saiu da roça: 30 anos SP Estado Civil: casado Profissão: Aposentado

Número de filhos: 0 Onde mora: Votuporanga - SP

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Nome: João Batista Dantas da Silva

Idade: 62 anos Toca e canta desde que idade: 12 anos Natural de: Cardoso - SP Há quanto tempo saiu da roça: 20 anos Estado Civil: casado Profissão: marceneiro

Número filhos: 3 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: José Santana de Fátima Idade: 59 Toca e canta desde que idade: 10 anos Natural de: Álvares Há quanto tempo saiu da roça: 35 anos Florence/SP Estado Civil: casado Profissão: Oficial de Justiça

Número de filhos: 3 Onde mora: Fernandópolis - SP

Nome: Lázaro dos Santos Dutra Idade: 67 Toca e canta desde que idade: 6 anos Natural de: Cardoso/SP Há quanto tempo saiu da roça: 34 anos

Estado Civil: casado Profissão: Moveleiro Aposentado

Número filhos: 2 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Manoel Leopoldino Lemes Idade: 75 anos Toca e canta desde que idade: 10 anos Natural de: Monte Há quanto tempo saiu da roça: 15 anos Aprazível/SP Estado Civil: Casado Profissão: Aposentado

Número filhos: 5 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Maria Aparecida da Silva

Idade: 67 Toca e canta desde que idade: 10 anos Natural de: Alvares Há quanto tempo saiu da roça: 30 anos Florence/SP Estado Civil: viúva Profissão: Aposentada

Número de filhos: 3 Onde mora: Votuporanga -SP

Nome: Maria Madalena Dutra

Idade: 63 Toca e canta desde que idade: 10 anos Natural de: Alvares Há quanto tempo saiu da roça: 34 anos Florence/SP Estado Civil: casada Profissão: do lar

Número filhos: 2 Onde mora: Votuporanga - SP

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Nome: Nilton da Silva Rodrigues

Idade: 30 anos Toca e canta desde que idade: 6 anos Natural de: Alvares Há quanto tempo saiu da roça: 10 anos Florence/SP Estado Civil: solteiro Profissão: Professor de Ed. Física

Número filhos: 0 Onde mora: Alvares Florence - SP

Nome: Orival Xavier da Costa

Idade: 71 Toca e canta desde que idade: 10 anos Natural de: Palestina/SP Há quanto tempo saiu da roça: 17 anos

Estado Civil: casado Profissão: Aposentado

Número filhos: 5 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Sebastião Aparecido Santana

Idade: 61 Toca e canta desde que idade: 10 anos Natural de: Alvares Há quanto tempo saiu da roça: 24 anos Florence/SP Estado Civil: casado Profissão: Vigilante Forense

Número filhos: 2 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Teresa Leocárdio Fernandes.

Idade: 63 Toca e canta desde que idade: 10 anos Natural de: Há quanto tempo saiu da roça: 14 anos Sacramento/MG Estado Civil: casada Profissão: Aposentada

Número filhos: 3 Onde mora: Votuporanga - SP

Nome: Valdemar Constante Idade: 59 Toca e canta desde que idade: 11 anos Natural de: Há quanto tempo saiu da roça: 11 anos Votuporanga/SP Estado Civil: casado Profissão: Autônomo

Número de filhos: 0 Onde mora: Votuporanga - SP

Fotos: Arquivo pessoal - 2014

Os objetivos da presente pesquisa foram: . Levantar entre os sujeitos da pesquisa as concepções de felicidade e tragédia presentes na música raiz sertaneja; . Identificar entre eles algumas músicas que portam em suas letras ideias sobre felicidade e tragédia; 30

. Compreender como estas podem ser vistas como elementos de educação entre sujeitos; . Propor possibilidades de articulação entre os dados levantados e a Educação Popular e Sociocomunitária.

METODOLOGIA

O enfoque metodológico foi o da Pesquisa Participante que teve por base teórica os conceitos de Pesquisa Participante em Carlos Rodrigues Brandão (1884), Pedro Demo (1982), Danilo Strek (2006) e Valeria Vasconcelos (2006), apontando, assim, que o trabalho teórico é fundamental ao processo científico. Optamos por esta metodologia por nos pautarmos pela curiosidade epistemológica de em estudar como se constroem e se desenvolvem os processos de aprendizagens populares, bem como seus valores. Portanto, a “curiosidade epistemológica” tem papel significativo no processo ensino aprendizagem, pois segundo Freire (2003, p. 78)

Não é a curiosidade espontânea que viabiliza a tomada de distância epistemológica. Essa tarefa cabe à curiosidade epistemológica – superando a curiosidade ingênua, ela se faz mais metodicamente rigorosa. Essa rigorosidade metódica é que faz a passagem do conhecimento do senso comum para o do conhecimento científico. Não é o conhecimento científico que é rigoroso. A rigorosidade se acha no método de aproximação do objeto. A rigorosidade nos possibilita maior ou menor exatidão no conhecimento produzido ou no achado de nossa busca epistemológica.

Acreditamos que, ao aprofundar o problema, a pesquisa poderá contribuir com a Educação Popular e a Educação Sociocomunitária. Entendemos que o pesquisador é interlocutor interprete (Severino Antônio, 2009), mas com o cuidado para não dizer sua voz como referência ao processo da pesquisa. Não com o propósito de “dar a voz” ao sujeito, e sim, pelo diálogo, na roda de conversa, prestar ouvidos à voz do sujeito em sua linguagem, em suas concepções e visão de mundo, constituintes de suas histórias, memórias, saberes e traduzi-los em metodologia. O sujeito da pesquisa precisa ter sua voz audível, ressonada, presenciada, trazendo-lhe o devido pertencimento da teoria na realidade.

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Conhecer a sua própria realidade. Participar da produção deste conhecimento e tomar posse dele. Aprender a escrever a sua história de classe. Aprender a reescrever a História através da sua história. Ter no agente que pesquisa uma espécie de gente que serve. Uma gente aliada, armada dos conhecimentos científicos que foram sempre negados ao povo, àqueles para quem a pesquisa participante – onde afinal pesquisadores-e-pesquisados são sujeitos de um mesmo trabalho comum, ainda que com situações e tarefas diferentes – pretende ser um instrumento a mais na reconquista popular (BRANDÃO, 2006, p. 11).

Por esta pontuação, além da confiança na razão e nos procedimentos científicos, mantivemos presentes que também o intuitivo, o mítico, o saber popular são portadores de elementos que constituem o fenômeno educativo na experimentação da realidade. Um processo que esteja atento à não fragmentação dos saberes, que considere importante a mente, as emoções e o corpo. Um processo que capacite ao ser humano um equilíbrio entre suas necessidades exteriores e seus anseios de perceber e conscientizar quem realmente é. A perspectiva metodológica da Pesquisa Participante além de possível para esta pesquisa, por termos utilizado a roda de conversa como instrumento de coleta de dados, adequa-se melhor à proposta de inter-relação dinâmica entre teoria e prática.

Rodas de conversa como instrumento de coleta de dados

Optamos para a análise teórica da metodologia da roda de conversa o trabalho das professoras Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Nara Maria Guazzelli Bernardes (2007), pela abordagem da perspectiva educativa em seus estudos. A roda de conversa é uma prática que porta um potencial educativo que nos interessa nesta análise. Brandão (1985) assinala que desde a primitividade, nos entornos da fogueira, ela foi fundamental para os participantes trocarem informações e relatos sobre atividades e aventuras do dia-a-dia. Aos poucos, estas reuniões tornam-se espaços privilegiados de ensino-aprendizagens mudando sua conotação para algo mais conciso, como lugar de inspiração, criação e de expressão, nas quais as atividades se encontravam voltadas para o espírito de produção de saberes comuns e coletivos. Nesta pesquisa, nos encontros realizados, constatamos que, pela informalidade, os violeiros manifestaram espontaneamente pontos de vista, memória e valores. A roda de conversa tornou-se a situação propícia para desenvolver e incentivar os participantes 32

à curiosidade e à imaginação. Favoreceu a espontaneidade, a alegria, a sociabilidade, as habilidades artísticas, a autoconfiança, o treino de memória e recordações.

Caminhos e Devorteios3 da pesquisa

Inicialmente, em contato com o líder Basílio, expusemos o convite e os objetivos da pesquisa que, demostrando interesse, se prontificou em colaborar e aceitou ser o mediador do grupo. Encarregou-se de reportar o convite ao demais integrantes e articular a primeira reunião em sua própria residência, tanto pelo espaço físico quanto por sua relação afetiva com os demais. Em um dos costumeiros ensaios em sua casa, expôs o convite ao grupo e houve uma adesão unânime em participarem da pesquisa. Face à dificuldade de deslocamento do pesquisador, foi acertado com o grupo que a pesquisa se desenvolveria em três encontros semestrais, que ocorreram nos meses de julho/2013; janeiro/2014 e julho/2014. No período intermediário aos encontros, o pesquisador reportou-se ao grupo por meio de conversas telefônicas com o líder Basílio, para articular a pesquisa com os demais componentes. Os encontros ocorreram no período da noite, dentro da rotina do grupo em seus ensaios semanais, normalmente com duração variável entre duas a três horas. O primeiro encontro ocorreu no dia 14 de julho de 2013 e contou com a presença de 15 participantes. Iniciamos o encontro expondo as motivações pessoais do pesquisador, a finalidade da pesquisa, o como a pesquisa seria desenvolvida, o papel de cada um dos participantes, os objetivos e o desenvolvimento do processo. Essa “aproximação” foi indispensável para que o grupo se sentisse à vontade e motivado, pois não tinham ideia de como seria uma pesquisa científica e, ao mesmo tempo, qual contribuição teriam para a pesquisa pelo fato de terem sido eleitos seus sujeitos. Aos poucos venceram a insegurança e a curiosidade. Dada esta motivação inicial, passamos à distribuição das fichas do TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) entre os participantes. (Apêndice 1). Feita uma leitura conjunta e explicativa do TCLE, e tendo esclarecidas as poucas dúvidas, os integrantes foram convidados a preencher os termos da adesão. Cada

3- Nessa pesquisa serão utilizadas algumas expressões típicas do linguajar caipira. Nesse caso, devorteio é o mesmo que vai e volta. ... dá volta e retorna ao mesmo lugar. 33

participante recebeu duas vias do TCLE: uma deveriam preencher e devolver ao pesquisador e a outra ficaria com eles. Distribuímos o material para o preenchimento e, logo aí, já encontramos os primeiros problemas da pesquisa: nem todos sabiam escrever. Se por um lado apareceu o problema, por outro também se revelou o caráter participativo da pesquisa, pois o violeiro José de Fátima já se dispôs a ajudar quem tinha dificuldade no preenchimento das fichas. Também a professora Lucinéia4 contribuiu com o processo do preenchimento das fichas e dos registros falados. Esta foi outra situação problema que logo no início se despontou. Como registrar e gravar as vozes numa roda de conversa? Qual a melhor posição para a captação das informações, já que não havia uma determinação das falas que eram livres? Neste primeiro encontro, a professora Lucinéia que estava encarregada dos registros fixou-se no meio da roda e direcionava a câmera conforme os participantes falavam. Algumas das falas não ficaram audíveis, visto a distância ou a demora na localização e foco da câmera, ou ainda por serem falas curtas. Nos próximos encontros este problema foi solucionado com a implementação de mais um aparelho para os registros e a divisão do grupo em duas rodas de conversa. Também registramos por escrito as falas dos entrevistados. Ao final da exposição dos encaminhamentos iniciais, o violeiro Sr. Manoel Leopoldino Lemes, num tom de brincadeira, demonstrou sua satisfação e o contentamento em fazer parte da pesquisa. Percebeu que sua participação era uma oportunidade de realizar, por meio de sua voz na pesquisa, um sonho que nunca foi possível em sua realidade de vida. “Até que enfim, de alguma forma, vou entrar numa faculdade! ”.5 Após o recolhimento do termo de adesão iniciamos o roteiro das questões e o debate das ideias. (Apêndice 2). O roteiro não foi distribuído, mas foi feito uma leitura inicial completa pra que todos soubessem o percurso das questões a serem refletidas. A primeira reflexão com o grupo se deu em torno da ideia de se a música raiz sertaneja porta ensinamentos e se estes influenciam a vida das pessoas. Como os

4- Professora Lucinéia de Jesus Leite Santana - Vice-diretora da Rede Municipal de Campinas, esposa do pesquisador, tem forte ligação com a cultura caipira e que acompanhou todo o processo da Pesquisa Participante como colaboradora. 5 - As falas dos participantes estarão sempre em itálico no decorrer do texto. 34

violeiros têm esta percepção? O que pensam e entendem sobre os conceitos tragédia e felicidade? Quais músicas que geralmente cantam que portam o significado destes conceitos? Para iniciar as prosas o grupo foi unânime em considerar que as músicas raízes ensinam para a vida. Existem muitas mensagens e lições de vida reportadas em suas letras e que estas servem para as pessoas aprenderem. Depois o grupo falou o que se lembrava sobre cada uma das categorias “felicidade” e “tragédia”. Foram muitas as sugestões. Entre tantas, foram lembradas músicas com mensagens trágicas como: Couro de boi; Tragédia de Rio Preto; Catimbau; A morte do carreiro; Ferreirinha; Tristeza do Jeca; Mágoas de boiadeiro; Teresa; Saudade de Matão; João de Barro; Destinos iguais e Cabocla. Sobre a temática felicidade trouxeram Dona felicidade; Lar feliz; Canoeiro; Pingo d’água; Casinha amarela; Padecimento; Brasil Caboclo, Meu Reino Encantado, A caneta e a enxada, dentre outras6. Na roda de conversa, após a inferência do pesquisador em cada questão pesquisada, a palavra foi livre. Não foi estabelecido nenhum critério de ordem das respostas e nem a obrigatoriedade de participação. Os violeiros participantes tiveram liberdade em expressar suas ideias e opiniões, apesar de alguns fazê-lo em meias palavras e com certo “acanho”7. Apesar da participação de todos nas questões discutidas, algumas vozes vão aparecer mais que outras no texto devido a uma maior facilidade de expressão por parte de alguns. Não percebemos manipulação das vozes por parte de nenhum dos integrantes. Pelo contrário, suas falas eram legitimadas pela opinião dos demais. Ao final do encontro houve um momento de livre expressão sobre os aprendizados do grupo que apontanram resultados positivos. Houve uma roda de viola e confraternização entre os participantes.

6 No quarto capítulo vamos registrar as vozes ditas nesta análise de acordo com as palavras geradoras na temática. 7- Postura de vergonha excessiva, timidez, “caipiragem”. 35

Ilustração 4 - Cantorias na Roda de Conversas

Fonte: Santana (2013) - Arquivo pessoal

A segunda reunião aconteceu no dia 02 de janeiro de 2014. Neste encontro houve uma pequena variação na presença dos violeiros participantes. Faltaram três componentes por motivos particulares: Benedito de Jesus Leite, Orival Xavier da Costa e Teresa Leocárdio Fernandes. Três novos integrantes compareceram: Valdemar Constante, Jesus Catarino de Souza Leite e Benedito Mariano de Oliveira. Estes novos integrantes foram convidados pelo líder Basílio e Anísio para participarem da pesquisa. Neste segundo encontro foi proposto o levantamento de músicas que tivessem em suas letras elementos de tragédia e de felicidade. Quais músicas elegeriam para as discussões e reflexões de suas letras? Para fazer uma seleção das músicas a serem analisadas estabelecemos um critério: deveriam ser músicas conhecidas por todos ou pela maioria, pois assim facilitaria as opiniões de quem quisesse falar e, ao final, seriam gravadas por nós. As músicas eleitas para a reflexão foram: Couro de boi, Dona felicidade, João de Barro, Cabocla Teresa. Apesar de a análise ter sido referenciada principalmente por estas músicas, em alguns momentos da reflexão, o grupo mencionou também outras que portam o mesmo sentido ou semelhanças em suas narrativas. Para a análise dos dados contidos nas palavras geradoras utilizamos diversas músicas que foram citadas em alguns momentos da roda de conversa e outras pela aproximação com o tema. 36

Neste encontro o grupo foi subdivido em dois para facilitar as discussões, otimizar o tempo e todos ficarem a vontade para participar. A subdivisão se deu de forma espontânea e sem intervenção direta do pesquisador. A única orientação era que se dividisse em dois grupos mais ou menos iguais em número de participantes para viabilizar o processo da discussão. Formaram-se dois círculos espontaneamente e um coordenador em cada círculo organizou a dinâmica do encontro. Em um dos grupos o violeiro José de Fátima se disponibilizou e assumiu o comando das reflexões, e no outro, foi o próprio pesquisador que comandou a discussão. Ao final do encontro trocamos informações sobre a dinâmica, observamos uma maior familiaridade com o processo da roda de conversa e constatamos que houve uma maior interação e interferência dos participantes nas opiniões dadas. Cada subgrupo deveria escolher duas músicas e anunciavam ao outro grupo para que não houvesse coincidências, possibilitando assim, uma maior riqueza e levantamento de dados para a pesquisa. Refletiram e concluíram, com a sua devida formulação, sobre o como as mensagens destas letras musicais podiam ensinar algo para vida das pessoas. Sobre quais possíveis aprendizados essas músicas remetiam. Sobre como o violeiro transmite a(s) mensagem(ns) da música e de como percebe a postura do público em relação à letra da música ao cantar. Ao início da reunião o grupo foi consultado sobre a disponibilidade de tempo e, de comum acordo, foi estipulado o tempo de uma hora e meia para essa análise. Em seguida, os dois grupos socializaram as respostas e todos cantaram as músicas analisadas no encontro. Para encerrar, houve a cantoria da Companhia de Reis e a confraternização final. Depois destes dois primeiros encontros alguns violeiros se propuseram em estender a pesquisa a outros violeiros conhecidos, ainda que não fizessem parte deste grupo. A extensão da pesquisa se deu por meio do mesmo roteiro para tessitura (Apêndice 2) das conversas com os violeiros que não pertenciam ao grupo inicial. A terceira reunião ocorreu no dia 18 de julho de 2014 com a presença de 17 participantes ao todo. Alguns dos integrantes das reuniões anteriores não estiveram presentes por compromissos familiares como: João Batista Dantas, Inocêncio Tadeu, Jesus Catarino de Souza Leite e Maria Aparecida da Silva. No entanto, no encontro anterior havia sido dito sobre a extensão da pesquisa participante a outros componentes, 37

e por convite do violeiro José de Fátima, três novos participantes Arlindo dos Reis Santana, Sebastião Aparecido Santana e Nilton da Silva Rodrigues se integraram ao grupo. Foi discutido com estes novos membros os valores cantados nas músicas raízes sertanejas e o valor cultural caipira. Após a roda de conversa, foi feita uma roda de viola onde tocamos e cantamos diversas músicas com a participação de todos. Para finalizar, houve a dança do catira, registros fotográficos e coleta de dados individuais para a confecção da tabela do perfil dos participantes. O processo da pesquisa foi sendo ampliado a cada encontro. A relação do pesquisador com os sujeitos da pesquisa foi de interação. Procurou estar atento como ouvinte, como pesquisador e como participante. Como ouvinte, em cada questão proposta, prestou ouvidos ao que diziam, como diziam, quais sentidos e sentimentos passavam.

Ilustração 5 - Roda de conversa.

Fonte: Santana (2014) - Arquivo pessoal

Como pesquisador não interferiu na opinião e nem nas suas respostas. Buscou o distanciamento familiar na análise e não forçou os questionamentos ao seu ponto de vista. Na análise dos dados manteve distanciamento crítico e não interpretou os mesmos 38

com seus critérios valorativos. Como participante, promoveu a descontração com o grupo, respondeu ao que perguntavam, sugeriu, questionou, procurou fazer a conversa circular. Cantou, tocou e dançou junto com o grupo no processo da pesquisa. A cada encontro o grupo demonstrou crescente motivação e pertencimento ao processo da pesquisa. O quadro abaixo traz uma síntese de cada encontro, os participantes, as músicas trabalhadas e os colaboradores. 1º encontro: 2º encontro 3º encontro 14 de julho de 2013 02 de janeiro de 2014 18 de julho de 2014 Participantes: 15 Participantes: 15 Participantes: 17 Anísio, Antonio, Basílio, Benedito de Todos os anteriores Todos os anteriores Jesus, Eleutério, Guilherma, menos 03: Benedito de menos 04: JB Dantas, Inocêncio, JB Dantas, José de Fátima, Jesus, Orival e Teresa Inocêncio, Jesus Lázaro, Manoel, Maria Aparecida, Catarino, Maria Maria Madalena, Orival e Teresa. Novos participantes: Aparecida Valdemar, Jesus Novos: Arlindo, Catarino e Benedito Sebastião e Nilton Mariano Músicas escolhidas Músicas escolhidas Músicas escolhidas Couro de boi; Tragédia de Rio Preto; João de Barro, Cabocla João de Barro, Cabocla Catimbau; A morte do carreiro; Teresa, Couro de Boi, Teresa, Couro de Boi, Ferreirinha; Tristeza do Jeca; Mágoas Dona Felicidade. Dona Felicidade. de boiadeiro; Cabocla Teresa; Saudade de Matão; João de Barro; Destinos iguais; Lar feliz; Dona felicidade; Canoeiro; Pingo d’água; O mineiro e o italiano, Padecimento; Brasil Caboclo, Meu Reino Encantado, A caneta e a enxada, Chico Mineiro; Tropa e boiada. Colaboradores Colaboradores Colaboradores Lucinéia, José de Fátima e João Pedro. Lucinéia, José de Fátima, Lucinéia, José de João Pedro, Mateus Fátima, Mateus

Auxiliado pela professora Lucinéia e dois estudantes colaboradores8, as entrevistas foram registradas de diversas formas: gravadas, filmadas, fotografadas e escrita. Contou-se também, nos três encontros, com a colaboração do violeiro José de Fátima. Este, dentre todos os participantes, se dispôs a ajudar na organização e na

8 Os estudantes colaboradores Mateus de Jesus Santana e João Pedro Jesus Santana auxiliaram nos registros audiovisuais. 39

condução da roda de conversa durante as reuniões. Movido pelo interesse em entender melhor a temática, leu o livro Música caipira: da roça ao rodeio, de Rosa Nepomuceno9. Os dados coletados na pesquisa foram analisados a partir de eixos temáticos/palavras geradoras que estão distribuídos nos diversos capítulos, dentre eles: felicidade, tragédia, amor, trabalho, família, casamento, identidade, lazer, religiosidade, filiação, viola, violeiro. A organização formal da pesquisa está estruturada pela apresentação de quatro capítulos, conclusão e encaminhamentos finais. No primeiro capítulo, tratamos das premissas teóricas sobre a arte, sua perspectiva educativa, a música (com foco na música raiz sertaneja) e como as concepções de Felicidade e Tragédia permeiam as letras e mensagens cantadas na cultura caipira. Como relatado, optamos pelo método da Pesquisa Participante, tendo a Roda de Conversa como estratégia e a palavra geradora como eixo de análise. No segundo capítulo, tratamos dos principais conceitos da pesquisa e traçamos um olhar analítico sobre a cultura caipira. Abordamos a temática da cultura e identidade caipira e seus laços com a terra e com a natureza, os ciclos da vida, a festa, o mito e o rito. Por fim, apresentamos um breve panorama do percurso da música raiz sertaneja e sua historicidade. No capítulo três, tratamos da propositividade da pesquisa para a Educação Popular e Educação Sociocomunitária em suas especificidades, confluências e desafios. Por fim, apontamos a arte e a música na Educação Popular e Educação Sociocomunitária como espaços de criação, expressão e fortalecimento. No quarto capítulo, analisamos as vozes dos violeiros e os processos ensino- aprendizagens presentes em algumas músicas raiz sertaneja, e como estas representações portam simbolicamente os fios que entremeiam os retalhos da confecção da cultura caipira e popular. Finalmente, são apresentadas as considerações finais. No primeiro capítulo, descreveremos e analisaremos os principais conceitos que orientarão os passos da pesquisa rumo a seus objetivos.

9 NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Editora 34, 1999. (Coleção todos os cantos). 40

CAPÍTULO 1 AFINANDO A VIOLA: ARTE, MÚSICA, FELICIDADE E TRAGÉDIA - REPRESENTAÇÕES

1.1 SOBRE A ARTE E A MÚSICA

Falar sobre arte e música é falar sobre o veio no qual se busca o alcance dos objetivos da pesquisa. Compreender a influência da arte e da música se torna indispensável para a análise dos temas e palavras geradoras que emergiram da pesquisa, a partir da música raiz sertaneja, como forma de expressão artística do sujeito caipira. Primeiramente abordaremos a arte em seus aspectos gerais e, depois, a focaremos na expressão musical, visando à compreensão do seu uso pela música raiz sertaneja. Nosso olhar sobre este aspecto coincide com o olhar de Ernest Fischer bem como com o de Walter Benjamin, que nos servirão de aporte teórico entre outros. O ser humano, em sua última instância, deseja, por sua natureza, ser inteiro, total, acabado. Quer ir além do indivíduo separado, parcial, quer plenitude, quer significação. A arte é indispensável e necessária ao ser humano, pois se apresenta como essencialidade para o equilíbrio das relações homem-no-mundo. Esta possibilidade confere ao homem e à mulher expressarem suas relações mais profundas consigo e com tudo o que é capaz de pensar e produzir em seu entorno. O ser humano deseja tornar-se um ser pleno, deseja ser mais que o que consegue ser. Ser mais que um indivíduo, um objeto, uma coisa. Fischer (1981, p.13), ao descrever a arte como uma necessidade diz que o homem anseia [...] por absorver o mundo circundante, integrá-lo a si; anseia por estender pela ciência e pela tecnologia o seu “Eu” curioso e faminto de mundo até as mais remotas constelações e até os mais profundos segredos do átomo; anseia por unir na arte o seu “Eu” limitado com uma existência humana coletiva e por tornar social a sua individualidade.

A arte além de possibilitar ao ser humano satisfação, distração, divertimento, criatividade, prazer, relaxamento, também o situa mediante seus problemas, ajudando-o a identificar-se, a reagir face às suas “irrealidades” como se elas fossem suas realidades intensificadas. Permite-lhe “asas” para um voo livre no qual vê a si mesmo, o seu entorno e tudo o mais que seu processo imaginativo alcança. 41

Na cultura caipira, ainda que não de forma reconhecida nos padrões categóricos de análise da arte, o caipira também produz a arte em sua cultura. Tece objetos de palha, bambu, couro, barro, madeira, pedra, além da própria viola e da elaboração de letras e músicas, de danças, de cantorias, que se constituem verdadeiras criações de artes de acordo com os dizeres do autor citado acima. E nesse movimento, pelo seu poder criativo, pela sua inspiração, se deixa olhar de tal forma que dispõe seu olhar para que outros também possam se ver. Outra importante função da arte, de acordo com Severino Antônio (2009), que também pode servir a esta ideia é que a arte, nas realidades circunstanciais da existência humana, poderá propiciar experiências mais satisfatórias, fictícias, que aliviem, para além das esferas da alienação, o desejo de completude. O ser humano se reveste de aspirações, necessidades, esperanças, e a arte, responde e cunha estes fatores, cada qual em seu tempo e lugar, como ótica histórica particular. No entanto, na diversidade de suas funções: representativa, política, religiosa, educativa, didática, entre outras, não se limita nessa história e nem se condiciona a ela. Cria um movimento capaz de suprir os autolimites do acontecimento e promover a continuidade dos significados apreendidos e conservados. Neste contexto, consideramos que a música raiz sertaneja é uma legítima portadora dessas funções da arte. Quando só os dados da existência não bastam, a arte suporta os “remédios” para as dores da alma e das ideias e realidades inacessíveis. A arte tem sido, é, e será deveras necessária: [...] como “substituto da vida”, a arte concebida como o meio de colocar o homem em estado de equilíbrio com o meio circundante – trata-se de uma ideia que contém o reconhecimento parcial da natureza da arte e da sua necessidade. Desde que um permanente equilíbrio entre o homem e o mundo que o circunda não pode ser previsto nem para a mais desenvolvida das sociedades, trata-se de uma ideia que sugere, também, que a arte não só é necessária e tem sido necessária, mas igualmente que a arte continuará sendo sempre necessária. (FISCHER, 1981, p.11)

O sujeito da cultura caipira apodera-se das experiências de si e do seu entorno, e aqui, a proposição da arte pela música raiz apresenta-se como “meio” de tornar-se um com o todo da realidade. De acordo com Fischer (1981, p 13) o ser humano precisa de completude. O desejo do homem de se desenvolver e completar indica que ele é mais que um indivíduo. Sente que só pode atingir a plenitude se se apoderar das experiências alheias que potencialmente lhe concernem. Que poderiam ser dele. E o que um homem sente potencialmente seu inclui tudo aquilo que a 42

humanidade, como um todo, é capaz. A arte é um meio indispensável para esta união do indivíduo com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências e ideias.

Para o autor, a tensão e a contradição são inerentes à arte; a arte não só precisa derivar de uma intensa experiência da realidade, como precisa ser construída. Precisa tomar forma através da objetividade. O refletir e o recriar de ideias sobre os sentidos da vida, as concepções, as políticas, as crenças, os ideais de liberdade, verdade, completude, conhecimento, visão de mundo, o ser humano, dentre outras temáticas, ocupa e ocupará na arte, um espaço importante desse lugar “fora de si”. Outra questão relevante numa obra de arte é o aqui e o agora da criação artística e sua autenticidade. Neste aspecto vale trazer a referência de Benjamin (2008, p.3)

Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar em que se encontra. É, todavia, nessa existência única, e apenas aí, que se cumpre a história à qual, no decurso da sua existência, ela esteve submetida. [...] O aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade.

Para esse autor, o valor singular da obra de arte "autêntica" tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso original e primeiro. “A singularidade da obra de arte é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição, ela própria é algo de complemento vivo, algo de extraordinariamente mutável [...]”. (BENJAMIN, 2008, p.3). No entanto, a obra de arte será relida, reinventada e em muitos casos até reformulada. Sobre este aspecto, o que o autor se refere à obra de arte serve à intepretação de determinadas músicas raízes sertanejas como: Tristeza do Jeca, Luar do Sertão, O menino da porteira, Chico Mineiro, Cabocla Teresa, dentre outras, que normalmente são retomadas no meio artístico sertanejo e na cultura popular. Desta forma, a função da arte visa ser humano total. Coloca-o na condição de identificar-se com no que é, e a incorporar aquilo que não é, mas vendo-se de um possível devir. Pela arte entra-se no mundo, comunica-se com ele. Tanto sente e sugere, quanto esclarece e incita a ação. Como a arte é geradora e transmissora de concepções dos aspectos trágicos e felizes da vida humana, podemos inferir que a arte é necessária para que a mulher e o homem se tornem capazes de conhecer e mudar o mundo. Nisto podemos situar as ações do lavrador que de muitas maneiras cria e expressa, tanto pelo caráter mágico quanto 43

pelo caráter da racionalidade, ações reveladoras de seu modo de sentir, aprender, reconhecer e transformar a realidade de seu entorno cultural. Quanto à a atividade poética, Severino Antônio (2009) aponta que o poeta é a voz na fala do mundo‐da‐vida. E no caso da vertente desta pesquisa, os falares do universo caipira. O poeta autor da mensagem (letra) que se canta na música raiz sertaneja também explicita sua visão de mundo. Suscita o voo do pensamento e instiga o pensar leve e certo. Procura não transcendentalizar a dicotomia, e louva o silêncio como forma de compreensão. Não diz o melhor ou o pior; não criva senões para a essência e a existência. Não diz por que diz; atribui liberdade às palavras e deixa o pensamento brincar sem direções. Vive nas almas abertas e anuncia o simples que, de tão simples que é, brinca de esconder-se das calculadas entranhas da razão. De acordo com Fischer (1981) a história da poesia acompanha ao longo dos tempos as influências das inovações linguísticas, visões de mundo, de sociedade e de políticas, dentre outras. A poesia, apesar de sofrer tais alterações ao se autoconsumir na realidade dos tempos, também se autoproduz mediante sua força viva na linguagem humana. (1977) diz que a poesia não limita o limite, não tem filosofia, tem sentidos. A atividade poética não fala das coisas para saber o que elas são, mas para dizê-las o que são. A poesia dá conta de traduzir o intraduzível; dizer o inaudito; dar palavras às falas aprisionadas; apontar brechas de existência nas soleiras da morte. A poesia dá sentimento ao não sentir, encoraja o medo do desconhecido; aponta tudo o que pode e não pode, garantindo a liberdade; essencialisa a alma, o inteiro, o impossível e o impossibilitado. A atividade poética muda sua face mediante a inconstância das ações humanas advindas da vida em sociedade. Variadas etapas marcaram a historicidade da poesia desde o momento em que o trabalho do ser humano foi gerando uma consciência do seu lugar entre os seres da Natureza e os seus semelhantes. (BOSI, 1977, p. 117). Desta forma é possível perceber o porquê do caipira ser considerado como rústico, atrasado, pois quem determina e classifica o reconhecimento de seus valores culturais não é ele próprio, mas alguém que “em seu lugar colonizador” o olha à distância. A música A caneta e a enxada, analisada no quarto capítulo mostra o que ele próprio pensa do olhar “desfocado” de quem o vê.

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1.1.1 A arte e seu potencial educativo

A arte, por suas variadas formas de expressões, tem na educação, tanto informal mediada por suas diversas modalidades, quanto na educação formal, apesar de caminhos diferentes em suas estruturações no processo educacional, um extenso espaço favorável de auto elaboração do sujeito em sua aprendizagem autônoma, libertadora e transformadora. As manifestações artísticas, dentre outras, a literatura, a música, a pintura, a escultura, a dança, o teatro, portam em si mesmas, os fundamentos do mundo. São taramelas que abrem as janelas da alma para libertar os pensamentos e ideias aprisionados na vontade e nos desejos humanos. Aliada à função educativa, mediante a possibilidade de sua instrumentalização, a arte poderá viabilizar estratégias e articular meios servindo-se de suporte à mobilização social. Pode se alinhar aos movimentos sociais, bem como, articular políticas e iniciativas educacionais que mostrem que o fazer educativo desenvolvido nas organizações não governamentais, nos sindicatos, nos diversos movimentos populares em áreas como saúde, meio ambiente, direitos das crianças e dos adolescentes, poderão ocupar outros lugares e espaços que comumente na prática das políticas públicas quase não são contemplados. Neste contexto é que propomos práticas educacionais (por exemplo, nos âmbitos da Educação Popular e nos da Sociocomunitária), nas quais possam fluir uma maior horizontalidade entre educador e educando, com privilégios aos saberes individuais e às manifestações culturais da comunidade envolvida. Portanto podemos afirmar que, por estas mediações, as práticas educativas ganharão novos olhares, podendo ser registradas, analisadas, teorizadas e sistematizadas. O foco nesta reflexão enriquece e fecunda a educação e a arte. Veremos no tema a seguir que a música se torna uma ótima mediação da arte na comunidade. Nossa abordagem será a do estudo da música e suas influências no âmbito da educação, no qual o cantar poderá ser uma atividade de possíveis ensino- aprendizagens.

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1.1.2 A arte e a música

Está no coração de toda mulher e de todo homem o gosto pela beleza, e a vontade de alcança-la pode ser mediada pelas táticas das próprias mãos numa tentativa de transferi-la para as vozes anunciadas dos sons musicais. Teremos por base teórica para abordar esta temática, Alfredo Bosi (1977), que propõe que a música é bela, e por intermédio de suas qualidades de vibrações, ondulações sonoras, estilos, ritmos, intensidade, exerce uma grande influência nos seres humanos, provocando-lhes sensações, sentimentos, emoções e evocação de lembranças. A música é primordial ao ser humano. A prática musical pode se tornar potencializadora política de transformação se, em sua mensagem, postular uma posição crítica, evidenciar a responsabilidade de um fato ou mesmo um problema social. Pode denunciar ou anunciar uma injustiça; propor ou mesmo refutar ideologias; motivar a participação e a cidadania. Pode colaborar com a educação das pessoas, levando-as a compreender o mundo e seu papel social, e mesmo, retratar a realidade. Neste aspecto entra a propositividade de dois dos objetivos da presente pesquisa - levantar entre seus sujeitos as concepções de felicidade e tragédia presentes na música raiz sertaneja e compreender como estas podem ser vistas como elementos de educação entre sujeitos. Seguindo o pensamento de Alfredo Bosi (1977), a música não serve apenas como forma de representação, só por um instrumento de relaxamento, por uma prazerosa busca de diversão, ou por aprofundamento cultural, mas se põe como anunciadora e denunciadora, num mergulho aos problemas frente à vida da própria pessoa e dos demais. O sujeito ao identificar-se com uma música raiz sertaneja, procura esta completude através de outras figuras e outras formas. Ele aprende, revive, rememora fatos e acontecimentos. O fictício manifestado na música, ressignifica a sua ausência, sua busca, sua carência e sua falta do próprio domínio do si. Nisto, a arte musical lhe dá suporte do autoconstruir-se. A intuição, para além da razão, apreende razões não racionalizadas. A música como expressão artística (na cultura caipira), de acordo com Bandini e Dias (2010) possui o fio que costura o esforço do trabalho coletivo, com as vozes do pertencimento, com a lida da terra, com a natureza, com as memórias ressignificadas e 46

com a organização comunitária na construção de um novo cenário à sociedade civil que anseia por melhores condições de vida. Ela porta possíveis tons, vozes, letras, anúncios, melodias, traços de raízes, que podem motivar novos modos aos fazeres das atividades e estratégias educativas e lúdicas. A consciência destes meios poderá suscitar o espirito inventivo e inovador e até mesmo mudar o rumo de atividades já desgastadas e descrentes em algumas práticas da educação formal frente aos desafios que buscam por transformações. Por meio da música, em seu veio educativo, o artista (violeiro) faz uso da experiência adquirida por si mesmo e pelos outros. Seu cantar é cantar de tantos “eus” dos quais participa na sociedade. Ao expressar, reveste-se de sua sensibilidade, de sua intuição e de sua imaginação para dar ao seu canto, um caráter único, tornando a música, algo cheio de sentidos que abordará seus ouvintes em suas visões de mundo e de realidade. Na cultura caipira vemos o violeiro que, apegado ao seu instrumento, canta para afogar as mágoas, para desabafar, para contemplar, para se divertir, para provocar, para competir, para narrar, e assim por diante! Ao retratar o produto da sua criatividade, expressando seus sentimentos e impressões a respeito de um fato qualquer (social, natural, imaginativo), a música possibilita a outros viajarem consigo nos “lócus” da mesma criação. Desejos, fantasias, sonhos portam em si mesmos a necessidade da realidade imaginária. A realidade apreendida pelo artista músico em sua imaginação se contextualiza com os dados de apreensão do mundo pelos sentidos, onde cores, formas, cheiros, textura transformam- se em mensagens, que quando cantadas, ressignificam as experiências apreendidas e acomodadas na cultura. A música é sensorial, o ouvido é o canal aberto para a alma, uma abertura que não conseguimos fechar. A música invadindo nosso ser toma conta dos sentimentos, afloram recordações, torna presente o ausente, nos remete à viagem ao passado, a lugares, momentos, pessoas que significaram nossas experiências; e nesse sentimento entregamo-nos de corpo e alma aos prazeres ou dores despertados pelas recordações. A arte musical se torna chave capaz de abrir o baú que dá acesso à essência do mundo, a seta do sentido que indica o caminho mais original e autêntico de uma realidade. Tanto quanto a importância da arte musical, o fazer musical é imprescindível dentro do contexto cultural, pois por meio deste é que se origina aquele. As experiências estéticas e sensoriais, frutos da vivência cotidiana de cada indivíduo, refletem as 47

percepções auditivas, afetivas e emocionais das diferentes leituras de mundo, que também são decorrentes das diversidades de cada cultura. Na música raiz sertaneja encontramos todas as nuances da vida constituída no trabalho com a terra, com o simples, com o natural, além dos entremeios dos relacionamentos bem ou mal sucedidos. Passaremos a tratar de alguns contextos em que

é criada, mantida, difundida e transformada.

1.2 A MÚSICA RAIZ SERTANEJA E O CONTEXTO CULTURAL

1.2.1 Memória como lugar de permanência cultural

Por memória cultural entendemos o resguardo de bens culturais, tanto materiais quanto imateriais. Para Bandini e Dias (2010), pela imaterialidade mantem-se vivo o substrato valorativo e simbólico auto constituintes por meio de suas histórias (re) contadas, lembranças revividas e experiências compartilhadas. Pelo espaço material, firma-se sua identidade e significatividade por meio dos registros, atividades e manifestações da dinâmica cultural. Segundo as autoras, dar visibilidade à memória da cultura caipira como lugar de permanência dos acontecimentos vivenciais é um passo necessário ao seu reconhecimento e valorização. A cultura caipira não representa algo ultrapassado, algo de vitrine fora das margens de sua época como alguns possam entender e considerar. Ela está tão viva em seus aspectos fundamentais como normalmente o foi. Não se trata de resgatá-la, por que ela nunca esteve perdida. É preciso levar em consideração que pelas condições em que se originou e se desenvolveu não mais voltará a ser o que foi, no entanto, na interrupção de sua história está o seu porvir, ao mesmo tempo, sua fugacidade. Articular a cultura pela memória do passado não significa conhecer todas nuances dos seus acontecimentos, mas buscar as reminiscências que o constituíram. Buscar o ar que permaneceu em seus pulmões e que ainda lhe confere o sopro da subsistência. Este aspecto é que permite uma cultura ser transmitida de geração em geração. O que se foi moldado é que impulsionará o seu devir. Não se trata mais de repeti-la em suas inteirezas, mas recriá-las em suas possibilidades latentes. No que se caracteriza o olhar educativo é que a memória cultural seja o desfazer da ilusão da 48

crença estagnada, dogmatizada do acontecimento histórico, e o suporte para sua permanência e fortalecimento. Podemos partir da ideia de que a concepção da cultura caipira que temos hoje, no agora como tempo atual, seja a confluência do passado reconhecido ou não, e do futuro a ser construído em base a seus valores, sem desconsiderar suas marcas históricas. O que agora é, traz implícito o que já se foi e se delineia ao que será. Para Bandini e Dias, (2010, p. 9), “[...]o que constitui a historicidade do patrimônio cultural é a memória de um determinado grupo, em que pelo passado se reconhece o seu presente entremeado de permanências e ausências, continuidades e rupturas”. Para Maurício Lissovsky (2005), o que iluminou o passado está orientado para o futuro. “Cada acontecimento abriga uma semente de eternidade que é como uma ‘reserva de porvir’ infiltrada nele pelo passado”. E continua: “O acontecimento ficou para trás, mas o que dele resta, no presente, não é o seu passado consumado (seu ‘passado perfeito’), mas aquilo que do passado se desprende e salta em direção do futuro [...]”. (LISSOVSKY, 2005, p.5-6). Portanto percebemos que a memória da cultura caipira não deve ser referida unicamente como informação do que foi, mas também como propositora do que poderia ter sido e do que pode vir a ser. Se assim interpretada e assimilada pela condução do presente, nos projetará à consolidação de novos acontecimentos e fortalecimento da tradição cultural.

Registrar, por escrito ou incentivar a propagação das memórias através das histórias, causos e músicas da tradição caipira poderá se tornar uma iniciativa que, além de cristalizar a identidade coletiva, também salvaguarda Bens de Natureza Imaterial. [...] nesse lugar de memória os participantes são emocionalmente fortalecidos pelo compartilhamento do que sabem e fazem. São momentos de contar e recontar histórias, de rememorar, de reafirmar a identidade coletiva, logo, de relembrar o que se viveu e o que se é. (BANDINI; DIAS, 2010, p. 16-17).

De acordo com as autoras, os espaços de memória como lugar de permanência da construção cultural possibilitam não somente a diminuição do isolamento dos grupos culturais, bem como a conscientização da sociedade sobre a importância da sobrevivência desses espaços que se constituem como referenciais para a continuidade de práticas culturais ligadas ao universo caipira. Com o propósito de conhecer melhor 49

os elementos das temáticas presentes na música raiz sertaneja, passamos a analisar seus principais pontos constitutivos.

1.2.2 Música Raiz Sertaneja: um ponto de vista – música e vida se tocam

O universo da música raiz sertaneja tem em seu cenário os movimentos da vida que se desenvolve no sertão, na lida com a terra, com a lavoura, no contato com a natureza. Segundo Guitti (2012), na instância rural é considerada música de raiz porque em sua poética e mensagem canta as peripécias e histórias criadas e vividas neste entorno cultural. É o cantar do homem que labuta a terra, a vida na terra e o chão da vida. O nosso pensar é que o estilo musical lembra raiz, ou seja, música que remete à coisa fixada, que tem solidez, que dá sustento, que amarra, que tem função de alimentar, de transformar, de suportar estruturas. Lembra chão, plantio, colheita, ligação aos ciclos da natureza. Indica cultivo, cultura, seiva, alimento, segurança. Estrutura pela qual distribui a gratuidade do alimento e garantia de condição à vida palpitante e ansiosa por desenvolver-se. Reservatório. Estar enraizado é sinônimo de pertencimento, de fazer parte, de embasar-se em valores. É sustentar-se em tradição, em princípios significativos e significantes. Ter raiz é ter base, é estar dentro da própria originalidade, é proclamar-se forte, empoderado, útil, necessário, que vale. Portanto, valente. Estar enraizado é dizer-se comum, interdependente, responsável, integrado com a mesma horizontalidade do solo, da terra, do chão, sabendo-se pela humildade necessária e livre, ser fortificadora e sustentável aos caules emersos e livres. Falar de música raiz é dizer todos os sentidos que a própria palavra sentido possa conter. E como aponta Severino Antônio, sentido como significado, como direção, como apontamento, como percepção, como ordem, como ressonância (ANTÔNIO, 2009, p.66). A música raiz sertaneja narra histórias sem fim desenroladas sob o luar do sertão. Façanhas que lembram o sereno da madrugada, os violeiros embrulhões, o galopar de um cavalo, a caçada e a pescada do fim de semana, a moça da janela, o berrante para reunir o gado, a chuva no telhado, a casinha de pau-a-pique à beira da estrada, o cruzeiro no alto do monte, o João de barro, a cobra, a saudade, os amores e as desilusões. 50

Cheia de prosa e verso está envolta de elementos ricos em criação e cultura. Enfim, é a vida, é o respirar, é o . Fala ao coração propiciando prazer e enlevo ao apreciar profunda e tocante mensagem. Por ser ela uma importante expressão cultural, passaremos a abordar o que entendemos por cultura e sob qual foco nossa pesquisa vem se dirigindo.

1.3 CULTURA E CULTURAS

A palavra cultura, de acordo com Alfredo Veiga-Neto (2003), tem significado bastante amplo e complexo. Origina-se do latim colere, que, inicialmente era concebida para designar elementos derivados da natureza, referindo-se à ideia de cultivar, preservar o cultivo agrícola, a plantação, ou seja, aquilo que foi plantado e que cresce naturalmente e deve ser cultivado pelos seres humanos. Outra forma de conceber o termo é relacioná-lo à preservação da memória, através do culto aos deuses, no caso de Roma Antiga. Também neste caso, menciona Veiga-Neto (2003), é originária do latim, cultus (culto, cultuar) que pode ser relacionado a expressões simbólicas e imateriais como a música, a dança, o canto, a memória, dentre outros, veiculando dessa forma, as tradições construídas no cotidiano. Portanto, como podemos constatar, para Veiga-Neto, a palavra cultura aparece tanto referida como um processo vivido, um processo social constitutivo através do qual e por meio do qual vivemos nossas vidas cotidianas, ou então, como uma mercadoria, um produto do fazer humano, implicado pela condição de coisa das mercadorias que produzimos e consumimos. Nota-se, porém, que na dinâmica cultural esta distinção não existe devido serem interdependentes, e por isso mesmo, historicamente conflitantes. Clifford Geertz (1973), referindo-se ao que faz a Antropologia Interpretativa, afirma que as sociedades devem ser lidas como textos ou como análogas a textos. Afirma que todos os elementos da cultura analisada devem ser entendidos, portanto, à luz desta textualidade imanente à realidade cultural. “A cultura humana é um conjunto de textos [...] na qual o antropólogo deve saber ler por sobre os ombros daqueles a quem esta cultura pertence”. (GEERTZ, 1973, p.452). Consideramos que o conceito de cultura defendido por Geertz é aquele que melhor aproxima de nossos olhares para a análise da cultura caipira e para o alcance dos objetivos propostos nesta pesquisa. 51

O conceito de cultura que eu defendo, [...] é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. (GEERTZ, 1973, p.15).

Neste aspecto a cultura caipira é tudo o que o lavrador transforma da natureza, em si e para si. Tudo o que, através da sua racionalidade, inteligência, sentimentos, percepções, ações criativas, consegue executar, criar, transformar, apreender, expressar por meio de ideias, artefatos, símbolos, práticas sociais, costumes, leis, crenças morais, conhecimentos adquiridos a partir do seu tecido e convívio social. Como um sistema de signos passíveis de interpretação

A cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do os símbolos podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade. (GEERTZ, 1973, p.24).

Percebe-se por esta concepção, que se é algo situado, histórico, coletivo, é passível de intervenções. Pela acumulação de conhecimento, os universos simbólicos cristalizam-se no padrão cultural do grupo. Estes são produtos sociais e culturais que têm a sua história influenciando diretamente o comportamento de seus atores na medida em que se dá a legitimação de suas representações sociais. Estas representações, segundo Chartier (1990, p. 245), “designam o modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é construída, pensada e dada a ler por diferentes grupos sociais”.

1.3.1 Cultura caipira - um breve panorama

A constituição do universo simbólico que permeia a cultura caipira está representada nos próprios traços das suas manifestações. O entorno cultural é o espaço do ensino-aprendizado no qual se delineiam as experiências, a prática e a manutenção do conhecimento transmitido entre os membros dos grupos. Práticas como pedir as bênçãos dos santos para uma boa colheita através de festas, rezas e procissões; aguar a cruz (cruzeiro) para invocar a chuva nos períodos de estios e secas; ouvir as “vozes” e sinais da natureza e reconhecê-los como mensagens 52

para descobrir o melhor período para o plantio, ou colheita, saber se o fruto está no ponto para ser colhido observando sua cor, som, textura.; saber selecionar a melhor semente, a melhor ramagem; o solo próprio para cada tipo de planta; a influência das fases da lua no controle de pragas; o corte correto para o melhor proveito da madeira de acordo com o objetivo de seu uso; entre outros tantos saberes. Esse conhecimento empírico do caipira resulta da prática de séculos de conhecimentos e sabedoria acumulados pelos seus ancestrais e que, ao longo do tempo, foram transmitidos às gerações mais jovens. A cultura caipira não é isolada em si mesma, está inserida na cultura cultivada pelo povo de uma ou de outra forma. Para Alfredo Bosi (1987), toda e qualquer cultura tem suas raízes, de alguma maneira, estratificada nos afazeres e lidas com a natureza. Podemos considerar que alguns de seus aspectos mais específicos são vividos nas próprias zonas rurais, outros adentram as pequenas cidades que conservam suas ligações econômicas diretas ao trabalho na lavoura, bem como por cidades maiores e até mesmo os grandes centros. Segundo o autor, a memória grupal constituída pela pessoa em seu entorno cultural, frequentemente ressignifica situações de ações e atos vividos, e a pessoa volta a valorizá-los, mesmo que o tempo e a situação modifiquem as ocorrências originárias. “Mesmo que o tempo passe e os sistemas de produção agrícola modifiquem, como vemos hoje, seus valores continuarão”. (BOSI, 1987, p. 11).

É comum as pessoas dos grandes centros recorrerem à culinária da comida caipira feita no fogão a lenha; visitar feiras, e dentre outros espaços, também, supermercados, varejões com a diversidade de iguarias caipiras.

É possível presenciar em determinados centros urbanos, o “mercadão antigo”, que em sua maioria, preserva sua forma original de comercializar sementes, verduras, artefatos, especiarias e outros. Esses espaços citadinos hoje, se constituem em espaços de memórias vivas, onde o povo egresso da cultura caipira, impelido no papel de cliente e consumidor, na maioria das vezes, solitária e individualmente “remói” suas histórias, suas lembranças buscando sua ressignificação cultural. Logo, pode-se afirmar que a cultura especificamente caipira, de “raiz”, está inserida dentro do cenário cultural brasileiro e, por ser dinâmica, está em constante mudança apresentando as suas particularidades em relação ao tempo e espaço.

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1.3.2 Do nome ao sujeito caipira

O caipira comumente é conhecido como “camponês”, “caboclo”, “caipira”, “matuto” “roceiro”, “sertanejo”. Tais termos portam em si uma diversidade de tratamentos, nomeações e adjetivos, e não raras vezes, preconceituosos. Brandão (1983) menciona que Cornélio Pires, afirma haver uma conotação de caipira que vai para além da análise do nome, que é indicada pelas características próprias, ligadas à localização, ao modo de vida e ao exercício do trabalho agrícola. Por mais que rebusque o ‘étimo’ de ‘caipira’ nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos o tupi- guarani ‘capiâbiguâra’. Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto: neste caso temos a raiz ‘caí’ que quer dizer: ‘gesto de macaco ocultando o rosto’. ‘Capipiara’, que quer dizer o que é do mato. Capiã, de dentro do mato: faz lembrar o ‘capiau’ mineiro. ‘Caapi’ - trabalhar na terra, lavrar a terra - ‘caapiára’ lavrador. E o caipira é sempre lavrador. Creio ser este último caso o mais aceitável, pois ‘caipira’ quer dizer ‘roceiro’ isto é lavrador. (BRANDÃO, 1983, p.3).

Para Brandão (1983, p. 3), a definição de Pires (s.d.) rompe olhares superficiais e até mesmo preconceituosos sobre o caipira, empurrando-o às barrancas para as águas da marginalidade. A explicação de Cornélio Pires é importante porque faz a fronteira onde a palavra e a pessoa existem definidos por sinais de menos e o lugar onde outras razões, como a do próprio trabalho de que provêm, traçam o nome e a identidade. De uma primeira safra de nomes a respeito de quem é, o caipira sai como o viu e pensou uma gente letrada e urbana. Por isso, comparado com o cidadão, o citadino livre do trabalho com a terra, o caipira sai dito pelo que não é e adjetivado pelo que não tem. Ele é ponto por ponto a face negada do homem burguês e se define pelas caricaturas que de longe a cidade faz dele, para estabelecer, através da própria diferença entre um tipo de pessoa e a outra, a sua grandeza.

Para o autor, o caipira paulista define-se primeiro por ser naturalmente do lugar onde vive: o campo, a roça, o sertão, a mata, o lugar oposto à cidade. E quem “não mora em povoação” e, portanto, aquele que não possui o preparo e as qualidades do homem da cidade, o civilizador, de quem, a seu modo, o caipira escapa, tanto quanto o índio, e mais do que o negro. De acordo com Brandão (1983, p. 3), o caipira é o homem sem “trato” civilizatório:

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Se o seu lugar de vida é o contrário do da cidade e o seu trabalho é invisível, por ser o oposto ao “da cidade”, o seu modo de ser e a cultura são o oposto do que a cidade considera “civilização”, “civilizado”. Por isso, a meio caminho entre o bugre e o branco, o “caipira”, “caboclo” é ignorante, “sem trato”, ou seja, sem aquilo que, ao ver do tempo, apenas a distância do cativeiro da terra pode atribuir ao homem “de trato”, o senhor e seus emissários.

Ao nosso ver o caipira possui uma forma diferente de ser do “civilizado citadino” mediatizada pelo seu entorno, que não é nem igual, nem inferior e nem superior, e sim, específica e própria. Sob este ponto de vista é que procuraremos considerar seus afazeres como auto constituintes. Os sujeitos desta pesquisa são caipiras e detém conhecimentos e práticas do universo rural por terem vivenciado seus valores culturais. Mesmo tendo mudado para a cidade conseguem se adaptar às novas condições de vida, mas não deixam de cultivar no solo de seu ser todas as sementes aí plantadas, desenvolvidas e amadurecidas. A prática musical é a forma mais adequada que encontram para o cultivo de suas tradições. Há que se levar em conta que a classificação de modo cultural como “rude e sem trato” pelo ponto de vista da cultura urbana, os marginaliza e cria-lhes um impacto de negação, primeiramente sobre si mesmos e o universo rural. No entanto, há que se aprender com eles, sobre eles, sob seu próprio olhar, seus fazeres e a relevância destes fazeres no tecido social que atuam. Para que se chegue a isto, a primeira condição é conhecê-los melhor.

1.3.3 Origem e originalidade da cultura caipira

A cultura caipira foi tramada pelos fios de muitas histórias de seus sujeitos. Uma cultura situada, com características tecidas de pequenez e grandiosidade. Em suma diríamos que a cara desta cultura se resume no protótipo caipira, o seu sujeito. De acordo com Bandini e Dias (2010, p. 26-27),

A configuração histórica do caipira e de sua cultura remete à miscigenação entre europeus, indígenas e, posteriormente, africanos, os quais passaram a estar presentes no Estado de São Paulo para compor a mão de obra escrava para trabalhar na lavoura. Por meio do bandeirismo ocorreu a expansão geográfica do território paulista, entre os séculos XVI, XVII e XVIII. Essa região ocupada, denominada de Paulistânia, se estendia do estado de São 55

Paulo a Mato Grosso, Paraná, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul. Nesse período, além de esse território ter passado às mãos da Coroa Portuguesa, certas formas de vida social e cultural começaram também a ser delineadas, dando corpo e forma à cultura caipira. Com o fim dos ciclos bandeirantes, foi definida a presença de uma população com traços culturais caipiras em comum, salvo as variações em regiões das Capitanias de Goiás, do Mato Grosso e Minas Gerais. Estes traços culturais comuns referem-se, menciona Candido, às formas de subsistência e sociabilidade baseadas nos mínimos capazes de manter tanto a vida dos caipiras quanto a coesão social entre os bairros rurais (mínimos vitais e mínimos sociais).

Olhando para a constituição da cultura caipira, e tendo em vista que a identidade é uma construção simbólica, de acordo com as autoras, cabe nosso esforço reflexivo em vista de seu fortalecimento e sua construção memorial coletiva, a partir dos sujeitos, lugares e eventos registrados ao longo do tempo. Esse olhar envolve a valorização da diversidade cultural, porém sem perder as conexões que consolidam sua construção simbólica e formação histórica e cultural brasileira. A cultura, além de ser a expressão dos indivíduos ou de um grupo, é também um espaço de exercício de cidadania, de conhecimento e reconhecimento. A música é o elemento cultural mais forte pelo qual o artista caipira demonstra sua visão de mundo, suas concepções, crenças, valores. Como o intuito da presente pesquisa é buscar a compreensão de como que as concepções de felicidade e de tragédia, tão exploradas em suas poesias, podem ser tomados como elementos educativos entre seus sujeitos, passaremos às suas análises.

1.4 A FELICIDADE

Colocar a felicidade em debate exige abertura e disposição para galgar cada degrau da longa escada rumo ao consenso ou dissenso do que ela possa ser. Nosso pensar sobre a felicidade coincide com o de Silvio Gallo (2012) e de Ana Roque Dantas (2008), que propõem ser a felicidade um estado de busca subjetiva da autossatisfação pelo bem viver. Acontece de maneira singular e alcançá-la, comumente se apresenta como um desafio para o ser humano. Não há uma estrada única e mesmo certa para a felicidade, mas sim caminhos diferentes. Num breve panorama sobre esta temática constataremos que as posturas e concepções ora convergem, ora divergem, sobre o que seja a felicidade. Há certo consenso de que a felicidade seja uma sensação de bem-estar e contentamento. Podendo 56

ocorrer por motivos variados, é tida como um estado de quem é feliz, ou ainda, como um momento durável de satisfação, em que o indivíduo se sente plenamente realizado. O que pode fazer a pessoa feliz? Serão os aspectos materiais? Serão as interferências culturais? Será que o ser feliz decorre do sistema biológico e da procura de satisfação de necessidades inatas? Qual a importância disto sobre o comportamento e orientação da ação? São alusões e inquietações quanto à qualidade de vida, ao bem-estar, à satisfação, gerando tanto as expectativas quanto as ações dos indivíduos em sociedade. Tais expectativas e ações não se reduzem a meros desejos particulares sem eco no tecido social, onde os sujeitos se interagem. Ou ainda, a felicidade aparece como papel central, influenciando a forma de sentir e de expressar essa forma de sentir. A filosofia costuma associar a felicidade com o prazer, visto a dificuldade de defini-la como um todo, de onde ela surge, os sentimentos e emoções envolvidos. Os filósofos buscam estudar qual o comportamento e estilos de vida poderiam levar os indivíduos à felicidade. Em Aristóteles, filósofo grego, “a felicidade diz respeito ao equilíbrio e harmonia que se consegue pela prática da virtude do bem”. Em Epicuro “a felicidade ocorre através da satisfação dos desejos”, ou seja, a verdadeira felicidade só pode ser sentida voltando-se para dentro de si mesmo. Para Pirro de Élis “a felicidade acontecia através da tranquilidade, da paz de espirito”. Para o filósofo indiano Mahavira, atingir o estado da felicidade depende da não violência. Para Lao Tsé, filósofo chinês, “a felicidade poderia ser atingida tendo como modelo a natureza”. Já Confúcio, também chinês, propunha a felicidade advinda da “harmonia entre as pessoas”. (FELICIDADE...).

Algumas ciências, dentre as quais, a psicologia, estuda a felicidade e busca medir, através de vários métodos e instrumentos, o nível de felicidade das pessoas. Mensurar a felicidade passa pela avaliação de fatores físicos e psicológicos, idade, estado civil, renda, políticas, preferências religiosas, dentre outros fatores. Para o violeiro José de Fátima, participante da presente pesquisa, “ A felicidade é um estado de espirito mediante o que pensa, faz e consegue; quando as coisas vão bem, a pessoa sente-se em paz e flui a felicidade”. 57

E, para João Batista Dantas, outro violeiro participante, felicidade é uma questão de valores éticos morais: “Cada um é feliz de um jeito, pois a felicidade depende muito do que a pessoa acha certo e age de acordo com seus princípios”. Roque Dantas (2008) apresenta a felicidade enquanto representação social, condicionadora das práticas dos atores sociais. Para a autora, a busca pela felicidade orienta a conduta da pessoa em função de sua procura. Denota-se a importância desta para a própria vida, e revela o quanto esta procura influencia as representações sociais.

Entendemos que há uma solicitação ou apelo social à felicidade, seja de forma direta, procurando formas individuais de a alcançar, ou indireta através da criação de expectativas coletivas que guiam a ação individual. Assim, a felicidade assume o papel de motor da ação social, ainda que sob formas diferenciadas. E questionamos de que forma estas diferentes características se podem observar através das práticas, dos valores, da relação com o tempo e dos quadros de vida dos atores sociais. (ROQUE DANTAS, 2008, p.3).

Portanto, podemos constatar que a felicidade depende do que o indivíduo pensa, do que ele é ou do que tem. Mais que uma estação onde se possa chegar, essa sensação de ser feliz é a maneira de se viajar. Depende mais do uso do que se tem, do que o que se falta. Depende muito da consciência de uma finalidade e do alcance do que se busca. Enquanto para alguns a procura da felicidade se dá na busca de coisas materiais, para outros, a felicidade não está na matéria, e sim nas coisas espirituais, e para outros ainda, está nas incitações ao prazer e às alegrias que invadem a vida quotidiana. Como a felicidade não é concebida de forma unívoca, notamos que uma das polaridades é formulada dentro das especificidades dos atributos individuais, na qual o homem e a mulher buscam a estruturação e a manutenção de sua condição humana, e na outra, encontra-se o contexto social que também exerce influência na produção de sua representação. Portanto, as dimensões individuais e biológicas como as sociais exercem influência sobre a ideia de felicidade dos indivíduos e nos indivíduos. Na cultura caipira os sentimentos incorporam conhecimento e sabedoria e suportam a ação; mostram-nos também que a felicidade é um sentimento e, como tal, enquanto sentimento, tem um papel na orientação da ação. Dentre outras formas, o caipira pela representação em sua música, sente-se feliz ao perceber a florada da primavera, ao contemplar a lua cheia, ao ouvir o canto dos pássaros, ao final de uma colheita, ao tocar e cantar com sua viola, ao organizar uma festa. Aqui interessa mostrar 58

como o sentimento de felicidade motiva a ação dos atores sociais e lhes condiciona as práticas e comportamentos. A autora Roque Dantas (2008, p.4) diz “entender a felicidade como um conceito subjetivo e com dimensão temporal, uma vez que os sentimentos e as emoções são dinâmicos e a sua intensidade pode sofrer variações”. Portanto um estudo sobre a felicidade deve levar em consideração “[...] as percepções que os atores sociais desenvolvem sobre a sua importância e sobre a forma como influencia condutas e práticas sociais” (ROQUE DANTAS 2008, p.4). A mesma autora considera que são três as dimensões que influenciam sobre os processos de percepção e representação da felicidade pelo ator social: estruturais, sociais e individuais. [...] nas condições estruturais as ações ocorrem ao nível das condições de vida, a análise centra-se nas características socioculturais (educação, condições de trabalho, prestígio da atividade) e nas redes de relações (família, amigos); ao nível das condições individuais, destacam-se as características biográficas (idade, sexo, estado civil), os estilos de vida (lazer, organização do quotidiano) e as convicções, valores orientadores, expectativas e motivações. Tanto as dimensões estruturais, como as sociais e individuais, concorrem para a definição de condições de vida, que os atores sociais avaliam e transformam em circunstâncias diferenciadas. (ROQUE DANTAS, 2008, p.4).

A concepção de felicidade se formula por pontos de vistas diferentes entre os atores sociais. A felicidade adquire diferentes significados sociais, podendo ser assumida enquanto ideal ou objetivo último, ou enquanto concepção mais hedonista. A busca da felicidade poderá ser mais ou menos intencional, consciente, ou consequência da ação. Para uns, vem orientada por valores éticos e normativos, religiosos. Para outros, mais ligada à vivência quotidiana ou associada a aspectos materiais. Para outros ainda, como ruptura, realizados por pessoas que, apesar da sua inserção social e profissional, largam empregos, cortam laços sociais e iniciam novas atividades e mesmo novas formas de estar na vida. A importância da felicidade e a trajetória de vida são eixos que permitem melhor compreensão de como a pessoa orienta sua ação. São observadas através das condições estruturais existentes, das condições de vida dos atores sociais e das suas especificidades individuais. “As trajetórias polarizam diferentes percursos, a uns mais convencionais, opõem-se outros mais radicais, em que a ruptura simboliza a sua expressão máxima”. (ROQUE DANTAS, 2008, p.6). 59

Podemos observar como ocorre essa busca de felicidade pelo caipira por meio da análise da música raiz sertaneja “SAUDADE DE MINHA TERRA”, de autoria desconhecida e interpretação de Wilson Pain (2008), que mostra a ruptura do caipira com seu estilo de vida, mudando-se para cidade na tentativa de ser feliz. No entanto, a nova estrutura de vida não permitiu sua completa felicidade de forma que suas presentes ações levam-no a desejar a volta para sua terra, e ali refazer todo o seu percurso de vida no trabalho com a terra. Deseja fazer isto para si mesmo e para os outros que não sabem quem ele verdadeiramente seja. O que sente ser é transitório, portanto precisa voltar a se reconstruir para se firmar em seu novo ser e estilo de vida, como descreve na canção:

Quero ir na minha terra / Quero matar a saudade / Quero ver o que eu não vejo / Aqui dentro da cidade / Quero demorar bastante / Ficar lá o mês inteiro / Quero fazer toda a lida / Que eu fazia de primeiro / Quero domar potro xucro / Que há muito tempo eu não domo / Tomar um mate a meu gosto / Que há muito tempo eu não tomo. Comer as frutas silvestres / Da mata da minha estância / Plantada por mão do mestre / Que comi na minha infância / Eu quero fazer de tudo / Se der certo o que eu desejo / Eu quero encerrar as vacas / Tirar leite, fazer queijos / Fazer um laço de doze / Se esparramar no espaço / E serrar nas guampas de um bicho / Pra mostrar que braço é braço. Quero camperear bastante / No lombo de bons cavalos / E carpir bastante de enxada / Para as mãos criarem calo / Arrastar pipa de água / Na cincha do meu petiço/ Para lembrar minha infância / E o meu primeiro serviço / Quero arranjar um gaiteiro / E fazer um baile animado / E provar que sou herdeiro / Da herança do passado. Lavrar terra sem trator / Pegar no rabo do arado / Pra bem da musculatura / Cortar lenha de machado / E levar um retratista / Pra bater fotografia / E provar pros meus amigos / De tudo que eu lá fazia / Vou fazer acreditar / Quem nunca me acreditou / E outros ficarão sabendo / Quem eu era e quem eu sou.

Como se nota, encontramos na música a valorização da felicidade oscilando entre dois extremos: ideal e real, ou seja, as opções que se guiam por “ideais”, por planos de atuação não pragmáticos e que definem metas de atuação que visam à superação das contingências dessa mesma realidade; e o realismo por planos de atuação construídos sob condições objetivas, pragmáticas e determinadas. De acordo com Roque Dantas (2008), os perfis nos quais se estruturam os ideais de felicidade são: pragmático (questões materiais), espiritual (sentidos para a vida), convencional (rendimentos e postura social) e ruptura (condutas / aventuras / gozar o momento). A busca da felicidade neste quadro envolve o que o indivíduo pensa, deseja e como age nas relações de troca no entorno cultural.

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[...] o perfil pragmático surge associado à importância da posse (ter), valor do tempo e pelo adiar de muitas das suas vivências. Valorização de hábitos de trabalho, rotinas, estabilidade e controle, bem como, uma grande importância dada à atividade profissional. O perfil convencional destaca-se os valores familiares e do trabalho, bem como o valor do tempo. Associa-se também à categoria adiar e à importância do ter. Este perfil surge associado à existência de filhos, a importância dada a rotinas e quebras de rotina, à segurança financeira, ao consumo, à família e o forte investimento profissional destes indivíduos. O perfil espiritual valoriza o ser/fazer, a importância do viver, o hedonismo, a par da importância consagrada aos outros e aos valores da espiritualidade. Valorizam a organização do seu quotidiano, a participação comunitária, valores de espiritualidade e holismo e também desenvolvimento pessoal e autoconhecimento. Uma característica que está presente nos seus discursos é o facto de existir. O perfil de ruptura distingue-se pela valorização do viver, ser/fazer e hedonismo. É a existência de ruptura (profissional e/ou pessoal) nas suas vidas. Mas destaca-se também a importância da espiritualidade/ holismo, do prestígio e reconhecimento do exercício profissional, do renunciar ao que não se gosta, e da maximização da vivência. (ROQUE DANTAS, 2008, p.12).

Desta maneira constamos que a felicidade é entendida enquanto sentimento, sujeito a evoluções, transformações e flutuações. A felicidade adquire diferentes significados sociais e traduz-se em diferentes necessidades de concretização. Quanto à sua prática, uns optam por viver uma vida “feliz”, outros esperam ou planejam o dia em que serão “felizes”. A representação de felicidade e a forma como ela condiciona a ação é produto de uma construção social, diferenciada em função do sexo, idade, processos de socialização e trajetórias sociais, e revelando diferentes graus de reflexividade da ideia de felicidade. (ROQUE DANTAS, 2008, p.12). Portanto, para a análise dos dados da presente pesquisa optamos por uma concepção ampla de felicidade que postula que ser feliz é um estado de espirito, consistindo em muitas formas de se buscar, como alcançar um objetivo, possuir objetos, gostar do que se faz, ter tempo e disponibilidade para si e para os outros. Ou ainda, ter um projeto de futuro, ter posse, ser/fazer nas imediações da realização cotidiana; alcançar um objetivo, mudar de estilo de vida, contemplar os elementos da natureza, estar em paz em seu interior, ser amigo, ser correspondido, usufruir tempo para si mesmo, poder adquirir objetos desejados, ter segurança, liberdade, é o abrir-se para a simplicidade, o banal, o não percebido, o não reparado nas ações corriqueiras do indivíduo em seu mundo-vida. Ao nosso ver, a felicidade é poética e não lógico-matemática. O ser feliz é o simples de tudo, o natural, mas raramente damos conta de tudo o que nos acontece, portanto, podemos sair de uma situação de felicidade e passar a 61

infelicidade, ou seja, a vida se embala como numa gangorra, nos prega peças em movimentos de alternâncias, aos altos e baixos, que às vezes, denominamos tragédia!

1.5 A TRAGÉDIA

Abordaremos a temática da tragédia levando em consideração a finalidade de orientar as principais análises dos temas e palavras geradores presente nessa pesquisa, cujos recortes aqui propostos serão retomados no quarto capítulo. Deteremo-nos nas ideias e nos elementos consoantes a tais temas presentes na música raiz sertaneja face ao que se propõem nos objetivos da pesquisa. Para situar o conceito de tragédia primeiramente vamos partir da visão histórica da tragédia grega, pois julgamos pertinente mencionar o contexto em que se desenvolveu esse conceito, para depois referi-la em nossos objetivos. O teatro grego foi um importante fator de regulação da vida social, uma atividade que representava o cotidiano vivido pelas pessoas e as ajudava a refletir sobre a vida. A Tragédia e a Comédia irão ocupar a tarefa de voltar a agregar pela emoção violenta o que se desagrega na esfera das crenças. Silvio Gallo, (2012, p.88) comenta que nas formas de interpretação e representação, os gregos usavam a comédia e a tragédia para abordar a realidade cotidiana: A comédia, que procurava representar a vida pela farsa e despertar risos na plateia e a tragédia que, ao contrário, trabalhava com o drama e procurava emocionar a plateia, fazendo com que cada um se reconhecesse nos fatos representados.

Para o autor, inicialmente as temáticas da tragédia grega se reportavam ao tradicional e corriqueiro da vida comunitária, plantio, colheita, festas, cultos aos deuses, manifestações coletivas, onde eram organizadas pequenas encenações, ora dramáticas, ora satíricas, com finalidade de diversão e celebrações cultuais a Dionísio, o deus festivo do vinho. Desta forma essas representações teatrais vão se incorporando nos novos parâmetros da reflexão grega e ganhando novos significados na amálgama da cultura nascente, ou seja, Dionísio ganha respeito e suas festas transformam-se num ritual cada vez mais organizado e disciplinado, merecendo a devida atenção das autoridades civis e religiosas. Se por um lado há uma reação por parte de reis e dos sacerdotes na aceitação 62

do novo culto frente aos bons costumes, por outro, a lenda, conserva o nome de Proteu, Rei de Tebas, que teria amargado um triste destino por ter-se oposto a ele. Para o filósofo grego Aristóteles (1991), a tragédia é a imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de caráter e pensamento que nós qualificamos as ações). Neste aspecto é que se encontra a potencialização educativa da música raiz sertaneja, que quando canta uma tragédia, as pessoas ouvindo esta história, conseguem tirar lições de vida em sua narrativa, ainda que fictícia. Nesse universo encontramos narrativas trágicas no cotidiano do caipira em seu trabalho, relacionamentos, aventuras, casamento, enfrentamento de intempéries, caçadas, perseguições, vinganças, festas, dentre outros. De acordo com o filósofo grego em questão, as ações humanas procedem do pensamento e do caráter. Em tais ações residem a origem da boa ou má fortuna dos homens. Numa narrativa trágica o mito é imitação de ações; e por "mito" este filósofo entende a composição dos atos; por "caráter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade. Por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o quer que seja ou para manifestar sua decisão. A trama trágica do mito enuncia que o que é possível é plausível, ou seja, enquanto as coisas não acontecem, não estamos dispostos a crer que elas sejam possíveis, mas é claro que são possíveis aquelas que aconteceram, pois não teriam acontecido se não fossem possíveis. É como se fosse as duas faces da mesma moeda, ainda que estejam as duas ali, é necessário a mudança de lado para perceber o outro lado. De acordo com Aristóteles, (1991, p. 255) encontramos a unicidade do mito:

Uno é o mito, mas não por se referir a uma só pessoa, como creem alguns, pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as ações que uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma ação una.

A tragédia é catártica, pois permite contemplar a vida em sua realidade desvelada, ou seja, sem os “véus” com os quais nos acobertamos para suportar as dores “nuas e cruas”. O ser humano se vê tal como é, despido de sua roupagem sociocultural. A tragédia propicia pela representação da vida, o "reconhecimento", como passagem do 63

ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita. Na música CHICO MINEIRO, de autoria de Tonico e Francisco Ribeiro, interpretação de Tonico e Tinoco (1947), podemos acompanhar estes movimentos teorizados pelo autor. Dois companheiros que vaquejavam juntos tinham grande afinidade e amizade. Indo a uma festa ocorre o assassinato do Chico, e o companheiro, ao consultar seus documentos, descobre que eram irmãos, e acaba por entender o valor da amizade e de tudo o que os aproximavam. O que não sabia do outro e nem de si passa a ser a razão de sua vida daí em diante, conforme narra a canção: Declamado Cada vez que me "alembro" do amigo Chico Mineiro, das viagens que eu fazia era ele meu companheiro. Sinto uma tristeza, uma vontade de chorar, se "alembrando" daqueles tempos que não há mais de voltar. Apesar de ser patrão, eu tinha no coração o amigo Chico Mineiro, caboclo bom e decidido, na viola delorido e era peão dos boiadeiros. Hoje porém com tristeza recordando das proezas das viagens e motins, viajamos mais de dez anos, vendendo boiada e comprando, por esse rincão sem-fim. Mas porém, chegou o dia que o Chico apartou-se de mim. Cantando Fizemos a última viagem / Foi lá pro sertão de Goiás. / Foi eu e o Chico Mineiro também foi um capataz. / Viajemo muitos dia pra chegar em Ouro Fino aonde nós passemo a noite numa festa do Divino. A festa estava tão boa mas antes não tivesse ido / o Chico foi baleado por um homem desconhecido. / Larguei de comprar boiada. Mataram meu companheiro. / Acabou-se o som da viola, acabou-se o Chico Mineiro./ Depois daquela tragédia fiquei mais aborrecido. / Não sabia da nossa amizade porque nós dois era unido. / Quando vi seus documento me cortou o coração, / vim sabê que o Chico Mineiro era meu legítimo irmão.

Podemos notar na canção os dizeres de Aristóteles, ao afirmar que o mito contém três partes: a peripécia, reconhecimento e a catástrofe. Esse reconhecimento poderá se dar juntamente com a peripécia do personagem mítico em sua ação, como vimos na música Chico Mineiro. Há o reconhecimento no como que foi “dito” sobre o haver ou não haver praticado uma ação. Às vezes a possibilidade do reconhece-se se dá por uma pessoa, um personagem, noutros casos, ao invés, dá-se o reconhecimento entre os dois personagens da trama. A catástrofe é uma ação perniciosa e dolorosa, como o são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e mais casos semelhantes.

Para o violeiro Inocêncio Tadeu, quando está cantando uma música trágica parece que as pessoas se identificam mais com o negativo do que com o comportamento 64

desejável: “as pessoas pensam na história da moda e fica esperando o final para confirmar o que deu errado, onde que tá o erro nas atitudes, e aprende com aquilo ali”.

A estruturação de um mito deve ser simples, precisa observar que não se passe da infelicidade para a felicidade, mas, pelo contrário, da dita para a desdita; e não por malvadez, mas por algum erro de uma personagem, que propenda para melhor do que para pior. Quanto ao caráter dos personagens trágicos, este precisa portar algumas qualidades: ser bom, ser conveniente, ser semelhante e ser coerente. Como mencionamos anteriormente, para Aristóteles há caráter quando as palavras e as ações derem a conhecer alguma propensão, se esta for boa, é bom o caráter. Quanto à composição e estrutura da obra trágica Aristóteles (1991, p. 268) afirma que Em toda tragédia há o nó e o desenlace. O nó é constituído por todos os casos que estão fora da ação e muitas vezes por alguns que estão dentro da ação. O resto é o desenlace. Digo pois que o nó é toda a parte da tragédia desde o princípio até aquele lugar onde se dá o passo para a boa ou má fortuna; e o desenlace, a parte que vai do início da mudança até o fim.

Podemos ver claramente estes elementos presentes em qualquer das músicas trágicas que são cantadas no universo caipira. De acordo com o violeiro João Batista Dantas, a narrativa trágica prende mais atenção do ouvinte, que normalmente para de conversar e passa a escutar a história: “O povo parece prestar mais atenção quando canta uma música de tragédia, por que parece que aquela história fica no pensamento da pessoa. Se for uma história que ele já conhece, ele espera pelo final da música com um certo alivio, mas se ele não conhecer a história cantada ele fica atento até o finalzinho”

Para o outro violeiro, Anísio, a mensagem trágica mexe com os sentimentos do ouvinte: “Tem gente que chega até mais perto para prestar atenção. Às vezes acontece da pessoa suspirar quando termina a moda”.

1.5.1 O trágico na realidade da vida

A vida se constitui num incessante movimento de altos e baixos, e não há nenhuma linearidade na multiplicidade de suas dimensões. Mesmo que aja certa segurança ou possibilidade de controle em determinados aspectos, ao mesmo tempo, em outros, não. A vida humana se plasma num eterno devir, e como as ondas do mar, num 65

incessante jogo de possibilidades. A vida não se constitui numa linearidade previsível e passível de controle. As contradições são interdependentes e criam um movimento vital em torno de tudo o que nos acontece fazendo da vida uma obra trágica. Para Izabela Bocayuva (2008), não é possível dar conta e ter controle de tudo o que nos acontece. Mas certamente fará uma grande diferença a quem estiver preparado para essa condição de alternâncias e vulnerabilidades. Podemos aprender com isso. Frente a cada ação temos a força de nossas escolhas e a possibilidade de alterar os resultados finais quando negativos ou indesejáveis. Como vimos anteriormente, o fato de a vida estar sujeita à mudança o tempo todo, se torna trágica em si mesma. Interpretar nossas ações pode nos ser favorável ou desfavorável em termos de bem estar e autocontrole. De acordo com Bocayuva (2008), aprender a viver por meio da tragédia seria, portanto, aprender a estar pronto para descobrir mais uma vez o caminho que leva até onde já se está, ou seja, viver vivendo.

1.5.2 Representações da vida pela tragédia

O que se passa com o protagonista da história poderia se passar com qualquer pessoa. Ao ver-se na trama da história a pessoa se “com-padece” como o protagonista e se questiona. Experimenta as sensações e os desconfortos do outro como seus. Aprende- se a vida. A tragédia imita a lida com o viver, com o agir, lida essa que necessariamente, sem qualquer garantia prévia, pode se desenrolar seja como boa, seja como má aventurança. Se a vida consiste essencialmente em ação, em decisão, a vida encontra-se sempre em risco, pois, ação é sempre risco. Ora, afirmar que toda ação é risco, isso quer dizer que toda ação é erro, constitutivamente erro com o qual estamos sempre procurando lidar da melhor maneira possível. Dizemos erro aqui não no sentido do que é errado em oposição ao que é certo. A rigor, todo gesto é erro porque todo gesto é equívoco, finitude – necessidade de retomada da decisão. Parece-nos que vem daí a afirmação aristotélica de que se o herói trágico "cai no infortúnio, tal acontece não porque ele seja vil e malvado, mas por força de algum erro”. (BOCAYUVA, 2008, p.48).

Assim como nas histórias trágicas, a vida se autocopia. Cada pessoa descobre seu papel na vida somente na medida em que vive. Só se é, ao se tornar e ao tornar-se. Só se descobre sobre a vida nos trâmites vivenciais. Cada um de nós é um fio trágico na trama do tecido da existência. O ser humano, independente das reviravoltas a que se 66

sujeita ou das coações externas ou internas que sofre, se torna o principal responsável pelo que faz. Na concepção trágica, um fato poderá ter duas dimensões: aquilo que é o mal de um poderá ser o bem do outro. A desgraça de um poderá ser a sorte do outro, e assim, sucessivamente. Visto como a felicidade e a tragédia medeiam a poética musical caipira apontando seus elementos potenciais à prática de educação, passaremos aos fundamentos do fazer-se da pesquisa, do horizonte a ser mirado.

1.6 PESQUISA PARTICIPANTE

Consideramos que a demarcação científica passa pelo olhar da realidade empírica observável e interpretativa. Visamos a co-aprendizagem como um processo. Um processo que leve em consideração e aponte saberes como respostas às necessidades mais profundas. Que oportunize ao ser humano a interação com o mundo, buscando a realização interior por meio daquilo que tem, ou daquilo que faz, por meio das experiências e oportunidades que a vida oferece, e do modo como os outros se comportam em relação a si. Por isso, escolhemos a Pesquisa Participante como sendo a melhor perspectiva metodológica para o desenvolvimento desta pesquisa. Valeria Oliveira de Vasconcelos apresenta um pertinente quadro referencial sobre a terminologia da Pesquisa Ação, que também é tratada como Pesquisa Participante, dentre outros nomes:

A terminologia relacionada à pesquisa-ação é bastante ampla. Thiollent citou diversos termos em diferentes países que se referem à pesquisa-ação: “Pesquisa-ação” – Brasil; “investigação acção” – Portugal; “investigación- acción” Espanha; “action research” ou “participatory action research” – países de fala inglesa; “recherche-action” – França; “Aktionsforschung” – Alemanha; “ricerca azione” – Itália. Há quem a identifique também com a “pesquisa participante” e, apesar de muitos autores afirmarem que existem diferenças intrínsecas entre esta e a pesquisa - ação (LOPEZ DE CEBALLOS, 1987; THIOLLENT, 1988; GOYETTE; LESSARDHÉBERT, 1988, entre outros), em muitos países a terminologia adotada é a mesma. Segundo Rahman e Fals Borda (1991), a “pesquisa participante” recebe, igualmente, várias denominações, a saber: “investigación-acción participativa (IAP)” – Hispano-América; “participatory action research (PAR)” – adotado em países de fala inglesa e do norte e centro da Europa; “pesquisa participante” – Brasil; “ricerca partecipativa” – Itália; “enquête participation” ou “recherche action” – França; e “Aktionsforschung” – Alemanha. Como se pode notar, os termos utilizados para ambas – pesquisa participante e pesquisa-ação – em países como a França (recherche action) e a Alemanha (Aktionsforschung) e outros de fala inglesa (participatory action research) 67

são coincidentes, o que evidencia o fato de que não existe uma definição uníssona do conceito de pesquisa-ação. (VASCONCELOS, 2006, p. 223 – 224)

Adotaremos a terminologia Pesquisa Participante (PP) em consonância com os objetivos do Programa de Mestrado em Educação em que se circunscreve essa pesquisa, que é o de investigar como se articulam e como se comunicam ações e organizações comunitárias e sociais. Entendemos que essa metodologia adequa-se melhor à proposta de inter-relação dinâmica entre teoria e prática prevista no desenvolvimento da pesquisa. Nesta modalidade de pesquisa é fundamental a relação prática com a realidade social, e busca nesta relação uma via de descoberta e de manipulação da realidade. A prática é uma forma de conhecimento, embora não seja o conhecimento todo. Cria-se um compromisso ideológico-político com o objeto da pesquisa, em função do qual se desfaz a condição de objeto, passando a instrumento importante na realização da proposta política do grupo estudado. De acordo com Brandão, (2006, p.27)

A pesquisa participante busca a identificação totalizante entre sujeito e objeto, de tal sorte a eliminar a característica de objeto. A população pesquisada é motivada a participar da pesquisa como agente ativo, produzindo conhecimento, e intervindo na realidade própria. A pesquisa torna-se instrumento no sentido de possibilitar à comunidade assumir seu próprio destino. Ao pesquisador que vem de fora cabe identificar-se ideologicamente com a comunidade, assumindo sua proposta política, a serviço da qual se coloca a pesquisa.

No processo da pesquisa em questão, podemos constatar por meio deste aporte teórico a participação do grupo nos encaminhamentos ocorridos de um encontro a outro. No primeiro encontro realizado, o líder Basílio sugeriu estender o convite a outros violeiros que conheciam, e assim se procedeu. A pesquisa que em seu início contou com a presença de 14 participantes, no segundo foi para 19 participantes, e no terceiro, somou-se 21 participantes. Como apontamos anteriormente, o violeiro José de Fátima se interessou pelos resultados iniciais, após ter lido o livro de Rosa Nepomuceno, passou a assumir o trabalho de líder participante quando subdivididos o grupo nos dois últimos encontros. Brandão observa certas prerrogativas como necessárias à condução da pesquisa participante. Comenta que embora a PP seja um gênero de pesquisa, deverá estar sob 68

atenção de que, como tal, não substitui os outros. Recomenda que a PP acentue o lado da prática, mas só terá a perder se não ostentar base teórica, amadurecimento metodológico e uso conveniente de testes experimentais.

A PP é uma forma válida de descobrir e manipular a realidade. O compromisso ostensivo com determinada ideologia pode também ser uma via de controle ideológico, pelo menos no sentido de que é mais fácil controlar o jogo aberto. Assim, ê possível preservar o lado da pesquisa, não só porque a prática é componente constituinte do processo de conhecimento, mas igualmente porque o processo participativo admite, sem dúvida, fundamentação científica. [...]. Todavia, não é qualquer processo participativo que merece o nome de PP. A pesquisa pode ser um instrumento relevante de processos participativos, mas não é condição absoluta. Mesmo que pudéssemos mostrar que todo processo participativo traz alguma descoberta da realidade, pesquisa é muito mais que isto. E vale o reverso: nem toda pesquisa precisa acarretar participação, no sentido ideológico- político. Haverá momentos em que o distanciamento ideológico (não sua eliminação), até por razões políticas, seja desejável, com vistas a uma intervenção mais fundamentada na realidade. (BRANDÃO, 2006, p.28-29).

Na presente pesquisa com objetivos centrados em analises de concepções, percebemos que houve uma exposição de pontos de vista diferentes sobre algumas questões que notoriamente não eram refletidas pelo grupo em suas práticas. Após debates, houve consenso em alguns pontos, em outros não. Citaremos um exemplo como elucidação: a questão em debate era sobre a traição e a vingança por ciúmes no casamento. Ao passo que alguns confirmavam os pontos de vista cantados na música, outros os questionavam e desafiavam, levando o grupo a pensar o lugar do outro, se colocar na situação da vítima da violência, tentar pensar os porquês que a música omite. As “vantagens” cantadas na música foram questionadas: para quem seriam se ocorressem na realidade da vida do casal? Sobre a validade da PP, Brandão (2006) afirma que mais do que a proposição de teorias que venham justificar e inovar o método da PP, cabe a preocupação de pensar a dimensão social da pesquisa enquanto um dos instrumentos de criação solidária do conhecimento e de possíveis ações de teor político pedagógico. Podemos constatar um “fazer-se com” quando a pesquisa em educação consegue refletir as questões vividas. Pedro Demo (1982), afirma que a Pesquisa Participante visualiza a relação entre sujeito e objeto na maneira conveniente às ciências sociais, nas quais, em última instância, sujeito e objeto se identificam. Precisa haver um relacionamento dinâmico, polarizado e produtivo, entre pesquisadores e atores da comunidade, bem como entre 69

pesquisador/comunidade e a realidade circundante. Para o autor (1982, p. 91), na linguagem já proposta, une-se o enfoque objetivista com o hermenêutico. Brandão (2006, p.18), afirma que “[...] a ideia de que somente se conhece o que se transforma é inúmeras vezes evocada até hoje. [...]”, portanto, a PP poderá vir a ser um exercício prático de acesso às questões sociais, bem com um instrumento dialógico de aprendizado partilhado, e assim, um meio educativo e formador de consciência política. A roda de conversa é uma das estratégias para a PP e muito favorável à construção gradativa de um saber popular dos movimentos populares e de seus integrantes. Conversando a gente se entende!

1.7 A RODA DE CONVERSA

Tratando das definições de roda de conversa, Brandão (1983), propõe que conversar é fazer a palavra ir de um lado para outro. É o ir e vir da palavra em roda. É deixar o verso circular entre os participantes sem a intervenção do pesquisador. A priori, desde os primórdios da humanidade a roda de conversa se desenvolveu em torno da fogueira, apresentando-se como uma dinâmica de grande relevância para a educação. Tornou-se espaço privilegiado para o ato de ensinar e aprender. Ao redor do fogo, iluminava-se as mentes e os corações dos convivas. Ainda é possível presenciar a prática das rodas de conversas no entorno de fogueiras. O fogo elucida a disciplina, a emoção, a conversa, a descontração, a magia, a imaginação. O fogo ganha tônicas especiais, dando a esta atividade, algo de prazer, espontaneidade, descontração, romantismo e atração entre os participantes. Uma conversa puxa outra conversa. Pelo passa-repassa, no “dedinho” de prosa, o conto, o causo, a história, criam e recriam a imaginação, o calor humano, a reflexão, a emoção, o pertencimento, o espírito de grupo e o bem-estar, a contemplação e, até mesmo, os intervalos de silêncio. A roda de conversa acompanha os espaços sociais e civilizatórios da moradia percorrendo de seu início, nos entornos da fogueira no centro da aldeia, ao espaço do terreiro da casa isolada. Bem mais tarde, ao do “rabo do fogão”, em torno do calor e da comida. Posteriormente, ao alpendre, no acolhimento das visitas, ao pós-moderno espaço da sala de jantar, até ao hodierno espaço gourmet. (Dito “cantinho do 70

guerreiro”)13 Já na esfera coletiva, o percurso vai do entorno da fogueira ao da praça pública, da festa à instituição. Pela roda de conversa, como espaço educativo, os membros ouvem, com reverência e atenção, conselhos de educadores e líderes, narrativas dramáticas e/ou alegres de outras experiências humanas. Espaço favorável de fluidez da linguagem e seus códigos significativos. Momentos que servem como meios eficazes de instrução, divertimento, exposição de fatos, histórias, anedotas, canções, recitas, declamados, poesias e prosas de fundo educativos, e exercícios de jogos e iniciativas de real proveito para a vida prática. Durante a roda de conversa os sujeitos da pesquisa ouviram uns aos outros se prestando cumplicidade nos assuntos debatidos. A palavra circulou livre, mas era notório que quando alguém falava os outros ouviam. Quando o assunto se polemizava (sobre o tema do amor e do casamento houve diferentes opiniões) os sujeitos não discutiam muito seus pontos de vistas, e logo o assunto acabava. Quando o assunto gerava concordância então a discussão “pegava fogo”. Memórias e mais memórias, risos, causos, casos, lembranças, até o canto de trechos de músicas, tudo fazia parte. Nestas situações gerava conversas paralelas entre os circunvizinhos, e várias vezes foi preciso da intervenção para realinhar a conversa no foco da discussão. Para as professoras Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Nara Maria Guazzelli Bernardes14 (2007), a Roda de Conversa nunca perde sua potencialidade educativa como método privilegiado da socialização do saber sem o uso da palavra como instrumento de poder e superioridade.

A Roda de Conversas é um meio profícuo de coletar informações, esclarecer ideias e posições, discutir temas emergentes e/ou polêmicos. Caracteriza-se como uma oportunidade de aprendizagem e de exploração de argumentos, sem a exigência de elaborações conclusivas. A conversa desenvolve-se num clima de informalidade, criando possibilidades de elaborações provocadas por falas e indagações. (SILVA; BERNARDES, 2007, p. 54).

13_ A expressão “cantinho do guerreiro” refere-se ao espaço da churrasqueira, onde o anfitrião recebe seus amigos para conversar, beber e confraternizar-se. 14_ Silva e Bernardes (2007) apresentam uma pertinente reflexão intitulada “Roda de conversas – Excelência acadêmica é a diversidade”. Reflexão desenvolvida numa roda de conversa, mostrando a atualidade e as vantagens desta prática no meio acadêmico, em que professores e pesquisadores de universidades nacionais, do Mali e dos Estados Unidos, trocaram ideias, levantaram indagações e ensaiaram encaminhamentos visando à redefinição do que seja excelência acadêmica, na perspectiva da diversidade social e étnico-racial que compõem as sociedades. 71

A roda de conversa com intencionalidade educativa exige planejamento e reflexão constante. O articulador é ao mesmo tempo participante e mediador. Sua função é organizar e atribuir sentidos às palavras. Fazer circular a vez e a voz de todos e as exigências da disciplina. Coordenar diferentes pontos de vista. No decorrer desta pesquisa nos atentamos para que as opiniões fossem expressas livremente. Dávamos o tempo que fosse necessário para a fruição das opiniões, no entanto, mantínhamos o foco de acordo com os objetivos propostos. Na roda de conversa o participante tem a oportunidade de expressar seus pensamentos de maneira informal, e se trata de uma atividade fundamental para ampliar sua competência comunicativa. Espaço de vez e voz do sujeito dizer a própria palavra; ser autor de seus pensamentos e expressá-los com segurança. Manifestar sua opinião e seu ponto de vista, suas experiências vividas ou imaginadas. Pensamos que a roda de conversa possibilita a integração e colaboração com o outro, construindo sua objetividade. O sujeito amplia sua oralidade, ouve o seu eco. Lugar de expressão e naturalidade de fala e escuta. Ser autor de suas falas. A partir de um tema gerador a roda de conversa torna-se um espaço favorável para elaborar, relacionar, confrontar novos conhecimentos com suas vivências e conhecimentos anteriores, além de aprender ouvir o ponto de vista e a opinião outro.

1.8 TEMA GERADOR

A análise dos dados coletados na tessitura da roda de conversa teve por base a temática da cultura caipira presente em algumas músicas raízes sertanejas que foi efetivada a partir do foco dos objetivos da pesquisa referidos anteriormente na introdução. A análise musical partiu da realidade do caipira para a sistematização do/s ensino-aprendizagens, transmitidos em suas letras pela utilização de “temas geradores”. Geradores por que, segundo Paulo Freire (1987), contém em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas (eixos temáticos e subtemas) que, por sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas. O autor pauta-se na concepção metodológica dialética, numa perspectiva do educador utilizar-se de uma práxis libertadora (pensar a prática-teoria-prática como forma de construir seu fazer-pensar). Por metodologia dialética entendemos a 72

possibilidade de busca da raiz das questões, abordando aspectos contraditórios entre si, de forma processual, com avanços, retrocessos e rupturas. Para Freire (1987), a prática do “educador humanista - revolucionário”, deve “colocar ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema que desafia e, fazendo-o, lhe exige uma resposta, não a um nível intelectual, mas ao nível da ação”. (FREIRE,1987, p. 115). Para a obtenção do tema gerador, tivemos presente a investigação do universo vocabular e estudo dos modos de vida na localidade em que a pesquisa efetiva seus objetivos. Levamos em consideração que a realidade subjetiva a visão do sujeito de como percebe sua própria realidade e sua disposição de enfrentamento e superação na construção de sua autonomia. Do como se vê como sujeito de participação cultural. Para Antônio Fernando Gouvêa (1996) todo tema gerador é um problema vivido pela comunidade, cuja superação não é por ela percebida. Ele envolve: apreensão da realidade, análise, organização, e sistematização, originando programas de ensino a partir do diálogo. Portanto, é fundamental dialogar com os educandos para conhecer, objetivamente, qual o nível de percepção da realidade, bem como a consciência de sua condição e visão de mundo, suas necessidades desejos e aspirações. De acordo com Maria Emília de Castro Rodrigues (2003, p.1) o tema gerador é o ponto de partida de toda atividade com unidade de significação, falada, lida ou escrita.

A combinação de “TEMAS GERADORES” constitui uma totalidade semântica, por juntos trazerem um sentido amplo e encaminhar para o que o ser humano tem de mais fundamental: a criação, fecundação, movimento, mudança e desenvolvimento pela via do acesso ao conhecimento elaborado (conteúdos, habilidades, atitudes), a cultura, a ciência construindo e reconstruindo saberes teórico-práticos, retornando à prática social compreendida de forma mais elaborada e sistematizada a fim de nela intervir e transformar [...].

O conjunto de temas não se encontra predeterminado, ele é construído e se constrói durante as relações. De acordo com Freire “não pode ser encontrado no homem isolado da realidade, nem tampouco na realidade separada do homem, mas se encontra somente pela relação ser humano- mundo. ” (FREIRE, 1987, p.115). Para o autor “[...] a investigação temática é construída por meio de um esforço comum da consciência da realidade e, autoconsciência, que a inscreve como pondo de partida do processo educativo, ou da ação cultural de caráter libertador”. (FREIRE, 1987, p. 117). 73

Uma investigação temática, não se deve só ao fazer do educador, mas sim, em participação com este, os homens a serem investigados com o seu conjunto de dúvidas, de anseios e de esperanças. Com a coparticipação sairá a base do programa educativo cuja prática está sustentada na reciprocidade da ação. Na presente pesquisa a temática da felicidade da tragédia perpassou toda análise de dados e outras palavras que surgiram no contexto da pesquisa também orientaram a escolha do universo musical para ser analisado de acordo com seus objetivos. Dentre as palavras tratadas na análise dos dados algumas foram trazidas pelos sujeitos da pesquisa direta ou indiretamente na roda de conversa, e outras por interesse do próprio pesquisador. As principais palavras geradoras tratadas no quarto capítulo foram dentre outras: mulher, casamento, o amor, a família, inspiração poética, natureza, lua, educação, idoso, progresso, religiosidade, identidade, lazer. Em nossas análises partimos da interpretação destas palavras, na ressonância das vozes obtidas na coleta de dados da pesquisa e nas letras analisadas. Pelo tema gerador e palavras geradoras procede-se a problematização (questões desafiadoras postas pela prática social), dúvidas, discussões e questionamentos dos conhecimentos e da realidade. As questões da realidade ao se interligarem em uma rede de subtemas possibilitam a busca de uma maior totalidade e aprofundamento da temática. Por intermédio de temas geradores e palavras geradoras se torna perceptível a consciência do vivido, fato que favorece a ampliação do conhecimento que os sujeitos têm de sua própria realidade. Codificar e decodificar esses temas buscando o seu significado social ajuda a compreender melhor a realidade a fim de poder nela intervir criticamente. Como vimos, a cultura caipira produz arte, e por intermédio de sua expressão musical canta suas concepções de felicidade e de tragédia, em cujo “lócus” a pesquisa participante indica olhares e vozes surgidas na roda de conversa, intermediados por palavras geradoras. No próximo capítulo apresentaremos quem é o caipira, com quais olhos o vêm, e como sua música, tida como música raiz sertaneja, porta dados de sua historicidade e de sua cultura.

74

CAPÍTULO 2 O SOM E O CHORO DA VIOLA: O QUE SE ENSINA E O QUE

SE APRENDE NA MÚSICA RAIZ SERTANEJA.

2.1 FORMAÇÃO DA IDENTIDADE CAIPIRA

Consideramos que a formação da identidade caipira vai da caricaturação à imagem. Julgamos importante considerar inicialmente duas ideias mencionadas por Antônio Candido (2010) sobre a cultura caipira antes de tratarmos diretamente da temática “identidade caipira”. a) A formação da cultura caipira está relacionada aos processos de ocupação do território brasileiro, no movimento que avançava para o interior e explicitava o surgimento da “fronteira” entre dois mundos, o “civilizado” – do colonizador – e o “atrasado” – este representado pelo nativo – ao mesmo tempo em que sucedia a sua mistura, da qual nasceria a cultura caipira. b) A cultura caipira foi marcada por significados negativos, relacionados às ideias de homem atrasado, de ausência de uma cultura clássica, do sertão como espaço de ausência, de vazio. A cultura caipira foi então, ao longo dos tempos, considerada como uma cultura rústica, sem valor social.

Quanto à situação geográfica, como o já mencionado anteriormente, a conjunção da identidade do homem trabalhador da terra no âmbito da cultura caipira, de acordo com Bandini e Dias (2010), teve sua gênese na região Paulistânia (que se estendia entre os estados de São Paulo, Mato Grosso, Paraná, Minas Gerais, e Mato Grosso do Sul), com a instalação de moradias por meio das bandeiras, constituídas de acordo com a localidade e com os processos históricos oriundos de diferentes grupos étnicos e referências culturais. Com o avanço do bandeirantismo ao interior do Brasil, a partir do séc. XVI, criou-se uma fronteira entre dois mundos contrastantes: o “civilizado”, representado pelos descendentes brancos colonizadores de cultura clássica, e o “atrasado”, representado pelos nativos e trabalhadores da terra. Sob esta égide é que a cultura nascente passou a ser concebida e estruturada. Para Souza (1986), foi da mistura entre esses dois mundos que surgiu a figura do caipira, mescla de branco e índio com pouco de sangue negro. 75

Ilustração 6 – Caipira picando fumo

Fonte: brasilartesenciclopedias.com.br/tablete/nacional/almeida_junior_jose_ferraz03.php Acesso em: 14 ago. 2014.

O fato de morar num espaço de características específicas influencia seu modo de vida, assim o caipira foi tido como aquele que é acanhado, do mato, lavrador, roceiro, ou seja, o que roça o mato. Diferentemente do espaço e do sujeito urbano, o caipira se pauta pelo coletivo, por convivências mediadas de mutirões, práticas religiosas e festivas, que garantem a reprodução da sociabilidade entre si, na qual a música raiz se torna um elo fundamental. Brandão (1983) o aponta como aquele que perambulava às margens de outras áreas que foram surgindo, como as vilas, fazendas e arraiais. Um sujeito marcado negativamente pela miséria social e política, mas por outro lado, positivamente “mantinha-se portador de peculiaridades marcantes como a religiosidade, causos, contos, comida, dança e a música”. (BRANDÃO, 1983, p.10). A música - interesse específico de nossa investigação – associava- a rituais religiosos, ao trabalho ou lazer, demonstrando dessa forma, o elo de sua sociabilidade com o mundo em seu entorno. Tudo se torna tema de inspiração: dentre sua diversidade lembramos alguns como o cheiro da relva, o canto dos pássaros, o cafezal em flor, o 76

mugir do gado, o assoviar dos ventos, o pássaro noturno, a poeira da estrada, a porteira de entrada, a festa dos santos padroeiros, o baile, a colheita, o plantio. Cornélio Pires (citado por Brandão, 1983) critica aos que anteriormente consideraram o camponês brasileiro coberto de ridículo, como inútil, vadio, ladrão, bêbado, idiota e ‘nhampam’. Para Pires estas “visões” como as de “homens sem conhecimento direto do assunto”, é que “dão corpo ao seu pessimismo, julgando o todo pela parte podre” (BRANDÃO, 1983, p.10). O autor reconhece que graças ao trabalho dos lavradores, é que se povoam os recantos do sertão, ao lado das estradas por onde o bandeirante passou e, assim, reconhece o caipira como o verdadeiro colonizador das franjas pioneiras de conquista do estado. Note-se que a cultura é chamada “rústica” devido à ausência de leis e regras de organização destas sociedades. De acordo com Candido, 2010, p.25

[...] o universo das culturas tradicionais do homem do campo; as que resultaram do ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por transferência e modificação dos traços da cultura original, seja em virtude do contacto com o aborígine.

Consideraremos em nossa análise algumas das visões que contribuíram para esta caricaturação do caipira - dentre as quais, as do viajante francês Saint-Hilaire e do escritor brasileiro Monteiro Lobato. Monteiro Lobato escritor, editor e importante colaborador na implantação do mercado editorial brasileiro, participante de debates sobre a construção da sociedade brasileira, de acordo com Edilson Chaves (2006), aprofundou um discurso que veio a ser fundamental na construção negativa do homem rural, presente na figura de seu personagem Jeca Tatu. Para Chaves (2006), o Jeca Tatu tornou-se um símbolo negativo de um tipo humano presente no Brasil pós “nascimento” da República: era um homem incapaz de realizar tarefas simples num mundo baseado no cientificismo.

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Ilustração 7 – Jeca Tatu

Fonte: www.infoescola.com/biografias/jeca-tatu/. Acesso em: 14 ago. 2014.

Utilizando-se da literatura, Lobato (1984, p. 282 apud CHAVES, 2006, p.30) menospreza os caboclos ribeirinhos referenciando-os como “Parasitas do rio e da lezíria [...] indolentes e ruins, incapazes, restolho de gente, lesmões humanos”. Em 1914, o autor publicou no jornal O Estado de São Paulo “Velha Praga”, conto que daria origem a uma publicação em 1918, “Urupês”, no qual desaprovava as práticas dos caboclos, criticando-os quando esses queimavam a mata para o plantio, prática condenada e contestada pelos fazendeiros mais modernos da época. Por considerar o Jeca Tatu como um indivíduo ignorante, sem conhecimentos de leitura e escrita, Lobato (2005, p. 172 apud CHAVES, 2006, p.29). enfatizava a ausência de uma consciência política e cidadã, no artigo “Urupês"30

O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção do país em que vive. Sabe que o mundo é grande, que há sempre terras para diante, que muito longe está a Corte com os graúdos e mais distante ainda a Bahia, donde vêm baianos pernósticos e cocos. [...] Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos a que chama “sua graça”. [...] O fato mais importante de sua vida é sem dúvida votar no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta do casamento, sarjão

30 Um tipo de fungo conhecido como “orelha de pau” encontrado em madeira em decomposição. 78

furadinho de traça e todo vincado de dobras; entala os pés num alentado sapatão de bezerro [...] vai pegar o diploma de eleitor às mãos do chefe, coisa que lhe retém para maior garantia da fidelidade partidária.

Para Lobato (1956, p. 289 apud CHAVES, 2006, p.29) as práticas do Jeca o caracterizavam como um destruidor da natureza, pois enquanto esta se explodia em ardor e exuberância dos mais variados modos de vida,

[...] o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive.

Acreditamos ser relevante um aparte ao autor Monteiro Lobato, que ao longo dos anos, redime sua visão e concepção do caipira, e seu personagem Jeca Tatu, passaria de réu à vítima do sistema governamental. De acordo com Chaves (2006), o Estado Brasileiro, para Lobato, é o verdadeiro culpado pela má condição em que vivia o homem do campo, sobretudo no que se refere à higiene. Lobato (1951, p. 285 apud CHAVES, 2006, p.30)

É mister curando-o, valorizar o homem da terra, largado até aqui no mais criminoso abandono. Curá-lo é criar riqueza [...]. Nossa gente rural possui ótimas qualidades de resistência e adaptação – é boa parte índole, meiga e dócil. O pobre caipira é positivamente um homem como o italiano, o português, o espanhol. Mas é um homem em estado latente. Possui dentro de si grande riqueza de forças. Mas força em estado de possibilidade.

De certa forma, Monteiro Lobato inicia sua redenção, passando a tratar a figura do Jeca Tatu como um ser doente e necessitado de tratamento. Pode-se dizer que o Jeca não é assim, ele está assim. Mesmo mudando o lado, a moeda continua a mesma, pois não melhora muito sua visão sobre o caipira que, para ele, continua sendo um pobre coitado que precisa de ajuda. Importante mencionar que a e visão de Lobato sobre o caipira era recorrente ao seu tempo, e à ideologia republicana nascente, muito embora outros pensadores discordem, mas foi o que mais contribuiu para a caracterização do estereótipo caipira da cultura popular. Nos fins do séc. XIX, outro autor que contribui para a caricaturação do personagem em questão, foi o francês Augusto de Saint-Hilaire, cientista e cronista social, que em vigem pelo interior do Brasil, vindo de Minas Gerais e percorrendo pela 79

Província de São Paulo, “de passagem” viu e registrou em suas crônicas, sua percepção e configuração do sujeito caipira e de sua cultura. Na crônica “Viagem à Província de São Paulo”, Saint-Hilaire deixa suas impressões considerando os caipiras como homens de “estúpida indolência, embrutecidos pela ignorância, pela preguiça, pela falta de convivência com seus semelhantes e, talvez, por excessos venéreos primários, não pensam: vegetam como árvores, como as ervas do campo”. [...]. Saint-Hilaire viu neles “homens de desordem e de imundície reinantes em seus corpos e cabanas. [...] provavelmente oriundos das raças africana, americana e caucásica misturadas entre si, eram de feio aspecto e excessivamente imundos” (BRANDÃO, 1983, p.5). Quanto a seus trajes, posturas e aspectos físicos, Brandão (1983, p.5) cita os dizeres de Saint Hilaire:

Os homens se vestem calça de tecido de algodão grosseiro, configurando-se com os modos abobados e estúpidos; as mulheres vestiam uma camisa e uma saia simples. Tinham os cabelos desgrenhados e o rosto e o peito cobertos de sujeira. Quanto às crianças pareciam enfermas e eram tristes e apáticas. Pode- se acrescentar, ao demais, que à indolência juntam eles, geralmente, a idiotice e a impolidez. Pela cor e textura da pele e pela extrema magreza demonstravam servir-se de alimentação precária e insuficiente. As impressões de Saint-Hilaire é que “parece que esses infelizes tinham muita preguiça para o trabalho, só cultivando o estritamente necessário à satisfação das próprias necessidades”.

Até hoje vemos o tratamento “caipira” em situações em que as pessoas estejam vestindo-se de forma inadequada, sem combinações, grosso modo, com peças desparceiradas, ou mesmo o tratamento de “caipira”, àqueles que não sabem falar direito, andar, comer, ter “classe”! Para o mesmo autor, o fato de alguns estudiosos da cultura paulista descobrirem que São Paulo tinha como tipos o “caipira” e o “caiçara” (que seria um caipira do litoral) possibilitou esse sujeito da dita cultura invisível deixar de ser “uma gente” miserável de cultura rústica e tornar-se o agente da cultura popular do estado. Mesmo com visibilidade mínima, tornou-se um possível objeto de estudo. A ideia de que a cultura europeia era superior à cultura brasileira começou a ser contestada na década de 1870, ocasião em que alguns intelectuais brasileiros passaram a pensar positivamente na imagem do brasileiro. O reconhecimento da figura do indígena, 80

do africano, do europeu e do mestiço na configuração de uma compreensão sobre a brasilidade, aos poucos começou a surgir nos cantos, nos contos e nas poesias. De acordo com Veloso (2006), em fins do séc. XIX e início do XX, a literatura brasileira defendeu a ideia da brasilidade nativa inspirada no sertanismo, no indianismo, em tudo o que era da nossa terra. Um destes renomados intelectuais foi Euclides da Cunha, que publicou em 1902, Os Sertões, considerando o sertanejo como sendo símbolo da nacionalidade. Com ele, a raça e a terra foram assumidas como fator da originalidade cultural brasileira. Neste contexto, uma obra de arte, a pintura de Almeida Junior - O Violeiro - de 1899, também veio chamar a atenção para a cultura do interior brasileiro retratando os costumes da gente caipira, inclusive dos modernistas da Semana de 1922.

Ilustração 8 – O Violeiro

Fonte: www.pitoresco.com/laudelino/almeida_junior/almeida_junior.htm. Acesso em: 14 ago. 2014.

Mediante os ideais do Modernismo, que propunha, nas primeiras décadas do séc. XX, a consolidação uma identidade nacional a partir de uma imagem do brasileiro nato, de origem e cultura genuinamente nacional, dá-se um reconhecimento ao caboclo brasileiro, que se identificaria como elemento do povo. 81

De acordo com Veloso (2006), a Semana de Arte Moderna de 1922 teve no modernista Mario de Andrade a relevante expressão que apontou para a necessidade de construção e consolidação de uma identidade nacional. Segundo o autor, esse movimento buscou nas culturas populares rurais os elementos constitutivos de uma autêntica música brasileira. Surgiram no Brasil de então os estudos de resgate dessa cultura, denominada popular, e novas discussões passaram a ser travadas na direção de se opor passado e presente. A música passou a ser entendida como uma das formas de resgate do passado. Esta tradição descrita na literatura para o caboclo buscou ressignificar uma cultura rústica e dar-lhe uma nova formulação. A Música Raiz Sertaneja procurou, ao longo dos anos, se desfazer das imagens negativas do Jeca Tatu e traduzir para o imaginário coletivo um Brasil rural singular, cheio de coisas boas e belas. De seus inícios aos dias atuais a cultura caipira sobrevive no imaginário nacional, sobretudo em letras de músicas, normalmente produzidas pelo homem urbano. Dentre tantos poetas caipiras, citaremos alguns, cujas criações estão no universo da presente pesquisa. Compositores que com mãos na roca da cultura caipira manejaram os fios de seu grande tecido cultural tornando-se os maiores representantes da poesia musical caipira: Cornélio Pires, Angelino de Oliveira, Paraguassu, Serrinha, Tupinambá, Teddy Vieira, Raul Torres, João Pacífico, Renato Andrade, Piraci, Lourival dos Santos, Tião Carreiro, Capitão Furtado, entre outros. Os autores das mensagens cantadas na música raiz informam e referenciam o modo de vida cultural do tecido social brasileiro, apontando dados da constituição histórica nacional, em que o caipira demonstra sua percepção e seus valores e sua visão de realidade. A seguir vamos perceber que sua visão de realidade, apesar de aparecer usualmente como vítima e esquecido pelas políticas e poderes públicos, ele não se cala e, na maioria das vezes, tem um olhar positivo em seu papel cidadão.

2.1.2 Os passos do caipira: marcas entre chegadas e retiradas

Juntamente com bandeirismo, a partir do sec. XVI, o lavrador caipira se caracterizou em ser um produtor ambulante, nômade. Não por opção própria, mas por ser empurrado de um sertão que conquistou, a outro a conquistar, até ser novamente 82

expulso de suas terras. O caipira sucedia o bandeirante e precedia o senhor de terras. A música “Bandeirante Fernão”, composição de Aldo Benatti / Carrreirinho, interpretação de Zé Carreiro e Carreirinho (1953), tece uma exaltação sobre os bandeirantes no percurso São Paulo–Bahia, e retrata, na visão deste autor, o heroísmo daqueles que antecederam o caipira. Ai a bandeira Fernão Dias com seus homens escolhidos / Com Zé Dias Borba Gato bandeirante destemido / E o capitão João Bernal, padre Veiga decidido / Foram os guias da bandeira ai ai ao sertão desconhecido - Também Matias Cardoso Garcia Paes Francisco Dias / E Antonio Prado Cunha foram servindo de guia / Junto Antonio Bicudo entraram na mataria / Índio escravo e mamelouco ai ai animais de montaria - Frei Gregório Magalhães deu benção e deu alento / Dizendo a missa campal frente ao mosteiro são bento / E o bandeirante partiu com grandes carregamento / Cargueiro de munição ai ai fumo em rolo e mantimento - Ai a bandeira avançou na serra da Mantiqueira / Cataguaz camanducaia pela selva brasileira / Porluco e sapucaí foi avançando a bandeira / Passou sabará bossú ai ai pela mata traiçoeira Vituruna e paraupeba o bandeirante seguia / Rio das velhas e roça grande sumidouro prosseguia / Passando por tucumbira e a mata da pedraria / Cerro frio e rio doce ai ai foram chegar na bahia -. Morreu na selva em delirio o bandeirante Fernão / Sete anos de martírio em conquista do sertão / No lugar das esmeraldas que só foi uma ilusão / Surgiu São Paulo grandioso ai ai o diamante da nação.

Se por um lado sua vida se constituía à deriva pelo modo como tratava a natureza, por outro, provavelmente mais espinhoso, originava-se do como ele se relacionava com os senhores rurais por meio do trabalho e de tratos sobre questões inerentes à posse e uso da terra. A música “O mineiro e o italiano”, composição de Teddy Vieira / Nelson Gomes, interpretada entre outros, por Tião Carreiro e Pardinho (1964) narra a luta pela posse de terra e como o caipira via as relações de poder nas questões da posse da terra para a sobrevivência familiar. A terra era uma questão de direito e de vida. O mineiro e o italiano viviam às barras dos tribunais / numa demanda de terra que não deixava os dois em paz / Só de pensar na derrota o pobre caboclo não dormia mais / O italiano roncava nem, que eu gaste alguns capitais / Quero ver esse mineiro voltar de a pé pra Minas Gerais. - Voltar de a pé pro mineiro seria feio pros seus parentes / Apelou para o advogado: fale pro juiz pra ter dó da gente / Diga que nós semos pobres que meus filhinhos vivem doentes / Um palmo de terra a mais para o italiano é indiferente / Se o juiz me ajudar a ganhar lhe dou uma leitoa de presente - Retrucou o advogado: o senhor não sabe o que está falando / Não caia nessa besteira senão nós vamos entrar pro cano / Este juiz é uma fera, caboclo sério e de tutano / Paulista da velha guarda família de 400 anos / Mandar leitoa para ele dar a vitória pro italiano - Porém chegou o grande dia que o tribunal deu o veredicto / Mineiro ganhou a demanda, o advogado achou esquisito / Mineiro disse ao doutor: eu fiz conforme lhe havia dito / Respondeu o advogado que o juiz vendeu e eu não acredito / Jogo meu diploma fora se nesse angu não tiver mosquito - De fato, falou o mineiro, nem mesmo eu tô acreditando / Ver meus filhinhos de a pé meu coração vivia sangrando / 83

Peguei uma leitoa gorda, foi Deus do céu que me deu esse plano / Numa cidade vizinha, para o juiz eu fui despachando / Só não mandei no meu nome Mandei no nome do italiano.

Inicialmente o caipira preparava suas terras para o cultivo de seus alimentos derrubando a mata, roçando e queimando seus restos até a terra estar em condições de plantio. Por esta prática repetida por anos seguidos, a terra enfraquecia devido ao seu constante uso, e principalmente, por ser utilizado o fogo, como meio de limpeza e combate a pragas. Após alguns anos, o agricultor abandonava as terras pouco férteis para a lavoura e mudava-se para outro sertão, repetindo o mesmo processo. Outro fator que também fazia do caipira um itinerante, eram os chamados de “parceiros” ou “meeiros”31, quando chegavam já em terras desmatadas devido a combinados com o “dono”, após alguns anos de “lavoura”, saíam das terras, deixando um “pasto formado” para o gado da fazenda. De acordo com Brandão (1983), aqui reside uma diferença fundamental na concepção e visão que se deu ao caipira, pois esse caipira que alguns autores viram beirando a miséria, atribuindo-lhes como própria a autoria de inaceitável indolência, preguiça e desleixo, em muitos casos, eram sujeitos trabalhadores sem a posse legal da terra, moradores “de favor” em alguma fazenda cuja propriedade por certo expulsara outros caipiras. Se não, quando eram ocupantes posseiros de uma franja de sertão “sem dono”, de onde seriam um dia expulsos também. Trabalhadores da terra sem direito a ela. Na música “O patrão e o camarada”, composição de Moacyr dos Santos / Jacozinho, interpretação de Jacó e Jacozinho (1972), retrata por meio de uma metáfora as relações familiares e consequentemente, a transposição para as relações entre patrão e empregado movidas pela exploração.

Muito tempo fui patrão agora sou camarada / Eu fui patrão do meu pai na minha infância passada / O meu pai saia cedo como frio da madrugada / À tarde a roupa do velho de suor estava molhada / O velho pulou miúdo sozinho fazia tudo / E eu não fazia nada. - Meu pai trabalhou pra mim e me dava proteção / Parecia um escravo do filho do coração / Pra deixar tudo o que tenho encheu de calo as mãos / No dia que eu me casei fiz a minha união / O meu pai foi libertado passei a ser empregado / E deixei de ser patrão. - Agora sou empregado do filho que deus me deu / Enfrentando a mesma luta que papai lutou e venceu / Percorrendo os caminhos que o velho percorreu / Só trabalho pro meu filho a minha ilusão morreu / Ele tem vida folgada, pois o grande camarada. / Lá de casa agora é eu. - Minha vida de casado pode crer não é ruim / Nossa infância é passageiras como flores do

31 - Nomes relativos à troca da mão de obra familiar por favores de moradia e porcentagem da colheita. 84

jardim / Não adianta reclamar nosso mundo é mesmo assim / Assim vai a humanidade caminhando até o fim / Ninguém vai sair do trilho hoje eu faço pro meu filho / O que meu pai fez pra mim.

Em outros casos, mesmo pobre, o sitiante, dono da terra, ainda que de porção pequena, habita a sua terra e nela trabalha com sua família, em um mesmo lugar, produz o alimento caseiro e o excedente, cuja venda, supre outras necessidades. O seu relacionamento com o trabalho e a terra se dá de forma progressiva e planejada. Procura acrescentar benfeitorias no sitio e adquirir animais coadjuvantes ao trabalho e implementos agrícolas. No entanto, por vezes, não consegue sustentar seus gastos e precisa recorrer a financiamentos particulares para sobreviver. Por este fato, em muitos casos, lhe são impostas relações de dependências, assim como nos casos já mencionados. A música “Versos ao pé do homem”, composição de Geraldinho / Tião Carreiro, intepretação de Tião Carreiro e Pardinho (1988), retrata a crise no campo, (panorama da política nacional nas questões relativas à reforma agrária) e mostra um caboclo que perde suas terras para o banco e recorre ás instancias politicas superiores buscando possíveis soluções. Deixei distante a família Pra vir a Brasília senhor presidente / Conduzido por um tema de um sério problema / Que acaba com a gente Minha bagagem é o fracasso / Mas trago um abraço dos amigos meus Deixei toda a santaiada e fiz a jornada Pra falar com Deus - Por não marcar audiência Com sua excelência se eu for barrado / Alguns dos seus constituintes Que são meus ouvintes transmita o recado / Não peço terra de graça, mas que algo faça Pra isso é que eu venho / Por uma ajuda de custo Não sei se é justo perder o que eu tenho - Quando eu colhi meu café Eu pensei até em ser bom começo / Mas como foi tabelado Eu fui obrigado a vender no seu preço / Somente as terras que haviam Dei por garantia no financiamento / Foi quando veio a geada E na área plantada colhi dez por cento - O banco quer minhas terras Já tombei na guerra na luta roceira / Para salvar meu futuro que o senhor procuro Por minha trincheira / Mesmo o gerente do banco mostrava ser franco E meu grande amigo / Com esta queda maldita Agora ele evita de falar comigo - Minha herança de roça É essa mão grossa que trago por prova / Creio senhor presidente ser eficiente A república nova / Pensava em ser tão feliz De tudo eu fiz pra não perder o nome / Mas minha fé me alicerça Com essa conversa aos pés do homem

Diferentemente do tipo sitiante, ao lavrador nômade, ao caipira ambulante, sem posses, não compensava ocupar a terra com mais bens do que os que pudesse levar nas costas ou no lombo de parcos animais de carga, quando saísse da propriedade em que trabalhava e morava. A história de sua cultura nem sempre foi escrita com tintas favoráveis ao caipira, sendo que em alguns casos, quando da expropriação de suas terras, não oferecia 85

resistência e nem possuía acesso à justiça, levando desvantagem frente ao senhor ou patrão. Com o avanço da cultura do café e a estrada de ferro, na chamada região Paulistânia, muitos foram forçados a vender as suas posses, quando não as tiveram antes usurpadas por grandes proprietários que chegavam à região com títulos de terras nas mãos. Outras vezes, a conquista se dava por meio da violência que, mesmo quando armada, justificava-se como legitima. Restava então, aos caipiras, a desgastante opção de migrar para outras paragens, enfrentar novos recomeços, ou então, permanecer nas terras como moradores, agregados, trabalhadores diretos ou parceiros. Em alguns casos, era permitida ainda, durante alguns anos mais, a posse precária de porções pequenas de terra para o plantio das “roças de comida”. Poucos, talvez os mais “prósperos”, mantiveram posses e sítios, onde para além da própria subsistência, passavam a produzir para a da cidade. Isto não ocorrendo, restava-lhe o abandono da vida rural e sua mudança para a cidade. Mediante os desafios encontrados na nova forma de vida, e frente à perda da identidade, e principalmente, à mudança da economia de subsistência, uma vez que na cidade precisava comprar absolutamente de tudo o que produzia, a preços muito mais elevados do que vendia na roça, ele sonha em voltar e recomeçar tudo de novo. A música, “Se o governo me ajudasse”, composta por Lourival dos Santos e Moacyr dos Santos, interpretada por Jacó e Jacozinho (1964), traduz esta realidade e mostra o apelo do caipira à política governamental sobre a Reforma Agrária.

Abandonei a cidade não quero voltar pra traz enfrentei o meu sertão derrubando os matagais. Meu machado e minha foice nas matas deixou sinais fiz picada e fiz caminho para transportar cereais se o governo me ajudasse eu fazia muito mais - O Brasil é terra rica tão cheia de minerais o que falta no sertão é homem e materiais cultivei a terra bruta só na base de animais eu não pude fazer muito só fiz o que fui capaz se o governo me ajudasse eu fazia muito mais combati com as formigas que foram minhas rivais plantei milho e feijão e formei canaviais. Algodão e batatinha plantei muitos cafezais fiz até roça de arroz na beira dos pantanais se o governo me ajudasse eu fazia muito mais pro Brasil não ter miséria e aumentar o seu cartaz é só expandir São Paulo Mato Grosso e Goiás Amazonas e Paraná e também Minas Gerais sem apoio do governo eu fiz o que ninguém faz se o governo me ajudasse eu fazia muito mais.

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Os trabalhadores rurais viveram uma situação de “encantoamento”32, pois se atrás de si tinham os fazendeiros, senhores de terras e de gente, que os impeliam a deixar suas terras prontas para trás, à sua frente haviam os sertões ocupados por índios. Também coube ao lavrador livre a tarefas de lutar contra os povos originários, não com o mesmo “heroísmo desbravador” dos bandeirantes, mas obrigados à “limpeza” de “bugres” e de matas para as futuras lavouras. Situação tratada na música “Sertão da laranjinha”, composição de Tonico, Tinoco e Capitão Furtado, interpretada por Tonico e Tinoco (1965), que mostra uma família de caipira desbravando a mata para o cultivo da roça e o enfrentamento com os indígenas. A saga alude ao heroísmo da mulher ao proteger marido e filhos e vencer, além do líder indígena, também a “conquista” da terra.

No sertão do Laranjinha Escute o que eu vo dize Foi um causo verdadeiro / Que eu vou contá pra voce: O Sr. Francisco Neve tinha muito bom vivê / Levo cachorrada e arma que podia lhe vale E o sertão do Laranjinha Lá foi ele conhece - Um dia de tardezinha, era já no escurece Veio caçula correndo, a chorá e a tremê / Ai, mamãe vamos s'imbora se nóis não quisé morre Que papai, os meus irmão, ai, mamãe nem posso crê Tão na bataia de bugre nem é impossível de vence - Mas a mãe deseperada nem não pode se conte Correu e pegou uma arma pra sua gente defende Ela pegou a espingarda manobrando sem sabe Mas parece que o destino veio pra lhe protege Cada tiro que ela dava fazia um bugre geme - O bugre tem capitão, ela pode conhece No arto de uma peroba fazia os outros ferve / Ela puxou o gatilho, a fumaça nem deixo ve Ele já se despenco, ai desceu mesmo sem quere O sinar que fez na terra não vai desaparece Veno o capitão já morto saíro bugre a corre. - Francisco Neve ferido tava atráis do pé de ipe Ele junto com treis fio pra não chegar a morre No sertão de Laranjinha inté costuma dize Só por milagre divino é que podia acontece.

O olhar do autor da música, é o mesmo que retrata o desbravador, o conquistador. É o olhar de quem chega e expulsa o nativo de suas próprias terras, como se fosse terras de ninguém, ou seja, a mesma visão do colonizador. Um olhar de conquista, de reconhecimento como legitimo dono da terra, como se isto não fosse também uma invasão. Neste contexto, “entre flechas e chumbos”, os tropeiros de São Paulo, tiveram uma relevante importância nas derrubadas de matas, aberturas de picadas e estradas, preparando a “roça de toco”, o “limpo” da lavoura da fazenda; o caipira deixava prontas

32 - “Encantoamento” é um termo caipira que demonstra a pessoa estar no “canto”, ou seja, cercada por todos os lados sem opções de fugas e saídas. 87

áreas imensas de ocupação para o café, a cana, o algodão e, mais tarde, para o gado. (BRANDÃO, 1983, p.15) E assim, o caipira desprotegido da sombra do poder político, agrário e judicial, aos poucos foi imprimindo, com tintas do sulco da terra impregnadas em suas mãos, o livro de sua história. História marginal do mundo de vida e trabalho, paginada de um lado, por sinais nas taipas da cabana queimada do indígena morto e, por outro, por marcas nas paredes das tulhas da mansão colonial da fazenda de café. Outra questão de distanciamento que coloca o caipira em situação de desvantagem frente à cultura urbanocêntrica, empurrando-o à beira da marginalidade social, é sua linguagem, que as vezes é tida como errada, deformada, incompleta.

2.1.3 O Nheengatu: a língua caipirês da cultura. Uma língua brasílica

Mediante o processo da colonização portuguesa e a vinda da Ordem dos padres Jesuítas para o Brasil, de acordo com Bandini e Dias (2010), traços culturais portugueses e indígenas passaram a se fundir, ressignificando seus elementos culturais. Originaram-se, neste contexto, as primeiras manifestações culturais brasileiras:

A própria palavra caipira nasce desta fusão: O primeiro, de origem tupi, é caaboc, que se desdobrou em caboclo, o qual significa morador do mato. O segundo, caapira, refere-se a capinador do mato ou montador. Esta nova língua foi forjada nesse primeiro período da colonização em solo brasileiro. Com a intenção maior de controle e catequização dos nativos indígenas, José de Anchieta, que chegou ao Brasil em 1553, identificou a existência de uma língua geral falada em praticamente toda a região litorânea e transportou-a para uma estrutura gramatical latina. Essa mudança deu origem ao Nheengatu, identificada também como língua boa, língua fácil ou língua brasílica. (BANDINI; DIAS, 2010, p.41)

Praticamente até o século XVIII o Nheengatu foi a principal língua falada na região Sudeste do país, e utilizada no processo de catequização indígena, sendo inserida em textos litúrgicos, somados à musicalidade indígena e mesmo portuguesa. No que condiz à música raiz sertaneja, dentre as primeiras manifestações desta composição linguística estão o catira, a Folia de Reis, o emprego da viola, trazida de Portugal, e o modo de cantar agudo e em duetos dos indígenas, continuados por duplas caipiras tradicionais. 88

A língua Nheengatu permitiu aos portugueses e indígenas se entenderem entre si, assim como indígenas de línguas diferentes. Foi a língua predominante até o século XVIII. De acordo com Guitti (2012, p.2):

No nheengatu existem as cinco vogais na forma curta e outras quatro na forma longa (aa,ee,ii,uu). Entre as consoantes não existem F, J, L, Q, V, W e Z. Sob essa influência, entre outras peculiaridades, os caipiras dizem muié, zóio, orêia, paioça. O infinitivo também não encontra lugar, por isso o falar matá, corrê, comê, sempre com o acento tônico na última sílaba.

De acordo com Guitti (2012), o nascer do Nheengatu, a língua brasílica, foi como as ondas do mar de Bertioga, se espraiando, sendo falada por todos, desde o litoral de Santa Catarina até o Pará. Nas casas, nas ruas, em qualquer lugar, falava-se o tupi-guarani adaptado ao português, ou vice-versa. Empreendimento desenvolvido primeiramente pelo padre Anchieta. Para o autor, a permanência deste dialeto não resistiu à expulsão dos jesuítas no território brasileiro e a proibição de seu uso da língua geral na Colônia, pelo Marquês de Pombal (1759). Em concordância com Guitti, Maria Alice Setúbal (2005) afirma que o uso do dialeto Nheengatu foi sendo caracterizado no linguajar caipira da região da Paulistânia.

[...] influência da língua tupi, onde não existem os sons para as letras d, f, l, v, z, e no guarani, fonemas para as letras b, d, f, 1, z. Dadas essas ausências fonéticas, o povo caipira que se formou no interior paulista, sul de Minas e algumas áreas litorâneas, carrega suas pronúncias em "erres" e troca o "1" pelo" r” e o "lh" pelo "i" até hoje (muié, faia, sar, mar, barde, dia de sor, etc.). (SETÚBAL, 2005, p. 103).

Desta forma, portanto, temos do Nheengatu, o dito “caipirês”, uma legítima variante da língua portuguesa, que se constituiu num dialeto de raízes antigas (o tupi e o guarani nativos, o latim da liturgia católica, e o português do colonizador). Isto nos leva a afirmar com Guitti (2012) que o caipira não fala errado como muitos supõem. Ele fala um dialeto antigo, mas de raízes vivas e persistentes, aliás, onde se situa o porão de nossa língua.

2.1.4 O caipira e seus laços com a terra: ciclos da vida e da natureza

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Cada época do ano se torna favorável a determinadas tarefas e ocupações ligadas ao cultivo e à extração da vida na terra. O trabalho anual agrícola pauta-se num movimento em torno de dois grandes momentos: o plantio e a colheita. Estes fatores na agricultura de subsistência influenciam basicamente a vida comunitária, familiar e pessoal do caipira. De modo geral, o trabalho na lavoura é cíclico, executado conforme os “períodos de trabalho ou vacância”, ou seja, de “safra e entressafra". Também denominados como "períodos das águas e da seca". De acordo com Bandini e Dias, (2010, p.32):

Considerando os períodos agrícolas a família caipira trabalha o ano todo. Quando não trabalha na lavoura, realiza trabalhos artesanais para serem comercializados na venda da vila, cuida da horta e do pomar, cria animais, ocupa-se do reparo de objetos e de atividades como a costura de roupas para a família. Nesse contexto, o ano do caipira, de modo diverso do calendário civil acompanhado na cidade, é composto pela execução de trabalho intercalado pela celebração das festas relacionada à religiosidade.

O trabalho com a terra não se assemelha ao mundo do trabalho produzido e regido pelo tempo da máquina, como é o caso o mundo do trabalho fabril e empresarial predominante na vida urbana. Considerando que o foco de nossa pesquisa reside no âmbito da cultura caipira produzida nos entornos da agricultura familiar, e não no da cultura agroindustrial hodierna, o tempo do trabalho com a terra é o tempo da natureza, da regência das estações do ano e do biológico. Não depende muito só da vontade do trabalhador ou de um cronograma ou meta de produção. Tem ritmo próprio, ligado principalmente às leis naturais do ciclo vital de cada tipo de planta com que se lida, da dança anual do clima e dos seus efeitos sobre todos os seres vegetais e animais com que o lavrador tateia e manipula. Cíclico e em alternância descontínua. O trabalho caipira consiste basicamente em enfrentar as mesmas rotinas do lavrar e preparar o solo, plantar a semente, a rama ou o tubérculo; livrar os pés de “cultura”33 das ervas daninhas, “chegar a terra nas plantações”34, “zelar” do que foi plantado “carpindo” e combatendo pragas do terreno até que os vegetais estejam crescidos e “prontos”, “maduros” para realizar a colheita.

33- “Cultura” aqui é mencionada como o produto que se cultiva. Exemplo: a cultura do café, cultura do arroz, cultura do feijão, etc. 34- Expressão que indica a ação de “afofar” a terra ao redor de cada pé ou de cada touceira de planta semeada. 90

Alguns “mantimentos”35 colhem-lhe de uma só vez, como no caso do feijão, do algodão, do arroz, do trigo, dentre outros. Algumas espécies colhem-se em diferentes etapas, como no caso do milho (colhido em parte “verde” e em parte “seco”) ou da mandioca; batata, laranja, café, hortaliças, entre outros. Após a colheita de alguns destes produtos faz-se necessário um período de secagem e armazenagem do que vai ser consumido ao longo do ano ou vendido no mercado como excedente do “gasto” familiar. No período da colheita o trabalho rural é mais intenso, exigente e requer muita força braçal e suor do caipira. Também nos períodos de entressafras, os homens (principalmente) desenvolvem atividades como a caça, a pesca, a coleta de lenha, de frutos, de palmitos, de mel silvestre nos campos e matas, além das atividades de artesanato rústico da casa e das tarefas do quintal, como fazer e consertar cercas, arrumar telhados, consertar chiqueiros, roçar pastos, capinar caminhos e trilhas, reparar objetos de montaria, de couro ou de barro e ferramentas de trabalho com a terra. Ou mesmo atividades relativas às ferramentas: encavar enxada, machado, rastelo, enxadão, rodo, foice. Dedica-se também, a atividades artesanais de apoio como tecer balaios e cestos de bambu, taquara. Empalhar cadeiras com taboa ou palha de milho. Podar árvores do terreiro e do pomar. De acordo com Brandão (1983, p. 18) a atividade agrícola caipira exige conhecimento e saberes que são repassados em séculos de observações e retenções das informações. Ao contrário do que imaginam os olhos da cidade, o saber do trabalho do caipira é extremamente complexo e diferenciado. Muitas destas tarefas podem parecer mas não são trabalho fácil. Curvar-se sobre o solo com a enxada envolve um sem- número de pequenos arranjos e segredos de conhecimento coletivo. A cada momento do ano a família caipira pode estar realizando um ou mais tipos diferentes de “serviços” junto a qualquer uma das “qualidades” de plantas com que trabalha. Segundo Brandão (1983), às vezes, a colheita de uma “roça” pode coincidir com a “limpa”36 de uma outra, ou mesmo com o arar a terra para o preparo do “terreno” para uma terceira.

35- Mantimento é um termo que indica a espécie que foi plantada para manter o sustento pessoal e familiar. Exemplo: arroz, feijão, milho... 36 O termo indica o trabalho de carpir a roça retirando as plantas nocivas à cultura plantada. Normalmente se carpe, cipós, carrapicho, borduega, tiririca, amor-seco, marmelada, entre outros. 91

A família caipira realiza pequenos trabalhos o tempo todo. Quando não trabalha na roça, trabalha-se em casa. À soma de muitas mãos, alguns produtos, como o milho e a mandioca, podem ser beneficiados e convertidos em subprodutos alimentares, exigindo outras operações como descascar, pilar, “bater”, moer, torrar, entre outros. Algumas atividades somam-se com tarefas diárias obrigatórias, como tratar das “criações” (aves, porcos, gados), ordenhar o gado leiteiro, cuidar da horta, do pomar, apartar gado leiteiro. Já as mulheres (principalmente) ocupam-se em fiar, tecer roupas de algodão, fazer óleo de mamona, esteiras de palha, fazer sabão, lavar e remendar roupas, bordar e cuidar da casa, ralar mandioca, fazer polvilho, doces, biscoitos, quitandas, entre distintas tarefas. Outro aspecto importante na cultura caipira é a vida coletiva. Entremeada de trabalhos, rezas e festejos religiosos, festas familiares, “romarias” conjuntas anuais a centros de peregrinação paulista, a vida do caipira é intensa e marcadamente comunitária. Os mutirões aparecem caracterizados pela solidariedade, apresentando-se como rituais de companheirismo e de troca entre familiares e vizinhos. Intermediados pelo trabalho ocorrem quando algum lavrador necessita de ajuda para o trabalho na roça, às vezes para uma colheita urgente, ou ainda, para tirar uma roça do mato, e até em caso de atraso do trabalho por fatores de doença. Mesmo quando deixa a vida na roça, o caipira não se esquece destas lições em suas comunidades e agrupamentos. É comum, em nossos dias e bairros, aparecer esta forma de trabalho coletivo em torno de alguma causa social. Além do trabalho coletivo, ressalta-se também o aspecto festivo contido em todo o processo de realização do mutirão. Em algumas regiões paulistas aparece o chamado brão, um tipo de canto executado em dupla sem instrumentos musicais. Bandini e Dias (2010, p. 33) ressaltam que

Neste contexto, a vida lúdico-religiosa também representa uma das facetas da sociabilidade caipira, evidenciando e fortalecendo a coesão dos bairros presentes na área rural. Desta maneira, a cultura caipira é preservada e celebrada em todos os setores da vida do caipira; este tipo de cultura que, utilizando uma expressão de Brandão "vai da mesa ao mito", considerando que tudo se tornava momentos de sociabilidade proporcionados pelas modas de viola.

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Mais um aspecto relevante a destacar é a sabedoria tradicional permeada no trabalhar e no fazer-se da cultura caipira. Todas as atividades de roça realizadas pelo caipira são entremeadas com serviços familiares que vão da cozinha ao comércio e atravessam processos de beneficiamento, circulação e venda de produtos rústicos de comer, usar e comercializar. Produtos que passaram por várias operações sábias que a tradição consagrou mediante o profundo conhecimento empírico na elaboração de “artefatos e produtos” trazidos da mata, dos campos, da “lavoura grossa” ou mesmo da “lavoura fina” dos arredores do quintal. São muitas as coisas com que o trabalho caipira lida no servir-se do comer, beber, curar, vender, divertir e obter os prazeres da vida. Dentre tantas atividades que envolvem o trabalho coletivo familiar, nas quais são partilhados os ensinamentos e se consagra a tradição pelo ensino aprendizagem, podemos citar algumas como referências: a) Fazer farinha de mandioca: envolve arrancar a mandioca, descascar, ralar, lavar a massa, torcer e colocar para secar em tempo e espaço apropriado. Torrar na temperatura correta e com os movimentos adequados para não queimar. Quase o mesmo processo, mas com alterações significativas também se constitui o feitio do polvilho; b) O trabalho com a cana de açúcar e a criação de outros subprodutos, desde sua extração quando madura, à moagem para a garapa e dela fazer o melado, a rapadura, o açúcar e a “pinga”, e o “óleo de cana” (utilizado como remédio), até seu uso como ração, silagem e complemento de alimentação animal; c) A “pamonhada” que requer a escolha do milho verde “no ponto”, cortar a espiga e retirar os cabelos, escolher e separar as palhas para os copos e capas da pamonha; ralar a espiga (no ralo feito em casa com lata furada a prego), peneirar a massa; dar o ponto na massa de doce ou salgada, amarrar a pamonha com “embira” ou amarrilho de palha; colocar na água fervente até seu cozimento completo, retirá-la com os devidos cuidados para não soltar sua palha; 93

d) A matança de um “capado37” exige saberes específicos da atividade: saber sangrar o porco, despelar com o fogo ou água fervente dentro de um tempo correto. Exige saber lidar com o couro, com a carne, com a banha, com o toicinho ou com os miúdos. Transformar a tripa em linguiça e em outros subprodutos do sangue, da carne e da gordura como o lombo, o chouriço, o torresmo, o sabão, etc.

Há um conjunto de saberes simples que, em sua totalidade, se torna complexo no entorno cultural do caipira que empiricamente permeia e ultrapassa os limites do tempo e do espaço. Existem dois elementos tencionando essa cultura: por um lado temos o fenômeno do êxodo rural e a massificação da cultura caipira no espaço citadino, e por outro, a comunicação televisiva e a internet nos sítios. Nossa preocupação, como a de tantos outros estudiosos e pesquisadores, como Dulce Whitaker (2008), por exemplo, é que estes conhecimentos possam se perder frente às mudanças socioculturais difundidas pela ideologia pós-moderna da globalização em que o tempo e o espaço destinados outrora ao ensino aprendizagem destes saberes, estão já largamente ocupados e substituídos pelo uso de equipamentos eletroeletrônicos e informáticos que enfraquecem a permanência dos valores tradicionais, ou mesmo, os substituem, até nos espaços conservadores da cultura caipira. Além do esvaziamento dos rituais tradicionais por uma série de fatores (como o aumento das igrejas evangélicas, a falta do “tempo ocioso”, a dificuldade do produto “in natura”, por exemplo), na atualidade o “caipira urbanizado” compra o produto comercializado, do qual outrora detinha o exercício do conhecimento de seus processos constitutivos. Todo este conhecimento, estas práticas, desvalorizadas socialmente, porém não por sua culpa, vêm sendo aos poucos abandonadas, ora por falta de interesse em preservar habilidades não mais vistas como importantes, ora por falta de espaços adequados para sua continuidade; ora por considera-las ultrapassadas, inválidas, atrasadas, assumindo o discurso dominante como verdadeiro; ora por absoluta falta de tempo, decorrente das condições precárias de trabalho que enfrenta no cotidiano urbanizado, comprimindo-o numa desidentificação cultural.

37- Expressão para indicar o porco gordo, castrado, criado e cevado para o abate. 94

As facilidades oferecidas pelos bens de consumos eletroeletrônicos e produtos industrializados da pós-modernidade seduzem e dão conta das tarefas implicadas nas atividades anteriores com mais eficiência, rapidez, limpeza, conservação, entre outros “ganhos”. Por exemplo: antes, fazer um caldo de galinha implicava em criar o animal, abater, limpar, cozinhar e consumir no tempo natural. Era necessário repetir o processo de acordo com a necessidade do consumo. Agora, basta comprar tabletes industrializados, evitando toda a “trabalheira” e podendo acumulá-lo sem nenhum risco de perecer em pouco tempo. O engodo está na ideologia dominante afirmar que esse produto é melhor, mais saboroso e tão saudável como o da roça... (tão bom quanto o da vovó!). Um de nossos maiores desafios é o de contribuir para não deixar perder-se no tempo e no espaço esse conhecimento. Em encontrar formas de amenizar o forte sopro do consumismo neoliberal que empurra para longe até mesmo a credibilidade de valoração desta cultura. Cabe-nos a tarefa dialógica e reflexiva por meio de círculos, debates, escritos, entre tantas possibilidades, resgatar, preservar, criar e propor, “para” e “com” as pessoas do campo, ou dos espaços urbanos que mantém as tradições caipiras, práticas que valorizem e ressignifiquem sua própria cultura, para as atuais e futuras gerações. Apontamos alguns espaços possíveis de criação de tais práticas, como rodas de conversas, rodas de violas, incentivo aos grupos existentes (como, por exemplo, orquestras de violeiros), inserção em movimentos populares locais, casas de repousos e de cuidados, associações de bairros, associações de melhor idade, missa caipira, almoço caipira, festa do milho, festa da colheita, escola de viola, entre outras. Preservar valores que façam frente às ideias pragmáticas e consumistas das ideologias pós-modernas, do descartável, do imediato, do globalizado, do digital. Talvez um dos meios que possa ser eficiente é um trabalho de preservação da música raiz que canta esses afazeres. Propô-la como meio de reflexão sobre o como era (ainda está na memória coletiva) e como vem sofrendo alterações no mundo moderno. Quais concepções essas músicas portam? Quais valores permeiam seus ensinamentos?

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2.2 CONCEPÇÕES VITAIS PRESENTES NA MÚSICA RAIZ SERTANEJA

A arte de forma geral, mas principalmente na expressão musical, considerada nessa pesquisa, ao apreender o momento histórico, exerce o poder de imortalizá-lo. Por meio de uma representação artística musical preservam-se coisas antigas em si mesmas, que por mais que as ignoremos, de repente vêm à tona e dizem muito. A arte mantém em si as forças originais que tiveram ao serem criadas. Poderão ser atualizadas em suas formas, plasticidades, porém, não em seus sentidos, em sua originalidade nascente, no espaço humano que ocupa cada indivíduo, nos traços constantes e inerentes ao processo criativo e constitutivo universal do artista criador. Fischer (1981, p.19) afirma que:

Na medida em que, no interior de uma sociedade, descobriram a grandeza do homem, e deram formas artísticas aos seus conflitos e às suas paixões, e exprimiram potencialidades ilimitadas, [tais feitos] permanecerão sempre modernos e atuais. [...] quanto mais chegamos a conhecer trabalhos de arte há muito esquecidos e perdidos, tanto mais claramente enxergamos, apesar da variedade deles, seus elementos contínuos e comuns. São fragmentos que se acrescentam a outros fragmentos para irem compondo a humanidade.

Considerando estes fundamentos teóricos de Fischer podemos afirmar que a Música Raiz Sertaneja produz e expressa algumas das concepções vitais pertinentes à cultura caipira. Narram e cantam os movimentos da vida que se desenvolvem no sertão, na lida com a terra, com a lavoura, no contato com a natureza e com os valores que fundamentam sua existência cultural. Na instância rural é considerada música de raiz por que, em sua poética e mensagem, canta as peripécias e histórias criadas e vividas neste entorno cultural. É a voz do homem e da mulher caipira proclamada em sua labuta com a terra, com a vida na terra e com o chão da vida. As letras, sem se dicotomizarem ou se oporem, falam da concretude da realidade. Para Bosi (1977) "concreto" quer dizer, precisamente: o que cresceu junto38. Nesse sentido, as músicas de raiz tratam da temática presente e voltada para o dia-a-dia da vida do caipira, da vida na roça, com suas alegrias e agruras, sonhos e decepções, conquistas e derrotas, esperanças e conformidades, determinações múltiplas e

38- O grau inferior ao concreto encontra-se em tudo o que foi arrancado ao processo de crescimento; em toda forma de vida e de expressão que sofreu um corte precoce e arbitrário que a isolou da História e a enrijeceu ou a matou antes do tempo: em tudo o que foi abstraído e ficou abstrato (BOSI, 1977, p. 113).

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contrárias, o não-ser e ser, tempo e eternidade, mundo e subjetividade, felicidades e tragédias. A concepção dramática, ou seja o caráter da tragédia, ou de felicidade na música raiz sertaneja se expressam como meio em que o sujeito é colocado como o todo da realidade, interpelando-o no sentido de identificar-se ou não com aquilo que é ou não é. Aqui a tensão e a contradição dialética se fazem inerentes à música vivida ou fictícia. A música não só deriva de uma intensa experiência da realidade como é construída em sua história tomando forma através da objetivação. Aristóteles sustenta que a função do drama era purificar as emoções, superando o terror e a piedade, de maneira que o espectador, ao se identificar com o protagonista da obra artística/letra musical, viesse a ser, por sua vez, libertado daquela identificação e pudesse se erguer contra a ação cega do destino. Fischer (1981) afirma que, ainda que trágica, a música propicia o divertimento. Para o referido autor, os laços da vida são temporariamente desfeitos, pois a arte “cativa” de modo diferente da realidade e este agradável e passageiro cativar artístico constitui precisamente a natureza do “divertimento”. Algumas músicas raiz sertaneja, dentre as quais o “Luar do sertão”, composição de Catullo da Paixão Cearense e João , interpretação de Tonico e Tinoco (1969), em sua poética anunciam o olhar como o sentido artístico por excelência. Anuncia a contemplação da natureza, a beleza do luar, que configura uma “[...] nova escuta poética da natureza [...]” numa irmandade de todas as coisas (ANTÔNIO, 2010, p.13). Um luar prateado que banha animais, flores, pássaros e pessoas em seus amores. Denuncia a escuridão presente em olhares confusos pelas realidades da perda de identidade rural no mundo urbano. Grita sua tristeza no embargo da voz que proclama sua raiz, anuncia seu descontentamento frente ao que não concorda, e lamenta não poder voltar ao paraíso perdido. O seu prazer é anunciar seu desprazer, na expectativa de um dia livrar-se dele e voltar a ser feliz. No melódico tom de lamento, adentra sentimentos e utopias cravados em sua memória.

Não há, ó gente, ó não Luar como esse do sertão. Ó, que saudade do luar da minha terra Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão. Esse luar lá na cidade tão escuro Não tem aquela saudade Do luar lá do sertão - Se a lua nasce por detrás da verde mata Mas parece um sol de prata. Prateando a solidão E a gente pega a viola que ponteia E a canção e a lua cheia. A nos nascer do coração - Coisa mais bela neste mundo Não existe Do que ouvir um galo triste No sertão se faz luar Parece até que a alma 97

da lua É que diz, canta Escondida na garganta Desse galo a soluçar - Ai quem me dera Eu morresse lá na serra Abraçado a minha terra E dormindo de uma vez. Ser enterrado numa grota pequenina, onde à tarde a Sururina chora a sua viuvez.

Ao analisar a “persistência” da Música Raiz Sertaneja em resistir ao esquecimento e à descontextualização, podemos dizer que isso talvez ocorra porque em suas narrativas poéticas e mensagens parta do princípio de que a pessoa não suporta ficar fora de si mesma. Alicerçada em suas concepções de simplicidade, vida coletiva e comunitária, poderíamos arriscar a ideia de que a Música Raiz Sertaneja se põe como uma crítica à modernidade que presencia a perda do comunitário. Presenciamos o individualismo limitar o coletivo, e nesta configuração social moderna, gera-se a dificuldade da articulação do todo, onde cada um possa se constituir na interação com o outro. À medida que vão diminuindo os espaços da convivência, aumentam os “espaços cibernéticos” nos relacionamentos. Conforme afirma Raul Leis (2006, p.69): “A pessoa comum já não diz: ‘eu creio’, e menos: ‘eu penso’; diz simplesmente: ‘eu sei, eu vi na TV’, na internet, e pouco a pouco se converte de cidadão em televidente”. Isto se configura num crescente isolamento social e, acima de tudo, comunitário. Vivemos na ideologia do tudo por si, do tudo pronto, tudo fácil, tudo rápido. Acreditamos, em oposição a isso, num outro mundo possível, como nos diz Martí (1984 apud LEIS 2006, p.70) “[...] imita-se muito e a salvação está em criar [...]”. As experiências culturais não são como outrora, comunicáveis no âmago do comunitário. Se o fato é que o individualismo inibe o sujeito de seu convívio, é inegável também que em cada pessoa exista um único “Eu”, consciente de si mesmo, erguido, sustentado ante a coletividade. A pessoa é inevitavelmente a soma de vários “Eus”. É múltipla. Ninguém é único em si mesmo. Somos seres sociáveis. Em suas mensagens a Música Raiz Sertaneja mostra que o comunicável supõe a ressonância do que foi comunicado. A subjetivação intensa tem a dizer algo que se aplica a outros. O que se comunica na Música Raiz Sertaneja é algo comum a muitos: experiências, valores, concepções e histórias de vida. Ao objetivar a experiência subjetiva em suas narrativas, socializa a individualidade e as experiências humanas. A comunicação tem o poder de influenciar a realidade do sujeito. Afeta tanto o sujeito da experiência quanto as experiências próximas e semelhantes as desse sujeito. Tanto 98

descreve uma condição quanto convoca o sujeito ouvinte a ressignificá-la, renová-la, transferi-la ou mesmo perpetuá-la. Assim a Música Raiz Sertaneja pode se apresentar como ponte entre concepções individuais e coletivas. Ao ouvir a mensagem, o ouvinte se coloca no lugar do comunicador de sua experiência e se torna “Nós”. Ao se distanciar deste antigo “Nós”, emerge um novo “Eu”. De acordo com Fischer (1981), a voz individual do artista cantador que emite a comunicação da experiência interliga a voz subjetivada na experiência, e a coloca na condição de ser tomada pelo ouvinte, ao experimentá-la. E assim, o eco melódico perdura na personalidade modificante e modificadora. Para o mesmo autor, o “Eu” subjetivo torna-se coletivo e o conteúdo continua a ser social. Ao ouvir a história ou a mensagem da música a pessoa se coloca no lugar do personagem, a avalia de acordo com seus critérios axiológicos, e ressignifica essa experiência para sua própria vida. Cada vez que ouvir a mesma música poderá repetir ou não o mesmo processo avaliativo. O violeiro ao cantar a mensagem da música, empresta sua voz à intuição do poeta criador que escreveu, e assim, o torna presente na realidade da comunidade ou do indivíduo. O ouvinte identifica-se com a realidade manifestada pelo poeta e trazida pela voz do violeiro. Ao ver-se participante na mensagem, ressignifica sua realidade e a toma como sua. Diante do fato de descrever sentimentos, relações e condições que ainda não haviam sido descritos anteriormente, o violeiro canaliza-os do seu “Eu” aparentemente isolado para um “Nós”; e este “Nós” pode ser reconhecido até na subjetividade transbordante da personalidade do cantador. De acordo com Fischer (1981) este processo, todavia, nunca é um retorno à primitiva coletividade do passado; ao contrário, representa um impulso na direção de uma nova comunidade cheia de diferenças e tensões, na qual a voz cantada não se perde numa vasta unissonância. Desta forma, afirmamos com Fischer (1981, p. 57) que “[...] a arte pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser integro, total”. Em base a esse recurso teórico, podemos afirmar que a Música Raiz Sertaneja poderá possibilitar ao homem e à mulher compreender melhor a realidade e os ajudar não só a suportá-la, como transformá-la.

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2.3 TRAJETÓRIAS DA MÚSICA RAIZ SERTANEJA

Em toda e qualquer sociedade, a música como expressão de arte, e aqui se insere a música que interessa a esta pesquisa, a Música Raiz Sertaneja, pode ser compreendida não só em relação aos seus elementos estéticos, mas entre outros, como comunicação, linguagem, manifestação de identidade, expressão de crenças de quem a produz, quem a canta, quem a toca, quem a escuta e por que o fazem. Para Bandini e Dias (2010) a prática musical representa uma ação inevitavelmente social e, para compreendê-la como parte da experiência humana, é necessário que sua análise esteja direcionada ao entendimento de seu contexto social. A música surge da relação do ser humano com seu entorno e, por isso, expressa processos cognitivos e atitudes sociais, que são entendidos e vivenciados com maior intensidade por aqueles que compartilham as experiências culturais de seus criadores. Reiterando, a Música Raiz Sertaneja foi produzida dentro de um contexto rural e o texto poético é fortemente marcado por assuntos da vivência desta cultura. Em versos que portam dizeres a respeito de fatos e acontecimentos ocorridos em determinados locais, e relacionados à natureza, à moradia, às estações do ano, ao gado, à chuva, às aves, à roça, à seca, às festas, à amizade entre companheiros, serenatas para a mulher amada, pescarias, entre outros temas. No discurso de seus cantadores estão presentes mensagens que os identificam enquanto comunidade, enquanto formuladores de leituras de mundo, o que poderá vir a ser difícil para quem não pertence a seu universo entender suas mensagens, e não raras vezes, os considerarem como inferiores, atrasados, fora de moda. Consideramos importante neste momento da pesquisa esclarecer o que entendemos por Música Raiz Sertaneja, tendo presente que houve uma variante do termo no percurso de sua trajetória. Essa variante se inicia, de acordo com o jornalista Fábio Gomes, com a iniciativa de Cornélio Pires em gravar discos com duplas caipiras, tornando-se o criador do gênero chamado música sertaneja. “Não havendo como reproduzir em estúdio os 100

desafios que podiam durar horas, estrutura-se a música sertaneja, mais melódica e menos rítmica que a caipira. ”39 (GOMES, 2005, p. 9). Elisângela Rodrigues (2003) concordando com Gomes (2005) afirma que, sendo introduzida no meio urbano, a música sertaneja passou a ser um produto da indústria cultural e distanciou das suas origens rurais. Já para Souza (2005), o estilo mais difundido chamado “sertanejo romântico” se consolida como referência musical da classe ascendente proveniente do êxodo rural, com uma configuração baseada no modelo da cultura musical norte-americana. Para o autor, “como no panorama da globalização os elementos da cultura são apropriados pela classe de excluídos, que veem neles uma possibilidade de socialização, os da música sertaneja são prontamente absorvidos” (SOUZA, 2005, p. 188). Desta forma, no âmbito das pesquisas sobre o gênero musical e sua temática, encontramos as seguintes definições: a) Música Caipira de Raiz é aquela que canta a vida rústica rural. Seus versos falam em viola, mulher amada, tapera, rancho de sapé, casinha de beira de estrada, carro de boi, família, boi, cavalo, festas populares e cateretê, beira do rio, perto da mata, pássaros cantando, o sol no poente, entre outros. b) A Música Sertaneja Tradicional fala da transição de suas origens ou de situações dramáticas. Seus versos relembram o passado, saudades da terra daqueles tempos..., a vontade de voltar, a recordações, enfrentamentos decorrentes da vida urbana como cidadania, politica, “vida dura”, transformações sociais, desafios do progresso, entre outros. c) O estilo Sertanejo Romântico acompanha a vida urbana ideologizada pela mídia, fala mais dos relacionamentos amorosos de maneira alegre e vantajosa, e talvez por isso, sua aceitação popular. Suas letras versam o amor, a paixão, a sedução, a conquista, a traição, a amizade, entre outros; d) Sertanejo Universitário. O estilo produzido pela indústria cultural tem a juventude como alvo de consumo. Versa apologias sobre o sexo, a bebida, o momentâneo e o descartável. Não aprofundaremos as discussões sobre essas diferentes concepções e nomeações neste trabalho, não por considera-las irrelevantes, mas para manter o foco e

39- Desafios é uma modalidade da música raiz onde os violeiros se desafiavam longamente em torno de um tema para agradar o povo. Precisava ter habilidade e destreza nos versos e na rima. Derrotar o outro e ganhar o desafio significava fama de campeão e prestigio de violeiro bom. 101

objetivo primeiro da pesquisa, qual seja: verificar se a Música Raiz Sertaneja porta em si elementos de educação entre sujeitos. Nossa opção de estudo dos elementos constitutivos da Música Raiz Sertaneja percorrerá somente alguns dos perímetros do processo histórico subjacente da análise da cultura caipira em seu espaço fundante e sua transposição aos espaços simbólicos. Consideraremos a Música Raiz Sertaneja, como objeto de nossa pesquisa, aquela que desempenhou um importante papel cultural, uma vez que foi fundamental na criação, preservação e dinamização de costumes e valores éticos, morais, religiosos, políticos, compartilhados no grupo, marcados, sobretudo, pela contribuição coletiva. Portanto a que mencionamos no item a) e parte das do item b) anteriormente. Atualmente, essa cultura musical é identificada como uma espécie de reserva de tradição, ou seja, em determinados momentos, compositores, intérpretes e produtores recorrem a essa fonte na busca de elementos que dão “autenticidade” à música produzida modernamente. No quarto capítulo, de acordo com a proposta da pesquisa, faremos um recorte do universo musical caipira selecionando algumas de suas letras e analisando suas mensagens. A seguir trilharemos as marcas deixadas pelos passos que compõem o percurso de sua história.

2.4 VISÃO PANORÂMICA E HISTORICIDADE

Enquanto linguagem, a Música Raiz Sertaneja porta uma identidade própria ao trazer uma proposta de conhecimento de uma cultura e de seu sujeito, que ao longo da história foi sendo definida como uma “subcultura” da cultura brasileira. Como expressão constituinte da cultura caipira, sua circulação e influência ocorreram tipicamente nos espaços sertanejos e rurais do território da Paulistânia, relacionada a outras manifestações como danças, ritos religiosos, folguedos dramáticos, o catira, o pagode caipira, Folias de Reis, festas do Divino, dança de São Gonçalo, fandango, congadas, cantos de trabalho comunitário e outros. De acordo com Chaves (2006, p. 32)

Para se compreender a música caipira, como elemento da cultura nacional, vale relembrar que na década de 1920, surgem no Brasil estudos de resgate da cultura popular, e novas discussões são travadas na direção de se opor passado e presente, e a música do caipira passa a ser entendida como uma das formas de resgate do passado.

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Esse discurso nacional motivou o surgimento das primeiras músicas do caipira gravadas em disco, como a célebre “Tristezas do Jeca”, composta por Angelino de Oliveira em 1918 e gravada em 1923. No entanto, foi com Cornélio Pires e sua turma40 que esse gênero musical entrou na indústria cultural. Dentre os difusores da música caipira, Cornélio Pires, paulista de Tietê, jornalista, escritor e produtor apresentou em 1910, na Universidade Mackenzie, em São Paulo, um espetáculo que reuniu catireiros, cururueiros41 e duplas de cantadores da música raiz sertaneja.

Ilustração 9 - A turma caipira de Cornélio Pires

Fonte: http://www.lucianopires.com.br/idealbb/view.asp?topi Acesso em: 20 ago. 2014.

Foto de 1929 - da esquerda para a direita, em pé: Ferrinho, Sebastião Ortiz de Camargo, Caçula e Arlindo Santana. Sentados: Mariano, Cornélio Pires e Zico Dias. Repetiu diversos shows pelo interior paulista no decorrer dos anos e em 1929, pagou com recursos próprios a gravação do primeiro disco contendo músicas, anedotas e poesias. Devido à boa aceitação do estilo e boa vendagem despertou o interesse de

40- A primeira turma de Cornélio Pires era composta por ele, Ferrinho, Sebastião Ortiz de Camargo, Caçula, Arlindo Santana, Mariano e Zico Dias. 41 - Tocadores do ritmo e estilo cururu na viola. 103

gravadoras pela difusão do novo estilo musical. Em 1931 apresentou um show no Teatro Municipal de São Paulo alcançando o reconhecimento que desejava. Esse é um momento relevante para a história da Música Raiz Sertaneja, pois foi a partir daí que as canções caipiras passaram a ser industrializadas, entraram para o universo da canção de massa. Bandini e Dias (2010), citando Brandão, mencionam a negação da condição do caipira em sua fala e em sua música. Trata-se, segundo o autor citado, da omissão da faceta do trabalho agrícola, o qual orientou, em dado momento, a vida desse caipira, condicionando os ciclos de plantar, de tratar, colher e comer. Essa negação, estaria presente na música caipira que remonta a uma época mais antiga mesmo na música identificada como "sertaneja", quando não há menção ao trabalho camponês. Portanto, de acordo com Brandão (1983, p. 48 – 49)

Os personagens que o lavrador canta são quase sempre não-lavradores. São outros homens do campo, mais errantes, mais aventureiros: vaqueiros, peões de boiadeiros, domadores. Não há por que falar dos sujeitos e do trabalho rotineiro da lavoura, feito em família, às vezes em equipes ampliadas de vários trabalhadores. Santos, viventes sub ou supra naturais, bichos do pasto ou da mata, tipos humanos de identidade aventureira, casais de enamorados são os agentes dos assuntos dos versos das músicas e das falas costumeiras.

Vista dessa forma, a música caipira, ao passar a ser gerenciada pela indústria cultural, passa a ser tida como música sertaneja. De acordo com Chaves (2006, p. 37)

A música sertaneja apresenta algumas características que a identificam, como a influência da indústria cultural, que ao se apropriar das músicas, compositores e intérpretes passam a vender sua força de trabalho ao mercado e estes têm que se submeter ao poder das grandes gravadoras que passam a ditar as regras e temas, influenciando inclusive no discurso das composições.

As gravadoras passam a agenciar e intermediar a força de trabalho desses compositores e intérpretes, sobretudo ao que se refere ao lucro do trabalho. A interferência também ocorre quanto ao tempo máximo de cinco minutos exigidos pelos formatos das emissoras de rádio e TV alterando o formato anterior das canções.

Devido ao forte apelo comercial, o tempo de duração das músicas sertanejas obedecia e obedece critérios impostos pelas gravadoras não chegando a cinco minutos cada música, o que muitas vezes descaracterizava a história das canções [...]. (CHAVES, 2006. p. 37).

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Para o mesmo autor esse momento marca a transição da música caipira (cantada pelo homem do campo) e a sertaneja, feita na cidade para o migrante caipira urbanizado. Significativas mudanças passam a ocorrer na composição das letras, temáticas que antes tratavam de ritos religiosos, canções de trabalho, ciclos da lavoura, passam agora a tratar do amor, da nostalgia (canções de exílio). Com a inserção da música caipira no universo da mercantilização de produtos culturais, que passam a ser divulgados por meio do rádio e das gravadoras de discos, alguns ritmos musicais caipiras começaram a ser executados de maneira autônoma, excluídos de seus rituais de origem, sobretudo com a finalidade da audição (só execução instrumental). Como ressalta Brandão (1983, p.48-49)

A técnica de junção é a da "limpeza" da música sertaneja, principalmente pela reeducação do compositor: eliminação da linguagem "deformada" e estigmatizada, eliminação da pieguice e sua substituição por uma saudade mais convenientemente pequeno-burguesa, a moderada saudade da cidade de origem ou o "sertão mítico", em ambos os casos descontaminados dos identificadores estigmatizados, isto é, "despoluídos", da presença humana do caipira através dos seus presumíveis "resíduos" na música sertaneja.

Para Bandini e Dias alguns ritmos, então, transformaram-se em gênero musical, como, por exemplo, o arrasta-pé, o catira, o cururu, o pagode caipira, e mesmo que, inicialmente instrumental (exemplo o forró), passa a ser cantado. Assim a música sertaneja configura-se em um processo que representa a transformação da música sertaneja tradicional, suplantando a área rural, constituindo-se como música popular urbana. A música caipira se define pelo valor de utilidade que agrega, uma vez que é responsável pela mediação de diferentes relações sociais existentes no modo de vida do caipira. A música, neste contexto, desempenha papel imprescindível para a efetivação dessas relações sociais, as quais seriam inviabilizadas ou prejudicadas sem a presença do elemento musical. De outro modo, a música sertaneja se caracteriza, acima de tudo, pelo seu valor de troca; em sua dimensão de mercadoria direcionada ao consumo é produto de relações sociais fundamentadas na mercantilização (BANDINI; DIAS, 2010, p. 46-47)

À cultura rural cabe seu reajustamento frente ao novo espaço urbano obrigando os sujeitos a aceitar as condições impostas pela cultura citadina. O caipira resiste em esquecer sua origem e a Música Raiz Sertaneja foi seu principal veículo utilizado para tal fim, o que trouxe alguns ganhos à cultura caipira. 105

Além deste, outro, foi que, a partir desse momento, com o advento das gravações da música concebida pelos caipiras, sua viola passou a ser legitimada e difundida em território nacional, para além de seu espaço de origem (Sudeste e Centro-Oeste). Começaram a surgir, nos fins da década de 1930 e inicios de 1940, as primeiras duplas sertanejas caipiras que darão voz e vez à música da cultura caipira. Dentre outras duplas - Alvarenga e Ranchinho, Tonico e Tinoco, Zé Carreiro e Carreirinho, Sulino e Marrueiro, Zico e Zeca, Zilo e Zalo, Vieira e Vierinha - e “Os catireiros do Brasil” que foram os principais divulgadores e incentivadores da dança caipira. Outra inovação foi que a viola, que até então era o único instrumento na animação da música caipira, ganhou um parceiro, o violão, que lhe serviu de acompanhamento para a base musical. Como a viola foi para a cidade, passou a ser divulgada e surgiu então a figura do violeiro, representada, sobretudo, por Tião Carreiro, que foi um dos principais criadores e tocadores do estilo pagode caipira. O tocador foi considerado o rei do pagode caipira. De acordo com Bandini e Dias (2010, p. 45),

Alguns anos mais tarde, já fixado o estilo da música sertaneja, a incorporação de diversos ritmos acarretou o afastamento ainda maior de elementos que possibilitaram a gênese desse tipo de música. Dentre os ritmos incorporados estão o vanerão, polca paraguaia, o chamamé e a guarânia. A partir da década de 1950, a inserção desses ritmos à música reconhecida como sertaneja passaram a compor o repertório de duplas que gravaram desde rasqueados até boleros e guarânias. É o caso das duplas Luisinho e Limeira, Pedro Bento e Zé da Estrada, Cascatinha e Inhana, Moreno e Moreninho, Palmeira e Biá, Zico e Zeca e Tibagi e Miltinho.

Influenciados pela crescente urbanização, na década de 1950 os gêneros sertanejos passaram a disputar espaço com os da cidade, a “moda” era ser moderno. Imbuindo-se das novidades do “progresso”, viam-se obrigados a uma nova forma de ser e pensar: O ano de 1958 foi marco das transformações que se estendeu nas duas próximas décadas. Nesse período, metade dos 70 milhões de brasileiros morava no campo, portanto, a troca de influências com a cidade era grande. Valores profundamente arraigados no homem e mulher interioranos que chegavam à vida dos grandes centros, modificavam seu cotidiano da roça. (NEPOMUCENO, 1999, p.159).

Dentro do contexto da preservação de valores culturais, dá-se o surgimento de um novo gênero da música caipira, conhecido como “Tupiana”, iniciado em 1958 por Alcides Felismino de Souza (Nonô Basílio) e Mário Zan.

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O objetivo era criar um ritmo essencialmente brasileiro para combater a música estrangeira que a cada dia ganhava mais força no mercado urbano e rural e prejudicava a música regional. Entretanto, não teve repercussão e o movimento acabou por produzir apenas três canções no ritmo tupi: “Alvorada Tupi”, “Linda Forasteira” e “Manakiriki” (SILVESTRINI apud CHAVES, 2006, p. 37).

Na década de 1960, a ideologia nacional popular, avivada pelas ideias marxistas das organizações de esquerda, reconheceu o homem do campo como integrante do “povo”, e sujeito potencial da “revolução brasileira”, ao lado da classe operária urbana e de setores sociais médios. No interior deste contexto são compostas algumas canções, dentre as quais, “A estrada e o violeiro”, de Sidney Muller, “Ponteio”, de e “Disparada” de Geraldo Vandré e Téo de Barros, que juntamente às canções de protesto, revelaram o sentido que se atribuía ao homem do campo, o seu espaço na politização da cultura brasileira. Para Bandini e Dias (2010, p.45), quando essa música começou a ser tocada nas rádios, a história e os valores do camponês passaram a ser divulgados, de modo que essa música agregou a capacidade de manter o caipira enraizado, já no contexto urbano, quando este se encontrava distante dos elementos culturais vivenciados no campo. Para Waldenyr Caldas (1977, p. 46) essa tentativa de criar uma nova estética para a música caipira se deu a partir de uma crise que permeava a música popular brasileira antes mesmo de 1970: “Foi um momento em que nossa música atravessou uma crise não apenas de consumo no mercado, mas também de produção e qualidade”. Ficou conhecida como “Nhô Look” e teve ainda a participação da cantora e da dupla Tonico e Tinoco. Sem muito sucesso, a iniciativa abriu novos caminhos para o surgimento de duplas e cantores, dentre outros, Léo Canhoto e Robertinho, Milionário e José Rico, Sérgio Reis, Eduardo Araújo e Nalva Aguiar, que ocuparam os palcos do novo estilo, cabendo às duplas que ainda mantinham o estilo original, a Música Raiz Sertaneja, o segundo plano na nova divisão de espaços mercadológicos. O processo de consolidação da identidade caipira tem na Música Raiz Sertaneja uma aproximação do rock, da influência dos cowboys e da Jovem Guarda, bem como das temáticas urbanas. Para Chaves (2006, p. 34) o novo movimento surgiu principalmente pelas mãos de um maestro Rogério Duprat, que foi um dos pioneiros 107

do movimento “Tropicália” no Brasil42 que mesclaria elementos da cultura dos Estados Unidos da América à música brasileira. A música de raiz mudou para se adequar à nova realidade e surgiram novos ramos da música sertaneja. De acordo com Nepomuceno (1999), outro destaque no campo da produção da nova roupagem para a música sertaneja foi o apresentador, radialista e produtor Geraldo Meirelles, o “marechal da música sertaneja”, que com visão moderna de negócio apadrinhou a importante dupla “Chitãozinho e Xororó” nas catracas do jogo mercadológico. Ressalta-se também outro produtor de discos com inovadora modernização de repertórios e arranjos, José Homero Bétio, investindo na mixagem da música caipira com o rock e abrindo novos horizontes pela conquista de um novo público. No contexto da Indústria Cultural, a música sertaneja de raiz passou por várias mudanças para atender as necessidades do mercado consumidor. Ela deixou de ser a expressão da alma do povo e se transformou em uma indústria gigante, “sustentada por vendagens astronômicas e capaz de recompensar os vencedores com muito dinheiro e fama, a essa altura, o capiau já perdera a ingenuidade da roça, o encanto” (NEPOMUCENO, 1999, p. 22).

De acordo com a autora, frente a esta situação o mundo sertanejo estava irremediavelmente dividido. De um lado, os quase marginais, apegados às tradições, do outro, os que procuravam a integração com as novidades do mercado e vendiam mais. José Roberto Zan fala da modernização da música sertaneja como novo momento que foi se definindo como “sertanejo pop”, “sertanejo romântico” ou “neo sertanejo”, transformando-se num dos maiores segmentos

[...] que garantiu elevados índices de vendagem de discos a partir dos anos 80 com as duplas Xitãozinho e Chororó, Zezé de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, Jean e Giovani, dentre outras. Esse repertório, definido por críticos musicais e pesquisadores como “sertanejo pop”, “sertanejo romântico” ou “neo sertanejo”, é dirigido a um público suscetível à “modernização” da música sertaneja. Produtores, diretores artísticos e profissionais de marketing fonográfico indicam as inovações para garantir a vendagem dos discos [...]. (ZAN, 2008, p.5)

É interessante observar como este fenômeno da produção para o consumo já havia sido alertado por Adorno, (1951, p.5)

42- De acordo com Chaves (2006), Rogério Duprat foi financiado pela Companhia Rhodia que pretendia lançar a moda country em uma feira denominada FENIT. 108

[...] a essência se torna uma reduzida e degradada luta tenazmente contra o seu encantamento de fachada. A alteração das próprias relações de produção depende em grande medida do que ocorre na "esfera do consumo", na simples forma reflexa da produção e na caricatura da verdadeira vida: na consciência e inconsciência dos indivíduos.

De acordo com Nepomuceno (1999), em face desta indústria, a viola de dez cordas, instrumento típico do universo João Pacífico43, “quase” desapareceu, entre “Tapas e beijos”, sobretudo sob o som amplificado por toneladas de equipamentos e as vendagens de milhões de discos. A música sertaneja romântica, realmente tornou-se um produto, e como tal, agora provém de outro universo não ligado à cultura caipira como dantes.

O impacto da constituição do mercado de bens simbólicos e da forte integração da indústria cultural, enfraquece a politização do rural, passando-o a ser associado à ideia de refúgio utópico das contradições do mundo moderno e de lócus de práticas culturais simples, bucólicas e revestidas de forte aura de “autenticidade” (ZAN, 2008, p. 05).

A década de 1980, de acordo com Bandini e Dias (2010), foi marcada pelo surgimento de muitas duplas que aliaram ao novo estilo da música sertaneja, novos efeitos de mixagem e instrumentos eletrônicos, as quais eram dinamizadas também por altos investimentos publicitários, dentre tantas, Rio Negro e Solimões, Matogrosso e Mathias, João Mineiro e Marciano, Leandro e Leonardo, João Paulo e Daniel e novas produções de Xitãozinho e Chororó. A música sertaneja, influenciada pela cultura country e dos cowboys norte- americanos, e pela crescente realização de rodeios pelo Brasil, ganhou força na década de 1990, sobretudo nas áreas interioranas. Esse novo segmento musical, identificado como música country, simbolizado pela figura do cowboy, torna se negócio muito lucrativo, considerando a diversidade de produtos atrelados à imagem country, que vão desde discos e roupas até outros tipos de materiais presentes nas feiras agropecuárias e nos rodeios.

43- O conhecido mestre, poeta e escritor de um vasto repertório de letras caipiras, João Pacífico, mencionado pela autora, na verdade se chamava João Batista da Silva, ganhou o apelido na rádio. Nasceu em Cordeirópolis, SP, no dia 05-08-1909. Autor de reverenciados sucessos da música raiz sertaneja, dentre tantos, Cabocla Tereza, Pingo d`água, lembrados e cantados ainda hoje no universo da cultura caipira. 109

As mudanças estilísticas têm forte apelo comercial destinado a um público ávido por novidades, e as novas duplas usam roupas de grife, cabelos bem aparados e penteados. E assim, foi superada a antiga imagem do Jeca, caricata do caipira mal vestido, banguela, de botina trocada e com chapéu de palha. Resistente ao processo de mudança da música sertaneja exposto nos parágrafos anteriores, nas duas décadas de 1980-1990 começa a ser difundido um novo segmento ligado à música caipira tradicional, a chamada "música de raiz", a qual empunha a viola caipira como sua bandeira. A “viola sai do saco” e Zan (2008) pontua que tal segmento se configura como parte da MPB, sendo apresentado, dentre outros, por músicos e compositores como a dupla Pena Branca e Xavantinho, Inezita Barroso, Rolando Boldrin, Renato Teixeira, e também por cantores solistas e instrumentistas como Almir Sater, Ivan Vilela, Paulo Freire, Mazinho Quevedo, Roberto Corrêa, Braz da Viola, Pereira da Viola e Fernando Sodré, dentre outros. Conhecidos como “novos violeiros”, mais do que a busca pelo resgate da música caipira (mesmo porque essa não precisa ser resgatada, mas sim respeitada), buscam o aprimoramento técnico da viola. A novidade vem pela técnica inovando o jeito de tocar a “tradicional” viola caipira. São as influências diversas dos músicos dando à execução da violinha “cinturada”, novas sonoridades e visibilidade. Para Zan (2008) a viola, após a redução de seu espaço em décadas anteriores, retorna à cena inserida também em outros contextos que não os somente associados à cultura caipira, sendo encontrada na música erudita e instrumental, bem como em outros estilos como é o caso do movimento chamado de caipira groove, cuja gênese ocorreu no Estado de São Paulo. Autores como Zan (2008) e Nepomuceno (1999) mencionam que bandas, consideradas “pós-caipiras”, mobilizaram-se com o intuito de celebrar as raízes da música de "raiz", utilizando-se de elementos da música caipira com sonoridades e instrumentação influenciadas pelo rock e por outros estilos musicais como o funk e o rap. Dentre os grupos que se destacaram nesta vertente estão: Matuto Moderno, Mercado de Peixe e Fulano de Tal, Banda Dotô Jéka, Banda Caboclada, Trem da Viração, entre outras. 110

Portanto, constatamos que a Música Raiz Sertaneja sofreu, no decorrer dos tempos, alterações e influências em sua dinâmica cultural. Há quem diga que ela foi descaracterizada, mas outros opinam que ocorreu um enriquecimento. Nas últimas décadas surgiu um novo estilo, o “Sertanejo Universitário”, que predomina no mercado musical marcando um vasto distanciamento das origens do estilo na cultura caipira. Sem a intenção de aprofundar a análise, vale considerar que se faz necessário olhar a contraposição existente entre os dois estilos sertanejos, o “tradicional” e o “universitário”, para marcar um novo tempo para a cultura caipira. Há uma declarada rejeição entre os adeptos dos dois estilos. Nem aqueles aceitam mais estes, e nem estes, aturam mais aqueles. Uma por ser raiz, ser duradoura, tradicional, ser atemporal é vista como “ultrapassada, decadente, antiquada”, que os adeptos “universitários” ignoram e rejeitam a musicalidade, o caipirês, o enredo; a outra por ser descartável, momentânea, passageira, volúvel, que alguns tradicionalistas classificam como “sertanojo”, como “desfiguração”, “imitação” da verdadeira música caipira. Há perdas e ganhos com isto. Se por um lado há uma maior popularização da música sertaneja na cultura brasileira, também se acirra, pelas letras e mensagens das músicas, o choque cultural e valorativo posto pela divergência de opiniões. Se há um reconhecimento da figura do caipira e de sua importância na constituição da cultura popular, há também uma negação, rejeição e transposição de sua imagem criada e motivada pelos investimentos mercadológicos de interesses econômicos. Se há incentivo e formulação de políticas governamentais de resgates culturais, estes algumas vezes acabam se tornando manobra de interesses eleitoreiros, caricaturando o simbólico cultural caipira. Se há distanciamento nos estilos do gênero musical, há também um ressurgimento e maior valorização da prática da modalidade musical da raiz sertaneja. Esta, mesmo às margens mercadológicas, encontra boa ressonância ao gosto popular em toda sua tradição, e não caminha separada das mudanças relacionadas à cultura caipira, discutidas anteriormente. Para Bandini e Dias (2010, p. 40), a cultura popular é dinâmica, se modifica e se recria de acordo com as condições encontradas para sua produção. As autoras chamam atenção ao fato que:

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Ao contrário do que um olhar apressado sobre as expressões da cultura popular pode supor, tais práticas não são realizações do passado, fincadas apenas nesse período. Para quem produz e participa desses tipos de práticas culturais, a cultura popular é atual e ativa, pois expressa necessidades e anseios vividos por seus agentes no momento de realização dessa prática.

Apesar de a cultura caipira estar ameaçada em vários de seus aspectos pelas mudanças socioculturais como mencionamos anteriormente, a Música Raiz Sertaneja, ainda que seja sua principal forma de expressão popular, aparece como resistência simbólica afirmando-se na capacidade de se fazer como que invisível, (o como é tratada) escapando desta forma de ser redutível a qualquer padrão. Encontra-se como resistência na própria negação que lhe é atribuída. Ela está presente e se mantém viva e ressonante em diversos espaços culturais como programas televisivos, programas de rádios, orquestras de viola, clubes de viola, associações de bairros, publicações de artigos, revistas, livros, sites, vídeos, produções e publicações na cultura cibernética, programas de preservação cultural e folclórica de órgãos governamentais, festas familiares e festas populares, dentre outros. Percebemos isto também nas vozes dos violeiros Basílio e Lázaro, sujeitos da pesquisa, que dizem que todos gostam das músicas que cantam, e acabam por cantarem juntos: “Quando chegamos em alguma festa de família, ou lugares que vamos cantar para o povo, principalmente quando o povo fica perto da gente, no início ninguém canta e muitos ficam até por longe. Dali a pouco uns começam a cantar juntos, e depois de um certo tempo a maioria já entra na cantoria”; “Principalmente quando o povo começa a beber e se desinibe”. “Tanto faz ser homem, mulher, idoso, jovem, dependendo da música todo mundo se arrisca”; “As músicas Menino da porteira, Cabocla Teresa, Chico mineiro, Pingo d´água, tristeza do Jeca, é só começar a tocar que todo mundo vai junto”; “Já teve vez que num pleno solzão da tarde, todo mundo cantou o luar do sertão!” (gargalhadas)...

Se entendermos a sua identidade como um conjunto de repertórios de ação, de língua e de cultura, a Música Raiz Sertaneja se caracteriza como resistência, pois permite à pessoa reconhecer sua vinculação a seu grupo social e identificar-se com ele esteja onde estiver, independentemente de onde nasceu, de suas escolhas e de outras identidades que o campo político possa lhe atribuir. Como exemplo, podemos citar o grupo sujeito da pesquisa. Ainda que muitos não gostem do que cantam, do que falam, do como falam, ainda que seja considerado 112

“fora de moda”, coisa de velho, caipiragem, para o grupo em especial, cantar a música raiz é o fundamento de sua existência. Ali todos são o que são. Ali todos expressam sua legitimidade, sua singularidade, seu estilo. Ali cada um deixa sua impressão. Portanto, a identidade do grupo é configurada no âmago do ser da música raiz sertaneja posta como finalidade. Olhando desta forma, ela é uma resistência frente a tudo aquilo que lhe descaracteriza pelo ver de outros olhares. O que ocorre com este grupo, ocorre com tantos outros grupos existentes na cultura caipira rural ou urbana. Sobre as diversas modalidades de práticas da cultura caipira persistentes na atualidade, Brandão (1985, p. 40) afirma que “é o tradicional que se ressignifica, persiste e resiste aos padrões modernos, desdobrando-se também em resistência política e cultural”. O entrecruzamento dos tempos do trabalho com os tempos das festas da religião e do lazer faz do caipira um festeiro, cantador, contador de causos, lorotas, acontecimentos, em outras palavras, um bom de prosa.

2.5 A FESTA, O MITO E O RITO

Nos ínterins da produtividade do trabalho caipira as festas populares marcam importante papel social e religioso na vida coletiva rural. Dentre outras, podemos citar as festas Juninas, (Santo Antônio, dia 13 de junho, São João, 24 de junho e São Pedro, dia 29 de junho), a festa do Divino (data variável dependente da data da Festa da Páscoa, normalmente ocorre em maio ou junho), de São Roque (16 de agosto) e Folia de Reis (05 de janeiro). Em termos gerais, as festas possuem fundamentos diferentes para os vários grupos que as promovem. Além de celebrar as conquistas do ano agrícola, tornam-se também uma oportunidade para o pagamento de promessas e realização de pedidos para o próximo ciclo agrícola, bem como, momento de divertimento ou “válvula de escape” para as tensões acumuladas na vida dura do trabalho com a terra. As raízes destas celebrações remetem ao período da colonização brasileira, quando, longe de suas origens, os colonizadores frente às adversidades e o desconhecido, viam nas festas religiosas um momento de descanso, devoção, lazer e renovação do ânimo e das esperanças, além da afirmação de seus valores. 113

Como a festa precisa dos organizadores e dos participantes, que eram poucos na época, ao negro também se possibilitava esses momentos de “liberdade” como modo de “amenizar” o fardo da escravidão. O índio, aberto ao feito da catequese e fortemente marcado ao aspecto ritualístico na cultura, também se configurou como elemento importante ao culto da dádiva da natureza. De acordo com Amaral (2000), dentro desta configuração as festas mediaram a transformação de uma cultura nacional encerrando importantes elementos comuns da população como a religiosidade, a alegria, a culinária, a música, os folguedos, a socialização, dentre outros. As festas, além de se tornarem frequentes, foram criando em seus entornos uma diversidade de sentidos, estéticas e representações simbólicas. Sobre a temática da festa há trabalhos de pesquisas muito interessantes demonstrando, dentre outras, toda a complexidade política, ideológica, econômica, religiosa, sociológica, circunstantes da festa44. O percurso destas reflexões aborda a análise da festa tanto na sociedade “simples”, quanto na “complexa”, permeadas por diferenças fundamentais no conjunto de valores estabelecidos e partilhados por cada seguimento. Nelas a festa tem função de reiterar ou de negar o modo pelo qual uma sociedade, intensamente pluricultural, se organiza num dado momento histórico. O caipira, na vivência da festa, conta e revive, pelo rito, seu ponto de vista, atualizando seus mitos. As festas se constituem, minimante e de alguma forma, em eventos transcendentes, em um mundo ideal, para além do tempo e do espaço, em que, pela imaginação e configuração simbólica, tudo pode fluir, germinar, transformar, refazer. Contemplando todas as etapas, do planejamento à sua realização, a festa cria sentidos e exige propositividade. Ao se apresentar como mediação privilegiada entre dimensões e estruturas várias, as festas portam representações que possibilitam confluências entremeando o passado ao presente, o presente ao futuro, a vida e a morte, o sagrado e o profano, a fantasia e a realidade, o simbólico e o concreto, os mitos e a história, o local e o global, a natureza e a cultura, etc.

44- Trabalhos como o de Amaral, Rita de Cássia. (1996) “Cidade em Festa: o povo de santo (e outros povos) comemora na cidade” In: Magnani, J.G. e Torres, Lilian de Lucca (orgs) Na Metrópole- textos de antropologia urbana. São Paulo, Edusp. Amaral, Rita de Cássia. (1998) Festa à Brasileira. - Significados do festejar no país que “não é sério”. Tese de Doutoramento, São Paulo, USP. Magnani, José Guilherme C. (1984). Festa no Pedaço. São Paulo, Ed. Brasiliense; e SANCHIS, Pierre. Arraial: festa de um povo. As romarias portuguesas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983. 114

Desta maneira, numa festa popular, na qual o caipira pode apresentar ao público apreciador seus animais (carro de boi, o burro forte, o cavalo marchador, o gado, a vaca guia leiteira, ou de montaria) e utensílios de lida na roça, (o arado, o engenho, o berrante, o facão, outros,), desfilando pelas ruas e espaços a riqueza de suas relações com outros grupos, sente que suas conquistas são reais, e por meio delas, ele se vê e se representa em papéis ativos. Se ele não participa diretamente como agente apresentador, participa numa forma indireta de representação de sua classe, de sua vida, de seu trabalho, ali identificado. Indiretamente torna sua a história dos representantes de seu espaço, de sua linguagem, de sua produção cultural. Nas festas são celebradas, são evidenciados os símbolos de sua história, de suas alegrias, de seus laços de pertencimento, de representatividade. O povo é o seu, a música é a sua, as histórias carregadas de vantagens e algures lhes pertencem, é de si, de seu entorno que falam, vestem, dançam e comem. As Festas de colheitas (do café, da maçã, do morango, do milho, do caju, da uva, dentre outras) se apresentam como dádivas de suas mãos que sabiamente souberam tecer cada momento do plantio, do cultivo e da colheita. Conhece seus processos, e agora se sente tomado pelos seus aromas, sabores, cores e olores. O seu produto é como se fosse o produto de si mesmo. Ao participar de uma festa religiosa, no recolhimento dos percursos de procissões, visitas a locais sagrados, romarias em grupos a centros religiosos, frente ao desfrute de suas relações com o transcendente, ele se reconhece amado, merecedor, ouvido, atendido pelos entes divinos que ouvem suas preces e realizam milagres. Ao participar de uma quermesse, seja como contribuinte de prendas, seja como consumidor de seus produtos, o caipira se enche de alegrias da alma e do corpo. Em festas civis, o show, o discurso, a representação artística, os folguedos, o brilho da animação, reportam que o que está em cena é vida do povo, e aí se acham sua história e seus anseios encenados na forma de alegorias, artefatos e músicas. Ainda que o riso seja o de si mesmo, o caipira se embrenha no espírito do povão levando em frente suas paixões e suas causas. Ao participar de uma festa de família, o caipira refaz o fortalecimento de seus laços, de sua tradição, da continuidade de sua história. Valores, sonhos, dados da 115

realidade existencial e desnudada, coabitam num universo de amor, de cuidados, de expressões afetivas. Na festa, por mobilizar opiniões, os causos, os contos, as lendas, as novidades e as lamurias são costurados pelos fios dos fatos vividos e suscitados na inteireza das relações parentais e de amizades. A vida, a fé, a realidade, a utopia são elementos que a festa põe em evidência, circunstancias do seu dia-a-dia, e nas palavras de Léa Freitas Perez e André Tavares Silva Santos (2005, 216) ao citarem Pierre Sanchis (1983 p. 395), dizem “o da pulsão de vida, de si disruptiva e indefinida”. Nas festas da roça, como diria Sanchis (1983 apud PEREZ E SANTOS, 2005, p. 213), “[...] aquela que na memória sempre é a mais bela da região [...]”, mediatizadas pelas cantorias - como a dos Santos Reis, catira, fandango, desafios, roda de viola, pamonhada, mutirões, juninas, cavalgadas, do biscoito, função de São Gonçalo, e outras - o caipira, por estar entre os de mesma condição, celebra o fazer constitutivo de seu espaço primordial de criar e recriar significados e tradições. Canta, dança, declama, ri, come, partilha, está com, está para e está entre os seus. Desta forma, podemos afirmar que a festa é um poderoso agente de interação, compreensão e expressão para o caipira. Nesses momentos é possível a todos se reconhecerem como únicos, necessários e integrantes de uma mesma realidade cultural. Retomando as palavras de Brandão (1983), no âmbito dos espaços festivos a cultura caipira celebra tudo que vai da mesa ao Mito - o que se come e o que se conta enquanto se come - e da roupa ao rito - o que se veste e o que se faz com a roupa vestida. O mito refaz o rito, e o rito revive o mito. O símbolo, em suas intercessões, sela e ressignifica suas ausências e suas inteirezas. Ao percorrer os passos da reflexão sobre a descaracterização da figura do caipira e de sua cultura e de sua musicalidade raiz, podemos notar que as festas caipiras no contexto urbano sofreram e sofrem profundas transformações desde a alteração das formas de sociabilidade, passando por renovação ou simplesmente desaparecimento, à geração de uma perspectiva lacrimosa e nostálgica dos nichos de tradição, forçando uma fantasia de tempos passados e o desapontamento com o momento presente. Nos dizeres de Sanchis (1997, p. 12 apud PEREZ; SANTOS, 2005, p. 214), “[...] as festas, fazem parte de uma “herança cultural” sim, mas, “misturadas à transformação social em curso, acompanham esta herança na ambiguidade dos sentimentos que ela 116

suscita”. Muitas festas caipiras sobrevivem à dupla imbricação entre tradição e modernidade e entre estrutura e história. De acordo com Sanchis (1983 apud PEREZ; SANTOS, 2005, p. 214), podemos perceber que aos indicadores de sobrevivência, ressaltam o desafio da invenção e reinvenção, ressignificação e novas perspectivas

[...] vista à distância temporal ou geográfica que delas nos afastam, permanecem, no entanto, ‘afetivamente’ ligadas ‘ao humo onde germinam, onde germinaram’. [...] trata-se, portanto, de transformação, mas não de morte, pois a festa é ‘uma tradição que não quer morrer’ e que aproveita-se de ‘todas as brechas que se lhe oferecem para insinuar um seu rebento, de todo espaço ainda livre para nele germinar um botão’.

A festa aproxima-se do mito, pois tal como as figuras míticas, se morre, morre parindo. Para Sanchis (1983, p.13 apud PEREZ; SANTOS, 2005, p. 215), a festa, em sua dinâmica, alterna-se em

[...] desaparecimentos, transformações sucessivas, tentativas de ressureição ou de sobrevida temporária ocorrem, mas também, novos nascimentos. [...] saudosismo, idealização romântica do passado perdido, crescente folclorização, perda de dinamismo enquanto elemento de ligação com o conjunto da vida social, mas ainda ‘geradora de sentido, inspiradora de atividades coletivas, de emoção globalizante, de comunicação e de participação’.

Portanto, nos espaços de subsistência cultural caipira, a festa propicia a articulação de sentidos, opera uma costura sincrética entre passado e presente, o novo e o velho, entre as representações e as práticas. Por fim, reconsiderando o que tratamos até então podemos concluir, em concordância com Marcel Mauss (Mauss, 2003, p. 212 apud Perez; Santos, 2005, p. 215) que A festa trata, no fundo, de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca.

Retomando o que tratamos até então, vimos que, se por um lado, a história da cultura caipira, tida como rústica, raramente foi escrita com tintas favoráveis ao seu sujeito, por outro, vemos nele, ser portador de um conjunto de saberes simples, que apesar de tudo, ultrapassa os limites do tempo e do espaço. Também abordamos que sua principal voz, pronunciada na música caipira, foi sufocada mediante os ditos da 117

indústria cultural, e que apesar das alterações e influências sofridas, ela aparece como resistência. Está presente e se mantém viva e ressonante em diversos espaços culturais. No terceiro capítulo trataremos como estas práticas são fundamentadas e propostas nos âmbitos da Educação Popular e da Educação Sociocomunitária, à luz dos olhares da pedagogia freireana e salesiana.

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CAPÍTULO 3 ENTRE PONTEIOS E REPICADOS DA VIOLA45: EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA

Freire (1987), afirma que apesar de o ser humano não ser determinado, ele está sujeito a condicionamentos pelo contexto histórico e sociocultural onde vive. Mas o potencial da existência humana está em ter consciência de seus condicionamentos. Por meio de uma visão crítica da realidade, cabe-lhe enfrentar as situações-limite, superando-as através da luta solidária e coletiva pela transformação das realidades condicionantes. Diversas poesias sertanejas propõem a participação na qual cada indivíduo possa se ver nesse processo, e por meio dele, a sua tomada de consciência. Em poesias cantadas em músicas como “Porta do Mundo”, composição de Pião Carreiro e Zé Paulo, interpretação da dupla Tião Carreiro e Pardinho (1986), vemos a afinidade com a viola, e por meio dela, a evocação de concepções de mundo, vida, natureza, religiosidade dentre outras. O saber de si conjuga-se em um saber consciente, situado, histórico, libertário, poético e autônomo.

O som da viola bateu No meu peito doeu, meu irmão / Assim eu me fiz cantador Sem nenhum professor aprendi a lição / São coisas divinas do mundo Que vem num segundo a sorte mudar / Trazendo pra dentro da gente As coisas que a mente vai longe buscar - Em versos se fala e canta O mal se espanta e a gente é feliz / No mundo das rimas e trovas Eu sempre dei prova das coisas que fiz / Por muitos lugares passei Mas nunca pisei em falso no chão / Cantando interpreto a poesia Levando alegria aonde há solidão. - O destino é o meu calendário O meu dicionário é a inspiração - A porta do mundo é aberta Minha alma desperta Buscando a canção / Com minha viola no peito Meus versos são feitos pro mundo cantar / É a luta de um velho talento menino por dentro sem nunca cansar.

Na poesia da música “No Rancho Fundo”, composição de e Lamartine Babo, interpretação Chitãozinho e Xororó (1987), notamos a crise existencial do caipira frente a modelos culturais diversos onde a desestabilidade de seus valores lhe impõe uma nova consciência, a qual, lhe exigirá rompimentos e reformulações de estruturas internas e externas.

45- “Ponteios e repicados da viola” são termos utilizados para mencionar os toques dedilhados na viola, marcando a passagem entre um verso e outro da composição musical caipira. Refere-se também à ideia de interligação, ligamento, continuidade de conteúdos equivalentes. 119

No rancho fundo Bem prá lá do fim do mundo / Onde a dor e a saudade / Contam coisas da cidade... / No rancho fundo / De olhar triste e profundo / Um moreno canta as máguas / Tendo os olhos rasos d'água... Pobre moreno Que de noite no sereno Espera a lua no terreiro Tendo um cigarro Por companheiro... / Sem um aceno Ele pega na viola E a lua por esmola Vem pro quintal Desse moreno... - No rancho fundo Bem prá lá do fim do mundo Nunca mais houve alegria Nem de noite, nem de dia... / Os arvoredos Já não contam Mais segredos E a última palmeira Ja morreu na cordilheira... / Os passarinhos Internaram-se nos ninhos De tão triste esta tristeza Enche de trevas a natureza... / Tudo por que Só por causa do moreno Que era grande, hoje é pequeno Pra uma casa de sapê... - Se Deus soubesse Da tristeza lá serra Mandaria lá prá cima Todo o amor que há na terra... / Porque o moreno Vive louco de saudade / Só por causa do veneno Das mulheres da cidade... / Ele que era O cantor da primavera / E que fez do rancho fundo O céu melhor Que tem no mundo... / Se uma flor desabrocha E o sol queima A montanha vai gelando Lembra o cheiro Da morena...

Na música “Vide Vida Marvada”, composição e interpretação de Rolando Boldrin (1981), podemos notar que esse processo de tomada de consciência poderá se dar de forma dialógica. Não em qualquer forma de diálogo, mas possível de ser verdadeiro, preciso, aberto e construtivo. O caipira filosofa a natureza, os fenômenos do seu entorno e recursa empiricamente a metafísica tecida entre o si, o mundo, a poesia e sua viola. Corre um boato aqui donde eu móro Que as mágoas que eu choro são mal ponteada. Que no capim mascado do meu boi A baba sempre foi santa e purificada. Diz que eu rumino desde menininho Fraco e mirradinho a ração da estrada. Vou mastigando o mundo e ruminando E assim vou tocando essa vida marvada. É que a viola fala alto no meu peito humano E toda moda é um remédio pros meus desengano É que a viola fala alto no meu peito, mano E toda a mágoa é um mistério fora desse plano. Prá todo aqueles que só fala que eu não sei vive Chega lá em casa pruma visitinha. Que no verso e no reverso da vida inteirinha Há de me encontrar no cateretê. Há de me encontrar no cateretê. Tem um ditado dito como certo Que cavalo esperto não espanta a boiada. E quem refuga o mundo resmungando Passará berrando essa vida marvada. Compadi meu que inveieceu cantando Diz que ruminando dá pra ser feliz. Por isso eu vagueio ponteando E assim procurando a minha flor-de-lis.

O caminho da educação é o que se apresenta na melhor possibilidade de transformação existencial. Pela ação educativa, se autoconstrói e se auto regula, conforme afirma Paulo de Tarso Gomes (2008, p.54). A Música Raiz Sertaneja poderá ser articulada em práticas tanto da Educação Popular quanto da Sociocomunitária, por serem propositivas ao saber do indivíduo e da comunidade onde se insere. Poderá ser uma aliada aos seus processos educativos e de cidadania.

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3.1 UM OLHAR SOBRE AS ORIGENS E PROCESSOS DA EDUCAÇÃO

A educação, em seus primórdios, como processo formativo, consistia principalmente na vivência do indivíduo no entorno e contexto da vida cotidiana do grupo social em que estava inserido. De acordo com Brandão (1985) tudo era conteúdo de aprendizagem, desde o acompanhar o adulto em suas atividades diárias como plantar, caçar, localizar água, entender os sinais do tempo, escutar histórias e participar de rituais, até as ações espontâneas do dia-a-dia. Pelas observações nas atividades dos adultos, aos poucos, as crianças se apropriavam de instrumentos de trabalho e interiorizavam valores morais e comportamentos desejados pela sociedade. Nos dizeres de Ana Mercês Bahia Bock, Odair Furtado e Maria de Lurdes Trassi Teixeira (2009, p. 261) “não havia uma instituição especializada nessas tarefas. O meio social, em seu conjunto, era o contexto educativo. Todos os adultos ensinavam a partir da sua experiência pessoal, ou seja, aprendia-se fazendo”. Desde a antiguidade até a Idade Média, este formato predominou como a principal maneira de fazer educação. No entanto, a partir da Idade Média, pessoas especializadas assumiram a tarefa de transmitir o saber, surgindo também a necessidade da criação de espaços específicos para essa atividade, nascendo assim, o que se denomina hoje de "escola". Desde então, por esta prática, a educação passa a ser produto da escola. Destaca-se, porém, que neste novo modelo, poucos tinham acesso, pois era destinada exclusivamente à nobreza e à burguesia. Estabelece-se desta forma, a divisão social da educação, ou seja, o surgimento de novos parâmetros e novas concepções educacionais em base a seus fins. Privilegiava-se uma educação para a classe dominante, que atendesse aos interesses da cultura aristocrática e os conhecimentos religiosos: Enfim as atividades desempenhadas pelos grupos dominantes na sociedade passavam a ser cuidadosamente ensinadas, e isso fez da escola ora lugar de aprendizado da guerra, ora das atividades cavalheirescas, ora do saber intelectual, humanístico ou religioso. A escola desenvolvia-se como instituição social especializada, que atendia aos filhos das famílias de poder na sociedade (BOCK et. al., 2009, p. 262).

A escola não é um órgão autônomo que busca romper com as tradições. Nota-se a dependência na filosofia, nas organizações políticas, no setor industrial, na ciência e na religião. 121

Entretanto, não é só na escola que se aprende. O aprendizado é inerente às relações do indivíduo na amplitude de seu entorno cultural, desde ações empíricas às estruturais, firmadas em inteirações pessoais e sociais. É um processo inacabado que vai além de “lócus” específico para tal. Todos os “por aí” da sociedade se tornam locais do acontecer das práticas educativas, a começar do ambiente familiar, escolar, aos espaços comunitários. Cada prática possui um método de transmissão de ensinamento, seja ela formal ou não formal.

3.1.1 Educação Formal e Educação não-formal

Nos dizeres de Moacir Gadotti (2012), a educação formal é representada principalmente pelas escolas e universidades. Instituída por uma diretriz educacional centralizada como o currículo, com estruturas hierárquicas e burocráticas, determinadas em nível nacional, com órgãos fiscalizadores do Ministério da Educação46. A educação formal é um processo que contribui na formação e desenvolvimento do indivíduo, preparando para o convívio social, para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho.

Na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) observamos a seguinte diretriz: Art. 1º - A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (BRASIL, 1996).

Nas escolas formais, de uma maneira geral, o ensino é tradicional, acumulativo e sistematizado, formando indivíduos para a busca de ações de sobrevivência. O educando, se por um lado é reconhecido como um sujeito de direitos, por outro, é tido como um ponto central de desenvolvimento econômico e social. Isto, de acordo com Ângela Maria Martins, impossibilita a autogestão educacional.

A autogestão seria, assim, uma nova forma de os indivíduos assumirem responsabilidade sobre suas atividades, sem intermediários, tendo o poder de influenciar no conteúdo de sua organização em diferentes esferas da vida econômica e social. (MARTINS, 2002, p.3).

46- A educação formal brasileira é regulamentada pela Constituição Federativa de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FuNDEB).

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Para Gadotti (2012), metodologicamente diferente da estruturação da educação formal, a educação não-formal é mais difusa, menos hierárquica e menos burocrática. Os programas de educação não-formal não precisam necessariamente seguir um sistema sequencial e hierárquico de “progressão” como na educação formal. Podem ter duração variável, e podem, ou não, conceder certificados de aprendizagem. A Educação não-formal possui um conceito amplo, muitas vezes associado ao conceito de cultura, daí estar ligada fortemente à aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos e à participação em atividades grupais, sejam adultos ou crianças. Seguindo a mesma linha de pensamento, Martins (2002, p.187), afirma que a Educação não-formal, conhecida como atividade socioeducativa dentro da política pública social, visa à melhoria da vida da população, e por meio de atividades e implementação de ações direcionadas para as necessidades básicas, estimula o desenvolvimento de competências de um determinado grupo. Quando se trata de sua definição, Gadotti (2012, p.8) afirma que seria melhor definir a Educação não-formal por aquilo que ela é, pela sua especificidade e não por sua oposição à educação formal. Menciona que normalmente se define a Educação não- formal por uma ausência, em comparação com a escola, tomando a educação formal como único paradigma, como se a educação formal escolar também não pudesse aceitar a informalidade, o “extra escolar”. A percepção da educação não formal como algo que se complementa com a educação escolar, e vice e versa, já era defendida por Freire (1997, p.50) ao afirmar que

Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que aprendemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação.

Também para Gadotti, o conceito de educação ultrapassa os limites do escolar, do formal e engloba as experiências de vida, os processos de aprendizagem não-formais, que desenvolvem a autonomia tanto da criança quanto do adulto. As ações socioeducativas poderão ter ou não seus objetos de conhecimento predefinidos, como no caso da educação escolar formal. Em muitos casos, são construídos a partir das especificidades dos sujeitos envolvidos e da sua realidade. Para 123

que as transformações ocorram, as práticas educativas não-formais utilizam as mais diversas formas de linguagem e expressão corporal: a arte em sua diversidade de expressões, o conto, a poesia, a criação imaginária e lógica, entre outras. Valoriza-se a autoestima e a potencialidade de cada indivíduo participante. Notamos, porém, que estas ações e práticas não acontecem necessariamente pelo fato de ser educação não-formal, pois poderão ocorrer na educação formal da mesma maneira. Uma não é necessariamente a substituta da outra. Tanto numa forma quanto na outra podemos notar ações relevantes no processo da aprendizagem, ações que não favorecem uma educação integral, progressista, libertadora, cidadã preconizadas como sistema educativo. O que trazemos em discussão é sua epistemologia. Muitas ações da educação não-formal são desenvolvidas dentro de salas escolares com resultados surpreendentes e vice e versa. Não se trata de ser esta melhor que aquela, e sim, de ver o que esta tem a contribuir como modelo. Renata Sieiro Fernandes (2007) considera que os movimentos populares, as organizações que visam mudanças sociais e conscientização da cidadania, e em casos específicos, os órgãos governamentais, são hoje, os principais promotores das ações socioeducativas de transformação social. Estas ações e atividades socioeducativas requerem reflexão, planejamento e estruturas sociais favoráveis.

Para tanto, necessita-se de um local onde todos tenham espaço suficiente para experimentar atividades lúdicas, estas entendidas como tudo aquilo que provoca e seja envolvente e vá ao encontro de interesse, vontades e necessidades adultos e crianças (FERNANDES 2007, p. 10).

As atividades são vivenciadas com prazer e em local agradável entre os participantes. Na educação não-formal, estes espaços educativos funcionam como prática de vivência social. Pelo contato com o coletivo o sujeito estabelece e forma laços afetivos. Torna-se vantajoso utilizar-se da metodologia por intermédio de atividades lúdicas, jogos e brincadeiras, que, ao mesmo tempo, divertem, transmitem conhecimentos, despertam a curiosidade, a imaginação, a criatividade e, principalmente, a potencialidade de cada indivíduo. Fernandes acentua que este tipo de vivência, procura levar em consideração as referências culturais e o histórico do grupo, favorecendo diferentes possibilidades de exercícios. 124

Conforme Freire (2001), as relações na educação devem proceder de contextos que acolham as práticas educativas como práticas sociais e devem continuar por meio de suas múltiplas atividades em contextos educativos em si mesmos.

Aprender e ensinar faz parte da existência humana, histórica e social, como dela fazem parte a criação, a invenção, a linguagem, o amor, o ódio, o espanto, o medo, o desejo a atração pelo risco, a fé, a dúvida a curiosidade, a arte, a magia, a ciência, a tecnologia. E ensinar e aprender criando todas estas atividades humanas (FREIRE, 2001, p. 12).

A educação pela ótica de Freire é um dos elementos essenciais para o desenvolvimento humano. Por esse motivo, de acordo com Costa (2011), o estado a coloca dentro das políticas públicas, ou seja, é uma ação preventiva que tem como objetivo atingir toda a população.

A educação como uma política pública deve expressar e proporcionar a compreensão do mundo, a opção política, a posição pedagógica, a inteligência e o sonho da vida na cidade, tudo isso com ênfase nas preferências políticas, éticas, estéticas urbanísticas e ecológicas de quem a pratica. (COSTA 2011, p.184).

Desta maneira, a educação deve ser algo construído na relação do cotidiano o qual está em transformação a todo momento. Para Freire o diálogo ocupa lugar central neste processo como forma de mediação entre o mundo e os homens. O diálogo deve ser a expressão necessária da existência do indivíduo. O processo educativo se dá por meio do qual o sujeito da educação toma consciência dos mecanismos e dos condicionantes reprodutores das injustiças e age para transformar e libertar a si mesmo e os outros em suas relações sociais e existenciais. Como elemento de formação para a cidadania a educação se caracteriza pela forma de transmissão de saber e cultura. Através de suas atividades educativas os indivíduos podem melhor compreender o mundo e pelas próprias ações, fazer intervenções como sujeitos construtores de cidadania. Tanto por meio de ações educativas programáticas, quanto pelo acesso a ações lúdicas, o indivíduo, ao mesmo tempo, aprende e transmite conhecimento e desperta para novas potencialidades. Tais ações levam em consideração as diferenças culturais e a trajetória de vida individualizada e social. Importante ressaltar que, na presente pesquisa, tivemos como foco de abordagem os processos educativos decorrentes de práticas não escolares, mais especificamente 125

aqueles presentes nas músicas de raiz sertaneja, cantadas solitariamente ou nas rodas de viola. Inscrevem-se, portanto, no que os autores citados Gadotti (2012), Martins (2002); Fernandes (2007), Freire (2003) e Costa (2011), entendem por Educação não-formal. Não obstante, nada impede que os aprendizados aqui apontados sirvam como conteúdo escolar. Neste contexto passaremos a abordar a Educação Popular e a Educação Sociocomunitária como expressões de processos educativos auto constituintes.

3.2 SOBRE A EDUCAÇÃO POPULAR

A construção de conhecimento, numa concepção de Educação Popular (EP), vai além da realização de atividades pedagógicas para os educandos, que se iniciam na alfabetização e terminam em etapas e ciclos de aprendizagens (planos, projetos político- pedagógicos, diretrizes, etc.), normalmente configurados e legitimados por certificados de conclusão, diplomas, especializações, e “qualificação” de mão-de-obra. Na Educação Popular, Brandão (2006) afirma que o conhecimento se caracteriza e se realiza por intermédio de todas as situações em que, a partir da reflexão sobre a prática de movimentos sociais e movimentos populares (as “escolas” onde tem sentido uma Educação Popular “ensinar”), as pessoas trocam experiências, recebem informações, criticam ações, refletem sobre as situações e aprendem. Esta forma de conceber educação é mais um modo de presença assessora e participante do educador comprometido, do que um projeto próprio de educadores a ser realizado sobre pessoas e comunidades populares. As atividades pedagógicas vão além de um trabalho coletivo em si mesmo, tornando-se momentos em que a vivência do saber compartido cria a experiência do poder compartilhado.

[...] a Educação Popular é uma prática social. Melhor, é um domínio de convergência de práticas sociais que têm a ver, especificamente, com a questão do conhecimento. Com a questão da possibilidade da construção de um saber popular. Da apropriação, pelas classes populares, do seu próprio saber. Aquilo que é a fala e a lógica que traduzem a passagem de sujeitos e classes econômicas, para sujeitos e classes políticas. (BRANDÃO, 2006, p.92).

Como observamos, a Educação Popular enquanto apropriação do saber cultural, poderá se tornar um veículo do estudo e da valorização da cultura caipira, sendo que os 126

sujeitos da Educação Popular se compõem, a priori, da classe que não tem acesso à formação escolar tida como formal e clássica. Ou mesmo nos espaços da educação formal em que são viáveis à aprendizagem do conteúdo da cultura caipira. Por exemplo, abordar a visão de época num conteúdo de história pela análise de letra da música raiz. A partir de uma palavra geradora presente numa música raiz, fazer discussão de gênero, de ecologia, de economia, e assim por diante. A Educação Popular parte de uma concepção educacional política que visa à formação de sujeitos críticos, de transformação, capazes de imaginar, propor e criar novos espaços e relações no ambiente local, regional, federal e latino-americano, calcada em princípios que apostam na construção de relações de poder efetivos, justos, nos diferentes âmbitos da vida. Uma pedagogia crítica e criadora, que busca o desenvolvimento pleno de todas as capacidades humanas: cognitivas, psicomotoras, emocionais, intelectuais e valorativas. A Educação Popular, segundo Brandão (2006), é uma práxis educativa baseada na ação do povo e pelo povo, ou ainda, uma pedagogia que gesta um movimento popular que incorpora um movimento pedagógico. De acordo com Freire (1987), sua práxis educacional é libertária, funda-se num processo político-pedagógico. A Educação Popular é centrada no ser humano como sujeito histórico, transformador, que se constitui socialmente em suas relações com os outros seres humanos e com o mundo. Para Oscar Jará Holliday (2006, p.237) a Educação Popular é tanto uma concepção de educação, quanto um fenômeno sociocultural:

Como concepção educacional, a Educação Popular não possui um corpo de categorias sistematizado, em todos os seus extremos. Entretanto, podemos afirmar que aponta à construção de um novo paradigma educacional, que se opõe a um modelo de educação autoritário, de reprodução, predominantemente escolarizado e que desassocia a teoria da prática. Como fenômeno sociocultural, a Educação Popular faz referência a uma multiplicidade de práticas com características diversas e complexas, que têm em comum uma intencionalidade transformadora.

Comentando essas práticas da Educação popular, o autor afirma que, desde a sua origem, estiveram acompanhadas de múltiplos esforços de teorização e reflexão por parte de seus praticantes, assim como de pesquisadores externos, empenhados em explicar, fundamentar e projetar o esboço teórico-metodológico de seu fazer educativo. 127

Conforme Jará Holliday (2006, p.238) não há um foco consensual para as práticas educacionais da Educação Popular:

Em muitas ocasiões, passam desapercebidas e, inclusive, algumas não são reconhecidas pelos seus praticantes como ações educacionais. Às vezes, são desconsideradas e desvalorizadas. Outras vezes, são utilizadas pelo próprio sistema a que dizem confrontar. Muitas estão repletas de inovações e produzem importantes novidades, outras se tornaram reféns da rotina e repetem moldes e modelos estereotipados. Entre elas, há práticas que articulam o micro e o macro, o local e o global, que vinculam dimensões organizadoras, investigadoras, pedagógicas e comunicativas em um mesmo processo dinâmico integral e transdisciplinar. Há outras restritas aos trabalhos grupais e comunitários, concentradas em alguma dimensão particular e sem uma explícita visão de complexidade.

Apesar de comumente não haver uma formalidade e estruturação em seus afazeres, é pelo conjunto de suas práticas que a Educação Popular se efetiva como movimento educacional e como fenômeno sociocultural. Os limiares de suas práticas se estabelecem a partir de expressões de diferentes modalidades e tipos de ação que podem ir desde uma maior informalidade (e muitas vezes serem até despercebidas) até fazerem parte de uma política pública oficial, em casos como o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, aprovado em 2007 e da Política Nacional de Educação Popular em Saúde, aprovado em 2012. De acordo com Brandão (2006, p.92) três tendências sucessivas podem ser reconhecidas na Educação Popular como concepção educacional em face às suas práticas:

[...] 1) a Educação Popular é, em si mesma, um movimento de trabalho pedagógico que se dirige ao povo como um instrumento de conscientização etc.; 2) a Educação Popular realiza-se como um trabalho pedagógico de convergência entre educadores e movimentos populares, detendo estes últimos a razão da prática e, os primeiros, uma prática de serviço, sem sentido em si mesma; 3) a Educação Popular é aquela que o próprio povo realiza, quando pensa o seu trabalho político - em qualquer nível ou modo em que ele seja realizado, de um grupo de mulheres a uma frente armada de luta - e constrói o seu próprio conhecimento.

A diversidade de agremiações como os grupos de violeiros, catireiros, corurueiros, repentistas, foliões de reis, declamadores, contadores de causos e de histórias, entre outros, presentes nas práticas de cultura caipira, são espaços favoráveis às ações reflexivas e de aprendizagens a que se propõe o autor. O que se faz necessário, na realidade, é a ação do educador popular junto a estes grupos para o despertar da 128

consciência que estas possibilidades são factíveis e que eles próprios podem gerenciá- las. A Educação Popular como fenômeno cultural porta práticas de ações educacionais libertárias. É na consolidação da práxis educativa que a Educação Popular apresenta sua especificidade e processo de conhecimento e de humanização de homens e de mulheres sociais, históricos, situados.

[...] educação como processo de humanização, um ato político, de conhecimento e de criação, que ocorre no diálogo entre seres humanos, sujeitos de sua vida, e que, solidariamente, fazem e refazem o mundo. Ao falarmos de Educação Popular, não estamos nos referindo à educação das classes populares, mas à educação com as classes populares, com elas compromissada e com elas realizada, mediante o diálogo. (VASCONCELOS; OLIVEIRA, 2009, p. 136).

O estabelecimento de práticas educativas na Educação Popular pretende contribuir para fortalecer a autoestima, o protagonismo, a autonomia dos setores sociais que são excluídos pela lógica pós-moderna que impõe os estereótipos e padrões ideológicos e de valor dominantes como verdades absolutas. Lógica em que impera o individualismo, a competência, o mercado como regulador das relações humanas, a socialização de gênero patriarcal e machista. O que se propõe a partir da Educação Popular é a construção de novas relações de poder na vida cotidiana e no sistema social através da busca de expressões fundadas em relações de solidariedade, afetividade, espiritualidade e fortalecimento comunitário. O corpo de propostas teórico-metodológicas da Educação Popular é marcado por um duplo desafio: de um lado o empenho individual (ou coletivo) apropriando-se de uma capacidade de aprender, desaprender e reaprender permanentemente pela participação, mais do que pela apreensão de conteúdos determinados; e de outro, manter a utopia que as orienta respondendo às necessidades concretas e imediatas dos envolvidos, ao mesmo tempo em que aspira à construção de novas relações humanas. O discurso da Educação Popular é um discurso afirmativo, inclusivo, participativo que busca contribuir para mudar o mundo, humanizando-o, transformando as relações autoritárias de poder. Firma-se contrária à visão de educação tida como uma mercadoria (proposta pelos organismos financeiros internacionais). Proclama-se adversa ao discurso neoliberal predominante baseado em uma racionalidade instrumental, não criativa, sectária, tanto exclusiva, quanto excludente. 129

A Educação Popular tem a desafiante tarefa de atualizar seus discursos, suas práticas, seus conteúdos, já não como estritamente alternativos, consensos, responsabilidades compartilhadas, mas ressignificando sua práxis libertária. Observar-se no desafio de não se descuidar de seus planos de desenvolvimento, nos quais a participação cidadã tem um papel fundamental

Em suas formas mais consequentes, que hoje se recobrem de inúmeras iniciativas em todo o continente, a Educação Popular apenas gera um primeiro momento de passagem de uma educação para o povo a uma educação que o povo cria. Que ele produz ao transitar - não porque se educa entre educadores, mas porque inclui a Educação Popular no trabalho político que educa a ambos-— de sujeito econômico a sujeito político, e ao se reapropriar - tanto tempo depois, tantas histórias depois - de uma educação para fazê-la ser, pouco a pouco, a sua educação: a educação através da qual ele não se veja apenas como um anônimo sujeito da cultura brasileira, mas como um sujeito coletivo da transformação da história e da cultura do país. (BRANDÃO, 2006, p. 88).

Em seu discurso a EP almeja contribuir e qualificar o indivíduo em suas potencialidades, para que todos da sociedade enfrentem com sucesso os desafios da criação, da participação e da inovação. Frente à ordem social imperante que se impõe (o modelo de globalização neoliberal) como única possibilidade histórica, a Educação Popular propõe outra perspectiva, a partir da qual busca formar as pessoas como sujeitos críticos de transformação. Uma educação do fazer com o outro, e não pelo outro. Freire (1987, p. 83) afirma “daí que seja a educação um que-fazer permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade". Pensar os novos (e antigos) desafios da Educação Popular não pode desviar o foco da linha de sua historicidade, e nem tampouco desconsiderar os novos paradigmas socioeconômicos e educacionais da atualidade. Mediante o panorama econômico e tecnológico que afeta de maneira muito rápida e incisiva as políticas e educacionais, vemos o surgimento de novos sujeitos sociais, grupos, subgrupos, categorias.

Desenvolver essas capacidades como sujeitos transformadores, supõe retomar essa aspiração originária de promover uma educação libertadora: libertadora de nossas potencialidades humanas e da introjeção da lógica e valores de uma cultura dominante e opressora. Desenvolver essas capacidades transformadoras supõe também abrir caminho para a Educação Popular, para todas as modalidades e espaços em que se realiza a educação. Não estando restringida aos espaços marginalizados, aos não-formais, às pessoas adultas, 130

às modalidades extracurriculares etc. Desenvolver essas capacidades transformadoras leva a apoiar todos os esforços de reflexão, de formação, de articulação, de organização, em todos os campos, em todas as pessoas, para construir “outra educação possível para outro mundo possível”. (JARÁHOLLIDAY, 2006, p.238).

Cabe a toda e qualquer proposta de educação, mas principalmente à EP que visa uma educação pelos direitos e pela liberdade de criação, avançar sua reflexão com relação às organizações não governamentais e aos movimentos sociais à dimensão territorial, ao poder local, aos processos de descentralização e de desconcentração.

3.2.1 O fazer pedagógico e o sujeito da Educação Popular

Apesar de a Educação Popular já possuir um longo histórico na América Latina, está em constante reelaboração, pois como uma área em desenvolvimento, atualiza-se na medida em que faz uma releitura da realidade, na qual procura questionar e apontar possibilidades para a situação dos excluídos e segregados e, ao mesmo tempo, dialogar com as estruturas socioeducativas que consideram importante e necessário promover um salto qualitativo, do âmbito social ao âmbito político.

A Educação Popular não é uma ciência, nem um ente prévio com existência própria, senão uma presença, uma prática, uma vida, um acompanhamento, permanentemente nascente. [...]. A Educação Popular é uma opção moral e ética, não é uma metodologia, não é um método, não é uma técnica. É uma causa, uma militância, uma maneira de entender a vida. É uma forma de vida, testemunho, um convite, sonho, motivação, criatividade, esperança, participação, libertação. É profundamente humana, respeitosa e carinhosa. É uma maneira permanente de inserir-se na realidade para transformá-la. É uma forma de vida que tem consequências pedagógicas, econômicas, sociais, políticas, familiares. (ARGÜELO, 2006, p.226).

Roberto Sáenz Argüelo continua pontuando que os sujeitos da Educação Popular, na maioria das vezes, são os excluídos. Por isto, o local do destinatário são os setores populares agrupados com base em interesses específicos: mulheres, jovens, camponeses, trabalhadores, desempregados, indígenas, dentre outros. Neste contexto é possível também pensar o sujeito da cultura caipira, que precisa dar forma aos saberes acumulados em tantas práticas de seu universo de trabalho, lazer, religiosidade. O caipira urbano (onde se encontra a grande maioria dos sujeitos da cultura) influenciado pelas mudanças socioculturais, aos poucos está perdendo a posse da sabedoria cultural a que se detinha em seus espaços originários. 131

O grande desafio é pensar práticas plausíveis que lhes garanta a preservação deste patrimônio. Não por eles, mas eles mesmos é quem devem se converter em agentes protagonistas do seu próprio projeto, frente à organização e construção das mediações educativas. A construção do saber elaborado se dá concomitante à construção da cidadania e da participação cidadã. Se em suas origens falava-se de um projeto alternativo para a sociedade, segundo Argüelo (2006), hoje o discurso da EP volta-se mais para a corresponsabilidade com o governo, com os empresários. Um discurso de construção coletiva, de incidência e de consenso. Para o autor, o diálogo, a relação dialógica entre o educador e o educando, o ensino e a aprendizagem recíprocos, são as bases da teoria do conhecimento presente na Educação Popular. “Promove-se o espaço da criação participativa pela produção coletiva do conhecimento. Busca-se o saber uno a partir dos diferentes e das diferenças” (ARGÜELO, 2006). A metodologia dialética da Educação Popular parte da própria realidade da prática, para analisá-la, iluminá-la, teorizá-la e retomá-la (práxis), de maneira mais enriquecida, à mesma prática para transformar a realidade. O conflito subsequente de um problema, porta em si mesmo a possível saída para a libertação de seu jugo. Refletir, perguntar a prática pelos dados de sua (in)coerência, os diversos momentos e a sua (in)articulação, para torná-la deveras libertária. A dimensão educacional da prática pedagógica da EP baseia-se na concepção de que a educação é processo. Tais processos permitirão aos setores populares e a seus educadores, pela mutualidade da produção de seu saber, a tomada de consciência e o reconhecimento de sua própria realidade e de seu papel. “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987). Argüelo (2006) afirma que se em seu início a Educação Popular surgiu como um movimento esquerdista e se apresentou como uma educação alternativa, contestadora e libertadora; hoje prima pelo diálogo, tolerância, aproveitamento e disputa de espaços públicos, incidência e construção de consensos. Nos dias atuais a Educação Popular não é unicamente uma dimensão das camadas populares, por isso deve ter significado e presença direta no âmbito público. 132

Surgem novos sujeitos sociais, grupos, subgrupos, categorias. É necessário avançar na reflexão com relação às organizações não governamentais e aos movimentos sociais. A dimensão territorial, o poder local, os processos de descentralização e de desconcentração. Novos conteúdos, já não como estritamente alternativos, consensos, responsabilidades compartilhadas. Planos de desenvolvimento, nos quais a participação cidadã tem um papel fundamental. (ARGÜELO, 2006, p.228).

O autor afirma que “é preciso sistematizar um quadro teórico sólido que dê sentido aos fundamentos, princípios e categorias da Educação Popular”. Aponta também para a urgência de “construir e explicitar um corpo de referências conceituais, teóricas e metodológicas. [...] o específico da Educação Popular são os processos educacionais, pedagógicos, metodológicos e técnicos”. (ARGÜELO, 2006, p.228).

3.3 EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA: PROCESSO EM CONSTRUÇÃO

A Educação Sociocomunitária está em processo de organização de seu pensamento, num esforço propositivo de estudo e pesquisa, pela qual sua reflexão vai alcunhando sua fundamentação teórica. Para a análise deste tema teremos como principal aporte teórico os dizeres de Paulo de Tarso Gomes (2008) e de Marcos Francisco Martins (2007). Para Gomes (2008, p.46), por meio de um crescente esforço, nos aproximamos dos objetos de elaborações sobre a Educação Sociocomunitária que lhe são específicos como nomenclatura. As construções em linguagem visam facilitar nossa compreensão e, quando se constituem em obstáculo à compreensão e diálogo sobre o assunto, devem ser revistas, melhoradas ou descartadas. Por meio dessa construção se torna possível fundar a realidade ou a legitimidade da Educação Sociocomunitária. De acordo com Martins (2007) a Educação Sociocomunitária apresenta-se como um desafio para a pesquisa em educação. Se faz necessário conhecer sua gênese e desenvolvimento, observar seus limites e possibilidades, suas contradições e as forças que promovem a mediação de sua existência.

O trabalho com o objeto “educação social e comunitária” ao longo dos anos tem se demonstrado por demais inusitado e desafiante. Nossas primeiras aproximações investigativas indicam que ele realmente se revela como algo que está ganhando contornos claros e bem definidos na dinâmica societária atual. E neste movimento por se constituir como uma modalidade educativa, a “educação social e comunitária” tem interferido de maneira bastante 133

peculiar na realidade hodierna, o que a habilita como um objeto de pesquisa das ciências da educação. (MARTINS, 2007, p.106 -107).

O fato histórico fundante da Educação Sociocomunitária, presente na identidade institucional do UNISAL e em seu modo de educar, porta um processo educacional marcado por intervenções educativas que articulam a comunidade para transformações sociais: A proposta da investigação em Educação Sociocomunitária surgiu do estudo da identidade histórica de uma prática educativa, a educação salesiana. Em suas origens históricas, ela se fundava na articulação de uma comunidade civil - de religiosos e cidadãos comuns - em torno de um projeto educacional, que participou e promoveu transformações sociais em seu tempo e lugar histórico. (GOMES, 2008, p. 52-53).

O mesmo autor chama a atenção para os termos comunidade e intervenção, que são propositivos na linguagem da Educação Sociocomunitária, mas nem sempre são usados de forma unívoca na compreensão social. Para ele “comunidade” é um termo de tal modo associado ao bem comum, que quando se trata do mal comum, ela passa por um apagamento extremo. O termo comunidade reveste-se de uma bondade ideológica quase tão imensa quanto os termos família, no discurso social, ou vida, no discurso ético. No discurso da Educação Sociocomunitária o olhar para o termo comunidade é sempre positivo, no entanto,

[...] a comunidade, como local e prática do cotidiano, é também o local onde se reiteram as tradições, onde se fixam os preconceitos, onde se praticam de forma transparente as exclusões menos perceptíveis, sob a égide serena dos hábitos e costumes. Pode ainda ser o refúgio e o lugar da resistência a mudanças, a ruptura possível e concreta em relação à sociedade, a comunidade alternativa, que se propõe sempre como melhor do que está aí, numa sentença que tanto pode inspirar um projeto utópico como um profundo sentimento sectário e isolacionista, a construção concreta do projeto do medo, como ensina Baumann. (GOMES, 2008, p. 54).

Neste contexto, podemos situar práticas da cultura caipira existentes em comunidades no espaço urbano (ou não) com finalidade de preservar a memória cultural de suas raízes, e que de certa maneira, também são educativas. Vão desde “espaços” simples, aleatórios, informais, aos organizados e constituídos por estatutos, objetivos, metas planejadas, e até mesmo com intervenções políticas. Gomes, 2008, p. 54 chama atenção para outras palavras como o termo intervenção que, segundo ele, “[...] é, de algum modo, uma ruptura com o modo de ser 134

da sociedade, mas também pode ser uma ruptura como o modo de educar da sociedade [...]. Também pontua que “em toda proposta educativa, o momento da intervenção acontece por meio do processo criador, do momento de se discutir e fazer, ou refazer, a proposta educativa”. Apesar de “em alguns casos a intervenção ocorrer de forma negativa, na ação educativa é o processo de criação, de discussão, que o valida”. Para o mesmo autor “o que se busca na mudança de uma comunidade é sua autodeterminação. Sua liberdade de criar e de se autogerir”. O caminho da educação é o que se apresenta na melhor possibilidade de transformação existencial. “Pela ação educativa, a comunidade se autoconstrói e se autorregula”. (GOMES 2008, p.54). Procurando conceituar a educação Sociocomunitária, o autor afirma que ela se constitui no [...] estudo de uma tática pela qual a comunidade intencionalmente busca mudar algo na sociedade por meio de processos educativos. [...] ao buscar essa tática a comunidade concretiza sua autonomia. Buscar mudar a sociedade significa romper com a heteronomia, com ser comunidade perenemente determinada pela sociedade.

O mesmo autor afirma que em alguns casos é preciso admitir que uma entidade ou instituição externa, provoque, fortaleça e ofereça um projeto à comunidade, para que ela faça o trabalho final de efetivar mudanças. Menciona também o cuidado que se deve tomar, pois o critério fundamental no estudo desse objeto é a atenção a essa dialética entre instrumentalização e emancipação da comunidade. Neste contexto, podemos situar como exemplo, os casos em que o grupo de violeiro está a serviço de uma estratégia política e faz da música raiz apenas um veículo de interesse ao acesso a determinado grupo social. Tudo o que cantar, falar, pensar já está previamente constituído de interesses particulares. O uso da música raiz e dos violeiros torna-se apenas instrumento político facilitador, não possibilitando nenhuma forma de emancipação nem dos atores e nem dos receptores da ação ou da prática. A pesquisa de investigação em Educação Sociocomunitária se propõe como o estudo de um segmento dentro da investigação em educação e não como a resolução das grandes questões sociais e da educação. A Educação Sociocomunitária, por seu objeto se caracterizar por sujeitos sociais e históricos, tem muito a pesquisar e a contribuir na construção de linguagens e métodos que permitam propor modelos de ações educacionais. 135

As articulações instrumentalizadas ou emancipatórias da comunidade são as ferramentas para transformação social que se expressam por processos educacionais. Necessita de diálogos profundos com as Ciências Sociais, com a História e com outras áreas das ciências humanas vizinhas da Ciência da Educação para a formulação e amadurecimento epistemológico. Segue Gomes (2008, p.62)

A Educação Sociocomunitária é uma divisão na Ciência da Educação que, como as demais, envolve seus interesses e riscos. Proposta sua investigação a partir de evidências históricas de sua ocorrência prática, necessita ser investigada tanto sob a perspectiva histórica como sob a perspectiva crítica de sua prática, notadamente, como enfatizamos, em suas categorias de comunidade e intervenção educativa. Não exclui, não substitui, nem anula as divisões possíveis de Educação Social e Educação Não-Formal, sendo possível, a partir de sua identidade de investigação científica, contribuir com algumas perspectivas dessas divisões.

Aqui já podemos perceber uma aproximação entre a epistemologia da Educação Popular e a da Sociocomunitária: investigação tanto sob a perspectiva histórica como sob a perspectiva crítica de sua prática, categorias de comunidade e de intervenção educativa, a atenção para a superação da ideia de que educação resuma-se somente às atividades que os educadores fazem com determinada intenção e o foco no protagonismo do sujeito. Gomes considera que no caso da Educação Sociocomunitária a retórica do discurso cientifico não basta por si mesma, precisa estar alcunhada pelo colocar-se, historicamente, como práxis educativa.

A urgência de seu estudo - provocada pelas tensões entre cotidiano e história, entre tradição e transformação - não pode se superpor à crítica de valores que estão dados em seus termos, como comunidade, transformação social, emancipação, autonomia. Nem a urgência, nem o caráter axiológico de seus termos podem preceder à investigação social e histórica, que lhe conferem tanto o método de pesquisa como o método de ação. Com esses primeiros cuidados sócio epistemológicos, a investigação sobre a Educação Sociocomunitária pode propor-se ir além da satisfação retórica com seu discurso científico e colocar-se, historicamente, como práxis educativa. (GOMES 2008, p.62).

Desta forma, cabe à Educação Sociocomunitária analisar atentamente a investigação social e histórica em busca dos parâmetros que lhe conferem tanto o método de pesquisa como o método de ação.

136

3.3.1 Educação Sociocomunitária em aproximações (formal, social ou não-formal)

Partindo do princípio que a educação ocorre tanto fora quanto dentro da escola, sob forma institucional ou não, a Educação Sociocomunitária porta as duas possibilidades em suas práticas. Pode ser proposta tanto como educação formal, definida por um ambiente específico - e isolado - como o escolar, como fora dela. No âmbito da educação escolar, depende de uma prática escolar moderna, que educa sempre um sujeito universal, educa para conferir os saberes e atitudes que uma pessoa deve ter em qualquer lugar ou situação a que se encontrar. Quanto à abordagem não-formal, embora suas práticas possam estar organizadas por instituições, não têm por instrumento uma instituição e nem necessariamente um ambiente específico, como por exemplo, as práticas de educadores de cooperativas, de educadores de empresas comerciais, de “estudos do meio”, de educadores de rua, de agentes de controle de epidemias, entre outras. No entanto, Gomes (2008) nos chama atenção ao fato de que a instituição escolar, quando proposta, pode assumir tantas maneira e formas de se fazer, de modo que nem sempre se sustenta essa dialética.

A escola passa por transformações e urgências, entre as quais se acentua o chamado a interagir com a vizinhança local, que de algum modo ela se distancia da formação de um sujeito universalmente civilizado. A insistência de que a escola seja uma articuladora da comunidade tem sido uma estratégia do Estado para tentar, de algum modo, instrumentalizar as articulações comunitárias. E já aqui vemos a afinidade do problema da Educação Sociocomunitária com o problema da educação escolar, em suas relações próximas com a sociedade. (GOMES 2008, p.57-58).

Os caminhos da investigação propositiva da educação Sociocomunitária passam tanto pelas relações escola-comunidade, quanto comunidade-instituições educativas. A Educação Sociocomunitária (institucionalizada ou não) assim entendida releva-se por seu método, que considera primordial o grau de autonomia, de sistematização e controle do agir que se impõe ao educando em seu processo de aprender, e nem tanto o lugar onde se processa o aprendizado

De modo análogo à Educação Social, a investigação no campo da Educação Sociocomunitária nem se restringe, nem veta as discussões sobre as possíveis representações ou atuações não-formais em educação. Seja como tática da comunidade, seja como estratégia de um poder externo, o processo 137

educacional que resulta da articulação da comunidade pode ter por referência um critério de educação formal e a ele aderir ou se opor. (GOMES 2008, p.60).

O autor continua afirmando que cabe o pesquisador estar atento ao caráter educativo das mais diversas formas e processos de interação social e debruçar-se sobre as práticas educativas Sociocomunitárias, pois oferecem casos concretos de atuação na sociedade que permitem construir tipificações que esclareçam ou levem à superação da divisão formal ou não-formal. Faz-se necessária uma convicção de que tais práticas portam possibilidades de influenciar positivamente no processo educativo, e serão tanto maiores quanto maior for o envolvimento com as questões prementes de seus sujeitos educandos. Neste contexto podemos vislumbrar possíveis práticas educativas que reflitam e promovam os ensinamentos da cultura caipira “na” e “com a” escola, como por exemplo, abordando a gastronomia caipira em conteúdos ligados às disciplinas das ciências da natureza, da cultura e da linguagem, a abordagem de fatos históricos e sociais cantados nas músicas raízes como outra fonte de conhecimento e de informação, a linguagem, costumes, vida rural, diferentes fontes de trabalhos e atividades humanas, fenômenos naturais, contrastes entre vida rural e urbana, literatura brasileira, arte, danças típicas, religiosidade popular, influência do caipira na produção de alimentos para a cidade, produção cafeeira, cordéis, festas populares, geografias, histórias, entre tantas outras possibilidades. Podemos enumerar várias possibilidades para o caipira que há tempo deixou a vida na roça e hoje mora em bairros urbanos e aos que ainda residem na zona rural, como por exemplo, intervenções em associações de bairros, grupos de terceira idade, centros culturais, comunidades religiosas (por meio de pastorais como a Pastoral do idoso, Pastoral dos doentes, Pastoral da Solidariedade, Pastoral da Terra, Pastoral familiar, Pastoral da música, dentre outras), MST, Círculos de Cultura, Ongs ligadas à produção de alimentos orgânicos, Festas da colheita, Cooperativas agrícolas; condomínios rurais, clubes como o da viola, do peão, do laço, grupos de violeiros, grupos de tropeiros, orquestras de viola, grupos autônomos, secretarias da cultura, turismo rural, entre outros. Todos esses possíveis olhares têm elementos constitutivos de superação de preconceito, de conhecimento e de valoração da cultura caipira dentro dos espaços da 138

educação formal e da educação informal tanto no âmbito da Educação Sociocomunitária quanto da Educação Popular.

3.4 EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA: CONFLUÊNCIAS E DESAFIOS

Entendemos que a educação seja um fenômeno constitutivo essencialmente da existência humana. Ou seja, uma dinâmica da auto invenção da “pessoa humana”. Através dela o ser humano se constitui (ou mesmo reconstitui) em sua singularidade existencial e sociocultural.

3.4.1 Discursos de possíveis práticas no entorno da cultura caipira

O ser da educação, tanto no discurso da Educação popular quanto no da Educação Sociocomunitária, é colocar à pessoa humana a concreta possibilidade dinâmica da própria liberdade, que é a dinâmica do poder-ser. Da dependência e autonomia. Da possibilidade e impossibilidade. Do conhecimento e de sua aplicabilidade. Da dinâmica do ser e do vir-a-ser (não em confronto, mas em confluência). Do empenho e da gratuidade. De tudo o que está em jogo da passagem da impropriedade à propriedade da existência, ou seja, do abrir, do surgir, do desabrochar, do constituir-se da existência humana. Nos dizeres de Marcos Aurélio Fernandes (2007), supor um entendimento entre os dois modelos de educação propostos é afirmar a educação como processo pelo qual o ser humano se torna o que é, e isto só acontece, se mediante o empenho de sua liberdade. Neste sentido, nada há no ser humano que não precise ser assumido como uma tarefa de responsabilização pelo seu próprio ser, mesmo aquilo que nele parece o mais natural e dado por si mesmo, como caminhar, comer, beber etc. Nesse sentido, o caráter educativo está presente em todo ato humano, isto é, em todo comportamento, pois em todo comportamento o ser humano cunha a si mesmo como um ser de liberdade. (FERNANDES, M. A., 2007, p. 70).

Refletir e pensar a Educação Popular e a Educação Sociocomunitária, é firmar a filosofia da educação que, a priori, sustenta a educação (independentemente se formal, não formal, ou qualquer outra nomeação ou finalidade) como direito fundamental de 139

todos os homens e mulheres, independente de situação, lugar ou condição a que se encontrem. Como se sabe que nenhum conhecimento é neutro, e que quem estrutura a sociedade por um tipo de conhecimento, tem poder sobre ela. Olhar a educação desnudada de acepções instrumentalistas é tê-la como exercício, prática, meio, veículo no processo humano de seu crescimento, sua produção intelectual, e desenvolvimento de seu potencial criativo. A educação como possibilidade de avanço na compreensão de que a vida pode ser de outro jeito e encontrar meios para se organizar e para torná-la mais agradável e viver sua inteireza. Para Souza (2006), o processo educativo precisa ser situado e possibilitar o ir além da produção acadêmica, intelectual, atentando-se a todas as dimensões do ser humano e de sua sociedade, de acordo com as exigências identificadas no contexto histórico- cultural em que acontece. Neste contexto entendemos ser a cultura caipira portadora de um núcleo de práticas educativas em seus fazeres, que tomando por base as letras da música raiz sertaneja, poderá ser uma proposta de análise, reflexão valorativa e indicadora de ações que possam ajudar seus sujeitos a uma consciência melhor de si e de seu mundo. Acreditamos que a consciência do mundo e da realidade, talvez mais possível ao ser humano pensante, se dá a partir de seu envolvimento, de sua tomada de consciência histórica, do seu aqui e agora real, manifesto e não manifesto, do movimento do “si próprio em contato”, um construtivo, um sempre a fazer, não determinado, não acabado, não limitado, sem condição de controle total. Fernandes, M.A. (2007) afirma que, ao analisar uma determinada concepção de educação, percebe-se que há um saber pressuposto atuante em seus empenhos pelo que está em causa, aquilo para o que se volta o próprio foco e interesse. Aquilo que está em questão, que promove e move o pensar. De acordo com Fernandes, M. A. (2007) educação, antes, é o acontecer mesmo do ser humano e de sua vida, o modo de seu vir à luz, do surgir de sua própria essência e identidade. De acordo com a visão do autor, não existe lugar nem tempo marcado para educação. Ela se processa em todo o tempo e em todo o lugar, à medida que, por toda a parte e em qualquer momento, está em jogo o acontecer mesmo da vida. A educação é situada historicamente. 140

Como a educação acontece em diferentes contextos e com diferentes finalidades, e é praticada por diversos meios e ações, a escola é, portanto, de acordo com este autor, apenas uma instância em que se dá a educação, e sua pedagogia, apenas um modo de se realizar o processo educativo, ou seja, a instância que formula o caráter pedagógico inerente a todo o comportamento humano, nas mais diversas dimensões do viver. De acordo com Gadotti (2012), a pedagogia, como teoria da educação, traduz essa riqueza de práticas educacionais.

As pedagogias que se dizem puramente científicas, sob sua pseudo- neutralidade, escondem a defesa de interesses hegemônicos da sociedade e concepções de educação, muitas vezes, autoritárias e domesticadoras. Ao contrário, as pedagogias críticas têm todo interesse em declarar seus princípios e valores, não escondendo a politicidade da educação. É o que acontece com a educação popular, a educação social e a educação comunitária. Elas se situam no mesmo campo de significação pedagógica, o campo democrático e popular. (GADOTTI, 2012, p. 1, grifos do autor).

Para Gadotti, apesar desta afinidade ideológica, como são educações históricas, elas também podem ter conotações diferentes. E isso não se constituiu em deficiência, mas em riqueza. Cada uma tem sua própria história, e parte de uma visão emancipadora dentro do próprio campo de atuação, de forma autônoma, contribui para com a mesma causa. Outro elemento de riqueza é sua própria evolução e transformação ao longo da história, assumindo novos campos de atuação, uma assumindo mais a causa ecológica, outra a questão de gênero, os direitos humanos, a questão da juventude.

Realmente, os conceitos de “educação popular”, “educação social”, “educação comunitária”, “educação Sociocomunitária”, "educação de adultos" (Pinto, 1997) e "educação não-formal" são usados, muitas vezes, como sinônimos, mas não o são, embora podendo referir-se à mesma área disciplinar, teórica e prática da educação (GADOTTI, 2012, p.6).

Elas se entrelaçam com a Educação Popular, cidadã, comunitária ou Sociocomunitária. Não há linearidade ou mesmo aproximações de totalidade no conjunto de suas práticas e ações. Como percebemos, ora uma se aproxima mais do estado e outra se afasta. Uma se assume mais como educação formal e outra mais como educação não-formal. Uma pode se identificar mais com esfera pastoral, enquanto a outra, com a esfera sindical. Uma com práticas mais vigentes nos movimentos sociais e populares, e outra, com atuações mais em governos democráticos e populares. 141

A busca pelo “ser mais”, pelo “sair do espaço comum ingênuo” cria um movimento que permite uma nova consciência e alimenta o trabalho e a propositividade tanto da Educação Popular quanto da Educação Sociocomunitária. A nosso ver, se aproximam quando tratadas como processo de criação, quando portam um fazer imbuído de finalidades ligadas ao coletivo, quando têm a intensão clara de transformar a realidade pessoal e coletiva com bases na prática comunitária, no diálogo, no respeito, na criatividade, na vontade, na criação de uma ética estética e crítica, nos espaços cotidianos. A Educação Popular e a Educação Sociocomunitária em sua confluência implicam educar por meio do contato com o outro, numa permuta entre sentimentos, valores, visões de mundo e de realidade. Implica o sujeito indivíduo sair de si mesmo para enxergar o outro e os outros do coletivo. Olhar o ponto de vista do outro numa perspectiva de mão dupla de aprendente e ensinante. Encontro de olhares utópicos, esperançados, múltiplos, modificados pelas relações de diálogo, lutas, descobertas interiorizadas de sentimentos reais, históricos e engajados, que por certo, presentes nas modalidades educativas da Educação Popular e Sociocomunitária.

3.5 A MÚSICA RAIZ SERTANEJA COMO AÇÃO PEDAGÓGICA

Os espaços cultivadores da cultura caipira poderão ser propositivos aos princípios educacionais, reflexivos como se pretende na educação libertária. Suas raízes significativas tornam-se possíveis veículos de transformação e canais para o vislumbre de novas possibilidades, novos horizontes, em que o ato criador não seja negado ao sujeito criativo. A música raiz sertaneja viabiliza trabalhar o individual e, principalmente, o coletivo, além de possibilitar à comunidade o conhecimento histórico e cultural da sua existência. De acordo com Vivian Lacerda (2009), aliada à função pedagógica, a expressão musical, pode viabilizar estratégias e articular meios servindo-se de suporte à mobilização social. Para que ocorra o processo de inclusão, cada indivíduo se vê nesse mundo e dele participa pela tomada de consciência. Cada indivíduo da comunidade, ao refletir sua prática se torna a comunidade, e a comunidade consciente, se torna mais que a junção de seus membros. (BRANDÃO, 2006). A vida na comunidade é a própria identidade dos indivíduos que a compõem, 142

numa estética colcha de retalhos, em que o costurar, tramado pelos fios do respeito, da humildade, do diálogo, da participação no fazer coletivo, se torna fortemente marcado pelas experiências do criar juntos. Refletindo sua prática, teoriza a experiência que vai transformar esta mesma prática. Neste contexto, mediante o processo da presente pesquisa, a roda de conversa possibilitou a livre expressão dos violeiros e podemos afirmar que de certa forma, ao refletir e socializar como viam as concepções de felicidade e de tragédia nas letras das músicas que cantam, alguns de nós pôde conhecer melhor o que os membros do grupo pensam. A socialização das ideias repercutiu no ser e no pertencer do grupo. “Aprendemos e ensinamos enquanto pesquisamos; formamos e formamo-nos.” (VASCONCELOS 2014). Podemos afirmar que surgiram novos olhares sobre as temáticas debatidas. O grupo alargou seu horizonte de informações e de percepções sobre o que canta. Lacerda (2009, p.1), comentando a importância do fazer educação com arte, e nesse caso, com a música, diz

A Arte protagoniza as mudanças sociais e o processo de construção da sociedade. Na Educação, ela forma um cidadão consciente, crítico e participativo, capaz de compreender a realidade em que vive. A ação educativa da Arte tem como objetivo a preparação do jovem para a vida plena da cidadania, buscando a formação de cidadãos que possam intervir na realidade, podendo ser considerada como um instrumento de transformação social.

E continua afirmando que a arte pode levar o indivíduo do plano sentimental para o plano racional, como um veículo sensorial, algo tão exigido pela sociedade contemporânea. Através da experimentação dos sentimentos e das emoções, a arte auxilia no encontro da identidade pessoal no mundo em que se vive. Durante este processo, o indivíduo não apenas entra em contato com o mundo sensorial, mas simultaneamente desenvolve e educa seus sentimentos através da prática dos símbolos artísticos. “[...] Criando, o indivíduo torna-se mais seguro dos seus potenciais e consciente dos seus limites; torna-se mais autêntico e livre para fazer suas escolhas”. (LACERDA, 2009, p.1). 143

Pelo espirito de coletividade, de comunidade, própria da ação produzida na educação Sociocomunitária, a arte ganha materialidade e se enraíza numa dinâmica estética transformadora colaborando para uma consciência política e participativa. Nos espaços da Educação Popular e da Educação Sociocomunitária como forma de mobilizar, conscientizar e comunicar aspectos da cultura, das lutas sociais, econômicas e políticas, a arte é facilitadora da inserção do sujeito na realidade de forma crítica e criadora, e com finalidade do sujeito emancipar-se das formas pejorativas, excludentes e alienantes que a sociedade competitiva impõe sobre si. Neste aspecto, como a música raiz sertaneja traduz a linguagem do caipira, não na forma culta, se faz importante neste momento, antes de iniciarmos o próximo capítulo, pontuar que para a análise das palavras e temas geradores apontados pela roda de conversa nos pautaremos em Diógenes Valdanha Neto, que trata da questão da transcrição da fala dos participantes da pesquisa.

Como procedimento para a transcrição da fala dos participantes da pesquisa, são adotadas as considerações e apontamentos de Whitaker et al (2002) e Whitaker (2005), com vistas a proceder de uma maneira científica nas transcrições, evitando caricaturas ideológicas do sujeito rural. Portanto, a estrutura sintática do discurso é transcrita do modo como enunciada, todavia, os arranjos fonéticos regionais (ou mesmo individuais) não são transcritos por não pertencerem necessariamente à qualquer ortografia. Assim, se o entrevistado fala “nóis vai trabaiá”, sua fala será transcrita como “nós vai trabalhar”. Consideramos que a ideia de um suposto “rigor” na transcrição literal da fala desses sujeitos mais fortalece uma caricatura dos mesmos do que uma fidedignidade ao real. Afinal, se um representante da cultura letrada, um professor universitário, por exemplo, for entrevistado e se referir ao “âmbito nacional” com a comum pronúncia “nacionau”, ninguém transcreverá este som, pois trata-se de um representante da cultura letrada. Tal procedimento deve ser adotado com a transcrição da fala do sujeito rural também, afinal, quando ele fala, está falando, e não escrevendo (WHITAKER et al, 2002). (VALDANHA NETO, 2014, p.37.

Sob esses olhares de possibilidades educativas pela arte, no próximo capítulo, passaremos a analisar as palavras geradoras coletadas nas rodas de conversas e de cantorias e nos versos da poesia caipira anunciadas nas músicas raízes sertaneja.

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CAPÍTULO 4 O TINIR E OS DEVORTEIOS ENTRE VIOLA E VIOLEIRO: VOZES E RESSONÂNCIAS

4.1 A VIOLA E O VIOLEIRO

De acordo com Bandini e Dias (2010, p. 42), “a viola é instrumento originário do e'ud, de procedência persa, que é introduzido em território europeu a partir do século VIII, ano 711”. Para as autoras o e'ud foi o primeiro instrumento com braço e cordas dedilhadas que permitiam modificar notas musicais introduzido na Europa. Para Nepomuceno (1999), pequena e jeitosa, menor que o violão, com a curvatura da cintura acentuada, a viola tem sonoridade metálica e vibrante e ganhou nomes diversos como “cinturinha”, viola de pinho, caipira, sertaneja, cabocla. Esse instrumento possui cinco cordas duplas e é bem conhecida em Portugal com o nome de braguesa – provavelmente por ter surgido em Braga. Inicialmente, esculpida em um toco de pau, com dez cordas de tripa e toscos cravelhais, deu forma às melodias e cadência às poesias que aos poucos, definiram o perfil musical do povo da terra. Ao longo dos tempos vem se caracterizando por uma diversidade de formatos e sonoridades. Portanto, a viola é um instrumento de herança portuguesa (que a herdou da Pérsia) que foi trazida para o Brasil no século XV, período da colonização, e tornou-se elemento estreitamente vinculado à musicalidade da cultura popular, ou mesmo indissociável. Mantiveram-se, ao longo dos séculos, as cinco ordens de cordas presente no antigo e'ud, que se configura da seguinte disposição: das mais finas para as mais grossas, ou seja, de baixo para cima: o primeiro par se chama “primas”; o segundo par “requintas”; o terceiro par “turina e contra turina”; o quarto par, “toeira e contra toeira”; e o quinto par, recebe o nome de “canotilho e contra canotilho”. Nepomuceno (1999) comenta que a viola já era conhecida e apreciada desde o século XV pelos trovadores, “violeiros europeus daquele tempo”. Foi trazida pelos colonizadores para receber e alegrar os amigos que aqui chegavam, principalmente os que desejavam não ter vindo. Também foi utilizada com grande proveito pelos catequistas jesuítas para conquistar os indígenas. 145

Os primeiros cantos na viola foram os da catequese. Misturando melodias portuguesas às dos índios, crenças cristãs às crenças pagãs, surgiram ritmos e gêneros, como o cururu e o cateretê. Ao som da viola se aqueceu o caldeirão de raças e culturas, cantaram portugueses e tupis, e foram embaladas as crianças mamelucas. (NEPOMUCENO, 1999, p.55)

Todos esses ritmos e gêneros citados pela autora são utilizados pelos violeiros mas nem sempre eles próprios tem consciência ou informação sobre isto. Mas vale ressaltar que é de consenso entre eles, de que a viola de fatos seja o principal instrumento desse estilo de música. Para o violeiro Nilton, “nenhum outro instrumento fala tanto à alma da música raiz sertaneja quanto a viola”. Para Nepomuceno (1999, p. 55), “a viola é o coração da música brasileira. Nem pandeiro, nem cuíca, nem sanfona, nem violão”. As regiões brasileiras em que primeiramente se difundiu o uso da viola foram o Nordeste, o Centro-Oeste e o Sudeste, no entanto, com diferentes peculiaridades. No Nordeste foram desenvolvidas formas mais eruditas de tocar o instrumento, pelo fato de o Estado português ter sua sede nessa região durante os primeiros séculos de colonização. Mantiveram-se aí as técnicas da musicalidade europeia desenvolvidas para o instrumento. Já na região Sudeste, objeto de nossas reflexões, desprovido do ensino de técnicas e ensinamentos, o homem caipira criou uma diversidade de ritmos à mercê de suas próprias elaborações, desdobrando-se em novos elementos da musicalidade violeira. De acordo com Vilela (2004, p. 185) o próprio caipira desenvolve técnicas no uso do instrumento O fato de o caipira ter a mão endurecida pelo trato na enxada e a lida no campo possibilita que ele vá buscar outros recursos que dificilmente uma mão hábil em dedilhar se preocupasse em descobrir. Falo de ritmos, de rítmica, de divisão. A maneira como um catireiro ou um pagodeiro conduz ritmicamente o acompanhamento de uma música é profundamente sofisticada, sendo assim muito difícil para uma autoridade no instrumento, porém não iniciado nos meneios caipiras, conseguir executar com o balanço e sotaque esperados.

Nos séculos XVI até meados do século XVIII, a viola foi o instrumento acompanhador de canto mais utilizado, alterando sua hegemonia apenas pela introdução do uso do violão para acompanhar o canto nas cidades a partir do século XX. Apesar de ser instrumento citadino nos séculos XVIII e XIX, a viola marcou fortemente a música das zonas rurais. 146

De acordo com Bandini e Dias (2010, p. 43), especificamente no Estado de São Paulo, a viola se configurou como instrumento inserido na cultura dos bandeirantes e de tropeiros que avançavam pelo território da Paulistânia. Nas horas do rancho, nas pousadas, no intervalo entre um trabalho e outro, os tropeiros improvisavam e executavam versos ao som da viola. Nas regiões Centro-Oeste e Sudeste, territórios da musicalidade caipira, face à sua criatividade, deu-se o desenvolvimento de diferentes gêneros e ritmos, bem como a diversidade de afinações, relacionados à sua utilização. Vilela (2004, p.180-181), explica o que é a afinação da viola

Afinação é a maneira de dispor as alturas (notas) das diferentes cordas existentes no instrumento quando estas se encontram soltas, ou seja, sem nenhum dedo apertando-as. Cada vez que se mudam essas notas nas cordas soltas muda-se o jeito de montar as posições na mão que segura o braço do instrumento e, muitas vezes, a maneira de dedilhar as cordas.

De acordo com Vilela (2004) são várias as afinações utilizadas pelos caipiras para tocar viola, e dentre elas temos a Cana Verde, Rio Abaixo, Rio Acima, Natural, Boiadeira, Paraguaçu, Cebolinha, Paulistinha, Cebolão, Meia Guitarra, sendo a Cebolão a afinação mais utilizada pelo caipira. Nepomuceno (1999) cita o método Viola Caipira, de Roberto Correa, no qual é possível entender que essas afinações se constituem em combinações de tons musicais como referidas no quadro a seguir que dispomos para facilitar melhor compreensão.

Quadro de referência de afinações da viola Nome da Combinações das cordas em seus pares (de baixo para cima) afinação Cebolão Mi, mi / si, si / sol sustenido oitavado, sol sustenido / mi oitavado, mi / si oitavado, si. Boiadeira Mi, mi / si, si / sol sustenido oitavado, sol sustenido / mi oitavado, mi / lá oitavado, lá. Rio-abaixo Ré, ré / si, si / sol oitavado, sol / ré oitavado, ré / sol, sol oitava abaixo. Natural Mi, mi / si, si / sol oitavado, sol / ré oitavado, ré / lá oitavado, lá. Guitarra Ré, ré / si, si / sol oitavado, sol / dó oitavado, dó / sol, sol oitava abaixo.

Portanto, a viola é o instrumento tradicional no acompanhamento da Música Raiz Sertaneja, o que explica a expressão moda de viola, sinônimo de música caipira onde “o som da viola desponta e comparece o cantador”. (Máxima do violeiro). 147

Para o violeiro Basílio, a viola é sua enxada. “Ela é meu principal instrumento de trabalho”. Remédio para suas saudades e companheira para seu dia a dia. Nessa mesma visão, para o violeiro Nilton ela aparece como indispensável, como completude, “assim como o livro é para o professor, a viola é para o violeiro”.

4.1.2 O violeiro

Tocar viola, para uns, é uma arte, é domínio de técnicas, e, para outros, uma benção, dádiva divina, coisas da alma, que convida a uma abertura ao mundo da sensibilidade, às vibrações internas, e até mesmas, externas do corpo. De acordo com Nepomuceno, quem quiser aprender, precisa determinação, não deve desanimar. Violeiro para ser bom precisa ouvir, observar afinações, experimentar as cordas e procurar caminhos mais diretos. Tem que se tornar bom, e até mesmo, insuperável. Precisa fazer mais coisas, estar mais atento do que simplesmente estudar e treinar. Para violeiros mais crédulos, deve recorrer aos santos, ou ao capeta, se preferir. De acordo com Nepomuceno (1999, p. 76), o violeiro

[...] deve aceitar seu destino. “A viola é que escolhe a gente", diz Pereira da Viola. "Ser violeiro é sina", explica Chico Lobo [...] Almir Sater aprofunda: "A viola não é apenas um instrumento, é uma concepção. O sujeito tem que ter alma, jeito, afinidade com aquele som primitivo. Ele nasce ou não com esse dom, e na roça antiga, quando por acauso o moço tinha mesmo talento, estava predestinado a ser o rei do pedaço: animava a vida da vizinhança, arrebatava o coração da cabocla mais bonita e podia virar artista e livrar-se da miséria. Detinha o poder da memória musical da região e dos momentos de prazer.

Para aprender a tocar viola bem tocada, receitas e promessas facilmente são encontradas. Extensas dicas, receitas, sugestões povoam o universo do aprendiz. De acordo com Nepomuceno (1999), valem ações que vão desde promessas a São Gonçalo; batismos de viola; simpatias, como pegar uma cobra viva com uma mão e com a outra, recorrer seus dedos por entre as escamas de sua barriga desde a cabeça ao rabo e depois soltá-la; romaria a túmulos de violeiros consagrados, a fim de invocar seu espirito musical; colocar um guiso de cascavel dentro da viola para melhorar o som; amarrar sete fitas coloridas na cabeça da viola; até acertos com o “coisa-ruim”, indo a uma encruzilhada a meia noite, levando uma viola virgem, e esperar pelo dito cujo, para assinar um contrato de troca da alma pela excelência no toque da viola. 148

Quanto ao guiso de cascavel, o violeiro Nilton comenta que: “Quanto maior for, melhor será, pois possui vibrações que se irradiam nas cordas e melhora a harmonia do som”, além é claro, de “neutralizar invejas de outros violeiros invejosos ou maldizentes”. Para o violeiro Manuel, o poder da cascavel em dar o bote certeiro e fatal é comandado pelo anúncio de seu guiso, então, [...] dentro da viola, esse poder é transferido para o violeiro. Desta maneira, entre ditos e desditos, o violeiro tece sua concepção de arte, seus exercícios e suas práticas neste universo. Portanto, constatamos que a arte se torna veículo para enfrentamento da realidade vivida. Pela arte o ser humano alivia suas angustias, sofrimentos e decepções provenientes de forças internas e externas em seu processo de escolhas quer sejam conscientes, quer não. No exercício do cantar, o violeiro constitui a caracterização de suas ideias e concepções. Anuncia que as ideias postas e expostas na música também lhe pertencem, e ao se identificar com as mesmas, se firma como ser pertencente às ideias postas. Conforme lembra o violeiro Eleutério rezando o dito popular: “Quem canta, seu mal espanta”, retomando assim, que arte liberta sofrimentos aprisionados nos recônditos de almas, de quem quer que seja desde que lhe faça sentido. Não é regra entre todos, mas talvez pelo fato da visibilidade conferida ao violeiro como “artista do povo”, e pelo domínio de um instrumento complexo e bonito, o orgulho, e não raras vezes, a arrogância, permeiam os egos dos violeiros em suas façanhas e práticas artísticas. Nos dizeres de Nepomuceno (1999) o violeiro ensimesmado, em jogos de disputas e competições, mantém e difunde uma crença de que precisa se proteger de invejas. Por serem tratados “a pão de ló e café passado na hora” conforme cisma o violeiro Nilton, “costuma ocorrer mau olhado e má agouros, se não quando, em investidas de ciladas”. Na moda de viola “Última Viagem”, de autoria de Tião Carreiro e Pardinho, (1967) o violeiro cantador encontra-se numa caçada, e em busca de abrigo num rancho beira de estrada, se depara com um violeiro velho e solitário, de nome Epitácio, que narra sua última viagem de cantador marcada pelo trágico final da carreira artística de uma das primeiras duplas de música raiz na cultura caipira, chamada de Nhô e Epitácio. 149

Numa festa mediante um embate entre violeiros e catireiros, por serem melhores do que os que concorriam à disputa, alguém daquele povo se despeitou e trama uma cilada servindo-lhes café envenenado, levando à morte o seu companheiro, e por não beber café, acabou se livrando da emboscada. O fim do companheiro também marca o fim da paixão pela viola e pela carreira.

Numa fria madrugada eu arriei o meu Picasso. Fui fazer uma caçada no campo de Santo Inácio. Num rancho beira de estrada pra aliviar o meu cansasso. Parei pra beber uma água e conheci o velho 'Epitácio'. Era o rei dos cantador ai que teve um triste fracasso. - Seu moço você esta vendo esta viola empueirada? Faz dez anos que este pinho está num canto pendurada. Dez anos atrás esta viola sempre foi a minha enxada. Eu com o meu companheiro nós dois não tinha parada. Toda semana cantava levando a vida forgada. - Cada dia uma cidade sempre fazendo viagem. Prá violeiros despeitados bater com nóis é bobagem. Em modas de desafio nóis tinha grande bagagem. Desafiava dia e noite não levava desvantagem. A fama do Nhô Epitácio já estava em muitas paragem. - Fizemos a última viagem do lado do Itararé. Quamdo bateu meia-noite os campeão chamou no pé. Cantemo o resto da noite sem desconfiar da má fé. O povo fingia alegre dançando e batendo o pé. Quando foi de madrugada para nós trouxeram café, ai. - Seu moço aquele café foi verdadeira cilada. A parte que nos trouxeram tava toda envenenada. Por eu não tomar café me livrei desta emboscada. Sei dizer que aquela gente tava toda despeitada. Os campeão que nóis quebremo tinha fama respeitada. - No outro dia faleceu meu parceiro de estimação. Pendurei alí a viola e nunca mais botei a mão. Esta viola é vitoriosa nunca perdeu prá campeão. Esta foi a última viagem que enlutou meu coração. Porque perdi meu parceiro e além disso é meu irmão, ai.

Outras músicas que narram o relacionamento viola/violeiro, colocando aquela como razão última e consoladora e companheira fiel deste, conferem peripécias que emergem ensinamentos sobre o universo da cultura caipira e seu principal instrumento: “Chora Viola” autoria de Tião Carreiro e Pardinho (1973) que narra as supostas habilidades do violeiro e a confirmação do choro da viola como reforço seus prodígios.

Eu não caio do cavalo nem do burro e nem do galho / Ganho dinheiro cantando a viola é meu trabalho / No lugar que tem sêca, eu de sêde lá não caio / Levanto de madrugada e bebo o pingo de orvalho. Chora Viola. - Não Como gato por lebre , não compro cipó por laço / Eu não durmo de botina não dou beijos sem abraço / Fiz um ponto lá na mata caprichei e dei um nó / Meus amigos eu ajudo, inimigo eu tenho dó . Chora Viola - A Lua é dona da noite o sol é dono do dia / Admiro as mulheres que gostam de cantorias / Mato a onça e bebo o sangue, furo a terra e tiro o ouro / Quem sabe aguentar saudade não aguenta desaforo Chora Viola - Eu ando de pé no chão piso por cima da brasa / Quem não gosta de viola que não ponha o pé lá em casa / A viola está tinindo, o cantador tá de pé / Quem não gosta de viola, brasileiro bom não é. Chora Viola.

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A música “Viola Cabocla” de Tonico e Tinoco (1967), é uma homenagem ao instrumento do coração do caipira que narra a trajetória de sua história inglória desde seu esquecido e desconsiderado espaço rústico ao reconhecimento e lugar na cultura citadina após o enfrentamento de “fortes batalhas”.

Viola cabocla não era lembrada veio pra cidade sem ser convidada, / Juntou com os vaqueiros trazendo a boiada com cheiro de mato e o pó da estrada, / Fez grande sucesso com a “Disparada”.. - Viola cabocla feita de pinheiro que leva a alegria por sertão inteiro, / Trazendo a saudade dos que já morreu na noite de lua que sai no terreiro, Consolando a mágoa do triste violeiro... - Viola de pinho é bem brasileira, sua melodia atravessou fronteira, / Mostrando a beleza pra terra estrangeira do nosso sertão é a mensageira / É o verde amarelo da nossa bandeira... - Viola de pinho seu timbre não faia criado no mato como a samambaia. Veio pra cidade de chapéu de paia mostrou teu valor vencendo a batalha Voltou pro sertão trazendo a medalha...

Na música “Um Violeiro Toca” de autoria de Almir Sater (1981), que mostra o poder de encantamento entre viola, violeiro e a natureza, confluindo-se todos num mesmo espanto, notificando Miguel Almir Lima de Araújo (2003, p.2) ao dizer “o extraordinário inquieta e vitaliza, com sua pulsão movente, fazendo rebentar o inesperado, o surpreendente, o novo que nos espanta com sua originalidade e fulgor”. De acordo com o pensamento do autor, o espanto nos abre para o diferente, para outras possibilidades de sentir e de pensar, de fazer e de acontecer.

Quando uma estrela cai no escurão da noite E um violeiro toca suas mágoas / Então os "óio" dos bichos vão ficando iluminados Rebrilham neles estrelas de um sertão enluarado / Quando o amor termina, perdido numa esquina E um violeiro toca sua sina - Então os "óio" dos bichos vão ficando entristecidos / Rebrilham neles lembranças dos amores esquecidos / Quando o amor começa, nossa alegria chama / E um violeiro toca em nossa cama - Então os "óio" dos bichos, são os olhos de quem ama Pois a natureza é isso, sem medo, nem dó, nem drama Tudo é sertão, tudo é paixão, se o violeiro toca A viola, o violeiro e o amor se tocam Tudo é sertão, tudo é paixão, se o violeiro toca A viola, o violeiro e o amor se tocam.

Na música “Viola quebrada”, autoria de Ary Kerney e Mario de Andrade, interpretação de Pena Branca e Xavantinho (1993), o violeiro ao perder Maroca, seu amor, que o considera fadista por tocar viola e não trabalhar, ele tem sua vida-viola quebrada, ensinando que o universo do trabalho está também no verso e no reverso da viola: “pro causa dela eu sou rapaiz muito capaiz de trabaiá. E os dia intero, a noite intera capiná. Eu sei carpí purque minh`arma tá arada, arroteada. Capinada co`as foiçada desta luz do teu oiá”. 151

O violeiro “despeitado” pela dor da saudade ou do desprezo da mulher amada, só consegue mudar de ânimo mediante a cumplicidade de sentimentos trocados entre si e o toque da viola. Entendendo que a presente pesquisa discute a cultura como elemento de construção de sentidos, também não podemos deixar de apontar a construção de novas identidades, que vem surgindo no espaço urbano e que raramente foram reconhecidas no espaço rural, que é o feminino e a viola.

4.1.3 O feminino e a viola

Mesmo não negando que há mudanças em certos aspectos relativos às questões de gênero na sociedade brasileira, esta sociedade continua machista. Apesar do “papel” feminino ser reconhecido em diversas áreas tradicionalmente “ditas” masculinas, em muitas questões, continua sendo atribuída diferenças aos olhos do gênero oposto. Percebemos que mesmo onde as mulheres assumem posições de liderança, as negociações ainda são masculinas. Isso não é muito diferente no mundo da viola caipira. O espaço de conflitos oferecido pela cultura faz parte deste universo. Tocar viola foi uma apropriação de uma tradição culturalmente pertencente aos homens, e poucas mulheres fizeram parte do universo da Música Raiz Sertaneja, face à forma machista e patriarcal da cultura caipira e mesmo popular brasileira. Fora do universo artístico é quase irrelevante a participação da mulher nas rodas de viola ou cantorias. Fato também observado no entorno desta pesquisa, no qual as quatro participantes se encontram na mesma situação. Nenhuma delas toca viola, mas cantam na modalidade coro, quando estão nas rodas de cantorias. O predomínio da participação da mulher na música caipira ocorre no formato grupal, coral e mesmo assim, quando junto aos violeiros esposos, irmãos, familiares, e raramente em duplas isoladas. E na mesma proporção, a maioria das mulheres que são expoentes no universo artístico da música caipira pertencem às duplas ou duos entre irmãos, irmãs ou esposos. Como exemplo podemos citar Cascatinha e Inhana, que se casaram em 25 de setembro de 1941; Zé do Rancho e Mariazinha, casados em 1951, entre outras. Quanto às duplas compostas por irmãs e/ou irmãos, podemos citar, dentre outros: Irmãs Galvão, 152

Duo Ciriema, Irmãs Freitas, As Marcianas, Duo Glacial, Luisinho, Limeira e Zezinha, Teixeirinha e Mary Terezinha. No universo artístico da cultura caipira, são pouquíssimas as mulheres que cantam sozinhas na carreira solo. Lembramos porém, que nosso foco é a música raiz e não vamos considerar nesta análise, cantoras do estilo sertanejo romântico e /ou universitário. Talvez os maiores ícones femininos da Música Raiz Sertaneja sejam Inezita Barroso e Helena Meirelles. A primeira, Inês Madalena Aranha de Lima, nasceu em 04 de março de 1925, na capital paulista. Começou a cantar desde seus sete anos de idade. Alguns fatos a influenciariam muito em sua vida artística. De acordo com Sandra Cristina Peripato (2008), vizinha do poeta modernista Mário de Andrade, que morava ao lado de sua casa à Rua Lopes Chaves na Barra Funda, em São Paulo, desde os nove anos, Inezita aprendeu a admirá-lo e aos 11 anos, começou a estudar piano. Ainda criança, conheceu um dos maiores compositores da música caipira, Raul Torres que, tendo sido colega de seu pai na Estrada de Ferro Sorocabana, ia com frequência à sua casa, onde cantava quando ela fazia aniversário. Mesmo tendo sido criada na cidade, Inezita já revelava grande paixão pela música caipira. Aos finais de semana procurava estar em contato coma natureza, além de passar as férias na casa de parentes que moravam na roça. Peripato (2008) diz que além da família de Inezita se manifestar contra seu gosto pela música caipira, também enfrentou duros preconceitos, pois na época cantar e tocar viola não era atividade para mulher. Motivada por sua fascinação por livros, Inezita fez faculdade de Biblioteconomia, casou-se na década de 40 e iniciou sua carreira cantando músicas folclóricas recolhidas por Mário de Andrade, na Rádio Clube do Recife. Até seus 89 anos apresentou o programa televisivo, o tradicional "Viola Minha Viola". A outra, Helena Meirelles, nasceu em 13 de agosto de 1924, na Fazenda Jararaca, no estado de Mato Grosso do Sul, divisa com o estado de São Paulo. De acordo com Peripato (2008), Helena cresceu no meio da peãozada, escutando o berrante das comitivas de gado. Desde criança começou a se interessar pelo toque da viola, aprendeu a tocar sozinha observando seu tio e também os paraguaios (amigos de seu avô) que se hospedavam em sua casa. Assim como Inezita Barroso, Helena Meirelles enfrentou grande resistência dos pais que tentaram, a todo custo, impedir que ela se tornasse violeira. O pai a ameaçava 153

dizendo que iria cortar seus dedos, mas Helena não se intimidava dizendo que tocaria com o que sobrasse da mão. Sua identidade musical foi construída com os ritmos do Mato Grosso e com influências da música paraguaia. Desde menina tocava viola nas festas juninas que aconteciam na beira da estrada boiadeira, na época em que o salão era iluminado por lampião e o chão era de terra batida. Manteve-se no anonimato até o ano 1992, aos 68 anos, quando teve a oportunidade de se apresentar ao lado de Inezita Barroso e da dupla Pena Branca e Xavantinho, no Teatro do SESC, em São Paulo, subindo pela primeira vez num palco. Um sobrinho seu enviou uma fita amadora com suas gravações a uma revista especializada dos Estados Unidos, “Guitar Player”, e em 1993 seu reconhecimento artístico veio à tona, quando a revista a elegeu como a Instrumentista Revelação do Ano. Aos 69 anos foi eleita uma das 100 melhores instrumentistas do mundo, por sua atuação nas violas de seis, oito, dez e doze cordas. A publicação norte americana comparou Helena Meirelles a Keith Richards, guitarrista do Rolling Stones, e a Eric Clapton. Após seu reconhecimento fora dos perímetros da cultura caipira é que o Brasil tomou conhecimento desta mulher violeira, que no anonimato de sua legítima cultura, não soube ver, ouvir e nem reconhecer. Certamente tantas outras Helenas, em suas qualidades de analfabeta (não sabia ler nem escrever), autodidata, benzedeira, parteira, lavadeira e apaixonada pela sua terra (Pantanal), mulher de fibra, dona de um talento musical inquestionável, ainda são invisíveis nos “por aí de nossa cultura”. Os espaços rural e urbano sempre se apresentaram como hegemônicos enquanto masculinos, mas culturalmente preconceituosos enquanto feminino, dessa forma, a cultura torna-se um espaço de conflitos, e cabe-lhe o papel fundamental de oferecer novas possibilidades para orientar práticas sócio-políticas-culturais inovadoras. Neste contexto com a produção de massa da música sertaneja, abriram-se novos olhares para a atuação e a participação da mulher em atividades que demonstrassem o sentimento de pertencimento e de produção das subjetividades, como por exemplo, na Orquestra Feminina Viola de Saia, da capital paulista, bem como integrantes femininas de orquestras de violeiros e alunas de escolas de viola, e mesmo catireiras.

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Sabemos que na música a presença feminina não é muito velha. E na viola então? Muito preconceito fez com que as mulheres não mostrassem ou não desenvolvessem seus talentos. Uma orquestra feminina de viola acaba incentivando e fortalecendo a presença feminina na música em geral, e, na viola em especial. (FREITAS, 2008, p.9).

A análise deste grupo, em especial, é importante visto o fato de apontar novas práticas que asseguram o espaço de visibilidade cultural da mulher mediante suas novas conquistas. Para Débora Freitas (2008), ao se adentrar em um território quase que exclusivamente masculino - a música caipira e a viola -, a Orquestra Viola de Saia rompe mais uma barreira imposta pela cultura capitalista inerente aos grandes centros. “O feminino é, pois, uma dimensão de resistência ao paradigma hegemônico neoliberal” (OLIVEIRA, 2008, p. 10 apud FREITAS, 2008, p. 8). Essa resistência faz parte da cultura do feminino, que é símbolo de luta pela vida, e que tem a paciência e a persistência. Poder-se-ia dizer que esse tipo de mulher (...) pode ter uma forma idealizada em Sherazade, aquela que cura e salva pela palavra e que sabe que a verdade não se dá em linha reta, mas por inúmeros labirintos. (MANZINI-COVRE, 1996, p. 19 apud FREITAS, 2008, p.9).

Freitas, comentando Manzini-Covre, pontua para um olhar bem propositivo à educação Sociocomunitária quando menciona que “as lideranças femininas normalmente trabalham pela construção de uma cidadania centrada no sentir”, a chamada cidadania ativa, “que é justamente o ponto de partida para o conhecimento do corpo, do sensível, como um instrumento do fazer social”. (FREITAS, 2008, p.9). Neste contexto, vale ressaltar que a própria viola, o instrumento característico da cultura caipira, é sempre tratada como inspiradora, como acalentadora, como acolhedora. Freitas aponta o testemunho da integrante da Orquestra Viola de Saia, Veneranda, que consegue expressar o lado feminino da viola: “a viola é raiz, ela mexe com a gente, vai arrancando de dentro, o sentimento, a saudade, a lembrança... Eu choro” (FREITAS, 2008, p.9). E completa mais adiante: “Na verdade, eu acho a viola mais feminina do que masculina, porque é delicada, é um instrumento muito sentimental, a gente começa a tocar e viaja”. (FREITAS, 2008, p.11). No entorno desta pesquisa as quatro participantes também começaram a atividade de violeira desde cedo: Guilherma Sanches aos 9 anos; Maria Aparecida, Maria Madalena e Teresa Leocárdio, todas aos 10 anos. Todas têm uma ligação direta ou indireta com a viola e a cultura caipira, sempre relacionada às suas raízes familiares. 155

É muito importante para elas manterem-se nessa tradição, tanto como forma de participação, quanto pertencimento identitário. Tendo feito esta abordagem inicial sobre o universo da viola, do violeiro e da violeira, passaremos aos dados analisados na pesquisa.

4.2 TESSITURA SOBRE DITOS E DIZERES DOS VIOLEIROS

Para análise de como as concepções de felicidade e de tragédia permeiam a letras da música raiz sertaneja, e como são percebidas pelos sujeitos da pesquisa, colocamos a temática na roda de conversa e levantamos quais músicas poderiam ser citadas e refletidas sobre a proposta. Como dito anteriormente, num primeiro momento o grupo falou o que se lembrava sobre cada uma das categorias. Foram muitas sugestões. Entre outras, foram lembradas músicas com mensagens trágicas como Couro de boi; Tragédia de Rio Preto; Catimbau; A morte do carreiro; Ferreirinha; Tristeza do Jeca; Mágoas de boiadeiro; Cabocla Teresa; Saudade de Matão; João de Barro; Destinos iguais. Já sobre a temática da felicidade trouxeram Dona felicidade; Lar feliz; Canoeiro; Pingo d’água; Casinha amarela; Padecimento; Brasil Caboclo, dentre outras. Para fazer uma seleção das músicas a serem analisadas estabelecemos um critério: deveriam ser músicas conhecidas por todos, ou pela maioria, pois assim facilitaria as opiniões de quem quisesse falar. Ao longo deste capítulo traremos as vozes dos sujeitos da pesquisa e as dos autores abordados anteriormente. Analisaremos algumas músicas citadas pelo grupo, que mesmo não tendo sido refletidas na roda de conversa, foram apontadas por alguns dos violeiros, e outras, que correlacionam com as citadas pelo grupo e que também aportam o percurso analítico a que se propõem os objetivos da pesquisa.

4.2.1. Sobre o velho (idoso)

Na música raiz sertaneja há uma vasta produção de letras trágicas que a partir de histórias fictícias, acontecimentos, contos, causos, romances, trazem à tona o universo do amor cantado e ensinado nos enlaces da maternidade, da paternidade, da família, do idoso, e assim por diante. Também são notórias as poesias que evidenciam a violência, a 156

brutalidade, a perseguição e crimes cometidos contra a mulher tanto no entorno caipira quanto no citadino. E por que estas letras são propositivas a determinados aprendizados? De acordo com o violeiro José de Fátima Sem dúvida nenhuma, estas músicas ensinam. Dá para transferir sua mensagem para outra fase da vida? É claro que dá! Ao ouvir uma música como “O couro de boi”, por exemplo, não há como não pensar que aquilo que um pai faz para seu filho, ele estará sujeito que seu filho faça pra ele também. Você educa e respeita seu filho, para não passar pela mesma situação que você está impondo para seu pai.

O violeiro João Dantas confirma que essa música faz pensar e avaliar seu relacionamento como o pai “quando canto ou escuto essa música, lembro do meu pai e penso se estou tratando bem ele ou não”. A música “Couro de boi” é um dos clássicos da Música Raiz Sertaneja que sempre fala ao coração despertando sentimentos inominados nas pessoas. Uma composição de Teddy Vieira e Palmeira, e interpretada por muitas duplas caipiras, dentre elas, Tonico e Tinoco (1950). A narrativa é trágica em alternância de elementos de mimese e de catarse versadas pela história, confirmando o ditado da sabedoria popular, e lembrado pelo violeiro Benedito Leite de que “é mais fácil um pai tratar de dez filhos, que dez filhos tratar de um pai”. A música narra que os anos passam e o pai (supostamente viúvo) vai morar com um dos filhos. A família do filho cresce e a nora pede ao marido para mandar o velho embora de sua casa, senão ela sairia de sua casa. O Marido “de coração duro” fala com o velho pai e pede-lhe que se vá de sua casa. Dá-lhe um couro de boi para se cobrir quando dormisse no relento do mundo a fora. O velho sem se despedir pega o couro e se vai. O netinho ao presenciar a cena pensa, se comove e corre atrás do avô, pede-lhe a metade do couro. O velho também se comove e reparte o couro com o neto, e junto com o couro dá-lhe um abraço de despedida. Ao voltar pra casa com a metade do couro, a criança é interpelada pelo pai que quer saber o porquê daquela metade do couro que o avô ia levando. A criança responde que um dia também ele se casaria, e se acaso seu pai precisasse morar com ele, e da mesma forma acontecesse de não se combinarem, ele lhe daria aquele couro para que levasse.

Declamado: Conheço um velho ditado que é do tempo do zagaio: um pai trata dez filhos, dez filhos não trata um pai. Sentindo o peso dos anos, sem poder mais trabalhar o velho peão estradeiro com seu filho foi morar. O rapaz 157

era casado e a mulher deu de implicar: você manda o veio embora se não quiser que eu vá. e o rapaz, o coração duro com o velhinho foi falar: Cantado: Para o senhor se mudar meu pai eu vim lhe pedir. Hoje aqui da minha casa o senhor tem que sair. Leva este couro de boi, que eu acabei de curtir Pra lhe servir de coberta, a donde o senhor dormir. - O pobre velho calado, pegou o couro e saiu Seu neto de oito anos que aquela cena assistiu, Correu atrás da avó, seu palito sacudiu Metade daquele couro, chorando ele pediu. - O velhinho comovido pra não ver o neto chorando, Partiu o couro no meio e pro netinho foi dando. / O menino chegou em casa, seu pai foi lhe perguntando: pra que você quer esse couro que seu avô ia levando? - Disse o menino ao pai: um dia vou me casar, / O senhor vai ficar veio e comigo vem morar. Pode ser que aconteça de nós não se combinar / Esta metade do couro, vou dar pro senhor levar.

A música revela muitos ensinamentos para o contexto cultural do caipira, citaremos alguns que os violeiros na roda de conversa apontaram: o cuidado para com o idoso; o direito de comando da mulher nos espaços que lhe era atribuído como de sua responsabilidade; a intolerância; a falta de diálogo nas resoluções dos problemas familiares; a percepção da criança nos aprendizados pelos acertos e erros dos outros; o papel do homem na definição e regulação dos comportamentos familiares; a configuração de ditados como: a mão que dá, não é a mesma que recebe, não faça aos outros aquilo que não quer que os outros lhe faça; pagar com a mesma moeda. Percebe-se também as relações de trocas simbólicas entre pais e filhos na manutenção de valores. O consciente dominando o inconsciente; o racional subordinando o temerário; o inesperado domesticando o passional. Podemos encontrar os mesmos movimentos de alternância relativos ao trato do velho, só que com final feliz, em outras letras como “Filho Adotivo”, autoria de Arthur Moreira e Sebastião F. da Silva, interpretação Sergio Reis (1981), que mostra a dificuldade do pai em criar seus dez filhos, estudá-los, dar-lhes conforto e segurança. Todos são tratados e amados igualmente, no entanto, nem todos reconhecem tamanho sacrifício e dedicação paterna. Um deles, o adotivo, foi o único que não descuidou da situação do velho garantindo-lhe todo aparato para sua velhice, e retribuindo-lhe tudo aquilo que recebeu. Com sacrifício Eu criei meus sete filhos Do meu sangue eram seis. E um peguei com quase um mês Fui viajante Fui roceiro, fui andante. E pra alimentar meus filhos Não comi pra mais de vez. - Sete crianças Sete bocas inocentes Muito pobres, mas contentes / Não deixei nada faltar Foram crescendo Foi ficando mais difícil / Trabalhei de sol a sol Mas eles tinham que estudar. - Meu sofrimento Ah! meu Deus, valeu a pena Quantas lágrimas chorei / Mas tudo foi com muito amor Sete diplomas Sendo seis muito importantes / Que as custas de uma enxada Conseguiram ser doutor - Hoje estou velho Meus cabelos branquearam O meu corpo está surrado 158

/Minhas mãos nem mexem mais Uso bengala Sei que dou muito trabalho / Sei que às vezes atrapalho Meus filhos até demais. - Passou o tempo E eu fiquei muito doente Hoje vivo num asilo / E só um filho vem me ver Esse meu filho Coitadinho, muito honesto / Vive apenas do trabalho Que arranjou para viver - Mas Deus é grande Vai ouvir as minhas preces Esse meu filho querido / Vai vencer, eu sei que vai. Faz muito tempo Que não vejo os outros filhos / Sei que eles estão bem E não precisam mais do pai / Um belo dia Me sentindo abandonado Ouvi uma voz bem do meu lado / Pai, eu vim pra te buscar. Arrume as malas. Vem comigo, pois venci / Comprei casa e tenho esposa E o seu neto vai chegar. - De alegria eu chorei E olhei pro céu Obrigado, meu Senhor / A recompensa já chegou. Meu Deus proteja Os meus seis filhos queridos / Mas foi meu filho adotivo Que a este velho amparou.

Para o violeiro Arlindo, a música retrata o valor da adoção: “geralmente os filhos adotivos retribuem os cuidados aos pais, pois já foram favorecidos por eles. Acho que deve ser porque, pela situação que passaram, conseguem sentir melhor a necessidade dos idosos”. “É igual a oração de São Francisco”, comparara a violeira Maria Aparecida, “é dando que se recebe”. Também a música “Velho Pai”, de autoria de Léo Canhoto, interpretação da dupla Leo Canhoto e Robertinho (1978), mostra a relação de reconhecimento aos cuidados do pai enquanto era criança, e agora em sua velhice, e plena maturidade do filho, este expressa-lhe sua gratidão garantindo seus cuidados, amor, proteção, atenção.

Meu velho pai preste atenção no que lhe digo / Meu pobre papai querido enxugue as lágrimas do rosto / Por que papai que você chora tão sozinho / Me conta meu papaizinho o que lhe causa desgosto / Estou notando que você está cansado / Meu pobre velho adorado é seu filho que está falando / Quero saber qual a tristeza que existe / Não quero ver você triste por que é que está chorando. - Quando lhe vejo tão tristonho desse jeito / Sinto estremecer meu peito ao pulsar meu coração / Meu pobre pai você sofreu pra me criar / Agora eu vou lhe cuidar esta é minha obrigação. / Não tenha medo meu velhinho adorado / Estarei sempre a seu lado não lhe deixarei jamais / Eu sou o sangue do teu sangue papaizinho / Não vou lhe deixar sozinho, não tenha medo meu pai. - Você sofreu quando eu era ainda criança / A sua grande esperança era me ver homem formado / Eu fiquei grande estou seguindo meu caminho / E você ficou velhinho mas estou sempre a seu lado. / Meu pobre pai seus passos longos silenciaram / Seus cabelos branquearam, seu olhar se escureceu, / A sua voz quase que não se ouve mais / Não tenha medo meu pai quem cuida de você sou eu. - Meu papaizinho não precisa mais chorar, / Saiba que não vou deixar você sozinho abandonado, / Eu sou seu guia, sou seu tempo sou seus passos / Sou sua luz e sou seus braços, sou seu filho idolatrado.

Outra música muito interessante que também aborda a questão do conflito de gerações e que aponta profundas mudanças na estrutura familiar secular, na gestação dos modelos de famílias atuais, é “A vaca já foi pro brejo”, de autoria Lourival dos 159

Santos, Tião Carreiro e Vicente P. Machado. Grande clássico e sucesso interpretado pela dupla Tião Carreiro e Pardinho (1977).

Mundo velho está perdido, já não endireita mais / Os filhos de hoje em dia já não obedece aos pais / É o começo do fim, já estou vendo sinais / Metade da mocidade estão virando marginais... / É um bando de serpente, os mocinhos vão à frente / As mocinhas vão atrás... - Pobre pai e pobre mãe, morrendo de trabalhar / Deixa o coro no serviço p'ra fazer filho estudar / Compra carro a prestação, para o filho passear / Os filhos vivem rodando fazendo pneu cantar... / Ouvi um filho dizer, o meu pai tem que gemer / Não mandei ninguém casar... - O filho parece rei, filha parece rainha / Eles que mandam na casa e ninguém tira farinha / Manda a mãe calar a boca, coitada fica quietinha / O pai é um zero à esquerda, é um trem fora da linha... / Cantando agora eu falo, terreiro que não tem galo / Quem canta é frango e franguinha... - P'ra ver a filha formada, um grande amigo meu / O pão que o diabo amassou o pobre homem comeu. / Quando a filha se formou, foi só desgosto que deu / Ela disse assim p'ro pai: "quem vai embora sou eu"... / Pobre pai banhado em pranto, o seu desgosto foi tanto / Que o pobre velho morreu... - Meu mestre é Deus nas alturas, o mundo é meu colégio / Eu sei criticar cantando Deus me deu o privilégio. / Mato a cobra e mostro o pau, eu mato e não apedrejo / Dragão de sete cabeças também mato e não aleijo... / Estamos no fim do respeito, mundo velho não tem jeito, / A vaca já foi pro brejo...

A música analisa o como era o “sistema” de criação dos filhos, e como hoje, estas relações sofrem alterações nos comportamentos familiares. Como era, como é, e para onde caminham os valores ético e morais entre idosos, juventude e crianças. O que confirma a fala do violeiro Inocêncio Tadeu “Essa música é pura verdade mesmo, a gente vê que as coisas estão tudo mudadas, e nesse sentido, infelizmente para pior”. O violeiro Antônio falou e todo o grupo concordou com sua fala: “Quando a gente canta uma música dessa eu lembro o respeito que naqueles tempos dava aos pais, bastava papai olhar e a gente já sabia o que era para ser feito, já entendia o recado, e ai se não atendesse! ”. Conforme vimos anteriormente a tragédia é a imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento “porque é segundo estas diferenças de caráter e pensamento que nós qualificamos as ações”. (ARISTÓTELES, 1991, p.252). Para o violeiro Anísio “Estas músicas faz pensar duas vezes antes de fazer uma coisa errada”.

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4.2.2 Sobre a felicidade

Devido às estritas relações de ligação com a natureza, com a lida da terra, e o revestimento de tudo isto pelo caráter religioso, o caipira, pela Música Raiz Sertaneja, dedilha seus encantos pelo ciclo da vida que entremeia todos os movimentos perpassados pelos marcos do nascer e do morrer. Da maternidade e da paternidade. Para o violeiro Basílio isto é a felicidade “cantar as coisas bonitas é o que dá felicidade ao violeiro”. Já para Guilherma, “cantar dá alegria, dá felicidade, por que faz relembrar do que já viveu”. O violeiro Manuel evidencia o papel do cantador como mediador da música que ensina: “Felicidade é cantar com os amigos, se eu tiver cantando com meus amigos, isso é uma felicidade muito grande, e ainda mais se passar isso pros outros, enquanto canto”. “A moda que fala de felicidade o povo gosta. Quando canto, sinto feliz, por vê o povo ficar feliz”, complementa o violeiro Lázaro. Uma das músicas com a temática da felicidade refletida na roda de conversa pelos sujeitos da pesquisa se chama “Dona Felicidade”, autoria de Teddy Vieira e interpretação de Zico e Zeca (1955). Interrogados sobre o que a música narra ser a felicidade para o caipira, o violeiro José de Fátima disse que “felicidade é um estado de espirito, que quando a pessoa está bem, ela tem sensações boas, ela está feliz”. Para o violeiro Basílio, “a felicidade, nesta moda, é trazida pelo fato do camarada ter uma casinha amarela na beira da estrada, de varanda enfeitada e um canário na janela”. “É ter uma família unida, um bando de barrigudos”, complementa João Dantas. “Felicidade para ele, é pode ir na venda e comprar as coisas para casa e trazer bala para os filhinhos”, palpita o Sr. Manuel. “É deixar todo mundo da família contente”, complementa Anísio. A moda de viola citada, de acoedo com o grupo, canta tudo o que o caipira precisava para se sentir feliz: uma casinha onde morar e para onde voltar quando sente saudade, a comida pronta e quente no fogão a lenha, um canarinho cantador na janela, um jardim de encantos e flores perfumadas, uma esposa que correspondia ao seu amor, uma prole de filhos sadios, um cigarrinho para fumar rumo à roça e para cismar à noite, a simplicidade onde ele e a amada não sentem a falta de nada.

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Quem passar naquela estrada, vê uma casinha amarela. E uma varanda enfeitada e um canário na janela. Tem um um jardim um pé de jasmim, Feliz assim eu vivo com ela. - Salto da cama cantando, bem antes que o sol esquente. No fogão tá me esperando um cafezinho bem quente. Tomo um golinho e vou pro caminho / E um cigarrinho eu pito contente. Quando o sol vai se escondendo pra aliviar o meu cansaço. Vem o caçula correndo se pendura nos meus braços. Papai me fala cadê as balas, Dentro do pala eu levo um maço. - Minha vida é uma beleza, dizem até que eu sou graúdo. Eu tenho a maior riqueza, meu bando de barrigudos. Minha morada não falta nada, Com minha amada nós tem de tudo. / Agora eu vou pedir ai, pra dona felicidade. Pra ela nunca mais sair ai, do meu rancho de saudade. Se ela atender e eu merecer, Feliz vou ser pra eternidade.

Vivem felizes no aqui e agora, e acreditam que no seu grande pedido: “E agora eu vou pedir ai, pra dona felicidade. Pra ela nunca mais sair ai, do meu rancho de saudade. Se ela atender e eu merecer, Feliz vou ser pra eternidade”. Enfim, podemos perceber que a concepção de felicidade em seus diferentes graus e reflexos adquire diferentes significados e traduz-se em diferentes necessidades de concretização. Uns pelas estruturas da vida, outros pelos objetivos a atingir, outros por planejamentos, outros ainda, por opção de viver o aqui e agora da vida; todos buscam o seu modo de encontrá-la. Em outras palavras uns por tê-la, outros por sê-la, uns por esperá-la, outros ainda, por vivê-la. Todas estas concepções com impacto nas representações sociais.

4.2.3 Sobre a família

Outra música que também narra a felicidade de se ter uma família, é “Lar Feliz”, composição de Francisco Ávila, interpretação da dupla Tonico e Tinoco (1953). De acordo com o violeiro Sebastião, “esta música emociona muito por que fala do nascimento dos filhos e isto é uma coisa sagrada para a família”. O violeiro ainda menciona que música retrata a felicidade de qualquer ser humano “quando nasce uma criança, ela traz a maior alegria e felicidade que uma pessoa e uma família possa ter”.

A música Lar Feliz narra e valoração da vida e de tudo o que dela provém e o caipira lhe conclama ser a felicidade.

Desejo apena que Deus abençoe meu lar que se acha em festa com o nascimento de quem veio enriquecer minha casa modesta. Bem sei que o 162

nosso dever é crescer, casar e multiplicar. Eis a razão por que agora encontrei mais prazer em viver e amar. Ao sentir a maior emoção que eu tive, quis sorri, mas confesso que não me contive. Hoje eu vivo a cantar esses versos que eu fiz em homenagem à imagem de alguém que nasceu pra me fazer feliz.

O canto é um louvor ao encanto pela permanência do si mesmo, continuada em seus filhos. A mensagem da música garante ao sujeito caipira que ele não terminará onde seu corpo, um dia, vai terminar. Sua continuidade lhe é garantida pelo nascimento dos filhos. Ao observar e manter a atenção sobre variados rebentos que se dão em novos nascimentos, se conscientiza que ele se eternizará nesse movimento processual contínuo de vida. O caipira, ao lidar como os ciclos de nascimento e morte na natureza, transpõe sua leitura de mundo aos da própria natureza humana. Neste contexto, sua visão de mundo é a visão de si mesmo. Em suas experiências, confronta a sabedoria da vida constituída nos aprendizados de seus antepassados, e toma posse dos ensinamentos dados pela vida palpitante em todo o seu derredor. Aprende que tudo o que a vida lhe produz, produz em irmandades de ocorrências em seu entorno. Por meio das observações empíricas dos astros, dos fenômenos naturais, dos animais, das plantações, ele detém o conhecimento dos tempos necessários a cada elemento de seu entorno. Planta a semente, espera a dinâmica gestativa da terra reproduzir o broto, segue o rebento da terra que apresenta o novo ser em busca de seu lugar ao sol. Diariamente mantém seus olhos atentos ao desenvolvimento, ao amadurecimento e à colheita. Sabe-lhes cor, beleza, nuances, textura, sons, olores, sabores. Capita tudo o que se lhe mostra como evidências, e nos recônditos de seu corpo sensorial, elabora sua experiência e nomeia as palavras de seu mundo. Este saber fundamenta sua força de trabalho na terra, porque é destas alternâncias que provém seu sustento, sua economia, sua sociabilidade. Outra inspiradora obra poética da Música Raiz Sertaneja, que cria uma imagem análoga à ideia de que a natureza reza os acontecimentos que a vida produz em sua espiralidade é “Terra Tombada”, composição de José Fortuna e João Dorácio, interpretação de Chitãozinho e Xororó (1996) tecendo, num olhar extraordinário, os relatos de amor e procriação presentes nos ciclos entre a natureza, a terra e os humanos. 163

A música relata a preparação da terra para o plantio, como um tempo de preparação para o amor. Cobrir a terra e laçar sementes está relacionado ao ato de amor criativo, procriativo, gestacional, marcados por tempos de espera, gestação, nascimentos, cuidados, amadurecimento, colheita.

É calor de mês de agosto, é meados de estação / Vejo sobras de queimadas e fumaça no espigão / Lavrador tombando terra, dá de longe a impressão/ De losangos cor de sangue desenhados pelo chão/ Terra tombada é promessa, de um futuro que se espelha / No quarto verde dos campos, a grande cama vermelha / Onde o parto das sementes faz brotar de suas covas / O fruto da natureza cheirando a criança nova - Terra tombada, solo sagrado chão quente / Esperando que a semente, venha lhe cobrir de flor / Também minh‘alma, ansiosa espera confiante / Que em meu peito você plante, a semente do amor - Terra tombada é criança, deitada num berço verde / Com a boca aberta pedindo para o céu matar-lhe a sede / Lá na fonte ao pé da serra, é o seio do sertão. A água leite da terra alimenta a plantação /O vermelho se faz verde, vem o botão vem a flor / Depois da flor a semente, o pão do trabalhador / Debaixo das folhas mortas, a terra dorme segura / Pois nos dará para o ano, novo parto de fartura.

De acordo com Araújo (2003) tornar nossas vidas extraordinárias é festejar a cada momento o sabor de cada aprendizado bordado na teia de nosso ser. Para o autor, existe uma magia produzida em nossas vivências e ela nos transmuta na cadência da sinfonia cósmica e na vibração da fusão de nossas energias com as energias de todos os seres que constituem o universo pluriverso. Mediante o exposto, podemos considerar que o ser feliz consiste na vivência da simplicidade, das coisas como elas são e como se dão, não como um determinismo, mas como uma dinâmica voluntária. É um sentir-se com, um estar em, um ser por. Um ser em seu próprio vir a ser. O caipira nos lega este grande ensinamento e de acordo com os dizeres do violeiro Basílio, é um processo de aprendizado: “a pessoa aprende que isto compensa”.

4.2.4 Sobre o casamento

A temática do casamento ocupa grande parte das produções de poesias na Música Raiz Sertaneja, que narra uma diversidade de histórias. O tema é muito complexo, mas vamos por meio de um olhar panorâmico abordar dois de seus aspectos marcados pelo encontro e pelo desencontro dos amores: a felicidade e a tragédia. 164

A tradição da cultura caipira no cenário nacional, principalmente nos espaços escolares formadores de opiniões e de ciências, põe o casamento caipira nos palcos das festas juninas como um fator de diversão. Cremos que seja preciso de um distanciamento da imagem deturpadora, se não caricata dos sujeitos caipiras postos neste contexto como atrasados, como inferiores, como figuras típicas do lavrador matuto, trapalhão, esquisito. Considere-se que mesmo sendo uma “brincadeira” engraçada, ela vem sempre conotada com os olhares próprios do citadino, atribuindo ao casório caipiras certa dose de insinuações, carregadas de malícia e conotações sexuais, mostrando a moça caipira assanhada, sempre barriguda, ou mesmo “safada”. Ainda aparece desdentada, feia. Normalmente desgrenhada, como se a saúde bucal não fosse um problema de saúde pública. Quanto ao moço caipira reservam-lhe trapaças, fugas, corrupções, e até mesmo desdém com a cerimônia religiosa, na qual o padre é marcado pela surdez, pelo sono, pela embriaguez, e às vezes, pela violência. Desta maneira, os espaços escolares e comunitários configuram o olhar preconceituoso, sem sequer, se dar conta de que, o que na brincadeira é posto, na realidade é desdita, uma forma de confirmação da imagem caipira criada com intenção de sua negação, pelo seu distanciamento do processo civilizatório, para confirmação da cidade como lugar de cultura válida. No contexto da vida simples dos espaços culturais do caipira, sempre marcado por uma profunda religiosidade, o casamento aprece como algo terminantemente sagrado, algo mediado pela fé, pela honra e pelo selo do contrato social. Para o violeiro Inocêncio “a constituição familiar advém necessariamente pelos enlaces do matrimônio. Casamento é sagrado e é vontade de Deus”. Há um fortíssimo elo entre a fé e a ideia de que a família representa “célula fundamental da sociedade”, pois ela agrega novos membros. No aspecto religioso, Deus continua seu grande projeto de amor para com a humanidade por meio da procriação familiar. Tem-se nesse espaço a plena convicção de que tudo começa a partir do equilíbrio no casamento. Casa-se por que “Não é bom que o homem ou a mulher esteja só…” (Gn 2, 24). Casa-se para amar e ser amado, para juntar forças, partilhar sentimentos, para somar os recursos de forças trabalhistas com objetivos financeiros e sociais. 165

Poderíamos elencar uma diversidade de crenças, e até mesmo mitos, que foram sendo estabelecidos no cenário da vida conjugal resguardada de princípios religiosos e sociais, tais como: viabilizar os projetos e conquistar estabilidade emocional. Através da família, a pessoa adquire seus princípios, forma o seu caráter, forma a sua personalidade; estabelece-se em comunidade, exerce cidadania, transmite valores essenciais da convivência civil, aprimora o relacionamento social. Ao falar da temática o grupo de violeiros considerou só o lado “ideal” do relacionamento conjugal, mencionando que pelo casamento o casal se cuida mutuamente, um ajuda e participa das necessidades do(a) companheiro(a). Um se sacrifica pelo outro. Um é o responsável pela felicidade do outro. Se completam. Quando interrogados pelos desafios subjacentes às suas falas, o grupo não se manifestou, apenas um dos participantes brincou: “aí entra a parte da tragédia! ”. A nossa percepção neste momento foi de que o grupo se recuou na reflexão talvez por haver, entre os participantes, casos bem ou mal sucedidos nas uniões conjugais, talvez seja pela dificuldade que as pessoas têm de abordar publicamente questões relativas ao privado. Ainda há de se considerar que existe graus de familiaridade entre os participantes, o que dificulta expor o próprio ponto de vista. Queremos lembrar que alguns destes princípios religiosos e sociais, ditos anteriormente, postos numa cultura sem o exercício de reflexão e autocrítica, muitas vezes, tomados por elaborações simplistas ou de consenso, também se tornaram instrumentos de controle e de dominação, de favoritismo e de anulação orientados numa visão machista e desigual entre o marido e a mulher. Por exemplo, para haver igualdade e respeito mútuo na edificação social era (e em muitos casos ainda é) necessário que o homem fosse o líder, ocupasse posições de autoridade constituída com função de governar a casa, a propriedade. Ao governo da mulher caberiam os comandos da casa e sua prole. Como deveres, o homem é o provedor e a mulher a educadora. Outro item importantíssimo na cultura caipira em um relacionamento a dois é a fidelidade, nenhuma aliança pode permanecer durável se não existir a base da fidelidade. Mesmo havendo verdade nisto, poderá se tornar ideologicamente instrumento de domininação e submissão. Haja visto que em torno destes fundamentos tão humanos muito se matou e se violentou. Outro princípio: Aceite o seu cônjuge como ele é. Siga o padrão de Deus para o seu lar. "Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o 166

marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo. Assim também vós, cada um em particular, ame a sua própria mulher como a si mesmo, e a mulher reverencie o marido." (Ef 5, 22-23;33). Isto é palavra de Deus, mas precisa de uma hermenêutica à luz do amor, da igualdade e dos “tempos”. É preciso interpretar à luz da razão. Precisa considerar que são palavras de Deus contextualizadas por palavras de homens. São palavras libertadoras, mas historicamente marcadas pelo risco de ser empregada como mantenedora de interesses e controle de padrões comportamentais. Podemos notar a presença de ideias de que o casamento é sagrado, e por isso, gerador de felicidades, em letras como “Aniversário de casamento”, composição de Tonico e Nhô Crispim, interpretada pela dupla Tonico e Tinoco (1953), que diz

Bate o sino lá do campanário, nossa festa de aniversário. Com o laço feliz do amor a aliança um dia prendeu. Na capela enfeitada de flor, tu estava feliz como eu. Este meu coração palpitava e batendo juntinho do seu. O amor que ocê tem dedicado me uniu mais ao teu coração. Peço a Deus para todos os casados, a sua paz da eterna união.

Também em outra moda de viola, “Feliz Casamento”, de composição de Tião Carreiro e Luiz de Castro, interpretação Tião Carreiro e Pardinho (1976), pondera os valores que são os mais importantes no casamento: “Não é casamento com luxo e vaidade que faz o casal sentir felicidade. Não pude ter festa no meu casamento, mas vivo feliz a todo momento”. Vemos na música “Mulher Amada” de composição de Tião Carreiro e Lourival dos Santos, interpretação de Tião Carreiro e Pardinho (1979) a mais clássica declaração de amor no casamento:

Oh! Minha mulher amada... Minha fonte de poesia... Se eu tivesse mil vidas... Mil vidas eu te daria... Vou buscar ouro do sol... Vou trazer prata da lua... Pra enfeitar o seu mundo, sua casa e sua rua... Eu vou dar o que não tenho, é a verdade nua e crua...

Outros clássicos da Música Raiz Sertaneja que também cantam o casamento são pautados por oscilações entre a felicidade, a infelicidade e alguns, enunciam trágicos fins causados por ciúmes, vinganças e até crimes passionais contra a mulher. Dentre 167

tantas letras com estas conotações mencionaremos algumas músicas que foram objetos de reflexões dos sujeitos da pesquisa. A música “Cafezal em flor”, do compositor Luiz Carlos Paraná, interpretação de Cascatinha e Inhana (1970), cria uma forte imagem na poética caipira ao comparar as fases do amor com as fases dos frutos do café.

Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal. Ai menina, meu amor, minha flor do cafezal. Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal. Era florada lindo véu de branca renda se estendeu sobre a fazenda qual um manto nupcial. E de mãos dadas fomos juntos pela estrada toda branca e perfumada pela flor do cafezal [...] Passa-se a noite, vem um sol ardente e bruto, morre a flor e nasce um fruto, no lugar de cada flor. Passa-se o tempo em que a vida é toda encanto, morre o amor e nasce o pranto, fruto amargo de uma dor.

Como se percebe, o amor é marcado pelo curso cíclico da natureza, mas regido por um determinismo trágico. Não há uma linearidade no amor, e sim, uma oscilação marcada pelas alternâncias que passam da felicidade à infelicidade. Percebemos que a observação natural alimenta o conformismo e acalma a impossibilidade de mudança, transferindo a angustia para um plano de sublimação. Encanta-se com a beleza da flor, mas o fruto é necessariamente amargo. A presente ideia aparece com clareza na fala da violeira Guilherma, ao dizer que cantar esta música dá muita saudade do seu tempo de menina na roça:

Eu e minha irmã gostava muito de cantar essa música no meio da roça, e quando escuto hoje, me traz muitas recordações do cafezal e tudo ali. Ela ensina sobre o cafezal e sobre . As coisas boas passam, fazer o quê?”

O recordar o como era feliz gera a consciência de um movimento nos estados de nostalgia e conformismo. De acordo com o violeiro Sebastião, outra canção que faz o suspiro sair do peito do ouvinte é “Destinos Iguais” composição de Ariowaldo Pires e Laureano, interpretação de Tonico e Tinoco (1947), que narra a trágica:

“ História de um casal de canarinhos que vivia feliz por entre trocas de juras de amor eterno. Um dia, surge um gavião malvado e rapta a canarinha levando-a consigo e nunca mais volta para seu amor. O canarinho, apesar de perseguir o malfeitor, abate-se pela crueldade do destino e cai num pranto sem fim. O homem ao presenciar a tragédia do canarinho, também 168

chora a saudade de sua paixão em tempos felizes de trocas de amor eterno, no entanto, ela o trai e vai embora de sua vida.

Como vimos anteriormente, no episódio trágico o ser humano, num estado catártico, identifica-se com o insucesso e o infortúnio do outro e se compadece com sua situação, num processo de interiorização do sentimento surgido.

Já foi no morrê do dia, quando eu vi, com alegria dois canarinho gorjeá / Com bicada de ternura O casá trocava jura De eternamente se amá. - De repente, da gaiada Aonde tava posada As avezinha do amô / Surgiu um gavião marvado Passando o bico encurvado Na canarinha e levô. - O canarinho, coitado Avuô desesperado Perseguindo o marfeitô / Despois mais, veio vortando Muito triste soluçando Num gorjeá cheio de dô. - Dos óio do canarinho Eu vi moiado os cantinho De chorá pelo seu bem / Uma dor foi me apertando E meus óio foi piscando Sem querê chorei também. - Chorei pois que nem saudade Daquela felicidade Que o destino me roubou / O meu viver solitário É tal e quar deste canário Que perdeu o seu amô.

Por meio da análise e interpretação das vozes dos sujeitos participantes da pesquisa, percebemos que as narrativas trágicas despertam maior atenção, e de acordo com os violeiros participantes, são mais incisivas nos ensino-aprendizagens que as narrativas de felicidade.

Para o violeiro Eleutério, as músicas trágicas se constituem em memorias significativas:

“Essas músicas provocam lembranças em fatos acontecidos e as pessoas lembram-se desses fatos quando escutam ou mesmo cantam estas letras. Desde a primeira vez em que ela escuta ou aprende sobre esse fato, ela guarda aquilo ali, e ao ouvir a música, recorda também o fato”.

As narrativas trágicas causam maiores provocações na atenção do ouvinte por ele se identificar ou não com os elementos constituintes da trama.

De acordo com o violeiro João Dantas, “quando começa cantar uma música com mensagem trágica o povo para e presta mais atenção”. A repulsa pelo comportamento negativo tem maior força que a aceitação dos fatos apresentados na canção. Aprende-se mais pelos infortúnios do que pelo sucesso. Para a violeira Maria Aparecida parece que “as pessoas dão maior importância para aquilo provoca medo, para aquilo que não está correto”. 169

Com as mesmas variáveis e oscilações dos personagens da música Destinos iguais, a música “João de barro”, composição de Teddy Vieira e Muibo Cury, interpretada por Tonico e Tinoco (1973), tornou-se um dos maiores clássicos da Música Raiz Sertaneja. A tragédia também se passa por intermédio de um casal de pássaros João de barro, que ao construir sua casinha no galho da árvore faziam planos e juras de amor eterno.

Enquanto ele trabalhava fixo no seu propósito, ela o trai. Sofrendo a dor do desprezo ele se vinga trancando-a definitivamente dentro da casa que viria a ser o prometido lar de amor. O homem que a tudo vê, também se lembra de sua desventura.

O João de Barro pra ser feliz como eu Certo dia resolveu arranjar uma cumpanheira. Num vai e vem com o barro da biquinha Ele fez sua casinha lá no galho da paineira. Toda manhã o pedreiro da floresta Cantava fazendo festa pra'quela que tanto amava. Mas quando ele ia buscar um raminho Para construir seu ninho, o seu amor lhe enganava. - Mai neste mundo o mal feito é descoberto João de Barro viu de perto sua esperança perdida Cego de dôr trancou a porta da morada Deixando lá sua amada presa pro resto da vida. - Que semelhança marcando meu calendário Só que eu fiz o contrário do que o João de Barro fez Nosso Senhor me deu carma nessa hora A ingrata eu põe pra fora aonde anda eu não sei.

De acordo com o violeiro Anísio, o que se passa na música, também se passa na vida das pessoas. “Muitos casos de divórcios acontecem pela mesma causa do que canta na música: a traição e a desconfiança”. A fala do violeiro Valdemar reforça o que discutimos anteriormente sobre a culpabilidade feminina “A natureza tem sabedoria, então tá certo o João de barro fazer isto com ela. Traiu, tem que pagar”. Mas a violeira Maria Aparecida discorda e se contrapõe dizendo que a “gente não deve fazer igual ao João de barro não. Tem que conversar e resolver as coisas. O ser humano não pode agir igual os bichos”. Já para o violeiro Lázaro, “não dá para não aprender com essas histórias”. E conclui o Sr. Manoel. “Elas têm ensinamentos pra tudo na vida”. Desta forma percebemos que a Música Raiz Sertaneja reflete o padrão valorativo do grupo e nem sempre há consenso e clareza sobre as concepções de casamento, amor, família. Nota-se também que não existe a prática da reflexão sobre tais concepções que são cantaroladas e repetidas nas rodas de viola. Porém, a produção do diálogo entre os quatro violeiros do discurso porta o alcance de um dos objetivos da pesquisa, que é 170

procurar compreender como as concepções de felicidade de tragédia podem ser vistas como elementos de educação entre sujeitos. Os questionamentos surgidos na roda de conversa geraram uma nova visão sobre aquilo que é dado na natureza (“A natureza tem sabedoria, então tá certo o João de barro fazer isto com ela. Traiu, tem que pagar”) e como se lê e interpreta para a realidade da vida humana. A reflexão sobre a prática natural leva a um novo olhar sobre os próprios dados da natureza (“a “gente não deve fazer igual ao João de barro não. Tem que conversar e resolver as coisas. O ser humano não pode agir igual os bichos”) e a uma nova consciência racional (“não dá pra não aprender com essas histórias”). Como se nota, a tragédia é catártica. Propicia, pela representação da vida, o "reconhecimento", como passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita. (GALLO, 2012). Assim o violeiro Lázaro aponta que se aprende pelas músicas trágicas. “Elas têm ensinamentos pra tudo na vida”. A reflexão sobre os ensinamentos presentes na poética musical aponta possibilidades de articulação entre os dados levantados e as bases teóricas tanto da Educação Popular quanto da Sociocomunitária.

4.2.5 Sobre a mulher (ciúme/vingança)

Ainda no contexto da tragédia, a clássica música “Cabocla Teresa”, de composição de Raul Torres e João Pacífico, interpretação de Raul Torres e Serrinha (1940), mostra como os conflitos domésticos eram tratados nas formas de brutalidade e violência contra a mulher. De acordo com Tânia Pinafi (2007, p. 2), quando a música foi escrita e gravada, retratou a situação da mulher na sociedade brasileira, que era vista como “propriedade” do marido no casamento. Menciona que só na década seguinte ao acontecimento descrito na música é que a ONU declararia os direitos da mulher como sendo direitos humanos, implementando a igualdade de gêneros.

A Organização das Nações Unidas (ONU) iniciou seus esforços contra essa forma de violência, na década de 50, com a criação da Comissão de Status da Mulher que formulou entre os anos de 1949 e 1962 uma série de tratados baseados em provisões da Carta das Nações Unidas — que afirma expressamente os direitos iguais entre homens e mulheres e na Declaração 171

Universal dos Direitos Humanos — que declara que todos os direitos e liberdades humanos devem ser aplicados igualmente a homens e mulheres, sem distinção de qualquer natureza. (PINAFI, 2007, p.1).

A música “Cabocla Teresa”, de acordo com os violeiros José de Fatima, Basílio, Eleutério, Inocêncio, Dantas, Manoel, Guilherma, Madalena, Tereza e Lourival, retrata um crime premeditado ocorrido nas mediações da cultura caipira contra uma mulher, chamada Tereza, que se separa do marido. (Não se sabe o porquê). Abalado pelo fato de sua mulher ir embora de casa, casar-se com outro e pelo fim do seu casamento, o marido sente-se traído, e mediante a desonra jura “vingança”. Sentindo o sangue ferver em suas veias pega uma arma de fogo, vai até o rancho onde Teresa vive com o outro marido e a mata. Alguém passando por ali presencia o crime, vai até à cidade chamar ao delegado (Sr. doutô), que chegando ao local, encontram o assassino armado que lhes explica suas razões.

Declamado: "Lá no alto da montanha Numa casinha estranha Toda feita de sapê. / Parei numa noite à cavalo Pra mór de dois estalos Que ouvi lá dentro bate. / Apeei com muito jeito Ouvi um gemido perfeito Uma voz cheia de dor: "Vancê, Tereza, descansa Jurei de fazer a vingança Pra morte do meu amor". Pela réstia da janela Por uma luzinha amarela De um lampião quase apagando Vi uma cabocla no chão E um cabra tinha na mão Uma arma alumiando. Virei meu cavalo a galope Risquei de espora e chicote Sangrei a anca do tar. Desci a montanha abaixo Galopando meu macho O seu doutô fui chamar. Vortamo lá pra montanha Naquela casinha estranha Eu e mais seu doutô. Topemo o cabra assustado Que chamou nóis prum lado E a sua história contou" Cantado: Há tempo eu fiz um ranchinho Pra minha cabocla mora. Pois era ali nosso ninho Bem longe deste lugar. - No arto lá da montanha Perto da luz do luar / Vivi um ano feliz Sem nunca isso espera. - E muito tempo passou Pensando em ser tão feliz / Mas a Tereza, doutor, Felicidade não quis. - O meu sonho nesse oiá / Paguei caro meu amor. Pra mór de outro caboclo Meu rancho ela abandonou. - Senti meu sangue fervê Jurei a Tereza mata / O meu alazão arriei E ela eu vô percurá. - Agora já me vinguei É esse o fim de um amor / Esta cabocla eu matei É a minha história, dotor.

A sugestiva letra trágica nos leva a outros relevantes questionamentos: Será mesmo que podemos dizer que isto é coisa do passado? Esta tragédia não nos deveria remeter aos porquês, de ainda em nossos dias, milhares de Terezas, nos “por aí da sociedade”, balbuciarem, em suas realidades, os mesmos gemidos desta cabocla caipira? Por que os estampidos dos quase 80 anos passados não se silenciam? Por que os “Sr. doutô” só chegam depois, e ainda como antes, só quando chamados? 172

Parece-nos que mesmo em nossos tempos, e ainda dentro de casa, encontramos a “Tereza” independentemente de onde mora, idade ou estado civil, vítima do sangue que ferve nas veias, do pai de criação e/ou padrasto enquanto criança; do marido ou ex- marido, quando adulta, e não raras vezes, dos próprios filhos ou cônjuges, sofrendo maus tratos, já idosa. A definição sobre a violência contra a mulher por Pinafi (2007, p. 1), invoca a sociedade brasileira a uma mudança dos parâmetros dos comportamentos machistas ainda presente em nosso cotidiano.

A violência contra a mulher é produto de uma construção histórica — portanto, passível de desconstrução — que traz em seu seio estreita relação com as categorias de gênero, classe e raça/etnia e suas relações de poder. Por definição, pode ser considerada como toda e qualquer conduta baseada no gênero, que cause ou passível de causar morte, dano ou sofrimento nos âmbitos: físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na privada.

E o que temos que aprender e ensinar com as “lições” da tragédia? De acordo com o violeiro Danta “que o crime não compensa. Se eu tivesse nesta situação, deveria perdoar”. “Eu não aceitaria a traição, mas também não iria matar a mulher só por que ela não me queria mais”, interpreta o violeiro Anísio. Já o violeiro Lourival, identifica a tragédia com experiências do cotidiano: Às vezes o casamento não dá certo mesmo, se ela não quer mais, ela que siga o caminho dela, que eu vou seguir o meu. Deixo pra lá”. O violeiro Jose de Fátima transfere o aprendizado e faz uma releitura, e diz “apesar da liberdade de cada um, o machismo não é bom, não é bom a gente ver que ainda acontece crimes por amor e ciúmes”. Já o violeiro Basílio, moraliza pela religiosidade: “Onde isso acontece, acontece por falta de Deus, de religião”. “Analisando a música vemos que só o lado dele foi contado. Mas em relação ao amor dele por ela? Não poderia ser sufocante? Ser possessivo?, Ou ela realmente era safada?”, indaga o violeiro José de Fátima. O Sr. Manoel também arrisca: “a gente tem que pensar antes de fazer qualquer coisa com a cabeça quente”. 173

O violeiro Dantas arremata: “Ao ouvir a música a gente sente tristeza, dor. A violência gera violência”. Conforme vimos nesta tragédia e nas falas dos sujeitos, não é possível dar conta e ter controle de tudo o que nos acontece. Mas certamente fará uma grande diferença a quem estiver preparado para essa condição de alternâncias e vulnerabilidades. Podemos aprender com isso. Frente a cada ação temos a força de nossas escolhas e a possibilidade de alterar os resultados finais quando negativos ou indesejáveis. O fato da vida estar sujeita à mudança o tempo todo em si mesma, cabe aos sujeitos tomarem consciência e modificar sua postura, e escrever em sua história, um novo capítulo sobre a não violência, contra o desrespeito e em busca aos direitos das pessoas. Dados que apareceram na fala do violeiro Basílio: “acho que as pessoas têm que conversar, e ajustar aquilo que não tá nos conformes”.

4.2.6 Sobre a mulher caipira. (A ajudante, mãe e esposa)

Ao olhar as letras das Músicas Raiz Sertaneja sobre esta temática, percebemos um fio condutor que retesa a concepção do papel da mulher nos espaços da cultura caipira, nos quais sua inserção social e familiar se deu de forma subordinada à égide do machismo e do patriarcalismo. No entanto, é de se considerar que esta visão não é exclusiva desta cultura. Trata-se de uma questão ideológica que se impôs à mulher o peso da invisibilidade social, singular e de gênero. Tal fato ocorreu ao longo de toda a história de muitas sociedades, dando-se com maior ou menor intensidade. Não desconsiderando a evolução dos direitos e conquistas das mulheres frente aos desafios históricos em nossa sociedade, traremos à análise as palavras geradoras inscritas na letra da música “Os mandamento das muié”,47 composição de Raul Torres e João Pacífico, em gravação Victor de 27 de março de 1939 pela dupla Raul Torres e Serrinha. Situamos nossos olhares aos de sua época e contexto, sem deixar de mirar as mulheres caipiras e sitiantes do mundo rural contemporâneo, com a finalidade de aluir os véus históricos que as encobrem e, ao mesmo tempo, reler os papéis fundamentais desempenhados por elas, tanto para garantir a reprodução do sítio, como unidade

47 - Será mantida a escrita original da música – letra que por si só poderia representar uma caricatura da linguagem caipira. 174

produtiva, (BRANDÃO, 1976), quanto para manter a condição social da família sitiante, construindo novos passos em busca da igualdade em detrimento do sexismo histórico48. A temática do trabalho da mulher e da apropriação dos papeis conjugais constituídos historicamente pela égide do machismo não emergiram e nem foram discutidas nas rodas de conversa pelos sujeitos da pesquisa, no entanto, a abordamos em vista de sua relevância para a compreensão do quanto a música raiz sertaneja é formadora e mantenedora de concepções. Nos dois primeiros mandamentos trazidos pela música, notamos em primeiro lugar, o papel da mulher como dona de casa, e em segundo, a invisibilidade do trabalho feminino. Logo no primeiro mandamento temos: “Os mandamento das muié, o primeiro é muito bom: É levantá de minhã cedo e corrê a acendê o fogão”. A atividade é vista como obrigação da mulher e direito do marido. É muito bom para o marido que a “muié” faça o serviço do café da “minhã” enquanto ele dorme um pouco mais. Sobre a estruturação dos papeis sexuais na roça, Brandão (1976) menciona que o mundo da casa aparece para o marido, mediatizado pela mulher, assim como o “mundo de fora” aparece para a mulher mediatizado pelo marido. A esposa “dá conta” de tudo o que se passa na casa e no quintal. O marido “dá conta”, para a mulher, do que se passa no “mundo de fora” (BRANDÃO, 1986, p. 7). Nas entrelinhas deste mandamento há uma ideia de que a mulher caipira precisava saber fazer um pouco de tudo. Seu orgulho vinha pelo dar conta das suas tarefas em dia. Tanto mais empenhada, tanto mais supunha ser sua visibilidade. Esta referência quem lhe dava era seu marido. Vale lembrar que o marido não explicitava formalmente este domínio, e sim, o subentendia pelo seu grau de satisfação ou não. À mulher cabia fazer um pouco de tudo, ou melhor dizendo, tudo de tudo: tomar conta da casa, olhar cada filho em suas particularidades, cuidar da educação, da saúde, da higiene, dos modos, dos conflitos relacionais, da moral, da religiosidade, lavar a roupa, na maioria das vezes num processo desgastante e muito pesado: puxar a água da cisterna sustentando o peso do balde com as mãos, quarar e bater para clarear as roupas

48- Sexismo: preconceito sexual. Que evidencia a superioridade masculina no tratamento da mulher como sexo frágil. 175

sujas do trabalho direto com a terra, depois estender, recolher, passar e remendar quando necessário. Lembrando que não era tarefa semanal e sim diária. Providenciar lenha, “mistura” para as refeições, cozinhar, levar a comida na roça para o marido e demais ajudantes, lavar as louças e deixar tudo arrumado para a próxima refeição. Alguns serviços eram semanais ou esporádicos como torrar café, fazer doces de frutos silvestres, preparar o forno a lenha, amassar pão, biscoitos e quitandas para a merenda; fazer polvilho, farinha de mandioca, socar o milho no pilão para a canjica, o fubá; plantar hortaliças, temperos, condimentos, ervas para chá; cuidar, controlar e tratar de animais e aves domésticas, em muitos casos tirar leite, fazer o queijo, o requeijão, a rapadura, a pamonha, carpir e varrer os terreiros, fazer sabão. Paralelo a estas atividades de seu domínio local, nos períodos de plantio e colheitas trabalhava com o marido nas atividades da roça; ajudava nas festas, terços, igrejas, e quando precisava cuidava de doentes, entre outras ocupações. No segundo mandamento vem à tona a questão do valor do trabalho feminino. “O segundo mandamento vou dizer num é sopa: É barrer a casa intera i´pru tanque e lavar ropa”. O dizer “não é sopa” porta a ideia de que não ser fácil. Não é moleza. Num outro olhar também pode ser entendido ao pé da letra, ou seja, que o trabalho “pesado” da mulher é comparado à sopa, ou seja, dentro deste contexto é algo que por si só não se basta. É leve, de pouco sustento, que se rotineiro enjoa, além de seu uso estar ligado aos estados de convalescenças, dietas ou para abrir o apetite. A faina diária do lavrador e da lavradora aparece numa estruturação social de gênero fundada na concepção patriarcal, com domínio do sexo masculino e a consequente desvalorização do trabalho feminino. Aqui prevalece a concepção da mulher-natureza e não da mulher-indivíduo. Da mulher pluralidades rústicas, (afazeres) e não a mulher singularidade (pessoa). Quem mediava seu sucesso não era seus ideais e realização trabalhista e sim, o “dar conta de tudo, ou seja, o fazer de tudo um pouco, e um pouco de tudo”. Na verdade estes mandamentos falseiam a realidade, por que certamente para ela seria muito bom se tivesse que fazer só isto. A referência “pouco de tudo” era o que ela publicamente consentia e confessava para explicitar sua multiplicidade de habilidades e talentos, e não como medida de resultados de seus afazeres. Olhando nesta mesma perspectiva, Maria Inês Paulillo disse que “as atividades realizadas pelas mulheres são 176

consideradas leves não porque de fato o sejam, mas porque o trabalho delas tende a ser desvalorizado pelo homem”. (PAULILLO; GRANDE; SILVA, 2000, p. 25). Dentro da família rural o pai e esposo é, ao mesmo tempo, o proprietário e o patrão. A mãe e esposa é teoricamente coproprietária da casa. A mulher controla o trabalho doméstico e “ajuda” o marido no trabalho da roça. Em casa, o seu trabalho é o que produz as condições diretas de consumo e vivência do grupo familiar. Na lavoura ela participa complementarmente da atividade de produção de cereais. Enquanto o trabalho do homem se apresentava como “pesado” e “essencial”, o da mulher era tido como trabalho “leve” e com caráter de “ajuda”. Evidentemente que esta construção não deve ser vista como natural, pois, apesar de ser no âmbito do trabalho em que aparecem aqui, elas vão além: aparecem como processos de socialização vivenciados por homens e mulheres como os responsáveis pela construção social da diferença e pela valorização diferencial das características atribuídas a uns e outras. O trabalho do homem rural é externo à casa, se dá nos domínios da roça. Os das mulheres estão nos domínios da casa e da família. O marido, ao chegar a casa depois do trabalho diário na roça, espera encontrar todas as condições para o descanso do corpo e relaxamento da alma: desde seu banho preparado, sua roupa limpa, sua janta pronta, à tranquilidade para cismar. Cabe à mulher mediar e prover tudo aquilo que as relações maritais incluem, além de todos os outros afazeres que lhe são reservados, como suas obrigações relacionadas aos demais componentes da família. As mulheres roceiras realizam uma dupla, se não tripla jornada de trabalho, desenvolvendo atividades na roça, no cultivo de produtos para a subsistência (como a horta dos quintais e cuidados de animais domésticos) e no trabalho doméstico; enquanto os homens são responsáveis somente pelo plantio da roça. Em períodos de maiores fluências do trabalho agrícola, (plantio e colheita), as mulheres “ajudam” os homens nas atividades da roça, e em muitos casos com seus filhos pequenos a tiracolo, ou próximos de si. Desta forma, às vezes têm em sua jornada de trabalho o serviço da roça, o serviço da casa, a gravidez e a amamentação. Anita Brumer ressalta que as mulheres possuem qualidades que favorecem a execução de determinadas tarefas, tanto agrícolas como urbanas, que são fundamentais em sua produtividade, dentre as quais: a capacidade de realizar tarefas repetitivas e intensivas; de realizar várias tarefas ao mesmo tempo; de associar ao trabalho suas 177

responsabilidades na esfera da reprodução; sua disponibilidade para envolver-se preferencialmente em trabalhos temporários; habilidade para desenvolver tarefas que requerem dedos pequenos e ágeis, assim como a permanência em posição desconfortável; aceitação de remuneração relativamente inferior; maior docilidade. (BRUMER, 2004, p.212-213). Notamos, porém, que infelizmente, muito disso significa o engodo da submissão ideológica. A mão-de-obra feminina roceira, como vimos, é essencial para a produção da vida familiar da cultura caipira. Percebe-se que as mulheres vão além da produção de atividades consideradas “reprodutivas”, isto é, aquelas que se referem ao cuidado da casa e dos filhos. Suas produções, em muitos casos, desobrigam as famílias de contratar mão-de-obra não familiar para as atividades produtivas. São essenciais e não de ajuda, como muitos argumentam. O trabalho da mulher na casa é atividade considerada como não-trabalho, ou seja, é a “ajuda” que a mulher oferece à reprodução da família. Ao longo da história humana ao homem foi “dado” certo poder, poder de chefe de família que detém o controle sobre sua mulher e seu lar. Porém, como vimos, há uma organização dos espaços de atuação do casal. O mundo da casa e do quintal é de incumbência da mulher, ela “presta” conta deste universo para o marido, já o mundo externo (da roça / cidade) é de responsabilidade primeira do marido e a ele cabe trazer para o universo da casa tudo o que daí decorrer. Veremos como isto é enfático no terceiro mandamento. “E dos otros mandamentos, vô fala qualé o terceiro: É ajudá o seu marido não gastá muito dinheiro”. Como se nota, no terceiro mandamento o que aparentemente a música fala é que cabe à mulher o controle sobre a economia familiar e se faz muito importante sua participação na administração dos bens comuns, como é possível constatar em muitos casos, os quais mostram que a mulher gerenciando as “economias” da família, consegue construir um patrimônio que não conseguiria se fosse o contrário. No entanto, não é somente este o teor do mandamento, mas também que o dinheiro é do marido e a mulher não deve gastá-lo. Cabe-lhe a prestação de contas de todos os seus gastos. Mesmo que a renda seja também fruto de seu trabalho e de sua produção, tudo o que ela precisar deve consultá-lo se pode, o quanto pode e o como fará. Neste contexto, notoriamente podemos presenciar o esforço da mulher caipira na produção da indústria caseira, na produção de elementos de renda alternativa. A 178

produção excedente do consumo familiar - como o polvilho, farinha de mandioca, rapadura, sabão, doces, ovos, frangos, galinhas, leitão, queijo, pães, salgados, frutas, hortaliças, bolachas, dentre outros,- colocada à venda, normalmente representa uma renda que é revertida em estudo dos filhos, em melhoramentos da propriedade e na compra de produtos para o consumo doméstico e da família. Ainda que as marcas desta configuração econômica estejam muito presentes em nossos dias, como dito anteriormente, não podemos deixar de mencionar, numa perspectiva mais ampla, as conquistas do gênero feminino que gradativamente vai superando padrões impostos por uma sociedade machista e patriarcal. Hoje, na área rural, temos um novo conceito de economia familiar, advindo de políticas de incentivo da agricultura familiar, que alterou a maioria destas relações trabalhistas preconizadas por este ‘mandamento das muié’. Frente às novas necessidades impostas pelo trabalho rural contemporâneo, podemos notar outra forma de produção do trabalho feminino rural. Na indústria doméstica moderna a produção familiar é conjugada à comercialização. A capitalização dos mecanismos de produção da agricultura familiar modifica a centralidade das relações de mando em que o trabalho da mulher é visto, em boa parte, não mais como “ajuda ou complemento”, e sim, como atividade fundamental para a manutenção do estabelecimento agrícola. Outro fator muito importante para a economia da família é que esta renda da indústria caseira evita que o agricultor tenha que financiar os melhoramentos do sítio por meio de empréstimos bancários a altos juros. Percebe-se, neste contexto, que o trabalho das mulheres, conjugado ao dos homens lavradores, além de melhorar a economia familiar, se torna produtor de mecanismos culturais. Se por um lado impede que o lucro da venda dos produtos fique com os atravessadores comerciais, por outro, este fator também assegura a continuidade da propriedade e dos laços culturais caipiras. O que aparece de novo no processo é a importância do saber feminino para a preservação da propriedade, saber esse transmitido de geração em geração, que fortalece a ligação familiar com a terra, os costumes e a tradição. A reprodução econômica garante a reprodução social, além de impedir a venda ou o arrendamento da terra. Ainda que o véu da posição superior da figura masculina, tomadora de decisão e controladora da situação, encubra o entorno cultural caipira (e social), há um 179

desvelamento desse olhar e, aos poucos, vai se removendo o que antes impedia vir à claridade. O exercício da função econômica de geração de renda e sustentação da família, entre outros, aos poucos indica os passos da mulher rumo ao rompimento histórico de situação de subalternidade em relação ao marido. No entanto, as tarefas da maternidade são intrasferíveis, mas os papeis atribuídos à mãe, estes sim, podem ser transitórios como veremos no próximo mandamento: “O quarto mandamento ela tem que respeitá: É dá banho nas criança, quando é hora de deitá”. Esposas, mães de família, primeiras educadoras do gênero humano no segredo dos lares. Neste mandamento vemos a educação sendo delegada à responsabilidade da mulher num imperativo categórico: “o quarto mandamento ela tem que respeitá”. Respeitar é o mesmo que cumprir “sua responsabilidade” quanto à higiene, à saúde, à saúde bucal, aos bons tratos, à correção, à moral, à aprendizagem, enfim, de todos os cuidados aos filhos, inclusive os de suas posturas e comportamentos. Cabe ao homem a mão firme, o olhar severo, o castigo, o distanciamento autoritário, a última palavra e a decisão final. Neste contexto, seu papel se torna simbólico: ela é a guarda do lar, o amor das fontes, o sentido dos berços. Faz-se forte dando aos homens a força para lutar até o fim. Sensível, desvela os segredos do mistério da vida que começa, e aporta o consolo na partida rumo à travessia para o mar da vida. Sabe que uma mãe pertence em seus filhos e suas filhas ao transmitir-lhes as tradições de seus ancestrais, ao mesmo tempo que os prepara para o insondável futuro. Possuidora das chaves dos baús que guardam os segredos dos filhos, nem sempre escapa do ônus de sua sensibilidade e percepção, como veremos no outro mandamento. “O quinto mandamento vou dizê cum segurança: Tudo o que se passa em casa num conta pra vizinhança”. O que este mandamento resguarda, na verdade, é uma visão da moralidade caipira para as posturas de comportamento feminino. A boa moral se preconizava pelos domínios do marido. Sua sociabilidade estava conjugada aos espaços da casa, do terreiro e da roça. Deveria ser uma mulher trabalhadeira e exemplar para as próprias filhas. Não deveria ter tempo livre. Deveria manter a crença de que tudo o que ocorresse dentro de casa deveria ficar dentro de casa. 180

Imputava-lhe a crença de que precisava “largar mão” de reclamar de tudo. Mulher santa era a que “não tinha boca para nada”! Se ficasse de conversa com a vizinha, deixava de cuidar de suas obrigações e era “mal falada”, se não quando “enredeira”, igual à galinha d’angola que anuncia tudo o que se passa no seu entorno. É muito feio ficar “cuidando da vida dos outros”, e ao mesmo tempo, uma vergonha para o marido ter uma esposa “leva e traz”! De outras formas, também não é bom ficar de “conversinhas” nos por aí da vida, como pede o sexto mandamento. “O sexto mandamento, eu também quero falá: É não ficá na janela, para os moço namorá”. O mundo da mulher caipira solteira era intermediado por uma janela. Provavelmente, por ser o interior da casa seu principal lugar de trabalho, quando ouvia qualquer manifestação externa, saia à janela para inteirar-se com o acontecimento. Os seus olhos, como janelas da alma, captavam o mundo pelo espaço de sua janela. A serenata, que se apresenta como um seguimento da Música Raiz Sertaneja, menciona este espaço como o lugar no qual a moça, além de apreciar o movimento externo à sua residência, se apresentava aos seus pretendentes para a vida amorosa, e deveras, marital. Várias músicas do estilo serenata convocam a presença da amada à janela para ouvir as declarações de amor de seu admirador. Dentre outras, podemos notar na música “Seresteiro da lua”, Composição de Pedro Bento e Cafezinho, gravada por Pedro Bento e Zé da Estrada (1972): “Abre a janela ó querida. Venha ver o luar cor de prata. Venha ouvir o som deste meu pinho, na canção de uma serenata”. Ou ainda a música “Serenata de amor”, de composição de Pedro Bento, que canta “[...] Por favor oh minha querida, eu lhe considero a mulher mais bela. Quero ver seu lindo sorriso quando você abrir a janela”. Também na música “Serenata sertaneja”, de autor desconhecido e interpretada por Elizeu Ventania (s/d), a janela aparece como referência de espaço social: “Se estás ouvindo, meu amor, vens à janela, que a noite é bela pra se ouvir um cantador. Eu fico triste quando canto e não te vejo, o meu desejo é gozar o teu amor”. Na música “Eu e a lua”, de autoria e interpretação de Tonico e Tinoco (1959), há referência à moça na janela: “Somente a lua no céu estrelado está a meu lado, surgiu num clarão. E tu querida nem abre a janela, Vem ouvir donzela a minha canção [...]”. Como podemos notar, a janela era abertura simbólica a dois mundos: da moradia e do coração que palpitava de tristeza ou de alegria. Era testemunha de suspiros dobrados, pedidos de amores, reconciliações, declarações apaixonadas. Espaço externo 181

de anunciar a ingratidão da mulher que não correspondia aos apelos dos amantes abraçados às suas violas em tons lamentosos. Espaço interno de uma moradia paterna à outra moradia marital. Neste contexto, de acordo com o sexto mandamento, a janela era lugar de resguardo, pois não era bom para o caipira ver sua mulher na janela o dia todo, tendo em vista que, se estivesse ali poderia ser abordada por outros homens. E o seu medo, acima de tudo, é que ela poderia corresponder aos caprichos do sedutor. Ainda correndo o risco de ser “mal falada”, trazendo vergonha para a família e desonra para o marido. Para evitar brigas e desentendimentos a música dedica-lhe mais dois mandamentos: “O sete mandamento ela deve decorá: É briga co seu marido, quando tarde ele chega”; E o oitavo: “O oitavo mandamento, vou dizer bem de carreira: Dá pancada no marido quando vem cum bebedeira”. Aparentemente estes mandamentos conferem à mulher a ideia de igualdade de direitos. É direito dela a ciência do “por onde anda e o que faz o seu marido”. Desta maneira, mantém o controle e a regulação da ordem da casa e do casamento, duplo domínio de “espaços” de sua responsabilidade. Mas, certamente, não era essa a crença instituída pelos mandamentos. Ironicamente eles reforçam que seu lugar é em casa, portanto, cabiam-lhe os cuidados dos filhos e de seu marido. Note-se que para ele chegar sozinho é sinal que não a levou. Outra coisa, o marido pode sair, mas deve chegar cedo, lhe garantindo que não teria tempo suficiente para traí-la ou sustentar vícios, jogatinas e bebedeiras. Apesar de tudo, o fato ainda era tido pelo marido como aborrecimento. Isto fica bem evidente na música “Violeiro Casado”, composição de Raul Torres, interpretado pela dupla Raul Torres e Serrinha(1949):

Violeiro que é casado, não pode vivê contente, na vorta chegando em casa, já começa o tempo quente. [...] Eu quando quero ir sozinho já tenho um causo inventado. Muié prepare meu terno que hoje eu tô convidado. Muié fica resmungando, fica levada do diabo. Não dianta ocê querê ir, eu hoje vô desbrecado.

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Desta maneira, imputam-lhe ainda a responsabilidade pelos atos morais do marido, além da necessidade de autocontrole do ciúme mediante a moral sexista. A “mortificação” era a prova de amor, o reflexo e o brilho de uma “mulher de verdade”. O que temos por acréscimo no oitavo mandamento “o oitavo mandamento, vou dizer bem de carreira: dá pancada no marido quando vem cum bebedeira”, reforça ainda à mulher que sua atitude serve de controle para os amigos de bebedeira não deixarem que extrapole, e se cuide, para enfrentar a “fera” ao chegar em casa. Aqui parece que ela tem o controle: a taramela ou chave da porta fica do lado de dentro (o lugar onde ela deve estar). Mas este detalhe tem outras implicações: Se ele chegar tarde e bêbado, no dia seguinte não vai conseguir trabalhar e onde ele vai ficar? – dentro de casa! Quem vai fazer seu trabalho? Provavelmente ela! Quem vai medicar sua dor de cabeça? Quem vai aturar sua ressaca? Portanto, o que a música sugere é que é melhor espancá-lo como desforra e abrir-lhe a porta! Uma música que canta esta trama que fez muito sucesso várias décadas seguidas foi “Abra a porta Mariquinha”, composição de Zé Batuta, Quintino e Zé do Rancho, interpretação Zé do Rancho e Mariazinha (1970): (ele) Abre a porta Mariquinha! (ela) Eu não abro não, você vem da pagodeira vai curar sua canseira bem longe do meu colchão. Ele canta justificando que porque a ama tem medo de perdê-la, por isso que não a leva. “Oh! Mariquinha abre a porta e não reclama Mostra que você me ama que eu não quero discussão Você queria que seu bem fosse bocó, Pra te levar no forró E depois ficar na mão”.

Mesmo sua declaração de amor não a convence, pois ela sabe muito bem o real motivo de não levá-la.

“Gosta de festa por que não ficou por lá? Você não quis me levar mas eu sei por que razão Vai no forró paquerar mulher alheia Quando volta me tapeia Só pedindo o meu perdão”

Sua insistência em convencê-la, de nada adianta “Oh! Mariquinha não levei você comigo. Tive medo do perigo desse tal de Ricardão. Fui no forró, mas agora tô de volta Venha já abrir a porta, Que eu não durmo fora não”

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Mesmo frente a tanta insistência ela se mantém na firme resolução do resguardo de sua dignidade, no entanto, ainda teria outra saída, reconhecida como conduta socialmente aprovada, que era dar-lhe a devida lição.

“Eu já falei que não vou abrir a porta E peço que você volte sem fazer reclamação Se eu abrir já sei o que vou fazer Você vai ter que gemer É no pau de macarrão”.

Desta forma, a música legitima o que “o mandamento” reza a favor da mulher, mas não questiona os direitos de igualdade que o próximo mandamento também revela. “O nono mandamento, esse é mais divertido: Quando for dança no baile, só dança co seu marido”. Aparentemente a diversão deve ser propiciada ao marido, com o marido e pelo marido. Assim o mandamento resguarda a alegria e o pertencimento mútuo mediante as relações afetivas e de descontrações. Nota-se, porém, que numa outra perspectiva, o que o mandamento considera divertido é o fato de a mulher não poder dançar com mais ninguém, além de seu marido. No baile, sua diversão está configurada aos caprichos do marido. Porém, o que o mandamento não diz, é que também o marido só deva dançar com ela. Neste contexto encontramos muitas letras de Música Raiz Sertaneja que reforçam a ideia de que a mulher casada não deve ir ao baile, e se for, deve dançar só com o marido. Dentre tantas podemos citar a música “Feijão queimado” de autoria de Raul Torres e interpretação de Tonico e Tinoco (1958):

“O Arrasta-Pé de levantar poeira do chão. A Ritinha quando dança machuca meu coração. Sanfona chora enquanto o sereno cai, Ritinha vamos se embora pro lado que o vento vai”.

Em outras letras percebemos que o marido resiste em levar sua mulher ao baile, como, por exemplo, em “Pagode”, autor desconhecido e interpretação de Tião Carreiro e Pardinho (1973) “Eu com a minha mulher fizemos uma combinação: eu vou no pagode, ela não vai não. No sábado passado eu fui e ela ficou, no sábado que vem, ela fica e eu vou!”

No último mandamento aparece declarado a posição da mulher como propriedade do marido: 184

“Esse vai por dispedida, e por dispedia vai: Se a muié num andá direito, vai pra casa de seu pai”. Como abordamos anteriormente, a mulher subalterna ao marido aparece nas entrelinhas da cultura caipira machista como direito de propriedade do marido e pai. O determinismo moral histórico atribuiu ao homem a definição do controle sexual e papeis conjugais. Nas situações de conflitos relacionais a voz que aclama a razão é a do homem, o sexo forte, inclusive na justificativa do uso da violência contra a mulher em defesa de sua honra. A desonra familiar era cunhada pela resistência ao mando do homem e esposo. Andar direito era a condição de moderação do comportamento social e marital da filha e esposa. Enquanto que por um lado, devolver uma mulher à casa de seu pai era o ápice da vergonha do pai, por outro, notificava-se a honradez masculina do marido. “Salvar o casamento” era a crença disseminada como obrigação da mulher. Era o fio condutor que alinhavava o poder e a preponderância da vontade do marido e, na contrapartida, da anulação e da culpabilidade feminina. Nesta perspectiva a religião entra como um elemento determinante nas formulações conceptivas da moralidade social. Ressalva-se, porém, que não é esta a finalidade e o propósito da religião enquanto religação da criatura com o transcendente. No entanto, não raras vezes os discursos e interpretações religiosas auxiliaram (e auxiliam) na manutenção deste fenômeno cultural. Nem sempre os discursos interpretativos da vontade de Deus abrem mão da vontade dos homens. Nem sempre o poder de Deus ajudou a libertar a mulher do poder dos homens. Nem sempre a vontade dos homens deixou de ser revestida da vontade de Deus para este domínio. Portanto, pela análise da música raiz sertaneja “Os mandamento das muié”, entre outras, podemos perceber que o universo caipira, como um dos matriciais da cultura popular brasileira, sustentou e sustenta o substrato conceptivo do sexismo e, ao mesmo tempo, nos remete à tarefa de prestar olhos e ouvidos aos novos tempos em que mudanças ocorrem numa dinâmica de eficientes conquistas e transformações de mentalidades. O que se ensina nesses mandamentos da música raiz está incrustrado no comportamento e na crença popular, mas enceta o desafio e a necessidade de repensá- los e não segui-los ou mesmo repeti-los. E nas propostas de práticas educativas a partir da reflexão destas concepções é necessário repensar esses modelos de ações e de comportamentos discriminatórios e preconceituosos. Daí a propositividade desta pesquisa em poder contribuir para este tão 185

importante passo na configuração cultural da igualdade e completude entre gêneros, na construção de novos tempos.

4.3 BELAS LIÇÕES NOS VERSOS E REVERSOS DA ESCOLA DA VIDA

4.3.1 Sobre a inspiração poética Nestes versos tão singelos, minha bela, meu amor. Pra vancê quero conta o meu sofrê e a minha dor. (Angelino de Oliveira)

Quanto ao processo de criação poética, ou da palavra inspiração, os sujeitos da pesquisa o sinalizaram como sendo felicidade. Para o violeiro Sr. Manoel, a inspiração do autor da letra, “cavouca dentro dele, para as palavras sair, e vir pra fora”. A moda “Padecimento” é um exemplo, conforme confirma o violeiro Orival, “o compositor fala que sofre, mas depois fica feliz”. Cotejaremos as vozes do autor e poeta caipira Carreirinho, (1921 -2009), da dupla Zé Carreiro e Carreirinho em sua composição “Padecimento” (1958), com (1920 – 1977), autora, escritora e jornalista, naturalizada brasileira, em seu livro, “A descoberta do mundo” (1999), e Luís de Camões (1524 – 1580, apud Bosi, 1977, p.31), poeta português renascentista, em seu poema lírico “Amor é fogo que arde sem se ver” (publicação 1595). Todos são tomados pela dor do criar. A inspiração desnuda, desvela e suscita o criador e sua criação. “Ai a viola me conhece que eu não posso cantar só. Ai se eu sozinho canto bem junto eu canto mió [... ]” O caipira Carreirinho (1958) desemboca seu lamento e se “conforma” nas dores do cantar, encontrando na viola o remédio de seu alívio. Lispector (1999a p. 134), atribui o escrever ser “uma maldição, mas uma maldição que salva”, e tem “saudade da dor de escrever livros”. O ato criador é um ato de amar em Camões (1595 apud Bosi, 1977, p.31), ele conclama a doída ausência que provoca o amor, “que é estar-se preso por vontade”. Apesar da consonância, Carreirinho (1958), se vê na contramão da natureza em seu despontar primaveril. Necessita de um estranhamento e de um distanciamento de tudo o que parecia óbvio. A dor do si mesmo eclodia das “contrações” alegres do nascimento. “Aí vai chegando o mês de agosto bem pertinho de setembro, os 186

passarinhos cantam alegres por as matas florescendo, aí eu não sei o que será que já vai me entristecendo [...] Eu não como e não bebo nada vivo triste padecendo”. A autora Lispector converge à sua escrita-maldição, o seu distanciamento, no qual o autoproduzir é também se autoconsumir. Escrever é “uma maldição por que obriga e arrasta como um vício penoso, do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui” (LISPECTOR,1999a p. 134). Já Camões (1595 apud Bosi, 1977, p.31) tomado pelo ser do amor, enuncia o parir de um não “sei o quê” que transcende o manipulável, o controlável: “Amor é um fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente [...], É solitário andar por entre a gente”. Assim como vê o broto inconsistente desafiar a rudeza da terra e ousar disputar seu lugar ao sol, o caipira Carreirinho (1958), consegue nomear razões que sua própria viola lhe mostra, e há uma troca simbólica (duas partes pertencentes se juntam e formam o único) “O desgosto no meu peito quis ser inquilino meu. Mas eu tenho esta viola que foi enviada por Deus. Ela é minha companheira nas minhas contrariedades. Ai que só me traz alegria e a tristeza rebateu ai, ai, ai”. Também Lispector identifica e enumera seus porquês: escrever “[...]é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que escreva [...]” (LISPECTOR,1999a p. 134). De acordo com Camões (1595 apud Bosi, 1977, p.31), o processo amoroso lhe impõe a condição do enxergar com os olhos invisíveis. “É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; [...] É um não contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder”. Percebemos que Carreirinho, (1958) acaba se “conformando” como sujeito aprendente e se reconhece portador de qualidades e potencialidades, que quando colocadas em comum, fará a diferença em seu entorno. Nisto consistirá sua felicidade. “Ai pra aprender cantar de viola primeiro estudo que eu tive. Aprendi com um violeiro velho que fazia moda impossível. Pois eu sou um violeiro novo, mas também quero ser terrível. Faço moda de gente boa e de algum incorrigível. Toda moda que eu invento ocupo régua prumo e nível. Ai pensando bem um violeiro com prazer no mundo vive ai, ai, ai”. A escritora Lispector admite que se o seu fazer for um fazer auto constituinte, terá encontrado nele também seu processo libertário. O seu processo criativo passa a ser 187

promovente de outros processos de felicidade. “Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador [...]. (LISPECTOR,1999a p. 134). “[...] Este livro é a sombra de mim”. E continua “para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”.

(LISPECTOR, 1999b, p. 5). Camões (1595 apud Bosi, 1977, p.31), sentencia também que o amor prevalece positivamente nas relações do ensinar e aprender. Aproxima, fortalece, supera diferenças, soma valores: “É servir a quem vence, o vencedor; É um ter com quem nos mata lealdade.”. Desta maneira percebemos que os processos de criação poética, compostos e transmitidos pela literatura, nos espaços formais de educação, também perpassam as mensagens que a cultura caipira elabora e circula entre seus sujeitos. Portanto, ao notar que a Música Raiz Sertaneja canta o olhar do sujeito que a compõe, e ao mesmo tempo, as vozes dos que as reproduzem em suas interpretações, vemos que ela ensina o aprendizado do autor poeta e possibilita o aprendizado do ouvinte e admirador, que a tem como seus próprios olhares. A pessoa cantando seus encantos e desencantos, se auto afirma na constituição histórica que se dá no confronto com a realidade perceptível da vida social. Ao se ver na já vista proposição artística, recria-se formulando um novo aprender de si e do fenômeno pertencente. O compositor poeta imerge no néctar da linguagem e nomeia sentimento, paixões e desejos tornando propicio ao sujeito, elaborar suas concepções, dar formas aos seus significados e acomodar as vicissitudes da realidade da vida. O poeta compositor tem chave para abrir os cômodos do mundo e da realidade vital, e daí trazer para fora as ânsias que o sujeito gostaria de ter posse sobre elas. Depois de elucidadas, fulguram sobre o canto, as vozes antes gestadas, mas não paridas. Tais vozes cheias de anúncios enredam no cantar a construção simbólica e metafórica no constitutivo rural, social e popular. Segundo, Bosi (1977, p.115), “há entre o poeta e o campo da experiência não só a mediação imagística como também as várias mediações do discurso: o tempo, o modo, a pessoa, o aspecto, faces todas que a predicação verbal configura”.

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4.3.2 Sobre a boiada

Como vimos anteriormente, o modo de viver do caipira retrata o universo no qual ele está inserido, e algumas dessas características se tornaram fundamentais para a identidade da Música Raiz Sertaneja. Em suas narrativas trazem elementos de concepções e visões de mundo fundadas no cenário as quais são desenvolvidas. Algumas destas canções cantam a saudade da vida em torno da lida do gado. Fazem menção às figuras emblemáticas como o boi, a boiada e o boiadeiro, que mediante a irreversibilidade do progresso, (inserção da tecnologia no mundo rural) suas histórias e seus fazeres passam a ser cantados como tributos à conservação memorial. Zan (2008) observa que essas músicas nos remetem a um determinado modo de vida que, como era sua configuração anteriormente, na atualidade, praticamente está desaparecendo Segundo o autor, o desenvolvimento do capitalismo, acompanhado pela industrialização e pela urbanização da sociedade brasileira, “provocou o rompimento do “equilíbrio ecológico e social” desse modo de vida”. (ZAN, 2008, p 2-3). E continua afirmando que, se por um lado temos esta desintegração, por outro, os aspectos dessa cultura ainda sobrevivem na memória de boa parcela da população brasileira. A relevância da análise sobre a temática da música raiz sertaneja se dá em torno da função pedagógica exercida nestas letras, as quais, ao se reportarem às ações modalidade de trabalho caipira, mostram uma série de situações, linguagens, modo de vida próprios deste universo, possibilitando aos violeiros e ouvintes, que não pertencem a esta prática, obterem as informações sobre as articulações dessas atividades. Passaremos a analisar a música “Mágoa de boiadeiro”, de autoria de Nonô Basílio e Índio Vago, interpretada, dentre outros, por Pedro Bento e Zé da Estrada (1972). Esta música, alternância entre os estados de felicidade e infelicidade, considerada um hino ao universo do boiadeiro, nos remete aos tempos em que todo transporte de bois e vacas era feito a pé tocado a cavalos e cavaleiros, na formação de uma boiada e uma comitiva. Como relata um trecho da música: “Antigamente nem em sonho existia, tantas pontes sobre os rios, nem asfalto nas estradas”. Boiadeiros empunhavam seus berrantes e levavam e traziam o gado no imenso sertão da Paulistânia. Pelo seu discurso, percebemos que o autor da poesia nega sua identidade, não se classifica como poeta, pois certamente isso não lhe seria possível por ser caipira, mas mesmo assim admite que tem inspiração sobre a vida de peão, e humildemente, com 189

uma postura de iletrado, rabisca seus versos com a intenção de perpetuar o como era a vida e a fibra de peão, e denunciar a mágoa que carrega embargada pelo seu “quase choro de saudade”, que tem sobre as pousadas que fazia com os peões. “Não sou poeta, sou apenas um caipira e o tema que me inspira é a fibra de peão. Quase chorando imbuído nesta mágoa rabisquei estas palavras e saiu esta canção”. Ensina por suas histórias que faziam o pouso nos galpões em volta do fogo, que certamente cantavam e conversavam ao som da viola, mas só mesmo o berrante que usava para tocar e arrebanhar o gado poderia consolá-lo com seu som cheio de manha e preguiça. “Canção que fala da saudade das pousadas que já fiz com a peonada junto ao fogo de um galpão. Saudade louca de ouvir o som manhoso de um berrante preguiçoso nos confins do meu sertão”. O autor narra como fazia para tocar a boiada de um lado por outro “A gente usava quatro ou cinco sinuelos pra trazer o pantaneiro no rodeio da boiada”. De acordo com os violeiros Eleutério e Antonio,

“sinuelo é o boi guia, manso, que porta um sininho em seu pescoço para condicionar o pantaneiro, ou seja, o boi arredio que escapava para o pântano, a também seguir junto à boiada”.

Frente às mudanças ocorridas pelo progresso que alterou seus modos de vida, para o poeta, ninguém que não tenha vivido as peripécias da vida de peão conseguiria pensar o heroísmo que de fato era. “Mas hoje em dia tudo é muito diferente, com o progresso nossa gente nem sequer faz uma ideia. Que entre outros fui peão de boiadeiro por este chão brasileiro os heróis da epopeia”. A canção mostra que olhares se cruzam entre viajantes e domiciliares ao longo das estradas de chão, que também se tornavam estradas da vida. Na cidade que era rota das boiadas, havia ruas periféricas tidas como ruas boiadeiras, por onde se passavam toda a comitiva provocando poeira, barulho, curiosidade, flertes, saudações, aproximações e despedidas. “Tenho saudade de rever nas currutelas, as mocinhas nas janelas acenando uma flor”. O lamento toma forma nomeando a perda da atividade de boiadeiro frente à praticidade da tecnologia motorizada no transporte do gado por caminhão, que mortifica sua prática sem dar-lhe a mínima chance de sobrevivência. “Por tudo isso eu lamento e confesso, que a marcha do progresso, é a minha grande dor. Cada jamanta que eu vejo 190

carregada transportando uma boiada me aperta o coração”. Tudo aquilo que antes o laureava a alegria e felicidade, sinais de sua afirmação identitária, agora é flagelo a pulular sua memória e aferir-lhe tristeza e aborrecimentos. “E quando olho minha traia pendurada de tristeza dou risada pra não chorar de paixão”. Cada um de seus bens que dantes lhe garantira apreço, um a um é nomeado pela sua ausência e pelo seu vazio:

“O meu cavalo relinchando pasto a fora que por certo também chora na mais triste solidão. Meu par de esporas meu chapéu de aba larga, uma bruaca de carga um berrante um facão. O velho basto o sinete e o apero, o meu laço e o cargueiro, o meu lenço e o gibão”.

Ao fim, seu desolamento é total, mediante sua decadência pessoal e social: “Ainda resta a guaiaca sem dinheiro deste pobre boiadeiro que perdeu a profissão”. Nota-se aqui um universo vocabular que instiga o ouvinte aprendiz a buscar seus significados. Quando colocada a temática na roda de conversa, o grupo mencionou os elementos com seus significados49.

“Bruaca é uma mala que se coloca no lombo do animal para carregar alimentos e remédios. É feita de couro cru para não molhar quando chover. O basto é um arreio almofadado para cavalgar a longa distancias. Sinete ou selo era um pequeno “carimbo” para selar e autenticar documentos e cartas. Apero é o conjunto de assessórios de montaria (Arreio, pelego, coxonilho, bacheiros, par de espora, traia de cabeçada, peiteira de argola, travessão). Cargueiro era o animal de carga. Também pelo mesmo nome entendiam-se os apetrechos para transportar cargas. A Guaiaca era o cinto de couro macio, com diversas repartições para guardar dinheiro”.

Para o violeiro Antonio Leopoldino, que já lidou com gado,

“Esta música traz recordações para quem já tocou boiada, por que ela recorda como era esta vida de peão, como era uma comitiva de gado e as aventuras dos boiadeiros. Hoje em dia isto não existe mais. Pelo menos por nossas bandas. É um tempo que não volta mais! ”.

A música evidencia uma série de ensino-aprendizagens, aos pouco ela instiga o ouvinte a pensar na sucessão de informações e imagens que vai descrevendo e seus significados. “As palavras concretas e as figuras têm por destino vincular estreitamente a fala poética a um preciso campo de experiências que o texto vai tematizando à

49 - Damos forma à escrita tendo em vista a explicação de cada elemento. 191

proporção que avança [...]” (BOSI, 1977, p. 115). Como se, pela palavra, fosse possível ao poeta (e ao leitor) reconquistar, de repente, a intuição da vida em si mesma. São muitas as músicas que abordam a temática deste universo, dentre as quais “Boiada” de composição de Almir Sater (1999) revela o encantamento e o espirito mágico da atividade caipira, onde se enleva o pensamento mítico cultuado neste entorno sob testemunhos da viola. São histórias e mais histórias que cantam e contam, encantam e recontam, o imaginário e o real, o suposto e o acontecido. Ditos e desditas.

Ele foi levando boi, um dia ele se foi no rastro da boiada / A poeira é como o tempo, um véu, uma bandeira, tropa viajada / Foram indo lentamente, calmos e serenos, lenta caminhada / E sumiram lá na curva, na curva da vida, na curva da estrada / E depois dali pra frete, não se tem notícias, não se sabe nada. / Nada que dissesse algo / De boi, de boiada, de peão de estrada. / Disse um viajante, história mal contada / Ninguém viu, nem rastro, nem homem, nem nada / Isso foi há muito tempo, tempo em que a tropa ainda viajava / Com seus fados e pelegos no rangeu do arreio ao romper da aurora / Tempos de estrelas cadentes, fogueiras ardentes, ao som da viola. / Dias e meses fluindo, destino seguindo, e a gente indo embora. Isso tudo aconteceu no fato que se deu, faz parte da história. / E até hoje em dia quando junta a peonada. / Coisas assombradas, verdades juradas. Dizem que sumiram, que não existiram. Ninguém sabe nada. Ele foi levando boi, um dia ele se foi no rastro da boiada. A poeira é como o tempo, um véu, uma bandeira, tropa viajada. Foram indo lentamente, calmos e serenos, lenta caminhada. Dias e meses seguindo, destino fluindo, e a gente indo embora. Isso tudo aconteceu no fato que se deu, faz parte da história. E até hoje em dia quando junta a peonada. Coisas assombradas, verdades juradas. Dizem que sumiram, que não existiram.

“A boiada de Araguaia”, composição de Sulino demonstra o drama, as peripécias e perigos em que bois, boiadas e boiadeiros se sujeitavam no percurso dos traslados desta atividade. A linguagem trágica ocupa lugar primordial no discurso.

A Boiada do Araguaia logo após a travessia / Parou pra fazer pousada porque já escurecia / Naquele ermo deserto só céu a mata existia / Morava uma Pintada terror da selva bravia / Quando essa fera miava tudo ali silenciava / Sertão inteiro tremia - Moído pelo cansaço da luta daquele dia / Naquela noite soturna enquanto o fogo ardia / Deitada sobre o baixeiro a peonada dormia / Somente um urutau o silêncio interrompia / De vez em quando gritando parece que anunciando / O perigo que surgia. - A noite já ia alta era quase madrugada / A boiada remoia lá na beira da aguada / Ouvindo o mugir do gado a fera esfaimada / Naquele andar de felino veio vindo de emboscada / O cheiro da carne humana aquela fera tirana / Foi atacar a boiada / Aquele pobre boi velho que nas águas foi jogado/ Conseguiu sair com vida antes de ser devorado / Pra se ajuntar a boiada com o corpo retalhado / Ele ia caminhando passo a passo bem cansado / Andando com lentidão chegou na hora que os peões / Já iam ser atacados - Defendendo a peonada que acordou espavorida / Aquele pobre boi velho com o corpo em feridas / Morreu lutando com a fera que por ele foi vencida / Disse o moço 192

Ponteiro com a alma comovida / Foi quem não valia nada que salvou toda a boiada / E também as nossas vidas.

A música “Os três boiadeiros”, Composição de Anacleto Rosas Jr, interpretação de Pedro Bento e Zé da estrada (1970) narra a história de amizade tecida ao longo de muitos anos entre os boiadeiros, e que foi desfeita por uma sucessão de acontecimentos trágicos, restando apenas a memória das lições aprendidas na experiencia desta atividade de trabalho caipira.

Viajando, nas estradas Zé Rolha na frente tocando berrante chamando a boiada. O Chiquinho, sempre do lado Distraindo o gado tomando cuidado nas encruzilhada. E a gente vivia, tocando a boiada. - Mas um dia, na invernada deu uma trovoada uma deslizada o gado estourou. / Nesse dia, morreu Zé Rolha Caiu do cavalo foi dentro do valo o gado pisou. Fiquei eu e o Chiquinho, tocando a boiada - Num Domingo, de rodeio Chiquinho bebeu, não me obedeceu e tomou o picadeiro. / Num relance, apiêi a rês A vaca tremeu mas num pulo que deu matou meu companheiro. Eu fiquei sozinho, tocando a boiada. - Viajando, nas estradas Não toco berrante nem vejo lá adiante meus dois companheiro. Deste trio, ficou saudade E em toda cidade o povo pergunta dos três boiadeiros. Eu fiquei sozinho, tocando a boiada Eu fiquei sozinho, tocando a boiada.

“O menino da porteira”, composição de Teddy Vieira/Luizinho, interpretação Tonico e Tinoco (1949) retrata o ritual de amizade entre o boiadeiro e um menino que morava à beira da estrada. É um dos maiores sucessos da música raiz sertaneja de todos os tempos. A tragédia comove e instiga todo o imaginário popular sobre o universo do boiadeiro. Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino. De longe eu avistava a figura de um menino. Que corria abrir a porteira e depois vinha me pedindo. "Toque o berrante, seu moço, que é pra eu ficar ouvindo". Quando a boiada passava e a poeira ia baixando. Eu jogava uma moeda e ele saía pulando: Obrigado, boiadeiro, que Deus vá lhe acompanhando" / Pra aquele sertão afora meu berrante ia tocando. - Nos caminhos desta vida muitos espinhos eu encontrei Mas nenhum calou mais fundo do que isso que eu passei. Na minha viagem de volta qualquer coisa eu cismei. Vendo a porteira fechada, o menino não avistei. Apeei do meu cavalo e no ranchinho à beira chão Vi uma mulher chorando, quis saber qual a razão "Boiadeiro veio tarde, veja a cruz no estradão. Quem matou o meu filhinho foi um boi sem coração". - Lá pras bandas de Ouro Fino levando gado selvagem. Quando passo na porteira até vejo a sua imagem. O seu rangido tão triste mais parece uma mensagem. Daquele rosto trigueiro desejando-me boa viagem. A cruzinha no estradão do pensamento não sai. Eu já fiz um juramento que não esqueço jamais. Nem que o meu gado estoure, que eu precise ir atrás. Neste pedaço de chão berrante eu não toco mais.

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Como se nota, todas estas músicas trazem informações que ensinam o modo de vida e de trabalho tanto para os que pertencem a este universo da cultura caipira, quanto para os que não têm proximidade destas ações e fazeres.

4.3.3 Sobre o lazer

O lazer realizado no âmbito rural é mediado por uma convivência de comunhão harmônica do caipira entre os aspectos de seu trabalho, da interação com a natureza e do aperfeiçoamento pessoal. Seu lazer é uma adição de si ao espaço de seu trabalho e de seu conjunto cultural, ou seja, sua individualidade torna-se sua globalidade e vice-e- versa. Não raras vezes, seu trabalhar, descansar, brincar, relacionar-se e alegrar-se ocorrem numa mesma inter-relação de atividades laborais, tempo e espaço. O lazer do caipira não se apresenta como algo desassociado do trabalho, como em muitos casos, em que se tem por lazer os momentos de descontrações, participação de atividades lúdicas, a busca pela satisfação imediata e o cultivo do ócio. Neste modelo, o lazer é separado da atividade produtiva de trabalho e requer planejamento, atividades próprias e especificas. Na verdade, o lazer caipira vai além desta configuração unificando diversos fatores. Também contam como lazer a atividade criativa, a utilidade de certas práticas e técnicas, saberes empíricos, a busca de complemento financeiro de renda familiar, entre outros. Por exemplo, o violeiro Sebastião sabe todas as técnicas de extrair o mel silvestre. “Todos os anos eu tiro mel de abelhas para vender na cidade. Já tenho meus clientes certos. Quando vai chegando a época certa, (de maio a julho) eu já procuro onde os enxames das abelhas estão fazendo o mel. Sei pelos movimentos e zumbidos das abelhas”.

Como podemos perceber, a extração do mel silvestre é, ao mesmo tempo, uma atividade recreativa, exercício de técnicas e complemento de renda. Ir com os companheiros pescar na lagoa ou no rio é diversão, uso de técnica, sociabilidade e também uma forma de completar a alimentação, como podemos perceber na Música Raiz Sertaneja “Canoeiro”, Composição de Zé Carreiro e N. Caporrino, interpretada, dentre outros, por Tonico e Tinoco (1950):

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“Domingo de tardezinha eu estava meio à toa / Convidei meu companheiro pra ir pescar na lagoa. Levamos a rede de lance ai, ai, fomos pescar de canoa. [...]. Fui descendo rio abaixo remando minha canoa. Eu entrei numa vazante fui sair noutra lagoa [...]. Pra pegar peixe dos bons dá trabalho à gente soa. Eu jogo timbó na água com isso peixe atordoa. Jogo a rede e dou um grito ai, ai os dourados amontoa”.

Para o violeiro Sebastião, pescar é seu maior lazer, mas também é trabalho ao mesmo tempo: “Quando vou pescar eu esqueço do mundo, relaxo a cabeça, mas ao mesmo tempo, eu pego uns peixinhos para vender, e isto ‘quebra um galho’ danado!”. Buscar “mistura” numa pescaria, numa caçada, mesmo sem planejamento, poderá torna-se uma atividade de variadas vantagens: dá satisfação, desenvolve habilidades e promove economia na compra dos produtos no mercado. Para o violeiro Arlindo, que ainda exerce atividades de lavrador, descanso e trabalho é uma moeda de duas faces: “enquanto descanso normalmente estou fazendo alguma coisa proveitosa no sitio”. Ir ao cerrado arrumar um cabo para sua enxada envolve vários fatores não dissociados, não hierarquizados, mas confluentes, pois é trabalho, é economia, é uso de técnica, é exercício de saber empírico, além do relaxar, observar, interagir com o tempo, intempéries, plantas, flores, pássaros, frutos, experienciando sensações e sentimentos de pertença, troca, domínio e respeito pelo meio natural. Outro aspecto fundante da cultura é que o lazer do caipira se apresenta coletivo, cooperativo e cheio de interesses em sua relação com o meio natural e o meio social. Está imbuída de manifestações de simplicidade que vão desde as festanças, as comemorações religiosas, as cantorias, as pescarias, as cavalgadas, as pamonhadas, os bailes, rodas de jogos, dentre outras, até o mutirão, em que trabalhar é divertir, partilhar, recriar e conviver. Vemos na letra da música “Saudades da minha terra”, composição de Goiá e Belmonte, interpretação, dentre outros, de Tonico e Tinoco (1972), a menção do lazer permeando atividades, descanso e projetos, diferentemente do lazer urbano lamentado pelo caipira distante de sua terra, mas com desejo de retorno:

“[...] Lá pro meu sertão quero voltar. Ver a madrugada, quando a passarada fazendo alvorada começa a cantar. Com satisfação arreio o burrão cortando o estradão saio a galopar. E vou escutando o gado berrando, sabiá cantando no jequitibá. [...] Que saudade imensa do campo e do mato, do manso regato que corta as campinas. Aos domingos ia passear de canoa nas lindas lagoas de águas cristalinas”. 195

De acordo com os violeiros, na roda de conversa, cantar, dançar, jogar, rezar, visitar vizinhos, além de fruição, também se apresentam como formas de garantir a amizade, a sociabilidade e a manutenção do modo de vida das pessoas no grupo, assim como canta na musica:

“Que doce lembrança daquelas festanças, onde tinham danças e lindas meninas...[...]Nesta madrugada estarei de partida pra terra querida, que me viu nascer. Já ouço sonhando o galo cantando, o inhambu piando no escurecer. A lua prateada clareando a estrada, a relva molhada desde o anoitecer. Eu preciso ir pra ver tudo ali, foi lá que nasci, lá quero morrer”.

Dessa forma, as relações sociais pautadas pelo respeito (de amizades, trabalhistas, familiares, compadrio, festividades, religiosidade e educativas) se dão nesse universo complexo de variabilidade do lazer caipira em seu entorno cultural. No entanto, não podemos deixar de mencionar que esse modo de lazer-vida vem se mostrando cada vez mais raro e isolado, dado à sensível alteração dos laços de sociabilidade e de interesses impostos pelos traços da modernização, do uso dos meios de comunicações e das políticas agrícolas causando o afastamento do ser humano de suas raízes. Frente à rápida descaracterização cultural, podemos perguntar: o caipira tradicional está condenado ao desaparecimento, com seus hábitos peculiares e seu modo de vida rústico? Por certo concordaríamos com Dulce Whitaker ao afirmar que frente ao surgimento de

“[...] novos espaços com novos atores sociais cujas condições de pobreza e ausência de capitais exige alternativas de sobrevivência que recriam modos de vida que recuperam práticas tradicionais. São reconstruções de vidas, cujas rupturas se deram em trajetórias muitas vezes dolorosas. São sujeitos históricos que re-colhem fragmentos de culturas despedaçadas nessas trajetórias. (WHITAKER, 2008, p. 297).

Aqui é onde pensamos residir a relevância, pertinência e propositividade desta pesquisa como convite à comunidade acadêmica a incentivar a continuidade desta reflexão como modo de preservação e memorial da cultura caipira. Para a autora é preciso refletir sobre o seu modo de vida, especialmente na dimensão dos meios de produção e subsistência, antes de sua completa transformação. Por meio de atividades 196

organizadas e planejadas, cabe-nos estudar e registrar o maior número possível de informações a esse respeito para valorizar a cultura e o modo de vida simples, com toda a riqueza que isso comporta.

4.3.4 Sobre a visão de si mesmo. Autoestima e autoconceito

O olhar sobre o caipira e sua cultura pelo homem da cidade (tido como “culto”) a maior parte das vezes foi pautada numa relação de dominação, preconceito e de pretensa superioridade sobre o outro, e em muitos casos, até chegando ao desdém e caricatura como abordamos anteriormente. Marcada pela visão da superioridade cultural citadina, a música “Tristeza do Jeca” de composição de Angelino de Oliveira (1919), e interpretada dentre outros, por Tonico e Tinoco (1945), foi uma das primeiras Músicas Raiz a serem gravadas, e se tornou como um hino nacional da Música Raiz Sertaneja. Reproduz a vida difícil e penosa do Jeca, que fundado num estado de nostalgia, prefere gemer suas dores num padecimento determinista. Todo seu entorno se pinta pelos matizes da tristeza. Entre lamúrias canta e conta para sua amada (provavelmente da cidade) seus desgostos e paixões. “Nestes versos tão singelos minha bela, meu amor. Pra você quero contar o meu sofrer e a minha dor. Eu sou como um sabiá quando canta é só tristeza desde o galho onde ele está. Nesta viola eu canto e gemo de verdade, cada toada representa uma saudade.”

Não se percebendo, tudo o mais que via à sua volta também se tornava seu reflexo. Tudo era tão triste quanto o como lhe disseram que era. O que via era como um espelho da feiura que lhe colocaram à sua frente. Assim prospera a sua imagem, que sua própria música se encarrega de veicular na cidade.

“Eu nasci naquela serra num ranchinho beira-chão. Todo cheio de buracos onde a lua faz clarão. Quando chega a madrugada lá no mato a passarada principia um barulhão”.

Se via com os olhos dos outros, que o negavam e o considerava como rústico, como atrasado, como gente do mato:

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“Lá no mato tudo é triste desde o jeito de falar, pois o Jeca quando canta dá vontade de chorar. Não tem um que cante alegre, todos vivem padecendo, cantando pra se aliviá.

Mesmo sendo a viola a sua única companheira e forma de expor suas mazelas, ao silenciá-la, silencia também sua voz interna e se entrega ao determinismo conformista.

“Vou pará coa minha viola, pois não posso mais canta. Quando pego na viola dá vontade de chorar. E o choro que vai caindo devagar vai-se sumindo como as águas vão pro mar.”

Oras, se por um lado, esse olhar sobre si mesmo e sua cultura o marca pela inferioridade e subordinação, no qual atesta a nulidade de seu conhecimento como bom e válido, por outro, algumas músicas, causos, crendices e lendas, também o mostram forte mediante o vasto conhecimento de seu universo na lida com a natureza, com a lavoura, com os ensinamentos ético-morais. E aqui reside exatamente o que queremos preservar. Em diversas Músicas Raiz Sertaneja se faz ouvir sua voz impondo sua postura e chamando o homem da cidade a reconhecê-lo também como valoroso. De acordo com os violeiros Basílio e Lázaro,

“Os ricos também gostam da música raiz. No fundo, ela fala de todos”. “Às vezes começamos a cantar, e logo, logo, as pessoas vão chegando e se aproximam, e dali a pouco, começam a prestar atenção e até cantam juntos”. “Eu não tenho vergonha de canta para o ninguém. Canto em qualquer lugar e para o qualquer povo! ”

Podemos notar na música “Caboclo” de composição de Anacleto Rosas Jr. e Capitão Barduino, interpretada, dentre outros, por Tonico e Tinoco (1958), o caipira não se dirige no mesmo tom de superioridade ao do homem citadino, mas instiga-o a respeitá-lo e a reconhecê-lo como um cidadão de mesmo valor e importância.

Nunca se ria seu moço de vê um caboclo calado, por que tudo neste mundo tem sentimento guardado. Não transforme em alegria o sofrer desse coitado, é seu patrício seu moço é um brasileiro apurado.

Tem clara consciência de seu papel social e de sua responsabilidade cidadã. 198

“Aquilo que vancê veste e tudo que vancê cóme, vem das mãos desse caboclo vem do suor desse hóme que trais a sua coieta que na cidade consome. Muitas veis prá le servi, lá no sertão passa fome”.

Espera ser tratado de igual para igual. Não categoriza o conhecimento como instrumento de poder, mas tem ciência de que, o que sabe em seu universo, o homem da cidade não sabe.

“Não faça poco seu moço do roceiro már trajado. É ele mesmo na inxada que vira o chão ressecado. Aperte a sua mão grossa, óie seu rosto queimado, é seu patricio seu moço o caboclo do roçado. [...] Este caboclo seu moço é o brasileiro apurado”.

Quando vai à cidade não sabe se comportar, nem falar, nem andar, nem ler e nem interpretar esse outro mundo de acordo com os costumes urbanos, mas quando o contrário ocorre, também sabe ver e avaliar as atitudes do homem citadino em seus espaços, que não deixam, da mesma forma, de serem carregados de enganos e erros e situações embaraçosas para este. Neste aspecto o protótipo do caipira “mineirinho” aparece no cenário nacional em músicas, programas de humor, causos, piadas, de tipagem simplória e ingênua, mas carregado de sagacidades, espertezas e dono de inúmeros feitos que malogram o seu opositor, que não tem nem a sua linguagem e nem a sua malícia matuta. Outra música que enche o orgulho caipira é “A caneta e a enxada”, de composição de Teddy Vieira e Capitão Barduín, interpretação, dentre outros, de Zico e Zeca (1959), na qual mostra uma lição de moral do caipira sobre o citadino. O que o caipira traz na verdade, é a divergência de olhares sobre quem é quem nas duas culturas. São posturas de tratamentos entre traços cultos e rústicos considerado normalmente só por um dos lados: (Declamado) "Certa vez uma caneta foi passear lá no sertão, encontrou-se com uma enxada, fazendo uma plantação. A enxada muito humilde, foi lhe fazer saudação, mas a caneta soberba não quis pegar na sua mão. E ainda por desaforo lhe passou uma repreensão. (Cantado). Disse a caneta pra enxada não vem perto de mim, não Você está suja de terra, de terra suja do chão. Sabe com quem está falando, veja sua posição. E não se esqueça a distância da nossa separação. Eu sou a caneta dourada que escreve nos tabelião. Eu escrevo pros governos a lei da constituição. Escrevi em papel de linho, pros ricaços e pros barão. Só ando na mão dos mestres, dos homens de posição.

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Pela poesia da música, o caipira se firma como alguém que, ainda que lhe falte “as letras”, tem os bons modos calcados em princípios educativos. É assim que enxerga qual é o papel da educação na formação do caráter da pessoa.

“A enxada respondeu: de fato eu vivo no chão, pra poder dar o que comer e vestir o seu patrão. Eu vim no mundo primeiro, quase no tempo de Adão. Se não fosse o meu sustento ninguém tinha instrução. Vai-te caneta orgulhosa, vergonha da geração a tua alta nobreza não passa de pretensão. Você diz que escreve tudo, tem uma coisa que não: é a palavra mais bonita que se chama educação! ”

A enxada refere a palavra educação como modo, atitude, comportamento. Percebemos então que o saber escolar aplicado pela própria instituição nem sempre é vivenciado na esfera de suas práticas. Para a violeira Maria Madalena, o saber liberta na medida em que se torna útil para as questões vivenciais onde se situa. “Apesar da caneta parecer saber escrever e ocupar posição de destaque, ela não tinha a educação que vem do berço, que a enxada mostrou ter”. Como se nota, pela música, a enxada ensina a finalidade que se deve ter o conhecimento e sua aplicabilidade, e aponta na caneta, a educação como instrumento de domínio, de poder e de ascensão social. Também na música “O caipira é vosso amigo”, composição de Capitão Furtado, interpretação, dentre outros, de Tonico e Tinoco (1955), vemos o olhar sobre si mesmo que o caipira proclama ao homem citadino, em um declarado protesto contra o como este o vê. “Dizem que o caipira é burro só por que não sabe lê. Se esquecendo que o caipira é que lê dá de come.50 [...] Pranta arrois e batatinha as verdura i o féjão. Alevanta bem cedinho pra lida com as criação. I pra gente se vesti eles pranta o argodão.

Se equipara em grau de importância e cidadania aos demais homens e mulheres não se rebaixando aos tratamentos recebidos.

“[...] O caipira brasileiro deve sê considerado no valô dum marinheiro, Dum dotô e dum sordado. Ele usa como arma a inxada e o arado, picareta e a foiça, cavadera i o machado. [...] Mais tem gente na cidade que essas coisa não qué vê, disque o Jeca são vadio inveis de lê agradece”.

Tem consciência social ao cantar sua obrigação para com a pátria e com a defesa da sociedade.

50 - “Se esquecendo que o caipira é que lê da de come”. (Lê-se: ... que o caipira é que lhe dá de comer). 200

“Se a Nação necessita que o caipira vai servi, berganhando sua inxada por um sabre e um fuzi, o caipira corajoso com orguio de segui pra luitá e defende sua Pátria ... O BRASIL ... Pois o Jeca é um Herói Nunca para de luitá”.

Como se percebe, a Música Raiz Sertaneja se categoriza como fonte formativa de concepções de patriotismo, educação, dever moral, respeitabilidade, igualdade, direitos e deveres, conforme afirma a fala do violeiro Sr Manoel:

“O que a música ensina é uma bela lição, ela falou direitinho o que deve ser um bom trabalhador da roça, que apesar da sua ignorância por que não foi na escola, sabe cumpri suas tarefas, e se for chamado, vai cumprir sua obrigação de ser patriota”.

Diferentemente dos olhares que não veem o caipira um homem e uma mulher seguros de si mesmos, e sem apelar para um falso romantismo, podemos afirmar que através de sua música reafirma sua identidade e seu autoconceito

4.3.5 Sobre a religiosidade

Em toda parte e de muitas maneiras, percebemos a religiosidade do caipira que acredita que Deus está presente, tanto em sua história quanto na de tudo aquilo que sua vida inter-relaciona. As maneiras de expressar a fé manifestam o sentimento religioso e a piedade da alma do homem e da mulher caipira ao buscarem, na religiosidade, o saciar o sentido de Deus, e nele encontrar soluções para seus problemas existenciais. A cultura caipira é fortemente marcada pela dimensão da religiosidade, e a Música Raiz Sertaneja, pelo alcance de sua mensagem, tornou-se importante veículo de ensinos catequéticos de formação religiosa e concepção moral e ética na sociedade rural. No contexto da cultura caipira a Música Raiz Sertaneja também promove o dom da vida, a religiosidade e a fé popular. De acordo com os violeiros Arlindo e Nilton:

“Por meio de suas letras narram milagres, castigos, fatos expoentes do bom uso ou do abuso dos elementos da fé, visitas a locais sagrados, contos que enunciam os valores da crença, Folia de Reis, autos de natal, narrativas de festas religiosas, benzimentos, crendices folclóricas”.

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O violeiro João Dantas, “mestre” da Companhia de Reis disse que “cantar Reis é um sacerdócio, uma coisa muito boa e gratificante, faz as pessoas rezarem e pensarem na vida e na proteção dos Santos Reis. ” Já o violeiro Benedito Mariano afirma que “as músicas de mensagens religiosas ajudam as pessoas reverem atitudes e aprender com suas lições” O cotidiano caipira se reveste do caráter religioso que emana da natureza, dos fenômenos naturais, dos valores morais que denominam os comportamentos desejáveis, a retidão do caráter, o nascimento, a morte, o sofrimento, a vida pós-morte, a família, a solidariedade, a simplicidade, o humanismo, a intersecção fé e vida. Como todos os processos de seu trabalho e lazer estão interligados aos processos vitais da natureza, aprende a lidar com as questões da sua vida numa mesma proporção religiosa. Para a violeira Maria Aparecida, “em tudo é possível perceber a vontade de Deus. A natureza mostra o certo e o errado. Quem faz o bem, recebe o bem, e isso a gente pode notar até nos passarinhos”. Contemplar o céu estrelado, a beleza de uma chuva, o cheiro da relva, a seca, a geada, o plantio, a colheita, o tempo certo de cada coisa, tudo tem irmandade com a ideia de Deus e de sua ação na sua vida e no seu entorno. Tudo é concebido como dádiva, benção, graça, vontade de Deus. Entre as expressões coletivas da espiritualidade caipira contam-se as festas dos padroeiros, as novenas, os rosários e via sacras, as procissões e romarias, as danças e os cânticos do folclore religioso, o carinho aos santos e santas, em especial à Nossa Senhora Aparecida. As promessas para chover, para nascer, para sarar, para casar, para curar. As ofertas para a igreja, para os pobres, para leilões, para o santo de devoção. Vemos na música “Romaria” de composição de Renato Teixeira, interpretação, dentre outros, Renato Teixeira (1972), uma grande forma de expressão de fé: ir ao santuário do santo protetor e de Nossa Senhora Aparecida. Neste sentido o caminhar em direção ao santuário já é uma confissão de fé. O caminhar é um verdadeiro tempo de esperança e a chegada no templo é um encontro de amor.

“É de sonho e de pó o destino de um só. Feito eu perdido em pensamentos sobre o meu cavalo. É de laço e de nó de jibeira o jiló, dessa vida cumprida a só. Sou caipira, Pirapora, Nossa Senhora de Aparecida. Ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida”.

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O caipira peregrino se rasga, se desnuda mediante o sagrado, lavando suas emoções nas águas restauradoras de tudo aquilo que mancha, suja e embolora em sua história. O olhar do peregrino se deposita sobre uma imagem que simboliza a ternura e a proximidade de Deus. A súplica sincera, que flui confiante, é a melhor expressão de um coração dependente, que sozinho nada consegue. Não são as palavras que dão conta de expressar as ânsias da alma.

[...] e disseram, porém que eu viesse aqui prá pedir de Romaria e prece, paz nos desaventos. Como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar”.

Neste contexto, outras músicas raizes, perfazem os mesmos trajetos de fé mostrando que o fenômeno religioso cultivado pelo caipira enleva a visita ao santuário como algo muito importante para sua vida: pagar a sua promessa, fazer o seu pedido e expressar sua devoção e seu amor. São diversas, mas podemos citar “Pingo D'água”, composição de João Pacífico e Raul Torres, interpretação, dentre outros, de Tonico e Tinoco (1950), em que o homem rural mediante a seca que aflige sua roça, narra o milagre da chuva e o pagamento da promessa feita pelo recebimento da graça.

Eu fiz promessa pra que Deus mandasse chuva / Pra crecê a minha roça e vingá as criação / Pois veio a seca e matô meu cafesá / Matô tudo meu arroz e secô tudo algodão. - Nessa coieita meu carro ficô parado / Minha boiada carreira quase morre sem pasta / Eu fiz promessa que o primeiro pingo d'água / Eu moiava as frô da Santa que tava em frente do altá. - Eu esperei uma semana, um mês inteiro / A roça tava tão seca, dava pena até de vê / Oiava pro céu,cada nuvem que passava / Eu da Santa me lembrava,pra promessa não esquecê. - Em pouco tempo a roça ficou viçosa / As criação já pastava,floresceu meu cafesá. / Fui na capela e levei treis ''pingo d'água''. Um foi o pingo da chuva. Dois caiu do meu oiá..

Para a violeira Guilherma a música marcou muito sua vida, por que ajudava a ter esperança na chuva quando vinha a seca. Ao cantar ou mesmo ouvir a música, resgata de sua memória toda a situação vivida na roça:

“Quantas vezes a gente ouvia esta música e ficava pensando que Deus atende os pedidos do povo. Então a gente também acreditava que Deus ia mandar a chuva pra nossa roça. E vinha mesmo! A gente fazia novena para chover quando o sol queimava o arrozal, ou as outras plantações”.

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O violeiro Sebastião também relevou sua memória tão marcada pela experiência de carência da chuva e os rituais religiosos próprios desenvolvidos nestas situações:

“Quando vinha a seca, a gente fazia novena para chover, normalmente era ao meio dia, parava de trabalhar e todos andávamos longas distâncias com litros de água na cabeça, ou pequenas vasilhas nas mãos, para molhar o cruzeiro e rezar, invocando São Sebastião do rio e Santa Bárbara para mandar chuva e salvar as roças. A gente ia rezando e cantando pelo caminho. Todos os anos, antes mesmo de terminar a novena, já vinha a chuva, e era uma alegria geral”.

Também a música “Aparecida do Norte”, de composição de Anacleto Rosas Jr. e Tonico, interpretação de Tonico e Tinoco (1951), mostra o peregrino caipira (o próprio Tinoco) em Aparecida do Norte, confessando sua fé ao pagar sua promessa pela graça de ter se curado de uma doença.

Já cumpri minha promessa na Aparecida do Norte. / E graças a Nossa Senhora não lastimo mais a sorte. / Falo com Fé: - Não lastimo mais a sorte já cumpri minha promessa na Aparecida do Norte. - Eu subi toda a ladeira sem carência de transporte / E beijei os pés da Santa da Aparecida do Norte Falo com Fé: - Da Aparecida do Norte Eu subi toda a ladeira sem carência de transporte. - Não tenho melancolia, tenho saúde sou forte. Tenho fé em Nossa senhora da Aparecida do Norte Falo com Fé: Da Aparecida do Norte Não tenho melancolia, tenho saúde sou forte - Padroeira do Brasil Aparecida do Norte Eu também sou brasileiro sou caboclo de suporte Falo com Fé: Sou caboclo de suporte Padroeira do Brasil Aparecida do Norte - Todo meado do ano enquanto não chega a morte Vou fazer minha visita na Aparecida do Norte. Falo com Fé: Na Aparecida do Norte Todo meado do ano enquanto não chega a morte

A música foi marcante na religiosidade popular e na difusão da catequese que enfatizava os milagres da Senhora Aparecida. Para o violeiro Eleutério, ela recorda os cuidados maternos dos céus para o caipira:

“Esta música mostra a proteção de Nossa Senhora Aparecida para quem tem fé. É uma moda cheia de ensinamentos e ajuda o povo recordar tanto de Nossa Senhora, quanto do Santuário de Aparecida do Norte”.

“Bom Jesus de Pirapora”, composição de Ado Benatti e Serrinha (1946), é outra música muito conhecida no universo caipira, sobre o milagre conseguido por um 204

homem que levou sua mãe extremamente doente ao Santuário Bom Jesus, em Pirapora/SP, e conta todo seu penoso e arriscado trajeto e a realização do milagre.

(Declamado) Mãe, nome sagrado que a gente venera e adora Criatura que mais se ama, depois de Nossa Senhora! Vendo minha mãe paralítica, sem um sinal de melhora, Levei ela confiante ao Bom Jesus de Pirapora... (Cantado) Num velho carro de boi, Saímos estrada a fora, Passamos em toda Perigos de hora em hora, Dormindo nos mataréus Aonde a pintada mora Mas quem tem fé neste mundo Sofre calado e não chora! - Com dez dias de viagem, sem a esperança perder, do alto dum espigão, Ouvi um sino gemer... A mais linda paisagem, Que nunca hei de esquecer A Matriz de Pirapora, Na margem do rio Tietê! - Até a porta da igreja, Carro de boi nos conduz. Levei minha mãe no colo, No altar cheio de luz. Ali mesmo ajoelhei, Fazendo o Sinal da Cruz, Beijei a imagem sagrada Do abençoado Jesus... (Declamado) - E a cura milagrosa deu-se ali, na mesma hora: Minha mãe saiu andando daquela igreja pra fora! Foi um milagre da fé, juro por Nossa Senhora Bendito seja pra sempre Bom Jesus de Pirapora!

Sobre a temática, na roda de conversa, o grupo apontou que o dia-a-dia do caipira é marcado de pequenos sinais de confiança e amor de Deus: o persignar-se, a oração da manhã, o benzimento antes das refeições, antes de entrar numa mata ou num rio, mediante uma chuva de raios, a oração da noite, a cruz, o cruzeiro, o terço, o quadro na parede, o oratório, uma imagem, uma vela que se acende para acompanhar um familiar enfermo, um Pai Nosso recitado de mãos postas, um olhar confiante a uma imagem de algum santo, ou de Maria, o retirar o chapéu ao passar em frente à igreja, ou um sorriso dirigido ao Céu em meio a uma alegria singela, enfim, são inumeráveis modos de expressões de sua fé e religiosidade. Outro fator importante a notar na religiosidade do caipira é que se apresenta como cíclica. Tudo se dá em uma constante correlação, em consonâncias, em interações, de objetividades e subjetividades. Um processo envolvente da roda viva e intermeada pelo nascer, crescer, engajar-se e morrer. Da semente ao botão, do botão à flor, da flor ao fruto e do fruto à semente. Coincidem com preparar a terra, com o plantar, com o cuidar e com o colher. Coincidem com os anúncios matizados da primavera, com chuvas instáveis do verão, com os ventos do outono e com a friagem do inverno. Com o fio dourado da lua crescente, com a prata da lua cheia, com o afastamento da minguante e com a ausência da lua nova. Coincidem com os principais rituais de passagens do corpo vivente manifestos no nascimento, na transformação da adolescência, no amadurecimento do 205

casamento e na decadência da velhice. Também é consoante com o branco da tradição cristã do batismo, da primeira comunhão, do casamento e do funeral. Numa série de movimentos interdependentes, observamos que o caipira é marcado por rituais, todos de passagem, e neles vemos melhor sua religiosidade conduzindo sua vida. Na fala do violeiro Lázaro “a vida é feita por fases, em cada uma delas, precisamos ver qual tarefa nos cabe realizar. A vida sem Deus é nada. Ao buscá-lo, encontra a si mesmo”, percebemos que a vida na roça se torna ritualizada e confirma um sentido e esse sentido se transforma em religião. E tudo isto cantado, tocado e dançado ao som da viola e das vozes dos violeiros!

4.3.6 Sobre o amor à terra

Como vimos no item anterior, também o amor à terra se dá dentro de uma estreita relação entre vida e fé. A terra se abre, recebe a semente, ocorre a fecundação e a vida explode: é a bênção do criador, que fortalece os trabalhadores e a vida familiar. A terra é gratuidade, dádiva, abundância, generosidade. O trabalho familiar é valor, posse, usufruto. A semente é desejo, meio, esperança e fim. Seu amor à terra cerca-se da garantia de que Deus dá, ele trabalha a terra fértil retribui. Todos são parte de um mesmo todo. Entende que a terra é dom, é vida. Plantar é uma graça, cultivar é uma obrigação. O tempo de chuva e de sol é festa, o tempo da planta nascer é uma esperança, o de colher o fruto da terra e do trabalho é uma celebração. Sobre este aspecto podemos dizer que o amor à terra para o caipira é amor de religação, de espiritualidade, pois só quem coloca os pés, as mãos e a alma na terra sabe o quanto a transcendência está presente nesta dinâmica tão rica de vida. As práticas individuais e coletivas revelam os elementos culturais e simbólicos, e neste contexto, o amor à terra é um valor de distinção e honra transmitido pelos ensinos dos mais velhos aos mais novos. Tudo aquilo que perpassa no universo da cultura caipira acontece em estreita relação com homens, mulheres, natureza, animais, aves e com o trato da terra. Na terra mora, trabalha, cria e se recria.

Neste contexto, a Música Raiz Sertaneja se articula na vida que palpita de muitos modos e lugares, como sustentação destes valores. Nisto consiste as várias formas de entender a felicidade. Para o violeiro Manoel “a felicidade é conquistar 206

aquilo que precisa para viver. Quando a pessoa luta e consegue, então vem a felicidade para ela”.

Para o violeiro Benedito Mariano, a felicidade consta por “ter uma família, um lugar para morar, um trabalho para fazer, amigos pra conviver”.

Para o violeiro Anísio a felicidade é possível e imediata, não exige muita elaboração e consciência: “Ocorre nos momentos de simplicidades da pessoa”.

As ideias dos violeiros reforçam que a felicidade acontece em base ao amor á terra e as ações, escolhas e decisões das pessoas. Como podemos notar na música “Encantos da natureza” dos compositores Luiz de Castro e Tião Carreiro, interpretação, dentre outros, de Tião Carreiro e Pardinho (1972), mostra que o caipira lança um convite ao homem da cidade para conhecer sua vida feliz no campo e tece um belíssimo poema de seus encantos com a beleza, com as plantas, com os bichos, com a água, com os pássaros, com a terra, conotando tudo como um renascimento, uma extensão de si mesmo.

“Tu que não tiveste a felicidade, deixe a cidade e vem conhecer meu sertão querido, meu reino encantado. Meu berço adorado que me viu nascer. Venha mais de pressa, não fique pensando estou te esperando para te mostrar”.

Para o violeiro Basílio, a música traduz o que é a felicidade para o caboclo “ele canta tudo o que possui desde que nasceu. A terra pode até não ser dele, mas ela pertence na sua imaginação”. É importante notar na fala do violeiro Basílio que o amor a terra está acima da posse da terra. A terra é o “onde” e não “o que” ele tem. O caipira vai nomeando uma a uma de todas as belezas que ele consegue ver e se dispõe a ensinar ao aprendiz visitante: “Vou mostrar os lindos rios de águas claras e as belezas raras do nosso luar”. Aqui o caipira delonga sua admiração pela lua cantada por tantos violeiros apaixonados ou solitários. Soa tantas saudades, tantas recordações, de tantas cores, sentimentos e amores. Descreve com paixão e reverência o seu encanto pela lua e seu reflexo e repreende quem não lhe presta os olhos:

“Quando a lua nasce por detrás da mata. Fica cor de prata a imensidão. Então fico horas e horas olhando a lua banhando lá no ribeirão. Muitos não se importam com este luar, nem lembram de olhar o luar na serra. Mas estes não vivem, são seres humanos que estão vegetando em cima da terra”.

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A vida cíclica toma todo o discurso do caipira na trama das coisas sensíveis e detalhadamente enumera os fenômenos e os dados do seu entorno:

“Quando a lua esconde logo rompe a aurora, vou dizer agora do amanhecer. Raios vermelhados riscam o horizonte, o sol lá no monte começa a nascer. Lá na mata canta toda a passarada, e lá na paiada pia o chororó. O rei do terreiro abre a garganta, bate a asa e canta em cima do paiol”.

Expondo as peculiaridades de adesão à realidade cotidiana, o caipira canta a ressonância onde todas as coisas fazem eco a todas as coisas, doando-se umas às outras, numa convergência com sua espiritualidade.

“Quando o sol esquenta, cantam cigarras em grande algazarra na beira da estrada. Lindas borboletas de variadas cores vem beijar as flores já desabrochadas. Este pedacinho de chão encantado foi abençoado por Nosso Senhor. Que nunca nos deixe faltar no sertão saúde, união, a paz e o amor”.

Na música “Tudo tem no sertão”, do Compositor Tonico, e interpretação de Tonico e Tinoco (1945), o caipira com grande sensibilidade percebe as sutilezas das coisas, em suas nuances e sentidos mais profundos. Seu olhar, aparentemente é um olhar simples, sem propósito, raso e dado ao fenômeno cotidiano, no entanto, ele poderia estar aí e não ter esta consciência. “Ai pra cantar essa modinha, fazendo comparação ai, ai. Que o cantar dos passarinhos, que alegria do sertão ai, ai”. Conseguindo expressar a posse de sua realidade, seu olhar vai além do olhar a superfície, parece que enxerga o que está além do que vê. Seu estado de felicidade por ver harmonia na natureza o leva ao estado de insatisfação pela ausência de seu amor.

“Aqui no bairro aonde eu moro é um lugar de muita alegria. Eu escuto o cantar dos pássaros quando tava clareando o dia. A perdiz pia no campo e a codorninha assobia. As alvoradas do galo é o que mais me entristecia, faz me lembrar dos amores que abandonado vivia”.

O cenário que constitui sua visão de mundo é o seu próprio mundo. Se alinha, se adequa, se afina e se confirma nele. Ele e mundo se embutem. As vozes do mundo portam os ecos da sua. “O trinar das arapongas quando chega de tardezinha. A piada dos inhambus no inverno de manhãzinha. Como é lindo os canarinhos, revoada canta a andorinha. A juruti canta triste quando ela tá sozinha, o caboclo apaixonado chora na sua violinha”.

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Considerando que a cigarra macho canta para atrair a fêmea, sob a pena do mais fraco morrer na disputa com outros concorrentes, o caipira vê nesta “lição” da natureza a identificação de sua situação inspirando-o à auto superação.

“Ai também canta a cigarra, ai nas tardes de calor, que canta tão tristemente de encher um coração de dor. Quem vive no seu ranchinho tão longe do seu amor, com tudo ele se apaixona e contempla com rigor, cantado as suas modinhas pra aliviar sua dor”.

Portanto, percebemos que há um movimento intrínseco e ao mesmo tempo exteriorizado na aprendizagem do ser em relação. Ao cantar e recitar as letras, poesias e mensagens transmitidas pelas Músicas Raiz Sertaneja a sociedade rural vai gestando suas múltiplas concepções vitais, comportamento ético-moral e religioso, cultural. Regidas pelo ritmo da vida cultivada na terra, as aprendizagens sociais se estabelecem em torno da rotina trabalhista onde se ama, se labuta, se interage e se diverte. Consideramos, também, que na medida em que essas canções se conjugam com os interesses e os “modus vivendi” do trabalhador da terra, tornam-se vivências educativas, pois por meio delas o caipira se percebe, se autovaloriza, e estrutura-se culturalmente. Sua acomodação como pessoa de interação social cria significatividade com o outro, com o espaço e com o transcendente possibilitando-lhe a auto consciência e o pertencimento cultural. Assim como num grande tear, no qual o pautar exato de cada fio que se interlaça e se prende, forma as mais belas configurações do tecido, por meio da expressão musical, se aprende, se ensina, questiona e se fortalece. Nesse aspecto, afirmamos que na realidade da cultura caipira desprovida do ensino escolar formal, esta modalidade musical foi a principal fonte de educação (in)formadora no entorno caipira. Como podemos constatar, pela Música Raiz Sertaneja a cultura caipira formulou muitas de suas concepções sobre a vida, sobre o amor, sobre seus valores educativos, culturais, sociais, grupais, laborais. Por meio da música esta cultura alegra-se, afirma-se, pensa-se, projeta-se, revela-se, dita-se, oculta-se, dentre tantas outras manifestações. O que a pesquisa propõe é refletir o que se entende ser a felicidade e a tragédia e como esses entendimentos possam suscitar a consciência, a preservação e a memória dos valores subjacentes a cultura caipira que estão enredadas nestas canções.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: BOTANDO A VIOLA NO SACO

“Chega pra cá rapaziada vamos reunir o forgazão, Faça uma roda bem feita no meio desse salão. Vou repicar minha viola pra nós bater o pé no chão é o ultimo sapateado pra despedir da função” (Carreirinho e Pedro L. Oliveira)

A prosa que circulou na roda de conversa desta dissertação foi como as concepções de felicidade e tragédia, presentes na Música Raiz Sertaneja, podem ser vistas como educação entre sujeitos. Por meio desta dissertação realizamos um estudo sobre o sujeito caipira e como a expressão artística musical, cantada por ele nesse entorno, se encarregou de transmitir e perpetuar sentimentos, valores, emoções, crenças, comportamentos, linguagens e práticas desenvolvidas no contexto da cultura popular.

Buscamos entender como a ideia de felicidade e de tragédia permeiam a cultura caipira por intermédio do que canta, do que celebra, do como convive, do como se vê; como se percebe e como vê os olhares que têm sobre si e seu entorno. Percebemos que o caipira é possuidor de uma cultura rica em manifestações cheias de humanidades, solidariedade, amor à natureza, encantos, simplicidade e apelos à vida, vive e transmite ensino aprendizagens em consonância com entorno cultural.

Procuramos creditar os rumos das bases teóricas e das prosas da pesquisa nas vozes de um grupo de violeiros da cidade interiorana paulista, Votuporanga. Por meio da pesquisa procuramos compreender a Música Raiz Sertaneja como aquela que dá maior visibilidade às expressões artísticas do sujeito caipira. Consideramos que a arte é geradora e transmissora de concepções dos aspectos trágicos e felizes da vida humana, constatamos que a arte auxilia a mulher e o homem a se tornarem capazes de conhecer, interferir e mudar o mundo.

As concepções de felicidade e de tragédia foram apontadas como formadoras, questionadoras e mantenedoras de valores e comportamentos sociais nas esferas da cultura caipira. Ao cantar e ouvirem fatos, narrativas, contos, peripécias, entre outras modalidades, o homem e a mulher caipira formulam sua visão de mundo e de realidade. Questionando ou não, adequando-se ou não, os sujeitos caipiras reproduzem tais 210

concepções e se moldam aos comportamentos socialmente constituídos e aceitos pelo seu entorno. Desta forma, aprendemos que a cultura caipira é a teia tramada por tudo o que o lavrador transforma da natureza, em si e para si. Tudo que, através da sua racionalidade, inteligência, sentimentos, percepções, ações criativas consegue executar, criar, transformar, apreender, expressar por meio de ideias, artefatos, símbolos, práticas sociais, costumes, leis, crenças morais, conhecimentos adquiridos à partir do seu tecido e convívio social.

Por meio da análise e interpretação das vozes dos sujeitos participantes da pesquisa, percebemos que as narrativas trágicas despertam maior atenção, e de acordo com os violeiros participantes, são mais incisivas nos ensino-aprendizagens que as narrativas de felicidade. As narrativas trágicas causam maiores provocações na atenção do ouvinte por ele se identificar ou não com os elementos constituintes da trama.

Percebemos ao longo do processo da pesquisa que a concepção de felicidade em seus diferentes graus e reflexos adquire diferentes significados e traduz-se em diferentes necessidades de concretização. Uns pelas estruturas da vida, outros pelos objetivos a atingir, outros por planejamentos, outros ainda, por opção de viver o aqui e agora da vida, todos buscam o seu modo de encontrá-la. Em outras palavras uns por tê-la, outros por sê-la, uns por esperá-la, outros ainda, por vivê-la. Todas com impacto nas representações sociais.

Consideramos também, que a Pesquisa Participante oportunizou a troca de informações entre os violeiros de forma simples e ao mesmo tempo eficiente. A relevância da Pesquisa Participante se mostrou em torno da participação e da oportunidade de reflexão em grupo, o que aparentemente não é comum ou usual, pois, nas conversas, falas como as do violeiro Manoel, apareceram expressões de satisfação pelo que estava ocorrendo no processo da pesquisa. “Eu não pensava que seria assim a pesquisa. Está boa demais essa conversa!”

Percebemos o “afloramento” de elementos da metodologia da Pesquisa Participante durante o processo, onde, a partir do primeiro encontro, no qual expôs-se os objetivos e o processo da pesquisa ao grupo, houve um empenho do próprio grupo em convidar e estender a pesquisa a outros violeiros. Notamos também, que nas funções de 211

lideranças dentro do próprio grupo, o violeiro José de Fátima se disponibilizou e assumiu o papel de pesquisador participante, na condução das dinâmicas propostas nos encontros. Buscou informações teóricas para interagir e conduzir melhor o processo.

Constatamos que a roda de conversa foi favorável para a coleta de dados marcada por uma crescente socialização das ideias e empolgação nos debates ao longo da pesquisa demonstrando, que por meio de discussões sobre a temática da tragédia e da felicidade, é possível estabelecer práticas educativas significativas e libertárias. As reuniões se tornarem espaços propulsores de análise, criação e de expressão, onde as atividades se encontravam voltadas para o espírito de produção de saberes comuns e coletivos, presentes nas letras das canções. Foi possível perceber que valorizar o saber popular a partir dos elementos que o constitui se torna imprescindível na condução de uma linguagem interativa no ensino-aprendizagem.

A metodologia usada foi importante para prestar ouvidos “à voz” do sujeito, pelo diálogo, na roda de conversa, o grupo em sua linguagem simples, ressonada, presenciada, personalizada, expôs concepções e visões de mundo. Um processo importante no qual mente, emoções, corpo, voz, em consonância, partilhou saberes, histórias e memórias.

Os dados analisados revelaram que ao cantar e recitar as letras, poesias e mensagens transmitidas por esta expressão de arte, a sociedade rural vai gestando suas múltiplas concepções vitais, comportamento ético-moral e religioso, cultural. Regidas pelo ritmo da vida cultivada na terra, as aprendizagens sociais se estabelecem em torno da rotina trabalhista onde se ama, se labuta, se descansa e se interage.

A pertinência da pesquisa se mostrou ao investigar pela roda de conversa e pelas palavras geradoras das letras analisadas, vivências, experiências corporais, espirituais, simbólicas, efetivas no ambiente rural, e muitas vezes também nos espaços urbanos, que marcaram a vida e as atividades produzidas pelo lavrador.

Abordamos também que em seus ponteios e repicados, se vistos como vivências de educação entre sujeitos, a viola também conversa com práticas da Educação Popular e Educação Sóciocomunitária.

Propomos que estes ponteios e repicados seriam alguns possíveis indicativos da educação libertária, reflexiva, protagonista, por exemplo, como articular a construção da 212

identidade individual e da identidade coletiva; o papel do educador neste processo e reconhecer os princípios norteadores da ação educativa; busca pela autonomia social a partir da autonomia individual; estratégias para os tipos de conhecimento que é possível construir na prática da educação sóciocomunitária e da educação popular; quais as contribuições dessa prática na construção da autonomia e emancipação dos sujeitos nela envolvidos, dentre outros.

Pela análise da práxis educativa, nas experiências culturais da sociedade rural, pode estimular a propositividade da música raiz sertaneja nas práticas da Educação Popular e da Sóciocomunitária. Seja por meio do resgate memorial e afetivo (recordar é viver), seja pelo estimular história de vida, memórias afetivas e consciência; seja pelas lembranças que as músicas trazem para a historicidade individual e coletivas dos sujeitos; seja pela consciência e ressignificação das experiências.

Consideramos que frente às tantas mudanças sociais e econômicas nas últimas décadas, muitos dos aspectos da cultura caipira abordados na pesquisa enquanto “modus vivendi” cultural correm o risco de desaparecerem no tempo e no espaço. O trabalho direto com a terra como foi; a festa, a vida coletiva constituída pelas circunvizinhanças, a manutenção de valores religiosos, míticos; o discurso implícito no contexto ritualístico, natural, linguístico, dentre outros aspectos, estão desaparecendo na realidade concreta. Se tais práticas não podem mais ser repetidas, apontamos que o conjuntos destes saberes ainda vive de alguma forma e se constitui referência que se manifesta ainda, tanto positivo quanto negativo.

A história caipira vista como memória coletiva continua como resultado cumulativo das tramas e das redes de relações em que estão os grupos na sociedade. Neste aspecto, como parte do processo da pesquisa fizemos a devolutiva dos resultados ao grupo pesquisado por meio de álbum fotográfico, vídeos, apresentação de diálogos com suas vozes, e apontamentos de conhecimentos revelados pelo grupo e pelo processo da pesquisa. Retribuimos os dados de seus valores culturais e significações de memórias coletivas, revelados na configuração teórica da pesquisa.

Numa postura de humildade retornamo-nos ao grupo o nosso entendimento e nossa interpretação sobre suas vozes colocando à prova a nossa interpretação e, desta maneira, verificamos se concordam com elas. Respondemos às expectativas do violeiro 213

Manoel que dissera que pelo menos por meio da pesquisa entraria na Universidade. Levamos assim, a Universidade de volta para o grupo com muita mais considerações e respeito.

Pretendemos que esta pesquisa nos impulsione a faiscar da grande fogueira primeira, voltando a acender temas e experiências que venham aquecer à eclosão de novas sementes. Construamos, assim, em nosso espírito crítico provido da égide educativa, política e filosófica, uma visão de música raiz para além do senso comum, superficial, tal qual o posto pela indústria cultural, que a encara como velharia, sem valor, ultrapassada.

Nossa expectativa é de que este trabalho não pare por aqui, mas que possa avançar somando-se com outras experiências na práxis da educação sociocomunitária e da educação popular, tanto em espaços formais, quanto informais em suas práticas.

Propomos alguns possíveis desmembramentos e temáticas da pesquisa que poderiam ser continuados, como é caso da linguagem caipira nheengatu, que tida pela língua culta (oficial) como errada e distorcida, poderia ser abordada como linguagem viva, ativa e significativa e muito presente na cultura brasileira.

Outra questão que poderia ser aprofundada é a música raiz sertaneja como linguagem simbólica de resistência aos padrões culturais impostos pelo colonizador. Como seria a educação se fosse vista a partir do olhar rural, do usufruto da terra? Como seria a sociedade se configurasse pelos valores da cultura caipira que, contrariamente ao modelo capitalista, embasa-se no comunitário, na partilha, na contemplação, na simplicidade, no amor e respeito à terra, ao outro, ao natural? Ao que se parece, não seria exatamente aí que reside a utopia da educação?

A música raiz sertaneja está presente como elemento da cultura matriz de nossa sociedade, associada a quase todos nós pelas origens familiares no interior do país, e reconhecida também como gênero que agrada pais e parentes. Portanto, propomos que seria possível aprofundar este aspecto da pesquisa como ponto de referência para a construção de possibilidades de trabalhos escolares em disciplinas como História, Língua Portuguesa, Literatura, Sociologia, Filosofia, Geografia, Politica, Ensino Religioso Escolar. 214

Seria exequível sua contribuição às gerações mais novas para fazerem uma leitura de um Brasil até então desconsiderado como produtor de conhecimento e valores sociais. Auxiliaria as novas gerações a compreender as bases do mundo em que vivem, também a partir do que seus antepassados deixaram, e não só do que a colonização cultural classifica como bom, culto e correto.

Por último, uma outra possível vertente de aprofundamento da pesquisa seria investigar melhor os liames constitutivos do feminino e a viola. Como as mulheres vêm e sentem o universo caipira cantado e dedilhado por mãos masculinas que na maioria das vezes batutam as regras sociais? Quais proximidades entremeiam o universo feminino da viola e os dos processos educacionais nos liames da cultura popular? Como vimos, a música raiz sertaneja, influi muito na formulação de concepções e valores afetivos e sociais, então, como as mulheres diriam seus ideais, como proclamariam seus pontos de vistas, como ditariam seus valores? Como cantariam suas lutas e sonhos na sensibilidade feminina da viola?

Enfim, realizar este trabalho na perspectiva de estudar a cultura caipira, por cada passo dado, ao percorrer os caminhos das leituras, reflexões, rodas de conversas, debates, partilhas, aulas, tarefas, análises de letras das canções, foram todos, momentos proveitosos de autoconhecimento, de configuração de ideias e de expansão intelectual. Fui percebendo o ganho pessoal para minha vida, minha história, minha formação profissional e humana. Esta pesquisa foi um trabalho de jardinagem.

O canteiro da música raiz sertaneja levou-me às tarefas como escavar, semear, rever, ajustar, comparar, escolher, executar, regar, podar. Badejar feixes de cachos de sementes antes espalhadas, depois peneiradas, e finalmente juntadas e classificadas. Buscar respostas para questões levantadas, foi ao mesmo tempo, largada e chegada. Meus sentidos, sentimentos, emoções e intelecto foram sendo desafiados por outras visões e leituras de mundo. Distanciamentos e estranhamentos necessários se tornaram pontes para descobertas relevantes. Valeu a pena tudo o que conteve esse processo!

“Botar a viola no saco” e ir para outras paragens, longe do comum da expressão indicando o relaxar das tarraxas em desafino às melodias até aqui tocadas, num sinal de missão cumprida, ou de um tempo passado que não volta mais, é firmar que a harmonia da viola deve ressonar onde ainda não foi ouvida e, principalmente, onde anda caindo 215

no descrédito e esquecimento, tomada por sons de outros instrumentos que cantam as vicissitudes da educação e da vida. Botar a viola no saco, é atitude de caminhada para buscar tanger novos espaços, em que novas e antigas canções suscitem vigorosamente novas afinações na cultura e na vida dos “caipiras” tanto da roça quanto da cidade, ou a quem se interessar.

As considerações da pesquisa poderão inclusive subsidiar informações para Cuidadores e Educadores Sóciocomunitários, bem como, propor estratégias de Convivências em Ongs, Lares e Casas de Repousos para idosos em estado de cuidados, além da Estimulação de contatos com as fases da natureza marcadas pelas atividades na roça; seja pela criação de atividades como, por exemplo, a Hora do conto: Viagem no Trem do passado com paradas nas estações da natureza; seja pelo Reviver as bagagens da memória. “Quem conta, aumenta um ponto” ou “Quem canta, seus males espanta!”

Poderão subsidiar práticas como rodas de conversas, rodas de violas, incentivo aos grupos existentes, como por exemplo, orquestras de violeiros, inserção em movimentos populares locais, associações de bairros, associações de melhor idade, missa caipira, almoço caipira, festa do milho, festa da colheita, escola de viola, entre outras. A pesquisa ainda poderá oferecer informações contundentes em Projetos de Educação Ecológica, bem como servir-se de Referencial teórico - reflexivo para eventos culturais e Atividades para Grupos afins e Projetos destinados à Idade Ativa, à Andragogia e ao Turismo Rural e Alfabetização de adultos. Percebe-se que nestas possibilidades apontadas, tais práticas de educação propõem experiências de intersubjetividades, laços sociais e comunitários. Eis o porquê afirmamos estar no âmago das propostas educativas Popular e Sociocomunitária.

Enfiar a viola no saco e levá-la nos por aí da sociedade sem concordar em dependurá-la como peça de museu, mas executá-la, tiní-la na grande orquestra da educação popular e Sociocomunitária para que seus expectadores vislumbrem que são eles mesmos os seus executores, e protagonistas da grande orquestra social. É urgente anunciar, reunir e relembrá-los que nos “soluços” da viola contêm versos que ensinam que toda vida, perpassada por felicidade e/ou tragédia, é portadora de belas e duradouras melodias. Melodias anunciantes de que nunca é tarde para reclamar, reavivar, preservar ou perpetuar algo do que possa ter sido perdido, esquecido, rejeitado ou mesmo deixado de lado. Basta tocá-las. 216

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APÊNDICE A - Roteiro para tessitura de pesquisa

Tema: CONCEPÇÕES DE FELICIDADE E TRAGÉDIA NA MÚSICA RAIZ SERTANEJA COMO EDUCAÇÃO ENTRE SUJEITOS OBJETIVO GERAL: Compreender como as concepções de felicidade e tragédia, presentes na música raiz sertaneja, podem ser vistos como elementos de educação entre sujeitos. 1. Que tipo de ensinamentos as músicas raízes passam em suas letras? 2. Qual a diferença entre a música raiz sertaneja e os outros tipos de músicas? 3. Desde quando você toca e canta este estilo de música? 4. Como você entende a felicidade? 5. Como você entende a tragédia? 6. Pra você qual é a música sertaneja mais significativa sobre felicidade? 7. Qual é música mais triste e trágica que você gosta? 8. O que sente quando a canta? 9. Como você percebe que estas músicas tocam as pessoas 10. Você considera que a música pode mudar o estado de ânimo de alguma pessoa? Porque? 11. Diante da realidade da vida em momentos de felicidade ou mesmo tragédia, será que as pessoas cantam ou e se lembram destas músicas? 12. Será que a mensagem da música raiz sertaneja que fala de uma coisa poderá ser transferida para outra situação da vida da pessoa? 13. Que tipo de música o povo mais gosta: das que falam de tragédia ou de felicidade? Por que será? 14. Alguma vez em que estava cantando alguém já contou algo sobre o que estava acontecendo em sua vida?

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APÊNDICE B - Termo de consentimento livre e esclarecido

Título do projeto: CONCEPÇÕES DE FELICIDADE E TRAGÉDIA COMO ELEMENTOS DE EDUCAÇÃO ENTRE SUJEITOS. Pesquisador responsável: ANTONIO DE JESUS SANTANA Instituição/Departamento: UNISAL – CENTRO UNIVERSITARIO SALESIANO Telefone para contato (inclusive a cobrar): 019 – 3884 73 91

Convidamos o (a) Sr (a): ______para participar da Pesquisa cujo título é: Concepções de felicidade e tragédia como elementos de educação entre sujeitos sob a responsabilidade do pesquisador Antonio de Jesus Santana, com a qual pretende Compreender como as concepções de felicidade e tragédia, presentes na música raiz sertaneja, podem ser vistos como elementos de educação entre sujeitos. O (a) Sr (a) está sendo convidado (a) para participar, como voluntário, em uma pesquisa. O (a) Sr (a) pode decidir se quer participar ou não. Por favor, não se apresse em tomar a decisão. Leia cuidadosamente o que se segue e pergunte ao responsável pelo estudo qualquer dúvida que tiver. Em caso de recusa o (a) Sr (a) não será penalizado(a) de forma alguma.

Sua participação é voluntária e se dará por meio de

 Entrevista que poderá ser gravada ou não em dois ou mais encontros;  Opinião sobre o tema por meio de perguntas do pesquisador e/ou por questionário a ser respondido por escrito;  Gravação de músicas tocadas e cantadas;  Registos fotográficos Não há nenhum risco decorrente de sua participação na pesquisa. Sua opinião e identidade serão respeitadas e ficarão sobre custódia do pesquisador. Se o (a) Sr (a) aceitar participar, estará contribuindo para a música raiz sertaneja ser analisada na Universidade e possibilitará ao pesquisador  Levantar dados sobre como se processam as variadas concepçoes e expressões culturais de felicidade e de tragédia cantadas pela música raiz sertaneja que 224

ultrapassa limites, tempo, espaço e permanecem no gosto e na apreciação dos que direta ou indiretamente vivenciaram a cultura caipira e as culturas influenciadas pelas atividades agrícolas e no cultivo da terra;  Identificar se música raiz sertaneja, como prática educativa popular, porta de alguma forma, os pressupostos de que a aprendizagem humana consiste na consciência de algo, do si mesmo e do ser-no-mundo, que em suas inteirações cria, interpreta, interfere, e transforma a si e ao mundo;  Verificar quais músicas raizes sertanejas que portam em suas letras e mensagens as ideias sobre a felicidade e a tragédia, e que, ao serem cantadas , as pessoas podem aprender ou ensinar lições para a vida. Se depois de consentir em sua participação o Sr (a) desistir de continuar participando, tem o direito e a liberdade de retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, seja antes ou depois da coleta dos dados, independente do motivo e sem nenhum prejuízo a sua pessoa. O (a) Sr (a) não terá nenhuma despesa e também não receberá nenhuma remuneração. Os resultados da pesquisa serão analisados e publicados, mas sua identidade não será divulgada, sendo guardada em sigilo. Após concluída a pesquisa, o pesquisador apresentará retorno sobre os dados conseguidos e construídos no processo do estudo. Para qualquer outra informação, o (a) Sr (a) poderá entrar em contato com o pesquisador no endereço Av. de Cillo, 3500 - Pq. Universitário - Americana/SP - 13467-600; ou pelo telefone (19) 3884 73 91

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Consentimento Pós–Informação

Eu,______, fui informado sobre o que o pesquisador quer fazer e porque precisa da minha colaboração, e entendi a explicação. Por isso, eu concordo em participar do projeto, sabendo que não vou ganhar nada e que posso sair quando quiser. Este documento é emitido em duas vias que serão ambas assinadas por mim e pelo pesquisador, ficando uma via com cada um de nós.

Local: ______Data: ___/ ____/ _____

Assinatura do participante: ______Impressão do dedo polegar Caso não saiba assinar

Telefones para contato: ______

Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido deste sujeito de pesquisa ou representante legal para a participação neste estudo.

Local ______Data: ___/ ____/

Assinatura do Pesquisador Responsável: ______