PAPIA

Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares Editores Márcia Santos D. de Oliveira (Univ. de São Paulo, Brasil) Ana Lívia dos Santos Agostinho (UFSC, Brasil) Conselho Editorial Alan Baxter (Univ. Fed. da Bahia, Brasil) Alain Kihm (Université de Paris 7/CNRS, France) Angela Bartens (Univ. of Helsinki, Finland) Armin Schwegler (Univ. of California, Irvine, USA) Dante Lucchesi (Univ. Federal da Bahia, Brasil) Gabriel Antunes de Araujo (Univ. de São Paulo, Brasil) Hildo Honório do Couto (Universidade de Brasília, Brasil) Isabella Mozzillo (Univ. Federal de Pelotas, Brasil) J. Clancy Clements (Indiana Univ. Bloomington, USA) Jean-Louis Rougé (Univ. d’Orléans, France) John M. Lipski (The Pennsylvania State Univ., USA) Klaus Zimmermann (Univ. Bremen, Deutschland) M. Chérif Mbodj (Univ. Cheikh Anta Diop, Senegal) Marta Dijkhoff (Instituto Lingwistiko Antiano, Curaçao) Mathias Perl (Univ. Mainz, Deutschland) Nicholas Faraclas (Univ. de Puerto Rico, Puerto Rico) Philippe Maurer (Univ. of Zurich, Swiss) Pierre Guisan (Univ. Federal do Rio de Janeiro, Brasil) Tjerk Hagemeijer (Univ. de Lisboa, Portugal) e-ISSN 2316-2767

PAPIA

Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares

Volume 25(1), 2015

revistas.fflch.usp.br/papia [email protected] Copyright © 2015 dos autores e de PAPIA. A revista PAPIA é indexada nas seguintes bases: LATINDEX (http://www.latindex.unam.mx) DOAJ (http://www.doaj.org) Webqualis capes: A1

Associação Brasileira de Estudos Crioulos e Similares (abecs) Diretoria 2015-2017 Silvana Araujo (uefs) Márcia Santos Duarte de Oliveira (usp) Ana Lívia dos Santos Agostinho (ufsc) abecsnet.wordpress.com Universidade de São Paulo Reitor: Marco Antonio Zago Vice-Reitor: Vahan Agopyan Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretor: Sérgio França Adorno de Abreu Vice-Diretor: João Roberto Gomes de Faria Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Chefe: Marli Quadros Leite Vice-Chefe: Paulo Martins Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa Coordenadora: Ieda Maria Alves Vice-coordenador: Paulo Segundo Serviço de Editoração e Distribuição Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo

Coordenação Editorial e Capa Maria Helena G. Rodrigues - mtb n. 28.480

Projeto Gráfico e Diagramação Bruno Oliveira

Revisão dos autores Table of Contents / Sumário

A nasalidade vocálica em santome e lung’Ie Nasality in Santome and Lung’ie ...... 7 Amanda Macedo Balduino / et al.

Questionando a regularidade da formação das preposições: comentário sobre acidentes e contatos linguísticos Questioning the regularity of prepositional formation: remarks about accidents and linguistic contacts ...... 27 Pedro Perini-Santos

Línguas indígenas em contato ...... 41

Apresentação ...... 41

The intonational patterns of Yes-No questions in the Amazonian Spanish of Shipibo-Konibo speakers Padrões entoacionais das perguntas sim-não no espanhol amazônico do povo Shipibo-Konibo ...... 47 Jose Elias-Ulloa

Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 77 Beatriz Christino

O português étnico dos povos Timbira’s ethnic Portuguese ...... 103 Rosane de Sá Amado

A variedade étnica Português Xerente Akw˜e:subsídios para a educação escolar indígena Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety: contributions to indigenous school education ...... 121 Silvia L. B. Braggio

PAPIA, São Paulo, 25(1), p. 7-25, Jan/Jun 2015.

A nasalidade vocálica em santome e lung’Ie Nasality in Santome and Lung’ie

Amanda Macedo Balduino Universidade de São Paulo, Brasil [email protected]

Ana Lívia dos Santos Agostinho Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil [email protected]

Gabriel Antunes de Araujo Universidade de São Paulo, cnpq, Brasil [email protected]

Alfredo Christofoletti Silveira Universidade de São Paulo, Brasil [email protected]

Abstract: Santome and Lung’ie are Creole languages from São Tomé e Príncipe. These languages share some features with Portuguese, the lexifier language, and with their substrate languages (from the Niger Delta and from Congo-Angola, a Bantu region). They also have unique characteristics. Based on Experimental Phonology (Browman & Goldstein 1989; Ohala 1995), this study describes the nasality of Santome and Lung’ie, proposing an analysis for this phenomenon. Thus, from a corpus in which lexical items with the target structure were inserted into vehicle-phrases, opposing minimal and analog pairs, the duration from vocalic segments with the [+nasal] feature and from their oral vowels correspondents were extracted. The analysis showed a longer average duration (17%) of nasalized vowels compared to oral vowels. This consistent vocalic duration, both in Santome

e-ISSN 2316-2767 8 Amanda Macedo Balduino / et al.

and Lung’ie, enables us to conclude that the vocalic nasality phenomenon in these languages is biphonemic and is related to Portuguese (Wetzels & Moraes 1992).

Keywords: Santome; Lung’ie; Nasality.

Resumo: O santome (ST) e o lung’Ie (LI) são línguas crioulas de base portuguesa da República de São Tomé e Príncipe. Ambas compartilham traços com o português, língua lexificadora, com as línguas de seus substratos (línguas do Delta do Níger e da região bantu do Congo-Angola) e, ainda, demonstram características únicas. Baseados em métodos experimentais com ênfase na Fonologia de Laboratório (Browman & Goldstein 1989; Ohala 1995), o objetivo desse estudo é descrever e propor uma análise fonológica para a nasalidade no santome e no lung’Ie. Para tanto, adotou-se um corpus no qual os itens lexicais com a estrutura-alvo (oposição vogal oral-nasal) foram inseridos em frases-veículo e analisados. Por meio da comparação entre pares mínimos e análogos, extraíram-se as médias da duração dos segmentos vocálicos com o traço [+nasal] e seus correspondentes orais. A análise dos dados demonstrou um alongamento médio de 17% das vogais [+nasais] em relação aos segmentos orais correspondentes. O consistente alongamento vocálico observado, tanto no santome quanto no lung’Ie, permite-nos concluir que o fenômeno da nasalidade vocálica nessas línguas é bifonêmico e apresenta características próximas ao português (cf. Wetzels & Moraes 1992).

Palavras-chave: Santome; Lung’ie; Nasalidade.

1 Introdução

O objetivo deste texto é discutir o estatuto da nasalidade no santome e no lung’Ie, línguas autóctones da República Democrática de São Tomé e Príncipe (stp). Para isso, será descrita, em um primeiro momento, a nasalidade de ambas as línguas, propondo, com base na extração duracional dos segmentos vocálicos [+nasais] e de suas correspondentes orais, uma análise para o fenômeno. Posteriormente, serão investigadas as semelhanças da nasalidade entre essas línguas e o português (Wetzels & Moraes 1992). São Tomé e Príncipe é uma pequena nação formada por um conjunto de ilhas e localiza-se no Golfo da Guiné, Costa Oeste da África. Atualmente, o

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A nasalidade vocálica em santome e lung’Ie Nasality in Santome and Lung’ie 9 país conta com uma população de cerca de 187 mil pessoas (ine sem data). São faladas no arquipélago três línguas crioulas autóctones de base lexical portuguesa (santome, lung’Ie e angolar) e uma quarta língua transplantada para o país no século XX, o kabuverdianu. O português é a língua oficial do arquipélago desde 1975. O cenário multilíngue de stp decorre de sua formação histórica e social. Colonizado na última década do século XV, com a chegada dos navegadores portugueses, stp se desenvolveu a partir de atividades comerciais baseadas no tráfico negreiro e na exploração da mão-de-obra escrava (Ferraz 1979: 8-11; Hagemeijer 2009: 2). A fim de manter essas práticas econômicas, inúmeros escravos eram resgatados de diversas regiões da África e levados às ilhas para serem comercializados nos entrepostos ou para fixar-se como mão-de-obra escrava na agricultura de sistema plantation. Como consequência, a pluralidade linguística, decorrente de tal estruturação social, propiciou o contexto ideal para o surgimento de pidgins e crioulos. O santome e o lung’Ie nascem, portanto, como resultado deste contato interlinguístico imposto pelo processo colonial. Em virtude de sua gênese baseada em um contexto social específico, onde há, de um lado, a língua do colonizador, isto é, o português do século XV agindo como superestrato e, de outro, dezenas de línguas africanas, principalmente do Delta do Níger e da região bantu do Congo-Angola, constituindo o substrato, as línguas autóctones em questão compartilham traços com essas línguas e podem ainda apresentar aspectos estruturais únicos. Assim sendo, a nasalidade no santome e no lung’Ie poderia estar associada a características compartilhadas com o português, com as línguas de substrato ou, até mesmo, ser fruto de um desenvolvimento independente. Na medida em que a comparação com as línguas de substrato seria inviável, posto que essas foram muitas e algumas já estão extintas ou são totalmente desconhecidas, a investigação realizada neste trabalho se dará em relação ao português, posto que os dados sugerem uma semelhança que não pode ser atribuída ao acaso. Este trabalho está organizado em cinco seções. Na seção 2, são estabelecidas informações gerais acerca das línguas estudadas. Após isso, na seção 3 e 4, expomos as principais premissas teóricas suscitadas acerca da nasalidade na língua portuguesa e, por fim, na seção 5 são demonstrados os métodos utilizados na investigação do fenômeno e, tendo em vista os resultados, propomos uma análise aos dados.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 10 Amanda Macedo Balduino / et al. 2 Santome e Lung’ie

O santome e o lung’Ie são línguas crioulas de stp e sua emergência remonta à colonização europeia em África. O santome é a língua crioula de maior prestígio, sendo comumente adotada nas produções culturais e artísticas locais, como é o caso das canções populares (Bandeira em preparação). Além disso, o santome também é a língua autóctone mais falada, sobretudo na ilha de S. Tomé. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (ine sem data) cerca de 33,6% da população é falante desta língua. Por outro lado, apenas 2,4% da população total do arquipélago fala o lung’Ie, sendo esse percentual concentrado, majoritariamente, na ilha do Príncipe (ine sem data). Sendo escasso o número de falantes desta língua, e, considerando fatores como a aquisição do lung’Ie como língua materna por crianças, alguns autores já apontam para o fato de a língua da llha do Príncipe estar ameaçada de extinção (Günther 1973, Maurer 2009, Agostinho 2014, Bandeira em preparação). Por fim, compondo o grupo de línguas crioulas de stp, há ainda o angolar e o kaboverdianu, entre outras línguas, usadas por 12,8% da população (ine sem data). Em termos de política linguística, tanto o santome quanto o lung’Ie apresentam o status de língua nacional de stp, porém, não são consideradas línguas oficiais. De fato, avaliadas pelos próprios falantes como menos prestigiosas frente ao português (língua da mídia e da educação), o santome e o lung’Ie estão caindo em desuso ao passo que o número de falantes do português como primeira língua aumenta (cf. ine sem data, Christofoletti 2013). No que diz respeito ao fenômeno da nasalidade no santome, Ferraz (1979: 19-20) afirma que há, na língua, sete vogais orais ( /i, u, e,E, o, O, a/) e cinco nasais ( /˜ı,˜u,˜e, õ, ã/), pois não encontrou oposição entre as vogais médias baixas. No entanto, todos os pares apresentados são de origem portuguesa e a eles podem ser atribuídos uma consoante nasal na coda. Sobre o lung’Ie, Günther (1973) e Maurer (2009: 8) descrevem o sistema vocálico como tendo nasais propriamente ditas também, ou seja, para esses autores as vogais nasais são fonêmicas. Günther (1973) apresenta cinco vogais nasais /˜ı,˜u,˜e,õ, ã/, em que [˜e] e [õ] estão em variação livre com [˜E] e [˜O] e Maurer (2009) argumenta que há sete vogais nasais /˜ı,˜u,˜e, ˜E, õ, ˜O, ã/, embora não tenha encontrado pares mínimos opondo /˜E/ e /˜e/. Agostinho (2014), por sua vez, aponta que não há em lung’Ie pares mínimos que oponham um /ã/ e um /aN/ (cf. Câmara Jr. 1977), argumento que pode ser estendido à oposição vogais orais e nasais. Assim, para Agostinho (2014), a nasalidade vocálica seria decorrente de uma consoante nasal na coda (isto é, uma vogal nasal é de fato uma vogal nasalizada seguida pela nasalidade de uma consoante nasal na mesma sílaba) ou no onset da sílaba seguinte (vogal nasalizada + consoante nasal em sílabas diferentes), ou seja, não haveria nasalidade fonêmica nas vogais do lung’Ie.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A nasalidade vocálica em santome e lung’Ie Nasality in Santome and Lung’ie 11 3 A nasalidade vocálica na língua portuguesa

A fonte da nasalidade vocálica, na língua portuguesa, tem sido abordada sob os mais diversos pontos de vista na literatura, sendo alvo de estudos fonéticos e fonológicos. Entre as diferentes perpectivas analíticas em torno do tema, duas podem ser destacadas por seu alcance explanatório, bem como pela difusão e adesão entre os estudiosos, são elas: hipóteses monofonêmica e bifonêmica. A hipótese monofonêmica, defendida por Leite (1974), concebe a vogal como intrinsecamente nasal, representada, portanto, na camada segmental, sem nenhum espraiamento de traços. De acordo com esta visão, os fones vocálicos com o traço [+nasal] integrariam o inventário fonológico da língua portuguesa como vogais nasais propriamente ditas. Apresentando uma interpretação distinta para o fenômeno, a hipótese bifonêmica (Mattoso Câmara Jr. 1953, 1970; Cagliari 1977) não admite vogais nasais inerentes ao quadro fonológico do português. Sendo assim, o segmento vocálico com nasalidade é compreendido como resultado de um espraiamento do traço de nasalidade da consoante nasal na coda. Por isso, a vogal com o traço [+nasal] seria uma vogal nasalizada, proveniente da sequência segmental vC[+nasal]{. , #}, onde v representa a vogal, C a consoante, . (ponto) representa a fronteira entre sílabas e # o final de palavra. Nesse caso, o traço [+nasal], como consequência coarticulatória, é espraiado para o som vocálico e a consoante é elidida. A nasalidade na língua portuguesa é também investigada a partir da perceptível diferença duracional entre as vogais nasais, nasalizadas e orais. Esse fato foi considerado por um estudo experimental de Wetzels & Moraes (1992), em que os autores, concebendo apenas vogais de abertura máxima, ou seja, [a] e [ã], justificam as divergências duracionais por três principais vias: fonológica, articulatória e coarticulatória. Em termos fonológicos, a vogal nasal possui uma duração equivalente à vogal oral, entretanto, a vogal nasalizada demonstra, em sua composição, o componente nasal na superfície e, por isso, tem uma duração superior às demais. Tal perspectiva aproxima-se, sobretudo, da hipótese bifonêmica da nasalidade, na qual assume-se que a vogal nasalizada equivale à duração de uma vogal oral (v) mais a duração de uma consoante nasal (n) apagada da coda, resultando, portanto, em uma estrutura profunda bifônica vogal + nasalidade (vn). A perspectiva articulatória, de outro modo, trata tanto a vogal nasal, quanto a vogal nasalizada, como mais longas em relação à vogal oral. Tal alongamento duracional justifica-se, conforme os autores, por meios articulatórios, já que os sons não orais exigem o abaixamento do palato para o escoamento do ar pela cavidade nasal, demandando, assim, um gesto articulatório duplo (Wetzels & Moraes 1992). Por fim, a explicação

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 12 Amanda Macedo Balduino / et al. coarticulatória abarca a articulação total da palavra em sua explanação. Isto posto, a vogal ‘nasal’ e a vogal oral são breves quando há a concordância do traço [+nasal] entre o som vocálico e a consoante seguinte, como no português manhã ["m˜5.ñ˜5] e mata ["ma.t5], onde a vogal nasal encontra-se cercada de elementos nasais, no caso [m] e [ñ], e a vogal oral de elementos orais, [m] e [t], respectivamente. Por outro lado, caso esse traço não coincida com o segmento consonantal subsequente, os sons vocálicos são longos. Essa é a situação de banco ["b˜5.ku] e mina ["mi.n5], ambos do português, em que há, no primeiro exemplo, a presença de uma vogal nasal [˜5] circundada por consoantes orais [b] e [k] e, no segundo, um segmento vocálico oral [i] precedido por [m] e seguido por [n]. Considerando as diversas hipóteses, procuramos responder, na seção reservada à análise, qual entendimento acerca da nasalidade vocálica seria o mais adequado para se tratar do fenômeno no santome e no lung’Ie.

4 Premissas teóricas

Demonstradas, na seção anterior, as principais hipóteses que norteiam os estudos da nasalidade vocálica na língua portuguesa, esta seção é dedicada à exposição dos pressupostos teóricos adotados para a coleta e análise dos dados, abarcando então, a fonologia de laboratório (Ohala 1995), a fonologia cv (Clements & Keyser 1983) e, relacionada a esta, a geometria de traços (Clements 1996).

4.1 Fonologia de Laboratório

A realização dos testes, em conjunto com a descrição dos resultados obtidos a partir do material recolhido, contemplou a abordagem teórica proposta pela Fonologia de Laboratório (Ohala 1995; Browman & Goldstein 1989). Agregando técnicas experimentais de análise aos estudos linguísticos, mais especificadamente, à fonologia, a fonologia de laboratório propõe uma investigação científica com caráter empírico. No que tange à nasalidade vocálica das línguas autóctones de stp, foram aplicados métodos experimentais e quantitativos ao corpus. Partindo de um material gravado, no qual as estruturas-alvo do estudo, ou seja, as vogais [+nasais] e as vogais orais estavam inseridas, a duração de cada segmento vocálico foi medida e, após isso, empregaram-se métodos estatísticos, como a análise de medianas e percentuais.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A nasalidade vocálica em santome e lung’Ie Nasality in Santome and Lung’ie 13 4.2 Fonologia cv

A fonologia cv (Clements & Keyser 1988) em conjunto com a geometria de traços (Clements 1996) possibilitam a investigação da nasalidade vocálica posta em relação à sua estrutura silábica. De acordo com estas propostas, a estrutura silábica, bem como os traços fonológicos, são analisados dentro de uma estrutura arbórea hierárquica, composta por camadas ou tiers. Estas camadas são capazes de interagir entre si, ou comportar-se de forma isolada. No que diz respeito às sílabas, a estrutura arbórea é composta por três camadas distintas: a camada silábica, a camada cv e a camada segmental. Se por um lado a camada silábica é a estrutura hierárquica mais alta, e corresponde à sílaba de fato, por outro, a camada segmental constitui o seu oposto, sendo por isso, a camada mais elementar. É justamente na camada segmental onde estão os segmentos fonético-fonológicos, entre eles, os fones vocálicos nasais e orais. Comportando-se como um intermediário entre a camada silábica e a camada segmental, a camada cv firma-se como o esqueleto silábico. Nesta posição, a camada cv é responsável por definir a unidade temporal silábica, possibilitando, então, apagamentos sonoros na camada segmental, sem que isso implique, obrigatoriamente, perda no timing da sílaba. Essa capacidade de conservação temporal torna a teoria essencial para o estudo aqui proposto. Sendo assim, é possível analisar a nasalidade vocálica como resultado de um processo de apagamento da consoante nasal em coda, fixada na camada segmental, e um posterior espraiamento do traço [+nasal], na camada cv, para a vogal antecedente. Wetzels & Moraes (1992), sob esse ponto de vista, atribuem a maior duração dos segmentos nasalizados ao rearranjo no timing silábico, em que, decorrente do apagamento segmental, há um alongamento compensatório de modo a atingir a manutenção temporal dentro da camada cv. Assumindo as vogais com o traço [+nasal] como nasais propriamente ditas, a estrutura arbórea é mantida intacta e não há relação de espraiamento, mas uma interação direta entre camada segmental e camada cv. Ao considerar as camadas constituintes da sílaba, a fonologia cv (Clements & Keyser 1983) e a geometria de traços (Clements 1996) possibilitam o estudo mais amplo do fenômeno da nasalidade, e, portanto, oferecem a este estudo um aparato teórico capaz de respaldar a análise proposta a partir da mensuração duracional dos segmentos vocálicos e consonantais do santome e do lung’Ie.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 14 Amanda Macedo Balduino / et al. 5 Metodologia e Procedimentos

Para realizar o presente estudo, foi constituído um corpus de 34 pares mínimos ou análogos do santome e do lung’Ie1. Os dados foram coletados por meio da gravação de itens lexicais inseridos em contextos de frases-veículo como E fla X dôsu vê ‘Ele fala X duas vezes’ e Ê faa X dôsu vêsê ‘Ele fala X duas vezes’, onde X era substituído pela palavra que continha a estrutura-alvo. As palavras do corpus de origem portuguesa apresentam nasalidade invariável na posição de coda, como é o caso de blanku ["bl˜5.ku] ‘branco’, para o santome, e baanku ["b˜5:.ku] ‘branco’ para o lung’Ie, ou são de origem não-portuguesa e também exibem nasalidade como na palavra ndombo [nd˜O."bO] ‘folhas tenras da palmeira’. Invariavelmente, os itens lexicais apresentavam a oposição entre o fone vocálico oral e seu correspondente nasal, doravante v e v˜, nas sílabas pré-tônica e tônica. Sendo assim, palavras como fudu ["fu.du] ‘limpo’ foram contrapostas a termos como fundo ["f˜u.du] ‘profundo’ de modo a medirmos a duração de [u] e de [˜u] e oferecermos uma análise comparativa.

1Lista de palavras do santome: blaku ["bla.ku] ‘buraco’, blanku ["bl˜5.ku] ‘branco’; fita ["fi.t5] ‘fita’, finta ["f˜ı.t5] ‘finta’; fudu ["fu.du] ‘limpo’, fundu ["f˜u.du]‘profundo’; kadja [ka."dZa] ‘cadeia’, kandja [k˜5."dZa] ‘candeeiro’; kasô [ka."so] ‘cão’, kason [ka."sõ] ‘caixão’; kasu ["ka.su] ‘avarento’, kansu ["k˜5.su] ‘asma’; kloklo [klO."klO] ‘raspar’, klonko [kl˜O."kO] ‘pescoço’; lodoma [lO."dO.m5] ‘garrafa’, lôdondô [lo."dõ.do] ‘redondo’; loda ["lO.d5] ‘roda’, londa ["l˜O.d5] ‘ronda’; logo ["lO.gO] ‘logo’, longo ["l˜O.gO] ‘longo’; ma dja [ma."dZa] ‘meio-dia’, mandja [m˜5."dZa] ‘madrinha’; oso [O."sO] ‘osso’, onso [˜O."sO] ‘enxó’; oze [˜O."z˜E] ‘hoje’, onze ["˜O. zE] ‘onze’; mama ["ma.m5] ou ["m˜5.m5] ‘seio’, mana ["ma.n5] ou ["m˜5.n5] ‘irmã’; alan [a."l˜5] ‘aranha’, alê [a."le] ‘rei; kilambu [ki.l˜5."bu] ‘tanga tradicional’; limpu ["l˜ı.pu]‘limpo’; mon ["m˜O] ‘mão’; ndombo [nd˜O."bO] ‘folhas tenras da palmeira; nhonho [ñ˜O."ñO] ‘caracol’; neni ["nE.ni] ‘anel’; son ["sõ] ‘chão. Lista de palavras do lung’Ie: ubaaku [u."ba:.ku] ‘buraco’, baanku ["b˜5:.ku] ‘branco’; fita ["fi.t5] ‘fita’; finta ["f˜ı.t5] ‘finta’; fudu ["fu.du] ‘limpo’, fundu ["f˜u.du] ‘profundo’; kasu ["ka.su] ‘avarento’, kansu ["k˜5.su] ‘asma’; kasa [ka."sa] ‘caçar’, kasan [ka."s˜5] ‘caixão’; kansa [k˜5."sa] ‘descansar’, kasan [ka."s˜5] ‘caixão’; kansa [k˜5."sa] ‘descansar’; kadya [ka."dja] ‘cadeia’, kandya [k˜5."dja] ‘candeeiro’; koko [kO."kO] ‘pomo de Adão’, konkon [kõ."kõ] ‘konkon, espécie de peixe’; logu ["lO.gu] ‘logo’, longu ["lõ.gu] ‘longo’; ma dya [ma."dZa] ‘dia ruim’, mandya [mã."dja] ‘madrinha’; mama ["ma.m5] ou ["m˜5.m5] ‘mãe, seio’, mana ["ma.n5] ou ["m˜5.n5] ‘irmã’; osu ["O.su] ‘osso’, inson [˜ı."sõ] ‘enxada’, ôzê [o."ze] ‘hoje’, onze ["˜O.zE] ‘onze’; roda ["rO.d5] ‘roda’, ronda ["rõ.d5] ‘ronda’; rodoma [rO."dO.m5] ‘garrafa’, rodondo [rO."d˜O.dO] ‘redondo’; kilambu [ki.l˜5."bu] ‘tanga tradicional’; ndombo [nd˜O."bO] ‘folhas tenras da palmeira’; rezan [rE."z˜5] ‘razão’; uman [u."m˜5] ‘mão’.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A nasalidade vocálica em santome e lung’Ie Nasality in Santome and Lung’ie 15

Os conjuntos de pares mínimos foram gravados com três informantes para cada língua. Todos os sujeitos repetiram três vezes cada rodada de gravação, havendo o descarte completo da primeira rodada. Como instrumento de trabalho adotou-se o programa Praat e, através de tal ferramenta, extraiu-se a duração em milissegundos de v˜ e v. Além disso, as mensurações realizadas pautaram-se numa série de critérios fonológicos segmentais e suprassegmentais, cuja articulação ou coarticulação poderia afetar, de alguma forma, a análise do estatuto da nasalidade vocálica. Tendo em pauta fatores suprassegmentais, tais como o contexto acentual, os pares mínimos e análogos cujo acento lexical era tônico (como em fundu ["f˜u.du] ‘profundo’ e fudu ["fu.du] ‘limpo’) foram separados daqueles que, por outro lado, ocupavam a posição pré-tônica (ST: kandja [k˜5."dZ5] LI: kandya [k˜5."dj5] ‘candeeiro’ e ST: kadja [ka."dZ5] e LI: kadya [ka."dj5]‘cadeia’). Segundo Ferreira Neto (2007), o acento correlaciona-se, sobretudo, com a duração, sendo a sílaba proeminente tendencialmente mais longa em relação às demais. Cristófaro Silva (2010) reforça tal ponto de vista ao postular que uma sílaba tônica é ‘[...] produzida com um pulso torácico reforçado’ e, por isso, a vogal que recebe o acento é ‘[...] percebida como tendo uma duração mais longa’ (Cristófaro Silva 2010: 77). Conhecendo a provável interferência na duração do segmento acentuado, a divisão dos dados por contexto de tonicidade revela-se importante na medida em que evita possíveis distorções nos resultados alcançados. No que diz respeito aos aspectos segmentais, sobretudo em relação aos possíveis movimentos coarticulatórios dentro do domínio da palavra fonológica, observou-se, também, o Voice Onset Time (vot) das consoantes oclusivas precedentes a v e v˜. Correspondendo ao período temporal entre a realização da oclusiva e a vibração das cordas vocais do segmento vocálico seguinte à consoante, o vot é um fenômeno sutil capaz de influenciar a duração vocálica das estruturas-alvo. De fato, é muito rápido o intervalo temporal entre a explosão caracterizadora da oclusiva e o início do vozeamento vocálico e, por isso, a unidade temporal correspondente ao vot pode ser atribuída, durante as extrações duracionais, às vogais antecedentes. A fim de evitar distorções como estas, o vot das oclusivas precedentes às vogais orais e às vogais nasais foi também verificado. Nesta análise, considerou-se distinções de vozeamento, e dessa forma, o vot das oclusivas sonoras foi examinado separadamente do vot das oclusivas surdas. A diferenciação de tal traço é fundamental, na medida em que os valores do vot são alterados de acordo com seu vozeamento (cf. Chao & Ladefoged 1999). Ainda segundo Chao & Ladefoged (1999), enquanto as oclusivas surdas apresentam um intervalo curto ou simultâneo entre a barra de explosão e o início da vogal, as oclusivas sonoras podem ser vozeadas antes

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 16 Amanda Macedo Balduino / et al. da explosão caracterizadora das plosivas, e, em decorrência disso, demonstrar um vot negativo ou menor em relação às surdas. Ainda tratando de questões segmentais e coarticulatórias, foi contemplada a sonoridade das consoantes precedentes aos fones vocálicos estudados, assim como para o vot. Sendo o vozeamento capaz de afetar a duração vocálica, tornando-a mais longa (cf. Wetzels & Moraes 1992), neste estudo foram contrapostos os pares mínimos cujo segmento-alvo possuía uma consoante oclusiva antecedente [-vozeada] com aqueles pares em que esta consoante era [+vozeada]. Sendo assim, pares como kansu ["k˜5.su] ‘asma’ e kasu ["ka.su] ‘avarento’, em que temos a oclusiva surda [k] antecedendo a vogal oral e a vogal nasal, foram separados de pares em que a oclusiva era sonora, como exemplificado, por [d] em rodoma [rO."dO.m5] ‘garrafa’. Em seguida foi examinada, mais atentamente, a qualidade da consoante subsequente à estrutura-alvo, aqui denominada c2. Posteriormente, em posse dos valores duracionais das vogais e das consoantes, observamos não só o comportamento individual destes segmentos, mas também a relação de ambos os fones dentro de uma palavra, ou seja, considerando a sequência v.c2 e v˜.c2, onde o ponto representa a divisão silábica. Assumindo que a nasalidade em final de palavra esteja livre de movimentos coarticulatórios capazes de torná-la mais longa por meio de uma assimilação regressiva, foram contrapostos itens lexicais como kansu ["k˜5.su] ‘asma’ (que não apresenta nasalidade no final da palavra) e kason [ka."s˜o] ‘caixão’ (que apresenta nasalidade no final da palavra). Todavia, esse critério não constituiu, neste estudo, parâmetro avaliativo suficiente acerca da nasalidade vocálica do lung’Ie e do santome. Considerando a extração dos itens lexicais a partir de frases-veículos, nota-se que a nasalidade final recortada para a medição segmental, não estava em final absoluto. A nasalidade final, seguida pela palavra dôsu ‘duas’ em ambas as línguas abordadas, possivelmente, assimilou o traço de [d], posto que no momento da fala não há pausas temporais entre um recorte lexical e o próximo. Demarcados os procedimentos de análise e contemplando as línguas separadamente, foram medidos, em milissegundos, todos os segmentos vocálicos orais e nasais, bem como as consoantes apontadas como parâmetro avaliativo. Feito isso, primeiro, foram estabelecidas a média percentual e duracional para cada informante, em seguida, para cada critério e, por fim, a média geral, considerando todos os contextos segmentais e suprassegmentais. A opção por trabalhar com médias, nesse caso, é essencial, já que tal unidade, além de oferecer um padrão representativo para o fenômeno, é capaz de neutralizar diferenças peculiares a cada informante e ao momento de fala.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A nasalidade vocálica em santome e lung’Ie Nasality in Santome and Lung’ie 17 6 O estatuto da nasalidade nas línguas crioulas de STP

Explicitados os procedimentos e a metodologia adotada, esta seção tem por objetivo detalhar a análise realizada e demonstrar os resultados obtidos através dos seguintes passos: (i) medição da duração dos segmentos-alvo; (ii) obtenção da média geral de cada informante para cada um dos segmentos em destaque (v e v˜); (iii) diferença em números percentuais entre o fone nasal/nasalizado e o oral; (iv) média geral da duração dos elementos vocálicos orais e com nasalidade nas posições-alvo nas sílabas tônicas e pré-tôncias das línguas estudadas. Avaliando os dados a partir desses quatro itens e, considerando os contextos referentes à tonicidade, alcançamos um resultado similar em ambas as línguas, nas quais se observou a maior duração média em milissegundos da vogal nasal/nasalizada comparada à sua contraparte oral, conforme descrito pelas médias da duração das tônicas (tabela 1). Assim, no que diz respeito ao contexto tônico, tanto no santome, quanto no lung’Ie, a vogal com o traço [+nasal] é mais longa em relação à vogal oral. Na tabela 1, ao contrapormos v˜ e v, notamos, no santome, um alongamento duracional médio de 15% para v˜, enquanto que no lung’Ie este valor cresce para 23%. A média geral, por sua vez, expõe uma diferença de 19%. Isso equivale a dizer que, no santome e no lung’Ie, para um segmento oral de 100 ms o seu correspondente nasal terá cerca de 119 ms em posição tônica.

Língua "v˜ "v Diferença ms ms % Santome 205 174 15 Lung’ie 161 123 23 Média 183 149 19

Tab. 1: Duração média geral da vogal tônica no santome e no lung’Ie (v˜ equivale à vogal [+nasal] e v à vogal oral).

Neste estudo optamos por considerar, além dos resultados individuais, a média geral conjunta obtida pelas médias do santome e do lung’Ie. O cuidado em lidar com os valores medianos de ambas as línguas autóctones, como previsto por (iv), corresponde a uma abordagem que considera a origem comum das mesmas. Sendo a língua lexificadora o português, a estrutura do santome e do lung’Ie pode revelar um padrão comum que nos remeta ao superstrato, ou até mesmo, ao protocrioulo falado em stp antes da especiação nas línguas autóctones, alvo deste estudo (Hagemeijer 2009; Bandeira em preparação). Tendo por base analítica esta perspectiva geral dos valores medianos do santome e do lung’Ie, e, uma vez descrito o contexto tônico, podemos considerar

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Língua v˜ v Diferença ms ms % Santome 170 151 11 Lung’ie 158 120 24 Média 164 136 17

Tab. 2: Duração média geral da vogal pré-tônica no santome e no lung’Ie (v˜ equivale à vogal [+nasal] e v à vogal oral).

as pré-tônicas (tabela 2), nas quais a diferença de duração média foi de 17%, ligeiramente inferior à posição tônica, porém, estatisticamente irrelevante. Prosseguindo com os testes, porém, agora inserindo-se em uma perspectiva segmental, o fenômeno de nasalidade vocálica também foi investigado tendo como critério avaliativo o Voice Onset Time das oclusivas precedentes. Focados no intervalo temporal entre a explosão da oclusiva e o início da vogal caracterizado, dentre outras coisas, pelo vozeamento desta, foram medidos o vot das consoantes oclusivas antecedentes a v˜ e v. Nesse processo, respeitou-se não só o critério de tonicidade, mas também o de vozeamento, e, sendo assim, os pares mínimos e análogos foram separados em três grupos distintos: (a) vot de surdas e tônicas; (b) vot de surdas e pré-tônicas e (c) vot de sonoras e tônicas. Todos os resultados obtidos são expostos de modo resumido na tabela 3, pela qual chegamos a um comportamento geral deste critério avaliativo, posto que os resultados individuais de cada item não foram diferentes da média geral apresentada na tabela 3.

Língua v˜ v Diferença ms ms % Santome 17 19 10 Lung’ie 11 21 47 Média 14 20 30

Tab. 3: Duração média geral do vot (v˜ equivale à vogal [+nasal] e v à vogal oral).

Com efeito, o aumento duracional ocorre, sobretudo, antes dos segmentos vocálicos orais, por isso, não há nenhum alongamento de vot que influencie a maior duração das vogais nasais já atestada pelas tabelas anteriores. Ainda na tabela 3, o vot geral das oclusivas com as vogais orais é, em média, 30% maior em relação ao vot das consoantes precedente às vogais nasais. Com a finalidade de testar de forma empírica esta conclusão, investigou-se, outrossim,

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Língua v˜ vot v˜-vot v vot’ v-vot’ D1 D2 ms ms ms ms ms ms %% Santome 205 17 188 174 19 155 15 17 Lung’ie 161 11 150 123 21 102 23 32 Média 183 14 169 149 20 129 19 23

Tab. 4: Duração média do vot, em que (v˜-vot)-(v-vot). v˜ equivale à média do som vocálico nasal e v à média do oral. O valor do vot corresponde à média do vot extraído antes das vogais nasais e vot’, por sua vez, ao mesmo valor obtido antes das vogais orais.

o vot em relação aos segmentos vocálicos orais e nasais alvos deste estudo. Portanto, contemplou-se a duração vocálica quando subtraído o valor do vot obtido pelas análises anteriores (ver tabela 4). Mesmo subtraindo o valor mediano alcançado nesta análise do vot do valor total das médias vocálicas já extraídas e analisadas nas tabelas 1 e 2, a maior duração de v˜ não somente é mantida, como também aumentada. Sem a extração do vot, a diferença percentual entre os sons vocálicos orais e nasais é posicionada em torno de 19% para tônicas e 17% para pré-tônicas, enquanto que, descontando o tempo equivalente ao vot, essa diferença cresce para 23%, abarcando os dois contextos. Ainda situados em aspectos segmentais, contudo, atentos às possíveis relações coarticulatórias dentro dos pares mínimos e análogos constituintes do corpus, investigou-se o comportamento duracional de v˜ e v em relação a sua consoante precedente. Para tanto, assim como no estudo do vot, os pares mínimos foram postos em relação ao traço [+/-vozeado] da consoante que antecedia a vogal, foco da análise. Embora, como ilustrado pelas tabelas 5 e 6, a diferença média percentual dos fones vocálicos antecedidos por consoantes surdas seja 10% maior em relação a estas estruturas precedidas por elementos sonoros, o padrão de alongamento vocálico dos segmentos v˜ ainda é mantido. Invariavelmente, a apuração, realizada a partir de todas as médias, aponta até o momento para o alongamento duracional da vogal [+nasal]. A tabela 7 apresenta dados comparativos para os diferentes resultados alcançados até agora para as duas línguas. Há a presença de um padrão de médias que se mantém entre 16% - 25% para os valores obtidos, indicando a média geral de 20%. Assim, estes resultados corroboram a hipótese bifonêmica, pois a principal premissa desta hipótese é a defesa de uma representação

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Língua v˜ v Diferença ms ms % Santome 211 163 23 Lung’ie 151 109 28 Média 181 136 26

Tab. 5: Duração média geral da vogal com consoante [-voz] precedente.

Língua v˜ v Diferença ms ms % Santome 216 195 10 Lung’ie 190 145 24 Média 203 170 16

Tab. 6: Duração média geral da vogal com consoante [+voz] precedente.

bifônica (v+n) na forma subjacente da palavra fonológica, ou seja, a presença de um fonema consonantal responsável por espraiar o traço [+nasal] para a vogal antecedente, conservando, assim, o seu timing no esqueleto silábico. Conforme a tabela 5, os sons vocálicos, quando dotados de nasalidade, são mais longos e duram cerca de 20% a mais do que os orais, revelando, portanto, a duração da vogal, mais a duração equivalente a um segmento não vocálico, neste caso o próprio traço espraiado [+nasal]. Visto sob essa perspectiva, o alongamento duracional de v˜ sugere uma extensão da camada temporal silábica em relação à camada segmental, favorecendo a explanação fonológica para a duração vocálica [+nasal] (Wetzels & Moraes 1992), bem como a hipótese bifonêmica da nasalidade do português (Mattoso Câmara Jr. 1953, 1970; Cagliari 1977).

v˜ v Diferença ms ms % Tônicas 183 149 19 Pretônicas 164 136 17 Tônicas [-voz] 181 136 25 Tônicas [+voz] 203 170 16 vot 169 129 22 Média 180 144 20

Tab. 7: Duração média do santome e do lung’Ie para todos os contextos analisados.

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Todavia, embora os resultados apontem para tal interpretação da nasalidade, antes de assumirmos qualquer fundamentação teórica acerca do fenômeno, resta-nos ainda considerar as consoantes que seguem os segmentos vocálicos investigados, isto é, (c2). As tabelas 8 e 9 expõem as médias gerais retiradas dos pares mínimos e análogos do santome e do lung’Ie, considerando, em seu resultado, tanto oclusivas surdas, quanto oclusivas sonoras.

Língua v˜ c2 v˜.c2 v c2 v.c2 D1 D2 ms ms ms ms ms ms %% Santome 205 74 279 174 77 251 10 4 Lung’ie 160 74 235 122 77 200 15 4 Média 183 74 257 148 77 226 12 4

Tab. 8: Duração média de (v˜.c2)-(v.c2) e c2 - c2 em posição tônica (D1 corresponde à diferença percentual de (v˜.c2)-(v.c2) e D2 à de c2 - c2.)

Os valores indicam que c2 pertencente à sequência de v é um pouco mais longa em relação à c2 da sequência v˜. Essa diferença não configura altos percentuais e, como explicitado pelas tabelas 8 e 9, no contexto tônico, ela retrata a distinção de 3 ms e, no contexto pretônico, de 5 ms. No entanto, mesmo tal diferença aparentando ser mínima, ela ainda é capaz de interferir na subtração entre (v˜.c2)-(v.c2). Avaliando a sequência com a vogal dotada do traço de nasalidade, constata-se que ela se mantém maior em relação à sequência oral, todavia, essa diferença diminui, pelo menos 7% para as tônicas (19% - 12%) e 11% para as pré-tônicas (17% - 6%). Consequentemente, do mesmo modo que ocorre no português (cf. Wetzels & Moraes 1992), há um alongamento tendencial de c2 quando esta é precedida por uma vogal oral.

Língua v˜ c2 v˜.c2 v c2 v.c2 D1 D2 ms ms ms ms ms ms %% Santome 170 71 242 151 76 227 6 7 Lung’ie 157 71 229 120 76 218 5 7 Média 164 71 236 136 76 223 6 7

Tab. 9: Duração média de (v˜.c2)-(v.c2) e c2 - c2 em posição pré-tônica (D1 corresponde à diferença percentual de (v˜.c2)-(v.c2) e D2 de c2 - c2.)

Assim como Wetzels & Moraes postulam para a língua portuguesa, os resultados, indicados nas tabelas 8 e 9 podem afetar a interpretação bifonêmica atribuída anteriormente aos segmentos vocálicos dotados de nasalidade nas línguas de stp. Dada a média percentual para o santome e o lung’Ie, em cada contexto de c2 - c2, em comparação às médias alcançadas de v˜ e v, é possível hipotetizar que o alongamento de v˜ decorreria da unidade temporal

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 22 Amanda Macedo Balduino / et al.

v˜ v Diferença ms ms % Tônicas 180 149 17 Pretônicas 159 136 14 Tônicas [-voz] 167 136 18 Tônicas [+voz] 190 170 11 vot 169 129 17 Média 173 144 17

Tab. 10: Duração média de v˜ e v em todas as posições estudadas. Os valores de v˜ foram obtidos pela subtração da sua duração e o valor que equivaleria à c2.O cálculo utilizado foi c2-c2=X, onde X é a diferença em milissegundos obtida, e v˜- X=Y, onde Y é o valor de v˜ quando subtraída a duração equivalente à c2. v˜ = Vogal [+nasal]; v= Vogal oral e c2= Consoante subsequente.

do segmento consonantal seguinte e não apenas do espraiamento do traço [+nasal] da consoante subjacente. A fim de comprovar se o alongamento de c2 da sequência oral é de fato contestador à hipótese bifonêmica, é preciso analisar a duração dos segmentos nasalizados e orais descartando a duração atribuída à c2 nos segmentos com o traço [+nasal]. O resultado da aplicação de tal procedimento é demonstrado na tabela 10. Ainda subtraindo a duração equivalente à c2, os segmentos vocálicos [+nasais] mantêm sua duração, em média, maior do que a das vogais orais. Há uma queda de 3% em comparação à primeira análise, todavia, se este valor configura um número que não certifica a hipótese bifonêmica, ao passo que representa queda percentual em relação ao primeiro valor alcançado, tampouco é capaz de contradizê-la, já que, além de ser uma alteração mínima, mantém o invariável alongamento de v˜, como na tabela 11.

Língua v˜ v Diferença ms ms % Santome 192 167 13 Lung’ie 155 120 22 Média 173 144 17

Tab. 11: Duração média de v˜ e v em todas as posições estudadas, com especificação para cada língua estudada.

Retratadas na tabela 11, as médias do santome e do lung’Ie são mantidas maiores para os segmentos v˜, culminando no valor mediano total de 17%.

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Comparando uma língua com a outra, constatamos que, embora este alongamento seja constante, ele é sempre maior para o lung’Ie (22%) do que para o santome (13%). Em uma aproximação com a investigação proposta por Wetzels & Moraes (1992) para o português brasileiro (pb), nota-se uma situação similar e, mesmo havendo distinção nos valores exatos em ambos os estudos, a maior duração de v˜ permanece inalterável. Os autores, partindo de um estudo experimental com ênfase nas vogais abertas e baixas [a/ã], constataram o alongamento de 35,7% de [ã] em relação a [a] na posição tônica, e de 23,9% em pré-tônicas, resultando na média de 29,8%. Pautados nestes resultados e em sua posterior análise, Wetzels & Moraes (1992) apontam, também, para a existência de uma estrutura bifônica para a nasalidade no pb. As investigações realizadas com pauta em métodos experimentais, e em uma série de critérios fonológicos avaliativos, sugerem a interpretação bifonêmica para a nasalidade vocálica do santome e do lung’Ie. Desta forma, assim como na língua portuguesa, nas línguas autóctones de stp não há nasalidade vocálica intrínseca, mas uma representação subjacente do fenômeno v mais nasalidade n, indicando, portanto, que os segmentos vocálicos [+nasal] são nasalizados.

7 Conclusão

Por meio de testes experimentais, constatamos, no santome e no lung’Ie, o alongamento médio de 17% das vogais [+nasais] em relação às vogais orais. Segundo as perspectivas fonológicas autossegmentais como a fonologia cv (Clements & Keyser 1983) e a geometria de traços (Clements 1996), bem como o estudo experimental acerca da nasalidade vocálica no português brasileiro (Wetzels & Moraes 1992), esta maior duração é interpretada como decorrente da queda de uma consoante nasal presente na camada segmental, e o consequente espraiamento do traço [+nasal] para a vogal antecedente na camada cv. Assim, a análise dos dados sugere a inexistência de fonemas vocálicos nasais nas línguas autóctones de stp e, ao mesmo tempo, oferece suporte às hipóteses que postulam vogais nasalizadas, cuja nasalidade é oriunda de um processo de espraiamento do traço [+nasal] de uma consoante em coda, posteriormente elidida, permitindo, então, que o fenômeno no santome e no lung’Ie seja compreendido à luz da hipótese bifonêmica da nasalidade (Câmara 1953; 1970; Cagliari 1977; Wetzels 1991; Wetzels & Moraes 1992), de modo similar ao da língua portuguesa.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 24 Amanda Macedo Balduino / et al. Referências

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Recebido: 06/12/2014 Aprovado: 26/02/2015

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767

PAPIA, São Paulo, 25(1), p. 27-37, Jan/Jun 2015.

Questionando a regularidade da formação das preposições: comentário sobre acidentes e contatos linguísticos Questioning the regularity of prepositional formation: remarks about accidents and linguistic contacts

Pedro Perini-Santos Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Brasil [email protected]

Abstract: The cognitive and diachronic explanations of the emerging and interpretation of prepositions sustain cooperative evidences. In short, both theories propose a spatial semantic origin for this group of words, whose physical semantic value vanished in favor of abstract interpretations. Nonetheless, there are some examples poorly explained by those models. Some specific cases signal the need for considering accidental constituents in the explanation presented.

Keywords: Prepositions; cognition; frames; history; linguistic accidents.

Resumo: As propostas apresentadas pela gramática histórica e pela gramática cognitiva sobre o surgimento e sobre a interpretação das preposições endossam argumentos cooperativos. Sinteticamente, defendem a ideia das preposições terem origem semântica espacial que perde seu valor físico e assume inter- pretações abstratas. Há porém casos mal explicados por esses modelos. Registram-se, assim, situações para as quais devem ser incorporados elementos acidentais à explicação proposta.

Palavras-chave: Preposições; cognição; esquemas; história; acidentes linguísticos.

e-ISSN 2316-2767 28 Pedro Perini-Santos 1 Introdução

Duas são as análises apresentadas para o significado das preposições das línguas novilatinas: (i) sua interpretação a partir de elementos cognitivos oferecidos por esquemas espaciais (Coventry 1999, Grabowisky 1999; Miller & Grabowisky 2000, Langacker 1992, Weissenborn 1981, entre outros), e (ii) sua interpretação via traços semânticos residuais recuperáveis de seu processo de gramaticalização (Aikhenvald 2003, Papahag 2002, Langacker 1992; entre outros). As duas análises são visões distintas sobre um mesmo tipo de ocorrência linguística. Porém, tanto a proposta para seu surgimento quanto a proposta referente à sua interpretação advogam a existência de um percurso semântico, cuja origem tem um ponto inicial de estatuto físico que evolui para outro de estatuto abstrato. Assim, uma preposição como de, por exemplo, pode ser analisada das seguintes formas:

• de se interpreta como um termo cuja função linguística primeira é físico- espacial, porque as preposições têm em sua base cognitiva a percepção físico-espacial. Outras conotações são derivadas dessa primeira via processos metafóricos e ou relacionais.

• de se interpreta direta ou indiretamente como ‘indicação de fonte’ dado que tem origem etimológica reconhecida no léxico indo-europeu *do que significa, de alguma forma, ‘fonte’. Vejam que temos dois movimentos descritivos distintos, porém complementares. O primeiro sugere que de é interpretado de acordo com coordenações espaciais e sensoriais que, nesse caso específico, indicam origem. O segundo movimento relata que a preposição de tem esse valor porque herda de uma progenitora distante, porém presente, sua carga semântica e formal. Essa me parece ser uma possível síntese do atual quadro descritivo para a interpretação das preposições. No entanto, e por isso o título do ensaio como ‘Questionando a Regularidade’, há ocorrências preposicionais que serão contempladas pelo quadro teórico apresentado apenas se houver uma boa dose de malabarismo teórico para que se mantenham os postulados (Perini- Santos 2007, 2011).

O texto que aqui apresento seguirá as seguintes etapas. Primeiro, apresento o que é a base cognitiva espacial para se interpretar uma preposição. Depois, apresento o que é gramaticalização e como se aplica esse processo produtivo no caso das preposições. Em seguida, discorrerei sobre problemas epistemológicos que a adoção irrestrita das duas propostas (complementares) acarreta.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Questionando a regularidade da formação das preposições... Questioning the regularity of prepositional formation... 29 2 Compreendendo as preposições no espaço

Vamos considerar um exemplo. Escolhi a preposição de porque é a mais usada em português. Os dados indicam que a frequência de uso dessa preposição relativamente às demais usadas no português varia entre os séculos XIV e XVIII de 38% a 45% aproximadamente (Diório Jr 2002). Os dados relativos ao uso atual apontam para valor semelhante, algo como 48% (Perini-Santos 2007, 2011). A proposta de explicação através de esquemas cognitivos interpreta a preposição de, direta ou indiretamente, como uma partícula que indica origem.

(1) Cheguei de Curvelo.

(2) Sou de Curvelo.

(3) Gosto de Curvelo.

A ocorrência da preposição de em (1-3) tem um esquema cognitivo físico- espacial como base. Assim, diretamente, como ocorre em (1); indiretamente como ocorre em (3) ou algo entre os dois, exemplo (2), o modelo espacial propõe a relação dos elementos ligados, no caso, pela preposição de. A relação entre os dois elementos pode ser descrita como ‘ponto de partida e ponto de chegada’ (Pottier 1997) e ‘flecha e referência’ (Langacker 1999):

Posto de outra forma, quando se diz (1) Cheguei de Curvelo, deve-se interpretar de como um termo que indica a ‘marcação de origem’ na relação entre o verbo e o substantivo. Da mesma forma, porém por um caminho mais complexo, é possível interpretar espacialmente o valor de de no exemplo (2) Gosto de Curvelo. A preposição de realiza seu significado entre gostar e Curvelo porque a origem da sensação de ‘gosto’ está na cidade de Curvelo. Para o caso (3) Sou de Curvelo, o caminho é semelhante. Não pertenço a Curvelo, mas posso ser identificado como ‘o cara de Curvelo’ porque, mesmo que provisoriamente, eu venho de lá. Há uma relação de origem espacial que autoriza a compreensão do valor semântico da preposição de nos três exemplos que associam um verbo e um lugar. Não é bizarro para o modelo o uso das expressões ‘verbo’ (função

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 30 Pedro Perini-Santos gramatical) e ‘lugar’ (valor semântico descritivo). O valor metafórico e ou metonímico do uso preposicional permite a fusão, em um mesmo esquema explicativo, de expressões ontológica e funcionalmente distintas. O modelo se aplicaria também para a descrição de relações entre entidades de estatuto lexical semelhante:

(4) Os moradores de Curvelo. (5) A prefeitura de Curvelo. (6) A cidade de Curvelo.

A série de exemplos acima ilustra contextos sintagmáticos em que há clareza para a interpretação de origem, como ocorre em (4); muita opacidade para a interpretação de origem, em (6) e situação intermediária em (5). Novamente, usando ou não de elementos etimológicos, poderíamos traçar o caminho físico- espacial direto ou indireto para interpretar a ocorrência da preposição de.

3 Como surgiram as preposições?

3.1 O conceito diacrônico

Gramaticalização (Hopper & Traugott 1993, Pottier 1997) é a mais interessante das respostas apresentadas. Consensualmente diz-se que as preposições das línguas latinas se originam do indo-europeu; se desenvolvem na morte do latim e chegam até as línguas modernas pelo caminho que descrevo a seguir. Inicialmente não eram preposições; eram elementos monossilábicos prefixais que indicavam “movimento” (Papahagi 2002). No latim, surgem as preposições a partir de sua autonomização como unidades lexicais funcionais que vêm substituir em grande medida os casos morficamente marcados. A substituição dos casos por perífrases não ocorre de forma casada. Não havia para cada caso uma preposição. Consequentemente, ocorre uma diminuição do valor semântico específico das preposições. A preposição de, ao que tudo indica, assume mais papéis do que as demais. No entanto, mesmo que ocorra alguma limitação de seu valor semântico, as preposições mantêm seu funcionamento relacional e espacial (Brøndal 1950). De forma metafórica e metonímica, as preposições gramaticalizadas, ou semi- gramaticalizadas, exercem funções sintático-semânticas mais claras ou mais obscuras dependendo do caso. Por outro lado, crê-se que as preposições tenham surgido de palavras plenas do indo-europeu. Nosso exemplo, a preposição de, tem origem, relatam os

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dicionários etimológicos, no verbo *d¯o, que significava “dar”. Assim, hoje, de como valor de marca semântico-sintática de origem tem sua fonte em uma palavra de verdade bem antiga. Isto é a gramaticalização: num determinado período de tempo uma certa palavra é fragilizada pela alta frequência de uso e começa a perder sua autonomia, passando a funcionar como uma “semi-palavra”, ou seja, passa a não mais ter significado por si própria; a não poder ocorrer sozinha e a ser submetida a severas limitações de posicionamento em um sintagma ou em uma frase.

3.2 Exemplos das línguas crioulas cabo-verdianas

Se encontrar a origem no indo-europeu parece um bocado obscuro, o estudo de casos de gramaticalização em línguas contemporâneas ajuda a aclarar o que venha a ser uma gramaticalização. Olhemos brevemente um caso mais jovem. O crioulo cabo-verdiano, tanto da ilha de Santiago (St) quando da ilha de São Vicente (Sv), apresenta partículas reflexivas de semântica ainda presente:

(7) É da raiva di si kabésa. [Ele sentiu raiva de si próprio.] (St)

(8) El sentí raiva de se kabésa [Ele sentiu raiva de si próprio.] (Sv)

(9) Nu krê kunpanheru txeu. [Nós nos amamos muito.] (St)

(10) No krê kunpanher txeu. [Nós nos amamos muito.] (Sv)

Nota-se nos exemplos, colhidos da Gramática Descritiva e Contrastiva do Creolo de Cabo Verde (Veiga, 2000), que junto às partículas reflexivas kabésa e kunpanher(u) é ainda possível reconhecer valor semântico próprio ou traços de valor semântico próprio. No entanto, dado que são expressões em processo de gramaticalização já não mais exercem função de palavras plenas, mas, pelo menos nesses casos, de termos funcionais. Citar exemplos de línguas crioulas e pidgins é a escolha que faço para indicar que os movimentos de estudos linguísticos comparativos e transculturais se mostram producentes e compensadores para aqueles que os desenvolvem. Esse tipo de estudo aponta para alguns pontos quentes e polêmicos para as Academias europeias de línguas e suas herdeiras pelo mundo. O estudo sobre as línguas crioulas evidencia, fortemente, que há muito mais do que simples influência lexical nas línguas de países que, como o Brasil, tiveram e têm em sua história presença da cultura, da religião, da política e da linguagem africana (sobre o tema, ver Mello 1999; Holm 2004).

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Enfim, se avaliarmos como ocorrem a gramaticalização e a criação de preposições, teríamos que dizer que ocorrem porque as palavras ‘entram’ num caminho de mudança. Em outros termos, a proposta ou a assinatura contemporânea da proposta de gramaticalização e de esquemas cognitivos sugere algo como regularidade e autonomia da “evolução linguística” que faz com que, inerentes aos idiomas, apareçam preposições como dispositivos sintáticos a substituir manifestações mórficas causais de acordo com um sistema cognitivo básico espacial.

4 Casos mal resolvidos

Os postulados descritos acima são coerentes e configuram um ambiente teórico muito firme. Mesmo que não haja dados, anotações ou registros de cada etapa de um dado processo de gramaticalização, através de postulações recursivas, pode-se reconhecer como era ou como deveria ser determinada palavra em estágios anteriores ao que se conhece. Voltemos à preposição de: mesmo que, claramente, (Selig 2001; Sletsjøe 1952; Wright 1982; dentre outros) se fale na falta de dados, é construído um roteiro que traça, por suposição, os passos pelos quais deve ter passado uma preposição antes de ser uma preposição. Ademais, para casos com muita opacidade na compreensão do sentido de origem da preposição supõe-se alguma solução ad hoc, etimológica ou cognitiva, coerente com o sistema explanatório proposto:

(11) de olho gordo

(12) de noite / de manhã

(13) de com força (Português popular do Brasil)

Da mesma forma, uma lista que discorre sobre 13 interpretações semânticas possíveis para a preposição de no latim clássico (Clarin 1880) seria, de alguma forma, locada em um sistema de explicação espacial. Caso isso não dê certo, pode-se pensar no argumento de ‘haver alguma etapa temporal passada a ser percorrida’ para entender o porquê de essa preposição não estar ‘ainda’ no modelo semântico que se espera.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Questionando a regularidade da formação das preposições... Questioning the regularity of prepositional formation... 33 5 O que há de errado com isso?

O que há de errado com uma proposta que explica histórica e cognitivamente o funcionamento das preposições? Nada, não há nada de errado e esse é o problema! Por que é um problema? Por um lado porque há lacunas e acidentes neste caminho que não podem ser desconsiderados tal como o são. O que chamo de ‘lacunas e acidentes’ são elementos sociais, estéticos, geográficos, políticos e acidentais, que, a meu ver, devem ser incorporados às explicações para que se compreenda o porquê da existência de casos diferentes. Me agrada a ideia de questionar a sustentada autonomia da gramaticalização e dos esquemas cognitivos. Autonomia essa que, com ou sem texto explícito, está presente na idealização de linguagem para os gerativistas; nos universais sensoriais dos cognitivistas; no desejo objetivista de autores que buscam um modelo explanatório que não ‘precisa de elementos históricos e sociais’ (Yang 2000).

6 Caso histórico: acidente de tradução

Por que isso é interessante? Deixem-me dar um exemplo anedótico. Em 1783, é oficializado na língua inglesa o galicismo biche de mer (em português, “bicho do mar”). Pelo som, pela composição preposicional, pelo significado derivado e, sobretudo, em função do constante contato que havia entre ingleses e franceses, poderia se reconhecer, sem muita dificuldade, que se tratava de um galicismo. E assim ficou. Em meados do século XIX – mais precisamente entre 1830 e 1860 – o comércio deste equinodermo passa a ocupar papel central no comércio entre China e Melanésia, dada a progressiva escassez de madeira de sândalo. Biche de mer torna-se, portanto, elemento central para as trocas e contatos. A língua franca, a do comércio entre os mateiros de sândalo, anteriormente nomeada sandalwood english, ‘evoluiu’ para a designação bichelamar e, em inglês, beach-la-mar – forma essa supostamente oriunda da ‘verdadeira forma francesa’ bêche-de-mer, cuja tradução literal é ‘enxada de mar’ (Charpentier 1999). Se pararmos a história aqui, poderíamos afirmar com muita certeza que a língua de contato comercial deste período e região é, em inglês, bichelamar ou beach-la-mar e é originária da expressão francesa, bêche-de-mer. Mas há outra versão para a história. O animal em questão recebeu o nome em função da presença portuguesa no arquipélago. Consta que Fernando de

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Queirós chegou à ilha, hoje Vanuatu, em 1606. Sabe-se que não houve uma presença portuguesa constante na Polinésia; no entanto, há expressões de origem portuguesa adaptadas presentes em várias línguas da região: kula (para escola), kupa (para sopa) e pato (para pato) são exemplos de ocorrências de origem portuguesa que indicam que houve uma relação de contato e influência com a língua de Portugal. Bislama – nome do pidgin de Vanuatu – adaptação de “beach-la-mar” vem de “bicho do mar” e não de ‘enxada do mar’ (bêche de mer) como se acreditou (Charpentier 1999).

7 A verdade aceita porque dita por alguém que “diz a verdade”

Vale também referência ao artigo de François Récanati “Can we believe what we don’t understand?” (Récanati 1999). Récanati assinala para um tipo de ‘verdade’ que de fato não é verdade, mas apenas uma indicação de verdade porque alguém assim o disse. O valor deferencial de um postulado torna-o não de fato um postulado sujeito à avaliação de ser ou não ser verdade, mas apenas aceitável em seu valor de verdade, dado que quem o ‘repete’ o faz porque o recebeu de alguém que autorizara ‘valor de verdade’ para a proposição. Sem desmerecer esse tipo de crença ou verdade, Récanati discute o seguinte exemplo: ‘Lacanianos acreditam que o inconsciente se estrutura assim como a linguagem’. “Eles não estão certos do que isso significa, mas confiam em Lacan, que disse isso.” (p.84, tradução minha). Quando um aluno diz ‘A prosa de Cícero está repleta de sinedóctas’. Dado que esse aluno não sabe o que são sinedóctas, o valor de verdade da proposição só existe porque a escutou do professor ou da professora. Novamente, tem-se um caso de atribuição de valor de verdade via processo deferencial. No nosso caso, me parece que há uma série de inferências a respeito da história das preposições que se mantêm vivas apenas porque alguém falou que foi assim. O valor semântico de expressões indo-europeias, latinas e de épocas antigas do português é muito pouco conhecido. Há poucos textos preservados e acessíveis (Selig 2001); muito dos registros que se tinham se perderam nos séculos IX e X (Wright 1982); enfim, há muitas lacunas que talvez tenham sido preenchidas por inferências equivocadas ou por algum tipo de tautologia deferencial. Há elementos histórico-geográficos e institucionais das línguas novilatinas que exerceram e exercem influência específica nos usos preposicionais. Faz-se necessário um vigoroso aprofundamento dos estudos documentais sobre a língua portuguesa, como tem sido feito com o francês, para que se localizem

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Questionando a regularidade da formação das preposições... Questioning the regularity of prepositional formation... 35 elementos “exógenos” ao que se reconhece tradicionalmente como o temário linguístico pós-saussuriano. O caráter ‘histórico’ da gramaticalização tal qual tem sido praticado e a aplicação ‘inerente’ dos esquemas cognitivos carecem de revisão. Se considerarmos que a regência verbal é a ‘menina dos olhos’ dos tradicionalistas e que este tradicionalismo tem efeito sobre a prática contemporânea (cf. Gomes 1999), podemos igualmente considerar que pode ter havido efeito da vigilância gramatical na escolha de preposições em casos em que sua presença ou ausência não acarretaria modificação semântica. O espanhol paraguaio pode ser um bom exemplo disso. Jinny Choi (2001) relata que a preposição en no Paraguai tem usos diferentes dos que ocorrem na Espanha ou Argentina. Diz o autor que a mudança de função da preposição está diretamente relacionada com o fato de o Paraguai ter metade da população bilíngue em espanhol e guarani. Ao que tudo indica, a variação preposicional é um caso de influência de línguas em contato. De forma semelhante, diante de uma ‘crise linguística’ um dialeto falado na Bulgária pegou emprestado um pequeno conjunto de preposições turcas.

8 Comentários finais

Finalmente, vale manter a ideia de que o latim não foi uma língua apenas anterior às línguas novilatinas. Por muito tempo conviveram latim e as novilatinas – a rigor até o Vaticano II, missas eram ofertadas em latim. De uma forma ou de outra, o contato entre mãe e filhas foi bem além de uma simples relação de herança. Para que se estudem tais relações, vale pensar que da mesma forma que a língua búlgara e o turco, o espanhol e o guarani, o inglês e o francês, também cohabitaram o português e o latim. A teoria de línguas em contato vale para as duas línguas.

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Recebido: 02/02/2015 Aprovado: 26/02/2015

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Línguas indígenas em contato

PAPIA, São Paulo, 25(1), p. 41-45, Jan/Jun 2015.

Apresentação

Uma das iniciadoras no campo da descrição de variedades indígenas de Português, com seu trabalho sobre o Português Kamayurá (de que reuniu registros em 1968), Rosa Virgínia Mattos e Silva chamou de “România Novíssima” (Mattos e Silva 1987, 1988) o conjunto dessas variedades, presentes ao longo de todo o território brasileiro. Essa mesma imagem poderia ser, certamente, associada também às variedades indígenas de Espanhol, tendo-se em vista as semelhanças consideráveis entre estas e as variedades indígenas do Português Brasileiro, no que toca às suas condições sociohistóricas de formação e à sua atual inserção no panorama sociolinguístico latino-americano. Ganhando, recentemente, cada vez mais atenção da parte de pesquisadores, as variedades indígenas de Português e de Espanhol apresentam especificidades que auxiliam na compreensão dos fenômenos envolvidos nos processos de contato linguístico, uma vez que, via de regra, seus traços particulares encontram-se ligados a mecanismos de transferência ou a universais de aquisição de L2. Elementos significativos de identidade étnica (como apontam, entre outros, os trabalhos de Maher (1996, 1998) e de Santos (2011)), as variedades indígenas de Português e de Espanhol constituem instrumento de comunicação tanto para povos que vieram a passar pela substituição linguística, com a interrupção da transmissão geracional de sua língua ancestral (caso dos Umutina – Jê e dos Poianawa – Pano), quanto para aqueles que as reservam exclusivamente para as esferas de interação com não-indígenas e/ou como língua franca indígena interétnica. Não se pode perder de vista que, como qualquer outra variedade linguística, as variedades étnicas, seja de Português ou de Espanhol, dos diversos povos indígenas não representam um todo homogêneo, monolítico. De maneira ainda mais profunda do que nas variedades utilizadas por não-indígenas, questões geracionais influenciam diretamente o panorama sociolinguístico multifacetado que as caracteriza. Empregadas numa gama muito grande de situações, essas variedades contam, naturalmente, com registros diferenciados marcados por graus de formalidade distintos e/ou relacionados a gêneros textuais diversos. Pode-se lembrar, por exemplo, as interações com profissionais não-indígenas da saúde ou da assistência social; as compras nos centros de comércio locais;

e-ISSN 2316-2767 42 Apresentação a produção de material didático para ensino de Português/Espanhol nas escolas indígenas; a elaboração de documentos para prestação de contas de repasses de verbas e a confecção de trabalhos acadêmicos (sobretudo no caso daqueles que cursam o ensino superior). Além disso, parcela considerável de falantes de Português-Indígena/Espanhol-Indígena toma parte em múltiplas redes sociais (no sentido estabelecido por Labov 1994; 2001) com esferas variadas de abrangência, que podem alcançar — especialmente, em se tratando de lideranças políticas — o papel de representação da comunidade junto a organizações e autoridades regionais, nacionais ou mesmo internacionais. Publicado em 1997, o nono volume da revista Papia foi totalmente dedicado a estudos do Português Xinguano, elaborados a partir do acervo reunido por Charlotte Emmerich (cf. Emmerich 1984). Composto por oito artigos, aquele volume continha trabalhos nos campos da morfossintaxe, fonologia, sintaxe e discurso. Com relação a processos morfossintáticos, eram investigados a variação na concordância de gênero (cf. Lucchesi & Macedo (1997) e o desenvolvimento do sistema verbal de tempo, modo e aspecto (cf. França (1997). No tocante ao nível fonológico, descreveram-se a queda de /r/ pós- vocálico em posição medial e final (cf. Mollica (1997)), e a realização variável do traço de sonoridade das oclusivas, fricativas e africadas (cf. Paiva (1997)). Examinando a presença/ausência das preposições a, para, de, com e em no Português Xinguano, Abreu (1997) abordava mecanismos sintáticos. Os trabalhos de Baião (1997) e de Brasil (1997) tratavam de questões do domínio discursivo, este sobre a repetição de hesitação e aquele sobre os “marcadores discursivos no Português de contato”. Travando um diálogo com as pesquisas reunidas em Papia 9, esta seção traz quatro artigos focalizando variedades linguísticas específicas de comunidades indígenas. Como ponto comum dos trabalhos presentes num e noutro volume, pode-se destacar o fato de todas as variedades descritas representarem a segunda língua daquelas comunidades. No entanto, enquanto o volume de 1997 faz um retrato bastante completo de uma variedade linguística indígena (o Português de Contato do Parque Indígena do Xingu), os textos aqui reunidos englobam não só uma multiplicidade de processos e fenômenos linguísticos, como revelam diversidade com relação aos seus próprios objetos de estudo. São examinados, assim, dados de uma variedade étnica de Espanhol e de três variedades distintas de Português-Indígena. No primeiro dos artigos, José Elías-Ulloa investiga os padrões entoacionais das perguntas absolutas (sim/não) no Espanhol falado como segunda língua pelos Shipibo-Konibo, povo Pano que vive na região do rio Ucayali na Amazônia Peruana. Com base nos referenciais teóricos da fonologia entoacional e valendo- se do sistema de transcrição conhecido como ToBI, ele não só caracteriza os

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Apresentação 43 padrões entoacionais para aquele tipo de questão nessa variedade étnica do Espanhol, como os compara aos observáveis no Espanhol de Pucallpa (a maior cidade da região habitada pelos Shipibo-Konibo) de falantes monolíngues e aqueles presentes no Espanhol de Lima (também L1). Dessa forma, o autor consegue diferenciar claramente entre o comportamento das unidades tonais em posições nucleares, de um lado, daquele reconhecível nas unidades pré-nucleares (em particular, as iniciais), de outro. O texto de Beatriz Christino, por sua vez, corresponde à primeira descrição da concordância de gênero no interior do sintagma nominal no Português Huni-Kuin. Observando diferentes classes gramaticais e considerando tanto núcleos do gênero masculino quanto do gênero feminino, a pesquisadora procura reconhecer traços ligados a universais de segunda língua e distingui-los dos associáveis a transferências da L1. A exemplo dos Shipibo- Konibo, os Huni-Kuin (autodenominação que significa ‘humanos autênticos’), também conhecidos na literatura linguística e antropológica como Kaxinawás, pertencem à família etnolinguística Pano. No lado brasileiro da fronteira Brasil-Peru, sua morada corresponde à região do Alto rio Juruá e às margens do rio Purus. Aspectos fonológicos, gramaticais e discursivos da variedade étnica Timbira do Português são abordados no artigo de Rosane de Sá Amado. Os Timbira representam uma unidade etnolinguística Jê que abarca vários povos – dentre eles os Krahô, Apinajé, Pykobjê, Krenjê, Ramkokamekrá e Apãniekrá – contatados no século XIX. Hoje, seus territórios são descontínuos (além de constantemente ameaçados) e distribuem-se pelo sul do Maranhão, leste do Pará e norte do . Utilizando como material de análise principalmente gravações de textos orais e escritos produzidos por alunos do curso de Língua Portuguesa no 10º Módulo da Escola Timbira (equivalente ao Ensino Fundamental II), a autora empreende uma descrição minuciosa de diversas especificidades do Português Timbira que “denotam a presença forte de traços da língua Timbira”. Apesar disso, ela não deixa de levar em consideração os elementos que colocam essa variedade étnica no terreno das ‘interlínguas’. Desse modo, revela a intenção não só de contribuir para que se possa atingir um conhecimento mais amplo e aprofundado da diversidade linguística no Brasil, como também a de combater o preconceito que faz “aprendizes [indígenas de Português L2 no âmbito escolar] [...] serem tratados como incapazes e inábeis no aprendizado do português por serem...índios”. Fechando esse conjunto de textos dedicados a variedades linguísticas de comunidades indígenas, Silvia L. B. Braggio, em seu texto “A variedade étnica Xerente Akw˜e:subsídios para a educação escolar indígena”, articula observações e análises reunidas durante seus vinte de anos de trabalho com

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 44 Apresentação o povo Akw˜e,de modo a caracterizar sua variedade específica de Português Brasileiro, considerando tanto a vinculação desta com o português L1 regional quanto com a língua própria dos Akw˜e(da família Jê). Nesse movimento, ela lança mão dos processos de adaptação fonológica por que passam os empréstimos do Português na língua Akw˜ecomo um meio privilegiado de apontar as consideráveis diferenças dialetais entre as gerações. Como já indica o próprio título, a autora, em nenhum momento, se descuida do alcance social do seu trabalho, apontando, reiteradamente, para o impacto que o reconhecimento de determinados mecanismos linguísticos representa/pode vir a representar na educação escolar dos Akw˜e.

Beatriz Christino Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Guest editor

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PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767

PAPIA, São Paulo, 25(1), p. 47-75, Jan/Jun 2015.

The intonational patterns of Yes-No questions in the Amazonian Spanish of Shipibo-Konibo speakers Padrões entoacionais das perguntas sim-não no espanhol amazônico do povo Shipibo-Konibo

Jose Elias-Ulloa1 Stony Brook University, usa [email protected]

Abstract: In this article I present a study of the intonation of absolute questions in a bilingual variety of Peruvian Spanish used by speakers of Shipibo-Konibo. This variety has emerged as part of the contact between Peruvian Amazonian Spanish and the Shipibo-Konibo language (Pano). Employing the theoretical tenets of intonational phonology and the transcription system known as ToBI, I describe and analyze those intonational patterns and compare them to those found both in the monolingual Spanish dialect we find in the region where Shipibo- Konibo is spoken and in the indigenous language itself. The results of this research indicate that although Shipibo-Konibo Spanish shares some characteristics of the L1 of their speakers, who in this study are highly advanced bilinguals, most of the properties, however, can be recognized in the intonational patterns of the monolingual Spanish here we refer to as Pucallpa

1 I would like to thank Carolina González for her comments on a previous version of this work. I would also thank the audience of the talk I gave at the Universidad Nacional Mayor de San Marcos in March 2015, particularly to Jairo Valqui, Lilia Llanto, Elsa Vilchez, Ana María Escobar, and Héctor Velazquez, for their invaluable feedback on different issues I discussed about the intonation of Shipibo- Konibo Spanish. My thanks go to the two anonymous reviewers of this article whose comments have proved to be very useful. All errors are, of course, my own. The fieldwork for this work was supported by the National Science Foundation under Grant BCS-0966257.

e-ISSN 2316-2767 48 Jose Elias-Ulloa

Spanish. In particular, Shipibo-Konibo Spanish has exactly the same nuclear configuration for yes-no questions as Pucallpa Spanish does. Most of the differences we report between those intonational systems and Shipibo-Konibo are located in the behavior of the pre-nuclear accents.

Keywords: Amazonian Spanish; Intonation; Shipibo-Konibo.

Resumo: Neste artigo, apresento um estudo da entonação de questões absolutas na variedade de Espanhol Peruano usada como segunda língua por falantes de Shipibo-Konibo. Esta vari- edade emergiu como parte do contato entre o Espanhol Peruano Amazônico e a língua Shipibo-Konibo (Pano). Empregando os referenciais teóricos da fonologia entoacional e o sistema de transcrição conhecido como ToBI, descrevo e analiso esses padrões entoacionais e os comparo, tanto com os encontrados no dialeto Espanhol da região em que se fala o Shipibo-Konibo, quanto com os da própria língua indígena. Os resultados dessa pesquisa, que analisou falantes bilíngues com grau bem alto de fluência, indicam que, embora o Espanhol Shipibo-Konibo compartilhe algumas características com a L1 de seus falantes, a maioria de suas propriedades, porém, pode ser reconhecida nos padrões entoacionais da variedade de Espanhol que aqui se denomina Espanhol de Pucallpa. Em particular, o Espanhol Shipibo-Konibo apresenta exatamente a mesma configuração nuclear em questões sim ou não que o Espanhol de Pucallpa. A maioria das diferenças identificadas entre esses sistemas entoacionais e o Shipibo-Konibo se encontra no comportamento dos acentos pré-nucleares.

Palavras-chave: Espanhol amazônico; Entoação; Shipibo- Konibo.

1 Introduction

The main objectives of this article are two-folded. First, it documents and offers a qualitative characterization of the intonational patterns associated with absolute questions of a variety of Amazonian Spanish spoken in Peru by Shipibo-Konibo speakers. Second, it compares those intonational patterns to the ones found both in monolingual Amazonian Spanish spoken in the city of Pucallpa (Peru) and in the native language of the Shipibo-Konibo

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 The intonational patterns of Yes-No questions in... Padrões entoacionais das perguntas sim-não no... 49

people (henceforth SK). Absolute questions are interrogative sentences that can be answered with a yes or a no (that is why they are also known as yes-no questions). For example, did Mary come to the party? Do you go to work on Mondays? Would you like a glass of water? Absolute questions can encode actual requests that seek to confirm information (as in: do you speak Portuguese?) but they can also be used in a number of other pragmatic contexts (for instance, in making invitations or requesting a favor: Please, would you come with me to the reception?). This article is a contribution to the study of the intonation of varieties of Latin American Spanish that have emerged through contact with indigenous languages. I will focus on the Spanish spoken by Shipibo-Konibo speakers, which I will refer to as Shipibo-Konibo Spanish (SKS). SKS is a variety of bilingual Peruvian Amazonian Spanish that emerged from contact between the SK language, and Spanish spoken in the region of the Ucayali River (represented in this study by Pucallpa Spanish, that is, the Spanish spoken in the city of Pucallpa). SK belongs to the Panoan linguistic family. It is spoken by nearly 26000 speakers (Lewis et al. 2014). Although it is still possible to find SK speakers with a basic or intermediate command of Spanish (generally older speakers), most SK speakers are native speakers of Spanish as well, and more precisely, native speakers of SKS. While there is a fast-growing literature focused on the intonational patterns of different dialects of Latin American Spanish, studies of the intonation of Peruvian Spanish are few and far between. To my knowledge, there are only three: O’Rourke 2005 examines Andean Spanish (Spanish that emerges from contact with Quechua), O’Rourke 2012 surveys the intonational properties of contrastive focus on Peruvian Spanish; and Garcia 2011 analyses the phonetic and phonological properties of the intonation of declarative sentences in Pucallpa Spanish. The work I present here not only adds to what we know about Peruvian Spanish but also expands it to the unexplored realm of contact varieties of Peruvian Amazonian Spanish. It supplements the study of Garcia 2011 on Pucallpa Spanish declaratives by providing an intonational characterization of absolute questions from the same dialect since it is the variety of Peruvian Spanish with which SK speakers are in contact. This article is organized as follows. In section §2, I discuss the methodology used to collect data and in section §3, I review the criteria used in analyzing them and present the results. In order to obtain a broader picture of the intonation of SKS in absolute questions, I will present a comparison to the intonational patterns found in SK as well as in Pucallpa Spanish, the closest variety of Amazonian Spanish to SKS. This comparison is undertaken in section §4. Finally, in section §5, I present the conclusions.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 50 Jose Elias-Ulloa 2 Methodology

All the data presented in this study come from female speakers. The first three speakers in Table 1 are native speakers of SK and SKS. The three female SK speakers interviewed had completed their high school before the interview (May-July 2012). Their ages ranged from mid-20s to mid-30s.

Speaker Code Language Age Monolingual Education SPK01 SKS/SK 35 NO High school SPK02 SKS/SK 32 NO High school SPK03 SKS/SK 23 NO High school SPK04 Pucallpa Spanish 23 YES University SPK05 Pucallpa Spanish 23 YES University SPK06 Pucallpa Spanish 21 YES University

Tab. 1: Participants information.

Speakers SPK04 to SPK06 are monolingual in Pucallpa Spanish. All three were born in the city of Pucallpa and completed primary and secondary education there. They were in their early twenties at the time of the interviews (July 2012) and were university students. All audio recordings for this study were made using digital recorders Zoom H4N and external Shure WH30 Condenser Headset Microphones with XLR connectors. The audio files are in PCM WAV format (44,100 Hz, 16 bit). The data were then examined using the program for acoustic analysis Praat (v. 5.4.03 – Boersma and Weenink 2014). The data were collected through two elicitation exercises. In the first task, speakers were presented with slides describing a number of situations created to elicit specific types of intonational patterns through the utterance of declarative sentences, interrogatives, focused phrases, etc. For each situation, participants were asked to react verbally according to the context given. This task was inspired and adapted from a similar elicitation tool called “Guided Questionnaire” developed by Prieto & Roseano 2010 for the collection of intonational data in Spanish2. Here are some examples of those slides used to elicit absolute questions for this study.

2This guided questionnaire has been adapted to several dialects of Spanish. Some of those adaptations can be found in http://prosodia.upf.edu/atlasentonacion/metodologia/.

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(1) Entras a una tienda. ¿Cómo le preguntas al que atiende si tiene mermelada? (You go into a grocery store. How would you ask the shop assistant if he has jam?)

(2) Pregúntale a un amigo si quiere venir a tomar limonada contigo. (Ask a friend if he would like to come and have lemonade with you).

This task was undertaken by all speakers, of both SKS (SPK01 to SPK03) and Pucallpa Spanish (SPK04 to SPK06). The same slides but with the content translated into SK were also presented to SPK01 to SPK03. The equivalent in SK to (1) and (2) is shown in (3) and (4). Since SK speakers do not have much experience reading and writing in their own language, and this could affect their performance during the elicitation task, I added audio to their slides. The audio contained the same messages but recorded in SK by a native speaker (who did not participate in the elicitation task).

(3) Miara jikiai tiendanko. ¿Jawekeskaxonka min yokatai jan meniai jakia mermelada? (You go into a grocery store. How would you ask the shop assistant if he has jam?)

(4) Yokawe min amigo limonada xeaika jokasai mibe. (Ask a friend if he would like to come and have a lemonade with you).

The task was created to elicit ten yes-no questions. The study expected to have thirty yes-no questions in SKS to analyze (10 questions * 3 participants) and another thirty yes-no questions in Pucallpa Spanish (10 questions * 3 participants). The study also expected thirty yes-no questions in SK (10 questions * 3 participants). However, on some occasions, participants did not give an absolute question as expected. Those answers were not analyzed (5 tokens were discarded for SKS, 9 for Pucallpa Spanish, and 2 for SK). The instructions in each slide gave participants a context in which to react. This way we could control the lexical items used in the response and indirectly, and try to avoid the occurrence of voiceless segments whenever possible. However, since in this type of task, the answers are not scripted, participants give similar but not completely identical responses. In (5), I show, as an example, the answers I got to the context given in (2). The answers are quite alike.

(5) Pregúntale a un amigo si quiere venir a tomar limonada contigo. (Ask a friend if he would like to come and have a lemonade with you).

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 52 Jose Elias-Ulloa

a. SPK01 ¿Usted puede venir a tomar limonada conmigo? (Would you like to come and have a lemonade with me?) b. SPK02 ¿Quiere venir a tomar una limonada conmigo? (Would you like to have a lemonade with me?) c. SPK03 ¿Quieres a tomar una limonada? (Do you want to have a lemonade?) d. SPK04 ¿Quieres venir a tomar limonada conmigo? (Do you want to come for lemonade with me?) e. SPK05 ¿Quieres venir a mi casa tomar una limonada? (Do you want to come to my place for a lemonade?) f. SPK06 ¿Vienes a tomar una limonada? (Would you come for a lemonade?)

The second elicitation task was only applied to the speakers of Pucallpa Spanish. They were given seven short stories. Each story contains several target sentences: declaratives, interrogatives, imperatives, etc. However, the participant did not know what those target sentences were since they appeared mixed up with other utterances as part of the story. Unlike the first task, which involved elicitation of semi-spontaneous speech, here all participants uttered exactly the same target sentences in the same linguistic context. This task allows us to have better control over the occurrence of voiceless sounds but sometimes it was impossible to avoid them. In this article, I include data collected from the story “La guaraná de Lorena” (Lorena’s guarana) that contains seven absolute questions (7 yes-no interrogatives * 3 participants = 21). However, in some few instances, participants added a pause within the sentence, misread some words, coughed, etc. Those tokens were not taken into consideration (a total of 4 tokens were discarded for those reasons). In (6), I show an excerpt from that story. It ends with a target yes-no question.

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(6)

La guaraná de Lorena Lorena’s guarana . . . Lorena, un poco asustada por . . . Lorena, a bit scared by the la pregunta, le respondió: ¡No sé question, replied: I don’t know who quién fue, papá! Creo que fue mi did it, dad! I think it was my younger hermanito Lalo y la dejó olvidada brother Lalo. He might have left en tu escritorio. Lalo que estaba it on your desk. Lalo, who was escuchando inmediatamente aclaró: listening, immediately said: “I didn’t ¡Yo no hice nada¡ Yo he estado do anything! I’ve been doing my haciendo mi tarea desde que vine del homework since I came home from cole. Entonces Bernabé le preguntó school. Then Bernabe asked his wife a su esposa Débora: ¿Se ha portado Debora: Has he behaved himself?. . . bien?. . . In general, this second task was more successful in collecting intonational data since the tokens obtained were completely comparable (they were identical and produced under the same linguistic environment). However, it could not be applied to SK speakers, neither in their Spanish nor in their native language, because the task requires an upper level reading skill and this was not found in most cases. These are the instructions I gave each participant to carry out the second task. First, they were asked to read those stories in silence so they can process the information and after they indicated they did not have any question about the storyline, they were asked to read them aloud as if they were experiencing it in real life. The only variation found in this task was on the degree of liveliness with which each participant decided to narrate the stories. The data from participants that showed poor reading skills were discarded. SPK04 to SPK06 have good reading skills and they show a similar degree of liveliness in reading and “playing” the stories. Given the small sample of data collected, this study should be considered a first qualitative approximation to the intonational patterns of SKS, a research topic that has not been undertaken before. The patterns that will be presented here are valid for the data analyzed but given the small size of the data sample collected I cannot make any generalization. This is why I will refrain this time from making any quantitative assertion. One important contribution of this study is to identify a number of objectives that will inform future research about the contact varieties of Peruvian Amazonian Spanish.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 54 Jose Elias-Ulloa 3 Intonation of absolute questions in Shipibo-Konibo Spanish

Following the basic tenets of intonational phonology, as proposed by Beckman et al. 2002; Beckman & Pierrehumbert 1986; Ladd 2008, I assume that intonational contours can be phonologically modeled as a discrete sequence of tonal units, pitch accents and edge tones, associated with stressed syllables and phrase boundaries, respectively. Traditionally, the word that contains the last stressed syllable of a phrase is known as the nuclear position and all the other words containing stressed syllables are referred to as pre-nuclear positions.I show this in Fig. 1. Stressed syllables (i.e. the sites where pitch accents are anchored) appear underlined. The brackets represent phrase boundaries.

Fig. 1: Intonational positions.

Thus, to describe and analyze the intonational patterns of absolute questions in SKS, I will examine the tonal events that occur in those three sites shown in Fig. 1. In (7), I list the tonal units that are expected to occur in those positions.

(7) Distribution of tonal units

a. Boundary tone associated with question final phrase boundary. b. Pitch accent associated with the nuclear position of the phrase. c. Pitch accents associated with the pre-nuclear positions of the phrase.

I will follow the basic conventions used in Sp_ToBI (Tones and Break Indices version for Spanish - Beckman, et al. 2002; Beckman et al. 2005; Estebas Vilaplana and Prieto 2009; Hualde 2003; Prieto & Roseano 2010; Sosa 1991, 2003) to represent the tonal units associated with the positions indicated in Fig. 1. Generally speaking, ToBI recognizes two tonal units: ‘L’ for low tones and ‘H’ for high tones. Contour tones result from combining those two units: LH, HL, LHL, etc. Pitch accents (i.e. tonal units associated with stressed syllables) are marked with a star: L*, H*. Boundary tones are

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 The intonational patterns of Yes-No questions in... Padrões entoacionais das perguntas sim-não no... 55 marked with a percentage symbol following the tonal unit in the case of a final boundary tone: L%, H%. The star used in pitch accents has a double meaning. It signals the tonal unit is a pitch accent (as opposed to a boundary tone) but in the case of complex pitch accents, it also indicates which of the tones is considered the head of the tonal complex. Thus, for instance, L*+H means that both tones behave phonologically as a single unit (this is marked by the plus symbol) and that the low tone, L, is the head of that phonological unit. Pitch accents and boundary tones can undergo phonological phenomena known as ‘downstepping’ and ‘upstepping’. A tone is downstepped, indicated by a downward exclamation mark (!), when it is realized conspicuously lower in pitch height than a previous tone of the same category. This is how a downstepped high tone is transcribed: !H. A tone can also appear upstepped, indicated by an upward exclamation mark (¡). This occurs when a tone is realized higher than a previous tone of the same type. A high tone that is realized noticeably higher in pitch height than a previous one is transcribed as: ¡H. In intonational systems we usually find that tonal downstepping and upstepping are used to distinguish between known/given information versus new information, different types of focus, sentence types, or to encode pragmatic meanings, and even paralinguistic phenomena (Hualde 2005; Ladd 2008). It is necessary to distinguish downstepping from a phonetic phenomenon known as pitch downtrend by which high and low tones that occur early in an utterance are higher in height than those that occur later (Gussenhoven 2005; Ladd 1988, 2008). Thus, unlike downstepping or upstepping, which are phonological phenomena controlled by the speaker, pitch downtrend is an automatic phenomenon by which tones slowly decrease in height. Any dramatic or unexpected change in tone height indicates the occurrence of downstepping or upstepping. Complex pitch accents can also show different types of peak alignments. For instance, the peak of a rising pitch accent can be realized within the stressed syllable to which the pitch accent is anchored (early-peak alignment: L+H*) or it could be obtained post-tonically (late-peak alignment: L+>H*)3.

3 Some dialects of Spanish, like the one from Dominican Republic, have also been reported to make distinctions with regard to where the high tone begins rising. Thus, the high tone of L*+H can start rising during the stressed syllable or at the beginning of the following post-tonic one and this is correlated to different types of focus (see Estebas Vilaplana & Prieto 2009; Face 2001, 2002; Face & Prieto 2007; Prieto et al. 1995; Willis 2003). Since SKS does not seem to resort to this distinction, I will ignore it in this article.

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Both possibilities are schematically represented in figures in 2 and 3. The grey areas represent the stressed syllables that host the tonal units4.

Fig. 2: L+H* Fig. 3: L+>H*

Finally, stressed syllables can undergo a process known as deaccentuation (Beckman, et al. 2002; Ladd 2008; O’Rourke 2005; Willis 2003). That is, they preserve their metrical status as ‘stressed’ (i.e. the heads of their metrical constituent) but they do not appear associated with a pitch accent. Deaccented syllables can still cue their status as stressed. The duration of their vowels is longer than the vowels of unstressed syllables. In Spanish, deaccentuation tends to occur in stressed syllables that do not carry any informational prominence. Spanish speakers tend to avoid deaccentuation and downstepping when they want their speech to sound lively (Hualde 2005). The pitch that a deaccented syllable obtains results from the interpolation between the previous tonal target and the tonal target that follows the deaccented syllable.

3.1 Nuclear configuration of Shipibo-Konibo Spanish absolute questions

With the theoretical tools assumed above, let us begin the description and analysis of the intonational patterns of absolute questions of SKS. The first thing to say is that yes-no questions in SKS always end in an upstepped high tone that I will represent as: ¡H%. The high tone associated with the final boundary of this type of questions is not only high, it is normally higher than a previous high tone and even if there is no previous high tone, the pitch range used to indicate the end of a yes-no question is visibly higher than expected for a regular high tone. This, however, is a fairly common characteristic of absolute questions in Spanish (Hualde 2005; Navarro Tomás 1974; Quilis 1981, 1993; Sosa 1999; c.f. Robles-Puente 2011).

4Figures 2, 3, 16, 17 and 18 are based on the schematic representations used by the Pompeu Fabra University website: “Sp_ToBI training materials” (http://prosodia.upf.edu/sp_tobi/).

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In all the graphs I show in this study, the grey areas shown on the pitch contours indicate where the stressed syllables of the phrase are located. The upper transcription tier shows the tonal units I use to represent the pitch contour phonologically. The second tier shows a word-by-word transcription of the question and stressed syllables appear in italics. The fourth tier has the transcription of the entire yes-no question and its translation into English. Fig. 4 shows the pitch contour of a yes-no question in SKS: ¿te sientes bien? (Do you feel well?) It can be readily observed that at the end of the phrase, the pitch rises and its peak gets higher than the peak of the high tone associated with the previous stressed syllable: an upstepped high tone5. The nuclear position of absolute questions in SKS is associated with a low pitch accent: L*. Sometimes L* is realized as a short valley and immediately after that the pitch rises to realize the upstepped high boundary tone that follows. This case can be seen in figure 4. However, it is more typical for that L* to be realized phonetically as a level low tone throughout most of the stressed vowel. See figure 5. The pitch accent associated with the nuclear position and final boundary tone form the nuclear configuration of absolute questions: [L* ¡H%]. This nuclear configuration has been reported for absolute questions in several dialects of Spanish (Prieto & Roseano 2010; Toledo & Gurlekian 2009) and also for Peruvian Spanish from Lima (O’Rourke 2005).

3.2 Pre-nuclear positions in SKS absolute questions

In this section, I present the tonal units that occur in pre-nuclear positions and assign them a phonological representation. I start by examining the first pre-nuclear position. Figures 4 and 5 already showed that these positions are typically associated with a rising bitonal unit: L+H*. The valley of the low tone is usually phonetically realized at the beginning of the stressed syllable. The peak of the high tone also occurs within the tonic syllable, usually towards the second half of the syllable nucleus.

5ToBI uses the symbols HH% (or H-H%) to represent the pitch final rising typical of absolute questions. The idea behind that representation is that at the end of phrases there are actually two boundaries, each associated with a tone: a phrase tone (H-) and a boundary tone (H%). Since this study represents an initial exploration of the intonational properties of SKS absolute questions, I prefer to use the notation ¡H% for the time being because I consider it phonetically more transparent and it carries less theoretical assumptions for which I have not yet found evidence in favor or against.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 58 Jose Elias-Ulloa LFA te sientes bien 441

400

) 350 z H (

h c t i 300 P

250

193200

L+H* L* ¡H%

te sientes bien

¿te sientes bien? (Do you feel well?)

0 0.882 Time (s)

Fig. 4: SKS: Upstepped high tone at the final boundary of Yes-No questions.

In addition to L+H*, the initial pre-nuclear position can also show a L+>H* pitch accent. As shown in Fig. 3, the symbol ‘greater than’ (>) in L+>H* is used to indicate a high tone has a late-peak alignment; that is, its peak is achieved post-tonically. L+>H* is less frequently found than L+H* but it is not uncommon. Fig. 6 shows an instance of an initial pre-nuclear position associated with a L+>H* pitch accent. In other pre-nuclear positions of SKS absolute questions, stressed syllables tend to appear deaccented. That

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 The intonational patterns of Yes-No questions in... Padrões entoacionais das perguntas sim-não no... 59 NGG quieren caramelos 333

300 ) z H (

h c

t 250 i P

200

181

L+H* L* ¡H%

quieren caramelos

¿quieren caramelos? (would you like candies?)

0 1.310 Time (s)

Fig. 5: SKS: Low pitch accent in nuclear positions of Yes-No questions.

is, although they are metrically stressed, they do not occur associated with any pitch accent. This scenario can also be observed in the second stressed syllable of the phrase in Fig. 6. Although not as frequent as the case in Fig. 6, we can also find occasions where non-initial pre-nuclear positions do receive a pitch accent, as in the second stressed syllable depicted in Fig. 7. However, this difference does not seem to correspond to any linguistic distinction.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 60 Jose Elias-Ulloa LFA Mariano tocaba la luna Was Mariano touching the glass 364 350

300 ) z H (

h c t i 250 P

200

169

L+>H* L* ¡H%

Mariano tocaba la luna

¿Mariano tocaba la luna? (Did Mariano touch the glass?)

0 1.431 Time (s)

Fig. 6: SKS: L+>H* in initial pre-nuclear position of Yes-No questions.

In figures 4, 5 and 7, the first pitch accent of each utterance has a peak with early-alignment; that is, the highest point of the high tone in L+H* occurs within the stressed syllable. However, these cases raise the question whether this alignment might be related to the fact that in each case the stressed syllable is a diphthong or a closed syllable. In other words, one might suspect it is the number of moras that makes the early-alignment of the rising pitch accents possible. However, the case presented in Fig. 6 already rules out that hypothesis since the first L+>H* pitch accent shows a late-peak

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 The intonational patterns of Yes-No questions in... Padrões entoacionais das perguntas sim-não no... 61 LFA realmente vas a venir 311 300 ) z 250 H (

h c t i P

200

161

L+H* L+H* L* ¡H%

realmente vas a venir

¿realmente vas a venir? (are you really coming?)

0 1.535 Time (s)

Fig. 7: SKS: L+H* in non-initial pre-nuclear positions of Yes-No questions.

alignment even though the stressed syllable hosting it has a diphthong. To be exhaustive, in Fig. 8, I present a case where the first pitch accent has an early- peak alignment but, this time, the stressed syllable contains a monophthongal stressed vowel. This completely rules out any correlation in SKS between peak alignment and the number of moras of the hosting syllable. I end this section showing an instance of a declarative sentence in SKS. See figure 9. It allows for a quick comparison of the differences and similarities between an absolute question and a declarative. The sentence in Fig. 9 was

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Fig. 8: SKS: Early-peak alignment within a monophthongal stressed vowel.

uttered as a reply to the request: Di qué está haciendo la mujer (tell me what the woman is doing). Unlike yes-no questions, the declarative sentence below, ‘la mujer está preparando limonada’ (the woman is preparing lemonade), shows a downstepped boundary low tone (!L%). This is in sharp contrast with the upstepped high tone we find in absolute question final boundaries (¡H%).

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Furthermore, the pitch accent associated with the nuclear position is a rising tone with its peak downstepped: L+!H*. Thus, while the nuclear configuration in absolute interrogatives is [L* ¡H%], in declaratives, it is [L+!H* !L%]. All pre-nuclear positions appear associated with a L+!H* pitch accent; that is, a rising tone with its peak occurring within the stressed syllable that hosts it. However, with the exception of the first peak, all the others appear visibly downstepped (or alternatively deaccented in other instances). However, both yes-no questions and declaratives share the preference for L+H* pitch accents in their pre-nuclear positions.

4 Comparison to the intonation of absolute questions of Pucallpa Spanish and the Shipibo-Konibo language

This section provides a comparison of SKS with the intonational characteristics of absolute questions of SK and Pucallpa Spanish. This allows us to obtain a better understanding of how similar the Spanish of SK speakers is to their native language, SK, and to Pucallpa Spanish, one of the closest varieties of Amazonian Spanish to SKS. First, I will compare it to Pucallpa Spanish and then to SK.

4.1 Pucallpa Spanish

Impressionistically, three main types of Spanish can be distinguished in Peru (Perez Silva et al. 2004): Coastal Spanish (CS), Andean Spanish (AnS) and Amazonian Spanish (AS). Each of these regional Peruvian Spanishes has several variants. Pucallpa Spanish is a type of Amazonian Spanish spoken in the city of Pucallpa, the most important urban center of the Ucayali region, where most SK communities are located, particularly along the banks of the Ucayali River. SKS is very similar to Pucallpa Spanish. The intonational differences between the two varieties of Amazonian Spanish seem to be related to the frequency with which certain tonal units occur in pre-nuclear positions. Figures 10 and 11 show typical intonational contours of absolute questions in Pucallpa Spanish. The nuclear configuration of absolute questions in Pucallpa Spanish is the same we have observed in SKS: [L* ¡H%]. That is, the nuclear position obtains a low tone, L*; and the boundary at the end of the question receives an upstepped high tone, ¡H%. In initial pre-nuclear positions of absolute questions, both Pucallpa Spanish and SKS share a preference for the pitch accents: L+>H* and L+H*. The

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 64 Jose Elias-Ulloa

Fig. 9: SKS: Declarative sentence.

latter is a rising tone with its peak attained during the stressed syllable. The former, also a rising tone, has its peak occurring in the post-tonic syllable. The main difference between SKS and Pucallpa Spanish, however, seems to be the preference for these pitch accents. In Pucallpa Spanish, the favorite pitch accent seems to be L+>H* while SKS prefers L+H*. Non-initial pre-nuclear

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 The intonational patterns of Yes-No questions in... Padrões entoacionais das perguntas sim-não no... 65 CAA Lalo ganó el regalo 471 450

400 ) z 350 H (

h c t i

P 300

250

200 181

L+>H* L* ¡H%

Lalo ganó el regalo

¿Lalo ganó el regalo? (Did Lalo win the present?)

0 1.420 Time (s)

Fig. 10: Pucallpa Spanish: Intonational contour of Yes-No questions.

positions of absolute questions in both Pucallpa Spanish and SKS generally occur unaccented or downstepped. For the sake of comparison, in Fig. 12, I show a declarative sentence from Pucallpa Spanish. It has a nuclear configuration similar to the declaratives in SKS: [L+!H* L%]. The first pitch accent in Pucallpa Spanish has a preference for showing a late-peak alignment (that is, the peak of the high tone occurs on the post-tonic syllable). Rising-pitch accents in the first pre-nuclear position can also appear with an early-peak alignment in Pucallpa Spanish, but this is somehow not as frequent as in SKS. Garcia 2011 provides an in-depth

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 66 Jose Elias-Ulloa ER quieres venir a tomar limonada conmigo 391

350 ) z

H 300 (

h c t i P 250

200 183

L+>H* L* ¡H%

quieres venir a tomar limonada conmigo

¿quieres venir a tomar limonada conmigo? (Do you want to come for a lemonade with me?)

0 1.792 Time (s)

Fig. 11: Pucallpa Spanish: Intonational contour of Yes-No questions.

study of declarative sentences in Pucallpa Spanish. The description I provide for declarative sentences in Pucallpa Spanish is compatible with that Garcia reports in his study. The only difference I find is that Garcia 2011 indicates that the pitch accent L+>H* is not very frequent in Pucallpa Spanish declarative sentences. This contrasts with the data I collected for absolute interrogatives and the difference should be studied further. It might be that interrogatives prefer L+>H* while declaratives prefer L+H*. Since this is outside the scope of this work given that the main concern here is to provide a first approximation to the intonational patterns of absolute questions in SKS, I leave this issue for future research.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 The intonational patterns of Yes-No questions in... Padrões entoacionais das perguntas sim-não no... 67 CAA Lalo ganó el regalo 471 450

400 ) z 350 H (

h c t i

P 300

250

200 181

L+>H* L* ¡H%

Lalo ganó el regalo

¿Lalo ganó el regalo? (Did Lalo win the present?)

0 1.420 Time (s)

Fig. 12: SKS: Low pitch accent in nuclear positions of Yes-No questions.

In figures 13 and 14 I compare a typical intonational contour for absolute questions in SKS and Pucallpa Spanish. The questions, in order of appearance are: ¿Marina está entrando? (Is Marina coming in?), and ¿Lalo ganó el regalo? (Did Lalo win the present?). Next to each graph I provide a bullet-list summary of the main properties of the intonational properties of yes-no questions in that variety with regard to its nuclear configuration (nuclear position and final boundary), initial pre-nuclear position and non-initial pre-nuclear positions.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 68 Jose Elias-Ulloa

Both variants are alike. They have the same nuclear configuration: L* ¡H%. However, they tend to diverge in their treatment of pre-nuclear positions and specially the initial pre-nuclear position. There, the two varieties tend to display a rising pitch accent. However, the particulars of the peak alignment and height of that pitch accent vary. Pucallpa Spanish tends to align the peak with a post-tonic syllable while SKS tends to align it within the vowel of the stressed syllable. In figures 13 and 14, I list, in order of preference, other alternatives each of those varieties of Peruvian Spanish could exhibit.

(8) Intonation of absolute questions in SKS and Pucallpa Spanish

a. Shipibo-Konibo Spanish (SKS) (see Fig. 13) i. Bilingual variety of Peruvian Amazonian Spanish. ii. Nuclear configuration: L* ¡H%. iii. Initial pre-nuclear position: L+H* (alternetively: L+>H*). iv. Other pre-nuclear positions: usually deaccented or downstep- ped but they can also show: L+H*.

b. Pucallpa Spanish (see Fig. 14) i. Monolingual variety of Peruvian Amazonian Spanish. ii. Nuclear configuration: L* ¡H%. iii. Initial pre-nuclear position: L+>H* (alternetively: L+H*). iv. Other pre-nuclear positions: usually deaccented or downstep- ped but they can also show: L+>H*.

4.2 Shipibo-Konibo (SK)

This section describes the intonation of yes-no questions in SK. Figures 13 and 14 depict a typical intonational pitch contour for this type of questions: ¿Ikonri Marina ransaikai? /ikUnãüi maRina ãüansaikai/ (Is it true that Marina is going to dance?). In SK, absolute questions end in a rising boundary tone with an upstepped peak: L¡H%. In figure 15, we can see clearly that at the end of the yes-no question, the pitch falls after the last stressed syllable and then rises. This is different from what we found in SKS, where the boundary tone was simply an upstepped high tone. The nuclear position in SK is also different from that of SKS. While in SKS, the nuclear position receives a low tone (L*), in SK, the nuclear position shows a rising tone with an early-peak alignment (L+!H*). Thus, the nuclear

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 The intonational patterns of Yes-No questions in... Padrões entoacionais das perguntas sim-não no... 69 NGG Marina está entrando 288

250 ) z H (

h c t i P 200

160

L+H* L* ¡H%

Marina está entrando

¿Marina está entrando? (Is Marina coming in?)

0 1.627 Time (s)

Fig. 13: SKS: Low pitch accent in nuclear positions of Yes-No questions.

configuration in SK is structured out of two rising tones: L+!H* L¡H% (as opposed to the SKS nuclear configuration: L* ¡H%). Furthermore, it should be noted that syllables carrying main stress in SK always attain a rising pitch accent with an early-peak alignment: L+H*. This is a consistent phenomenon in SK even in non-initial pitch accents (c.f. SKS - see the case depicted in Fig. 7). Finally, it is worth observing that there is a consistent difference between the peak height of L+H* when it occurs in the initial pre-nuclear position compared to other stressed syllables. All the high tones of the pitch accent L+H* that follow the one in the initial pre-nuclear position usually appear noticeably downstepped: L+!H*. This difference is not just the result of the pitch contour phonetic downtrend.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 70 Jose Elias-Ulloa ELI 04 miro la bodega 381

350

) 300 z H (

h c t i

P 250

200

157

L+>H* L+!H* L%

miró la bodega

miró la bodega (he looked at the grocery store)

0.054 1.546 Time (s)

Fig. 14: Pucallpa Spanish: Declarative sentence.

5 Conclusions

Shipibo-Konibo Spanish is a bilingual variety of Peruvian Amazonian Spanish. It shares many intonational characteristics with Pucallpa Spanish. In order to study the intonational patterns of absolute questions, we divided them into two parts: the nuclear configuration and the pre-nuclear positions. The results of this study suggest that the nuclear configuration can be regarded as the place where most of the crucial features of yes-no questions reside. In this position, we do not find any discrepancy between SKS and Pucallpa Spanish. They show a low pitch accent associated with the stressed syllable of the phrase-final word followed by an upstepped high boundary tone. I have represented this nuclear configuration as: L* ¡H%.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 The intonational patterns of Yes-No questions in... Padrões entoacionais das perguntas sim-não no... 71

Fig. 15: SK: Intonational contour of absolute questions.

That fact is, in itself, a striking finding since we have also found out that in SK the nuclear configuration is quite different: [L+!H* L¡H%]. This nuclear configuration is completely absent in SKS. All the variation we found between SKS and Pucallpa Spanish occurs with regard to the pre-nuclear positions. There is also another common characteristic between SKS and Pucallpa Spanish: deaccentuation (that is, stressed syllables that appear without a pitch accent associated with them.). SKS has a tendency to deaccentuate non-initial pre-nuclear positions as does Pucallpa Spanish. However, deaccentuation is more common in Pucallpa Spanish than in SKS. This is probably a feature SK speakers still transfer onto their Spanish from SK where deaccentuation in general seems to be an unusual phenomenon.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 72 Jose Elias-Ulloa

In the pre-nuclear positions, we can see another type of influence of SK onto SKS: the alignment of pre-nuclear rising pitch accents. In SKS, they tend to appear with their peak aligned with the stressed syllable that hosts them; that is, they have early-peak alignment. That is unlike Pucallpa Spanish where the peak tends to be aligned with the next unstressed vowel. Table 2 lists, by their intonational positions, the tonal units we have found in SKS in absolute questions. It shows both the preferred SKS intonational contour as well as other positional alternatives, if there is one available.

Pre-nuclear positions Nuclear configuration Initial Non-initial Nuclear position Final boundary Preferred L+H* Deaccentuation L* ¡H% Alternatives L+>H* L+H* – –

Tab. 2: Tonal units found in SKS absolute questions.

Figures 16, 17 and 18 offer a schematic representations of each of the tonal units listed in Table 2.

Fig. 16: L+H* Fig. 17: L+>H*

Fig. 18: Nuclear configuration: L* ¡H%

The picture that has emerged from this study is that SKS, although not intonationally identical to Pucallpa Spanish, is similar. However, the general impression of two dialects as being similar or different is not only based on their intonational patterns. There are other linguistic and non-linguistic aspects that contribute, as well. The intonational contour is just one piece in a complex sound system. Other bits of this sound system that I have not talked about in this article are, for instance, the phonological behavior and phonetic realization of segments and its interaction with prosody in SKS. This

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 The intonational patterns of Yes-No questions in... Padrões entoacionais das perguntas sim-não no... 73 is an important factor that must be addressed in the future to have a more complete depiction of what makes SKS unique. Figures 16, 17 and 18 show schematic representation of the tonal units found in SKS absolute questions. A final topic for future research I would like to suggest is the study of the correlation between the intonational patterns of SKS and the degree of bilingualism in Spanish of SK speakers. The data presented in this article came from SK speakers that are highly advanced bilinguals. It would be interesting to see what the results would be in SK speakers that have an intermediate or more basic knowledge of Spanish. Those topics remain to be investigated.

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Received: 01/24/2015 Accepted: 02/26/2015

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767

PAPIA, São Paulo, 25(1), p. 77-102, Jan/Jun 2015.

Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin

Beatriz Christino1 Universidade Federal do Rio de Janeiro/ faperj, Brasil [email protected]

Abstract: This work presents the first description of the variable gender agreement in nominal phrases in Huni-Kuin Portuguese, which is the specific Brazilian Vernacular Portuguese variety used as second language by the Huni-Kuin people (which belongs to the Panoan ethnolinguistic family). Our corpus was extracted from eight spontaneous speeches collected during a fieldtrip to the cities of Cruzeiro do Sul and Marechal Thaumaturgo, and five villages of the Breu River Reserve. We analyzed the presence/absence of gender agreement in modifiers/determiners considering different word classes (articles, adjectives, possessive pronouns, quantifiers) and the gender of the noun head (masculine/feminine). We could observe that the overgeneralization of the masculine gender (unmarked) is not the only strategy that makes gender agreement in Huni- Kuin Portuguese distinct from L1 speakers’ patterns. In the class of possessive pronouns, it seems possible to represent the gender of a human possessor. Structures indicating that the gender of a modifier/determiner in Huni-Kuin Portuguese can be conditioned by the noun head of an embedded adjunct were also identified. This process suggests the transfer of a Panoan

1 I would like to thank Márcia Nayane Moreira Matos, Amanda de Matos Silva and Welliton de Oliveira for their collaboration in this research.

e-ISSN 2316-2767 78 Beatriz Christino

characteristic: a strong relation between the right border of a linguistic form and the expression of core grammatical functions.

Keywords: Amerindian-Portuguese; Huni-Kuin Portuguese; gender agreement.

Resumo: Este artigo apresenta uma primeira descrição da concordância variável de gênero nos sintagmas nominais em Português Huni-Kuin (a variedade linguística utilizada como segunda língua pelo povo Huni-Kuin, pertencente à família etnolinguística Pano). Com base em oito depoimentos espon- tâneos coletados durante trabalho de campo nos municípios acreanos de Cruzeiro do Sul e Marechal Thaumaturgo, assim como nas cinco aldeias da Terra Indígena do Rio Breu, foi feita a análise da presença/ausência de concordância de gênero em modificadores/determinantes, levando-se em consideração as diferentes categorias gramaticais (artigos, adjetivos, pronomes possessivos, quantificadores) e o gênero (masculino/feminino) do nome núcleo. Foi possível observar que a generalização do masculino (a forma não-marcada) não é a única estratégia possível no que tange a configurações de marcação de gênero distintas daquelas adotadas pelo falante de L1. Parece haver a possibilidade, no terreno dos pronomes possessivos, de representação do gênero de um possuidor humano. Foram identificadas, ainda, algumas estruturas indicativas de que em Português Huni-Kuin o gênero de um modificador/determinante pode ser estabelecido pelo nome núcleo de um adjunto encaixado. Nesse último caso, cabe postular um processo de transferência de um traço das línguas Pano: a relação entre a extremidade da direita de uma forma linguística e a expressão de categorias gramaticais fundamentais.

Palavras-chave: Português-Indígena; Português Huni-Kuin, concordância de gênero.

1 Introduction

In Brazilian Vernacular Portuguese, there is variation in the overt plural number agreement between a noun head and its modifiers and/or determiners. Its speakers tend to express the morpheme –s, which indicates plural, only in the first item of the noun phrase rather than in all its constituents as

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 79

in Standard Portuguese (this well-known phenomenon was investigated by Scherre 1994, among many others). On the other hand, overt gender agreement in all constituents of the noun phrases can be characterized as categorical in such variety. This was appointed by Holm (2008: 92, 101) in his analysis of the BVP partial restructuring. However, there are a few Brazilian dialects that do not fit such description. One of them is the traditional dialect of Cuiabá (the capital of the Mato Grosso State) and its neighboring cities. Showing a variable gender agreement, the grammar of this variety allows feminine noun heads to be associated to masculine forms of modifiers, such as in (1) casado com meu irmã [‘married with my sister’] (Lima 2010) or (2) é pai desses duas criança mais novo meu [‘he is father of my younger two kids’] (Dettoni 2005). In fact, (1) contains the masculine first person possessive pronoun meu referring to the feminine noun head irmã (= sister), instead of the feminine form – minha, while in (2), there is a feminine noun head criança associated with a numeral in the feminine form (duas), but with a set of masculine forms: a demonstrative (desses, instead of dessas), an adjective (novo, instead of nova) and a possessive pronoun (meu, instead of minha). Dettoni (2005) analyzed anaphoric constructions in the traditional dialect of Cuiabá, describing the variation between ela (feminine)/ ele (masculine) as third person singular pronouns associated to feminine lexical items. The other BVP varieties in which variable gender agreement is observable are deeply related to linguistic contact situations, either diachronically or synchronically. The dialect named Afro-Brazilian Portuguese, given its sociohistorical background, belongs to the first group (cf. Lucchesi, Baxter and Ribeiro 2009). It corresponds to specific rural varieties spoken by direct descendants of African slaves, who remain living in isolated communities (Quilombos) established by their ancestors. Especially among the elderly members of these groups, as verified by Lucchesi (2009), structures similar to (1) and (2) are possible. He registered the parallel use of feminine noun heads with feminine determiners (as in (3) trabalho na minha terra, ‘I work in my land’) and NPs without overt gender agreement (as in (4) cada um tem um natureza, ‘each one has one nature’) (Lucchesi 2009: 307-8). The bolded indefinite article in (4) assumes the masculine form um, instead of the feminine – uma. Characterized by current language contact situations, the second group of BVP dialects showing variable gender agreement encompasses all varieties used as second language by Native Brazilian peoples. The way speakers of these Amerindian varieties express linguistic categories that do not belong to the grammar of their mother tongues (what is precisely the case of gender

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 80 Beatriz Christino in Portuguese) assumes a particular relevance and often reveals processes associated to L2 acquisition universals or, on the other hand, strategies involving some degree of transfer of L1 characteristics. Even though the great majority of these varieties is far from being described, a growing interest in their study has continuously been verified. A few examples among the vast universe of Amerindian Portuguese varieties are given in the next paragraphs. Speakers of a Jê language living in the state of Pará, the Parkatejê, avoid feminine forms in modifiers and determiners (cf. Ferreira 2005). Hence, they overgeneralize masculine forms the unmarked element of the Portuguese gender system, in which masculine forms such as eles (3rd person plural pronoun) are selected when there are referents/noun heads belonging to both genders. Feminine gender forms (such as elas) are used only in contexts containing feminine referents. We can infer that this overgeneralization of masculine forms is a consequence of a universal of L2 acquisition. Christino and Lima e Silva (2012) verified that Kaingang Portuguese admits structures such as (5) palavras emprestados do Português, (‘words borrowed from Portuguese’), including a feminine noun head (palavras) modified by a masculine form of an adjective (emprestados, instead of emprestadas). They speak a Jê language as their mother tongue, the Kaingang are inhabitants of Southern (namely the states of Paraná, Santa Catarina and Rio Grande do Sul)2. The state of Pernambuco is home to the Fulni-ô, whose first language is classified as belonging to the Macro-Jê stock. Observing their specific Portuguese dialect, Costa (1993) also reported a variable gender agreement. An analysis of the variable gender agreement in the contact variety shared by six native Brazilian peoples in the Upper Xingu River Reserve was carried out by Macedo & Lucchesi (1997). The examples they provide also show feminine noun heads in association with masculine forms. As we will demonstrate in the remaining sections, such combination is not the only possible configuration for the absence of overt gender agreement in Huni-Kuin Portuguese. Corresponding to the specific BVP dialect used as a second language by the Huni-Kuin people, this variety can associate masculine noun heads to feminine forms of determiners/modifiers. The aim of our investigation is to provide the first description of gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases based on the analysis of

2 There are also Kaingang groups in the state of São Paulo that have experienced a process of language substitution and presently speak only Portuguese.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 81

eight spontaneous speeches recorded during a field trip to the cities of Cruzeiro do Sul and Marechal Thaumaturgo, as well as to five villages in the Breu River in January, 20143. This paper is structured as follows: section 2 has a brief description of the Huni-Kuin people; section 3 focuses on grammar peculiarities of Huni-Kuin Portuguese such as plural marking on the right end of the noun phrases; section 4 analyzes gender agreement in Huni-Kuin noun phrases, taking into consideration the differences between constructions with masculine and feminine noun heads, as well as how each determiner/modifier word class behaves. Finally, section 5 presents our conclusions and final remarks.

2 The (self-defined) bilingual and bicultural Huni-Kuin

Also known as Kashinawa, the Huni-Kuin (self-denomination that means ‘the authentic men’ in their language) live in the Amazon forest, on the Brazilian- Peruvian border on the Upper Juruá River Basin and also on the Purus River Region. As other Brazilian Native peoples, they had to face a very violent and tragic past of slavery and genocide. In their history, this extremely unfair situation started during the rubber boom in the turn of the 20th century (cf. Christino 2007). Untill the early 1980s, they were dominated by the extremely violent rubber plantation owners. From then on, they have (re)conquered their rights, which include the establishment of 12 reserves on the Brazilian side of the border (located in the state of Acre). Presently, they are more than 7,500 individuals, 80% of them bilinguals in the Brazilian side of the Border, and 20% use Spanish as a second language on the Peruvian side (Aguiar 1994). Therefore, a very significant proportion of the Huni-Kuin speaks Portuguese besides hantxa kuin (self-denomination that means ‘the authentic language’), their mother tongue. Also named Kaxinawa in the Linguistics literature, it is a member of the Panoan family. Non-Amerindians do not represent the only interlocutors with whom the Huni-Kuins communicate in their second language, because Brazilian Portuguese works as a vehicular language between them and the Ashaninka (whose mother tongue is an Arawakan language), their neighbors in the Breu River. This situation can be observed even in the case of interethnic marriages. Armando Henrique Kaxinawá, who used to work as a teacher in the Glória de Deus Reserve, highlighted that every child in his community is able to communicate in Portuguese without feeling disquiet and enumerated all the possible origins of interlocutors who use this language.

3 We would like to thank faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) for the financial support that made this research trip possible.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 82 Beatriz Christino

Aqui tudo criança já é sabido falá português [...] nós insina muito bem [...] tem ota criança que num fala português aí chora com medo gente, fica nervoso, aqui num nervoso mais não, tudo a hora que a pessoa vem pra cá, cunversá cuns parente..ou [...] cuns brancos, ou se é o ashaninka, os peruano (Armando Henrique Kaxinawá, Glória de Deus Reserve, recorded by the author during a field trip in 2014) [Here all the children already know how to speak Portuguese...we teach [them] very well [. . . ] There is another kid which does not speak Portuguese, then he/she cries with fear of people, he/she gets anxious, here [our children] do not get anxious anymore, every time someone comes here, [they] can have a conversation with Indians of other ethnic groups4. . . or white people, or if they are Ashaninkas or Peruvians]

As the quoted statement points out, the Huni-Kuin children’s insertion in society has two levels: among their traditional community (linked with their L1) and being able to dialogue with members of other groups – non- Amerindians (coming from both sides of the Brazilian-Peruvian border) and Amerindians from some other distinct ethnolinguistic background. As a matter of fact, the Huni-Kuins define themselves as both bilingual and bicultural. They do strive to preserve their own traditional culture, which does not imply rejecting all the elements of Brazilian or regional identities. In fact, they try to combine these two both very complex realities — being an authentic Huni-Kuin and being an active participant of Brazilian culture — searching restlessly for an ideal balance. The words of Anastácio Maia Kaxinawá (Banê), a Huni-Kuin teacher and political leader, clearly refer to that intention of achieving a cultural fusion. In the following quote, he mentions different cultural manifestations: language, dance and music, putting side by side a traditional party ritual (the mariri) and the Brazilian rhythm forró.

4 The Portuguese word ‘parente’, that primarily means ‘relative’, is generally employed in Amerindian BVP varieties spoken in the state of Acre to indicate members of whichever other Amerindian peoples.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 83

Eu danço também o mariri, os dois [forró e mariri], pá num esquecê e [...] ensiná tudo, né, as criança. [...] nós tamo aprendendo língua português e ensina também esse música [forró], festa, como funciona a cultura do Brasil. Assim nós tamo vivendo hoje. (Anastácio Maia Kaxinawá (Banê), Cruzeiro do Sul, recorded by the author during a field trip in 2014) [I also dance the mariri, both [mariri and forró], not to forget [them] and to teach everything to children. We are learning the and teaching also this music [forró], party [how a Brazilian party is], how Brazilian culture works. So we are living nowadays.]

Another meaningful example of this bicultural/bilingual self-recognition can be identified in the emphasis given by a Huni-Kuin elderly to the parallel use of its mother tongue and the Portuguese language. He made a statement on this subject during a debate about border protection strategies of his reserve against invaders involved in illegal hunting.

Os índio entendemos o língua do nauá que tão aprendendo junto. É... os índio tão aprendendo com dois língua: a língua de que nosso mesmo, a língua de português. (Ivanildo Paulino, registered during a course for Indigenous Forest Agents promoted by the Comissão Pró-Índio do Acre5) [The Indians understand the nauá [white man] language, which they are learning at the same time [as ours]. Well. . . the Indians are learning with two languages: the language that are really ours and the Portuguese language.]

In this context, the Portuguese language is considered not only a tool for a broader communication, but also necessary to manage new (useful) technologies. Thus, there is an evident need and also a generalized desire to teach the children “everything” — providing them, at the same time, with tools to understand (and to participate in) the culture of the majoritarian Brazilian society and the pride of being Huni-Kuin. Full of peculiarities, the Huni-Kuin Portuguese concretizes, at some extent, this particular Huni-Kuin way of taking part in the Brazilian society. In fact, as Maher (1996, 1998) argued, the specific BVP varieties spoken by Amerindian nations must be viewed as a relevant ethnic identity sign. The next sections deal with particular characteristics of Huni-Kuin Portuguese (henceforth HKP), trying to recognize aspects derived from universals of L2 acquisition, as well as from L1 transfer processes.

5 We am very grateful to the Comissão Pró-Índio do Acre, a NGO responsible for such course, that kindly provided us the audio record.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 84 Beatriz Christino 3 The uniqueness of Huni-Kuin Portuguese (HKP)

Our ongoing research on the morphosyntax of Huni-Kuin Portuguese has been identifying a set of grammar particularities that we briefly summarize here. Some of them, as we will show, seem to be associable to processes of transfer, reflecting, at some degree, grammar characteristics of . Hantxa kuin or Kashinawa is an SOV language with a quite agglutinative nature showing a split-ergativity case-marking system, in which first and second person pronouns assume a nominative-accusative paradigm, while noun phrases obey an ergative pattern (Dixon 1994: 86; Camargo 2005). In the ergative system, subjects of transitive clauses are the marked structure that receives the ergative case: expressed by a nasal ending or by much less common allomorphs such as –na or –ni. The absolutive case, related to subjects of intransitive clauses and direct objects of transitive clauses, has no overt morphological marking in Hantxa kuin/Kashinawa. Panoan languages, such as Kaxinawa do not present agreement processes neither inside noun phrases nor inside verbal phrases. They are known by their sophisticated switch-reference systems and by showing a participant agreement in secondary predicatives (Valenzuela 2005, 2005a). In Hantxa Kuin/ Kaxinawa, the participant agreement assumes an ergative pattern: secondary predicatives oriented to intransitive subjects or direct objects do not have any phonological markings, in contrast to those oriented to transitive subjects, which obligatorily include the suffix –shun (Christino 2010). Thinking in terms of transfer, as proposed by Christino & Baxter (2013), the nature of the Kashinawa absolutive case could be an explanation for the absence of prepositions after verbal forms in some HKP sentences, such as (6) and (7). Our hypothesis is that, in such sentences, the verbal complements endowed with the semantic role of patient were built in the same way as their equivalents in Kashinawa (namely absolutives without an overt specific marker).

(6) Se nós cuidar nossas florestas. (7) Eu esqueci de falar o lixão.

Let us compare (6) and (7) with the parallel structures in varieties of BVP spoken as L16:

6Abbreviations: accus: accusative; art: article; AUX: auxiliary; DEF: definite; DEM PRON: demonstrative pronoun; EXIST: existential; fem: feminine; FUT: future; indef: indefinite; INF: infinitive; masc: masculine; MOD: modal verb; pl: plural; POSS PRON: possessive pronoun; PrCONT: present continuous; PRES: present; sg: singular.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 85

(6’) Se nós cuidar de nossas florestas if 1pl to take care.INF of 1pl POSS PRON forests ‘If we take care of our forests.’

(7’) Eu esqueci de falar do lixão 1sg to forget.PAST to talk about garbage dump ‘I forgot to talk about the garbage dump.’

Another syntactic characteristic of the Kashinawa language that can be recognized in some HKP sentences is the use of the SOV word-order. Among dozens of sentences in accordance with the canonical Portuguese word-order (SVO), a fluent HKP speaker can say something like (8) ele chamô a macaxera comê ‘he called us to eat cassava’ (lit. ‘he called the cassava eat’ ) or (9) a mãe que a gente cria. In Brazilian Portuguese, a gente, a first person plural pronoun, may function either as subject or as direct object. Native speakers of BVP interpret the relative clause in (9) que a gente cria, in a way that could be translated by “that we raise”, since the relative pronoun is considered the anaphoric substitute for mãe (mother) and the direct object of the relative clause. However, as semantic and discursive clues warn us, what the HKP speaker meant by the construction in (9) was ‘the mother that raises us’. Thus, he expressed an unequivocally SOV sentence with the purpose of indicating the role of Huni-Kuin women in their society. Like all other Panoan languages, Kashinawa shows neither a grammar category similar to gender in Portuguese nor one similar to the articles. Christino (2013) investigated some pragmatic, semantic, morphosyntactic and syntactic factors that influence the use of definite articles in HKP. Unlike BVP varieties spoken as L1, in Huni-Kuin Portuguese definite referents without definite articles are possible. This can be observed in (10). On the other hand, some contexts in this Amerindian variety may show, roughly speaking, an overuse of the definite articles, as in (11).

(10) Cada vez tô mais conseguindo de melhorá each time AUX more to achieve.PrCONT to improve mais [Ø] trabalho” more [Ø] work ‘Each time I am achieving to improve more [the] work.’

(11) Eu não tenho mais a dúvida 1sg not to have.PRES anymore DEF art.fem.sg doubt ‘I don’t have any doubt anymore.’

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 86 Beatriz Christino

Among the characteristics of Huni-Kuin Portuguese not shared with BVP varieties spoken as L1, there is also a peculiar way of indicating plural number. In order to achieve a better grasp of this process, it is necessary to take into account the way the grammar category ‘number’ functions in Hantxa Kuin/ Kaxinawa. Unlike Portuguese, the utterance of number (singular/plural) is not obligatory in Panoan languages. Usually, the context clarifies how many (one/more than one) items are referred to. Whenever a speaker wants to highlight the plural number, it can use the suffix –bu. Although far from being the most used plural marking strategy in Huni- Kuin Portuguese, the addition of the plural marker –s (or its allomorphs) only on the right border of a NP occurs in the oral texts of a significant number of speakers in the corpus we have been analyzing. We could observe NPs such as (12) outro velho–s (‘other oldmen’) and (13) essa pesquisa-s (‘these researches’). The corresponding forms in Standard Portuguese would be (12’) outro–s velho–s and (13’) essa–s pesquisa–s, while in BVP varieties they would be (12”)outro–s velho and (13”) essa–s pesquisa. As our partial results indicate, this right-only assigned plural marking strategy can be influenced by a combination of factors, some of which are related with structures from the Portuguese language. For instance, this plural marking at the right end appears to be much more common in NPs without definite articles. In addition, plural forms containing a phonic salience are more likely to have this Huni-Kuin Portuguese peculiar plural marking strategy. The role of phonic salience can be illustrated by (14) and (15).

(14) Tô trabalhando pelo conhecimento 1sg AUX to work PREP+ DEF.art.masc knowledge do meu tradições PREP+ DEF.art.masc 1sg POSS PRON traditions ‘I am working to know my traditions.’

(15) tempo ancestrais perdemo muitas coisa time ancient 1pl to lose.PAST many things ‘We have lost many things from ancient times.’

The singular forms of the nouns highlighted in (14) and (15) are, respectively, tradição and ancestral. We can recognize the same pattern as in (15) (ending –al in singular/ending –ais in plural) in a recurring combination in HKP: (16) erva medicinais (which means ‘medicinal herbs’ and would be expressed as (16’) ervas medicinais in Standard Portuguese or as (16”) ervas medicinal in BVP varieties spoken as L1).

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 87

Structures such as (16) erva medicinais are neither part of the input data for Brazilian Portuguese learners nor can be explained by universals of L2 acquisition. We suppose that plural markings only in the right end of a NP are possible in Huni-Kuin Portuguese due to a L1 transfer process. As for other Panoan languages, Hantxa kuin/Kashinawa does not allow prefixes and tends to build sentences containing large sequences of suffixes. The last elements in those chains of suffixes are the ones representing most grammatical notions, such as tense, aspect, mood, evidentiality and illocutionary force. Thus, the Huni-Kuins’ L1 shows a close relation between (a) the right end of a linguistic form and (b) the expression of core grammatical notions. Our hypothesis is that this relation also characterizes NPs such as (14), (15) and (16) in Huni-Kuin Portuguese. In our work on HKP morphosyntax, we could observe some tendencies regarding gender agreement, which will be presented in the next section.

4 Gender agreement in Huni-Kuin noun phrases

At this point of our research, we have analyzed gender agreement in noun phrases of a HKP corpus sample collected during fieldwork in the cities of Cruzeiro do Sul and Marechal Thaumaturgo, as well as in the five villages of the Reserve located in the Breu River in January, 2014. In spontaneous speeches of eight Huni-Kuins, we have identified 960 tokens containing determiners or modifiers that contained overt gender agreement with their respective noun- heads in sentences built by L1 speakers of BVP varieties. We could verify that in 267 of them (or 27,8%), there was an absence of gender agreement, allowing us to consider Huni-Kuin Portuguese as a linguistic variety characterized by a variable gender agreement, which is a characteristic shared with other L2 varieties of Brazilian Portuguese, especially those spoken by Native peoples, as we have pointed out above. Unlike Afro-Brazilian Portuguese and other Amerindian BVP varieties already mentioned, in Huni-Kuin Portuguese speakers can also combine masculine noun heads with feminine forms of determiners/modifiers. Even though this kind of structure does not reach a quarter of the tokens not showing overt agreement (57 from 267 or 21,3%), its relevance should not be underestimated, since only one of the investigated speakers did not use this combination. It is also worth noting that the association of feminine forms with masculine noun-heads cannot be explained by universals of L2 acquisition, inasmuch as it corresponds to an overuse of the marked structure in a characteristic context of unmarked ones. Table 1 shows the percentage of

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 88 Beatriz Christino Speaker Tokens without Tokens of masculine noun % gender agreement heads with feminine det./mod. 1 (Ad) 14 3 21,4% 2 (Ar) 53 13 24,5% 3 (An) 78 9 11,5% 4 (El) 19 3 15,8% 5 (Mx) 12 0 0% 6 (Tu) 17 4 23,5% 7 (Va) 43 14 32,5% 8 (Fe) 31 11 35,5% Total 267 57 21,3%

Tab. 1: Number of tokens of masculine noun heads with feminine forms.

tokens of masculine noun heads with feminine determiners/modifiers on each speech analyzed. The ratio of tokens in which a masculine noun head was expressed with feminine forms of determiners or modifiers exceeded by one-fifth each five speakers (see Table 1). Among the 57 tokens of this type, only one represents a feminine modifier that follows the masculine noun head:

(17) nós bebemo também remédio 1pl to drink.PRES too medicine (masc. noun head) boa good (fem.form) ‘We also drink good medicine.’

In (17), the masculine noun head remédio (‘medicine’) comes after the feminine form of an adjective, boa (instead of the masculine one, bom). Since the structure of this NP, at the current stage of our inquiry, can be clearly characterized as an exception, we suppose that feminine forms of modifiers tend not to be expressed after a masculine noun head in Huni-Kuin Portuguese.

4.1 Gender agreement between articles and their noun heads

So far, we have been considering the tokens not showing an overt gender agreement, despite of their structural differences. Now, we proceed to the

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 89

description of their behavior according to their respective word classes. It is useful to warn the reader that we have separated definite articles and their contractions with prepositions (do, da, no, na). There are morphosyntatic processes in Huni-Kuin Portuguese, previously investigated by us, which suggest that contractions are perceived by its speakers in a particular way, sharply differentiated from the treatment given to definite articles not linked to prepositions (cf. for example, Christino & Baxter 2013; Christino 2013). With the intention of illustrating this particular nature attributed to contractions in HKP, we would like to stress that the corpus includes the NP (18) “artesanato des conta” (‘bead handwork’), whose constituent des can be decomposed as “de” + “–s”, or “preposition” + “plural morpheme”. Because of the absence of a definite article between them, such structure would never be expressed by a Brazilian Portuguese L1 speaker. Its words could only be (18’) artesanato da–s conta, containing a contraction with the feminine form of the definite article a or (18”) artesanato de conta(s), showing an adjunct with an NP not characterized by definiteness. We have already concluded that (18) is not a hapax legomenon since the elderly man that formulated the above mentioned statement, “os índio tão aprendendo com dois língua” [‘The Huni Kuin are learning with two languages’], also referred to the urgency of protecting the environment with the words reproduced in (19), where we can easily identify two contractions with definite articles followed by one occurrence of de + –s.

(19) pa cuidá [...] da in order to to take care.INF PREP+DEF.art.fem.sg floresta, das caça, des pesca forest of–DEF.art.fem.pl game PREP.pl fish ‘In order to take care of the forest, of the games and of fishes.’

In terms of gender agreement, we can now compare definite articles belonging and not belonging to contractions. The group of tokens of definite articles not belonging to contractions totalled 498 examples, from which 211 are related to feminine noun heads and 287 are subordinated to masculine noun heads. Proportionally, the absence of gender agreement were five times higher among the NPs with feminine noun heads. In fact, the amount of (not contracted) definite articles linked to feminine noun heads that did not show an overt gender agreement was 47 (or 22.27%). On the other hand, the ratio of (not contracted) definite articles with masculine noun heads revealing such behavior was 12/287 (or 4.18%). All of the speakers analyzed expressed feminine noun heads after masculine forms of (not contracted) definite articles.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 90 Beatriz Christino

Three of them used this structure more than ten times. In contrast, three speakers did not formulate any tokens of (not contracted) definite articles in NPs with masculine noun heads not showing gender agreement. Taking into account that the speaker responsible for the highest amount of tokens containing (not contracted) definite articles not agreeing with masculine noun heads used them only five times, the nature of the process becomes even clearer. In some of the tokens containing a (not contracted) definite article that does not agree in gender with the masculine noun head, there is an –a ending (the typical ending for feminine nouns in Portuguese). This could be an explanation for the presence of the feminine form of the definite article in these contexts. (20) is part of this group.

(20) A dia todo se não DEF.art.fem day (masc.noun head) all if not chove to rain.PRES ‘All day long, if it does not rain.’

Nevertheless, it is relevant to note that masculine noun heads with the ending –o (typical ending for masculine nouns in Portuguese) also appeared with feminine definite articles. Such situation can be illustrated by (21) and (22).

(21) A gente num dá pá amostrar a 1pl not MOD to to show.INF DEF.art.fem trabalho work (masc.noun head) ‘We cannot show the work.’

(22) Beatriz nós também ajuda com as Beatriz 1pl too to help.PRES with DEF.art.fem projeto project (masc. noun head) ‘Beatriz also helps us with the projects.’

From a group of 315 tokens presenting a definite article in a contraction, the amount linked to NPs with feminine noun heads totalled 206, from which almost one fifth (18.93% or 39 NPs) did not overly agree in gender with their noun heads. All of the speakers built structures not showing gender agreement

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 91 between definite articles in contractions and their feminine noun heads. The way such configurations are distributed in the corpus, though, is far from balanced: one of the speakers alone expressed 52.94% of such tokens. In only one of the speeches we could observe more definite articles in contractions not showing gender agreement with their respective feminine noun heads (3 tokens) than the ones showing this agreement (2 tokens). The definite articles expressed in contractions related to masculine noun heads consisted of a group of 190 tokens, from which only 10 (or 5.26%), produced by four speakers, did not agree in gender with their respective noun heads. As the very similar proportions of definite articles showing and not showing agreement with masculine/feminine noun heads have indicated, definite articles inserted and not inserted in contractions reveal an almost identical behavior regarding gender agreement. Since the corpus presents only two tokens of indefinite articles inserted in contractions, we could not proceed in the analysis of indefinite articles exactly as we did for the definite ones, and we did not split them into two groups. In the analyzed speeches, we have a total of 102 tokens of indefinite articles. A subgroup of 30 tokens (expressed by six speakers) took part in NPs with feminine noun heads and 14 (or 46.66%) did not agree in gender with their respective noun heads. Five speakers did not use gender agreement in NPs with this configuration and one of them expressed more tokens containing indefinite articles not showing gender agreement with a feminine noun head (4 tokens) than the ones showing gender agreement (2 tokens). As found in the speeches of three speakers, noun phrases with indefinite articles that did not agree with masculine noun heads resulted in approximately 7% (5 tokens in a set of 72). As we have indicated above, masculine nouns characterized by an –a ending are more likely to be associated with determiners and/or modifiers with feminine forms. Noun phrases such as that reproduced in (23) evidences this tendency among contexts with indefinite articles.

(23) Eu peguei uma pobrema 1sg to get.PAST INDEF.art.fem problem (masc. noun head) ‘I got a [health] problem.’

We recall that a native speaker of Brazilian Vernacular Portuguese would say (23’) “um pobrema” (‘a problem’).

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 92 Beatriz Christino 4.2 Gender agreement between adjectives and demonstrative pronouns and their noun heads

Considering the gender agreement behavior of the adjectives in the corpus, we can verify a meaningful difference between NPs with masculine and feminine noun heads. In the first group, there was only a single token of an adjective not showing an overt gender agreement from a total of 73 (or a ratio corresponding to 1.36%). On the other hand, almost a quarter of the adjectives related to feminine noun heads (24% of 100 tokens) did not agree with them, such as those in (24) and (25):

(24) mas medicina vivo lá ainda but medicine (fem.noun head) alive (masc.form) there still tem bastante EXIST.PRES a lot ‘But there is still a lot of alive medicine [ = medicinal herbs] there.’ (25) água bem lindo pá water (fem.noun head) very beautiful (masc.form) to bebê to drink.INF ‘Very healthy water to drink’ lit. ‘Very beautiful water to drink.’

The adjectives with the behavior illustrated by (24) and (25) — not showing gender agreement with their respective feminine noun heads — appeared in the texts of seven speakers. In (24), the feminine noun head medicina (medicine) was followed by vivo (the masculine form of the adjective meaning “alive”). Lindo (beautiful), an adjective in masculine form, was combined with the feminine noun head água (water) in (25). We can then direct our attention to the description of gender agreement in demonstrative pronouns in the examined HKP corpus. We could observe that feminine noun heads in NPs not showing an overt gender agreement are especially frequent in contexts with this pronominal category: out of 51 tokens (expressed by 7 speakers), 17 did not agree with the respective feminine noun head. (26) and (27) belong to this subgroup.

(26) esses coisa de informação DEM PRON.masc.pl things (fem.noun head) about information não é fácil not to be.PRES easy ‘These things about information aren’t easy.’

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 93

(27) aquele capoeira nós DEM PRON.masc.sg clearing (fem.noun head) 1pl pranta nosso legume to plant.PRES POSS PRON 1pl.masc vegetable ‘In that clearing we plant our vegetables.’

Structures such as (26) and (27) were used by six speakers, among which two expressed a number of demonstrative pronouns not showing gender agreement with feminine noun heads that surpassed the amount of those showing a gender agreement (respectively, 5/1 and 6/1 ratios). Only two speakers used feminine forms of demonstrative pronouns related to masculine noun heads in the analyzed corpus. This type of structure showed 12 tokens in a set of 60 sentences containing demonstrative pronouns with masculine noun heads. In (28), the feminine demonstrative pronoun “essa” (‘this’) comes before a masculine noun head — “conhecimento” (‘knowledge’).

(28) um jovem não tem INDEF.art.masc young man not to have.PRES essa conhecimento DEM PRON.fem knowledge (masc.noun head) ‘A young man does not have this knowledge.’

The speaker that expressed (28) used exactly the same structure — essa conhecimento — in three other sentences. Moreover, two of its sentences contain essa conhecimento following a preposition. Despite the absence of the combination essa conhecimento in the remaining seven speeches of the corpus analyzed, we believe that this is not an idiosyncrasy, since (29), (30) and (31) were also produced by Huni-Kuins: (29) essa conhecimento ficava de longe (‘this knowledge remained aside’); (30) com essa conhecimento tudo que eu trouxe7 (‘with all this knowledge that I have brought’); (31) essa conhecimento foi relação da ciência das animais8 (‘this knowledge is related to the animals’ science’).

7(29) and (30) were enunciated by Ibã Sales Kaxinawa, an artist and researcher, and are part of the material recorded for a documentary on ritual Huni-Kuin songs and their representation in paintings, “O espírito da floresta” (‘The spirit of the forest’), by the filmmaker (and also professor from the Universidade Federal do Acre) Amilton Mattos. 8Tadeu Siã Kaxinawa, a young teacher and political leader, declared (31) during an event about Huni-Kuin culture that took place in July 2014 in Rio de Janeiro.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 94 Beatriz Christino 4.3 Gender agreement between quantifiers and their noun heads

Not showing gender agreement was quite common among quantifiers in the examined HKP corpus. We identified 69 tokens of quantifiers associated to feminine noun heads and 31 (or 44.92%) of them did not agree in gender with the respective noun head. Six of the speakers produced sentences with NPs with such configuration, and in three of them the tokens with quantifiers + feminine noun heads without overt gender agreement are the majority, namely 9 in 10 tokens, 10 in 13 tokens and 4 in 6 tokens. Such pattern — quantifier not showing gender agreement with its respective feminine noun head — can be exemplified by (32) and (33).

(32) medicina pra curá [...] alguns medicine to to cure.INF quantifier.masc. ferida injuries (fem. noun head) ‘Medicine to cure some injuries.’

(33) então essa informação so DEM PRON.fem information (fem.noun head) todo [...] me chamô atenção quantifier.masc 1sg.accus to attract atention.PAST ‘So, all this information attracted my attention.’

For those whose first language is Portuguese, the equivalent NPs would be expressed as (32’) algumas ferida, and (33’) essa informação toda. In the corpus considered, the NPs including quantifiers and masculine noun heads that diverge from the L1 pattern of gender agreement were 9 in a total of 38 (or 23.7%). We located quantifiers related to masculine noun heads in 7 speeches: three of them presented tokens without overt gender agreement (a situation illustrated by (34) and (35)).

(34) pessoal fala ôtas people to talk.PRES DEM PRON.fem professor, alguma ôta teachers (masc.noun head) quantifier.fem DEM PRON.fem assessor assistants (masc.noun head) ‘People talk to other teachers and some other assistants.’

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 95

(35) juntos aqui muitas together here quantifier.fem.pl parabéns nós vivemo congratulations (masc. noun head) 1pl to live.PRES ‘We live here together (and deserve) many congratulations.’

In (34), the masculine noun head assessor (assistant) was linked to the feminine form of the quantifier alguma (instead of algum,‘some’). Parabéns, in (35), is also a masculine noun head and was associated to muitas (instead of muitos, the masculine form of this quantifier). One type of quantifier, whose gender agreement patterns are quite particular in Brazilian Portuguese, deserves special attention. In Standard Portuguese, there is tudo (all), a substantive pronoun, and its adjective counterparts, which agree in gender and number with their respective noun heads: todo (masculine/singular), toda (feminine/singular), todos (masculine/plural) and todas (feminine/plural). With respect to varieties of BVP spoken as L1, tudo (without any specific gender or number marking) can also be used as an adjective pronoun, appearing on the extremity (either left or right) of the NPs. “João Lennon”, a humorous profile in Facebook that provides translations of Beatles’ song lyrics into Brazilian Vernacular Portuguese9, has suggested as an equivalent for the verse from “Imagine” “imagine all the people”: (36) “imagina as pessoa tudo”. In terms of meaning, (36’) “imagina tudo as pessoa” would express exactly the same idea. The corpus of Huni-Kuin Portuguese analyzed includes NPs with confi- gurations similar to (36) and (36’). However, it also reveals tokens of tudo undertaking agreement strategies that are not possible among native speakers. Let us compare (37) and (38) — which could have been stated by native speakers of Brazilian Portuguese — with (39) and (40):

(37) nós sempre vale tudo as coisa 1pl always to value.PRES all DEF.art.fem thing ‘We always value all the things.’

(38) nós vamo tudo ficar pastor 1pl AUX FUT all to become.INF pastor ‘All of us will become pastors.’

9 Found in https://www.facebook.com/johnlennonbrasileiro?fref=ts.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 96 Beatriz Christino

(39) nóis trabalha junto com tudos 1pl to work.PRES together with all (+ plural marking –s) terra indígena reserve (fem. noun head) Amerindian ‘We work with all Amerindian reserves.’

(40) eu fiquei [...] com [...] também muito 1sg to become.PAST with also much (masc.) saudade de tudos longing of all (+ plural marking –s) meu povo POSS PRON 1p.sg.masc people (masc. noun head) ‘I got also a lot of longing of all my people.’

We can easily verify that (40) has the same configuration as (36’): a NP formed by the quantifier tudo followed by a definite article and the respective noun head. In (38), there is a combination of a personal pronoun and the quantifier tudo, which occurs quite often in BVP varieties spoken as L1 as well. In fact, this structure can be very frequently heard and even appears in texts that intend to reproduce informal dialogues. That is the case of a tweet, whose author imagined the Governor of São Paulo State saying (41) “vou multar cês tudo”10 (‘I am going to fine all of you’). Unlike native speakers’ speech patterns, (39) and (40) contain a plural inflected form of the quantifier tudo. Since L1 speakers can choose between tudo linked to any kind of noun head or an inflected form with gender and number marking that agrees with the noun head (e.g. tudo as coisa x todas as coisa, “all the things”). The presence of the plural marker –s in tudo in (39) and (40), associated to the absence of overt gender agreement in this quantifier, constitutes a peculiar structure.

4.4 Gender agreement between possessive pronouns and their noun heads

The gender agreement between possessive pronouns in the HKP corpus reveals not only characteristics that confirm general tendencies (recognizable by different word classes), but also an interesting peculiarity. Similar to other investigated word classes, the frequency proportion of possessive pronouns

10In https://twitter.com/suamaeehhomem/status/555379997175984129.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 97 not showing gender agreement with feminine noun heads is five times higher than the absence of gender agreement by NPs with masculine noun heads. The first were 33 out of 126 tokens (or 26.19%), while the group linked to masculine noun heads without gender agreement corresponds to 8 in a set of 159 (or 5.03%). All of the speakers used possessive pronouns that did not agree in gender with feminine noun heads, which contrasts with the five cases, whose texts included masculine noun heads associated to possessive pronouns without gender agreement. It is time to approach the particular nature of possessive pronouns in the analyzed corpus. Some identified structures suggest that, in Huni-Kuin Portuguese, possessive pronouns may reflect the gender of the human possessor rather than the gender of the noun head. In order to recognize that special characteristic of possessive pronouns, let us observe (42).

(42) o viadinho cutucô aqui no DEF.art.masc little deer to poke.PAST here in meu batata da perna POSS PRON 1sg.masc calf (fem.noun head) ‘The little deer poked here in my calf.’

The speaker was narrating one of its hunting experiences and referred to his own calf using the masculine form of the first person singular possessive pronoun (meu) instead of the feminine form (minha) required by the feminine noun head (batata da perna, ‘calf’). Analogously, another male speaker of HKP corpus mentioned (43) “meu ideia” (‘my idea’), linking the feminine noun head “ideia” with the masculine form of the first person singular possessive pronoun. The specificity of (43) goes far beyond gender agreement, since it represents, in Portuguese, the transfer to speeches of an ending formula — a typical and obligatory element in Huni-Kuin traditional texts and formal oratory.

(43) só isso que é meu only this relative pronoun to be.PRES POSS PRON.1.sg.masc ideia idea (fem. noun head) ‘That is all that my idea is.’

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 98 Beatriz Christino

Gender agreement oriented to the human possessor would also be an explanation for (44) tua trabalho (‘your work’). A native speaker of BVP would produce (44’) teu trabalho, with the masculine form of the second person singular possessive pronoun (as required by the masculine noun head trabalho). Given that (44) was addressed to a female interlocutor, our hypothesis is that the gender of the conversation partner determined the choice of the feminine form of the possessive pronoun (tua). Another set of NPs identified in HKP oral texts leads us to believe that structures such as (42), (43) and (44) are not a simple random misuse of gender agreement by non-native speakers, but are indeed related to a characteristic of a human possessor. Those NPs are composed of a possessive pronoun expressed in plural surrounded by a singular noun head and its singular determiner. In fact, noun heads in such constructions are collective nouns, which can be clearly associated to a group of human possessors. We show below two examples of this process.

(45) nós tamo vendo aqui na 1pl AUX to see PrCONT here in+ DEF.art.fem nossas comunidade Aldeia POSS PRON.1pl fem community village Vida Nova Vida Nova (New Life) ‘We are seeing here in our community — Vida Nova (New Life) village.’

(46) nós queremo [...] ensiná o 1pl to want.PRES to teach DEF.art.sg.masc nossos povo sobre a POSS PRON.1pl masc. pl people about DEF.art.fem educação education ‘We want to teach our people about education.’

In (45), the collective noun comunidade (community) appears associated with the plural form of the first person possessive pronoun nossas. Concerning gender agreement, there is nothing particular in such structure: a feminine form of the possessive pronoun was correlated to a feminine noun head. Similarly, in (46), the masculine noun head “povo” (people), also a collective noun, was expressed with the plural form of the first person possessive pronoun of the masculine gender: nossos.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 99 4.5 ‘Right-oriented’ gender agreement

As we have stated in the previous section, gender agreement related to possessive pronouns in Huni Kuin Portuguese is probably driven by a factor that does not play any role in L1 speakers’ agreement processes: the gender of a human possessor. We can also speculate that another type of structure identified in HKP does not represent random mistakes by non-native speakers’ use of gender agreement. Instead of being a random combination, NPs such as those in (47) and (48) indicate that HKP speakers followed the gender of a noun head embedded adjunct in order to shape the gender inflection of a word. Thus, there is no overt gender agreement between such word and its respective noun head. Six of the speakers formulated noun phrases of this nature, represented below by (47) and (48).

(47) os cura de DEF.art.masc cure (fem. noun head) of remédio é assim remedy (masc.noun head) to be.PRES so ‘The cures of medicine are so.’

(48) o caiçuma de DEF.art.masc cassava beer (fem. noun head) of alimento pacifica saúde food (masc.noun head) to pacify.PRES health ‘The cassava beer, used as food, pacifies the health.’

Exactly as cura in (47), caiçuma in (48) corresponds to a feminine noun head. This is why a native speaker of Portuguese would have joined them with the feminine form of the definite article (a/as). We tend to believe that the presence of the masculine form of the definite article in those contexts was influenced by the masculine gender of noun heads in embedded adjuncts, namely remédio (‘remedy’) and alimento (‘food’). In (49), analogously, an embedded adjunct containing a feminine noun head probably determined the feminine form of the definite article, even though it was directly subordinated to a masculine noun head — preço (‘price’).

(49) a preço da borracha DEF art.fem price of rubber (fem.noun head) caiu to drop.PAST ‘The rubber price dropped.’

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 100 Beatriz Christino

Hence, we suppose that configurations such as the illustrated by (47)-(49) reveal the expression of a ‘right-oriented’ gender agreement parallel to the right-assigned plural marking observable in (12-16). Thus, we also tend to interpret them as a transfer of the Huni-Kuins’ L1 relation between the right end of a phrase and the expression of core grammatical functions.

5 Final considerations

As we have intended to demonstrate, the bilingual and bicultural Huni-Kuins have their own Brazilian Portuguese linguistic variety. Other Amerindian varieties, called “România Novíssima” by Mattos e Silva (1987, 1988), present many specificities, which can be interrelated either to L2 acquisition universals or to processes of transfer of L1 characteristics. Sentences that assume a verb-final order in Huni-Kuin Portuguese constitute an evident example of a transfer of a syntactic characteristic of Panoan languages. With respect to gender agreement in noun phrases, we have verified in Huni-Kuin Portuguese a clear tendency to overgeneralize masculine forms, possibly related to L2 acquisition universals. Nevertheless, a small (but not irrelevant) number of masculine noun heads associated with feminine forms of determiners/modifiers indicates that the overuse of an unmarked form is not the only strategy different from L1 speakers’ patterns adopted by Huni-Kuin Portuguese regarding the gender category. Considering the differences between word classes, we could verify that the absence of overt gender agreement occurs more frequently among demonstrative pronouns and quantifiers than among articles (specially the definite ones). Given that articles vastly outnumber the other categories of determiners/modifiers in the input data for second language learners, the low frequency of articles not showing a gender agreement can be explained as a universal of second language acquisition. As a result of our study, we propose that gender in possessive pronouns in Huni-Kuin Portuguese can be determined by the gender of a human possessor, a process that cannot be associated to input data during L2 language acquisition. Further investigation is required to verify whether this HKP gender marking strategy (1) derives from a universal tendency to privilege semantic characteristics linked to the concrete world over strictly grammar mechanisms, or (2) reflects, at some extent, the participant agreement in secondary predicates characteristic of Panoan languages. In this study, we have recognized two strategies in Huni-Kuin Portuguese that constitute possible transfers of the Panoan relation between the right end of a linguistic form and the expression of core grammatical functions, i.e., the plural-marking only in the last element of an NP and the gender marking in determiners/modifiers conditioned by the noun head of an embedded adjunct. The continuation of the analysis of HKP could also reveal other transfer processes of this nature.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 Gender agreement in Huni-Kuin Portuguese noun phrases Concordância de gênero em sintagmas nominais do Português Huni-Kuin 101 References

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Received: 11/06/2014 Accepted: 02/26/2015

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 PAPIA, São Paulo, 25(1), p. 103-119, Jan/Jun 2015.

O português étnico dos povos Timbira Timbira’s ethnic Portuguese

Rosane de Sá Amado Universidade de São Paulo, Brasil [email protected]

Abstract: Decades of contact with non Indigenous have develo- ped a spoken and written specific maternal variety of Portuguese language by the Timbira people, called ethnic Portuguese. This article aims to describe phonological, grammatical and discursive aspects of this ethnic variety, seeking to analyze whether its characteristics are the result only of the transferring of the to Portuguese or whether there are issues involving the acquisition and learning of Portuguese as a second language itself.

Keywords: Ethnical Portuguese; linguistic contact; acquisition and learning of second language.

Resumo: Décadas de contato com não-indígenas ajudaram a desenvolver uma variedade específica de português língua não-materna falada e escrita pelos povos Timbira, chamado de português étnico. Este artigo visa descrever aspectos fonológicos, gramaticais e discursivos dessa variedade étnica, buscando analisar se as características são resultantes apenas de transferência da língua Timbira ou se há também questões envolvendo o próprio processo de aquisição-aprendizagem do português como segunda língua.

Palavras-chave: Português étnico; contato linguístico; aquisição-aprendizagem de segunda língua.

e-ISSN 2316-2767 104 Rosane de Sá Amado 1 Os Timbira e o contato com o português

A comunidade indígena Timbira é constituída por vários povos que foram contatados no século XIX, cuja língua pertence à família Jê. Considerados belicosos pelo império, resistiram por meio das armas às frentes colonizadoras dos seus territórios, habitando uma grande extensão de terra, situada nos cerrados do norte de Goiás até o sul do Maranhão. Após dois séculos de contato, seus territórios hoje são descontínuos e estão cercados ou invadidos principalmente por fazendas de gado, numa região de muitos conflitos pela posse da terra (Ladeira 2001). A nação Timbira é hoje composta por aproximadamente 5000 índios, formada pelos seguintes povos: no Tocantins vivem os Krahô e os Apinajé1: no Pará, vivem os Parkatejê; e no Maranhão, vivem os Krinkati, os Pykobjê, os Krenjê, os Ramkokamekrá e os Apãniekrá. No passado, esses povos estiveram ora em guerra, ora em situação de paz entre si, chamando-se ora como kamekrá (distantes, portanto, inimigos), ora como katejê (próximos, portanto, amigos); mas sempre se reconheceram como mehin (mesma ‘carne’, mesmo povo), distinguindo-os dos cupen, os estrangeiros, termo que passou a designar os não-indígenas (Azanha 1984). Ainda que os contatos com os cupen não tenham sido amistosos durante mais de um século (e os conflitos se estendem ainda hoje devido às invasões nos territórios demarcados), os Timbira, desde o século XIX, têm consciência da necessidade do domínio do português oral para lutarem por seus direitos e, atualmente, para expandirem seus estudos fora das aldeias. Contudo, todos os povos — com exceção dos Krenjê e dos Parkatejê2 — mantêm viva sua língua materna e só se comunicam entre si por meio dela. O aprendizado do português no século XIX e até meados do século XX ocorreu por meio do contato com as comunidades regionais e somente a partir da década de 1960 é que as escolas missionárias estrangeiras passaram a se instalar em várias aldeias, o que, contudo, não garantiu um aprendizado formal do português. Em relato registrado na tese de Siqueira Jr. (2007), um dos Timbira, Jonas Polino Panheh Gavião, narra sua experiência de educação entre os missionários:

1O povo Apinajé, embora se considere Timbira, fala uma variedade muito mais próxima do Mebengokrê (Kayapó, língua da família Jê) do que dos demais povos Timbira. Duas aldeias — Prata e Palmeira — participam da Associação Wyty Catë, associação que congrega outras oito aldeias de povos Timbira. Mais informa- ções sobre a Wyty Catë, ver . Acesso em: 18 abr. 2015. 2Como os Krenjê e os Parkatejê não participam das associações nem dos trabalhos de educação que congregam os povos Timbira, não analisaremos dados produzidos por falantes desses povos. Para aprofundamento sobre a variedade Parkatejê, recomendamos os trabalhos de Araújo (1989) e Ferreira (2003).

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Então em 1972 eu tinha 7 anos de idade, eu não usava roupa, eu andava pelado, aí tinha escola nas aldeias que os missionários ensinavam na língua, a primeira roupa que ganhei foi deles, eles me deram a roupa para eu poder ir para a escola. [...] Aí eu fiquei, eu fui para a escola, comecei estudar, a gente tem uma quantidade certa assim de livros que eles tem, diz que quando você termina tudo isso você aprendeu ler e escrever. [...] Fui chamado para estudar e nós não tinha o direito de estudar na língua portuguesa, nós só tinha direito de estudar na língua indígena. (p. 284)

Já com a introdução da escola pública e laica nas aldeias Timbira, a partir da década de 1990, garantida pela Constituição de 1988, o português passou, junto com a língua Timbira, a ser ensinado formalmente. Nos dias de hoje, como não há comunidades Timbira isoladas, ou seja, todos os povos têm contato com não-indígenas, segundo Ladeira (2001), praticamente todos os homens falam o português. As mulheres, em sua maioria, entendem o português e articulam pequenas frases. As crianças passam a aprender o português ao ingressar na escola, na idade entre 7 e 8 anos. Seu ouvido, contudo, está predisposto à percepção dos sons do português, em vista do contato frequente com os cupen, em visitas dos regionais às aldeias, pela exposição ao rádio e pela presença de funcionários da Funai nas aldeias. Entre os diversos povos Timbira, contudo, a frequência do uso do português varia de aldeia a aldeia, dependendo da proximidade com as cidades, da presença de missionários estrangeiros nas aldeias e de moradores cupen em seus territórios, além da necessidade de interlocução com organismos governamentais (Ladeira 2001). A aprendizagem formal do português sempre esteve atrelada à necessidade da aquisição da escrita, o que para os Timbira se constitui, praticamente, na aprendizagem de duas línguas. Os povos indígenas em geral, e os Timbira em particular, são povos tradicionalmente orais, cujo modo básico de expressão é a palavra falada. A memória é um canal de armazenamento de experiências vividas e transmitidas via oralidade. Mesmo a leitura é feita em voz alta e uma das exigências para se tornar líder da comunidade é a fluência oral. Os Timbira se adaptaram muito bem às novas tecnologias orais: usam muito o telefone, o rádio, gravadores e sistemas de vídeo. Entretanto, a situação da imensa maioria dos que saem dos bancos escolares é a de analfabetos funcionais. Situação que, infelizmente, também tem refletido a educação fundamental de boa parte do país, entre os não-indígenas. O português aprendido na escola é, na maioria dos casos, o padrão escrito, variedade muito distante daquela com que eles têm contato por meio dos

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 106 Rosane de Sá Amado regionais ou pela televisão (Amado 2012). E o pior: o ensino do português, via de regra, é ministrado como língua materna e não como segunda língua, o que requereria, no mínimo, uma capacitação em ensino de língua estrangeira aos professores, sendo indígenas ou não-indígenas. Ainda assim, o uso da escrita entre os mais jovens têm aumentado. Eles têm utilizado cada vez mais as ferramentas digitais, como o computador e os smartphones, se inserindo nas redes sociais e divulgando seus projetos em blogs, o que tem possibilitado um uso crescente do português escrito, bem como da própria língua Timbira, em que são alfabetizados, nos primeiros anos da escola. Esse breve panorama sobre o contato dos Timbira com o português, via escola ou informalmente com os falantes nativos, objetivou embasar a análise que faremos a respeito de aspectos da variedade de português usada por esses povos, a que chamaremos português étnico Timbira. Utilizaremos aqui uma adaptação do termo “variedade étnica do português”, segundo Braggio (2001), por entender que, no caso dos Timbira, o português é usado por um grupo étnico específico, com características peculiares.

2 Traços característicos do português étnico Timbira

Por se tratar de um artigo, não focalizaremos uma descrição da língua Timbira, mas uma análise de aspectos fonológicos, morfossintáticos e discursivos do português comparando-o com variedades da língua Timbira. Sugerimos, para uma leitura mais aprofundada, trabalhos que versam sobre algumas variedades, a saber, Alves (1999; 2004) sobre o Apãniekrá; Sá (1999), Amado (2004) e Silva (2012) sobre o Pykobjê; Souza (1990; 1997) e Popjes e Popjes (1986) sobre o Krahô e o Ramkokamekrá e Oliveira (2003) sobre o Apinajé3. Cabe aqui uma ressalva: ainda não há consenso entre os linguistas sobre o termo ‘língua Timbira’ e suas variedades. Existem, de fato, características, apontadas nos trabalhos citados, que distinguem as variedades umas das outras, como, por exemplo, a interpretação da morfologia verbal (formas longas e breves no Krahô e no Pykobjê, presentes em Souza 1997 e Amado 2004, respectivamente), ou da existência ou não do caso ergativo (discutido em Alves 2004, sobre

3 Embora o Apinajé seja uma variedade mais próxima do Mebengokrê, outra língua da família Jê - como já comentado -, pelo fato dos Apinajé se considerarem Timbira e participarem de associações e trabalhos de educação em conjunto com os demais povos Timbira, inclusive do 10º Módulo da Escola Timbira, de onde foram extraídos a maior parte dos dados tratados neste artigo, a análise dos dados abrangerá a variedade Apinajé.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 O português étnico dos povos Timbira Timbira’s ethnic Portuguese 107 o Apãniekrá). Contudo, o que prevalece neste artigo é a classificação feita por Rodrigues (1999) que agrega as variedades mencionadas a uma língua, a Timbira, visto que as diferenças encontradas nos trabalhos linguísticos não se mostraram relevantes para a análise dos corpora em português produzido pelos colaboradores. Também utilizamos a referência de Ladeira (2001, 307): por língua Timbira entende-se a “concepção implícita de que todos os grupos Timbira atuais podem se comunicar entre si por intermédio dela.” Os corpora analisados se constituem de gravações espontâneas e produções escritas obtidas de 45 alunos que participaram do 10º Módulo da Escola Timbira4, no qual ministramos um curso de português como segunda língua. O grupo era composto de 24 alunos do povo Krahô, 7 alunos do povo Apãniekrá, 5 alunos do povo Pykobjê, 5 alunos do povo Ramkokamekrá, 2 alunos do povo Krinkati e 2 alunos do povo Apinajé. Foram computados 192 textos escritos e 5 horas e 22 minutos de gravação, dos quais extraímos dados para descrição e análise. A seguir apresentaremos alguns desses dados como exemplos dos processos analisados. Os dados vêm acompanhados da variedade do aluno que o produziu.

2.1 Nível fonético-fonológico (dados orais)

O sistema fonológico do Timbira apresenta apenas obstruintes desvozeadas /p, t, tS, k, kh5, h, P/, não havendo, portanto, contraste no traço de vozeamento, como ocorre no Português (v. Koga, Souza & Amado 2010). Assim, a produção de consoantes com traço tanto [+voz] quanto [-voz] nas palavras em Português, como vemos no exemplo (1), ocorre aleatoriamente.

(1) Neutralização do traço de vozeamento

a. [tuR"miu] ‘dormiu’ (Krahô) b.[ "d˜endZi] ‘dente’ (Krahô) c.[ "pEtRa] ‘pedra’ (Apinajé)

4A Escola Timbira foi um projeto de educação indígena organizado pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) em parceria com a FUNAI e as secretarias de educação do estado do Maranhão e de Tocantins, de 2000 a 2006, e que visava formar alunos, com idade entre 15 e 25 anos, no Ensino Fundamental II, que moram em aldeias cujas escolas não atendem a esse nível de escolaridade. 5Somente para o Pykobjê e o Krinkati.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 108 Rosane de Sá Amado

Da mesma forma, o sistema fonológico só apresenta consoantes anteriores (labiais e alveolares — p, t, m, n) e posteriores (velares e glotais — k, kh, ŋ, h, P). Há apenas duas consoantes com traço [-anterior]: a africada/tS/e a nasal/ŋ/. Esta última aparece somente nas variedades Ramkokamekrá, Apãniekrá e Krahô. Assim, a palatalidade não é predominante no sistema consonantal Timbira. Vale ressaltar que, com exceção da glotal/h/, não existem fricativas, assim como não existem laterais. Dessa forma, a aquisição dos traços [+contínuo] e [lateral] se sobrepõe à aquisição do traço [-anterior], o que corrobora com a ordem de aquisição de sons do português como língua materna: labiais → alveolares → palatais → velares (cf. Blanco-Dutra et al. 2009).

(2) Anteriorização das consoantes palatais

a. [se"gej] ‘cheguei’ (Krinkati) b. [zu"is] ‘juiz’ (Ramkokamekrá) c. [isko"lew] ‘escolheu’ (Pykobjê)

A ausência de laterais, tanto a alveolar/l/quanto a palatal /L/, e a presença do tepe/R/no sistema fonológico da língua Timbira promovem o processo de rotacismo (como em 3). Cabe ressaltar, contudo, que, em um processo contínuo de aquisição de L2, os falantes não deixarão de produzir sons que estão aprendendo. Assim, o dado (2c) demonstra que a aquisição das consoantes laterais pode se antecipar à aquisição das palatais.

(3) Rotacismo

a.[ "kRaRu] ‘claro’ (Pykobjê) b. [puR"seRa] ‘pulseira’ (Pykobjê)

O Timbira é uma língua que prioriza o padrão silábico CVC, mas também aceita os padrões CV, CCV, CCVC, VC e, em algumas variedades, V. Quanto ao acento, é uma língua de pé métrico iâmbico moraico, seguindo a classificação de Hayes (1995), dando, portanto, preferência ao padrão oxítono. Assim, há uma tendência em suprimir a última vogal átona, quando a palavra é paroxítona, ou as duas últimas sílabas, se proparoxítona. A consoante em coda, contudo, permanece, por ser a sílaba fechada preferível à sílaba aberta. Ainda que o falante produza sílabas que inexistam no seu sistema fonológico, como é o caso do padrão CVCC do exemplo (9) e do padrão CVCC do exemplo (12), a preferência é por manter a sílaba fechada e o padrão acentual oxítono.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 O português étnico dos povos Timbira Timbira’s ethnic Portuguese 109

(4) Apócope das sílabas átonas finais:

a. [e"zist] ‘existe’ (Krahô) v.cvcc b.[ "nom] ‘nome’ (Apãniekrá) cvc c.[ "on] ‘ônibus’ (Apãniekrá) vc d.[ "lejt] ‘leite’ (Pykobjê) cvcc

2.2 Nível gramatical (dados escritos)

A língua Timbira não apresenta morfema marcador de plural; a indicação de ‘mais de um’ é feita por meio de partículas como {me} e {jy’to} que se apõem ora à esquerda (homre ‘homem’; me homre ‘homens’ - Pykobjê), ora à direita (pyrkre ‘canoa’; pyrkre jy’to ‘canoas’ - Apãniekrá) do nome. Assim, embora haja marcação na primeira posição — como veremos na subseção 3.2 -, ocorrem também marcas de flexão na(s) posição(ões) à direita do nome determinado, o que revela uma certa aleatoriedade (Amado no prelo), o que poderia explicar a presença do morfema de plural {s} na segunda posição dos sintagmas nominais do exemplo (5), que se contrapõe ao padrão do português.

(5) Marcação da flexão de número nas últimas posições do sintagma nominal:

a.o povos (Krahô) b. da famílias (Krahô) c. nosso tradições fortes (Apinajé) d. o serra bonitos (Ramkokamekrá)

A exemplo da flexão de número, a flexão de gênero também não ocorre no Timbira. O que existe é a marca de feminino como sexo a partir de um nome — kahãj ‘feminino, mulher’ — seguindo o nome, por exemplo, de um animal — pryteh ‘boi’; pryteh kahãj ‘vaca’ (Apãniekrá). Assim, as marcas de gênero nominal no Português — que, em sua imensa maioria, não aludem a sexo — não têm significação para os falantes Timbira, que as usam sem cumprir a concordância determinante-determinado, como um falante nativo o faz.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 110 Rosane de Sá Amado

(6) Não marcação da flexão de gênero no sintagma nominal

a. o meu professora (Krahô) b. outro pessoa (Krinkati) c. a noite inteiro (Krahô)

As análises das variedades Timbira têm apontado para oposição apenas entre dois tempos. O Pykobjê, por exemplo, apresenta, segundo Amado (2004), os tempos passado e não-passado, marcados, a rigor, pelo uso de pronomes pessoais distintos, como, por exemplo, {wa} ‘1 pessoa singular’ para não-passado e {ej-} ‘1 pessoa singular’ para passado. O não-passado corresponde ao futuro e ao presente, que se distinguem por meio da partícula marcadora de futuro ‘ha’ e por outras partículas, como, por exemplo {r1Pm@} ‘ainda’, e advérbios, como {korm@} ‘agora’, que denotam aspecto. O passado apresenta marcas de aspecto e de tempo, distante ou próximo, também por meio de partículas, como {apu} ‘tempo distante’, ou advérbios, como {ePnoPn@} ‘ontem’. O Apãniekrá, segundo Alves (2004), apresenta oposição entre tempo passado vívido e passado distante, realizando-se por meio de partículas, como {pe} para passado distante. O futuro é também marcado pela partícula {ha} que apresenta uma característica modal (realis x irrealis) e o presente também pode apresentar valor de futuro. Assim, o verbo em si, nas variedades Timbira, não apresenta flexão temporal o que pode explicar os dados (7b) e (7c), em que o passado é marcado apenas pela presença do advérbio ‘antigamente’ e na primeira forma verbal ‘usava’ (7b) e na segunda ‘pintarão’6 (7c). O passado distante, devido a seu aspecto imperfectivo, pode ser utilizado concomitantemente com o presente habitual, daí as marcas desse último tempo e/ou a forma não-marcada do infinitivo. Já o exemplo (7a) atesta que a distinção entre presente e futuro é mais marcada no português étnico.

6 Vale ressaltar que o erro comum de ortografia — trocar o sufixo verbal de passado {-am} pelo sufixo verbal de futuro {-ão} — presente na escrita de falantes nativos também pode ocorrer com aprendizes de português como segunda língua, como foi este caso (confirmado pelo próprio colaborador na aula).

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 O português étnico dos povos Timbira Timbira’s ethnic Portuguese 111

(7) Não distinção do tempo passado da flexão verbal:

a. No futuro a criança não quero saber de correr com a tora e nem fazer festa na sua aldeia quer virá com cupê. Porque, nós já alimentamos a comida do branco só por isso, os mais velhos briga com a gente para não virá com branco. (Krahô) b. Os antigamente os velhos índios não usava roupa anda pelada nem vestir só faz a sua festa na aldeia corre todo dia, e caça e pesca e pintar sempre estão usando tradição mas forte a ainda. (Pykobjê) c. Antigamente, os povos indígena fazer a festa e todos pintarão no corpo com jenipapo e urucu passa no corpo também. (Pykobjê)

2.3 Nível discursivo

O discurso oral Timbira é permeado de marcadores. Os de início são tradicionalmente Yhy, pea, cute hajyr (‘Sim, então foi assim...’) que abre as narrativas míticas, e Yhy, mejkampa (‘Sim, me escutem...’), presente no discurso formal (Ladeira 2001)7. Os marcadores que aparecem nos exemplos em (8) da produção escrita no português étnico Timbira confirmam a necessidade de iniciar um tópico discursivo ou um texto com um MD (Amado 2009).

(8) Uso de marcadores discursivos (MD) para iniciar tópico discursivo8:

a. Olha agora eu vou conta história (Krahô) b. Agora eu vou começa de conta esta coisa (Apinajé) c. Eu vou fazer a Redação sobre futuro, no meu pensamento que eu penso no futuro (Krahô) d. é assi, os índio trabalha assi de mutirão (Ramkokamekrá)

7 Ladeira (2001) analisa, em seu artigo, bilhetes e diários escritos pelos povos Apãniekrá, Ramkokamekrá, Pykobjê, Krinkati, Krahô e Apinajé. Dessa forma, os exemplos que apresenta para os marcadores de início e de fim (que veremos no item b.) se referem às variedades faladas por esses povos. 8 O tópico de que tratamos aqui é o que Brown e Yule (1983 apud Fávero 1999: 38) conceituam como “aquilo acerca do que se está falando”, no campo da análise conversacional.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 112 Rosane de Sá Amado

A exemplo dos MD’s na abertura de um tópico discursivo, o discurso oral Timbira também necessita de um marcador para encerrá-lo. Ladeira (2001) assinala que qualquer modalidade discursiva é encerrada com Pea hamre (‘pronto, acabou’). Quanto aos textos analisados pela autora — bilhetes e anotações de diários escolares - , ela afirma que “no caso dos marcadores de final de texto, as variáveis vão do ‘Só isso, Nada mais, Pronto, Somente isso’ ao ‘Assina, o nome’. [...] O importante é que o final do discurso seja identificado por uma marca.” (2001: 327). Assim também essas marcas ocorrem no português étnico Timbira.

(9) Uso de marcadores discursivos para finalizar tópico discursivo: a. Só isso que eu estou pensando no meu pensamento no futuro... (Pykobjê) b. só isso, que aconteceu com meu amigo e eu. em nada mais. (Apãniekrá) c. Então é isso que tavam pensando dentro da minha aldeia. (Krahô)

Para povos de cultura oral como os Timbira, as tradições devem ser ratificadas pela autoridade dos antepassados, aludindo a um tempo remoto. Denominamos de marcas de ‘memória coletiva’, aquelas que atestam que a opinião do autor do texto tem sido a mesma durante gerações e que as tradições e ensinamentos são construídos de forma coletiva, na soma das experiências individuais. Embora os exemplos sejam extraídos de textos cuja tipologia solicitada em aula fora a dissertativo-expositiva, o uso dessas marcas imprime o tom das narrativas, próprias de povos de tradição oral, como os indígenas. As narrativas seguem, como diz Ferreira Netto (2008: 33), “cada qual, seu próprio curso, adaptando-se continuamente pelas necessidades do momento e pelas restrições dos indivíduos”.

(10) Uso da memória coletiva a. Até agora os índios novos, nunca esqueceram as tradições que os abisavós deixava para os filhos e netos. Quando e antes de esquecer as tradição dos índios velhos. - Eles dizem para seus filhos e para outras pessoas que vivem na mesma aldeia. Dizem assim meu filhos e meus parentes, não vão perder a nossa cultura e as tradição, vamos relembrar da nosso passado, que é a nossa cultura ainda ta vive. Vamos cuidar do nosso costumes. (Apãniekrá) b. No antigamente que Ijõ jajá comta esta história. Primeiro, os índios anda em nu, com folha patras e prafrente. (Krahô) c. Antigamente as tradições do povo Krahô, os mais velhos contam assim: Os Krahô dos antepassados viviam nus... (Krahô)

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 O português étnico dos povos Timbira Timbira’s ethnic Portuguese 113 3 Será o português étnico Timbira uma interlíngua?

As características do português étnico que analisamos até o momento denotam a presença forte de traços da língua Timbira. Entretanto, outros traços aparecem, tanto na produção falada quanto na escrita, que remetem ao que as teorias de ensino-aprendizagem de segunda língua denominam de ‘interlíngua’. Selinker (1972) e Corder (1971) foram os primeiros a se debruçar sobre aquilo a que muitos já chamavam de “idioma idiossincrático”, “contínuo em reestruturação”, “sistema aproximativo” e que resulta das situações distintas de contato entre línguas. Na década de 1970, já se questionava muito o modelo de ensino- aprendizagem audiolingual, baseado na Análise Contrastiva de Lado (1957) e que via as dificuldades de aprendizagem de uma segunda língua advindas apenas da interferência (ou transferência negativa) de traços da língua nativa na língua alvo. Na perspectiva de ensino-aprendizagem sociointeracionista, baseada no modelo de Vygotsky, que sucedeu o modelo audiolingual, e que foi fruto das discussões geradas também pelo modelo da Interlíngua, o aprendiz de uma língua segunda (L2) está sujeito a vários processos decorrentes do contato, não só com a língua e a cultura alvos, mas também com os falantes dessa língua. A interferência não é vista mais como uma transferência negativa de traços da língua materna, mas sim como um dos pontos a serem observados pelos professores e pelos pesquisadores de ensino-aprendizagem de L2. Há outros, porém, tão importantes quanto esse. Afinal, não estamos tratando de sistemas linguísticos isolados: as línguas só existem porque os falantes se apropriam delas para a comunicação e sua expressão. Como mencionamos, a aquisição-aprendizagem do português pelos Timbira ocorre informalmente, no contato com a população regional falante nativa de português, e também por meio da escola, esta sim lugar de aprendizagem do português predominantemente escrito. Esta variável — o meio onde ocorre a aquisição-aprendizagem — é, de fato, importante porque dela decorre outra — o input — a que o aprendiz está sujeito. Vejamos a seguir alguns traços nos níveis fonético-fonológico, gramatical e discursivo presentes no português étnico Timbira que estão presentes nas variedades regionais do português e também no português não formal.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 114 Rosane de Sá Amado 3.1 Nível fonético-fonológico

Os processos mencionados, que poderiam ser vistos como ‘erros’ por professores mais conservadores, que ainda tomam a ortoépia como a “pronúncia correta” das gramáticas normativas, ocorrem em inúmeras variedades do português falado no Brasil. Assim, é muito provável que os Timbira estejam reproduzindo aquilo que ouvem no seu entorno e mesmo em muitos canais da mídia a que assistem, o que, portanto, não deve ser visto como ‘erro’ do aprendiz, como já não é visto pelos linguistas e, felizmente, por muitos professores de português como língua nativa.

(11) Alçamento da vogal pretônica:

a. [ku˜"pRida] ‘comprida’ (Krahô) b. [pi"kenu] ‘pequeno’ (Pykobjê) c.[ is"k˜eta]‘esquenta’ (Apãniekrá)

(12) Desnasalização e monotongação de ditongos nasais átonos finais:

a.[ "õtSi] ‘ontem’ (Apinajé) b.[ "omi] ‘homem’ (Krinkati)

(13) Apócope de [R] em sílaba tônica final:

a. [pes"ka] ‘pescar’ (Krahô) b. [kej"ma] ‘queimar’ (Krahô) c.[ "te] ‘ter’ (Ramkokamekrá)

(14) Espraiamento da nasalidade na sequência em gerúndios:

a. [ku"menu] ‘comendo’ (Apãniekrá) b.[ "vinu] ‘vindo’ (Pykobjê) c. [duR"minu] ‘dormindo’ (Pykobjê)

(15) Monotongação do ditongo tônico [ow]:

a. [pes"ko] ‘pescou’ (Krahô) b.[ "otRo] ‘outro’ (Krahô)

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 O português étnico dos povos Timbira Timbira’s ethnic Portuguese 115 3.2 Nível gramatical

A par do que vimos na subseção 2.2, nos exemplos (5), também ocorre e com muito mais frequência a marcação de plural no(s) termo(s) que se encontra na(s) primeira(s) posição(ões) do sintagma nominal. Como já citado, o Timbira não apresenta flexão nominal, assim, no português falado e escrito, haverá uma tendência à aleatoriedade quanto a essa marcação. Contudo, como no português falado no Brasil (Castilho 2010) tem havido uma prevalência da marca de plural na posição pré-núcleo — cerca de 68,5% em uma pesquisa conduzida por Scherre (1988) —, o que será mais comum no português étnico Timbira, devido ao contato com falantes nativos do entorno das aldeias, é a marcação nessa posição.

(16) Marcação da flexão de número na primeira posição do sintagma nominal: a. As criação (Krahô) b. Outros instrumento (Krahô) c. Todas as caça (Ramkokamekrá)

À semelhança do que vimos no item anterior, a neutralização da flexão número-pessoal do verbo em português é um fenômeno cada vez mais comum no Brasil (Amado & Rodrigues 2010) visto que a marca número-pessoal no verbo é percebida como redundante pelos falantes. Este fato, concomitantemente, tem alterado o padrão do português brasileiro quanto ao sujeito nulo, já que este deixa de ser imprescindível ao discurso. A marca predominante é a da 3ª pessoa do singular, um morfema zero, segundo Câmara Jr. (1970). Além disso, a 3ª pessoa é também a não-pessoa do discurso segundo Benveniste (1976) e, por essa razão, a menos marcada nas línguas em geral, fato que a torna a forma preferida de aprendizes de segunda língua. Vemos, assim, no exemplo (17), uma tendência à marcação da 3ª pessoa — o que pode ser justificado também pelo contato com os falantes nativos do entorno — além da presença da marca do infinitivo não-flexionado, esta sim, a forma verbal menos marcada do português (não agrega número, pessoa, tempo, modo nem aspecto).

(17) Neutralização da flexão número-pessoal no sintagma verbal:

a. Nos dias de hoje, muita coisa mudou. Os jovens não viajam a pé, só espera o carro, não podem andar nus, usar direto o short, quase não tem mais a festa todo dia, vai direto a cidade próximo, precisa de todo documento para viajar a grande cidade, quando tem a festa na aldeia, só o velho participar, e o jovem fica dentro da casa, curtindo música, assistindo TV, etc. (Krahô)

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 116 Rosane de Sá Amado 3.3 Nível discursivo

Os exemplos (18-19) foram extraídos de produções escritas solicitadas no curso de português ministrado no 10º Módulo da Escola Timbira. O tipo textual solicitado foi a dissertação, um dos mais formais do protótipo da escrita. Assim, marcas de subjetividade e paráfrases, muito comuns na modalidade oral prototípica do português (Galembeck 2003; Fávero, Andrade & Aquino 1999), não deveriam aparecer. Contudo, como já dissemos, os povos indígenas, neste caso específico os Timbira, são povos tradicionalmente orais, e que usam muito pouco a modalidade escrita. É natural, portanto, que essas marcas de oralidade apareçam em sua produção, como também ocorrem na aprendizagem do português escrito por falantes nativos.

(18) Uso de paráfrase: a. Hoje poucos que usa a pintura, não é todo mundo... (Apãniekrá) a. Hoje os novos não faz as festas todos os dias, faz as festas de vez em quando, não corre todos os dias corre de vez em quando ou corre só no dia da festa... (Krahô)

(19) Uso de marcas de subjetividade: a. Eu acho que no futuro filho não vai pegar esse tradição que o nosso bissavô deixou pra a gente... (Pykobjê) a. São muitos importante porque, nós índios está acontecendo em cada aldeia de nós e eu não sei as outras. (Krahô)

4 Considerações finais

Este artigo teve, enfim, o objetivo de discutir, por meio da descrição e da análise de dados, uma proposta de que o português falado e escrito pelos povos Timbira é uma variedade com características peculiares, próprias desses povos indígenas e de sua língua materna. Há, de fato, dados que comprovam o contato interlinguístico e as marcas da língua Timbira na fala e na escrita do português. Entretanto, admitir que estamos tratando de uma variedade própria não invalida o fato de que tal sistema seja parte de um processo de aquisição-aprendizagem de uma segunda língua, comumente denominado de “interlíngua”. Este fato só corrobora para uma valorização dessa variedade e, mais do que isso, para um olhar mais atento dos professores que atuam nas escolas Timbira (e, por que não dizer indígenas, no geral) de que estão diante de um processo comum a qualquer aprendizagem de segunda língua, não devendo, portanto, os aprendizes serem tratados como incapazes e inábeis no aprendizado do português por serem... índios.

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Recebido: 06/11/2014 Aprovado: 26/02/2015

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767

PAPIA, São Paulo, 25(1), p. 121-140, Jan/Jun 2015.

A variedade étnica Português Xerente Akw˜e: subsídios para a educação escolar indígena Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety: contributions to indigenous school education

Silvia L. B. Braggio Universidade Federal de Goiás, Brasil [email protected]

Abstract: Indigenous ethnic languages variety studies are highly needed in Brazil given the benefits that they can provide not only to linguistics but also to indigenous school education. Because there are many steps to be followed, in order to make possible a contact with indigenous variety, first it is necessary to build a knowledge of the indigenous language to accomplish such task. My assumption is that the indigenous language acquired as the first language (L1) will influence the learning of a second language (L2). Accordingly, I present a brief study of the Xerente Akw˜elanguage and the influences it brings to Portuguese in order to present the Xerente Akw˜ePortuguese Variety. The Xerente Akw˜elanguage belongs to the Macro Jê stock and to the Jê family. Its 3,500 speakers live in two areas within the state of Tocantins, Brazil. Data were collected for 20 years by many researches and use quantitative and qualitative methods. My main objective is to contribute to indigenous sociolinguistics and to indigenous school education.

Keywords: Sociolinguistics; Indigenous Ethnic Variety; Xe- rente Akw˜e.

Resumo: Os estudos das variedades étnicas do Português das línguas indígenas brasileiras são altamente necessários no atual cenário linguístico e educacional do Brasil. A tarefa é bastante complexa, na medida em que há vários passos para se chegar à descrição de uma determinada variedade indígena. Nesse artigo

e-ISSN 2316-2767 122 Silvia L. B. Braggio

apresento uma versão da Variedade Étnica Português Xerente Akw˜e,do povo Xerente Akw˜e,língua do tronco Macro Jê, família Jê, habitantes em duas áreas indígenas no estado do Tocantins. Parto do pressuposto de que a língua indígena originária (L1) tem influência no Português quando ele ocorre como segunda língua (L2). Portanto, inicio esse artigo com uma breve introdução da língua Xerente Akw˜eapontando os aspectos que influenciam a L2 no processo de aquisição. Os dados têm sido coletados durante os 20 anos de meu contato com esse povo e se incluem tanto na pesquisa quantitativa quanto qualitativa. Meu objetivo é contribuir para a área da sociolinguística indígena e, mais especificamente, para a educação escolar indígena.

Palavras-chave: Sociolinguística; Variedade Étnica Indígena; Xerente Akw˜e.

1 Introdução

As pesquisas sociolinguísticas que tratam das variedades étnicas do Português das línguas indígenas brasileiras apresentam um campo aberto e pouco explorado em nosso país. Nesse cenário existem premissas que devem ser necessariamente satisfeitas a fim de que as pesquisas nessa área possam frutificar e ampliar o que já se conhece sobre variedades linguísticas no Brasil. Em primeiro lugar, é impossível considerar-se um português étnico indígena geral, ou seja, para todas as línguas indígenas. Cada etnia apresenta uma variedade única e singular, com indícios em todos os níveis linguísticos, em vista das influências que a língua indígena, quando é a primeira a ser adquirida (a partir de agora L1) operará no Português, quando adquirido como segunda língua (a partir de agora L2). Logo, em segundo lugar, é absolutamente necessário que a língua indígena que constituirá uma determinada variedade seja conhecida e estudada, pois é ela que vai determinar sobre qual variedade étnica estamos falando. Em terceiro lugar é preciso considerar a região onde o Português de uma determinada língua é falado, pois a variedade étnica do português também será marcada por características regionais. Assim sendo, analisar e descrever a variedade do Português étnico de uma língua indígena não é uma tarefa fácil, já que exige etapas que devem ser cumpridas a fim de que se obtenha um trabalho sociolinguístico de boa qualidade, que dê subsídios não somente para as ciências da linguagem, como para a educação escolar indígena. Meu objetivo nesse artigo é apresentar uma versão da Variedade Étnica Português Xerente Akw˜e.Portanto, levando em consideração as premissas anteriormente apresentadas, percorro primeiramente o caminho trilhado para chegar a essa variedade, dos meus primeiros aos atuais estudos da língua, sob o ponto de vista histórico e linguístico.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A variedade étnica Português Xerente Akw˜e... Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety... 123 2 Breve Histórico

Meu primeiro contato com os Xerente deu-se em 1989 quando coordenei uma pesquisa a fim de verificar a situação sociolinguística das etnias que viriam a compor o Projeto de Educação Indígena para os Povos do Tocantins (Teixeira, Braggio, Poleck 1991). A partir desse primeiro contato, dos quase dez anos em que atuei no projeto como coordenadora e professora, minha relação com os Xerente Akw˜eestreitou-se e venho dedicando minhas pesquisas e a formação de outros pesquisadores, até o presente momento, a esse povo. Minha intenção foi e continua sendo, a de obter um estudo aprofundado das várias áreas da linguística a fim de compor um quadro que dê subsídios para as ciências da linguagem nos estudos dedicados aos indígenas brasileiros e para a educação escolar indígena dos Xerente, na tentativa de levá-los a construir uma política de língua específica para a sua vitalidade. Os estudos e resultados a seguir mostram o percurso que tive que seguir para chegar a postular características próprias e singulares da Variedade Étnica Português Xerente Akw˜e. As metodologias utilizadas nos variados estudos incluem tanto a pesquisa quantitativa quanto a qualitativa e de conteúdo em vista dos objetivos de cada um deles. Nesse artigo aponto somente os resultados que dão subsídios para o assunto ora tratado, o da Variedade Étnica Português Xerente Akw˜e.

3 Aspectos da língua xerente

Os Xerente Akw˜evivem em duas áreas demarcadas, homologadas e registradas em cartório, na região de Tocantínia, no estado do Tocantins. Perfazem por volta de 3.500 indivíduos, com uma porcentagem de 10% deles vivendo na cidade de Tocantínia, a mais próxima às áreas. Sua língua é classificada dentro da família Jê, do tronco Macro-Jê (Rodrigues 1986). A língua Xerente pode ser classificada basicamente como aglutinante, do tipo SOV: sujeito-objeto- verbo, diferentemente do Português que é uma língua classificada basicamente como flexional e do tipo SVO: sujeito-verbo-objeto. Possui posposições e não preposições como em Português. Apresenta fonemas e padrões silábicos que nem sempre correspondem aos do Português. O gênero e a pluralização não são marcados no Nome. Há qualificadores e quantificadores para a pluralização no Nome. A pluralização é marcada no pronome pessoal e no pronome possessivo nos sintagmas nominais e verbais. Há palavras inalienáveis, ou seja, palavras que somente se apresentam com seus possuidores (termos de parentesco e partes do corpo que também marcam animais e plantas). Os verbos são não flexionados. Tempo, modo e aspecto são marcados por quantitativos ou qualificativos. Há vários classificadores para caracterizar os Nomes. Todas essas características vão ter forte influência na Variedade Étnica Português Xerente Akw˜e(Braggio 2013) e são brevemente mostradas a seguir.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 124 Silvia L. B. Braggio 3.1 Gênero

Não-marcação morfológica de gênero no Nome: como em ‘dakra’ que tanto pode ser ‘filho’ como ‘filha’ dele(a). Observe a frase1:

(1) ˜ı siwaike nãto wara ppos sub adv v meu amigo agora correr ‘Meu amigo fugiu.’ ‘Minha amiga fugiu.’

Fora do contexto, o sexo, e não o gênero, é marcado para animais:

(2) a. Huku krê = onça macho b. Huku simpikõ = onça fêmea

(3) a. Sika krê = galo b. Sika krapre = galinha

É importante notar que os animais que dão crias são femininos, assim como as árvores que dão frutos. Melatti (1978) aponta este último aspecto entre os Timbira Krahó, também do tronco linguístico Macro Jê.

3.2 Pluralização

O plural não é marcado no Nome. Também não há marcação morfológica (ou flexões) para o Verbo, mas para os pronomes que o antecedem. Veja o exemplo em que a marca de futuro permanece inalterada:

(4) Krê - plantar

a. wa za krê eu fut plantar ‘Eu vou plantar.’

1Abreviaturas: fut: marca de futuro; ppe: pronome pessoal; p. ref.: pronome reflexivo; ppos: pronome possessivo; sub: substantivo; adv: advérbio; qual: qualitativo; quant: quantitativo; posp: posposição; v: verbo.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A variedade étnica Português Xerente Akw˜e... Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety... 125

b. ta nõri za krê ele + de um fut plantar ‘Eles vão plantar.’

Para os Nomes veja o seguinte exemplo e note que não há artigos na língua:

(5) a. hukurê wakdû sub qual gato preto ‘O gato é preto.’ b. hukurê nõri wakdû sub quant qual gato + de um preto ‘Os gatos são pretos.’

3.3 Tempo, Modo, Aspecto

Marcado por advérbios. Veja também o uso de posposições:

(6) Wa za Goiânia ku kri mõri ppe fut Goiânia posp sub v Eu Goiânia para casa ir ‘Eu vou (irei) para a casa em Goiânia.’

3.4 Classificadores nominais

Há muitos; a classificação obedece a aspectos gerais e específicos do nome classificado:

(7) a. kt1kmõ: gado, kt1kmõkra: bezerro, kt1kmõ simpikõ: vaca b. wdê: árvore, wdêh1: casca de árvore, wdêrê: árvore pequena c. romnirnã: flor, romkrã: fruta, romkwa: espinho

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 126 Silvia L. B. Braggio 3.5 Inalienáveis

Não podem acontecer sem um possuidor (veja ambos os itens em Braggio (2011)):

(8) a. da=kra: filho(a) dele(a) b. wa=bdu: meu pescoço c. sika=kre: ovo da galinha d. wdê=h1: casca da árvore

Os aspectos fonológicos serão tratados na seção 5 (Situação sociolinguística atual: biliguismo alto), por estarem também dentro desse item.

4 Situação sociolinguística inicial

O Português é a L2 dos Xerente. Isso ficou claro no primeiro levantamento efetuado em 1989. A metodologia utilizada foi ancorada em Fishman (1969, 1991) cuja abordagem é quantitativa. A língua adquirida como L1, salvo raras exceções, é a Xerente. O uso dessa língua naquele momento era intergeracional e intrageracional, mesmo após 250 anos de contato com o Português. Por volta de 12% da população também falavam Português. Contudo, essa língua somente era usada para falar com os não indígenas, principalmente com os funcionários da Funai (Fundação Nacional do Índio) e quando iam à cidade mais próxima. Entre eles só falavam em Xerente, mesmo que houvesse um não indígena presente. Na mudança de código (codeswitching) de uma língua para a outra era a regra (ainda é): Xerente fala Xerente com outro Xerente e mudam para o Português para falar com o não indígena em um mesmo evento de fala. Na época não havia energia elétrica ou meio de transporte coletivo. Os movimentos de ida para a cidade eram mais restritos aos homens e estudantes que estavam cursando o ensino médio. Havia, portanto, uma situação de bilinguismo incipiente (incipient bilingualism). Todavia, a necessidade ou desejo dos pais de que os filhos aprendessem Português na escola era alta em relação a somente Xerente.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A variedade étnica Português Xerente Akw˜e... Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety... 127 4.1 Eventos e atos de fala e escrita

Foi na sala de aula que observei outros eventos de fala, mantendo a regra anteriormente mencionada. Sempre antes de a aula começar eles tinham uma conversação que durava, pelo menos, por volta de 15 minutos sobre algum assunto que só a eles dizia respeito. Discutiam em Xerente, cada um esperando calmamente seu turno de fala para se manifestar. Ninguém intervinha enquanto alguém estivesse falando. Quando terminavam de falar eu era convidada a começar a aula. Nesse evento, como eu não falava Xerente, eu estava excluída. Mais tarde, em outras ocasiões fora da sala de aula, observei o mesmo padrão de comportamento linguístico, ou regra sociolinguística de alternância de turnos de fala. Também na sala de aula, em um evento escrito, outra regra se destacou. Eu pedi que me contassem uma narrativa sobre algum fato acontecido na aldeia. Começaram uma discussão em Xerente e ao fim desta, um aluno, o mais velho deles, foi apontado para iniciar a narrativa que eu escreveria no quadro negro. Após esse aluno dar o nome da narrativa e começar a falar e eu a escrever, cada um, por sua vez, começou a participar, completando, escolhendo palavras semanticamente mais adequadas, dando opinião como uma palavra era mais bem escrita. No final, tínhamos um texto coletivo, elaborado por todos, em que todas as vozes eram ouvidas e respeitadas. Assinalo essa regra sociolinguística de escrita coletiva, uma narrativa em Xerente, em uma transposição do oral para o escrito que revelou, poucos anos depois, que para escrever para o não indígena o faziam coletivamente revelando o papel do Português escrito com uma função, um instrumento de resistência, pois se tratava de uma carta ao presidente da república pedindo que uma estrada não cortasse/passasse pela área indígena. Estava assinada por todos que colaboraram na elaboração. Os que não sabiam ler e escrever imprimiram a digital do dedo polegar direito no papel com tinta (essa carta pode ser lida em Braggio (2001)). Esse item será retomado na seção 6 (Considerações finais e educação escolar indígena.)

5 Situação sociolinguística atual: bilinguismo alto

À medida que continuei a trabalhar com a formação dos professores indígenas xerente, pude observar dois fatores que me chamaram a atenção: (i) a entrada de vários empréstimos do Português e (ii) a escrita na língua xerente não era uniforme: o uso de grafemas e sílabas distintos por diferentes professores e as palavras (complexas), ora com segmentação, ora sem. Mas o que mais me causou interesse foi a afirmação de que ‘há duas línguas xerente, a dos +velhos e a dos +jovens’. Em pesquisa de campo em 1995, um de seus participantes

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 128 Silvia L. B. Braggio da faixa +jovem fez a mesma afirmação. Meu trabalho era com empréstimos e entre eles eu pude observar não só os processos de apagamento em palavras do Português, como a influência do Português na língua xerente e vice-versa. Um exemplo que iluminou este estudo foi a palavra que me foi dita para ‘casa velha/abandonada’: ‘krivé’, em que kri = casa em Xerente e vé = velha em Português, ou seja, um exemplo de loanblend, uma mistura das duas línguas, falada por um jovem xerente com o processo de apagamento da última sílaba e a inserção do [v] que a língua xerente não possui. A partir daí aprofundei meu trabalho com os empréstimos e em 1998, levando em consideração as três gerações: +jovens (12-19 anos), +-jovens (20-49 anos) e +velhos (50 anos em diante), pude estabelecer pela primeira vez, o que chamei de ‘Variedade dialetal do Português em contato com uma língua indígena’, publicado em artigo do mesmo nome (Braggio 1998). O trabalho que se seguiu, ‘A instauração da escrita entre os Xerente: conflitos e resistências’ (Braggio 2001), apontou como o Português escrito tem sido usado como a ‘língua para ser escrita’. Na época não encontrei, fora da escola onde atuavam professores indígenas ensinando a ler e escrever em Xerente, qualquer uso funcional ou significativo da língua xerente escrita. Os empréstimos do Português continuavam entrando. Mas o que, afinal, distanciava a língua dos +jovens da dos +velhos? Adentrei pela fonologia já que essa área da língua é mais suscetível a sofrer influência da língua dominante, no caso, o Português (Braggio 2005). Os dados são apresentados a seguir.

5.1 Aspectos fonológicos

5.1.1 Os fonemas/grafemas

O quadro fonológico utilizado é o de Krieger & Krieger (1994), pois embora haja outros trabalhos na área de fonologia elaborados por Daniele Grannier, principalmente, por mim e outros membros do grupo, são esses fonemas que são usados como grafemas na escrita da língua.

(9) Consoantes a.

(10) Vogais Orais a.

2Este grafema é usado para representar a vogal central posterior média. 3Este grafema é usado para representar a vogal média fechada. 4Este grafema é usado para representar a vogal central alta fechada.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A variedade étnica Português Xerente Akw˜e... Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety... 129

(11) Vogais Nasais

a. <ã, ˜e,˜ı,õ. ˜u5>

Observação: = /[R]/, = /[r]/, = consoante aproximante. Não encontrei em meus dados a vogal <û>. No dicionário dos Krieger [1] e [W] aparecem alternados.

5.1.2 As sílabas

Nesse subitem retomo dados por mim coletados. Há, em Xerente Akw˜e,um processo de apagamento de consoantes e vogais. O apagamento tem sido uma constante na língua e torna-se cada vez mais frequente entre os +-jovens (21-49) e os + jovens (12-20). Veja alguns dados coletados por Martius (1867, em Maybury-Lewis 1965) e Maybury-Lewis (1965) em Braggio (2005): Martius Maybury-Lewis glosa kouacong wakõ coati/quati couan-riao warã tatu nononou-da nrõu-da tucano põucouanai ponkwané dois doujée duzé açúcar O acento tem sido um dos responsáveis por essas mudanças. O acento é demarcativo e não distintivo, sempre recai na última sílaba deixando o onset, o início/esquerda da palavra, à época, basicamente CV e levando os elementos que se seguem ao acento na coda, final/direita da palavra, a serem apagados ou apresentarem processos de assimilação regressiva dependendo do ambiente fonológico. Há uma alteração silábica na maioria deles. Esses processos continuam e têm sido observados em nosso corpus (Braggio 2005):

(12) Apagamento de vogal à esquerda e à direita do núcleo da sílaba em palavras com mais de uma sílaba

a. pesede"di & pese"di & pøse"di & "pøse b. pete"di & pøte"di c. kubu_oin"ti & købu_õi"ti & købø_õi"ti d. bu"du &"bødu & "pødu & "pøtu

5Em alguns exemplos mantive a grafia dos Krieger.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 130 Silvia L. B. Braggio

Os processos anteriormente apresentados mostram que a reestruturação silábica continua a operar na língua:

(13) Reestruturação silábica

a. onsets silábicos preferencialmente preenchidos por qualquer conso- ante e por combinação de consoantes. b. onsets preferencialmente preenchidos por consoantes (veja-se dan- escri/da-skri) etc. c. vogais que iniciam palavras são ‘a’ e ‘i’, sendo o seu número bastante reduzido. Minha hipótese, a ser testada, é a de que havia uma consoante que antecedia a vogal na sílaba, provavelmente [k] e/ou [h], que foram apagadas, por estarem à esquerda da sílaba nuclear. Tais fonemas fazem parte de uma classe natural e esse é um processo que continua na língua.

Do quadro geral dos exemplos coletados à época de minha pesquisa temos os seguintes tipos de sílabas:

(14) a._V[ a"ke] ‘semente’ b._VV[ ai"kte] ‘criança’ c. _VC[am"ke] ‘cobra’ d._CV[ "wa ] ‘papagaio’ e. _ CVC [tem"di] ‘cru’ f. _ CVV [kui"hi] ‘jacaré’ g. _ CCV ["tpe] ‘peixe’ & [te"pe] h. _ CCVV [krãi"ti] ‘formiga’ & [kr˜e"ti] i. _ CCVC [prum"kwa] ‘aquele que reparte’ j. _ CCCV ["tbro] ‘atravessar’ & [to"bro]

Como se pode observar, historicamente, a sílaba CV está dando lugar a sílabas mais pesadas nos onsets, com os apagamentos e/ou assimilação das vogais em sílabas átonas, e leves ou ausentes, na coda. O apagamento das vogais teve origem com as vogais homorgâmicas, mas tem-se espalhado para outros ambientes. Esses processos fonológicos têm bastante força na língua e continuam em andamento nas gerações +–jovem e +jovem. Mas, quando os +velhos entram

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A variedade étnica Português Xerente Akw˜e... Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety... 131 no cenário da pesquisa, a distância entre a fala dos +velhos e a dos +jovens mostra-se significativa quando se observam as ocorrências fonético/fonológicas entre as gerações. Portanto, uma frase dita por uma pessoa da geração +velha será diferente de uma da geração +jovem, principalmente dos jovens que saem para estudar na cidade ou nela habitam, o que confirma o sentimento de que há ‘duas línguas Xerente, a dos mais velhos e a dos mais jovens’ está se diferenciando, gerando conflitos entre as gerações. A faixa dos +-jovens é a que estabelece uma transição entre as gerações. Os exemplos a seguir mostram essas diferenças:

(15) a. Variedade da geração +velha (também dominada pela geração +- jovem): #si#kubi+si+bi+ze# sikubisibize: coberta (colcha, lençol etc.), onde: si = p. ref., kubi = verbo cobrir-se, si = p. ref., bi = qualif., ze: nominalizador b. Variedade mais usada pela geração +-jovem e +jovem: #si#kubs+bi+ze# sikubisibize, sikubøsøbize, sikubsbize: coberta

(16) a. Variedade da geração +velha (também dominada pela geração +- jovem): #da-hi+krãi+ti# dahikrãiti: joelho dela(e), onde: da = ppos. dele(a), hi = osso, krãi = cabeça, ti = qual. b. Variedade mais usada pela geração +-jovem e +jovem: #da-hi+krãi+ti# daikr˜eti:joelho dela(e) da-øi+kr˜e+ti,onde i = osso, kr˜e= cabeça, ti = qual.

Nesses exemplos pode-se notar que a sílaba CV predomina para os +velhos e os apagamentos e assimilação inexistem na variedade dessa geração. A primeira palavra é um empréstimo do Português e a segunda uma palavra da língua, logo um processo que se aplica tanto à dinâmica da língua xerente quanto às palavras que são emprestadas do Português, com influência do Xerente no Português. Os exemplos a seguir, ao mostrar as palavras que estão entrando na língua, são diferentes entre as gerações e também tipologicamente:

(17) daprahâ da pra hâ dele pé casca ‘Chinelo.’ (Lit. ‘casca para proteção do pé dele/a’)

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 132 Silvia L. B. Braggio

(18) rãbret chinelo ‘Chinelo.’ (Do português lambreta.)

O empréstimo dos mais jovens, rãbret, vem do português regional ‘lambreta’, nome dado ao chinelo do tipo havaiano. No primeiro caso há um empréstimo por criação (veja Grosjean 1982, 1994, 2010) pela combinação (composição) de duas palavras já existentes na língua e que nela se integram. No caso de rãbret temos um empréstimo com uma adaptação fonológica: o [R] é usado no lugar do [l], ou seja, o falante usa uma consoante mais próxima, uma consoante líquida, já que [l] não ocorre como fonema na língua e com um apagamento da vogal final, processo típico da fala dos +–jovens e dos +jovens como em caderno: cadern, caneta: canet etc. Em fase de estudo, acredito que o acento em Xerente Akw˜e,na última sílaba da palavra, língua de predominância aglutinante, é bastante significativo e tem não só a ver com esse tipo de apagamento, mas com outros apagamentos na língua, como vemos adiante. Esse acento, quando da aglutinação de outros elementos como marcadores de Nomes, leva as sílabas iniciais da palavra no onset a ficarem pesadas, do lado esquerdo, ocorrendo o apagamento de vogais e consoantes leves na coda, lado direito, principalmente em substantivos, como veremos em outros exemplos. Usada na frase, rãbret se integra perfeitamente a ela, da mesma forma que daprahâ. Percebe-se, portanto, que ambos os termos passam pela língua antes de ser a ela incorporados, mas de formas diferentes. Enquanto a geração +velha emprestou novos termos criando-os a partir da própria língua, os +-jovens e os +jovens adaptam esses termos à fonologia da língua, ou seja, as formas passam pelo filtro da língua, mas são mais próximas do Português. Há falantes +jovens que usam fonemas do Português quando falam em Xerente, principalmente no caso de empréstimos e incorporam outros como [f] e [v]. Embora alguns professores reclamem da mistura de línguas e do fato de os pais não quererem que seus filhos sejam alfabetizados na língua, grande parte deles usa as formas dos +-jovens principalmente na fala, pois essa é a variedade que os abaixo de 49 anos usam. Na verdade, tudo indica que a variedade dos +–jovens é a mais usada, mas com os +jovens crescendo em número, a tendência é a de que a sua variedade seja a mais usada no futuro (uma abordagem com a medida de frequência será um tópico bastante importante para se definir essa questão). Há vários outros exemplos de nomes/substantivos que apresentam a mesma variação (nesse item uso a forma escrita convencional):

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A variedade étnica Português Xerente Akw˜e... Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety... 133 Português (+velhos) (+-jovens) (+jovens) Xerente Papel (folha para haisuka hesuka/papé papé escrever) Lápis (coisa com ikuikreze ikuikreze/rápi(s) rápi(s) que a gente es- creve) Radio (ferro que tãrãmr˜eme had had fala) Escola (lugar de rowahtze rowahtze/skora skora ensinar) Bicicleta (feito o sumzari sumzari/bisicret bisicret cavalo) Melancia wde=krukrãize wde=krukr˜eze/mrãsi mrãsi Laranja wde=krãikuze wde=kr˜ekuze/rarã rarã

Os processos de apagamento estão presentes, principalmente entre os +jovens, o que causa distância entre eles e os +velhos. Como se pode observar, as diferentes ocorrências são bastante distantes, ao ponto de tornar difícil uma conversa entre essas duas gerações, quando os empréstimos ou mesmo palavras da língua são utilizados. Como vimos os primeiros são ‘empréstimos por criação’, ou seja, feitos a partir da língua xerente. Os usados pelos +jovens passam pela fonologia da língua, mas estão muito mais próximos do Português, ou seja, caracterizam aspectos da Variedade Étnica do Português Xerente Akw˜e. No que diz respeito aos fonemas, o que ocorre e já vimos em alguns exemplos é uma substituição do fonema que não ocorre na língua pelo fonema fonologicamente mais próximo que existe em sua língua. Assim:

(19) a. [l]−→[R] b. [g]−→[k]&[s] c.[ S]−→[s]

Na grafia o [R] é escrito com ‘r’; o [g] com ‘c’ e ‘s’ e o [S] com ‘s’. Essas substituições pelo fonema mais próximo fonologicamente são outra característica da Variedade Étnica Português Xerente Akw˜e.Além disso, há variação entre: [p] e [b]; [t] e [d]; [o] e [O] e [e] e [3]. Todavia, não encontrei em meus dados do Português a permanência dessa variação. Contudo, no exemplo apontado anteriormente com ‘casa velha’= ‘krivé’ o participante usa kri = casa em Xerente e vé = velha em Português, um

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 134 Silvia L. B. Braggio

(loanblend) com termos das duas línguas, apagando a sílaba final e usando o [v] que não existe em Xerente. Veja-se que a palavra emprestada tem os segmentos/sílabas apagados à direita a partir de onde recai o acento em ‘velha’: ["v3]. Além dos nomes/substantivos comuns, pode-se observar que os empréstimos abarcam termos da língua, tais como os de parentesco e formas livres como conjunções e advérbios: então, ainda, mas, também. Durante o projeto alguns professores passaram a afirmar que:

‘A primeira língua que a criança fala é a língua estranha... português... falando mamãe e papai’. ‘Na minha comunidade a primeira língua que usa é mamãe... papai e vovó... vovô ou paire e mãere’. ‘A primeira língua que a criança fala é a Akw˜e... mas substituindo com palavras do português’. ‘As crianças estão misturando... por exemplo... Mamã karo wa za kazu./Mamãe vai pilar arroz.’

Esses exemplos também foram observados por mim quando das discussões entre os professores em sala de aula e em conversas fora da sala de aula. Em uma checagem com um professor, ele afirma que ‘as crianças falam hoje muito misturado como na palavra chapéu... chapé... que em Akw˜eé kr˜ehewamtro trocando o nome de todas coisas’. Logo, a partir desses exemplos pode-se constatar que há duas formas para um mesmo termo em estado de variação quando falam Xerente. A primeira variante usada pelos +velhos e +-jovens, krãi hêwamtro/kr˜ehêwamtro e para a geração +-jovem e +jovem, cotidianamente, informalmente, chapé/sapé.É importante notar que o som [S] não faz parte da matriz fonológica da língua Xerente (Krieger & Krieger 1994), mas os +jovens, os que têm mais contato com o Português na cidade, já usam esse som e outros quando falam Português e em Xerente quando usam empréstimos. As crianças pequenas e as mulheres mais velhas, e com menos contato com o Português, fazem a aproximação do [S] ao [s] (e dos outros fonemas anteriormente apresentados), o que pode ser visto na escrita das crianças adquirindo Português escrito. Materiais escritos das crianças coletados de 1998 a 2000, em Português, têm sido preciosos na análise da língua, pois a L1 da criança está sempre presente na aquisição da L2 (Braggio 2013). Sendo assim, os empréstimos lexicalizados na língua Xerente podem apresentar uma forma filtrada pela língua e outra que está introduzindo fonemas do Português nela inexistentes, como /f/, /v/, /S/ etc. No dicionário

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A variedade étnica Português Xerente Akw˜e... Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety... 135

dos Krieger a palavra chapéu aparece grafada como krãi hêwamtro, a forma dos mais velhos. Veja que o professor usa o [S] e a forma intermediária em krãi −→ kr˜e. Constata-se, então, que o léxico entre as gerações é diferente (Braggio 2008). Há inúmeros itens lexicais da esfera do cotidiano que os mais velhos desconhecem, ou falam de outra forma, e há também aqueles da esfera privada que os mais jovens não dominam o que, de meu ponto de vista, é uma das causas do ‘não entendimento’ entre eles. As causas dessas diferenças são mostradas em Braggio (2011): educação escolar, dispersão na área (de 7 para 64 aldeias) e migração, ou seja, maior contato com a cidade, seja morando (10% da população vive fora da área), para vender seus artefatos ou mesmo à procura de empregos, o que leva vários jovens do sexo masculino a se reunirem cotidianamente na pracinha da cidade mais próxima, Tocantínia. Portanto, os Xerente estão no momento no que podemos chamar de ‘bilinguismo alto’ ‘high bilingualism’ (Braggio 2012). Obviamente, a mudança foi gradual dado o espaço de tempo entre 1989 e o presente momento. Nesse ínterim, a estrada foi construída, instalou-se uma usina hidrelétrica na área, a dispersão na área foi intensa, o contato com a cidade foi intensificado e, portanto, com maior contato com a língua portuguesa. Esse cenário possibilita a ocorrência da Variedade Étnica Português Xerente Akw˜e,com características próprias e singulares. A seguir elaboro minhas considerações finais, levando em conta todos os aspectos por mim apontados na língua xerente e as características da variedade regional do Português incorporadas à Variedade Étnica Português Xerente Akw˜e.Os efeitos na educação escolar indígena são tratados a cada tópico.

6 Considerações finais e a educação escolar indígena

A trajetória para alcançar meus objetivos nesse artigo deixa clara a minha intenção de mostrar que a Variedade Étnica Português Xerente Akw˜eé constituída não só pelo Português como também pela língua xerente. Esse fato torna essa variedade específica do povo que a fala, já que o Xerente é a sua L1 e o Português a sua L2, deixando nele suas marcas, indícios, influências que não podem ser ignoradas, principalmente na educação escolar indígena. A educação formal das crianças e jovens indígenas tem sido um sério ponto de reflexão para estudiosos da área, pois têm ainda um longo caminho a percorrer a fim de que todos os gargalos sejam criteriosamente tratados. Nesse artigo, trato apenas do tema variedade, embora ele não seja o único no cenário da educação escolar indígena que necessita de atenção. A seguir trato de cada um dos tópicos por mim apresentados tendo em mente que vários aspectos da escrita em Português não podem ser tratados simplesmente como erros, mas como um processo que deve ser visto e compreendido.

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 136 Silvia L. B. Braggio 6.1 Em resumo a. Tipo de língua. Como vimos, tipologicamente a língua Xerente Akw˜eé basicamente aglutinante e SVO o que a difere do Português. Esse aspecto tem importância na escrita do Português no que diz respeito à segmentação das palavras e das palavras nas frases e nos textos. A escrita da L1 não é uniformemente usada nem mesmo pelos professores indígenas, pelo fato de ainda não ter sido usada o suficiente para que se entenda como deve ser grafada, se com ‘palavras’ juntas ou separadas, já que nesse tipo de língua há um núcleo ao qual podem ser agregados inúmeros morfemas. Logo, como seria de se esperar, ora as palavras apresentam uma segmentação, ora outra. Esse fato tem influência no Português escrito, o que pode ser visto em Braggio (2013). Portanto, trata-se com duas línguas diferentes, o que deve ser visto como um processo que ainda percorrerá um longo caminho, haja vista o caráter recente de sua real instauração. O processo de segmentação diferenciada também ocorre com crianças não indígenas na aquisição da língua escrita. Todavia, para a criança xerente, que aprende primeiramente a L1, mas não totalmente, quando começa a ler e a escrever na L2, a tarefa é mais complexa. Afinal, o que é uma ‘palavra’ quando ela é escrita? b. Gênero. O gênero não é marcado na L1 e o gênero marcado na L2 é outro ponto de atrito. Mesmo pessoas que têm muito contato com a L2 usam o gênero ora da forma esperada, ora não. Esse aspecto pode ser mais complexo no início da aquisição da L2 escrita, e o é, já que a língua mais usada entre os Xerente é a própria língua. Esse aspecto não tem correspondente no Português regional. c. Pluralização. O plural é não marcado no Nome na L1 diferentemente do Português em que é marcado. Obviamente esta é outra área de atrito. Há que se observar que para os números na L1 o cinco (5) é o número mais alto. A partir daí usa-se ‘muitos’: ‘warõr waw˜e’(waw˜etanto pode ser quantitativo quanto qualitativo). Neste ponto entra também a variedade do português regional na qual geralmente a primeira palavra de uma frase ou sintagma é marcada e as demais palavras são não marcadas. Como não há artigos em Xerente a pluralização se dá nos pronomes pessoais e possessivos e por quantitativos. Os adultos usam a variedade regional. Portanto, chegar à escrita dita padrão é um caminho nada fácil. Da minha experiência, ensinar apenas a gramática do Português não faz o menor sentido. A criança precisa de: falar, ler e escrever, a fim de ir construindo a gramática dessa língua, da mesma forma como fez com a sua. Todavia, a maioria não tem tempo para adquirir a sua língua na forma escrita, antes de ser introduzida ao Português. Tarefa esta complexa para o cérebro bilíngue que precisa de tempo para operar a L1 e

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 A variedade étnica Português Xerente Akw˜e... Portuguese Xerente Akw˜eEthnic Variety... 137

a L2 ao mesmo tempo. Infelizmente, esse tempo é negado pelas metodologias em uso. d. Tempo, modo, aspecto. O verbo não é flexionado em Xerente Akw˜e. Tempo, modo e aspecto são marcados por advérbios. Logo, quem adquire o Português como L2 defronta-se com uma língua bastante diferente da sua. A fala e a escrita dos adultos dificilmente apresentam as flexões esperadas no Português. O recurso mais usado é o uso de advérbios que contenham o significado esperado. Para a criança ocorre o mesmo. Portanto, o uso das flexões no processo de aquisição da L2 escrita seguirá o mesmo padrão. Na variedade regional coloquial muitas vezes a flexão de plural é apagada em um verbo que ocorra em uma frase, pois a flexão é feita no pronome pessoal, como em ‘Nós canta’ etc. Logo, fazer a criança decorar formas verbais é uma tarefa árdua e inútil. E, mais uma vez, ler e escrever com temas significativos é a forma ótima de levar a criança a adquirir a L2. e. Classificadores nominais e inalienáveis. Esse é um tópico de grande complexidade. Os Xerente Akw˜eapresentam em sua língua uma forma totalmente diferente da classificação que se faz em Português. Há classificadores para plantas, animais e coisas que se encaixam em outras classificações. Quando as crianças chegam à escola, já possuem uma categorização e classificação de tudo que há em seu mundo. Como vimos uma ‘palavra’ só pode ser escrita com seu classificador. Na escola, ao aprender a L2, a criança Akw˜ese vê às voltas com novas formas de classificação: a ocidental, sacramentada nas gramáticas e livros didáticos. Para tornar mais complexo esse cenário, como os Xerente Akw˜eapresentam em sua língua os inalienáveis e os alienáveis, coisas que necessitam necessariamente de um possuidor, coisas que podem ser possuídas e coisas que não podem ser possuídas, como elementos da natureza: sol, lua, estrelas, rios etc., as crianças enfrentam uma tarefa árdua. Elas não podme possuir, por exemplo, o que pertence a um animal ou planta, nem podem possuir algo que foi gerado, nascido de uma planta ou animal. Consequentemente, os pronomes possessivos do Português devem ser ensinados com muito cuidado na escola. f. Os eventos de fala. Como a sociedade Xerente opera mais efetivamente no coletivo, acredito que os eventos de escrita devem priorizar grupos de crianças (abordagem colaborativa), mas levando-se em consideração as diferenças de cada criança. Cada criança tem seu tempo de aquisição de algo novo. Uma dada criança pode ter tido mais contato com o Português do que outra. Esse fato precisa ser levado em consideração. O ideal para quem adquire uma L2 ainda criança é passar da língua oral para a escrita. A escola deve ter em seu programa vários eventos de fala típicos para crianças, jogos, brincadeiras, músicas, a fim de que elas possam ir construindo seu repertório lexical e gramatical por meio

PAPIA, 25(1), e-ISSN 2316-2767 138 Silvia L. B. Braggio do uso mais coloquial da ‘língua estranha’, como afirmou um professor indígena. Os eventos de fala e escrita são cruciais para se trabalhar com a educação escolar das crianças xerente. Se o professor for Xerente, as regras sociolinguísticas, anteriormente apontadas, serão respeitadas, já que elas estão inseridas na cultura. Caso contrário, se o professor for não indígena, principalmente na cidade, as crianças xerente correrão o risco de serem apontadas (como tem acontecido em outros países onde há crianças indígenas nas escolas) como pouco participantes, já que respondem quando são perguntadas. Elas não iniciam um turno de fala. Elas também poderão ser acusadas de não saber falar Português, já que misturam as línguas. E, mais importante, como agem coletivamente, o trabalho individual é o menos producente, o ideal é utilizar uma abordagem de ensino colaborativa juntamente com a individual, pois os resultados da aprendizagem serão otimizados. g. Os fonemas e grafemas. A área da língua mais suscetível à entrada da L1 é a fonológica ao trazer consigo fonemas da L1 em palavras emprestadas que vão se tornando cada vez mais aportuguesadas em vista de fatores extralinguísticos, a saber: a educação escolar, a dispersão na área e a migração para a cidade. Essas formas inovadoras são introduzidas pelos falantes mais jovens, escolarizados e com mais contato com o Português, além de dominá-lo com mais desenvoltura. Embora na área a língua de uso seja o Xerente, o Português vai abrindo espaço, principalmente com o sentimento de que essa é a língua para ser escrita a fim de se adquirir novos conhecimentos e dar acesso a mais qualidade de vida, usando-a como instrumento. Se isso está acontecendo é preciso que os professores entendam, principalmente os não indígenas, que a criança ao adquirir Português como L2 na escola, está lidando com línguas com diferentes grafias com um léxico ainda bastante reduzido e, portanto, levando para a sua escrita, aspectos de sua própria língua. Tal fator deve ser cuidadosamente tratado a fim de que não se considere como erro o que é perfeitamente natural no processo de se tornar bilíngue, pois, do contrário, a repetência e a evasão passam a ser a situação mais indesejada e mais para triste a criança. Professores não indígenas muitas vezes podem ser cruéis na correção de ‘erros’ gráficos (Braggio 1986) e desestimular a criança a prosseguir com seus estudos. Em suma, apresentei nesse artigo aspectos da Variedade Étnica Português Xerente Akw˜e.Há alguns ainda a serem verticalizados, por exemplo, classes de palavras, os inalienáveis/alienáveis, mas acredito que possa ter contribuído para a sociolinguística, que deve considerar em suas pesquisas as variedades étnicas. Esses estudos são de significativa importância para a educação escolar indígena que trata com crianças que precisam adquirir o Português como segunda língua. Também acredito que pesquisas em história, geografia, ciências, matemática, antropologia etc. devem ser adensadas, a fim de se ter um quadro mais abrangente de como uma dada sociedade indígena lida com o mundo no qual está inserida. Esses estudos serão valiosos para compreendê-las e otimizar a educação escolar indígena.

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Recebido: 06/11/2014 Aprovado: 26/02/2015

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Ficha técnica

Mancha 11,8 x 18 cm Formato 16 x 22 cm Tipologia Life Papel miolo: off-set 75g/m² capa: cartão supremo 250g/m² Impressão e acabamento Gráfica da FFLCH Número de páginas 142 Tiragem 200 exemplares