Universidade de Brasília Instituto de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História

A DITADURA DE ONTEM NAS TELAS DE HOJE: REPRESENTAÇÕES DO REGIME MILITAR NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Marcia de Souza Santos

Brasília, março de 2009.

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Universidade de Brasília Instituto de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História

A DITADURA DE ONTEM NAS TELAS DE HOJE: REPRESENTAÇÕES DO REGIME MILITAR NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Marcia de Souza Santos (matrícula: 07/68693)

Dissertação apresentada ao programa de pós- graduação em História – Área de concentração: História Cultural. Linha de pesquisa: Identidades, tradições, processos – da Universidade de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. José Walter Nunes

Brasília, março de 2009. 2

A DITADURA DE ONTEM NAS TELAS DE HOJE: REPRESENTAÇÕES DO REGIME MILITAR NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

MARCIA DE SOUZA SANTOS

Banca Examinadora:

______Prof. Dr. José Walter Nunes (Presidente)

______Profª. Drª. Eleonora Zicari Costa de Brito (Membro)

______Profª. Drª. Dácia Ibiapina da Silva (Membro)

______Profª Drª. Márcia de Melo Martins Kuyumjian (Suplente)

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Dedico este estudo a minha mãe, meu exemplo de força e de vida 4

AGRADECIMENTOS

Por trás de um trabalho de pesquisa e de escrita extremamente solitários, há sempre os bastidores deste processo, sem o qual o resultado final desta dissertação não seria possível. Por isso, tentarei expressar aqui os meus sinceros agradecimentos. A José Walter Nunes, meu orientador e grande colaborador neste processo de elaboração da dissertação. Às professoras Eleonora Zicari e Dácia Ibiapina, que aceitaram o convite para compor a Banca Examinadora e pelas valiosas contribuições fornecidas durante a defesa do Projeto de Qualificação. E também à equipe da secretaria do PPHIS – Programa de Pós-Graduação em História, da UnB. À amiga Elizabeth Silveira, que foi extremamente gentil e atenciosa, fornecendo-me preciosas informações para pesquisa, enquanto representante do grupo Tortura Nunca Mais – RJ. Mais uma vez, à professora e amiga Eleonora, não somente por participar da referida banca, mas pela grande contribuição que prestou nessa minha jornada acadêmica. Não apenas através de suas aulas, mas também em nossas inúmeras conversas que me ensinaram, muitas vezes, mais do que o espaço da sala de aula é capaz de proporcionar. Aos amigos de Brasília, que também me ajudaram, das mais diferentes formas, mas principalmente com o apoio e o incentivo nas horas necessárias. Obrigada Paulo Parucker, Alex Silveira, Emerson Dionísio, Patrícia Dolabella, Gustavo Pacheco e minha querida prima Alice Lanari. Um agradecimento especial a Giliard Prado, por todo o seu carinho e atenção comigo, suas palavras de incentivo, sua apreciável sabedoria, sua amizade inigualável. Sem a sua ajuda e sua companhia, minha jornada pelo Mestrado teria sido muito mais árdua. E como não poderia deixar de ser, a Elizabeth Caldas: prima, amiga, parceira de todas as horas. Sem ela, eu não teria tempo hábil, ânimo e “cabeça fresca” para realizar todas as tarefas necessárias à pesquisa. Sua ajuda nos bastidores foi fundamental e devo a ela muito mais do que posso agradecer. A minha mãe, também participante dessa “equipe de apoio” e que me forneceu toda a estrutura necessária para que eu pudesse me dedicar à pesquisa. Meu porto seguro, sem o qual eu não chegaria até aqui. Obrigada, mãe. Finalmente, a meu filho Tiago. Por toda a paciência, compreensão, sensibilidade e capacidade de adaptação às diversidades proporcionadas pela minha necessidade de dedicação (quase) integral à pesquisa. Apesar da pouca idade, ele vive me ensinando muito mais do que eu poderia imaginar. Obrigada, filho, por tudo isso que eu relatei e muito mais.

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A arte cinematográfica só existe por meio de uma traição bem organizada da realidade (François Truffaut)

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RESUMO

O presente estudo insere-se no campo das reflexões que buscam um diálogo entre cinema, história e memória. Através de um conjunto de filmes da atualidade, procuro analisar as construções de memórias acerca do regime militar brasileiro (1964-1985), com ênfase na temática da luta armada existente no período. Destaco a imprescindível necessidade de associar as representações cinematográficas às condições de produção dos filmes, assim como ao contexto social do qual emergem. Busco, neste sentido, observar quais aspectos sobre a luta armada são valorizados e/ou silenciados por esses filmes, sempre considerando que o cinema pode ser percebido como um operador de memória social e como um lugar privilegiado para o embate de memórias.

Palavras-Chave: cinema; regime militar; guerrilha; embate de memórias.

ABSTRACT

The present study is inserted in the field of the reflections that look for a dialog between cinema, history and memory. Through an ensemble of current movies, I intent to analyze the constructions of memories about the Brazilian military regime (1964-1985), with emphasis in the thematic one of the guerrilla existent in the period. I detach to essential need of associate the cinematographic representations to the conditions of production of the film, as well as to the social context of which emerged. I seek, in this sense, observe which aspects about the guerrilla are valued and/or silenced by these films, always considering that the movies can be perceived like an operator of social memory and as a place privileged for the conflict of memories.

Key Words: cinema; military regime; guerrilla; conflict of memories.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Típica cena de ação em estilo hollywoodiano Figura 2 Lamarca descansa sobre um tronco de árvore, minutos antes de sua morte Figura 3 Comandante ‘Jonas’, o vilão da trama Figura 4 A visão pelo olho mágico Figura 5 A janela como uma prisão Figura 6 Os quatro momentos da rachadura na parede do quarto de ‘Thiago’ Figura 7 Efeitos da iluminação do filme sobre a história de Zuzu Angel: a utilização dos contrastes Figura 8 Efeitos do cenário sobre a história de Zuzu Angel: novamente, os contrastes Figura 9 A perspectiva da luta armada através do olhar de uma mãe Figura 10 A política aparece de forma sutil, em cenas do cotidiano de um bairro Figura 11 Mauro se expressa muito mais com o olhar do que com as palavras Figura 12 Mauro observa o mundo exterior pela janela do carro Figura 13 Cena do gol da Tchecoslováquia Figura 14 Cena do gol do Brasil Figura 15 ‘Jairo’ sofrendo um choque elétrico na região genital Figura 16 O pai de Zequinha Barreto sendo “interrogado” Figura 17 Stuart Jones e ‘Alberto’ são torturados juntos, nas dependências do CISA-RJ Figura 18 A sala de escuta clandestina da Aeronáutica, situada na Base Aérea do Galeão-RJ Figura 19 ‘Dora’, companheira de ‘Thiago’, sendo torturada Figura 20 ‘Thiago’ sentindo a liberdade… ainda que momentânea Figura 21 Mauro sente-se sozinho, num mundo que não é o seu Figura 22 Mauro corre atrás de um carro, pensando ser o dos pais Figura 23 Exemplos da adoção de planos aproximados para os personagens dos torturadores Figura 24 Fernando Gabeira e seus amigos em uma manifestação pública Figura 25 Foto clássica do período ditatorial brasileiro Figura 26 Créditos iniciais do filme Zuzu Angel Figura 27 Créditos iniciais do filme Lamarca Figura 28 Cartazes de propaganda do filme O que é isso, companheiro?, divulgadas no Brasil e no exterior. Figura 29 Cenas em que se destaca a bandeira norte-americana Figura 30 Mauro depara-se com outra cultura

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9 Cap. 1 CINEMA, HISTÓRIA E MEMÓRIA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL 21

Cap. 2 REPRESENTAÇÕES DOS GUERRILHEIROS E DA LUTA ARMADA NO 36 CINEMA BRASILEIRO 2.1 Uma breve apresentação 36 2.2 Em cartaz: os guerrilheiros e a luta armada 38 2.2.1 Um herói brasileiro 44 2.2.2 Um vilão brasileiro 54 2.2.3 Um guerrilheiro mais humano 67 2.2.4 O olhar de uma mãe 76 2.2.5 O olhar de um filho 85 Cap. 3 REPRESENTAÇÕES DA TORTURA E A (IN)VISIBILIDADE DO 93 ESTADO 3.1 Memórias da dor 93 3.2 As memórias subterrâneas no cinema brasileiro 99 3.2.1 Sérgio Resende e o “dever de memória” em Lamarca e Zuzu Angel 102 3.2.2 A tortura psicológica em Cabra-Cega e O ano em que meus pais saíram de 115 férias 3.2.3 A “tortura limpinha” em O que é isso, companheiro? 125 Cap. 4 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA OBRA CINEMATOGRÁFICA 131 4.1 O cinema brasileiro da pós-ditadura 131 4.2 Os aspectos extrafílmicos 135 4.2.1 Possíveis aproximações 135 4.2.2 Lamarca 144 4.2.3 O que é isso, companheiro? 147 4.2.4 Cabra-Cega 154 4.2.5 Zuzu Angel 158 4.2.6 O ano em que meus pais saíram de férias 162 CONCLUSÃO 168 FONTES DOCUMENTAIS 180 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 185 ANEXOS 195 1. Ficha Técnica e Sinopse dos Filmes 195 2. Dados Comerciais dos Filmes 199

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INTRODUÇÃO

I.

Ao trabalhar com alunos do Ensino Fundamental e Médio, sempre me chamou atenção a influência que determinadas imagens cinematográficas exercem sobre o imaginário dos alunos, especialmente em relação aos filmes que encenam enredos históricos. Tanto ao utilizar esse recurso audiovisual em sala de aula quanto ao comentar sobre determinados filmes, percebo as diversas reações que tais filmes suscitam, sobretudo o grau de legitimidade que adquire a narrativa cinematográfica dos enredos históricos para esses alunos. Tal fenômeno parece não ser particularidade do meio escolar e nem somente da sociedade brasileira. Robert Rosenstone constata que o público em geral adquire, cada vez mais, seus conhecimentos históricos através do cinema e da televisão:

… cada vez más la gente forma su idea del pasado a través del cine y la televisión, ya sea mediante películas de ficción, docudramas, series o documentales. Hoy em dia la principal fuente de conocimiento histórico para la mayoría de la población es el medio audiovisual…1

A presente pesquisa não aborda o uso dos filmes históricos no ensino formal2; porém, como esse recurso pedagógico faz parte da minha prática de magistério, a preocupação com essa questão encontra-se aqui presente e também justifica meu interesse pelo objeto analisado.

Parte do fascínio que o cinema exerce está em sua capacidade de produzir um efeito de transposição dos espectadores para o enredo reproduzido nas telas. Desta forma, o passado iluminado pelo cinema se transforma em um passado vivo, quase real, e o espectador sai da sala de exibição com a sensação de que testemunhou os acontecimentos ali “vivenciados”. É essa magia da arte cinematográfica que propicia uma relação especial entre o sujeito- espectador e o passado que ele vislumbra nas telas. O efeito de realidade que o cinema proporciona é, ao mesmo tempo, aquilo que o diferencia das outras artes e que faz com que aquele meu aluno compreenda um determinado episódio histórico através do filme a que assistiu.

Segundo Marc Vernet, a impressão de realidade sentida pelo espectador ao assistir a um filme deve-se, essencialmente, “à riqueza perceptiva dos materiais fílmicos, da imagem e

1 ROSENSTONE, Robert A. El pasado en imágenes. El desafio del cine a nuestra idea de la historia. Barcelona: Editorial Ariel, 1997, p. 29. 2 Para uma análise do uso do cinema nas salas de aula, ver: SALIBA, Elias Thomé. As imagens canônicas e a História, in CAPELATO, Maria Helena, et. al. História e cinema. São Paulo: Alameda, 2007, p. 85-96. 10

do som”3, com destaque para a importância da restituição do movimento reproduzido na tela e do ambiente sonoro de uma ação ou de um lugar. Por conter essas características, “entre todas as artes ou todos os modos de representação, o cinema aparece como um dos mais realistas…”4, como conclui Vernet, o que coloca em primeiro plano a necessidade de se observar esse produto cultural com um olhar mais atento, sobretudo ao se tratar de filmes que reproduzem eventos históricos.

Para a análise proposta no presente trabalho não se trata da avaliar o grau de fidelidade de um filme ao passado encenado. Parte-se da premissa de que todo e qualquer filme é sempre uma forma de interpretação, dentre outras possíveis. Sob a perspectiva dos estudos históricos e culturais, o que se revela primordial para a análise do cinema enquanto objeto de pesquisa é a percepção de como o sentido da obra cinematográfica é produzido; que mecanismos são colocados em ação para se obter determinados efeitos sobre a história a ser contada; que relações existem entre o sentido produzido e os aspectos extrafílmicos que o influenciaram e, por fim, de que modo determinado sentido participa da batalha de representações que o cinema proporciona no processo de reelaboração do passado.

Desta forma, um filme visto pelo olhar do historiador adquire outras dimensões, talvez não tão perceptíveis para um espectador comum. Pode-se dizer até que o distanciamento presente neste olhar acadêmico acabe por retirar a magia da arte cinematográfica, desvinculando-a de sua intenção original, que é o entretenimento. Entretanto, penso que a “frieza” de uma análise fílmica nunca se realiza plenamente, pois a escolha de se trabalhar com um objeto do campo artístico já pressupõe um intenso nível de fascínio pelo tema pesquisado. Analisar um filme sob a perspectiva historiográfica, portanto, é retirar-lhe o caráter espontâneo e natural de suas imagens, inserindo-o em um ambiente mais amplo, com suas intencionalidades, em seu contexto, em sua história.

II.

Ter o período do regime militar brasileiro como objeto de análise significa ingressar no território da história do tempo presente e lidar com atores sociais muitas vezes ainda vivos e atuantes nas esferas política e social do país. Isso significa trabalhar com um tema ainda sujeito a muita polêmica e debates acalorados. Significa, principalmente, estar em contato

3 VERNET, Marc. Cinema e narração, in AMOUNT, Jacques et al. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller. 5. ed., São Paulo: Papirus, 2007, p. 148. 4 Idem, Ibidem, p. 134. 11

com um intenso embate de memórias, que se manifesta nos mais diferentes níveis político- institucionais, culturais e até mesmo na esfera privada. Basta mencionar que, para alguns setores da sociedade brasileira – especialmente para os militares, mas não somente eles – o episódio que deu origem à implantação de um regime de governo autoritário, e controlado pelos altos setores das Forças Armadas, é até hoje mencionado como a “Revolução Redentora”. Enquanto para outros grupos sociais, esse mesmo evento é criticamente denominado de “golpe militar”, pois depôs um presidente eleito democraticamente e instituiu uma ditadura. Entre uma visão e outra, muitas outras formas de se interpretar esse passado recente são observadas atualmente; muitas memórias são construídas e entram em disputa para tentar consolidar as suas versões sobre os acontecimentos.

Seguindo esta linha de reflexão, Marieta de Moraes Ferreira demonstra que o grande desafio – e, ao mesmo tempo, o grande mérito – de se trabalhar coma história do tempo presente está em considerar que esta possui como questão primordial

deslindar os mecanismos de construção das memórias, de captar conflitos, de compreender o que é selecionado para ser lembrado e o que é relegado ao esquecimento. Importa trazer para o primeiro plano como esses mecanismos de memória operam ao longo do tempo e se atualizam de acordo com as demandas sociais e as lutas políticas5.

É sob o ponto de vista apontado por Ferreira que o cinema se revela como uma das formas privilegiadas para se perceber a construção de novos sentidos sobre um determinado período histórico, assim como sobre os personagens e eventos a ele relacionados. Parte-se da premissa de que o cinema pode ser percebido como um operador e disseminador de memória social6, sempre levando em consideração que essa memória é construída e, ao mesmo tempo, seletiva7.

Nessa perspectiva, a cinematografia brasileira que aborda a temática do regime militar procura (re)significar esse momento histórico, elaborando as suas representações para o tema, seja esse cinema ficcional ou documental, pois qualquer filme histórico é sempre uma representação do passado e esta representação se produz intimamente relacionada às motivações ideológicas de seus realizadores, às condições de produção da obra cinematográfica. Ademais, traduz outras representações que vão além das intenções iniciais

5 FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 8. 6 Esta idéia do cinema como operador de memória é bem desenvolvida pelo historiador Fernando Araújo Sá, em sua tese de doutoramento, e será aprofundada no próximo capítulo. 7 Filio-me, neste ponto, especialmente às considerações de Michael Pollak sobre o caráter construtivo, seletivo e conflituoso da memória, o que também será desenvolvido com mais intensidade no próximo capítulo. 12

de seus autores, correspondendo ao imaginário de grupos mais amplos, como a sociedade na qual o filme se insere.

Isto posto, percebe-se que analisar um conjunto de filmes que elaboram o passado ditatorial do regime militar brasileiro significa ingressar em um campo de constituição de memórias sobre a ditadura, campo este “minado” por diferentes representações, que ora se combinam, ora se confrontam, em busca da obtenção do status de memória hegemônica.

Cabe mencionar que utilizo o termo “regime militar” em seu sentido mais abrangente, para me referir ao período de governo compreendido entre os anos de 1964 e 1985, onde o poder político a nível federal passou a ser exercido por membros do alto comando das Forças Armadas brasileiras. Esse termo não deve obliterar, no entanto, a intensa e significativa participação de setores não-militares nos mais diversos níveis político-institucionais e na composição da base ideológica de sustentação desse governo. É sabido que o governo dos militares foi articulado e sustentado por uma grande parcela do empresariado do país, especialmente da burguesia associada ao capital internacional, assim como pelos grandes latifundiários. Possuiu ainda, notadamente no período que precedeu o golpe e nos primeiros anos de vigência do regime militar, o apoio da alta cúpula da Igreja Católica e da “elite orgânica” (segundo expressão de René Dreifuss8), responsável pela preparação ideológica dessa ruptura político-institucional de 1964 e sua sustentação posterior9.

O presente texto também adota a caracterização de “ditadura” para se referir ao regime militar, por entender que este governo procurou restringir os direitos democráticos dos cidadãos brasileiros, exercendo para isso as prerrogativas jurídicas dos Atos Institucionais, uma intensa censura e controle dos meios de comunicação, bem como medidas repressivas caracterizadas pela violência extremada (como as práticas de tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos)10.

Destaco, ainda, o uso da expressão “esquerdas” para me referir não somente aos partidos e frentes políticas, merecedoras dessa adjetivação, mas também a movimentos sociais, políticos e às mais diversas organizações, que se situavam como forças favoráveis às

8 DREIFUSS, René Armand. A elite orgânica: recrutamento, estrutura decisória e organização para a ação, in 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. 5. ed., Petrópolis-RJ: Vozes, 1987, p. 161- 229. 9 Destaca-se, como a maior organização criada com o objetivo acima referido, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS), fundado em 1961 e que atuou por dez anos no país. Cf. ASSIS, Denise. Propaganda e cinema a serviço do golpe (1962/1964). Rio de Janeiro: Mauad / FAPERJ, 2001. 10 As características que configuram o regime militar brasileiro como um governo ditatorial baseiam-se na definição proposta pelo Dicionário de Política. Cf. BOBBIO, Noberto et al. Dicionário de Política. Trad. João Ferreira. 2. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1986, p. 368-379. 13

mudanças – reformistas ou revolucionárias – no sentido da igualdade e de justiça sociais. O seu flexionamento sempre no plural se vincula à necessidade de se entender o termo em seu aspecto mais abrangente, ou seja, pelo fato de agrupar posições e forças distintas, das mais moderadas às mais radicais11. Nesse sentido, as organizações guerrilheiras (rurais e urbanas), existentes no período do regime militar, devem ser compreendidas no interior das forças de esquerdas, por maior que fossem as suas diferenças e divergências com outros movimentos e organizações, também pertencentes a essa mesma classificação.

III.

Com base nas reflexões, brevemente apontadas acima, a presente pesquisa propô-se a analisar, a partir de uma perspectiva histórica, um conjunto de filmes brasileiros da atualidade (dos anos de 1990 até os dias atuais12) que, de diferentes formas, procurou retratar nas telas o período do regime militar no Brasil (1964 - 1985). O que esses filmes pretendem mostrar sobre o período em questão? Quais temáticas são valorizadas ou, contrariamente, silenciadas ao se abordar o regime militar? Que tipo de memória está sendo elaborada para esse momento de nossa história recente? Essas são algumas das problematizações que orientaram o presente estudo.

Os filmes escolhidos como objetos de investigação foram: Lamarca (Sérgio Resende, 1994), O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997), Cabra-Cega (Toni Venturi, 2005), Zuzu Angel (Sérgio Resende, 2006) e O ano em que meus pais saíram de férias (Cao Hamburger, 2006)13. Objetivo investigar, no universo de filmes selecionados, a elaboração de memórias sobre o regime militar brasileiro através do cinema, que deve ser visto como lócus privilegiado para a construção e projeção de um imaginário, ou seja, um lugar de representações.

11 Adoto aqui a acepção proposta por Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis, tanto em relação à definição do conceito de “esquerda” – que por sua vez, baseia-se na formulação de Noberto Bobbio – como pelo uso do termo no plural. FERREIRA, Jorge e REIS FILHO, Daniel Aarão (Orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 10-12. 12 Percebe-se, aqui, que não tomo o termo “contemporâneo”, empregado no título do projeto, em sua concepção tradicional, relacionada à quadripartição da cronologia histórica, mas sim pela definição do dicionário: “Que ou aquele que é do mesmo tempo, ou do nosso tempo”. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio. Dicionário da língua portuguesa. 6 ed. rev. amp., Curitiba: Posigraf, 2004, p. 184. 13 Para verificar outras informações relativas aos filmes analisados, conferir a ficha técnica dos mesmos, no Anexo I. 14

Parto do pressuposto, apoiando-me nas reflexões de Marc Ferro14, de que o cinema deve ser concebido como uma imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas. Trata-se de um produto cultural elaborado de acordo com a visão de mundo15 de um determinado grupo (aquele que o produziu) e para a recepção de um outro grupo ainda maior, que é a comunidade que recebe o filme (espectadores, críticos, estudiosos etc.).

Também se faz necessário levar em consideração o fato de que o cinema apresenta-se como possuidor de uma linguagem múltipla e rica de significações. Além da evidente presença da imagem em movimento – provavelmente o aspecto mais mobilizador das sensações para o indivíduo que o assiste16 –, um filme também é composto pela linguagem escrita (legendas e créditos, principalmente) e pela linguagem oral (diálogos, narrações, ruídos e músicas). Ainda compõe essa multiplicidade, a questão da autoria dos filmes que deve ser atribuída não somente ao diretor e ao roteirista, mas também ao produtor, aos atores, ao fotógrafo, ao operador de câmera, ao iluminador, ao montador, enfim, a todo um conjunto de sujeitos que formam o meio cinematográfico e que devem ser levados em consideração pelos historiadores para que o filme seja compreendido não apenas pela obra em si, mas pela totalidade que ele representa. Neste sentido, percebe-se que a escolha do que representar nas telas – do que selecionar para constituir a memória de um evento histórico –, além de estar ligada aos interesses pessoais do cineasta (e/ou de todo o meio cinematográfico), revela ainda as preocupações do momento de feitura do filme, que costumam ser, mesmo que inconscientemente, as preocupações do grupo social no qual esse meio cinematográfico está inserido.

Com o objetivo de enfatizar a relevância do cinema como objeto de estudo da história, é interessante destacar que os filmes também devem ser vistos como produtos mercadológicos que atingem um público-alvo cada vez mais amplo, especialmente nas últimas décadas, quando as películas entraram definitivamente nas casas dos espectadores através dos avanços tecnológicos: com a criação e a difusão dos aparelhos de vídeo-cassete, de DVD e através da

14 Para uma melhor compreensão da idéia do filme como imagem-objeto, ver: FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 15 Ao aplicar a expressão “visão de mundo”, baseio-me no pensamento de Roger Chartier, quando este afirma que tal expressão “… permite articular, sem os reduzir um ao outro, o significado de um sistema ideológico descrito por si próprio, por um lado, e, por outro, as condições sociopolíticas que fazem com que um grupo ou uma classe determinados, num dado momento histórico, partilhem, mais ou menos, conscientemente, ou não, esse sistema ideológico”. CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil / Lisboa: Difel, 1990, (Col. Memória e Sociedade), p. 49. 16 Como afirmam, de forma quase poética, Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété: “… no cinema, são as imagens que desfilam e não as palavras”. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994, p. 65. 15

Internet. Com isso, em uma sociedade cada vez mais imagética, não podemos desconsiderar o papel do cinema na “formação das almas”17 de um povo, e, no caso particular que nos interessa, da sociedade brasileira.

Apesar de, inicialmente, procurar observar a formação de uma tendência que permeasse os filmes que tomei como corpus documental, ao desenvolver a pesquisa, deparei- me não exatamente com um discurso homogêneo, mas sim com uma pluralidade de memórias em disputa que, por sua vez, relaciona-se às relações de poder que se estabelecem na sociedade brasileira atual. Dessa forma, torna-se claro que a pesquisa não se limitou à análise do mundo simbólico das representações, pois considero, apoiando-me em Roger Chartier, que as mesmas só têm uma existência a partir do momento em que comandam práticas e, sendo assim, a “história cultural pode regressar utilmente ao social”18. Quero dizer com isso que, sem perder de vista as singularidades de cada obra cinematográfica, fez-se necessário o desvelamento dos projetos ideológicos com os quais elas dialogam, ou seja, suas relações com a sociedade na qual se inserem.

Uma escolha realizada para o desenvolvimento da pesquisa foi a de se trabalhar com um grupo, ainda que pequeno, de filmes sobre o regime militar. Defendo a idéia de que a análise de um conjunto de filmes é mais pertinente para os propósitos da pesquisa do que a incursão minuciosa sobre apenas um deles, pois, o resultado da análise de apenas um único filme poderia se restringir muito às intenções do produtor e realizador dessa obra, de seus interesses e compromissos pessoais, não se constituindo, necessariamente, num representante de um grupo maior no interior do meio cinematográfico. Ao trabalhar com um conjunto de filmes, tive a oportunidade de realizar uma análise que levasse em conta aspectos mais amplos da produção cinematográfica e mais ligados à sociedade da época em que foram produzidos. Portanto, com o universo de filmes que elegi, busquei investigar a apreciação de aspectos comuns e/ou conflitantes, que foram comparados e interpretados, na busca de respostas relativas à formação de memórias acerca do regime militar.

Destaco o fato de que minha escolha baseou-se, também, na significativa quantidade de espectadores para os filmes selecionados, com exceção de Cabra-Cega19. Isso sugere, a

17 Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 11. 18 CHARTIER, Roger. A História Cultural..., p. 23. 19 Exceto Cabra-Cega, todos os outros filmes selecionados ultrapassaram a marca de cem mil espectadores nos anos de seus lançamentos em salas comerciais. Justamente por ser considerado como um filme de “produção independente” – tendo sido produzido por uma pequena produtora e ter um cineasta não tão consolidado no meio cinematográfico – que incluí o filme Cabra-Cega, no sentido de proporcionar um contraponto aos filmes mais 16

meu ver, que esses filmes – mais do que outros que também tematizam o regime militar, mas que não tiveram um público tão significativo – tornaram-se mais responsáveis pela difusão de idéias, cristalizando significados ou criando-os, o que torna pertinente a atenção maior do historiador para com os mesmos. Como já mencionado, parece que o público atualmente assimila mais os conhecimentos históricos através das telas do que pela via da leitura e do ensino formal, conforme argumenta Robert Rosenstone20. Em um mundo onde a imagem domina diversas esferas do cotidiano, o cinema não pode ser negligenciado como objeto de estudo pelo historiador, que deve não somente utilizá-lo como recurso para a difusão do conhecimento histórico – como qualquer outro documento21 –, mas também como objeto de estudo de “primeira grandeza”, devendo ser submetido a uma análise intensa e criteriosa, de acordo com seus objetivos específicos.

Outra delimitação necessária refere-se aos aspectos dos filmes sobre os quais ampliei o foco de análise para observar que tipo de memória estava sendo elaborado. Focalizar o regime militar em sua totalidade constituiria uma tarefa quase irrealizável, dada a abrangência do período e a complexidade de seus inúmeros aspectos (políticos, econômicos e culturais). Além disso, acredito que o historiador não deve ter a pretensão de dar conta de todos os assuntos que um episódio ou um período histórico possam oferecer, assim como de conseguir extrair de um filme todos os dados passíveis de interpretação. Como afirma a estudiosa Cristiane Nova,

Toda tentativa de análise de um filme implica em uma redução do seu sentido em conseqüência da impossibilidade de uma análise total e acabada (só alcançável como hipótese). Todo processo de transformação (que se configura como uma abstração) das imagens em linguagem escrita ou verbalizada leva sempre ao empobrecimento relativo do seu significado22.

Por conseguinte, optei por pronunciar na pesquisa alguns elementos temáticos, em detrimento de outros. O foco centrou-se, portanto, nos guerrilheiros (rurais e urbanos), logo, na luta armada contra a ditadura. Essa escolha explica-se essencialmente pela predominância dessa temática na maioria dos filmes que tratam o regime militar brasileiro, o que, por si só, já se torna uma questão relevante para se observar no processo de seleção e construção das difundidos pela mídia e mais assistidos pelo público brasileiro. Os dados relativos ao público dos filmes pesquisados encontram-se no site da ANCINE (Agência Nacional do Cinema): e podem ser conferidos no Anexo II. 20 ROSENSTONE, Robert. A. El pasado en imágenes…, p. 29. 21 O historiador Rosenstone defende, diante desta tendência, a idéia de que o filme deva constituir uma fonte de conhecimento histórico tão válida quanto qualquer outro documento. Idem,Ibidem, passim. 22 NOVA, Cristiane. O cinema e o conhecimento da História. Revista O Olho da História. Salvador: UFBA, n. 3, p. 3. Disponível em: . Acesso em: abr. 2007. 17

memórias desse período. Tal escolha não excluiu a abordagem, mesmo que em segundo plano, de outros aspectos que os filmes revelaram sobre o regime militar. Ao analisá-los, pude perceber a importância dada em algumas películas também às seguintes questões: o tratamento concedido à prática da tortura; a visibilidade ou invisibilidade dos quadros governamentais na repressão aos focos de oposição à ditadura; a relação do(a) guerrilheiro(a) com sua família e o posicionamento de alguns grupos sociais em relação ao governo ditatorial e à luta armada.

A referida seleção de filmes priorizou, ainda, outras questões relevantes. Primeiramente, procurei abranger uma dimensão temporal que possibilitasse um contraste entre diferentes períodos, mesmo se tratando de um curto espaço de tempo. Adotando como delimitação a análise de filmes produzidos após o fim da ditadura militar, achei conveniente selecionar alguns referentes a um período próximo ao início do regime democrático (dois filmes lançados nos anos de 1990) e, em contraste, os outros três filmes situaram-se no momento mais atual. Afirmo que, apesar de próximos cronologicamente, esse espaço temporal (dos anos 90 do século XX para o início do século XXI) já apresenta uma diferenciação de propostas em suas narrativas cinematográficas, conforme pude perceber, constituindo essa diferença um aspecto relevante para a pesquisa. Considerando que o estudo das obras cinematográficas deve estar intensamente relacionado ao contexto de produção em que elas foram geridas, procurei apreender que memórias foram elaboradas para cada período citado, buscando as rupturas e/ou permanências entre um período e outro.

Outro critério adotado foi a escolha de se trabalhar com filmes de ficção, em vez dos denominados filmes-documentário23. Não há nisso nenhum demérito com esse gênero cinematográfico, no interior do qual vem aumentando significativamente a produção de roteiros que abordam o regime militar, nesses últimos anos24. Porém, trata-se de uma outra forma de se trabalhar com as representações do passado, através de uma linguagem cinematográfica específica e diferenciada dos filmes de ficção, o que, a meu ver, ampliaria demasiadamente o campo de análise da presente pesquisa. Para restringir o foco de observação, permitindo-me um aprofundamento maior sobre o mesmo, optei por balizar o critério conforme mencionei acima, ou seja, abrangendo apenas filmes que pertencessem à categoria de ficção. Além disso, acredito que qualquer gênero cinematográfico permite ao

23 Esta divisão técnica, entre filmes de ficção e documentários, pauta-se na classificação da ANCINE, portanto, nos parâmetros adotados pelo Ministério da Cultura. Disponível em: 24 Apenas para citar alguns exemplos de documentários mais recentes: Vlado – 30 anos depois (João Baptista de Andrade, 2005), O Sol. Caminhando contra o vento (Tetê de Moraes, 2006), Caparaó (Flávio Frederico, 2007) e Hércules 56 (Silvio Da-Rin, 2006). 18

historiador uma pesquisa que busque a construção das memórias em disputa no momento de produção dos filmes, partindo-se sempre do princípio de que qualquer filme é um ato de interpretação, uma projeção de uma visão de mundo, e isso é verdade tanto para os documentários – aparentemente mais “realistas” – como para os filmes de ficção.

Assumo, desta forma, a idéia de que o cinema é sempre ficcional, independentemente de sua categoria ou da história que narra, como afirma Ismail Xavier:

O cinema, como discurso composto de imagens e sons é, a rigor, sempre ficcional, em qualquer de suas modalidades; sempre um fato de linguagem, um discurso produzido e controlado, de diferentes formas, por uma fonte produtora25.

Se o cinema pode – e deve – ser concebido como uma das formas possíveis de se narrar a história, há que se levar em consideração que toda e qualquer narrativa não se configura exatamente como “o passado acontecido”. A narração desse passado, como constata Paul Ricoeur26, estabelece uma refiguração da experiência temporal, o que significa afirmar que por meio da elaboração de uma intriga – que visa ordenar os vestígios do passado – o narrador insere uma parcela de ficcionalização na história que conta, por maior que seja o seu compromisso com a verdade. Sendo assim, um filme que tematiza um enredo histórico está elaborando uma narrativa cinematográfica que, obrigatoriamente, originou-se de uma refiguração carregada de elementos ficcionais, mesmo se tratando de uma “história baseada em fatos reais”, como muitos trailers de filmes costumam anunciar.

Marc Ferro, defendendo a utilidade do filme de ficção, argumenta que este revela um “clima de época” – através de seu cenário, de seu vocabulário, do comportamento de seus personagens, enfim, de todo um imaginário – que possui como matéria-prima a própria realidade e que, portanto, pode e deve ser submetido à análise crítica por parte do historiador. Afirma o autor que, “através da ficção e do imaginário, trata-se de assinalar os elementos da realidade […] E a ficção pode, sobretudo, ir mais longe na análise do funcionamento econômico e no estudo das mentalidades dos tempos passados”27. Conclui-se que o imaginário que se constrói sobre uma época do passado nos diz muito sobre as intenções de seus produtores. Assim, os filmes podem ser tomados como objetos de estudo

25 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. 3. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 14. Ver também: BERNARDET, J. C.; RAMOS, A. F. A História e o filme documentário, in Cinema e História do Brasil, São Paulo: Contexto, 1988, p. 36-61. 26 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo I. Trad. Constança Marcondes César. Campinas – SP: Papirus, 1994. 27 FERRO, Marc. Cinema e História…, p. 118. 19

independentemente do gênero cinematográfico a que pertençam, como se poder inferir a partir das reflexões da pesquisadora Mônica Kornis:

… não só os cinejornais e documentários, mas também os filmes de ficção se tornam objeto de análise histórica, em última instância pelo fato de nenhum gênero fílmico encerrar a verdade, não importa que tipo de operação cinematográfica lhe deu origem28.

Seguindo a premissa de que qualquer filme é um ato de interpretação, tive também a preocupação de selecionar diferentes formas de se trabalhar com o denominado “filme histórico”, no interior da categoria ficcional. Esta subcategoria abrange os filmes que de alguma forma encenam o passado, seja através de episódios ou personagens históricos reais, cuja existência é comprovada pela historiografia, seja através de histórias livremente criadas por seus autores (sem vínculo com a historiografia), mas que tratam de um período histórico que comprovadamente existiu29. Essas duas possibilidades de reconstrução fílmica devem ser encaradas como ficção, mas a primeira possui o seu enredo principal extraído de algum episódio específico do “real acontecido”, enquanto a segunda, baseia-se nesse mesmo passado, mas não possui um enredo tão atrelado a um determinado episódio histórico. Na verdade, qualquer filme pode ser concebido como histórico porque é uma construção do ser humano, uma construção social, um testemunho de si próprio, ou seja, independentemente de seu conteúdo, o filme traduz valores e desejos da sociedade que o produziu.

Na primeira classificação apresentada encontram-se os longas-metragens Lamarca, O que é isso, companheiro? e Zuzu Angel e, na segunda, estão Cabra-Cega e O ano em que meus pais saíram de férias. Procurei com isso englobar uma diversidade de narrativas fílmicas que pudesse oferecer diferentes formas de elaboração de memórias sobre o regime militar.

Outro aspecto da pesquisa que deve ser destacado refere-se à necessidade de se conceber as representações construídas sobre o regime militar nos filmes selecionados como impreterivelmente associadas às condições de produção desses filmes, assim como ao contexto social do qual emergem, conforme já assinalei. Isto pressupõe que o filme, como qualquer outro documento, carrega consigo uma grande carga de subjetividade, sendo produto

28 KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: um debate metodológico. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 5, n. 10, 1992, p. 243. Disponível em: Acesso: ago. 2007. [Grifos meus] 29 Esta divisão em subcategorias baseou-se na proposta de Cristiane Nova, que ainda aponta outras possibilidades existentes no interior dos “filmes históricos” que seriam: as biografias históricas, os filmes de época, os filmes-mito, os filmes etnográficos e as adaptações literárias e teatrais. Cf. NOVA, Cristiane. O cinema e o conhecimento da História… 20

das intencionalidades, conscientes ou não, do meio que o produziu, assim como do contexto (social, político, econômico e cultural) do qual se originou. É neste momento que, ao lidar com a imagem cinematográfica como representação deve-se obrigatoriamente historicizá-la, isto é, pensá-la enquanto objeto inserido em uma determinada temporalidade que não pode ser ignorada.

Privilegio, enfim, o “momento de feitura”30 dos filmes, considerando que a análise dos mesmos não se restringe, portanto, ao seu conteúdo, àquilo que eles retratam nas telas, mas também – e principalmente – ao que eles transmitem: valores e expectativas de seus realizadores (cineastas, produtores, atores etc.), além da própria sociedade que os recebe (espectadores, críticos, acadêmicos, entre outros). Portanto, como mais uma vez informa Marc Ferro, “um filme, seja ele qual for, sempre vai além de seu conteúdo... Essa é uma verdade que diz respeito aos textos, porém mais às imagens...”31. O autor considera, ainda, que não há linguagem cinematográfica que seja inocente. Há sempre uma intencionalidade – mesmo que não deliberada – que reflete as aspirações e as condições de produção da obra cinematográfica. Isso demonstra que, para analisarmos um filme pelo viés historiográfico, as relações exteriores e interiores a ele são imprescindíveis, pois há uma polissemia inerente à obra que deve sempre ser levada em consideração. Imagem e sociedade não estão nunca desvinculadas, o que leva à conclusão de que os filmes “falam” muito mais sobre o seu presente do que sobre o passado que procuram retratar nas telas.

30 Essa expressão é utilizada por Sandra Pesavento, ao referir-se ao papel da imagem como documento histórico. Cf. PESAVENTO, Sandra. J. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 87. 31 FERRO, Marc. Cinema e História... , p. 28. 21

1. CINEMA, HISTÓRIA E MEMÓRIA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL

O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História (Marc Ferro)

A citação acima indica uma significativa transformação ocorrida nas últimas décadas, pelas quais passaram as ciências humanas em geral, e a disciplina História em particular, sobretudo a partir da crise dos paradigmas epistemológicos vigentes até então, o que ocorreu especialmente a partir dos anos 70 do século XX. No interior dessas transformações, surgiram os seguintes questionamentos: caberia ao historiador revelar a “verdade” dos acontecimentos? O passado pode ser apreendido “tal e qual” existiu através dos documentos? Como se escreve a História? Quais são suas fontes e seus objetos legítimos?

As reflexões advindas de questões como essas colocaram em xeque, antes de tudo, a idéia de que o conhecimento do passado corresponderia a um discurso “realista” e de que o objeto da história seria um dado concreto e totalmente apreensível para o historiador. Nesse mesmo sentido, observou-se a desconstrução da noção de “documento” como associado à prova histórica, à fonte de verdades incontestáveis. Problematizando esta noção, Jacques Le Goff propõe a percepção do documento enquanto “monumento” 32, já que aquele também se insere nas relações de força que detém o poder33, no momento de sua elaboração. Conclui Le Goff que todo documento é um monumento, pois resulta do esforço das sociedades históricas de impor ao futuro determinadas imagens de si próprias.

Entre os estudiosos que se debruçaram sobre tais reflexões, também se destaca o historiador Paul Veyne, para quem a história ganha um sentido bem diferente do que até então possuía. Segundo o autor, não há sentido na busca de uma verdade universal; o que existe são “programas de verdades”, constituídos de acordo com as pretensões de cada cultura, de cada grupo social, em cada época específica. Com a afirmação de que os “homens não descobrem a

32 LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento, in História e Memória. 5. ed., Trad. Bernardo Leitão. São Paulo: Unicamp, 2003, p. 525-541. 33 Ao mencionar a noção de poder, refiro-me especialmente à concepção de Michel Foucault, para quem o poder não se restringe à esfera do Estado, mas manifesta-se, sobretudo, nas práticas cotidianas dos indivíduos e grupos e que está disseminado por todas as esferas da sociedade. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 22

verdade: fazem-na, tal como fazem a sua história…”34, Paul Veyne imprime à historiografia atual o papel de desnaturalizar o que é tido como natural, ou seja, de revelar o caráter de construção embutido em qualquer narrativa histórica. Afinal, a história é uma narrativa de eventos passados e esses eventos não são revividos, mas sintetizados pela história que “seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba em uma página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória”35. Seguindo os passos de Veyne, pode-se concluir que o papel do historiador constitui-se na tarefa de “explicitar os programas de verdade e mostrar as suas variações”36.

Ao se relativizar a verdade, torna-se essencial – no ofício do historiador – atribuir à imaginação um papel significativo para a compreensão de uma determinada realidade social e cultural. Não se trata de abandonar os princípios do racionalismo, que por séculos imperaram no campo das ciências humanas e sociais, mas de considerar que os aspectos do imaginário também fazem parte da estruturação do homem e, portanto, de suas manifestações culturais. Segundo Veyne, os homens criam “palácios de imaginação” e, no interior dos mesmos é que são estabelecidas as verdades, ou melhor, as ilusões de verdades, que farão com “que cada palácio passe por se encontrar plenamente instalado dentro das fronteiras da razão”37.

As considerações, brevemente apontadas, definem-se como ponto de partida para qualquer pesquisa que tenha como perspectiva a análise do campo cultural. A história, sob este ponto de vista, não deve mais ser concebida como forma de apreensão de um real verdadeiro, pois só temos acesso a esse real a partir das representações que o constroem e dos significados que damos a ele. Portanto, o passado só nos chega como discurso (fonte com a qual os historiadores trabalham)38, embora esse discurso busque sempre o real como seu referente (diferenciando o discurso histórico do literário, por exemplo).

Nessa perspectiva, não há mais sentido em se tomar o imaginário como falso, na medida em que esse é parte constitutiva do real. Contrariamente, deve-se conceber o imaginário como elemento essencial para a constituição da base de uma sociedade, pois, como afirma Bronislaw Baczko,

34 VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos nos seus mitos? Lisboa: Edições 70, 1987, p. 12. 35 Idem. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Trad. Alda Baltazar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2008, p. 18. 36 Idem. Acreditavam os gregos nos seus mitos?..., p. 150. 37 Id. Ibid., p. 144. 38 A esse respeito, ver: BRITO, Eleonora Zicari da Costa de. O campo historiográfico. Entre o realismo e a representações. Revista Universitas. Brasília: UniCEUB, v. 1, p. 9-24, 2003.

23

o imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva. As referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que pertencem à mesma sociedade, mas também definem de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas relações com ela, com as divisões internas e as instituições sociais etc. [...] O imaginário social é, pois, uma peça efetiva do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos conflitos sociais39.

O imaginário social, no sentido apontado por Baczko, possui sempre a sua historicidade, pois em cada época os homens constroem as suas representações para conferir sentido ao real que compartilham. Aprofundando esta reflexão, que confere um papel primordial ao imaginário social, Cornelius Castoriadis afirma que tudo o que se apresenta no mundo social-histórico está indissociavelmente imbricado com o simbólico e que, portanto, “o mundo das significações tem que ser pensado, não como uma réplica irreal de um mundo real [...] Temos que pensá-lo como posição primeira, inaugural, irredutível do social-histórico e do imaginário social, tal como se manifesta cada vez numa sociedade dada”40.

O cinema passa a ser concebido, no interior desta perspectiva analítica, como um instrumento de fundamental relevância cultural, que reflete e, ao mesmo tempo, constrói representações que compõem o campo do imaginário social. A narrativa cinematográfica, portanto, não deve ser vista como um puro reflexo da realidade social, nem tão pouco como um sistema de signos – traduzidos em sons e imagens – sem relação com essa realidade. Ela ocuparia, como qualquer discurso41, uma variedade de posições entre esses dois extremos.

Marc Ferro, um dos grandes responsáveis pela incorporação do cinema como objeto legítimo de estudo para os historiadores, já refletia, na década de 1970, sobre as relações entre cinema e imaginário. Para o autor, a não aceitação da imagem cinematográfica no fazer histórico ocorreria em função desta ser concebida como parte do imaginário da sociedade, que, por sua vez, também não pertencia ao campo de estudos desta área. Rompendo com essa visão da historiografia tradicional – ainda herdeira de concepções positivistas relativas ao estatuto do documento histórico – Marc Ferro afirma que “aquilo que não se realizou, as crenças, as intenções, o imaginário do homem é tanto História quanto a História”42. Indo um

39 BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social, in: Enciclopédia Einaudi, v. 5, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985, p. 309-310. [Grifos no original] 40 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Trad. Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 413. 41 Sobre a concepção da linguagem cinematográfica enquanto discurso, composto por sons e imagens, ver: XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. 3. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. 42 FERRO, Marc. Cinema e História. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 86. 24

pouco mais além, sugere que, se o imaginário pode ser considerado como um dos motores da atividade humana, “o cinema, sobretudo a ficção, abre uma via real na direção de zonas psico- sócio-históricas jamais atingidas pela análise dos ‘documentos’”43.

A concepção do cinema como produto do imaginário social não deve levar o historiador a uma visão ingênua de que, por se tratar de uma representação expressa por meio de uma linguagem (no caso, audiovisual), não possua relação intrínseca com o real que representa. Robert Stam e Ella Shohat dedicam especial atenção em seus estudos à relação entre as representações cinematográficas e o real representado, afirmando que “as construções e codificações do discurso artístico não excluem referências a uma vida social comum. Ficções cinematográficas inevitavelmente trazem à tona visões da vida real não apenas sobre o tempo e o espaço, mas também sobre relações sociais e culturais”44. Afirmam os autores que a questão fundamental no discurso artístico (entre os quais se inclui o cinema) não é a fidelidade a uma realidade preexistente, mas a orquestração de discursos ideológicos e perspectivas coletivas. Sendo assim,

não basta dizer que a arte implica construção. Temos que perguntar: construção para quem? E em conjunção com quais ideologias e discursos? Dessa perspectiva, a arte é uma representação não tanto em um sentido mimético, mas político, uma delegação de vozes45.

Esse caráter político revela-se de vital relevância para a análise de filmes que tematizam o regime militar brasileiro, como o presente estudo procura monstrar. Ver o regime militar nas telas não significa retornar àquele passado, ainda que recente e vivo nas memórias individuais e coletivas de muitos brasileiros, mas perceber como o cinema elabora (re)significações desse passado e em consonância com quais discursos ideológicos.

Para se pensar as relações entre história e cinema, de acordo com as novas perspectivas dos estudos históricos, as imagens – e aí se incluem as imagens audiovisuais – não podem mais ser percebidas como meras ilustrações de livros, ou complementos de documentos textuais. Devem, sobretudo, ser consideradas como formas de representação pela qual indivíduos e grupos dão sentido ao mundo em que vivem. Conforme Sandra Pesavento, a representação tornou-se uma categoria central para os estudos na área de História Cultural.

43 FERRO, Marc. Analyse de film. Analyse de sociétés, p. 12-13, apud MORETTIN, Eduardo. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro, in CAPELATO, Maria Helena, et. al. História e Cinema. Dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007, (USP: história social. Série Coletâneas), p. 49. 44 SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. Multiculturalismo e representação. Trad. Marcos Soares. São Paulo: COSACNAIFY, 2006, p. 263. 45 Idem, Ibidem, p. 265. 25

Afirma a historiadora que os homens só percebem a realidade e pautam a sua existência através das representações. São elas, portanto, “matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real”46. Pesavento adverte, contudo, que a representação não é uma cópia do real e que sua eficácia não se dá pelo “valor de verdade” ou de correspondência com esse real que substitui. Ela deve ser concebida como uma construção feita a partir do real e sua força se deve pela sua capacidade de mobilização e reconhecimento social. Desta forma, conclui Pesavento que “as representações se inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade”47, o que não significa que não referenciem uma determinada realidade, como já afirmado anteriormente.

De acordo com as reflexões até o momento apresentadas, pode-se inferir que o procedimento metodológico de análise fílmica, segundo a perspectiva dos estudos culturais, não pode prescindir do questionamento sobre qual ou quais pontos de vista (ideológico, moral, estético etc.) o filme analisado pode oferecer e como ele(s) se manifesta(m) nas imagens audiovisuais. Tais questões baseiam-se nas propostas de Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété, ao postularem que

qualquer arte da representação (o cinema é uma arte da representação) gera produções simbólicas que exprimem mais ou menos diretamente, mais ou menos explicitamente, mais ou menos conscientemente, um (ou vários) ponto(s) de vista sobre o mundo real48.

Ainda segundo as autoras, um filme opera escolhas, organiza elementos entre si, construindo um mundo imaginário que mantém relações muito complexas com a realidade. Se em parte pode ser o seu reflexo, também pode ser a sua recusa, “ocultando aspectos importantes do mundo real, idealizando, amplificando certos defeitos, propondo um ‘contramundo’ etc.”49. Portanto, caberia àquele que analisa o filme perceber de que forma se elabora a estruturação da representação fílmica da sociedade na qual esse filme se insere.

Outra concepção sobre o papel das representações sociais, que contribuiu significativamente para as reflexões teóricas que embasaram essa pesquisa, foi proporcionada pelos estudos de Denise Jodelet50. Segundo a autora, que se insere no campo de estudos da

46 PESAVENTO, Sandra J. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 39. 47 Idem, Ibidem, p. 41. 48 VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1994, (Coleção Ofício da Arte e Forma), p. 61. 49 Idem, Ibidem, p. 56. 50 JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão, in JODELET, Denise (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. 26

Psicologia Social, possuímos a necessidade de criar representações para estarmos informados sobre o mundo a nossa volta, para nos ajustarmos a ele, compreendê-lo e dominá-lo. E essas representações estão presentes em múltiplas ocasiões, pois elas “circulam nos discursos, são trazidas pelas palavras e veiculadas em mensagens e imagens midiáticas, cristalizadas em condutas e em organizações materiais e espaciais”51. Percebe-se, nesta afirmação, o lugar da narrativa cinematográfica como transmissora de representações, responsáveis pelas interpretações que os indivíduos e os grupos elaboram para conduzirem as suas relações com o mundo.

É ainda Jodelet quem assinala o caráter dialético das representações sociais, que devem então ser encaradas “concomitantemente como produto e processo de uma atividade de apropriação da realidade exterior ao pensamento e de elaboração psicológica e social da realidade”52. Neste sentido, o cinema pode ser compreendido não somente como um veículo que reflete as concepções e interpretações do meio que o produz, mas também como aquele que as constrói.

Ao examinar o caráter prático das representações, Jodelet afirma que estas, ao se constituírem como uma reconstrução do objeto – que é expressiva do sujeito e, portanto, portadora de sua visão de mundo –, provocam uma “defasagem” em relação ao seu referente. A autora ressalta que esta defasagem produz três tipos de efeito no nível dos conteúdos representativos, que são: as distorções, as suplementações e as subtrações53. Seguindo esta linha de análise, examinei os filmes selecionados procurando compreender os tipos de efeito sobre seus conteúdos representativos. Interessou-me, sobretudo, destacar as “distorções” – que geram, por exemplo, os estereótipos ou os preconceitos na narrativa cinematográfica – e, também, a “subtração” – responsável pelos silêncios no interior desse mesmo discurso. Deve ficar claro no presente trabalho que, ao buscar nos filmes históricos que tematizam o período ditatorial os aspectos silenciados, também estou procurando desvelar o tipo de representação embutida na narrativa cinematográfica, pois as lacunas e os silêncios igualmente contribuem para a elaboração de um determinado significado sobre o tema filmado.

As reflexões relativas à noção de representação, até o momento apresentadas, vão ao encontro do pensamento de Roger Chartier, para quem todas as manifestações humanas

51 Idem, Ibidem, p. 17-18. 52 Id., Ibid., p. 22. 53 Id., Ibid., p. 36. 27

configuram-se através de representações, que são criadas para atribuir sentidos ao mundo social do qual emergem. No seu entender,

pode se pensar a história cultural do social que tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse.54

Chartier acrescenta, apropriadamente, que as representações só têm uma existência a partir do momento em que comandam atos, constituindo assim um conjunto de “matrizes de discursos e práticas diferenciadas […] que têm por objetivo a construção do mundo social”55. O cinema pode ser introduzido nesta reflexão, a partir do momento em que passa a ser concebido como um produto cultural que não somente representa, mas produz as suas representações acerca daquilo que retrata nas telas. Não se trata, portanto, no caso de filmes que retratem episódios e fatos históricos, da reprodução fidedigna do passado, mas de uma forma de interpretação produzida sobre aquilo que tematizam. Tais filmes, vistos sob este ponto de vista, atribuem sentidos sobre uma determinada realidade – aquela reproduzida no seu enredo histórico – e esses sentidos não estão isentos de intenções, não são discursos neutros, pois, conforme argumenta Chartier:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza56.

Percebe-se, na afirmação acima, a grande contribuição de Chartier no sentido de realçar a historicidade intrínseca a qualquer representação, ou seja, à necessidade de analisá-la à luz do momento histórico de sua produção e circulação pelo grupo social que a compôs e/ou a recebeu. Com isso, assumo a postura de que analisar um filme não significa exclusivamente desnudar os seus significados intrínsecos, mas criar uma leitura possível para o mesmo e de acordo com as relações que ele estabelece com o seu contexto histórico.

É por esse motivo que, ao lidar com a imagem audiovisual como representação, deve- se necessariamente pensá-la enquanto objeto inserido em uma determinada temporalidade que

54 CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, Lisboa: Difel, 1990, p. 19, (Col. Memória e Sociedade). [Grifos meus] 55 Idem, Ibidem, p. 18. 56 Id., Ibid., p. 17. [Grifos meus] 28

não pode ser negligenciada, conforme venho enfatizando. Logo, ao tratá-la como fonte histórica, o historiador não pode perder de vista as intenções do autor daquela obra (o cineasta e todo o meio cinematográfico que o envolve) e o contexto social de produção dessa imagem audiovisual, sob o risco de visualizá-la como fonte indiscutível de um passado, ali captado e “congelado” para a posteridade. Como afirma Pesavento, “a imagem, enquanto registro de algo no tempo, é testemunho de época, mas também testemunho de si própria, tal como o texto literário, ou seja, é o momento de sua feitura, e não a temporalidade do seu conteúdo ou tema que cabe atingir”57.

Infere-se, assim, que a representação do passado existente em um filme está intimamente relacionada ao momento em que esse filme foi produzido. A escolha de um determinado período histórico e não de outro, a forma como ele está sendo representado, os significados que atribui aos personagens, a omissão ou exaltação de determinados aspectos, são, enfim, ditados por influências do presente. E tais escolhas, por sua vez, não expressam somente a percepção individual de passado que o sujeito produtor da narrativa fílmica quis imprimir nas telas. A partir do momento em que o cineasta é concebido como um ser social, suas opções individuais estão inseridas em um imaginário mais amplo, compartilhado, no mínimo, com os outros componentes da produção. Isto porque, não se deve considerar o cineasta como o único responsável pela produção de uma película. Um filme surge de uma rede de relações que compõem a atividade cinematográfica, que envolve desde o processo de financiamento e captação de recursos até a sua exibição, passando pela produção, realização e distribuição. Esta atividade, por sua vez, relaciona-se ao contexto social, político e econômico que o circunda e com o qual mantém relações de dependência.

Cabe ainda destacar, nas reflexões de Roger Chartier, a importância de se perceber as representações como estando sempre inseridas num “campo de concorrências e de competições, cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação”58. Como se pode observar, o autor recusa a concepção de representação como algo totalmente consensual, livre de contradições e disputas, antes a insere em uma relação direta com a noção de poder, logo, de conflitos e disputas simbólicas. Para analisar um conjunto de filmes históricos que tematizam o regime militar no Brasil, filio-me, deste modo, à proposta de Chartier ao ressaltar o valor das “lutas de representações” que, para o autor, “têm tanta importância como as lutas

57 PESAVENTO, Sandra. J. História e História Cultural…, p. 87. [Grifos meus] 58 CHARTIER, Roger. História Cultural…, p. 17. 29

econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio”59.

Desse modo, a pesquisa aqui desenvolvida não objetivou encontrar, nesse conjunto de filmes, um discurso unívoco ou mesmo homogêneo, responsável pela representação cinematográfica do regime militar brasileiro. Visou, sobretudo, perceber quais as possíveis interpretações históricas que constroem, quais as relações dessas interpretações com a sociedade da qual emergem e quais são os pontos de aproximação e/ou distanciamento entre as visões construídas. Sendo assim, endosso o ponto de vista de Michael Pollak, quando este autor constata que os pesquisadores atuais têm demonstrado sua predileção pelos conflitos e disputas em detrimento dos fatores de continuidade e de estabilidade entre os seus objetos de pesquisa60.

Neste ponto, a percepção do cinema como portador/criador de representações sociais entrecruza-se com os estudos que evidenciam o peso da memória no interior da atividade historiográfica. Parte-se do pressuposto de que as representações elaboradas por um filme histórico são responsáveis pela produção de uma determinada memória (ou, mais propriamente, memórias) sobre o período retratado, pois aquilo que representa, não é o passado em si, mas aquilo que seus criadores desejam solidificar no imaginário social, no caso em questão: a memória sobre o regime militar.

Com esta afirmação, já se torna evidente que parto do princípio de que a memória, assim como a história, é um fenômeno construído, e não um fragmento do passado, revivido em sua forma pura, intacta. São vários os estudiosos que percebem a memória segundo a perspectiva apontada. Contudo, é válido destacar, por sua importância e pioneirismo, as reflexões de Maurice Halbwachs neste sentido.

Halbwachs parte de estudos sobre a memória individual para conferir-lhe um caráter social61. Isso significa que, para o autor, não existiria a memória individual no sentido mais estrito da expressão. Tudo o que o indivíduo lembra dependeria de suas relações com a família, com a escola, com a profissão, com a Igreja, enfim, com os grupos de convívio e de

59 Idem, Ibidem, p. 17. 60 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Trad. Dora Rocha Flaskman. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 5, n. 10, 1992, p. 5. 61 O autor contrapõe-se, neste sentido, aos estudos no campo da Psicologia de Henri Bérgson. Cf. BOSI, Ecléa. Memória-sonho e memória-trabalho, in Memória e sociedade. Lembranças de velhos. 13. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 46-69. 30

referências peculiares a esse indivíduo62. Como afirma Ecléa Bosi, enfatizando o papel desse autor para o estudo da memória, “Halbwachs amarra a memória da pessoa à memória do grupo e esta última à esfera maior da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade”63.

Outra contribuição de Halbwachs refere-se ao seu entendimento de que a memória é um fenômeno construído coletivamente e que, portanto, está submetida às flutuações, transformações e mudanças constantes que o presente impõe sobre a mesma. Segundo o autor, lembrar não é reviver, mas refazer com imagens e idéias de hoje as experiências do passado. Para Halbwachs, quando realizamos a releitura de um livro, nossas impressões nunca são exatamente as mesmas da primeira leitura, não importa que espaço de tempo tenha ocorrido entre uma ação e outra64. O que vale para uma ação individual – a leitura de um livro – vale para ações coletivas relativas à memória, que demonstram a impossibilidade de se reviver o passado “tal e qual”.

Também Walter Benjamin valoriza as ações do presente sobre o ato de rememorar65. Através de uma perspectiva construtivista da história, Benjamin afirma que o passado não se constitui como um devir abstrato no tempo, permanecendo fixo e imutável. Do passado, só nos restam fragmentos que nos vêm aos pedaços e, portanto, não possuímos a capacidade de compreensão desse passado em toda a sua inteligibilidade. Somos nós quem o construímos, atribuindo sentidos para esses fragmentos. Percebe-se, com isso, que a concepção benjaminiana da história é aquela que concebe o passado como estando sempre e obrigatoriamente (re)significado pelo presente. A perspectiva apontada pelo autor tem a memória como elemento fundamental para a elaboração dessa nova temporalidade. É através da memória que aqueles indivíduos invisíveis e anônimos para a historiografia tradicional passam a reivindicar o seu espaço no presente. Rememorar, para essas pessoas, é atualizar o passado, e não simplesmente evocá-lo. É trazer para o presente o resultado das experiências vividas para inseri-las num campo de batalhas66. É, enfim, situar a memória num “tempo

62 Afirma Halbwachs que “acontece com muita freqüência que nos atribuímos a nós mesmos, como se elas não tivessem sua origem em parte alguma senão em nós, idéias e reflexões, ou sentimentos e paixões, que nos foram inspirados por nosso grupo”. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004, p. 51. 63 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade…, p. 18. 64 Idem, Ibidem, p. 56 – 57. 65 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. 66 Essa perspectiva benjaminiana de história, memória e tempo está presente nos trabalhos escritos e audiovisuais de NUNES, J. Walter. Patrimônios Subterrâneos em Brasília. São Paulo: Annablume, 2005. Ver, também, documentários: Batalhas pelo Patrimônio, Batalhas pela História (José Walter Nunes, 1999) e a Série Nossa História, Nosso Patrimônio (José Walter Nunes, 2000). 31

saturado de ‘agoras’…”67. Assim, Benjamin evidencia o papel da memória para o ofício do historiador, apresentando uma proposta de tempo histórico descontínuo, marcado por rupturas e reconfigurações que são sempre elaboradas à luz do presente.

Mesmo lidando com um passado ainda muito próximo68, as imagens construídas sobre o regime militar brasileiro – seja no cinema, seja através de qualquer outra linguagem – não podem ser concebidas como mímesis desse passado. Como ressalta Benjamin, o passado só nos chega através de imagens que, por sua vez, são instituintes de significados69. São esses significados que procurei apreender através da presente pesquisa. Considerando as narrativas cinematográficas como operadoras de memória, busquei desvelar aquilo que muitas vezes encontra-se latente nos filmes: as diferentes memórias elaboradas pelo meio cinematográfico; meio este que, por sua vez, representa não apenas a visão de um cineasta ou de um produtor, mas de um grupo social mais amplo, aquele que recebe o filme e que busca nele algum tipo de identificação ou projeção de seus desejos70.

Ampliando as discussões relativas ao papel da memória para a história, os estudos de Michael Pollak constituíram um instrumental teórico fundamental para os objetivos da pesquisa71. O referido autor não desconsidera o caráter coletivo, seletivo e construtivo da memória revelado por Halbwachs; antes o reforça. Seu avanço se dá pelo fato de que não interpreta a memória coletiva somente por aquilo que ela teria de positivo: reforçar a coesão social, estabelecendo no grupo que a compartilha o sentimento de pertencimento e de identidade, como propõe Halbwachs. Pollak, contrariamente, destaca os seus aspectos “negativos”, ou seja, o “caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional”72. Teria, esta última, a característica de “memória oficial”, procurando impor a sua hegemonia sobre as memórias de grupos marginalizados, as quais Pollak denomina de

67 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, in Obras escolhidas…, p. 229. 68 Ao se trabalhar com a história do tempo presente, o historiador não pode perder de vista que mesmo uma narrativa realizada sobre a experiência de ontem será sempre uma narrativa, ainda que baseada em testemunhos diretos. E qualquer narrativa possui a sua parcela de revisão/reelaboração em função do momento presente da narração. 69 Ver MAGALHÃES, Nancy A. Terra: memória, imagem e raízes da vida. Textos de História. Revista da Pós- Graduação em História da UnB, v. 12, n. 1 e 2, 2004, p. 197. 70 Não faz parte do presente estudo a análise da recepção dos filmes. Porém, não deixa de constituir um dado relevante o papel do cinema como objeto de identificação dos espectadores. Neste sentido, ver: XAVIER, Ismail. A janela da alma e a identificação, in O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 17-25. 71 Baseio-me, especialmente, nos textos de Michael Pollak publicados na Revista Estudos Históricos (v. 2, n. 3 e v. 5, n. 10) e nos trabalhos de outros autores que analisam a sua obra, como, por exemplo: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Filigranas da memória: história e memória nas comemorações do centenário de Canudos (1993 – 1997). Universidade de Brasília, Departamento de História, 2006, (Tese de Doutorado). 72 POLLAK, Michael, Memória, esquecimento, silêncio…, p. 4. 32

“memórias subterrâneas”73. Introduz, assim, um sentido político ao papel da memória, que passa a contribuir para fixar as relações de poder, já que cada memória coletiva atua no sentido de tentar impor a sua visão do passado sobre as outras.

Sob esta ótica, a memória perde o seu caráter consensual e passa a ser percebida no interior de um campo de disputas, de embates. Essa abordagem, como afirma Pollak, privilegia “os processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias”74. E são exatamente essas “batalhas de memória” que procurei investigar no interior do universo cinematográfico selecionado.

A partir do questionamento sobre quais memórias os filmes analisados procuram construir e difundir a respeito do regime militar, estou me filiando à perspectiva teórica de Pollak e considerando que não há uma memória única e homogênea para os filmes em questão. O mais correto seria falar na existência de uma diversidade de memórias sobre o nosso passado recente, diversidade esta que se revela desde a reprodução de estereótipos formulados pela “história oficial” da época sobre os militantes de esquerda, por exemplo, até a existência de visões mais complexas e menos maniqueístas.

Acerca dessa temática, cabe aqui reforçar que não se trata, no presente estudo, de realizar um julgamento sobre qual memória seria a mais compatível com o “real acontecido”. Já deve ter ficado evidente que compartilho de certas concepções da historiografia atual, segundo as quais não há meios de apreensão do passado tal como ele aconteceu, mesmo se tratando de um passado recente. Faço a ressalva, no entanto, que também não estou de acordo com a idéia de um relativismo absoluto, que considere qualquer versão como digna de constituir o discurso historiográfico. A procura de um rigor metodológico na análise das fontes, assim como a busca de uma aproximação com o passado analisado devem ser, a meu ver, uma preocupação constante e invariável no ofício do historiador. Roger Chartier, ao refletir sobre esta questão, deixa clara a sua opinião, da qual compartilho: “Não posso aceitar a idéia que está identificada com o pós-modernismo de que todos os discursos são possíveis porque remetem sempre à posição de quem o enuncia e nunca ao objeto” 75.

Retornando às discussões sobre a memória segundo as concepções de Michael Pollak, ainda é essencial destacar em suas reflexões a noção que ele constrói sobre o “trabalho de

73 Idem, Ibidem, p. 5. 74 Id.,Ibid., p. 5. 75 Entrevista concedida por Roger Chartier à pesquisadora Isabel Lustosa, na revista eletrônica Trópico. Disponível em: . Acesso em: jan. 2008. Ver também: MARTINS, Estevão de Rezende. O caráter relacional do conhecimento histórico, in COSTA, Cléria Botelho da (Org.). Um passeio com Clio. Brasília: Paralelo 15, 2002, p. 11-26. 33

enquadramento de memória”76. Segundo ele, toda memória coletiva tem como função manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo mantém em comum, marcando a sua identidade. Para isso, faz-se necessária a constituição de quadros de referências. É esse investimento que Pollak define como “trabalho de enquadramento da memória” e que, segundo ele, é mais evidente no processo de constituição da memória nacional, mas encontra- se presente em qualquer nível de memória coletiva. Nesta perspectiva, procurei investigar como os filmes analisados realizam o seu trabalho de enquadramento da memória, ou seja, quais são os mecanismos de que se utilizam para transmitir ao espectador a sua versão para a história que representam. O próprio Pollak atribui um significado especial ao cinema, enquanto espaço privilegiado para o trabalho de formação e organização da memória, como pode se observar através da seguinte afirmação:

Nas lembranças mais próximas, aquelas de que guardamos recordações pessoais, os pontos de referências geralmente apresentados nas discussões são... de ordem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores... Ainda que seja tecnicamente difícil ou impossível captar todas essas lembranças em objetos de memória confeccionados hoje, o filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel crescente na formação e reorganização e, portanto no enquadramento da memória. Ele se dirige não apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções77.

Finalmente, considero apropriado ressaltar no pensamento de Pollak a relevância que ele atribui ao papel do silêncio nos discursos de memória. Apesar de ter o seu foco mais dirigido para as entrevistas realizadas na perspectiva da historia oral, suas considerações a esse respeito serviram de base para a análise que desenvolvo na pesquisa, que teve como eixo as seguintes questões: o que os filmes se propõem a expor sobre o período do regime militar no Brasil? Quais temáticas são criticadas e/ou valorizadas para o período em questão? O que não foi mostrado? O que não foi colocado em discussão e por quais motivos?

Percebe-se, entre as questões elaboradas acima, que os silêncios que compõem as narrativas fílmicas analisadas foram objetos de relevo para a pesquisa. Como afirma Pollak, a memória é organizada em função das preocupações do presente, portanto, tudo aquilo que ela “grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização”78. Com isso, a função do “não-dito” torna-se reveladora dentro do universo cinematográfico que analiso. Assim como a câmera cinematográfica dirige o olhar do espectador para esse ou aquele detalhe, para um ou outro cenário, realçando ou escondendo

76 POLLAK, Michael. Memória e identidade social… 77 Idem. Memória, esquecimento, silêncio…, p. 11. [Grifos meus] 78 Idem. Memória e identidade social…, p. 5. 34

ações, gestos e emoções, a memória resultante desse trabalho também é intensamente dirigida e seletiva. Interessou-me, sobretudo, investigar os ocultamentos presentes nos filmes selecionados e as possíveis relações desses silenciamentos com os grupos que os produzem e com o tipo de memória que desejam construir.

No interior das reflexões relativas ao papel dos silêncios na constituição da memória coletiva, cabe mencionar, ainda que brevemente, o pensamento de Fernando Catroga, no sentido de buscar romper com as dissociações entre história e memória. Em seu artigo, Memória e História, o autor discute as relações entre a memória, o esquecimento e a escrita da história, mostrando que “a historiografia acaba por pedir emprestada alguma coisa à memória, apesar de todas as pretensões racionalistas contra esse contágio”79. Não pode o historiador, segundo Catroga, separar radicalmente memória e história, nem ter a ingenuidade de pensar que a história também não se edifica sobre silêncios e recalcamentos80. Tanto a memória como a história, conclui o autor, constituem re-presentificações, afloradas pelos vestígios do passado.

As discussões levantadas acima colocam em questão o papel do historiador e o do tratamento dado à memória no tempo presente. Para François Bédarida81, a história do tempo presente exige, mais do que as outras, uma responsabilidade social do historiador, baseada em uma exigência ética que deve se manifestar tanto no conteúdo de seu discurso histórico, quanto na busca que realiza para a construção desse discurso. Não obstante o reconhecimento de que a história não atinge a dimensão de verdade, assume o autor que a busca dessa verdade deve ser “considerada a regra de ouro de todo historiador digno desse nome”82. De fato, numa mistura complexa entre a subjetividade e a objetividade na elaboração do saber, o historiador do tempo presente tem em mãos uma história inacabada e em constante movimento de reescrita, o que a torna, ao mesmo tempo, mais polêmica e fascinante.

Concordo com o historiador Fernando Sá, quando ele afirma que o direito à memória constitui uma dimensão fundamental da cidadania83, principalmente em um país que adota a política do esquecimento no que se refere aos tempos ditatoriais, colocada em prática pela

79 CATROGA, Fernando. Memória e História, in PESAVENTO, Sandra J. (Org.). Fronteiras do Milênio. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2001, p. 58. 80 Idem, Ibidem, p. 57. 81 BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença da história, in FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & abusos da História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, p. 219-229. 82 Idem, Ibidem, p. 222. 83 SÁ, Fernando de Araújo. 40 anos do golpe: ditadura nunca mais! Cadernos UFS: História. Universidade Federal de Sergipe, v. 5, n. 6, p. 9-18, jan./dez. 2004, p. 17. A esse respeito, ver também: NUNES, José Walter. Patrimônios Subterrâneos em Brasília. São Paulo: Annablume, 2005. 35

conciliação da transição democrática e que, de certa forma, perdura até os nossos dias84. Por isso acredito que cabe ao historiador, com seu olhar crítico e (relativamente) distanciado, discutir os usos e abusos dessa memória (e de seus esquecimentos). Daí o meu interesse pelos filmes que se propõem a construir as memórias referentes aos anos sombrios da ditadura militar no Brasil.

84 Refiro-me, principalmente, à política institucional brasileira que sempre dificultou – ou simplesmente impediu – o acesso da sociedade a documentos que poderiam esclarecer aspectos polêmicos ocorridos nos anos de vigência do governo dos militares, como os crimes de tortura e o massacre da Guerrilha do Araguaia. Neste sentido, observa-se como exemplo o Decreto nº. 4.553, assinado pelo governo Fernando Henrique Cardoso (em dezembro de 2002) e mantido, com poucas reformas, pelo governo Lula (Decreto nº. 5.301, de 9 de dezembro de 2004) que possibilitou a renovação do sigilo para os documentos classificados como “ultra-secretos”. Cf.: . Acesso em: dez. 2008. 36

2. REPRESENTAÇÕES DOS GUERRILHEIROS E DA LUTA ARMADA NO CINEMA BRASILEIRO

…os derrotados de ontem, na luta aberta, podem ser os vitoriosos de amanhã, na memória coletiva (Daniel Aarão Reis Filho)

2.1 Uma breve apresentação

No ano de 1994, o diretor Sérgio Resende procura colocar em destaque a figura de um herói-guerrilheiro: o ex-capitão do Exército, Carlos Lamarca, comandante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), da Vanguarda Armada Revolucionária - Palmares (VAR- Palmares) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)85. O filme Lamarca concentra a sua trama narrativa nos dois últimos anos de vida desse importante membro de alguns grupos de guerrilha que se opuseram ao regime militar, vigente desde 1964. Isto significa mostrar os momentos em que Lamarca abriga-se em diversos “aparelhos urbanos”86, para depois refugiar-se no sertão árido da Bahia, no município de Brotas de Macaúbas, onde foi implacavelmente perseguido pelas forças de repressão, até o seu assassinato, em 17 de setembro de 1971. O filme registra ainda – através da ampla utilização do recurso de flashback – episódios específicos de sua vida, ainda na legalidade, como chefe de família e bom soldado e, posteriormente, já na clandestinidade, como um guerrilheiro obstinado e admirado por muitos, capaz de realizar grandes feitos – como o famoso caso do “roubo do cofre do Adhemar”87 –, e sempre ao lado de sua amada, a também guerrilheira, Iara Iavelberg.

85 Como se vê, Carlos Lamarca possuiu uma trajetória de militância na luta armada um tanto conturbada, mudando de organização revolucionária por três vezes. Também se deve considerar o fato de que muitas organizações clandestinas “dissolviam-se” e coligavam-se a outras com certa freqüência, dando origem a novos grupos, como foi o caso da VAR-Palmares, que se originou da VPR. Para maiores informações sobre grupos armados por onde Lamarca “passou”, ver: MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos (Orgs.). Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Boitempo/Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 392-424. 86 O termo “aparelho” refere-se aos locais onde se escondiam as pessoas que se encontravam na clandestinidade, por motivos políticos. A denominação era utilizada tanto pelos grupos guerrilheiros quanto pelas forças repressivas do Estado. 87 Em julho de 1969, a VAR-Palmares – grupo que Lamarca pertencia à época – realizou uma ação que foi caracterizada, pelas organizações clandestinas de esquerda, naquele momento, como a maior expropriação revolucionária da história, somando a cifra de 2,6 milhões de dólares. A ação, realizada no Rio de Janeiro, consistiu no assalto ao cofre da casa de um irmão de Ana Capriglioni. Tratava-se da conhecida amante do ex- governador de São Paulo, Adhemar de Barros e, ao que tudo indica, segundo algumas versões, seria a depositária das propinas guardadas por ele. Cf. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 53-57. 37

O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997) trata de uma das ações de maior divulgação da guerrilha urbana no Brasil: o seqüestro do embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, no Rio de Janeiro. Um grupo de jovens da classe média carioca – pertencentes à Dissidência Universitária da Guanabara, que seria rebatizada, nessa ação, com a sigla do MR-888 – planeja e executa o primeiro de uma série de atos de seqüestro, com objetivo de divulgar publicamente as suas idéias e, especialmente, de trocar os reféns por presos políticos. Em conjunto com a Ação Libertadora Nacional (ALN), o grupo rebatizado de MR-8 realizou o seqüestro, cuja duração foi de apenas quatro dias. A operação, entre a captura do alvo, a troca de militantes presos pelo refém e a fuga dos seqüestradores, teve sucesso. Contra uma ação desse porte, transcorrida na Semana da Pátria, sob o governo da Junta Militar, foi desencadeada intensa repressão. Baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira89, o filme é narrado, aparentemente, sob sua ótica, exaltando as atitudes e reflexões desse guerrilheiro.

Mais um guerrilheiro, agora lutando contra sua própria angústia: o confinamento no interior de um aparelho, de onde não pode se retirar, pois se encontra ferido após a troca de tiros com agentes da repressão. Essa é a história de Cabra-Cega (Toni Venturi, 2005), que tem sua trama desenvolvida basicamente por quatro personagens e um ambiente onde as ações transcorrem, que é o aparelho onde o guerrilheiro de codinome ‘Thiago’90 se recupera. O filme privilegia um enfoque bem intimista sobre a luta armada, ressaltando um guerrilheiro que “perdeu a ternura”, ao escolher o caminho da guerrilha, mas que tenta recuperá-la no transcorrer da trama.

Zuzu Angel foi uma costureira e estilista admirada e conhecida internacionalmente, nas décadas de 1960 e 1970. Era mãe de Stuart Edgar Angel Jones, jovem que ingressou na luta armada, passando a integrar o MR-8, atuando no grupo comandado por Carlos Lamarca91. O filme Zuzu Angel (Sérgio Resende, 2006) mostra a peregrinação de uma mãe para localizar o paradeiro de seu filho, preso pela repressão, e depois para provar que ele fora torturado e assassinado sob responsabilidade das Forças Armadas brasileiras. Com uma mistura de

88 Sobre as origens do MR-8, ver: GORENDER, Jacob. Golpe de Mestre: seqüestro do embaixador dos Estados Unidos, in Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 3. ed. São Paulo: Ática, 1987, p. 166-170. 89 GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 90 Entre os militantes integrantes da luta armada, era praticamente obrigatória a utilização de codinomes, como forma de proteção aos grupos clandestinos. No presente trabalho, os codinomes dos personagens cinematográficos serão representados entre aspas simples. 91 Sobre a participação de Stuart Angel no MR-8, ver MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos (Orgs.). Dos filhos deste solo..., p. 398-400. 38

temporalidades que revela diferentes estágios da consciência da protagonista, o filme evidencia a intensa crueldade e brutalidade das forças de repressão, em contraste com o amor de uma mãe que perde seu filho, primeiro para a militância política, depois para a ditadura. O tema da luta armada é colocado em outro filme através do olhar de uma criança. Sob o ponto de vista de Mauro, um menino de onze anos, o contexto da clandestinidade imposta pela política ditatorial torna-se, paradoxalmente, o mote central e ao mesmo tempo oculto no filme O ano em que meus pais saíram de férias (Cao Hamburger, 2006). Mauro se vê, repentinamente, obrigado a morar em outro estado do país, em um ambiente que lhe parece adverso e com pessoas que não conhece, já que seus pais “saíram de férias”. Ao mesmo tempo em que sofre com a ausência dos pais, no transcorrer da trama o menino amadurece e passa a conhecer melhor aquele ambiente que outrora lhe fora completamente estranho, tendo como ponto de articulação com o mundo: o futebol e a Copa de 1970.

Antes de iniciar a análise dos filmes, aqui brevemente descritos, acrescento um pequeno parêntese para explicitar uma questão de ordem narrativa no presente trabalho. Quando me referir, ao longo do texto, à autoria de uma obra cinematográfica, pressuponho que a mesma se constitui não somente pelo diretor/cineasta, mas por todo o meio cinematográfico envolvido na produção da obra: roteiristas, produtores, operadores de câmera, atores, diretores de arte, de fotografia, figurinistas etc. Apenas para facilitar a narrativa, utilizarei mais o nome do diretor e/ou do roteirista quando quiser me referir ao aspecto da autoria, sem desconsiderar, contudo, que um filme é sempre o resultado de um empreendimento coletivo.

2.2 Em cartaz: os guerrilheiros e a luta armada

A permanência do regime militar no Brasil, compreendendo os anos de 1964 a 1985, não foi um período tão longo em nossa história, se comparado, por exemplo, à existência da escravidão africana. Não se trata, porém, de um momento curto e irrelevante (se é que existem momentos irrelevantes na história de um país). Vinte e um anos de um governo regido pelos militares abrange um período responsável pelo surgimento e desenvolvimento de inúmeros aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais que caracterizaram, positiva ou negativamente, aquele momento histórico.

Apesar da produção cinematográfica brasileira possuir inúmeras possibilidades de abordagens temáticas relacionadas ao período do regime militar brasileiro, predomina nas 39

telas o mote dos opositores mais radicais ao governo daquela época, especialmente daqueles que pegaram em armas para tentar destituir os militares do poder, ou seja, aqueles que ingressaram na luta armada. Os cinco filmes analisados tratam, por diferentes ângulos, da figura do guerrilheiro (rural ou urbano). Outros filmes – que ficaram de fora da seleção adotada na presente pesquisa – também possuem os guerrilheiros e a luta armada como temas principais de sua trama, como Dois córregos (Carlos Reichenbach, 1999), Ação entre amigos (Beto Brant, 1998), Quase dois irmãos (Lúcia Murat, 2004), Araguaya, a conspiração do silêncio (Ronaldo Duque, 2004) e Batismo de Sangue (Helvécio Ratton, 2007), só para citar alguns exemplos.

Neste sentido, já se percebe, no interior da cinematografia brasileira atual, uma grande preocupação em se ressaltar a figura do guerrilheiro, em colocá-lo em evidência nas telas, consolidando na memória sobre o período a atuação desses atores sociais, em detrimento de outros. Não quero dizer, com isso, que a participação dos grupos de guerrilha no processo de oposição à ditadura não tenha sido significativo e que não mereça destaque na constituição da memória de nosso passado recente. A questão que coloco na presente pesquisa é o fato de que outros atores sociais poderiam dar origem a narrativas cinematográficas igualmente interessantes, como por exemplo: pessoas que não simpatizavam com o regime, mas que também não atuavam efetivamente contra o mesmo; ou então membros que pertenciam ao Exército brasileiro, mas que não compactuavam com a ditadura; ou também grupos civis responsáveis pelo financiamento do regime; ou ainda pessoas que eram condescendentes com a ditadura, a ponto de delatarem conhecidos etc. Haveria ainda a possibilidade de se tratar de outras temáticas, inseridas no contexto do regime militar, como a questão do “milagre econômico” e seus reflexos (positivos ou negativos) sobre a sociedade; a existência de uma cultura militante efervescente, pelo menos até a implantação do AI-5; a questão da censura política que se abateu sobre diversos órgãos públicos e privados etc. Enfim, outros olhares sobre o período seriam possíveis de serem representados, mas geralmente são relegados a segundo plano em nossa cinematografia92. O que se constata, portanto, é uma supremacia da temática da luta armada no cinema, sendo o guerrilheiro geralmente o personagem principal da trama, como se pode observar nos enredos fílmicos apresentados acima.

Tal constatação aponta para a erupção, no cinema brasileiro, de memórias subterrâneas que foram silenciadas em outros âmbitos de reelaboração do nosso passado recente, tanto no

92 É bem verdade que, através de personagens secundários ou mesmo sem quase nenhuma importância na trama narrada, os exemplos acima apontados acabam sendo retratados em nosso cinema. Mas, é bom ressaltar, estes estão sempre relegados a personagens e/ou situações secundárias em relação ao personagem/situação principal. 40

próprio período ditatorial quanto no contexto pós-ditadura. Aqueles que foram derrotados pela indiscutível organização e superioridade bélica do governo militar, são agora personagens principais das memórias em luta sobre esse período, pelo menos nas telas de cinema do país.

Como procura mostrar o historiador Daniel Aarão Reis, na epígrafe que abre o presente capítulo, nem sempre os que vencem no campo de luta conseguem repetir o feito no embate de memórias que se estabelece posteriormente93. Isto se explica, em parte, pelo fato de que o regime militar brasileiro foi substituído, mesmo que lenta e gradativamente, por governos que reuniram em seus quadros atores sociais que durante aquele período se opuseram de forma contundente ao regime, sendo alguns, inclusive, ex-guerrilheiros e militantes que agiram na clandestinidade, que foram perseguidos, presos e torturados. Não somente na esfera da política institucional, mas também em entidades civis, no meio artístico, jornalístico e intelectual, observa-se a presença de ex-militantes das esquerdas da época, que agora atuam, de certa forma, como “formadores de opinião”, o que significa participarem do processo de reelaboração do passado do qual foram sujeitos ativos e também testemunhas oculares.

Falar em predominância da temática da luta armada no cinema brasileiro pós-ditadura não significa, no entanto, pensar numa homogeneidade na forma de representação da figura do guerrilheiro. Contrariamente, o que se observa através da análise dos filmes selecionados é uma diversidade de representações – o que significa igual diversidade de significados possíveis para esse ator social – responsável pela produção de imagens do guerrilheiro (e da luta armada) que vai desde a reprodução de estereótipos formulados pela história oficial da época ditatorial, passando pela mitificação do guerrilheiro (retratado como herói), até a construção de personagens bem mais complexos e humanizados. Essa variedade reflete, sem dúvida, o embate de memórias que se observa no cinema e em outros âmbitos sociais e que se relaciona às preocupações do presente em elaborar um passado que lhe legitime perante o futuro.

Tratando, ainda, dos pontos em comum observados nas películas analisadas, chama a atenção o fato de que, no interior do período governado pelos militares, os cinco filmes abordam um espaço temporal significativamente restrito: de 1969 a 1971. O seqüestro do embaixador Charles Elbrick se deu em setembro de 1969; os dois últimos anos da vida de

93 REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória, in REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Orgs.). O golpe e a ditadura militar. 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: EDUSC, 2004, p. 30. 41

Lamarca (período retratado no filme) foram os de 1970 e 1971; a saga do menino Mauro acontece no ano da Copa do Mundo de 1970; Zuzu Angel tem seu filho preso e assassinado em 1971 e o guerrilheiro ‘Thiago’ permanece confinado em um aparelho também no ano de 197194.

Percebe-se, nesta recorrência temporal, uma opção pelos anos de maior intensidade das ações guerrilheiras. Após 1971, a grande maioria dos grupos de guerrilha urbana já estava desmantelada ou em pleno declínio, fosse devido à eficácia das forças de repressão do Estado brasileiro, fosse pelas dissidências internas e pelo exílio forçado a que grande parte de seus membros recorreram, ou ainda pelo grau de isolamento em que se situaram em relação ao restante da população. Nesse período posterior, somente a guerrilha rural ocorrida na região do Araguaia95, organizada pelos membros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), exerceu um papel de peso entre as atuações dos grupos de guerrilha96. Mesmo resistindo por alguns anos, o grupo guerrilheiro que atuou no Araguaia foi praticamente dizimado pela Forças Armadas, no ano de 1975 e, a partir de então, praticamente inexistiram focos de guerrilha urbana ou rural no país.

Escolher os anos de maior intensidade das ações guerrilheiras e da repressão desencadeada sobre as mesmas não se trata de um fato ocasional. Certamente que esse período apresenta-se como mais cinematográfico do que outros, no sentido de que ações mais expressivas e arriscadas produzem histórias mais impactantes para o espectador. Por outro lado, essa escolha contribui para difundir uma determinada representação da luta armada concentrada em suas atitudes mais extremadas e, principalmente, no aspecto derrotista desta luta. Todos os seqüestradores do embaixador norte-americano foram, logo depois da ação, presos ou assassinados. Lamarca termina sua aventura fugitiva fuzilado no sertão baiano, ao lado de seu companheiro Zequinha. ‘Thiago’, juntamente com ‘Rosa’ e Pedro, partem corajosamente em direção à morte, na última cena do filme. O pai de Mauro não retorna nunca mais de suas “férias”. E Zuzu Angel, além de perder seu filho, assassinado nas dependências da Base Aérea do Galeão (no Rio de Janeiro), sofre um atentado que provoca a sua morte em um acidente de automóvel97.

94 Fato que se constata, em Cabra-Cega, na cena em que a TV noticia a morte de Carlos Lamarca. 95 Especificamente na região Sul e Sudeste do estado do Pará, limitando-se com o norte do estado de Tocantins (à época estado de Goiás) e oeste do estado do Maranhão. 96 A narrativa cinematográfica da Guerrilha do Araguaia foi produzida, no ano de 2004, pelo diretor Ronaldo Duque, dando origem ao filme: Araguaya: a conspiração do silêncio. 97 Zuzu Angel dirigia o seu automóvel, na noite do dia 14 de abril de 1976 e, quando saía do túnel do Morro Dois Irmãos, em São Conrado (RJ), sofreu uma violenta fechada que fez seu carro capotar, levando-a a morte. Em 25 42

Segundo Maria Luiza Rodrigues Souza98, o tom de derrota e o sentido trágico que predominam nas narrativas cinematográficas brasileiras fazem parte de uma política do esquecimento em relação às vítimas da ditadura, com o intuito de não se aprofundarem as discussões a respeito das possíveis reparações àqueles que sofreram algum grau de repressão e supressão de direitos por conta do regime militar, pois, de acordo com Souza:

Ao repetir as cenas de morte de quem se opôs à máquina ditatorial, os filmes reiteram, nas telas, um passado fechado, encerrado […] O olhar fílmico sobre o passado está dizendo que, com a derrota, não há mais necessidade de reparação da violência ditatorial. Quem lutou, sucumbiu; a luta é desnecessária. A partir dos filmes, se desdobra uma tônica de esquecimento, não como perdão, o qual exige reparação e condições para julgamento dos atos extremos cometidos, mas como apagamento.99

Acredito que haja um grau de pessimismo nas conclusões da autora sobre o sentido derrotista exaltado nos filmes em questão, pois a morte de opositores da ditadura não significa, obrigatoriamente, a impossibilidade de busca de reparações posteriores, senão para as vítimas assassinadas, pelo menos para seus familiares. O que vem se observando, nos últimos anos, é um crescimento gradativo das investigações dos casos de violência cometidos no período ditatorial, promovidas principalmente pelos familiares das vítimas e por organizações não governamentais de direitos humanos – como o grupo Tortura Nunca Mais –, que, juntamente com órgãos do governo100, estão conseguindo elucidar muitos casos não revelados pelas Forças Armadas e, com isso, promovendo a concessão de indenizações reparadoras às vítimas e aos familiares de mortos e desaparecidos políticos101. Além disso, nem todos os filmes brasileiros sobre a ditadura demonstram o fim trágico – a morte – dos guerrilheiros, como se isto fosse o caminho inevitável naquela ocasião. Filmes como O que é isso, companheiro?, O ano em que meus pais saíram de férias, Araguaya: a conspiração do silêncio, Batismo de Sangue e Quase dois irmãos, apenas para citar alguns exemplos, tratam de guerrilheiros que conseguiram escapar da repressão, ou que foram presos, torturados, mas que não pereceram nas mãos da ditadura. Muitos ex-guerrilheiros estão, nos dias de hoje,

de março de 1998, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, do Ministério da Justiça, reconheceu que a estilista foi vítima de um atentado político. 98 SOUZA, Maria Luiza Rodrigues. Um estudo das narrativas cinematográficas sobre as ditaduras militares no Brasil (1964 – 1985) e na Argentina (1976 – 1983). Departamento de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade de Brasília, 2007, (Tese de Doutorado). 99 Idem, Ibidem, p. 189. 100 Refiro-me, aqui, especialmente à Comissão Especial da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), criada por determinação da Lei nº 9140, de 4 de dezembro de 1995. 101 Os processos reparatórios e as investigações referentes às vítimas da ditadura militar podem ser consultados no site do grupo Tortura Nunca Mais. Disponível em: , além do site oficial da SEDH/PR: . 43

atuando na sociedade como artistas, intelectuais, profissionais liberais ou mesmo ocupando importantes cargos governamentais.

A meu ver, a recorrência à temática da derrota dos grupos de guerrilha – seja através dos assassinatos, prisões, torturas, exílios etc. –, sem dúvida predominante na cinematografia sobre o regime militar, deve-se muito mais à necessidade de exaltação e valorização daqueles que mais sofreram as arbitrariedades impostas pelo regime militar. Estaria ocorrendo a necessidade de se expor, nas telas, a dor daqueles que mais sofreram o terrorismo de Estado102, já que agora, sob a vigência da democracia no país, não haveria mais riscos para a exibição dessa memória traumática. Observa-se, desta forma, o que Paul Ricoeur chamou de “política de justa memória”, concedendo às vítimas da história o “dever de memória” que lhes é de direito e onde aos testemunhos se impõem a missão de relembrar suas experiências, como forma de condenar as atrocidades sofridas e evitar a sua repetição no futuro103.

Certamente que essa intensa exposição da memória de um evento traumático para seus protagonistas – as vítimas da repressão do regime militar – não acontece, no cinema ou em qualquer outro tipo de manifestação, sem conflitos e embates. Existem aqueles que desejam relembrar o máximo possível, para que se evitem as repetições desse passado sombrio. Mas também existem os que desejam uma política do esquecimento, que faça a sociedade brasileira “virar essa página” de nossa história, como foi o caso de muitos condutores da transição democrática, que preferiram adotar uma postura conciliatória com o regime militar. No cinema brasileiro, encontram-se representantes dessas duas vertentes de reconstrução de nosso passado recente, como veremos a seguir.

102 A expressão “terrorismo de Estado” aplica-se ao momento em que o governo brasileiro institucionalizou as práticas violentas contra os opositores do governo, executadas anteriormente de forma isolada e clandestinamente pela extrema direita militar, também conhecida como “linha-dura”. A partir de dezembro de 1968, com as prerrogativas do AI-5 e com a ascensão de membros da chamada “linha-dura” aos altos escalões do governo, o Estado brasileiro suprimiu os resquícios democráticos remanescentes e passou a agir com total autonomia e concentração de poderes, aperfeiçoando os órgãos de investigação, responsáveis pela prática de tortura. Cf. GORENDER, Jacob. Turbulências de 68 e fechamento ditatorial, in Combate nas trevas..., p. 141- 152. 103 Cf. SILVA, Helenice Rodrigues da. Rememoração/comemoração: as utilizações sociais da memória, Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, 2002, p. 435-437. A autora comenta, nesse artigo, o pensamento de Paul Ricoeur no que se refere ao processo atual de manipulação da memória coletiva através das comemorações. 44

2.2.1 Um herói brasileiro

No filme Lamarca, de Sérgio Resende (diretor e roteirista) e Alfredo Oroz (roteirista), o personagem-título é retratado como o próprio herói quixotesco104. Atua praticamente sozinho, de acordo unicamente com as suas convicções (e não com as do grupo ao qual pertence) e, da forma como o filme conduz sua narrativa, praticamente não se compreendem os motivos que levaram o capitão do Exército, Carlos Lamarca, ao voluntarismo guerrilheiro, tornando-se mais uma luta pessoal do que política. A própria escolha dos autores em representar certos aspectos da trajetória social e política de Lamarca, fixando a narrativa em seus últimos dois anos de vida, 1970 e 1971, já demonstra uma opção pela exaltação da trajetória individual desse guerrilheiro, ao mesmo tempo em que procura demonstrar o processo de isolamento da luta armada. Desta forma, destacando apenas esse momento da história de Lamarca, perde-se de vista o sentido pleno de suas ações, assim como o quadro de referência histórica, que poderia explicar melhor, por exemplo, a sua convicção na guerrilha rural, baseada no modelo cubano do foco guevarista105. Reforça-se, assim, a construção do mito de Lamarca como um herói guerrilheiro. Mas não um herói qualquer, e sim aquele que acaba transformando o combate político em luta pessoal (até mesmo pela sua sobrevivência).

Um momento emblemático para a construção do mito do herói ocorre logo na primeira cena em que Lamarca (interpretado por Paulo Betti) aparece. Trata-se da ação do seqüestro do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher, que ocorrera em dezembro de 1970; ação executada por membros da VPR, tendo Lamarca no comando das operações. Diante da recusa do governo em conceder liberdade aos setenta presos políticos, além de outras exigências, o grupo de seqüestradores discute a hipótese de “justiçar” o embaixador. Nesse momento, o filme destaca a veemente fala de Lamarca que, com uma postura de humanidade e compaixão (em contraposição à dura postura política e coletiva do grupo), assim define a questão:

LAMARCA: _ Um guerrilheiro tem que ter coragem de morrer e tem que ter coragem de matar. Precisa saber a hora certa de fazer as duas coisas. [A câmera enquadra Lamarca no centro da cena, aproxima-se progressivamente de seu rosto e mostra, ao fundo, em segundo plano, o retrato de Che Guevara].

104 Essa expressão foi apropriada por Luiz Zanin Oricchio, ao tratar do personagem citado. ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo. Um balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 111. 105 Lamarca inspirava-se nas teses de Che Guevara e Régis Debray, que defendiam a estratégia de foco guerrilheiro, onde um pequeno grupo de homens bem treinados e bem armados, atuando em região rural, poderia desencadear um processo revolucionário, em seguida despertando as massas para a insurreição. Ver: MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo..., p. 416. 45

E, diante das reclamações do grupo, que desejava cumprir o justiçamento:

LAMARCA: _ É isso que a repressão quer: nos jogar contra a massa! O grupo reforça que essa não era a posição do Comando (da VPR), nem do grupo.

LAMARCA: _ Mas é a minha! É uma decisão política... e militar! Como comandante da operação, eu decido, mesmo contra a vontade da maioria. Nós vamos fazer uma nova lista de prisioneiros...

Não cabe, aqui, discutir se esses diálogos e, principalmente, se essa atitude adotada por Lamarca, ocorreu realmente, no passado. Há outras fontes que apontam para a indecisão de Lamarca quanto ao destino do embaixador, enquanto no grupo apenas ‘Felipe’ (codinome de Alfredo Sirkis) teria se posicionado pela preservação da vida de Bucher. Somente após muito tempo de reflexão, é que Lamarca teria, enfim, concordado com os argumentos de Sirkis106. A questão a se problematizar, portanto, é a opção de Sérgio Resende ao escolher essa versão para ser exibida nas telas. Por que mostrar um homem indeciso, em conflito, se Lamarca pode ser lembrado como um homem de decisões fortes, coerentes e indefectíveis, como o representado no filme?

Em outra cena, ainda no início da trama – ou seja, na parte em que os personagens estão sendo apresentados ao espectador, para que este conheça as características que configuram cada um deles – há novamente o embate entre Lamarca e seu grupo, com o reforço das posições individuais do comandante. Nela, Lamarca participa de um diálogo com representantes de sua organização armada, discordando, mais uma vez, da posição de outros líderes do grupo que queriam retirá-lo do país, diante do risco de ser capturado pelas Forças Armadas. Nesta cena, como na apontada anteriormente, observa-se a existência de uma forma discursiva recorrente no cinema – principalmente de acordo com o modelo norte-americano –, onde o herói coloca-se sempre contra a vontade da maioria e/ou de seus superiores hierárquicos. O verdadeiro herói, nessa visão, é aquele que atua através de ações individuais e não coletivas107. O filme Lamarca celebra o herói-indivíduo e não os grupos armados de esquerda, que se caracterizaram, entre outras coisas, pela forma organizacional intensamente marcada pelas ações coletivas.

Ressalta-se ainda como as falas do protagonista, durante praticamente toda a película, possuem um teor didático e panfletário – beirando a artificialidade –, como se a todo momento ele estivesse fazendo um discurso político, ou nos explicando a trama que se passa

106 GASPARI, Elio. A ditadura escancarada..., p. 341-343. 107 Os filmes de ação hollywoodianos, de um modo geral, são exemplares nesse sentido e o filme de Sérgio Resende dialoga, inevitavelmente, com essa linguagem cinematográfica. 46

nas telas. O que se vê é um personagem unidimensional, sem defeitos e indecisões que o levem a tomar atitudes erradas; quase uma caricatura (como, aliás, geralmente se configuram os mitos).

A opção narrativa do cineasta, portanto, atua constantemente nesse sentido de valorização do indivíduo sobre a coletividade. Como mais um exemplo, destaca-se o recurso de flashback que é usado em diversos momentos ao longo do filme. A utilização desse recurso de montagem poderia apresentar a possibilidade de inserção de cenas que, de alguma forma, relacionasse a trajetória de Lamarca ao contexto da luta armada no país, em um período de recrudescimento da ditadura militar. No entanto, o autor faz a sua opção, ao preferir mostrar – nas cenas em flashback – momentos de Lamarca com a família, como bom filho, pai e marido, ou ainda como excelente militar, que agia de maneira íntegra, competente e dedicada108. Cenas que nos revelam o quanto de sacrifício pessoal foi empreendido em nome de uma causa. Causa esta que, contrariamente, não é muito bem revelada ou exposta no filme. Este silêncio, como já demonstrou Michael Pollak, não é algo acidental, denotando como a memória é seletiva e como o “não-dito” faz parte deste processo de construção109. Solidifica- se na memória construída pelo cinema a mitificação de um herói-guerrilheiro e silenciam-se, nessa mesma memória, os fatores que levaram centenas de brasileiros a pegarem em armas para lutarem contra uma força desproporcionalmente superior e mais estruturada.

Há uma outra seqüência que exalta, exageradamente, a coragem e o espírito combativo de Lamarca, destacando a sua bravura e, consequentemente, o seu heroísmo. O protagonista está relatando aos companheiros de guerrilha, num acampamento clandestino em Buriti Cristalino, a sua fuga do Vale do Ribeira (interior de São Paulo), no ano de 1970110, episódio este revelado em flashback. Ao mencionar a chegada de uma tropa em um caminhão do Exército, à noite, a câmera fecha o plano em Lamarca atirando com um fuzil.

108 Também há no filme outras cenas em flashback, mostrando momentos de Lamarca agindo juntamente com seu grupo de guerrilha, como no caso do roubo do cofre do Adhemar de Barros e a fuga do Vale do Ribeira. Porém, essas situações são numericamente bem inferiores ao tipo de cena acima descrita. 109 Cf. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Trad. Dora Rocha Flaskman. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. 110 Após o assalto ao cofre de Adhemar de Barros (julho de 1969), a VAR-Palmares capitalizou-se e com isso estruturou – já coligada com alguns membros da VPR – um campo de treinamento nas matas de Jacupiranga, na região do Vale do Ribeira, de onde pretendia iniciar a guerrilha rural. Quando o Exército descobriu, em abril de 1971, empreendeu uma verdadeira operação de guerra, deslocando cerca de 1500 homens para o local. Apenas quatro dos dezessete militantes que estavam no local foram presos e Lamarca conseguiu escapar, sendo a operação militar considerada um fracasso. 47

Fig. 1 - Típica cena de ação em estilo hollywoodiano

Observa-se uma alternância de enquadramento, entre o plano médio e o close-up111 no ator, que se vira na direção dos espectadores, expondo dramaticamente as suas expressões faciais. Por trás do personagem, há uma imensa fogueira que preenche praticamente todo o campo da cena. É quase impossível não lembrarmos dos filmes de ação hollywoodianos, onde esses recursos são vulgarmente utilizados para impactar o público. É interessante destacar, ainda, que a intensa utilização do close-up permite à produção do filme centrar a atenção do espectador naquilo que ele pretende. Como afirma o teórico de cinema, Hugo Munsterberg, “O close-up supre as explicações”112. Mais do que isso, esse recurso geralmente é utilizado como uma das técnicas cinematográficas que permite a identificação entre personagem e espectador, conforme nos informa Alain Bergala:

Não há dúvida de que existe, nessa variação do tamanho dos atores na tela, nessa proximidade maior ou menor do olho da câmera em relação a cada personagem, um elemento determinante quanto ao grau de atenção, de emoção compartilhada, de identificação com este ou aquele personagem.113

Reforçando o aspecto individualista do protagonista, outra cena em flashback demonstra um único momento de fraqueza de Lamarca, porém com a intenção de ressaltar o seu lado amoroso, em relação a Iara Iavelberg (interpretada por ). Questionado por um companheiro, que reclama da presença de sua amante nos treinamentos na mata de Jacupiranga (afinal, todos os guerrilheiros haviam deixado seus familiares para trás), Lamarca responde:

111 Plano médio (ou de conjunto): quando a câmera mostra o conjunto de elementos envolvidos na ação (figuras humanas e cenário). Close-up (ou primeiro plano): quando a câmera apresenta apenas um rosto, ou outro detalhe, que ocupa praticamente toda a tela. XAVIER, Ismail. A decupagem clássica, in O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 27-39. 112 MUNSTERBERG, Hugo. Photoplay: a psycological study, in XAVIER, Ismail (Org.). A Experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal / Embrafilme, v. 5, 1991, p. 34. 113 BERGALA, Alain. A dupla identificação no cinema, in AMOUNT, Jacques et al. A estética do filme. 5. ed. Campinas: Papirus, 2007, p. 274. 48

LAMARCA: _ Eu tentei evitar, sufocar. Mas toda a minha disciplina, todo o meu esforço, foi tudo inútil.

Quando Lamarca erra e demonstra fraqueza, erra por amor. E, mais uma vez, toma uma atitude individualista perante o grupo.

Aproveitando a menção a Iara Iavelberg, codinome ‘Clara’, faço um parêntese para destacar a construção desse personagem. Também uma guerrilheira, que se inicia na oposição ao regime através do movimento estudantil, Iara é apresentada no filme como alguém que simplesmente segue os passos de Lamarca pelo amor que nutre por ele, e não por suas convicções políticas. Em nenhum momento Sérgio Resende concede algum espaço para demonstrá-la atuando efetivamente na militância revolucionária, como por exemplo, incluindo alguma cena de Iara lecionando marxismo no Vale do Ribeira, atitude reiterada em outras fontes históricas114. Percebe-se, mais uma vez, um esvaziamento das motivações políticas, em detrimento de outros aspectos, geralmente mais voltados para atitudes de caráter individual.

Outra forma de construção do mito de Lamarca se dá através da elaboração de analogias, que se estruturam no filme tanto em nível imagético quanto sonoro. Nos dois níveis, a comparação se dá entre o guerrilheiro e Jesus Cristo. Na primeira vez, a comparação revela-se de forma explícita, através de um diálogo entre dois participantes da operação de captura a Lamarca, a denominada Operação Pajussara115. No rastro de Lamarca, os militares encontram um livro, deixado para trás pelo guerrilheiro, causando indignação no Major:

MAJOR: _ Ele agora se sente um deus; imortal. TENENTE: _ Tá mais pra Jesus... pregando no deserto. Aliás, Major, ele tem 33 anos... a idade de Cristo.

Na outra cena (presente na última seqüência do filme), através de um simbolismo nada sutil, Lamarca dorme sob a sombra de uma árvore, minutos antes de seu assassinato, em uma posição sugestiva: com os braços esticados sobre um tronco de madeira, assemelhando-se a uma crucificação. A relação é estabelecida através do ângulo de posicionamento da câmera, que se dispõe sobre o corpo de Lamarca, focando-o de cima pra baixo (ângulo denominado plongée).

114 Ver GASPARI, Elio. A ditadura escancarada..., p. 342. Também é mencionada a profunda formação teórica e política de Iara Iavelberg, em: JOSÉ, Emiliano; MIRANDA, Oldack. Lamarca. O capitão da guerrilha. 5. ed. São Paulo: Global Editora, 1981, p. 58. Trata-se, inclusive, do livro que serviu de principal fonte de pesquisa para o filme de Resende. 115 A operação foi comandada pelo então Major Nilton de Albuquerque Cerqueira, chefe da 2ª Seção do estado- maior da 6ª Região Militar, comandante do Destacamento de Operações de Informações (DOI) de Salvador. 49

Fig. 2 - Lamarca descansa sobre um tronco de árvore, minutos antes de sua morte

Cabe mencionar ainda o interessante tratamento que Sérgio Resende concede ao desconhecimento, à omissão e até mesmo à conivência da sociedade brasileira em relação à ditadura militar. Várias cenas são inseridas no sentido de demonstrar que a população em geral desconhecia ou não aprovava os movimentos das esquerdas, especialmente da luta armada. A delação voluntária aparece no filme em mais de uma situação. Interessa realçar que, de forma crítica, o filme demonstra que muitas vezes a delação não ocorria por uma questão de convicção ideológica por parte do delator, mas sim por desconhecimento e também pelas estratégias elaboradas pelos militares para incentivar esta prática. Uma cena emblemática, neste sentido, apresenta três sertanejos conversando após o Exército ter passado pelo vilarejo à procura de informações do paradeiro de Lamarca, oferecendo mil cruzeiros para quem informasse sobre algo a respeito:

HOMEM 1: _ Parece o esquadrão da morte. HOMEM 2: _ Ele falou em comunista. Que diabo é isso? HOMEM 3: _ É um bicho que vale mil cruzeiros. Dá para comprar uma mula boa.

O filme Lamarca ainda apresenta outro aspecto de relevo a ser considerado no processo de elaboração da memória cinematográfica que se deseja construir sobre a figura do guerrilheiro. Refiro-me ao fato de que a obstinada perseguição a Lamarca é representada no filme como um ato de interesse praticamente restrito ao Exército brasileiro, mais especificamente ao Major Nilton Cerqueira (interpretado por José de Abreu), que comandara a operação. Em um diálogo entre Cerqueira e um tenente, fica explícito que o grande sentido 50

da caçada a Lamarca resumia-se ao desejo de vingança do Major, conforme se observa em sua fala:

MAJOR: _O que me deixa louco é lembrar que ele [Lamarca] foi um dos nossos. Andou no meio da gente, fez os mesmos cursos, os mesmos treinamentos, nos mesmos quartéis. Sentou na nossa mesa e tramou contra nós. Ele vai ter que pagar por isso. Vai ter que pagar pela traição.

Não é difícil supor que o fato de Lamarca ter saído das fileiras do Exército tenha realmente gerado um sentimento particular de desforra por parte de seus membros, responsáveis pela operação de caça a Lamarca. Porém, o foco que é dado a esta questão da vingança, pelos autores do filme, desfoca, por sua vez, as relações entre as perseguições aos guerrilheiros e o governo militar. Como se estas perseguições não fizessem parte de uma política de Estado, que visava desmantelar as organizações revolucionárias existentes na época e que, a partir do ano de 1968, concentrou intensos esforços no sentido de reprimir e sufocar a luta armada no país. A “caçada” a Lamarca, principal líder guerrilheiro naquela época (desde a morte de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira116), inseria-se, portanto, em um processo mais amplo, onde o governo brasileiro, através da doutrina de segurança nacional, concebia o combate ao “terrorismo” como uma questão de “guerra interna”, concedendo plenos poderes a todas as Forças Armadas e à polícia militar – e não somente ao Exército – para o combate à guerrilha.

Como se vê, não há muito interesse, por parte dos autores do filme, em aprofundar as responsabilidades do governo militar no processo de aniquilamento dos quadros que compunham os grupos armados brasileiros naquela época. Trata-se de uma opção que deixa apenas para alguns membros do Exército o papel de “vilão”, responsáveis pelo fim do “mocinho” Lamarca. Percebe-se, desta forma, que o cinema brasileiro do início da década de 1990 (o filme foi lançado em 1994 e suas filmagens começaram em 1992117), apesar de conseguir expor nas telas a “voz dos vencidos” no período de governo ditatorial, – seja por falta de condições, ou mesmo de intenções –, deixou de aprofundar e problematizar o papel do Estado brasileiro no processo de aniquilamento das oposições mais radicais, como os grupos de guerrilha urbana e rural existentes na época.

116 Ambos dirigentes da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e assassinados em 1969. 117 Cf. ROSSINI, Miriam. Filme histórico e identidade nacional: o exemplo de Lamarca. INTERCON – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXIV Congresso Brasileiro de Comunicação. Campo Grande/MS, setembro de 2001. Disponível em: . Acesso em: fev. 2007. 51

Ao se destacar os aspectos silenciados pelo filme, é importante reafirmar que, ao descrever uma história baseada em episódios reais, o cineasta realiza uma série de opções a serem expostas na tela, em detrimento de várias outras possibilidades, já que a história de Lamarca possui, obviamente, muito mais elementos do que os selecionados pelo diretor. E o mais interessante a enfatizar é justamente o fato de que essa seleção não se dá ao acaso, ou meramente por uma escolha estética. Há, sem dúvida, escolhas ideológicas, conscientes ou não, que revelam as intenções dos produtores da obra cinematográfica, como demonstra Marc Ferro118. Um bom exemplo deste silêncio que pode nos “dizer” muita coisa situa-se na escolha do diretor ao mostrar o episódio em que Lamarca e alguns companheiros do Exército conseguem retirar clandestinamente armas do Quartel de Quitaúna, onde Lamarca servia. O que não é mostrado no filme é que, logo após esse grande feito de Lamarca, há um sério desentendimento entre ele e Carlos Marighella, líder da ALN. As armas haviam sido entregues, provisoriamente, à referida organização, que tinha melhores condições de armazená-las. No momento de devolvê-las à VPR, Marighella resolve ficar com as mesmas, originando uma hostilidade permanente entre os dois líderes119. Cabe questionar, aqui, por que o cineasta fez a opção por não relatar esse episódio subseqüente ao roubo das armas, também presente no livro que serviu de fonte para o filme. Talvez tivesse a intenção de omitir as discordâncias políticas entre as organizações armadas brasileiras, por mais comuns que elas fossem. Ou ainda para não revelar o conflito entre dois mitos revolucionários – Carlos Lamarca e Carlos Marighella – opondo-se e brigando entre si; afinal, parece que mitos não cometem erros, nem atos despropositados120.

Vale destacar ainda – não apenas como mera curiosidade, mas como indicativo do poder ideológico do cinema enquanto dispositivo de memória social – o fato de que, à época do lançamento do filme, o Major Nilton Cerqueira impetrou um mandato de segurança, tentando impedir a estréia de Lamarca121, contestando principalmente a versão das condições de seu assassinato. Cerqueira era, em 1994, Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Fracassado em sua tentativa, o major calou-se diante da nova versão cinematográfica

118 FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 119 Com a mediação “diplomática” de Joaquim Câmara Ferreira, cada uma das organizações ficou com metade das armas. Para maiores detalhes deste episódio, ver: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas..., p. 133-135. Ver também: MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos (Orgs.). Dos filhos deste solo..., p. 53. 120 A historiadora Denise Rollembeg defende a tese de que esses dois integrantes da luta armada acabaram se constituindo nos dois grandes mitos brasileiros das esquerdas revolucionárias, à época do regime militar, permanecendo até os dias atuais com tal atributo no imaginário coletivo. Ver: ROLLEMBERG, Denise. Carlos Marighella e Carlos Lamarca: memórias de dois revolucionários, in FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão (Orgs.). Revolução e democracia. (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 73-98. 121 Esse fato está relatado na entrevista da produtora do filme, Mariza Leão, contida nos Extras do DVD Lamarca e também em ORICCHIO, L. Zanin. Cinema de novo..., p. 113. 52

de um episódio do qual fizera parte e que, muito provavelmente, preferia que continuasse esquecido. Mais relevante ainda torna-se este episódio se refletirmos sobre o fato de que não era a primeira vez que se analisavam as condições em que Lamarca fora perseguido e executado. Alguns estudiosos do regime militar, como Jacob Gorender122, também ofereceram relatos e análises altamente balizadas sobre o mesmo assunto. No entanto, para Nilton Cerqueira, o filme incomodou muito mais do que os estudos acadêmicos e/ou jornalísticos. Temos aí um indício relevante do poder simbólico das imagens e mais especificamente do poder do audiovisual sobre o imaginário coletivo.

Como já mencionado, o filme concentra a sua trama nos momentos finais da vida de Lamarca, durante o ano de 1971, em especial no período em que ele de fato já se encontrava praticamente solitário, em sua fuga pelo sertão da Bahia, onde foi assassinado por membros do Exército brasileiro, no dia 17 de setembro123. Uma questão se impõe: por que foi deixada de fora das telas a época de intensa articulação de Lamarca com o movimento de guerrilha ao qual pertencia? Para o espectador que possui pouca informação sobre o período, não há como compreender os motivos que levavam os militantes das esquerdas a se engajarem na luta armada. Como já foi dito, o filme Lamarca substitui a luta política pela luta pessoal, de um bravo homem por sua sobrevivência. Observa-se, então, a construção de uma memória que valoriza o individual sobre o coletivo, as causas pessoais sobre as políticas. Afinal, um “legítimo herói” não age em grupo, mas isoladamente. Percebe-se, mais uma vez, como o “não-dito” – aquilo que não é explicitado – também exerce o seu papel simbólico na formação de uma determinada representação em torno da construção de uma memória específica.

Conclui-se, assim, que o filme Lamarca contribui decisivamente para a construção da mitificação desse guerrilheiro – processo este que também ocorre em outras esferas sociais124. Relacionada a esta construção, observa-se a recorrência à figura de Lamarca em mais dois outros filmes, entre os selecionados nesta pesquisa: Cabra-Cega e Zuzu Angel. Observa-se, ainda, a intenção do cineasta em relacionar a figura mítica de Lamarca ao “personagem- brasileiro” comum, induzindo a uma identificação do espectador com o mito125. Um momento

122 GORENDER, Jacob. Estertores da Esquerda Armada e Embriões da Autocrítica, in Combate nas trevas..., p. 198-206. 123 Lamarca estabeleceu-se no município de Brotas de Macaúbas, em um lugarejo chamado Buriti Cristalino. Depois, com o cerco militar, embrenhou-se nas matas da região junto com seu companheiro Zequinha (José Campos Barreto), sendo assassinado no lugarejo de Pintada. 124 Cf. ROLLEMBERG, Denise. Carlos Marighella e Carlos Lamarca: memórias de dois revolucionários..., p. 73-98. 125 Sobre o processo de identificação do espectador no cinema, ver: BERGALA, Alain. O filme e seu espectador, in AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. 5. ed. Campinas: Papirus, 2007, p. 223-283. 53

revelador, nesse sentido, encontra-se na apresentação do trailer do filme, veiculado na mídia televisiva e no próprio cinema. Construído através de seis quadros, onde legendas são inseridas em uma tela preta e intercaladas a algumas cenas do filme, o trailer apresenta o seguinte conteúdo:

LEGENDA 1: Você conhece algum brasileiro que não tem preço? LEGENDA 2: Você conhece algum brasileiro que enfrentou um Exército pelo seu ideal? LEGENDA 3: Você conhece algum brasileiro capaz de morrer pelo nosso País? LEGENDA 4: Agora você vai conhecer. LEGENDA 5: Lamarca. O capitão que mudou de lado. LEGENDA 6: O homem que lutou para mudar o Brasil. O filme que todo o Brasil espera.126

Segundo Johnni Langer, a propaganda (veiculada em cartazes, trailers e na mídia) constitui um locus privilegiado para a propagação das ideologias específicas dos produtores de um filme, especialmente para a revelação de possíveis estereótipos127. Não é difícil constatar, no trailer de Lamarca, a idéia defendida por Langer. É nítida a proposta de se criar uma identificação entre espectador e protagonista, o que se observa também ao longo de todo o filme, apesar de, nesse espaço, a proposta apresentar-se de maneira mais sutil.

A possível interpretação para essa proposta do cineasta Sérgio Resende não se resume a um único fator. Há, primeiramente, um mecanismo presente em qualquer filme de ficção que é o processo de identificação entre espectador e personagem principal128. Existem, ainda, significativos aspectos relacionados ao contexto de produção do filme em questão, e que serão analisados posteriormente, no capítulo dedicado a esse tema. Interessa, nesse momento, destacar que o procedimento adotado pelo cineasta contribui decisivamente para a elaboração de uma memória que busca elevar a figura individual de um líder guerrilheiro ao papel de um representante exemplar de nossa sociedade. Aquele homem que “não tem preço”, que “mudou de lado” (saiu do lado do “mal”, ou seja, do Exército) e “lutou para mudar o Brasil” deve, segundo a mensagem apreendida do filme e de sua propaganda, ser visto como um herói

126 Trailer exibido na seção dos Extras do DVD do filme Lamarca. [Grifos meus] 127 LANGER, Johnni. Metodologia para análise de estereótipos em filmes históricos. Revista Hoje, São Paulo, v. 2, n. 5, 2004, p. 5. Disponível em: . Acesso em: mar 2007. 128 Cf. BERGALA, Alain. O filme e seu espectador, in AUMONT, Jacques et al. A estética do filme..., p. 223- 283. 54

nacional, um exemplo de brasileiro. Assim como não se aprofunda o papel do Estado no processo de aniquilamento dos grupos que praticavam a luta armada, também não se problematiza a via revolucionária e violenta escolhida por esses grupos de guerrilha. Parece que um mito não se presta a questionamentos. A memória que se deseja construir, nesse filme, é uma memória que busca exaltar a voz dos vencidos, mas sem aprofundar suas motivações políticas e sem lhes atribuir um sentido de luta coletiva, mas sim individual e heróica.

2.2.2 Um vilão brasileiro

Em O que é isso, companheiro?, os personagens são mais densos e complexos do que no filme anteriormente analisado. Nem sempre fica tão claro perceber quem é o mocinho e quem é o vilão da trama, o que só a enriquece em termos cinematográficos. O filme permite não somente a problematização sobre a memória de um episódio histórico específico, que foi o seqüestro do embaixador norte-americano por um grupo de guerrilha, mas também sobre outras questões que estão ao seu redor.

Como relatado anteriormente, o filme retrata um fato verídico, ocorrido em setembro de 1969, que faz parte do rol de ações mais notórias das esquerdas armadas brasileiras e constitui o primeiro de uma série de seqüestros políticos ocorridos entre 1969 e 1971 – no interior do período denominado “anos de chumbo” do regime militar129. Baseia-se, ainda, no livro homônimo de Fernando Gabeira, um dos guerrilheiros que participara da ação130.

Antes de analisar mais detalhadamente os personagens, cabe aqui uma reflexão sobre a adaptação realizada por Bruno Barreto. Uma livre-adaptação – como ele mesmo fez questão de frisar, em entrevista após o lançamento do filme131 – não só em relação ao livro, mas ao evento propriamente ocorrido (o seqüestro do embaixador). Ao assumir que elabora uma “simples” ficção, Bruno Barreto autoriza a si mesmo a criar personagens fictícios, cenários inexistentes, fatos e contextos imaginários entre outros artifícios cinematográficos, com o objetivo principal de criar uma estrutura narrativa mais agradável ao espectador. Além disso, como já mencionado, toda obra cinematográfica deve ser entendida como uma obra ficcional. Ao mesmo tempo, no entanto, o autor opta por utilizar os nomes e codinomes verdadeiros de

129 Além do embaixador norte-americano, foram seqüestrados o cônsul japonês em São Paulo (em março de 1970, pela VPR), o embaixador da Alemanha Ocidental (em junho de 1970, pela VPR e a ALN) e o embaixador suíço (em dezembro de 1970, mais uma vez pela VPR). Cf. REIS FILHO, Daniel Aarão et al. Versões e Ficções: o seqüestro da História. 2. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 18-19. 130 GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro?.... 131 Entrevista de Bruno Barreto concedida à Revista Adusp, n. 10, junho 1997. Disponível em: . Acesso em: ago. 2006. 55

alguns importantes personagens132, assim como por localizar e datar precisamente o episódio histórico ocorrido133. O trailer que anuncia o filme chega mesmo a afirmar que se trata de “uma história verdadeira”134.

Revela-se, assim, uma incoerência entre o discurso do cineasta sobre o filme e aquilo que ele produziu para ser exibido. Ao mesmo tempo em que se diz uma obra ficcional, O que é isso, companheiro? recria uma época e personagens reais e faz questão de lembrar ao público dessa condição. A utilização de nomes, locais e datas verdadeiros, legendas explicativas e cenas que empregam imagens de arquivo proporcionam um efeito de realidade que orienta a construção da memória, no sentido de atribuir a essa representação dos fatos uma idéia de “versão verdadeira da história”135. Por esse motivo, percebe-se que o filme em questão possui uma proposta ideológica bem definida, ainda que não assumida ou não controlada por seus autores. E esta proposta tem o seu papel no interior do processo de elaboração de uma memória que se deseja edificar sobre esse período recente de nossa história. Como afirma o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis, “A gente não faz filme histórico impunemente”136.

Há que se considerar, ainda, que o filme de Bruno Barreto adquiriu um amplo sucesso de público na época de seu lançamento, não obstante a intensa polêmica que causou nos meios intelectuais. Somente no ano de 1997, foi visto por mais de trezentas mil pessoas no país137, o que naquele período representava uma quantidade muito além da média de espectadores para os filmes brasileiros. Além disso, passou a ser largamente utilizado nas escolas de Ensino Fundamental e Médio, à medida que as ferramentas audiovisuais foram se tornando um valioso instrumento de trabalho para os professores. Ao destacar esse último aspecto, procuro mostrar que a representação que o cineasta Bruno Barreto e o roteirista Leopoldo Serran constroem para este período da história brasileira foi amplamente “consumida”, contribuindo então para a solidificação de uma determinada memória histórica, comprometida com esta, e não com outras possíveis representações. Para concluir esta

132 São verdadeiros os nomes (e codinomes) de alguns dos personagens: Charles Elbrick, ‘Jonas’, ‘Toledo’ e Fernando Gabeira. 133 Ao início de cada dia do seqüestro, é exposta na tela – em primeiro plano – a data correspondente. 134 Cf. RIDENTI, Marcelo. Que história é essa?, in REIS FILHO, Daniel Aarão et al. Versões e Ficções...., p. 26. 135 No capítulo IV do presente estudo, aprofundarei melhor a questão sobre os mecanismos cinematográficos que contribuem para um efeito de realidade sobre o filme. 136 Ficção é julgada sob as lentes da História, in REIS FILHO, Daniel Aarão et al. Versões e Ficções..., p. 92. Daniel Aarão foi membro da direção da Dissidência Universitária da Guanabara, posteriormente MR-8. 137 Mais especificamente 321.450 espectadores, no ano de seu lançamento. Ver anexo II. 56

reflexão, vale mais uma vez destacar as impressões de Reis Filho sobre o filme em questão, onde este considera que

a ficção é frequentemente muito mais poderosa, para a apropriação da memória de uma época, do que os tratados sociológicos e históricos mais sérios. Os autores do filme apresentaram, apesar talvez, deles mesmos, uma proposta.138

Os personagens centrais da trama desenvolvida no filme são os seqüestradores do embaixador norte-americano Charles Elbrick, que se dividiam entre membros da ALN (que comandara a ação) e da Dissidência Universitária da Guanabara (que tramara o seqüestro). Como já foi dito, os nomes de alguns deles – não por acaso, os mais destacados na trama – foram mantidos.

Fernando Gabeira, de codinome ‘Paulo’ (interpretado por Pedro Cardoso), é o personagem principal da trama, visto que o filme é construído, teoricamente, a partir do seu ponto de vista. O que se observa mais explicitamente durante toda a narrativa é o intenso espírito crítico do protagonista em relação às ações da esquerda armada, ao momento político, às utopias inalcançáveis. Parece ser o único dos guerrilheiros no filme com razoável discernimento sobre os acontecimentos, o que constantemente explicita-se sob a forma de uma inteligente ironia, tornando-o o personagem mais simpático entre todos do grupo. Através de diálogos entre Gabeira e outros personagens, sua fala possui, ainda, um tom quase sempre didático e panfletário.

O filme reforça uma tendência já presente no livro de Fernando Gabeira, que é a visão retrospectiva dos fatos históricos da época, o que se evidencia com mais nitidez em uma das cenas finais. Fernando e ‘Maria’ estão escondidos, após o seqüestro, em uma casa modesta, no subúrbio do Rio de Janeiro. A câmera enquadra o rosto de Fernando, centralizando-o no campo visual da tela. Todos os outros elementos que compõem esse campo estão na penumbra – inclusive ‘Maria’, com quem ele dialoga –, enquanto Fernando tem o seu rosto destacado não somente pelo enquadramento, mas principalmente por efeito da iluminação. Em tom solene, apresenta o seu diagnóstico da situação da luta armada naquele momento:

FERNANDO: _ Foi um sonho que não deu certo. A gente está falando pro vento. Ninguém quer ouvir o que a gente tem para dizer. Seu nome não é ‘Maria’, é Andréa!

138 REIS FILHO, Daniel Aarão et al. Versões e ficções: o seqüestro da história..., p. 106. [Grifos meus]. 57

Têm-se a impressão de que o Gabeira de 1969 era essa pessoa altamente consciente e crítica dos erros cometidos pela esquerdas armadas brasileiras, contrariamente aos outros personagens, que em momento algum refletem sobre as atitudes tomadas. Além disso, várias outras características são atribuídas a Fernando Gabeira no filme, com a intenção principal de valorizá-lo frente aos outros guerrilheiros. César Benjamin, ex-membro da Dissidência Universitária da Guanabara e um dos participantes do seqüestro, assim define o personagem principal do filme:

[Gabeira] tem a idéia do seqüestro (é criativo), conquista o coração de Maria (é sedutor), recusa-se a usar capuz diante do embaixador (é elegante), diverge abertamente das malvadezas de Jonas (é ousado), escreve um belo manifesto (é inteligente), fala inglês (é culto), percebe que a luta armada está isolada (é maduro) e, quando pendurado no pau-de-arara, responde com gracinhas corajosas às gracinhas do torturador.139

Com esta detalhada descrição do protagonista, percebe-se mais facilmente a intenção dos autores do filme de transformar Gabeira no herói deste episódio, o que é de se esperar, posto que se trata da adaptação de seu livro. O que torna esta questão mais complexa é o fato de que, além das várias distorções e manipulações factuais em relação à ação do seqüestro, no intuito de supervalorizar o protagonista, há o intento de se construir, por contraste, uma representação dos outros guerrilheiros que se baseia em velhos estereótipos e que contribui para a elaboração de uma determinada memória acerca dos militantes políticos dessa época. Quanto às distorções factuais, vale destacar que segundo o relato de outros componentes desse episódio – e conforme o próprio Gabeira reconhece mais tarde, em prefácio de seu livro (2ª edição, de 1988) –, não foi ele quem planejou o seqüestro, nem quem escreveu o manifesto divulgado na imprensa (ambas as atitudes tomadas por Franklin Martins). Também não realizou, na época, um balanço crítico sobre a situação da luta armada brasileira, o que só acontece a partir de sua visão retrospectiva, adquirida posteriormente no exílio. Além disso, sua atuação na ação foi muito menor do que o filme supõe, visto que Gabeira pertencia ao “baixo escalão” do MR-8, vindo a participar do episódio apenas como inquilino da casa utilizada para encarcerar o refém seqüestrado140.

Com um olhar mais atento, observa-se que os outros guerrilheiros aparecem no filme como personagens sem história de vida e, principalmente, sem motivação política aparente

139 BENJAMIM, César. Cinema na era do marketing, in REIS FILHO, Daniel Aarão et al., Versões e Ficções..., p. 98. 140 Cf. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas..., p. 166-170 e GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada..., p. 87-104. 58

que justifique o ingresso na luta armada. Percebe-se, ainda, que tais guerrilheiros podem ser divididos em dois grupos distintos: os mais jovens, de uma lado, apresentados como aventureiros, “rebeldes sem causa”, ingênuos e românticos; os mais idosos, do outro lado, como “raposas velhas”, manipuladores e autoritários. Nos dois grupos, a maioria de seus integrantes é representada como pessoas um tanto neuróticas e histéricas. Todas as características anteriormente apontadas acabam reforçando antigos clichês construídos no período da ditadura militar e que permanecem até os dias atuais: a juventude militante como aventureira e ingênua, os velhos militantes como verdadeiros tiranos, e todos eles extremamente histéricos. Frente a essas pessoas “carrancudas”, apenas Fernando/‘Paulo’ tem senso de humor e é humanizado pelos autores do filme.

Entre os guerrilheiros mais experientes e “truculentos”, é colocado em intenso destaque o personagem ‘Jonas’ (interpretado por Matheus Nachtergale), para reforçar estas e outras características pejorativas que compõem o personagem. ‘Jonas’ – codinome de Virgílio Gomes da Silva – era um experiente membro da ALN, com treinamento militar em Cuba e que fora designado para comandar a ação. No filme, é o típico vilão da trama. É bruto, frio e calculista; não considera a opinião dos outros membros da ação; parece atribuir aos guerrilheiros (aos quais critica o tempo todo) o legítimo papel de inimigos, e não aos militares. Chega a ser caricatural a cena em que ‘Jonas’ está se apresentando ao grupo que planejara o seqüestro. Com um tom altamente ameaçador, logo em sua primeira fala (realçado pela introdução de uma música instrumental que reforça a dramaticidade da cena), assim ele se dirige ao grupo:

‘JONAS’: _ Eu vou ser breve e objetivo. Eu não solicitei o comando dessa operação; ele me foi oferecido. Por isso, eu quero deixar bem claro que a partir de agora quem dará as ordens aqui sou eu.

Close-up em ‘Maria’ (interpretada por ), sentindo-se negativamente surpresa, pois, até aquele momento, chefiava o grupo.

‘JONAS’: _ As minhas ordens serão obedecidas cegamente, sem qualquer tipo de discussão.

A câmera começa a executar um travelling141, mostrando as reações de cada um dos integrantes do grupo. Faces assustadas.

141 Movimento de translação da câmera ao longo de uma direção determinada, que também pode ser executado através de um carrinho. Cf. XAVIER, Ismail. A decupagem clássica, in O discurso cinematográfico..., p. 32. 59

‘JONAS’: _ Nós seremos um grupo coeso, disciplinado. Nossa tarefa é difícil e não permite vacilações. Eu quero avisar que eu mato o primeiro que vacilar ou discordar. E que, se um segundo houver, eu mato também. Eu fui claro?

Em outra seqüência, ‘Jonas’ forja um sorteio com o intuito de escalar ‘Paulo’ (seu desafeto na casa e, não por acaso, o protagonista e mocinho do filme) para ser o executor do assassinato do embaixador, caso as reivindicações não fossem atendidas no prazo estipulado142. Sugestiona-se o espectador a interpretar este personagem como o grande vilão da trama, em oposição a um herói sensível e maduro. Isso contribui para a riqueza dramática do filme – com sua peculiar função simbólica –, considerando-se o fato de que mocinho e vilão estão do mesmo lado na história.

Fig. 3 - Comandante ‘Jonas’, o vilão da trama

Bruno Barreto, em uma série de entrevistas que concedeu à época do lançamento do filme, procurou deixar claro que tivera a intenção de fugir ao maniqueísmo de apresentar mocinhos (guerrilheiros) contra bandidos (os militares)143. Novamente, o discurso do autor contradiz as representações que ele constrói no filme e o que se vê é um preconceituoso antagonismo entre um personagem negativamente caricatural – o operário e guerrilheiro ‘Jonas’ – em oposição a um personagem imbuído das mais apreciáveis características – o

142 Segundo depoimento de Vera Sílvia Magalhães, única mulher a participar da ação do seqüestro, ‘Jonas’ não designou Gabeira para matar o embaixador e também não manifestou a intenção de torturá-lo enquanto estava preso, como demonstra o filme. SALEN, Helena. Ex-militante inspira personagens femininas. Entrevista com Vera Sílvia Magalhães, in REIS FILHO, Daniel Aarão et al. Versões e Ficções..., p. 65. 143 A referência a esta declaração de Bruno Barreto encontra-se em RIDENTI, Marcelo. Que história é essa?, in REIS FILHO, Daniel Aarão et al. Versões e Ficções..., p. 27. Ver também: entrevista concedida pelo cineasta para a Revista Adusp, n. 10, junho 1997. 60

intelectual de classe média, Gabeira/‘Paulo’. Elio Gaspari, ao refletir sobre o filme e sobre a representação atribuída ao personagem ‘Jonas’, apresenta a seguinte advertência:

Há algo de estranho no papel que coube a Virgílio Gomes da Silva na memorialística do período. Como livro de memórias é coisa de intelectual, o operário acabou se tornando um estorvo. Virou um personagem ora secundário, ora embrutecido. Uma espécie de tipo excessivamente popular para caber num cenário habitado (e narrado) por gente fina.144

A vilania de ‘Jonas’ ganha ainda mais consistência ao ser contrastada com o personagem Henrique (interpretado por Marcos Ricca), o torturador da história, altamente matizado pelo cineasta. Mais uma vez declarando fugir ao maniqueísmo e buscando “humanizar” os personagens145, Bruno Barreto opta pela construção de um torturador em conflito e moralmente angustiado com a sua ingrata tarefa de maltratar os guerrilheiros. Ao declarar que não admira a atividade que pratica, pois a tortura se volta para “esses jovens inocentes, que não sabem o que estão fazendo”146, o personagem Henrique reproduz o estereótipo que atribui aos jovens militantes sempre o papel de aventureiros e ingênuos, sem muita consciência de suas ações ou maturidade política.

A princípio, a intenção do autor ao apresentar essas características para o personagem do torturador parece realmente enriquecer a trama, pois consiste em “dar voz” a um ator social que sempre fora abominado e, por isso mesmo, silenciado pelas esquerdas brasileiras (por motivos compreensíveis). Porém, o que se coloca em questionamento é o porque de se representar um torturador cheio de dúvidas e angústias (com cenas que o mostram sem dormir, cheio de culpas e até com direito a delicados diálogos com a esposa, em que expõe o seu drama) e, por outro lado, representa-se o atroz comandante ‘Jonas’ sem direito a questionamentos, angústias ou conflitos. Ao se contrastar um personagem com o outro, observa-se a indiscutível opção por uma representação mais complexa e humana para o torturador que, a propósito, possui muito mais tempo de exposição no filme do que o comandante da ação do seqüestro.

Os outros membros da ação não assumem maior destaque no filme, com exceção da guerrilheira Andréa/‘Maria’, personagem que se envolve emocionalmente com Fernando na trama. Vistos em conjunto, no entanto, contribuem para a imposição de uma determinada

144 GASPARI, Elio. O que é isso, companheiro?: o operário se deu mal, in REIS FILHO, Daniel Aarão et al Versões e Ficções... , p. 115. 145 Ver declaração de Bruno Barreto, em NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 93-94. 146 Fala do personagem Henrique, no filme O que é isso, companheiro?. 61

visão sobre o episódio na qual os jovens que ingressaram na luta armada são mostrados como simples aventureiros, sem maiores motivações políticas, ou, ainda, representando os guerrilheiros mais experientes como pessoas insensíveis, manipuladoras e até mesmo mais cruéis do que os militares que defendiam a ditadura.

Quando alguma história de vida é atribuída a um desses personagens, ela aparece no sentido de fortalecer a representação do jovem militante como alguém que ingressou na luta armada por causas pessoais, mas não políticas. Refiro-me especialmente à personagem Clara/‘René’ (interpretada por Cláudia Abreu). Em uma determinada cena – após sua ação de levantamento de informações sobre a rotina do embaixador –, ela liga de um telefone público para o pai, que a trata de forma extremamente rude e interrompe, abruptamente, a ligação. Ou seja, ao representar certa relação de uma militante com a sua vida particular anterior à clandestinidade, constrói-se uma existência marcada por problemas familiares, como a rejeição e incompreensão dos pais. Não que estes problemas não pudessem existir e serem expostos na trama. Contudo, por que também não há a exibição de cenas que demonstrem algo do passado da personagem em questão que justificasse o seu engajamento político na luta armada? Que imagem do(a) guerrilheiro(a) está sendo, assim, construída? Ao sugerir que a jovem Clara teria ingressado na luta armada pela rejeição familiar, a narrativa parece ignorar outras motivações, como as convicções políticas da personagem.

Já o embaixador norte-americano, Charles Elbrick (interpretado pelo ator norte- americano Alain Arkin), é completamente diferente de seus algozes. Apesar da situação desfavorável em que se encontra na maior parte da trama, o personagem de Elbrick dá sempre mostras de equilíbrio emocional, coerência discursiva, ponderação, educação e outras características que o valorizam frente aos desequilibrados guerrilheiros (com exceção de ‘Paulo’), tornando-se a pessoa mais sensata do filme. Seu discurso, seja através das conversas que trava com os guerrilheiros e outros personagens, seja através de seu pensamento transmitido em over147, parecem colocar ordem no filme. Além do interesse em agradar ao mercado norte-americano148, percebe-se mais uma vez a polarização entre personagens embrutecidos e anódinos (os guerrilheiros) e personagens mais complexos (o torturador e o embaixador).

147 A “voz over” é a voz de um personagem presente na cena, mas que não corresponde à sua fala. Geralmente, representa o pensamento desse personagem. 148 Procurarei desenvolver mais detalhadamente esta relação do filme com o mercado norte-americano em capítulo destinado ao contexto de produção da obra. 62

Ao analisar um filme, o pesquisador não deve negligenciar aqueles personagens que, a princípio, não demonstram muita importância na trama narrativa, sendo conhecidos como “personagens secundários” ou coadjuvantes. O que pode parecer apenas um detalhe, ou um diálogo menos significativo, pode também revelar aquilo que Marc Ferro considera os lapsos dos criadores da obra cinematográfica, ou o latente por trás do aparente149. Analisar um filme atribuindo especial atenção aos detalhes é também aproximar-se da metodologia proposta por Carlo Ginzburg150, que se inspira no “método Morelli”, crítico de arte do século XIX que avaliava a originalidade de uma obra de arte através dos pormenores mais negligenciáveis e, portanto, menos controlados por seus criadores. Tomado sob esse aspecto, O que é isso, companheiro? apresenta dois personagens particulares que revelam alguns sentidos significativos para a memória que se deseja construir através do filme.

O primeiro deles é o já referido torturador Henrique. Apesar do expressivo tempo de exposição na película, o personagem não pertence ao núcleo central da trama, composto pelos guerrilheiros e pelo embaixador norte-americano. No entanto, seu longo diálogo com a esposa (interpretada por Alessandra Negrini) demonstra uma personalidade marcada por um apurado senso crítico em relação à sua função profissional, mas também – e principalmente – em relação aos guerrilheiros. Ao justificar para a mulher a necessidade da tortura e ao explicitar a sua opinião sobre os guerrilheiros, Henrique afirma:

HENRIQUE: _ Você quer saber? A maioria deles são crianças inocentes e cheias de sonhos. Apenas crianças usadas por uma escória perigosa. Se essa escória chegar ao poder, Lílian, não haverá apenas tortura, mas sim muito fuzilamento sumário. Alguém tem que enfrentar essa canalha para que os inocentes possam dormir em paz. [Grifos meus]

Mais uma vez, os estereótipos produzidos sobre guerrilheiros tornam-se visíveis através da fala de um personagem, justamente daquele que Bruno Barreto se propôs a lançar um olhar mais generoso e humanizado. E assim se reproduz a representação dos guerrilheiros que, de certa forma, se encontra consolidada na memória da sociedade até os dias atuais: a de meros meninos rebeldes, “crianças inocentes” que foram “usadas por uma escória perigosa”.

Outro personagem de pouca importância na trama, mas que deve ser considerado na elaboração de significações cinematográficas, encontra-se na figura de Arthur (interpretado por Eduardo Moscovis). Trata-se do companheiro de apartamento de Fernando Gabeira, um

149 FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 150 GINZBURG, Carlo. Sinais. Raízes de um paradigma indiciário, in Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e História. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-179. 63

ator de teatro e simpatizante dos movimentos de oposição à ditadura, mas contrário à opção pela luta armada. Sua personalidade configura-se como a de uma pessoa muito coerente, com falas que demonstram sabedoria e maturidade sobre as questões políticas do momento. Não revela aquela visão crítica retrospectiva (e anacrônica), encontrada no protagonista, mas parece explicitar o próprio pensamento do cineasta, como se pode observar nas duas principais cenas em que Arthur participa. Na primeira delas, ele está se despedindo de Fernando, que em breve iria ingressar na luta armada:

ARTHUR: _ O que vocês vão fazer é legitimar a ditadura.

GABEIRA: _ Eles já se legitimaram sozinhos e estão vivendo muito bem sem nenhuma oposição. O que você propõe? Cruzar os braços?

ARTHUR: _ Vocês vão entrar numa aventura inconseqüente. Pelo amor de Deus, Fernando. Isso é porra-louquice! A luta continua sendo política.

GABEIRA: _ De que luta política você está falando? A imprensa está censurada, o Congresso acovardado.

ARTHUR: _ Uma frente ampla no Congresso pode derrubar essa canalha.

GABEIRA: _ Isso é um pensamento pequeno-burguês. A realidade está madura para a revolução.

O filme evidencia, em seu desenrolar, que a realidade não estava nem um pouco madura para a revolução e que, talvez, as palavras de Arthur devessem ter sido levadas em consideração pelo protagonista. Na outra cena, Arthur encontra Gabeira casualmente, em frente ao teatro Carlos Gomes, onde encenava uma peça. Demonstrando inteligência, deixa claro para Gabeira que sabia de seu envolvimento no seqüestro do embaixador, o que irrita o protagonista, que logo tenta revidar:

GABEIRA: _ E você, como se sente aí, no século XIX? [Gabeira refere-se à peça que Arthur ensaiava]

ARTHUR: _ Mais próximo da realidade do que você. Ibsen tem mais estilo do que esse seu teatro de horror. Seqüestrar embaixador é atirar no soldado que carrega bandeira branca, Fernando.

GABEIRA: _ Não seja tão dramático.

ARTHUR: _ Vocês e os militares são as duas pontas da ferradura. Parecem distantes, mas na verdade estão bem próximos. 64

Essas duas cenas que apresentam falas contundentes de Arthur permitem considerar que os criadores do filme estão expressando o seu ponto de vista sobre a luta armada através do referido personagem secundário. Somando-se a isso a visão do torturador Henrique sobre os guerrilheiros, a vilanização do personagem ‘Jonas’ e a forma de representação dos demais membros do grupo que praticou o seqüestro, observa-se a construção de uma memória sobre o período que reproduz uma visão negativa, caricatural e estereotipada dos guerrilheiros que lutaram contra a ditadura. Visão esta que apresenta o movimento de guerrilha situado no mesmo patamar da repressão exercida pelo regime militar. Militares de um lado, guerrilheiros de outro, formando “as duas pontas da ferradura”, como expressa o amigo de Gabeira. Jovens ingênuos que entraram na luta armada mais por um ato de rebeldia e/ou “espírito de aventura” do que por convicção política; manipulados por comandantes mais experientes e extremamente perigosos.

Um filme que, aparentemente, busca revelar a suposta história por tanto tempo silenciada dos grupos que sofreram mais intensamente a repressão governamental da ditadura militar, acaba por reproduzir uma versão conciliatória desse momento histórico, tendência já presente no livro de Fernando Gabeira. Uma versão que, ao colocar guerrilheiros e repressores como “farinha do mesmo saco”, absolve a sociedade brasileira, que teria apenas assistido às arbitrariedades oriundas de ambas as partes. Como afirma Reis Filho, O que é isso companheiro? radicaliza uma proposta conciliatória, já existente na obra de Fernando Gabeira, ao propor um olhar generoso e compreensivo sobre o torturador e caricatural sobre os guerrilheiros151. O problema, vale ressaltar, nem é propriamente fazer isso, mas fazê-lo por meio de um discurso pretensamente verídico, a induzir o espectador a consumi-lo sem a devida crítica.

Por último, cabe ressaltar que, no caso da obra literária escrita por Fernando Gabeira, em 1979, torna-se mais fácil compreendê-la como expressão de seu tempo, ou seja, como uma tese que foi produzida ainda em um momento histórico de transição política. Não havia muito interesse, nessa época, em se aprofundar as críticas a um regime que acabara de se transformar e que, portanto, ainda suscitava momentos de tensões e indefinições. Para que tocar em feridas ainda não cicatrizadas? Era melhor se reconciliar com esse passado recente através de propostas que enxergavam o período do regime militar como um momento de

151 SALEM, Helena. Ficção é julgada sob as lentes da História. Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, in REIS FILHO, Daniel et. al. Versões e ficções..., p. 71-92. 65

grandes aventuras, no limite da irresponsabilidade: ações tresloucadas. Boas intenções, claro, mas equivocadas. Uma fulguração, cheia de luz e de alegria, com contrapontos trágicos, muita ingenuidade, vontade pura, puros desejos, ilusões.152

Importa, ao se contextualizar a produção do filme no ano de 1997, com o regime democrático já consolidado no país, observar que se produziu ali uma versão com tantas distorções históricas e antigas visões estereotipadas, como se pode perceber através de um olhar mais atento sobre o filme. As inúmeras polêmicas153 que se seguiram ao seu lançamento só demonstram como as representações cinematográficas da História possuem um alto poder mobilizador e como podem gerar significados que reforçam antigas memórias ou constroem novas, afinal, apropriar-se do passado é, em grande medida, uma forma de controlar o presente.

Ao representar cinematograficamente um episódio e um contexto reais, os autores do filme fazem as suas escolhas. E, da mesma forma que selecionam o que desejam filmar, escolhem, por sua vez, aquilo que não desejam ver representado nas telas. É nesse momento que se observa o papel dos silêncios na elaboração da memória que se ambiciona construir. Quase tudo aquilo que é deixado de fora da história a ser contada também possui o seu significado. Certamente que nenhum filme, ou qualquer outra forma de comunicação ou linguagem, consegue abarcar a totalidade de um evento a ser representado. Mas, sem dúvida, alguns silêncios podem revelar o tipo de memória que o cineasta quis elaborar. E, para o filme em questão, cabe mencionar alguns aspectos que foram silenciados e que, desta forma, contribuíram para a construção da imagem do guerrilheiro de Bruno Barreto.

O filme, de certa forma, neutraliza o contexto político em detrimento dos dramas individuais e, assim, os guerrilheiros aparecem um tanto deslocados da conjuntura histórica que os levaram a executar a ação do seqüestro. Algumas situações que envolveram este episódio, se representadas no filme ao invés de silenciadas, poderiam contribuir para a reelaboração das representações produzidas, no sentido de vincular mais os guerrilheiros ao momento histórico no qual se inseriam.

152 REIS FILHO, Daniel Aarão. Um passado imprevisível: a construção da memória da esquerda nos anos 60, in REIS FILHO et al. Versões e ficções..., p. 34. Reis Filho também aponta a obra de Zuenir Ventura (1968 – o ano que não terminou, escrita em 1988) como responsável por essa visão conciliatória sobre o regime militar. 153 O livro aqui amplamente citado – Versões e ficções: o seqüestro da história – é uma coletânea de artigos e matérias, quase todas publicadas na imprensa jornalística nos meses subseqüentes ao lançamento comercial do filme, evidenciando a polêmica acima relatada. 66

Um exemplo disso encontra-se na questão relativa à origem da idéia do seqüestro. Além de não ter sido criada por Fernando Gabeira, mas por Franklin Martins, a idéia partiu da necessidade que a Dissidência Universitária da Guanabara sentiu de libertar o preso político Vladimir Palmeira, que fora detido no Congresso Estudantil de Ibiúna (1968). Palmeira, além de pertencer a essa organização, era uma importante liderança nacional estudantil e sua prisão representara uma derrota política muito significativa para os movimentos de oposição ao regime militar. Quando se pensou na possibilidade de seqüestrar o embaixador dos Estados Unidos para trocar por Vladimir Palmeira, o grupo guerrilheiro constatou que Elbrick “valia” muito mais do que somente um preso e resolveram aumentar a lista para 15 presos políticos. Ao idealizarem o seqüestro, o grupo também atentou para o fato de que esse tipo de ação possibilitaria uma divulgação para a sociedade brasileira da existência de um movimento revolucionário em curso, o qual desconhecia. Outro aspecto não revelado pelo filme em relação aos guerrilheiros refere-se à adoção da sigla MR-8 em plena ação do seqüestro, tratando-se de um fato significativo para a história desta organização armada. O filme chega a fazer uma rápida referência à questão, através de uma frase do torturador Henrique, mas onde nada é realmente explicado. A sigla foi reapropriada pelos militantes da Dissidência Universitária da Guanabara a partir de uma outra organização do Rio de Janeiro, que fora desmantelada pelo CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), no primeiro semestre de 1969. Para encobrir o nome da organização que praticara o seqüestro e, principalmente, para desmoralizar as forças de repressão, o grupo resolveu se utilizar da antiga sigla, que tinha como significado uma homenagem ao dia da morte de Che Guevara, na Bolívia (08/10/1967)154.

Os exemplos acima procuram demonstrar como a luta pela apropriação da memória se configura não somente pelas representações elaboradas, mas também pelos silenciamentos impostos por estas mesmas representações. O “não-dito” assume, aqui, um papel preponderante no processo de constituição da memória sobre o regime militar, como já mencionado. Bruno Barreto apresenta, portanto, uma proposta de configuração de uma memória desses guerrilheiros urbanos que não os vinculam totalmente ao momento político em que estavam inseridos, tal como já fora constatado no filme Lamarca. O que pode parecer uma aventura tresloucada de jovens inconseqüentes, aos olhos de hoje, teve o seu sentido político, se entendido em um determinado contexto, onde a juventude dos anos de 1960 se via

154 As observações referidas neste parágrafo – não explicitadas no filme – baseiam-se principalmente no depoimento de Daniel Aarão Reis Filho, ex-membro da direção do MR-8. Cf. SALEN, Helena. Ficção é julgada sob as lentes da história, in Versões e ficções..., p. 71-92. 67

imbuída de uma missão transformadora, não somente na política, mas também nas artes, nos costumes, nos comportamentos e nos valores daquela época155.

2.2.3 Um guerrilheiro mais humano

Assim como em Lamarca, o filme Cabra-Cega concentra a sua trama narrativa na vida de apenas um personagem, sendo que, neste último filme, o guerrilheiro/protagonista não existiu na realidade.

Diferentemente dos dois filmes analisados até o momento, o guerrilheiro da ficção de Toni Venturi (diretor) e Di Moretti (roteirista) não é apresentado como um típico “herói” das esquerdas brasileiras, que luta bravamente contra o regime militar. O momento da vida de ‘Thiago’ (interpretado por Leonardo Medeiros), que foi selecionado para ser exibido pela película, não foi o momento de suas grandes ações na luta armada, mas justamente o período de reclusão do personagem em um aparelho que o sufoca psicologicamente, mas de onde não tem condições de sair, pois se encontra ferido e procurado pelas forças policiais do governo militar. O que se observa no filme é justamente a intenção de revelar as angústias, os conflitos e as fraquezas daquelas pessoas que viviam nessas condições excepcionais, devido ao estado exceção, de tensão e às dificuldades impostas pela clandestinidade. Como afirmou Di Moretti, o roteiro do filme “trata da privação da liberdade; principalmente para alguém que sempre defendeu a liberdade”156.

‘Thiago’ não se destaca pela eloqüência, que permita transformar suas falas em verdadeiros discursos revolucionários (como os dois protagonistas dos filmes anteriores). Também não possui aquela visão crítica e o discernimento exato sobre a situação da luta armada naquele período histórico, que o possibilitasse percebê-la como algo utópico e inviável (como acontece com Gabeira). Contrariamente, ‘Thiago’ apresenta-se como um típico militante, imbuído do “espírito” da juventude de seu tempo e que realmente acreditava nas possibilidades revolucionárias daquele exato momento, por mais que a realidade se mostrasse muito adversa. O que se vê, portanto, em Cabra-Cega é um personagem mais matizado e humanizado, que comete falhas, que não aceita a condição de privação de

155 Cabe lembrar que esse “espírito” transformador e revolucionário, característico da juventude dos anos de 1960, não se limitou ao contexto nacional, sendo também muito influenciado pelos aspectos políticos, sociais e culturais que permearam diversos países do Ocidente e do Oriente naquela época, com destaque para as manifestações da sociedade norte-americana contra a guerra do Vietnã, o movimento hippie – mas intenso nos Estados Unidos –, os movimentos feminista e anti-racista, as críticas ao modelo soviético de socialismo, a “Revolução Cultural” na China e o movimento do “Maio de 68”, na França. 156 Entrevista concedida por Di Moretti, na seção dos Extras do DVD Cabra-Cega. 68

liberdade que lhe é imposta e que se vê em conflito entre a vida particular, a qual renunciara, e a vida política que escolhera.

Nas poucas cenas em que ‘Thiago’ aparece discursando sobre algumas de suas convicções políticas, geralmente as mesmas são confrontadas com outras opiniões que lhe revelam seus erros, ou pelo menos, novas possibilidades de condução das mesmas questões. Isso fica bem claro em um diálogo que trava com ‘Mateus’ (interpretado por Jonas Bloch), um membro pertencente ao comando do grupo guerrilheiro de ‘Thiago’:

‘THIAGO’: _ O dever de todo revolucionário é fazer a revolução, lembra? ‘MATEUS’: _ Para fazer a revolução, a gente precisa mais do que uma frase de efeito. ‘THIAGO’: _ A gente precisa de ação! ‘MATEUS’: _ Morto você não serve para nada. A gente precisa de você vivo. ‘THIAGO’: _ A morte é só um detalhe, meu amigo! ‘MATEUS’: _ Isso não é filosofia, porra! É política. E em política, às vezes a gente precisa recuar […] A gente sequer conseguiu trazer todo o povo para a nossa causa. ‘THIAGO’: _ Mas eu tenho um compromisso com os companheiros que morreram. ‘MATEUS’: _ A luta não é uma questão pessoal.

A cena acima descrita possui um clima crescente de tensão, propiciado não somente pela evolução do diálogo entre os dois personagens, mas também pela rápida mudança de um plano para outro e da câmera constantemente trêmula, que tenta acompanhar a inquietude de ‘Thiago’. Observa-se, ainda, uma desmistificação do herói-guerrilheiro, visto que suas idéias são duramente combatidas por um outro personagem que se apresenta de modo mais sensato e consciente do que o protagonista. Aliás, todos os personagens que estão ao redor de ‘Thiago’ têm como função no filme questionar as suas convicções e confrontá-lo com outra realidade, bem diferente daquela que ele idealiza.

Em se tratando do personagem ‘Mateus’, é significativo perceber como ele é construído de uma forma que se distingue de seu análogo no filme O que é isso, companheiro?: o comandante ‘Jonas’. Apesar de também aparecer como um dirigente de um grupo guerrilheiro (não especificado na trama), ou pelo menos como uns dos componentes do grupo com algum poder de comando, ‘Mateus’ não é apresentado como um velho comunista embrutecido, autoritário e sempre em oposição ao herói-guerrilheiro. ‘Mateus’ muitas vezes discorda das idéias e do comportamento de ‘Thiago’, mas outras vezes concorda com o 69

protagonista e ainda demonstra grande admiração por ele. Também revela um comportamento afetuoso e até mesmo delicado, especialmente quando contracena com a personagem ‘Rosa’ (interpretada por Débora Duboc), desconstruindo aquela visão tradicional – e reproduzida no filme de Bruno Barreto – de guerrilheiros insensíveis e abrutalhados.

Quanto à personagem ‘Rosa’, o filme mais uma vez procura desconstruir velhos estereótipos ao demonstrar que a guerrilha urbana não era formada somente por jovens estudantes de classe média. Setores de trabalhadores não intelectualizados também estiveram ativamente presentes na luta armada brasileira da década de 1960, apesar das raras alusões a esses grupos na memória cinematográfica que se constrói no cinema brasileiro. ‘Rosa’ é filha de um operário militante e ingressa nos movimentos de oposição por influência do pai (já morto, na história do filme), tornando-se uma militante de base, e não da linha de frente, como ‘Thiago’. Aqui já se procura fugir à caracterização que generaliza os jovens militantes sempre como pessoas que estão rompendo com a geração anterior, conduzindo a interpretação dos movimentos de guerrilha para um “choque geracional”, e não como uma atitude efetivamente política. Como afirma Jean Rodrigues Sales, ao criticar este tipo de interpretação, esta visão ressalta apenas o lado aventureiro dos militantes, “bem intencionados, mas ingênuos protagonistas de uma luta esvaziada de projeto político e baseada em aspirações pessoais adolescentes”157.

‘Rosa’ fora designada para cuidar do protagonista, tanto de seus ferimentos (pois possui conhecimento de enfermagem), quanto no suporte necessário à sua manutenção no aparelho. Como afirmou a própria atriz Débora Duboc, ‘Rosa’ se destaca das representações mais comuns da mulher militante porque “ela é uma personagem que sabe lavar uma louça […] que sabe limpar uma casa, porque ela teve esse aprendizado na infância, adolescência dela”158. Reforça-se, aqui, a intenção dos autores do filme de valorizar outros atores sociais que também estiveram presentes nos movimentos mais radicais de oposição ao regime militar.

Em continuidade com o objetivo acima exposto, Venturi também coloca em cena um outro ator social que existiu naquela época e que raramente é mencionado nas representações elaboradas sobre o período. Refiro-me ao personagem Pedro (interpretado por Michel Bercovitch), o arquiteto que acolhe ‘Thiago’ em seu apartamento, transformando o local em um aparelho. Pedro não pertence a nenhuma organização armada, nem mesmo parece

157 SALES, Jean Rodrigues. Luta política e memória social. Revista Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, Edição Especial, ano 21, maio 2008, p. 10. 158 Entrevista concedida pela atriz Débora Duboc na seção dos Extras do DVD Cabra-Cega. 70

demonstrar muita simpatia por este tipo de movimento. É apenas uma pessoa que se opõe à ditadura – o que só é compreendido pelo fato de ter aceitado receber um militante clandestino em sua casa –, mas que não pratica nenhum tipo de ato efetivamente político contra esse regime, situando-se mais propriamente no universo “pequeno-burguês”, para utilizar uma expressão da época, reproduzida no filme. Durante sua trajetória na trama, tem-se a impressão de que Pedro demonstra boa vontade em ajudar a causa pela qual ‘Thiago’ arriscava a vida, mas que, ao mesmo tempo, não quer abrir mão do conforto e segurança material que conquistara. É, enfim, uma pessoa que apresenta características ambíguas (é egoísta, por um lado, e solidário, por outro) e completamente humanas; longe das figuras heróicas, encontradas nos outros filmes.

Segundo o ex-militante e jornalista Alípio Freire, esta tendência memorialística de resumir a luta armada a um movimento limitado a grupos de estudantes de classe média, constitui uma leitura que ainda está associada à versão oficial conservadora159. Nesta versão, isolam-se os guerrilheiros em um grupo de “jovens rebeldes” e, com isso, desvincula-se esse movimento de algo efetivamente político e que fez parte da história da sociedade brasileira, ainda que não apoiado integralmente por esta. Portanto, ao fazer um balanço das memórias que foram construídas através das mais diversas linguagens, inclusive a cinematográfica, sobre o movimento da luta armada no Brasil dos anos de 1960, Alípio Freire conclui, apropriadamente, que

o mais correto seria entendermos que esses sujeitos (que não foram os únicos, ainda que possam ter sido a maioria e que ganhou visibilidade naquele momento) não eram “jovens-estudantes-da-classe-média”, como pretende o cacoete, mas jovens trabalhadores cuja grande maioria ainda estudava, somados a profissionais do setor do trabalho intelectual160.

Percebe-se, portanto, que os autores de Cabra-Cega concordam com as ponderações de Alípio Freire (que inclusive prestou consultoria à produção do filme) e, por isso, optam por oferecer ao espectador personagens que fogem ao padrão estigmatizante dos guerrilheiros até então apresentados. Até mesmo ‘Thiago’, apesar de ter saído do meio universitário – como revela o filme através de uma breve alusão ao seu passado – não constitui o perfil do intelectual-padrão. O protagonista é demonstrado como uma pessoa de ação e não de expressões verbais; não faz de sua fala um discurso, preferindo, na maioria das vezes,

159 FREIRE, Alípio. Algumas distorções nas leituras de 1968. Revista Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, Edição Especial, ano 21, maio 2008, p. 61-64. 160 Idem, Ibidem, p. 64. 71

permanecer calado. Com isso, observa-se a construção de uma representação mais complexa e menos generalizante dos militantes que ingressaram na luta armada.

Um outro personagem que merece destaque no filme, pelo menos sob o olhar do historiador, é a vizinha do apartamento de Pedro, que acaba estabelecendo uma determinada relação de amizade com o guerrilheiro ‘Thiago’. Após alguma insistência por parte de Dona Nenê (interpretada por Bri Fiocca), ‘Thiago’ abre a porta do apartamento para conversar rapidamente com aquela senhora, recebe as guloseimas oferecidas por ela e acaba aceitando o convite para jantar em sua casa.

A existência de Dona Nenê na trama possui duas funções primordiais. A primeira refere-se ao aspecto da transformação interna do protagonista. À medida que sua causa política vai se deteriorando, com a iminente derrota da luta armada, ‘Thiago’ tenta, mesmo que de forma inconsciente, resgatar a sua sensibilidade e traços de uma vida particular que haviam sido perdidos para a política. Ao aceitar a pequena interferência de Dona Nenê em sua vida de reclusão, ‘Thiago’ se “desarma” um pouco de sua personalidade guerrilheira e passa a admitir novamente o afeto em sua vida.

Outra função da referida personagem está na intenção dos autores do filme em estabelecer uma associação entre as ditaduras existentes nos diversos países, apesar das especificidades de cada uma delas. Dona Nenê é uma espanhola que fugira da ditadura franquista com o marido, após ter perdido o filho para a repressão. O pequeno diálogo estabelecido durante o jantar procura deixar bem claro que, para aqueles que foram perseguidos por um governo ditatorial, ou para aqueles que perderam seus entes para o mesmo, não há diferenças significativas entre um país e outro, pois, como adverte Dona Nenê, “… dictaduras solo cambian la dirección […] Las pérdidas son las mismas”. Outra associação entre ditaduras, mais sutilmente estabelecida pelos autores, encontra-se em um diálogo onde ‘Thiago’ explica a ‘Rosa’ que ‘Mateus’ era um militante muito experiente, pois já havia sido até torturado no governo de Getúlio Vargas. Fica evidenciado, aqui, a intenção dos autores de Cabra-Cega de associar o processo político brasileiro do regime militar a outros contextos, também marcados pela existência de regimes ditatoriais, dentro e fora da história do país.

Em um clima intensamente claustrofóbico, o filme Cabra-Cega desloca para um enfoque intimista a sua visão da luta armada. O primeiro diálogo do filme só ocorre após 72

quase oito minutos de iniciada a trama de Cabra-Cega161, aumentando o efeito angustiante e ao mesmo tempo monótono que os autores procuram imprimir à história, como se os espectadores devessem sentir a mesma agonia de ‘Thiago’, devido à sua privação da liberdade. Como informa o próprio roteirista, “o sentimento do personagem estava mais presente nas entrelinhas, gestos e interpretação do que na expressão verbal óbvia”162, o que fez, inclusive, com que vários diálogos existentes no roteiro original fossem suprimidos no momento das filmagens.

Outro recurso cinematográfico que caminha nesse mesmo sentido está no movimento de câmera que predomina no filme, deslocando-se pelo apartamento como se lá estivéssemos, juntamente com o protagonista. Ao invés de optar pelo seu uso tradicional, onde “a câmera tenta se comportar como se fosse o olho humano diante de um conjunto de objetos ou de pessoas”163 e geralmente permanece fixa em um ponto, Cabra-Cega trabalha com a denominada “câmera nervosa” ou “câmera na mão”, onde o operador não se preocupa com a movimentação irregular, muitas vezes trêmula, de sua câmera.

Neste ponto, merece ser mencionado que o apartamento/aparelho em que ‘Thiago’ se esconde não deve ser visto como um simples cenário, apresentando-se como um verdadeiro personagem à parte neste filme. O clima claustrofóbico do aparelho é criado pelo cineasta, entre outras formas, através de uma montagem que privilegia o uso da câmera subjetiva164, concedendo aos espectadores a tensão vivenciada pelo protagonista que não pode sair nem ser visto ou ouvido por ninguém de fora do apartamento. Outro recurso que objetiva a reprodução do clima de tensão é produzido através do tempo psicológico expresso no filme: há uma intencionalidade em demonstrar certas ações cotidianas executadas pelo protagonista de uma maneira bem lenta, como o simples ato de escovar os dentes. A preocupação de não ser visto nem ouvido transformam atitudes banais, no interior de um apartamento, em tarefas complexas e arriscadas, como o ato de entrar na cozinha e abrir a geladeira.

161 Na verdade, há uma única frase pronunciada por Rosa, antes mesmo de aparecer o título do filme, mas o primeiro diálogo entre personagens só acontece aos sete minutos e quarenta e cinco segundos após iniciado o filme. 162 VENTURI, Toni; KAUFFMAN, Ricardo. Cabra-cega: o caminho do filme. Do roteiro de Di Moretti às telas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 225. 163 BERNARDET, Jean Claude e RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988, p. 15. 164 Pela definição de Ismail Xavier: “A câmera é dita subjetiva quando ela assume o ponto de vista de uma das personagens, observando os acontecimentos de sua posição, e, digamos, com os seus olhos […] É neste momento que o mecanismo de identificação torna-se mais eficiente (não surpreende que seu uso sistemático seja nos momentos de maior intensidade dramática)”. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 34-35. 73

O mundo exterior se mostra a ‘Tiago’ somente através da televisão ou do olho mágico, o qual observa com certa compulsão. Quando a janela da cozinha é observada pelo protagonista, a câmera a revela como uma forma de prisão, em referência ao confinamento em que ele se encontra.

Fig. 4 - A visão pelo olho mágico Fig. 5 - A janela como uma prisão

Ao longo da crescente angústia interna do protagonista, que não pode sair do aparelho, observa-se que o mundo exterior que o circunda vai se deteriorando. A luta armada está sendo violentamente derrotada pelo regime militar. Algumas cenas são bem explícitas, nesse sentido, ao se referir, por exemplo, à morte de Lamarca que ‘Thiago’ fica sabendo pela notícia veiculada na TV165. Outras já oferecem um significado mais sutil e até mesmo metafórico e poético, como a visão que ‘Thiago’ possui do teto do quarto em que dorme no apartamento de Pedro. Se no início da trama a rachadura existente no teto ainda é pequena e quase imperceptível, à medida que ocorre um recrudescimento do ambiente em torno do personagem e o cerco aos guerrilheiros do filme vai se fechando, a rachadura vai aumentando, dando ao quarto do protagonista um aspecto cada vez mais decadente e desolador, como, afinal, se apresentava a perspectiva da luta armada naquele ano de 1971.

165 Vale acrescentar que o assassinato de Carlos Lamarca é o único fato apresentado no filme que o situa cronologicamente (no ano de 1971). A intenção de não revelar fatos que referenciem a ficção é proposital, como revela o roteirista do filme: “A ausência de informação temporal ao espectador é um recurso usado pela direção para dar maior amplitude à trama e dramaticidade ao confinamento do personagem principal”. VENTURI, Toni; KAUFFMAN, Ricardo. Cabra-cega: o caminho do filme..., p. 34. 74

Fig. 6 - Os quatro momentos da rachadura na parede do quarto de ‘Thiago’

Em um breve diálogo com um militante armado, sem muita importância na trama, ‘Thiago’ explicita o seu desejo de, ao se recuperar e sair daquele aparelho, montar um novo grupo de guerrilha, convidando ‘Miguel’ (interpretado por Luciano Quirino) para participar do mesmo. A vontade do protagonista se justifica pelo fato de que o grupo armado em que ele se integrara estava em uma fase de recuo de suas ações para poupar os seus quadros, em função da repressão que se intensificara naquele momento. ‘Thiago’, em diversas cenas, demonstra a sua insatisfação com essa decisão, o que resulta na sua intenção de formar um novo grupo.

Sabe-se que a oposição clandestina à ditadura brasileira chegou a mais de quarenta grupos, que surgiram de organizações-matrizes, muitas delas existentes anteriormente ao golpe de 1964166. As origens dessas dissidências situam-se na crise representacional dos partidos e movimentos de esquerdas, atuantes antes do golpe, mais especificamente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a Ação Popular (AP) e a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (Polop). Tais organizações- matrizes não estariam, segundo os grupos dissidentes, preparados adequadamente para a

166 Sobre a formação dos grupos armados brasileiros no contexto do regime militar, conferir: RIDENTI, Marcelo. Esquerdas revolucionárias armadas nos anos 1960-1970, in FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão (Orgs.). Revolução e democracia (1964-...), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 21-52. 75

revolução e ainda eram acusadas de não terem resistido ao golpe de 1964. Além disso, mesmo entre os grupos dissidentes havia vários pontos de desacordo, especialmente relacionados à forma de luta revolucionária, se mais próximas do modelo cubano, soviético ou chinês, entre outras discordâncias.

Voltando ao filme Cabra-Cega, a importância da cena anteriormente citada (entre ‘Thiago e ‘Miguel’) está na preocupação dos autores do filme em evidenciar os constantes conflitos e dissidências existentes entre os grupos de luta armada no Brasil, durante o período analisado. Mesmo buscando um tratamento de valorização e até mesmo uma homenagem a esses atores sociais, Toni Venturi e Di Moretti não deixam de explicitar as fissuras presentes em suas atuações no processo histórico de oposição à ditadura. Passam uma mensagem que parece dizer que valorizar um determinado sujeito histórico não significa apresentá-lo como um super-herói, indefectível e sempre maduro em suas ações, mas humanizá-lo e, portanto, torná-lo mais real (mesmo em um filme de ficção).

Enfim, o filme Cabra-Cega propõe uma leitura cinematográfica da luta armada significativamente diferente dos filmes anteriormente analisados. O guerrilheiro não é apresentado de forma simplista e monolítica, como costumava predominar nas representações cinematográficas sobre o tema. Ele não deixa de ser o protagonista da trama, de ter o seu papel político valorizado nas telas, mas não é mais o guerrilheiro-herói, impecável em suas atitudes, com discursos didáticos e altamente convincentes, que possui uma visão madura e total discernimento sobre o momento histórico do qual participa. Sobressai-se o lado humano desse guerrilheiro, que comete erros, que se angustia com as escolhas feitas, que ora está convencido das causas políticas pelas quais está lutando e ora está em busca dos afetos e da vida particular perdidos.

Além do personagem principal, Venturi e Moretti intencionam mostrar outros atores sociais que igualmente participaram do processo de oposição à ditadura militar. No núcleo central da trama, observa-se ‘Rosa’: a militante de base, oriunda da um nível social baixo, que está na causa por intermédio das influências políticas paternas (e, portanto, não está necessariamente se opondo à geração anterior – outro estereótipo muito reproduzido). Além de Pedro: profissional liberal de classe média, que repudia o seu governo, concorda em transformar o seu apartamento em um aparelho clandestino (também em consideração a seu pai, que fora amigo de ‘Mateus’), mas que evita envolver-se mais do que isso, por medo ou por comodismo. 76

Portanto, sem deixar de expor a questão do fracasso da utopia167, o filme Cabra-Cega oferece um novo olhar sobre o tema, que busca uma representação mais complexa e humanizada em relação aos participantes da luta armada no Brasil, contribuindo para a construção de uma memória bem diferenciada das anteriormente analisadas, onde se procura desconstruir certos estereótipos estabelecidos, sejam os que conferem caráter heróico aos guerrilheiros, sejam os que os vilanizam.

2.2.4 O olhar de uma mãe

Doze anos após o lançamento de Lamarca, Sérgio Resende volta a tratar do regime militar no cinema. Desta vez, sua escolha se dirige à trajetória dramática de uma mãe que perdera o seu filho, primeiro para a luta armada, depois para a repressão governamental.

Trata-se de Zuleika Angel Jones (interpretada por Patrícia Pillar), uma das mais representativas estilistas brasileiras do século passado, conhecida internacionalmente por seus desfiles, especialmente nos Estados Unidos. Era mãe de Stuart Edgard Angel Jones (interpretado por Daniel Oliveira), desaparecido no dia 14 de junho de 1971, ao ser preso no bairro do Grajaú, no Rio de Janeiro. Stuart pertencera ao MR-8, a mesma organização armada de Carlos Lamarca168. Os dois se conheceram e atuaram juntos em algumas pequenas ações guerrilheiras169.

Sérgio Resende decide não somente resgatar a temática do regime militar no cinema, com a qual já trabalhara, mas novamente realizar uma cinebiografia. A preferência por filmes com enredos históricos170 torna-se uma marca do referido cineasta, especialmente por aqueles que tratam de episódios históricos e personagens reais, pois, como ele mesmo salienta: “Grandes personagens e grandes histórias [de vida], eu acho que são uma coisa muito forte no cinema”171.

167 Ao mostrar uma seqüência de imagens documentais dos anos 60, opta-se por encerrá-la com a foto de Che Guevara, morto na Bolívia. Em outra seqüência, em que é inserido no filme mais um fato histórico, é escolhida a morte de Lamarca. Ou seja, nos poucos momentos em que se inserem episódios reais em um filme de ficção, isto acontece com o objetivo de se remeter ao fracasso da luta armada. 168 Lamarca deixa a VPR e integra-se ao MR-8 em abril de 1971. 169 Sobre a trajetória política de Stuart Jones, ver: MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos (Orgs.). Dos filhos deste solo..., p. 398-400; GORENDER, Jacob. Estertores da esquerda armada e embriões da autocrítica, in Combate nas trevas..., p. 198-206. 170 Em sua carreira de cineasta encontram-se, além dos filmes aqui analisados: O homem da capa preta (1985, sobre a vida do deputado Tenório Cavalcante), Guerra de Canudos (1997) e Mauá – o Imperador e o Rei (1999). 171 Entrevista concedida por Sérgio Resende, na seção dos Extras do DVD Zuzu Angel. 77

O filme Zuzu Angel estabelece como tempo presente da narrativa o ano de 1976. No entanto, o filme trabalha com diversas idas e vindas no tempo, fazendo inclusive com que a maior parte da trama transcorra no ano de 1971. Esta estrutura não-linear, marcada pela introdução constante do recurso de flashback, fornece um ritmo intenso de suspense ao filme, sem dúvida atraente para o espectador, especialmente àquele que não conhece o desfecho desta trama.

Também merecem destaques o papel da iluminação e o do figurino na configuração de um efeito dramático sobre a história de Zuzu Angel. Enquanto as cenas que se referem ao sucesso profissional da estilista são marcadas por luzes fortes e intensos contrastes, o drama pessoal da protagonista é caracterizado por cenas com luzes fracas e opacas. Contraste semelhante se observa na produção dos cenários e do figurino de Zuzu Angel, onde se destacam a cor verde para o período anterior à prisão de Stuart e o vermelho para o período posterior, marcando a dramaticidade de sua vida após o conhecimento deste fato. O contraste entre uma vida bem sucedida e alegre e, após a notícia da prisão de Stuart, uma vida marcada pela perda de um filho e pelo confronto com a realidade política do país, é tratada simbolicamente pela direção de fotografia (Pedro Farkas) e de arte (Marcos Flaksman). Evidencia-se, assim, como determinados recursos técnicos cinematográficos são conscientemente utilizados para proporcionar certos efeitos sobre a história a ser contada. E, assim, este filme de Sérgio Resende possui um cuidado especial nesses aspectos, o que proporciona ao espectador uma imersão maior na trama narrada nas telas.

Fig. 7 - Efeitos da iluminação do filme sobre a história de Zuzu Angel: a utilização dos contrastes 78

Fig. 8 – Efeitos do cenário sobre a história de Zuzu Angel: novamente, os contrastes

O filme Zuzu Angel procura oferecer um olhar diferenciado sobre a luta armada no período ditatorial, em relação aos filmes produzidos na década de 1990. Sem deixar de tratar o tema da luta armada como mote principal da trama narrativa, Sérgio Resende o apresenta sob o ponto de vista de uma mãe de um guerrilheiro, fato inovador no cinema que aborda o regime militar. A memória elaborada por este filme é a memória que focaliza aqueles que sofreram com a perda de seus familiares e amigos próximos. O sofrimento de Zuzu Angel – como, muito provavelmente, foi o sofrimento de muitas mães na época – configura-se como um duplo sofrimento. Primeiro, por perder seu filho para a clandestinidade, para a luta armada, que já lhe retirara a convivência com seu filho. Posteriormente, Zuzu o perde para o governo militar, com a prisão seguida da morte de Stuart. Nota-se, deste modo, que tanto a guerrilha como a repressão são apresentadas, no filme, como causadoras de agonia e sofrimento de uma mãe. A crítica que se constrói, portanto, é uma crítica endereçada aos “dois lados”, pois ambos privaram a convivência entre mãe e filho. Uma visão, até então, inovadora para a memória que se deseja construir sobre aquele momento da história do país.

As inovações, no entanto, não prevalecem em todos os aspectos do filme de Sérgio Resende. Antigas mitificações e reproduções estereotipadas também são percebidas em Zuzu Angel, o que só demonstra a complexidade e multiplicidade de significados que se depreende de uma obra cinematográfica.

Chama atenção, em primeiro lugar, a recorrência imagética à figura de Carlos Lamarca. O filme se utiliza de sua imagem por duas vezes, além de inserir uma cena onde dialogam Zuzu e o pai de Lamarca (interpretado por Nelson Dantas, o mesmo ator que atua como pai dele no filme-homônimo). Lamarca aparece, primeiramente, em uma foto de capa 79

de jornal, com a notícia de sua morte, e em uma cena de um assalto a banco172, onde Stuart participa com ele. Há, como se vê, a intenção de se associar a história não tão conhecida de Zuzu e Stuart Angel a um mito da luta armada brasileira – mitificação esta elaborada, inclusive, sob a influência do próprio cineasta, como demonstrado no filme Lamarca.

Destaca-se, neste momento, a intenção de Sérgio Resende de também tratar Stuart Angel – um guerrilheiro do “baixo escalão” do MR-8 – como um herói. Intenção explicitada quando Zuzu Angel, ao conversar com o pai de Lamarca, assim conclui sua fala: “O meu filho morreu para salvar o seu”, frase que se explica pelo fato de que o objetivo principal da prisão e do interrogatório (seguido de tortura) de Stuart era obter informações sobre o paradeiro de Lamarca, um dos líderes de seu grupo armado.

O tratamento concedido aos guerrilheiros, em Zuzu Angel, não se diferencia muito dos filmes produzidos na década de 1990 – Lamarca e O que é isso, companheiro? –, o que remete à confirmação de que as estereotipizações estão presentes na memória cinematográfica sobre o regime militar desde o período citado até os dias atuais.

Um primeiro aspecto que conduz o filme neste sentido encontra-se no fato de que os guerrilheiros com alguma centralidade no enredo são apenas Stuart, o filho de Zuzu, e sua namorada e posterior esposa, Sônia Maria Moraes Angel Jones (interpretada por ). Não há nenhuma cena em que apareçam outros guerrilheiros que pudessem ter relações com o referido casal173. Não são expostos diálogos e/ou cenas que demonstrem o envolvimento político-revolucionário do casal, salvo pela participação de ambos em uma única manifestação de rua. Os dois personagens são mostrados, portanto, isolados do contexto de atuação da luta armada ao qual pertencem. Aparecem mais como jovens contestadores; apenas isto.

A explicação acima é realçada pelos diálogos que ambos estabelecem com Zuzu Angel. Lembrando que se trata da protagonista do filme – aquela com quem o espectador deve se identificar –, as conversas travadas demonstram sempre a inconsistência argumentativa por parte dos jovens guerrilheiros e a coerência discursiva de Zuzu, como se pode observar no seguinte diálogo, que ocorre após a mãe reclamar da participação de Stuart na manifestação de rua, nos primeiros momentos do filme:

172 Esta cena foi feita com o intuito de reproduzir a mesma cena de assalto a banco que se vê no filme Lamarca, conforme explica o próprio diretor em entrevista concedida na seção dos Extras do DVD Zuzu Angel. 173 Apenas é mostrada a narração em off do guerrilheiro ‘Alberto’, em carta para Zuzu, onde conta o que ocorrera a seu filho. 80

STUART: _ Demos uma lição naqueles porcos imperialistas! ZUZU: _ Quem são os porcos? STUART: _ O FMI é um deles […] Mas ontem eles aprenderam. ZUZU: _ Aprenderam o quê? SÔNIA: _ Nós demos uma lição neles! ZUZU [com extrema ironia]: _ Eu ouvi no rádio: duas vidraças quebradas na Sears e uma no Banco Lar do Brasil. SÔNIA: _ Os gringos precisam saber que eles não vão explorar o Brasil impunemente! STUART: _ Tivemos total apoio da massa. A insatisfação é profunda, mãe. ZUZU: _ Santa ingenuidade […] Vocês estão enganados […] Gente, eu vejo minhas costureiras. Elas viajam que nem sardinha em lata; tomam condução de madrugada. Não têm tempo, nem cabeça, pra ficar andando atrás de vocês. STUART: _ Minha mãe está defendendo a ditadura? ZUZU: _ Não foi isso que eu falei […] Só que está todo mundo lutando para sobreviver. Ninguém tem tempo para política!

Além do tom um tanto artificial da fala dos dois militantes, como se em qualquer hora e lugar necessitassem proferir discursos políticos, sobressai-se, por contraste, não somente a naturalidade com que Zuzu discorre sobre o assunto, mas também a visão realista que ela apresenta em relação à não adesão da sociedade brasileira à causa revolucionária. Neste diálogo, Zuzu demonstra possuir muito mais visão política do que os militantes engajados, como Stuart e Sônia. Visão política reforçada em várias outras cenas, como aquela onde Zuzu parte em busca do filho na prisão, questionando-se: “Cadê o povo, que ele defende, para agora tirar ele de lá?”.

Vale destacar, ainda, um outro diálogo entre Zuzu e o filho, onde o discernimento e a racionalidade da protagonista sobressaem-se explicitamente, deixando transparecer também mais uma das estereotipizações habituais da memorialística sobre a luta armada: a de que a guerrilha era formada quase que exclusivamente por jovens rebeldes e aventureiros de classe média das grandes cidades.

ZUZU: _ Um grupo de classe média do Rio de Janeiro decidiu que vai fazer uma revolução no Brasil. E o meu filho é um deles! STUART: _ Desculpe mãe. Eu não devia ter vindo. Foi um momento de fraqueza. ZUZU: _ Como seria bom se vocês todos tivessem mais momentos de fraqueza. Pra entender que vocês têm ótimos sentimentos e péssimas idéias, filho. [Grifos meus] 81

Como já foi mencionado, a curva dramática da protagonista possui duas fases distintas: o momento anterior ao seu conhecimento sobre a prisão de Stuart; e a sua transformação interna, à medida que vai se inteirando sobre os fatos acontecidos e o inevitável contato com a realidade da ditadura no Brasil. Essa curva não se mostra de maneira linear, pois, como já foi dito, o filme trabalha com idas e vindas no tempo, reforçando o contraste entre as “duas vidas” de Zuzu Angel. Importa destacar, neste aspecto, que a transformação da personagem-título não se dá, em nenhum momento, no sentido de passar a compreender as causas políticas que levaram seu filho e sua nora à prisão e à morte por agentes do governo militar. Zuzu não reflete sobre a ditadura, nem sobre a política brasileira que teria levado àquela situação-limite para alguns de seus parentes. A sua indignação e obstinação se dá em torno das responsabilidades do Estado sobre o desaparecimento de seu filho, ou seja, Zuzu questiona e critica a Justiça sob o período militar, e não exatamente a política desse regime de governo. Não por acaso, uma das seqüências-chave do filme se dá no interior do Tribunal Militar, onde Stuart Angel é julgado e considerado inocente. Zuzu Angel revolta-se contra aquela situação humilhante, onde seu filho – já morto – está sendo julgado:

ZUZU: _ Só com liberdade se pode prender. Só com ela se pode julgar. Também só com liberdade se pode condenar ou absolver. Mas aqui, assassinos arvoram-se em juizes! JUIZ: _ A senhora meça suas palavras! Senão será presa por desacato a este tribunal. ZUZU: _ Desacato foi não terem cumprido a lei na hora em que prenderam Stuart! Desacato foi não terem cumprido a lei na hora de interrogá- lo! Desacato é torturar e matar! Desacato é impedir o direito sagrado de uma mãe enterrar seu filho!

Esta cena, com toda a sua carga dramática (impossível de traduzir aqui, apenas com a reprodução dos discursos verbais), resume significativamente a proposta dos autores do filme, qual seja, o drama de uma mãe e sua batalha pública para provar a farsa montada pelos militares em relação ao desaparecimento de seu filho. Quando Sérgio Resende fala sobre o filme que acabara de produzir, assim o define: “A história de Zuzu é atemporal, que é esse tema do direito, da justiça… e, ao mesmo tempo, esse tema do amor entre mãe e filho”174.

Se, por um lado, Zuzu Angel reproduz alguns antigos estereótipos dos guerrilheiros, também encontrados no outro filme do cineasta (Lamarca), por outro lado, observa-se uma determinação maior de Sérgio Resende em apontar as conexões existentes entre os diversos

174 Entrevista concedida na seção dos Extras do DVD Zuzu Angel. [Grifos meus] 82

escalões das Forças Armadas no processo de repressão, desaparecimento e assassinato de membros dos movimentos das esquerdas armadas no Brasil, assunto que será aprofundado no próximo capítulo.

Nesse mesmo sentido, é válido destacar uma delicada questão que o cineasta aponta no filme, apesar de não a ter aprofundado. Refiro-me à cena em que Zuzu Angel resolve conversar com um padre (interpretado por Ivan Cândido) da capela da Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, onde supostamente encontrava-se Stuart. A protagonista pergunta ao padre sobre o paradeiro de seu filho. Após responder que não conhecia quase nenhum preso, pois quase todos eram ateus, o padre declara:

PADRE: _ Fique descansada. Tudo isso que se diz sobre as prisões é propaganda comunista. Eu não sei se seu filho está na Base, mas eu vou procurar saber… Uma coisa eu lhe garanto, minha filha, as torturas de que tanto falam, não é nada disso. Os tais choques são levinhos. É uma maquininha à toa, minha filha; que não mata ninguém. ZUZU: _ Mas padre, ainda que sejam leves, a Igreja concorda com isso? PADRE: _ Dona Zuleika, foram esses rapazes que escolheram o caminho da violência. ZUZU: _ O quê que o senhor está me dizendo?! PADRE: _ O pastor tem que proteger o seu rebanho. ZUZU: _ Mas já não basta a lei, padre? Agora vale tudo? PADRE: _ O pastor tem que proteger todo o seu rebanho. ZUZU: _ O senhor não representa a Igreja brasileira, que nunca apoiou a tortura. E por tudo o que o senhor pensa, o senhor deveria se ajoelhar, rezar e pedir perdão a Deus. [Grifos meus]

Como se pode perceber, há neste diálogo uma tentativa de questionamento sobre a posição da Igreja Católica em relação à prática de tortura efetuada sob a vigência do regime militar. Mas, ao mesmo tempo em que questiona, o filme já apresenta uma resposta fechada: a posição daquele padre “não representa a Igreja brasileira”, conforme esclarece a protagonista. A memória que se constrói nesse filme é uma memória crítica em relação à ditadura brasileira, mas ainda predomina o silêncio ao se tratar de certos aspectos polêmicos e delicados como este175. Quando a protagonista afirma que a Igreja Católica não compactua com a ditadura militar, o filme dirige o espectador para uma interpretação histórica que ignora o apoio de grande parte desta instituição religiosa ao golpe de Estado que destituíra João

175 Vale ressaltar que, no ano de 2007, foi produzido o filme Batismo de Sangue (Helvécio Ratton), onde as relações entre Igreja Católica, luta armada e regime militar são tratadas com maior profundidade. 83

Goulart do poder presidencial e instituíra quase vinte e um anos de ditadura no Brasil176. Ignora também a omissão de parte considerável de membros da Igreja às denúncias de tortura durante alguns anos de vigência do regime militar, só vindo a criticar com maior ênfase a referida prática em um momento em que a mesma já se tornara insustentável e o regime já apresentava sinais de decadência. Ignora, por fim, o fato de que membros da Igreja Católica que se opuseram com mais contundência ao governo militar foram, muitas vezes, repreendidos por esta instituição, considerados como insubordinados e fomentadores de idéias comunistas. Observa-se, portanto, a preferência dos autores de Zuzu Angel por, apesar de tocar na questão, não aprofundar uma possível discussão crítica sobre o papel ambíguo da Igreja Católica em determinados momentos históricos, ora de apoio, ora de oposição ao regime militar no país.

No que tange a outros setores da sociedade, o filme evidencia a omissão que imperava em boa parte da população brasileira em relação à ditadura que se implantara. Na narrativa cinematográfica, várias cenas demonstram desde a alienação completa em relação ao tipo de regime político que se instaurara, até o apoio ideológico ao mesmo, passando pela omissão, deliberada ou não, à ditadura. Apenas para citar alguns exemplos: há a cena em que o dono de um banco (amigo de Zuzu Angel) manifesta seu desprezo às ações guerrilheiras e seu apoio ao regime; em uma outra cena, Zuzu exprime no microfone do avião que chegava ao Rio de Janeiro a sua crítica à ditadura e nenhum passageiro se pronuncia; em seu desfile-protesto nos Estados Unidos, onde apresenta roupas com críticas simbólicas à ditadura militar, o público se expressa retirando-se do local antes mesmo de acabar o desfile; e quando Zuzu resolve distribuir publicamente cartas onde divulga o que acontecera a seu filho, a cena mostra uma mulher na rua que se recusa a recebê-la, retirando-se assustada e apressadamente. O olhar fílmico produzido por essas cenas, portanto, revela uma sociedade que teme ou desconhece a luta armada, suas ações e reivindicações. Vale lembrar que esta intenção do cineasta já se fazia presente em 1994, quando produziu Lamarca, onde também insere uma razoável quantidade de cenas que revelam o isolamento político da luta armada, apontando este aspecto como provável fator para o fracasso desse movimento.

176 Como exemplo simbólico deste apoio da Igreja Católica e de seus fiéis ao golpe de 1964, aponta-se a organização, por esta instituição, da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, primeiramente no dia 19 de março, em São Paulo e, posteriormente, no dia 02 de abril, no Rio de Janeiro, este já em comemoração à tomada do poder pelos militares. Cf. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. João Goulart e a mobilização anticomunista de 1961- 1964, in FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 129-148. 84

Zuzu Angel é, portanto, um filme que traz novas reflexões sobre a temática da luta armada no período do regime militar, ao mesmo tempo em que reproduz alguns velhos estereótipos. Destaca-se entre as inovações a perspectiva do olhar de uma mãe sobre a participação de seu filho em um movimento de guerrilha urbana. Se a maioria dos filmes sobre o regime militar, até então produzidos, tratava desta mesma temática situando o próprio guerrilheiro como protagonista de suas narrativas, este filme de Sérgio Resende apresenta um novo ponto de vista. É colocado em relevo, nesta nova visão, o sofrimento daqueles que possuíam parentes envolvidos diretamente na luta contra a ditadura, especialmente daqueles que perderam seus familiares. A memória da luta armada, sob este novo olhar, não deixa de apresentar os guerrilheiros como “vítimas” de um regime cruelmente repressor, mas também atribui aos mesmos o papel de causadores de sofrimento e angústia a seus parentes.

Fig. 9 - A perspectiva da luta armada através do olhar de uma mãe

O ponto de vista da luta armada pelo olhar de uma mãe acaba impondo um silenciamento sobre a perspectiva dos guerrilheiros. Suas vozes praticamente não são ouvidas no filme em questão e, quando são, elas aparecem subjugadas pelo didatismo, logo pela artificialidade. Com isso, e em contraste com a habilidade discursiva da protagonista, a figura do guerrilheiro que se constrói reproduz a estereotipização do jovem-guerrilheiro-de-classe- média, sintetizada em uma frase de Zuzu Angel, proferida com extrema ironia, já mencionada neste trabalho: “Um grupo de classe média do Rio de Janeiro resolveu fazer uma revolução no Brasil”.

85

2.2.5 O olhar de um filho

“Belo Horizonte, 1970”. Esta legenda, exposta aos três minutos do filme, informa ao espectador o lugar e a cronologia exata do enredo fílmico, que está apenas começando. Enredo que será totalmente conduzido pelo olhar e pela sensibilidade de um menino de onze anos de idade. Trata-se de Mauro (interpretado por Michel Joelsas), filho de um casal que, logo no início da trama, se vê obrigado a “cair” na clandestinidade e, por este motivo, abandonar o filho a sua própria sorte, em uma cidade estranha para ele (São Paulo) e em uma comunidade que lhe causa mais estranhamento ainda (o bairro do Bom Retiro, de predominância judaica).

O filme O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, finalizado no ano de 2006, pode ser considerado o mais denso e complexo dos cinco filmes analisados no presente estudo, no que se refere às representações do regime militar brasileiro.

A afirmação acima se baseia, primeiramente, no fato de que os temas da clandestinidade, dos guerrilheiros e da luta armada são trabalhados no filme de uma forma muito implícita, ou praticamente ausente. Os pais de Mauro – Daniel (interpretado por Eduardo Moreira) e Bia (interpretada por Simone Spoladore) – permanecem em cena por pouco mais de sete minutos, no início do longa-metragem, e depois desaparecem, pois precisaram “sair de férias” rapidamente. A mãe de Mauro reaparece nos cinco minutos finais da trama. Já o pai, não retorna de suas “férias”. O filme de Cao Hamburger lida, portanto, com algumas lacunas e incertezas, como a ausência (dos pais de Mauro), o estranhamento (da comunidade para onde é levado), os questionamentos (sobre o paradeiro de seus pais e a situação política do país) e a solidão (de Mauro). Questões que aparecem sempre sob o ponto de vista da experiência do protagonista-narrador e que não são completamente solucionadas ao longo da trama.

Chama a atenção, no filme, que o contexto histórico-político que circunda a vida de Mauro é tratado de modo bastante tênue, através da presença de muitas metáforas (a começar pelo próprio título da obra), eufemismos e uma sutileza que contrasta com as narrativas fílmicas dos outros filmes analisados. Contraste percebido, especialmente, pela ausência de discursos eloqüentes, ou de cunho didático, ou mesmo panfletário. A atividade ou prática política, principalmente a de resistência, não se faz presente de maneira óbvia, mas nos detalhes do filme, nos gestos, nas ações cotidianas e nas entrelinhas – e não nos grandes atos heróicos –, cabendo ao espectador perceber e interpretar o momento político por sua própria conta. 86

Fig. 10 - A política aparece de forma sutil, em cenas do cotidiano de um bairro

O que pode parecer uma falta, na verdade faz parte de uma intenção deliberada dos autores desta obra, já que O ano em que meus pais saíram de férias procura representar o regime militar e a temática da luta armada através do olhar infantil, ou seja, sem muitas explicações e compreensões que tornem o mundo muito inteligível para este olhar. Mauro não entende por que seus pais sumiram; por que Shlomo (que dele cuida na nova residência em São Paulo e que é vizinho de seu avô falecido) foi preso; por que Ítalo, jovem amigo de seu pai, feriu-se e precisou se esconder ao invés de ir para um hospital; por que sua mãe retorna das “férias”, mas não está mais acompanhada de seu pai. O silêncio predomina, pois as representações da ditadura elaboradas pelo filme em questão são representações sob a ótica infantil. Por este motivo, o filme possui poucos diálogos e muita expressividade por parte dos personagens, especialmente de Mauro. As sensibilidades estão em primeiro plano.

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Fig. 11 - Mauro se expressa muito mais com o olhar do que com as palavras

A intenção de retratar um momento histórico a partir da perspectiva de uma criança também é direcionada pelo desempenho da câmera no filme, que praticamente se comporta como se fosse o personagem principal. As distâncias e os ângulos de filmagem são aqueles que representam a visão do menino. Nesse sentido, a câmera subjetiva é intensamente utilizada, além do primeiro plano (o close-up), que fornece com mais intensidade as expressões e os sentimentos do protagonista, como se percebe na figura acima.

Outro recurso de montagem, que caminha neste mesmo sentido, encontra-se na significativa composição de algumas imagens em que se percebe a relação entre o mundo exterior e interior, sob a perspectiva de Mauro. Especialmente nas cenas em que ele se encontra no interior do veículo de seus pais, indo em direção ao desconhecido (no início do filme) e, depois, indo embora de onde fora deixado, sem saber direito para onde. A sobreposição de imagens, mostrando, no mesmo quadro, a cidade de São Paulo (o mundo exterior) e o olhar expressivo de Mauro é uma cena que constrói os seus sentidos, sem precisar de um diálogo ou uma narração que lhe atribua significados. 88

Fig. 12 - Mauro observa o mundo exterior pela janela do carro

Importa salientar que os silêncios presentes no filme, no que se referem às questões políticas, não se restringem à perspectiva do olhar infantil. Cao Hamburger preocupou-se em demonstrar como a sociedade brasileira, de uma forma geral, calou-se neste aspecto, especialmente quando o assunto girava em torno dos opositores à ditadura. A cena emblemática do filme, neste sentido, foi construída em torno de uma reunião na sinagoga que Shlomo (interpretado por Germano Haiut) freqüentava, onde ele conta aos participantes sobre o caso de Mauro, afirmando não saber o que fazer com o menino, já que seu avô morrera e os pais estavam sumidos. Começam os comentários e alguns afirmam que o pai de Mauro era comunista e por isso precisou fugir. O rabino, então, interrompe rispidamente o falatório, reforça que os pais de Mauro saíram de férias e que não admitiria mais especulações sobre o paradeiro deles. Mostra-se, desta forma, uma sociedade que se silencia diante da política ditatorial ou dos movimentos de contestação a este regime. Por medo ou por convicção, a omissão predomina e este fato é contundentemente revelado neste filme.

O acontecimento que representa a mediação entre a vida de Mauro e o contexto histórico em que ele vive naquele momento é a Copa do Mundo de 1970. É através dela que Mauro passa a contar o tempo (para a chegada prometida dos pais), consegue progressivamente se relacionar com a nova comunidade e acaba possuindo algum contato com pessoas envolvidas na política da época.

O filme apresenta, neste ponto, uma interessante especificidade no processo de elaboração da memória sobre o período que é o contraste entre a alegria proporcionada por uma Copa do Mundo de futebol e os tristes tempos ditatoriais. Esse contraste, no entanto, não é construído de uma forma maniqueísta ou unidimensional. Algumas cenas procuram 89

desconstruir a dicotomia entre futebol e política177, demonstrando que muitas vezes os dois aspectos estavam intimamente imbricados. O pai de Mauro, por exemplo, era um militante da luta armada, fanático por futebol e esta paixão, inclusive, é mostrada como o elo de união entre pai e filho. Em uma seqüência muito significativa, os estudantes universitários do bairro de Bom Retiro assistem juntos ao primeiro jogo do Brasil na Copa. O estudante mais engajado politicamente, Ítalo (interpretado por Caio Blat), expressa em bom tom a sua opinião antes de começar a partida: “A Tchecoslováquia vencer é uma vitória do socialismo!”, recebendo o apoio dos colegas. Começa o jogo. A Tchecoslováquia faz rapidamente o seu primeiro gol. Ítalo e os amigos comemoram, ainda que moderadamente. Corta para a cena de Mauro, que assiste ao jogo na casa de Shlomo e observa Rivelino fazer um lindo gol de falta, empatando a disputa. Volta para a cena do mesmo grupo universitário comemorando o gol do Brasil, dessa vez, efusivamente.

Fig. 13 - Cena do gol da Tchecoslováquia Fig. 14 - Cena do gol do Brasil

Não há nenhum discurso político ou explicações para as reações aparentemente paradoxais dos estudantes. Não se coloca futebol de um lado, política do outro; trata-se o tema de uma maneira ambígua, ou seja, revelando os conflitos e as contradições inerentes àquele momento da história brasileira.

177 Essa oposição entre futebol e política estava muito presente no discurso das esquerdas, de base teórica marxista, que atribuíam um caráter alienante ao esporte, por ser um produto de consumo de massa e, portanto, politicamente manipulável. E, especialmente na Copa de 1970, o apoio à seleção brasileira era encarado como uma forma de apoio ao governo ditatorial. Cf. GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do esporte. Dimensões históricas e culturais do esporte das multidões, apud RIBEIRO, Luis Carlos. O futebol no campo afetivo da história. Movimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 10, n. 3, p. 99-111, set./dez. 1994. 90

O futebol também se revela no filme como uma metáfora da vida de Mauro, naquele contexto político que não compreendia por completo. Com a narração em off178 do protagonista da trama, assim se inicia o filme:

MAURO: _ Meu pai diz que, no futebol, todo mundo pode falhar. Menos o goleiro. Ele diz que os goleiros são jogadores diferentes, que passam a vida ali, sozinhos, esperando o pior.

Esta pequena reflexão expressa claramente a vida de Mauro, naquele momento, em que a solidão prevalece e onde a incerteza quanto ao futuro lhe faz esperar, intuitivamente, pelo pior. Não por acaso, escolhera a significativa posição de goleiro, ao adotar o futebol como esporte de sua preferência. O goleiro é o jogador de uma atividade coletiva, mas que assume uma posição solitária. Quase não sai da área, não pode praticamente se deslocar; deve ficar apenas esperando e se movendo quase que exclusivamente com o olhar. É assim que Mauro se posiciona a espera dos pais: evita se deslocar do apartamento do avô falecido, com a esperança de que eles retornem, ou pelo menos se comuniquem através de um telefonema. A cena em que o menino se revolta com a ausência e a falta de notícias dos pais não contém uma única fala. O espectador apenas observa Mauro jogando futebol de botão, sozinho. Repentinamente, o menino começa a deslocar progressivamente o goleiro de sua posição defensiva, afastando-o cada vez mais do gol, até retirá-lo por completo do tabuleiro. Mauro descumpre, desta forma, um dos “mandamentos” da posição de goleiro que lhe fora ensinado por seu pai. Rompe, simbolicamente, com a herança paterna e com a esperança de vê-lo naqueles dias. A partir desta cena, Mauro passa a se deslocar com mais desenvoltura pela comunidade que o acolheu.

Apesar de desconstruir alguns estereótipos relativos aos guerrilheiros e à luta armada, como a dicotomia entre futebol e política, presente entre os militantes das esquerdas no Brasil, Cao Hamburger não escapa completamente à reprodução caricatural de alguns guerrilheiros, como se observa especialmente na figura da mãe de Mauro e do estudante Ítalo. Ambos aparecem sempre extremamente tensos, como se o perigo estivesse em toda parte e, geralmente, estão fumando cigarros compulsivamente. Não há como fugir completamente a esse tipo de representação, pois não é difícil imaginar que a vida de um militante político naquela época – engajado na luta armada, como Bia, ou no movimento estudantil, como Ítalo – não fosse realmente permeada por muita tensão, desconfiança e medo. Mas isso não significa que, na vida privada, não houvesse espaço para a descontração e para relações mais

178 A “voz off” representa a voz de um personagem não presente na cena, geralmente narrando uma ação. 91

afetuosas e alegres, até mesmo entre aqueles que estavam na clandestinidade. A reprodução deste personagem-guerrilheiro mais estereotipado somente demonstra o quanto uma obra cinematográfica abriga uma polissemia que apresenta as suas tensões próprias. Como confirma Eduardo Morettin, ao propor uma metodologia de análise fílmica, “um filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato, fazendo desta tensão um dado intrínseco à sua própria estrutura interna”179.

Novamente referindo-me às sutilezas e metáforas trabalhadas no filme, vale destacar a cena final, onde Mauro finalmente deixa o bairro do Bom Retiro. Após o retorno misterioso de sua mãe – no dia da final da Copa do Mundo – e o mais misterioso ainda sumiço de seu pai – nenhuma explicação é dada ao menino sobre esse fato –, o pensamento de Mauro é narrado em over, na última cena do filme:

MAURO: _ E assim foi o ano de 1970. O Brasil se tornou tricampeão mundial. E, mesmo sem querer nem entender direito, eu acabei virando uma coisa chamada “exilado”. Eu acho que exilado quer dizer: ter um pai tão atrasado, mas tão atrasado, que nunca mais volta para a casa.

Assim, O ano em que meus pais saíram de férias apresenta uma representação muito peculiar no que se refere a alguns aspectos do regime militar no Brasil e à luta armada em particular. Como o filtro aplicado sobre a narrativa é o olhar de um menino de onze anos de idade, e este ainda se encontra construindo a sua visão de mundo, o filme se edifica através de questionamentos, muito mais do que respostas e elucidações; por ausências em detrimento de presenças. O olhar infantil sobre o período do regime militar é, portanto, o mote do filme. A dimensão política é exposta de maneira muito sutil, quase invisível, porque é Mauro quem está tornando inteligível este contexto para o espectador.

Observa-se que a escolha dos autores desta obra cinematográfica se fez no sentido de privilegiar uma visão sobre a luta armada ainda não muito explorada na memorialística do período: o olhar de uma criança. Não se trata apenas de uma mudança de foco narrativo, mas a necessidade de demonstrar um lado mais humanizado e, contrariamente, nada heróico na postura de muitos guerrilheiros que tiveram que abandonar filhos e outros parentes para se dedicar exclusivamente a causas políticas em suas vidas, como já monstrado por Sérgio Resende em Zuzu Angel.

179 MORETTIN, Eduardo. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro, in CAPELATO, Mª Helena et. al. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007 (USP: história social. Série Coletâneas), p. 42. 92

É revelado, neste momento, o quanto esse tipo de escolha provavelmente impôs um sofrimento muito intenso a vários filhos de guerrilheiros, primeiro pela ausência dos pais que se engajaram na luta armada, depois para aqueles que ainda os perderam, devido às mortes e “sumiços” causados pela repressão militar, como no caso do pai de Mauro. Ressalta-se, assim, o quanto a necessidade política é capaz de levar uma criança ao abandono, pois, como bem afirma a atriz Simone Spoladore, ao falar de seu personagem, “o amor leva ela [a mãe] a um ato de desamor”180.

Essa perspectiva nada gloriosa sobre a luta armada e sobre aqueles que se dedicaram à guerrilha no Brasil é, sem dúvida, resultante desse olhar mais plural e complexo que se constrói no cinema brasileiro atualmente. O ponto de vista de uma criança, assim como o de uma mãe (como em Zuzu Angel) ou de um guerrilheiro angustiado com suas escolhas (como em Cabra-Cega) são agora elementos constituintes de uma memória sobre o período. Uma memória que ainda reproduz algumas representações estereotipadas, mas que já traz, por outro lado, uma ampliação dos aspectos a serem retratados, assim como das perspectivas a serem reelaboradas nesse repensar através do cinema.

180 Entrevista da atriz, concedida na seção dos Extras do DVD O ano em que meus pais saíram de férias. 93

3. REPRESENTAÇÕES DA TORTURA E A (IN)VISIBILIDADE DO ESTADO

A tortura é a negação do humano – essa é a chave de sua eficiência (Renato Tapajós)

3.1 Memórias da dor

Ao se trabalhar com o passado recente, como é o caso do regime militar brasileiro, é necessário ter em mente que se está lidando com questões ainda muito polêmicas, em constante processo de reelaboração e, conseqüentemente, de conflitos em torno da memória que se deseja solidificar no presente e se perpetuar para o futuro. Quando, além de se tratar de uma história recente, o assunto diz respeito a experiências e eventos traumáticos, como o caso da prática de tortura institucionalizada no período ditatorial brasileiro, então as memórias reelaboradas são ainda mais conflituosas e mesmo difíceis ser revividas e explicitadas para compor a história de nosso país. Ao destacar esta complexidade de se lidar com a história do tempo presente e com eventos traumáticos, vale reproduzir as palavras do historiador Reis Filho:

… em História, quando ainda se desenrolam os enfrentamentos nos terrenos de luta, ou mal se encerram, o sangue ainda fresco dos feridos, e os mortos, sem sepultura, já se desencadeiam as batalhas de memória. Nelas os vitoriosos no terreno haverão de se desdobrar para garantir os troféus conquistados. E a vitória que fora sua, no campo de luta, poderão perdê-la na memória da sociedade que imaginavam subjugada.181

Não há dúvidas de que, durante a vigência do regime militar, a memória individual e coletiva daqueles que sofreram a violência dos interrogatórios promovidos pelos órgãos de investigação no interior das Forças Armadas podem ser concebidas como “memórias subterrâneas”, no sentido que Michael Pollak concede ao termo182. Isto significa dizer que, principalmente por medo da repressão e pela rigorosa censura imposta aos meios de comunicação, as pessoas afetadas pela prática de tortura tiveram suas vozes silenciadas e suas memórias ficaram contidas, impossibilitando a sua discussão na esfera pública e a realização de justiça, com a condenação dos responsáveis pelo uso desse recurso como forma de obtenção de informações.

181 REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória, in REIS FILHO, D; RIDENTI, M; MOTTA, R. P. S. (Orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 30. [Grifos no original] 182 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. 94

O período que se seguiu imediatamente após o fim da ditadura brasileira foi marcado pelo embate entre a “política do esquecimento” – defendida pelos militares e também por muitos representantes políticos da transição democrática – e pela erupção de memórias subterrâneas. Pode-se afirmar que, no plano político-institucional, predominou o silenciamento sobre esta questão, já que a intenção era a de “esquecer o que se passou”, de “não se tocar nas feridas”, de “se pensar no futuro democrático”, tudo isso ainda dentro do contexto do processo político de abertura “lenta, gradual e segura”, caracterizado pela concessão da anistia recíproca, em 1979183. Prevaleceu, portanto, em um primeiro momento, uma visão conciliatória desta história recente, onde não se falava sobre a dor, onde os responsáveis pela tortura não eram investigados nem julgados e onde a sociedade não precisava prestar contas sobre o fato de ter admitido a sustentação de um regime ditatorial por tantos anos184. A “política do lembrar”, por outro lado, ficou restrita principalmente aos familiares de vítimas da ditadura, a alguns grupos de defesa dos direitos humanos e ao surto memorialístico de relatos autobiográficos que ganhou relativo espaço no mercado editorial brasileiro185.

Alguns anos se passaram, mas o embate de memórias referentes aos atos de tortura cometidos no regime militar ainda se encontra na arena de luta e seus resultados ainda são pouco previsíveis. Por um lado, observa-se o aumento significativo na quantidade de concessões de indenizações por parte do Estado aos familiares de mortos e desaparecidos durante o regime militar, o que representa certo reconhecimento do governo das responsabilidades do Estado brasileiro sobre as violências cometidas naquela época186. Por outro lado, os consecutivos governos democráticos atuais negam-se, um após o outro, a abrir, de forma ampla e definitivamente, a maioria dos arquivos militares que poderiam resultar na

183 A referida lei (nº. 6.683, de 28 de agosto de 1979), que possibilitou o retorno ao país de muitos exilados, fez parte do contexto de reabertura política que se iniciou sob o governo do presidente Ernesto Geisel, tendo prosseguimento – não sem alguns retrocessos – no governo seguinte, do presidente João Batista Figueiredo. 184 Sobre a idéia de uma “tendência conciliatória” que teria predominado no contexto da reabertura política, ver: REIS FILHO, Daniel Aarão. Um passado imprevisível: a construção da memória da esquerda nos anos 60, in REIS FILHO, D. A. et al. Versões e ficções: o seqüestro da história. 2. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 31-45. 185 Segundo Walnice Galvão, os anos finais da década de 1970 inauguraram uma nova fase do biografismo literário brasileiro (posteriormente levado para o cinema), caracterizado pelo resgate da saga das esquerdas, duramente reprimidas pelo regime ditatorial. Ver: GALVÃO, Walnice Nogueira. A voga do biografismo nativo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 55, set./dez. 2005, p. 351-366. 186 Cabe ressaltar, aqui, que a existência dessas ações indenizatórias deveu-se muito mais às pressões exercidas pelos familiares e por organizações de defesa dos direitos humanos, como o grupo Tortura Nunca Mais, do que por um processo efetivo de reconhecimento das responsabilidades do Estado. A legislação que promoveu o reconhecimento oficial sobre as mortes e os desaparecimentos de militantes políticos no regime militar, encontra-se no site da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH). Disponível em: . 95

exibição pública dos atos cometidos pelas Forças Armadas durante o tempo em que permaneceram no poder187. Além disso, a Lei de Anistia de 1979 ainda reverbera sobre o nosso presente, não permitindo que aqueles que cometeram atos de tortura, assim como aqueles que comandaram tal prática, sejam investigados e julgados pela justiça do país, nem mesmo reconhecidos como transgressores. Isto significa que, até o presente momento, nenhum governo pós-ditadura assumiu oficialmente os crimes de tortura praticados no governo dos militares188.

Infere-se, desta forma, que no âmbito político-institucional ainda predomina um grande silenciamento sobre a questão da tortura praticada nas prisões, apesar de algumas vozes se fazerem presentes e tentarem, pelo menos, promover uma discussão pública sobre o assunto.

Sabe-se, hoje, que a tortura e o assassinato foram práticas sistemáticas de governo durante o regime militar, principalmente após o aumento da repressão proporcionada pela autonomia que as Forças Armadas adquiriram com a implantação do Ato Institucional n. 5, a partir de dezembro de 1968. Com o Congresso Nacional fechado por tempo indeterminado, a suspensão do direito ao habeas-corpus e diversas outras prerrogativas de caráter excepcional189, os militares concentraram seus esforços no combate ao “inimigo interno”, ou seja, a todas as pessoas consideradas suspeitas de defender o comunismo no Brasil. O depoimento do estudante Ângelo Pezzuti da Silva ao Conselho de Justiça Militar de Juiz de Fora, no ano de 1970, fornece um quadro bem incisivo sobre a institucionalização da tortura naquela época:

… que na PE (Polícia do Exército) da GB [Guanabara – RJ], verificaram o interrogado e seus companheiros que as torturas são uma instituição, vez que, o interrogado foi o instrumento de demonstrações práticas desse sistema, em uma aula de que participaram mais de 100 (cem) sargentos e cujo professor era um Oficial da PE, chamado TnT. Ayton que, nessa sala,

187 Para uma discussão sobre as leis que regulamentam os documentos oficiais considerados sigilosos, ver o site eletrônico do grupo Tortura Nunca Mais. Disponível em: . 188 Durante a elaboração da presente dissertação, mais precisamente em outubro de 2008, ocorreu a primeira condenação de um oficial das Forças Armadas pelo ato de tortura cometida durante o regime militar. Trata-se do coronel reformado do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos comandantes do DOI-CODI do Estado de São Paulo. A ação declaratória não previu indenização nem punição ao ex-torturador; apenas o reconhecimento da Justiça de que Ustra comandou atos de tortura contra o casal Maria Amélia de Almeida Teles e César Teles, além de Criméia, irmã de Maria Amélia. Cf. CHRISTOFOLETTI, Lílian. Juiz condena Ustra por seqüestro e tortura. Folha de São Paulo. São Paulo, 10 out. 2008, Caderno Brasil. Disponível em: Acesso em: nov. 2008. 189 Além das medidas já citadas, o Ato Institucional n.5, de 13 de dezembro de 1968, deu poderes ao governo para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares, entre outras medidas. 96

ao tempo em que se projetavam “slides” sobre tortura, mostrava-se na prática para a qual serviam o interrogado, MAURICIO PAIVA, AFONSO CELSO, MURILO PINTO, P. PAULO BRETAS, e, outros presos que estavam na PE-GB, de cobaias…190

Na realidade, desde 1964 o regime militar já começara a instalar toda a estrutura que permitiria a sistematização da prática de tortura, com a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), idealizado e dirigido, inicialmente, pelo General Golberi do Couto e Silva191. Relacionado à institucionalização dos órgãos de informação e repressão, acrescenta- se a influência da denominada “doutrina de segurança nacional”192, responsável pela constituição dos elementos ideológicos que respaldariam o regime militar em sua estratégia de combate aos “subversivos” e mesmo na elaboração de uma identidade militar específica. Imbuídos deste ethos militar193, que permeava todos os segmentos das Forças Armadas, os membros do sistema repressivo – desde o simples informante voluntário até os dirigentes dos órgãos de informações – viam-se como responsáveis pelo cumprimento de uma “missão”, qual seja, a de vencer a “guerra interna” contra os subversivos comunistas. Em nome deste objetivo, os interrogatórios pautavam-se por toda uma lógica sistematizada que justificava o uso de práticas violentas (físicas e psicológicas), configurando a ação de tortura, apesar desta nunca ser plenamente explicitada e admitida pelos militares194.

No interior desse atual embate de memórias, observa-se ainda a predominância do ponto de vista dos militares de que a tortura, quando ocorria, tratava-se de ações isoladas, geralmente efetuadas por alguns agentes “fora de controle” ou mesmo “emocionalmente

190 BNM, n. 158, v. 3º, p. 929-932 apud ARNS, D. Paulo Evaristo (Prefácio de). Brasil: nunca mais - um relato para a história, 7. ed., Petrópolis: Vozes, 1985, p. 31. 191 O SNI assessorava o presidente da República nas atividades de orientação e coordenação das atividades de informação pertinentes à segurança nacional, à contra-informação e à informação sobre questões de subversão interna. O órgão adquiriu um poder comparável ao Executivo e espalhou suas redes por praticamente toda a sociedade e sobre os aparelhos do Estado. O número de pessoas envolvidas nas atividades ligadas ao SNI nunca foi divulgado, mas, a julgar pelos depoimentos transcritos no livro “Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão”, seriam aproximadamente duas mil pessoas, além dos colaboradores eventuais. Ver: D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Os anos de chumbo. A memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 14. 192 “A doutrina de segurança nacional possui origem externa: trata-se da ideologia exportada dos Estados Unidos para consumo das forças armadas sul e centro-americanas, no contexto da guerra fria. Seu pressuposto básico era um conflito global entre ocidente e comunismo, cabendo aos EUA a defesa do hemisfério contra as agressões do bloco soviético.” MIGUEL, Luis Felipe. Segurança e desenvolvimento: peculiaridades da ideologia da segurança nacional no Brasil. Revista Diálogos Latinoamericanos, n. 5, Aarhus - Dinamarca: Universidad de Aarhus, p. 42-43. Disponível em: . Acessado em: 29/09/2008. 193 Idem, Ibidem, p. 40. 194 Marion Brepohl de Magalhães apresenta um interessante estudo, onde demonstra toda a estruturação da prática de interrogatório daquela época, a partir de diversas fontes militares, especialmente do Manual do interrogatório, produzido no interior do SNI, em 1971. MAGALHÃES, Marion Brepohl. Fazer falar: técnicas de interrogatório durante o regime militar, in CANCELLI, Elizabeth (Org.). Histórias de violência, crime e lei no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004, p. 155-172. 97

desequilibrados”. Esta versão procura, certamente, isentar aqueles que se situavam em níveis hierárquicos superiores aos perpetradores e que, de alguma forma, comandaram ou deram ordens para que as ações de tortura fossem praticadas.

Diversos estudos195 já demonstraram a nulidade da tese de que a tortura era efetuada apenas “nos porões da ditadura”, sem o conhecimento de outros segmentos das Forças Armadas e até mesmo dos dirigentes do país. Apesar de prática nunca diretamente assumida, os depoimentos de alguns ex-presidentes militares já indicam as suas responsabilidades sobre a tortura, como se observa, primeiramente, nas palavras do ex-presidente Ernesto Geisel: “Era essencial reprimir. Não posso discutir o método de repressão, se foi adequado, se foi o melhor que se podia adotar. O fato é que a subversão acabou”196. Emílio Garrastazu Médici, presidente responsável pelo período de maior repressão e violência por parte do Estado ditatorial (1970-1974), também deixa claro o seu recado: “Era uma guerra, depois da qual foi possível devolver a paz ao Brasil. Eu acabei com o terrorismo neste país. Se não aceitássemos a guerra, se não agíssemos drasticamente, até hoje teríamos o terrorismo”197. Já os poucos que se assumiram como torturadores são bem mais contundentes em suas declarações e procuram não deixar dúvidas sobre a rede de comandos que pressupunha a tortura praticada nos porões, evidenciando que o embate de memórias que se seguiu ao período ditatorial ocorre até mesmo entre os segmentos das Forças Armadas:

As altas autoridades do país foram as primeiras a tirar o seu da reta […] Todos os agentes do governo que escreveram sobre a época do regime militar foram muito comedidos. Farisaicos, até. Não sabiam de nada, eram santos, achavam a tortura um absurdo. Quem assinou o AI-5? Não fui eu. Ao suspender garantias constitucionais, permitiu-se tudo o que aconteceu nos porões.198

Apesar de declarações como esta, a construção do estereótipo do torturador como indisciplinado ou desequilibrado, que comete os seus atos sem a aprovação de seus superiores,

195 Indico, novamente, o relevante estudo de Marion Brepolh de Magalhães, citado na nota anterior. Também destaco a pesquisa de HUGGINS, Martha K. Heranças do autoritarismo: reformulação da memória de torturadores e assassinos brasileiros, in CANCELLI, Elizabeth (Org.). Histórias de violência, crime e lei no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004, p. 173-205. Conferir, também, o Projeto Brasil: Nunca Mais. Brasil: nunca mais: um relato para a história. 7. ed., Petrópolis: Vozes, 1985. 196 Entrevista do ex-presidente Ernesto Geisel em: ARAÚJO, Maria Celina de; CASTRO, Celso. Ernesto Geisel, p. 223-224 apud GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. As ilusões armadas. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 18. 197 Entrevista do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici em: SCARTEZINI, Antônio Carlos. Segredos de Médici, p. 36 apud GASPARI, Elio. A ditadura escancarada..., 2002, p. 17. 198 Entrevista de Marcelo Paixão (ex-tenente do Exército de Belo Horizonte) a Alexandre Oltramari, Revista Veja, 9 dez. 1998 apud GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. As ilusões armadas. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 24. 98

ainda se reflete nas memórias da ditadura militar e pode ser encontrada também em alguns filmes que tratam deste tema, como tento explicitar na presente pesquisa.

As memórias daqueles que sofreram as atrocidades cometidas durante a vigência do regime militar, embora ainda dolorosas e difíceis de serem externadas, também participam do referido embate, principalmente através de seus depoimentos pessoais. Por maiores que sejam as dificuldades e até mesmo as impossibilidades de se reviver uma experiência traumática, como a da tortura – na verdade, qualquer experiência não é passível de ser revivida, mas reelaborada em função do presente em que se processa o ato de rememoração199 – essas pessoas muitas vezes sentem o desejo de se fazerem ouvidas, seja pela necessidade do desabafo, seja com o intuito de ajudar a evitar uma repetição deste passado.

Segundo Beatriz Sarlo200, a valorização do sujeito-testemunho é uma das grandes características da contemporaneidade, especialmente em sociedades que passaram por governos totalitários e/ou ditatoriais, como os regimes militares existentes nas décadas de 1960 e 1970, em vários países da América Latina. Mas enquanto em alguns desses, como na Argentina e no Chile, os atos de memória proporcionados pelo testemunho resultaram na condenação dos responsáveis pelo terrorismo de Estado201, no Brasil os relatos dos testemunhos não possibilitaram uma retratação semelhante, até o presente momento. Nem por isso, algumas pessoas deixam de manifestar suas experiências de dor, como se observa no depoimento do cineasta e ex-militante da luta armada, Renato Tapajós:

A tortura pode ser uma decisão racional para os altos escalões de comando, que decidem permiti-la ou aceitá-la como método e são capazes, inclusive, de mandar trazer assessores internacionais para divulgar técnicas “modernas” de tortura entre seus comandados. No entanto, no escalão do torturador, daquele sujeito que põe a mão na massa, a tortura significa infligir dor, humilhação e talvez a morte a outro ser humano. Ela acontece em meio a gritos, sangue, cheiro de sangue e suor, o fedor insuportável do medo, frequentemente urina e fezes – porque o medo e a dor soltam bexigas e intestinos.202

Observa-se, através do depoimento do cineasta, que as visões sobre a tortura também apresentam divergências entre aqueles que não representam as vozes dos militares. Enquanto

199 Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, in Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. 200 SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. 201 Idem, Ibidem, p. 20. 202 TAPAJÓS, Renato. Qual é a tua, companheiro?, in REIS FILHO, Daniel Aarão et al., Versões e ficções..., p. 170-171. 99

Marion de Magalhães e Maria Celina D’Araújo203, apenas para citar dois exemplos, ressaltam a burocratização e racionalização da prática de tortura efetuada no regime militar, Renato Tapajós não desconsidera a rede de comando que a organizava, mas já enfatiza a idéia de que os executores das torturas, aqueles que efetivamente colocavam “a mão na massa”, agiam de modo irracional, impulsionados pelo “prazer primitivo de dominar e humilhar o outro”204.

Como afirmado anteriormente, percebe-se o quanto as batalhas de memória que envolvem o tema da tortura praticada no regime militar ainda estão se deflagrando e longe de apresentarem um vencedor, se isso fosse possível. Cabe analisar, no presente estudo, como essas batalhas se configuram no campo cinematográfico selecionado. Campo este que, segundo Beatriz Sarlo, se insere no interior de “um território de hegemonia simbólica que são os meios audiovisuais”205.

3.2 As memórias subterrâneas no cinema brasileiro

Constantemente negada como método de investigação no interior das Forças Armadas206, a prática de tortura nos processos interrogatórios aparece nos filmes analisados como um dever, ou seja, como algo que deve necessariamente ser revelado e passar a fazer parte da memória histórica dos brasileiros. O silêncio dos militares sobre esta questão foi substituído, no cinema, pelo grito daqueles que sofreram tais atrocidades. Há um evidente teor de denúncia em praticamente todos os filmes que de alguma forma retratam o regime militar brasileiro e mencionam a tortura praticada sob sua vigência207.

Importa destacar, neste ponto, o valor do espaço fílmico na elaboração de representações da tortura. Como afirmam vários estudiosos, entre eles Marc Vernet, o cinema se destaca como uma das artes mais realistas, por oferecer ao público a capacidade de

203 MAGALHÃES, Marion Brepohl. Fazer falar: técnicas de interrogatório durante o regime militar..., p. 155- 172. D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Os anos de chumbo... 204 TAPAJÓS, Renato. Qual é a tua, companheiro?..., p. 171. [Grifos meus] 205 SARLO, Beatriz, Tempo passado..., p. 21. 206 “Salvo na Alemanha hitlerista e na União Soviética dos expurgos de Stalin, todas as ditaduras que sancionaram a tortura negaram a sua existência. Disso resulta uma ambigüidade que vai dos palanques das autoridades às cafuas.” GASPARI, Elio. A ditadura escancarada..., p. 20. É válido também analisar o estudo de Jacob Gorender sobre a negação da prática da tortura pelos militares no Brasil: GORENDER, Jacob. A violência do opressor, in Combate nas trevas..., p. 226-234. 207 Entre os filmes analisados na presente pesquisa, O ano em que meus pais saíram de férias não aborda diretamente a tortura política, mas acaba por enfocar a tortura psicológica sofrida por uma criança ao se ver privada da presença de seus pais. 100

reprodução do movimento e da duração, associada ainda à percepção sonora208. Neste sentido, não é difícil imaginar como as representações da tortura através de imagens audiovisuais, com a exposição de cenas que a revelam em detalhes, pode provocar um efeito assolador sobre o espectador e, portanto, sobre a memória que se deseja elaborar através do cinema.

Souza, em sua tese de doutoramento209, propõe que a quantidade significativa de cenas que procuram explicitar momentos de tortura busca compensar as imposições de silenciamento sobre os crimes cometidos pelos militares. Trabalhando com a idéia de filme- arquivo, Souza argumenta que, “ao esquecimento que o fechamento dos arquivos produz, adicionam-se várias narrativas que suplementam o esquecimento com a produção de outras ‘lembranças’, de outros arquivos”210. Haveria, portanto, uma dificuldade na elaboração pública sobre a ditadura, sobretudo oficial, que seria compensada por outros meios e o cinema teria um papel primordial neste sentido. Explicar-se-ia, desta forma, a existência de muitos filmes sobre o período que se esforçam em apresentar cenas de tortura, seja física ou psicológica, em seus aspectos mais detalhistas e mais variados.

Acrescentaria às idéias de Souza o fato de que muitos dos ex-militantes políticos – ligados ou não à luta armada, mas que foram presos e sofreram alguma espécie de violência nas prisões, durante o regime militar – encontram-se, atualmente, em evidência na esfera pública, inclusive ocupando importantes cargos políticos, além de significativos postos nos meios jornalístico, artístico, acadêmico etc. Por este motivo, aquelas memórias que anteriormente se encontravam à margem, em períodos anteriores, mesmo que não homogêneas, cada vez mais se fortalecem nos embates pela hegemonia da memória, como já foi em parte observado no capítulo anterior.

Outra questão de relevo encontra-se no fato de que a prática de tortura ainda se faz presente no cotidiano das prisões brasileiras, praticadas especialmente contra pessoas dos setores mais excluídos da sociedade. As violações aos direitos humanos nas cadeias, herdadas do período ditatorial, estendem-se, atualmente, para os desaparecimentos forçados e para as execuções ilegais contra suspeitos de crimes comuns. A concepção militarizada da polícia, que concebe o combate ao crime como uma guerra, também permanece na atualidade. De acordo com os estudos de Martha Huggins sobre as heranças do regime militar nas práticas

208 VERNET, Marc. Cinema e narração, in AMOUNT, Jacques et al. A estética do filme. 5. ed., São Paulo: Papirus, 2007, p. 89-156. 209 SOUZA, Maria Luiza Rodrigues. Um estudo das narrativas cinematográficas sobre as ditaduras militares no Brasil (1964 – 1985) e na Argentina (1976 – 1983). 2007, 228 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade de Brasília, Brasília – DF, 2007. 210 Idem, Ibidem, p. 149. 101

policiais atuais211, esta categoria teria adotado o discurso do “profissionalismo” – também utilizado por muitos ex-torturadores no período pós-ditadura – para justificar as suas ações mais “excessivas” sobre os criminosos. Huggins defende uma imbricada relação entre o abuso de poder, amplamente praticado pela polícia militar nos dias de hoje, e a ideologia herdada da impunidade sobre este tipo de prática durante o regime militar. Como afirma Huggins,

… embora o discurso dos policiais sobre a tortura e o assassinato tenha mudado – na medida em que o Brasil autoritário foi substituído pela redemocratização formal e a “guerra contra a subversão” por uma “guerra contra o crime” –, a autonomia dos policiais continua a permitir que “profissionais” da polícia no Brasil cometam graves violações dos direitos humanos. Em outras palavras, a violência policial de um período anterior não perdeu o vigor nem mesmo durante a redemocratização do Brasil. Na verdade, nas maiores cidades do Brasil ela aumentou verticalmente212.

Observa-se, assim, o quanto a tortura ainda é uma prática recorrente na atualidade brasileira e que a preocupação do cinema em exibi-la, portanto, relaciona-se também a uma necessidade do presente213. Não se trata de nenhuma recente novidade cinematográfica as possibilidades de associação entre passado e presente, oferecendo-se ao espectador um convite à reflexão entre as diferentes temporalidades. Especialmente nos períodos dos governos autoritários, onde a censura era muito intensa, filmes brasileiros retratavam períodos mais longínquos de nossa história para, disfarçadamente, tratar do contexto ditatorial214. Mesmo em tempos democráticos, sem as limitações da censura, observa-se que os filmes ficcionais refletem as preocupações do presente, mesmo que isso não seja tão evidente nas telas, ou mesmo tão consciente por parte de seus autores. Afinal, toda produção de significados relativa ao passado histórico está sempre impregnada das ações do presente, fato este que já se tornou evidente nas discussões historiográficas atuais, mas que também se estende ao meio artístico e cinematográfico.

211 HUGGINS, Martha K. Heranças do autoritarismo: reformulação da memória de torturadores e assassinos brasileiros..., p. 173-205. 212 Idem, Ibidem, p. 201-202. 213 Interessante lembrar que a recorrência às cenas de tortura no cinema brasileiro não se restringe aos filmes sobre o regime militar. Muitos longas-metragens que encenam o presente procuram demonstrar como esta prática está impregnada na sociedade, não somente entre os policiais, mas nos mais diversos setores. Cito, como exemplo, os filmes Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), Carandiru (Hector Babenco, 2002) e Quase dois irmãos (Lúcia Murat, 2004); este último, vale citar, faz um interessante paralelo entre a violência no regime militar e a violência nos dias atuais. 214 Como exemplo, cito o filme Memórias do cárcere (Nelson Pereira dos Santos, 1983), baseado na obra do escritor Graciliano Ramos, escrita a partir de sua experiência de dez anos na prisão, em função do governo ditatorial de Getúlio Vargas. 102

3.2.1 Sérgio Resende e o “dever de memória” em Lamarca e Zuzu Angel

Se os filmes brasileiros sobre o regime militar já possuem um particular interesse em explicitar os crimes de tortura praticados no período analisado, os dois filmes que o cineasta Sérgio Resende produziu sobre o tema contam com um foco mais ampliado ainda sobre a questão da tortura. Tanto em Lamarca, lançado em 1994, como em Zuzu Angel, lançado doze anos depois, as cenas que revelam momentos de tortura efetuados pelos militares sobre prisioneiros políticos não poupam o espectador de uma representação impactante e extremamente violenta.

No primeiro filme, Lamarca, são mostradas seis cenas de tortura, em suas mais variadas modalidades. Em Zuzu Angel, já diminui a quantidade de cenas, mas cresce a dramaticidade sobre as mesmas: a sessão de tortura do filho de Zuzu Angel, Stuart Jones, possui mais de cinco minutos de duração (intercalada com a reação da mãe lendo a carta em que a tortura do filho é descrita em detalhes).

Não se pode buscar um único fator que justifique o interesse de Sérgio Resende em colocar em relevo, em seus filmes, a violência cometida no regime militar. Primeiramente, é necessário lembrar que ele não é o único responsável pelo resultado final de suas obras, pois um filme nasce da concepção e execução de todo um meio cinematográfico, como já foi destacado. Por outro lado, não se pode negar que a escolha do que se vai priorizar com mais ênfase e dramaticidade nas telas está intimamente ligada ao trabalho do diretor, que dirige o olhar do espectador para este ou aquele detalhe.

Além de questões mais contextuais, como a idéia do filme como suplementação dos arquivos fechados da ditadura e da persistência da tortura nos dias atuais, destaca-se certa filiação do cineasta Sérgio Resende a uma postura política mais próxima das esquerdas brasileiras, como se pode perceber através de sua trajetória e filmografia215. Mesmo não escapando à reprodução de certos estereótipos ou mitificações dos militantes que lutaram contra a ditadura, como visto no capítulo anterior, o cineasta assume a sua predileção por temas políticos no cinema, buscando valorizar atores sociais marginalizados nos diferentes contextos históricos que representa cinematograficamente.

* * *

215 Cf. RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe (Orgs.). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Senac São Paulo, 2004, p. 457-458. 103

Em Lamarca, a tortura possui um espaço significativo na trama narrada. Em diferentes momentos do filme, ela aparece explicitamente ou é descrita por algum personagem, tendo um papel sempre preponderante para os acontecimentos subseqüentes do enredo fílmico.

A primeira referência à tortura aparece através de uma conversa de Lamarca com membros de sua organização. Diante da proposta de recuo da organização em função do aumento da repressão governamental e do insucesso das ações guerrilheiras, Lamarca retruca com impetuosidade:

LAMARCA: _ Sabem por quê? Porque muitos que se diziam revolucionários, quando foram presos traíram vergonhosamente. No primeiro tapa, entregam tudo. ‘JAIRO’: _ No primeiro tapa não. No choque, no pau-de-arara, nas unhas arrancadas, nas piores violências. E muitos resistiram a tudo isso! LAMARCA: _ Só esses que interessam! Só esses que vão fazer a revolução!

Verifica-se, neste diálogo, a reprodução da “mitologia heróica” do torturado que resiste às dores e não fornece informações sobre outros membros de sua organização, no caso em questão, a VPR. Segundo Jacob Gorender, a resistência à tortura era realmente valorizada entre os guerrilheiros e geralmente eram considerados os “mais aptos a resistir à tortura os militantes que interiorizaram a ideologia socialista e fizeram dela sua norma moral”216. Inicialmente, a frase de ‘Jairo’ (interpretado por Luiz Maçãs) procura desarticular o argumento do protagonista, demonstrando como a dor proveniente dos diferentes métodos de tortura pode provocar os piores tormentos. Mas, logo em seguida, ‘Jairo’ afirma que, mesmo diante desses tormentos, ainda havia aqueles que resistiam, o que é reforçado pela última frase de Lamarca, dizendo que somente esses eram os que interessavam à luta armada. O saldo deste diálogo pode ser percebido como mais uma forma de se evidenciar o mito heróico, agora reforçado pela bravura e coragem daqueles que resistiram ao suplício da tortura217.

Em um momento posterior da trama, ‘Jairo’ é capturado em uma ação conjunta da polícia e do Exército e inicia-se a primeira cena de tortura explícita do filme. O delegado

216 GORENDER, Jacob. A violência do opressor, in Combate nas trevas..., p. 230. 217 Segundo declaração de Vera Sílvia Magalhães, ex-guerrilheira do MR-8, participante do seqüestro do embaixador norte-americano: “A tortura é uma punição que te culpabiliza para o resto da vida e, para quem cedeu, é ainda mais dura”. SALEM, Helena. Ex-militante inspira personagens femininas, in REIS FILHO, Daniel et. al., Versões e Ficções..., p. 67. 104

Flores (interpretado por Ernani Moraes) comanda o interrogatório, demonstrando, ao mesmo tempo, frieza e raiva de seu interrogado. Flores pergunta sobre o paradeiro de Lamarca; indica que um outro membro da organização já havia fornecido algumas informações; demonstra conhecer todos os codinomes do capitão e comandante da VPR. O delegado grita muito com ‘Jairo’, enfurece-se pelo fato de que ele não lhe revela nada, mas não é ele quem pratica as ações violentas. Há mais dois personagens em cena, que se posicionam como os torturadores efetivos; aqueles que realmente colocam “a mão na massa”, segundo a expressão utilizada por Renato Tapajós218. São esses torturadores que aplicam um choque elétrico no pênis de ‘Jairo’, imagem que é mostrada em detalhes através de um close-up, não poupando o espectador da brutalidade contida nesta representação cinematográfica.

Fig. 15 - ‘Jairo’ sofrendo um choque elétrico na região genital

A tortura de ‘Jairo’ ganha tamanho destaque na narrativa de Sérgio Resende, que a seqüência em que se desenrola a ação aparece entremeada no filme por outras cenas, o que faz com que a referida ação apareça em três momentos distintos no filme. No último delas, ‘Jairo’ já está morto, sendo o seu corpo deixado no chão, seguindo-se da fala do delegado para um dos torturadores:

FLORES: _ ‘Jairo’: José Cunha Mendes. Atropelado quando reagia à voz de prisão. […] O procedimento é o de sempre, Tião.

218 TAPAJÓS, Renato. Qual é a tua, companheiro?, in REIS FILHO, Daniel Aarão et al., Versões e ficções..., p. 170-171. 105

Aparentemente sutil, esta pequena fala do delegado de polícia possui um significado relevante para a memória que se deseja elaborar sobre a prática de tortura efetuada pelos militares. Ela evidencia dois aspectos significativos em relação aos métodos utilizados para se encobrir os assassinatos ocorridos nas dependências das Forças Armadas. Primeiramente, revela-se uma das formas de dissimulação das ações de tortura e assassinato, com a afirmação oficial de que o interrogado morrera em função de um atropelamento. Depois, indica-se como a tortura e a morte pelo excesso de violência se inseriam em um esquema rotineiro nas dependências da polícia e como os perpetradores já tinham conhecimento dos procedimentos a serem realizados para evitar a divulgação da causa real desse tipo de assassinato.

Mesmo se tratando de um filme produzido no início da década de 1990219, em tempos não muito distantes da ditadura militar, Sérgio Resende teve a coragem de tocar em uma questão delicada: o fato de que os atos de tortura não eram praticados por membros isolados e indisciplinados, que os realizavam sem a conivência de setores mais altos das Forças Armadas. Tratava-se, contrariamente, de uma política de Estado, habilmente orquestrada pelo governo militar para desarticular seus opositores, especialmente os grupos de guerrilha. O filme também procura deixar clara a existência de uma cadeia de relações, que vai dos torturadores, passando pelo delegado Flores, até chegar ao Major Cerqueira (comandante da operação de “caça” a Lamarca no sertão baiano) e a um General do Exército.

É válido realçar, neste ponto, o fato de que o filme não apresenta um nome próprio para o referido General, interpretado na trama pelo ator Carlos Zara. Ao não personalizar as atitudes e ações praticadas por um membro do mais alto posto da hierarquia militar, o filme acaba por responsabilizar toda a categoria de generais, pela conivência ou mesmo pelo comando dos métodos de violência aplicados aos presos políticos.

Parece ser uma intenção consciente dos autores do filme a necessidade de denunciar essas relações, desconstruindo o estereótipo do “torturador desequilibrado e/ou indisciplinado”, que realizava suas ações de forma autônoma e que, no máximo, era reconhecido pelo governo como um “excesso” de alguns membros isolados no interior da corporação militar.

219 Lamarca foi lançado em 1994, mas começou a ser pensado e produzido dois anos antes, passando pela elaboração de sete versões de roteiro. Cf. ROSSINI, Mirian de Souza. Filme histórico e identidade nacional: o exemplo de Lamarca. INTERCOM Campo Grande – MS: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação, setembro 2001. Disponível em: . Acesso em: fev. 2007. 106

Também se destaca nas cenas de tortura do guerrilheiro ‘Jairo’ a preocupação cuidadosa com o cenário, mais propriamente com a ambientação do local onde se pratica o interrogatório. A sala para onde ‘Jairo’ é levado é relativamente vazia, sem muitos móveis; é também sombria, suja, sem ventilação. A cena parece bem verossímil, se comparada a descrições de muitos daqueles que já “passaram” por esse tipo de ambiente220 e também corresponde às descrições do próprio Manual do Interrogatório, produzido no interior das Forças Armadas221, como se observa a seguir:

As fases preliminares de um interrogatório devem ser levadas a efeito numa sala quase sem móveis, preferivelmente com apenas uma porta e sem nenhuma janela. Se existirem janelas, devem ser cobertas. A sala deve ser parcamente mobiliada, com uma simples mesa e cadeiras para os interrogadores, as quais devem ser localizadas mais ou menos no meio da sala, de modo a aumentar o senso de isolamento do indivíduo e permitir ao interrogador movimentos livres para os lados […] A iluminação deve ser muito simples e nua; preparada para molestar o paciente e de forma a não revelar a hora do dia…222

Outro personagem do filme também é torturado com choques elétricos por todo o corpo. Trata-se de ‘Kid’ (interpretado por Enrique Díaz), personagem que é mostrado na trama como um colaborador dos guerrilheiros, não parecendo pertencer a nenhuma organização. Apesar de ser uma cena bem menor do que no caso da tortura de ‘Jairo’, as mesmas preocupações apontadas anteriormente são reveladas: o cuidado com a ambientação, a brutalidade da violência apresentada, a presença de um representante do alto escalão do Exército (neste caso, o Major Cerqueira, que apenas assiste ao interrogatório). Uma diferença entre os dois interrogados é que ‘Jairo’ morre sem revelar nenhuma informação, enquanto ‘Kid’ não agüenta os suplícios e entrega alguns dados aos torturadores, confirmando a teoria de Jacob Gorender sobre a interiorização da ideologia socialista como um fator de resistência aos interrogatórios (já que ‘Jairo’ pertencia ao comando de sua organização, enquanto ‘Kid’ aparece apenas como um colaborador).

José Barreto, pai de Zequinha, também sofre com um “interrogatório” violento, em cena que o mostra em condição humilhante, pendurado de cabeça para baixo, em sua própria casa. Revela-se, nesta cena, a tortura sendo praticada sobre pessoas que não pertenciam a

220 Conferir depoimentos de militantes torturados no livro de: REIS FILHO, Daniel. Aarão et al. Versões e ficções…, passim e também no livro Brasil: nunca mais..., passim. 221 Longos trechos do referido manual – divulgado pelo Centro de Informações do Exército, CIE – foram reproduzidos no seguinte estudo: MAGALHÃES, Marion Brepohl. Fazer falar: técnicas de interrogatório durante o regime militar..., p. 155-172. 222 Manual do interrogatório, p. 29-30 apud MAGALHÃES, Marion Brepohl. Fazer falar: técnicas de interrogatório durante o regime militar..., p. 169-170. 107

nenhuma organização de luta armada; apenas se tratavam de parentes e conhecidos de militantes guerrilheiros, que nem sempre sabiam das atividades destes últimos, como no caso de José Barreto.

Fig. 16 - O pai de Zequinha Barreto sendo “interrogado”

Ainda são mostradas no filme outras formas de violência que o regime militar conseguira impor sobre aqueles que se envolviam, de alguma forma, com a luta armada. Refiro-me aos dois personagens que cometem suicídio, em função do medo de serem presos e torturados: a guerrilheira ‘Clara’, amante de Lamarca, e o professor ‘Roberto’ (interpretado por Jurandir de Oliveira). Após ser localizada em um aparelho em Salvador, denunciado por ‘Kid’ em sua seção de tortura, ‘Clara’ se mata com um tiro no coração. ‘Roberto’, que fazia parte do dispositivo rural da guerrilha no sertão baiano, comete esse mesmo ato desesperado, ao perceber que a casa em que estava encontrava-se cercada por homens do Exército223. Fica manifesto no filme, portanto, a preocupação em se evidenciar outras formas de violência imposta pelos militares, não se fixando, seus autores, em uma representação monolítica sobre o tema.

Conclui-se, desta forma, que o filme Lamarca procura apresentar a tortura em suas diversas nuances (desde cenas bem explícitas à simples menção do fato), mas sempre com o sentido de lhe condenar radicalmente. Atingindo ou não o seu objetivo – a obtenção de

223 O suicídio de ‘Roberto’, codinome de Luís Antônio Santa Bárbara, foi colocado em contestação por depoimentos posteriores. Olival Campos Barreto, irmão de Zequinha, estava na mesma casa no momento da invasão do Exército e acredita que ‘Roberto’ tenha sido assassinado. Cf. MIRANDA, Nilmário. TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Perseu Abramo/Boitempo, 1999, p. 414-415.

108

informações – a tortura imposta pelo regime militar é tratada no filme como um ato bárbaro, injustificável e como a grande responsável pela destruição dos focos guerrilheiros no país. Outro aspecto de denúncia que possui destaque na trama de Sérgio Resende, como já afirmado, refere-se à relação da prática de tortura com os escalões superiores das Forças Armadas e da Polícia Militar, evidenciando a presença do Estado na repressão mais radical à luta armada.

Interessa destacar, neste momento, um ponto de tensão inerente à representação elaborada por Sérgio Resende. Ao mesmo tempo em que o cineasta possui a ousadia de tocar em uma questão controversa, que é a relação entre a prática de tortura e o Estado ditatorial, ele estabelece – de forma não necessariamente consciente – certo limite em suas denúncias: apesar de trabalhar praticamente com todos os nomes e codinomes reais no filme, Sérgio Resende omite o nome do delegado Sérgio Paranhos Fleury, substituindo-o pelo nome fictício do delegado Flores.

Fleury comandou as operações da Polícia Civil no DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), esteve à frente da Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo, e ainda liderou uma equipe conhecida como “Esquadrão da Morte”224. Foi, talvez, o homem mais temido pelos guerrilheiros durante o regime militar, por representar o comando das práticas de perseguição, seqüestro e tortura dos opositores deste regime. Foi ele o delegado que acompanhou todo o processo de perseguição a Lamarca, viajando para Brotas de Macaúbas, na Bahia, onde permaneceu até praticamente os últimos dias, antes da equipe de busca encontrar o líder guerrilheiro. Quando este foi assassinado, seu corpo foi levado para Salvador, onde Fleury o aguardava225.

Há duas cenas no filme que procuram não deixar dúvidas quanto à associação entre Fleury e o delegado Flores. Na primeira delas, no início do filme, o delegado descreve, em uma reunião com membros das Forças Armadas, alguns de seus “feitos”:

DELEGADO FLORES: _ Já peguei o ‘Velho’, já peguei o ‘Marigha’. Acabo com esse capitãozinho também.

A fala do delegado corresponde às capturas, verídicas, dos guerrilheiros Joaquim Câmara Ferreira, (membro da ALN, um dos comandantes do seqüestro do embaixador norte-

224 Cf. SOUZA, Percival de. Autópsia do Medo. Vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. São Paulo: Globo, 2000. 225 Cf. EMILIANO, José; MIRANDA, Oldak. Lamarca: o capitão da guerrilha. 5. ed. São Paulo: Global Editora, 1981. 109

americano) e de Carlos Marighella (líder da ALN), respectivamente. Em uma segunda cena, novamente o delegado tem seu “currículo” profissional anunciado pelo Major Cerqueira, neste caso, para intimidar o interrogado à sua frente:

MAJOR CERQUEIRA: _ ‘Kid’, você sabe quem matou o Fujimori? ‘KID’: _ O delegado Flores. MAJOR CERQUEIRA: _ E o ‘Bacuri’, quem matou226? ‘KID’: _ Flores. MAJOR CERQUEIRA: _ E o Marighella? Você sabe quem matou o Marighella? ‘KID’: _ Flores. [O delegado Flores, que só assistia ao interrogatório, vira-se para ‘Kid’ e apresenta a sua carteira de identificação, deixando-o apavorado.]

Caberia questionar porque o cineasta faz a opção por um nome fictício para retratar uma personalidade tão conhecida na história da repressão do regime militar, se, por outro lado, atribui nomes verdadeiros a outros personagens, além de construir várias indicações que levam o espectador a reconhecer no delegado Flores a pessoa de Sérgio Paranhos Fleury. Uma aparente contradição, inerente a toda obra cinematográfica, especialmente àquelas que tratam de representações do passado227. Parece que o cineasta não quis ser tão incisivo nas críticas que ligassem mais diretamente os atos de violência a determinados agentes da repressão à luta armada. Se o Major Nilton Cerqueira não foi poupado no filme – o que rendeu uma tentativa de impedimento por parte de Cerqueira ao seu lançamento, como já foi citado – Resende opta por uma referência mais discreta ao delegado Fleury. Talvez, também, para não ampliar a contestação ou ameaça de circulação de sua obra pela família desse policial. Enfim, ruídos e silêncios que caminham juntos no interior de uma mesma representação.

* * *

O caráter de denúncia aos crimes de tortura continua intensamente presente no segundo filme que Sérgio Resende resolve fazer sobre o período histórico do regime militar brasileiro. Entre os filmes selecionados na presente pesquisa, Zuzu Angel é o que expressa

226 Yoshitane Fujimori pertencia à direção regional da VPR, em São Paulo. Eduardo Collen Leite, o ‘Bacuri’ também pertencia à organização armada VPR. 227 Cf. MORETTIN, Eduardo. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro, in CAPELATO, Mª Helena et. al. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007, p. 39-64 (USP: história social. Série Coletâneas). 110

com mais intensidade a prática de tortura efetuada contra um guerrilheiro, no caso, contra Stuart Angel, filho da estilista e membro da organização MR-8.

Assinala-se que, contrariamente ao filme Lamarca – que se destaca pela exposição de diferentes cenas de tortura –, Zuzu Angel só apresenta de fato uma única cena em que esta prática é executada. No entanto, este momento possui uma intensidade audiovisual tão marcante, que representa o ponto de maior dramaticidade do filme e, logo, de maior impacto para o espectador. Além disso, através dos mecanismos de montagem cinematográfica, a cena – que se passa em flashback – é intercalada pela reação da mãe de Stuart lendo a carta de um testemunho do ocorrido228, o que produz um efeito ainda mais dramático, pois a personagem parece estar sofrendo, à medida que vai lendo a carta, as mesmas dores de seu filho. Com uma duração de mais de cinco minutos, onde se exibe a tortura física do filho e, ao mesmo tempo, a tortura psicológica da mãe, a cena ocupa um espaço muito significativo na trama narrada. Como se não quisesse poupar o espectador, Sérgio Resende retorna, em outro momento do filme, a esta mesma cena, dessa vez exibida com mais detalhes e nitidez, através do relato de um informante da Aeronáutica, que resolve contar o que sabe para Zuzu Angel.

Fig. 17 - Stuart Jones e ‘Alberto’ são torturados juntos nas dependências do CISA-RJ

Visando explorar ao máximo as possibilidades dramáticas da cena, a tortura de Stuart Jones é contada e exibida na tela por etapas. Primeiramente, aparece o preso ‘Alberto’ descrevendo, através de narração em off, o que acontecera com os dois. Ambos foram levados para a Base Aérea do Galeão, onde se situava o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica), e torturados juntos. Enquanto ‘Alberto’, de braços estendidos e segurando pesos nas duas mãos, apanha de cassetete, Stuart tem os olhos esfregados com sal grosso e depois

228 Trata-se de Alex Polari de Alverga, membro da VPR, apresentado no filme com o codinome ‘Alberto’. O preso foi torturado juntamente com Stuart Angel, no prédio do CISA, na Base Aérea do Galeão, e presenciou a sua morte, depois relatando-a em uma carta para a mãe de Stuart, como representa o filme. 111

recebe choques elétricos. Corta a cena para ‘Alberto’ já sozinho na cela, ouvindo e vendo, através da pequena janela, um pouco do que estava acontecendo com Stuart na área externa da prisão. As cenas são intercaladas pela reação de Zuzu lendo a carta. Somente em outro momento do filme, mais ao final da película, é mostrada em detalhes a cena de Stuart sendo arrastado pela traseira de um jipe, tendo o rosto colado ao cano de descarga do veículo, o que causou a sua morte por asfixia e envenenamento por monóxido de carbono. Repete-se a imagem – agora contada pelo ponto de vista do informante – de Stuart sendo torturado com sal grosso nos olhos e de ‘Alberto’ vendo o que acontecia com seu companheiro, através da janela de sua cela.

A explicitação da tortura, em sua face mais violenta, parece ser a “missão” de Sérgio Resende neste filme, além do sofrimento que a repressão foi capaz de infligir a uma mãe, outro ponto crucial da representação construída pelo cineasta. Ocorre, inclusive, uma certa espetacularização da tortura, visto que as cenas acima descritas foram as de maior elaboração cinematográfica, exigindo um intenso trabalho da equipe técnica, o que pode ser comprovado no making of do filme229, onde a preparação das referidas cenas é mostrada e comentada por seus realizadores. Além disso, toda a história de Zuzu Angel é construída, neste enredo, a partir da descoberta pela protagonista do que ocorrera com seu filho, após a prisão. O filme praticamente divide-se entre o antes e o depois da morte de Stuart na vida de Zuzu Angel. Mais uma vez, ressalta-se o “dever de memória” que Sérgio Resende suscita em seus filmes sobre o regime militar, sendo responsável pela elaboração de uma memória da repressão que procura dar voz, não somente aos guerrilheiros, mas principalmente a todos àqueles que foram capturados por agentes da repressão militar e sofreram os piores tormentos e atos de barbaridade nas mãos de seus algozes.

Outras questões, que permeiam a temática da tortura no regime militar, também são reveladas no filme. Vale destacar o diálogo entre Zuzu Angel, sua amiga Lúcia (interpretada por Ângela Vieira) e Fraga, seu advogado e também amigo (interpretado por Alexandre Borges); diálogo esse, ocorrido logo após a notícia da prisão de Stuart.

FRAGA: _ Zuzu, A PE [Polícia do Exército] nega que Stuart, ou ‘Paulo’, tenha sido preso. Eles dizem que ninguém foi para lá nos últimos três dias. LÚCIA: _ Você não pode entrar com o habeas corpus?

229 Seção contida nos Extras do DVD do filme Zuzu Angel. 112

FRAGA: _ Não. A ditadura acabou com o habeas corpus para crimes políticos. Eles agora podem ficar até quarenta e cinco dias com um preso sem prestar contas a ninguém.

Fica claro o tom didático que os autores imprimem à cena, em relação ao significado do habeas corpus. Stuart Jones foi preso em junho de 1971, sob vigência do Ato Institucional nº. 5 (criado em dezembro de 1968) e que, entre outras medidas, suspendia a garantia ao habeas corpus230, conforme explicado pelo personagem de Alexandre Borges. A partir do AI- 5, o poder concentrou-se no núcleo militar relacionado à chamada “comunidade de informações”, ou seja, nos quadros que estavam comandando os órgãos de vigilância e repressão a qualquer tipo de oposição ao regime. A tortura, que já existia desde o início do governo do militares, tornou-se uma prática mais constante e metódica. O filme Zuzu Angel preocupa-se em demonstrar em que medida a prisão, seguida de morte, de Stuart Jones, esteve relacionada à instituição do AI-5 e à suspensão da garantia do habeas corpus, que fez com que a mãe do guerrilheiro não conseguisse localizar seu filho.

Outra questão tratada em consonância com a prática de tortura encontra-se na referência às justificativas dos militares para a repressão violenta aos opositores do regime. Em uma cena rápida e aparentemente sem muita importância, onde Zuzu Angel conversa em um automóvel com o General Bosco (interpretado por Chico Expedito), na tentativa de localizar seu filho, o seguinte diálogo se desenvolve:

GENERAL: _ Se o seu filho está com a gente, eu garanto que ele está sendo bem tratado. ZUZU: _ Eu nem sei como lhe agradecer, General. GENERAL: _ Nós estamos em guerra! Em guerra contra a subversão. Por isso eu aplico a Convenção de Genebra nos nossos prisioneiros... ao pé da letra.

Observa-se, nesta pequena conversa, a perspectiva dos militares sobre aquele momento histórico pelo qual o país passava, que era encarado como uma “guerra contra a subversão”, o que justificaria os atos mais radicais cometidos pelo governo, em nome da segurança nacional. Ao mesmo tempo, revela-se uma grande ironia dos autores do filme, ao inserir a referência à Convenção de Genebra como medida de garantia ao tratamento concedido aos presos políticos. Enquanto o General afirma aplicá-la sobre seus prisioneiros, o

230 A suspensão do habeas corpus foi dirigida, na verdade, a todas as pessoas acusadas de crimes contra a segurança nacional e de infrações contra a ordem econômica e social e a economia popular. 113

desenvolvimento da trama demonstra as mais terríveis crueldades que eram impostas aos mesmos, contrastando com a afirmação do General.

Se, no filme Lamarca, Sérgio Resende já adota uma postura crítica em relação à participação e conivência dos altos escalões das Forças Armadas nas práticas de tortura durante os processos interrogatórios, em Zuzu Angel o cineasta, juntamente com o co- roteirista Marcos Bernstein, aprofunda as suas acusações.

Um dos mecanismos cinematográficos que contribui para a construção desta postura crítica encontra-se na desfocalização intencional dos personagens que representam os torturadores – que aparecem sempre em imagens escurecidas ou distorcidas –, enquanto aqueles que comandam as ações de tortura estão sempre nítidos nos enquadramentos produzidos no interior da película. Como constantemente afirmado neste trabalho, não há nada gratuito no processo de produção de um filme. E se houve a opção por se desfocar alguns personagens, enquanto outros aparecem com nitidez, na mesma cena, há certamente a imposição de um significado neste ato. Os torturadores não são mostrados como os principais algozes de Stuart Angel e de seu companheiro de militância ‘Alberto’, mas sim aqueles que comandaram os interrogatórios, as seções de tortura e, posteriormente, que negaram veementemente a responsabilidade sobre a morte do filho de Zuzu Angel.

Para não deixar dúvidas ao espectador desta rede de relações que ligava o “simples” torturador ao alto comando das Forças Armadas, Sérgio Resende produz uma seqüência onde demonstra todo o complexo e bem estruturado mecanismo de escuta presente nas dependências militares, utilizado não somente com os “suspeitos de subversão”, mas com todos aqueles que representavam algum tipo de ameaça, como no caso da estilista Zuzu Angel.

Fig. 18 - A sala de escuta clandestina da Aeronáutica, situada na Base Aérea do Galeão – RJ 114

Enquanto a protagonista conversa com o Capitão Mota (interpretado por Flávio Bauraqui), buscando informações de seu filho, o Brigadeiro escuta a conversa entre os dois em outra instalação do prédio da Aeronáutica. Percebe-se que não se trata apenas de uma pessoa que escuta clandestinamente a conversa. Na segunda figura acima (à direita), observa-se a existência de todo um sistema que envolve muitos integrantes da Aeronáutica, além da utilização de diversos aparelhos para a execução desta tarefa de espionagem, sugerindo a estruturação de um complexo mecanismo investigativo, pautado pela racionalização e esquematização desta prática, além da participação de integrantes mais graduados no interior das Forças Armadas.

A explicitação da tortura através de imagens chocantes e violentas não é o único recurso utilizado no filme para denunciar esta prática. Até mesmo a descrição verbal do que ocorrera à Sônia, viúva de Stuart Angel e também integrante da luta armada, apresenta-se de uma forma dramática, buscando-se a emotividade do espectador. Na referida cena, Zuzu Angel dá um depoimento em seu aparelho de gravador, explicando o que ocorrera nos últimos tempos, especialmente quanto ao destino de alguns personagens da trama. Sua voz passa a ser narrada em over, enquanto ela observa algumas fotos de Sônia. A música instrumental que acompanha a cena intensifica a carga dramática da descrição de Zuzu:

ZUZU: _ Em 1973... nova tragédia. A viúva de meu filho, Sônia, foi presa quando voltava clandestinamente ao Brasil. Antes de ser assassinada, ela levou choques, foi espancada, seviciada com cassetete e teve os seios arrancados. O seu corpo também nunca foi entregue à família.

Infere-se que o filme Zuzu Angel aprofunda a crítica e o caráter de denúncia à prática de tortura durante o regime ditatorial dos militares, já presentes em Lamarca. Até mesmo certo grau de conivência da Igreja Católica com os atos de tortura é mencionado neste último filme, através da figura de um capelão, ainda que esta menção não tenha sido aprofundada, conforme explicado no capítulo anterior. A tortura é mostrada, portanto, sem “meia tinta”, constituindo um aspecto primordial de ambos os filmes do cineasta que, neste sentido, dialogam entre si. O cineasta, nesses dois filmes, não se satisfaz apenas com a explicitação desta prática, mas procura situá-la como parte integrante de uma política de Estado, voltada para a eliminação dos focos de oposição ao regime militar, principalmente após o recrudescimento da ditadura a partir de 1968. Se, no filme Lamarca, essa denúncia já aparece, ainda que com certos limites, ela é praticamente escancarada em Zuzu Angel, não deixando espaço para muitas dúvidas ao espectador. Talvez como reflexo dos tempos atuais e do 115

conseqüente distanciamento do período ditatorial, o último filme de Sérgio Resende produz uma memória sobre o regime militar que, embora reproduza alguns velhos estereótipos sobre o militante político, por outro lado, opta pelo explícito caráter de denúncia à tortura e à sua sistematização como política de Estado.

Em um presente em que os debates sobre o nosso passado recente vêm ganhando cada vez mais vulto231 e onde muito do que foi silenciado pelas instâncias de poder na ditadura e no período de transição para a democracia, agora vêm à tona, deixando de constituir “memórias subterrâneas”, um filme como Zuzu Angel ganha legitimidade e o seu devido espaço no processo de reelaboração das memórias sobre a ditadura militar.

3.2.2 A tortura psicológica em Cabra-cega e O ano em que meus pais saíram de férias

A violência imposta pela repressão no governo militar não esteve presente somente sob a forma de tortura física. O fato é que ela também pode se revelar de diversas formas, inclusive simbolicamente. A rigidez da censura governamental aos meios de comunicação e às manifestações culturais, a cassação de mandatos políticos, a exoneração e imposição da aposentadoria, nos mais diversos cargos públicos, o estabelecimento do exílio político para diversos brasileiros, a clandestinidade assumida por militantes oposicionistas, a separação de familiares que não mais podiam conviver juntos em função do perigo representado pela militância política de alguns de seus membros; enfim, toda uma série de ações – tanto impostas pelo regime ditatorial, quanto adotadas pelos militantes políticos – podem ser percebidas como atos de violência, ocorridas no período do regime militar.

Os filmes aqui analisados também se preocupam em evidenciar outras formas de violência encontradas naquele momento da história do país. Especialmente em Cabra-Cega e O ano em que meus pais saíram de férias, observa-se como a necessidade da clandestinidade pode produzir um efeito trágico, tanto sobre aquele que se vê totalmente privado de sua liberdade, como o personagem ‘Thiago’ (de Cabra-Cega), quanto sobre aquele que se vê subitamente impedido de conviver com os pais, como o personagem Mauro (de O ano em que meus pais saíram de férias).

231 Especialmente após as discussões proporcionadas pelas “comemorações” dos quarenta anos do golpe militar, no meio acadêmico. Cito como exemplo, por sua importância no referido meio, o “Seminário 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil”, realizado em março de 2004, por uma parceria entre a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV) e o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). 116

* * *

O filme de Toni Venturi e Di Moretti – Cabra-Cega – concentra a sua trama nas condições adversas enfrentadas por um guerrilheiro, quando se vê obrigado a ficar trancafiado em um apartamento utilizado como aparelho político. A tortura priorizada neste enredo fílmico é, portanto, a tortura psicológica de quem não possui mais o direito de ir e vir e nem mesmo de ter a sua própria identidade revelada. Essa escolha dos autores não exclui, no entanto, a exposição da tortura em sua face mais cruel: a tortura física, praticada pelos agentes do Estado ditatorial. O filme Cabra-Cega apresenta uma das cenas mais impressionantes em relação à prática de tortura efetuada pelos militares, se comprada a outras representações cinematográficas sobre esse aspecto.

Trata-se da tortura sofrida por ‘Dora’ (interpretada por Odara Carvalho), uma antiga companheira militante de ‘Thiago’. A cena é introduzida abruptamente, com a ruptura no presente em que transcorre a ação do filme, mais parecendo uma alucinação do protagonista do que uma lembrança natural, como geralmente ocorre com a introdução dos flashbacks. A ausência de didatismo nesta cena parece ser uma escolha proposital, conforme se depreende do roteiro do filme232. O clima de angústia é estimulado pela exibição de um cenário inóspito – com a reprodução de um ambiente propício àquele tipo de prática interrogatória, conforme descrito no filme Lamarca –, com planos rápidos e algumas imagens distorcidas (efeito flou). O mais instigante nesta cena situa-se no fato de que ninguém que está presente naquele ambiente toca fisicamente na guerrilheira. Os torturadores apenas andam em círculos a sua volta, onde ela se encontra amarrada a uma cadeira, nua e com um saco escuro na cabeça. Nenhum ato de violência física é praticado; também não se pergunta nada à ‘Dora’; não há interrogatório.

O filme apresenta, neste momento, uma forma radical de tortura psicológica, caracterizada pela iminência da dor. ‘Dora’ não está sendo fisicamente torturada, naquele momento, mas sabe que esta ação pode acontecer a qualquer hora. O desespero toma conta da “interrogada”, que parece estar sofrendo tanto quanto se estivesse recebendo os castigos físicos. Do outro lado, estão os torturadores, que apavoram sua vítima apenas com o poder que possuem sobre ela. O que pode parecer apenas um recurso dramático para impactar o público, não se afasta de diversos depoimentos daqueles que passaram por tais suplícios ou de análises balizadas sobre o tema, como se constata a seguir:

232 VENTURI, Toni; KAUFFMAN, Ricardo. Cabra-cega: o caminho do filme. Do roteiro de Di Moretti às telas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 116-117. 117

Usada como instrumento de investigação, a tortura baseia-se numa confusão entre interrogatório e suplício. Num interrogatório há perguntas e respostas. No suplício, o que se busca é a submissão […] A tortura manobra a dor de forma diversa. O sofrimento começa ou pára, aumenta ou diminui, pela exclusiva vontade do torturador. Ele tanto pode suspender uma sessão para dar a impressão de que teve pena do preso, como pode avisar que vai iniciar outra, sem motivo algum, para mostrar-lhe a extensão do seu poder. ‘Meu maior medo não era do pau, mas da possibilidade de tomar um pau’, lembra Ariston Lucena, militante da VPR, preso no DOI paulista [...] O poder absoluto que o torturador tem de infligir sofrimento à sua vítima transforma- se em elemento de controle sobre seu corpo. No meio da selva amazônica, espancando um caboclo analfabeto que pedia ajuda divina para sustar os padecimentos, um torturador resumiria sua onipotência embutida: ‘Que Deus que nada, porque Deus aqui é nós mesmo.’”233

A cena da tortura psicológica de ‘Dora’ tem duração de apenas dezoito segundos, contrastando com sua intensidade dramática. Depois de transcorridos mais dezessete minutos do enredo fílmico, novo flashback é introduzido, numa espécie de continuação da mesma cena. Dessa vez, as imagens audiovisuais são mais impactantes ainda, revelando uma tortura extremamente cruel e difícil até de ser visualizada pelo espectador, tamanho o sentimento de desconforto. ‘Dora’, ainda com o corpo nu e amarrada à “cadeira do dragão”234, tem o capuz retirado e é obrigada a se olhar em um pedaço de espelho, contemplando seu estado deplorável (novamente a presença da tortura psicológica). Os torturadores jogam um balde de água em seu corpo para potencializar os choques elétricos que ela leva, em seguida, na região da vagina. Há uma única frase nesta cena, que é proferida pelo oficial interrogador (interpretado por Renato Borghi), denominado no meio militar como “analista de informações”: “Você vai parir eletricidade”; e ele se retira, deixando o “trabalho sujo” nas mãos dos torturadores. Vale ressaltar que havia um diálogo maior previsto no roteiro original, que chegou inclusive a ser filmado, mas posteriormente retirado, pois, “para Venturi, a ação de selvageria e barbárie é a expressão da tortura mais contundente. A direção procurou enfatizar a emoção da situação numa esfera de representação em que não há espaço para racionalizações”235.

Com isso, a memória da dor atinge, aqui, a culminância em sua forma fílmica de representação. Um assunto que não é tratado efetivamente pela esfera pública, ainda na atualidade, acaba por se transformar em uma necessidade no meio cinematográfico que

233 GASPARI, Elio. A ditadura escancarada..., p. 40. 234 Ferramenta utilizada pelos torturadores, onde os presos levavam choques nus. 235 VENTURI, Toni; KAUFFMAN, Ricardo. Cabra-cega: o caminho do filme..., p. 169. 118

aborda esta temática, como apontado por Souza, em sua idéia de filme como “arquivo suplementar” da ditadura brasileira236.

Fig. 19 – ‘Dora’, companheira de ‘Thiago’, sendo torturada.

Interessa salientar que ainda nesta cena visualiza-se a hierarquização das funções dos interrogadores, evidenciando-se a distinção entre aqueles que realizam efetivamente a prática de tortura – representados no filme por homens praticamente sem rostos, visivelmente alterados, impregnados pelo clima de terror presente no ambiente – e o agente responsável por interrogar a presa – que se veste com distinção (utilizando terno e gravata), fala em tom moderado, sem alterações de comportamento, retirando-se do recinto após a sua ordem de iniciar os choques elétricos em ‘Dora’. Este é o momento em que Cabra-Cega aborda a visibilidade do Estado em relação à prática de tortura. A partir do momento em que a referida violência contra a militante é mostrada com a devida distinção entre agentes interrogadores (os perpetradores da violência) e o analista de informações (aquele que comanda esta prática)237, fica estabelecida a rede hierárquica que regia os interrogatórios efetuados por membros das Forças Armadas, assim como a sistematização da prática de tortura, efetuada por estes órgãos. Mesmo que estes aspectos não estejam didaticamente visíveis, apenas sugeridos de maneira mais sutil, a crítica ao Estado ditatorial em relação ao crime de tortura se faz presente na narrativa fílmica que Cabra-Cega se propõe a construir.

236 SOUZA, Maria Luiza Rodrigues. Um estudo das narrativas cinematográficas sobre as ditaduras militares no Brasil (1964 – 1985) e na Argentina (1976 – 1983)..., passim. 237 O estudo de Marion Magalhães apresenta uma análise das diferentes funções exercidas por todos os membros, militares e civis, envolvidos com as práticas interrogatórias. MAGALHÃES, Marion Brepohl. Fazer falar: técnicas de interrogatório durante o regime militar, in CANCELLI, Elizabeth (Org.). Histórias de violência, crime e lei no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004, p. 155-172. 119

Excetuando-se essas duas cenas onde a tortura é explicitada em sua forma mais violenta, o filme se volta para a necessidade de se transpor para o espectador a atmosfera claustrofóbica da vida de um guerrilheiro trancafiado em um apartamento, de onde não pode sair, nem mesmo ser visto por outras pessoas, que não as envolvidas em sua organização. O que se quer realmente mostrar, em Cabra-Cega, é uma outra forma de violência: aquela imposta pela vida clandestina de um guerrilheiro. Se o ingresso na luta armada já pressupunha uma transformação radical na vida do militante – limitando as suas possibilidades de deslocamento, afastando-o da vida comum e do convívio com outras pessoas e retirando-lhe, inclusive, sua identidade –, no caso de um guerrilheiro que foi ferido em uma ação de fuga e que precisa se recuperar com segurança, mas sem a possibilidade de estar em um hospital, as limitações tornam-se mais drásticas ainda, levando o protagonista ‘Thiago’ praticamente à loucura.

A tortura psicológica está presente na vida que ‘Thiago’ escolheu: ele não pode viver seu amor com ‘Rosa’, é obrigado a conviver no mesmo apartamento com uma pessoa com quem não simpatiza (Pedro), não pode sair às ruas, sua organização rejeita seus métodos. O que se percebe, em um primeiro olhar, é que o grande opressor no filme não é exatamente o Estado ditatorial, mas o apartamento-aparelho onde ‘Thiago’ se esconde, em função de sua vida clandestina. Uma vida submetida a muitos riscos, mas que foi conscientemente escolhida pelo próprio militante-guerrilheiro. Percebe-se a intenção, dos realizadores do filme, em destacar que a violência está presente nos “dois lados” dessa história: entre aqueles que optaram por uma privação da liberdade e de uma vida particular em nome de uma causa coletiva e aqueles que impuseram um clima de repressão e terror a muitos indivíduos da sociedade brasileira. Desconstrói-se, assim, uma visão vitimizadora desse ator social que foi o guerrilheiro urbano do regime militar. Sem deixar de reconhecer o valor daqueles que lutaram efetivamente pelo fim da ditadura, Cabra-Cega constrói uma representação mais complexa para esses personagens e suas trajetórias, buscando humanizá-los e, conseqüentemente, expor as tensões que se depreendem de suas ações e escolhas. O militante que optou pela luta armada optou também por uma outra vida, e o personagem ‘Thiago’ reflete todas as angústias implicadas nessa escolha, como já colocado no capítulo anterior. É importante que se diga que o filme não impõe uma crítica contundente aos guerrilheiros – antes lhes rende uma homenagem –, mas o que se pretende é justamente desmistificar o herói-guerrilheiro, tão exaltado em outras representações cinematográficas. 120

Cena significativa do filme, no sentido de proporcionar um contraponto com a clausura do aparelho onde ‘Thiago’ se esconde, ocorre no momento em que ele e ‘Rosa’ conseguem dar uma pequena “escapada” para o terraço do prédio, onde se deparam com a amplitude do espaço urbano. Lá de cima, observam a cidade de São Paulo e se questionam sobre o sentido da luta armada.

Fig. 20 – ‘Thiago’ sentindo a liberdade… ainda que momentânea

“Será que alguém aí [aponta para os prédios da cidade] tá sabendo de nossa luta?”, pergunta ‘Thiago’. Não há respostas. Apesar da mensagem pessimista que se depreende do questionamento do protagonista, esta seqüência apresenta o único momento de descontração do filme, em meio ao permanente e crescente clima de tensão, com direito a uma cena romântica entre os dois, embalada por uma envolvente trilha sonora238. Rapidamente, a trama retorna para o interior do aparelho político e a tensão se instaura novamente. O casal é rispidamente repreendido por Pedro, que considera o “piquenique no terraço” um ato de total irresponsabilidade, deixando claro que a vida clandestina não dá espaço para se aflorarem os sentimentos pessoais.

A tortura contida no ato de clausura de ‘Thiago’ se faz presente no filme por diferentes caminhos. Além dos já mencionados, ressalta-se a constante necessidade de uma intermediação entre o protagonista e o mundo exterior ao apartamento que habita. Sobressaem, neste sentido, o olho mágico das portas que visualizam o corredor do prédio, o

238 A cena inicia-se com a música original de Sérgio Sampaio, Eu quero é botar meu bloco na rua e termina com Rosa-dos-ventos, de Chico Buarque, com a adaptação de Fernanda Porto. 121

aparelho de telefone e a televisão, existentes no interior do apartamento de Pedro. Através desses acessórios, ‘Thiago’ procura ou rejeita o contato humano, seja com a vizinha do apartamento ao lado, seja irritando-se com o toque do telefone, ou recebendo as notícias políticas pela televisão. Mais uma vez, reforça-se a idéia de que a vida de um guerrilheiro clandestino acabava por violentá-lo psicologicamente, ao retirar-lhe o direito à liberdade.

Enfim, o filme de Toni Venturi e Di Moretti empenha-se em apresentar ao espectador as entranhas da vida de um guerrilheiro; os detalhes de um cotidiano marcado pela privação da liberdade, que também se apresenta como uma forma de tortura. Privação esta que foi, ao mesmo tempo, resultado de uma escolha consciente por parte de um militante político, mas também uma imposição por parte de um governo altamente opressor. O apartamento-aparelho político de ‘Thiago’ torna-se um personagem à parte no filme, fazendo também o papel de torturador/opressor. A intenção desmistificadora de Cabra-Cega não sugere, no entanto, um relativismo absoluto que proporcione um papel de equivalência entre Estado ditatorial e vida guerrilheira clandestina. Para isso, a tortura física é demonstrada em toda sua brutalidade e desumanidade, não deixando dúvidas ao espectador sobre o desequilíbrio de forças contido nessa guerra política. Percebe-se, aqui, a construção de uma memória mais sensível e complexa sobre a tortura e o regime militar, sem deixar de valorizar o papel do guerrilheiro na busca de um ideal político e social. * * *

Se em Cabra-Cega já há a preocupação de se representar a tortura por um viés mais psicológico, em O ano em que meus pais saíram de férias observa-se a sutileza de seus autores no tratamento concedido a esta forma de violência.

Na realidade, não há a explicitação de uma única cena de tortura física efetuada por membros do governo militar. Observa-se apenas, em uma seqüência do filme, tropas do Exército invadindo uma universidade e retirando seus estudantes, com a prisão de alguns deles. Ítalo, o jovem amigo dos pais de Mauro e aluno da referida universidade, fica ferido na fuga e é ajudado pelo menino, que o leva para o apartamento de seu avô. Uma outra seqüência apresenta Shlomo, o vizinho de Mauro, sendo levado para interrogatório na polícia, retornando sem sinais de violência, apesar de visivelmente abatido. Nada mais é mostrado neste sentido. A violência física é apenas sugerida no retorno da mãe de Mauro e na ausência, permanente, de seu pai.

Fica claro, nesta narrativa ficcional, que a intenção de seus autores está relacionada à revelação de um outro tipo de violência, também proporcionada pelas circunstâncias do 122

regime ditatorial: a privação de uma criança do direito de conviver com seus pais que, obrigados a fugir da repressão, abandonam seu filho em um mundo que lhe é totalmente estranho (o bairro judeu em que seu avô morava).

É o tema do abandono que se destaca na trama. E, assim como em Cabra-Cega, a ambigüidade também está presente nesta temática. Por um lado, a necessidade da fuga dos pais está diretamente relacionada à opressão causada pela política ditatorial e repressora do governo dos militares. Ao mesmo tempo, o ingresso de Daniel e Bia (pais de Mauro) na luta armada e, conseqüentemente, na clandestinidade, pode ser encarada como um ato voluntário, pois a opção pela oposição ao regime oferecia outras formas de contestação, que não necessariamente a via violenta defendida pelos grupos guerrilheiros239. Observa-se, assim, a construção de um filme que foge a uma visão monolítica sobre o tema e que procura trabalhar com as diversas faces de um determinado acontecimento. Não há, em O ano em que meus pais saíram de férias, nem “mocinhos” nem “vilões”, mas a tentativa de uma representação mais complexa, porque humana, de atores sociais que vivenciaram as circunstâncias de um momento político específico de nosso passado recente.

Mesmo sem uma única cena de violência física240, o filme consegue passar para os espectadores toda a atmosfera angustiante e tensa, especialmente para um menino de onze anos, que mal entende o que está acontecendo com seus pais e muito menos com a política de seu país. Mais uma vez, destaca-se a importância da tortura psicológica que a conjuntura do regime ditatorial impôs sobre centenas de pessoas e, no caso em questão, sobre uma criança que não tinha nenhuma relação com a política. Mesmo sem pertencer a qualquer organização guerrilheira, Mauro acaba por ser privado de sua liberdade – pois se vê obrigado a abandonar sua casa, sua escola, sua cidade – e do convívio com seus pais. É levado para um ambiente diferente, inicialmente hostil, cujos códigos ele desconhece. Leva praticamente uma vida clandestina, sendo forçado a se adaptar a qualquer custo. Se por um lado a referida situação adversa o leva a um crescimento interno, acompanhado de suas transformações infanto- juvenis, por outro lado, a violência existencial proporcionada por seu abandono e pela perda permanente de seu pai parece deixar cicatrizes profundas no menino. O filme mostra, portanto, que não é só a violência física que deixa suas marcas.

239 O Partido Comunista Brasileiro (PCB), por exemplo, posicionou-se contra a estratégia da luta armada e defendia a revolução dentro da ordem institucional. Cf. RIDENTI, Marcelo. Esquerdas revolucionárias armadas: nos anos 1960-1970, in FERREIRA, Jorge e REIS FILHO, Daniel Aarão (Orgs.) Revolução e democracia. 1964... Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 21-52. 240 Como já foi dito, Ítalo sofre um pequeno ferimento na cabeça, no confronto com policiais em sua universidade. Mas nem mesmo esse ato de violência é demonstrado no filme, aparecendo apenas o personagem, após o acontecido, se escondendo no prédio de Mauro. 123

As estratégicas fílmicas utilizadas por Cao Hamburger, no sentido de proporcionar o clima de violência psicológica contida no abandono de Mauro, são bem variadas. Destaca-se o uso deliberado de muitos closes e planos americanos241, especialmente sobre o personagem infantil, que proporcionam um foco mais específico sobre a expressividade de Mauro, demonstrando seus medos, alegrias e tristezas, enfim, os seus sentimentos, que ganham uma ênfase maior, como já mencionado no capítulo anterior.

Os corredores do prédio do avô falecido de Mauro, onde ele passa a morar, são sempre muito escuros e sombrios, transpondo o clima de insegurança e medo que o menino sente naquele universo desconhecido para ele. Até mesmo o interior do apartamento, que deveria fornecer alguma segurança ao personagem, parece ressaltar a solidão de Mauro, como observado na figura abaixo.

Fig. 21 - Mauro sente-se sozinho, num mundo que não é o seu

Também se observa o estranhamento do menino, quando ele se vê obrigado a, repentinamente, compartilhar de uma cultura que não compreende. Para isso, o filme elabora uma variedade de cenas em que Mauro se depara com uma outra língua, uma outra forma de alimentação, com rituais que desconhece, com hábitos diferentes, tudo isso, por estar inserido em um bairro de predominância judaica. Como na vida clandestina, Mauro é obrigado a se adaptar a essas novas regras de convivência.

241 No plano americano há uma certa aproximação da câmera em relação à figura humana a ser filmada, focando- a aproximadamente da cintura para cima. XAVIER, Ismail. A decupagem clássica, in O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 27. 124

O abandono e a conseqüente angústia do protagonista ainda são realçados por sua espera, quase que permanente, por um telefonema dos pais. Durante boa parte da trama, Mauro recusa-se a sair do apartamento – primeiro no de Shlomo, onde ele inicialmente se instala e, posteriormente, no de seu avô –, pois acredita que o telefone possa tocar a qualquer momento. Como na posição de goleiro, que Mauro tanto admira e se inspira, ele acredita que não pode “sair da área” para não sofrer um gol. Nesse sentido, o telefone aparece praticamente como um personagem no filme, com a utilização de vários closes sobre o aparelho e sobre a espera de Mauro por uma comunicação com os pais. Ao se revoltar com a longa espera sem notícias, após transcorrida uma hora do longa-metragem, Mauro parte para cima do aparelho de telefone e o atira violentamente ao chão, praticamente desistindo do contato com os pais.

Um outro momento de relevo para a construção da atmosfera de angústia do protagonista – ressaltando a tortura a que está submetido – encontra-se na seqüência em que Mauro, ao brincar com colegas na rua, observa um carro passando e o identifica como o automóvel de seus pais. Mauro dispara em direção ao veículo, corre desesperadamente atrás dele durante alguns minutos, até perceber que não se tratava do carro dos pais. A triste música instrumental que permeia a seqüência abafa os gritos de Mauro, que tenta se fazer ouvir pelos donos do carro. A referida cena fornece um clima de desespero tão intenso quanto uma cena de tortura física, acrescentada ao fato de que se trata de uma criança.

Fig. 22 - Mauro corre atrás de um carro, pensando ser o dos pais.

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Como se pode observar, a preocupação dos autores com a violência causada a uma criança pelas circunstâncias impostas pelo regime militar e pela luta armada está presente em toda a narrativa elaborada em O ano em que meus pais saíram de férias. Desde construções bem sutis e simbólicas a outras mais explícitas e concretas, a tortura psicológica torna-se o mote deste filme, contribuindo para a elaboração de uma memória que busca os pormenores da vida daqueles que participaram indiretamente da oposição ao regime militar, como os filhos de guerrilheiros e de outros opositores ao regime. O “herói”, aqui, não é nenhum líder guerrilheiro, mas apenas uma criança que tenta sobreviver às adversidades impostas pela política de seu país e, consequentemente, à sua vida particular. Mais uma vez, destaca-se no cinema brasileiro recente a valorização da esfera particular e intimista no tratamento concedido à temática política da ditadura militar.

3.2.3 A “tortura limpinha” em O que é isso, companheiro?

O filme de Bruno Barreto e Leopoldo Serran oferece uma representação da tortura que em muito se difere dos outros filmes analisados. O mesmo se pode afirmar da (in)visibilidade do Estado como responsável, direto ou indireto, pela execução desta prática violenta efetuada no período do regime militar.

Destaco, inicialmente, as “modalidades” de tortura apresentadas na trama de O que é isso, companheiro?: primeiro, há um afogamento brando, sofrido por Oswaldo (personagem de Selton Mello) – um dos guerrilheiros da organização de Fernando Gabeira –, que rapidamente é interrompido para a delação do torturado. Enquanto tem sua cabeça introduzida em um barril cheio d’água, os perpetradores de Oswaldo conversam descontraidamente sobre assuntos amenos. Já entre as últimas cenas do filme, Gabeira está aprisionado em um pau-de- arara, sendo interrogado em condições aparentemente humilhantes e traumáticas. No entanto, o clima violento da cena logo se rompe com a fala do protagonista que, mesmo sob as condições em que se encontrava (de cabeça para baixo, pendurado em um pau-de-arara), consegue ironizar o torturador, dando à cena um certo ar cômico – tentativa do diretor de supervalorizar a figura de Gabeira – que ridiculariza seu algoz, mesmo estando em uma situação de total inferioridade.

Nenhuma das duas cenas, acima descritas, remete à atmosfera de extrema tensão e violência esperada pela reconstituição cinematográfica de uma sessão de tortura, efetuada 126

durante os “anos de chumbo” do regime militar. Mais parece uma “tortura limpinha, que quase não dói”, como afirma o ex-guerrilheiro César Benjamin, ao comentar sobre o filme242. Dessa forma, elabora-se uma memória que procura amenizar a violência, tanto física como psicológica, daqueles que passaram pelas dependências da polícia ou das Forças Armadas durante o período analisado. Ressalva deve ser feita para a seqüência final do filme, onde a atriz Fernanda Torres, que interpreta a guerrilheira ‘Maria’, aparece em uma cadeira de rodas ao sair da prisão para ser trocada, juntamente com outros prisioneiros políticos, pelo embaixador alemão, em um novo seqüestro realizado posteriormente ao do embaixador norte- americano243. ‘Maria’ representa o papel de Vera Silvia Magalhães, que participara efetivamente do seqüestro de Charles Elbrick e que sofrera terríveis sofrimentos na prisão a ponto de deixá-la com paralisia nas pernas por um determinado período. Sua chegada ao aeroporto, para se juntar ao grupo, promove a emoção no espectador apenas ao sugerir o grau de violência que recebera a personagem para se encontrar no estado em que aparece na cena. Mesmo nesse caso, porém, o sugestionamento da tortura é amenizado pelo “final feliz” que ‘Maria’ e o grupo de prisioneiros recebem, já que esta última seqüência do filme termina com a saída para o exílio de todos aqueles que foram trocados, em mais um seqüestro guerrilheiro “bem sucedido” naquele período.

Se por um lado os autores do filme não se empenham muito na exacerbação das cenas de tortura, por outro, ganha papel de destaque na trama a figura do torturador. Como já analisado anteriormente, Barreto e Serran optam pela construção de um personagem – no papel do torturador Henrique – matizado por um drama interior, angustiado com as tarefas que lhe foram conferidas, extremamente racional e consciente da situação política do país e conhecedor das estratégias dos grupos de guerrilha urbana. Chega a demonstrar arrependimento por realizar atos de tortura, mas os justifica como única forma de vencer a guerra contra a subversão. Afirma ter pena dos jovens guerrilheiros, mas esclarece que a tortura contra eles se faz necessária para se chegar ao comando das organizações, constituído por “raposas velhas”, que manipulavam esses jovens. Como o filme não apresenta nenhum contraponto às idéias desse personagem – os comandantes do grupo do seqüestro, por exemplo, não revelam drama de consciência ou angústias pessoais –, elabora-se uma

242 César Benjamin pertenceu à Dissidência Comunista da Guanabara, a mesma organização guerrilheira de Fernando Gabeira, depois rebatizada de MR-8. A expressão em destaque no texto foi utilizada pelo autor, no artigo: Cinema na era do marketing, in REIS FILHO et. al. Versões e ficções: o seqüestro da história..., p. 93- 100. 243 Em junho de 1970, a VPR seqüestrou o embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, trocando-o por quarenta presos políticos. 127

representação que humaniza intensamente o torturador, ao mesmo tempo em que embrutece outros personagens.

Vale destacar que a valorização do papel do torturador também é observada através de alguns recursos cinematográficos. Em filmes como Zuzu Angel e Cabra-Cega os torturadores, quando aparecem, não possuem uma nitidez que permita ao espectador um foco sobre o personagem. São praticamente figuras sem rostos. Há algum destaque, no máximo, para o analista de informações; nunca para os homens responsáveis pela execução da tortura. Já em O que é isso, companheiro?, os torturadores não somente possuem uma atenção privilegiada das câmeras, como ainda recebem papel de relevo na trama. Observa-se, assim, como algumas estratégicas fílmicas contribuem para a construção de determinados significados sobre a história a ser contada e como o olhar da câmera dirige o olhar do espectador.

Outro recurso que caminha neste mesmo sentido de valorização do torturador no filme em questão refere-se à variação da escala de planos adotada. Em Zuzu Angel e Cabra-cega, os torturadores aparecem em cena através da adoção de planos médios (ou de conjunto), o que determina um enquadramento dos personagens de forma algo distanciada. Diferentemente, em O que é isso, companheiro?, Henrique e seu colega Brandão (interpretado por Maurício Gonçalves) são filmados através de planos do tipo americano – mais aproximado em relação ao plano médio – e do primeiro plano (o close up), que determina uma aproximação muito maior dos personagens em relação ao ponto de vista do espectador. O que pode parecer um mero detalhe técnico, presente no processo de produção de uma película, constitui mais uma forma de construção de significados, pois, como assegura Alain Bergala,

Não há dúvida de que existe, nessa variação do tamanho dos atores na tela, nessa proximidade maior ou menor do olho da câmera em relação a cada personagem, um elemento determinante quanto ao grau de atenção, de emoção compartilhada, de identificação com este ou aquele personagem.244

244 BERGALA, Alain. O filme e seu espectador, in AMOUNT, Jacques et. al. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1995, p. 274.

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Fig. 23 - Exemplos da adoção de planos aproximados para os personagens dos torturadores245

Henrique é um torturador que “interroga” seus prisioneiros educadamente, de forma burocrática e até mesmo fria. Não se envolve pessoalmente, não demonstra nenhum tipo de emoção (apesar de, à noite conversando com sua esposa, sentir-se culpado e ficar penalizado). Seu comportamento assemelha-se mais ao analista de informações, responsável pelo comando da prática de tortura, mas não pela sua execução. Com este tipo de representação, o filme funde analista de informação e interrogador na mesma pessoa, construindo uma imagem mais amena para este personagem e demonstrando uma tortura menos cruel e brutal do que as representações analisadas nos outros longas-metragens. Se esta visão desconstrói a idéia de que o torturador tratava-se de um desequilibrado ou psicótico, movido por uma predisposição à violência, por outro lado, não estabelece a devida distinção entre os diferentes membros do processo de execução dos interrogatórios, levando o espectador a isolar a figura do torturador num personagem que não tem vínculos com a estrutura de poder vigente na ditadura militar.

Este acúmulo de funções atribuídas ao torturador se estende a outras atividades por ele desempenhadas. Henrique realiza simplesmente todas as tarefas relativas à investigação e à repressão ao seqüestro do embaixador norte-americano. É ele quem tortura membros do grupo, realiza as investigações para a localização da casa, monta o aparato tecnológico para a

245 Uma observação: a quarta imagem refere-se à adoção da câmera subjetiva, representando o ponto de vista de Fernando Gabeira, que está sendo torturado em um pau-de-arara, ficando seu corpo de cabeça para baixo. 129

escuta telefônica da casa localizada, segue integrantes do seqüestro nas ruas, persegue de carro os seqüestradores e ainda comanda uma reunião onde se decide o que fazer com os rumos das investigações e com o destino do embaixador Charles Elbrick. Como se essa decisão tivesse sido tomada por pessoas de menor grau nas Forças Armadas e não pela alta cúpula dessa instituição, juntamente com representantes diretos da presidência da República, naquela época ocupada por uma Junta Militar.

O que pode parecer apenas uma simplificação de personagens, condensados na figura de apenas um deles – a partir do argumento do autor de que se trata de uma livre interpretação do livro de Fernando Gabeira – deve ser analisado com extrema cautela. Pelo mecanismo de omissão, mais uma vez o filme elabora uma memória que busca uma conciliação com a ditadura, conforme já apontado no capítulo anterior. Ao construir um personagem que concentra todas as atividades ligadas à repressão ao grupo guerrilheiro que realizara o seqüestro, o filme não menciona a rede de relações que se estabeleceu no interior das Forças Armadas no processo de investigação e repressão aos seqüestradores, isentando os escalões superiores da prática de tortura e reforçando a visão estereotipada de que os torturadores agiam “por conta própria”, como grupos “fora de controle” o que não corresponde à realidade daquela época. Esta última idéia torna-se mais nítida no filme quando Henrique repudia as ordens de seu oficial superior (interpretado por Othon Bastos):

HENRIQUE: _ Tá na hora desses babacas começarem a suar. BRANDÃO: _ Não sei não, o comandante... HENRIQUE: _ Foda-se o comandante! Se a gente aceitar as condições impostas por esses caras... Nós vamos por na rua nosso esquema alternativo!

Esquema alternativo que fica evidenciado, ao final do filme, quando esse mesmo oficial comandante intercepta o carro de Henrique, apontado-lhe armas e impedindo-o de perseguir os seqüestradores no processo de libertação do embaixador norte-americano.

A invisibilidade do Estado e das Forças Armadas no filme O que é isso, companheiro? parece ir além de uma simples omissão, correspondendo a um silêncio deliberado para que a memória cinematográfica ali elaborada limite-se a contar uma história de ação, com uma forte carga dramática, mas sem uma postura crítica com a temática política que, inevitavelmente, o filme carrega consigo. O cineasta Bruno Barreto procura deixar claro, em entrevista realizada na época do lançamento do filme, que seu interesse cinematográfico não possui nenhuma relação com questões políticas, pois, segundo ele, “a cartilha ideológica limita as pessoas esteticamente. Repudio com toda veemência qualquer nível de engajamento político de 130

artistas”246. A despeito de intenções declaradamente em contrário, não é possível tratar de um tema histórico e político no cinema sem apresentar uma proposta ideológica, ainda que não tão consciente por parte de seus autores: como já afirmava Marc Ferro, “a coerência do propósito ordena a escolha das imagens”247. Barreto propõe, desta forma, uma recuperação da memória dos anos de 1960 no Brasil que busca uma conciliação com este passado, onde a tortura aparece como um excesso, quase um acidente, e sem vínculos com agentes graduados das Forças Armadas, muito menos com membros do governo. Em outras palavras, a tortura no filme O que é isso, companheiro? não é representada como uma política de Estado, sistemática e eficaz. Observa-se uma memória apaziguadora, dentro do espírito da anistia recíproca, condizente com o período de elaboração do livro de Gabeira (1979), mas um pouco fora de contexto para um filme elaborado nos anos de 1990, onde essas visões já estavam sendo revistas e memórias mais críticas marcavam presença nas telas do cinema brasileiro248.

246 NAGIB, Lúcia. Para Barreto, ‘é pecado vencer no Brasil’. Folha de São Paulo, 21/11/1997, Ilustrada, p. 4- 11. Disponível em: . Acesso em: 06 ago. 2008. 247 FERRO, Marc. Cinema e História. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 74. 248 Cito, como exemplo de filmes produzidos na década de 1990 e que apresentam uma postura mais crítica em relação à tortura efetuada pelos militares, Lamarca (Sérgio Resende, 1994) e Ação entre Amigos (Beto Brant, 1998). 131

4. AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA OBRA CINEMATOGRÁFICA

Parafraseando E. H. Carr, poder-se-ia argumentar que, antes de estudar o filme, você deve estudar o diretor. (Peter Burke)

4.1 O cinema brasileiro da pós-ditadura

Lamarca foi lançado em 1994 e O que é isso, companheiro? em 1998. Os dois filmes situam-se em um momento particular da trajetória trilhada pelo cinema produzido no país, que ficou comumente conhecido como período da Retomada. Este termo não deve ser entendido sob o ponto de vista da recuperação de uma determinada proposta estética, mas sim da reconstrução desta atividade que se encontrava intensamente prejudicada pelo momento histórico e cultural que o país vivia no início da década de 1990249.

Refiro-me ao fato de que o país encontrava-se recém-saído de vinte e um anos de ditadura militar, passara pela conturbada transição para a democracia (com a morte do presidente Tancredo Neves, eleito ainda por via indireta, em 1985), com a crise econômica do governo Sarney, e com a eleição direta do presidente Fernando Collor, em 1989, o qual, em 1992, sob acusação de corrupção, foi destituído em processo de impeachment. Antes de sua saída, porém, Collor tomou medidas que atingiram de forma quase letal os rumos do cinema brasileiro, naquele momento: em 1990, o presidente rebaixou o Ministério da Cultura à categoria de Secretaria e extinguiu todos os órgãos de promoção e apoio à produção cultural, como o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), a Fundação Nacional de Cinema (FNC) e a Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME), esta última a principal fomentadora da atividade cinematográfica no Brasil, desde sua criação, em 1969. Além disso, a reforma implementada por Collor não previa nenhum outro órgão substitutivo para promover ou incentivar as atividades cinematográficas brasileiras. Ricardo Caldas e Tânia Montoro

249 O termo “Retomada”, referindo-se ao cinema brasileiro da década de 1990, é muito questionado por alguns historiadores, críticos e cineastas. A esse respeito, ver depoimento do cineasta Carlos Reichenbach, in CAETANO, Daniel (Org.). Cinema brasileiro 1995 – 2005. Ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro: Azougue, 2005, p. 277-289. Sem deixar de considerar a validade de algumas dessas críticas, optei por utilizar o termo na presente pesquisa, primeiramente por se referir a um período onde realmente houve um processo de reestruturação do cinema no Brasil, após um momento de grave crise no setor e a quase total estagnação da sua atividade. Em segundo lugar, porque o termo oferece a possibilidade de situar o leitor em um momento específico da história do cinema brasileiro (a década de 1990), facilitando a narrativa do presente texto. 132

avaliam da seguinte forma a situação que se instaurou após as medidas tomadas pelo governo Collor:

O cinema nacional ficou sem diretrizes claras para atuar, sem projeto. Com as dificuldades de praxe em relação à infra-estrutura de realização, quase se rompe o frágil relacionamento entre público e espaço de exibição, tanto nas telas de cinema como na televisão. As produções foram interrompidas sem prazo ou perspectiva de volta, filmes prontos pararam de ser distribuídos. Na atmosfera de incerteza do país, a produção cai. […] O cinema brasileiro foi- se apagando ainda mais do imaginário da população.250

Com esta característica de “terra devastada”, como se referiu o ator Paulo Betti ao analisar o momento de elaboração do filme Lamarca251, a produção cinematográfica brasileira ficou entregue às perspectivas das políticas neoliberais como ocorreu, aliás, em todas as outras áreas do governo Collor. Para se ter uma visão mais clara sobre os efeitos das medidas desse governo sobre o cinema brasileiro, basta observar que em 1992 foram produzidos apenas três filmes no país, enquanto o período de 1970 a 1980 contou com uma produção média de noventa filmes por ano252.

A denominada Retomada começou a configurar-se, portanto, alguns anos após a saída do presidente Collor. Apesar da manutenção de práticas neoliberais nos governos subseqüentes, a partir do final do ano de 1992,o governo brasileiro já demonstrava algum interesse em novamente incentivar o cinema brasileiro, o que pode ser constatado com a criação do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro253, com a Lei n.º 8.313, de 23 de dezembro de 1991 (conhecida como Lei Rouanet e que só passou a ser efetivamente utilizada a partir de 1993) e com a criação da Lei do Audiovisual (Lei n.º 8.695, de 20 de julho de 1993)254. A referida lei previa benefícios de isenção fiscal para o capital privado investido no cinema brasileiro. Com isso, já a partir de 1994 e, principalmente, a partir de 1995, a produção

250 CALDAS, Ricardo Wahrendorff e MONTORO, Tânia. A Evolução do Cinema Brasileiro no Século XX. Brasília: Casa das Musas, 2006, p. 155. 251 Depoimento de Paulo Betti, contido nos Extras do DVD Lamarca. 252 O primeiro dado foi extraído de: ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo. Um balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 26 e o segundo de: CALDAS, Ricardo; MONTORO, Tânia, op. cit.., p. 145. 253 Entre 1993 e 1994, o Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro contemplou um total de 90 projetos (entre curta, média e longa metragem). NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 13. 254 Anteriormente, havia sido criada a Lei nº. 8401/92, de regulação da atividade audiovisual, permitindo o apoio de empresas e pessoas físicas com o benefício do abatimento de imposto. A lei seguinte foi um aperfeiçoamento desta. Ver: CALDAS, Ricardo; MONTORO, Tânia, op. cit., p. 156. 133

nacional começa sua curva ascendente que caracteriza a Retomada255. Praticamente todo o cinema da década de 1990 foi financiado por meio da Lei do Audiovisual.

O filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati, lançado em 1995, é considerado por muitos críticos de cinema como o “marco zero” da Retomada, por ter ultrapassado a marca de um milhão de espectadores. Certamente que esta classificação deve ser flexibilizada, não se restringindo a um filme e a um ano em particular, visto que os frutos da Lei do Audiovisual já se faziam sentir nos dois anos anteriores ao filme de Carla Camurati. Neste sentido, Lamarca, lançado em 1994, encontra-se inserido neste contexto do cinema brasileiro ao qual se convencionou chamar de Retomada.

É importante ressaltar ainda que a referida Lei do Audiovisual foi objeto de muita polêmica entre cineastas e governo brasileiro. Seria, segundo muitos cineastas e críticos de cinema, uma lei típica “do nosso capitalismo selvagem”, visto que coloca nas mãos dos diretores de marketing das empresas financiadoras a decisão do que deve e do que não deve ser produzido cinematograficamente no país256. Não foi por outra razão que esta lei recebeu o crítico apelido de “Lei do Mecenato”257. Luiz Zanin Oricchio, em sua análise sobre o período, procura relativizar estas críticas. Por um lado, concorda que

não se pode ignorar que o cinema que renasce é tributário de uma determinada forma de produção, baseada em renúncia fiscal e controlada, ao menos em parte, pelos departamentos de marketing das empresas investidoras.258

Por outro lado, afirma que a Lei não pode ser considerada “uma camisa-de-força”, pois muitos filmes do período foram feitos sem concessões mercadológicas e ressaltando as características “de autoria” de seus diretores. Ressalta, ainda, que o fato de um filme ter sido produzido de acordo com “razões explícitas de mercado”, não significa que este mesmo filme não represente uma forma se ver o país259. E, seguindo o raciocínio do referido autor, diria que, para uma análise historiográfica de um filme, a existência de “razões de mercado” não o

255 “A produção alcançou de 20 a 30 títulos por ano; entre 1995 e 2002 mais de 200 longas foram realizados e lançados e os espectadores saltaram de 400 mil para 25 milhões.” Idem, Ibidem, p. 157. 256 O cineasta Sylvio Back, por exemplo, afirma que, em função da Lei do Audiovisual, o cinema da Retomada “é um cinema asséptico, um cinema pudico, descarnado politicamente, um cinema sem assinatura, sem autoria... Simplesmente porque a grande maioria dos patrocinadores ‘vigia’ os roteiros, impõe cortes, veladamente provoca a autocensura nos diretores-produtores, incentiva o cinema de emoções baratas ou, o que acontece na maioria das vezes, a empresa ignora o projeto para não se comprometer.”. NAGIB, Lucia. O cinema da retomada... p. 86. 257 Ver: CALDAS, Ricardo; MONTORO, Tânia. A Evolução do Cinema Brasileiro no Século XX..., p. 243. 258 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo..., p. 29. 259 Idem,Ibidem, p. 29. 134

invalida como objeto de análise, antes nos auxilia a compreender as representações produzidas pelo filme em questão.

Em 1996, mudanças na legislação (especialmente a Lei n.º 9.323, de 5 de novembro de 1996) elevam eleva de 1 para 3% o limite de dedução do imposto para empresas que investissem no cinema brasileiro260. Sintomaticamente, entre 1996 e 1999, assiste-se ao auge da Retomada, com uma produção cada vez mais ampla, e com o início de uma expansão (ainda que tímida) dos filmes brasileiros no mercado estrangeiro. Basta constatar que nos anos de 1996, 1998 e 1999 o país teve um de seus filmes indicados para concorrer à categoria de melhor filme estrangeiro na premiação do Oscar, nos Estados Unidos261. Ao mesmo tempo, o público interno volta progressivamente a se interessar pela exibição de filmes brasileiros. Em 1998, mais de 3,6 milhões de pessoas assistiram a filmes produzidos no país (50% mais do que no ano anterior), passando para 7,2 milhões de espectadores, no ano 2000262. É neste momento de progressiva valorização do cinema brasileiro que se insere o filme de Bruno Barreto, O que é isso, companheiro?.

Em 2001, em um contexto político diferenciado, surge a Agência Nacional do Cinema (ANCINE), através da Medida Provisória nº. 2.228263. A ANCINE passa a buscar uma relação mais estreita entre o Estado e os produtores e realizadores do cinema brasileiro, criando uma série de órgãos de incentivo a esta atividade264, para sanar o “vácuo” deixado pelo governo Collor.

Como se pode perceber, o início do século XXI representa para o cinema brasileiro uma nova fase que poderia ser concebida, ao mesmo tempo, como um período de consolidação e de fim da Retomada, na medida em que apresenta algumas características específicas e inovadoras, apesar de evidentes traços de continuidade com o período anterior265. Destaca-se, como característica marcante do cinema brasileiro atual, a

260 Disponível em: . Acesso em: out. 2006. 261 Em 1996, com o filme O Quatrilho (Fábio Barreto); em 1998, com o filme O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto) e, em 1999, com o filme Central do Brasil (Walter Salles). 262 Dados extraídos de MOISÉS, José Álvaro. Uma nova política para o cinema brasileiro, in Cinema Brasileiro. Cadernos do Nosso Tempo, v. 4, Fundo Nacional de Cultura, Rio de Janeiro, 2001, p. 42. 263 Disponível em: . Acesso em: out. 2006. 264 Além da ANCINE, sob esta mesma Medida Provisória, são criados o Conselho Superior de Cinema e o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (PRODECINE) e é autorizada a criação de Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINES). 265 Esta periodização que atribui uma “nova fase” para o cinema nacional é sugerida por Luiz Zanin Oricchio que ainda aponta o filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) como o “divisor de águas” entre a Retomada (anos de 1990) e a atualidade. ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo... 135

multiplicidade de representações, incluindo aí tanto a diversidade de temas e gêneros quanto de opções estéticas, como confirmam os estudiosos Ricardo Caldas e Tânia Montoro:

O público, assim como a sociedade contemporânea, fragmentou-se entre gostos e tendências múltiplas […] e tentou corresponder à multiplicidade de visões nas idéias abordadas, nas linhas de projetos, nas linguagens e estéticas escolhidas, nos seus filmes propriamente ditos266.

Sob o ponto de vista exposto pelos autores, procurei analisar as condições de produção dos filmes Cabra-Cega, Zuzu Angel e O ano em que meus pais saíram de férias, levando em conta esta crescente diversidade no interior da atividade cinematográfica enquanto resultado de um reflexo da conjuntura cultural em que vivemos atualmente. Da mesma forma, Lamarca e O que é isso, companheiro?, serão avaliados à luz do período da Retomada.

O objetivo desse panorama sintético sobre o contexto dos períodos de produção e lançamentos dos filmes aqui analisados foi colocar em relevo o modo pelo qual as transformações na conjuntura nacional – principalmente na área política – ocasionaram mudanças significativas no cenário cultural do país e, conseqüentemente, na nossa produção cinematográfica. Depreende-se daí que não há como uma análise histórica de um filme não levar em consideração todo o universo social que o rodeia, pois um filme não existe dissociado de seu contexto de produção.

4.2 Os aspectos extrafílmicos

4.2.1 Possíveis aproximações

O filme Lamarca, de Sérgio Resende e Alfredo Oroz, trata de uma história baseada em fatos reais, mais propriamente de uma cinebiografia. A fonte principal dos roteiristas e do cineasta é o livro de Emiliano José e Oldack Miranda, Lamarca. O capitão da guerrilha267, que se baseia em vários depoimentos e reportagens de época, além dos relatórios do Exército, até então disponíveis. Uma outra fonte, também muito considerada pelos atores e técnicos dedicados ao filme, consiste na consultoria informal de Olderico Barreto, irmão de Zequinha Barreto, companheiro de Lamarca em sua fuga pelo sertão. Olderico, que também participou do foco rural guerrilheiro, em Buriti Cristalino, chegou a levar um tiro no rosto, em tiroteio

266 CALDAS, Ricardo; MONTORO, Tânia. A Evolução do Cinema Brasileiro no Século XX..., p. 158. 267 JOSÉ, Emiliano; MIRANDA, Oldack. Lamarca. O capitão da guerrilha. 5. ed. São Paulo: Parma, 1981. 136

com o Exército durante a caçada a Lamarca, mas escapou com vida268. Sua consultoria ao filme de Sérgio Resende foi encarada como uma fonte de legitimidade à trama cinematográfica, pois, como afirmou o ator Paulo Betti, “… isso dava uma veracidade para as coisas que a gente estava fazendo”269.

O valor do testemunho para a produção do filme em questão adquire um estatuto privilegiado, como se pode observar. A consultoria de Olderico Barreto – amplamente divulgada no making of do filme – representou para aquele meio cinematográfico a fonte de uma verdade inquestionável, já que atribuída a alguém considerado como porta-voz da experiência vivida, uma testemunha ocular dos fatos. Com isso, o filme Lamarca supõe-se “mais fiel” do que outras formas de construção de memórias, cristalizando e difundindo, com “mais propriedade”, a sua versão para essa história.

O filme de Bruno Barreto, O que é isso, companheiro?, também busca a sua inspiração – e legitimação – no valor de um testemunho: o ex-jornalista e participante do grupo armado que seqüestrou o embaixador norte-americano, Fernando Gabeira. Para isso, o filme parte de uma livre-adaptação do livro homônimo, produzido por uma testemunha que viveu bem de perto aquele episódio, possuindo o livro um teor de autocrítica, também presente no filme. Já Zuzu Angel, também de Sérgio Resende, inspirou-se especialmente no livro de uma amiga da figurinista, Virgínia Valli270, que, por sua vez, contém depoimentos das filhas de Zuzu e de outras pessoas a ela ligadas. O filme O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, contou com a consultoria do próprio roteirista, Cláudio Guaperin, já que ele havia morado no mesmo bairro em que se passa a narrativa (Bom Retiro, São Paulo) e, no ano de 1970, tinha a mesma idade do menino Mauro, o protagonista do filme271. Já Cabra-Cega foi produzido a partir de um trabalho de Toni Venturi, juntamente com Renato Tapajós, que consistiu na filmagem de entrevistas com várias pessoas que, no período do regime militar no Brasil, estiveram envolvidas na luta armada e na clandestinidade. As entrevistas, que serviriam de inspiração para o filme, acabaram dando origem a um documentário, denominado No olho do furacão, produzido por esses dois cineastas, no ano de 2002. Também foi considerada, para a elaboração do roteiro de Cabra-Cega, a consultoria de Alípio Freire, um ex-militante da Ala Vermelha do PCdoB272, preso entre 1969 e 1974. O roteirista

268 Cf. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 356. 269 Depoimento de Paulo Betti, contido nos Extras do filme Lamarca. [Grifos meus] 270 VALLI, Virgínia. Eu, Zuzu Angel, procuro meu filho. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1987. 271 Dados encontrados na entrevista concedida pelo roteirista, na sessão de Extras do filme O ano em que meus pais saíram de férias. 272 O cineasta Renato Tapajós também pertenceu a esta mesma organização armada. 137

Di Moretti explica que a colaboração de Alípio Freire “foi muito útil na troca de ponderações de até onde a ficção poderia ir sem macular ou transgredir a verdade dos fatos daquela época”273.

Interessante destacar, neste ponto, que a busca de testemunhas oculares para o processo de pesquisa e elaboração de filmes com enredos históricos é uma recorrência na cinematografia brasileira. Todos os filmes analisados basearam-se, em algum momento de seu processo de produção, no testemunho de pessoas que vivenciaram de alguma forma o tema do qual o filme trata.

Por este motivo, cabe, aqui, uma reflexão a respeito do valor do sujeito-testemunho, para que não se reproduza, sem problematização, a idéia de verdade incontestável desse tipo de fonte, como apresentada pelo meio cinematográfico acima. Segundo Beatriz Sarlo274, estaria ocorrendo, nas últimas décadas, uma “guinada subjetiva” que teria como marca a supervalorização da primeira pessoa, que passa a ser considerada como fonte de uma verdade estabelecida pela rememoração da experiência do sujeito-testemunho. Ao procurar as origens dessa “guinada”, Sarlo destaca o papel primordial do “dever de memória” das vítimas do Holocausto, assim como às vítimas de outras experiências traumáticas, como os regimes militares que se instauraram em diversos países da América Latina, nas décadas de 1960 e 1970. O que Sarlo ressalta, apropriadamente, é a necessidade do historiador crítico colocar em questão a validade aparentemente incontestável do testemunho, principalmente daquele que, por ter sido vítima de algum tipo de experiência de sofrimento, não estaria submetido às regras que se aplicariam a outros discursos referenciais. Segundo a autora, esse tipo de deferência aos episódios dolorosos provoca uma espécie de “hegemonia moral” atual, que não seria condizente com “o distanciamento e a busca de inteligibilidade que são o ofício do historiador”275. Em outras palavras, Sarlo propõe uma crítica do sujeito/testemunho como ícone da verdade, advertindo-nos para que não se baseie a memória numa epistemologia ingênua e livre de confrontações. Entende a autora que a memória pode e deve ser um “impulso moral” para a constituição da história, mas de forma alguma a experiência vivida pelo sujeito pode ser concebida como uma verdade mais incontestável do que a de outros discursos possíveis.

273 VENTURI, Toni; KAUFFMAN, Ricardo. Cabra-cega: o caminho do filme. Do roteiro de Di Moretti às telas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 20. [Grifos meus] 274 SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras/Belo Horizonte: UFMG, 2007. 275 Idem, Ibidem, p. 43. 138

O ponto crítico desta questão, para os filmes analisados, é considerar as versões dos guerrilheiros como fontes de uma verdade absoluta, por terem sido eles as testemunhas que sofreram os horrores impostos pelo regime de opressão dos militares. Não pretendo dizer, com isso, que essas “memórias traumáticas” não devam ser consideradas como constitutivas da realidade que procuram representar. Contrariamente, essas memórias podem – e devem – ser refletidas nas telas de cinema para se contraporem às versões “oficiais” e/ou estigmatizadoras, estabelecidas por aqueles que detinham o poder político até então. Porém, a advertência de Sarlo é justamente no sentido de que o historiador, com seu olhar crítico, não deve perder de vista que tais memórias instauram apenas versões da realidade e que, como qualquer versão, estão sujeitas a transformações, omissões e flutuações, inerentes a qualquer tipo de memória. Reforça, apropriadamente, a autora:

É certo que a memória pode ser um impulso moral da história e também uma de suas fontes, mas esses dois traços não suportam a exigência de uma verdade mais indiscutível que aquelas que é possível construir com – e a partir de – outros discursos276.

Saliento, a esse respeito, que a visão apresentada acima – problematizadora do papel da memória originada dos testemunhos – não deve ser confundida com uma negação acrítica do valor do discurso testemunhal, muito menos com a aceitação irrestrita de qualquer outro discurso, seja o seu emissor testemunho ou não do fato rememorado. Nos vinte e um anos de regime militar em nosso país, instalou-se uma “política do esquecimento”, utilizada como arma de controle político e ideológico pelos responsáveis pela ditadura e por muitos condutores da transição em direção à democracia277. Por esse motivo, a história do tempo presente no Brasil encontrou inúmeras resistências, sinalizando que “debater sobre memória é discutir a disputa em torno do controle do passado. Portanto, uma questão de poder”, como afirma o historiador Fernando Sá278. O referido autor, ao debater sobre a importância de se pensar criticamente as comemorações dos quarenta anos do golpe de 1964, defende a

insistência numa “memória das ditaduras”, que possibilite, de um lado, a emergência de uma multiplicidade de lugares de fala dos diversos atores como enunciadores de uma memória da violência e do arbítrio e, de outro, o

276 SARLO, Beatriz. Tempo passado…, p. 44. 277 Ver: SILVA, Francisco Carlos Teixeira de. Apresentação, in ASSIS, Denise. Propaganda e cinema a serviço do golpe (1962 - 1964), Rio de Janeiro: MAUAD/FAPERJ, 2001, p. 11-12. 278 SÁ, Antônio Fernando de Araújo. 40 anos do golpe de 1964: Ditadura nunca mais! Cadernos UFS: História. Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão: Editora da UFS, v. 5, n. 6, jan./dez. 2004, p. 10. 139

engajamento na luta pela salvação de acervos, depoimentos e lugares de memória279.

Outro recurso cinematográfico que procura respaldar historicamente os filmes trabalhados situa-se na inserção de imagens de arquivo (ou seja, fotografias e audiovisuais feitos no momento histórico retratado, geralmente produzidos pelos jornais da época), algumas vezes superpostas à imagens montadas, onde os atores se situam na cena, ou seja, na imagem de época, como se lá estivessem.

Lamarca. Primeira cena do filme. Em um ambiente fechado e escuro, um coronel do Exército projeta na parede imagens relacionadas à trajetória de Carlos Lamarca, apresentando o guerrilheiro a outros membros das Forças Armadas (e a nós, espectadores). Fotografias verdadeiras tiradas na época, misturam-se a montagens onde o ator Paulo Betti aparece como o protagonista. Temos, nesta cena, imagens que procuram situar o espectador no universo diegético do filme, lembrando-nos de que se trata de uma história real. Portanto, ao iniciar o filme com imagens de arquivo, Resende lança mão de um recurso de associação entre ficção e realidade, buscando diluir ao máximo essa fronteira, com a intenção de fazer o espectador se esquecer que se trata de uma representação. E ao se esquecer do caráter sempre representacional de um filme, esse espectador está assimilando a memória por ele elaborada como uma memória diretamente correspondente à realidade passada, ou seja, o filme torna-se um espelho do real e a memória por ele construída consolida-se amplamente no imaginário social.

O que é isso, companheiro? trabalha com o mesmo efeito de montagem de Lamarca, sobrepondo os atores do filme às imagens de arquivo (ver figura abaixo). Cabra-Cega e O ano em que meus pais saíram de férias são um pouco mais comedidos no uso desse tipo de recurso, mas, mesmo se tratando de enredos ficcionais (e não de episódios ou personagens verídicos), não deixam de utilizá-lo, demonstrando a importância desse mecanismo de associação para a construção de uma narrativa mais legitimada perante o público.

279 Idem, Ibidem, p. 13 [Grifos meus]. 140

Fig. 24 - Fernando Gabeira e seus amigos em uma manifestação pública

Entre os cinco filmes analisados, apenas Zuzu Angel não recorre a imagens de arquivo no interior de seu enredo. No entanto, vale destacar a montagem elaborada por Sérgio Resende nos créditos iniciais do filme. O cineasta apresenta o seu nome, enquanto diretor do longa-metragem, como se ele estivesse sendo escrito no mesmo muro que recebeu a clássica pichação feita por um estudante, durante uma manifestação de rua, onde deixa a seguinte mensagem: “Abaixo a ditadura!”.

Fig. 25 - Foto clássica do período ditatorial Fig. 26 - Créditos iniciais do filme Zuzu brasileiro Angel (Fonte: www.imagens.google.com.br)

O cineasta recorre, neste momento, a uma das imagens fotográficas mais difundidas no imaginário da sociedade brasileira referentes à oposição à ditadura; imagem esta que se encontra disseminada através de inúmeros livros didáticos, da mídia, reportagens de época e até mesmo em outros filmes sobre o regime militar. 141

Evidencia-se, ainda, em alguns dos filmes analisados, mais um recurso destinado à legitimação da trama cinematográfica apresentada que é a inclusão de legendas, expondo datas e/ou lugares relevantes na narrativa. As legendas podem ser concebidas como “iconotextos”, segundo denominação proposta pelo historiador de arte Peter Wagner280. Os iconotextos se constituem em mensagens impressas, inseridas em uma película (ou em qualquer outra obra de arte visual) que funciona como uma espécie de “condutor do olhar” do espectador, auxiliando-o na interpretação das cenas que virão e também, como no caso dos filmes aqui tratados, como referência histórica àquilo que é narrado na trama ficcional.

Neste sentido, o filme Lamarca apresenta, em diversos momentos, legendas com datas significativas na trajetória do protagonista (inclusive o dia exato de sua morte). Uma outra forma, um pouco mais sutil, utilizada para apresentar as datas é através da narrativa em voz over do personagem Lamarca, ao relatar as cartas que escrevia no sertão da Bahia para sua família e sua amante, Iara Iavelberg. Seu relato sempre se inicia com a data inscrita nas cartas.

Já O que é isso, companheiro? não se preocupa com a sutileza na apresentação dos iconotextos: as legendas aparecem quinze vezes durante o filme. Além da demonstração das datas exatas dos eventos a serem retratados nas cenas que se iniciam, o filme de Bruno Barreto inclui legendas explicativas do contexto histórico, como por exemplo: “Em 1964 o governo democrático brasileiro é deposto por um golpe de estado militar”281. Há aqui uma nítida preocupação do cineasta com a condução do olhar do espectador, no sentido de lhe impor uma interpretação já fechada sobre o tema. Um exemplo mais concreto encontra-se no tipo de mensagem transmitida na décima terceira legenda, já ao final do filme: “Em 1979 o governo militar, sob pressão da opinião pública, decreta anistia geral para todas as pessoas envolvidas em crimes políticos”. Primeiramente, Bruno Barreto comete uma imprecisão histórica na referida frase, pois se sabe que a Lei de Anistia (nº.6.683, de 28 de agosto de 1979), não concedeu uma anistia ampla e irrestrita, como reivindicada pelas oposições, mas sim uma anistia limitada pela seguinte determinação, expressa no parágrafo segundo da referida lei: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de

280 WAGNER, Peter. Reading Iconotexts: From Swift to the French Revolution. London: Reaktion Books, 1995 apud BURKE, Peter. Testemunha ocular: História e imagem. Bauru-SP: EDUSC, 2004, passim. 281 Interessante ressaltar que, na terceira legenda do filme, comete-se um erro factual significativo, pois é exposta a seguinte frase: “Em dezembro de 1968, a junta militar que governa o Brasil decreta o Ato Institucional n.5, pondo fim à liberdade de imprensa e todos os direitos do cidadão” [Grifos meus]. Este Ato foi decretado pelo então presidente em exercício, Costa e Silva, sendo que a junta militar só assumiu o governo, por motivo de doença do presidente, em agosto de 1969. Cf. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 1995, p. 480-481. 142

crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”282. Isso significa que uma grande parcela das pessoas envolvidas na luta armada naquela época não foi contemplada pela lei e que a mesma estava longe de representar uma “anistia geral para todas as pessoas…”, como expresso na legenda do filme. O cineasta também optou por não expor uma outra face dessa mesma lei, que é o fato de que, ao anistiar todas as pessoas que cometeram crimes de qualquer natureza praticados por motivações políticas, a referida lei também supostamente abrangeria os responsáveis pela prática de tortura, já que nenhum dos torturadores foi condenado por esse ato. Opta-se, portanto, por uma mensagem mais generalizante e conciliatória, que “atropela” fatos e situações. Dessa forma, há uma recusa do cineasta à possibilidade de aprofundar aspectos polêmicos da transição política para o período democrático da sociedade brasileira283.

O outro filme de Sérgio Resende, Zuzu Angel, não apresenta iconotextos sob a forma de legendas. Mas a preocupação com a cronologia dos eventos retratados não é abandonada e demonstra-se através das vozes off e over da protagonista, especialmente quando ela lê mentalmente as cartas que recebe, assim como as que escreve para determinadas pessoas. Vale ressaltar que boa parte do filme é conduzida pelo seu pensamento, narrado na primeira pessoa. Percebe-se, aqui, mais um filme que trata de eventos reais, fortemente preocupado em situar o espectador no tempo e no espaço diegético do filme.

Cabra-Cega e O ano em que meus pais saíram de férias não apresentam legendas explicativas e/ou com datas e locais importantes para as suas tramas. A referência histórica, no entanto, não é abandonada por nenhuma das duas películas. Cabra-Cega expõe uma única cena para situar cronologicamente o espectador, que é o momento em que ‘Thiago’ vê na televisão a notícia da morte de Lamarca, ou seja, o dia 17 de setembro de 1971. O segundo filme utiliza a Copa do Mundo de 1970 como a referência temporal que conduz toda a narrativa.

Ainda tratando do aspecto referente ao iconotexto, os títulos dos filmes também podem nos revelar alguns significados relacionados ao seu processo de legitimação e de

282 Artigo segundo, da Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Disponível em: . Acesso em: ago. 2008. 283 Atualmente, nos anos de 2008 e 2009, os debates em torno da Lei de Anistia vêm crescendo e ganhando contornos políticos acalorados, pois grupos de defesa dos direitos humanos, assim como familiares de vítimas da ditadura e organizações não-governamentais estão reivindicando o julgamento do crime de tortura, praticado por inúmeros membros das Forças Armadas, no período do regime militar. O ministro da Justiça, Tarso Genro e Paulo Vannucchi, secretário de Direitos Humanos, também defendem a condenação dos torturadores, por se tratar de grave violação aos direitos humanos, caracterizando-se como crime imprescritível inclusive por não ser suscetível de anistia. Para um acompanhamento desse debate, ver o site do grupo Tortura Nunca Mais: . 143

reconhecimento perante o público. Não por acaso, entre os filmes analisados, os três que tratam de eventos e/ou personagens verídicos apresentam títulos fechados, que não deixam margens a outras possibilidades de interpretação que não a associação direta com o real: Lamarca, O que é isso, companheiro? (título do livro de Fernando Gabeira) e Zuzu Angel. Cabe ressaltar que, neste último, o cartaz de propaganda do filme ainda deixa claro que se trata de uma história “baseada em fatos reais”284. Já os títulos fílmicos de Cabra-Cega e O ano em que meus pais saíram de férias, que não possuem, aparentemente, esse compromisso tão forte com o real acontecido, encontram espaço para a elaboração de metáforas, deixando as possibilidades de interpretação mais abertas e subjetivas do que nos outros três filmes analisados.

Como visto até aqui, os recursos de montagem costumam ser utilizados para imprimir determinados sentidos à narrativa cinematográfica. Desta forma, conclui-se que, pelo uso dos mecanismos cinematográficos acima expostos, há uma intensa preocupação dos cineastas em associar suas narrativas ao contexto histórico real, referente ao período ditatorial de governo dos militares. Percebe-se, ainda, que, nos filmes baseados em eventos e personagens verídicos, amplia-se demasiadamente a adoção destes mecanismos, em comparação aos filmes com enredos totalmente ficcionais.

Os procedimentos cinematográficos acima apontados (as referidas montagens, uso de imagens de arquivos, iconotextos etc.) também devem, todavia, ser inseridos na linguagem estética adotada pela grande maioria dos filmes brasileiros e, principalmente, pelos filmes que tematizam situações e fatos históricos. Refiro-me à estética naturalista que, segundo Ismail Xavier, consiste na

construção de espaço [cinematográfico] cujo esforço se dá na direção de uma reprodução fiel das aparências imediatas do mundo físico, e à interpretação dos atores que busca uma reprodução fiel do comportamento humano, através de movimentos e reações ‘naturais’. Num sentido mais geral, refiro- me ao princípio que está por trás das construções do sistema descrito: o estabelecimento da ilusão de que a platéia está em contato direto com o mundo representado…285

Tomando por base a definição de Ismail Xavier, é possível perceber que a adoção do naturalismo no cinema possui o seu papel na propagação de determinados significados

284 Cartaz oficial de propaganda do filme Zuzu Angel. Disponível em . Acesso em: ago. 2008. 285 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 42. 144

fílmicos sobre o espectador. Na medida em que o filme naturalista oferece ao público a ilusão de estar diante dos fatos narrados – através de uma série de procedimentos relativos à produção do filme (como a montagem, o movimento de câmera etc.) –, ocorre um ocultamento da linguagem, que adquire total transparência e fornece ao espectador a impressão de somente existir uma única interpretação possível para esses fatos286. Como mais uma vez ressalta Xavier, “a palavra de ordem é ‘parecer verdadeiro’; montar um sistema de representação que procura anular a sua presença como trabalho de representação”287. A questão por trás dessa linguagem, em relação aos filmes trabalhados é que, ao propor uma leitura única da história, os cineastas que as produziram estão contribuindo para a cristalização de uma determinada memória sobre o regime militar que lhes interessa no presente, ou seja, no momento em que produziram suas películas.

4.2.2 Lamarca

Ainda em um período extremamente crítico para o cinema nacional – o ano de 1994 – Sérgio Resende produz Lamarca. Como já foi dito, vivia-se o clima de “terra arrasada”, referente ao governo Collor e ao recente fim da EMBRAFILME. Da mesma forma que o obstinado herói/protagonista do filme, a produção de Lamarca transformou-se em uma verdadeira epopéia, pois a película foi produzida sem nenhum financiamento estatal, em uma época onde esta tarefa era quase impossível288. Como destacou o ator Paulo Betti, havia uma necessidade político-ideológica de resistência a este contexto de crise, sendo praticamente uma questão de honra fazer um filme brasileiro naquele momento289. Também concordando com este ponto de vista, assim se refere o produtor executivo do filme, José Joffily:

A paralisação da atividade [cinematográfica] era quase total... juntava-se à nossa amizade, o desejo de fazer filmes independentes daquele governo passageiro, que naquele momento estava contra a atividade, digamos assim... 290

Era, portanto, o momento propício para se retratar nas telas a história de um guerrilheiro ideal, que lutara bravamente por seu país, independentemente do desequilíbrio de

286 Idem, Ibidem. 287 Id., Ibid., p. 41. 288 Segundo depoimento de Sérgio Resende, o filme contou apenas com algum recurso do Banco de Desenvolvimento do Estado do Espírito Santo. Cf. Depoimento contido nos Extras do DVD Lamarca. 289 Depoimento de Paulo Betti, contido nos Extras do DVD Lamarca. 290 Depoimento de José Joffily, contido nos Extras do DVD Lamarca. [Grifos meus] 145

forças entre o movimento de guerrilha e o governo militar. Observa-se, aqui, a já referida dialética entre o presente (o contexto de produção do filme) e o passado (aquilo que é representado pela película), como fica explícito no depoimento da produtora Mariza Leão, referindo-se a Lamarca:

Eu tive a certeza que aquele filme iria representar alguma coisa extra- cinematográfica, que era a força de um personagem que, discutível ou não nas decisões que tomou, optou por um percurso de lutar pelo Brasil.291

Vivia-se, então, em um Brasil recém-saído de anos de ditadura política e que havia acabado de retirar do poder, de forma constitucional, seu primeiro presidente eleito democraticamente após o regime militar. Não se sabia exatamente os rumos que o país poderia tomar naquele momento, onde um vice-presidente (Itamar Franco) apenas completava o desastroso governo de Fernando Collor. O filme Lamarca aparece primeiramente para lembrar ao público brasileiro que as vítimas da ditadura agora tinham voz e poderiam contar a “sua história”, afinal, vivia-se novamente uma democracia. Segundo, sugeria também que, apesar de toda a decepção política com os primeiros anos de retorno desta democracia – com um ex-presidente “herói”, que rapidamente transformou-se em “vilão” –, ainda havia homens dignos e honrados, de quem o povo deveria se lembrar e se inspirar.

O que se pode perceber, portanto, é que o filme Lamarca expôs nas telas uma determinada história como forma de se contrapor ao presente. O fez, inclusive, de modo assumidamente intencional, como declarado pelo próprio diretor Sérgio Resende, em entrevista à Revista O Olho da História, onde afirma:

A idéia de fazer o Lamarca, como já falei, surgiu quando eu cheguei da Inglaterra, em 1991. Nessa época, o cinema do Brasil não existia mais; Collor havia acabado com a EMBRAFILME e com todo o resto. Então, resolvi que devia fazer um filme na contramão daquela onda que estava em curso, contrapondo-se um pouco à idéia do Brasil em Miami, do fim da esquerda, da hegemonia do neoliberalismo. A idéia era fazer um filme para ir de encontro a tudo isso. Mostrar que a história do Brasil possui uma esquerda. O governo [de Collor] advogava que o cinema não servia para nada... E essa situação – na qual não se precisava do Brasil, não se precisava falar português – pareceu-me uma tragédia que acabou me inspirando para a filmagem de uma outra tragédia: a vida do Lamarca.292

Como se observa, esse espírito combativo do diretor de Lamarca está presente em todo o filme, bastando mencionar o caráter heróico do protagonista, durante toda a trama narrada.

291 Depoimento de Mariza Leão, contido nos Extras do DVD Lamarca. [Grifos meus] 292 Entrevista de Sérgio Resende. Revista O Olho da História, n. 3, dez. 1996. Disponível em: . Acesso em: out. 2007. [Grifos meus] 146

Até mesmo o trabalho de arte que compõe o título do filme, apresentado nos créditos iniciais e em todos os tipos de propaganda que foram feitas à época de seu lançamento, faz uma clara associação entre o protagonista, seu país e seu povo, evidenciando mais uma vez o diálogo entre passado e presente.

Fig. 27 - Créditos iniciais do filme Lamarca

E o que pode parecer algo com pouco significado (afinal, todo filme deve ter um título) e apenas mais uma das tarefas do diretor de arte, pode, contrariamente, nos revelar algumas das significações presentes na narrativa fílmica. Pois, como argumenta Peter Burke, “Entre os iconotextos um dos mais importantes é o título do filme, que influencia as expectativas dos que o verão antes que tenham visto uma única imagem”293.

Interessante notar que, apesar de tentar, voluntariamente, se colocar “na contramão daquela onda que estava em curso”, Sérgio Resende não escapa às marcas de seu tempo. A História é constituída por paradoxos, afinal, estuda os seres humanos e é por eles construída. Portanto, o mesmo diretor que se contrapõe explicitamente aos valores neoliberais encontra-se impregnado por alguns deles, o que transparece no filme em questão. Lamarca expõe um drama que, apesar de político, resolve-se no plano individual294. Não se trata mais da valorização de um projeto político-ideológico comum à maioria do povo brasileiro, como foi característico no cinema nacional dos anos 60 do século XX, assinalado como um cinema

293 BURKE, Peter. Testemunha ocular..., p.200. 294 Conferir análise dos personagens do filme Lamarca, no capítulo 2 do presente trabalho. 147

engajado politicamente e até mesmo revolucionário295. Na década de 1990, os embates entre o individualismo e o plano coletivo revelam a hegemonia do primeiro. Essa conjuntura é refletida nas telas de cinema. Há a necessidade de construção de uma memória silenciada por tantos anos, demonstrando uma postura “politicamente correta”, característica dos anos 90. Mas, paradoxalmente, também é deixado de fora o próprio projeto mais amplo no qual o capitão Lamarca estava inserido, demonstrando então um esvaziamento do caráter coletivo da política, o que também é típico desse período de vigência do neoliberalismo.

O filme de Sérgio Resende contou com um público surpreendente para os padrões da época, quando o cinema nacional ainda estava ressurgindo da “ressaca do período Collor”296. Assistido por 123.683 pessoas, teve mais do que o dobro da soma dos outros filmes nacionais lançados naquele mesmo ano297. Seu lançamento em vídeo, em agosto de 1994, superou a venda de duas mil cópias, cerca de dez vezes a média dos títulos nacionais na época298. O filme foi, ainda, amplamente divulgado pela mídia e nas escolas. Não há dúvidas de que as representações cinematográficas criadas para esse particular personagem da história política do país (os guerrilheiros) foram assimiladas pelo público e, portanto, passaram a integrar a visão histórica da sociedade brasileira sobre o regime militar.

4.2.3 O que é isso, companheiro?

O filme de Bruno Barreto e Leopoldo Serran, sobre o seqüestro do embaixador norte- americano, também contou com uma grande aceitação na época em que foi lançado, abarcando um público de 321.450 espectadores299. Como já foi ressaltado, essa obra se situa no ápice da Retomada, beneficiada especialmente pela Lei do Audiovisual que, além de estabelecer o incentivo fiscal para as empresas nacionais que financiassem o nosso cinema, também estimulou a participação das grandes empresas distribuidoras estrangeiras na co- produção de nossos filmes300. O que é isso, companheiro? foi um dos primeiro a se beneficiar

295 Refiro-me ao papel desempenhado pelo Cinema Novo na conjuntura cultural do país, nos anos de 1960. Para uma comparação entre o Cinema Novo e o cinema da Retomada, ver: ORICCHIO, Luiz Zanin. A crítica e o cinema impuro, in Cinema de novo..., p. 207-234. 296 Expressão utilizada por Ismail Xavier, no prefácio da obra de Luiz Zanin.Oricchio, op. cit., p. 11. 297 Fonte: dados da ANCINE. Conferir anexo II e depoimento da produtora do filme, Mariza Leão, contido nos Extras do DVD Lamarca. 298 . Jornal Folha de São Paulo, Revista Ilustrada, p. 5-3, 15/08/1994. Disponível em: . Acesso em: abr. 2007. 299 Fonte: dados da ANCINE. Conferir anexo II. 300 Este último dispositivo foi concedido através do Artigo 3ª da Lei do Audiovisual (de 1993), que permite às distribuidoras estrangeiras instaladas no país investirem em produções nacionais e deduzirem esse investimento 148

desse novo processo de co-produção com uma empresa estrangeira, sendo financiado pela Columbia Pictures/Sony Corporation. O cinema brasileiro começava a “fazer as pazes” com o seu público. Além disso, se comparado ao conturbado período anterior, o país atravessava uma conjuntura econômica mais favorável, proveniente das reformas liberais do governo de Fernando Henrique Cardoso, especialmente do Plano Real301. Vivia-se certo clima de euforia, com o fim da hiperinflação e a estabilidade da moeda.

Bruno Barreto pode ser visto como o expoente da política neoliberal no cinema brasileiro, naquele momento. Radicado nos Estados Unidos desde o final da década de 1980, o diretor produz um filme pensando no mercado internacional, especialmente o norte- americano. O próprio cineasta expôs esta intenção, em algumas entrevistas como essa:

Fiz um filme para o mercado norte-americano, para contar aos norte- americanos uma história sobre seu embaixador seqüestrado no Brasil no final dos anos 60, história que os próprios norte-americanos desconheciam...302

O filme reflete este desejo em vários aspectos específicos. O diretor preocupa-se, por exemplo, em utilizar um elenco quase que exclusivamente de atores televisivos e que, naquela época, estavam em destaque na Rede Globo de Televisão, emissora brasileira de maior prestígio no cenário internacional. São eles: Fernanda Torres, Cláudia Abreu, Pedro Cardoso, Luís Fernando Guimarães e Selton Mello. Até mesmo Lulu Santos, cantor de muito sucesso na década de 1990, faz uma pequena participação no filme303. Evidencia-se aqui a intenção do diretor em proporcionar um cinema de entretenimento, caracterizado por um intenso diálogo com a mídia televisiva. Certamente que este diálogo é uma constante na dramaturgia nacional, principalmente, em se tratando da Rede Globo, expoente da indústria da cultura no Brasil e celeiro de preparação de atores. No entanto, ao comparar com os outros filmes aqui analisados, percebe-se que este é o que busca mais intensamente a exposição de “estrelas de primeira grandeza” da TV, enquanto os outros trabalham com artistas sem tanta inserção

do imposto pago sobre a remessa de rendimentos. Com isso, a Columbia, a Fox, a Warner, a Buena Vista, a Lumière e a Europa Filmes passaram a trabalhar com o produto nacional. Cf. ALMEIDA, Paulo Sérgio; BUTCHER, Pedro. Cinema, desenvolvimento e mercado. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003. 301 O Plano Real foi criado, mais precisamente, em julho de 1994, enquanto Fernando Henrique Cardoso exercia o cargo de Ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, favorecendo a sua vitória na eleição realizada naquele ano. 302 Entrevista concedida ao programa do Jô Soares, citada em: ALMADA, Izaías. História: ficção, realidade e hipocrisia. Revista Adusp, n. 10, jun. 1997, p. 25. 303 Ele interpreta o policial que recebe por telefone a denúncia de uma moradora (interpretada por Fernanda Montenegro), que suspeitara da movimentação em sua rua, proporcionada pelos seqüestradores do embaixador Elbrick. 149

nessa mídia304. Percebe-se, assim, que a intenção de atrair e agradar visualmente ao público – tanto o nacional, quanto o estrangeiro – é preocupação prioritária para os autores de O que é isso, companheiro?.

Como já apontado em capítulo anterior, cabe destacar mais uma vez a relevância que é dada para o personagem do embaixador Charles Burke Elbrick. Como já foi dito, Elbrick é o personagem mais sensato e irrepreensível do filme. Ele pode ser visto, sob um olhar atento, como o próprio narrador da trama e a história contada nas telas se passa sob a sua ótica (norte- americana), e não sob a ótica de Fernando Gabeira (em quem o filme se baseou), como possa parecer à primeira vista. Várias cenas do filme se desenvolvem com a narrativa em over, representando o pensamento do embaixador através das cartas que escrevia para a sua esposa. Nelas manifesta a sua visão sobre os seqüestradores e sobre a situação em que se encontrava, não faltando espaço para exprimir o seu repúdio às medidas ditatoriais do governo brasileiro. Elbrick, com seu perfil humanista e democrata, situa-se no centro dos dois pólos dramáticos do filme: de um lado, os guerrilheiros, de outro, o regime militar. Ele representa a ponderação e, especialmente, o papel de neutralidade diante dos acontecimentos históricos que o envolviam, como se depreende desta cena, onde ele informa para os guerrilheiros sobre a sua opinião em relação à ditadura militar:

ELBRICK: _ Em minha opinião particular, meu país não deveria apoiar governo não eleito democraticamente. Tais regimes costumam trazer estabilidade apenas temporária. No fim das contas, apenas geram ódio e animosidade no povo.

Conclui-se que o filme é relativamente acrítico em relação aos Estados Unidos e, ao mostrar um embaixador com posições humanistas, acaba oferecendo um perfil norte- americano de oposição à ditadura militar que não correspondia ao contexto político internacional daquele período. Mesmo tratando-se de uma exceção para os quadros governamentais norte-americanos, o papel do embaixador procura agradar ao público estadunidense, que prefere não saber – ou silenciar – sobre o apoio no processo de construção e sustentação interna e externa às ditaduras ocorridas na América Latina. Tal participação no

304 Com exceção de Zuzu Angel, que, ao apresentar elenco de vasto currículo televisivo, adota uma postura semelhante ao filme de Barreto, e de Lamarca, cujo protagonista é o ator Paulo Betti, já bem antigo no meio televisivo, os outros já buscam a utilização de atores praticamente desconhecidos nos meios de comunicação de massa e/ou não-profissionais. 150

Brasil foi contundente e fundamental para entusiasmar os golpistas militares e civis a desfechar o golpe de Estado em 1964305. Um outro aspecto, que complementa e reforça o ponto acima explorado, é o fato de que boa parte do filme possui diálogos na língua inglesa306. Além da voz over de Elbrick, que aparece com freqüência – já que boa parte do filme se desenvolve sob a sua perspectiva –, há os diálogos na embaixada norte-americana e também várias conversas entre Elbrick e o guerrilheiro ‘Paulo’. “Falar inglês” assume no filme um significado que vai além do uso do idioma e da capacidade intelectual que é atribuída a alguns personagens. Ela representa um deslocamento da narrativa para a perspectiva norte-americana. Deslocamento este que, segundo o jornalista Eugênio Bucci, seria reflexo de um deslocamento “mais abrangente: o deslocamento do narrador do próprio cinema brasileiro”307, que estaria buscando espaço no mercado globalizado, segundo os padrões cinematográficos norte-americanos. Pode, ainda, ser reflexo das leis de incentivo fiscais do período da Retomada que proporcionam um certo poder às majors sobre os filmes que financiam. Não por acaso, no período da Retomada assiste-se a um crescimento significativo de filmes brasileiros que dialogam com a língua estrangeira308. Esta busca de um espaço internacional é também confirmada pelas palavras do próprio Bruno Barreto, em entrevista à época do lançamento do filme: “Realmente espero que o filme viaje, até porque esta é uma característica natural do cinema, que cada vez circula mais”309. Ao que tudo indica, o cineasta foi muito bem sucedido em seu objetivo, já que o filme teve os direitos de distribuição nos Estados Unidos comprados pela Miramax e, mais tarde, foi indicado ao Oscar de melhor produção estrangeira, em uma época em que o cinema brasileiro ainda possuía muito pouco prestígio internacional310. O interesse em atrair o espectador norte-americano é tão intenso que os cartazes de propaganda do filme foram elaborados com o devido realce para a figura do embaixador, em detrimento dos outros personagens. Também se destaca, em um dos cartazes, a paisagem

305 Sobre a participação do governo norte-americano na consagração e sustentação do regime militar no Brasil, ver: SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Trad. Ismênia Tunes Dantas. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. Ver também: GORENDER, Jacob. A violência do opressor, in Combate nas trevas..., São Paulo: Ática, p. 226-234. 306 Cabe acrescentar que o filme conta ainda com mais dois atores norte-americanos, além de Alain Arkin: Caroline Kava (a esposa do embaixador) e Fisher Steavens (o secretário pessoal do embaixador). 307 BUCCI, Eugênio. O deslocamento do narrador em O Que É Isso, Companheiro?, in REIS FILHO, Daniel Aarão et al. Versões e ficções..., p. 216. 308 Apenas para citar alguns exemplos: Carlota Joaquina (Carla Camurati, 1995), O quatrilho (Fábio Barreto, 1995), Jenipapo (Monique Gardenberg, 1995), Como nascem os anjos (Murilo Salles, 1996), Baile Perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997), For All, o trampolim da vitória (Luiz Carlos Lacerda, 1997), Bela Donna (Fábio Barreto, 1998). 309 Entrevista de Bruno Barreto, concedida a Revista Adusp, n.10, jun. 1997, p. 17. Disponível em: . Acesso em: ago. 2006. 310 Cf. ALMEIDA, Paul Sérgio; BUTCHER, Cinema, desenvolvimento e mercado..., p. 28-29. 151

clássica do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, um de nossos símbolos turísticos mais conhecidos internacionalmente e que também aparece repetidas vezes no filme. Mais uma vez, destaca-se o papel da propaganda (trailers, cartazes, produtos de divulgação em geral) como produtora de significados, justificando o interesse pela análise desses produtos. Abaixo, é possível observar os aspectos anteriormente citados, nos cartazes nacionais e internacionais que foram produzidos para o lançamento do filme.

Fig. 28 - Cartazes de propaganda do filme O que é isso, companheiro?, divulgadas no Brasil e no exterior. (Fonte: www.adorocinemabrasileiro.com.br)

Buscando contemplar este padrão globalizante, o filme segue o estilo de triller hollywoodiano, com direito a perseguição de carros, romance (entre os personagens ‘Paulo’ e ‘Maria’) e sedução (com ‘Renê’ seduzindo o chefe de segurança do embaixador para obter informações)311. Trata-se, portanto, de um filme que aspira a ser um bom thriller político. Como já mencionado, o filme foi co-produzido pela Columbia Pictures, uma das maiores corporações do mercado cinematográfico mundial312. Participando das atividades de co- produção e/ou distribuição de 31 longas-metragens brasileiros, entre 1994 e 2005313, não é de

311 Cena que, aliás, foi inserida com objetivos apelativos, já que a personagem de Cláudia Abreu representa – pelo menos neste momento da trama – Vera Sílvia Magalhães, única mulher a participar da ação e que realmente foi incumbida de fazer o levantamento da rotina do embaixador, alega que não teve nenhum tipo de relação mais íntima com o referido chefe de segurança, como ela mesma afirma em entrevista publicada no Estado de São Paulo (1º/05/1997): “Ex-militante inspira personagens femininas” e depois reproduzida no livro: REIS FILHO, Daniel Arão et al., Versões e ficções...., p. 61-70. 312 Cf. MORAES, Dênis de. A concentração do entretenimento, in Planeta mídia. Tendências da comunicação na Era Global. Campo Grande: Letra Livre, 1998, p. 135-153. 313 Dados da ANCINE. Disponível em: Acessado em: outubro 2006. 152

se estranhar que esta corporação contribua para a imposição de uma estética hollywoodiana aos filmes nacionais aos quais associa a sua marca. Até mesmo a cena de um jogo de futebol no Maracanã, incluído na seqüência em que os seqüestradores libertam o embaixador, no momento em que uma multidão saía do estádio, foi alterada com a intenção de proporcionar uma aceitação maior por parte do público (nacional e estrangeiro). O jogo que ocorreu naquele dia sete de setembro de 1969 foi entre Fluminense e América, segundo outras fontes314. Mas o autor do filme quis agradar mais ao público e preferiu colocar nas telas um Maracanã lotado, com o clássico jogo entre Flamengo e Vasco, dois times cariocas de maior expressão nacional e internacional.

Cabe, por último, destacar um aspecto da montagem do filme que, apesar de parecer menor, configura-se na realidade como um ponto revelador da padronização da linguagem cinematográfica de acordo com a estética hollywoodiana. Barreto demonstra aqui a sua total familiaridade com uma das fórmulas mais utilizadas pelo cinema norte-americano, que consiste na utilização do simbolismo para exaltar o american way of life. Trata-se da recorrência à bandeira estadunidense em cenas diversas do filme: ela aparece em um aparelho de TV, no momento da chegada do homem à lua (aliás, cena emblemática para os norte- americanos), em um enfeite de bolo, na parte externa da Embaixada norte-americana e nas cenas internas da Embaixada, onde Elbrick dialoga com o seu assessor.

314 GASPARI, Elio. A ditadura escancarada..., p. 96. 153

Fig. 29 - Cenas em que se destaca a bandeira norte-americana

Percebe-se que o filme O que é isso, companheiro? foi realmente produzido visando um mercado consumidor mais amplo, não somente o brasileiro. Esta é, inclusive, uma tendência crescente a partir dos primeiros anos da Retomada e relaciona-se à inserção do país no mundo globalizado da década de 1990. Este fato explica os perfis, quase sempre estereotipados, que foram construídos para os diversos personagens do filme, como já foi analisado em capítulo anterior. Explica ainda o tipo de representação deste episódio histórico e, portanto, que tipo de memória do regime militar buscou-se elaborar: uma memória crítica, mas dentro de certos limites, tendendo mais para a conciliação e neutralização do contexto de luta política, pois praticamente anula o significado das motivações coletivas e das ações políticas dos guerrilheiros315.

Observa-se, assim, que essa visão um tanto “despolitizada” dos filmes que tentam reconstruir alguns episódios do período histórico da ditadura – no sentido de valorização das ações individuais sobre as coletivas (como em Lamarca), ou da neutralização do contexto de

315 Ver discussão do papel dos personagens do filme, no capítulo 2 do presente trabalho. Cf., também, depoimento de Bruno Barreto: “Não fiz um filme sobre política, mas sobre as pessoas, sobre seres humanos. Não fiz um filme sobre idéias, mas sobre medos, vontades e as tensões envolvidas em um episódio específico.” Revista Adusp, n. 10, jun. 1997, p. 16. Disponível em: . Acesso em: ago. 2006. 154

luta política (como em O que é isso, companheiro?) – passa a caracterizar o cinema do início da Retomada e a consagrar uma memória sobre o período permeada por estereotipizações e/ou mitificações dos guerrilheiros.

4.2.4 Cabra-Cega

Cabra-Cega, de 2005, faz parte de um contexto cultural e político que já apresenta traços distintivos em relação aos filmes produzidos na década de 1990. A distinção explica-se, em parte, pela criação da ANCINE, em setembro de 2001. Como já ressaltado, este órgão governamental buscou reconstituir as relações entre Estado e atividade cinematográfica, que haviam sido praticamente rompidas com o fim da EMBRAFILME, no início do governo Collor. Durante toda a década de 1990, o cinema brasileiro ficou entregue “ao sabor do mercado”, devendo a sua existência – além do esforço pessoal de seus realizadores – ao financiamento privado, proporcionado pela Lei do Audiovisual, criticamente rebatizada de Lei do Mecenato. Com a criação da ANCINE, o Estado adotou várias medidas no sentido de incentivar a atividade cinematográfica. Além de estabelecer reformas na antiga lei, buscando aumentar o incentivo de empresas privadas nesta área, ampliou os programas de apoio, com a destinação de verbas do orçamento da União, permitindo o financiamento de muitos filmes316. Também incentivou estados e municípios a desenvolverem e implementarem leis de incentivo fiscal a investidores e patrocinadores locais. Uma das principais conseqüências deste processo – onde o cinema brasileiro, minimamente amparado pelo Estado, conseguiu se tornar um pouco menos dependente das leis do mercado, pois aumentaram os incentivos públicos – foi a de ter viabilizado a produção de filmes de pequenas produtoras e/ou de cineastas não tão conhecidos e consolidados no meio cinematográfico. Muitos desses cineastas possuem como característica comum a elaboração de um cinema de veio mais autoral, com os chamados “filmes independentes”317. Esse é o caso de Toni Venturi, diretor de Cabra-Cega. Outra conseqüência desse novo momento foi a descentralização regional do cinema brasileiro contemporâneo que, aos poucos, vai deixando de ser monopolizado pelo eixo Rio-

316 Cf. ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo...., p. 27. 317 Segundo a definição de Emanuell Levy, “idealmente, um indie [cinema independente] é um filme de baixo orçamento, com um estilo corajoso, sobre um assunto inusitado, que expressa a visão pessoal de seu diretor”. LEVY, Emanuell. Cinema of outsiders: the rise of american independent film. New York: New York University Press, 1999 apud SUPRIA, Alfredo; PIEDADE, Lúcio; FERRAZ, Rogério. O cinema independente americano, in BAPTISTA, Mauro; MASCARELLO (Orgs.). Cinema mundial contemporâneo. São Paulo: Papirus, 2008, p. 235-252. 155

São Paulo, como até então acontecia318. Vale acrescentar ainda a crescente participação de mulheres a frente do fazer cinematográfico, o que praticamente não se via nas décadas anteriores319. O crescimento do olhar feminino para qualquer tema histórico – inclusive o regime militar – proporciona, sem dúvida, maiores possibilidades de interpretação, o que só vem enriquecer e diversificar o cinema brasileiro, como pode ser percebido com a visão de Lúcia Murat, em Quase dois irmãos (2004), filme de ficção que também retrata a vida dos guerrilheiros que aturam contra a ditadura militar.

Cabra-Cega não contou com um público tão significativo, na época de seu lançamento, atingindo um total de 28.620 pessoas320. São números modestos, considerando o fato de que, na atualidade, o público brasileiro vem prestigiando cada vez mais o cinema produzido em seu país321. Mas revelam, por outro lado, que a produção independente – os filmes produzidos com baixo orçamento e que expressam mais a visão pessoal de seus autores322 – vem ganhando cada vez mais espaço no meio cinematográfico, propiciando, conseqüentemente, o aparecimento de novas memórias sobre a ditadura militar. O diretor Toni Venturi, de Cabra-Cega, parece ter plena noção da importância de filmes desse tipo para a afirmação de diferentes memórias a respeito do período militar no Brasil, como se vê em sua reflexão sobre Cabra-Cega:

...gratificante para todos nós, sentirmos que o filme chega às pessoas. Que fizemos alguma coisa que tinha algum significado ao outro. E acho que é aí que o filme cumpre a sua função social. A grande contrapartida de nossos pequenos-grandes filmes é exatamente essa: falar um pouco de nosso país, trazer um pouco de nossa identidade, um pouco da nossa história, um pouco do espelho... Aquele espelho que, às vezes, é um pouco difícil de olhar, porque é o reflexo de nós mesmos.323

Torna-se relevante exemplificar, neste ponto, algumas das conseqüências de um filme de baixo orçamento, como Cabra-Cega, para o produto final desta produção, ou seja, para o próprio filme. Conforme previsto na versão final do roteiro de Di Moretti, as cinco primeiras

318 Com destaque para os filmes produzidos, atualmente, em Pernambuco e Rio Grande do Sul. 319 Tizuka Yamasaki foi uma das pioneiras, com a produção de Gaijin – os caminhos da liberdade (1980). Hoje há muitas diretoras atuando nesta atividade, como Carla Camurati, Eliane Caffé, Bia Lessa, Tata Amaral, Sandra Werneck, Lúcia Murat, entre outras. 320 Fonte: dados da ANCINE. Cf. Anexo II. 321 Para se ter uma referência, neste mesmo ano de 2005, o filme Dois Filhos de Francisco, de Breno Silveira, atingiu um público de 5.319.677 pessoas. Cidade de Deus (de Fernando Meirelles) e Olga (de Jayme Monjardim) passaram da faixa de três milhões de espectadores. Cf. dados da ANCINE, Anexo II. 322 A produção foi rodada com a verba conseguida em diversos prêmios governamentais: Filmes de Baixo Orçamento do MINC, Finalização da ANCINE e Finalização Prefeitura de São Paulo. Cf. orçamentos nos dados da ANCINE, Anexo II. 323 Depoimento de Toni Venturi; entrevista concedida nos Extras do DVD Cabra-Cega. [Grifos meus] 156

cenas seriam dedicadas a uma fuga de carro, dos guerrilheiros ‘Thiago’ e ‘Mateus’, pelas ruas de São Paulo. Depois de algum planejamento e algumas tentativas de filmagem, concluiu-se que a produção não possuía condições estruturais e financeiras para viabilizar essa seqüência que forneceria um clima de ação e tensão para o início da trama a ser contada324. Com isso, observa-se que o orçamento destinado à realização de um filme possui grande influência no resultado final de sua produção, o que, por sua vez, interfere na memória que esse filme elabora. Muitas cenas podem ser incluídas ou excluídas de acordo com critérios externos à proposta do roteiro original, acarretando a produção de uma história talvez um pouco diferente da intenção inicial de seus autores.

Outro aspecto do contexto cultural do início do século XXI a ser destacado é o fato de que o filme Cabra-Cega insere-se em um momento de total multiplicidade – estética, temática, narrativa etc. – no interior da cinematografia brasileira, que já se iniciara na década passada, mas que vem progredindo gradativamente nos últimos anos. O que se vê, cada vez mais, é uma diversificação na forma de se tratar os diversos temas – e o regime militar não constitui exceção. E com a difusão de “filmes autorais”, no interior deste processo, observa-se o incremento da pluralidade de olhares possíveis sobre o regime militar no Brasil. Com reflexão crítica sobre a importância das obras autorais para o cinema brasileiro, Toni Venturi procura deixar claro seu posicionamento, o que, sem dúvida, reflete-se em Cabra-Cega: “uma obra [autoral] tem que estar em sintonia com sua própria verdade e coerência, estar acima da voracidade mercadológica cinematográfica. Uma obra sustenta discussões, um produto suscita marketing e números…”325. Novamente o diretor Toni Venturi demonstra ter plena consciência desta possibilidade de oferecer novas visões sobre a ditadura militar e sobre a luta armada, diferentes do que fora proporcionado até então, pelo cinema brasileiro: “Eu acho que trinta anos depois, passados esses momentos agudos que o Brasil viveu, já há mais condições, serenidade, distanciamento para um olhar mais humano sobre esse período. Até então, os filmes, eu acho, esbarraram numa caricatura”326.

324 Com um tom um tanto resignado, Toni Venturi esclarece: “Este tipo de seqüência é raridade no audiovisual brasileiro. A demanda técnica implicada expõe um variado leque de carências que as nossas produções sempre enfrentam – da falta de equipamentos à de pessoal especializado […] A estrutura ainda deficiente no Brasil para a realização de cenas deste tipo é o motivo da retirada da seqüência inicial do filme”. VENTURI, Toni. KAUFFMAN, Ricardo. Cabra-cega..., p. 48-49. Vale ressaltar que duas cenas semelhantes à acima referida – com perseguição de carros e tiroteio – podem ser visualizadas no filme O que é isso, companheiro?, diferenciando-o de um filme de baixo orçamento. 325 VENTURI, Toni. KAUFFMAN, Ricardo, Cabra-cega...., p. 10. 326 Depoimento de Toni Venturi; entrevista concedida nos Extras do DVD Cabra-Cega. [Grifos meus] 157

Como se pode perceber, o filme Cabra-Cega conta com a marca pessoal muito forte de seu diretor, sem deixar de considerar também a influência do roteirista Di Moretti. Não se quer dizer com isso que todos os filmes não possuam essa influência fundamental de seus autores. Mas, no caso de filmes autorais como este, parece que as propostas ideológicas ficam mais definidas e claras; no mínimo, mais conscientes por parte de seus produtores, o que, por sua vez, reflete-se na memória construída nesses filmes. E, no caso de Venturi e Moretti, a parceria de longos anos estabelecida entre os dois revela-se nas entrelinhas do filme aqui analisado. Primeiramente, destaca-se o fato de que ambos já aturam juntos na produção de obras cinematográficas de cunho mais politizado: o documentário O Velho – a história de Luiz Carlos Prestes (1977) e o drama ficcional Latitude Zero (2001), obras que refletem sobre dois diferentes momentos da realidade política e social brasileira. Pode-se dizer que Cabra- Cega dialoga diretamente com esses dois filmes, pois, como confirma Moretti, “Cabra-Cega, na verdade, é resultado de uma mistura conceitual e libertária dos nossos dois filmes anteriores”327. Acrescenta-se a isso um detalhe biográfico do diretor, que se refere ao fato de que ele, na juventude, prestou vestibular para História, assumindo a sua predileção por temáticas mais voltadas para aspectos políticos da realidade brasileira328.

Por fim, utilizo-me de um determinado trecho de Cabra-Cega para exemplificar como a elaboração de qualquer cena de um filme, por mais irrelevante que possa parecer para o desenvolvimento da narrativa principal, possui sempre alguma intenção sobre essa narrativa, mesmo que esta intenção não seja consciente por parte daqueles que a produziram. No exemplo em questão, essa consciência é plenamente revelada através do livro que o cineasta produziu, comentando o roteiro e o processo de filmagem de Cabra-Cega329. Refiro-me à cena onde ‘Rosa’ e ‘Mateus’ entram em uma sala de cinema para poder conversar, sem chamar muita atenção. Na tela está sendo exibido um filme de Mazzaropi, Betão Ronca- Ferro. Nesse momento, Venturi utiliza-se da metalinguagem para construir alguns significados. O primeiro deles, como revela o cineasta, foi promover uma homenagem ao cinema popular dos anos 1960 e 1970. O segundo foi fazer um contraponto simbólico, mostrando como, enquanto os guerrilheiros preocupavam-se em fazer a revolução e libertar o país, a sociedade preferia se divertir com este tipo de filme, alheia aos movimentos revolucionários. Até mesmo o trecho escolhido do filme de Mazzaropi tem o seu significado

327 VENTURI, Toni. KAUFFMAN, Ricardo, Cabra-cega..., p. 15. 328 Entrevista concedida por Toni Venturi ao site eletrônico do Banco do Brasil – Cultura. Disponível em: . Acesso em: jun. 2006. 329 VENTURI, Toni. KAUFFMAN, Ricardo, Cabra-cega... 158

trabalhado pelas mãos de Venturi: nele, o ator cômico sente um mau cheiro e desconfia do “doutor” que estava sentado ao seu lado. Como relata Ricardo Kauffman, “para Venturi, o país fedia”330. Percebe-se, assim, como um simples “pano de fundo” ao diálogo entre ‘Rosa’ e ‘Mateus’ exprime determinados significados, elaborados pelo cineasta e que podem nos revelar algumas chaves sobre a memória cinematográfica que ele deseja construir.

A análise das condições de produção do filme Cabra-Cega, assim como do contexto cultural que as circundam, permite inferir que a memória elaborada por esse filme em relação ao regime militar apresenta um teor mais politizado, na medida em que insere o protagonista no quadro de declínio dos grupos armados de oposição, além de revelar outros atores sociais que agiam no interior dessas organizações, que não eram somente constituídas por jovens estudantes de classe média. Revela-se, ao mesmo tempo, a preocupação com a elaboração de uma representação mais intimista e voltada para os aspectos que buscam a humanização da figura do guerrilheiro, visando, principalmente, a desconstrução de velhos estereótipos que marcam as representações desse ator social no cinema até então produzido no país. A desmistificação do herói-guerrilheiro, apresentada no filme, não retira o tom positivo que é atribuído a este personagem real da história do país. Tom, a propósito, revelado durante toda a narrativa fílmica e que se torna evidente na última legenda que o encerra: “Aos muitos brasileiros, cabras-cegas, que tentaram atravessar a escuridão para tomar os céus de assalto”.

4.2.5 Zuzu Angel

Mais uma vez, Sérgio Resende escolhe realizar uma cinebiografia, preferência que assume em entrevista realizada à época do lançamento do filme Zuzu Angel. Afirma o cineasta que os tipos “aventureiros” rendem bons enredos cinematográficos331. Zuzu Angel não foi exatamente uma aventureira – como se poderia dizer de Lamarca –, mas possui uma história de vida marcada por uma intensidade dramática que satisfez às exigências de Sérgio Resende, fornecendo-lhe elementos para uma boa dramaturgia. As intenções do cineasta com a realização desse filme, no entanto, vão além dos aspectos cinematográficos acima citados.

Um primeiro ponto se encontra no fato de que 2006 marcava os trinta anos da misteriosa morte de Zuzu Angel. Datas assim costumam remeter a rememorações e,

330 Idem, Ibidem, p. 211. 331 Entrevista concedida a Diógenes Muniz, da Folha Online. “Cineasta Sérgio Resende critica empobrecimento de idéias”, 04/08/2006. Disponível em: . Acesso em: fev. 2008. 159

consequentemente, a resignificações em função do momento presente. A história de vida de Zuzu Angel passou a ser mais divulgada nos meios de comunicação, a partir do momento em que o governo brasileiro reconheceu oficialmente, no ano de 1998, que a estilista fora assassinada em um atentado orquestrado por membros do regime militar. A partir de então, essa sofrida mãe – que já havia sido celebrada na popular canção de Miltinho e Chico Buarque, “Angélica”, de 1977 – teve sua história cada vez mais conhecida nacionalmente e hoje dá nome ao túnel carioca onde ocorreu o atentado.

Outra questão de relevo encontra-se na postura ideológica de Sérgio Resende, revelada na citação a seguir, demonstrando, mais uma vez, como um filme pode “falar” tanto sobre seu presente quanto sobre o passado retratado:

A Zuzu tem uma grande trajetória de luta contra a ditadura. Num tempo de política extremada ela se afirmou com o trabalho de cidadã. Eu acho que essa interferência do cidadão na vida do país é uma coisa que a gente não vê mais. Nós falamos da política só na hora de votar. A Zuzu deu um exemplo. É uma história que vale a pena contar […] Eu acho que as paixões, as idéias, as emoções estão muito mais à flor da pele nestes momentos... Se você pega os dilemas da juventude brasileira da década de 60 e compara com os de hoje, há um empobrecimento muito grande de idéias.332

Percebe-se, na fala de Sérgio Resende, que filmar a ditadura militar e a vida de Zuzu Angel faz parte de uma inquietação sua endereçada ao presente. Para o cineasta, a sociedade brasileira não vive mais com as paixões e as idéias das décadas de 1960 e 1970 e, por isso, precisa de grandes exemplos. Lamarca sacrificou sua vida em nome de uma causa política. Zuzu Angel passou parte de sua vida incomodando o governo militar, em busca de seus direitos de cidadã. Segundo o cineasta, esse tipo de indivíduo não existe mais e, por isso, a memória daqueles tempos deve ser revisitada através do olhar cinematográfico para inspirar a sociedade atual.

A relação dialética entre passado representado e presente também é percebida no filme analisado em outros aspectos e por outras pessoas, que não o diretor. Para a atriz Patrícia Pillar, por exemplo, o filme trata de uma temática atemporal que é a busca pela justiça, como se evidencia em sua declaração:

Zuzu não é uma mulher datada, é superatual. É a história de uma mãe em busca do corpo do filho. É o direito sagrado de uma mãe querer o corpo do filho para poder enterrar. A começar por aí, você pode contar essa história

332 Entrevista concedida a Diógenes Muniz, da Folha Online. “Cineasta Sérgio Resende critica empobrecimento de idéias”, 04/08/2006. Disponível em: . Acesso em: fev. 2008. 160

em qualquer lugar do planeta que será tocante e entendido por qualquer um. Fora isso, o contexto fundamental é a busca pela justiça. Se o cara é torturado em Gauantánamo, no Iraque ou em qualquer outro canto, o mundo clama por justiça. É uma coisa muito forte do instinto humano.333

No ano de 2005, período em que Zuzu Angel se encontrava em fase de filmagem, o mundo assistia a notícias de torturas sendo praticadas por militares norte-americanos na prisão de Guantánamo, localizada em Cuba, especialmente contra presos políticos relacionados aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e da guerra efetuada pelos Estados Unidos e seus aliados contra o Iraque. O filme aparece em um momento em que justiça, prisão política e tortura estão na pauta de discussão da opinião pública, como se percebe no depoimento da atriz.

O contexto cultural que circunda o processo de elaboração de Zuzu Angel é praticamente o mesmo que foi apontado para o filme Cabra-Cega, visto que apenas um ano os separam. Isto significa considerar, primeiramente, que o cinema brasileiro atual encontra- se em um processo de expansão, tanto da quantidade de filmes lançados a cada ano, quanto da média de público que o assiste. Enquanto no ano em que Sérgio Resende lançou Lamarca foram produzidos apenas sete filmes brasileiros, Zuzu Angel foi acompanhado por mais sessenta e nove longas-metragens, no ano de 2006, somando os gêneros ficção e documentário. Além disso, o filme atingiu a marca de 774.348 espectadores no ano de seu lançamento, o que significa o quarto lugar no ranking de público para os filmes brasileiro em 2006334.

Esse sucesso de Zuzu Angel se explica, em parte, pelo alto investimento em seu processo de produção, distribuição e divulgação, contando com a co-produção de uma grande empresa no mercado cinematográfico – a Warner Bros. Pictures – e a significativa participação da Globo Filmes335, influenciando especialmente a divulgação do longa- metragem nos meios midiáticos.

333 MORATELLI, Valmir. Vida de heroína. Entrevista com Patrícia Pillar. Revista Quem Acontece. n. 263, setembro 2005. Disponível em: . Acesso em: set. 2008. 334 Dados da ANCINE, conferir Anexo II. 335 Sobre a importância da Globo Filmes para o mercado cinematográfico brasileiro: “… a partir de 1997, com a criação da Globo Filmes (braço da Rede Globo dedicado à produção e à participação em longas-metragens), um forte impulso se somou a esse novo ciclo do cinema nacional. Representando uma virada radical na política da emissora, antes reticente com a parceria com o cinema, a Globo Filmes estabeleceu mais uma importante forma de visibilidade do produto brasileiro, principalmente em função da amplificação de sua mídia, com grande repercussão no país”. ALMEIDA, Paulo Sérgio; BUTCHER, Pedro. Cinema, desenvolvimento e mercado..., p. 15-16. 161

Como se pode perceber, não se trata, neste caso, de um filme de produção independente, como Cabra-Cega, mas de uma superprodução brasileira, orçada em mais de R$ 6 milhões (para se ter um termo de comparação, Cabra-Cega teve um orçamento de R$ 786 mil)336. Contou, para isso, com um elenco de primeira grandeza na mídia televisiva, encabeçado pela atriz Patrícia Pillar. Outra preocupação em contemplar os padrões globalizantes da indústria cinematográfica encontra-se nas várias cenas em que a língua falada é o inglês e não o português, tendência, aliás, crescente no cinema brasileiro, onde a participação de grandes empresas estrangeiras no processo de produção e distribuição impõe, de uma forma crescente, as suas marcas337.

Apesar dos contrastes orçamentários, Cabra-Cega e Zuzu Angel aproximam-se novamente, quando se pensa nas inovações propostas por esse cinema brasileiro do século XXI. Como já explicitado em capítulo anterior, os filmes atuais buscam uma diversificação maior de pontos de vista a serem considerados, ao se olhar para o período do regime militar. O guerrilheiro, quando protagonista (como em Cabra-Cega), não é mais aquele herói sem defeitos e que serve de mártir à causa revolucionária. Outras pessoas também envolvidas, mesmo que involuntariamente, na luta política, tornam-se novas protagonistas desta memória cinematográfica, como a mãe de um guerrilheiro (como se vê em Zuzu Angel). Novos olhares, mais plurais, vão ressignificando as visões até então elaboradas sobre o regime militar no Brasil.

Outra marca inovadora do filme Zuzu Angel, que possui relação com o momento de sua produção, é o tratamento dado à tortura no filme. Como já analisado no capítulo pertinente, Sérgio Resende procura revelar a prática de tortura no regime militar “sem meia tinta”, ou seja, mostrando-a em toda a sua intensidade dramática, sem poupar o espectador do impacto visual desse tipo de cena. Se em Lamarca o cineasta já demonstrava esta preocupação, ainda de forma um tanto comedida, no filme mais recente a tortura não só é explicitada em cenas chocantes, como há a clara intenção de apresentá-la como parte integrante da política de Estado, ou seja, como algo executado com a conivência e participação de altos setores das Forças Armadas e do governo federal. O maior

336 Dados da ANCINE, conferir Anexo II. 337 O jornalista e crítico de cinema Pedro Butcher acredita que o aumento do “estrangeirismo” no cinema brasileiro, que vem desde o início da Retomada, faz parte de um conjunto de fatores, dentre os quais estaria o viés conservador proporcionado pelos incentivos fiscais da Lei do Audiovisual, que transferem para os departamentos de marketing das empresas financiadoras parte das decisões sobre o que deve ser filmado. Além disso, Butcher considera que essa tendência refletiria a crise de identidade na qual o país estaria mergulhado, principalmente no período pós-governo Collor, afetando intensamente o cinema produzido no Brasil. BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. São Paulo: Publifolha, 2005. 162

distanciamento temporal em relação à década de 1990 revela-se, muito provavelmente, como um facilitador para o aprofundamento desta delicada questão de nosso passado ditatorial. A propósito, muitos casos relacionados a torturas, desaparecimentos e assassinatos, ocorridos sob a vigência do regime militar, vêm sendo esclarecidos nos últimos anos338, proporcionando a emergência dessas “memórias subterrâneas”, que, por sua vez, encontram-se representadas nas telas de cinema do país.

O período atual, por outro lado, não isenta os filmes brasileiros de uma representação de atores políticos estereotipados, como já observado com os filmes da década de 1990. Zuzu Angel, cabe reiterar, reproduz aquela visão dos guerrilheiros (a exemplo de Stuart Angel, filho da protagonista) como pessoas mais caracterizadas pela rebeldia da juventude de classe média do que pelos valores políticos e sociais que justificassem o ingresso na luta armada. Se, em Lamarca, Sérgio Resende transforma o guerrilheiro em herói nacional, aquele em que a sociedade deve se inspirar, em Zuzu Angel temos uma mãe-heroína em sua batalha para que a justiça seja feita, também transformando-a em fonte de inspiração, em um período em que as injustiças sociais predominam no país e no mundo. A partir desse último aspecto, pode-se afirmar que Zuzu Angel está muito mais próximo de Lamarca e de O que é isso, companheiro? do que do filme Cabra-Cega, mostrando como os diálogos entre os filmes podem ocorrer sob as mais diversas perspectivas.

4.2.6 O ano em que meus pais saíram de férias

O ano em que meus pais saíram de férias configura-se, a meu ver, como o mais denso e complexo entre os filmes analisados. Fato que se explica, em parte, pelo contexto de produção desse filme, assim como das intenções de seus autores, que, por sua vez, estão intimamente relacionadas às propostas ideológicas de um meio cinematográfico mais amplo, como se verá mais adiante.

A complexidade do filme em questão começa pela multiplicidade de seus aspectos analisáveis, pois a política é apenas uma das faces que pode ser apreendida nesse longa- metragem. Certamente que qualquer filme – ficcional ou não – pode apresentar mais de uma perspectiva analítica, dependendo exclusivamente da escolha do pesquisador em priorizar este

338 Cf. site eletrônico do grupo Tortura Nunca Mais, disponível em: e também o site eletrônico da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, disponível em < http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/>.

163

ou aquele aspecto da trama. Mas nem todos apresentam, com a mesma ênfase e nível de profundidade, aspectos tão relevantes, inseridos no mesmo enredo cinematográfico. Digo isso para destacar, brevemente, as dimensões existentes em O ano em que meus pais saíram de férias, procurando comprovar a multiplicidade e complexidade de sua narrativa.

Primeiramente, o filme trabalha com o processo de transformação interna do protagonista, com a sua passagem da infância para a adolescência. Se o processo de crescimento já se mostra conflituoso – e às vezes até traumatizante – para a maioria das pessoas, no caso de Mauro ele é acentuado pela ausência dos pais e pela necessidade de convivência com a austeridade do novo ambiente em que se encontra. Outra questão de relevo no filme situa-se justamente na progressiva adaptação de Mauro a este novo ambiente que lhe é totalmente estranho, não somente porque ele fora subitamente deixado naquele local, mas porque se trata de um bairro de predominância da cultura judaica, onde praticamente todos os signos lhe são desconhecidos.

Fig. 30 - Mauro depara-se com outra cultura

O filme trata, ainda, da multiplicidade étnica que se percebe na cidade de São Paulo, representando-a como um microcosmo do Brasil. Há, também, a possibilidade de se analisar a cultura do país através da ênfase concedida pela maioria dos brasileiros ao futebol e à Copa do Mundo, aspecto muito valorizado no filme. Tem-se, por fim, o contexto histórico-político que permeia a vida de Mauro e que foi eleito como objeto de análise no presente estudo339.

Apesar da pluralidade temática presente no filme, a perspectiva do olhar infantil funciona como fio condutor da narrativa cinematográfica aqui analisada. Importa salientar,

339 Na realidade, muitos outros aspectos deste mesmo filme podem ser objetos de análise, dependendo tão somente dos objetivos do pesquisador. Apontei, neste parágrafo, apenas aqueles que considerei de maior significado no filme e de interesse nesta minha pesquisa. 164

neste aspecto, o veio autoral deste longa-metragem, que possui indubitavelmente a marca de seu diretor. O paulistano Cao Hamburger, até o período de produção de O ano em que meus pais saíram de férias, praticamente só se dedicara à elaboração de filmes ligados ao público infantil340. Ao rever sua trajetória cinematográfica, percebe-se o quanto este filme dialoga com Castelo Rá-Ti-Bum – O filme, seu primeiro longa-metragem, lançado no ano de 1999, que também lida com o processo de transformação/aprendizagem a moldar a passagem da infância para a adolescência. Este dialogismo que baliza a cinematografia do cineasta se faz presente, de forma geral, em toda criação artística341, como afirma o roteirista Di Moretti: “Muito do processo criativo de um roteiro cinematográfico se deve às experimentações anteriores que o autor viveu na sua própria obra ou mesmo em sua vida pessoal”342.

Não é difícil perceber que filmes como Cabra-Cega e O ano em que meus pais saíram de férias possuem uma influência mais significativa de seus autores sobre a narrativa a ser elaborada, sendo, por este motivo, denominados de “cinema de autor”. Para o cineasta Cao Hamburger: “O cinema que mais me interessa fazer é aquele que une uma proposta cinematográfica pessoal com o gosto do público em assistir”343.

Além de carregar mais profundamente as marcas de seus autores – e, neste caso, é fundamental incluir a participação dos roteiristas e produtores, além dos diretores –, esse tipo de filme também se volta mais visivelmente para as relações entre o enredo fílmico e o contexto social brasileiro. Em outras palavras, percebe-se que filmes autorais possuem uma proposta ideológica mais definida, ou, no mínimo, mais consciente por parte de seus autores. Assim como já explicitara o cineasta Toni Venturi, Fabiano Gullane, um dos produtores de O ano em que meus pais saíram de férias, revela a sua preocupação com o conteúdo histórico do filme:

Eu sempre acho que o cinema tem esse valor. Além de ser um produto de entretenimento, além de ser uma obra artística, além de ser um bem

340 O primeiro trabalho cinematográfico de Cao Hamburger foi o curta-metragem de animação em massinha, Frankestein Punk, de 1987. Desde então, o cineasta vem se dedicando ao público infantil, com a direção da série de TV, Castelo Rá-Ti-Bum, e o longa-metragem homônimo, lançado em 1999. Cf. EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de Cineastas. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2002, p. 314. 341 Cf. STAM, Robert. Do texto ao intertexto, in Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003, p. 225-236. 342 MORETTI, Di. Prefácio do roteirista, in VENTURI, Toni. KAUFFMAN, Ricardo. Cabra-Cega..., p.15. 343 ARANTES, Silvana. Filme revê Brasil da ditadura militar pela ótica de um garoto. Entrevista com Cao Hamburger. Folha de São Paulo, outubro 2006. Disponível em: . Acesso em: fev. 2008. 165

cultural… ele fundamenta a história, ele ajuda a gente a entender a história da época344.

Tal preocupação também serviu de motivação para Cao Hamburger fazer um filme histórico que desconstruísse o lugar-comum referente ao olhar estrangeiro sobre o país. Residindo em Londres, no ano de 2001, o cineasta percebeu nos ingleses uma “visão estereotipada do Brasil”345, que desejou desfazer por meio do filme, apresentando um país multicultural e com uma história política bem sofrida e complexa. Enquanto Bruno Barreto, que também filmou O que é isso, companheiro? a partir de sua experiência de vida no exterior, não reconhece em seu filme uma proposta político-ideológica346, Cao Hamburger não tenta sublimar o papel do cinema na configuração de uma determinada memória histórica e de representação identitária de seu país.

Outra característica que se destaca no filme, também relacionada ao seu caráter autoral e que produz um determinado efeito sobre a narrativa, encontra-se na escolha do elenco de atores. Contrariamente aos filmes de grande produção e mais difundidos na mídia, como Zuzu Angel, o elenco de O ano em que meus pais saíram de férias é basicamente formado por atores não tão consagrados na mídia televisiva e, principalmente, por atores não profissionais347. Através da análise do making of do filme, contido no DVD, observa-se que o processo de seleção do elenco concentrou-se na busca por atores, especialmente entre as crianças, em escolas e teatros judaicos. O protagonista Michel Joelsas, por exemplo, nunca havia atuado no cinema e nem na mídia televisiva, sendo ator amador do teatro de sua escola. Constata-se, assim, a produção de um filme mais preocupado com o conteúdo a ser exibido nas telas do que com a questão da atração do espectador, através de um elenco de atores midiáticos.

Ao relacionar o filme com seu contexto de produção, pode-se afirmar que O ano em que meus pais saíram de férias é tributário das mudanças pelas quais o cinema brasileiro vem passando nos últimos anos. Isto significa, basicamente, inseri-lo nas mesmas circunstâncias de Cabra-Cega (2005) e Zuzu Angel (2006), ou seja, incluí-lo em um momento de diversificação

344 Entrevista concedida na seção dos Extras do DVD O ano em que meus pais saíram de férias. 345 ARANTES, Silvana, op.cit. 346 Cf. NAGIB, Lúcia. Para Barreto, ‘é pecado vencer no Brasil’. Folha de São Paulo, 21/11/1997. Ilustrada, p. 4-11. Disponível em: . Acesso em: 06 ago. 2008. 347 Pode-se dizer que, entre o elenco do filme, apenas Caio Blat possui uma carreira artística mais difundida e reconhecida, além da participação especial do ator Paulo Autran, que, no entanto, atua em apenas uma cena do filme. 166

– tanto temática quanto estética – das propostas cinematográficas atuais. E, no caso dos filmes históricos recentes sobre o regime militar, significa ainda reconhecer que os mesmos se pautam por uma multiplicação dos pontos de vista a serem construídos pela narrativa fílmica, deixando de apresentar a figura do guerrilheiro como o único representante da memória elaborada sobre o período. Em tais filmes, o guerrilheiro ainda possui um valor positivado, ainda pode ser exibido como um herói e/ou como a grande vítima da ditadura brasileira, mas, agora, ele não é mais necessariamente o protagonista da trama. Outros atores sociais – como uma criança, filha de guerrilheiros – passam a conduzir a narrativa fílmica, manifestando outras visões possíveis sobre o mesmo período histórico e sobre os mesmos acontecimentos políticos.

Também não se vê mais com tanta freqüência, como nos filmes da década de 1990, aquele guerrilheiro-herói, que não comete falhas ou erros de avaliação, que não apresenta momentos de fraqueza. Há, nos filmes atuais, como O ano em que meus pais saíram de férias, uma humanização dos integrantes da luta armada, que leva a uma representação mais realista daquilo que se supõe ter sido a vida de um guerrilheiro. Sem deixar de valorizar o papel político e até mesmo a coragem daqueles que pegaram em armas para lutar em franca desigualdade de forças contra o regime militar, constata-se, por outro lado, o sofrimento que estes guerrilheiros impuseram sobre seus filhos, pais e pessoas mais próximas. Novas memórias são elaboradas no momento atual, através dos filmes que se produz sobre o regime militar.

Outro ponto característico do cinema recente, e que se observa com mais ênfase no último filme aqui analisado, refere-se à crescente predominância da micro-narrativa individual no tratamento concedido a um tema político. Cada vez mais se observa que o momento histórico retratado nos filmes passa a ser conduzido pela esfera particular e individual, ao invés da esfera pública e coletiva. Os aspectos cotidianos – como a vida atribulada de um menino de onze anos, o trauma sofrido pela mãe de um guerrilheiro e as dificuldades práticas vivenciadas no interior de um aparelho clandestino – adquirem um espaço significativo nas tramas e o político nos é revelado através de enfoque mais intimista. À primeira vista, a característica apontada pode remeter a um afastamento da concepção de filme político, que teria o Cinema Novo348 como referência. No entanto, é preciso considerar que o cinema

348 O Cinema Novo corresponde a um movimento cinematográfico brasileiro, vigente entre fins da década de 1950 e meados da década de 1970, marcado pelo vanguardismo intelectual e pela influência da efervescente conjuntura social e política da época sobre a cultura. Entre as suas várias características e fases diferenciadas, vale ressaltar, para o presente estudo, o caráter revolucionário que os cineastas deste movimento atribuíam ao 167

brasileiro recente apenas procura oferecer uma nova proposta para se trabalhar o político nas telas. Talvez em busca de uma aproximação maior com o espectador e também com a intenção de proporcionar uma humanização maior dos personagens abordados, os filmes mais recentes aqui analisados encontram-se menos atrelados a grandes projetos revolucionários – como a luta heróica de Lamarca ou como a ousada ação de seqüestro do embaixador norte- americano – e voltam-se mais para a dimensão cotidiana, para a aparente banalidade do dia-a- dia, que também constitui a trama social e política que configura a nossa história.

O ano em que meus pais saíram de férias atingiu um público calculado em 354.447 pessoas no ano de seu lançamento, situando-se em nono lugar entre os filmes brasileiros mais assistidos no ano de 2006349. Recebeu uma quantidade significativa de premiações em festivais nacionais350. Além disso, foi indicado pelo Ministério da Cultura para concorrer à categoria de melhor filme estrangeiro na premiação do Oscar, nos Estados Unidos. Pressupõe- se, assim, que com esta valorização proporcionada principalmente pela imprensa especializada em cinema no Brasil, o filme tenha adquirido uma razoável visibilidade e, com isso, aumentado significativamente o público que o assistiu nos anos posteriores ao seu lançamento, difundindo com mais propriedade a sua visão sobre o período do regime militar brasileiro.

Certamente, muitas outras linguagens e abordagens cinematográficas ainda virão para integrar a disputa de memórias que se observa entre as representações do regime militar no cinema brasileiro contemporâneo. Da mesma forma, ainda se observa a permanência de algumas mitificações e reproduções de estereótipos sobre o período ditatorial e seus atores sociais. Cabe ressaltar, inclusive, que esses três últimos anos têm-se caracterizado por um aumento significativo do número de filmes que abordam o tema do regime militar. Documentários e ficções, baseadas ou não em fatos e pessoas reais, estão em evidência nas telas, a sinalizar que o distanciamento cronológico do período da repressão tem ampliado as possibilidades de se dialogar com o passado recente e de aflorar memórias antes esquecidas ou silenciadas. cinema que produziam, com a pretensão de transformar a sociedade através da conscientização social proporcionada pelas mensagens produzidas nas telas. Certamente que nem todo filme que se inscreveu nessa categoria de Cinema Novo possuía esse caráter revolucionário, não se podendo pensá-la como um bloco homogêneo. De qualquer forma, a característica política apontada para esse movimento constitui uma referência na história do cinema que se produz no país. 349 Dados da ANCINE, conferir Anexo II. 350 Para conferir os prêmios recebidos pelo filme O ano em que meus pais saíram de férias, ver o site eletrônico especializado: Adoro Cinema Brasileiro. Disponível em: . 168

CONCLUSÃO

‘Quem controla o passado’, dizia o lema do Partido, ‘controla o futuro: quem controla o presente, controla o passado’. (George Orwell)

28 de março de 2008. Na Praça Ana Amália (Centro do Rio de Janeiro), inaugura-se uma estátua em homenagem ao estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, pelos quarenta anos de sua morte351. Edson Luis foi assassinado pela Polícia Militar, dentro do restaurante estudantil Calabouço, no Rio de Janeiro, no ano de 1968. Ao que parece, Edson Luis não era um ativista político nem militante estudantil; apenas protestava, naquele dia, a respeito da qualidade da alimentação fornecida pelo restaurante. Sua morte deu início a uma série de manifestações populares que culminou com a Passeata dos Cem Mil, em junho daquele mesmo ano, no Rio de Janeiro352.

É fácil encontrar, nas mais diversas cidades brasileiras, inúmeras pontes, praças, estádios, avenidas e outros “lugares de memória”353 que procuram homenagear os presidentes-generais que governaram o Brasil durante o regime militar. Até mesmo o nome de Sérgio Paranhos Fleury pode ser observado em uma rua da cidade paulista de São Carlos354. O mesmo fenômeno já não acontece ao se tratar “do outro lado” da história. A construção de um monumento que tem como homenageada uma das vítimas da ditadura militar, como a citada estátua a Edson Luís, ainda é um acontecimento muito incomum355. Mas, por outro lado, já

351 A construção do monumento em homenagem a Edson Luis, assim como a cerimônia realizada no dia de sua inauguração, na Casa do Estudante do Brasil (em frente à praça que recebeu a escultura), foi resultado de uma parceria entre a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, da Prefeitura do Rio de Janeiro, da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Disponível em: Acesso em: ago. 2008. 352 Cf. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1995, p. 477-478. 353 Utilizo-me da concepção de Pierre Nora sobre “lugares de memória”. Cf. NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury. Projeto História. São Paulo, n. 10, p. 1-178, dez. 1993. 354 Ver: ROLLEMBERG, Denise. Carlos Marighella e Carlos Lamarca: memórias de dois revolucionários in FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão (Orgs.). Revolução e democracia. (1964-...) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 92. 355 Na cidade de Santo Amaro (Pernambuco) foi inaugurado, em 1993, um monumento às vítimas da ditadura, denominado Memorial Tortura Nunca Mais, situado na Praça Padre Henrique, Rua da Aurora. Pelo menos nas capitais e grandes cidades do Brasil, não há notícias de homenagens desse tipo a alguém que tenha morrido por ocasião da repressão efetuada pelo regime militar. Vale lembrar ainda que, em maio de 1989, foi construído por Oscar Niemeyer, em Volta Redonda, um monumento para homenagear os três operários mortos, quando da invasão da Companhia Siderúrgica Nacional pelo Exército, durante a greve dessa indústria, em 1988. O 169

representa uma transformação em nossa política patrimonial e, principalmente, no embate de memórias que vem sendo travado desde o início do período ditatorial no Brasil. A referida estátua demonstra a existência de um processo de irrupção e lenta consolidação de memórias que antes se encontravam subterrâneas e que, nos últimos anos, vêm emergindo e se materializando, seja em um monumento, no nome de uma rua, em livros e trabalhos acadêmicos, na mídia e no cinema.

As representações cinematográficas elaboradas sobre o regime militar brasileiro devem, portanto, ser compreendidas no interior de um processo mais amplo de elaboração de novas memórias sobre a ditadura. O espaço para a “história oficial dos militares” vem sendo dividido, não sem conflitos, com outras histórias, outras vozes. E, nesse embate, o cinema vem se constituindo como uma arena privilegiada.

* * *

Se na política patrimonial brasileira a memória dos militares ainda permanece hegemônica, na arte cinematográfica constata-se uma busca de (re)significação desse passado recente; porém, não de qualquer aspecto desse passado, mas de situações, episódios e fatos até então submersos. Com efeito, desde o início do processo de redemocratização, a interpretação fílmica desse período histórico tenta trazer à tona a visão dos militantes que se opuseram de forma mais radical à ditadura militar. Nas telas de cinema, as memórias das esquerdas encontraram um terreno propício para emergirem e ampliarem o seu espaço de circulação, divulgação e construção de suas versões para a história do regime militar. Pode-se dizer que, no campo cultural, onde o cinema brasileiro se insere, ocorreu praticamente uma inversão onde os militares, “se venceram a guerra contra as organizações da esquerda revolucionária, foram derrotados na luta pela memória histórica do período”, como afirmam Celina de Araújo, Celso Castro e Gláucio Soares356.

Isto não significa afirmar, por sua vez, que exista uma representação homogênea e consensual sobre a temática em questão no meio cinematográfico. Contrariamente, o que se percebeu através da análise de um conjunto de filmes sobre a ditadura militar é que há monumento sofreu um atentado a bomba, apenas 24 horas após a sua inauguração, sendo revelado, dez anos depois, a participação do Exército no referido atentado. Cf. COSTA, Celia M. L.; PANDOLFI, Dulce C.; SERBIN, Kenneth (Orgs.). A memória destroçada, in O Bispo de Volta Redonda: memórias de Dom Valdir Calheiros. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 159-161. 356 D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (Orgs.). Os anos de chumbo. A memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 13. 170

conflitos, contradições e uma diversidade de representações em torno desse passado violento, diversidade esta que se insere na disputa mnemônica presente em outras esferas sociais e políticas de representação.

Se o cinema deve ser entendido como um dispositivo de memória social, não se pode deixar de considerar que essa memória é seletiva, faz parte de um processo de construção e escolhas e que esta seleção é um ato político, com consciência ou não por parte daqueles que a produzem. O fundamental, do ponto de vista da análise histórica de um filme, é que se perceba que “a imagem elaborada coloca-se como uma escolha realizada em um conjunto de escolhas possíveis”357, sendo o filme sempre uma reelaboração do passado, que envolve questões de caráter político-ideológico e culturais, sem deixar de considerar que a arte cinematográfica também abrange escolhas estéticas, uma vez que se constitui como um produto de entretenimento.

Torna-se necessário reafirmar que a presente pesquisa não buscou avaliar ou julgar o grau de fidelidade dos filmes à época retratada. Tal procedimento levaria à premissa de que haveria uma “verdade histórica” a ser revelada, o que não condiz com a perspectiva dos estudos culturais aqui assumidos358. O cinema, assim como todas as demais manifestações culturais, elabora representações que imprimem significados à realidade representada, ou seja, à história que se constrói. O objetivo primordial deste estudo foi o de perceber as formas pelas quais os filmes constroem os seus discursos sobre a história; os mecanismos utilizados para a elaboração de determinados significados suscitados por esses filmes. Sob esta ótica, o filme perde o seu caráter “natural” e “realista” que as imagens audiovisuais são capazes de remeter, conforme discutido aqui.

* * *

Uma vez repassados os pressupostos acima, um primeiro aspecto a destacar, a partir da análise dos filmes selecionados, é o fato de que há uma clara intenção de se colocar em relevo nas telas a “história dos vencidos” pela repressão do regime militar. O cinema brasileiro, preocupado com a história desse período, caracteriza-se pela recorrência aos guerrilheiros que

357 CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema, in CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 408. 358 Não cabe confundir, entretanto, com a negação do estatuto de verdade almejado – embora não alcançado – pelo conhecimento histórico. A esse respeito, ver: SCHAFF, Adam. História e Verdade. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 171

aturam na luta armada359, em detrimento de outros assuntos passíveis de serem explorados no interior da temática ditatorial. À centralidade da guerrilha e de seus personagens, acrescenta- se a concentração do tempo diegético dos filmes entre 1969 e 1971, momento de auge dos movimentos de guerrilha e, ao mesmo tempo, de recrudescimento da violência e repressão sobre os mesmos pelo Estado.

Os tons de heroísmo e, ao mesmo tempo, de derrota impressos neste recorte conduzem o espectador a uma interpretação vitimizadora para os papéis desempenhados pelos guerrilheiros. Foram eles, sob a ótica construída por esse cinema, os que mais atuaram no processo de oposição à ditadura militar e, consequentemente, os que mais sofreram a violência exercida pela repressão governamental. Por esse motivo, tornou-se um “dever de memória”, segundo a concepção de Paul Ricouer360, a exaltação desses atores sociais nas telas de cinema, que passam a protagonizar histórias de ação, aventura e drama cinematográficos. Em contrapartida, aquelas pessoas, grupos e organizações que buscaram outras formas de resistência à ditadura seguem ainda no esquecimento cinematográfico, pelo menos, no interior da categoria ficcional361.

A recorrência aos guerrilheiros e à luta armada, no entanto, não é feita da mesma forma entre os filmes analisados. Foi possível observar que os longas-metragens produzidos na década de 1990, portanto no período mais próximo ao contexto da redemocratização pós- ditadura, apresentam uma ênfase maior nos aspectos heróico e vitimizador dos guerrilheiros, quando comparados aos filmes mais atuais.

Desta forma, Lamarca (1994) e O que é isso, companheiro? (1997) não só possuem os guerrilheiros como protagonistas de suas representações cinematográficas, como imprimem de forma contundente a seus personagens as características acima referidas. Já Cabra-Cega, um filme mais recente (2005), apesar de ainda situar o guerrilheiro no papel principal de sua narrativa fílmica, o coloca em uma posição mais matizada, onde sua bravura é confrontada com a realidade do confinamento, onde o seu idealismo vai de encontro à derrocada da luta

359 Exemplos de outros filmes produzidos após 1985 (início do período democrático), e que possuem os guerrilheiros como foco principal da trama narrativa: Que bom te ver viva (Lúcia Murat, 1989), Ação entre amigos (Beto Brant, 1997), Dois córregos (Carlos Reichenbach, 1999), Marighella – Retrato falado de um guerrilheiro (Silvio Tendler, 2001), Araguaya, a conspiração do silêncio (Ronaldo Duque, 2004), Tempo de resistência (André Ristum, 2004). 360 SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 22, v. 44, 2002. 361 Na categoria de filmes documentários observa-se uma cinematografia maior relativa a outras formas de resistência ao regime militar, com destaque para os documentários produzidos por Renato Tapajós que evidenciam, entre outros aspectos, a luta política do operariado do ABC paulista. Exemplos: Linha de montagem (1982), A luta do povo (1980), Nada será como antes, nada? (1984), 60 anos de conquista (1990). 172

armada e seus desejos pessoais rivalizam com seus objetivos políticos, quase levando ‘Thiago’ à loucura, característica nada heróica para um protagonista.

Em Zuzu Angel (2006) e O ano em que meus pais saíram de férias (2006), ao guerrilheiro já é facultado um papel secundário. Ainda valorizados, não são mais o centro da trama. Esta centralidade agora é ocupada por aqueles que, de alguma forma, sofreram as conseqüências das decisões políticas tomadas pelos guerrilheiros. Uma mãe e um filho, que perdem membros de suas famílias igualmente para a luta armada e para a ditadura, são agora os protagonistas dessa nova forma de narrar esse passado histórico. Forma esta que proporciona outras visões possíveis sobre a temática em questão, retirando uma parcela do caráter heróico e vitimizador daqueles que se dedicaram à luta armada. Talvez essa venha a ser a tendência do momento do cinema brasileiro atual, buscar uma pluralidade de olhares sobre o regime militar e, especificamente, sobre a luta armada, que busca romper com aquela visão monolítica sobre o tema.

Esta mudança de foco, encontrada nessa perspectiva fílmica mais recente, não excluiu, de todo, traços que são visíveis nos filmes da década de 1990, o que só demonstra o quanto a obra cinematográfica abarca uma pluralidade de significados possíveis e até contraditórios. Refiro-me, especialmente, ao caráter estereotipado do guerrilheiro, que ainda hoje se revela nas telas como o jovem idealista e romântico, pertencente à classe média, que parte em busca de uma aventura política, e que parece rebelar-se mais contra a geração anterior do que contra o governo ditatorial. Características que podem ser facilmente identificadas no filme Zuzu Angel, mas que também se observa em alguns personagens dos outros filmes recentes analisados362. De qualquer forma, a estereotipização – seja para mitificar o guerrilheiro (Lamarca), seja para desabonar a sua imagem (O que é isso, companheiro?) – não é mais a tônica predominante no cinema que trata a luta armada.

Uma possibilidade de compreensão para a transformação acima referida encontra-se na inserção dos filmes analisados em um contexto político e cultural mais amplo, marcado pela evolução do embate de memórias existente no interior da sociedade brasileira.

Na década de 1990, o “fantasma” do recém-findado período ditatorial ainda rondava o país. Se por um lado vivia-se o clima de euforia pelo processo de redemocratização, por outro, evitava-se mexer em feridas ainda não-cicatrizadas. Era o momento de “esquecer o que passou”, de “olhar para frente”, logo, de predominância da política do esquecimento sobre a

362 Como nos personagens da mãe de Mauro, por exemplo, e do estudante Ítalo, ambos do filme O ano em que meus pais saíram de férias. 173

política do lembrar. Grosso modo, nem militares nem ex-guerrilheiros, mesmo que por diferentes motivos, pareciam desejar remexer nesse passado recente. Além disso, muitos ex- ativistas políticos de oposição ao regime militar estavam, naquele momento, lutando pela consolidação da democracia e, inclusive, ingressando na política institucional363. Não se deve esquecer ainda que, além de ex-militantes oposicionistas e até ex-guerrilheiros, os novos governos democráticos abrigavam, em seus quadros, militares e civis que apoiaram, parcial ou integralmente, o regime ditatorial364. Inimigos de outrora, atuavam lado a lado na construção de um novo país. Não seria o momento para se aflorarem os ressentimentos, mas para se unirem os esforços.

Dentro deste espírito conciliador e de luta pela consolidação da democracia, muitos ex-militantes precisavam rever o passado recente em conformidade com as posições políticas que assumiam no momento, afinal, um novo “lugar de fala” lhes era reservado na sociedade brasileira em processo de redemocratização. Nesse sentido, recupera-se a história da luta armada como uma “história de resistência democrática”365 e seus protagonistas – os guerrilheiros – como verdadeiras vítimas dessa heróica resistência. Como afirma Marcelo Ridenti, ao refletir sobre os embates de memória presentes na reconstrução da história dos grupos de guerrilha no período ditatorial, “fez-se uma leitura do passado que o mistifica, a fim de legitimar o caminho escolhido por alguns ex-militantes e também partidos políticos no presente”366. O cinema que se faz na década de 1990, portanto, ao mesmo tempo reflete e produz os seus significados sobre essa memória das esquerdas, que passa a predominar no período pós-ditadura, conforme percebido na análise do conjunto de filmes selecionados.

Os filmes produzidos após os anos 2000 já se inserem numa conjuntura um tanto diferenciada. Primeiramente, observa-se que o distanciamento do período ditatorial vem proporcionando com mais vigor a emersão de memórias anteriormente deixadas à margem, especialmente por aqueles que viveram experiências de violência, difíceis de serem narradas.

363 Como, por exemplo, José Dirceu, Carlos Minc, Fernando Gabeira, Milton Temer, Antônio Palocci Filho, entre outros que, por volta dos anos 90, iniciavam a sua carreira na política institucional ou a retomavam, depois do interregno ditatorial. 364 Como, por exemplo, Paulo Maluf, Delfim Netto, Jarbas Passarinho, José Sarney, entre outros. 365 Segundo os estudos de Daniel Aarão Reis e Marcelo Ridenti, os grupos de guerrilha que atuaram contra o regime militar nunca propuseram um retorno à democracia, nos moldes do período pré-1964. Os projetos reformista-revolucionários desses membros da luta armada no Brasil direcionavam-se para a destruição do capitalismo e para a implantação de uma ditadura revolucionária de base socialista. Cf. RIDENTI, Marcelo. Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura: armadilhas para os pesquisadores, (p. 140- 152); REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória, (p. 119-139), in SEMINÁRIO 40 ANOS DO GOLPE DE 1964. Ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. 366 RIDENTI, Marcelo. Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura..., p. 144. 174

Juntamente com o afloramento dessas memórias subterrâneas, segundo a concepção de Pollak367, esse distanciamento também vem permitindo uma revisão historiográfica sobre o período do regime militar. As “comemorações” dos quarenta anos do Golpe de 1964 (que se iniciaram no ano de 2004, mas que se seguiram nos anos seguintes, sendo reavivadas pelas “comemorações” do ano de 1968) deram origem a diversos debates nos campos acadêmico e intelectual, além de uma razoável repercussão nos meios de comunicação e difusão no mercado editorial368. O que se observa, desde então, é um crescente processo de revisões e (re)significações das memórias, especialmente no sentido de uma auto-crítica dos setores que participaram das forças de esquerdas nas décadas de 1960 e 1970. O cinema brasileiro tributário deste processo revisionista concede, portanto, um papel menos heróico ao guerrilheiro, como observado no presente estudo. Sem desmerecer a atuação significativa no combate ao governo autoritário e repressor dos militares, este cinema também procura revelar os erros e as fraquezas daqueles que empreenderam essa luta. No lugar de heróis, as telas exibem pessoas comuns, que nem por isso deixaram de lutar contra as forças desproporcionais do governo ditatorial.

Outro aspecto analisado com mais profundidade refere-se ao caráter de denúncia dos crimes de prisões arbitrárias e principalmente da prática de tortura, cometidos pelos militares e civis na ditadura. Importa salientar que, neste aspecto específico, os filmes são bem mais contundentes em sua postura condenatória às referidas práticas, não importando muito o período de produção dos longas-metragens; todos eles representam a tortura como um ato de barbárie e crueldade imposto, covardemente, pelas forças repressivas do Estado369. Não há condescendência por parte do meio cinematográfico, embora alguns cineastas expressem, mais do que outros, a experiência traumática daqueles que sofreram os males da violência do governo ditatorial. Como foi visto, o diretor Sérgio Resende dedica uma especial atenção à representação dos atos de tortura efetuados durante a ditadura. Em seus dois filmes aqui considerados, observa-se desde a simples menção até cenas de violência bem impactantes e “realistas”, acentuando o caráter de crítica a esta prática. Num outro sentido, Bruno Barreto opta por amenizar as cenas de tortura, tornando-as mais “digeríveis” para o espectador, especialmente para o público estrangeiro. De qualquer forma, predomina nos filmes a

367 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. 368 Como afirma Marieta Ferreira, “as comemorações são momentos cruciais para a seleção de representações do passado na dinâmica da memória coletiva”. FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). João Goulart. Entre a memória e a história. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 10. 369 Vale ressalvar que o filme O ano em que meus pais saíram de férias não trata desta temática, pelo menos não de maneira direta, como nos outros longas-metragens analisados. 175

condenação a tais práticas violentas, exercendo o cinema uma “política de justa memória”370 para com as vítimas que sofreram torturas, o que explica a recorrência a esse tipo de cena nos filmes analisados.

Não se deve esquecer que este “dever de memória” está intimamente relacionado ao presente, onde os crimes cometidos pelos militares – incluindo a prática, nunca diretamente assumida, de tortura – não foram totalmente esclarecidos e, principalmente, punidos pelo Estado brasileiro. A anistia recíproca, concedida em 1979, isentou aqueles que cometeram as referidas atrocidades em nome da “guerra contra a subversão” e o país nunca, até o presente momento, condenou algum torturador. Acrescenta-se a isso a falta de acesso da sociedade brasileira a muitos arquivos e documentos relacionados à atuação da repressão militar durante a vigência do governo ditatorial, impedindo o esclarecimento de muitas questões polêmicas. É válido ressaltar que, já nos últimos anos, uma crescente movimentação e debates em torno da abertura desses arquivos vêm sendo observados. Constata-se que alguns passos já foram dados nesse sentido371, porém muita documentação ainda permanece sigilosa ou mesmo desaparecida (ou não informada pelos órgãos competentes). Desta forma, o cinema atuaria como aquilo que Souza372 denomina de “arquivo-suplementar” aos arquivos político- institucionais, cuja abertura ainda é muito restrita e objeto de polêmica e disputa, desde o início do processo de redemocratização. Aos silêncios oficiais, estabelecidos desde o período do regime militar, o cinema responderia com a exacerbação das cenas de violência cometida contra as mais diversas pessoas daquela época, até mesmo contra aqueles que não se envolveram diretamente com a luta armada, como o pai de Zequinha Barreto, companheiro de Lamarca em sua fuga pelo sertão da Bahia.

Há que considerar, como mais um fator para a compreensão da recorrência à tortura nos filmes, o fato de que esta prática ainda se encontra presente – mesmo que também não assumida – nas mais diversas prisões do país. Se este crime não se volta mais para o “subversivo político”, pois este sujeito social não mais existe em um regime democrático, os atos de tortura são agora cometidos contra presos comuns, em nome de um suposto

370 SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória... 371 Grupos de defesa dos direitos humanos, como o Grupo Tortura Nunca Mais, funcionaram como importantes organizadores da memória subterrânea da ditadura, durante o processo de redemocratização do país. Nos dias atuais, os debates em torno das responsabilidades do Estado em relação aos crimes cometidos na ditadura já assumiram uma dimensão mais ampla e, no ano de 2008, observa-se o início de um debate governamental em torno da questão jurídica para os crimes praticados por torturadores e agentes do Estado. 372 SOUZA, Maria Luiza Rodrigues. Um estudo das narrativas cinematográficas sobre as ditaduras militares no Brasil (1964 – 1985) e na Argentina (1976 – 1983). 2007, 228 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade de Brasília, Brasília – DF, 2007. 176

“profissionalismo” policial que justifica a violação dos direitos humanos, conforme constata Martha Huggins, em seu estudo sobre as heranças do autoritarismo nas práticas policiais373. Em um país que, de certa forma, se omite em relação e esse tipo de violência policial, o cinema brasileiro realiza uma crítica contundente à prática de tortura, remetendo-a a tempos não tão longínquos de nosso passado.

Um ponto já mais controverso na memória que esse cinema deseja solidificar, encontra-se na responsabilização do Estado ditatorial em relação à prática de tortura. Nem todos os filmes elaboram da mesma forma as relações entre a tortura efetuada nos “porões da ditadura” e a política governamental. A denúncia da tortura como uma “política de Estado” não se faz presente em todos os filmes analisados, demonstrando que este assunto ainda parece um tanto polêmico e delicado aos olhos da sociedade brasileira, ao mesmo tempo, espectadora e produtora dos filmes em questão. Destaque deve ser dado ao cineasta Sérgio Resende que, tanto em 1994 como em 2006, evidencia os atos de violência cometidos por policiais-torturadores como ações originadas de uma rede de comando, cuja “ponta” encontrava-se nos mais altos postos das Forças Armadas brasileiras. Como já constatado, os filmes deste cineasta se voltam não somente para a espetacularização das cenas que envolvem a tortura, no sentido de criticá-la, mas também para o caráter de denúncia ao uso dessa prática como método de investigação, orquestrado e estimulado pelo próprio governo ditatorial.

A pesquisa também procurou demonstrar como as condições de produção da obra cinematográfica, assim como o contexto social do qual emerge, interferem na memória que o filme histórico produz e representa.

Por se tratar de um passado recente, como é o caso do regime militar brasileiro, os testemunhos que vivenciaram a experiência da ditadura adquirem um valor considerável para a produção cinematográfica. Observou-se que todos os filmes analisados buscaram a memória originada dos testemunhos como forma de legitimação da representação fílmica produzida. Esta postura encontra-se de acordo com um processo mais abrangente, denominado por Beatriz Sarlo de “guinada subjetiva”374, onde o discurso testemunhal vem adquirindo, nas últimas décadas, um papel de ícone da verdade. Sem deixar de considerar a importância dos discursos de memória dos sujeitos que vivenciaram a ditadura militar, a análise dos filmes

373 HUGGINS, Martha K. Heranças do autoritarismo: reformulação da memória de torturadores e assassinos brasileiros, in CANCELLI, Elizabeth (Org.). Histórias de violência, crime e lei no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004, p. 173-205. 374 SARLO, Beatriz. Tempo Passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das Letras/Belo Horizonte: UFMG, 2007. 177

revela que, como qualquer discurso, estes se configuram como representações imaginárias do passado vivido. Representações que já foram reelaboradas através de um processo de seleção, revisão e (re)significação desse passado à luz do presente onde o sujeito se insere. Além disso, o cinema se encarrega de produzir a sua interpretação para aquele discurso testemunhal, o que significa que o filme resulta de uma “representação da representação”375. Esta característica ocorre em todos os filmes, mas parece mais nítida em uns do que em outros, como no caso do filme O que é isso, companheiro?, onde a visão de Bruno Barreto para a história do seqüestro do embaixador norte-americano sobrepõe-se a de Fernando Gabeira, autor do livro que originou o filme e participante da referida ação.

Outro ponto relevante para a presente pesquisa, relacionado aos aspectos extra- cinematográficos, refere-se às motivações ideológicas que carregam os realizadores dos filmes, tenham eles ou não a intenção de explicitá-las. Verificou-se o quanto os filmes selecionados trazem as marcas dos sujeitos que os produzem. Como afirma Denise Jodelet, ao analisar as dinâmicas sociais das representações, a posição social que os sujeitos ocupam ou as funções que assumem, “determinam os conteúdos representacionais e sua organização, por meio da relação ideológica que mantém com o mundo social”376. Certamente que um filme não parte apenas da concepção do diretor de uma obra, como já foi mencionado, mas sabe-se que a sua visão, juntamente com a do roteirista, corresponde a boa parte do sentido impresso na história filmada. Percebeu-se, desta forma, como o estudo de aspectos referentes à vida pessoal e profissional dos cineastas, bem como as posturas políticas que assumem em diferentes esferas de atuação, podem fornecer pistas para a compreensão, pelo historiador, dos sentidos elaborados em um filme. Não se quer dizer, com isso, que um filme seja um simples reflexo das intenções de um cineasta e que ele possua total controle sobre todos os significados ali produzidos. Além disso, entre a intenção discursiva e o efeito do discurso cinematográfico, muitas desarticulações podem ocorrer – e geralmente ocorrem –, como analisado na presente pesquisa. No entanto, de uma maneira geral, examinar o papel do diretor é parte imprescindível de uma análise fílmica.

Por fim, destaca-se uma tendência desse cinema atual, que se volta para esse período histórico, que o diferencia sensivelmente do cinema produzido na década de 1990, no que se refere às temáticas do regime militar, dos guerrilheiros e da luta armada. Refiro-me à

375 Para uma interpretação da linguagem audiovisual como uma “representação da representação”, ver: NUNES, José Walter. Patrimônios Subterrâneos em Brasília. São Paulo: Annablume, 2005, passim. 376 JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão, in JODELET, Denise (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 22. 178

predominância, nos filmes mais recentes, do espaço privado e do cotidiano de pessoas comuns que vivenciaram a ditadura. Assim, essa perspectiva contrasta com Lamarca e O que isso, companheiro?, pois ambos, não obstante suas divergentes propostas ideológicas, centram-se nos grandes feitos das esquerdas armadas brasileiras. Ou assiste-se ao grande líder revolucionário que lutou bravamente pela redenção de seu país e que morreu como herói (ou como Jesus, crucificado), ou então ao grupo guerrilheiro que ousou seqüestrar o embaixador do grande país imperialista e maior inimigo das esquerdas brasileiras revolucionárias. Já o cinema dos dias de hoje é protagonizado por uma mãe, por um filho, ou por um guerrilheiro anônimo. As tramas atuais se desenvolvem mais no dia-a-dia de pessoas comuns que cometem erros e acertos a cada momento, pois são, afinal, humanas.

O que pode parecer um distanciamento da concepção de filme político, deve ser interpretado sob uma nova perspectiva. O político no cinema atual está presente justamente nos detalhes das pequenas ações cotidianas – que também constroem a História – e não somente nos grandes nomes e nas grandes ações políticas. Percebe-se que, de certa forma, as narrativas fílmicas da ditadura, construídas por esse cinema mais recente, acompanha a tendência historiográfica atual, especialmente no âmbito dos estudos culturais. Isso significa dizer que a micronarrativa vem ganhando cada vez mais espaço, tanto na produção historiográfica mais recente, como na arte cinematográfica brasileira, pelo menos no que se refere à elaboração da história do regime militar no cinema. Em lugar das grandes estruturas políticas, sociais e econômicas, temos agora em evidência – tanto nas telas como nos estudos acadêmicos – a microanálise histórica. Defende Jacques Revel377 que, na escala macrossocial, perde-se de vista a história vivida, a experiência concreta dos indivíduos, em favor de sujeitos sociais abstratos e de dinâmicas generalizantes. Em sentido oposto, através da microanálise histórica, chega-se à vivacidade e à dramaticidade dos enredos singulares que fornecem ao pesquisador um universo social bem mais complexo e que, naturalmente, escapa ao olhar macroanalítico.

Seguindo esta tendência, os filmes atuais sobre a ditadura militar inserem o político nesta escala microssocial, onde o heroísmo não se constrói mais através dos grandes feitos (como os seqüestros de embaixadores), nem dos grandes líderes da oposição armada (como Lamarca), mas através da coragem e determinação de uma criança abandonada à própria sorte, de uma mãe que procura conhecer o destino trágico do filho, ou mesmo de um

377 REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social, in REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 32. 179

guerrilheiro ferido que não consegue viver sem a sua liberdade. Dramas de pessoas comuns e bem mais humanas.

* * *

Cada vez mais o cinema brasileiro vem produzindo filmes que abordam a temática do regime militar. Grande parte desses filmes, ficção ou documentário, são reproduzidos seguidas vezes em salas de aula, pelos professores de História do Brasil. Com isso, as memórias elaboradas por esses filmes ajudam a cristalizar ou criar determinadas interpretações históricas que se solidificam no imaginário coletivo. Acrescenta-se a isso o fato de que predomina praticamente em todos os filmes a adoção da estética naturalista, onde ocorre um ocultamento da linguagem cinematográfica e uma sensação para o espectador de que o filme se comporta como uma “janela para o real”378. Como demonstram Jean Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos, ao trabalharem com o uso do cinema nas escolas, a linguagem naturalista exerce um papel preponderante na propagação de determinados significados fílmicos sobre o espectador, pois

não é difícil compreender que o discurso sobre a História está intimamente ligado ao presente e à luta política. Impor uma determinada interpretação histórica é, ao mesmo tempo, impor uma leitura do presente. Portanto, quem dominar a História poderá impor a sua leitura do presente, tomando posição no jogo político em favor de um dos grupos em luta. O filme histórico naturalista, ao propor uma leitura única da História, acaba, por extensão, impondo a visão do presente que interessa às pessoas que conceberam e realizaram o filme379.

Por este motivo, acredito que a análise fílmica merece, de fato, muita atenção por parte dos historiadores. Desvendar os mecanismos de construção dos significados produzidos em um filme, relacionando seus aspectos internos e externos, torna-se uma tarefa cada vez mais relevante em uma sociedade cada vez mais imagética. Sem perder de vista o caráter, antes de tudo, artístico do cinema, o historiador pode contribuir para que as memórias do regime militar produzidas pelo cinema brasileiro não sejam “absorvidas” sem uma postura crítica por parte de seus espectadores.

378 BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. 379 Idem, Ibidem, p. 17. [Grifos meus] 180

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- O que é isso, companheiro? DVD Vídeo / Columbia Tristar Home Vídeo, s/d.

- Cabra-Cega DVD Vídeo / Europa Filmes, 2006.

- Zuzu Angel DVD Vídeo / Warner Bros., 2006.

- O ano em que meus pais saíram de férias DVD Vídeo / Buena Vista Home Entertainment, 2007.

- No olho do furacão Direção Renato Tapajós e Toni Venturi DVD Vídeo / Europa Filmes, 2006. (Presente no mesmo DVD do filme Cabra-Cega)

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- Cao Hamburger - Entrevista contida nos Extras do DVD O ano em que meus pais saíram de férias

- Cláudio Galperin - Entrevista contida nos Extras do DVD O ano em que meus pais saíram de férias

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- Di Moreti - Entrevista contida nos Extras do DVD Cabra-Cega

- José Joffily - Entrevista contida nos Extras do DVD Lamarca

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- Paulo Betti - Entrevista contida nos Extras do DVD Lamarca

- Renato Tapajós - Depoimento contido no documentário No Olho do Furacão, presente nos Extras do DVD Cabra-Cega

- Sérgio Resende - Entrevistas contidas nos Extras dos DVDs Lamarca e Zuzu Angel

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6) INFORMAÇÕES EM SITES OFICIAIS:

- Site do grupo Tortura Nunca Mais – RJ:

- Site da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH):

- Site da ANCINE:

- Site Portal do Governo Brasileiro. Legislação:

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194

VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1994, (Coleção Ofício da Arte e Forma).

VENTURI, Toni; KAUFFMAN, Ricardo. Cabra-cega: o caminho do filme. Do roteiro de Di Moretti às telas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005, (Coleção Aplauso / Série Cinema Brasil).

VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos nos seus mitos? Lisboa: Edições 70, 1987.

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XAVIER, Ismail (Org.). A Experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal/Embrafilme, 1991.

______. Prefácio. In: NAGIB, Lúcia. O Cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 9-12.

______. Prefácio. In: ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 11-17.

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* * * 195

ANEXO I

Ficha Técnica e Sinopse dos Filmes

Filme 1 - LAMARCA

Sinopse Crônica dos últimos anos na vida do capitão do exército Carlos Lamarca (Paulo Betti) que, nos anos da ditadura, desertou das forças armadas, e passou a fazer oposição, tornando-se um dos mais destacados líderes da luta armada. Baseado no livro “Lamarca: o capitão da guerrilha”, de Emiliano José e Oldack Miranda.

Ficha Técnica Direção - Sérgio Rezende Roteiro - Sérgio Resende e Alfredo Oroz Tempo de Duração - 130 minutos Ano de Lançamento - 1994 Estúdio/Distrib. - Paramount Produção - Mariza Leão Produtor Executivo - José Joffly Música - David Tygel Direção de Fotografia - Antônio Luis Soares Montagem - Isabelle Rathery

Fonte de pesquisa:

______

Filme 2 - O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?

Sinopse Em 1964, um golpe militar derruba o governo democrático brasileiro e, após alguns anos de manifestações políticas, é promulgado, em dezembro de 1968, o Ato Institucional nº. 5, que nada mais era que o golpe dentro do golpe, pois acabava com a liberdade de imprensa e os direitos civis. Neste período vários estudantes abraçam a luta armada, entrando na clandestinidade, e em 1969 militantes do MR-8 elaboram um plano para seqüestrar o embaixador dos Estados Unidos, para trocá-lo por prisioneiros políticos, que eram torturados nos porões da ditadura.

196

Ficha Técnica Direção - Bruno Barreto Roteiro - Leopoldo Serran, baseado em livro de Fernando Gabeira Tempo de Duração - 105 minutos Ano de Lançamento - 1997 Produção - Lucy Barreto e Luiz Carlos Barreto e Filmes Equador Ltda. Co-Produção - Columbia Pictures / Sony Corporation Distribuição - Columbia Pictures do Brasil Música - Stewart Copeland Direção de Fotografia - Félix Monti Direção de Arte - Marcos Flaksman e Alexandre Meyer Figurino - Emilia Duncan Edição - Isabelle Rathery Efeitos Especiais - DVC Arte & Técnica / Farjalla

Fonte de pesquisa:

______

Filme 3 - CABRA-CEGA

Sinopse Thiago (Leonardo Medeiros) e Rosa (Débora Duboc) são dois jovens militantes da luta armada, que vivem o sonho do projeto revolucionário em pleno período da ditadura. Em uma emboscada da polícia, Thiago, comandante do grupo de ação de uma das organizações de ultra-esquerda brasileira, é ferido à bala. Tendo um Brasil armodaçado e sem liberdades democráticas como pano e fundo, eles se alojam num bairro tradicional de São Paulo, na casa do arquiteto Pedro (Michel Bercovitch), um amigo simpatizante da causa. Com a organização debilitada, discute-se o abandono da estratégia armada. O projeto de derrubar a ditadura pela violência fracassou completamente. Rosa, militante de base e filha de operário, é o contato de Thiago com o mundo, a vida, a fantasia. É também sua enfermeira. A situação externa vai se deteriorando: a morte de Lamarca, os arrependidos, o avanço contínuo da repressão.

Ficha Técnica Direção e Produção - Toni Venturi Idéia original - Roberto Moreira 197

Ano de Lançamento - 2005 Argumento - Fernando Bonassi e Victor Navas Roteiro - Di Moretti Produtora - Olhar Imaginário Produção Executiva - Sérgio Kieling Distribuidora - Europa Filmes e M. A. Marondes Diretor de Fotografia - Adrian Cooper Diretor de Arte - Chico Andrade Diretor de Produção - Cláudia Minari Tempo de Duração - 108 minutos Montagem - Willem Dias Música - Fernanda Porto

Fonte de pesquisa: ______

Filme 4 – ZUZU ANGEL

Sinopse Zuzu Angel, uma estilista de sucesso que projetou a moda brasileira no mundo. Zuzu Angel, uma mãe quer travou uma luta contra tudo e todos na busca pelo seu filho Stuart. Os anos 70 viram o mundo de pernas para o ar. No Brasil, a carreira de Zuzu Angel (Patrícia Pillar) como estilista começa a deslanchar enquanto seu filho Stuart (Daniel de Oliveira) ingressa no movimento estudantil, contrário à ditadura militar então vigente no país. Stuart é preso, torturado e assassinado pelos agentes do Centro de informações de Aeronáutica, sendo dado como desaparecido político. Inicia-se então o périplo de Zuzu, denunciando as torturas e morte de seu filho. Suas manifestações ecoaram no Brasil, no exterior e em sua moda.

Informações Técnicas Direção - Sérgio Rezende Produtor - Joaquim Vaz de Carvalho Co-roteirista - Marcos Bersntein e Sérgio Resende Gênero - Drama Tempo de Duração - 103 minutos Ano de Lançamento - 2006 Estúdio/Distrib. - Warner Bros. Diretor de fotografia - Pedro Farkas Diretor de arte - Marcos Flaskman Figurinista - Kika Lopes Trilha Sonora - Cristóvão Bastos

198

Fonte de pesquisa:

______

Filme 5 – O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS

Sinopse 1970. Mauro (Michel Joelsas) é um garoto mineiro de 12 anos, que adora futebol e jogo de botão. Um dia sua vida muda completamente, já que seus pais saem de férias de forma inesperada e sem motivo aparente para ele. Na verdade os pais de Mauro foram obrigados a fugir por serem de esquerda e serem perseguidos pela ditadura, tendo que deixá-lo com o avô paterno (Paulo Autran). Porém o avô enfrenta problemas, o que faz com que Mauro tenha que ficar com Shlomo (Germano Haiut), um velho judeu solitário que é seu vizinho. Enquanto aguarda um telefonema dos pais, Mauro precisa lidar com sua nova realidade, que tem momentos de tristeza pela situação em que vive e também de alegria, ao acompanhar o desempenho da seleção brasileira na Copa do Mundo.

Ficha Técnica Diretor - Cao Hamburger Produção - Cao Hamburger, Caio Gullane e Fabiano Gullane Co-produção - Daniel Filho e Fernando Meirelles Lançamento - 02 de Nov de 2006 História original - Cao Hamburger e Cláudio Galperin Roteiro - Cláudio Galperin, Cao Hamburger, Bráulio Montovani, e Anna Muylaert Fotografia - Adriano Goldman Direção de arte - Cássio Amarante Trilha sonora - Beto Villares Estúdio - Gullane Filmes / Caos Produções Cinematográficas / Miravista / Globo Filmes Distribuição - Buena Vista International Gênero - Drama Tempo - 106 min. Lançamento DVD - Fev de 2007

Fonte de pesquisa: e 199

ANEXO II

Dados Comerciais dos Filmes

ano de lançamento total de título direção no mercado público valores renda de salas de captados (R$) exibição (R$)

Lamarca Sérgio 1994 123.683 371.049,00 Resende

O que é isso, Bruno 1997 321.450 3.836.049,62 1.787.262,00 companheiro? Barreto

Cabra-Cega Toni Venturi 2005 28.620 786.000,00 220.339,00

Zuzu Angel Sérgio 2006 774.318 6.036.000,00 5.789.238,00 Resende O ano em que meus pais Cao 2006 354.447 5.900.000,00 3.065.508,00 saíram de Hamburger férias

Obs: a Ancine considera o público pagante das salas comerciais, somente para o ano de lançamento do filme.

Fonte: (Página oficial da ANCINE – Ministério da Cultura – Governo Federal)

* * *