Nonada: Letras em Revista E-ISSN: 2176-9893 [email protected] Laureate International Universities Brasil

Frainer Knoll, Graziela O JOGO COMO AGIR DE LINGUAGEM: DA LUDICIDADE À CONSTRUÇÃO DE VALORES SOCIAIS Nonada: Letras em Revista, vol. 1, núm. 28, mayo, 2017, pp. 77-92 Laureate International Universities Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512454262006

Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto O JOGO COMO AGIR DE LINGUAGEM: DA LUDICIDADE À CONSTRUÇÃO DE VALORES SOCIAIS

GAME AS ACTION OF LANGUAGE: FROM LUDICITY TO THE CONSTRUCTION OF SOCIAL VALUES

Graziela Frainer Knoll1

RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir sobre o jogo no âmbito da cultura e sobre o jogar como agir de linguagem, a partir de uma revisão de literatura. Utilizou-se como referencial teórico-metodológico: o jogo segundo Huizinga (1993), Bateson (2006) e Cabral (2001), entre outros; o agir de linguagem conforme o ISD (BRONCKART, 2003; 2006) e o ato segundo a teoria bakhtiniana (VOLOCHÍNOV, 2009; BAKHTIN, 2010a; 2010b). A reflexão evidenciou o jogo como elemento da cultura, fundamental para a socialização e o jogar como agir de linguagem.

Palavras-chave: jogo, linguagem, agir.

ABSTRACT: The purpose of this work is to reflect on the game in culture and about playing as action of language, from a literature review. It was used as theoretical- methodological references: the game according to Huizinga (1993), Bateson (2006) and Cabral (2001), among others; The language action according to the ISD (BRONCKART, 2003, 2006) and the act according to the Bakhtinian theory (VOLOCHÍNOV, 2009; BAKHTIN, 2010a; 2010b). The reflection showed the game as an element of culture, fundamental for socialization and playing as an action of language.

Keywords: game, language, action.

Introdução

Os jogos fazem parte das práticas sociais humanas desde os primórdios, tendo prevalecido seu caráter lúdico durante muito tempo, até a época pós-industrial, quando passaram a ser vistos como possíveis recursos motivadores dos processos de ensino e aprendizagem, do fortalecimento das sociabilidades e do desenvolvimento de valores por meio da linguagem. Com isso em vista, o objetivo deste trabalho é refletir sobre o jogo no âmbito da cultura e sobre o jogar como agir de linguagem. A pesquisa é qualitativa, de revisão de literatura, do tipo revisão narrativa, que consiste em um método de pesquisa que utiliza fontes de informações bibliográficas ou documentais, impressas ou eletrônicas para a obtenção de resultados, com o propósito de fundamentar teoricamente o enfoque do tema. Os

1 Doutora em Estudos Linguísticos. Professora Adjunta no Centro Universitário Franciscano; Colaboradora Pós-Doc no Mestrado em Letras do UniRitter. E-mail: [email protected]. Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 78 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. artigos de revisão narrativa descrevem e discutem o desenvolvimento ou o "estado da arte" de um determinado tema por uma perspectiva teórica ou contextual, em que a seleção das obras e referências consultadas é uma prerrogativa do pesquisador (VOSGERAU; ROMANOWVSKI, 2014). Assim, a discussão será feita a partir da articulação dos seguintes conceitos e autores centrais, selecionados de forma subjetiva: o jogo como elemento da cultura, segundo Huizinga (1993), Bateson (2006) e Cabral (2001), entre outros; o agir de linguagem conforme o Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 2003; 2006) e o ato segundo a teoria bakhtiniana (VOLOCHÍNOV, 2009; BAKHTIN, 2010a; 2010b). Não serão discutidas aqui as perspectivas da psicologia ou do cognitivismo, mas, sobretudo, o ponto de vista cultural do jogo. Porém, sabe-se que o jogo foi e é tema de interesse de várias escolas, que vão desde o behaviorismo, que estudou os fatores de estímulo e resposta envolvidos na ação de jogar, e passam por K. Buhler, segundo o qual o jogo se define pelo prazer da função, e pelo construtivismo de Piaget, que analisou a função do jogo no desenvolvimento infantil (CABRAL, 2001). Enfim, o jogo como interesse de estudo deve-se ao fato de que, desde muito cedo, manifesta-se uma propensão ao jogo como atividade lúdica, e isso não é uma exclusividade da espécie humana ou de um contexto específico, pelo contrário, é fato observado no comportamento de diversos animais, o que incita a curiosidade pelo tema. Na sequência, será visto o conceito do jogo na cultura; serão analisadas suas funções lúdicas e referentes à construção de valores sociais; em seguida, será discutida a relação entre o jogo e a linguagem e, após, será feita a reflexão sobre o jogar como agir de linguagem.

O jogo na cultura

O jogo faz parte da vida do ser humano desde os primórdios dos tempos. Inclusive, trata-se de uma prática também observada em outros animais, como macacos e mamíferos domésticos, por exemplo. Os cães, desde pequenos, estabelecem entre si um ritual de gestos, regras e comportamentos, passando a jogar uns com os outros, realizando um ritual de perseguição e mordidas sem o intuito de violência, pelo contrário, para o seu divertimento, sendo assim, com um sentido que ultrapassa as necessidades biológicas, mecânicas ou de sobrevivência. Considerando isso, em 1938, Huizinga referiu-se ao Homo sapiens como Homo ludens, devido à função do jogo como elemento essencial da cultura, até mesmo anterior às noções de cultura e sociedade. O jogo apresenta-se como um elemento cultural e histórico fundamental, que teve (e tem) sua importância para o desenvolvimento da civilização (HUIZINGA, 1993). Para o autor, o divertimento é o “que define a essência do jogo” (Ibid., p. 5), ou seja, é o que distingue e particulariza essa atividade, diferenciando-a de outras funções vinculadas à sobrevivência. Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 79 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92.

Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distante origens até a fase de civilização em que agora nos encontramos. Em toda a parte encontramos o jogo, como uma qualidade de ação bem determinada e distinta da vida comum (HUIZINGA, 1993, p. 6).

O jogo pode ser caracterizado, segundo Huizinga (1993), pelo fato de ser livre: é facultado ao indivíduo participar ou não e, uma vez no jogo, decidir que rumos ou decisões assumir, ainda que isso seja, de certa forma, restringido por regras e por consequências do jogo. É, conforme Stern (1977), uma atividade livre que tem a finalidade em si mesma. Em segundo lugar, há o fato de o jogo funcionar como uma forma de representação ou imaginação da vida, pois não é a vida real ou comum da pessoa, “pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade” (Ibid. p. 11). Em terceiro lugar, o autor coloca o caráter desinteressado do jogo, que tem por finalidade a satisfação do jogador, isto é, a sua realização no próprio jogo. Ressalta-se, porém, que seu caráter desinteressado não incide a falta de propósito ou de importância dessa atividade, mas tem relação com seu aspecto lúdico e com o fato de que funciona como uma expressão da criatividade. Huizinga (1993) destaca outra característica distintiva do jogo, que é a ordem introduzida no mundo, do ponto de vista do jogador, naquele espaço de tempo e lugar em que é praticado. Isso significa que, para o jogador, o jogo estabelece uma ordem ou um regramento e, ao mesmo tempo, um ritmo que cativa seus participantes. São as regras, socialmente impostas na comunidade de jogadores, que determinam quem permanece no jogo ou quem é punido ou eliminado. Dessa forma, pode-se afirmar que todo jogo possui seus regramentos, mais ou menos formalizados e compartilhados entre os jogadores. Para Bateson (2006, p. 316), o jogo somente acontece quando os participantes são capazes de realizar algum nível de metacomunicação ou metalinguagem, a fim de declararem (implícita ou explicitamente) a mensagem “This is play” (“isto é jogo”). O antropólogo reitera que o jogar ocorre não só entre humanos, mas também entre animais, como os chipanzés no zoológico, que realizam um tipo de jogo entre si, similar ao combate, porém sem o intuito de machucar os participantes. Nesse jogo, são os sinais – por exemplo, atitudes, cheiros e sons – emitidos na interação entre eles que estabelecem a metacomunicação do jogar. O antropólogo afirma que o paradoxo está sempre presente no jogo, bem como a questão “Is this play?”. Nesse aspecto, é como se houvesse a dúvida entre os participantes: isto é um jogo, uma fantasia ou uma real ameaça? Pode-se acrescentar que tal paradoxo é explorado ainda hoje pela indústria dos jogos eletrônicos, em que, quanto maior o realismo dos personagens, das cenas e, inclusive, dos combates, maior o interesse do Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 80 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. público. Conforme Ferreira (2010, p. 6), o realismo dos jogos eletrônicos (games) é um realismo estético, isto é, construído com base em imagens, sons e movimentos, sendo que as imagens geradas buscam “incessantemente, de acordo com a tecnologia disponível em cada época, a semelhança mimética, o realismo gráfico, em seus jogos”. Essa proximidade entre o jogo e a realidade é alcançada por meio de tecnologias de alta definição, filtros e texturas (CIPOLI, 2012), que buscam diluir os contrastes entre pessoas e personagens virtuais. Em suma, o jogo tem um caráter mimético, porém mais relacionado ao divertimento ou a um modo ordenado de lidar com a tensão da vida cotidiana do que à reprodução da realidade. Isso significa que, naquele mundo ordenado do jogo, a tensão é passageira (CABRAL, 2001), pois se desfaz com a vitória de um jogador ou com a conclusão de um enigma ou de uma etapa ou partida. A função do jogo é “exterior aos interesses materiais imediatos e à satisfação individual das necessidades biológicas. [...] o jogo naturalmente contribui para a prosperidade do grupo social, mas de outro modo e através de meios totalmente diferentes da aquisição de elementos de subsistência” (HUIZINGA, 1993, p. 12). Além disso, o jogo incentiva a formação de uma comunidade ou agrupamento de indivíduos, ou seja, funciona como elemento de sociabilidade, pois, pelo menos por um tempo e em um espaço (físico ou virtual), os jogadores partilham os mesmos interesses ao se envolverem em uma atividade comum. Huizinga (1993) já afirmara que as comunidades de jogadores tendem a permanecer mesmo após o jogo ter acabado, como se formassem um clube, porque a atividade estabelece um clima de pertencimento e cooperação. Isso posto, Ribeiro e Falcão (2009) discutiram sobre os efeitos dos jogos eletrônicos e o mundo virtual no processo de formação de identidades sociais. Os autores argumentaram que muitas das vivências e experiências obtidas com os jogos eletrônicos decorrem da imersão, conceito proposto por Klaustrup (2003, apud RIBEIRO; FALCÃO, 2009), o qual significa o processo a partir do qual o usuário passa a conscientemente fazer de conta (imaginar) que os fatos que acontecem na virtualidade fazem parte da vida real, isto é, da vida concretamente vivida pelo indivíduo. Esse fazer de conta traduz uma (tele)presença, que é o sentimento de estar lá, mediante a interação com outros jogadores e a simulação de experiências. Dessa maneira, os autores concluíram que, além do mundo virtual, o jogo como um sistema lúdico cujos objetivos são bem definidos “exerce forte influência no modo pelo qual as relações – e papéis – sociais se desenham no decorrer da experiência de mundo vivida pelo usuário/jogador” (Ibid., p. 93). Outro aspecto relevante a ser destacado sobre o jogo na cultura é, como Amaral (2009) ressalta, a sua importância na solução de problemas, o que pode acarretar o crescimento e o desenvolvimento do indivíduo. Seguindo a abordagem sociointeracionista de Vygotsky, Oliveira (1999) explica que o jogo proporciona uma zona de desenvolvimento proximal no Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 81 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. indivíduo, conceito vigotskiano que significa a distância entre o nível de desenvolvimento atual e a capacidade de resolução de um problema sob a orientação de um adulto ou em colaboração com o outro. Tezzani (2006) salienta que, dessa forma, o jogo estimula a observação e o conhecimento das coisas, do mundo e das outras pessoas, tornando-se um meio fundamental para que a criança elabore e descubra a si mesma. O jogar é um ato de manifestação da criatividade, em que hipóteses são levantadas e testadas. Há diversos tipos de jogos que, conforme a autora esclarece, estimulam “o crescimento e o desenvolvimento, a coordenação muscular, as faculdades intelectuais, a iniciativa individual, favorecendo o advento e o progresso da palavra” (Ibid, p. 1). Na sequência, serão discutidos dois aspectos dos jogos: sua ludicidade e sua importância na construção de valores.

Jogos: da ludicidade à construção de valores sociais

Todo jogo tem um fim útil e, ao mesmo tempo, um fim lúdico. O fim útil diz respeito à finalidade do jogo, ao ponto de chegada ou ao objetivo a ser alcançado. Já o lúdico está ligado ao prazer de jogar (ou divertimento), é quando o meio transforma-se no fim, ou seja, é um caminho ou movimento realizado pelo jogador não somente por causa da sua finalidade prática, mas pela sensação de prazer que produz para o jogador (CABRAL, 2001). Fuentes (2005), ao apresentar a evolução do jogo ao longo do ciclo vital, expõe que, em diferentes idades, o indivíduo envolve-se em diferentes tipos de jogos, tais como: jogos de exercício ou de ação (durante os dois primeiros anos de vida); jogos de construção (durante essa mesma faixa de idade); jogos simbólicos (a partir dos dois anos, com a emergência da representação); jogos solitários ou paralelos; jogos associativos e jogos cooperativos. Ainda que seja difícil – até mesmo impossível – criar uma classificação que abranja todos os tipos de jogos existentes, a autora saliente que é importante ter em vista dois pontos principais. O primeiro é o jogo como um fator que motiva ou impulsiona a aprendizagem, um aspecto, sem dúvida, positivo dessa atividade. O segundo é que o jogo existe durante todo o ciclo de vida do indivíduo, ou seja, não é algo exclusivo da infância, mas persistente inclusive na maturidade. Brougère (1998) traça um panorama que situa a Idade Média como uma época em que a atividade lúdica se desenvolvia no centro da vida social, e os jogos faziam parte das festividades dos jovens, como espaço essencial para a formação de identidades, tanto nas competições, quanto nos momentos de recreação e divertimento. Entretanto, conforme as atividades sociais se especializaram, ocorreu uma separação entre o que era considerado sério e o que era considerado frívolo. Por seu caráter lúdico, os jogos ficaram à parte de atividades consideradas mais sérias, sendo inclusive vistos como fúteis, apesar de sua importância. Ainda assim, Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 82 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. reconhece-se que “o jogo é o corte indispensável em uma vida de trabalho” (Ibid., p. 47).

A verdadeira civilização não pode existir sem um certo elemento lúdico, porque a civilização implica a limitação e o domínio de si próprio [...]. De certo modo, a civilização sempre será um jogo governado por certas regras, e a verdadeira civilização sempre exigirá o espírito esportivo, a capacidade de fair play (HUIZINGA, 1993, p. 234).

Aos poucos, já na Idade Moderna, o jogo adquiriu sua importância como um instrumento para a sociedade, especialmente para a educação das crianças. “Em suma, cada sociedade determina um espaço social e cultural onde o jogo pode existir legitimamente. [...] A frivolidade do jogo não impede que nele se veja um lugar de educação” (BROUGÈRE, 1998, p. 49). O autor acrescenta que, às vezes, é justamente por ser frívolo que o jogo pode prestar-se a certas funções sociais e culturais. Assim sendo, o jogo torna-se um instrumento de sedução da criança, um meio prazeroso de ensinar, sem que o conhecimento seja transmitido de maneira excessivamente técnica para a sua faixa etária. Para tanto, o educador deve saber manipular o jogo ou colocálo em prática sem que deixe de tratar a criança como um jogador, ou seja, apesar de ter uma função educativa, o jogo não pode deixar de ser prazeroso e ter o próprio jogo como finalidade. Explica-se: “se a criança aprecia o jogo, isso se dá à medida que é acompanhado de um sentimento de atividade agradável, o que remete à imagem que ela tem dele. É uma questão de ilusão, não de realidade” (Ibid., p. 55). No contexto educacional, o jogo pode ter aspectos bastante positivos quando empregado como recurso pedagógico. Segundo (2008, p. 19), no espaço escolar, “quando os sujeitos se predispõem a jogar e colocar em evidência, no mundo lúdico, a oposição e a complementaridade das suas diferentes experiências e concepções, em busca de um relacionamento humano e cultural, num determinado contexto histórico”. Por essa razão, o educador deve estar atento não só aos benefícios que o jogo gera, mas aos construtos culturais que estão sendo expostos, transmitidos e intercambiados entre os jogadores. Para o autor, o jogo é um recurso capaz de fazer a criança assimilar valores e inserir-se no mundo e no meio social. O jogo “educa não para que saibamos mais matemática ou português ou futebol; ele educa para sermos mais gente, o que não é pouco” (FREIRE, 2002, p. 87). De um modo descontraído, aparentemente livre e motivador, o indivíduo aprende valores, condutas, conhecimentos, crenças e, principalmente, aprende a se socializar com os outros. Sanmartín (2005) afirma que o jogo potencializa as relações das crianças com os demais, a fim de manter a interação. É dessa forma que elas “aprendem a cooperar, a participar, a competir, a serem aceitas ou Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 83 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. rechaçadas, a constatar a imagem que os outros têm delas, a expressar a imagem que elas fazem dos outros” (Ibid., p. 48). Nessa ação, o lúdico torna-se um espaço ideal para a construção de valores sociais. Os valores são construtos que existem em qualquer núcleo social, pois consistem em avaliações que as pessoas fazem sobre o que é aceitável, inaceitável, positivo, negativo, etc. Tais valores, como Sanmartín (2005) aponta, são socialmente adquiridos, construídos na linguagem e nos processos interativos entre os integrantes de um meio ou de uma comunidade, de forma que podem servir tanto à coletividade, quanto ao interesse individual. Ao atuar em uma situação lúdica de jogo, valores são repassados ou construídos, pode-se acrescentar, de maneira muito mais naturalizada ou sutil do que quando evocados em outras situações mais sérias ou formais. Orlick (1990) pondera que o jogo é o instrumento ideal para uma aprendizagem social positiva, desde que a trapaça e o engano não sejam incentivados, pois assim estão sendo inculcadas essas condutas no comportamento do indivíduo. Enfim, o jogo estabelece uma dinâmica e uma forma de organização próprias, sendo atravessado por avaliações e construtos socialmente elaborados, o que se manifesta na e pela linguagem.

Jogo e linguagem

O vínculo entre a linguagem e o mundo é estabelecido na interação, que é sempre dialógica e social, pois pressupõe dois ou mais indivíduos engajados em atividades de produção e compreensão de linguagem, ou seja, conectados por processos relacionais. Dessa forma, a relação entre os participantes interativos na comunicação “encontra-se integrada numa multiplicidade de „redes‟: cada relação é profundamente influenciada pela existência de uma vasta e complicada relação social” (BITTI; ZANI, 1993, p. 27). É a partir da interação com o outro em práticas sociais concretas que alcançamos a verdadeira substância da língua, afirma Volochínov (2009, p. 127): “A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua”. Isso significa que a língua ganha vida na enunciação, sob condições contextuais concretas de uso. O contexto desempenha um papel central na determinação (produção e compreensão) do sentido, pois a linguagem empregada tem em vista a compreensão no contexto específico em que emerge. Pode-se considerar que o jogo é uma linguagem, pois de linguagem ele se constitui e por meio dela se realiza. E não se trata de somente uma linguagem, mas de linguagens no plural, porque é uma atividade que, geralmente, emprega múltiplas semioses (gestos, palavras, imagens, sons, sinais, movimentos, etc). A linguagem do jogo somente tem sentido no momento em que jogo é jogado, ou seja, na prática do jogo, em um contexto Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 84 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. específico. Externo a isso, ele possui uma estrutura, um conjunto de elementos que, ordenados e nas regras previstas, conduzem a uma significação para o jogador. Fazendo uma relação, é como o paradoxo existente entre a palavra na língua e a palavra na enunciação: no momento da prática do jogar, o jogo não é somente um conjunto de signos e regras, mas uma atividade historicamente situada. Para Huizinga (1993, p. 7), a linguagem já é ela própria decorrente de um jogo, um jogo de palavras ou um jogo de designar coisas, pois é uma maneira de nomear as coisas do mundo, uma metáfora para coisas do mundo real, “e toda metáfora é jogo de palavras”. O autor também expõe que o jogo se fundamenta na manipulação de imagens e na transformação da realidade em tais imagens. No caso de jogos que realizam algum tipo de representação, o papel da linguagem no jogo se evidencia ainda mais, como uma forma de imitar ou transfigurar a realidade, criando-se imagens e manifestações simbólicas que a substituam ou mimetizem. Assim como a língua, o jogo tem seu conjunto de signos e de regras sobre o que pode ou deve ser feito com tais signos para que os outros jogadores compreendam e participem do jogar. Conforme Cabral (2001), todo jogo tem seu sistema de regras, que viabilizam o fim proposto da ação mediante uma adequada utilização dos meios. Mesmo os jogos espontâneos entre crianças têm suas regras, que estão mais ou menos estabelecidas entre os jogadores. Outra aproximação que pode ser feita diz respeito à habilidade linguística e às estratégias linguísticas e discursivas, que podemos comparar, respectivamente, às habilidades alcançadas pelo jogador e ao conjunto de técnicas e estratégias empreendidas no jogar. Para Freire (2002, p. 119), “quem vai ao jogo leva, para jogar, as coisas que já possui, que pertencem ao seu campo de conhecimento, que já foram aprendidas anteriormente em procedimentos de adaptação, de suprimento de necessidades objetivas”. Tendo em vista a solução de um problema, um enigma ou um obstáculo, o jogador faz uso dos conhecimentos e das técnicas que tem sobre o jogo, bem como das suas habilidades alcançadas por meio do aprendizado e da repetição do jogar. Logo, tudo o que o jogador já acumulou sobre a linguagem do jogo (seus signos e sistemas de regras, incluindo como os outros jogadores agem ou costumam agir no jogo) torna- se conhecimento prévio para aquela atividade.

O jogar como agir de linguagem

O jogo é uma manifestação de linguagem ou de múltiplas semioses, tais como imagens, gestos corporais, sons, sinais, palavras e movimentos organizados em um sistema de regramentos que estabelece a “ordem” do jogo, bem como recompensas e/ou consequências resultantes quando os jogadores seguem ou quebram as regras e, por fim, concluem o jogo. Assim sendo, se o jogo é linguagem, o jogar é uma atividade de linguagem, um agir Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 85 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. significativo dentro de um contexto lúdico ou orientado para a solução de problemas. Mas o que é o agir de linguagem? O agir de linguagem (ou agir linguajeiro, ou ainda, agir de linguagens) é um conceito proposto pelo Interacionismo Sociodiscursivo (doravante, ISD), a partir de Bronckart (2003; 2006). A perspectiva sociointeracionista considera as ações humanas “como ações significantes, ou como ações situadas, cujas propriedades estruturais e funcionais são, antes de mais nada, um produto da socialização” (BRONCKART, 2003, p. 13). Segundo o autor, diferentemente de um agir geral, o agir de linguagem é toda conduta verbal que é realizada por um actante humano em um contexto específico e em interdependência com ações não verbais (Ibid.). Nesse sentido, textos ou discursos são manifestações empiricamente observáveis do agir de linguagem, produções sociais que acontecem em um contexto acional e social. Também a língua é um construto social, jamais tratada como uma estrutura inata ou biologicamente adquirida. Um dos principais teóricos do quadro epistemológico que compõe o Interacionaismo Sociodiscursivo de Bronckart é Vygotsky, que analisou o ser humano como resultado de um processo histórico de socialização. Assim compreendido, é pela influência do meio, resultante das interações sociais e do aprendizado, que a criança desenvolve a linguagem e constrói a si mesma e ao mundo em significado, um processo sempre relacional, pois na ausência do “outro” o “eu” não se constitui (VYGOTSKY, 1991). Tendo como referencial o materialismo histórico dialético, para Vygotsky, o ser humano se distingue de outros animais por ter funções psicológicas superiores, que se constroem mediante o aprendizado. Nesse processo, a mediação é fundamental, e é nesse sentido que se destaca o papel da linguagem. A linguagem é o que torna o ser humano um ser sócio- histórico: “o homem ascende à sua humanidade, transforma-se de ser biológico a ser sócio-histórico no momento em que reflete a realidade objetiva de forma mediada, utilizando instrumentos psicológicos, os signos, na interação com os outros” (FREITAS, 2005, p. 303). A partir dessa perspectiva e agregando outros pressupostos teóricos, como a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, a Hermenêutica de Ricoeur e a Teoria da Atividade de Leontiev, entre outros, Bronckart sustenta que existe um agir geral e um agir de linguagem. O agir geral envolve atividades que “organizam as interações dos indivíduos com o meio” (BRONCKART, 2006, p. 138), enquanto que o agir de linguagem é, antes de tudo, um fato de linguagem, isto é, um traço de “condutas humanas socialmente contextualizadas” (BRONCKART, 2003, p. 23). de outro modo, o agir geral refere-se à intervenção humana de modo geral, já o agir de linguagem corresponde ao fato de linguagem que ocorre quando o actante utiliza os recursos semióticos de que dispõe em uma situação concreta de interação. Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 86 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92.

Conforme explicam Leurquin e Peixoto (2001, p. 86), tanto o agir geral, quanto o agir de linguagem

são formas de agir humano, que mantêm uma relação indissociável, sendo o agir geral sempre dependente do agir de linguagem. O agir pressupõe a existência de um actante, dotado de uma série de recursos, fruto do processo de aprendizagem dos pré-construídos, capacidades de agir e mundos formais. Esse actante pode ser, no plano interpretativo, ator, quando as formas textuais colocam esses actantes como sendo a fonte de um processo e quando a eles são atribuídas capacidades, motivações e intenções, e pode ser também agente, quando não tem, nas formas textuais, atribuídas capacidades, responsabilidades, intenções e motivações.

A noção geral de atividade diz respeito às “organizações funcionais de comportamentos dos organismos vivos”, sendo essas atividades essenciais para que o indivíduo se relacione com o meio e exerça processos de cooperação e funções de sobrevivência, a exemplo da divisão do trabalho entre as abelhas, citada por Bronckart (2003, p. 31). Ocorre que o ser humano é capaz de organizar atividades infinitamente mais complexas do que outros animais, o que, provavelmente, está relacionado à complexidade da linguagem, que evoluiu junto com a espécie nos processos sociais de interação. Assim, para Bronckart (2006), a linguagem é fundadora da ação, e toda ação de linguagem implica um actante singular e consciente, que faz parte de uma coletividade, e a quem a responsabilidade de, pelo menos, uma parte da atividade de linguagem é atribuída. Citando Pinto e Barreto Filho (2011, p. 3), “o agir de linguagem é agir no texto (no sentido de discurso). Ao proferi-lo, o homem reflete as atividades coletivas (econômicas, sociais e interativas da sociedade)”. Sobre a noção de texto, cabe explicar que Bronckart (2003, p. 75) chama “de texto toda unidade de produção de linguagem situada, acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação)”. Como cada texto se inscreve em um gênero (conjunto de textos), o autor propõe o termo gêneros de texto para se referir ao que Bakhtin (2010a) chama de gêneros discursivos. Exposto isso, pode ser feito um paralelo entre o conceito de agir de linguagem na perspectiva do ISD e o conceito de ato na perspectiva dialógica bakhtiniana. Na teoria dialógica bakhtiniana, a língua, assim como outros sistemas sígnicos, depende da relação com os sujeitos humanos por ser um produto da sociabilidade desses sujeitos e de suas interações. Conforme observa Ponzio (2010, p. 50), “não existe de um lado um sujeito falante, o indivíduo, e de outro, a língua”. Aderindo ao pensamento bakhtiniano, a língua é dinâmica e, como elemento de coesão social, não pode ser entendida apenas como um conjunto de formas Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 87 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. estáticas, pois decorre de processos dialógicos que incluem as relações dos sujeitos entre si e com o mundo concretamente vivido. A enunciação é compreendida tendo em vista as demais enunciações pertencentes à mesma esfera de atividade, que são campos de uso da linguagem (MACHADO, 2005). Advém de Bakhtin (2010a, p. 262) a noção de que cada esfera de atividade humana elabora seus “tipos relativamente estáveis de enunciados”, que são os gêneros discursivos – para o ISD, gêneros de texto. O ato é o agir concreto de um sujeito historicamente situado no mundo, imerso nas relações sociais e constituído dialogicamente. Bakhtin (2010b, p. 44) considera que o ato é singular e provém de um sujeito único: “Cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto”. O ato também é dito ético porque implica um sujeito responsável que pensa e age. Como todo evento é único e singular, o ato constitui um momento histórico irrepetível na vida desse sujeito e de outros que com ele socializam. “A categoria da experiência vivida do mundo-ser real – enquanto evento – é a categoria da unicidade” (BAKHTIN, 2010b, p. 102). Até mesmo o pensamento é um ato singular que compreende o ato de pensar e o conteúdo desse pensamento. Ao mesmo tempo, há um sujeito que responde por esse ato, e o conjunto de atos compõe a vida, igualmente singular, desse sujeito: “eu ajo com toda a minha vida, e cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu viver-agir”, diz Bakhtin (2010b, p. 44), o que significa que a unicidade do ato está correlacionada com a singularidade do sujeito. O ato pode ser visto por dois planos distintos, dois mundos que se contrapõem: um em que os atos objetivam-se e adquirem caráter de atividade, portanto, esse plano contém os aspectos repetíveis e reiteráveis dos atos; e um segundo plano que diz respeito ao ato concreto, contextualizado, ou seja, ao ato como algo irrepetível e único no mundo. “O ato da atividade de cada um, da experiência que cada um vive, olha, como um Jano bifronte, em duas direções opostas: para a unidade objetiva de um domínio da cultura e para a singularidade irrepetível da vida que se vive [...]” (BAKHTIN, 2010b, p. 43). Esses dois planos devem encontrar-se na unidade da responsabilidade moral. Portanto, cada ato praticado por um sujeito é um ato concreto, irrepetível e singular que, entretanto, possui modos de organização repetíveis e, com isso, reconhecíveis por outros sujeitos. Há o ato como realização, que é o ato propriamente dito (postupok para Bakhtin), e o ato como potencialidade, que é a atividade (akt). Já o evento é um “ato abarcador que inclui os vários atos da atividade” humana (SOBRAL, 2005, p. 27). O plano dos atos concretos corresponde às interações cotidianas que integram a vida de um sujeito, assim como o plano dos atos-atividades (reconhecíveis e reiteráveis) corresponde à cultura. Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 88 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92.

Nessa perspectiva, o ato é o agir com autoria, não uma simples ação, pois ele parte de um agente, enquanto uma ação qualquer não designa necessariamente uma responsabilidade. Amorim (2009, p. 22) pondera que “o ato é um gesto ético no qual o sujeito se revela e se arrisca inteiro”, o que significa que o ato não é fortuito. Por essa razão, ele implica uma tomada de posição por parte do sujeito. A tomada de posição diz respeito à avaliação ou valoração que está presente quando o sujeito age na e pela linguagem. Segundo Bakhtin (2010b, p. 55), o ato responsável “incorpora cada significado extratemporal no existir-evento singular”. Sendo assim, o ato concreto está relacionado ao plano da cultura, e o sentido gerado sempre contém um componente axiológico: o sujeito é responsável pelas avaliações que faz em cada ato, provenientes de suas interpretações de mundo. Essa noção persiste e complementa-se em obras posteriores do Círculo bakhtiniano, como na máxima “viver significa ocupar uma posição axiológica em cada momento da vida, significa firmar-se axiologicamente (BAKHTIN, 2010a, p. 174); e também em Volochínov (2009, p. 98): “não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou um sentido ideológico ou vivencial”. O ato no sentido bakhtiniano, seja como pensamento, seja como criação estética, é necessariamente a manifestação de um tom ou valor que está relacionado ao sentido do conteúdo e a determinado contexto sociocultural e histórico, assim como a um sujeito ativamente responsável, que responde a partir de um lugar único e concreto do mundo. Também para o ISD toda ação significante (ou simplesmente ação) está relacionada a um agir de linguagem, haja vista que a linguagem é o recurso material de que o actante dispõe. Outra semelhança é que, para ambas as teorias, o agir de linguagem e o ato são de responsabilidade de um agente consciente. Bronckart (2003, p. 39) afirma que a ação de linguagem é “imputável a um agente e se materializa na entidade empírica que é o texto singular”. Nesse sentido, a ação é diferente do acontecimento, já que o acontecimento pode ser originado da natureza, ou seja, não implica necessariamente a responsabilidade de um agente. Já para a teoria bakhtiniana, em que há o ato como realização, que é o ato propriamente dito, e o ato como potencialidade, que é a atividade, a noção de agir geral do ISD aproxima-se do conceito bakhtiniano de evento, que é um ato mais abrangente que engloba os inúmeros atos da atividade humana. Outro ponto de aproximação entre o agir de linguagem do ISD e o ato bakhtiniano é o caráter sócio-histórico dos fatos de linguagem: o agir, assim como o ato, é concretamente situado em um contexto e em uma situação de produção e passa a integrar um momento histórico. Isso se explica pelo enfoque interacionista de ambas as abordagens, especialmente Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 89 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. pelo embasamento que o ISD tem em Vygotsky. É esse embasamento que confere à linguagem, no ISD, o status de mediadora da ação humana. Refletindo sobre o jogo a partir dessas noções teóricas, esclarece-se, em primeiro lugar, que o jogar não é um acontecimento ou evento fortuito, pelo contrário, é uma ação significante, isto é, um agir de linguagem e, nos aspectos em que ambos os conceitos se aproximam, um ato bakhtiniano. O jogo também é, como um fato de linguagem, uma atividade temporária, momentânea, porque acontece em um intervalo de tempo e em um espaço determinados. Entretanto, “seus efeitos não cessam depois de acabado o jogo”, tal qual um ritual que tenha valor para uma comunidade, afirma Huizinga (1993, p. 17). Considerando, por exemplo, jogos que atuam na construção de valores sociais, essa possiblidade somente existe devido à mediação da linguagem. É a linguagem que atribui ao jogo a possibilidade de construir, transmitir, sustentar, intercambiar ou, até mesmo, transformar valores, ainda que a ludicidade esteja presente. O agir de linguagem constitui um momento de avaliação do meio e do outro, avaliação que é expressa na linguagem (verbal ou não verbal). O jogar é um agir de linguagem também porque consiste em um momento de socialização entre actantes, isto é, um ponto de encontro do eu com o outro. Nesse sentido, trata-se de um momento de singularidade do actante, considerando que o jogo é praticado por um indivíduo consciente, em uma situação concreta e específica de interação. Entretanto, o jogo possui modos de organização repetíveis e, com isso, reconhecíveis por outros indivíduos. Desse modo, outros jogadores podem se engajar nesse ato/atividade, pois reconhecem ali um modo de agir. Tal reconhecimento deve-se ao fato de que o jogo, como agir em linguagem ou como ato bakhtiniano, materializa produções de linguagem que se inscrevem em determinado gênero de texto, segundo o ISD – ou gênero discursivo, de acordo com Bakhtin.

Considerações finais

Este artigo realizou uma reflexão sobre o jogo, a partir de uma pesquisa de revisão de literatura, cujos resultados centraram-se em três aspectos principais: 1) o jogo é elemento da cultura, presente não só na cultura humana, mas nas práticas de outras espécies, o que demonstra a sua importância para o desenvolvimento do indivíduo; 2) o jogo desempenha uma função importante na socialização dos indivíduos e nas interações que eles estabelecem entre si e com o meio; 3) o jogar constitui um agir de linguagem que pode dispor de múltiplas semioses. Além disso, evidenciaram-se pontos em que a noção do agir de linguagem do ISD aproxima-se do conceito de ato ético bakhtiniano. Salienta-se que a responsabilidade é fator presente tanto no agir de linguagem do ISD, quanto no ato bakhtiniano, pois o fato de linguagem provém de um actante (ou sujeito) consciente e singular. O texto é a Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 90 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. unidade da manifestação ou materialização: constituído de recursos sígnicos, o agir de linguagem é o agir no texto, uma unidade de produção de linguagem “situada, acabada e auto-suficiente” (BRONCKART, 2003, p. 75). Dessa maneira, o jogar é um agir de linguagem e, portanto, um agir comunicativo, pois comunica mensagens entre os jogadores, valores presentes no meio social e, ao mesmo tempo, atua como uma instância mediadora do desenvolvimento humano, considerando que pode ser utilizado como recurso pedagógico em processos de ensino-aprendizagem.

Referências

AMARAL, Jader Denicol do. Jogos Cooperativos. 4. ed. São Paulo: Phorte, 2009. AMORIM, Marília. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p. 17-43. BAKHTIN, Mikhail M.Estética da criação verbal. Trad. do russo: Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010a. ______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad.: Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010b. BATESON, Gregory. A theory of play and fantasy. In: SALEN, Kate; ZIMMERMAN, Eric. The game design reader: A Rulesof play anthology. Cambridge, Mass: MIT Press, 2006. p. 314-328. BITTI, Pio Ricci; ZANI, Bruna. A comunicação como processo social. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 2003. ______. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006. BROUGÈRE, Gilles. Jogo e educação. Porto Alegre: Artmed, 1998. CABRAL, António. O jogo no ensino.Lisboa: Editorial Notícias, 2001. CIPOLI, Pedro. Conheça as tecnologias que fazem os games modernos beirarem o realismo. Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2016. FERREIRA, Emmanoel. Realismo estético e videogames: relações entre representação e experiência na atividade videolúdica.Prisma.com, n.10, p. 1- 12, 2010. Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 91 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92.

FREIRE, João Batista. O Jogo: entre o riso e o choro. Campinas, SP: Autores Associados, 2002. FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Nos textos de Bakhtin e Vigotski: um encontro possível. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, SP: UNICAMP, 2005. p. 295-314. FUENTES, María Teresa M. Evolução do jogo ao longo do ciclo vital. In: MURCIA, Juan A. M. e col. Aprendizagem através do jogo. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 27-44. HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. LEURQUIN, Eulália V. L. F.; PEIXOTO, Camila Maria Marques. A construção de um agir reflexivo do professor no espaço de formação docente. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 15, n. 28, p. 83-102, 1º sem. 2011. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2017. LIMA, José Milton. O jogo como recurso pedagógico no contexto educacional. São Paulo: Cultura Acadêmica/Universidade Estadual Paulista, 2008. MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p. 151-166. OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio-histórico. 5. ed. São Paulo: Scipione, 2010. ORLICK, Terry. Libres para cooperar, libres para crear. Barcelona: Paidotribo, 1990. PINTO, Abuêndia P. P.; BARRETO FILHO, Ricardo R. O agir geral, o agir de linguagem e a sequência didática no contexto de ensino/aprendizagem do gênero notícia. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDO DOS GÊNEROS TEXTUAIS, 6, 2011, Natal. Anais do VI SIGET. Natal, RN: Editora da UFRN, 2011. v. 1. p. 1-12. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2016. PONZIO, Augusto. A concepção bakhtiniana do ato – como dar um passo. In: BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. p. 9-38. RIBEIRO, José Carlos; FALCÃO, Thiago. Mundos virtuais e identidade social: processos de formação e mediação através da lógica do jogo. Logos, n. 30, Ano 16, p. 84-96, 2009. Disponível em: http://www.e- Knoll, G. F. O jogo como agir de linguagem: da ludicidade à construção de 92 valores sociais. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 77-92. publicacoes.uerj.br/index.php/logos/article/view/368/324. Acesso em: 13 jan. 2017. SANMARTÍN, Melchior Gutiérrez. Aprendizagem de valores sociais através do jogo. In: MURCIA, Juan A. M. e col. Aprendizagem através do jogo. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 45-58. SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p. 11-36. STERN, Daniel. La primerarelación madre-hijo. Madrid: Morata, 1977. TEZANNI, Thaís C. R. O jogo e os processos de aprendizagem e desenvolvimento: aspectos cognitivos e afetivos. Educação em Revista, Marília, v.7, n.1/2, p. 1-16, 2006. Disponível em: < http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/educacaoemrevista/articl e/viewFile/603/486>. Acesso em: 13 jan. 2017. VOLOCHÍNOV, Valentin N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. VOSGERAU, Dilmeire S.; ROMANOWVSKI, Joana P. Estudos de revisão: implicações conceituais e metodológicas. Diálogo Educ., Curitiba, v. 14, n. 41, p. 165-189, jan.-abr./2014. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/dialogo-12623.pdf. Acesso em: 02 mai 2017. VYGOTSKY, Lev. S. A formação social da mente. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

Recebido em 10 de fevereiro de 2017. Aceito em 30 de março de 2017.