BLADE RUNNER: a Ficção Científica E a Ética Da Ciência Na Sociedade Líquido-Moderna
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP
Edilson Rodrigues Palhares
BLADE RUNNER : a ficção científica e a ética da ciência na sociedade líquido-moderna
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
São Paulo 2010 EDILSON RODRIGUES PALHARES
BLADE RUNNER : a ficção científica e a ética da ciência na sociedade líquido-moderna
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, área de concentração Sociologia, sob orientação da Prof. a Doutora Marisa do Espírito Santo Borin.
PUC-SP 2010
Banca Examinadora ______
DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação à memória do escritor de Ficção Científica Philip K. Dick, cuja obra representa uma grande ruptura neste gênero ao questionar a identidade humana em relação ao avanço tecnológico dos meios de produção material da vida.
Ao diretor de cinema britânico Ridley Scott e sua equipe que há 28 anos transcodificou magistralmente um romance de Dick para as telas, criando Blade Runner , um filme que desde então se tornou parte inerente de minha vida.
Aos fãs e leitores de Ficção Científica como um todo, e especificamente aos leitores de Philip K. Dick, H.G. Wells e Mary Shelley. E evidentemente, aos inúmeros admiradores do filme Blade Runner .
À professora doutora Noêmia Lazzareschi, do Programa de Ciências Sociais da PUC-SP, cujas aulas tiveram o poder de fundamentar minha visão do mundo social e científico de uma forma muito mais consistente do que a que eu tinha antes.
E principalmente, à minha amada esposa Angela Procópio, que em todos os momentos em que fraquejei e caí perto dela, não só auxiliou no meu reerguimento, como me ensinou a fazer isto por conta própria, caso não estivesse por perto. AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha esposa Angela Procópio pelo grande incentivo, auxílio e pela confiança depositada em meu trabalho, desde o início, além de me fazer perceber a importância de ser amado para também amar o trabalho de pesquisa.
À minha irmã Silvania R. Palhares, pelas palavras de estímulo, amizade e apoio logístico. Sem o apoio e estímulo incomensuráveis dessas duas mulheres, esta pesquisa não teria se materializado. Da mesma forma agradeço a uma outra grande mulher, doutora Karina Cleto, a médica que não consegue exercer sua profissão sem criar um fraterno laço com o paciente, que no meu caso foi importante não só para alavancar esta pesquisa, mas a minha vida.
Ao meu grande amigo Marco Antônio Durço, que na condição de Chefe do Departamento de Ensino do CEFET-MG, fez todo o possível para a viabilização legal de minha dedicação a esta pesquisa enquanto professor de História da Arte sob sua coordenação. Também devo agradecimentos aos demais amigos e colegas de trabalho do nosso Centro Federal de Ensino Tecnológico que em momentos cruciais foram de extrema importância para a exeqüibilidade deste projeto, como Ana Lúcia Faria, Dalva Silveira, Telson Crespo e principalmente Márcio Antônio Rosa.
Ao Diretor Geral do CEFET-MG professor doutor Flávio Antonio dos Santos por ter possibilitado o mestrado interinstitucional com a PUC-SP, assim como a todos de sua equipe de trabalho que contribuíram, direta ou indiretamente para a sua viabilização, particularmente ao Milney Chasin.
Ao colega Antonio Alone Maia, pela presteza da tradução para o inglês.
À equipe técnica responsável pelos serviços da Google Incorporation e IMDB, pela liberação de informação acadêmica disponibilizada de forma prática e instantânea, que é algo que condiz com a filosofia desta dissertação.
E aos qualificadores professores doutores Miguel Chaia e Cláudio Luis Penteado que iluminaram o meu caminho em momento de grande nebulosidade.
E por fim, um agradecimento especialíssimo à minha orientadora professora doutora Marisa do Espírito Santo Borin, que acreditou na minha idéia desde o início, me passando sua energia e determinação.
A ciência natural algum dia incorporará a ciência do homem, exatamente como a ciência do homem incorporará a ciência natural; haverá uma única ciência.
Karl Marx, 1844 RESUMO
Este trabalho analisa o gênero lítero-cinematográfico Ficção Científica, pelo recorte do filme “ Blade Runner” (1982) de Ridley Scott. Seu foco se encontra na forma em que este apresenta os limites éticos da ciência em função de uma sociedade que se mantém pelo consumismo, cuja representação se faz na cenografia de uma metrópole futurista (Los Angeles do ano 2019). O objetivo é demonstrar a relação dicotômica da feitura do filme entre produção mercantilista e cinema de autor, a partir daí sua legitimidade como uma Ficção Científica de comprometimento social, possibilitando uma abordagem reflexiva quanto aos limites éticos da ciência na atual condição da modernidade. O argumento é que Blade Runner é uma obra que apresenta um futuro distópico onde as conseqüências de uma produção capitalista alicerçada em uma ciência sem consciência degradaram por completo a natureza, trazendo grandes transtornos sociais e, sob a ótica do filme, inusitados retrocessos das formas de exploração do trabalho. Ao longo da pesquisa se desenvolve o processo de produção de Blade Runner , a relação deste e de Philip K. Dick, o autor do romance original que lhe serviu de base, com a Ficção Científica de cunho distópico e a visualização que o filme apresenta de uma metrópole do futuro em justaposição ao conceito de sociedade líquido-moderna de Zygmunt Bauman. Por fim, um apontamento de que a proposta de Blade Runner oferece continuidade ao romance “Frankenstein” de Mary Shelley, por suscitar a idéia de que a ciência necessita de conscientização ética, sob os pressupostos de Edgar Morin, para que seus efeitos negativos não se voltem contra a humanidade.
Palavras-chave: Blade Runner; Ficção Científica; sociedade líquido-moderna; ética e Ciência. ABSTRACT
This work analyses the litero-cinematographic Scientific Fiction gender, by Ridley´s Scott movie Blade Runner (1982) cutting out. Its focus is found in the way that this presents the ethic limits of science to the function of a society which mantain itself by the consumism, whose representation hapens in scenography of a forthcoming metropolis (Los Angeles of 2019). The aim is to demonstrate the dichotomic relation in the way the movie was made between mercantilistic production and the author´s movie, and from there its legitimacy as social commitment science fiction, giving way to a reflexive approach concerning ethic limits of science in the actual modern condition. The argument is that, Blade Runner is a work which presents a dispotic future, where the consequences of a capitalistic production based on a science without conscience degraded completely the nature, bringing up great social upsettings and , from the view of the movie unusual retrocessions of labour ways of exploitation. Throughout the research a production process is developed of Blade Runner , his relation and that of Philip K. Dick, the author of the original novel which served as a base, with a scientific Fiction of dispotic approach and the view which is presented by the movie of a future metropolis, in juxtaposition to the concept of liquid-modern society of Zygmunt Bauman. Finally, to point out that, the proposal of Blade Runner offers continuity to “Frankenstein” novel of Mary Shelley, by bringing up the idea that science needs an ethic consciousness, under Edgar Morin pressuppositios, so that its negative effects do not come back against humanity.
Key words: Blade Runner; science fiction; liquid-modern society; ethic and science. . SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...... 11
Ficção Científica ...... 13
Blade Runner ...... 15
Cinema ...... 19
Motivação da pesquisa ...... 23
Estrutura do trabalho ...... 25
Metodologia e referencial teórico ...... 26
CAPÍTULO I BLADE RUNNER , O FILME E SUAS VERSÕES ...... 29
1.1 A trama ...... 30
1.2 O processo de feitura ...... 34
1.2.1 Transformação em cult movie ...... 38
1.2.2 A relação com a cibercultura ...... 46
1.2.3 Replicando-se em novas versões ...... 51
CAPÍTULO II FICÇÃO CIENTÍFICA E O REVERSO DA UTOPIA ...... 60
2.1 A expansão literária e cinematográfica da Ficção Científica ...... 61
2.1.1 Philip K. Dick, o escritor que concebeu Blade Runner ...... 67
2.1.2 Robôs e outros simulacros do corpo humano ...... 74
2.2. Utopia pela distopia ...... 81
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CAPÍTULO III A METRÓPOLE: FICÇÃO E REALIDADE ...... 95
3.1 A metrópole imaginária ...... 95
3.2 Urbanicidade e industrialização ...... 99
3.2.1 Novas sociabilidades ...... 104
3.3 A cidade e a publicidade ...... 112
3.3.1 O corpo como reflexo urbano ...... 121
3.4 A metrópole líquido moderna ...... 125
CAPÍTULO IV A CIÊNCIA INCONSCIENTE ...... 133
4.1 Corpo, cinema e ciência ...... 134
4.1.2 O arquétipo de Frankenstein ...... 145
4.1.3 Vida, Morte e Modernidade Líquida ...... 153
4.2 Necessidade de ética ...... 163
4.3 Necessidade de conscientização ...... 170
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 180
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 190
APÊNDICE A – Filmes estrangeiros citados e respectivos títulos originais .... 208
APÊNDICE B – Livros estrangeiros citados e respectivos títulos originais .... 211
INTRODUÇÃO
A técnica tem acompanhado o homem desde o seu passado mais remoto. Evidências arqueológicas indicam que há pelo menos dois milhões de anos, um de seus ancestrais, o Homo habilis , já confeccionava instrumentos rudimentares de pedra lascada para a caça e desossagem. O uso de ferramentas cada vez mais aprimoradas ao longo da evolução teria propiciado alterações anatômicas que foram determinantes para o surgimento do Homo sapiens. Desta forma, o homem moderno pode ser considerado simultaneamente um produto da cultura e da biologia. 1 Ao se evoluir e erigir a civilização, o homem internalizou os efeitos da manipulação do mundo externo, se tornando, nesse sentido, uma espécie de ciborgue.2 Hoje temos uma civilização global alicerçada no uso em larga escala da tecnologia. Uma civilização auto conectada através de uma gigantesca rede de transferência de dados na velocidade da luz, que nos permite comunicação em tempo real e o avanço cada vez mais geométrico da própria ciência produtora do conhecimento tecnológico.
Dessa forma, se possuem os mais especializados sistemas maquinais capazes de produzirem em tempo recorde as necessidades cada vez mais urgentes do viver. Contudo, o avanço científico não trouxe, embora quase sempre tenha prometido, a utopia. O homem ainda não foi liberado do trabalho braçal pelas máquinas para se dedicar ao ócio criativo. Nem parece haver indícios de que caso venha a ser integralmente substituído por máquinas, poderá gozar de um bem-estar sem precedentes. Ao contrário, erigiu uma sociedade tecnocientífica que cada vez mais hipertrofia as contradições dos sistemas econômicos que já deveriam; há muito; terem sido eliminadas. Vive-se atualmente em uma sociedade de economia global de características tão diversas que se torna até difícil precisar o ponto da história econômica em que se está. Para uns seria o pós-modernismo. Ou seja, uma nova etapa de um projeto racional de modernidade do Iluminismo, apesar da controvérsia se este era mesmo o ideal. Para outros, longe disso, pois a atual condição seria na verdade conseqüências das próprias contradições do moderno, que poderia ser uma
1 Cf. RIBEIRO, G.L. Tecnologia versus tecnofobia, o mal-estar no século XXI. Humanidades , 1999, p.2. 2 Cf. Ibid. p. 2.
12 modernização reflexiva que se constrói sobre isso ou uma modernidade líquida, onde o indivíduo busca seu espaço social através do consumismo.
Independentemente da nomenclatura ou entendimento que venham a ter sobre o nosso atual momento, sabe-se que este é decisivo para o futuro da humanidade. É a primeira vez que ocorre a possibilidade de se abortar todo o processo civilizatório. De forma ativa, apertando botões nucleares, ou passiva, simplesmente consumindo a natureza sem pensar na sustentabilidade.
É nesse sentido que deve ser direcionada a grande contribuição dos estudos em ciências sociais, especialmente os mais tecnocientíficos. Mais do que analisar os impactos das inovações tecnológicas na sociedade, deve-se efetivamente contribuir para que os negativos sejam menorizados. Segundo Santos , Nietzsche pregava já no século XIX a necessidade de se politizar a aplicação de conhecimentos científicos, especialmente na área biológica.3 Isso se alinha com os atuais debates, mesmo que polarizados entre ambientalistas e cientistas sobre o uso da Engenharia Genética, como no caso do uso dos transgênicos. Ou então, temas sobre a fertilização artificial, eutanásia, transplantes e uso de células-tronco embrionárias discutidos entre cientistas e religiosos. Não se dispensaria nem mesmo conceitos teológicos nesta discussão, desde que aqueles que os apresentem consigam abstraí-los de opiniões embasadas em dogmas da fé, criados fora do âmbito da razão, em tempos remotos, e sejam ponderadamente racionais.
E nisso, a própria definição do que é ser humano pode necessitar de complementos, afinal o entendimento do que é ser humano está mudando, principalmente quando temos a manipulação genética sendo oferecida em clínicas de esquina ou a extração de genes indígenas brasileiros para pesquisas da indústria farmacêutica multinacional. Isto é muito mais urgente do que tentar responder às grandes questões filosóficas como quem somos, de onde viemos e para onde vamos – algo que a ciência ainda está longe de explicar, se explicar – é saber onde estão as fronteiras do homem como entidade biológica.
Somem-se a isso tudo o que a ciência, através da tecnologia, pode alterar ainda na sociedade de consumidores. A propaganda impele ao consumo e induz à crença de que o mundo apresentado em suas imagens é facilmente acessível a
3 Cf. SANTOS, Laymert Garcia dos, 2003, apud KASSAB, Álvaro. A tecnociência no centro da discussão (embora ela não goste). Jornal da Unicamp, Campinas , n.240, 8-23 dez. 2003, p. 6.
13 qualquer um, mas omiti-se que o planeta não suportaria se todos pudessem consumir homogeneamente como um cidadão médio dos EUA (Estados Unidos), modelo de consumidor mundial. Vivem-se constantes mini-revoluções industriais sob uma ética que costuma se estirar de acordo com os interesses do capital. Para se encontrar uma forma de se viver equilibradamente com a produção dos bens materiais de vida, tanto no sentido de preservação ambiental, quanto de justiça econômica e social, uma ética de alcance planetária se faz urgente. Se não houver o desenvolvimento de um consciente coletivo com atitudes generalizadamente responsáveis e apoiadas menos no cartesianismo especializante do conhecimento da natureza e mais na transversalidade deste, corre-se o risco de autodestruição. E enquanto isso não acontece, padece-se lentamente em meio ao mal-estar civilizatório, já sentido na cotidianidade, já alardeado nas artes e na indústria cultural. Como no cinema, principalmente quando em seus fotogramas se está revelado um filme de Ficção Científica (ou FC) com alta capacidade de incitar reflexões sobre a própria sociedade que o produziu.
Ficção Científica
Histórias rotuladas como Ficção Científica têm suas origens mais remotas nas narrativas fantásticas que acompanham o homem desde que este desenvolveu a comunicação pela linguagem falada de uma forma mais articulada, o que lhe permitiu ser mais eficaz ao transmitir sua cultura. Das grandes epopéias mitológicas a narrativas de cunho religioso, o fantástico atravessou o tempo e hoje, como fantasia e FC, tem se mostrado um ramo da literatura muito prolífico, precipuamente quando travestida em outras mídias, como cinema, games, teatro, ilustração, música etc. Manifestando-se como indústria cultural, teria a capacidade de ser um transmissor entre a visualização que o criador tem de sua realidade social e o espectador, que independentemente do espaço e do tempo em que esteja, poderá captar parte da época em que a obra foi produzida. Pensamentos, ideais políticos, éticos, inquietações e esperanças podem atravessar eras para propiciar releituras em tempos modernos. Da mesma forma que ocorre com quase qualquer produto da cultura humana, seja ele manufaturado com finalidades pragmáticas ou estéticas,
14 uma obra de FC para permitir um amplo entendimento da sociedade que a gerou, desde que devidamente interpretada. Se um pedaço de pedra lascada artificialmente tem muito a revelar para as ciências bioantropossociais sobre o período pré-histórico em que foi produzido, um filme de Ficção Científica talvez possa fazer o mesmo em relação ao momento em que foi produzido. Segundo Noma:
Este imaginário de futuro pode ser considerado como a expressão dos sonhos e pesadelos do presente vivido, uma vez que o mundo do futuro é construído a partir daquilo que é vivenciado na sociedade na qual os filmes e livros foram produzidos. (NOMA, 1998, p. 30).
A FC futurista parece dizer muito mais sobre a época em que é produzida do que a que se passam suas narrativas. Segundo Raul Fiker, as características deste gênero são as da literatura popular ou de entretenimento para as massas em geral, algo que erroneamente vem lhe sacralizando um estigma de que não pode ser considerada erudita.4 E operam no sentido de sedimentar um repertório de temas e situações mais ou menos fixo. É um repertório que pode abranger variações e uma infinidade de tratamentos, desde os mais fúteis e óbvios aos mais profundos e engenhosos, abrangendo perspectivas das mais psicológicas às mais sociais. Das mais simplórias publicações em tiras de quadrinhos às mais eisensteinianas das películas. E ao tudo indica, a FC de boa qualidade oferece condições para um estudo analítico da realidade em que foi produzido e daí apontar direções, gerar discussões sobre novas possibilidades de ação diante situações plausíveis, a curto, médio e longo prazo.
A partir desta perspectiva, a Ficção Científica, mesmo que em alguns casos seja mais ficção do que ciência, permitiria, de alguma forma, contribuir no entendimento da sociedade atual, assim como de seus rumos e, independente do suporte, sua popularidade poderia ajudar a formar opinião, auxiliando assim o desenvolvimento de propostas com éticas menos antropocêntricas e mais ecocêntricas para o futuro.
Dessa forma, a Ficção Científica, ao que parece, pode fazer parte de um extenso mosaico de opções para se fomentar conhecimentos transdisciplinares que induzam a formação de saberes consolidados a partir de fatos comprovados e, não em axiomas. Isto é, saberes que proporcionem uma melhor utilização dos recursos
4 Cf. FIKER, op. cit., p. 44.
15 naturais sem que para isso precisemos destruir o mundo. Saberes que proporcionem um mundo mais justo socialmente, onde a ética tenha como princípio uma solidariedade transnacional, e não um individualismo irresponsável, mesmo sabendo que uma antropolítica civilizatória costuma ser barrada pela hegemonia do ego.
Blade Runner
O longa-metragem Blade Runner (EUA, 1982), intitulado “Caçador de Andróides” no Brasil teve direção do britânico Ridley Scott, com roteiro adaptado sobre romance do norte-americano Philip Kindred Dick, escritor especializado no gênero Ficção Científica. A atenção que esse diretor freqüentemente dedica às suas produções, particularmente no que tange aos aspectos visuais, representa ao público mais familiarizado com cinema, muito mais do que um estilo, mas sim sua própria assinatura visual. Neste filme especificamente, o esmero foi ainda mais perceptível, seja no tratamento dado à direção de arte através de uma cenografia rica em detalhes, e na fotografia, onde se preteriu a iluminação chapada em troca de efeitos barrocos de contraluz. Scott recorreu aos séculos passados, mesmo quando quis retratar uma metrópole do futuro.
Descontando as adaptações elaboradas no intuito de criar uma atmosfera de deterioração futurística para a película, onde as mais novas e inusitadas tecnologias convivem com artefatos antiquados e releituras de modismos do passado, a imagética apresentada parece não ser substancialmente diferente da realidade de qualquer grande centro urbano da atualidade. No entanto, a proximidade do mundo fictício apresentado na tela com o que o espectador urbano se depara em sua própria cidade não é restrita à urbe. As inovações da Engenharia Genética que despontam quase diariamente na mídia também estão presentes, porém em versões hipertrofiadas. No decorrer da evolução dos produtos biotecnológicos, o filme mostra como o processo da vida passou a ser, naquele futuro, uma mercadoria facilmente reprodutível por técnicas de clonagem e projetos genéticos, muitas vezes terceirizados em laboratórios chineses, o que contribui para serem bens utilitários de fácil aquisição, objetos animados que em pouco viram lixo orgânico.
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O mundo futuro que Scott apresenta neste filme é feito de detritos culturais em uma mistura úmida e insalubre com a mais alta tecnologia, onde os personagens sempre estão em meio a uma grande e caótica quantidade desses. Animais empalhados, equipamentos cirúrgicos, réplicas de artefatos arqueológicos, aparelhos eletrônicos e muitos bonecos e manequins, como se aquela civilização em avançado processo de decomposição necessitasse se agarrar semioticamente a signos de tempos melhores. Nesse sentido, Argullol diz:
De um jeito peculiar vemos a decoração barroca, asfixiante e fascinante, mas cada figura, cada ação, cada conduta está determinada por esta decoração, invisível e onipresente, que por sua vez mantém o homem suspenso no naufrágio absoluto de um espaço para o qual ele jamais terá tempo suficiente. Por isso Los Angeles- 2019 contrapaisagem densa, quase irrespirável, é um espaço dominado pela insuficiência do tempo humano, a autêntica grande ameaça mais poderosa que o seco convite à ausência que chama- mos morte. (ARGULLOL, 2001, p. 17, tradução nossa).
Ambiguamente, o desconforto que surge de forma proposital com esta opção estética parece que auxilia na eliminação da estranheza por talvez propiciar um chão para o apoio do espectador, que não perderia assim suas referências ao ser lançado em uma sociedade cronologicamente à frente de seu tempo. Até porque, mesmo descontando os exageros típicos de uma obra fantasiosa, a sociedade projetada na tela não se difere substancialmente da que existe no mundo real fora da sala de exibição, sobretudo nos grandes centros urbanos. O mundo apresentado ao espec- tador é altamente desenvolvido em biotecnologia e física espacial, conhecimentos que permitem transgredir, de um jeito corriqueiro, certas barreiras da natureza. Como a da Relatividade, possibilitando viagens que driblem o limite da velocidade da luz para expandir o capitalismo às estrelas, ou a da criação da vida artificial, reestruturando as formas de produção de uma sociedade voltada para o consumo.
O impacto destas e de outras extrapolações limítrofes insinua que se fomen- tou uma nova revolução industrial no universo do filme, onde megacorporações de alta tecnologia se fizeram ainda mais poderosas e tentaculares do que as que existem na economia globalizada de hoje, o que propicia uma versão de capitalismo que ainda ressuscita formas de propriedade historicamente ultrapassadas.
Sob esta ótica, ocorre uma espécie de retrocesso civilizatório que derruba de vez, qualquer princípio positivista de evolução social, pois grande parte das relações
17 sociais de produção tem como base uma nova forma de exploração do trabalho, considerada escravocrata no universo do filme, dissimulada no uso de seres andróides aparentemente humanos, mas não humanos de verdade.
Embora tratados de forma não muito diferente dos escravos históricos, no que tange à destituição de direitos legais, os andróides se diferenciam essencialmente destes porque são trazidos à vida à imagem e semelhança do homem, em produção em série, com aptidões imanentes próprias para as especializações necessárias de cada função a que são obrigados a se dedicarem. São especializações apropriadas para as condições de trabalho pesado em colônias extrativistas fora da Terra, onde geralmente são incumbidos de exercerem atividades que, nem sob pagamento, os seres humanos normais aceitariam ou poderiam aceitar.
Além destes aprimoramentos orgânicos para o trabalho braçal, como força e adaptabilidade às mais diversas condições, as réplicas humanóides das gerações mais avançadas, possuem capacidade intelectual superior, algo altamente mercadejável diante da necessidade de se tomar decisões e aprendizado em um meio em constante avanço técnico. No entanto, os replicantes mais modernos da trama de Blade Runner eventualmente manifestavam defeitos de fabricação após o uso prolongado. Extrapolando suas programações surgia um indesejado efeito colateral: reações emocionais próprias. Como não possuíam direitos legais, tal característica os levou a questionar seus senhores, implicando algumas vezes em atitudes agressivas.
A fim de corrigir definitivamente tal importunação a seus negócios, a indústria que projeta as matrizes genéticas para clonagem, criou para a classe mais desenvolvida e especializada de replicantes, a Nexus 6, uma programação que limita a vida útil em quatro anos, tempo considerado seguro para evitar emoções.
Esta limitação de vida-útil, além de ser uma tentativa de evitar uma resposta de alta periculosidade do manuseio inconseqüente de segredos da criação, se encaixa com perfeição na ideologia da atual modernidade. Como boa parte do que se adquire hoje na sociedade de consumo, têm durabilidade reduzida, o que garante lucros rápidos às empresas fabricantes da reposição. E qualquer tentativa de romper este sistema pode implicar em “remoção” sumária.
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Para se chegar a este ponto, não houve, ou não foi colocada em prática, a proposta de uma ética global que acompanhasse o avanço científico, uma ética cívica que viabilizasse o caminho para uma espécie de utopia mais ecocêntrica . Mas o que o filme mostra é um mundo tão egocêntrico que o próprio homem se faz de Deus ao usar a chave da vida para criar outro homem à sua imagem e semelhança.
As épocas futuras trarão com elas novos e provavelmente inimaginá- veis grandes avanços nesse campo da civilização [tecnologia de próteses] e aumentarão ainda mais a semelhança do homem com Deus. (FREUD, 1978, p. 152.)
No futuro de Blade Runner , o corpo humano é construído sob medida a fim de ser especializado nas mais diversas modalidades de trabalho servil, da prostituição ao manejo braçal em ambientes hostis em colônias interplanetárias. Tal condição pode ser entendida como uma metáfora que representaria o ápice da liquidez da sociedade moderna conforme o pensamento de Zygmunt Bauman. Pois os andróides, ao ganharem artificialmente a vida como uns frankensteins da modernidade, já são programados à efemeridade, visto que necessitam, após pouco tempo, de remoção e substituição por modelos mais avançados. Para isso têm suas vidas já embutidas com prazos de validade muito curtos. A consciência dessa condição, mais do que a programação física de seus corpos, proporciona-lhes superioridade moral e física em relação aos homens que de fato os criaram, figuras patéticas e solitárias que parecem ansiar pela hora de morrer.
A liquidez se mostra também hiper-real através da propaganda onipresente na metrópole que serve de cenário para Blade Runner . Propaganda falsa e verdadeira simultaneamente. Falsa porque está dentro de uma obra de ficção. Verdadeira porque insufla a adquirir produtos que podem ser comprados do lado de fora do cinema, como refrigerantes e fitas VHS. O merchandising desta película chega a ser tão natural, apesar de escancarado, que parece ficar em um ponto eqüidistante da polarização verdadeiro-simulacro, que é uma das grandes possibilidades de leitura sobre as propostas do argumento da trama. Afinal o personagem central anda com uma maleta que contém um equipamento (uma espécie de polígrafo pneumático) que lhe permite diferenciar pessoas de verdade das artificiais pela dilatação da íris.
Os olhos são uma simbologia recorrente em Blade Runner . Já em sua cena inicial um grande olho que observa a degradação urbana, onde a indústria
19 petroquímica se metastaseou com os bairros domiciliares e comerciais. Como os olhos eletrônicos da famosa distopia orwelliana, o incentivo ao consumo em Blade Runner é onipresente e pontua todo o desenrolar da trama. Parece indicar que a sociedade continua cada vez mais imersa na modernidade líquida, sempre com o excesso de promessa para evitar a frustração do niilismo cotidiano. Tudo deve ser visto pela ótica do consumo, dos recursos da natureza à própria natureza humana. Solidez passa a ser o lixo. Se ficar parado, se não acompanhar as novas tendências, não se reciclar, o cidadão moderno vira um descarte antiquado.
A questão da onipresença é inerente ao filme. A vigilância policial é absurdamente constante, com o apoio dos mais antiéticos e antiestéticos equipamentos. A chuva ácida está em toda a cidade o tempo todo. A propaganda das mais diversas empresas (que realmente existiam em 1982) surge como cenário ou interagem do início ao fim daquela tragédia humana (ou andróide).
Atualmente, a tecnologia apresenta-se claramente como a ponta final da pesquisa científica, aquela parte materializada do conhecimento de alta complexidade que chega ao mercado para a consideração do cidadão-consumidor. Ao mesmo tempo, defrontamo-nos com uma relação hiper-complexa com a tecnologia. Agora o corpo pode ser engenheirado, reconstruído, reformatado, reconfigurado. Sonhos de felicidade instantânea, vida eterna, convivem com temores de perda da memória, identidade, integridade, agência e poder. A fascinação ambivalente da tecnologia revela-se inteiramente. Por um lado, o desejo de transcendência. Por outro, o medo da subjugação, da desumanização. (RIBEIRO, 1999, p.1)
E em Blade Runner o corpo vende a emigração, as passagens interplanetá- rias, os terrenos em utopias estelares e o próprio corpo, como mão de obra servil qualificada tão liquidamente efêmera que se autodestrói após quatro anos de usufruto. Um bem bolado gatilho, pois não só abre perspectiva para a compra de um modelo mais atualizado para reposição, como também impede que ele queira tomar o lugar do proprietário.
Cinema
O romance em que se baseou Blade Runner foi escrito à época das truculências na Guerra do Vietnam, que para seu autor, não se diferenciavam fundamentalmente das atrocidades nazistas da Segunda Guerra. No entanto, o que
20 teve a sua gênese para ser uma militante literatura de protesto antiestablishment no fim das contas se tornou um bem de consumo da produção capitalista dos próprios EUA. Esta dicotomia aparentemente paradoxal atravessou o intricado processo da produção do filme e de alguma forma pode ter contribuído para o desconforto e conseqüente desapontamento sentidos pelos espectadores iniciais à época de seu lançamento, seria esse um dos motivos de seu fracasso comercial imediato (conforme será mostrado no Capítulo I). Sua proposta desoladora enveredava na contramão das demais representações culturais que se alinhavam com as perspectivas de garantia de preservação, e melhoria, do american way of life . Principalmente no ambiente norte-americano, onde a ideologia da Era Reagan propagandeava que os Estados Unidos caminhavam para uma utopia de prosperidade. No entanto, a própria existência do filme já pode ser vista como um indício de que possibilidades opostas já podiam ser aventadas nos anos 1980. Longe de se desejar superestimar o poder de sua proposta, principalmente na caracterização do ambiente urbano de um futuro próximo, é conveniente ressaltar, neste estudo, algumas de suas visualizações. Entendidas aqui como representações simbólicas das cidades reais que sofrem as conseqüências positivas e particular- mente as negativas, da implementação de seus parques industriais.
a metrópole tem um lugar eminente dentro da FC, sendo tanto invasora e invadida e podendo se virar contra o próprio homem, sendo hostil contra seus próprios habitantes. A cidade é um elemento do triunfo distópico que está presente na maior parte dos textos de FC. (THOMAS, 1988 apud AMARAL, 2005, p. 7).
Quando é mostrada ao espectador a comunhão imperfeita da industrialização e urbanização em cenografias hipertrofiadas, ocorre também neste processo imagético a junção do que Paul Virilio considera motores da história. Estes seriam fases em que novidades tecnológicas alteram essencialmente o espaço geográfico mundial. Por o homem ser submisso ao peso, ao esforço e ao cansaço, a história das ciências e das técnicas se liga à lei do menor esforço. Em decorrência disso, a máquina fora inventada. Esta, por sua vez, inferiu formas diferentes de se ver e conceber a realidade. O conceito de Virilio envolve níveis sucessivos destes motores em que a história moderna pode ser organizada. Cada um modificando o quadro de produção de nossa história, assim como a percepção e informação. Segundo Virilou, tais motores seriam:
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Primeiro, o motor a vapor , na ocasião de uma revolução da informação e da criação da primeira máquina, ou seja, da máquina que serviu à revolução industrial. Foi o motor a vapor que permitiu o trem e, portanto, a visão do mundo através do trem, a visão em desfile, que já é a visão do cinema. [...] O segundo motor, o motor de explosão , propiciou o desenvolvimento do automóvel e do avião. Voando, o homem obteve uma informação e uma visão inéditas do mundo: a visão aérea. O motor de explosão possibilitou uma infinidade de máquinas, as máquinas-veículo e também toda uma série de máquinas de produção industrial. O terceiro motor, o elétrico , deu origem à turbina e favoreceu a eletrificação, permitindo, por exemplo, uma visão da cidade à noite. Evidentemente ele favoreceu também o cinema. O cinema é uma arte do motor. Certamente as primeiras máquinas e câmeras foram manuais, mas sabemos que elas foram eletrificadas rapidamente. O desenvol- vimento do cinema, que modificou a relação do homem com o mundo, está diretamente relacionado com a invenção do motor elétrico. O quarto motor é o motor-foguete que permitiu ao homem escapar da atração terrestre. Através dele temos os satélites que servem à transmissão do sistema de segurança. Satelizando os homens, ele permitiu a visão da Terra a partir de uma outra terra: a Lua. [...] O último motor é o informático , é o motor à inferência lógica, aquele do software, que vai favorecer a digitalização da imagem e do som, assim como a realidade virtual. Ele vai modificar totalmente a relação com o real, na medida em que permite duplicar a realidade através de uma outra realidade, que é uma realidade imediata, funcionando em tempo real, live. (VIRILIO, 1978, p.127).
Dessa forma, é oportuno, para este estudo, ilustrar formas de interação entre o cinema, o poder das imagens em geral e o devir, desde como analogia didática a ativo agente de transformação. Isso sugere que tal poderio, especificamente no caso da película Blade Runner , assim como as conjecturas e questionamentos concernentes à sua trama, possa proporcionar pontos de partida para a análise de processos ligados à construção social.
Torna-se conveniente neste ponto, chamar a atenção para uma questão polêmica que será contornada neste trabalho. O autor desta pesquisa, como profissional da Educação através do ensino transdisciplinar da arte, possui uma visão eclética quanto aos conceitos sobre um objeto artístico. No entanto, é ciente que estes são extremamente oscilantes. Em decorrência de distintas perspectivas do mais variados autores, podem-se apresentar variações nestes conceitos das mais imperceptíveis às mais retumbantemente radicais. O produto cultural cinema encontra no cerne deste debate por apresentar ao mesmo tempo manifestações autorais de cunho artístico e, por outro lado, características de produção coletiva que levam a uma padronização mercantilista.
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No entanto, esta tendência à estandartização, criou também a sua oposta, isto é, uma tendência que caminha na direção da singulari- zação e da individualização. Será sempre necessário o novo para fazer frente às cópias. A arte sempre ultrapassa a estandartização. É por isso que a usina dos sonhos produz não apenas filmes estandart- izados, mas também obras-primas. Alguns diretores [...] foram com- petentes e criativos para transformar estereótipos em arquétipos. (MORIN apud PEREIRA, 2001, p. 10).
Para muitos, Blade Runner atingiu o destaque obra-prima da arte cinematográfica tanto quanto outros clássicos das telas. Mesmo que o cinema seja popularmente considerado a sétima arte desde a publicação, em 1923, do Manifesto da Sétima Arte pelo crítico italiano Ricciotto Canudo, ainda não há um consenso acadêmico quanto a isso. É uma discussão que tem suas origens nos primeiros estudos de estética do cinema no sentido se criar uma teoria para o cinema, a partir de uma polaridade crucial. “Aquela entre, por um lado, realismo, naturalismo e interferência mínima do realizador, e, por outro, fantasia, expressionismo e influência formativa do realizador”.5 Respectivamente com suas matrizes nas incipientes filmagens de três franceses do século XIX: os irmãos Lumière, os inventores deste médium (1895) e George Méliès, o mágico que o primeiro difundiu. Não é intenção que seja abordado tal questão ao longo desta pesquisa. Dentro da sua proposta, é indiferente se consideram Blade Runner não mais do que um ilustre representante oitentista da industrial cultural, em que o cinema, principalmente o dos EUA, se transformou desde o século passado, ou uma obra que seu diretor aspirasse ser vista como cinema de autor. Isto é, que carregasse em sua essência aspectos de ordem técnica e conceitual, que caracterizassem um estilo próprio e pessoal de fazer um filme, com o mínimo de interferências externas. Segundo Jean-Claude Bernardet:
Os verdadeiros autores de hoje raramente são os que geram com ciúmes sua maestria, que tentam perpetuar os signos de sua autoridade/autorismo de um filme para o outro, ou executar o seu próprio programa; seriam antes os que preferem colocar em questão seu título de autor a cada novo filme, colocar em perigo a sua maestria. (BERNARDET, 1994, p. 175).
O estilo de Scott em sua linguagem técnica e aprimoramento visual assim como os problemas que enfrentou na produção advinda das suas atitudes conside- radas autoritárias nos sets de filmagens, que serão abordados no primeiro capítulo, podem até apontar tal caminho. No entanto, referências a isto, quando usadas, serão apenas no sentido de informação, e não necessariamente de concordância.
5 TUDOR, Andrew. Teorias do cinema . Lisboa: Edições 70, 2009, p. 19.
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Motivação da pesquisa
Através de uma de suas linhas arquetípicas, o gênero lítero-cinematográfico Ficção Científica, parece contribuir, através de certas obras como o filme Blade Runner , para a manutenção do pensamento utópico, oferecendo possibilidades, mesmo que indiretas, para que a humanidade progrida em direção ao bem-estar social.
Como o gênero FC faz parte da indústria cultural, precisa de retorno comercial de seus suportes, especialmente cinema e literatura, necessita de dramas e problemas explícitos como argumento de suas aventuras para se tornar mais atraente ao consumidor. Por isso, raramente seus heróis são situados em utopias plenas. Encontram justificativas para suas aventuras justamente nas imperfeições de distopias, geralmente ambientadas no futuro ou em outros mundos.
Tais distopias, podem ser entendidas como uma forma às avessas de se incutir no pensamento humano (através da grande penetração e popularidade da FC) a necessidade de se alterar os caminhos presentes que poderiam levar à suas próprias materializações, redirecionando-os para as utopias. Um dos mais eloqüen- tes exemplos disso está no suporte fílmico Blade Runner (e todo o seu universo, especialmente no romance que lhe deu origem). Entre as diversas possibilidades de interpretação que esta obra pode oferecer, duas se sobressaem para fins de emba- sar o pensamento apresentado neste trabalho sobre sua condição de mantenedor do pensamento utópico.
A primeira possibilidade a ser abordada é sua ênfase na economia de consumo, através da hipertrofia dos elementos da modernidade do início dos anos 1980 (época em que foi produzido) propiciando um entendimento desta como Líquido-Moderna. Algo que condiz com a visão que Bauman deixa transparecer sobre o consumismo: como uma espécie de combustível dos motores históricos de Virilio, principalmente do atual. Esta hipertrofia é vista principalmente na visualidade da metrópole futurista que lhe serve de espaço cenográfico. A Sociologia busca compreender as cidades decodificando estilos de vida advindo das inter-relações entre seus habitantes, que devido ao caráter de difusão sócio-cultural destas, se
24 padronizam para outros níveis territoriais 6. É a partir das cidades, especialmente das grandes metrópoles globais, das manifestações de suas urbanicidades, que se projetam constantes inferências para as demais regiões do globo. Estudos sobre tais características podem permitir “mapear comportamentos neste mesmo espaço e procurar ampliar a metodologia para estudos gerais sobre a sociedade urbana” 7. É uma corrente de pensamento que advém da primeira metade do século XX, sobretudo com a Escola de Chicago, onde a definição sociológica de cidade se faz considerando a ocorrência de um contexto espacial importante, demograficamente denso e permanente, onde coexistem indivíduos socialmente heterogêneos, que pode ser abordado empiricamente. O autor desta pesquisa crê que o filme Blade Runner pode auxiliar neste processo empírico, mesmo como uma alegoria da fantasia, pois se apóia em possibilidades reais da materialização de um futuro ainda pior para o cidadão urbano.
A segunda é que, pelas condições dos personagens antagonistas, ressalta-se a idéia de que a ciência se alia a este processo fomentando inovações tecnológicas que não servem apenas para aprimorar os meios de produção tanto dos bens necessários das condições materiais de vida, mas também para otimizar o consumismo. Estes personagens são corpos orgânicos andróides, artificialmente criados para o trabalho servil. A criação de clones humanos para os mais diversos fins, inclusive os fins comercias mostrados na ficção de Blade Runner , é uma possibilidade um tanto especulativa, no entanto presta-se como uma metáfora importante que alerta quanto aos perigos da manipulação dos segredos da vida.
Um dos grandes sonhos da nossa tecnociência é a promessa de que os “engenheiros da vida” possam efetuar ajustes nos códigos informáticos que animam os organismos vivos, assim como os programadores de computador editam software. Todas essas reconfi- gurações e redefinições da natureza, da vida e do homem têm profundas implicações em todos os âmbitos, e por isso é de extrema relevância que não permaneçam impensadas. (SIBILIA, 2005).
Atualmente, há inúmeras perspectivas de manipulação molecular pela Biologia Sintética, que implicam em formas artificiais de reprodução da vida e até mesmo, formas de reprodução da vida artificial. Seus esboços já são manchetes
6 Cf. NUNES, Brasilmar Ferreira. Urbanização e migrações: reflexões gerais para auxiliar na interpretação do fenômeno . Brasília: CSEM, 2002, p. 13. 7 Id. Classes e sociabilidades no meio urbano . [S.l.]: [ s.n.], [entre 1998 e 2004], p. 1.
25 na mídia. Uma atenção especial às conseqüências disto, já há muito tempo disponibilizadas pela FC, indicam que se o futuro das tecnologias de manipulação da vida se concretizar sem devido amparo ético, a humanidade poderá ter que conviver com formas inéditas e inusitadas de vida, muitas vezes de difícil conceituação como tal. E a interação destas com o meio ambiente, proposital ou acidental, trazer conseqüências desastrosas à sociedade.
As reflexões aqui apresentadas tomaram forma a partir de Blade Runner e há muito incomodam ao autor deste trabalho. Diante disso, seu pressuposto é que este filme reúne características suficientes para ser usado como ponto de partida para fomentar ponderações sobre que efeitos uma ciência não regulada por uma consciência ética pode ter sobre o homem, principalmente na área da Educação Tecnológica, onde ele se insere profissionalmente. Seria o cinema, independente de sua classificação como objeto de arte ou produto da indústria cultural pode ter muito a contribuir.
Com base no que foi apresentado, como motivação da pesquisa, o objetivo principal deste trabalho é responder à grande pergunta que inquieta a sua produção sob a forma de análise fílmica. O filme Blade Runner permite trazer contribuições para a reflexão da ética na ciência a partir dos traços da sociedade líquido-moderna?
Estrutura do trabalho
No capítulo I se apresenta o processo de feitura do filme Blade Runner como um todo, ou seja, abrangendo as diversas versões que foram feitas deste. Pretende-se deixar evidente, nessa apresentação, o quanto fatores de ordem comercial interferiram nos propósitos autorais da obra, paradoxalmente tornando o filme mais emblemático em sua condição de crítica ao consumismo.
No segundo capítulo, há uma enfatização do caráter social do gênero lítero-cinematográfico em que Blade Runner se insere: a Ficção Científica. Isto é feito através de uma visão parcial de sua história como representação da criatividade humana, da inserção neste gênero pelo autor do romance que serviu
26 de base para a roteirização do filme (Philip K. Dick) e de sua vertente antiutópica, que apesar disso, fomenta o pensamento utópico.
No terceiro, são abordados temas urbanos atuais que emergem na representação da metrópole feita em Blade Runner , tais como industrialização, urbanização desordenada, efeitos da globalização e publicidade. Temas que ao abordarem a ênfase ao consumismo corroboram o conceito de sociedade líquido- moderna de Bauman, que será o principal referencial teórico deste capítulo.
No capítulo IV, há uma abordagem da ética sobre a ciência em sua relação com a sociedade dos consumidores. O ponto de partida se baseia em uma visão específica do uso comercial (não necessariamente exploração) do corpo humano no cinema de ficção científica através do recorte da história de Frankenstein, vista como um precursor da linha arquetípica da FC onde o filme Blade Runner se insere. Através da justaposição destes, é feito uma abordagem filosófica e bioética que pretende embasar a justificativa, nos moldes como pretende Edgar Morin, de haver uma conscientização moralmente ética na produção científica.
Nas considerações finais, o autor desta pesquisa toma a liberdade de ponderar sobre as abordagens e propostas dos principais autores que proporcionam a fundamentação teórica, Bauman e Morin.
Metodologia e referencial teórico
A metodologia para a construção dessa dissertação se baseou em revisão bibliográfica sobre parte da ampla produção acadêmica já feita sobre o Blade Runner , assim como em uma atenciosa releitura de todas as centenas de informações colhidas e colecionadas pelo autor, ao longo de 25 anos de admiração pelo universo da obra. Todas as informações analisadas passam por um processo de seleção a fim de que apenas aquelas consideradas relevantes e idôneas para o propósito da pesquisa viessem a ser utilizadas de fato.
Especificamente sobre o processo de criação do filme Blade Runner , explicitado no Capítulo I, a pesquisa se fundamentou na obra Paul M. Sammon, o maior especialista sobre este filme. Seus livros e artigos apresentam o resultado
27 de muita observação in loco por dois anos no set de Blade Runner como jornalista, além de décadas de acompanhamento das minúcias técnicas da pós produção e do desenrolar das versões alternativas do filme.
Para a historicidade da Ficção Científica no Capítulo II, a pesquisa buscou sustentação em obras analíticas de Isaac Asimov, Bráulio Tavares, Raul Fiker e Gilberto Schoereder. Neste mesmo capítulo, as descrições sobre o pensamento utópico se basearam em Jerzi Szacki e Zygmunt Bauman. Este último também oferece a principal sustentação teórica para a visão que norteia o terceiro capítulo, através do seu conceito de sociedade líquido-moderna.
No último capítulo, a sustentação recaiu principalmente sobre o pensamento de Edgar Morin a respeito da necessidade de consciência na ciência, que passa pelo entendimento da complexidade universal. O pensamento moriniano é, de certa forma, o principal norteador desta dissertação, por também orientar a postura de seu autor ao longo das pesquisas. Visto que seu objeto, o filme Blade Runner , é para este um depositário de grande afeição, o distanciamento entre sujeito e objeto, requerido para a imparcialidade da pesquisa científica pode, a princípio, ficar comprometido. Na verdade, muitos estudiosos da ciência consideram que tal distanciamento nunca ocorra totalmente, visto que os pesquisadores são seres humanos falíveis, que carregam preceitos introspectados da sociedade. Mas isto não significa que o distanciamento não deva ser tentado.
Morin considera que em uma investigação séria poderia dispensar o distanciamento, no caso do cinema, que ele entende como um médium diferente dos demais. 8 Ele o vê em sua totalidade humana, e que por apresentar em suas representações uma versão hiper-realista da sociedade, não se constitui um invento apenas instrumental da civilização, como um aeroplano. 9 Pela sua hiper- realidade, o cinema não seria simplesmente um reflexo ipsis litteris da sociedade. Estando no limite entre a consciência individual (imaginação) e a interação entre os envolvidos (participação coletiva), o cinema revela um fato socioantropológico sobre a relação humana para com o mundo. Segundo Morin: “O cinema nos permite ver o inseparável processo de penetração do homem no mundo e o
8 Cf. SCHOONOVER, Karl. Senses of Cinema, mar. 2006. 9 Ibid.
28 inseparável processo de penetração do mundo no homem". 10 Assim, Morin acredita que a antropologia social seja a melhor forma de investigar o cinema pela ciência. E fazer ciência implica, para a imparcialidade dos estudos empíricos, o máximo possível de distanciamento do observador para que este elabore suas concepções.
Morin argumenta que uma investigação séria sobre o cinema não exige o distanciamento crítico da experiência pessoal. De fato, ele sente que a verdade sobre o cinema só será revelada para aquele que "mergulhar, sem se perder, nas contradições que definem o cine- ma". [...] Ele se recusa a dissecar ou desmembrar o meio sob investi- gação. Em vez disso, ele analisa o cinema como uma experiência abrangente, semelhante ao ver "corporalmente". (SCHOONOVER, 2006, tradução nossa).
Sua argumentação não se restringe apenas ao estudo fílmico, pois abrange sua concepção geral sobre a ciência de todas as áreas, inclusive a social. A posição do observador, para conceber a complexidade, não precisaria, segundo Morin, estar necessariamente desintegrada da concepção de mundo.11
O sociólogo não está apenas na sociedade; de acordo com a concep- ção hologramática, a sociedade também está nele; ele está possuído pela cultura que possui. [...] O observador-conceptor deve integrar-se na sua observação e na sua concepção. (MORIN, s.d., p. 144).
Diante disto, o autor desta pesquisa assumiu uma postura de trabalhar cientificamente de forma coerente com sua principal fundamentação teórica, aceitando a sugestão de Morin de “mergulhar, sem se perder, nas contradições que definam o cinema”. 12
10 Morin, Edgar. The Cinema, or the imaginary man . Tradução: Lorraine Mortimer. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005, p. 204. (Tradução nossa). 11 Morin, Edgar. Ciência com consciência. Mem Martins: Publicações Brasil América, s.d., p. 144. 12 MORIN apud SCHOONOVER, 2006, op. cit.
CAPÍTULO I BLADE RUNNER , O FILME E SUAS VERSÕES
Uma contextualização histórica do gênero Ficção Científica (FC), em seus suportes literário e cinematográfico, talvez devesse ser apresentada em primeiro lugar, de forma que pudesse fazer uma melhor inserção do leitor ao gênero que o filme Blade Runner , o recorte desta pesquisa, se filia. Especialmente no sentido de ambientá-lo espaço-temporalmente.
Não obstante, o que a princípio parecerá contrariar a lógica deste raciocínio, este primeiro capítulo é dedicado a uma panorâmica sobre as instâncias mercadológicas e sociais da película em questão, a partir da descrição de sua produção técnica e relações simbióticas com fatos sociais. Deste modo, o entendimento acerca do valor da FC se evidenciará mais facilmente. Assim, serão mostrados neste primeiro capítulo, aspectos relevantes para a fundamentação dessa pesquisa, que envolvem a produção do filme Blade Runner , da sua concepção até suas reformulações através de réplicas de si mesmo.
Um processo que o fez ficar conhecido por basicamente duas versões principais e algumas intermediárias. Ao mesmo tempo em que diferenças mínimas e quase imperceptíveis eram introduzidas nestas, outras tinham o peso da reconfiguração parcial, porém significativa, do sentido e propósito geral do argumento. Da história da Ficção Científica propriamente dita, apenas seu subgênero Cyberpunk será abordado em detalhes, pois sua gênese se funde de forma complexa a de um movimento cultural que se alinha com as proposições do filme.
Assim, segue-se um resumo básico e cronológico da trama que se montou sobre este, apresentando os nomes dos intérpretes entre parênteses à medida que seus personagens forem citados. Esta descrição toma como base a última versão lançada comercialmente pelos seus produtores, a chamada Versão Final ( Blade Runner The Final Cut )1. A escolha desta deve-se ao fato de que na visão do principal responsável pela existência do filme nos moldes em que ficou mundialmente conhecido, o seu diretor, esta versão é a que mais consegue se
1 Disponível atualmente no mercado de home video , através das mídias DVD e blu-ray, tanto para locação quanto para aquisição.
30 aproximar de sua concepção inicial. Concepção esta que, pelos mais diversos fatores, muitos deles alheio a ele, que serão detalhados oportunamente, foi significativamente alterada ao longo do projeto. Segmentos mais específicos do enredo serão apresentados à medida que forem necessários ao desenvolvimento deste primeiro capítulo.
1.1 A trama
No início do século XXI, a Tyrell Corporation , uma grande corporação de biotecnologia deu um passo além no processo de manufatura de “robôs”, passando a construí-los através de técnicas de Engenharia Genética, o que lhes possibilitava receber a dádiva da vida. Tais seres, conhecidos como replicantes, são criados já em formato adulto à perfeita imagem e semelhança dos seres humanos.
Porém, alguns modelos são mais fortes e mais inteligentes, além de outras especializações necessárias para as mais diferentes formas de trabalho, na Terra e na colonização de outros planetas. Davam suporte assim, a uma emigração que levava milhões de habitantes para longe do mundo que a Terra havia se transformado, um lugar poluído e superpovoado. Como os replicantes eram submetidos ao trabalho compulsório, eram vistos como escravos tanto por eles próprios, quanto por toda a sociedade em que estavam inseridos. Por isso, não era incomum que se revoltassem violentamente contra os seus proprietários ou demais humanos com quem tinham contato. Isso gerou conseqüências.
Uma foi a limitação de suas vidas-úteis a quatro anos, tempo considerado insuficiente para que desenvolvessem emoções e questionamentos trabalhistas e existenciais.
Outra foi a proibição de que fossem usados na Terra. Unidades especiais da polícia, alcunhadas de Blade Runner , eram compostas de elementos capacitados na caça, detecção e extermínio desses seres andróides caso estivessem vivendo clandestinamente na Terra, infiltrados entre os seres humanos. A execução desses,
31 era chamada, no jargão do filme, de remoção 2. O que aponta o tipo de relação da sociedade para com os replicantes.
O fio condutor da trama se concentra na figura de Rick Deckard (Harrison Ford), um solitário ex-Blade Runner que se vê coagido por sua antiga chefia (M. Emmet Walsh) a retornar à sua antiga profissão para caçar e remover um grupo de replicantes que retornou clandestinamente à Terra e se encontravam em sua cidade, a imensa e violenta conurbação que se tornou a metrópole norte-americana de Los Angeles em 2019. Uma cidade onde o céu está quase sempre escuro supostamente por algum fenômeno meteorológico ligado à poluição.
A trama se subdivide em duas linhas narrativas interconectadas. Uma que acompanha Deckard em seu trabalho de seguir pistas que o levem ao encontro dos replicantes. Neste, é acompanhado inicialmente por um outro policial, o misterioso Gaff (Edward James Olmos), que tem a mania de fazer dobraduras representando as situações pelas quais passam. Nessa empreitada, Deckard conhece Rachael (Sean Young), uma andróide que vive na sede da Tyrell ignorando sua própria condição. Devido à implantes de memória, ela acredita ser, e sempre ter sido, uma sobrinha do Dr. Eldon Tyrell (Joe Turkel), o dono da megacorporação e responsável direto pela criação dos replicantes. A verdadeira identidade de Rachael vem à tona através de Deckard, quando é submetida a um teste feito a pedido de Tyrell, com a máquina Voight-Kamptt, um polígrafo especial que auxilia a diferenciar um ser humano verdadeiro de um falso. Desolada, Rachael foge das dependências da Tyrell e entra para a lista de remoção de Deckard. No entanto, após salvá-lo ao balear mortamente um replicante, ganha o afeto do blade runner, e passam a ter um relacionamento amoroso inevitavelmente problemático, visto que ela tecnicamente não era uma mulher de verdade, mas sim um simulacro. Deckard, em um raro momento um raro momento de paz, tem a visão de um unicórnio galopando, supostamente um sonho recorrente, visto que não se espanta com isso.
A outra linha narrativa acompanha os replicantes. Estes, ao contrário da
2 Retire é o verbo usado no original em inglês, que significa aposentar . Sua tradução literal para o português, talvez não conseguisse manter sua ambivalência original, o que poderia gerar respostas cômicas nas platéias que interferissem na tensão inicial da projeção. Nesse sentindo, uma tradução mais adequada talvez fosse recolher , procurando se referir diretamente ao recolhimento de produtos no varejo – geralmente por defeito de fabricação ou prazo de validade vencido. No entanto para os cinemas e mercado de home video no Brasil optaram-se por remoção , que mesmo sem a dubiedade do original, ainda impacta por demonstrar o tratamento aos andróides como objetos. Esta dissertação optará preferencialmente por este último termo.
32 maioria dos seres humanos retratados na película, sentiam a vida fluir em seus corpos sintéticos de uma forma não apática, indicando a vivência intensa de cada momento. Algo que os levavam a desejar ardentemente mais tempo dela. Não se contentavam com a duração lhes imposta, considerada curta, para serem logo descartados e substituídos provavelmente por unidades cada vez mais avançadas, desenhadas segundo novas tendências de mercado e modismos da sociedade. E no intuito de conseguirem mais tempo de vida, saem provocando mortes e sendo eliminados por Deckard. Até que os últimos deles, Roy Batty (Rutger Hauer) – projetado para combate e defesa bélica – e sua namorada Pris (Daryl Hannah) – feita como modelo de lazer militar – conhecem o desenhista genético J.F. Sebastian (William Sanderson), o único humano que se dispõe a ajudá-los na trama, talvez por seu corpo carregar uma anátema biológica, uma doença chamada Decrepitude Acelerada que lhe faz envelhecer rapidamente, semelhante a de um Nexus 6, o modelo daqueles replicantes de vida limitada. Roy, o atormentado líder dos replicantes renegados, alguém capaz de recitar William Blake diante de suas vítimas, é convencido por Sebastian, que se houver alguma maneira de desprogramar epigeneticamente a morte de um replicante, apenas um homem poderia fazê-lo, Dr.Tyrell, o seu próprio criador. Logo após vencê-lo em uma partida de xadrez à distância, se passando por Sebastian, Roy finalmente obtém acesso pessoal a Tyrell. Este vive como um deus, envolto à velas no topo de uma gigantesca edificação em forma de pirâmide meso-americana, a sede de sua empresa.
Ao pedir mais vida a seu pai , é informado que é algo inexeqüível, visto que existe uma suposta barreira técnica. Suposta porque se sabe que o prazo de validade dos replicantes é inserido intencionalmente, a fim de se evitar a perigosa emersão da alienação em que vivem desde a nascença . Ao aceitar isso, Roy se conscientiza de sua impotência perante seu iminente fim, já que está no limite dos seus quatro anos. O filho pródigo beija então o pai para em seguida executá-lo, furando-lhe os olhos e esmagando sua cabeça com as próprias mãos, sob o olhar atônito de Sebastian, que em vão, tenta fugir para não ser morto também.
Pela identificação do corpo de Sebastian, Deckard chega ao seu endereço e consegue remover Pris. Roy chega nesse momento e por causa de sua força desproporcional consegue desarmar Deckard, mesmo após ter sido atingido de raspão. Ferido e desconsolado pela morte de Pris, sente em seu corpo que seu
33 momento final também está próximo. Mas consegue retardá-lo em alguns minutos, varando sua mão com um grande prego da deteriorada laje de madeira da cobertura do prédio de Sebastian. Uma relíquia arquitetônica vazia e quase abandonada no centro antigo e decadente da cidade. Invertendo as posições, Roy começa um jogo de gato e rato com Deckard até que este, encurralado, fica pendurado no alto de um prédio, prestes a se precipitar dezenas de andares. No entanto, quando começa a cair, é seguro pela mão vazada do replicante, que o tira daquela situação e o deposita em segurança numa laje. Imediatamente, enquanto seu corpo vagarosamente cessa de funcionar sob a chuva ácida, Roy relata poeticamente ao aturdido caçador de andróides alguns momentos dramáticos de guerra que foi obrigado a enfrentar no espaço. Momentos que os seres humanos não presenciaram e que se perderiam no tempo com a sua morte, tais como lágrimas na chuva em sua comparação. Quando finalmente falece, sua mão deixa escapar uma pomba branca que estava em seu poder, que livre voa em direção ao céu negro da noite chuvosa.
Gaff pousa sua viatura policial voadora próximo ao aturdido Deckard e devolve-lhe a arma. Mas diz que era ruim que Rachael não fosse viver, e pergunta quem afinal vive. Entendendo que este enigma poderia significar a morte de sua protegida e talvez a sua, Deckard volta ao seu lar, onde tinha deixado Rachael e a encontra viva. Temendo por ela, toma-a consigo para fugir para algum outro lugar. Mas acha algo, à porta de seu apartamento, que causaria dúvidas sobre a sua própria condição de ser humano. Um origami deixado por Gaff, que parecia desvendar o significado do que lhe dissera.
Nesta versão, o filme termina neste momento, com a porta do elevador em que o casal entra para ir embora, fechando na cara do espectador, deixando a tela toda negra. Na primeira versão a história prosseguia para um epílogo: Deckard e Rachael estão fugindo de carro em um dia ensolarado em meio a uma belíssima paisagem natural, cercada de florestas e montanhas verdejantes. Em narração (constante em boa parte do filme nesta primeira versão), Deckard diz que soube por Tyrell que ela era uma replicante diferente, sem data para deixar de viver. E relembra a última frase de Gaff, que parecia indicar que a teria deixado viver por não saber disso, achando que ela iria morrer em breve.
Outra diferença crucial é que não há, naquela versão, a cena da visão que o protagonista teve do unicórnio correndo. Sua inclusão em versões posteriores
34 geraria muita polêmica, pois a partir dela, subentende-se pela dobradura final de Gaff, que a polícia conhecia os sonhos de Deckard, tanto quanto este conhecia as lembranças falsas de Rachael. Ou seja, Deckard também seria um replicante, ignorando este fato até o momento em que encontra o origami . Pois este retratava justamente um unicórnio, a mesma figura mitológica de seus sonhos, teoricamente apenas de seu conhecimento pessoal.
1.2 O processo de feitura
Para uma melhor visualização das possibilidades que a obra Blade Runner pode vir a oferecer no intuito de se fazer uma análise social, é imprescindível entender o processo, considerado extremamente desgastante e complicado, que levou à sua existência. Um processo que mesmo com tais características, ou mesmo em decorrência destas, fez com que o produto final não fosse exatamente o que desejavam seus criadores. O que com o tempo, ocasionou sua reestruturação e lançamento de novas versões. Para se entender isso, torna-se necessário um retorno ao contexto de 1982, ano de lançamento da primeira versão de Blade Runner .
Foi um ano singular para a FC do cinema. Suprindo a demanda por filmes de linha fantástica enquanto se aguardava o até então último episódio de “Guerra nas Estrelas”. 3 As telas de 1982 se fizeram sui generis para a mitografia da fantasia, ostentando desde produções hoje consideradas clássicas a outras não tão destacáveis. Era uma grande efervescência que dava continuidade à explosão do gênero que vinha desde os longa-metragens norte-americanos “Guerra nas Estrelas” e “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, ambos lançados em 1977 nos Estados Unidos (EUA) – 1978 no Brasil – dirigidos respectivamente pelos hoje renomados produtores de Hollywood George Lucas e Steven Spielberg.
Mas as supostas qualidades existentes em Blade Runner não o fizeram ter uma aceitação de imediato pelos espectadores. Elas ficaram em segundo plano
3 Em 1983 George Lucas concluiu a primeira trilogia “Guerra nas Estrelas” com a produção do filme “O Retorno de Jedi”, de Richard Marquand, quebrando recordes de bilheteria.
35 diante do que foi considerado um ritmo lento de narrativa cinematográfica. Foi qualificado como filme entediante com uma mensagem amarga e desesperançosa quanto ao futuro. Diametralmente oposto aos últimos filmes estrelados por Harrison Ford, o grande astro da ocasião que interpretou Deckard. A Ficção Científica “O Império Contra-Ataca” (1980), de Irwin Keshner e o recordista “Caçadores da Arca Perdida” (1981), uma direção de Spielberg com produção de Lucas lançada no ano anterior, que ficou caracterizada por uma montagem ágil e ritmo extremamente acelerado e o personagem de Ford, o herói arqueólogo Indiana Jones. O próprio subtítulo nacional de Blade Runner 4, “Caçador de Andróides”, muitas vezes usado como uma tradução livre do título original, forçava intencionalmente uma referência direta com aquele filme de ação e aventura.
Blade Runner teve uma produção conturbada deste o início, muitas vezes proveniente do choque cultural entre a visão européia de cinema autoral por parte do diretor e o pragmatismo comercial de sua equipe americana. Naquele início de carreira nos EUA, não foram poucos os conflitos entre Scott e os envolvidos em quase todos os estágios da criação, dos produtores aos técnicos. Muitos dos quais não conseguiam e nem desejavam entender o propósito de cada atividade a que eram instruídos a desempenhar, desde que recebessem seus salários. No entanto, a intransigência característica da forma de Ridley lidar com aqueles que lhe são
4 Segundo Sammon (1996, p. 53-54), a expressão que dá título ao filme teria sido escolhida por Ridley Scott por sugestão de Hampton Fancher, o primeiro roteirista, por soar foneticamente semelhante a Bounty Hunter , caçador de recompensa, que é a profissão do protagonista no romance original de Philip K. Dick, alterada no filme para uma espécie de detetive policial especializado na detecção e execução de replicantes. Fancher teria encontrado o binômio como título de um roteiro cinematográfico publicado pelo escritor beatneak William S. Burroughs como proposta para o romance homônimo de um outro escritor de Ficção Científica, o norte-americano Alan E. Nourse. Apesar da trama destas obras se situarem em uma sociedade distópica do futuro, em nada mais se relacionavam com o universo criado por Dick. Nesta obra, Blade Runner se refere a um traficante (runner) de lâminas de bisturi (blade) para médicos que atuam na clandestinidade, por não seguirem o eugenismo para controle populacional ditadas por um governo autoritarista. No documentário “Dias Perigosos”, o produtor Michael Deeley revela que foi ele próprio quem escolheu o título inspirado na edição de Burroughs, sob protesto de Fancher. E corroborando, Ridley Scott diz que ao ser contatado para dirigir o filme, este já possuía informalmente o título de Deeley. Segundo Tavares (2009), “ao pé da letra, no entanto, o termo significa ‘aquele que corre por cima de uma lâmina’, ou que (no verso de Lula Queiroga) ‘tem que saber andar num chão de navalha’. O que é uma evocação de um episódio da Demanda do Santo Graal : os cavaleiros da Távola Redonda chegam a um abismo que só pode ser atravessado por sobre o gume de uma lâmina imensa e afiadíssima. Os cavaleiros precisam deitar-se sobre esse gume e arrastar-se ao longo dele, cortando-se todos, até chegar ao lado oposto. Um belo simbolismo para o processo de auto-conhecimento, que não se dá sem sangue e cicatrizes. Em Portugal, de acordo com o site
36 subordinados hierarquicamente, deve-se muito mais à sua personalidade perfeccionista do que a de empregador. Até porque, no esquema norte-americano de realização fílmica, o diretor também se encontra em posição de assalariado, cabendo aos produtores financeiros o papel de patrões. No caso de Blade Runner , uma sociedade de produtoras que se formou após a Filmways, a primeira empresa a investir no projeto, ter falido . A Blade Runner Patnership (formada pelo milionário chinês Sir Run Run Shaw, Tandem Productions e Warner Bros. através da The Ladd Company ) entrou no projeto investindo inicialmente a quantia de 21,5 milhões de dólares, soma considerável para 1980. O roteiro passou por diversos tratamentos por Hampton Fancher além do aprimoramento posterior a cargo de David Peoples. O primeiro, que em conjunto com seu amigo Brian Kelly, também era produtor associado, detinha os direitos de adaptação cinematográfica sobre o romance “ Do Android Dream of Eletric Sheep ?” (DADoES no jargão cinematográfico) do escritor Philip K. Dick. No entanto, não sendo leitor habitual de Ficção Científica, teria dado uma caracterização muito pessoal e anti-comercial ao roteiro. Um fato que não agradou nem a Dick, que segundo Guarner, achava que se Hollywood desejava converter seu trabalho em um thriller sangrento, não poderia fazer nada à respeito. Já a reinterpretação mais profissional de Peoples, contratado à revelia de Fancher, agradou a todos e animou Dick, que a considerou mais fiel ao espírito de sua obra, mesmo excluindo muito do material original e alterando itens, como a substituição do termo andróide por replicante a fim de se evitar o clichê 5. Fancher, magoado após o incidente, retirou seu envolvimento pessoal da produção.
Estes foram apenas os problemas iniciais. Muitos outros que se seguiram, principalmente envolvendo atrasos de cronograma, estouro de orçamento e desentendimentos, levaram os investidores da Blade Runner Partnership a se inquietarem, afinal esperavam por grandes lucros. Nesse intuito, promoveram algo de praxe no caso de dúvidas quanto à receptividade a algum filme antes de sua estréia. As temidas sneak preview , sessões de teste onde pessoas escolhidas aleatoriamente em cidades consideradas modelos, colaboram com pesquisas de opinião quanto a vários aspectos do filme, principalmente se os agradam. Caso sejam detectados problemas, haverá tempo hábil para solucioná-los. No caso de Blade Runner , recrutados em Denver, Dallas, San Diego e Londres opinaram sobre
5 Cf. GUARNER, Jose Luis apud. ARGULLOL, Rafael et al. Blade Runner. 2 ed. Barcelona: Fabula Tusquets, 2001, p. 64-65.
37 uma cópia inacabada do trabalho. O resultado se mostrou alarmante. Não houve compreensão total da trama, que foi considerada enfadonha, e muito menos identificação com o personagem de Harrison Ford. A necessidade de se fazer a obra pelo menos compensar os mais de 20 milhões de dólares já investidos, fez com que fossem elaboradas tentativas de se evitar o fracasso que se avizinhava. Portanto, em clima de grande tensão, os produtores financeiros da Tandem, Jerry Perenchio e Bud Yorkin, assumiram o controle total do projeto, previsto em contrato caso houvesse estouro de orçamento, o que efetivamente já havia acontecido. Para não ser demitido, Scott foi obrigado a encontrar soluções para tornar sua obra mais viável comercialmente.
Assim, o filme foi reeditado de acordo com o princípio de que massas afluentes às salas de exibição seriam totalmente alienadas, incapazes de perceber qualquer sutileza que exigisse o mínimo de esforço mental. Nesse angustiante processo, delegado ao supervisor de edição Terry Rawlings, cenas foram truncadas na intenção de suprir lacunas de seqüências que não seriam mais filmadas. Isto ocasionou visíveis anacronismos, que sugeriam que os personagens cometiam os mais simplórios erros aritméticos. Cenas consideradas cruciais para o sentido principal da obra foram simplesmente excluídas, ao mesmo tempo em que se filmavam com desmazelo encerramentos alternativos para que escolhessem um a ser costurado grosseiramente às soberbas imagens ensolaradas de uma natureza exuberante – na verdade descartes da abertura de “O Iluminado” (1980) de Stanley Kubrick – que seriam introduzidas nos créditos finais, embora fossem um contra- senso com a trama. Assim, criaram o final feliz e idílico para que as platéias pudessem sair aliviadas dos cinemas, mesmo que subvertesse tudo o que era subentendido na trama quanto a uma suposta devastação ambiental global. E o pecado maior, para aqueles que participaram da elaboração do projeto, foi a inserção da polêmica narrativa em off , na primeira pessoa (no caso, Deckard), que parecia querer suprir as evidentes lacunas formadas na trama. O que deveria ser subentendido pelo público através da força das imagens ou da interpretação do ator, foi entregue de forma gratuita e banal em nome de uma suposta fluidez da trama. Unindo pontas soltas em substituição à gravações canceladas, para satisfazer ao público pagante. No entanto, mesmo que na edição final a locução fosse substancialmente reduzida por um terceiro roteirista contratado às pressas, Roland
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Kibbee, o próprio Ford se mostrou extremamente desgostoso com Scott por causa de sua inclusão.
Mas a mutilação da obra, assim como a inserção da narrativa falada, não conseguiu evitar o colossal malogro nas bilheterias americanas. O que foi sustentado ainda pelas opiniões negativas na imprensa, ainda inebriada pelo sucesso retumbante da última FC de Spielberg: “E.T. O Extraterrestre” 6, que estreara uma quinzena antes e desde então, abocanhava a atenção quase que exclusiva e apaixonada da mídia especializada. Apesar de uma tímida exaltação quanto à sua proposta visual, de uma forma geral Blade Runner foi massacrado na mídia. Segundo a revista L.A. Weekly de 25/06/1982: “Assistir a este filme é viver a frustração de ver um dos filmes mais imaginativos e menos realizados deste ano – ou de qualquer ano”.7 Por sua vez, o jornal San Francisco Chronicle estampou, em sua edição de 26/06/1982 que o filme era “uma grande decepção. [...] desconcertante, implausível, chato e opressivo. [...] Uma invenção fotográfica, uma coisa sem vida. 8” Os temidos comentários boca a boca dos primeiros espectadores, decepcionados pela falta da ação subentendida na montagem dinâmica dos trailers e campanhas na televisão, se multiplicaram tão rapidamente, que no dia seguinte à sua estréia, as salas ficaram vazias. A sessão em que o supervisor dos efeitos fotográficos David Dryer assistiu, tinha apenas cinco pessoas. A de Isa Dick Hackett, filha de Philip K. Dick, quatro. Os produtores foram então taxativos, Blade Runner era um fracasso. O investimento total de quase 30 milhões de dólares jamais compensaria, talvez nem se pagasse, principalmente depois do fim de semana de estréia que rendeu menos de um oitavo disso. Os produtores foram então taxativos, Blade Runner era um fracasso.
1.2.1 Transformação em cult-movie
Apesar de tamanhas ingerências e do retumbante fracasso comercial, o filme se tornou um clássico instantâneo, objeto de culto e veneração em vários países onde foi exibido. Círculos inicialmente reduzidos de admiradores passaram a se
6 Curiosamente esta produção teve roteiro assinado por Melissa Matheson, então esposa de Ford. 7 BAHIANA, Ana Maria. Warner forçou Ford a gravar narração. Folha de S. Paulo , 4 ago. 1991, p.6. 8 Ibid, p. 6.
39 multiplicar em escala de progressão geométrica. Possíveis limitações do diretor, supostamente por não ter a bagagem intelectual de cineastas autorais, foram desconsideradas, principalmente ao atribuir o uso da metáfora para se aceitar aquele final incoerente banhado pela luz do Sol. Talvez uma licença poética meio surreal, não necessariamente a realidade concreta dentro da trama. Inclusive o lacônico e frio tom da narrativa de Ford foi considerado como uma referência aos personagens melancólicos do Cinema Noir , que costumavam narrar os filmes na primeira pessoa, evidenciando a atitude descompromissada do personagem.
A alcunha Noir significa negro ou escuro em francês. Foi sedimentada pela crítica francesa para aludir à preponderância noturna nas ambientações de uma gênero de cinema norte-americano. Uma espécie de versão hollywoodiana da estética do cinema expressionista da Alemanha, que fora introduzida nos EUA por cineastas migrados de lá em decorrência do Nazismo. Por sua vez o Expressionismo Alemão nas artes cênicas, ao incentivar emoção através do jogo de luz e sombra, se fazia reminiscência da pintura barroca européia. Segundo Nazário, ao comentar sobre as características dos filmes Noir, estas
muitas vezes adquirem autonomia estética, transformando-se em elementos de um estilo barroco [...] montagem fragmentada [...] voz em off do narrador, geralmente um agente de lei, num mecanismo que cria uma empatia instantânea com o espectador [...]. Um filme negro é [...] carregado de “climas”, com um suspense peculiar, uma galeria de tipos mal encarados e uma ação centrada em lugares chaves: no submundo, em nightclubs , no bairro chinês, [...] em prédios abandonados e ruinosos, em becos iluminados por anúncios de néon. [...] É conveniente que chova ou faça frio, que haja neve ou nevoeiro e, na ausência destes elementos naturais, fumaça escapando dos bueiros e luzes incidindo por cima e pelos flancos das personagens – gente com gabardine dando-se encontrões pelas ruas. (NAZÁRIO, 1986, p. 57, 60-61).
Aludindo-se exclusivamente aos roteiros Noir , Gubern, argumenta:
[...] seria um gênero criado à partir da literatura de Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Michael Spilane, por uma necessidade política: a caça às bruxa do macarthismo baniu das telas o realismo crítico e os diretores americanos mais conscientes refugiaram-se no relativismo moral, no niilismo e na sordidez do novo filme criminal, que estraçalhava a imagem conformista e risonha da América. Este cinema mostrava “um mundo em frangalhos, povoados por criaturas depravadas, sorvidas por um torvelinho de intrigas criminais e traumas psicológicos, trazidos pela difusão da psicanálise.” (GUBERN apud NAZÁRIO, 1986, p.57).
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Da mesma forma, as falhas de montagem, que podiam limitar o entendimento da trama, foram consideradas elipses ou alusões explícitas à linguagem daquele gênero de cinema, o que corrobora o ponto de vista de Nazário:
Pode-se reconhecer um filme negro por suas características de estilo. [...] enredo ninguém entende muito bem, embora se trate de um policial onde se poderia justamente pressupor uma trama bem urdida. Mas num filme negro algo sempre escapa ao entendimento: é uma virada implausível na ação, um desvio absurdo da intriga, um traço inverossímil na psicologia das personagens, uma falha proposital no roteiro . (NAZÁRIO, 1986, p. 60, grifo nosso).
Se houve aqueles que sentiram falta de um Harrison Ford com tiradas cômicas, chicoteando e disparando lasers , houve também os que reagiram positivamente ao vê-lo sangrando sob surras de replicantes ou sendo salvo duas vezes por estes. Para cada possível deficiência na obra, encontravam-se contrapontos considerados da mais alta qualidade, muitos deles idiossincraticamente analisáveis. Se o anti-herói de Ford tivesse ares de um assassino misógino (afinal Deckard só mata replicantes mulheres, três no roteiro original e duas no filme), seria justificável diante seus comportamentos hostis. Mais do que isso, haveria a caracterização perfeita do gênero cinematográfico que Scott ressignificava para os anos 1980. Segundo Rodrigues “a atmosfera de filme noir contribui para o retrato das mulheres no filme com o estereótipo das mulheres perigosas, sem sentimentos, desonestas, sexualizadas e mortais”. 9 Uma espécie de reação à escalada feminina aos postos de trabalhos até então masculinos antes das guerras mundiais.
Releituras de gêneros do passado, alusões psicossociais, mensagens pró- sustentabilidade, referências filosóficas cruzadas com os mais recentes debates sobre os caminhos estéticos e políticos da modernidade urbana foram considerados superiores a qualquer visão já apresentada até então pela temática futurista no cinema. Uma vertente que acompanha o cinema desde o seu nascimento (como será visto nos próximos capítulos deste trabalho). Com o tempo, Blade Runner voltava em relançamentos às salas de cinema do mundo, principalmente as alternativas. Atraindo sempre um público cada vez maior, insistente em rever a obra inúmeras vezes no intuito de descobrir mais detalhes que possibilitassem novas releituras. Um filme cujas peculiaridades fizeram com que conquistasse o respeito e
9 RODRIGUES, Cassiano Terra. Apontamentos sobre Blade Runner (I). Correio da cidadania, 2010.
41 a admiração não só dos espectadores mais simples, assim como daqueles mais letrados, além de críticos (muitos em revisão de conceitos), intelectuais e cientistas. Um clássico quase instantâneo, objeto de culto e vício considerado por muitos como um símbolo pictórico de todo o espírito de uma época, do zeitgeist da década de 1980. Visto assim, não tardaram aqueles que iriam traçar paralelos do que era projetado na tela com a suposta condição de Pós-modernidade da sociedade, um conceito que se formava à época em círculos acadêmicos das ciências sociais. Na visão de muitos, o longa evidencia em cada fotograma o niilismo, a sensação de vazio e ausência de valores e sentido para a vida da sociedade humana, especialmente a capitalista. Se os simulacros humanos de Blade Runner eram apresentados com o slogan da Tyrell hiper-realmente “mais humanos que os humanos” para alavancar as vendas, o paralelo com a essência da Pós- modernidade, segundo Santos, já poderia ser traçado, pois,
[...] preferimos a imagem do objeto, a cópia ao original, o simulacro (a reprodução técnica) ao real. [...] Porque desde a perspectiva renascentista até a televisão, que pega o fato ao vivo, a cultura ocidental foi uma corrida em busca do simulacro perfeito da realidade. Simular por imagens como na TV, que dá o mundo acontecendo, significa apagar a diferença entre o real e o imaginário, ser e aparência. Fica apenas o simulacro, tal qual a fotografia a cores, embeleza, intensifica o real. Ele fabrica um hiper-real, espetacular, um real mais real e mais interessante que a própria realidade.” (SANTOS, 1997, p. 12).
Em outras palavras, aquele filme de Ficção Científica que mostrava uma situação estapafúrdia do ser humano de verdade construindo o ser humano de mentira até melhor do que o original, antes de parecer desculpa para se vender efeitos especiais, perseguições, violência e até nudez para um público ávido por diversão banal, não mostrava de fato o futuro. Mas sim o próprio presente hipertrofiado, com as imperfeições da sociedade retratadas com refinada beleza. Não tardou a se tornar escopo de inferências das teorias de Jean Baudrillard, polêmico sociólogo francês, que discute o processo de construção da realidade pela cultura de massa ou de David Harvey, geógrafo inglês marxista que usou Blade Runner como parte de uma análise materialista aos princípios teóricos que embasam o chamado “pós-modernismo.” Para este, facetas ainda do Modernismo surgidas das contradições do capitalismo. Justapondo-os:
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É inútil interrogarmo-nos se é a perda da comunicação que induz esta sobrevalorização no simulacro ou se é o simulacro que está primeiro, com fins dissuasivos, os de curto-circuitar antecipadamente toda a possibilidade de comunicação (precessão do modelo que põe fim ao real). É inútil interrogarmo-nos sobre qual é o primeiro termo, não há, é um processo circular – o da simulação, o do hiper-real. Hiper-realidade da comunicação e do sentido. Mais real que o real, é assim que se anula o real. (BAUDRILLARD, 1981, p. 104).
São (os replicantes) antes simulacros do que robôs. Foram projetados como a forma última de força de trabalho de curto prazo, de alta capacidade produtiva e grande flexibilidade (um exemplo perfeito de um trabalhador que possua todas as qualidades neces- sárias à adaptação a condições de acumulação flexível). [...] Os replicantes existem, em resumo, na corrida esquizofrênica do tempo que Jameson, Deleuze e Guattari e outros vêem como algo tão central na vida pós-moderna. Eles também se movem num espaço com uma fluidez que lhes dá um imenso arcabouço de experiência. Sua persona equivale em muitos aspectos ao tempo e ao espaço das comunicações globais instantâneas. (HARVEY, 2009, p. 278).
Notavelmente, à mesma época do lançamento de Blade Runner , Fredric Jameson, considerado "o maior crítico literário marxista do mundo", 10 proferia sua primeira conferência sobre Pós-modernidade. Onde enfatizava seus compromissos críticos embasados numa visão sobre os conflitos estéticos entre o Realismo e o Modernismo ainda presentes na sociedade. Seja porque as formas do primeiro "revivem a experiência mais antiga de um tipo de vida que não está mais entre nós no futuro já arruinado da sociedade de consumo", 11 seja porque esta contradição se torna mais radical na vivência do Modernismo.
O historiador mexicano Serge Gruzinski vê expressões da modernidade na imagética bladerunneana como referências inevitáveis ao processo histórico da formação de seu próprio país. Afinal a cidade de Los Angeles, antes de ser dos EUA, até 1847 pertencia politicamente ao México, por sua vez foi colônia espanhola até 1821. Ele considera que em seu país se travam ainda batalhas, dissimuladas nas imagens cotidianas principalmente pela mídia, entre a cultura, a ideologia dos colonizadores europeus e a das civilizações autóctones sobrepujadas neste proces- so. E nesse sentido, percebe a arquitetura neo teotihuacana das pirâmides da Tyrell Corporation como expressão disso - além de comparar essa ao poder social e econômico desta empresa da ficção com a gigante rede de TV Televisa, como uma
10 ANDERSON, Perry. As origens da pós modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 58. 11 Ibid., p, 58.
43 espécie de metáfora da dominação cultural.
[...] um dos desenlaces desta história, quando a guerra das imagens se converte em uma caçada de replicantes. [...] Blade Runner não dá nenhuma chave do futuro – a ficção científica nunca nos expõe mais que o nosso presente – sendo que é um repertório dos temas que têm se manifestado durante cinco séculos sobre a vertente hispânica, antes mexicana, do continente americano. (GRUZINSKI, 1995, p. 11, tradução nossa).
Dessa forma, foi inevitável a comparação, e posterior elevação, de Blade Runner ao panteão de obras icônicas que retratam a tricotômica relação homem, sociedade e produção de bens de consumo (geralmente em um esteriótipo de modelo fordista). Como alguns filmes de Ficção Científica, e afins, que enfatizam a estranheza do homem diante de modernidades cotidianas. Tais como as produções francesas mais intimistas como: “A Nós a Liberdade” (1931) de René Clair, considerado precursor do americano “Tempos Modernos” (1936) de Charles Chaplin, e “Meu Tio” (1958) de Jacques Tati, ou os mais aterradores, que assombram com visualidades distópicas do amanhã, como a produção alemã “ Metropolis ” (1927) de Fritz Lang, as francesas “Alphaville” (1965) de Jean-Luc Godard e “Fahrenheit 451” (1966) de François Truffaut. Além dos americanos “THX-1138” (1971) de George Lucas e “ Rollerball ” (1975) de Norman Jewison. Além disso, não faltaram as analogias com o conteúdo de grandes marcos da literatura que versa sobre o poder político vigente em anti-utopias, como “A Nova Utopia” (1891), do inglês Jerome K. Jerome, “Nós” (1924) do russo Yevgeny Zamyatin.
No entanto foram os romances mais recentes “Admirável Mundo Novo” (1932) de Aldous Huxley e “1984” (1949) de George Orwell, que também tiveram versões em celulóide, os mais equiparados com a adaptação de Scott ao livro de Dick. O grande olho que observa a poluída Los Angeles da abertura, assim como as diversas telas que pululam repetitivamente na tela de projeção, sugerindo um exercício de metalinguagem, remetem ingenuamente à onipresença da vigilância orwelliana. A produção padronizada em série de entes humanos, mesmo que simulacros, alude por vez ao processo chamado de bokanovskização do romance de Huxley, onde a instabilidade emocional indesejável aos interesses sócio-econômicos do sistema capitalista seria simplesmente extirpada.
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O filme, ao se transformar em objeto de culto para muitos, ajudando até a cunhar a expressão cult movie (filme cultuado), apesar de seu fracasso nos EUA, levantou questionamentos sobre a cultura geral deste país. Como a de que o americano médio fosse incapaz de absorver a mensagem de um produto cujas bases culturais ultrapassem suas fronteiras políticas. Para o diretor de cinema Joseph Khan, o público norte-americano via o futuro, nos anos 1980, como a utopia prometida pelo então Presidente Ronald Reagan. Portanto, filmes que não refletissem, em suas projeções de tempos vindouros, as promessas ideológicas daquele momento político, dificilmente alcançariam o sucesso popular. Ele acredita que este seria o principal motivo do fracasso de Blade Runner .12 Principalmente porque em alguns outros países, a importância da obra foi distinguida de imediato e as exibições não foram consideradas necessariamente fracassadas.
Portanto, muito se discutiu sobre o que teria levado sua não aceitação quando estreou. Uma suposição pode ser extraída da visão antropológica de Massimo Canevacci, quando este faz uma analogia entre a estrutura de uma peça cinematográfica com a fábula. Algo que teria exercido em um passado pré-capitalista funções semelhantes ao esquema narrativo de rituais religiosos.
O rito da missa funcionou como protótipo do cinema em-si e para-si. O desenvolvimento da teogonia fascina e atrai precisamente na medida que é sempre igual. O modelo cultural forjado em nível multigeracional impele o crente, através da coerção, a repetir, a esperar a réplica dos mesmos eventos durante o drama do Gólgota, cujo modelo espiritual será reproduzido durante todas as fases do show fílmico. O fato de que também nesse caso a história reproduzida seja sempre a mesma não é algo indiferente, mas sim uma exigência indispensável, com a finalidade de mostrar como sempre reconfirmada a eterna e imutável ordem das coisas. (CANEVACCI, 1984, p. 47).
Por terem feito Blade Runner quebrar paradigmas, como a colocação da encarnação do herói americano executando uma mulher pelas costas, mesmo que artificial, podem tê-lo transformado em algo tão distinto do lugar-comum que não houve a identificação e empatia necessária das platéias e da inebriada crítica especializada, quesitos significativos para determinar o sucesso de um lançamento.
12 Cf. DANGEROUS days: making Blade Runner. Direção: Charles de Lauzirika. 2007. (214 min).
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A morfologia do cinema impõe a conclusão de que a história narrada – seu significado oculto e evidente – é sempre a mesma, e que somente o acessório pode ser uma variação socialmente aceita. A essa regra, adequou-se [...] o público espectador, impelido por uma secreta pulsão a ver reconfirmado o retorno do sempre idêntico, que não é apenas socializada na infância pela família e pela sociedade, mas que parece também confirmar a hipótese de uma gramática genética do comportamento. (CANEVACCI, 1984, p. 76).
Ainda, não importando o plano intencional por de trás da linguagem cinematográfica de cada filme produzido (o conjunto de planos, ângulos, movimentos de câmera e recursos de montagem), inclusive sua aparência estética, o que inclui fotografia, direção de arte, sonoridade, efeitos etc., nada fará sentido se não houver pressupostos contextuais que os sustentem. De acordo com a assertiva de Tudor de que “não é possível construir um sistema estético num vazio”,13 teríamos “no mínimo, um conjunto de normas estéticas tem uma relação qualquer com a forma como o seu autor concebe o seu mundo, a vida social e o papel desempenhado pelo cinema neste contexto mais alargado”.14 Ou seja, o naufrágio de Blade Runner pode ser entendido pelo fato de que os pressupostos contextuais necessários para o seu entendimento, ainda estavam para ser criados no inconsciente coletivo de seu público. E como estes seriam desenvolvidos com a sua própria ajuda (como veremos), mostram que a visão de Ridley Scott estava muito à frente de seu tempo, não no futuro propriamente dito onde a trama é alocada, mas no próprio presente de quando foi exibido pela primeira vez. Quanto a isso, Scott diz que estar a frente de seu próprio tempo é quase tão ruim quanto estar atrás. 15
Como se alinhada com a proposta cenográfica de Blade Runner , no que tange ao entrelaçamento de referências do passado com o maquinário futurístico, seria uma tecnologia analógica casada com o televisor, considerada atualmente arcaica perante os terabytes digitais do universo cibernético, que iria proporcionar sua redenção. A do videocassete doméstico. O seu advento muito contribuiu para a permanência e até retorno financeiro do malogrado sucesso comercial não somente de Blade Runner , mas também de centenas de outros filmes, principalmente através de mudanças em certos padrões antigos de comportamento em relação ao cinema como entretenimento. Com a popularização desta mídia, os anos 1980 foram palco
13 TUDOR, Andrew. Teorias do cinema . Lisboa: Edições 70, 2009, p. 61. 14 Ibid. p. 61-62. 15 Cf. ENTREVISTA com Ridley Scott. Gente de Expressão . Los Angeles: Rede Manchete, 1992.
46 para a formação de novas gerações que passaram a ver – e a rever – filmes em casa, quando e como desejassem. Interrompendo-o quando necessário, congelando, revendo ou adiantando cenas. Muitas produções que fracassaram nas telas ganharam um fôlego extra devido aos seus lançamentos na indústria do vídeo doméstico. E Blade Runner é um dos casos mais representativos neste sentido. Quanto ao seu grande sucesso de locação, Scott atribuiu à redução do impacto sombrio de suas imagens de cinema nas telas reduzidas dos aparelhos de TV, o que teria feito a trama do filme sobressair aos espectadores. 16
1.2.2 A relação com a cibercultura
Mas o fato é que o videocassete, assim como constantes reprises na TV, que sempre davam margem à oportunas críticas revisionistas nas agendas dos cadernos de cultura dos jornais mundo afora, permitiram uma sobrevida a Blade Runner . Proporcionando releituras que lhe garantiriam certo destaque na cultura pop. Mais do que uma forma passiva, isso teria possibilitado uma contribuição ativa para a relação do mundo social com a ascensão das tecnologias digitais. Assim, considera-se uma das maiores contribuições desta fita o fato de ter sido referência visual para um movimento cultural nascido a partir do subgênero da literatura de FC do qual Dick era precursor. E que teve Bruce Sterling e William Gibson como seus principais autores, através de seus respectivos romances “Pirata de Dados” e “ Neuromancer.” Sobre o impacto que o filme exerceu sobre ele, Gibson admitiu:
Depois de assistir uns dez minutos de Blade Runner , eu rolei para fora do cinema completamente desesperado pelo seu brilho visual e sua semelhança com a “visão” de Neuromancer , até então o meu inconcluso primeiro grande romance. Além de ter sido espancado por socos semióticos, esse maldito filme parecia melhor do que as imagens na minha cabeça! Com o tempo superei isso, e comecei a sentir algum prazer, pela forma que o filme começou a afetar a aparência do mundo. Primeiro a moda, depois os vídeos de rock e até mesmo a Arquitetura. Maravilhoso! Um filme de ficção científica afetando a realidade” (GIBSON, 1992 apud MARIMAN, 1992).
16 Ibid.
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Este novo movimento incentivou o surgimento da geração de escritores e debates inflamados entre fãs e o mercado editorial. Surgiram rótulos para nomeá-lo, tais como, Neuromânticos, Novos Românticos, Nova Onda dos Anos 80, Movimento dos Óculos Espelhados ou simplesmente O Movimento. Mas o que se sacramentou foi o termo Cyberpunk, mesmo sob o risco de que sua amplitude semântica pudesse ocasionalmente gerar mal entendidos . Foi o caso do The New York Times quando o utilizou pejorativamente para designar invasores de computadores. O jornal conseguiu, dessa forma, ofender tanto a subcultura hacker 17 quanto a FC, evidenciando a “autenticidade de uma subcultura, cujo valor está diretamente ligado à legitimação dos seus participantes”. 18 De acordo com Austen, foi o escritor Gardner Dozois, que uniu as expressões do universo pop que designam a ênfase na alta tecnologia de informações com “um clima moral e obscuro e um certo no future confirmado”. 19 Sob a análise de Landon,
a parte “cyber” do nome desse movimento reconhece o seu compromisso em explorar as implicações de um mundo cibernético no qual a informação gerada por computador e manipulada torna-se uma nova fundação da realidade. A parte “punk” reconhece a sua atitude alienada e às vezes cínica para com a autoridade e o estabelecimento de todos os tipos. (LANDON, 1997, apud AMARAL, 2006, p. 4).
Inicialmente, uma reação de jovens autores à Ficção Científica tradicional despolitizada e asséptica, que “esperançosa de que o avanço da tecnologia fosse a chave dos problemas da humanidade” 20 parecia paradoxalmente presa ao passado. Pois se mostrava incapaz de dar conta da complexidade da vida humana em seus diversos aspectos. “Em vez de laboratórios de pesquisas, são as ruas, os comportamentos juvenis que servem de referências para a construção deste universo. Por isso, a sensação diante de uma obra cyberpunk é a de um futuro próximo, familiar e, portanto, muito mais aterrador.” 21 O Cyberpunk lida com situações tangíveis e de certa maneira realistas, enfocando a relação do indivíduo em sociedades factíveis com aparatos tecnológicos semelhantes aos que vêem nas
17 Os hackers desenvolvem programas de computador sem necessariamente usá-los para fins ilegais, mas não é incomum entre eles a existências dos crakers , que se especializam na invasão de sistemas alheios geralmente para atitudes criminosas. Ambas as modalidades são comuns ao universo Cyberpunk, o que fatalmente gera mal-entendidos. 18 Cf. AMARAL, A. R. Visões Perigosas . São Leopoldo, Unirevista , v. 1, n. 3, jul. 2006, passim. 19 AUSTEN, Patrícia. Cyberpunk. SET , São Paulo, 44E.ed, fev. 1991., p. 51. 20 Ibid. p. 50. 21 Ibid. p. 50.
48 vitrines do consumo urbano. Tele-transportes, a política de impérios galácticos, travessias em portais interdimensionais, emancipação cósmica da humanidade com auxílio alienígena etc., são temas da FC clássica que passam a ficar em segundo plano. Publicado por conta de autores que se mantém firmes às tradições – o que não significa que estes ficaram repentinamente ultrapassados e desvalorizados, mas ao contrário, boa parte deles viu a injeção de idéias novas no mundo da Ficção Científica como uma oportuna revigoração do gênero, contrariando críticos que propagavam o seu esgotamento. No Cyberpunk , a sociedade passa a ser apresentada em futuros próximos ou mesmo alternativos. Onde a terceira onda das relações econômicas se manifesta em um capitalismo “informacional-global” através de tecnologias de informação, telecomunicação sem fios, transferência de dados, miniaturização eletrônica aos níveis nanoscópicos, realidades virtuais etc., muitas vezes usando o próprio corpo como suporte físico para tais atos. Implantes cibernéticos, drogas alucinógenas para a expansão da capacidade cerebral, misturados a pearcings e tatuagens que simbolizam novas sociabilidades urbanas que reconfiguram as formas de se entender as classes sociais. Justapondo-se as características gerais e específicas do movimento, temos respectivamente em McCaffery e Heuser:
paranóia; violação psíquica e sexual, manipulação da realidade, desejo de transcendência mental através das drogas, religião ou pela dança de dados por computador; decadentismo e linguagem das ruas e jargões técnicos.” (McCAFFERY, 1994, apud AMARAL, 2008).
roupas pretas de couro, óculos escuros; mutilação corporal, cirurgias, piergings , implantes, tatuagens; ilusões, alucinações; urbanismo: lu- zes de néon, chuva incessante; decadência e barulho: rock e música eletrônica industrial. (HEUSER, 2003, apud AMARAL, 2005). 22
O psicólogo e neurocientista Timothy Leary, que se tornou mundialmente co- nhecido por experiências psicotrópicas com LSD em seus alunos de Harvard, defen- dia o Cyberpunk “como uma atitude em relação ao mundo contemporâneo e à Socie-
22 Tantas características embora conceitualmente próximas, implicam em certa multiplicidade de universos, o que ocasionou subdivisões como o Biopunk , envolvendo manipulação genética e fusão homem-máquina; Splatterpunk , mais ligado à visualidade gráfica do horror e o Steampunk , que maximiza o potencial da energia à vapor da Revolução Industrial criando distopias futuristas na Inglaterra vitoriana, às vezes incorporando personagens históricos e lendários, mas geralmente ligados à tecnologia ou a FC do século XIX. Este último subgênero se desdobraria ainda em Clockpunk , envolvendo engenhos de precisão, Sandalpunk, Bronzepunk e Stonepunk , ambienta- das na Antiguidade Clássica, na Era do Bronze ou Idade da Pedra.
49 dade da Informação. Um comportamento que explora a criatividade individual através do uso de todas as informações e dados disponíveis via tecnologia”. 23 Ele parte do sentido literário para o sociológico ao ver o movimento como um “mentor por trás das transformações tecnológicas em curso, um piloto da realidade”. 24 Faz isso remeten- do etmologicamente sua matriz grega da palavra cibernética (kubernetes, piloto) e sua tradução para latim (gubernaetes, comando, governo). Desse modo, “o cibernau- ta ou " ciberpunk " é o piloto que pensa clara e criativamente, usando aplicações quântico-eletrônicas e know-how cerebral, o novo, atualizado modelo de ponta do sé- culo 21”. 25 Fora da ótica do indivíduo, Leary também atentou sobre a significância do movimento ao ponderar sobre sua ruptura com os paradigmas sociais. Interpretava isso com o simbolismo da transgressão mitológica dos limites do sensível.
O modelo clássico do Velho Mundo ocidental para o ciberpunk é Prometeu, um gênio tecnológico que "roubou" o fogo dos deuses e deu-o à humanidade. Os ciberpunks são os inventores, escritores inovadores, artistas tecnofronteiriços, diretores de filmes de risco, compositores da mutação icônica, livre-cientistas tecnocriativos, visionários dos computadores, hackers elegantes, videomagos, todos aqueles que ousadamente armazenam e guiam idéias para lá onde os pensamentos nunca chegaram antes "através de mares nunca d’antes navegados”. (LEARY, 1988 apud CAMPOS, 2003)
O Cyberpunk literário, a locomotiva de todo o processo, prefere apresentar, quase que em tempo real, a materialização dos mais mundanos aspectos do cidadão da modernidade, como o medo da violência urbana ou do descompasso tecnológico. “De uma maneira geral – e isto pode dizer algo sobre a nossa época – as histórias que se passam num futuro distante tendem a ser menos pessimistas que as que se passam num futuro próximo”. 26 O Cyberpunk , ao não se restringir à palavra escrita e se intertextualizar com a popularização digital, em pouco tempo se viu transcodificado nas mais diversas mídias, como atentou Leary. RPGs (jogos de representação), quadrinhos e o cinema, principalmente através de longas como Akira (1988), de Katsuhiro Ôtomo, “Johnny Mneumonic ” (1995), de R. Longo e a trilogia “Matrix ” (1999, 2003, 2003) de Larry (Lana) and Andy Wachowski.
23 Cf. AMARAL, 2006, op. cit., p. 6. 24 Ibid, p. 6. 25 CAMPOS, Augusto de. Do caos ao espaço ciberal. Folha de S. Paulo , 9 nov. 2003. Mais!, p. 7. 26 FIKER, R. Ficção científica: ficção ciência ou uma épica da época? Porto Alegre: L&PM,1985, p. 52.
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Blade Runner , em conjunto com boa parte da obra de Dick, assim como a publicação de revistas que abordavam cultura e tecnologia sob perspectivas revolucionárias, como a americana Wired , forneceu o arcabouço teórico para a revisão de antigos conceitos e a formação de mentalidades em novas gerações de usuários de uma tecnologia cada vez mais incorporada. Uma cibercultura que apóia, ou mesmo incita, atitudes explícitas e radicais, como a atividades crackers , diante de barreiras ligadas à propriedade tecnológica, particularmente a de programas de computador. As novas tecnologias, assim como a difusão da informação e cultura não deveriam ficar sob a tutela de instituições governamentais, científicas, militares ou mesmo comerciais. Mas sim sob domínio público, de conteúdo livre com acesso irrestrito a todos, eliminando qualquer honorário ligado a direitos autorais.
Devido às apropriações e repetições temáticas inevitáveis e desprovidas de profundidade de conteúdo por parte de autores mais preocupados em suprir a demanda consumista, o fim do movimento Cyberpunk foi anunciado no início dos anos 1990. Assim como os movimentos Hippie e Beatnik , deixaria seqüelas que seriam entendidas como Pós-Cyberpunk . Nesta nova estética literária, surge o engajamento social, político e ecológico dos personagens, que não mais possuem implantes biônicos, mas orgânicos e nanotecnológicos em meio a tecnocracia distópicas. No entanto, houve quem não distinguisse esta nova tendência da antiga, considerando o Pós-Cyberpunk apenas um rearranjo de outros elementos há muito comuns à Ficção Científica. Uma nova embalagem para se parecer atraente para os consumidores, sempre ávidos por novidades que justificassem suas vidas sociais. 27
Simultaneamente a isso, a internet saía dos meios militares e acadêmicos para mudar a face do mundo. Foi um terreno propício para as atitudes cyberpunks , que se refletem até hoje em situações tão corriqueiras como copiar um DVD ou baixar música na internet sem pagar por isto. Tudo mudava em função das novas tecnologias digitais e dos processos de miniaturização da eletrônica. Se na ficção, uma invasão alienígena é detida através de um vírus de computador no filme “Independence Day” (1996), de Roland Emmerich, no mundo real a instalação de softwares anti-vírus no computador pessoal passa a ser tão corriqueiro quanto usar preservativo para se evitar contágio pelo vírus HIV.
Referente a isso, o grande intercâmbio de informações científicas necessárias
27 Cf. AMARAL, 2006, op. cit., p. 6.
51 ao desenvolvimento de soluções para diversos problemas que afligem a sociedade do limiar do terceiro milênio, sejam eles na área de saúde, contra-terrorismo, ambiental etc., fez com que a internet realmente saísse dos ambientes restritos das instituições de pesquisa avançada e se transformasse em ferramenta essencial para o dia-a-dia. Dessa forma, entre todas as transformações sociais que a tecnociência impôs à sociedade, a disponibilização instantânea da informação foi a que mais auxiliou o cidadão comum em suas pesquisas domésticas.
Isso colaboraria decisivamente para a fixação de Blade Runner como o grande signo de uma época alardeada como pós moderna ou como o prenúncio das significativas transformações que estariam por vir, principalmente através do advento e posterior acesso global à internet. Por conseguinte, a web se tornou o motivo para o grande deleite dos entusiastas de Blade Runner , pois nesta estão disponíveis inúmeros endereços eletrônicos dedicados à obra de Scott e Dick. São milhares de home pages, blogs, comunidades e fóruns de discussão que dissecam apaixonada- mente, em diversos idiomas, os mínimos detalhes da obra. E com a disponibilização de documentos relativos à produção (roteiros alternativos, fotos, desenhos etc.), assim como cenas excluídas, eventos e convenções de fãs, entrevistas com os atores e realizadores e até sugestões de rotas turísticas para se visitar, em Los Angeles, algumas locações reais usadas na filmagem.
1.2.3 Replicando-se em novas versões
Em 1988, incidentes inesperados colocaram Blade Runner no caminho do cinema autoral e lhe deram uma sobrevida. Naquele ano, começou a circular um boato entre os fãs de que uma suposta versão um tanto diferente de Blade Runner teria sido exibida por engano em uma retrospectiva em Los Angeles. Os executivos da Warner presentes na platéia, ao perceberem o erro, teriam exigido a imediata interrupção da exibição. 28 O que parecia ser mais uma lenda urbana no amplo “folclore” sobre aquela película se materializou, no entanto, numa extraordinária ressurreição e ressignificância de sua proposta. Três anos depois, o fã Josh Crendall, um estudante de Artes e Culturas Internacionais da Universidade da
28 Cf. BAHIANA. A. M. Estudante de 23 anos descobre a versão original de “Blade Runner”. 1991, p.1.
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Califórnia de Los Angeles (UCLA), dedicou-se integralmente durante três meses na caça daquela suposta versão. Com o auxílio do escritório de Scott, chegou a Bill Grant e Michael Arick, responsáveis por um setor da Warner, que encontraram a referida cópia. Na verdade se tratava de uma montagem feita às pressas para as previews. Apesar da burocracia e da má vontade inicial da Warner, Crendall conseguiu sua liberação para uma única e exclusiva projeção no festival multimídia Los Angeles Perspectives. A hoje mítica Workprint Version foi finalmente projetada no Fairfax Theater, apresentando uma montagem com algumas cenas não aproveitadas, trilha sonora parcialmente diferente e exclusão não apenas da locução, mas de todo o idílico final feliz. Foi o suficiente para que a imprensa mundial alardeasse que o filme admirado por milhões de espectadores era na verdade um filme falso, um simulacro, tal qual os próprios replicantes. Conseqüentemente Ridley Scott se sentiu à vontade para revelar à imprensa as imposições que se sujeitou para a finalização do que consideravam sua obra-prima.
Diante desta promoção surpresa, a Warner resolveu relançar no ano seguinte para cinema e home video o longa-metragem teoricamente do jeito que Scott desejou ter feito. No entanto, naquele momento o diretor estava envolvido simulta- nea-mente com dois longas-metragens, a pré-produção de “1492 - A Conquista do Paraíso” (1992) e a finalização de “Thelma & Louise” (1991), que se converteria em seu primeiro grande sucesso desde sua Ficção Científica “ Alien – O Oitavo Passageiro” (1979), proporcionando uma virada em sua carreira. Por isso, transmitiu as diretrizes daquele novo Blade Runner para Les Healey, o assistente de edição da versão original e restaurador Michael Arick, o mesmo que ajudou Crendall. Esta ficou conhecida como a segunda versão do longa, a chamada Director’s Cut (no Brasil, Versão do Diretor) . Na verdade, ao se computar as duas diferentes versões para as previews de março e maio de 1982, o lançamento oficial nos EUA, uma versão mais violentamente explícita para as salas européias e uma quinze minutos menor para a TV americana (1986), esta seria a sexta versão do filme.
Com toda a nova celeuma sobre alterações que ressignificaram drasticamente o sentido da obra, a Versão do Diretor fez sucesso mundial a partir de seu lançamento, em setembro de 1992. Finalmente enchia os cofres de seus investidores além de alcançar o aval de uma arrependida crítica norte-americana, que aproveitou a oportunidade para um mea culpa que muito agradou a Scott. Além disso, foi
53 inevitável a comparação da visualidade daquela Los Angeles fictícia com as conseqüências da onda de violência racial devido à absolvição dos policiais envolvidos no espancamento do taxista Rodney King, algo que já acontecia espontaneamente desde este evento, ocorrido quatro meses antes. Não foi incomum manchetes na imprensa que faziam referências diretas da realidade com a suposta antecipação que o filme apresentou, tais como:
“Há regiões da cidade que parecem que serviram de cenário para Blade Runner ”, observou o jornal Arizona Republic . “A atmosfera da Los Angeles de nossos dias parece com a do filme de Ridley Scott, onde o terror urbano impera após a quebra de uma espécie de con- trato social”, disparou o San Francisco Chronicle . “Los Angeles corre o risco de se degenerar num tipo de Blade Runner pós-industrial”, apostou o Christian Science Monitor. (ALMEIDA, 1992, p.6).
Como era de esperar, seu lançamento no Brasil em março de 1993, dividiu a horda de fãs e curiosos que acudiu aos cinemas. No entanto, mais uma vez a obra polemizava. Alguns pediram o dinheiro de volta nas bilheterias alegando que o filme era praticamente o mesmo que era constantemente reprisado de graça na televisão (o que levou o Cine Gazeta de São Paulo a improvisar um cartaz manuscrito em sua bilheteria informando que havia diferenças quanto à primeira versão). Já o crítico Nelson Brissac Peixoto, que admitiu ter se emocionado com a nova versão, declarou: “É a vitória do cinema de autor. O personagem principal se aproxima dos outros por ser replicante. Ele é tão perdido quanto os andróides!” 29 Na imprensa, fãs famosos divulgavam quantas vezes já tinham assistido ao filme, como Bruna Lombardi (18 vezes) ou Marcelo Nova (“de 20 a 30 vezes”) ou a alegria de ver Deckard sob nova perspectiva, como resumiu Rita Lee: “Oba! Harrison Ford novo!” 30
Para alívio de Harrison Ford, foi excluída a famigerada narração em off , assim como o incoerente final paradisíaco. No entanto, restavam coisas que ainda incomodavam aos apreciadores mais atentos da obra de Scott. Estranhamente, os erros de continuidade ainda permaneciam, assim como a falta de acabamento em alguns efeitos e até erros grosseiros de filmagem e sincronia de áudio. Mas o que motivou grandes controvérsias na imprensa e crítica cinematográfica mundial, por ser a mais destacada variação, foi a inserção da cena de poucos segundos, em que
29 CALIL Ricardo. Culto a “ Blade Runner ” volta com nova versão. Folha de São Paulo . 1993 p. 7. 30 Ibid. p. 7.
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Deckard sonha acordado com um unicórnio correndo em uma floresta. O que dava a entender, ao se dialogar com a cena final em que ele encontra um origami deste animal feito por Gaff, que o próprio caçador de andróides seria também um replicante, pois a polícia teria arquivos com suas memórias e sonhos, o que indicaria implantes artificiais como nos replicantes. E isto realmente mudaria o sentido do filme. Pois Deckard poderia ser considerado também um replicante usado pela polícia para caçar outros replicantes. Este novo significado teria melhorado o filme para uns, ao passo que para outros, teria piorando. O sentimento de traição, para os mais radicais, ou o de ser vítima da mais tosca manipulação da poderosa indústria de entretenimento norte-americana em busca de lucro fácil, suscitou os mais acalorados debates sobre a própria natureza do cinema, quase tanto quanto a de Deckard ser ou não um andróide semelhante aos que ele caçava. 31
Apesar da garantia pessoal de Scott que aquela pequena cena do unicórnio foi filmada na Inglaterra, durante a pós-produção de Blade Runner , muitos acreditam que ela fazia parte da pré-produção de seu filme posterior, a aventura mitológica “A Lenda” (1986). Como um artista querendo retocar sua obra mesmo após a conclusão, ou como um diretor esperto querendo valorizar seu trabalho impondo-lhe um conteúdo mais intelectual, o fato é que muito se discute se a questão da identidade do protagonista já havia sido colocada em pauta antes. Ao transformar sua obra, estruturalmente fechada em si mesma, em uma produção de final aberto, Scott provavelmente pleiteava algo como a quase unanimidade de crítica obtida por seu conterrâneo Stanley Kubrick através de “2001 Uma Odisséia no Espaço” (1968), para muitos, o mais audacioso filme de FC de todos os tempos. Se naquele os espectadores teciam suas próprias interpretações quanto ao final metafísico, no novo final de Blade Runner , que remetia à visão do unicórnio, proporcionava um campo altamente profícuo para discussões sobre o que seria afinal a identidade de alguém. A questão da natureza da identidade do protagonista ser ou não um simulacro de ser humano causou polêmica e ainda é assunto de muito debate entre cinéfilos e acadêmicos. Se antes Deckard era visto como um humano superior aos demais por
31 Deckard é um ser humano real tanto na publicação original de Dick – embora o problema da identi- dade de seus protagonistas seja lugar-comum em sua obra – quanto nas incontáveis versões do roteiro de Hampton Fancher, roteirista e um dos produtores. No entanto, diversos elementos ligados a Deckard espalhados pela trama, que a princípio pareciam apenas composição estética ou mesmo deslizes da fotografia, como o gosto por fotos e lampejos bioluminescentes em suas pupilas, podem tranquilamente ser interpretados como pistas sobre sua suposta não-humanidade.
55 ter conseguido ver o mundo pelos olhos dos replicantes, agora isso se justificava simplesmente porque ele também seria um ente artificial. Uma criação superior aos seus criadores. Se antes a humanidade tinha uma esperança, com esta revelação e o fim abrupto da trama com uma porta batendo na cara do espectador, parecia encerrar secamente a questão batendo-se um martelo para o fato da humanidade não ter mais saída. Afinal, a lição aprendida por Deckard ao longo do filme em sua expiação, de pouco valeria para os homens, visto que ele não seria um destes.
Talvez por isso, Harrison Ford revelou que sempre se opôs à propensão de Scott em tornar seu personagem não-humano, pois poderia deixar as platéias sem alguém para torcer. Significando que, ao se eliminar o referencial empático, poderia se reduzir drasticamente à interação do espectador com o filme. Consciente que este transtorno já teria levado certas produções ao fracasso, Scott contornou-o deixando a revelação para a última cena de sua Versão do Diretor, o que não evitou a sensação de traição por parte de Ford, segundo o próprio, em entrevista concedida à Sammon à Empire Magazine: