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BLADE RUNNER: a Ficção Científica E a Ética Da Ciência Na Sociedade Líquido-Moderna

BLADE RUNNER: a Ficção Científica E a Ética Da Ciência Na Sociedade Líquido-Moderna

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Edilson Rodrigues Palhares

BLADE RUNNER : a ficção científica e a ética da ciência na sociedade líquido-moderna

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São Paulo 2010 EDILSON RODRIGUES PALHARES

BLADE RUNNER : a ficção científica e a ética da ciência na sociedade líquido-moderna

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, área de concentração Sociologia, sob orientação da Prof. a Doutora Marisa do Espírito Santo Borin.

PUC-SP 2010

Banca Examinadora ______

DEDICATÓRIA

Dedico esta dissertação à memória do escritor de Ficção Científica Philip K. Dick, cuja obra representa uma grande ruptura neste gênero ao questionar a identidade humana em relação ao avanço tecnológico dos meios de produção material da vida.

Ao diretor de cinema britânico Ridley Scott e sua equipe que há 28 anos transcodificou magistralmente um romance de Dick para as telas, criando Blade Runner , um filme que desde então se tornou parte inerente de minha vida.

Aos fãs e leitores de Ficção Científica como um todo, e especificamente aos leitores de Philip K. Dick, H.G. Wells e Mary Shelley. E evidentemente, aos inúmeros admiradores do filme BladeRunner .

À professora doutora Noêmia Lazzareschi, do Programa de Ciências Sociais da PUC-SP, cujas aulas tiveram o poder de fundamentar minha visão do mundo social e científico de uma forma muito mais consistente do que a que eu tinha antes.

E principalmente, à minha amada esposa Angela Procópio, que em todos os momentos em que fraquejei e caí perto dela, não só auxiliou no meu reerguimento, como me ensinou a fazer isto por conta própria, caso não estivesse por perto. AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha esposa Angela Procópio pelo grande incentivo, auxílio e pela confiança depositada em meu trabalho, desde o início, além de me fazer perceber a importância de ser amado para também amar o trabalho de pesquisa.

À minha irmã Silvania R. Palhares, pelas palavras de estímulo, amizade e apoio logístico. Sem o apoio e estímulo incomensuráveis dessas duas mulheres, esta pesquisa não teria se materializado. Da mesma forma agradeço a uma outra grande mulher, doutora Karina Cleto, a médica que não consegue exercer sua profissão sem criar um fraterno laço com o paciente, que no meu caso foi importante não só para alavancar esta pesquisa, mas a minha vida.

Ao meu grande amigo Marco Antônio Durço, que na condição de Chefe do Departamento de Ensino do CEFET-MG, fez todo o possível para a viabilização legal de minha dedicação a esta pesquisa enquanto professor de História da Arte sob sua coordenação. Também devo agradecimentos aos demais amigos e colegas de trabalho do nosso Centro Federal de Ensino Tecnológico que em momentos cruciais foram de extrema importância para a exeqüibilidade deste projeto, como Ana Lúcia Faria, Dalva Silveira, Telson Crespo e principalmente Márcio Antônio Rosa.

Ao Diretor Geral do CEFET-MG professor doutor Flávio Antonio dos Santos por ter possibilitado o mestrado interinstitucional com a PUC-SP, assim como a todos de sua equipe de trabalho que contribuíram, direta ou indiretamente para a sua viabilização, particularmente ao Milney Chasin.

Ao colega Antonio Alone Maia, pela presteza da tradução para o inglês.

À equipe técnica responsável pelos serviços da Google Incorporation e IMDB, pela liberação de informação acadêmica disponibilizada de forma prática e instantânea, que é algo que condiz com a filosofia desta dissertação.

E aos qualificadores professores doutores Miguel Chaia e Cláudio Luis Penteado que iluminaram o meu caminho em momento de grande nebulosidade.

E por fim, um agradecimento especialíssimo à minha orientadora professora doutora Marisa do Espírito Santo Borin, que acreditou na minha idéia desde o início, me passando sua energia e determinação.

A ciência natural algum dia incorporará a ciência do homem, exatamente como a ciência do homem incorporará a ciência natural; haverá uma única ciência.

Karl Marx, 1844 RESUMO

Este trabalho analisa o gênero lítero-cinematográfico Ficção Científica, pelo recorte do filme “ Blade Runner” (1982) de Ridley Scott. Seu foco se encontra na forma em que este apresenta os limites éticos da ciência em função de uma sociedade que se mantém pelo consumismo, cuja representação se faz na cenografia de uma metrópole futurista (Los Angeles do ano 2019). O objetivo é demonstrar a relação dicotômica da feitura do filme entre produção mercantilista e cinema de autor, a partir daí sua legitimidade como uma Ficção Científica de comprometimento social, possibilitando uma abordagem reflexiva quanto aos limites éticos da ciência na atual condição da modernidade. O argumento é que Blade Runner é uma obra que apresenta um futuro distópico onde as conseqüências de uma produção capitalista alicerçada em uma ciência sem consciência degradaram por completo a natureza, trazendo grandes transtornos sociais e, sob a ótica do filme, inusitados retrocessos das formas de exploração do trabalho. Ao longo da pesquisa se desenvolve o processo de produção de BladeRunner , a relação deste e de Philip K. Dick, o autor do romance original que lhe serviu de base, com a Ficção Científica de cunho distópico e a visualização que o filme apresenta de uma metrópole do futuro em justaposição ao conceito de sociedade líquido-moderna de Zygmunt Bauman. Por fim, um apontamento de que a proposta de Blade Runner oferece continuidade ao romance “Frankenstein” de Mary Shelley, por suscitar a idéia de que a ciência necessita de conscientização ética, sob os pressupostos de Edgar Morin, para que seus efeitos negativos não se voltem contra a humanidade.

Palavras-chave: BladeRunner; Ficção Científica; sociedade líquido-moderna; ética e Ciência. ABSTRACT

This work analyses the litero-cinematographic Scientific Fiction gender, by Ridley´s Scott movie BladeRunner (1982) cutting out. Its focus is found in the way that this presents the ethic limits of science to the function of a society which mantain itself by the consumism, whose representation hapens in scenography of a forthcoming metropolis (Los Angeles of 2019). The aim is to demonstrate the dichotomic relation in the way the movie was made between mercantilistic production and the author´s movie, and from there its legitimacy as social commitment , giving way to a reflexive approach concerning ethic limits of science in the actual modern condition. The argument is that, Blade Runner is a work which presents a dispotic future, where the consequences of a capitalistic production based on a science without conscience degraded completely the nature, bringing up great social upsettings and , from the view of the movie unusual retrocessions of labour ways of exploitation. Throughout the research a production process is developed of BladeRunner , his relation and that of Philip K. Dick, the author of the original novel which served as a base, with a scientific Fiction of dispotic approach and the view which is presented by the movie of a future metropolis, in juxtaposition to the concept of liquid-modern society of Zygmunt Bauman. Finally, to point out that, the proposal of BladeRunner offers continuity to “Frankenstein” novel of Mary Shelley, by bringing up the idea that science needs an ethic consciousness, under Edgar Morin pressuppositios, so that its negative effects do not come back against humanity.

Key words: Blade Runner; science fiction; liquid-modern society; ethic and science. . SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 11

Ficção Científica ...... 13

BladeRunner ...... 15

Cinema ...... 19

Motivação da pesquisa ...... 23

Estrutura do trabalho ...... 25

Metodologia e referencial teórico ...... 26

CAPÍTULO I BLADE RUNNER , O FILME E SUAS VERSÕES ...... 29

1.1 A trama ...... 30

1.2 O processo de feitura ...... 34

1.2.1 Transformação em cultmovie ...... 38

1.2.2 A relação com a cibercultura ...... 46

1.2.3 Replicando-se em novas versões ...... 51

CAPÍTULO II FICÇÃO CIENTÍFICA E O REVERSO DA UTOPIA ...... 60

2.1 A expansão literária e cinematográfica da Ficção Científica ...... 61

2.1.1 Philip K. Dick, o escritor que concebeu BladeRunner ...... 67

2.1.2 Robôs e outros simulacros do corpo humano ...... 74

2.2. Utopia pela distopia ...... 81

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CAPÍTULO III A METRÓPOLE: FICÇÃO E REALIDADE ...... 95

3.1 A metrópole imaginária ...... 95

3.2 Urbanicidade e industrialização ...... 99

3.2.1 Novas sociabilidades ...... 104

3.3 A cidade e a publicidade ...... 112

3.3.1 O corpo como reflexo urbano ...... 121

3.4 A metrópole líquido moderna ...... 125

CAPÍTULO IV A CIÊNCIA INCONSCIENTE ...... 133

4.1 Corpo, cinema e ciência ...... 134

4.1.2 O arquétipo de Frankenstein ...... 145

4.1.3 Vida, Morte e Modernidade Líquida ...... 153

4.2 Necessidade de ética ...... 163

4.3 Necessidade de conscientização ...... 170

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 180

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 190

APÊNDICE A – Filmes estrangeiros citados e respectivos títulos originais .... 208

APÊNDICE B – Livros estrangeiros citados e respectivos títulos originais .... 211

INTRODUÇÃO

A técnica tem acompanhado o homem desde o seu passado mais remoto. Evidências arqueológicas indicam que há pelo menos dois milhões de anos, um de seus ancestrais, o Homo habilis , já confeccionava instrumentos rudimentares de pedra lascada para a caça e desossagem. O uso de ferramentas cada vez mais aprimoradas ao longo da evolução teria propiciado alterações anatômicas que foram determinantes para o surgimento do Homosapiens. Desta forma, o homem moderno pode ser considerado simultaneamente um produto da cultura e da biologia. 1 Ao se evoluir e erigir a civilização, o homem internalizou os efeitos da manipulação do mundo externo, se tornando, nesse sentido, uma espécie de ciborgue.2 Hoje temos uma civilização global alicerçada no uso em larga escala da tecnologia. Uma civilização auto conectada através de uma gigantesca rede de transferência de dados na velocidade da luz, que nos permite comunicação em tempo real e o avanço cada vez mais geométrico da própria ciência produtora do conhecimento tecnológico.

Dessa forma, se possuem os mais especializados sistemas maquinais capazes de produzirem em tempo recorde as necessidades cada vez mais urgentes do viver. Contudo, o avanço científico não trouxe, embora quase sempre tenha prometido, a utopia. O homem ainda não foi liberado do trabalho braçal pelas máquinas para se dedicar ao ócio criativo. Nem parece haver indícios de que caso venha a ser integralmente substituído por máquinas, poderá gozar de um bem-estar sem precedentes. Ao contrário, erigiu uma sociedade tecnocientífica que cada vez mais hipertrofia as contradições dos sistemas econômicos que já deveriam; há muito; terem sido eliminadas. Vive-se atualmente em uma sociedade de economia global de características tão diversas que se torna até difícil precisar o ponto da história econômica em que se está. Para uns seria o pós-modernismo. Ou seja, uma nova etapa de um projeto racional de modernidade do Iluminismo, apesar da controvérsia se este era mesmo o ideal. Para outros, longe disso, pois a atual condição seria na verdade conseqüências das próprias contradições do moderno, que poderia ser uma

1 Cf. RIBEIRO, G.L. Tecnologia versus tecnofobia, o mal-estar no século XXI. Humanidades , 1999, p.2. 2 Cf. Ibid. p. 2.

12 modernização reflexiva que se constrói sobre isso ou uma modernidade líquida, onde o indivíduo busca seu espaço social através do consumismo.

Independentemente da nomenclatura ou entendimento que venham a ter sobre o nosso atual momento, sabe-se que este é decisivo para o futuro da humanidade. É a primeira vez que ocorre a possibilidade de se abortar todo o processo civilizatório. De forma ativa, apertando botões nucleares, ou passiva, simplesmente consumindo a natureza sem pensar na sustentabilidade.

É nesse sentido que deve ser direcionada a grande contribuição dos estudos em ciências sociais, especialmente os mais tecnocientíficos. Mais do que analisar os impactos das inovações tecnológicas na sociedade, deve-se efetivamente contribuir para que os negativos sejam menorizados. Segundo Santos , Nietzsche pregava já no século XIX a necessidade de se politizar a aplicação de conhecimentos científicos, especialmente na área biológica.3 Isso se alinha com os atuais debates, mesmo que polarizados entre ambientalistas e cientistas sobre o uso da Engenharia Genética, como no caso do uso dos transgênicos. Ou então, temas sobre a fertilização artificial, eutanásia, transplantes e uso de células-tronco embrionárias discutidos entre cientistas e religiosos. Não se dispensaria nem mesmo conceitos teológicos nesta discussão, desde que aqueles que os apresentem consigam abstraí-los de opiniões embasadas em dogmas da fé, criados fora do âmbito da razão, em tempos remotos, e sejam ponderadamente racionais.

E nisso, a própria definição do que é ser humano pode necessitar de complementos, afinal o entendimento do que é ser humano está mudando, principalmente quando temos a manipulação genética sendo oferecida em clínicas de esquina ou a extração de genes indígenas brasileiros para pesquisas da indústria farmacêutica multinacional. Isto é muito mais urgente do que tentar responder às grandes questões filosóficas como quem somos, de onde viemos e para onde vamos – algo que a ciência ainda está longe de explicar, se explicar – é saber onde estão as fronteiras do homem como entidade biológica.

Somem-se a isso tudo o que a ciência, através da tecnologia, pode alterar ainda na sociedade de consumidores. A propaganda impele ao consumo e induz à crença de que o mundo apresentado em suas imagens é facilmente acessível a

3 Cf. SANTOS, Laymert Garcia dos, 2003, apud KASSAB, Álvaro. A tecnociência no centro da discussão (embora ela não goste). Jornalda Unicamp, Campinas ,n.240, 8-23 dez. 2003, p. 6.

13 qualquer um, mas omiti-se que o planeta não suportaria se todos pudessem consumir homogeneamente como um cidadão médio dos EUA (Estados Unidos), modelo de consumidor mundial. Vivem-se constantes mini-revoluções industriais sob uma ética que costuma se estirar de acordo com os interesses do capital. Para se encontrar uma forma de se viver equilibradamente com a produção dos bens materiais de vida, tanto no sentido de preservação ambiental, quanto de justiça econômica e social, uma ética de alcance planetária se faz urgente. Se não houver o desenvolvimento de um consciente coletivo com atitudes generalizadamente responsáveis e apoiadas menos no cartesianismo especializante do conhecimento da natureza e mais na transversalidade deste, corre-se o risco de autodestruição. E enquanto isso não acontece, padece-se lentamente em meio ao mal-estar civilizatório, já sentido na cotidianidade, já alardeado nas artes e na indústria cultural. Como no cinema, principalmente quando em seus fotogramas se está revelado um filme de Ficção Científica (ou FC) com alta capacidade de incitar reflexões sobre a própria sociedade que o produziu.

Ficção Científica

Histórias rotuladas como Ficção Científica têm suas origens mais remotas nas narrativas fantásticas que acompanham o homem desde que este desenvolveu a comunicação pela linguagem falada de uma forma mais articulada, o que lhe permitiu ser mais eficaz ao transmitir sua cultura. Das grandes epopéias mitológicas a narrativas de cunho religioso, o fantástico atravessou o tempo e hoje, como fantasia e FC, tem se mostrado um ramo da literatura muito prolífico, precipuamente quando travestida em outras mídias, como cinema, games, teatro, ilustração, música etc. Manifestando-se como indústria cultural, teria a capacidade de ser um transmissor entre a visualização que o criador tem de sua realidade social e o espectador, que independentemente do espaço e do tempo em que esteja, poderá captar parte da época em que a obra foi produzida. Pensamentos, ideais políticos, éticos, inquietações e esperanças podem atravessar eras para propiciar releituras em tempos modernos. Da mesma forma que ocorre com quase qualquer produto da cultura humana, seja ele manufaturado com finalidades pragmáticas ou estéticas,

14 uma obra de FC para permitir um amplo entendimento da sociedade que a gerou, desde que devidamente interpretada. Se um pedaço de pedra lascada artificialmente tem muito a revelar para as ciências bioantropossociais sobre o período pré-histórico em que foi produzido, um filme de Ficção Científica talvez possa fazer o mesmo em relação ao momento em que foi produzido. Segundo Noma:

Este imaginário de futuro pode ser considerado como a expressão dos sonhos e pesadelos do presente vivido, uma vez que o mundo do futuro é construído a partir daquilo que é vivenciado na sociedade na qual os filmes e livros foram produzidos. (NOMA, 1998, p. 30).

A FC futurista parece dizer muito mais sobre a época em que é produzida do que a que se passam suas narrativas. Segundo Raul Fiker, as características deste gênero são as da literatura popular ou de entretenimento para as massas em geral, algo que erroneamente vem lhe sacralizando um estigma de que não pode ser considerada erudita.4 E operam no sentido de sedimentar um repertório de temas e situações mais ou menos fixo. É um repertório que pode abranger variações e uma infinidade de tratamentos, desde os mais fúteis e óbvios aos mais profundos e engenhosos, abrangendo perspectivas das mais psicológicas às mais sociais. Das mais simplórias publicações em tiras de quadrinhos às mais eisensteinianas das películas. E ao tudo indica, a FC de boa qualidade oferece condições para um estudo analítico da realidade em que foi produzido e daí apontar direções, gerar discussões sobre novas possibilidades de ação diante situações plausíveis, a curto, médio e longo prazo.

A partir desta perspectiva, a Ficção Científica, mesmo que em alguns casos seja mais ficção do que ciência, permitiria, de alguma forma, contribuir no entendimento da sociedade atual, assim como de seus rumos e, independente do suporte, sua popularidade poderia ajudar a formar opinião, auxiliando assim o desenvolvimento de propostas com éticas menos antropocêntricas e mais ecocêntricas para o futuro.

Dessa forma, a Ficção Científica, ao que parece, pode fazer parte de um extenso mosaico de opções para se fomentar conhecimentos transdisciplinares que induzam a formação de saberes consolidados a partir de fatos comprovados e, não em axiomas. Isto é, saberes que proporcionem uma melhor utilização dos recursos

4 Cf. FIKER, op. cit., p. 44.

15 naturais sem que para isso precisemos destruir o mundo. Saberes que proporcionem um mundo mais justo socialmente, onde a ética tenha como princípio uma solidariedade transnacional, e não um individualismo irresponsável, mesmo sabendo que uma antropolítica civilizatória costuma ser barrada pela hegemonia do ego.

Blade Runner

O longa-metragem Blade Runner (EUA, 1982), intitulado “Caçador de Andróides” no Brasil teve direção do britânico Ridley Scott, com roteiro adaptado sobre romance do norte-americano Philip Kindred Dick, escritor especializado no gênero Ficção Científica. A atenção que esse diretor freqüentemente dedica às suas produções, particularmente no que tange aos aspectos visuais, representa ao público mais familiarizado com cinema, muito mais do que um estilo, mas sim sua própria assinatura visual. Neste filme especificamente, o esmero foi ainda mais perceptível, seja no tratamento dado à direção de arte através de uma cenografia rica em detalhes, e na fotografia, onde se preteriu a iluminação chapada em troca de efeitos barrocos de contraluz. Scott recorreu aos séculos passados, mesmo quando quis retratar uma metrópole do futuro.

Descontando as adaptações elaboradas no intuito de criar uma atmosfera de deterioração futurística para a película, onde as mais novas e inusitadas tecnologias convivem com artefatos antiquados e releituras de modismos do passado, a imagética apresentada parece não ser substancialmente diferente da realidade de qualquer grande centro urbano da atualidade. No entanto, a proximidade do mundo fictício apresentado na tela com o que o espectador urbano se depara em sua própria cidade não é restrita à urbe. As inovações da Engenharia Genética que despontam quase diariamente na mídia também estão presentes, porém em versões hipertrofiadas. No decorrer da evolução dos produtos biotecnológicos, o filme mostra como o processo da vida passou a ser, naquele futuro, uma mercadoria facilmente reprodutível por técnicas de clonagem e projetos genéticos, muitas vezes terceirizados em laboratórios chineses, o que contribui para serem bens utilitários de fácil aquisição, objetos animados que em pouco viram lixo orgânico.

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O mundo futuro que Scott apresenta neste filme é feito de detritos culturais em uma mistura úmida e insalubre com a mais alta tecnologia, onde os personagens sempre estão em meio a uma grande e caótica quantidade desses. Animais empalhados, equipamentos cirúrgicos, réplicas de artefatos arqueológicos, aparelhos eletrônicos e muitos bonecos e manequins, como se aquela civilização em avançado processo de decomposição necessitasse se agarrar semioticamente a signos de tempos melhores. Nesse sentido, Argullol diz:

De um jeito peculiar vemos a decoração barroca, asfixiante e fascinante, mas cada figura, cada ação, cada conduta está determinada por esta decoração, invisível e onipresente, que por sua vez mantém o homem suspenso no naufrágio absoluto de um espaço para o qual ele jamais terá tempo suficiente. Por isso Los Angeles- 2019 contrapaisagem densa, quase irrespirável, é um espaço dominado pela insuficiência do tempo humano, a autêntica grande ameaça mais poderosa que o seco convite à ausência que chama- mos morte. (ARGULLOL, 2001, p. 17, tradução nossa).

Ambiguamente, o desconforto que surge de forma proposital com esta opção estética parece que auxilia na eliminação da estranheza por talvez propiciar um chão para o apoio do espectador, que não perderia assim suas referências ao ser lançado em uma sociedade cronologicamente à frente de seu tempo. Até porque, mesmo descontando os exageros típicos de uma obra fantasiosa, a sociedade projetada na tela não se difere substancialmente da que existe no mundo real fora da sala de exibição, sobretudo nos grandes centros urbanos. O mundo apresentado ao espec- tador é altamente desenvolvido em biotecnologia e física espacial, conhecimentos que permitem transgredir, de um jeito corriqueiro, certas barreiras da natureza. Como a da Relatividade, possibilitando viagens que driblem o limite da velocidade da luz para expandir o capitalismo às estrelas, ou a da criação da vida artificial, reestruturando as formas de produção de uma sociedade voltada para o consumo.

O impacto destas e de outras extrapolações limítrofes insinua que se fomen- tou uma nova revolução industrial no universo do filme, onde megacorporações de alta tecnologia se fizeram ainda mais poderosas e tentaculares do que as que existem na economia globalizada de hoje, o que propicia uma versão de capitalismo que ainda ressuscita formas de propriedade historicamente ultrapassadas.

Sob esta ótica, ocorre uma espécie de retrocesso civilizatório que derruba de vez, qualquer princípio positivista de evolução social, pois grande parte das relações

17 sociais de produção tem como base uma nova forma de exploração do trabalho, considerada escravocrata no universo do filme, dissimulada no uso de seres andróides aparentemente humanos, mas não humanos de verdade.

Embora tratados de forma não muito diferente dos escravos históricos, no que tange à destituição de direitos legais, os andróides se diferenciam essencialmente destes porque são trazidos à vida à imagem e semelhança do homem, em produção em série, com aptidões imanentes próprias para as especializações necessárias de cada função a que são obrigados a se dedicarem. São especializações apropriadas para as condições de trabalho pesado em colônias extrativistas fora da Terra, onde geralmente são incumbidos de exercerem atividades que, nem sob pagamento, os seres humanos normais aceitariam ou poderiam aceitar.

Além destes aprimoramentos orgânicos para o trabalho braçal, como força e adaptabilidade às mais diversas condições, as réplicas humanóides das gerações mais avançadas, possuem capacidade intelectual superior, algo altamente mercadejável diante da necessidade de se tomar decisões e aprendizado em um meio em constante avanço técnico. No entanto, os replicantes mais modernos da trama de BladeRunner eventualmente manifestavam defeitos de fabricação após o uso prolongado. Extrapolando suas programações surgia um indesejado efeito colateral: reações emocionais próprias. Como não possuíam direitos legais, tal característica os levou a questionar seus senhores, implicando algumas vezes em atitudes agressivas.

A fim de corrigir definitivamente tal importunação a seus negócios, a indústria que projeta as matrizes genéticas para clonagem, criou para a classe mais desenvolvida e especializada de replicantes, a Nexus 6, uma programação que limita a vida útil em quatro anos, tempo considerado seguro para evitar emoções.

Esta limitação de vida-útil, além de ser uma tentativa de evitar uma resposta de alta periculosidade do manuseio inconseqüente de segredos da criação, se encaixa com perfeição na ideologia da atual modernidade. Como boa parte do que se adquire hoje na sociedade de consumo, têm durabilidade reduzida, o que garante lucros rápidos às empresas fabricantes da reposição. E qualquer tentativa de romper este sistema pode implicar em “remoção” sumária.

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Para se chegar a este ponto, não houve, ou não foi colocada em prática, a proposta de uma ética global que acompanhasse o avanço científico, uma ética cívica que viabilizasse o caminho para uma espécie de utopia mais ecocêntrica . Mas o que o filme mostra é um mundo tão egocêntrico que o próprio homem se faz de Deus ao usar a chave da vida para criar outro homem à sua imagem e semelhança.

As épocas futuras trarão com elas novos e provavelmente inimaginá- veis grandes avanços nesse campo da civilização [tecnologia de próteses] e aumentarão ainda mais a semelhança do homem com Deus. (FREUD, 1978, p. 152.)

No futuro de BladeRunner , o corpo humano é construído sob medida a fim de ser especializado nas mais diversas modalidades de trabalho servil, da prostituição ao manejo braçal em ambientes hostis em colônias interplanetárias. Tal condição pode ser entendida como uma metáfora que representaria o ápice da liquidez da sociedade moderna conforme o pensamento de Zygmunt Bauman. Pois os andróides, ao ganharem artificialmente a vida como uns frankensteins da modernidade, já são programados à efemeridade, visto que necessitam, após pouco tempo, de remoção e substituição por modelos mais avançados. Para isso têm suas vidas já embutidas com prazos de validade muito curtos. A consciência dessa condição, mais do que a programação física de seus corpos, proporciona-lhes superioridade moral e física em relação aos homens que de fato os criaram, figuras patéticas e solitárias que parecem ansiar pela hora de morrer.

A liquidez se mostra também hiper-real através da propaganda onipresente na metrópole que serve de cenário para BladeRunner . Propaganda falsa e verdadeira simultaneamente. Falsa porque está dentro de uma obra de ficção. Verdadeira porque insufla a adquirir produtos que podem ser comprados do lado de fora do cinema, como refrigerantes e fitas VHS. O merchandising desta película chega a ser tão natural, apesar de escancarado, que parece ficar em um ponto eqüidistante da polarização verdadeiro-simulacro, que é uma das grandes possibilidades de leitura sobre as propostas do argumento da trama. Afinal o personagem central anda com uma maleta que contém um equipamento (uma espécie de polígrafo pneumático) que lhe permite diferenciar pessoas de verdade das artificiais pela dilatação da íris.

Os olhos são uma simbologia recorrente em BladeRunner . Já em sua cena inicial um grande olho que observa a degradação urbana, onde a indústria

19 petroquímica se metastaseou com os bairros domiciliares e comerciais. Como os olhos eletrônicos da famosa distopia orwelliana, o incentivo ao consumo em Blade Runner é onipresente e pontua todo o desenrolar da trama. Parece indicar que a sociedade continua cada vez mais imersa na modernidade líquida, sempre com o excesso de promessa para evitar a frustração do niilismo cotidiano. Tudo deve ser visto pela ótica do consumo, dos recursos da natureza à própria natureza humana. Solidez passa a ser o lixo. Se ficar parado, se não acompanhar as novas tendências, não se reciclar, o cidadão moderno vira um descarte antiquado.

A questão da onipresença é inerente ao filme. A vigilância policial é absurdamente constante, com o apoio dos mais antiéticos e antiestéticos equipamentos. A chuva ácida está em toda a cidade o tempo todo. A propaganda das mais diversas empresas (que realmente existiam em 1982) surge como cenário ou interagem do início ao fim daquela tragédia humana (ou andróide).

Atualmente, a tecnologia apresenta-se claramente como a ponta final da pesquisa científica, aquela parte materializada do conhecimento de alta complexidade que chega ao mercado para a consideração do cidadão-consumidor. Ao mesmo tempo, defrontamo-nos com uma relação hiper-complexa com a tecnologia. Agora o corpo pode ser engenheirado, reconstruído, reformatado, reconfigurado. Sonhos de felicidade instantânea, vida eterna, convivem com temores de perda da memória, identidade, integridade, agência e poder. A fascinação ambivalente da tecnologia revela-se inteiramente. Por um lado, o desejo de transcendência. Por outro, o medo da subjugação, da desumanização. (RIBEIRO, 1999, p.1)

E em BladeRunner o corpo vende a emigração, as passagens interplanetá- rias, os terrenos em utopias estelares e o próprio corpo, como mão de obra servil qualificada tão liquidamente efêmera que se autodestrói após quatro anos de usufruto. Um bem bolado gatilho, pois não só abre perspectiva para a compra de um modelo mais atualizado para reposição, como também impede que ele queira tomar o lugar do proprietário.

Cinema

O romance em que se baseou Blade Runner foi escrito à época das truculências na Guerra do Vietnam, que para seu autor, não se diferenciavam fundamentalmente das atrocidades nazistas da Segunda Guerra. No entanto, o que

20 teve a sua gênese para ser uma militante literatura de protesto antiestablishment no fim das contas se tornou um bem de consumo da produção capitalista dos próprios EUA. Esta dicotomia aparentemente paradoxal atravessou o intricado processo da produção do filme e de alguma forma pode ter contribuído para o desconforto e conseqüente desapontamento sentidos pelos espectadores iniciais à época de seu lançamento, seria esse um dos motivos de seu fracasso comercial imediato (conforme será mostrado no Capítulo I). Sua proposta desoladora enveredava na contramão das demais representações culturais que se alinhavam com as perspectivas de garantia de preservação, e melhoria, do american way of life . Principalmente no ambiente norte-americano, onde a ideologia da Era Reagan propagandeava que os Estados Unidos caminhavam para uma utopia de prosperidade. No entanto, a própria existência do filme já pode ser vista como um indício de que possibilidades opostas já podiam ser aventadas nos anos 1980. Longe de se desejar superestimar o poder de sua proposta, principalmente na caracterização do ambiente urbano de um futuro próximo, é conveniente ressaltar, neste estudo, algumas de suas visualizações. Entendidas aqui como representações simbólicas das cidades reais que sofrem as conseqüências positivas e particular- mente as negativas, da implementação de seus parques industriais.

a metrópole tem um lugar eminente dentro da FC, sendo tanto invasora e invadida e podendo se virar contra o próprio homem, sendo hostil contra seus próprios habitantes. A cidade é um elemento do triunfo distópico que está presente na maior parte dos textos de FC. (THOMAS, 1988 apud AMARAL, 2005, p. 7).

Quando é mostrada ao espectador a comunhão imperfeita da industrialização e urbanização em cenografias hipertrofiadas, ocorre também neste processo imagético a junção do que Paul Virilio considera motores da história. Estes seriam fases em que novidades tecnológicas alteram essencialmente o espaço geográfico mundial. Por o homem ser submisso ao peso, ao esforço e ao cansaço, a história das ciências e das técnicas se liga à lei do menor esforço. Em decorrência disso, a máquina fora inventada. Esta, por sua vez, inferiu formas diferentes de se ver e conceber a realidade. O conceito de Virilio envolve níveis sucessivos destes motores em que a história moderna pode ser organizada. Cada um modificando o quadro de produção de nossa história, assim como a percepção e informação. Segundo Virilou, tais motores seriam:

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Primeiro, o motor a vapor , na ocasião de uma revolução da informação e da criação da primeira máquina, ou seja, da máquina que serviu à revolução industrial. Foi o motor a vapor que permitiu o trem e, portanto, a visão do mundo através do trem, a visão em desfile, que já é a visão do cinema. [...] O segundo motor, o motor de explosão , propiciou o desenvolvimento do automóvel e do avião. Voando, o homem obteve uma informação e uma visão inéditas do mundo: a visão aérea. O motor de explosão possibilitou uma infinidade de máquinas, as máquinas-veículo e também toda uma série de máquinas de produção industrial. O terceiro motor, o elétrico , deu origem à turbina e favoreceu a eletrificação, permitindo, por exemplo, uma visão da cidade à noite. Evidentemente ele favoreceu também o cinema. O cinema é uma arte do motor. Certamente as primeiras máquinas e câmeras foram manuais, mas sabemos que elas foram eletrificadas rapidamente. O desenvol- vimento do cinema, que modificou a relação do homem com o mundo, está diretamente relacionado com a invenção do motor elétrico. O quarto motor é o motor-foguete que permitiu ao homem escapar da atração terrestre. Através dele temos os satélites que servem à transmissão do sistema de segurança. Satelizando os homens, ele permitiu a visão da Terra a partir de uma outra terra: a Lua. [...] O último motor é o informático , é o motor à inferência lógica, aquele do software, que vai favorecer a digitalização da imagem e do som, assim como a realidade virtual. Ele vai modificar totalmente a relação com o real, na medida em que permite duplicar a realidade através de uma outra realidade, que é uma realidade imediata, funcionando em tempo real, live. (VIRILIO, 1978, p.127).

Dessa forma, é oportuno, para este estudo, ilustrar formas de interação entre o cinema, o poder das imagens em geral e o devir, desde como analogia didática a ativo agente de transformação. Isso sugere que tal poderio, especificamente no caso da película Blade Runner , assim como as conjecturas e questionamentos concernentes à sua trama, possa proporcionar pontos de partida para a análise de processos ligados à construção social.

Torna-se conveniente neste ponto, chamar a atenção para uma questão polêmica que será contornada neste trabalho. O autor desta pesquisa, como profissional da Educação através do ensino transdisciplinar da arte, possui uma visão eclética quanto aos conceitos sobre um objeto artístico. No entanto, é ciente que estes são extremamente oscilantes. Em decorrência de distintas perspectivas do mais variados autores, podem-se apresentar variações nestes conceitos das mais imperceptíveis às mais retumbantemente radicais. O produto cultural cinema encontra no cerne deste debate por apresentar ao mesmo tempo manifestações autorais de cunho artístico e, por outro lado, características de produção coletiva que levam a uma padronização mercantilista.

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No entanto, esta tendência à estandartização, criou também a sua oposta, isto é, uma tendência que caminha na direção da singulari- zação e da individualização. Será sempre necessário o novo para fazer frente às cópias. A arte sempre ultrapassa a estandartização. É por isso que a usina dos sonhos produz não apenas filmes estandart- izados, mas também obras-primas. Alguns diretores [...] foram com- petentes e criativos para transformar estereótipos em arquétipos. (MORIN apud PEREIRA, 2001, p. 10).

Para muitos, Blade Runner atingiu o destaque obra-prima da arte cinematográfica tanto quanto outros clássicos das telas. Mesmo que o cinema seja popularmente considerado asétimaarte desde a publicação, em 1923, do Manifesto da Sétima Arte pelo crítico italiano Ricciotto Canudo, ainda não há um consenso acadêmico quanto a isso. É uma discussão que tem suas origens nos primeiros estudos de estética do cinema no sentido se criar uma teoria para o cinema, a partir de uma polaridade crucial. “Aquela entre, por um lado, realismo, naturalismo e interferência mínima do realizador, e, por outro, fantasia, expressionismo e influência formativa do realizador”.5 Respectivamente com suas matrizes nas incipientes filmagens de três franceses do século XIX: os irmãos Lumière, os inventores deste médium (1895) e George Méliès, o mágico que o primeiro difundiu. Não é intenção que seja abordado tal questão ao longo desta pesquisa. Dentro da sua proposta, é indiferente se consideram BladeRunner não mais do que um ilustre representante oitentista da industrial cultural, em que o cinema, principalmente o dos EUA, se transformou desde o século passado, ou uma obra que seu diretor aspirasse ser vista como cinema de autor. Isto é, que carregasse em sua essência aspectos de ordem técnica e conceitual, que caracterizassem um estilo próprio e pessoal de fazer um filme, com o mínimo de interferências externas. Segundo Jean-Claude Bernardet:

Os verdadeiros autores de hoje raramente são os que geram com ciúmes sua maestria, que tentam perpetuar os signos de sua autoridade/autorismo de um filme para o outro, ou executar o seu próprio programa; seriam antes os que preferem colocar em questão seu título de autor a cada novo filme, colocar em perigo a sua maestria. (BERNARDET, 1994, p. 175).

O estilo de Scott em sua linguagem técnica e aprimoramento visual assim como os problemas que enfrentou na produção advinda das suas atitudes conside- radas autoritárias nos sets de filmagens, que serão abordados no primeiro capítulo, podem até apontar tal caminho. No entanto, referências a isto, quando usadas, serão apenas no sentido de informação, e não necessariamente de concordância.

5 TUDOR, Andrew. Teoriasdocinema . Lisboa: Edições 70, 2009, p. 19.

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Motivação da pesquisa

Através de uma de suas linhas arquetípicas, o gênero lítero-cinematográfico Ficção Científica, parece contribuir, através de certas obras como o filme Blade Runner , para a manutenção do pensamento utópico, oferecendo possibilidades, mesmo que indiretas, para que a humanidade progrida em direção ao bem-estar social.

Como o gênero FC faz parte da indústria cultural, precisa de retorno comercial de seus suportes, especialmente cinema e literatura, necessita de dramas e problemas explícitos como argumento de suas aventuras para se tornar mais atraente ao consumidor. Por isso, raramente seus heróis são situados em utopias plenas. Encontram justificativas para suas aventuras justamente nas imperfeições de distopias, geralmente ambientadas no futuro ou em outros mundos.

Tais distopias, podem ser entendidas como uma forma às avessas de se incutir no pensamento humano (através da grande penetração e popularidade da FC) a necessidade de se alterar os caminhos presentes que poderiam levar à suas próprias materializações, redirecionando-os para as utopias. Um dos mais eloqüen- tes exemplos disso está no suporte fílmico Blade Runner (e todo o seu universo, especialmente no romance que lhe deu origem). Entre as diversas possibilidades de interpretação que esta obra pode oferecer, duas se sobressaem para fins de emba- sar o pensamento apresentado neste trabalho sobre sua condição de mantenedor do pensamento utópico.

A primeira possibilidade a ser abordada é sua ênfase na economia de consumo, através da hipertrofia dos elementos da modernidade do início dos anos 1980 (época em que foi produzido) propiciando um entendimento desta como Líquido-Moderna. Algo que condiz com a visão que Bauman deixa transparecer sobre o consumismo: como uma espécie de combustível dos motores históricos de Virilio, principalmente do atual. Esta hipertrofia é vista principalmente na visualidade da metrópole futurista que lhe serve de espaço cenográfico. A Sociologia busca compreender as cidades decodificando estilos de vida advindo das inter-relações entre seus habitantes, que devido ao caráter de difusão sócio-cultural destas, se

24 padronizam para outros níveis territoriais 6. É a partir das cidades, especialmente das grandes metrópoles globais, das manifestações de suas urbanicidades, que se projetam constantes inferências para as demais regiões do globo. Estudos sobre tais características podem permitir “mapear comportamentos neste mesmo espaço e procurar ampliar a metodologia para estudos gerais sobre a sociedade urbana” 7. É uma corrente de pensamento que advém da primeira metade do século XX, sobretudo com a Escola de Chicago, onde a definição sociológica de cidade se faz considerando a ocorrência de um contexto espacial importante, demograficamente denso e permanente, onde coexistem indivíduos socialmente heterogêneos, que pode ser abordado empiricamente. O autor desta pesquisa crê que o filme Blade Runner pode auxiliar neste processo empírico, mesmo como uma alegoria da fantasia, pois se apóia em possibilidades reais da materialização de um futuro ainda pior para o cidadão urbano.

A segunda é que, pelas condições dos personagens antagonistas, ressalta-se a idéia de que a ciência se alia a este processo fomentando inovações tecnológicas que não servem apenas para aprimorar os meios de produção tanto dos bens necessários das condições materiais de vida, mas também para otimizar o consumismo. Estes personagens são corpos orgânicos andróides, artificialmente criados para o trabalho servil. A criação de clones humanos para os mais diversos fins, inclusive os fins comercias mostrados na ficção de Blade Runner , é uma possibilidade um tanto especulativa, no entanto presta-se como uma metáfora importante que alerta quanto aos perigos da manipulação dos segredos da vida.

Um dos grandes sonhos da nossa tecnociência é a promessa de que os “engenheiros da vida” possam efetuar ajustes nos códigos informáticos que animam os organismos vivos, assim como os programadores de computador editam software. Todas essas reconfi- gurações e redefinições da natureza, da vida e do homem têm profundas implicações em todos os âmbitos, e por isso é de extrema relevância que não permaneçam impensadas. (SIBILIA, 2005).

Atualmente, há inúmeras perspectivas de manipulação molecular pela Biologia Sintética, que implicam em formas artificiais de reprodução da vida e até mesmo, formas de reprodução da vida artificial. Seus esboços já são manchetes

6 Cf. NUNES, Brasilmar Ferreira. Urbanizaçãoemigrações:reflexõesgeraisparaauxiliarna interpretaçãodofenômeno . Brasília: CSEM, 2002, p. 13. 7 Id. Classesesociabilidadesnomeiourbano . [S.l.]: [ s.n.], [entre 1998 e 2004], p. 1.

25 na mídia. Uma atenção especial às conseqüências disto, já há muito tempo disponibilizadas pela FC, indicam que se o futuro das tecnologias de manipulação da vida se concretizar sem devido amparo ético, a humanidade poderá ter que conviver com formas inéditas e inusitadas de vida, muitas vezes de difícil conceituação como tal. E a interação destas com o meio ambiente, proposital ou acidental, trazer conseqüências desastrosas à sociedade.

As reflexões aqui apresentadas tomaram forma a partir de BladeRunner e há muito incomodam ao autor deste trabalho. Diante disso, seu pressuposto é que este filme reúne características suficientes para ser usado como ponto de partida para fomentar ponderações sobre que efeitos uma ciência não regulada por uma consciência ética pode ter sobre o homem, principalmente na área da Educação Tecnológica, onde ele se insere profissionalmente. Seria o cinema, independente de sua classificação como objeto de arte ou produto da indústria cultural pode ter muito a contribuir.

Com base no que foi apresentado, como motivação da pesquisa, o objetivo principal deste trabalho é responder à grande pergunta que inquieta a sua produção sob a forma de análise fílmica. O filme Blade Runner permite trazer contribuições para a reflexão da ética na ciência a partir dos traços da sociedade líquido-moderna?

Estrutura do trabalho

No capítulo I se apresenta o processo de feitura do filme Blade Runner como um todo, ou seja, abrangendo as diversas versões que foram feitas deste. Pretende-se deixar evidente, nessa apresentação, o quanto fatores de ordem comercial interferiram nos propósitos autorais da obra, paradoxalmente tornando o filme mais emblemático em sua condição de crítica ao consumismo.

No segundo capítulo, há uma enfatização do caráter social do gênero lítero-cinematográfico em que BladeRunner se insere: a Ficção Científica. Isto é feito através de uma visão parcial de sua história como representação da criatividade humana, da inserção neste gênero pelo autor do romance que serviu

26 de base para a roteirização do filme (Philip K. Dick) e de sua vertente antiutópica, que apesar disso, fomenta o pensamento utópico.

No terceiro, são abordados temas urbanos atuais que emergem na representação da metrópole feita em Blade Runner , tais como industrialização, urbanização desordenada, efeitos da globalização e publicidade. Temas que ao abordarem a ênfase ao consumismo corroboram o conceito de sociedade líquido- moderna de Bauman, que será o principal referencial teórico deste capítulo.

No capítulo IV, há uma abordagem da ética sobre a ciência em sua relação com a sociedade dos consumidores. O ponto de partida se baseia em uma visão específica do uso comercial (não necessariamente exploração) do corpo humano no cinema de ficção científica através do recorte da história de Frankenstein, vista como um precursor da linha arquetípica da FC onde o filme Blade Runner se insere. Através da justaposição destes, é feito uma abordagem filosófica e bioética que pretende embasar a justificativa, nos moldes como pretende Edgar Morin, de haver uma conscientização moralmente ética na produção científica.

Nas considerações finais, o autor desta pesquisa toma a liberdade de ponderar sobre as abordagens e propostas dos principais autores que proporcionam a fundamentação teórica, Bauman e Morin.

Metodologia e referencial teórico

A metodologia para a construção dessa dissertação se baseou em revisão bibliográfica sobre parte da ampla produção acadêmica já feita sobre o Blade Runner , assim como em uma atenciosa releitura de todas as centenas de informações colhidas e colecionadas pelo autor, ao longo de 25 anos de admiração pelo universo da obra. Todas as informações analisadas passam por um processo de seleção a fim de que apenas aquelas consideradas relevantes e idôneas para o propósito da pesquisa viessem a ser utilizadas de fato.

Especificamente sobre o processo de criação do filme Blade Runner , explicitado no Capítulo I, a pesquisa se fundamentou na obra Paul M. Sammon, o maior especialista sobre este filme. Seus livros e artigos apresentam o resultado

27 de muita observação in loco por dois anos no set de Blade Runner como jornalista, além de décadas de acompanhamento das minúcias técnicas da pós produção e do desenrolar das versões alternativas do filme.

Para a historicidade da Ficção Científica no Capítulo II, a pesquisa buscou sustentação em obras analíticas de , Bráulio Tavares, Raul Fiker e Gilberto Schoereder. Neste mesmo capítulo, as descrições sobre o pensamento utópico se basearam em Jerzi Szacki e Zygmunt Bauman. Este último também oferece a principal sustentação teórica para a visão que norteia o terceiro capítulo, através do seu conceito de sociedade líquido-moderna.

No último capítulo, a sustentação recaiu principalmente sobre o pensamento de Edgar Morin a respeito da necessidade de consciência na ciência, que passa pelo entendimento da complexidade universal. O pensamento moriniano é, de certa forma, o principal norteador desta dissertação, por também orientar a postura de seu autor ao longo das pesquisas. Visto que seu objeto, o filme Blade Runner , é para este um depositário de grande afeição, o distanciamento entre sujeito e objeto, requerido para a imparcialidade da pesquisa científica pode, a princípio, ficar comprometido. Na verdade, muitos estudiosos da ciência consideram que tal distanciamento nunca ocorra totalmente, visto que os pesquisadores são seres humanos falíveis, que carregam preceitos introspectados da sociedade. Mas isto não significa que o distanciamento não deva ser tentado.

Morin considera que em uma investigação séria poderia dispensar o distanciamento, no caso do cinema, que ele entende como um médium diferente dos demais. 8 Ele o vê em sua totalidade humana, e que por apresentar em suas representações uma versão hiper-realista da sociedade, não se constitui um invento apenas instrumental da civilização, como um aeroplano. 9 Pela sua hiper- realidade, o cinema não seria simplesmente um reflexo ipsislitteris da sociedade. Estando no limite entre a consciência individual (imaginação) e a interação entre os envolvidos (participação coletiva), o cinema revela um fato socioantropológico sobre a relação humana para com o mundo. Segundo Morin: “O cinema nos permite ver o inseparável processo de penetração do homem no mundo e o

8 Cf. SCHOONOVER, Karl. Senses of Cinema, mar. 2006. 9 Ibid.

28 inseparável processo de penetração do mundo no homem". 10 Assim, Morin acredita que a antropologia social seja a melhor forma de investigar o cinema pela ciência. E fazer ciência implica, para a imparcialidade dos estudos empíricos, o máximo possível de distanciamento do observador para que este elabore suas concepções.

Morin argumenta que uma investigação séria sobre o cinema não exige o distanciamento crítico da experiência pessoal. De fato, ele sente que a verdade sobre o cinema só será revelada para aquele que "mergulhar, sem se perder, nas contradições que definem o cine- ma". [...] Ele se recusa a dissecar ou desmembrar o meio sob investi- gação. Em vez disso, ele analisa o cinema como uma experiência abrangente, semelhante ao ver "corporalmente". (SCHOONOVER, 2006, tradução nossa).

Sua argumentação não se restringe apenas ao estudo fílmico, pois abrange sua concepção geral sobre a ciência de todas as áreas, inclusive a social. A posição do observador, para conceber a complexidade, não precisaria, segundo Morin, estar necessariamente desintegrada da concepção de mundo.11

O sociólogo não está apenas na sociedade; de acordo com a concep- ção hologramática, a sociedade também está nele; ele está possuído pela cultura que possui. [...] O observador-conceptor deve integrar-se na sua observação e na sua concepção. (MORIN, s.d., p. 144).

Diante disto, o autor desta pesquisa assumiu uma postura de trabalhar cientificamente de forma coerente com sua principal fundamentação teórica, aceitando a sugestão de Morin de “mergulhar, sem se perder, nas contradições que definam o cinema”. 12

10 Morin, Edgar. TheCinema,ortheimaginaryman . Tradução: Lorraine Mortimer. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005, p. 204. (Tradução nossa). 11 Morin, Edgar. Ciência com consciência. Mem Martins: Publicações Brasil América, s.d., p. 144. 12 MORIN apud SCHOONOVER, 2006, op. cit.

CAPÍTULO I BLADE RUNNER , O FILME E SUAS VERSÕES

Uma contextualização histórica do gênero Ficção Científica (FC), em seus suportes literário e cinematográfico, talvez devesse ser apresentada em primeiro lugar, de forma que pudesse fazer uma melhor inserção do leitor ao gênero que o filme BladeRunner , o recorte desta pesquisa, se filia. Especialmente no sentido de ambientá-lo espaço-temporalmente.

Não obstante, o que a princípio parecerá contrariar a lógica deste raciocínio, este primeiro capítulo é dedicado a uma panorâmica sobre as instâncias mercadológicas e sociais da película em questão, a partir da descrição de sua produção técnica e relações simbióticas com fatos sociais. Deste modo, o entendimento acerca do valor da FC se evidenciará mais facilmente. Assim, serão mostrados neste primeiro capítulo, aspectos relevantes para a fundamentação dessa pesquisa, que envolvem a produção do filme BladeRunner , da sua concepção até suas reformulações através de réplicas de si mesmo.

Um processo que o fez ficar conhecido por basicamente duas versões principais e algumas intermediárias. Ao mesmo tempo em que diferenças mínimas e quase imperceptíveis eram introduzidas nestas, outras tinham o peso da reconfiguração parcial, porém significativa, do sentido e propósito geral do argumento. Da história da Ficção Científica propriamente dita, apenas seu subgênero Cyberpunk será abordado em detalhes, pois sua gênese se funde de forma complexa a de um movimento cultural que se alinha com as proposições do filme.

Assim, segue-se um resumo básico e cronológico da trama que se montou sobre este, apresentando os nomes dos intérpretes entre parênteses à medida que seus personagens forem citados. Esta descrição toma como base a última versão lançada comercialmente pelos seus produtores, a chamada Versão Final ( Blade Runner The Final Cut )1. A escolha desta deve-se ao fato de que na visão do principal responsável pela existência do filme nos moldes em que ficou mundialmente conhecido, o seu diretor, esta versão é a que mais consegue se

1 Disponível atualmente no mercado de homevideo , através das mídias DVD e blu-ray, tanto para locação quanto para aquisição.

30 aproximar de sua concepção inicial. Concepção esta que, pelos mais diversos fatores, muitos deles alheio a ele, que serão detalhados oportunamente, foi significativamente alterada ao longo do projeto. Segmentos mais específicos do enredo serão apresentados à medida que forem necessários ao desenvolvimento deste primeiro capítulo.

1.1 A trama

No início do século XXI, a Tyrell Corporation , uma grande corporação de biotecnologia deu um passo além no processo de manufatura de “robôs”, passando a construí-los através de técnicas de Engenharia Genética, o que lhes possibilitava receber a dádiva da vida. Tais seres, conhecidos como replicantes, são criados já em formato adulto à perfeita imagem e semelhança dos seres humanos.

Porém, alguns modelos são mais fortes e mais inteligentes, além de outras especializações necessárias para as mais diferentes formas de trabalho, na Terra e na colonização de outros planetas. Davam suporte assim, a uma emigração que levava milhões de habitantes para longe do mundo que a Terra havia se transformado, um lugar poluído e superpovoado. Como os replicantes eram submetidos ao trabalho compulsório, eram vistos como escravos tanto por eles próprios, quanto por toda a sociedade em que estavam inseridos. Por isso, não era incomum que se revoltassem violentamente contra os seus proprietários ou demais humanos com quem tinham contato. Isso gerou conseqüências.

Uma foi a limitação de suas vidas-úteis a quatro anos, tempo considerado insuficiente para que desenvolvessem emoções e questionamentos trabalhistas e existenciais.

Outra foi a proibição de que fossem usados na Terra. Unidades especiais da polícia, alcunhadas de BladeRunner , eram compostas de elementos capacitados na caça, detecção e extermínio desses seres andróides caso estivessem vivendo clandestinamente na Terra, infiltrados entre os seres humanos. A execução desses,

31 era chamada, no jargão do filme, de remoção 2. O que aponta o tipo de relação da sociedade para com os replicantes.

O fio condutor da trama se concentra na figura de Rick Deckard (Harrison Ford), um solitário ex-Blade Runner que se vê coagido por sua antiga chefia (M. Emmet Walsh) a retornar à sua antiga profissão para caçar e remover um grupo de replicantes que retornou clandestinamente à Terra e se encontravam em sua cidade, a imensa e violenta conurbação que se tornou a metrópole norte-americana de Los Angeles em 2019. Uma cidade onde o céu está quase sempre escuro supostamente por algum fenômeno meteorológico ligado à poluição.

A trama se subdivide em duas linhas narrativas interconectadas. Uma que acompanha Deckard em seu trabalho de seguir pistas que o levem ao encontro dos replicantes. Neste, é acompanhado inicialmente por um outro policial, o misterioso Gaff (Edward James Olmos), que tem a mania de fazer dobraduras representando as situações pelas quais passam. Nessa empreitada, Deckard conhece Rachael (Sean Young), uma andróide que vive na sede da Tyrell ignorando sua própria condição. Devido à implantes de memória, ela acredita ser, e sempre ter sido, uma sobrinha do Dr. Eldon Tyrell (Joe Turkel), o dono da megacorporação e responsável direto pela criação dos replicantes. A verdadeira identidade de Rachael vem à tona através de Deckard, quando é submetida a um teste feito a pedido de Tyrell, com a máquina Voight-Kamptt, um polígrafo especial que auxilia a diferenciar um ser humano verdadeiro de um falso. Desolada, Rachael foge das dependências da Tyrell e entra para a lista de remoção de Deckard. No entanto, após salvá-lo ao balear mortamente um replicante, ganha o afeto do blade runner, e passam a ter um relacionamento amoroso inevitavelmente problemático, visto que ela tecnicamente não era uma mulher de verdade, mas sim um simulacro. Deckard, em um raro momento um raro momento de paz, tem a visão de um unicórnio galopando, supostamente um sonho recorrente, visto que não se espanta com isso.

A outra linha narrativa acompanha os replicantes. Estes, ao contrário da

2 Retire é o verbo usado no original em inglês, que significa aposentar . Sua tradução literal para o português, talvez não conseguisse manter sua ambivalência original, o que poderia gerar respostas cômicas nas platéias que interferissem na tensão inicial da projeção. Nesse sentindo, uma tradução mais adequada talvez fosse recolher , procurando se referir diretamente ao recolhimento de produtos no varejo – geralmente por defeito de fabricação ou prazo de validade vencido. No entanto para os cinemas e mercado de homevideo no Brasil optaram-se por remoção , que mesmo sem a dubiedade do original, ainda impacta por demonstrar o tratamento aos andróides como objetos. Esta dissertação optará preferencialmente por este último termo.

32 maioria dos seres humanos retratados na película, sentiam a vida fluir em seus corpos sintéticos de uma forma não apática, indicando a vivência intensa de cada momento. Algo que os levavam a desejar ardentemente mais tempo dela. Não se contentavam com a duração lhes imposta, considerada curta, para serem logo descartados e substituídos provavelmente por unidades cada vez mais avançadas, desenhadas segundo novas tendências de mercado e modismos da sociedade. E no intuito de conseguirem mais tempo de vida, saem provocando mortes e sendo eliminados por Deckard. Até que os últimos deles, Roy Batty (Rutger Hauer) – projetado para combate e defesa bélica – e sua namorada Pris (Daryl Hannah) – feita como modelo de lazer militar – conhecem o desenhista genético J.F. Sebastian (William Sanderson), o único humano que se dispõe a ajudá-los na trama, talvez por seu corpo carregar uma anátema biológica, uma doença chamada Decrepitude Acelerada que lhe faz envelhecer rapidamente, semelhante a de um Nexus 6, o modelo daqueles replicantes de vida limitada. Roy, o atormentado líder dos replicantes renegados, alguém capaz de recitar William Blake diante de suas vítimas, é convencido por Sebastian, que se houver alguma maneira de desprogramar epigeneticamente a morte de um replicante, apenas um homem poderia fazê-lo, Dr.Tyrell, o seu próprio criador. Logo após vencê-lo em uma partida de xadrez à distância, se passando por Sebastian, Roy finalmente obtém acesso pessoal a Tyrell. Este vive como um deus, envolto à velas no topo de uma gigantesca edificação em forma de pirâmide meso-americana, a sede de sua empresa.

Ao pedir mais vida a seu pai , é informado que é algo inexeqüível, visto que existe uma suposta barreira técnica. Suposta porque se sabe que o prazo de validade dos replicantes é inserido intencionalmente, a fim de se evitar a perigosa emersão da alienação em que vivem desde a nascença . Ao aceitar isso, Roy se conscientiza de sua impotência perante seu iminente fim, já que está no limite dos seus quatro anos. O filho pródigo beija então o pai para em seguida executá-lo, furando-lhe os olhos e esmagando sua cabeça com as próprias mãos, sob o olhar atônito de Sebastian, que em vão, tenta fugir para não ser morto também.

Pela identificação do corpo de Sebastian, Deckard chega ao seu endereço e consegue remover Pris. Roy chega nesse momento e por causa de sua força desproporcional consegue desarmar Deckard, mesmo após ter sido atingido de raspão. Ferido e desconsolado pela morte de Pris, sente em seu corpo que seu

33 momento final também está próximo. Mas consegue retardá-lo em alguns minutos, varando sua mão com um grande prego da deteriorada laje de madeira da cobertura do prédio de Sebastian. Uma relíquia arquitetônica vazia e quase abandonada no centro antigo e decadente da cidade. Invertendo as posições, Roy começa um jogo de gato e rato com Deckard até que este, encurralado, fica pendurado no alto de um prédio, prestes a se precipitar dezenas de andares. No entanto, quando começa a cair, é seguro pela mão vazada do replicante, que o tira daquela situação e o deposita em segurança numa laje. Imediatamente, enquanto seu corpo vagarosamente cessa de funcionar sob a chuva ácida, Roy relata poeticamente ao aturdido caçador de andróides alguns momentos dramáticos de guerra que foi obrigado a enfrentar no espaço. Momentos que os seres humanos não presenciaram e que se perderiam no tempo com a sua morte, tais como lágrimas na chuva em sua comparação. Quando finalmente falece, sua mão deixa escapar uma pomba branca que estava em seu poder, que livre voa em direção ao céu negro da noite chuvosa.

Gaff pousa sua viatura policial voadora próximo ao aturdido Deckard e devolve-lhe a arma. Mas diz que era ruim que Rachael não fosse viver, e pergunta quem afinal vive. Entendendo que este enigma poderia significar a morte de sua protegida e talvez a sua, Deckard volta ao seu lar, onde tinha deixado Rachael e a encontra viva. Temendo por ela, toma-a consigo para fugir para algum outro lugar. Mas acha algo, à porta de seu apartamento, que causaria dúvidas sobre a sua própria condição de ser humano. Um origami deixado por Gaff, que parecia desvendar o significado do que lhe dissera.

Nesta versão, o filme termina neste momento, com a porta do elevador em que o casal entra para ir embora, fechando nacara do espectador, deixando a tela toda negra. Na primeira versão a história prosseguia para um epílogo: Deckard e Rachael estão fugindo de carro em um dia ensolarado em meio a uma belíssima paisagem natural, cercada de florestas e montanhas verdejantes. Em narração (constante em boa parte do filme nesta primeira versão), Deckard diz que soube por Tyrell que ela era uma replicante diferente, sem data para deixar de viver. E relembra a última frase de Gaff, que parecia indicar que a teria deixado viver por não saber disso, achando que ela iria morrer em breve.

Outra diferença crucial é que não há, naquela versão, a cena da visão que o protagonista teve do unicórnio correndo. Sua inclusão em versões posteriores

34 geraria muita polêmica, pois a partir dela, subentende-se pela dobradura final de Gaff, que a polícia conhecia os sonhos de Deckard, tanto quanto este conhecia as lembranças falsas de Rachael. Ou seja, Deckard também seria um replicante, ignorando este fato até o momento em que encontra o origami . Pois este retratava justamente um unicórnio, a mesma figura mitológica de seus sonhos, teoricamente apenas de seu conhecimento pessoal.

1.2 O processo de feitura

Para uma melhor visualização das possibilidades que a obra Blade Runner pode vir a oferecer no intuito de se fazer uma análise social, é imprescindível entender o processo, considerado extremamente desgastante e complicado, que levou à sua existência. Um processo que mesmo com tais características, ou mesmo em decorrência destas, fez com que o produto final não fosse exatamente o que desejavam seus criadores. O que com o tempo, ocasionou sua reestruturação e lançamento de novas versões. Para se entender isso, torna-se necessário um retorno ao contexto de 1982, ano de lançamento da primeira versão de Blade Runner .

Foi um ano singular para a FC do cinema. Suprindo a demanda por filmes de linha fantástica enquanto se aguardava o até então último episódio de “Guerra nas Estrelas”. 3 As telas de 1982 se fizeram sui generis para a mitografia da fantasia, ostentando desde produções hoje consideradas clássicas a outras não tão destacáveis. Era uma grande efervescência que dava continuidade à explosão do gênero que vinha desde os longa-metragens norte-americanos “Guerra nas Estrelas” e “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, ambos lançados em 1977 nos Estados Unidos (EUA) – 1978 no Brasil – dirigidos respectivamente pelos hoje renomados produtores de Hollywood George Lucas e Steven Spielberg.

Mas as supostas qualidades existentes em Blade Runner não o fizeram ter uma aceitação de imediato pelos espectadores. Elas ficaram em segundo plano

3 Em 1983 George Lucas concluiu a primeira trilogia “Guerra nas Estrelas” com a produção do filme “O Retorno de Jedi”, de Richard Marquand, quebrando recordes de bilheteria.

35 diante do que foi considerado um ritmo lento de narrativa cinematográfica. Foi qualificado como filme entediante com uma mensagem amarga e desesperançosa quanto ao futuro. Diametralmente oposto aos últimos filmes estrelados por Harrison Ford, o grande astro da ocasião que interpretou Deckard. A Ficção Científica “O Império Contra-Ataca” (1980), de Irwin Keshner e o recordista “Caçadores da Arca Perdida” (1981), uma direção de Spielberg com produção de Lucas lançada no ano anterior, que ficou caracterizada por uma montagem ágil e ritmo extremamente acelerado e o personagem de Ford, o herói arqueólogo Indiana Jones. O próprio subtítulo nacional de Blade Runner 4, “Caçador de Andróides”, muitas vezes usado como uma tradução livre do título original, forçava intencionalmente uma referência direta com aquele filme de ação e aventura.

Blade Runner teve uma produção conturbada deste o início, muitas vezes proveniente do choque cultural entre a visão européia de cinema autoral por parte do diretor e o pragmatismo comercial de sua equipe americana. Naquele início de carreira nos EUA, não foram poucos os conflitos entre Scott e os envolvidos em quase todos os estágios da criação, dos produtores aos técnicos. Muitos dos quais não conseguiam e nem desejavam entender o propósito de cada atividade a que eram instruídos a desempenhar, desde que recebessem seus salários. No entanto, a intransigência característica da forma de Ridley lidar com aqueles que lhe são

4 Segundo Sammon (1996, p. 53-54), a expressão que dá título ao filme teria sido escolhida por Ridley Scott por sugestão de Hampton Fancher, o primeiro roteirista, por soar foneticamente semelhante a Bounty Hunter , caçador de recompensa, que é a profissão do protagonista no romance original de Philip K. Dick, alterada no filme para uma espécie de detetive policial especializado na detecção e execução de replicantes. Fancher teria encontrado o binômio como título de um roteiro cinematográfico publicado pelo escritor beatneak William S. Burroughs como proposta para o romance homônimo de um outro escritor de Ficção Científica, o norte-americano Alan E. Nourse. Apesar da trama destas obras se situarem em uma sociedade distópica do futuro, em nada mais se relacionavam com o universo criado por Dick. Nesta obra, BladeRunner se refere a um traficante (runner) de lâminas de bisturi (blade) para médicos que atuam na clandestinidade, por não seguirem o eugenismo para controle populacional ditadas por um governo autoritarista. No documentário “Dias Perigosos”, o produtor Michael Deeley revela que foi ele próprio quem escolheu o título inspirado na edição de Burroughs, sob protesto de Fancher. E corroborando, Ridley Scott diz que ao ser contatado para dirigir o filme, este já possuía informalmente o título de Deeley. Segundo Tavares (2009), “ao pé da letra, no entanto, o termo significa ‘aquele que corre por cima de uma lâmina’, ou que (no verso de Lula Queiroga) ‘tem que saber andar num chão de navalha’. O que é uma evocação de um episódio da Demanda do Santo Graal : os cavaleiros da Távola Redonda chegam a um abismo que só pode ser atravessado por sobre o gume de uma lâmina imensa e afiadíssima. Os cavaleiros precisam deitar-se sobre esse gume e arrastar-se ao longo dele, cortando-se todos, até chegar ao lado oposto. Um belo simbolismo para o processo de auto-conhecimento, que não se dá sem sangue e cicatrizes. Em Portugal, de acordo com o site o filme teve como subtítulo uma tra- dução livre, mas que não deixava de oferecer o espírito proposto do termo: Perigo Iminente.

36 subordinados hierarquicamente, deve-se muito mais à sua personalidade perfeccionista do que a de empregador. Até porque, no esquema norte-americano de realização fílmica, o diretor também se encontra em posição de assalariado, cabendo aos produtores financeiros o papel de patrões. No caso de Blade Runner , uma sociedade de produtoras que se formou após a Filmways, a primeira empresa a investir no projeto, ter falido . A Blade Runner Patnership (formada pelo milionário chinês Sir Run Run Shaw, Tandem Productions e Warner Bros. através da TheLadd Company ) entrou no projeto investindo inicialmente a quantia de 21,5 milhões de dólares, soma considerável para 1980. O roteiro passou por diversos tratamentos por Hampton Fancher além do aprimoramento posterior a cargo de David Peoples. O primeiro, que em conjunto com seu amigo Brian Kelly, também era produtor associado, detinha os direitos de adaptação cinematográfica sobre o romance “ Do Android Dream of Eletric Sheep ?” (DADoES no jargão cinematográfico) do escritor Philip K. Dick. No entanto, não sendo leitor habitual de Ficção Científica, teria dado uma caracterização muito pessoal e anti-comercial ao roteiro. Um fato que não agradou nem a Dick, que segundo Guarner, achava que se Hollywood desejava converter seu trabalho em um thriller sangrento, não poderia fazer nada à respeito. Já a reinterpretação mais profissional de Peoples, contratado à revelia de Fancher, agradou a todos e animou Dick, que a considerou mais fiel ao espírito de sua obra, mesmo excluindo muito do material original e alterando itens, como a substituição do termo andróide por replicante a fim de se evitar o clichê 5. Fancher, magoado após o incidente, retirou seu envolvimento pessoal da produção.

Estes foram apenas os problemas iniciais. Muitos outros que se seguiram, principalmente envolvendo atrasos de cronograma, estouro de orçamento e desentendimentos, levaram os investidores da Blade Runner Partnership a se inquietarem, afinal esperavam por grandes lucros. Nesse intuito, promoveram algo de praxe no caso de dúvidas quanto à receptividade a algum filme antes de sua estréia. As temidas sneak preview , sessões de teste onde pessoas escolhidas aleatoriamente em cidades consideradas modelos, colaboram com pesquisas de opinião quanto a vários aspectos do filme, principalmente se os agradam. Caso sejam detectados problemas, haverá tempo hábil para solucioná-los. No caso de BladeRunner , recrutados em Denver, Dallas, San Diego e Londres opinaram sobre

5 Cf. GUARNER, Jose Luis apud. ARGULLOL, Rafael et al. BladeRunner. 2 ed. Barcelona: Fabula Tusquets, 2001, p. 64-65.

37 uma cópia inacabada do trabalho. O resultado se mostrou alarmante. Não houve compreensão total da trama, que foi considerada enfadonha, e muito menos identificação com o personagem de Harrison Ford. A necessidade de se fazer a obra pelo menos compensar os mais de 20 milhões de dólares já investidos, fez com que fossem elaboradas tentativas de se evitar o fracasso que se avizinhava. Portanto, em clima de grande tensão, os produtores financeiros da Tandem, Jerry Perenchio e Bud Yorkin, assumiram o controle total do projeto, previsto em contrato caso houvesse estouro de orçamento, o que efetivamente já havia acontecido. Para não ser demitido, Scott foi obrigado a encontrar soluções para tornar sua obra mais viável comercialmente.

Assim, o filme foi reeditado de acordo com o princípio de que massas afluentes às salas de exibição seriam totalmente alienadas, incapazes de perceber qualquer sutileza que exigisse o mínimo de esforço mental. Nesse angustiante processo, delegado ao supervisor de edição Terry Rawlings, cenas foram truncadas na intenção de suprir lacunas de seqüências que não seriam mais filmadas. Isto ocasionou visíveis anacronismos, que sugeriam que os personagens cometiam os mais simplórios erros aritméticos. Cenas consideradas cruciais para o sentido principal da obra foram simplesmente excluídas, ao mesmo tempo em que se filmavam com desmazelo encerramentos alternativos para que escolhessem um a ser costurado grosseiramente às soberbas imagens ensolaradas de uma natureza exuberante – na verdade descartes da abertura de “O Iluminado” (1980) de Stanley Kubrick – que seriam introduzidas nos créditos finais, embora fossem um contra- senso com a trama. Assim, criaram o final feliz e idílico para que as platéias pudessem sair aliviadas dos cinemas, mesmo que subvertesse tudo o que era subentendido na trama quanto a uma suposta devastação ambiental global. E o pecado maior, para aqueles que participaram da elaboração do projeto, foi a inserção da polêmica narrativa em off , na primeira pessoa (no caso, Deckard), que parecia querer suprir as evidentes lacunas formadas na trama. O que deveria ser subentendido pelo público através da força das imagens ou da interpretação do ator, foi entregue de forma gratuita e banal em nome de uma suposta fluidez da trama. Unindo pontas soltas em substituição à gravações canceladas, para satisfazer ao público pagante. No entanto, mesmo que na edição final a locução fosse substancialmente reduzida por um terceiro roteirista contratado às pressas, Roland

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Kibbee, o próprio Ford se mostrou extremamente desgostoso com Scott por causa de sua inclusão.

Mas a mutilação da obra, assim como a inserção da narrativa falada, não conseguiu evitar o colossal malogro nas bilheterias americanas. O que foi sustentado ainda pelas opiniões negativas na imprensa, ainda inebriada pelo sucesso retumbante da última FC de Spielberg: “E.T. O Extraterrestre” 6, que estreara uma quinzena antes e desde então, abocanhava a atenção quase que exclusiva e apaixonada da mídia especializada. Apesar de uma tímida exaltação quanto à sua proposta visual, de uma forma geral Blade Runner foi massacrado na mídia. Segundo a revista L.A. Weekly de 25/06/1982: “Assistir a este filme é viver a frustração de ver um dos filmes mais imaginativos e menos realizados deste ano – ou de qualquer ano”.7 Por sua vez, o jornal SanFranciscoChronicle estampou, em sua edição de 26/06/1982 que o filme era “uma grande decepção. [...] desconcertante, implausível, chato e opressivo. [...] Uma invenção fotográfica, uma coisa sem vida. 8” Os temidos comentários bocaaboca dos primeiros espectadores, decepcionados pela falta da ação subentendida na montagem dinâmica dos trailers e campanhas na televisão, se multiplicaram tão rapidamente, que no dia seguinte à sua estréia, as salas ficaram vazias. A sessão em que o supervisor dos efeitos fotográficos David Dryer assistiu, tinha apenas cinco pessoas. A de Isa Dick Hackett, filha de Philip K. Dick, quatro. Os produtores foram então taxativos, BladeRunner era um fracasso. O investimento total de quase 30 milhões de dólares jamais compensaria, talvez nem se pagasse, principalmente depois do fim de semana de estréia que rendeu menos de um oitavo disso. Os produtores foram então taxativos, BladeRunner era um fracasso.

1.2.1 Transformação em cult-movie

Apesar de tamanhas ingerências e do retumbante fracasso comercial, o filme se tornou um clássico instantâneo, objeto de culto e veneração em vários países onde foi exibido. Círculos inicialmente reduzidos de admiradores passaram a se

6 Curiosamente esta produção teve roteiro assinado por Melissa Matheson, então esposa de Ford. 7 BAHIANA, Ana Maria. Warner forçou Ford a gravar narração. FolhadeS.Paulo , 4 ago. 1991, p.6. 8 Ibid, p. 6.

39 multiplicar em escala de progressão geométrica. Possíveis limitações do diretor, supostamente por não ter a bagagem intelectual de cineastas autorais, foram desconsideradas, principalmente ao atribuir o uso da metáfora para se aceitar aquele final incoerente banhado pela luz do Sol. Talvez uma licença poética meio surreal, não necessariamente a realidade concreta dentro da trama. Inclusive o lacônico e frio tom da narrativa de Ford foi considerado como uma referência aos personagens melancólicos do Cinema Noir , que costumavam narrar os filmes na primeira pessoa, evidenciando a atitude descompromissada do personagem.

A alcunha Noir significa negro ou escuro em francês. Foi sedimentada pela crítica francesa para aludir à preponderância noturna nas ambientações de uma gênero de cinema norte-americano. Uma espécie de versão hollywoodiana da estética do cinema expressionista da Alemanha, que fora introduzida nos EUA por cineastas migrados de lá em decorrência do Nazismo. Por sua vez o Expressionismo Alemão nas artes cênicas, ao incentivar emoção através do jogo de luz e sombra, se fazia reminiscência da pintura barroca européia. Segundo Nazário, ao comentar sobre as características dos filmes Noir,estas

muitas vezes adquirem autonomia estética, transformando-se em elementos de um estilo barroco [...] montagem fragmentada [...] voz em off do narrador, geralmente um agente de lei, num mecanismo que cria uma empatia instantânea com o espectador [...]. Um filme negro é [...] carregado de “climas”, com um suspense peculiar, uma galeria de tipos mal encarados e uma ação centrada em lugares chaves: no submundo, em nightclubs , no bairro chinês, [...] em prédios abandonados e ruinosos, em becos iluminados por anúncios de néon. [...] É conveniente que chova ou faça frio, que haja neve ou nevoeiro e, na ausência destes elementos naturais, fumaça escapando dos bueiros e luzes incidindo por cima e pelos flancos das personagens – gente com gabardine dando-se encontrões pelas ruas. (NAZÁRIO, 1986, p. 57, 60-61).

Aludindo-se exclusivamente aos roteiros Noir , Gubern, argumenta:

[...] seria um gênero criado à partir da literatura de Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Michael Spilane, por uma necessidade política: a caça às bruxa do macarthismo baniu das telas o realismo crítico e os diretores americanos mais conscientes refugiaram-se no relativismo moral, no niilismo e na sordidez do novo filme criminal, que estraçalhava a imagem conformista e risonha da América. Este cinema mostrava “um mundo em frangalhos, povoados por criaturas depravadas, sorvidas por um torvelinho de intrigas criminais e traumas psicológicos, trazidos pela difusão da psicanálise.” (GUBERN apud NAZÁRIO, 1986, p.57).

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Da mesma forma, as falhas de montagem, que podiam limitar o entendimento da trama, foram consideradas elipses ou alusões explícitas à linguagem daquele gênero de cinema, o que corrobora o ponto de vista de Nazário:

Pode-se reconhecer um filme negro por suas características de estilo. [...] enredo ninguém entende muito bem, embora se trate de um policial onde se poderia justamente pressupor uma trama bem urdida. Mas num filme negro algo sempre escapa ao entendimento: é uma virada implausível na ação, um desvio absurdo da intriga, um traço inverossímil na psicologia das personagens, uma falha proposital no roteiro . (NAZÁRIO, 1986, p. 60, grifo nosso).

Se houve aqueles que sentiram falta de um Harrison Ford com tiradas cômicas, chicoteando e disparando lasers , houve também os que reagiram positivamente ao vê-lo sangrando sob surras de replicantes ou sendo salvo duas vezes por estes. Para cada possível deficiência na obra, encontravam-se contrapontos considerados da mais alta qualidade, muitos deles idiossincraticamente analisáveis. Se o anti-herói de Ford tivesse ares de um assassino misógino (afinal Deckard só mata replicantes mulheres, três no roteiro original e duas no filme), seria justificável diante seus comportamentos hostis. Mais do que isso, haveria a caracterização perfeita do gênero cinematográfico que Scott ressignificava para os anos 1980. Segundo Rodrigues “a atmosfera de filme noir contribui para o retrato das mulheres no filme com o estereótipo das mulheres perigosas, sem sentimentos, desonestas, sexualizadas e mortais”. 9 Uma espécie de reação à escalada feminina aos postos de trabalhos até então masculinos antes das guerras mundiais.

Releituras de gêneros do passado, alusões psicossociais, mensagens pró- sustentabilidade, referências filosóficas cruzadas com os mais recentes debates sobre os caminhos estéticos e políticos da modernidade urbana foram considerados superiores a qualquer visão já apresentada até então pela temática futurista no cinema. Uma vertente que acompanha o cinema desde o seu nascimento (como será visto nos próximos capítulos deste trabalho). Com o tempo, Blade Runner voltava em relançamentos às salas de cinema do mundo, principalmente as alternativas. Atraindo sempre um público cada vez maior, insistente em rever a obra inúmeras vezes no intuito de descobrir mais detalhes que possibilitassem novas releituras. Um filme cujas peculiaridades fizeram com que conquistasse o respeito e

9 RODRIGUES, Cassiano Terra. Apontamentos sobre Blade Runner (I). Correiodacidadania, 2010.

41 a admiração não só dos espectadores mais simples, assim como daqueles mais letrados, além de críticos (muitos em revisão de conceitos), intelectuais e cientistas. Um clássico quase instantâneo, objeto de culto e vício considerado por muitos como um símbolo pictórico de todo o espírito de uma época, do zeitgeist da década de 1980. Visto assim, não tardaram aqueles que iriam traçar paralelos do que era projetado na tela com a suposta condição de Pós-modernidade da sociedade, um conceito que se formava à época em círculos acadêmicos das ciências sociais. Na visão de muitos, o longa evidencia em cada fotograma o niilismo, a sensação de vazio e ausência de valores e sentido para a vida da sociedade humana, especialmente a capitalista. Se os simulacros humanos de Blade Runner eram apresentados com o slogan da Tyrell hiper-realmente “mais humanos que os humanos” para alavancar as vendas, o paralelo com a essência da Pós- modernidade, segundo Santos, já poderia ser traçado, pois,

[...] preferimos a imagem do objeto, a cópia ao original, o simulacro (a reprodução técnica) ao real. [...] Porque desde a perspectiva renascentista até a televisão, que pega o fato ao vivo, a cultura ocidental foi uma corrida em busca do simulacro perfeito da realidade. Simular por imagens como na TV, que dá o mundo acontecendo, significa apagar a diferença entre o real e o imaginário, ser e aparência. Fica apenas o simulacro, tal qual a fotografia a cores, embeleza, intensifica o real. Ele fabrica um hiper-real, espetacular, um real mais real e mais interessante que a própria realidade.” (SANTOS, 1997, p. 12).

Em outras palavras, aquele filme de Ficção Científica que mostrava uma situação estapafúrdia do ser humano de verdade construindo o ser humano de mentira até melhor do que o original, antes de parecer desculpa para se vender efeitos especiais, perseguições, violência e até nudez para um público ávido por diversão banal, não mostrava de fato o futuro. Mas sim o próprio presente hipertrofiado, com as imperfeições da sociedade retratadas com refinada beleza. Não tardou a se tornar escopo de inferências das teorias de Jean Baudrillard, polêmico sociólogo francês, que discute o processo de construção da realidade pela cultura de massa ou de David Harvey, geógrafo inglês marxista que usou Blade Runner como parte de uma análise materialista aos princípios teóricos que embasam o chamado “pós-modernismo.” Para este, facetas ainda do Modernismo surgidas das contradições do capitalismo. Justapondo-os:

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É inútil interrogarmo-nos se é a perda da comunicação que induz esta sobrevalorização no simulacro ou se é o simulacro que está primeiro, com fins dissuasivos, os de curto-circuitar antecipadamente toda a possibilidade de comunicação (precessão do modelo que põe fim ao real). É inútil interrogarmo-nos sobre qual é o primeiro termo, não há, é um processo circular – o da simulação, o do hiper-real. Hiper-realidade da comunicação e do sentido. Mais real que o real, é assim que se anula o real. (BAUDRILLARD, 1981, p. 104).

São (os replicantes) antes simulacros do que robôs. Foram projetados como a forma última de força de trabalho de curto prazo, de alta capacidade produtiva e grande flexibilidade (um exemplo perfeito de um trabalhador que possua todas as qualidades neces- sárias à adaptação a condições de acumulação flexível). [...] Os replicantes existem, em resumo, na corrida esquizofrênica do tempo que Jameson, Deleuze e Guattari e outros vêem como algo tão central na vida pós-moderna. Eles também se movem num espaço com uma fluidez que lhes dá um imenso arcabouço de experiência. Sua persona equivale em muitos aspectos ao tempo e ao espaço das comunicações globais instantâneas. (HARVEY, 2009, p. 278).

Notavelmente, à mesma época do lançamento de Blade Runner , Fredric Jameson, considerado "o maior crítico literário marxista do mundo", 10 proferia sua primeira conferência sobre Pós-modernidade. Onde enfatizava seus compromissos críticos embasados numa visão sobre os conflitos estéticos entre o Realismo e o Modernismo ainda presentes na sociedade. Seja porque as formas do primeiro "revivem a experiência mais antiga de um tipo de vida que não está mais entre nós no futuro já arruinado da sociedade de consumo", 11 seja porque esta contradição se torna mais radical na vivência do Modernismo.

O historiador mexicano Serge Gruzinski vê expressões da modernidade na imagética bladerunneana como referências inevitáveis ao processo histórico da formação de seu próprio país. Afinal a cidade de Los Angeles, antes de ser dos EUA, até 1847 pertencia politicamente ao México, por sua vez foi colônia espanhola até 1821. Ele considera que em seu país se travam ainda batalhas, dissimuladas nas imagens cotidianas principalmente pela mídia, entre a cultura, a ideologia dos colonizadores europeus e a das civilizações autóctones sobrepujadas neste proces- so. E nesse sentido, percebe a arquitetura neoteotihuacana das pirâmides da Tyrell Corporation como expressão disso - além de comparar essa ao poder social e econômico desta empresa da ficção com a gigante rede de TV Televisa, como uma

10 ANDERSON, Perry. Asorigensdapósmodernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.58. 11 Ibid., p, 58.

43 espécie de metáfora da dominação cultural.

[...] um dos desenlaces desta história, quando a guerra das imagens se converte em uma caçada de replicantes. [...] Blade Runner não dá nenhuma chave do futuro – a ficção científica nunca nos expõe mais que o nosso presente – sendo que é um repertório dos temas que têm se manifestado durante cinco séculos sobre a vertente hispânica, antes mexicana, do continente americano. (GRUZINSKI, 1995, p. 11, tradução nossa).

Dessa forma, foi inevitável a comparação, e posterior elevação, de Blade Runner ao panteão de obras icônicas que retratam a tricotômica relação homem, sociedade e produção de bens de consumo (geralmente em um esteriótipo de modelo fordista). Como alguns filmes de Ficção Científica, e afins, que enfatizam a estranheza do homem diante de modernidades cotidianas. Tais como as produções francesas mais intimistas como: “A Nós a Liberdade” (1931) de René Clair, considerado precursor do americano “Tempos Modernos” (1936) de Charles Chaplin, e “Meu Tio” (1958) de Jacques Tati, ou os mais aterradores, que assombram com visualidades distópicas do amanhã, como a produção alemã “ Metropolis ” (1927) de Fritz Lang, as francesas “Alphaville” (1965) de Jean-Luc Godard e “Fahrenheit 451” (1966) de François Truffaut. Além dos americanos “THX-1138” (1971) de George Lucas e “ Rollerball ” (1975) de Norman Jewison. Além disso, não faltaram as analogias com o conteúdo de grandes marcos da literatura que versa sobre o poder político vigente em anti-utopias, como “A Nova Utopia” (1891), do inglês Jerome K. Jerome, “Nós” (1924) do russo Yevgeny Zamyatin.

No entanto foram os romances mais recentes “Admirável Mundo Novo” (1932) de Aldous Huxley e “1984” (1949) de George Orwell, que também tiveram versões em celulóide, os mais equiparados com a adaptação de Scott ao livro de Dick. O grande olho que observa a poluída Los Angeles da abertura, assim como as diversas telas que pululam repetitivamente na tela de projeção, sugerindo um exercício de metalinguagem, remetem ingenuamente à onipresença da vigilância orwelliana. A produção padronizada em série de entes humanos, mesmo que simulacros, alude por vez ao processo chamado de bokanovskização do romance de Huxley, onde a instabilidade emocional indesejável aos interesses sócio-econômicos do sistema capitalista seria simplesmente extirpada.

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O filme, ao se transformar em objeto de culto para muitos, ajudando até a cunhar a expressão cultmovie (filme cultuado), apesar de seu fracasso nos EUA, levantou questionamentos sobre a cultura geral deste país. Como a de que o americano médio fosse incapaz de absorver a mensagem de um produto cujas bases culturais ultrapassem suas fronteiras políticas. Para o diretor de cinema Joseph Khan, o público norte-americano via o futuro, nos anos 1980, como a utopia prometida pelo então Presidente Ronald Reagan. Portanto, filmes que não refletissem, em suas projeções de tempos vindouros, as promessas ideológicas daquele momento político, dificilmente alcançariam o sucesso popular. Ele acredita que este seria o principal motivo do fracasso de Blade Runner .12 Principalmente porque em alguns outros países, a importância da obra foi distinguida de imediato e as exibições não foram consideradas necessariamente fracassadas.

Portanto, muito se discutiu sobre o que teria levado sua não aceitação quando estreou. Uma suposição pode ser extraída da visão antropológica de Massimo Canevacci, quando este faz uma analogia entre a estrutura de uma peça cinematográfica com a fábula. Algo que teria exercido em um passado pré-capitalista funções semelhantes ao esquema narrativo de rituais religiosos.

O rito da missa funcionou como protótipo do cinema em-si e para-si. O desenvolvimento da teogonia fascina e atrai precisamente na medida que é sempre igual. O modelo cultural forjado em nível multigeracional impele o crente, através da coerção, a repetir, a esperar a réplica dos mesmos eventos durante o drama do Gólgota, cujo modelo espiritual será reproduzido durante todas as fases do show fílmico. O fato de que também nesse caso a história reproduzida seja sempre a mesma não é algo indiferente, mas sim uma exigência indispensável, com a finalidade de mostrar como sempre reconfirmada a eterna e imutável ordem das coisas. (CANEVACCI, 1984, p. 47).

Por terem feito Blade Runner quebrar paradigmas, como a colocação da encarnação do herói americano executando uma mulher pelas costas, mesmo que artificial, podem tê-lo transformado em algo tão distinto do lugar-comum que não houve a identificação e empatia necessária das platéias e da inebriada crítica especializada, quesitos significativos para determinar o sucesso de um lançamento.

12 Cf. DANGEROUS days: making Blade Runner. Direção: Charles de Lauzirika. 2007. (214 min).

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A morfologia do cinema impõe a conclusão de que a história narrada – seu significado oculto e evidente – é sempre a mesma, e que somente o acessório pode ser uma variação socialmente aceita. A essa regra, adequou-se [...] o público espectador, impelido por uma secreta pulsão a ver reconfirmado o retorno do sempre idêntico, que não é apenas socializada na infância pela família e pela sociedade, mas que parece também confirmar a hipótese de uma gramática genética do comportamento. (CANEVACCI, 1984, p. 76).

Ainda, não importando o plano intencional por de trás da linguagem cinematográfica de cada filme produzido (o conjunto de planos, ângulos, movimentos de câmera e recursos de montagem), inclusive sua aparência estética, o que inclui fotografia, direção de arte, sonoridade, efeitos etc., nada fará sentido se não houver pressupostos contextuais que os sustentem. De acordo com a assertiva de Tudor de que “não é possível construir um sistema estético num vazio”,13 teríamos “no mínimo, um conjunto de normas estéticas tem uma relação qualquer com a forma como o seu autor concebe o seu mundo, a vida social e o papel desempenhado pelo cinema neste contexto mais alargado”.14 Ou seja, o naufrágio de Blade Runner pode ser entendido pelo fato de que os pressupostos contextuais necessários para o seu entendimento, ainda estavam para ser criados no inconsciente coletivo de seu público. E como estes seriam desenvolvidos com a sua própria ajuda (como veremos), mostram que a visão de Ridley Scott estava muito à frente de seu tempo, não no futuro propriamente dito onde a trama é alocada, mas no próprio presente de quando foi exibido pela primeira vez. Quanto a isso, Scott diz que estar a frente de seu próprio tempo é quase tão ruim quanto estar atrás. 15

Como se alinhada com a proposta cenográfica de BladeRunner , no que tange ao entrelaçamento de referências do passado com o maquinário futurístico, seria uma tecnologia analógica casada com o televisor, considerada atualmente arcaica perante os terabytes digitais do universo cibernético, que iria proporcionar sua redenção. A do videocassete doméstico. O seu advento muito contribuiu para a permanência e até retorno financeiro do malogrado sucesso comercial não somente de BladeRunner , mas também de centenas de outros filmes, principalmente através de mudanças em certos padrões antigos de comportamento em relação ao cinema como entretenimento. Com a popularização desta mídia, os anos 1980 foram palco

13 TUDOR, Andrew. Teoriasdocinema . Lisboa: Edições 70, 2009, p. 61. 14 Ibid. p. 61-62. 15 Cf. ENTREVISTA com Ridley Scott. GentedeExpressão . Los Angeles: Rede Manchete, 1992.

46 para a formação de novas gerações que passaram a ver – e a rever – filmes em casa, quando e como desejassem. Interrompendo-o quando necessário, congelando, revendo ou adiantando cenas. Muitas produções que fracassaram nas telas ganharam um fôlego extra devido aos seus lançamentos na indústria do vídeo doméstico. E Blade Runner é um dos casos mais representativos neste sentido. Quanto ao seu grande sucesso de locação, Scott atribuiu à redução do impacto sombrio de suas imagens de cinema nas telas reduzidas dos aparelhos de TV, o que teria feito a trama do filme sobressair aos espectadores. 16

1.2.2 A relação com a cibercultura

Mas o fato é que o videocassete, assim como constantes reprises na TV, que sempre davam margem à oportunas críticas revisionistas nas agendas dos cadernos de cultura dos jornais mundo afora, permitiram uma sobrevida a Blade Runner . Proporcionando releituras que lhe garantiriam certo destaque na cultura pop. Mais do que uma forma passiva, isso teria possibilitado uma contribuição ativa para a relação do mundo social com a ascensão das tecnologias digitais. Assim, considera-se uma das maiores contribuições desta fita o fato de ter sido referência visual para um movimento cultural nascido a partir do subgênero da literatura de FC do qual Dick era precursor. E que teve Bruce Sterling e William Gibson como seus principais autores, através de seus respectivos romances “Pirata de Dados” e “ Neuromancer.” Sobre o impacto que o filme exerceu sobre ele, Gibson admitiu:

Depois de assistir uns dez minutos de BladeRunner , eu rolei para fora do cinema completamente desesperado pelo seu brilho visual e sua semelhança com a “visão” de Neuromancer , até então o meu inconcluso primeiro grande romance. Além de ter sido espancado por socos semióticos, esse maldito filme parecia melhor do que as imagens na minha cabeça! Com o tempo superei isso, e comecei a sentir algum prazer, pela forma que o filme começou a afetar a aparência do mundo. Primeiro a moda, depois os vídeos de rock e até mesmo a Arquitetura. Maravilhoso! Um filme de ficção científica afetando a realidade” (GIBSON, 1992 apud MARIMAN, 1992).

16 Ibid.

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Este novo movimento incentivou o surgimento da geração de escritores e debates inflamados entre fãs e o mercado editorial. Surgiram rótulos para nomeá-lo, tais como, Neuromânticos, Novos Românticos, Nova Onda dos Anos 80, Movimento dos Óculos Espelhados ou simplesmente O Movimento. Mas o que se sacramentou foi o termo Cyberpunk, mesmo sob o risco de que sua amplitude semântica pudesse ocasionalmente gerar mal entendidos . Foi o caso do The NewYorkTimes quando o utilizou pejorativamente para designar invasores de computadores. O jornal conseguiu, dessa forma, ofender tanto a subcultura hacker 17 quanto a FC, evidenciando a “autenticidade de uma subcultura, cujo valor está diretamente ligado à legitimação dos seus participantes”. 18 De acordo com Austen, foi o escritor Gardner Dozois, que uniu as expressões do universo pop que designam a ênfase na alta tecnologia de informações com “um clima moral e obscuro e um certo no future confirmado”. 19 Sob a análise de Landon,

a parte “cyber” do nome desse movimento reconhece o seu compromisso em explorar as implicações de um mundo cibernético no qual a informação gerada por computador e manipulada torna-se uma nova fundação da realidade. A parte “punk” reconhece a sua atitude alienada e às vezes cínica para com a autoridade e o estabelecimento de todos os tipos. (LANDON, 1997, apud AMARAL, 2006, p. 4).

Inicialmente, uma reação de jovens autores à Ficção Científica tradicional despolitizada e asséptica, que “esperançosa de que o avanço da tecnologia fosse a chave dos problemas da humanidade” 20 parecia paradoxalmente presa ao passado. Pois se mostrava incapaz de dar conta da complexidade da vida humana em seus diversos aspectos. “Em vez de laboratórios de pesquisas, são as ruas, os comportamentos juvenis que servem de referências para a construção deste universo. Por isso, a sensação diante de uma obra cyberpunk é a de um futuro próximo, familiar e, portanto, muito mais aterrador.” 21 O Cyberpunk lida com situações tangíveis e de certa maneira realistas, enfocando a relação do indivíduo em sociedades factíveis com aparatos tecnológicos semelhantes aos que vêem nas

17 Os hackers desenvolvem programas de computador sem necessariamente usá-los para fins ilegais, mas não é incomum entre eles a existências dos crakers , que se especializam na invasão de sistemas alheios geralmente para atitudes criminosas. Ambas as modalidades são comuns ao universo Cyberpunk, o que fatalmente gera mal-entendidos. 18 Cf. AMARAL, A. R. VisõesPerigosas . São Leopoldo, Unirevista , v. 1, n. 3, jul. 2006, passim. 19 AUSTEN, Patrícia. Cyberpunk. SET , São Paulo, 44E.ed, fev. 1991., p. 51. 20 Ibid. p. 50. 21 Ibid. p. 50.

48 vitrines do consumo urbano. Tele-transportes, a política de impérios galácticos, travessias em portais interdimensionais, emancipação cósmica da humanidade com auxílio alienígena etc., são temas da FC clássica que passam a ficar em segundo plano. Publicado por conta de autores que se mantém firmes às tradições – o que não significa que estes ficaram repentinamente ultrapassados e desvalorizados, mas ao contrário, boa parte deles viu a injeção de idéias novas no mundo da Ficção Científica como uma oportuna revigoração do gênero, contrariando críticos que propagavam o seu esgotamento. No Cyberpunk , a sociedade passa a ser apresentada em futuros próximos ou mesmo alternativos. Onde a terceira onda das relações econômicas se manifesta em um capitalismo “informacional-global” através de tecnologias de informação, telecomunicação sem fios, transferência de dados, miniaturização eletrônica aos níveis nanoscópicos, realidades virtuais etc., muitas vezes usando o próprio corpo como suporte físico para tais atos. Implantes cibernéticos, drogas alucinógenas para a expansão da capacidade cerebral, misturados a pearcings e tatuagens que simbolizam novas sociabilidades urbanas que reconfiguram as formas de se entender as classes sociais. Justapondo-se as características gerais e específicas do movimento, temos respectivamente em McCaffery e Heuser:

paranóia; violação psíquica e sexual, manipulação da realidade, desejo de transcendência mental através das drogas, religião ou pela dança de dados por computador; decadentismo e linguagem das ruas e jargões técnicos.” (McCAFFERY, 1994, apud AMARAL, 2008).

roupas pretas de couro, óculos escuros; mutilação corporal, cirurgias, piergings , implantes, tatuagens; ilusões, alucinações; urbanismo: lu- zes de néon, chuva incessante; decadência e barulho: rock e música eletrônica industrial. (HEUSER, 2003, apud AMARAL, 2005). 22

O psicólogo e neurocientista Timothy Leary, que se tornou mundialmente co- nhecido por experiências psicotrópicas com LSD em seus alunos de Harvard, defen- dia o Cyberpunk “como uma atitude em relação ao mundo contemporâneo e à Socie-

22 Tantas características embora conceitualmente próximas, implicam em certa multiplicidade de universos, o que ocasionou subdivisões como o Biopunk , envolvendo manipulação genética e fusão homem-máquina; Splatterpunk , mais ligado à visualidade gráfica do horror e o Steampunk , que maximiza o potencial da energia à vapor da Revolução Industrial criando distopias futuristas na Inglaterra vitoriana, às vezes incorporando personagens históricos e lendários, mas geralmente ligados à tecnologia ou a FC do século XIX. Este último subgênero se desdobraria ainda em Clockpunk , envolvendo engenhos de precisão, Sandalpunk, Bronzepunk e Stonepunk , ambienta- das na Antiguidade Clássica, na Era do Bronze ou Idade da Pedra.

49 dade da Informação. Um comportamento que explora a criatividade individual através do uso de todas as informações e dados disponíveis via tecnologia”. 23 Ele parte do sentido literário para o sociológico ao ver o movimento como um “mentor por trás das transformações tecnológicas em curso, um piloto da realidade”. 24 Faz isso remeten- do etmologicamente sua matriz grega da palavra cibernética (kubernetes, piloto) e sua tradução para latim (gubernaetes, comando, governo). Desse modo, “o cibernau- ta ou " ciberpunk " é o piloto que pensa clara e criativamente, usando aplicações quântico-eletrônicas e know-how cerebral, o novo, atualizado modelo de ponta do sé- culo 21”. 25 Fora da ótica do indivíduo, Leary também atentou sobre a significância do movimento ao ponderar sobre sua ruptura com os paradigmas sociais. Interpretava isso com o simbolismo da transgressão mitológica dos limites do sensível.

O modelo clássico do Velho Mundo ocidental para o ciberpunk é Prometeu, um gênio tecnológico que "roubou" o fogo dos deuses e deu-o à humanidade. Os ciberpunks são os inventores, escritores inovadores, artistas tecnofronteiriços, diretores de filmes de risco, compositores da mutação icônica, livre-cientistas tecnocriativos, visionários dos computadores, hackers elegantes, videomagos, todos aqueles que ousadamente armazenam e guiam idéias para lá onde os pensamentos nunca chegaram antes "através de mares nunca d’antes navegados”. (LEARY, 1988 apud CAMPOS, 2003)

O Cyberpunk literário, a locomotiva de todo o processo, prefere apresentar, quase que em tempo real, a materialização dos mais mundanos aspectos do cidadão da modernidade, como o medo da violência urbana ou do descompasso tecnológico. “De uma maneira geral – e isto pode dizer algo sobre a nossa época – as histórias que se passam num futuro distante tendem a ser menos pessimistas que as que se passam num futuro próximo”. 26 O Cyberpunk , ao não se restringir à palavra escrita e se intertextualizar com a popularização digital, em pouco tempo se viu transcodificado nas mais diversas mídias, como atentou Leary. RPGs (jogos de representação), quadrinhos e o cinema, principalmente através de longas como Akira (1988), de Katsuhiro Ôtomo, “Johnny Mneumonic ” (1995), de R. Longo e a trilogia “Matrix ” (1999, 2003, 2003) de Larry (Lana) and Andy Wachowski.

23 Cf. AMARAL, 2006, op. cit., p. 6. 24 Ibid, p. 6. 25 CAMPOS, Augusto de. Do caos ao espaço ciberal. FolhadeS.Paulo , 9 nov. 2003. Mais!, p. 7. 26 FIKER, R. Ficçãocientífica:ficçãociênciaouumaépicadaépoca? Porto Alegre: L&PM,1985, p. 52.

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Blade Runner , em conjunto com boa parte da obra de Dick, assim como a publicação de revistas que abordavam cultura e tecnologia sob perspectivas revolucionárias, como a americana Wired , forneceu o arcabouço teórico para a revisão de antigos conceitos e a formação de mentalidades em novas gerações de usuários de uma tecnologia cada vez mais incorporada. Uma cibercultura que apóia, ou mesmo incita, atitudes explícitas e radicais, como a atividades crackers , diante de barreiras ligadas à propriedade tecnológica, particularmente a de programas de computador. As novas tecnologias, assim como a difusão da informação e cultura não deveriam ficar sob a tutela de instituições governamentais, científicas, militares ou mesmo comerciais. Mas sim sob domínio público, de conteúdo livre com acesso irrestrito a todos, eliminando qualquer honorário ligado a direitos autorais.

Devido às apropriações e repetições temáticas inevitáveis e desprovidas de profundidade de conteúdo por parte de autores mais preocupados em suprir a demanda consumista, o fim do movimento Cyberpunk foi anunciado no início dos anos 1990. Assim como os movimentos Hippie e Beatnik , deixaria seqüelas que seriam entendidas como Pós-Cyberpunk . Nesta nova estética literária, surge o engajamento social, político e ecológico dos personagens, que não mais possuem implantes biônicos, mas orgânicos e nanotecnológicos em meio a tecnocracia distópicas. No entanto, houve quem não distinguisse esta nova tendência da antiga, considerando o Pós-Cyberpunk apenas um rearranjo de outros elementos há muito comuns à Ficção Científica. Uma nova embalagem para se parecer atraente para os consumidores, sempre ávidos por novidades que justificassem suas vidas sociais. 27

Simultaneamente a isso, a internet saía dos meios militares e acadêmicos para mudar a face do mundo. Foi um terreno propício para as atitudes cyberpunks , que se refletem até hoje em situações tão corriqueiras como copiar um DVD ou baixar música na internet sem pagar por isto. Tudo mudava em função das novas tecnologias digitais e dos processos de miniaturização da eletrônica. Se na ficção, uma invasão alienígena é detida através de um vírus de computador no filme “Independence Day” (1996), de Roland Emmerich, no mundo real a instalação de softwares anti-vírus no computador pessoal passa a ser tão corriqueiro quanto usar preservativo para se evitar contágio pelo vírus HIV.

Referente a isso, o grande intercâmbio de informações científicas necessárias

27 Cf. AMARAL, 2006, op. cit., p. 6.

51 ao desenvolvimento de soluções para diversos problemas que afligem a sociedade do limiar do terceiro milênio, sejam eles na área de saúde, contra-terrorismo, ambiental etc., fez com que a internet realmente saísse dos ambientes restritos das instituições de pesquisa avançada e se transformasse em ferramenta essencial para o dia-a-dia. Dessa forma, entre todas as transformações sociais que a tecnociência impôs à sociedade, a disponibilização instantânea da informação foi a que mais auxiliou o cidadão comum em suas pesquisas domésticas.

Isso colaboraria decisivamente para a fixação de Blade Runner como o grande signo de uma época alardeada como pósmoderna ou como o prenúncio das significativas transformações que estariam por vir, principalmente através do advento e posterior acesso global à internet. Por conseguinte, a web se tornou o motivo para o grande deleite dos entusiastas de Blade Runner , pois nesta estão disponíveis inúmeros endereços eletrônicos dedicados à obra de Scott e Dick. São milhares de homepages,blogs, comunidades e fóruns de discussão que dissecam apaixonada- mente, em diversos idiomas, os mínimos detalhes da obra. E com a disponibilização de documentos relativos à produção (roteiros alternativos, fotos, desenhos etc.), assim como cenas excluídas, eventos e convenções de fãs, entrevistas com os atores e realizadores e até sugestões de rotas turísticas para se visitar, em Los Angeles, algumas locações reais usadas na filmagem.

1.2.3 Replicando-se em novas versões

Em 1988, incidentes inesperados colocaram Blade Runner no caminho do cinema autoral e lhe deram uma sobrevida. Naquele ano, começou a circular um boato entre os fãs de que uma suposta versão um tanto diferente de BladeRunner teria sido exibida por engano em uma retrospectiva em Los Angeles. Os executivos da Warner presentes na platéia, ao perceberem o erro, teriam exigido a imediata interrupção da exibição. 28 O que parecia ser mais uma lenda urbana no amplo “folclore” sobre aquela película se materializou, no entanto, numa extraordinária ressurreição e ressignificância de sua proposta. Três anos depois, o fã Josh Crendall, um estudante de Artes e Culturas Internacionais da Universidade da

28 Cf. BAHIANA. A. M. Estudante de 23 anos descobre a versão original de “Blade Runner”. 1991, p.1.

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Califórnia de Los Angeles (UCLA), dedicou-se integralmente durante três meses na caça daquela suposta versão. Com o auxílio do escritório de Scott, chegou a Bill Grant e Michael Arick, responsáveis por um setor da Warner, que encontraram a referida cópia. Na verdade se tratava de uma montagem feita às pressas para as previews. Apesar da burocracia e da má vontade inicial da Warner, Crendall conseguiu sua liberação para uma única e exclusiva projeção no festival multimídia LosAngelesPerspectives. A hoje mítica WorkprintVersion foi finalmente projetada no Fairfax Theater, apresentando uma montagem com algumas cenas não aproveitadas, trilha sonora parcialmente diferente e exclusão não apenas da locução, mas de todo o idílico final feliz. Foi o suficiente para que a imprensa mundial alardeasse que o filme admirado por milhões de espectadores era na verdade um filme falso, um simulacro, tal qual os próprios replicantes. Conseqüentemente Ridley Scott se sentiu à vontade para revelar à imprensa as imposições que se sujeitou para a finalização do que consideravam sua obra-prima.

Diante desta promoção surpresa, a Warner resolveu relançar no ano seguinte para cinema e home video o longa-metragem teoricamente do jeito que Scott desejou ter feito. No entanto, naquele momento o diretor estava envolvido simulta- nea-mente com dois longas-metragens, a pré-produção de “1492 - A Conquista do Paraíso” (1992) e a finalização de “Thelma & Louise” (1991), que se converteria em seu primeiro grande sucesso desde sua Ficção Científica “ Alien – O Oitavo Passageiro” (1979), proporcionando uma virada em sua carreira. Por isso, transmitiu as diretrizes daquele novo BladeRunner para Les Healey, o assistente de edição da versão original e restaurador Michael Arick, o mesmo que ajudou Crendall. Esta ficou conhecida como a segunda versão do longa, a chamada Director’s Cut (no Brasil, Versão do Diretor) . Na verdade, ao se computar as duas diferentes versões para as previews de março e maio de 1982, o lançamento oficial nos EUA, uma versão mais violentamente explícita para as salas européias e uma quinze minutos menor para a TV americana (1986), esta seria a sexta versão do filme.

Com toda a nova celeuma sobre alterações que ressignificaram drasticamente o sentido da obra, a Versão do Diretor fez sucesso mundial a partir de seu lançamento, em setembro de 1992. Finalmente enchia os cofres de seus investidores além de alcançar o aval de uma arrependida crítica norte-americana, que aproveitou a oportunidade para um mea culpa que muito agradou a Scott. Além disso, foi

53 inevitável a comparação da visualidade daquela Los Angeles fictícia com as conseqüências da onda de violência racial devido à absolvição dos policiais envolvidos no espancamento do taxista Rodney King, algo que já acontecia espontaneamente desde este evento, ocorrido quatro meses antes. Não foi incomum manchetes na imprensa que faziam referências diretas da realidade com a suposta antecipação que o filme apresentou, tais como:

“Há regiões da cidade que parecem que serviram de cenário para BladeRunner ”, observou o jornal ArizonaRepublic . “A atmosfera da Los Angeles de nossos dias parece com a do filme de Ridley Scott, onde o terror urbano impera após a quebra de uma espécie de con- trato social”, disparou o SanFranciscoChronicle . “Los Angeles corre o risco de se degenerar num tipo de Blade Runner pós-industrial”, apostou o ChristianScienceMonitor. (ALMEIDA, 1992, p.6).

Como era de esperar, seu lançamento no Brasil em março de 1993, dividiu a horda de fãs e curiosos que acudiu aos cinemas. No entanto, mais uma vez a obra polemizava. Alguns pediram o dinheiro de volta nas bilheterias alegando que o filme era praticamente o mesmo que era constantemente reprisado de graça na televisão (o que levou o Cine Gazeta de São Paulo a improvisar um cartaz manuscrito em sua bilheteria informando que havia diferenças quanto à primeira versão). Já o crítico Nelson Brissac Peixoto, que admitiu ter se emocionado com a nova versão, declarou: “É a vitória do cinema de autor. O personagem principal se aproxima dos outros por ser replicante. Ele é tão perdido quanto os andróides!” 29 Na imprensa, fãs famosos divulgavam quantas vezes já tinham assistido ao filme, como Bruna Lombardi (18 vezes) ou Marcelo Nova (“de 20 a 30 vezes”) ou a alegria de ver Deckard sob nova perspectiva, como resumiu Rita Lee: “Oba! Harrison Ford novo!” 30

Para alívio de Harrison Ford, foi excluída a famigerada narração em off , assim como o incoerente final paradisíaco. No entanto, restavam coisas que ainda incomodavam aos apreciadores mais atentos da obra de Scott. Estranhamente, os erros de continuidade ainda permaneciam, assim como a falta de acabamento em alguns efeitos e até erros grosseiros de filmagem e sincronia de áudio. Mas o que motivou grandes controvérsias na imprensa e crítica cinematográfica mundial, por ser a mais destacada variação, foi a inserção da cena de poucos segundos, em que

29 CALIL Ricardo. Culto a “ BladeRunner ” volta com nova versão. FolhadeSãoPaulo . 1993 p. 7. 30 Ibid. p. 7.

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Deckard sonha acordado com um unicórnio correndo em uma floresta. O que dava a entender, ao se dialogar com a cena final em que ele encontra um origami deste animal feito por Gaff, que o próprio caçador de andróides seria também um replicante, pois a polícia teria arquivos com suas memórias e sonhos, o que indicaria implantes artificiais como nos replicantes. E isto realmente mudaria o sentido do filme. Pois Deckard poderia ser considerado também um replicante usado pela polícia para caçar outros replicantes. Este novo significado teria melhorado o filme para uns, ao passo que para outros, teria piorando. O sentimento de traição, para os mais radicais, ou o de ser vítima da mais tosca manipulação da poderosa indústria de entretenimento norte-americana em busca de lucro fácil, suscitou os mais acalorados debates sobre a própria natureza do cinema, quase tanto quanto a de Deckard ser ou não um andróide semelhante aos que ele caçava. 31

Apesar da garantia pessoal de Scott que aquela pequena cena do unicórnio foi filmada na Inglaterra, durante a pós-produção de BladeRunner , muitos acreditam que ela fazia parte da pré-produção de seu filme posterior, a aventura mitológica “A Lenda” (1986). Como um artista querendo retocar sua obra mesmo após a conclusão, ou como um diretor esperto querendo valorizar seu trabalho impondo-lhe um conteúdo mais intelectual, o fato é que muito se discute se a questão da identidade do protagonista já havia sido colocada em pauta antes. Ao transformar sua obra, estruturalmente fechada em si mesma, em uma produção de final aberto, Scott provavelmente pleiteava algo como a quase unanimidade de crítica obtida por seu conterrâneo Stanley Kubrick através de “2001 Uma Odisséia no Espaço” (1968), para muitos, o mais audacioso filme de FC de todos os tempos. Se naquele os espectadores teciam suas próprias interpretações quanto ao final metafísico, no novo final de BladeRunner , que remetia à visão do unicórnio, proporcionava um campo altamente profícuo para discussões sobre o que seria afinal a identidade de alguém. A questão da natureza da identidade do protagonista ser ou não um simulacro de ser humano causou polêmica e ainda é assunto de muito debate entre cinéfilos e acadêmicos. Se antes Deckard era visto como um humano superior aos demais por

31 Deckard é um ser humano real tanto na publicação original de Dick – embora o problema da identi- dade de seus protagonistas seja lugar-comum em sua obra – quanto nas incontáveis versões do roteiro de Hampton Fancher, roteirista e um dos produtores. No entanto, diversos elementos ligados a Deckard espalhados pela trama, que a princípio pareciam apenas composição estética ou mesmo deslizes da fotografia, como o gosto por fotos e lampejos bioluminescentes em suas pupilas, podem tranquilamente ser interpretados como pistas sobre sua suposta não-humanidade.

55 ter conseguido ver o mundo pelos olhos dos replicantes, agora isso se justificava simplesmente porque ele também seria um ente artificial. Uma criação superior aos seus criadores. Se antes a humanidade tinha uma esperança, com esta revelação e o fim abrupto da trama com uma porta batendo na cara do espectador, parecia encerrar secamente a questão batendo-se um martelo para o fato da humanidade não ter mais saída. Afinal, a lição aprendida por Deckard ao longo do filme em sua expiação, de pouco valeria para os homens, visto que ele não seria um destes.

Talvez por isso, Harrison Ford revelou que sempre se opôs à propensão de Scott em tornar seu personagem não-humano, pois poderia deixar as platéias sem alguém para torcer. Significando que, ao se eliminar o referencial empático, poderia se reduzir drasticamente à interação do espectador com o filme. Consciente que este transtorno já teria levado certas produções ao fracasso, Scott contornou-o deixando a revelação para a última cena de sua Versão do Diretor, o que não evitou a sensação de traição por parte de Ford, segundo o próprio, em entrevista concedida à Sammon à Empire Magazine:

Pensei que tínhamos resolvido esse problema de replicante no início, antes de começarmos a filmar. Mas no final da produção, quando filmamos a cena que Deckard encontra o animal [unicórnio] em origami fora de seu apartamento, eu disse a Ridley, "Que p[...] é essa que você está fazendo, cara? Quer dizer que Deckard é um replicante, não é? Vem cá, você não disse que a gente não ia fazer desse jeito! Achei que isso já estivesse resolvido." Sim! De novo, achei que tinha um acordo com Ridley, antes de começarmos [as filmagens], sobre Deckard não ser um replicante. Mas ele devia ter ainda tinha algumas reservas quanto a isso. Ou talvez Ridley desejasse as duas visões. (SAMMON, 2007, p.126, tradução nossa).

De qualquer forma, as inferências sociais e filosóficas à obra-prima de Ridley Scott foram também revistas, adaptando-se àquela nova ressignificação.

A revisão feita na segunda versão do filme é um ponto de ultrapassagem dos valores da modernidade pelo deslocamento da perspectiva original. O livre arbítrio do diretor altera a interpretação que ele mesmo tinha construído. Para Ridley Scott, Deckard é ho- mem-prótese e o Nexus-6, Roy, é uma prótese humanizada. Ambos, na Versão do Diretor, dividem o horizonte da técnica com a musa- andróide Rachael: feminina, insegura, sensível. Ela é o inverso das andróides fêmeas Nexus-6: sedutoras, guerreiras, insensíveis. O moralismo darwinista foi a eliminação de toda a geração defeituosa para justificar a fuga, rumo ao desconhecido, de Deckard e Rachael, que sobrevoam a Los Angeles, oriental e globalizada, sob a trilha do saxofone de Vangelis [sic!]. (MARTINS, 2002, p. 43).

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Todavia, nem mesmo os fãs mais ardorosos e o diretor se contentaram com a Versão do Diretor. Ridley Scott, que aos poucos solidificou sua carreira de diretor, e também de produtor, nos EUA, dava indícios em entrevistas de que ainda desejava retornar à sua obra-prima no intuito de lapidá-la ainda mais, desejando levá-la aos limites da perfeição.

De fato, desde os grandes sucessos de “Thelma & Louise” e principalmente “Gladiador” (2000), Scott se transformara em um dos mais expressivos e rentáveis diretores e produtores do cinema e TV americanos, com inúmeros sucessos de público e crítica, que o dotaram de autonomia e poder na indústria cinematográfica americana. Portanto, não foi tecnicamente complicado para ele ter acesso legal para retocar sua obra-prima, inclusive por que poderia fazê-la render ainda mais para os detentores legais de seus direitos. Evidentemente isto deve ter sido algo facilitador para a viabilização do projeto pela BladeRunnerPartnership .32

Eis então, que era lançada em 2007 BladeRunner–TheFinalCut (no Brasil: A Versão Final). Uma nova montagem restaurada digitalmente e desta vez conduzi- da pessoalmente por Scott como comemoração ao aniversário de 25 anos de lança- mento da película. A exibição em apenas algumas salas de Los Angeles e Nova York e no badalado Festival de Veneza daquele ano, serviu mais como jogada de marketing para as recheadas edições de colecionador em DVD e blu-ray (que vinham embaladas em maletas que simulavam a que Deckard usava para transportar a máquina Voight-Kampff). Eram folhetos, cartões com desenhos de produção, miniaturas e boxes supercompletos com quase 27 horas de informação em vídeo, que além de apresentarem as outras versões do filme, incluía ainda a mítica WorkprintVersion e uma inédita versão de 46 minutos montada apenas com cenas excluídas. Entre dezenas de documentários, entrevistas, testes de filmagem, havia o precioso momento em que se via em uma claquete a data da filmagem da cena do unicórnio, corroborando que Scott realmente a havia filmado na época da pós-produção de BladeRunner , e não posteriormente para “A Lenda.” Essa Versão Final apresentava realmente a correção de quase todos os erros conhecidos e até alguns outros imperceptíveis para a maioria dos fãs. A obra foi “consertada” inclusive

32 Após acertos legais com co-produtores executivos Bud Yorkin e Jerry Perenchio, detentores dos direitos sobre o filme, Scott obtém o auxílio e empenho pessoal do produtor Charles de Lauzirika para catalogar 977 caixas de rolos da produção original para o trabalho que duraria mais de seis anos.

57 com a regravação de toda a cena da morte de Zhora, com a participação da mesma atriz de 25 anos antes. No caso de Harrison Ford, que durante anos renegou o filme, seu próprio filho, Benjamin Ford, foi usado para a regravação de uma cena que apresentava erro de sincronia labial com o áudio. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Scott comentou sobre o lançamento da Versão Final:

Em BladeRunner , que agora está sendo lançado com a versão que eu queria desde o começo, eu não era produtor e estava começando a carreira de diretor, não tive como não ceder às pressões do estúdio. Por isso, neste ano, que é o aniversário de 25 anos do filme, decidi comemorar com o lançamento da minha versão definitiva. [...] Aquela segunda edição [a Versão do Diretor] foi feita meio às pressas. Todo mundo sabia que o final do filme tinha sido alterado, mas ninguém tinha visto a versão original. Quando o estúdio resolveu lançar a Versão do Diretor, eu estava ocupado com outros projetos e não tive tempo de procurar todos os takes que queria incluir, então só alteramos o final. Mas eu não fiquei satisfeito, aquele é um filme muito importante para mim, provavelmente o que mais me marcou, por tudo que deu certo e por tudo que deu errado, então quis refazer, desta vez com tempo e dedicação. [...] Esse é o filme que eu queria ter lançado em 1982. (SCOTT, 2008 apud RIBEIRO, 2008).

Como indício de que as mentalidades realmente mudaram na Warner Bros ., o gerente geral e vice presidente da divisão de home video , Jeff Baker, chegou a comentar sobre este lançamento, aludindo a uma situação bem semelhante à que havia ocorrido à época do surgimento da tecnologia dos aparelhos de videocassete. Ao comentar que aquele lançamento atendia à milhares de pedidos feitos anualmente, complementa: “Várias pessoas me disseram que quando surgiu o DVD [a tecnologia], BladeRunner foi absolutamente o primeiro título que eles queriam – tanto que o compravam antes mesmo de seus primeiros aparelhos de DVD!” 33

Apesar de todo o apelo comercial a que sempre esteve sujeito, de sua feitura às promoções de seus relançamentos reeditados, o longa-metragem conseguiu atingir status de cinema de autor surgindo sempre nas listas dos melhores filmes de todos os tempos, independente do gênero. Mesmo anos depois do lançamento original, o filme (não DADoES) receberia três continuações literárias em forma de romances por J.W.Jeter (um amigo pessoal de Dick que tentava retificar as falhas das primeiras versões do filme dando-lhes sentido nos livros), um premiado game para plataforma PC ( Blade Runner , 1997), adaptações em quadrinhos, etc. Blade

33 BAKER, Jeff apud FOSTER, David. Blade Runner: The Final Cut ...Homecinema,8set.2007 . (tradução nossa).

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Runner influenciou dezenas de obras, seja por sua estética ou trama. É ainda referenciado, ou escancaradamente copiado até os dias de hoje, em diversos outros filmes e séries, videoclipes, comerciais, RPGs, jogos eletrônicos, quadrinhos, músi- cas, vestuário, brinquedos e miniaturas, principalmente no que tange à sua visualida- de retro-futurista. Além disso, é tema de diversos livros, documentários e publicações acadêmicas.

Mas é na internet que se encontra a fonte da maioria das informações relativas ao filme. E ainda é o principal suporte para a exibição de continuações não oficiais, sob a forma de trailers e curtas-metragens feitos por fãs peritos em filmagem, montagem e efeitos digitais. O próprio Ridley Scott, em parceria com seu irmão, o diretor Tony Scott, planeja algo semelhante para a web, mas com conotações visivelmente mercadológicas – algo que parece estar sempre vinculado à proposta e a execução de todo o projeto BladeRunner . No caso, uma espécie de seriado em tempo real dentro do universo do filme, patrocinado através de uma forma de merchandising que permite testar produtos interativamente com internautas. No momento, este projeto, batizado de Purefold , se encontra paralisado, supostamente à espera dos investimentos por parte de empresas ligadas à produção de bens de consumo, principalmente utilitários que necessitem de vinculação com o futuro. Mas que provavelmente ganhará impulso após a estréia, anunciada para 2011, da refilmagem de “Admirável Mundo Novo”, a cargo de Ridley Scott, um retorno à temática bioética de BladeRunner através da nova adaptação do romance de Aldous Huxley (citado na seção anterior).

Assim, Blade Runner freqüentemente retorna à mídia sem que nunca houvesse realmente se distanciado dela. Desde o seu lançamento, sempre foi reapresentado, seja em sessões de meia-noite em cinemas alternativos ou em relançamentos oficiais. Angariando cada vez mais admiradores que não se importavam em desembolsar dinheiro para adquirir cópias em qualquer nova mídia que surgisse no mercado, comumente apresentada como a versão definitiva. Replicando-se e se adaptando à evolução dos tempos, restaurado com o auxílio da tecnologia digital, Blade Runner sempre ressurge. Dessa última vez, como a portentosa TheFinalCut , a versão pretensamente definitiva do diretor, mesmo que no fundo seja um produto antigo, porém em nova embalagem ao gosto dos novos consumidores das mídias digitais. Ajudando a encher os cofres do estúdio ao mesmo

59 tempo em que resgatava para as novas gerações as discussões de mais de duas décadas sobre o direito que teria o homem de, em meio um capitalismo assumidamente selvagem, construir um corpo artificial, dar vida a este e, como um vírus, encurtar seu tempo de duração. No entanto, BladeRunner se transforma em uma obra ampla e imortal, passando no teste do tempo. Uma trama desenvolvida em cinco montagens fílmicas (ou sete, dependendo do rigor da contagem), 34 o que acaba por criar, para os espectadores que acompanharam todo este desenrolar, um filme à parte, etéreo, com trechos de uma versão ou de outra, com ou sem a narrativa em off , com ou sem final feliz.

E a crescente popularização de programas de edição digital na internet, que emulam o profissionalismo cinematográfico em computadores domésticos, certamente ainda virá a proporcionar novas formas de assistir a BladeRunner.

34 Em teoria, existem três versões para BladeRunner. A Original (1982), a do Diretor (1992) e a Final (2007). Na prática, a WarnerHomeVideo trabalha oficialmente com cinco, pois inclui também a de Trabalho (1982) e a Internacional (1982). No entanto, fãs mais radicais ainda consideram a versão SneakPreview de SanDiego (1982) e a versão amputada para TV (1986), elevando-as para sete.

CAPÍTULO II FICÇÃO CIENTÍFICA E O REVERSO DA UTOPIA

No capítulo anterior destacou-se, entre outras coisas, a conturbada produção do objeto cinematográfico Blade Runner, sempre correndo no fio da lâmina que separa as conceituações entre cinema de autor e indústria cultural. Neste capítulo será apresentada uma visão parcial sobre parte de sua sustentação conceitual, o gênero literário e cinematográfico Ficção Científica e algumas de suas conotações sociais. Com ênfase para a forma como o autor do romance original se inseria neste gênero, e como a FC colabora, mesmo que indiretamente, com a percepção de dois sintomas indicativos de transformação social, que de certa maneira, sempre tiveram atrelados aos ideais de um futuro melhor. Ideais que nem sempre foram acompanhadas de reflexões éticas sobre a possibilidade de suas materializações. O primeiro se relacionando com o antigo sonho de que a humanidade poderia prescindir do trabalho braçal em prol do intelectual e do ócio, ao passar a responsabilidade deste para máquinas cada vez mais especializadas e inteligentemente auto-suficientes. Ou seja, algo que aos poucos se aproximaria do que a fantasia há séculos trata por seres robotizados e similares.

O segundo ideal, partindo de certa forma do primeiro, estaria relacionado com a não aceitação passiva das contradições existentes dentro das sociedades ao longo do devir, e a conseqüente mentalização de que a inferência de alterações nestas, no sentido de melhorar os aspectos fundamentais da vida humana, poderia apontar para a constituição de coletividades politicamente perfeitas. Seria a relação da Ficção Científica com a permanência dos pensamentos utópicos, ao fomentá-los através das anti-utopias sociais (tratadas aqui como distopias), visualizadas principalmente através das sociabilidades humanas em contextos metropolitanos de tempos futuros.

Esses ideais, nevrálgicos no filme Blade Runner e no romance em que livremente se inspira, serão abordados neste capítulo em paralelo à expansão do gênero FC – literatura e cinema – no intuito de melhor fundamentar os propósitos desta pesquisa.

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2.1 A expansão literária e cinematográfica da Ficção Científica

O filme de Ficção Científica BladeRunner é adaptação de uma obra literária romanesca, que apresenta em seu arcabouço a formação técnica e intuitiva do autor, assim como o resultado de diversas experiências similares ao longo da tradição de se contar histórias. O romance, assim como outros produtos da criação humana, pressupõe que de alguma forma haja a expressão, entre outras coisas, da sociabilidade de quem o escreveu. E por mais que esteja imbuído de conceitos e opiniões próprias, de alguma forma refletirá a sociedade em que vive o autor, mesmo que esta seja parcialmente camuflada pela ficção. Na Teoria do Romance, tanto na visão de George Lukács, quanto na de René Girald, o romance é basicamente a história de uma investigação degradada em busca de valores autênticos em um “mundo também degradado, mas em um nível diversamente adiantado e de modo diferente”. 1 Tais valores são aqueles que organizam, geralmente de modo implícito, o universo específico onde se desencadeia a ação romanesca, e não necessariamente o do leitor. Portanto, a trajetória empreendida pelo BladeRunner Rick Deckard, em sua caçada aos replicantes e os questionamentos que surgiram neste processo, explicitadas quase que didaticamente nas versões narradas do filme, se adequa de forma contundente à análise de Lukács, que Goldmann analisa:

[...] um personagem problemático cuja busca degradada e, por isso, inautêntica de valores autênticos num mundo de conformismo e convenção, constitui o conteúdo desse novo gênero literário que os escritores criaram na sociedade individualista e a que chamaram de “romance.” (GOLDMANN, 1976, p.9).

Mais do que em outros formatos, o romance se relaciona com a estrutura social do capitalismo, pois representaria no campo das letras, a passagem para a economia dos monopólios e trustes através do processo de dissolução do personagem. 2 A estrutura romanesca, assim como diversas criações e experimenta- ções culturais da transição do século XIX para o XX, constituem ainda o suporte de parte considerável da indústria cultural e entretenimento dos dias atuais, principal- mente pelos massmedia – denominação sociológica para os meios de comunicação de massa. A estrutura básica do romance ainda é perceptível, ora mais, ora menos,

1 GOLDMANN, Lucien. ASociologiadoRomance . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p.8. 2 Cf. Ibid. p. 221.

62 nos lançamentos literários de não-ficção, assim como no argumento de dramatizações para as mais diversas finalidades, peças teatrais, filmes, telenovelas, reportagens, jogos eletrônicos, campanhas publicitárias e até mesmo eleitorais.

Apesar de todo o processo que foi a construção coletiva e comercial do produto cinematográfico BladeRunner , e sua posterior metamorfose rumo ao cinema de autor – principalmente pelo revisionismo conceitual promovido pelo diretor através do lançamento de novas versões e projetos para o universo expandido – a estrutura romanesca permanece. Pois fora projetado inicialmente no intento de ser um investi- mento financeiro sob a forma de diversão cultural para as massas. E isto implica em não fugir do formato clássico-realista onipresente na produção de Hollywood, “deriva- do da adoção das técnicas e pressupostos realistas do romance e do teatro novecen- tistas”. 3 O cinema visto como o grande espetáculo da indústria cultural se constrói sobre a estrutura do romance. Se seu argumento é desenvolvido sob a forma de roteiro adaptado, esta característica se torna ainda mais patente ao espectador.

Edgar Morin relata que o primeiro aparelho de cinema, o cinematógrafo inven- tado pelos irmãos Lumière na França do final do século XIX, conseguia tamanha fide- lidade ao representar a realidade, que poderia ter proporcionado um caminho voltado exclusivamente para as aplicações científicas. Mas desde cedo, ainda naquela épo- ca, já produzia imagens para a contemplação. 4 “O que equivale a dizer que as proje- ta como espetáculo.” 5 Não obstante, o cinema e as aplicações científicas nunca deixaram de caminhar juntos, principalmente com o uso de equipamentos cada vez mais sofisticados em aplicações científicas. Como o registro de fragmentos mínimos do tempo, paisagens submarinas ou espaciais. Recursos que transmutam com muita facilidade para a dramaturgia romanesca da representação clássico-realista do cine- ma. As câmeras especiais desenvolvidas para filmagens subaquáticas e tridimensio- nais de duas obras de Ficção Científica, “O Segredo do Abismo” (1989) e “Avatar” (2009), ambas de James Cameron, são exemplos recentes dessa interatividade que reforçam que este gênero ajuda a não se distanciar do propósito apontado por Morin.

É no universo da Ficção Científica que muitas aplicações de estudos científicos ainda na fase teórica podem primeiro tomar forma. E podendo já trazer à tona possíveis questionamentos de ordem ética, sócio-econômica, política etc. que

3 CONNOR, Steven. Culturapósmoderna . S. Paulo, Loyola, 1992, p. 142. 4 Cf. MORIN, Edgar apud SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. Comunicaçãoeciência . 2008, p.22. 5 MORIN, Edgar. Ocinemaouohomemimaginário . Lisboa: Moraes, 1980, p, 19.

63 tais aplicações poderiam suscitar caso venham realmente a acontecer. Mesmo que em sua versão cinematográfica, muitas vezes seu potencial seja minimizado em decorrência de uma filosofia empresarial de que o público consumidor de filmes fosse incapaz de percebê-lo, principalmente na cinematografia antiga. Diferente do que ocorre atualmente diante produções milionárias hollywoodianas que atingem cifras de centenas de milhões de dólares, 6 isto fez com que este gênero ficasse associado, por muito tempo, a produções baratas de nível intelectual baixíssimo. Hollywood usou desta conduta para produzir atrocidades científicas em seus filmes, já perceptíveis nos próprios títulos. Como as produções: “ Fire Maidens From Outer Space ”7 (1956) de Cy Roth, “Papai Noel Conquista os Marcianos” (1964) de Nicholas Webster e “Jesse James encontra a Filha de Frankenstein” (1966), de William Beaudine. Faziam parte de um tipo de produção, que se estendia aos mais diversos gêneros, rotuladas simplesmente como “B.” Grandes diretores e roteiristas começa- ram suas carreiras em filmes B. O que fez com que algumas fitas enfim apresentas- sem argumentos inteligentes e marcantes, como em “O Dia em que a Terra Parou” (1951) de Robert Wise e “O Incrível Homem que Encolheu” (1957) de Jack Arnold, Ficções Científicas hoje clássicas. Assim mesmo, segundo Capuzzo:

Um dos aspectos mais curiosos na ficção científica B, nos anos 50 é o fato de que o caráter de especulação do futuro se encontra apenas na encenação visual, ou seja, na indumentária e na cenografia. O comportamento dos personagens referenda um cotidiano por demais familiar, sendo cientistas, oficiais militares, iniciativa privada e tripulantes de aeronaves, signatários dos mais comuns dos mortais; agem de acordo com o universo que o cinema supõe ser o do espectador médio. (CAPUZZO, 1990, p. 29).

Tal condição fez com que ocorresse certa estigmatização da Ficção Científica, que se estendia desde a primeira metade do século passado. Época em que inclusi- ve suas produções literárias sérias chegavam ao público através de publicações baratas vendidas em bancas de jornal nos Estados Unidos. Seguiam o mesmo padrão de publicações das aventuras policiais e de faroeste, o do formato das populares pulp magazines , revistas mal aparadas impressas em papel barato de

6 O filme de Ficção Científica norte-americano “Avatar”, de James Cameron, teria custado em 2009, cerca de 280 milhões de dólares, cifra que o transforma em uma das produções mais caras da história do cinema, investimento que foi recuperado em menos de um mês de exibição. E em apenas 39 dias após a estréia oficial, o filme tornou-se recordista absoluto de bilheteria, alcançando o bruto mundial superior a dois bilhões e meio de dólares. Fonte: . 7 Em português: Virgens de Fogo do Espaço Sideral (tradução nossa)

64 polpa de madeira, já feitas para não durarem muito. No caso das que continham Ficção Científica, apresentavam capas coloridas com imagens sensuais, geralmente com donzelas voluptuosas em sumários trajes espaciais, visando objetivamente atingir um público alvo jovem, essencialmente masculino. Estranhamente, muitas vezes a arte da capa não se relacionava diretamente com os conteúdos dos textos. Ou seja, não se escondia o caráter de indução ao consumo. O escritor russo, naturalizado norte-americano, Isaac Asimov, que tem seu nome associado ao que de melhor já foi publicado no gênero, especialmente através de sua prolífica produção – que chegou a 506 publicações, incluindo divulgação científica 8 – relata que nessa época “não havia livros de ficção científica, nem antologias ou editoras que trabalhassem com a reimpressão de obras do gênero. Uma história ficava à disposição de seus compradores durante um mês e, a partir de então, desaparecia para sempre, exceto nos sótãos de algum colecionador”. 9

Nem mesmo uma denominação para o gênero existia oficialmente. Romances de grande sucesso editorial daqueles que mais tarde seriam considerados os pionei- ros do gênero no século XIX e aurora do XX, o francês Jules Verne e o inglês Herbert George Wells (ou H.G.Wells) eram popularmente divulgados como “fantasias científi- cas.” A denominação Ficção Científica, só surgiu em 1929, por influência de , editor de revistas pulp do gênero, que hoje tem seu nome associado à principal premiação do gênero, o Prêmio Hugo. Naquele ano, para o número um da revista Science Wonder Stories, uma nova publicação sob sua direção editorial, Gernback não pode usar por questões de propriedade, a combinação scientifiction criada por ele mesmo para outra editora onde já trabalhara. Foi quando o partiu criando o binômio ScientificFiction (Ficção Científica), que se popularizou. Até então, o gênero era conhecido por designações de cunho oportunista e eventualmente contraditórios entre si, como “histórias pseudocientíficas” ou “supercientíficas.”

Mas parte do que era publicado simplifica e até mesmo distorcia pressupostos científicos. Algo que pode ter influenciado os argumentos dos desenhos em quadri- nhos do gênero, que eram publicados em livros e jornais da época. Apesar das quali- dades visuais de muitos, eram inconsistentes cientificamente e infantis quanto aos argumentos. Mesmo assim trouxeram a fama mundial a heróis poderosos, como

8 SEILER, Ed. ACatalogueofIsaacAsimov'sBooks . 2010. 9 ASIMOV, Isaac. Nomundodaficçãocientífica , Rio de Janeiro: Francisco Alves,1984, p. 146.

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Super-homem e Batman , e astronautas pistoleiros do subgênero SpaceOpera, como Flash Gordon e Buck Rogers. Heróis “que proporcionavam uma forma diluída de Ficção Científica a todas as camadas da população” 10 de um jeito tão popular que foram levados para as telas com muitas continuações e seriados. De fato, parte do que era publicado nesta época era material fraco, que foi reforçado pelo cinema. O que fez o gênero, mesmo o literário, ser associado a argumentos elaborados a partir de fórmulas repetitivas e padronizadas. Geralmente heróis estereotipados defenden- do donzelas em meio a um conjunto de acontecimentos e personagens inspirados no mundo real, porém transfigurados com exagero para o fantástico. Com razão, a FC, de uma forma geral, era uma aventura como outra qualquer, apenas inserida em ambientes de alta tecnologia futurística ou espaciais. Um amálgama de noções de conhecimento científico com concepções do senso comum. A estigmatização à FC, principalmente em meios acadêmicos literários, pode ser proveniente de reflexos dessas estruturas literárias e romanescas intelectualmente fracas. O que se alinha com a visão de Sodré:

Do ponto de vista da literatura, a ficção científica nasceu velha: dis- cursiva e mimética, sua forma tinha quase um século de atraso com relação ao que a vanguarda literária fazia na época. Seus temas misturavam-se aos temas correntes da indústria cultural: foguetes espaciais envolviam-se com mistérios policiais, dragões e aventura de capa e espada. (SODRÉ apud SIQUEIRA, 2008, p. 19).

Esta condição de simplicidade científica e interseção com outras temáticas ainda alcança os dias de hoje em algumas publicações ligadas ao universo dos quadrinhos e produções cinematográficas do gênero, independente do orçamento. De certa forma, nem mesmo BladeRunner escapou desta influência, tanto por trazer para tempos relativamente próximos a complexidade da exploração espacial, quanto por se apoiar estruturalmente nas ações do protagonista, representado por um astro de papéis heróicos. O Oscar, prêmio de maior destaque do cinema mundial reflete através de suas escolhas, o preconceito de boa parte de seus membros quanto às produções de Ficção Científica, embora sejam atualmente bastantes lucrativas. Geralmente estas só conseguem vencer quando são indicadas para premiações técnicas, o que reforça a citada transversalidade entre este gênero e a tecnologia de ponta em filmagens. Nunca na história do Oscar um filme de Ficção Científica

10 Ibid. p.129.

66 conseguiu levar o prêmio principal, o de melhor filme. No caso de BladeRunner , fo- ram apenas duas indicações no 55 o Oscar (1983): Melhor Direção de Arte e Melho- res Efeitos Especiais (Visuais). Perdeu as duas para “Gandhi” e “E.T., o Extraterres- tre” respectivamente. Este último, o grande sucesso da FC cinematográfica da épo- ca, chegou a ser indicado na categoria melhor filme, mas perdeu para o primeiro 11 . Foi John W. Campbell Jr., editor da AustoundingScienceFiction, que a partir de 1937, propiciaria uma segunda etapa qualitativa à Ficção Científica, menos aventureira e mais tecnológica, daria um significativo impulso ao gênero, inicialmente na literatura. Campbell, que era especializado em Física,

costumava afirmar que esse gênero abrange como do âmbito de seus domínios todas as sociedades concebíveis, passadas e futuras, prováveis ou improváveis, realistas ou fantásticas, e versa a respeito de todos os acontecimentos e complicações possíveis em todas essas sociedades. Quanto à corrente principal da ficção, que lida com o herói aqui e agora, introduzindo apenas a pequena novidade de acontecimentos e personagens que pertencem ao reino do faz-de- conta, esse tipo de ficção constitui apenas uma insignificante fração do todo. (ASIMOV, 1984, p. 33).

Graças a sua visão, o gênero obteve mais seriedade em contos de conteúdo mais adulto e mais comprometido com as conseqüências do avanço científico. Ajudou um gênero afetado pela sociedade a também afetá-la, pois incentivou a carreira de muitos cientistas e engenheiros. 12 Alguns iriam participar de projetos já previstos na ficção, como o da viagem à Lua ou do desenvolvimento da bomba atômica. Com o lançamento de duas destas, pelos EUA, sobre território japonês no epílogo da Segunda Guerra Mundial (1945), a ficção das revistas, segundo Asimov:

tornou-se respeitável e já não poderia ser objeto de ridículo. Estava efetivamente mais avançada do que os homens julgavam quando a bomba atômica chegou. Mesmo antes de ser lançada a primeira bomba atômica, as histórias de ficção científica tratavam não apenas da bomba em si mesma como também do impasse nuclear, do uso pacífico da fissão do átomo e dos possíveis perigos resultantes dessa fissão. (ASIMOV, 1984, p. 147).

11 1982, o ano do lançamento das produções em que o 55º Oscar abrangia, foi historicamente marcan- te para o gênero Ficção Científica e o fantástico de modo geral. Alguns exemplos de lançamentos daquele ano: Jornada nas Estrelas II; A Ira de Khan; O Enigma do Outro Mundo; E.T. o Extraterrestre; Tron Uma Odisséia Eletrônica; Firefox , Raposa de Fogo; Guerra do Fogo, Classe de 84; Poltergeist, o Fenômeno; Videodrome; o Bárbaro; A Espada e os Bárbaros; O Cristal Encantado; A Marca da Pantera; Andróide; Liquid Sky etc. 12 Cf. ASIMOV, 1984, op. cit., p. 129.

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No ano seguinte aos ataques, editoras norte-americanas de grande prestígio começaram a publicar antologias bem elaboradas em volumosas coleções do gênero. Tal prestígio abriu caminho para uma “terceira etapa [...] dominada pela Sociologia” 13 , que se estende até os dias atuais, iniciada em 1950 com a publicação da re-vista GalaxyScienceFiction , que “principiou quase de imediato a dar ênfase às estruturas sociais do futuro, ainda que mantivesse a sofisticação tecnológica da já referida segunda etapa anterior.” 14 Dessa forma, a partir daquele ano já era possível se encontrar livros encadernados com romances de autores que até então só viam saída para histórias curtas, onde mal cabiam questões tecnológicas e sociais de maior complexidade. Tal produção ainda se rivalizaria com um aumento considerável no setor das revistas. Novos títulos passaram a surgir às dezenas. O que daria oportunidade para novos talentos que mais tarde se revelariam grandes contistas e romancistas do gênero.

Um autor que veio desse processo, que tinha uma forma pessoal de abordar os efeitos dos avanços científicos na sociedade, foi Philip K. Dick, cuja obra auxiliara a promover a reviravolta temática do movimento Cyberpunk na FC, (conforme adiantado no capítulo anterior) principalmente por seu romance DADoES ter inspirado o argumento de Blade Runner . Dificilmente poder-se-á entender as possibilidades deste filme como indutor de análises sociais, se não se entender como Dick se relacionava com seu meio social. O que será abordado a seguir.

2.1.1 Philip K. Dick, o escritor que concebeu Blade Runner

Philip K. Dick, quando publicou em 1968 o romance que seria a base para Hampton Fancher escrever os primeiros roteiros para BladeRunner , intitulou-o “ Do AndroidsDreamofElectricSheep?” numa tradução livre: “Sonham os Andróides com Carneiros (ou ovelhas) Elétricos(as)?.” No Brasil, nunca foi publicado com este nome, ou algo próximo da tradução literal. Como as editoras brasileiras só passaram a se interessar por ele após a referência de BladeRunner , a opção foi publicá-lo com o título original do filme, em inglês, ou simplesmente “O Caçador de Andróides”, seu subtítulo nacional.

13 Cf. ASIMOV, 1984, op. cit., p. 206. 14 Cf. Ibid.

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Atendo-se a denominação original de Dick, percebe-se que a obra literária enfatiza, como no cinema, a questão sobre a existência de uma alma humana em máquinas andróides, no caso, robôs fisiologicamente humanos. No entanto, no romance o que ocorre é justamente o contrário. Neste, Deckard é um caçador de recompensa emotivo e em crise conjugal e existencial, que presta serviços para a polícia eliminando andróides que, diferentes daqueles do filme, não possuíam a capacidade inerentemente humana da empatia – uma condição que Dick se inspirou na desumanidade dos carrascos nazistas. Isso os tornava passíveis de identificação por testes poligráficos. O que Deckard ganhava era para comprar um raro ovino de verdade para mostrar posição social aos vizinhos, como se fosse um carro novo. Já os andróides, tão distintos psicologicamente dos seres humanos, desejariam um animal de verdade ou se contentariam, por exemplo, com uma ovelha elétrica artificial? A diferença entre os seres empáticos e não empáticos de nossa sociedade é o grande sentido em DADoES, camuflado na tragédia dos andróides.

Mas isto não impede interpretações construídas a partir da ambiguidade do título. Até porque um dos grandes méritos do filme foi inverter as posições homem- andróide a fim de ampliar seu espectro crítico. Em diversas culturas ocidentais, existe a prática de se contar ovinos imaginários quando se busca o sono. Já as máquinas, caso necessitassem dormir (um contra-senso diante de sua funcionalidade dentro da produção capitalista), contariam o seu equivalente tecnológico, os carneiros elétricos? Ao se transformar máquinas funcionais – cuja grande vantagem ao substituir o homem seria justamente trabalhar ininterruptamente sem descansar, dormir, reclamar por direitos etc. – em seres fisiologicamente humanos, esbarra-se na problemática de se ver ressurgir os defeitos humanos que atravancam a produção dos bens materiais de manutenção da vida. Estes novos seres então, jamais deveriam ser considerados oficialmente humanos, como fica claro no universo de Blade Runner através de terminologias pejorativas aplicadas ao andróide: robô, replicante, boneco, skinjob eandy . Daí a justificativa para a programação do tempo de vida, a garantia que os defeitos inerentemente humanos não teriam tempo de se formarem e transformá-los em gente de verdade que não seriam mais dóceis ao receber suas ordens. Poderiam assim os andróides trabalharem cumprindo-as sem questioná-las, inocentemente como cordeirinhos, em linhas de montagem como as de Ford (o industrial americano) ou em alguma guerra nas estrelas. Tudo seria uma

69 questão de submissão de rebanhos aos seus pastores, sem a possibilidade de qualquer tipo de questionamento trabalhista, ético ou buscas de respostas ontológicas, como supunha o personagem de Ford (o ator americano) em off ao ver as lágrimas de Roy na chuva, quando o corpo deste “se desliga.” 15

No fundo da questão de BladeRunner surge o passado dos rebanhos humanos que tanto tiraram o sono de Nietzsche. Em qual sentido estaria a vontade de potência daquele que afirma seus próprios valores. A doutrina da humanização afastou o homem de seu permissível devir de além-do-homem e atirou contra a embriaguez moral, religiosa e metafísica. Tudo inicia com as eletric sheep , de Philip K. Dick, em seu romance dos anos 60. Ele escolhe a ovelha, mais por ser um animal altamente capacitado para viver em rebanho, desprovido de iniciativas de prazer e vocacionado para servir a quem possa evitar sua dor, do que propriamente pelos símbolo do método contra a insônia: contar carneiros. (MARTINS, 2002, p. 43).

O medo de que operários, outrora submissos, possam vir a questionar, exigir cumprimentos de direitos trabalhistas, deflagrarem greves e ainda destruir os modos de produção material da vida de seus patrões, evidenciando as contradições do próprio sistema que os mantém, transfigura-se ludicamente nas histórias de Ficção Científica sob a alegoria de robôs, ou congêneres, que se voltam contra os seus próprios criadores. Não passa de uma elucubração a respeito da condição ambígua de qualquer ferramenta já inventada, da pedra lascada ao robô, que em teoria pode ser usada para o bem ou para o mal. Tão presente quanto à própria evolução tecnológica, é na Ficção Científica que se encontra campo mais receptivo para fomentar discussões sobre a tecnologia. No entanto, alguns autores, mesmo escrevendo em uma perspectiva mais psicológica e fisiologicamente intimista, se mostravam mais atentos aos reflexos na psique humana de uma sociedade cada vez mais dependente do aparato técnico produtor de bens de consumo de curta duração. Autores que consideravam a possibilidade de que seus próprios corpos fossem campos de experimentos tecnocientíficos deste, ou até mesmo de outros mundos. É o caso do autor do romance original que inspirou o roteiro de Blade Runner . Enfatizando isso, em 1980, George Cain e Dana Longo abriram uma entrevista com ele para o jornal Clarion, de Denver, EUA, escrevendo:

15 Na narração existente na primeira versão de Blade Runner , excluída posteriormente, Deckard, o personagem de Harrison Ford narra, ao ver Roy Batty falecer: “Eu não sei por que ele salvou minha vida. Talvez em seus últimos momentos ele tenha amado a vida como nunca. Não só a sua, mas qualquer uma. A minha. Tudo o que ele procurava eram as mesmas respostas que todos procuramos. ‘De onde venho? Para aonde vou? Quanto tempo tenho?’ E tudo o que eu podia fazer era ficar ali sentado vendo sua morte”.

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Philip K. Dick criou para si um nicho entre os escritores de ficção científica. Ao contrário de muitos de seus colegas escritores do gênero, Dick escrevia mais sobre o espaço interior, do que sobre o espaço exterior. Seus personagens vinham antes de suas máquinas”. (CAIN; LONGO, 1980, apud TANCK; FAZANI, 2010).

Isso demonstra como a questão da identidade física e mental, ampliada nas versões posteriores de Blade Runner , já era uma constante no profícuo legado literário de Dick. Em sua obra, seus personagens raramente podiam ter a certeza do que realmente eram, ou mesmo se existiam. Muitos se descobrem, geralmente por algum evento abrupto e dramático, não serem necessariamente humanos, mas alguma espécie de maquinário, prótese inteligente ou um corpo biológico artificial. Um de seus personagens pode passar mal enquanto dirige um carro numa cidade qualquer da Terra e descobrir de repente que sua suposta realidade é efeito colateral de um tratamento mental realizado em hospital de outro planeta.

No conto “ Electric Ant ” de 1969, um cidadão bem empregado é informado pelos médicos, depois de um grave acidente, que só sobrevivera porque não tinha uma vida de verdade, pois era um andróide, construído para imitar a aparência humana a fim de executar uma função específica que ele nem sabia qual era. Por isso, teria que questionar todo o seu círculo social para descobrir qual o sentido de sua existência. Algo comum nas obras de Dick, a relação do corpo com a sociedade se imbui de uma promiscuidade mútua, onde ambos podem passar repentinamente de real a simulacro e vice versa. Em seu conto “Recordações por Atacado”, de 1966, adaptado com grande sucesso para o cinema em "O Vingador do Futuro” (1990), de Paul Verhoeven, um operário entediado compra implantes cerebrais que lhe simulariam uma aventura como espião em uma colônia extrativista marciana. Porém, ao navegar nesta suposta virtualidade, descobre que sua vida de operário na Terra poderia ser uma encenação, montada para que ele não recuperasse as memórias apagadas de quando tinha sido realmente um espião em Marte. Resolve então partir para este planeta onde ajuda uma rebelião de mutantes deformados, mas se questionando se o que acontecia não fazia parte daqueles implantes iniciais.

Ou seja, de uma forma ou de outra, Dick era capaz de juntar simulacro e ex- ploração do trabalho, estados alterados da mente à universos paralelos, Cristianismo à relatividade, filosofia oriental à física quântica, o escatológico do corpo à teoria da arte. Isso é recorrente na literatura fantástica de Dick. Sua biografia acusa desde

71 abusos sexuais sofridos à epifanias, passando por uso de substâncias alucinógenas. Uma vida marcada por problemas de saúde mental e conflitos familiares (foi casado cinco vezes), que Dick sabiamente converteria para os seus personagens quase sempre semi-autobiográficos. Mesmo que muitos de seus contos e romances apre- sentem cenários implausíveis e surreais, de alguma forma sempre se pareciam com o mundo em que supunha viver.

Em “”, um romance de Dick, de 1978, parte é “ensaio teológico, parte auto-análise irônica do autor, parte romance meta-ficcional de ficção científica e parte comentário cultural de certa época e lugar (os anos 1970 na Califórnia).” 16 O próprio Dick assumia, entre outras aberrações, já ter sido um cristão martirizado pelos antigos romanos – informação baseada em surtos esquizofrênicos. Além disso, pas- sava por períodos em que acreditava viver simultaneamente em dois tempos diferen- tes ou ter contato mental com uma avançada entidade alienígena, que por sua vez, seria um espírito humano desencarnado. “Usava drogas e tinha visões que, segundo o seu amigo e biógrafo, Gregg Rickman, eram conseqüência de um tipo de epilepsia. Em alguns delírios, imaginava-se vivendo em Roma antiga. Em outras visões, acreditava receber o espírito de Elias, um dos profetas do Antigo Testamento”. 17

Crises existenciais em realidades nem sempre consistentes (sejam elas estados alterados de percepção ou simulações digitais), epifanias psicodélicas, inteligências artificiais em conflito, alterações genéticas, faculdades extra-sensoriais, fenômenos psi, estados autoritaristas controlando indivíduos, desordem social e política, sociedades em decomposição devido ao uso inconseqüente da tecnologia e temas afins perpetraram à sua obra um diferencial em relação à Ficção Científica clássica. No lugar de futuros limpos e estruturados, suas “relações natureza-cultura, principalmente explicitadas na questão homem-máquina”. 18 se desenvolviam em am- bientes caóticos e sujos onde o progresso científico não teria necessariamente trazi- do tantas benesses à humanidade quanto se supunha em obras de grandes nomes do gênero, como as de Isaac Asimov ou as do inglês Arthur C. Clarke. Se autores mais otimistas citam processos de hibernação humana como solução para longas viagens espaciais, na obra de Dick “ ACrackintheSky” (1966), é uma solução para

16 CAUSO, Roberto de Souza. Epifania em VALIS. TerraMagazine, 12 maio 2007. 17 SIMANTOB, Eduard. Novo “Blade Runner” faz crescer drama de Deckard. FolhadeS.Paulo , 23 set. 1993. Caderno 4, p.12. 18 JOB, Nelson. Ontologia onírica: hermetismo, diferença e ciência em Philip K. Dick. 2009.

72 problema dos sem-tetos das metrópoles, um congelamento provisório até a chegada de um possível futuro socialmente melhor. Ou então, como forma de preservação de recém-mortos para futuras consultas familiares e financeiras, como em “” romance publicado em 1969. Tem-se constantemente a dúvida se o corpo e a mente dos personagens são o que parecem ser ou se estão onde lhes parecem. Implantes neurológicos, falsas memórias, visões premonitórias, clonagem e efeitos alucinóge- nos se fundem anacronicamente sugerindo realidades e temporalidades alternativas, que de alguma forma se ligam aos processos produtivos de algum tempo qualquer. Passado, presente ou futuro. Simulacros de vivências que muitas vezes impedem que seus personagens, bem como os próprios leitores (e espectadores) de sua obra, nunca consigam obter uma conclusão objetiva do que se sucede. Assim como as incertezas subjetivas do próprio autor sobre si mesmo e de quando e onde, de que idade ou sociedade supunha viver. Algo que está de acordo com uma perspectiva materialista sobre a complexidade dos conceitos de tempo e espaço. Onde estes podem ser melhor compreendidos se os estudos das ciências da natureza estiverem intercalados com os das sociais. Algo confirmado por estudos antigos de Dilthey e Durkheim, que possibilitam “afirmar que as concepções do tempo e do espaço são criadas necessariamente através de práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida social.” 19 Os anacronismos comuns à obra de Dick sugerem que ele desejava se fixar em algo no tempo ou no espaço, para ter um referencial para a compreensão de si mesmo. “A escrita, segundo Bourdieu, retira a prática e o discurso do fluxo tempo.” 20 Dessa forma, sua ficção poderia se encaixar também na visão do que McHale chama de romance pós-moderno, justamente por apresentar característica menos epistemológica em suas visões futuristas e mais ontológicas. 21 Para entender a realidade ao redor, tem que entender a si mesmo como algo ligado possivelmente à várias realidades, à perspectivas de ser. E às vezes literalmente. Segundo Harvey:

Ela [a ficção pós-moderna] se preocupa, diz McHale, com “ontolo- gias”, com uma pluralidade potencial e real de universos, formando uma eclética e “anárquica paisagem de mundo no plural.” Persona- gens confusas e distraídas vagueiam por esses mundos sem um claro sentido de localização, imaginando: “Em que mundo estou e qual das minhas personalidades exibo?” (HARVEY, 2009, p. 271).

19 HARVEY, David. Condiçãopósmoderna. São Paulo: Loyola, 2009, p.189. 20 Ibid, p. 191. 21 Cf. Ibid, p. 256-276.

73

Independente do tipo de modernidade a que sua obra poderia se encaixar, o fato é que Dick não estava sozinho em seu estilo. Distanciando-se dos clássicos, trazendo influências da contracultura, aproximando-se mais da metafísica, se inseria no contexto da “Nova Onda” 22 da Ficção Científica, da qual era um dos principais representantes, juntamente com os ingleses J.G.Ballard e Brian Aldiss. O filme BladeRunner não se desvirtuou das propostas desse movimento ao apresentar indivíduos outsiders em um futuro opressor antinômico daqueles que o cidadão médio estava acostumado a pagar ao buscar produções literárias ou fílmicas do gênero. Personagens que representem o “estranho”, aquele que o sistema da nossa modernidade tenta adaptar para ser absorvido ou simplesmente empurrado para seus limítrofes, que teoricamente nem deveriam existir. 23 Um filme sobre o estranho em uma terra estranha. Sobre o estranhamento de se viver em uma modernidade não muito estranha a do espectador. Isto é, porque muito do que mostra na ambientação do futuro de Blade Runner há muito já é presente para quem o assiste. Um filme que despertou a atenção para a obra de Dick, um estranho que estranhava os rumos líquidos de sua sociedade. Desde então, diversos filmes, quadrinhos, jogos, peças teatrais etc. surgiram inspirados em seus escritos. Obviamente nem tudo com qualidade.24 Em quase todos, a realidade objetiva é questionada, assim como a própria identidade corpórea. A Versão do Diretor de Blade Runner confunde os fãs, dividindo-os justamente porque possibilita aceitar o

22 A fase “Nova Onda” da FC, (inspirada na Contracultura) teve sua divulgação principalmente por meio da revista britânica New Worlds, nos anos 1960. Propunha novas estratégias narrativas na FC apontando algumas das questões culturais como o compartilhamento de uma atitude pessimista em relação à tecnologia e à ciência; o tratamento em relação ao sexo (coisa que pouco aparecia nas gerações anteriores de FC) e a preocupação com as ciências humanas e sociais como psicologia, sociologia e antropologia. Cf. AMARAL, A. A dualidade mente e corpo na Ficção Científica. In: L. AMARAL, A. GEIGER. (Org.). In: InVitro,InVivo,InSilicio . São Paulo, Attar Editorial, p. 133-150. 23 Este tema será abordado novamente no Capítulo III. 24 Adaptações de contos e romances de Philip K. Dick: “Caçador de Andróides” de Ridley Scott (EUA, 1982), “ Proiniperipolos” de Nikos Nikolaidis (Grécia, 1987); “O Vingador do Futuro”, de Paul Verhoe- ven (EUA, 1990); “ Confessionsd'un” de Jérôme Boivin (França, 1992); “Assassinos Cibernéti- cos” de Christian Duguay (EUA, 1995); “A Nova Lei” (EUA, 2001) de Steven Spielberg; “” (EUA, 2001) de Gary Fleder; “O Pagamento” de John Woo (EUA, 2003), “O Homem Duplo” de Ri- chard Linklater (EUA, 2006); “O Vidente” de Lee Tamahori (EUA, 2007); “ Screamers – A Caçada” de Sheldon Wilson (EUA, 2009); “ RadioFreeAbemuth” (2010) de John Alan Simon; “” (EUA, 2011) de George Nolfi. Encontra-se ainda em pré-produção nos EUA a refilmagem homônima de “O Vingador do Futuro”, com lançamento marcado para 2011 e ainda a animação em 3D “ TheKingofElves” , anunciada para o fim de 2012. Não foram incluídos nesta nota seriados e adaptações que ficaram restritas à exibição em televisão, e outros formatos como curtas-metragens, documentários, peças de teatro, ópera, balé, quadrinhos e jogos de computador, experiências interativas via internet etc., apesar de existirem. Fonte: .

74 personagem principal sob uma ótica ressignificada, diametralmente oposta à anterior. O que se pode perder em empatia, contrariamente à opinião de Harrison Ford, natu- ralmente se equilibrará com a essência da obra. Retratar seu personagem como alguém que muda sua percepção quanto ao sentido de sua existência. O self , a auto- biografia, nas obras de Dick, está sempre a mercê de revisionismos (literalmente com a ajuda dos recursos da fantasia), como um programa de computador sujeito a atuali- zação, ao bel-prazer dos modismos do consumo, para que a liquidez moderna não lhe tire do fluxo do tempo. O corpo pode ser um objeto mercadejável que se equilibra entre forma e função, cobaia para as mais imorais formas de se entorpecer a mente. E esta, um processador orgânico excessivamente preocupado com a autopreserva- ção, que muitas vezes necessita do implante artificial de ilusões ou barreiras psicológicas para que se consiga viver e enfrentar o que se entende de realidade em uma sociedade constantemente readaptável aos atropelos tecnológicos do cotidiano. Ao assistir, em outubro de 1981, a projeção de uma montagem curta da ainda inconclusa adaptação de sua obra, Dick deu aval positivo ao trabalho da equipe de Scott, que se encontra registrado em uma carta endereçada a Jeff Walker, consultor de marketing dos produtores de BladeRunner . Escreveu que sua concepção gráfica lhe garantiria um estrondoso sucesso comercial. Anacronicamente, assim como sua vida multifacetada, ele acertou. Mas não deve ter imaginado o quanto aquele filme, assim como alguns de seus personagens, significaria (e ressignificaria) para e pela sociedade, mesmo que tenha dito certa vez que “a teoria modifica a realidade que descreve” 25 . Cinco meses depois, Dick faleceria devido às conseqüências de três seguidos AVCs. Na parte final da carta a Walker, Dick escreve: “Minha vida e produção criativa estão justificadas e completadas por BLADERUNNER .” 26

2.1.2 Robôs e outros simulacros do corpo humano

Ridley Scott, que entrou para a carreira cineasta depois de trabalhar na criação de mais de mil comerciais no Reino Unido, uniu esta experiência aos seus conhecimentos acadêmicos de design na realização de boa parte seus filmes. Se o merchandising em Blade Runner surge tão naturalmente, é porque não se afasta

25 JOB, Nelson. Seleção de frases. Cosmoseconsciência . 17 out. 2009. 26 WALKER, Jeff. Letter to Jeff Walker regarding "Blade Runner.” PhilipK.Dickoficialsite . 2003.

75 radicalmente do espírito do romance de Philip K. Dick. Assim como insere a trivialidade das inserções pela equipe da direção de arte, em painéis luminosos, monitores e néons que reluzem no smog urbano, as tornam naturais. Indicando como devem ser naturais as atitudes consumistas continuam como uma força propulsora da economia daquela versão de século XXI altamente tecnologizado. Uma economia que, por já estar esgotando as parcelas de recursos naturais disponíveis no mundo, já transfere sua capacidade produtiva das condições materiais de vida para outros astros. Uma economia que ao deixar em frangalhos o mundo, ainda procura incentivar o consumo para se manter, mas incutindo que as pessoas encontrarão neste a ilusão de um sentimento de que a sociedade ainda funciona ordenadamente. O consumismo como sentido de tudo, onde os próprios replicantes nãofazem parte do negócio. São o próprio negócio, como Rachael diz a Deckard depois que se descobre andróide. Talvez a conscientização disso, de que suas vidas, seus corpos nada mais são do que uma face do sistema produtivo venha a justificar o comportamento agressivo que os replicantes assumem diante todos os seres humanos que lhes atravessam o caminho em busca da vida. A morte violenta, a punição que as criaturas aplicam aos seus criadores por ter-lhes feitos fisicamente mais humanos que os humanos, porém sem serem considerados humanos. No máximo potencialmente humanos, pois passam a reproduzir seus questionamentos ontológicos, e também trabalhistas, após adquirirem consciência crítica por volta dos quatro anos de vivência, o que justifica para os seus criadores, a limitação vital que lhes é imposta. Os replicantes se inserem dessa forma, em uma longa tradição de se buscar na ciência, ou na magia antes do advento desta nos moldes cartesianos, formas de criar auxiliares artificiais, ou mesmo substitutos para o trabalho humano. Auxiliares que dêem o suporte. Não obstante, BladeRunner se insere numa linha de Ficção Científica que poderia ser incluída, à primeira vista, nos arquétipos dos “robôs”, ou ainda, “tecnologias e artefatos” ou “cidades e culturas.”

O termo robô tem etimologia tcheca, significando trabalho forçado, executado compulsoriamente. Robota no original. Transposto o vocábulo para a língua inglesa, por simplificação e neologismo, como robot , termo hoje consagrado. Sua dissemina- ção universal se deve ao sucesso de uma peça teatral encenada em 1920, de autoria de Karel Kapec (1890-1938). Em três atos, o drama R.U.R. ( Rossum’s Universal Robots ) apresenta máquinas humanóides construídas em série com a finalidade de

76 trabalharem como operárias, baratearia a produção. Mas com o tempo, passam a ser usadas pelas forças armadas e acabam adquirindo características da psique humana e se rebelam contra uma humanidade ociosa, dominando o mundo depois de uma guerra e criando uma nova raça, com direito a descendentes biológicos gerados pelo recém descoberto sentimento, o amor.

A maioria das representações robóticas na ficção, por mais polimórficas que possam ser, são fisicamente dessemelhantes dos robôs que existem realmente na atualidade. À exceção daqueles que se esforçam em romper a presumível inimitabili- dade perfeita da gestuária, movimentação e expressividade fisionômica humanas simulando aparência antropomórfica, que por enquanto não passam de protótipos curiosos cujas serventias costumam se limitar ao marketing de feiras internacionais de robótica ou promoções ocasionais de produtos afins oferecidos pela modernidade de viés consumista.

Embora estes apontem caminhos justapostos a muitos apresentados pela FC, os robôs que efetivamente participam na produção das condições materiais de vida da sociedade possuem constituições configuradas de acordo com as regras da auto- mação industrial, que as vinculam à adequação prática para suas respectivas funcio- nalidades. Exemplos ordinários são os veículos que transitam em ambientes hostis à presença do corpo humano. Como os autômatos da exploração planetária das agên- cias espaciais – especialmente aqueles enviados a Marte - e os teleguiados de pes- quisas em profundidades abissais e desarmadores de bomba das operações anti- terroristas.

Os mais direta ou indiretamente próximos do cidadão comum, notadamente são os populares braços articulados das linhas de produção fordistas da indústria au- to-motiva, assim como aqueles que estão em projeto em conjunto com o desenvolvi- mento da miniaturização nanotecnológica, cujas dimensões ínfimas possibilitaram fins diversos, como medicinais, através da injeção na corrente sangüínea para com- bater corpo a corpo células cancerígenas. 27 Mas tanto estes nano-robôs quanto os outros que soldam as peças automotoras, por serem desenhados especificamente para a execução somente de tarefas pré-determinadas, não necessitam, como nos dramas da ficção, causar impacto ao simbolizarem alguém que reflita o homem e

27 Antecipado de forma próxima no filme de FC “Viagem Fantástica” (1966), de Richard Fleischer.

77 simultaneamente seja seu instrumento, sua criação e possível oponente. 28

Na FC, especialmente a cinematográfica, até mesmo seres biológicos dos mais distintos ecossistemas extraterrenos lembram uma caricatura humanóide. Daí uma boa parcela dos autômatos surgidos na ficção, terem aparência que lembra, de uma forma ou de outra, o corpo humano. No jargão da FC, temos basicamente três tipos de criaturas humanóides criadas pelo homem, através de técnicas da Cibernética e manipulação genética: robôs, ciborgues e clones.

Os primeiros seriam máquinas inorgânicas dotadas de inteligência artificial, como os robôs positrônicos de dezenas de livros de Isaac Asimov, dróides da saga “Guerra nas Estrelas” (1977-2005) de George Lucas, ou o menino-robô de “Inteligên- cia Artificial” (2001) de Steven Spielberg. Ciborgues (de organismo cibernético) repre- sentam a interação de corpos humanos com próteses inorgânicas, produto de técni- cas de miniaturização eletrônica. O termo se sacramentou como o personagem Ste- ve Autin, criado por Martin Caidin em 1972 para seu romance Cyborg, que se popula- rizou mundialmente através da série de TV “O Homem de Seis Milhões de Dólares” (1974-1978) de Harve Bennet. No cinema, os exemplos de maior destaque são o robô policial da trilogia e série de TV iniciado por Robocop (1987) de Paul Verhoe- ven, e os personagens do ator Arnold Schwarzenegger na quadrilogia de longa metragens “O Exterminador do Futuro” (1984-2009), criados por James Cameron.

Os clones, que seriam réplicas de carne e osso de um corpo humano original feitos a partir de técnicas de extração e manipulação de DNA pela Engenharia Genética. É evidente que a imaginação profícua de muitos escritores e roteiristas conseguem ainda misturar estas classificações e agregar ainda novas combinações. As que começam a se tornar corriqueiras envolvem clonagens que hibridizam genes humanos com extraterrestres, a fim de conseguir híbridos conceitualmente semelhantes aos personagens vulcanos da série cinetelevisiva “Jornada nas Estrelas” (1966-2010), de Gene Roddenberry, porém por métodos artificiais, como em “ Alien 4 A Ressurreição” (1997) de Jean-Pierre Jeunet, ou em “Avatar”, ou na série “Arquivo X” (1993-2008), de Chris Carter. Já a materialização no mundo real de organismos digitais, como o serialkiller digital de “Assassino Virtual” (1995) de Brett Leonard, pertence a uma linha que, aos olhos das possibilidades científicas de hoje, beiram à mais pura especulação.

28 Cf. TAVARES, Bráulio. Oqueéficçãocientífica . São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 61.

78

“Caçador de Andróides”, o título brasileiro de BladeRunner (hoje considerado um subtítulo, visto que a denominação original não foi oculta pelos distribuidores), ao contrário do original, tenta simplificar para o público o seu tema, através de um termo já popularizado.

Embora a palavra andróide possa servir para representar qualquer um dos três exemplos citados, desde que humanóide – etimologicamente significa algo com a forma de homem, tecnicamente podendo ser aplicada até a uma boneca infantil – na cultura popular o correspondente é geralmente um robô clássico da ficção, de constituição eletro-mecânica sob um invólucro metálico. Mesmo que eventualmente fossem apresentados exageradamente humanizados, capazes de sentirem filosofar sobro o sentindo de suas próprias existências, de sentir emoções vindas de fobias e até paixões amorosas por seres humanos, como em “O Homem Bicentenário” (1976), curto romance de Isaac Asimov transposto para cinema em 1999. Neste, um robô clássico de metal é implantado, ao longo de dois séculos, com órgãos sintéticos humanos até o ponto de ser considerado tão gente quanto seus próprios criadores. Tanto que obtém autonomia jurídica ao deixar de ser propriedade, e se apaixona por uma mulher, conseguindo até mesmo acompanhá-la na morte quando seus órgãos, que passaram a ser vitais, falham naturalmente. O que traz uma simpatia e comoção geral nos seres humanos, sugerindo alterar a forma de tratamento àqueles que lhe são subservientes. Justapondo a isso, Tavares comenta:

A literatura e o cinema nos mostram que era esse tipo de simpatia que, no século passado, os ingleses chegavam a sentir pelos nativos de suas colônias na Índia e na Ásia; os americanos tinham uma relação parecida com seus negros ex-escravos e os índios recém- pacificados em seu território. A relação homem/robô na fc muitas vezes não passa de uma reprodução de narrativas que giram em torno de um “patrão civilizado” e um “criado primitivo”, onde um encarna a “cultura” e outro a “espontaneidade”: um comanda, outro comenta. O termo robô vem da palavra tcheca robota , que significa “escravo.” Não é mera coincidência. (TAVARES, 1986, p.63).

Robôs ajudantes leais e eficientes cujas mentes forneciam respostas rápidas e adequadas aos problemas cotidianos dos seres humanos, mas que podiam apresen- tar elucubrações filosóficas que podiam torná-los cândidos, ou perigosamente revol- tados pontuam as narrativas da FC, como uma espécie de vício antropomórfico. Exemplos clássicos são os computadores com extensões robóticas laboratoriais HAL-9000, do romance “2001, Uma Odisséia no Espaço”, de Clarke (escrito em

79 paralelo ao roteiro do filme de Kubrick) e Proteus IV, do romance “Semente do Mal” de Dean R. Koontz (que originou o filme “Geração Proteus” (1977) de Donald Cammell). O primeiro se rebela contra os astronautas de uma missão ao sistema solar exterior, exterminando-os por achar que eles poderiam ser um empecilho para a realização da missão, que era o sentido de sua existência. Já Proteus IV se estende por através de uma gama de equipamentos de um laboratório biotecnológico, resolve entrar para a sociedade convertendo-se em um genoma humano montado artificialmente que, ao ser inoculado na esposa de um cientista através de um estupro , gera um ser híbrido homem-máquina.

Embora em muitos textos, principalmente na imprensa, os replicantes de Scott sejam designados como robôs, a expressão quase nunca é usada para designar suas condições dentro de uma estrutura econômica. Em conseqüência disso, gerou- se um engano com a utilização da palavra andróide no título nacional, dando a entender que são uma espécie de ciborgue ou maquinário. Roy Batty, o líder dos replicantes amotinados, chega a comentar sobre isso, usando o racionalismo carte- siano, com J.F. Sebastian, o único ser humano que se dispõe a ajudá-lo na trama, talvez por seu corpo carregar mazela semelhante à deles, uma decrepitude acelera- da que lhe faz envelhecer rapidamente. “Não somos computadores, Sebastian. So- mos físicos”, lhe diz Roy e completado por Pris, sua companheira replicante, citando a filosofia cartesiana “Penso, Sebastian, logo existo.” Mas como forma de mostrar como eram vistos pela sociedade, um verbete teria sido acrescentado na fictícia edição de 2012 do Dicionário Webster’s, que seria apresentado na abertura do filme, antes que suas concepções fossem alteradas em nome da viabilidade comercial de BladeRunner, como descrito ao longo do primeiro capítulo. Neste encontramos:

_androide (an’droide) n, Gr. autômato humanóide. mais em robô./ 1. primeira versão utilizada para trabalho por demais repetitivo, perigoso ou desagradável para os seres humanos. 2. segunda geração de bio- engenharia. Unidades eletrônicas de relé e cérebro positrônico. Usado na exploração de ambientes inóspitos espaciais. REPLICANTE, construído em cultura de carne e pele. Transferência a partir de cópia genética selecionada. Capacidade de auto- sustentação. (FANCHER, 1981; PEOPLES; 1981).

Apesar de o replicante macho fazer referência explícita a computadores, fica implícito que tal termo foi usado no sentido de máquina programada e autômata. No caso um robô, visto que possuem autonomia, inteligência artificial e até a costumeira

80 aparência andróide de um destes. Mesmo que Blade Runner seja comumente associada ao arquétipo dos robôs, como se trata de andróides de carne e osso, poderíamos buscar suas fontes mais explícitas no amplo reservatório mitológico da cultura humana. Como os gólens, figuras oriundas do folclore judeu, moldadas do barro e recebendo o sopro da vida através da magia da cabala ou diretamente pelo poder divino, como Adão. Tais lendas se perpetuaram através dos tempos e tiveram grande destaque no século XVI, quando histórias envolvendo gólens criados por rabinos para proteção anti-semita se tornavam incontroláveis. A magia, ligada geral- mente a alguma forma de religião, sempre foi o motivo, a explicação misteriosa por trás de narrativas desse tipo. Obviamente histórias assim, como quaisquer outras que envolvam seres fantásticos criados através de recursos místicos, “nada tinham a ver com sociedades modificadas em conseqüência de avanços tecnológicos, e isso é o que constitui a característica da verdadeira ficção científica”.29

No entanto, para o início do fictício século XXI da história de BladeRunner , os replicantes podem ser vistos como uma das pontas de um sonho humano de se criar vida artificial. Na primeira ponta, quando a civilização ocidental ainda fazia experi- mentações pioneiras já nos moldes empíricos propostos pela Revolução Científica, estão as formas de imaginar a criação de vida através de processos eletrostáticos, que para na visão geral do leigo, não estavam distantes do universo das magias.

Na outra ponta, a criação da vida através da manipulação dos elementos naturais nos processos artificiais de duplicação da vida (o atual estágio da biotecnologia neste início de século XXI, como será abordado no quarto capítulo) que podem tender para a criação propriamente dita da vida artificial a partir do inanimado. Ambas as áreas são altamente interligadas. E faziam parte do imaginário popular desde o século XVIII, como mostra o romance gótico “Frankenstein ou o Prometeu Moderno”, escrito por Mary Shelley, uma jovem curiosa quanto às aplicações das ciências físico, químico e biológicas, de sua época. O que a permitiu criar uma ficção de horror onde um estudioso destas áreas cria vida artificial já em formato humano em um laboratório ligado à universidade.

A respeito disso, Tavares comenta:

29 ASIMOV, 1984, op. cit., p. 220.

81

As primeiras tentativas da fc em imaginar “criaturas artificiais” seguiram o caminho mais previsível: o da criatura fabricada em labo- ratório, à nossa imagem e semelhança. O monstro de Frankenstein é um exemplo mais antigo, logo substituído pelo robô ou autômato : uma criatura mecânica, de corpo metálico e aparência vagamente humana (cabeça, tronco e membros). (TAVARES, 1986. p. 61).

Esta linha de raciocínio será retomada no quarto capítulo, como forma de se analisar compromissos éticos ligados à ciência e sua participação na manutenção do nosso atual estado de modernidade. Na próxima seção, será abordada a propensão de certa linha arquetípica da Ficção Científica em ambientar seus personagens, in- clusive artificiais, em ambientes que aparentemente vão contra ao ideal das utopias.

2.2. Utopia pela distopia

A fonte dos roteiristas da obra de Ridley Scott, assim como a do próprio DADoES, está inserida dentro de uma linha de arquétipos da Ficção Científica, no caso a das distopias do futuro. Estas linhas englobam situações básicas em que poderiam se inserir quase toda uma gama de produções do gênero, e até outras que estão longe desta classificação. Isto é, se o espectro fosse ampliado, considerar-se- ia como proto-Ficção Científica desta linha desde certos relatos mitológicos de Homero ou descrições da Atlântida por Platão, assim como as viagens de Dante aos reinos da fantasia Cristã.

Ou ainda “Utopia”, obra do humanista inglês Thomas More, publicada por volta de 1520. Neste texto há o relato de um viajante português sobre sua estada em reino insular isolado cuja sociedade funcionava de modo justo através de instituições político-sociais perfeitas. 30 A etimologia grega do termo significa lugar ou país que não existe. O autor deixa claro, apesar do feitio realístico da narrativa, que sua obra era fictícia. Mas com o tempo, o termo passou a ser adjetivo de devaneios imaginá- rios com fama de autênticos a projetos que envolviam imaginação sócio e tecnológi- ca, independente da possibilidade real de materialização destes. Seu emprego pas-

30 Na obra de More, os estudiosos atuais vêem uma sociedade que se opunha à da Inglaterra de sua época ou uma sátira a esta mesma sociedade. Por não aceitar o Anglicanismo e se desentender com Henrique VIII, foi decapitado a mando deste em 1535. Exatos 400 anos após, foi santificado pela Igreja Católica. Fonte: .

82 sou a se viabilizar por seu peso como um referencial literário erudito no vocabulário universal, mais para sociedades perfeitas ou ideais, embora improváveis, do que por representar anseios sociais em momentos de mudança histórica. Estendido ao universo da fantasia especulativa, passou a rotular contextos de mundos que tivessem problemas sociais sanados.

Talvez o exemplo mais notável do que é considerado hoje uma Ficção Científica da linha arquetípica utópica seja o romance “Daqui a Cem Anos” de Edward Bellamy, lançada nos EUA em 1888 com enorme sucesso. Apresentava, do ponto de vista de um cidadão americano de 1887 que é induzido por hipnose a hibernar até o ano 2000. Ao acordar, se vê em uma “sociedade que, nem tanto pelo desenvolvimento tecnológico, mas pela racionalidade de sua organização, é capaz de satisfazer as necessidades de todos, não faltando a ninguém a base para uma vida humana e digna.” 31 A partir de então começa ser informado didaticamente como ocorrera aquela transformação para um mundo tão próspero. A obra foi tão significamente influente que suscitou a criação de 165 dos chamados Clubes Bellamy nos EUA, comunidades utópicas responsáveis por um movimento político alcunhado de Nacionalismo. Traduzido para 20 idiomas, “Daqui a Cem Anos” passou a ser referência mundial para intelectuais marxistas ilustrarem seus ideais. Uma parte de sua seqüência, “ Equality ” (1897), chegou a ser usada para panfletagem ideológica pelos primeiros socialistas americanos. E como acontece até os dias de hoje, o mercado editorial daquela época se tornou farto de publicações afins que tentavam uma carona no sucesso da publicação principal, circunscrevendo o tema de forma favorável ou contrária às propostas socialistas daquela utópica obra.

Mas o exemplo de Bellamy não foi a tendência adotada pela FC propriamente dita, quando esta efetivamente começou a surgir. Pois suas utopias costumeiramente encobriam profundas falhas estruturais. De certa forma, foi nesse sentido que, em fins do século XIX e aurora do XX, se destacaram os escritores H.G.Wells e Jules Verne.

Embora em uma visão estreita, ambos sejam eventualmente taxados de escritores populares com temáticas rasas sobre impactos tecnocientíficos no cotidiano, a erudição se visibiliza se contextualizados hoje à BelleÉpoque – período cultural cosmopolita marcado por certa efervescência nas instituições sociais,

31 DaquiaCemAnos . PortaldeEnsinodeCiênciasUSP,ciênciaàmão,ficçãocientífica .

83 peculiarmente aquelas ligadas à cultura européia, sob impacto das transformações advindas da Revolução Industrial. Além de ter testemunhado reconfigurações progressistas nas artes, ciências naturais e humanas, favorecendo o surgimento de novidades como a psicanálise e o aeroplano, aquele período também foi marcado por ter inspirado os pressupostos fundamentais para as emergentes ciências sociais. Nesse sentido, Jules Verne, um visionário do século XIX, na visão do filósofo Michel Serres, “deve ser colocado na escola de Augusto Comte”. 32 Pois ambos aproximavam o mito à ciência – mesmo que Verne fizesse isso inconscientemente. Seus personagens interagiam com o fantástico quase sempre por algo fabuloso para a época que, direta ou indiretamente, remetiam a invenções modernas, como cerca elétrica, cinema, telefone, computador, internet e arma nuclear. Geralmente faziam viagens extraordinárias por meios até então implausíveis, mas não impossíveis: elefante mecânico, submarino, navio-helicóptero, cápsula lunar e até um cometa. No entanto, mesmo prevendo questões ecológicas, como a da Amazônia, ou políticos, como a do poderio bélico de ditadores ou revoltas contra o imperialismo europeu, Verne era contido às plausibilidades científicas do século XIX. 33

Wells, que por sua vez passou a maior parte da vida já no dinâmico século XX, presenciou o grande incremento de novas tecnologias na solidificação de um sistema econômico multinacional. Isso o inspirou a fazer uso em suas fantasias, de concepções ainda mais fantásticas do que a de Verne: invisibilidade, viagens no tempo e até extraterrestres para criticar, através de elaboração de futuros supostamente utópicos, as mazelas sociais a ele contemporâneas, advindas do modelo de capitalismo, que seu país natal exportava para o mundo. Como apartheid de classes objetivamente retratadas em “Uma História de Tempos Futuros” (1897) e “Quando o Adormecido Acorda” (1899) – publicado na esteira do sucesso de “Daqui a Cem Anos” de Bellamy, essa com argumento muito semelhante ao citado, porém distópico – e “Uma Utopia Moderna” 1904 – este sob inspiração de uma associação socialista (Sociedade Fabiana) que freqüentou. Também se tem o autoritarismo como forma de domínio político em “ MenLikeGods ” (1923) e colonialismo europeu na África, alegoricamente como uma invasão alienígena em “A Guerra dos Mundos”

32 SERRES, Michel. JúlioVerne:aciênciaeohomemcontemporâneo . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 22. 33 Cf. MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. CemanosdamortedeJúlioVerne . Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul - Contribuições. 31 out. 2005. Disponível em: .

84

(1899). Esta última, uma das obras mais levadas às telas de cinemas ou televisão, através de adaptações oficiais ou como fonte de inspiração para novas produções, porém com o conteúdo crítico diluído. Chegou a ser narrada pelo futuro cineasta Orson Welles em uma transmissão radiofônica nos EUA em 1938, que causou muitos transtornos pelo país, pois muitos que sintonizaram depois do programa iniciado, acharam que realmente marcianos invadiam a Terra. “Naquele momento, nove milhões de pessoas escutavam o programa, e o cálculo é de que 1,75 milhão abandonaram suas casas, correndo para igrejas e centros comunitários.” 34

A Ficção Científica de qualidade se sente responsável por representar para as massas, através dos mais diversos suportes (literatura, filmes, jogos eletrônicos, publicidades, brinquedos, etc.), um acesso confiável para se tentar entender a sociedade, sob o pretexto de alguma situação de desencaixe, escancarando espetacularmente suas contradições sociais.

Segundo Noma, ao se referir precipuamente ao suporte fílmico:

A FC sempre tendeu mais fortemente para a distopia (antiutopia) do que para a utopia. Na realidade, não há utopia perfeita no cinema de FC. Para que a trama se desenrole, é preciso que algo aconteça, ou seja, engendrado no paraíso, colocando em risco ou destruindo esse mundo da mais perfeita felicidade e que pode ser restaurado ou não no desfecho do filme. É quando descobrimos que o mundo, na ver- dade, não era assim tão harmônico, porque foi construído a partir do nosso mundo presente. Assim sendo, a utopia cinematográfica é por- tadora das nossas desilusões, dos nossos temores, dos nossos an- seios. Por isso, é que argumentamos que ela diz muito mais sobre a sociedade do seu tempo do que sobre o futuro. (NOMA, 1998, p.35).

Um operário do início do século XX que, deslumbrado com a eletricidade, deidifica um maquinário fabril ao ponto de lhe oferecer sacrifícios, como ocorre no conto “Deus ex-machina” (1916), de Wells, dialoga perfeitamente com os persona- gens esquizofrênicos do universo de Philip K. Dick que de alguma forma, não se adaptam à realidade do sistema em que acreditam viver.

Dick, e a linhagem de escritores dos anos 1960 que renovaram a Ficção, assim como Wells, “eram pessoas com profundos conhecimentos nas áreas chamadas ‘humanas’, como sociologia, música, poesia, literatura, ou antropologia e

34 ASSIS, Jesus de Paula (editor). H.G.Wells: as novas metrópoles. ScientificAmerican:exploradores dofuturo 2005, São Paulo, 2005, n.2, p.79.

85 arqueologia”. 35 Comenta ainda que muitos deles utilizaram-se da Ficção Científica “como uma forma de comentário à sociedade de seu tempo, construindo um mundo futuro a partir daquilo que eles estavam vivendo, retomando e alterando a forma de comentário de H.G.Wells”. 36 No entanto, as adaptações das obras deste para as telas se destacam muito mais pela quantidade do que pela qualidade. Uma vez que não conseguem preservar suas características de crítica social.

Afinal, a necessidade de retorno financeiro, faz com que esta se dilua ou deixe de existir por completo. Maximizam-se assim só a estrutura fantástica em grandiosos efeitos especiais, porém sem densidade no conteúdo. Algo historicamente comum à boa parte das produções do gênero.

Porém ocorrem exceções à regra. O próprio Wells ajudaria pessoalmente a começar a mudar este panorama. Ele mesmo roteirizou seu romance “ TheShapeof ThingstoCome ” de 1933 para o filme cujo título brasileiro tentava pegar carona em Bellamy: “Daqui a Cem Anos” (1936) de William C. Menzies, “ Things to Come” no original. Sua trama mostra a humanidade durante 100 anos, sobrevivendo a um conflito global de mais de 20 anos, a uma pandemia e tentando construir uma utopia depois de tudo. Como era cinema inglês, não foi um filme B. Inclusive é considerada a primeira grande superprodução da Ficção Científica depois do alemão “Metropolis.” de Fritz Lang. Se a adaptação de “Do Androids Dream of Electric Sheep?” consegue manter parte de sua qualidade, mesmo com alterações radicais, uma das explicações seria o fato de seus roteiristas, assim como o diretor inglês , terem preservado sua principal mensagem: a suposta impossibilidade prática da utopia não implica necessariamente que se deva caminhar para a distopia. Não que seus personagens fizessem algo para transformar aquela sociedade, mas o espectador poderá contribuir para não se chegar lá. Assim, segundo Noma:

Ambas, tanto utopia quanto distopia, indicam-nos como a tecnologia e o imaginário imbricam-se no processo das transformações sociais do século XX, decorrentes da industrialização e da urbanização crescentes. As utopias constituem-se na manifestação mais completa da imaginação social. Instaladas no coração do nosso

35 SCHOEREDER, Gilberto. FicçãoCientífica . Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 37. 36 Ibid, p. 37.

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imaginário, as utopias captam as esperanças e temores das nossas sociedades. Nelas as representações do futuro tornam-se “lugares onde se prolongam e estruturam, no plano simbólico, os conflitos sociais e políticos” vivenciados pelos homens. (NOMA, 1998, p.34) 37 .

Dependendo do caso, conceituar algo como utopia não pode prescindir de certo nível de imaginação tecnológica, assim como sociológica e ambiental. Como no caso do romance “Não Verás País Nenhum” (1981) onde Ignácio de Loyola Brandão descreve o Brasil do futuro como uma ditadura social e ambientalmente degradada. Não há mais florestas, rios e nem mesmo o azul do céu, pois a poluição o pintou de cinza. A população sobrevive basicamente em centros urbanos do Sudeste e os excluídos sob marquises construídas para esperarem o fim.

Já como imaginação tecnológica, merecem destaque as antecipações de Verne. Sua descrição, muitas vezes detalhada, de invenções à frente de seu tempo tinha o respaldo das publicações científicas a que tinha acesso.

O Utopismo, nesse caso, poderia estar contido na atitude esperançosa de que suas inovações pudessem ser viabilizadas em larga escala, ao ponto de se tornarem comuns para uma grande parcela da sociedade. O que aconteceu em parte, a despeito do descrédito de muitos.

O que se alinha com a visão de Szacki e relação à materialização das fantasias:

37 Especialmente livros como “Um Cântico para Leibowitz” (1965), de Walter Miller Jr., onde a destruição atômica da humanidade é um círculo vicioso e “Eu Sou a Lenda” (1954), de Richard Matheson já cinematografado três vezes, onde o último homem sobre a Terra tenta se adaptar a um mundo devastado por vírus liberados pela degradação ambiental ou por laboratórios. Situação similar à do longa dirigido por Alfonso Cuarón em 2006, “Filhos da Esperança”, que apresenta uma grávida em meio a uma humanidade que misteriosamente se tornou estéril, imigrante ilegal numa esfacelada Inglaterra de política totalitarista não muito diferente daquela de “V de Vingança” (2006), de James McTeigue, onde um mascarado comente atos de terrorismo em nome da democracia ou daquela de “Brazil - O Filme” (1985) de Terry Gillian, onde uma burocracia kafkiana aliena pateticamente o povo inglês. Há ainda filmes como: “Gattaca - Experiência Genética”, de Andrew Niccol (1997), descrito como o BladeRunner dos anos 90 por abordar bioeticamente uma distopia eugenista do futuro; a quadrilogia “Exterminador do Futuro” (1984, 1991, 2003 e 2009) que enfoca a resistência humana contra ciborgues e máquinas bélicas dotados de inteligência artificial; a trilogia “Matrix” (1999, 2003, 2003), em que num futuro distante uma rede de computadores retira sua energia de todos os corpos conectados compulsoriamente a ela, criando-lhes em contrapartida um interativo simulacro da sociedade do final do século XX em suas mentes; “Os Substitutos” (2009), de Jonathan Mostow que apresenta réplicas robóticas que substituem as pessoas em suas relações sociais enquanto estas se definham em casa e “No Mundo de 2020” (1973), de Richard Fleischer, um clássico da FC onde a humanidade se vê obrigada a se alimentar do estranho Soylent Green , um tablete nutricional preparado secretamente com os restos mortais de marginalizados sociais.

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“Fantasias” de um século são realidades de um outro. Sóbrios projetos de reforma podem aparecer como loucura pura quando são transplantados de uma situação para outra. Idéias sobre submarinos, aviões e vôos interplanetários foram “utópicas” somente em etapas definidas do progresso técnico. [...] Não só com a tecnologia que isto acontece. Para muitos liberais da república de Weimar o programa de Hitler não passava de uma “utopia” lúgubre, pois não eram capazes de prever, entre outros, os resultados da aplicação de técnicas modernas de propaganda. A novela “utópica” de A. Huxley O Admirável Mundo Novo é aberta com um mote de Bierdiaiev: As utopias revelam-se muito mais capazes de serem realizadas do que se acreditava em outros tempos... (SZACKI, 1972, P. 5).

A obra de Huxley citada usa elementos técnicos, no caso, voltados para processos eugênicos, que a torna de caráter essencialmente social. A antevisão do desastre político em que a Alemanha se meteria não excluiria enveredamentos ideologicamente semelhantes. A eclosão da Revolução Francesa e a implantação do primeiro plano qüinqüenal apresentado pelos bolcheviques após a Revolução Russa também poderiam fazer parte de uma longa lista de situações reais que em certos momentos foram consideradas tão utópicas quanto uma sociedade cujos membros fizessem viagens intercontinentais em aviões e se comunicasse em rede. Em certas ocasiões, “utopismos” passou a ser uma espécie de acusação a doutrinas e ideologias consideradas sem chances de vir a se concretizarem, dado o momento histórico. Mas que se materializaram depois.

O reconhecimento de utopismos implica também na questão da imaginação sociológica, que pode promover a visualização consciente do momento especialmente dramático em que uma determinada sociedade esteja passando. A utopia pode ser vista como sonho realizável dos homens para a melhoria de uma sociedade. Um sonho que implique em atitudes que possibilitem o aprimoramento dos mecanismos que estão em funcionamento naquela sociedade, ou mesmo a troca total ou parcial destes, em vista de melhorar as condições de obtenção das necessidades individuais de seus membros. A colocação em prática de tais atitudes pode definir a diferença entre o tangível e o intangível, o material e o imaterial, o que irá causar grandes transformações ou que irá simplesmente sucumbir no inferno das boas intenções. Nesse contexto, “o socialismo utópico e socialismo revolucionário de Marx e Engels, por exemplo, são elos de um mesmo processo” 38 apesar de suas diferenças básicas, que podem ser acentuadas pela forma que os meios são usados,

38 Cf. SZACKI, Jerzi. Asutopiasouafelicidadeimaginada . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 9.

88 se forem, para os seus respectivos fins. Nesse sentido, Machiavel ao propor uma Itália unida, Marx um sistema econômico mais humano, Wells um governo universal e Dick um caminho melhor para os processos tecnocientíficos pela antítese da conjugação dialética da realidade com os seus futuros noir , e são todos utopistas, pois todos desejavam, às suas maneiras, condições melhores para suas respectivas sociedades em crise.

As utopias podem ser consideradas, por um lado, como sintomas da crise de uma dada organização social, e, por outro, como um sinal de que no seu interior existem forças capazes de saltar além dela, embora ainda não estejam conscientes de como fazê-lo. [...] Ela é capaz de oferecer aos homens, nos tempos de confusão, um ponto de apoio que não pode mais ser encontrado na esfera das relações sociais. (SZACKI, 1972 p.129).

Daí a diferenciação de proposta que ocorria na Ficção Científica da antiga União Soviética, quando o Estado ainda pregava que a utopia estava a caminho. Na verdade, chegou-se a se pensar no auge da Guerra Fria, que ela nem existisse por lá. “Chegaria, portanto, a ser quase uma falta de patriotismo para um escritor soviético sugerir que outras sociedades seriam possíveis no futuro ou mesmo examinar muito de perto a sociedade atual”, 39 escreveu Asimov em 1962. No entanto, mais tarde viu-se que ela existia sim e era “otimista, tanto em relação ao destino da tecnologia como à utopia social.” 40 Mas na linha de frente da produção norte-americana e européia, o gênero abordava o utopismo social e tecnológico geralmente pela contramão, onde não era incomum perigos apocalípticos advindos do mal uso das máquinas e equipamentos de alta tecnologia que deveriam livrar o homem do trabalho que não fosse intelectual. Segundo Fiker:

Nos anos [19]30, livros como ACidadedosMortosVivos (1930), de Laurence Manning e ou Crepúsculo (1934) de J.W. Campbell Jr., já fixavam um panorama de decadência provocada pela superdependência do homem à máquina. Mesmo as utopias de [Arthur C.] Clarke, em Fim da Infância (1953) e A Cidade e as Estrelas (1956), residem na transcendência do homem, na superação da condição humana, em outras palavras: na desaparição do homem enquanto tal. O subtítulo de um livro de Ursula K. Le Guin é característico de como a utopia é encarada pela moderna FC: Os Despossuídos:UmaUtopiaAmbígua (1974). (FIKER, 1985, p. 54).

39 Cf. ASIMOV, 1984, op. cit., p. 207. 40 FIKER, R. Ficçãocientífica:ficção,ciênciaouumaépicadaépoca? Porto Alegre:L&PM, 1985, p.53.

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Inclusive porque eram necessários problemas em grande escala para efeito de dramatização, que geralmente envolviam o contexto global. Não faria sentido para o comércio editorial e fílmico, que suas histórias fossem passadas em mundos idílicos e perfeitos, onde os problemas humanos fossem reduzidos ao mínimo. Como na ilha de Thomas Morus ou em obras congêneres de épocas distintas, como “A República” de Platão, “A Cidade do Sol” de Campanella, “Nova Atlântida” de Francis Bacon e “Sobre a Pedra Branca” de Anatole France, ou mesmo “Considerações Sobre o Governo da Polônia” de Rousseau, embora neste último exemplo não prevaleça o tom narrativo dos anteriores.41

Geralmente, qualquer traço que venha a indicar o alcance de um mundo inexcedível, não importa em que lugar ou época, este é desmascarado ao longo do enredo. Portanto, mesmo de forma canhestra, a Ficção Científica, nos seus mais variados formatos, não se afasta essencialmente dos utopismos que constantemente pontuam a nossa História, antes e depois da conceituação advinda do paraíso renascentista de Morus. Isto serve para ficcionistas como Wells e Dick, para citar dois representantes do ramo que, apesar da disparidade entre suas obras, nunca foram considerados exatamente como antecipadores tecnológicos, mas sim pessoas que não conseguiam enxergar os caminhos futuros de suas respectivas sociedades sem o manto do pessimismo. Wells é muito menos conhecido por ter antevisto a bomba atômica, cerca de 50 anos antes dela se tomar realidade, do que por ter usado o recurso figurado da viagem temporal e discos voadores para denunciar as moléstias do capital de sua época. De fato, Wells só obteria mesmo fama aos 54 anos, ao enriquecer com seu primeiro grande sucesso comercial: “História Universal” (1920), a história da humanidade em sua visão pessoal, e também monumental (1172 páginas). No campo da ficção, o pessimismo anti-utópico wellsiano reflete tanto a iminência das duas guerras mundiais, especialmente a de 1914, tanto quanto as viagens lisérgicas de Dick refletiam o descontentamento nacional do povo norte- americano em relação ao papel de seu país na Guerra do Vietnam.

Refletindo muitas vezes a oposição às ideologias vigentes com outras novas, o Utopismo tem sido um fenômeno singularmente durável, mesmo que em algumas ocasiões, possa se insinuar morto para muitos. Principalmente quando a mídia, de uma forma ou de outra, divulga, sucessiva e verborragicamente, o impasse político e

41 Cf. SZACKI, 1972, op. cit., p. 2.

90 socioambiental da nossa era, sem permitir que em seus intervalos comerciais haja o tempo mínimo necessário para uma reflexão mais consistente, quando há, sobre os eventos noticiados. O que os faz serem como instantâneos desconexos de passado, com as ações mesmo que indiretas de quem os assiste como se fosse uma hiperrealidade distante e autônoma. O não incentivo do mínimo exercício, natural que seja, de imaginação sociológica obedece a lógica da filosofia imposta nos comerciais, isto é, esqueça as mudanças climáticas, o derramamento de petróleo e os trucidados pelos atentados de fundamentalistas inflexíveis. É melhor ver a dramatização do que um carro novo pode trazer de status social para quem o comprar, principalmente sob os olhares da vizinhança, mesmo que na prática seja mais um entre dezenas de outros iguais em um congestionamento urbano. Não por menos, muitos telejornais costumam encerrar com imagens que remetem à Ficção Científica, no seu sentido mais tolo, como uma chuva de meteoros ou um “passeio” espacial de algum astronauta fora de sua nave para um conserto de emergência com a Terra azul ao fundo. Mas se esquecem que esta imagem, quando vista pela primeira vez por Gagarin em 1961, suscitou a idéia de que todos vivem em um só lugar. E que este podia e devia ser bem cuidado e, se possível, melhorado.

Imagens hoje triviais, porém antes pertinentes apenas à FC, podem servir para nos lembrar, mesmo em momentos em que não há indícios de luz ao fim do túnel, ele certamente tem um fim que poderá ser iluminado. As utopias da Ficção, nesse ponto, podem ser entendidas como uma necessidade atemporal de se desejar uma sociedade melhor, mesmo que supostamente irrealizável. Uma vertente de algo próprio da espiritualidade humana. “Faz parte de todas as crenças religiosas, teorias morais e legais, sistemas de educação, criações poéticas, em uma palavra, de todo o conhecimento e obra que visa oferecer modelos pra a vida humana.” 42 Por isso é inconcebível que possa ter existido “qualquer época, nação ou mesmo indivíduo que não tenha sonhado com um céu na terra, que não tenha sido mais ou menos utópico.” 43 Esta atemporalidade dos pensamentos utópicos, sejam eles pessoais ou coletivos, deve ser entendida como um indicativo de sua complexidade. Ressaltando que o entendimento do complexo requer transversalidade epistemológica. Ao ser tratada como algo simples, restrito a alguns poucos campos adjacentes do conhecimento. Para se compreender os utopismos, e saber como podem ajudar a

42 SWIETOCHOWSKI, Alexander apud SZACKI, 1972, op. cit., p. 8. 43 Ibid, p. 8.

91 melhorar a sociedade, é conveniente buscar fontes em todos os campos prováveis. Caso contrário, não poderão ser mais úteis do que fonte de matéria prima para filmes, simulacros hiperrealistas que, na sociedade de consumo ávida por efemeridades, substituirão seus referenciais originais até serem descartados por novos.

Do posto de vista do indivíduo, tal sobreposição mental se aproximaria do Duplipensar , técnica de lavagem cerebral coletiva da distopia do romance “1984”, de George Orwell. O passado, ou qualquer coisa, pode ser manipulado pelo Estado, através de um exercício mental que permite acomodar ambivalentemente dicotomias mesmo que opostas. No mundo real, quando há a fixação no presente, como algo sugerido através de um modo de vida que valoriza a efemeridade líquida do instantâneo, é pouco provável que os indivíduos de uma sociedade,

busquem segurança na esperança, ou seja, numa causa que ainda deve consolidar-se na realidade. Como Pierre Bourdieu apontaria [...], pessoas que não têm um pequeno ponto de apoio no presente (e não o têm, dadas as experiências notoriamente voláteis e disformes, fragmentadas em pequenos e rápidos episódios) não reunirão a coragem exigida para se apoiar no futuro. (BAUMAN, 2007, p. 175).

No entanto, mesmo com a FC convertida em uma grande atividade empresa- rial multifragmentada, que fez com que sua atual inserção cultural seja sentida como mais uma efemeridade, suas visões ainda podem contribuir para que o pensamento utópico persista. Mesmo que seus filmes, sua principal vitrine, sejam constantemente seqüenciados ou refeitos ao bel prazer dos interesses do consumo, este gênero pode suscitar a reflexão de que pode-se acreditar ainda em transformações sociais em vista de um futuro melhor. Mesmo que utopias do passado possam parecer ilusões diante da divulgação de conseqüências funestas da tentativa se seus implementos. São seus genocídios, atraso econômico e tecnológico, pressões totalitaristas que ganham as páginas da História, assim como a brevidade dos tele-noticiários. Fica-se então a amarga impressão que não há um atalho para um mundo mais ajustado à vida humana. Pelo menos a partir do presente, onde se sugere que nem mesmo a esperança de se fazer alguma coisa possa vir a existir. Distanciar do presente próximo, ao postergar as utopias para os futuros extremamente distantes, como fazem alguns criadores da Ficção Científica clássica, pode parecer com a interpretação de Zygmunt Bauman em relação ao que Adorno pensava sobre o

92 momento utópico. Para este último, “o momento utópico no pensamento é mais forte quanto menos este [...] se materializa numa utopia que sabote, assim, sua realiza- ção” 44 . Assim, o afã das crises talvez não seja o melhor momento para se testar na práxis ações que possam vir a conduzir aos ideais utópicos. Suas verdades podem ser distorcidas, se divulgadas na hora errada. Bauman considera tal posição como um tipo de engajamento baseado no distanciamento durkheimiano do objeto (como a época contemporânea de Adorno), e não omissão ou condescendência como pode aparentar. Uma espécie de elucubração que não desconsidera a necessidade de mudança social, nem que seja a partir da existência dos pensamentos utópicos. Mas a proximidade destes com o momento em que são formulados pode vir a atrapalhar a implementação de seus fundamentos. Seriam então mais valorosos como mensagem para o futuro, de onde terão mais chances de se materializarem, caso venham a ser compreendidos fora dos seus contextos. Diante disso, o imediatismo temporal visto na retratação de sociedades como as do movimento Cyberpunk , do qual a obra de Dick é predecessora, que se opõe à FC clássica dos assépticos séculos futuros, pode contribuir para a formação de um senso comum de que há uma necessidade urgente de se pensar em algo melhor para a humanidade a curto prazo. Para que a utopia exista, segundo Bauman, são necessárias duas condições básicas:

A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada), de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que “nós, seres humanos, podemos fazê-lo”, crença esta articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. (BAUMAN, 2010, p. 14)

Para Bauman, a sociedade atual passa por um processo que pode ser descrito como a troca da metáfora do jardineiro pela do caçador. O primeiro seria o construtor de utopia, aquele que “sabe bem que tipos de plantas devem e não devem crescer” 45 no terreno sob seus cuidados. Já o segundo, aquele que vive sob uma eterna condi- ção de utopia, pois sua atividade se atém às oportunidades apresentadas pelo mo- mento presente, sem a preocupação com o futuro. Deixando que a oferta de caça se restabeleça por si, por um equilíbrio natural que ele não considera ser de sua respon-

44 Zygmunt BAUMAN. Vidalíquida . Rio de Janeiro: Zahar, 2007b, p. 181. 45 BAUMAN, Zygmunt.A utopia possível na sociedade líquida. CULT .São Paulo:Bragantini, 2009, p. 15.

93 sabilidade. “Em vez de viver para uma utopia, aos caçadores se oferece uma vida dentro da utopia”. 46 Uma situação que se aproxima mais, vista com distancia-mento, do conceito espacial de heterotopia que Foucault criou a partir de Jorge Luis Borges. Refere-se a lugares demarcados institucionalmente onde as coisas indicam que funcionam de modo correto, como se isolados artificialmente dos problemas do mundo, como um shoppingcenter ou um parque. O caçador parece ter à sua mercê um lugar assim onde não precisa se preocupar coma a sua manutenção. 47

Esta troca metafórica que Bauman vê na modernidade, pode implicar em discursos que propalam o fim das utopias. O caráter anti-utópico que se mostra tanto em BladeRunner quanto no romance original de Dick, pode a princípio até corroborar tal idéia. Especialmente ao mostrar o cúmulo de uma “sociedade de caçadores.” Mas esta visão pessimista não precisa necessariamente se traduzir em visões similares nos seus espectadores e leitores. Ao contrário, pode contribuir para que estes sejam mensageiros da urgência de atitudes que evitem as disfuncionalidades daquela ficção, favorecendo ao não esmorecimento do utopismo sob a pressão da cotidianei- dade. Afinal, evidenciando que mazelas como a miséria, a violência, a solidão urbana e outros efeitos funestos da suposta condição líquida da vida moderna, podem ainda piorar em um futuro próximo, poderão sugerir especulações sobre como minimizar, ou mesmo evitar suas causas. “O utopista não aceita o mundo que se encontra, não se satisfaz com as possibilidades atualmente existentes: sonha, antecipa, projeta, experimenta. É justamente este ato de desacordo que dá vida à utopia” 48 Assim, a utopia “nasce quando na consciência surge uma ruptura entre o que é, e o que deve- ria ser; entre o mundo que é, e o mundo que pode ser pensado.” 49 O grande sentido da FC pode se encontrar justamente aí. Mostrar o certo através do errado. Auxiliar a preservar o pensamento utópico, através da representação do distópico.

Desta maneira, o complexo amálgama ciência-tecnologia-ficção trans- forma-se no veículo ideal para as ansiedades humanas, de maneira perfeitamente justificada: um temor que transforma as doces utopias dos renascentistas nas tenebrosas distopias do porvir que bate à nossa porta. Defrontamo-nos, assim, com uma aparente contradição que nos obriga a refletir acerca das razões que, muitas vezes, condu- zem os recentes recursos tecnológicos a perturbar o espírito, ao invés de trazer boas novas da bagagem do futuro. (TASSARA, 2007, p. 57).

46 BAUMAN, Zygmunt. Temposlíquidos . Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 113. 47 Cf. CHIAPPARA, J. P. Foucault e Borges: espaço e heterotopia. 2004, p. 95. 48 SZACKI, Jerzi. Asutopiasouafelicidadeimaginada . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 13. 49 Ibid p.13.

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No caso de Blade Runner , o distópico já se encontra emaranhado no que outrora se considerava o mais vistoso símbolo das utopias, a grande cidade. Cartão postal da modernidade, a metrópole, independente se fantasia ou realidade. A relação entre estas duas é o tema abordado no terceiro capítulo, ao passo que questões relacionadas à ética da robotização supostamente para fins utópicos serão postergadas para o Capítulo IV.

CAPÍTULO III A METRÓPOLE: FICÇÃO E REALIDADE

A produção de Blade Runner , conforme detalhada no Capítulo I, com todos aqueles contratempos que desviavam do caminho do cinema autoral como aparentemente desejava seu diretor, mas que poderia ficar restrito a reduzidas platéias intelectualizadas, e apontaram para que se constituísse um produto para as massas, metalinguisticamente representou o que o próprio filme implicitamente criticava. A visão de uma metrópole como representação da efetivação global de uma sociedade de consumidores, que encarnam a metáfora do caçador em relação ao ambiente, e que postergam os ideais humanos de mundo melhor para um futuro ainda mais distante, foi a opção da produção do filme de Ridley Scott ao adaptar o romance de Philip K. Dick. Talvez uma forma inconsciente ou não de querer indicar para os espectadores, que todos os membros sociais já vivem, conscientemente ou não, em uma distopia planetária, evidencia principalmente, no estímulo ao consumo na vida urbana.

3.1 A metrópole imaginária

Nos caminhos de Deckard pela Los Angeles de 2019, atravessam os cidadãos mais prosaicos de uma metrópole ocidental qualquer, e não os seres alienígenas ou robôs metálicos, comuns à representação futurística da FC. Na verdade, em algumas externas, os únicos elementos característicos deste gênero são automóveis voadores, no caso viaturas policiais – os spinners (rondantes em português). 1 No mais, quase tudo que é exibido não se difere substancialmente da realidade de grandes centros urbanos dos anos 1980. Comércio informal, pobreza nas ruas, tribos urbanas, violência corriqueira e outras mazelas, porém iluminadas por grandes logomarcas de belas conjugações cromáticas dos anúncios formados por tubos de néon ou por pixels de supertelas, que parecem constituir a própria razão de existir daquele estágio social. Imagens coloridas que tentam impor mercadorias cuja aquisição representaria mais do que a satisfação de uma necessidade de fato, mas

1 Em DADoES, à maioria dos automotores voam se comportando como helicópteros, situação que ao ser evitada na adaptação para o cinema, reduziu o distanciamento da ficção com a realidade.

96 de um desejo íntimo de se encontrar no ato de compra, não exatamente no de uso do produto, um modo de se encontrar um ponto sólido para se apoiar diante da liquidez das transformações sociais. Um ponto de apoio vital.

Como ocorre com a maioria dos roteiros adaptados, alterações se fizeram necessárias em relação à obra original para a adequação à linguagem do cinema. Interessantes concepções do autor sobre religião, relacionadas com meios virtuais de comunicação em massa, assim como a simbologia social da ostentação de animais em um mundo degradado, foram deixadas de lado.2 Ou discretamente sugeridas, em nome de uma objetividade maior ao argumento central da trama, a dicotomia entre o desejo de vencer a morte e a busca do sentido da vida. Diante tamanha pretensão para um filme estadosunidense de Ficção Científica, suporte teoricamente improvável para se desenvolver um tema tão profundo, a produção optou por formas mais radicais de adaptação. Por conseguinte, o principal cenário do livro, a São Francisco pós-apocalíptica do então futuro 1992, se estenderia geograficamente a Los Angeles, formando San Angeles, uma implausível megacidade de 600 quilômetros de comprimento na visão do diretor. Contido em seu exagero, convencionou-se que sua cidade seria mesmo a Los Angeles de 2019, 3 retratada como uma possível e mais realista conurbação com as cidades industriais adjacentes. Uma megalópole cosmopolita de 106 milhões de habitantes, 4 vítima de um desordenado crescimento demográfico que englobou e se mimetizou com o espaço das indústrias de transformação. Estas em franca expansão devido à alocação dos substitutos dos profissionais qualificados que se evadiram da Terra, à mão de obra barata não qualificada, a um grande exército de reserva proveniente da imigração de refugiados ambientais de todo o mundo, especialmente do Oriente. Como resultado tem-se uma urbanicidade que se apresenta, entre outras coisas,

2 No romance original, os efeitos de uma grande guerra mundial, ( Word War Terminus ), teriam incidido sobre o planeta causando uma grande hecatombe, mudanças climáticas, degradação da natureza e a conseqüente extinção da maioria das espécies animais, inclusive dos domésticos. Não há referência direta a ela no filme, entretanto fica subentendido uma catástrofe ambiental e social. 3 Evidentemente a postergação para 2019 se tornou necessária, visto que 1992 estava a apenas dez anos à frente do ano previsto para o lançamento do filme. 4 A população não é mencionada no filme. No entanto, em uma cena excluída, há esta informação. Segundo Sammon, Scott havia concebido de início sua metrópole como um grande centro urbano composto de duas cidades gigantes, com cerca de 100 milhões de habitantes, que teriam crescido juntas e unido suas periferias: Chicago - Nova York ou San Francisco - Los Angeles (Cf. SAMMON, Paul M. Futurenoir:themakingofBladeRunner . New York: Harper Prism, 1996, p. 75). Para efeito de comparação, as regiões metropolitanas de Tóquio, Cidade do México e São Paulo agrupavam em 2007 cerca de 30, 23 e 21 milhões de habitantes respectivamente. (Cf. VIANA, 2007, p. 8).

97 como produto de dois fluxos migratórios. O processo emigratório teria feito da Los Angeles imaginária uma espécie de protótipo da cidade morta, desprestigiada e nostálgica quanto a seu passado. Citando Amaral:

Essa cidade morta também pode ser vista em BladeRunner , com a progressiva fuga das elites para as colônias espaciais, a cidade fica entregue aos “perdedores”, aos outsiders , às figuras do submundo, à violência, aos poderes paralelos como, por exemplo, os caçadores de andróides ( Blade Runners ). Essa cidade sombria constituída por dejetos e objetos de outras épocas em meio à tecnologia representa para Gorostiza e Pérez (2002) o fracasso da razão, além de estar inserida em uma cotidianidade anômala, na qual os resquícios da destruição em um mundo distópico pós-guerra aparece em forma de uma chuva ininterrupta. (AMARAL, 2005, p. 7).

Os perdedores citados são os responsáveis pela cosmopolização com ares nova-iorquinos e asiáticos, mão de obra para as indústrias que marcam o horizonte urbano com flamejantes chaminés high tech . Para Ridley Scott, a melhor locação para o seu filme seria Hong Kong, cidade por qual é fascinado. Mas a cosmopolita Nova York servir-lhe-ia muito bem, devido sua imponência vertical e influências multiétnicas. Mas por questões logísticas e econômicas, teve que se contentar com a própria Los Angeles. Pior, atendo-se basicamente a uma vila cenográfica de poucos metros quadrados construída nos anos 1920 no estacionamento do BurbankStudios. Pelo menos já tinha emulado as ruas de Manhattan em grandes produções do passado – inclusive sucessos Noir . Com delicados ajustes da direção de arte, o referencial da metrópole original californiana, com incidência solar e amplitude horizontal, cedeu lugar no celulóide a uma claustrofóbica e taciturna mixórdia futurista e antiquada, de Nova York com Hong Kong. Onde camadas históricas como as de Londres se entrelaçam com o aspecto urbano de pólos petroquímicos e metalúrgicos, com todos os seus problemas sócio-ambientais, efeitos da indissociável relação dos processos de industrialização e urbanização do mundo real. Segundo Davis, a metrópole representada no filme concedeu a este um glamour “como estrela dominante da distopia da ficção científica, mas que apresenta uma visão de futuro estranhamente anacrônica e surpreendentemente não antecipatória”. 5 Ainda assim, ele pondera que o longa Blade Runner possa ser considerado uma espécie de “símbolo oficial de Los Angeles, uma mascote sob

5 DAVIS, Mike. Ecologiadomedo. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 342.

98 forma de pesadelo”,6 por sua capacidade de ilustrar distopicamente um tipo de urbanização cujas propostas de crescimento econômico daquela cidade devem evitar que aconteça. No entanto deixa claro que aquela antecipação vertical sugerida pelo cinema pouco se parecerá com o que apontam as tendências de crescimento horizontal desta metrópole californiana. Haja vista que Los Angeles possui atualmente quase mil quilômetros de vias expressas entre suas cinco regiões metropolitanas 7 para que seu inflacionado número de veículos não a congestione 8. “Ridley Scott, com a colaboração do ‘futurista visual’ Syd Mead, apresentou um pastiche de paisagens imaginárias que o próprio Scott admitiu serem excessivamente repetitivas”. 9 No entanto, segundo Cardín, pela primeira vez se tem uma proposta realista, onde ocorre

um urbanismo canceroso e uma arquitetura suja, mescla entre o passado perene e a acumulação de novas construções. Uma arquite- tura pós-moderna por definição, completa, variada, fruto da justaposi- ção, da adição e da mistura, não da premeditação de laboratório (CARDÍN in ARGULLOL, et al., 2001, p. 39, tradução nossa).

Um pastiche de alusões às visões antiquadas de uma cidade do futuro, que desfragmentado mostrará suas fontes em visões anti-utópicas da Ficção Científica derivadas principalmente do filme alemão “ Metropolis ”, que por vez se inspira tanto na verticalidade de Nova York quanto nas visualidades de H.G.Wells. Notadamente “Uma História de Tempos Futuros” (1897) e “ TheFutureinAmerica:ASearchAfter Realities” (1906). Isto é, a metrópole do futuro idealizada como uma espécie de versão monstruosa da já verticalizada Manhattan do passado.

E ocultando-se entre as sombras de arranha-céus de dezenas de andares e as luzes da cidade, sobrevive no labirinto urbano uma fauna exótica de urbanóides intercalando sociabilidades em meio a dejetos e violência. Míseros transeuntes acostumados a ignorar os contrastes. Que são muitos, como o dos produtos high tech e seus clones baratos do comércio ambulante. Como o dos antiquados sedãs carburados que ainda circulam entre sem-tetos e prostitutas e os veículos voadores das instituições de controle da ordem social. Esta população se espreme

6 Ibid. , p. 341. 7 VILAS-BOAS, Sérgio. Califórnia / Los Angeles: utopia e autopia. GazetaMercantil , 1999 8 O escritor Michael Crichton diz em sua FC “O Homem Terminal” (1972) que se marcianos conseguis- sem avistar Los Angeles, considerariam os carros a formadevida dominante. 9 DAVIS, 2001, op. cit. p. 342.

99 desesperançosamente entre torres de refinarias e uma arquitetura que parece ao avesso, pois expõe visceralmente suas instalações. Tudo sob uma constante chuva ácida, algumas vezes condensada em smog, uma insalubre combinação de neblina com fumaça tão densa que se torna capaz de ofuscar parcialmente a luz do Sol, resíduo nocivo da catástrofe ambiental que teria empoeirado o planeta – algo apenas sugerido no filme, mas evidenciado no romance de Dick. A poluição, ao destituir a luminosidade do dia como referência de tempo, fundindo dia com noite, impele aos citadinos a elaboração de seus próprios ritmos circadianos. O que pode deixá-los livres para se adequarem às novas exigências da produção global. Os segundo e terceiro setores acompanham oferecendo engenhocas condizentes, como guarda- chuvas luminosos, óculos de visão noturna e estabelecimentos 24 horas. Tornando a Los Angeles imaginária muito próxima de qualquer cidade global real.

3.2 Urbanicidade e industrialização

As primeiras cenas de Blade Runner apresentam um olho humano em superclose refletindo a paisagem urbana da Los Angeles de 2019, mostrada como uma composição de arranha-céus de arquitetura futurística intrinsecamente misturadas a um imponente parque industrial de aparência petroquímica e siderúrgica. Os spinners cruzam os ares perigosamente próximos às emanações explosivas das chaminés industriais. Um efeito dramático que, no entanto, não excede substancialmente à realidade de muitas cidades cujo crescimento foi, ou ainda é, induzido pelas indústrias próximas, o que é uma interseção geralmente problemática e recorrente. Nas palavras de Lefebvre:

Se distinguirmos o indutor e o induzido , pode-se dizer que o processo de industrialização é indutor e que se pode contar entre os induzidos por problemas relativos ao crescimento e à planificação, as questões referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana, sem omitir a crescente importância dos lazeres e das questões relativas à “cultura.” (LEFEBVRE, 1991, p.3).

Lefebvre considera os processos de urbanização e industrialização inextricavelmente complexos em suas diversas formas. Acredita, em seu pensamen- to de linha marxista, que isto acentua o embate entre as classes já estabelecidas, a burguesia e o proletariado. “A cidade, ao protagonizar o antagonismo destas classes sociais, representa indescritivelmente, os seus direitos imanentes: o habitat urba-

100 no.” 10 Seu referencial é a Revolução Industrial Clássica, por que proporcionou um processo generalizado de industrialização, que ocorre há mais de século e meio, de mãos dadas com a do desenvolvimento da cidade, que a precede desde a Antigüidade. Aquela revolução tem sido o grande motor das maiores transformações sociais já ocorridas. O que condiz com Paul Virilio quanto às conseqüências sociais da invenção da máquina a vapor.

Mesmo que não garanta o sucesso na práxis, para Lefebvre, a reflexão, tanto urbanística quanto sociológica, possibilita a criação de modelos urbanos. A primeira propõe o estabelecimento ou o resgate de unidades sociais originais no intuito de restabelecer uma unidade geral complexa, flexível e hierárquica. A segunda reflexão busca reconstituir as capacidades integrativas da cidade, bem como as condições da participação prática. “A cidade como ato e obra de um pensamento complexo” 11 não pode deixar de ter uma estratégia urbana que considere as pré-existentes e a cogni- ção empírica da cidade para uma apropriada planificação do crescimento e domínio do desenvolvimento. O não uso de tais reflexões no passado é evidenciado pela crise urbana mundial. A crise da cidade é mundial e as razões práticas e ideológicas estão nitidamente presentes nos países. “O fato é que a morfologia urbana explode de forma peculiar nos países em desenvolvimento, formando as favelas, ao passo que nos países desenvolvidos, proliferam-se os subúrbios e nos [então] socialistas, o superpovoamento”.12 Assim, residir em uma grande cidade de qualquer lugar do mundo significa fazer parte de um meio em constante transformação e expansão, mas não necessa- riamente em direção a uma melhoria das condições da qualidade de vida. Conforme Zymundt Bauman, pelas “projeções atuais, dentro de mais ou menos duas décadas, dois em cada três seres humanos viverão em cidades”.13 O que ocasionará um au- mento significativo de metrópoles com mais de 5.000.000 de habitantes. E se estas, não conseguirem “superar em 20 anos o mesmo tipo de problemas que Londres ou Nova York só conseguiram resolver, com muita dificuldade, em 150 anos”,14 certa- mente os transtornos urbanos das metrópoles atuais serão ínfimos face aos que en-

10 SANTOS, Ligia M. R. O direito à cidade, notas de Leitura Lefebvre. RevistadeHistóriaRegional ; Ponta Grossa, v. 8, n.1, 2003, p. 163. 11 LEFEBVRE, Henri. Odireitoàcidade . São Paulo: Moraes, 1991, p. 111. 12 LEFEBVRE apud SANTOS, op. cit., p. 166. 13 BAUMAN, Zygmunt. Vidalíquida . Rio de Janeiro: Zahar, 2007b, p. 94. 14 VIDAL, John, apud ibid, p. 94.

101 frentarão. São perfeitamente visíveis em muitas metrópoles atuais os profundos re- flexos no meio social provindos da interação conflituosa do crescimento urbano de- sordenado com o meio ambiente. Algo que muitas vezes se encontra relevado para segundo plano quando se trata de deixar terreno livre para o desenvolvimento das atividades do capital. Robert E. Park, o verdadeiro criador da Escola de Chicago nos anos 1920 15 , considerou que, “talvez em resposta ao tipo de capitalismo ‘selvagem’ que dominava os Estados Unidos, 16 ” naquela década, “a cidade adquire uma organi- zação e distribuição da população que nem é projetada nem controlada.” 17 Mas ain- da assim “um estado de espírito, um corpo de costume e tradições, sentimento e atitudes organizadas [...].” 18 Etimologicamente, a palavra metrópole é de origem grega e significa “mãe das cidades.” Esta denominação é geralmente aplicada para a cidade que, devido a oferta de emprego em massa, além da centralização administrativa, comercial e de prestação de serviços em saúde, educação, cultura e lazer – o que em teoria lhe proporcionaria melhores índices de qualidade de vida – se converte em um pólo de atração, causando o surgimento e expansão de outros municípios ao seu redor, intrinsecamente ligadas a ela. A integração de diversos serviços públicos, a inexistência de uma zona rural periférica, a unificação da paisagem urbana e outras características comuns a tais concentrações proporcionam ao habitante de qualquer um desses municípios, se sentirem como integrantes de uma grande metrópole heterogênica, porém una . Geralmente a que polariza a conurbação. Para Lefebvre,

a grande cidade explodiu, provocando uma série de protuberâncias ambíguas, como conjuntos residenciais, complexos industriais, cida- des-satélites, que não diferem muito das regiões urbanizadas. As ci- dades pequenas e médias se tornam dependentes, se transformam em semicolônias da metrópole. (LEFEBVRE apud MATTOS, 2004, p.190).

Mas nem todos têm as mesmas formas de acesso às benesses que a metrópole oferece para alguns privilegiados. A distribuição de renda não é tão homogênea quanto parece indicar os imponentes novos centros mundiais de comércio. Devido à transnacionalização das empresas do processo de globalização da economia, estes centros chegam a mexer no arranjo geográfico de cidades já

15 Cf. BLAY, Eva Alterman. Alutapeloespaço . Petrópolis: Vozes, 1978, p. 12. 16 Ibid. p. 12. 17 PARK, Robert E. apud BLAY, op. cit., p. 12. 18 Ibid. p. 12.

102 com suas tradições espaciais, ao ponto de desvencilhá-las de uma região central específica. Há a construção de subcentros que poderão transfigurar em novos centros propriamente ditos, se não malograrem devido aos possíveis reveses do capital. Assim, embora ostentem o oposto, não se garantem perenes a longo prazo, apesar de poderem ser pólos próprios de empregabilidade e, ao mesmo tempo, novos cartões postais da urbanicidade através de construções arquitetônicas marcantes. No entanto, esta policentricidade característica da metrópole globalizada não significa necessariamente uma melhoria homogênica das condições preexistentes de onde sua expansão se faz sentir. Nessa imprecisão em suas áreas limítrofes, não é incomum a convivência, nem sempre harmoniosa, das diferenças sociais típicas do capital, pois muitas vezes o que separa uma favela de uma imponente sede transnacional, é apenas um número do mesmo logradouro.

De uma forma geral, certa homogeneização da verticalidade e a onipresença das mesmas logomarcas tanto nas fachadas quanto nas minúcias do cotidiano urbano não significam, entretanto, que a metrópole tenha escapado de se ver dividida em regiões de maior e menor poder aquisitivo. Assim como na Los Angeles da ficção ou nas metrópoles reais, tal característica é um truísmo. No filme podemos perceber exemplos de alguns desses mundos, pois diversas vezes sua montagem conjuga elementos típicos de uma modernidade capitalista. Como os comerciais exibidos em telões localizados em edifícios e dirigíveis, como também crianças circulando pela cidade à cata de sucatas, assim como moradores de rua se aquecendo ao redor de fogueiras de lixo. O espectador convive com um mundo repleto de certos avanços científicos que ainda não existem, mas sempre é lembrado da realidade social que existe fora da sala de projeção, na tela do mundo em que as novas facetas da economia capitalista se materializam. A gigantesca conurbação da ficção aponta ter sido vítima de um crescimento desordenado e despido de indicações de qualquer planejamento racional, talvez devido ao atropelamento das conseqüências de uma imigração de refugiados ambientais abrupta. E mesmo que parcela desta mão de obra disponível possa ter sido aproveitada pelo grande número de empresas e indústrias que compõe o perfil urbano, transparecem os problemas comuns das grandes metrópoles da vida real, advindo do grande número daqueles que não conseguem inserção no mercado de trabalho. As desigualdades sociais da ficção futurista não se diferem daquelas do presente real. Se neste, os

103 empresários driblam engarrafamentos urbanos com helicópteros particulares, na ficção de Blade Runner , o alto da edificação piramidal da poderosa Tyrell Corporation , como já dito, é o único lugar onde se mostra a luz do sol, por estar metros acima o do manto de smog que obscurece as ruas da cidade. Uma obviedade que o filme não se furtou a retratar, a divisão dos indivíduos em duas classes básicas de poder.

A Los Angeles de Blade Runner , mesmo se diferenciando em aspectos geográficos e sociais do que deverá vir a ser a verdadeira Los Angeles do ano de 2019, como salientou Daves, estampa em sua cenografia o arquétipo da cidade global, “que por suas funções específicas e estratégicas, têm importância fundamental na economia globalizada”.19 Esta conceituação mais generalista não impede, obviamente, a existência da chamada face local, situação que revela um grande paradigma da contemporaneidade urbana. De acordo com Verás, é um paradigma gestado a partir dos anos 1980, como conseqüência da globalização da economia e da divisão internacional do trabalho, fazendo com que metrópoles, de diversos lugares do mundo, apresentem características semelhantes:

[...] crescente desemprego, polarização social, processos sociais excludentes, violência e, o mais importante: ou são base de operações de capital financeiro ou apresentam funções industriais sofisticadas do ponto de vista tecnológico, ou há nelas a presença marcante de empresas transnacionais. (VÉRAS, 2000, p. 19).

A globalização da economia, ainda conforme Véras, deixa os centros urbanos cada vez mais com aparência terceiromundista , ao tornar evidente “a massa excluída, a polarização de classes, gênero e raça, com crescente número de sem- terra, sem habitação, carentes de serviços urbanos básicos.” 20 Uma das propriedades de uma cidade global é ser palco de instalação e expansão de “novas redes de penetração do capitalismo central, presença de pólos de controle, novas formas de subordinação sob contextos neoliberais”, 21 delineando novas formas de relações de seus habitantes. Entre eles mesmos e com os espaços que os cercam. E estes, em constante metamorfose para se adaptarem às voláteis exigências impostas pela competitividade transnacional. O que gera o dicotômico drama social das condições de primeiro mundo para poucos e de terceiro para muitos.

19 VÉRAS, Maura P. B. Trocandoolhares . São Paulo: Studio Nobel; São Paulo: EDUC, 2000, p. 18. 20 Ibid, p. 18. 21 Ibid, p. 20.

104

Nada mais ilustrativo para isso do que o estado insalubre em que vive boa parte das populações de algumas metrópoles asiáticas. Apesar de inseridas no con- texto econômico da globalização capitaneado pelo primeiro mundo, apresentam ainda uma face local de terceiro. O inverso também ocorre, com a instalação de bol- sões de pobreza e desleixo político dentro de metrópoles de países desenvolvidos.

O contraste social, não importando em qual hemisfério esteja a metrópole globalizada, é uma de suas mais visíveis características.

3.2.1 Novas sociabilidades

Algumas metrópoles mundiais, além de diversas características em comum que não se restringem apenas à imponência visual da transnacionalidade de suas empresas, se tornam também cosmopolitas, no sentido de abrigar em seu espaço geográfico etnias estrangeiras oriundas de processos de migração. O que gera interação entre culturas distintas e novas sociabilidades. Historicamente, o aumento de imigração para os centros urbanos se relaciona com a propriedade fundiária concentrada nas mãos de poucos, em um contexto em que os habitantes do meio rural viam-se obrigados a procurem por trabalho nas cidades onde, no século XVII, a Revolução Industrial emergia. O que não difere de alguns perfis migratórios tradicionais à segunda metade do século XX. Aludindo-se a Blay: O migrante, que busca a cidade e que a constrói, vai nela encontrar a liberdade e a negação desta liberdade de dispor de si mesmo enquanto força de trabalho. Esta condição clara, dentro de uma perspectiva teórica, assume na formação social brasileira atual uma dimensão de crise. Premido a abandonar o campo, incapaz de ser absorvido pelas cidades pequenas, o indivíduo migra para os grandes centros urbanos buscando a liberdade de vender sua força de trabalho para poder sobreviver. Entretanto, estes grandes centros, esgotados em sua capacidade de absorção passam a concentrar uma força de trabalho de reserva, além dos limites seguros e controláveis pelo sistema capitalista. (BLAY, 1978, p. 16).

Adiciona-se a esta modalidade de migração, ainda presente em várias nações, uma outra concernente “às contradições da espacialidade do mundo global” 22 (conforme visto na seção anterior ao se referir às metrópoles globais). Em outras palavras, correspondente a uma nova etapa social da edificação de espaço e

22 RODRIGUES,U.B.; CHAVEIRO,E.F. O processo de ir e vir. Ciênciaevidasociologiaespecial , p.31.

105 do tempo capitalista, onde até os conceitos tradicionais de classes começam a perder o sentido. Desde a publicação de seu Manifesto Comunista em conjunto com Engels, em 1848, para os seus seguidores a luta de classes é o motor da História. Para Marx seria impossível adequar objetivamente os anseios das classes visto que elas teriam posições polarizadas entre si, o que caracteriza a luta de classes.

E o conceito de classe baseado em Weber não se distancia muito disso, embora seja considerado mais puro por ser menos ideológico. Ele se dialoga com Durkheim quando se preocupa “em construir o raciocínio sobre as classes partindo da consideração da existência de uma ordem social, regulada por leis gerais, que funcionam como freio, e estabelece limites ou possibilidade de sanção a possíveis transgressores.” 23 No entanto, “o uso da classe social como base de um modelo conceitual para a análise da sociedade e mudança social tem sido objeto de muita controvérsia.” 24 Muito se tem debatido sobre isso não somente pelo ponto de vista da tradição marxista, principalmente quando “colocam em questão todo o tipo de análise simplista e linear do processo de industrialização e o surgimento das sociedades capitalistas”. 25 Segundo Beynon:

[...] é difícil não se render à idéia de que a noção de classe é, simul- taneamente, o mais útil e o mais problemático dos conceitos usados por historiadores e cientistas sociais. Seu atrativo reside, inicial- mente, em possibilitar a identificação de grupos coesos de pessoas por sua posição econômica na sociedade. (BEYNON, 1996, p. 254).

Porém, dentro do contexto de maior complexidade envolvendo mudanças históricas e as implicações socioeconômicas advindas das novas formações geopolíticas pós-queda do Muro de Berlim, tais conceitos, embora ainda largamente usados, passam por questionamentos e atualizações revisionistas, principalmente em face de alterações nas sociabilidades urbanas. Sobre isto, Nunes:

É inegável que nas últimas décadas houve mudanças significativas nos jogos relacionais que traduzem em formas interativas de sociabilidade entre os variados e múltiplos conjuntos de atores so- ciais. Isso implicou inevitavelmente em muitos processos de mudan- ças que derivaram em negociações de significados e de linguagem, já que estes são imbicados na forma. Tais mudanças têm no espaço urbano o seu lócus privilegiado, e uma visibilidade assegurada, garantindo-lhes um efeito multiplicador. (NUNES, 1998, p.1).

23 NUNES, op. cit., [entre 1998 e 2004], p. 4. 24 BEYNON, Huw, AClasseAcabou?Reflexõessobreumtemacontroverso , vol.39, n. 2, 1996, p.254. 25 Ibid. p. 271.

106

Novos tempos pedem novas ponderações sobre conceitos de divisão social, porém baseadas epistemologicamente no passado. Sanções sociais teorizadas por Durkheim, para fins de ordem, extrapolam o campo da teoria social se interdiscipli- nando, por exemplo, com a teoria psicanalítica. Dessa interação surgem conceitos como o de capital simbólico, que ao se relacionar com a estrutura social e seus res- pectivos padrões comportamentais fornece pistas para um melhor entendimento dos fenômenos urbanos, principalmente a partir da segunda metade do século passado.

A partir daí, pode-se entender o conceito de estrutura social como sendo mais amplo do que o de estrutura de classe. Assim, certos grupos podem, desde então, ser encarados não necessariamente como classes sociais, 26 mesmo que polaridades sociopolíticas não passem despercebidas até mesmo ao olhar mais desatento. Pois, de acordo com Mosca:

Em todas as sociedades – desde as parcamente desenvolvidas que mal atingiram os primórdios da civilização até as mais avançadas e poderosas – existem duas classes de pessoas – uma classe que dirige e outra que é dirigida. A primeira, sempre menos numerosa, [...] monopoliza o poder e goza das vantagens que o poder traz consigo, enquanto a segunda, a mais numerosa, é dirigida e con- trolada pela primeira [...]. (MOSCA apud BOTTOMORE, 1965, p. 10).

A discussão sobre as divisões de classes no sentido marxista já era visto por Weber de forma mais tênue e ambivalente, preferindo este enxergar isso como uma questão de interesses de classe. Para Weber, “o lugar social e mesmo o destino dos homens está determinado por uma estimativa social, de honra, onde nem sempre a propriedade joga um papel chave.” 27 Dessa forma, um mesmo grupo social pode abrigar indivíduos de poder aquisitivo distinto. Seria o chamado “grupo de status ”, onde existiria uma espécie de honra social comum mais relacionada com os estilos de vida semelhantes do que necessariamente ao poder de posse material. Em estilos, consideram-se as mais diversas manifestações de exterioridades que servem como identificação daqueles que os seguem. Comportamentos grupais de origem étnica, religiosa, geográfica, etc. que podem se manifestar por códigos próprios através de vestuários, corte e pintura de cabelos, adornos corporais, atitudes, gestos, artes, pontos de encontro, entre outros. Podendo formar o que Maffesoli conceitua como tribos urbanas. Seriam compostas por “indivíduos que se

26 Cf. ibid, p. 271. 27 WEBER, Max apud NUNES, op. cit., [entre 1998 e 2004], p. 5.

107 reconhecem entre si por uma série de símbolos comuns e que terminam por adaptarem padrão de vida e valores que lhes permitem este reconhecimento”. 28 O indivíduo passa a ser, ainda segundo Maffesoli, “o que os outros o reconhecem como tal”. 29 Quanto à dificuldade de se definir classe a partir de situação ou posição na estrutura social, Bourdieu chama atenção para o poder simbólico das relações entre indivíduos de classes distintas, onde se “exprimem diferenças de situação e de posição segundo uma lógica sistemática, tendendo a transmutá-las em distinções significantes”.30 Em seu raciocínio, esta lógica, que incorpora atos e procedimentos expressivos teria como função, não somente traduzir simbolicamente os processos de inclusão e exclusão social, como também “significar a comunidade e a distinção transmutando bens econômicos em signos e as ações orientadas para fins econômicos em atos de comunicação” .31 A expressão de uma posição na sociedade dentro da lógica da distinção, curiosamente a mesma da estrutura social. O valor dos signos não fica restrito necessariamente ao que eles representam como conteúdo, mas sim como relação com os demais signos e expressões do sistema como um todo. Ao se externarem, adquirem significância própria, como observou Lévi-Strauss: “certas maneiras de tratar a linguagem e as roupas, introduzem ou exprimem desvios diferenciais no interior da sociedade, sob forma de signos ou insígnias da condição ou da função”.32 O que não diverge da visão que Simmel tem da moda, por permitir

marcar simbolicamente a “distinção” pela possibilidade de adotar sucessiva-mente diferentes signos distintivos, obedece a uma lógica semelhante à da honra (pelo menos a que se observa nas sociedades estratificadas), na medida em que também confere uma marca comum aos membros de um grupo particular, distinguido-os dos estranhos do grupo. (SIMMEL apud BOURDIEU, 1992, p. 18).

Georg Simmel procurou exemplificar seu pensamento através de reflexões sobre a vida mental dos habitantes do ambiente urbano e industrializado, de onde se pode apurar que a cotidianidade das metrópoles oferece as condições necessárias para que o indivíduo possa se socializar preservando uma espécie de identidade subjetiva, com o poder de lhe preservar dos inúmeros apelos a que possa estar submetida. Em contraponto com as pequenas comunidades do interior, especial-

28 MAFFESOLI, Michel apud NUNES, Ibid, p. 6. 29 Id. apud BAUMAN, Zygmunt. Capitalismoparasitário . Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p.107. 30 BOURDIEU, Pierre. Aeconomiadastrocassimbólicas , São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 14. 31 Ibid p. 17. 32 LÉVI-STRAUSS, Claude apud BOURDIEU. Pierre, op. cit., p. 18.

108 mente as rurais, seria nas grandes cidades a ocorrência das maiores possibilidades de expansão da personalidade individual. Parte do poder de atração da metrópole está em sua condição de permitir que o indivíduo encontre, segundo Park, “algum lugar entre as variadas manifestações da vida citadina o tipo de ambiente no qual se expande e se sente à vontade; encontra em suma o clima moral em que a natureza peculiar obtém os estímulos que dão livre e total expressão a suas disposições inatas”.33 Simmel, de acordo com Blay, considera que na metrópole “amplia-se a gama de alternativas individuais à medida que os sujeitos sentem a possibilidade de cultivar aspectos personalizados e exteriorizar comportamentos despersonaliza- dos”.34 Tal condição pode propiciar a emergência tanto de formas de desorganiza- ção, marginalidade e alienação quanto as qualidades individuais e formação de grupos que se exteriorizam através dos simbolismos. A ocorrência de tal fenômeno é vista como uma das faces do processo de individualização que desde tempos mais remotos vêm dominando as relações. Diferente do que pensava John Stuart Mill, não é um processo relativo à liberdade individual, um dos fundamentos de seu bem-estar – visto que cada pessoa é um ser distinto que teria direito à sua liberdade de pensamento e ação, desde que tal individualidade não ultrapasse os limites dos outros, algo cuja regulamentação poderia ser da parte do Estado 35 .

Mas o que ocorre na práxis da sociedade em tempos atuais, principalmente no meio urbano, não parece se relacionar com o respeito entre os seres humanos ou atitudes cooperativistas, mas sim por uma espécie de enclausuramento pessoal que distancia cada vez mais o indivíduo do meio daqueles que espacialmente lhe estão próximos. Nobert Elias admite que esse conflito no indivíduo, a que ele chama de “privatização” (“a exclusão de certas esferas de vida do intercâmbio social e sua associação com uma angústia socialmente instilada, como os sentimentos de vergonha ou embaraço”), 36 induz a ele um pensamento equivocado. Como se houvesse uma real separação dele para com os outros, “relacionando-se apenas ‘retrospectivamente’ com os que estão fora dele”.37 Algo que freqüentemente pode aparecer, em sua reflexão teórica “como um vazio existencial entre um ser humano e

33 PARK. Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Otávio G. (org.). Ofenômenourbano . Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p.69. 34 BLAY, op. cit., p. 11. 35 Cf. MACHADO, M. L. A relação entre indivíduo e sociedade em Louis Dumont e Norbert Elias. 36 ELIAS, Norbert. Asociedadedosindivíduos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. 1994. p. 103. 37 Ibid. p. 103.

109 outro, ou com o eterno choque entre o indivíduo e a sociedade”.38

Mas ao contrário, esta antagonia é inexistente, pois na percepção de Elias, é a própria sociedade, principalmente as mais modernas que estão em crescente processo de industrialização e de especialização, que implica na individualização de seus membros. O que há são inter-relações dinâmicas entre ambos que justificam suas próprias existências. O indivíduo deve ser compreendido como parte integrante de uma sociedade de indivíduos. Interdependente, mas não como elemento indistinto. E este processo fatalmente gera discrepância entre ambos. O fenômeno das tribos urbanas citadas anteriormente pode ser entendido como uma delas, assim como condutas marginalizadas e anti-sociais, como parte do processo de formação de grupos e instituições com comportamentos e habitus distintos e donos de certo poderio localizado em formações sociais específicas. Segundo Elias:

O elevado nível de individualização ou independência pessoal e, não raro, de solidão, [...] que seja até necessário para a sua manutenção, muitas vezes não se harmoniza muito com a complexa rede de dependência – indevassável para o indivíduo – em que a pessoa se vê encerrada com um número crescente de seus semelhantes, em boa medida devido a suas próprias necessidades socialmente inculcadas. (ELIAS, 1994, p. 124).

Os realizadores de BladeRunner se mostraram comprometidos com reflexões sociais sobre como seriam as metrópoles de futuros próximos. O que deve ter contribuído para auxiliar no embasamento para a caracterização da Los Angeles do século XXI. Como no caso da elaboração dos reflexos culturais da imigração estrangeira naquela sociedade. Gaff, o policial dos origamis , conversa em cityspeak , exótico dialeto urbano que mescla gírias em inglês com dialetos orientais, eslavos e chicanos dos imigrantes, que segundo Cabrera Infante poderia ser chamado de desesperanto,39 em analogia ao Esperanto. O personagem Chew (James Hong), um imigrante chinês, especializado na manufatura de olhos para os projetos genéticos de replicantes, se comunica através de um tradutor eletrônico acoplado à sua roupa. A publicidade, assim como os dizeres de identificação de serviços, geralmente é bilíngüe, mesclando inglês com idiomas orientais, para não deixar de atingir às etnias preponderantes no cenário.

38 Ibid. p. 103. 39 Cf. INFANTE, G. C. La caza del facsímil. In ARGULLOL, Rafael et al. BladeRunner , Barcelona: Fa- bula Tusquets, 2002, p. 26.

110

Já a motivação para a metrópole fílmica ter sido, em algum momento, um grande pólo atrativo para a imigração mundial não é clara na trama, como já visto no Capítulo I. Subentende-se que seja reflexo de um processo de degradação ambiental. Talvez em nível planetário, algo que, em escala menor, aconteceu por diversas vezes na História. Demonstrando paralelos tanto com as modalidades migratórias ligadas ao êxodo campo-cidade, quanto à formação de espaços globalizados nas metrópoles e suas conseqüências de ordem local.

Nesse sentido, a obra de Dick e Scott apresenta um caminho de mão dupla, mas fundamentalmente em sentido único. Pois apresenta duas vias do processo migratório, supostamente por motivos similares. Afinal, os que chegaram à metrópole cosmopolita e os que partem com seus replicantes para exoplanetas estão à procura de novas e melhores condições de vida.

No entanto, o filme deixa claro que em pelo menos uma das vias, a da emigração, existem mecanismos para barrar aqueles que não interessam às novas formas de produção nas colônias. Há uma classificação eugênica que impede que os portadores de disfuncionalidades congênitas emigrem (ou deficientes mentais como a versão de J.F. Sebastian em “ Do Androids Dream of Electric Sheep? ”). Paralelo traçado com as barreiras burocráticas que os imigrantes da atualidade enfrentam, especialmente quando tentam migrar para países desenvolvidos. Principalmente quando se aplicam aos processos seletivos critérios que envolvem as potencialidades individuais advindas da formação e preparação para trabalhos especializados. O que, segundo Bauman, seria mais um fator na sociedade de consumo que forçaria os indivíduos a aplicarem em si, condições para que sejam vistos como mercadorias. Uma leitura iconográfica superficial deste filme pode sugerir, em conjunto com seu conteúdo, que sua metrópole cidade seja palco de uma versão simplista da existência de classes sociais, próxima dos conceitos clássicos de Marx, porém sem uma luta direta entre elas por causa de interesses.

Afinal, não se vê convulsões sociais ideológicas e nem sinais autoritários, exceto quando se tratam de leis contrárias à presença dos replicantes no planeta Terra, que não são considerados pessoas, mas sim propriedades destas. As pessoas se comportam como que conformadas com uma suposta inelutabilidade de suas posições, sem estarem interessadas em promover transformações societárias

111 através de espasmos revolucionários. 40 Em Blade Runner , os executivos podem viver tranquilamente na cobertura ensolarada de suas megacorporações enquanto os trabalhadores ligados direta ou indiretamente à produção dos bens materiais, as- sim como a massa de excluídos, vagueiam no solo sob uma espécie de noite eterna.

Mas aos mais atentos, a opção da produção de oferecer certa visibilidade à heterogeneidade social através de simbologias individuais e ao exotismo de grupos sociais, aponta para as reflexões sobre formas diferentes de abordar os estratos sociais face sua sociabilidade. Nas ruas, nos bares, no comércio informal da metrópole fictícia pulula uma grande diversidade de indivíduos com representações simbólicas de seus grupos, muitas vezes evidenciada na indumentária – mesmo que esta seja, na generalidade da película, um pastiche dos anos 1940 com releituras contemporâneas. No filme vemos grupos de cyberpunks , harekrishnas , imigrantes, sucateiros etc. Porém, se isso torna o filme um tanto inovador dentro do universo cinematográfico do gênero Ficção Científica, ele também se mostra tradicional, ao também retratar a divisão polarizada de classes da forma como foi dita anteriormente. Afinal, desde as obras inspiradas em H.G.Wells e filmes que seguem o padrão de “ Metropolis” , a divisão precisa entre classes chega a ser até clichê quando se trata de distopias futurísticas. Portanto, o fato de não se ter prendido a uma visão simplista da sociedade, de ter mesclado abordagens na sua caracterização da urbanicidade futura, fez o filme, a obra de Ridley Scott, romper com os clichês de quase tudo que já havia sido produzido deste então no cinema do gênero.

40 Não se sugere, no filme, que a forma de governo na sociedade de BladeRunner seja autocrática, muito menos que exerce o poder autoritário. Pressupõe-se que seja uma democracia apoiada em economia de caráter liberal, talvez com o mínimo de interferência direta do Estado nas empresas ou coerção às liberdades individuais. O controle mostrado é apenas policial, sem haver conotação político-ideológica, comum a muitas obras de Ficção Científica na linha de Orwell. Scott e Fancher procuram mostrar através da cenografia, que a Los Angeles de 2019 não vive sob um estado policial, pois o interior da delegacia é mostrado como tão tranqüilo como uma estação ferroviária (onde em seu interior realmente foi filmado). E o olho que vê a poluição na abertura, seria muito mais um recurso estético, do que apenas uma alusão ao olhar onipresente da distopia de Orwell em 1984. No entanto, ao se fazer menção à proibição de replicantes “na Terra”, parece indicar que algum tipo de instituição transnacional, de alguma forma, exerce certo poder legal no mundo. Na seqüência literária escrita por K.W.Jeter (“ Blade Runner 2 A Fronteira do Humano”) a ONU é mostrada como poderosa, à frente do Programa de Colonização e de certa forma, associada à megacorporações de transporte e colonização espacial, a OffWorld , por sua vez, ligada a Tyrell Corporation e ao grupo Shimato-Dominguez. Assim, poderia ser a própria ONU quem teria proibido legalmente os replicantes na Terra. Tal associação de poder é comum na FC Cyberpunk , tratada por Zaibatsu , fazendo referência com o antigo modelo nipônico de relações com os conglomerados econômicos, em que o Estado permitia exercerem certo domínio político e administrativo onde se instalavam. O seu incentivo era uma forma de combate às instituições feudais que ainda sobreviviam no Japão em fins do século XIX.

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3.3 A cidade e a publicidade

Para a Associação Americana de Marketing, referência mundial nesta área, publicidade é conceituada como uma “comunicação não-paga de informações sobre empresas ou produtos, geralmente em alguma mídia.”41 E propaganda, a divulgação midiática de conteúdo doutrinário e ideológico. Em ambos os casos, se são pagos, isto é, quando o intuito é dissuadir um público e/ou mercado alvo sobre produtos, serviços, organizações e idéias, o termo usado é Advertising . No Brasil, publicidade engloba o termo advertising e seria, segundo Sant’Anna, “um meio de despertar, na massa consumidora, o desejo pela coisa anunciada, ou criar prestígio ao anunciante; que faz isso abertamente, sem encobrir o nome e intenções do anunciante, que os anúncios são matéria paga”.42 Usar-se-á neste texto os termos no sentido em que são tratados no Brasil.

É truísmo dizer que Blade Runner , direta ou indiretamente se tornou forte referência iconográfica desde seu lançamento, influenciando visualmente, e até conceitualmente, concepções estéticas e manifestações culturais em geral das mais diversas áreas até os dias de hoje. Como já dito em capítulos anteriores, o jogo de contraluz em ambientes difusos na penumbra abarrotada de citações culturais, uma espécie de marca registrada da direção de arte e fotografia (confiada à equipe de Jordan Cronenweth) deste filme de Ridley Scott, marcou época e trocou referências mútuas com significativa parte da produção cinematográfica e publicitária desde os anos 1980. Algo que surpreendeu até mesmo Scott, 43 apesar deste ter repetido a estética bladerunneana em alguns de seus filmes posteriores, especialmente “Chuva Negra” (1989). Segundo o publicitário João Carrascoza, “os criativos atuam cortando, associando, unindo e conseqüentemente, editando informações que se encontram no repertório cultural”.44

Apesar disso, o uso freqüente e muitas vezes descomedido dessa opção estilística desde então, não é unanimemente aceito por parte da crítica especializa- da. Segundo Ismail Xavier, “os descontentes com essa tendência acabaram levan- tando essa questão, inclusive usando o termo cosmética , o qual define que principal-

41 COVALESKI, Rogério. Cinema,publicidade,interfaces . Curitiba: Maxi Editora, 2009, p. 21. 42 SANT’ANNA apud COVALESKI, op. cit., p. 21. 43 Cf. ENTREVISTA com Ridley Scott. GentedeExpressão . Los Angeles: Rede Manchete, 1992. 44 CARRASCOZA apud COVALESKI, 2009, op. cit., p. 23.

113 mente a fotografia caminha numa direção de falsificação; de embelezamento do que não deveria ser embelezado”.45 Ao se referir sobre a questão da conexão com publicidade e das carreiras de diretores não diretamente relacionados a ela, ele diz algo que seguramente se encaixa com o projeto de execução do filme de Scott, mesmo se referindo à estética publicitária na chamada Retomada do cinema brasileiro:

[...] o que existe no cinema mais recente é uma preocupação pela qualidade técnica e pela adequação do produto a determinados parâmetros do cinema industrial. Então não é só a fotografia que terá que receber uma elaboração que possa lembrar ao público aquilo que o público já admite como uma boa fotografia; não é só a montagem que terá que desenvolver um determinado ritmo narrativo, mas a própria concepção dos roteiros está muito pautada pela idéia da coisa bem feita. (XAVIER, apud COVALESKI, 2009, p. 158).

Especificamente, outra referência visual de Blade Runner são as imagens publicitárias que se conjugam com a paisagem urbana, incorporadas ao cenário sob intertextualidade do merchandising. É outro termo usado em passagens desta pesquisa e que se confunde com o próprio conceito de marketing. É conveniente diferenciá-los, apesar de próximos na essência. Assim, de acordo com Peach.

Em inglês, merchand é mercador. Merchandising, portanto, significa destacar a mercadoria. Enquanto o Marketing explora a imagem da empresa como um todo, incluindo logomarca, promoção, distribuição, mídia, tudo enfim, o merchandising é a exposição do produto. Mostrar o produto é fazer merchandising. Merchandising na TV, por exemplo, é colocar o produto no meio de uma cena de novela. [...] Assim, outdoors, placas em padarias, ônibus [...] são ações de merchandi- sing. Tudo o que coloca o produto em evidência é merchandising. (PEACH apud HAVRO, 2008).

Devido à naturalidade da alocação e em alguns casos, à repetição, o merchandising constante poucas vezes se aparenta artificial e forçado ao longo da projeção, de tal forma que torna raro pensar neste filme sem se remeter às imagens dos grandes telões eletrônicos publicitários, estampados no que parece ser dirigíveis em edifícios. Transformou-se em clichê, desde o lançamento de Blade Runner , a ambientação de futuro urbano, em filmes, clipes e peças publicitárias em geral, o uso de telões em arranha-céus. Até as recentes incursões cinematográficas na Ficção Científica corroboram isso, como o francês “ Renaissance ” (2006), o búlgaro “2035 –

45 XAVIER apud COVALESKI, op. cit., p. 82.

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Cidade do Pesadelo” (2007) e o suíço “Cargo” (2009). São filmes que, assim com BladeRunner , apresentam uma publicidade exagerada, chamada de overload , onde as marcas dominam a vida de todos invadindo o espaço dos indivíduos. Steven Spielberg, na pré-produção de “ Minority Reporty , A Nova Lei”, filme baseado em outro romance de Dick, disse à sua equipe que “BladeRunner” é algo que nós temos que tomar cuidado ao utilizar como uma visão do futuro”.46 Seu filme pode não ter abusado quanto aos supertelões, mas apresentou uma overdose de marketing direto, onde até as embalagens falavam através de animações eletrônicas. No entanto há filmes futuristas como “2001 Uma Odisséia no Espaço”, onde Kubrick nos mostra um futuro (para a época em que foi produzido, 1968) onde as marcas não são tão onipresentes, não estão dominando a vida das pessoas. O oposto total à proposta de BladeRunner são ficções como em “A Ilha” (2005), de Michael Bay, e os distópicos “Fuga do Século XXIII” (1976) de Michael Anderson e “THX-1138”, onde as sociedades mostradas são desprovidas de publicidades. A difusão da informação geralmente é estatal e centralizada, como em “1984” de Orwell (1984) de Robert Apted, porém neste último, acompanhada de muita propaganda visual.

Mas é interessante tentar elucidar o poder de atração destas imagens tão constantes no filme. Parecem refletir mais a nossa contemporaneidade do que necessariamente uma forma de publicidade a ser usada em larga escala no futuro das metrópoles. Visto que com o advento dos “novos media ”, que têm como suporte a rede mundial de computadores, através da internet, algo ao mesmo tempo um corpo social e um instrumento indispensável para as negociações globalizadas, o tipo de marketing denominado de “persuasão” perde terreno para aquele de “permissão.” Isto é, que pode ser controlado, pelo menos parcialmente, pelos próprios receptores da mensagem. Principalmente quando estes dispõem cada vez mais de ferramentas personalizáveis comuns a estes novos tipos de media feito sob medida para o processo de individualização. Como os programas anti-spam para as mensagens eletrônicas de internet. Não que a primeira forma de marketing esteja fadada à extinção, mas dificilmente representará, como já acontece em tempos atuais, a principal estratégia de estímulo ao consumo, por parte dos grandes conglomerados transnacionais ou dos pequenos anunciantes. Na visão de Garneiro,

46 SOLLERO, Daniel. E o futuro da publicidade? Brainstorm9 . 2009.

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[...] é notório que também chegou a vez dos Media passarem por aquele fenômeno de fragmentação do campo social e diluição das suas tradições, enunciado por Anthony Giddens e Ulrick Beck que lhes permitiu, paradoxal-mente, o seu próprio aparecimento como corpo social. (GARNEIRO, 2008, p. 2).

Parte dos anúncios vistos em Blade Runner compõe a necessidade da constante exposição de marcas de produtos industrializados. Algumas criadas para o contexto da trama e outras existentes na vida real e bem conhecidas do público dos anos 1980. 47 É certo que as marcas dificilmente deixarão de existir no futuro próximo, mas como interagirão com a sociedade pode depender da forma com que seus membros reagirão a ela. Outra parte remete à possibilidade do recomeço de uma nova vida nas colônias fora da Terra. Somado ao desenrolar de seqüências no decorrer da trama, o espectador é levado a crer que, naquela sociedade, aqueles que possuem certo poder aquisitivo, capacitação profissional e aptidões físicas (e mentais, de acordo com o romance original) poderiam ter acesso relativamente fácil a um mundo melhor. As imagens exibidas nos telões tentam reforçar isso através de uma perspectiva com a logomarca da “ OffWorld ”, uma das empresas que compõe o consórcio das corporações ligadas à colonização espacial e venda de replicantes. Tecnicamente uma publicidade, mas com certa postura de propaganda, visto que a repetição cíclica da locução em alto-falantes que acompanham tal imagem nos telões dá a entender um caráter doutrinário. Como se a salvação da sociedade não estivesse mais em nosso planeta, que pela proposta do filme, parece padecer sob sua própria entropia. No intuito de se evitar um desconforto urbano quanto a poluição visual, algumas medidas polêmicas são tomadas eventualmente, como no caso de São Paulo. Segundo Sollero:

47 Exemplos de marcas reais: ArtCuisine,Atari,Atriton,Bell,Budweiser,Bulova,Citizen,CocaCola, Dentyne,Hilton,Jovan,JVC,Koss,LAEyeworks,Marlboro,MillionDollarDiscount,PanAm,Pola roid,RCA,Toshiba,JewelersStar,TDK,MillionDollarTheater,TWA . Seguramente o merchandising de BladeRunner deu mais realismo à produção, facilitando a identificação com público. No entanto, o que poderia parecer um sintoma de longevidade das empresas, ironicamente se tornou algo conhecido entre os fãs por MaldiçãoBladeRunner , visto que algumas delas pouco tempo depois entraram em concordata, faliram ou se desintegraram em fusões empresariais típicas do darwinismo capitalista. Segundo o site www.brmovie.com, especializado em Blade Runner: “Atari tinha 70% do mercado de consoles domésticos em 1982, mas enfrentou perdas de US$ 2 milhões no primeiro trimestre de 1991. Bell perdeu o monopólio em 1982. PanAm pediu proteção contra falência em 1991. Logo após BladeRunner ser lançado, a Coca-Cola lançou sua nova "fórmula", resultando em perdas de milhões de dólares. (É interessante notar que, desde então, a Coca-Cola Company registrou o maior crescimento de qualquer empresa americana na história). Art Cuisine pediu proteção contra falência em julho de 1989”.

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O cenário do BladeRunner , embora quase seja real em vários locais do mundo, já vem sendo questionado e a lei Cidade Limpa é um indício disso [...]. As pessoas têm se cansado da publicidade exagerada. Quem está numa cidade em estado quase BladeRunner não nota, mas qualquer pessoa que viva em São Paulo ou outras cidades com leis semelhantes se sentem agredidos ao visitarem locais em que a lei não existe. (SOLLERO, 2009).

Não se vê publicidade em cartazes ou outdoors de papel na Los Angeles de 2019 como se via em São Paulo, não porque existia algum tipo de norma anti- poluição visual, mas porque naquele futuro são obsoletas. É permitido que a atenção do indivíduo, como consumidor em potencial, seja disputada através do emaranhado hipnótico dos muitos luminosos de néon e dos grandes painéis eletrônicos que, sem a hipertrofia exigida pela cenografia, já são atualmente até lugar-comum nas metrópoles e até em cidades de médio porte de muitos países com certo grau de desenvolvimento. Realçando as luzes da cidade com beleza para alguns, poluição visual para outros, parecem querer fazer o acompanha-mento, através das imagens frenéticas que a tecnologia de seus pixels permite montar, da sociedade que se auto- impinge velocidade. Uma sociedade em que as realizações de seus indivíduos não dispõem de tempo para se solidificarem, para se fixarem. Porque velozmente se tornam ultrapassadas e obsoletas. Principalmente pela imposição natural do avanço imposto pelas inovações tecnológicas e suas respectivas condições de produção.

Na ficção de BladeRunner , o lixo que se espalha pelas ruas onde os replican- tes transitam em busca de vida, mais do que composição do cenário, sugere-se su- bliminarmente a morte lenta e agonizante de uma sociedade de consumo. Esse mo- delo de sociedade consumista é extrapolado através das possibilidades corriqueiras do mundo da Ficção Científica. Na verdade, é neste gênero que muitas soluções improváveis a muito longo prazo se tornam plausíveis quase que de imediato. Segundo Reader, “se cada pessoa na Terra vivesse com tanto conforto quanto um cidadão da América do Norte, precisaríamos não de apenas um, mas de três planetas para suprir a todos”.48 Na decadente sociedade deste filme, esta solução já está em prática, pois subentende-se que o mundo inteiro já está esgotado de seus recursos naturais – e o que seria a princípio uma opção de trabalho temporário, viver em outros mundos passou a ser o mais novo objetivo de vida, a oportunidade de mais um reinício. O lixo é um dos grandes problemas ecológicos, e também sociais,

48 READER apud BAUMAN, 2007b op. cit., p. 39.

117 do mundo líquido-moderno. O consumismo desmedido de seus membros é necessário para se movimentar um sistema econômico que por sua vez consome também desmedidamente o meio ambiente, produzindo de forma cada vez mais acelerada os bens de consumo que irão poluí-lo com dejetos suscetíveis ao reinício da reciclagem. E o óleo desta engrenagem, tanto na ficção quanto no mundo real é ao que tudo indica a publicidade que incute no indivíduo que ele não será nada se não participar ativamente do sistema. Nesse sentido, a publicidade se traveste de propaganda. É uma visão que não se distancia de Adorno quando este percebeu o contraste da ausência publicitária na vistosas arquiteturas empresarias com o excesso visual que oculta as edificações antigas e decadentes, porém projetadas para a residência. O mesmo contraste entre a pirâmide da Tyrell e seu entorno.

Os prédios que sobrevivem do século XIX e cuja arquitetura ainda re- vela vergonhosamente a utilidade como um bem de consumo, ou se- ja, sua finalidade habitacional, estão recobertos, do andar térreo ao telhado, de painéis e anúncios luminosos: a paisagem torna-se um pano de fundo para letreiros e logotipos. A publicidade converte-se na arte pura e simplesmente, com a qual Goebbels identificou-a pre- monitoriamente, aartepelaarte , publicidade de si mesma, pura re- presentação do poderio social. (ADORNO, 1985, p.152, itálico do autor).

Apóia-se assim o entendimento que a suposta liberdade de escolha sugerida pelo espetáculo publicitário naquela daquela sociedade do limiar dos anos 2020 mostrada em Blade Runner seja isenta de uma ideologia que reflita aspectos ditatoriais. A contradição que reside em quase toda a cenografia leva ao subentendi- mento das imposições de uma sociedade baseada na ditadura do consumo. A incoerência da beleza visual de suas imagens e o realce da degradação metropolita- na pode chamar a atenção para a trivialidade das contradições modernas. Isso está implícito na diligente direção de arte de David Snyder, que sobressai principalmente pela quantidade absurda e caótica de detritos culturais que inunda quase toda a película. Objetos que em algum momento teriam resplandecido nas vitrines do con- sumo como objetos do desejo, como escapes aos desafios da sociedade que promove a individualidade de seus membros, surgem articulados com a degradação de personagens com ares de que vagam indiferentes aos obsoletismo que também recai sobre eles. Ao atrelar a necessidade do consumo como forma de se conformar às regras sociais numa luta pela individualidade, Bauman comenta:

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A luta pela singularidade agora se tornou o principal motor da produção e do consumo de massa. [...] A singularidade agora é marcada e medida pela diferença entre “o novo” e “o ultrapassado”, ou entre as mercadorias de hoje e as de ontem que ainda estão novas e, portanto, estão nas prateleiras das lojas. (BAUMAN, 2007b, p. 36).

Scott sempre valorizou a colaboração direta de profissionais de artes como Snyder. Para a concepção biomecânica e intestinal de “ Alien” , contou com o pintor suíço surrealista H.R.Giger. Para “Gladiador”, seus desenhistas de produção buscaram inspiração nas pinturas academicistas do século XIX. Para conceber Blade Runner , ele mesmo desenhou suas primeiras idéias inspirado em quadrinhistas da revista francesa MétalHurlant , como Enki Bilal e Jean Geraud Mœbius cujos traços e roteiros são famosos por mostrarem visões de futuros abarrotados de detritos, não necessariamente culturais. Mœbius era a primeira opção para a concepção visual de Blade Runner .49 Diante da indisponibilidade deste, em seu lugar Ridley Scott contratou a peso de ouro o ilustrador e desenhista industrial Syd Mead, que com este trabalho que segue linha divergente das propostas usuais de futuro no cinema, passou a se apresentar como “futurista visual.”

Condizentes com as incoerências de uma sociedade considerada líquido- moderna para Bauman, o aparato tecnológico capaz de façanhas ainda distantes de nossa realidade atual foi propositalmente concebido por Mead para que esteticamente já se pareçam obsoletos. Como se o design moderno se extrapolasse bizarramente alterando de modo radical a aparência de um produto em lançamento no mercado, a fim de lhe revestir com ares de novidade, conferindo-lhe independên- cia dos modelos da linha anterior, mesmo que essencialmente similares. Modelos que certamente dividirão espaço nas prateleiras, porém com preços diferenciados. Mead teve a consciência disso ao projetar a parafernália tecnológica de Blade Runner , afinal prestava serviços para corporações que freqüentemente usam de tal estratégia, como a Sony, Phillips e Ford. Assim, os objetos cenográficos do filme aparentam já estar prontos para o descarte antes mesmo de serem consumidos por completo. Esta visão anacronicamente antiquada dos mecanismos do futuro é notória entre os

49 Scott era impressionado com a metrópole futurista de “O Longo Amanhã” (1976), história em qua- drinhos desenhada por Mœbius e escrita por um fã de Dick, Dan O’Bannon, roteirista de “Alien” .

119 profissionais do desenho industrial como “ retrofitting ”.50 Um lixochique feito como uma colagem às avessas de símbolos cotidianos da modernidade, ainda não destituídos de seus significados – como muitas projeções de utilidades domésticas em protótipos exibidos nas feiras e grandes exposições do passado norte-americano, se apresentam funcionais, porém visualmente desmedidos. Viaturas policiais de design esdrúxulo (os spinners ) levitam magneticamente, porém lançando mais fumaça do que as antigas locomotivas a vapor sobre passivos transeuntes que se vestem como se ainda estivessem nos anos 1940. Máquinas que ajudam a diferenciar humanos de seus simulacros replicantes ( VoightKampff ), ou que vasculham tridimensionalmente uma fotografia normal ( Esper ), ao invés de lem- brarem os atuais laptops , se assemelham mais às geringonças pantográficas do sé- culo retrasado ou às pilhas de sucatas eletrônicas. E se os atuais monitores de led , plasma ou LCD estimulam soluções inovadoras de interface, a onipresença na ceno- grafia de tubos de imagem arcaicos com imagens borradas ou gráficos da era pré- Windows – que por um curto espaço de tempo pareciam inovadores nos anos 1980 – transfere ao espectador uma sensação de intenso desconforto diante da hegemonia sorrateira das parafernálias que antes deveriam proporcionar o bem-estar e a felicidade dos comerciais de TV. O design retro-futurista de Mead, ao esposar har- monicamente as dicotomias do brega ao chique, do feio ao belo, do aceitável ao refutável, da vanguarda ao antiquado exterioriza uma perspectiva de um porvir não necessariamente auto-referente e mergulhado em uma estética ultrapassada. Parece querer indicar que em nossa condição atual, em tudo que resplandece como o efêmero brilhar de uma estrela supernova, cairá quase que imediatamente no acú- mulo da obscuridade, da penumbra esfumaçada de uma noite que nunca termina. Detritos que se submergem, assim como tudo o que sobrou da civilização humana na Terra, sob a incessante chuva ácida que parece encarregada de liquefazê-los de uma vez por todas. A representação de uma sociedade literalmente tão líquida que suas imagens dificilmente se desassociam dos pressupostos atuais de Bauman, principalmente quando este remete à cultura do individualismo da atualidade. O indivíduo é o que ele escolhe ser através do que ele pode ou deve escolher ter.

50 O termo é jargão técnico do meio industrial, significando modernização de equipamentos obsoletos (Cf.). O termo é popular aos fãs de Blade Runner devido ao livro “ RetrofittingBladeRunner ”, organizado por Judith B. Kerman. Contém ensaios que atentam para a multiplicidade de textos e influências no filme, considerando literatura, filmes e publicações técnicas. Cf.: .

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Podemos dizer que, em sua fase líquido-moderna, a cultura é feita na medida da liberdade de escolha individual (voluntária ou imposta como obrigação). É destinada a servir às exigências desta liberdade. A garantir que a escolha continue a ser inevitável: uma necessidade de vida e um dever. Assegurar que a responsabilidade, companheira inseparável da livre escolha, permaneça lá onde a condição líquido- moderna a colocou: a cargo do indivíduo, apontado hoje como o único administrador da “política de vida.” (BAUMAN, 2010, p. 33)

Uma opção escolhida pela produção de Blade Runner , de apresentar uma sociedade mergulhada na ditadura do consumo, ilustra de certa forma análises críticas como esta. Note-se que não há indícios na distopia bladerrunneana , de uma sociedade sob um controle pesado estatal indicando um governo totalitarista comum em visões anti-utópicas do futuro, como algumas citadas no capítulo anterior. Algo muitas vezes vinculado com a fase “sólida” da Modernidade, onde apoiado em ideais marxistas, tentou-se construir uma ordem homogeneizadora que passasse sobre as ambigüidades e variedades do indivíduo. Segundo Bourdieu, “a cultura vive de sedução, não de regulamentação; de relações públicas, não de controle policial”.51 A fase líquido moderna de nossa sociedade pode ser vista sob o prisma de uma cultura que se obriga a alguma coisa contraditoriamente à liberdade de escolha. É justamente isto, através da diversidade de produtos e serviços oferecidos, que a publicidade ostensiva em BladeRunner se apresenta – que por sua vez já não era muito diferente da que existia nas grandes cidades à época de sua produção, a não ser pela onipresença de telões de dimensões gigantescas. Como se quisesse dizer, e dizendo, que para ter sua individualidade naquela sociedade, o cidadão necessita se coletivizar através do seu consumo particular.

Na ótica do pensamento baumaniano, em um mundo líquido-moderno, que condiz com as aquelas imagens cinematográficas, ter sua individualidade pode ser paradoxalmente contraditório. Pois a homogeneização parte do próprio estilo de vida baseado no consumismo perdulário, onde as frustrações e agonias individuais típicas deste mundo se submergem temporariamente enquanto se adquire as mais recentes versões dos bens de consumo. O ato de comprar constantemente incute uma aura de coletividade. Combate à solidão do ser e o faz sentir parte de um todo. “Ser um indivíduo significa ser igual a todos no grupo – na verdade, idêntico aos demais”.52

51 BOURDIEU, Pierre apud BAUMAN, 2010, op. cit., p. 33. 52 BAUMAN, op. cit., 2007b, p. 26.

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3.3.1 O corpo como reflexo urbano

O paradoxo da individualidade parece ser um paradigma em uma sociedade voltada para o consumo. Se para ser diferente, se necessita ser igual consumindo cada vez mais e mais, a logística desta se baseia em parte no estímulo para a substituição rápida e imediata dos bens de consumo, mesmo aqueles projetados teoricamente para durar. Celulares, computadores, veículos e até mesmo edificações são construídas com suas durabilidades proporcionalmente reduzidas. Neste caso, “uma economia de consumo também deve ser uma economia de objetos de envelhecimento rápido, obsolescência quase instantânea e veloz rotatividade”.53

Em BladeRunner , o personagem de J. F. Sebastian, o projetista genético que trabalha para a Tyrell Corporation parece refletir as contradições desde mundo em seu próprio estilo de vida e até mesmo em seu corpo. Por um lado parece lutar contra a velocidade do fluxo econômico, ao optar por morar isoladamente e sozinho em um edifício 54 vazio e marginalizado, devido a emigração, do antigo centro de Los Angeles . Suas únicas companhias são animais empalhados e simulacros humanos sob a forma de brinquedos, manequins, e bonecos robóticos de inteligência artificial limitada que ele mesmo monta como hobby . Mas Sebastian também é limitado. Se no romance original o motivo é uma espécie de deficiência mental,55 na adaptação para as telas esta passou a ser algo denominado Síndrome de Matusalém, cujo principal sintoma seria a decrepitude acelerada. Isto é, um envelhecimento precoce geral que lhe faz ter um corpo de um cinqüentenário, mesmo tendo a metade disso.56 Como se estampasse em si o obsoletismo daqueles que não conseguem acompa-

53 BAUMAN, Zygmunt. Vidalíquida . Rio de Janeiro: Zahar, 2007b, p. 36. 54 Para os mais atentos, há nesta locação uma homenagem a Ray Bradbury, escritor e roteirista de Ficção Científica de tendência mais poéticas do que tecnológicas, quando se percebe que a produção de BladeRunner optou por manter o nome original da locação, um edifício histórico real de 1893 coincidentemente chamado The Bradbury Building . Curiosamente, segundo Sammon (p. 138-139), seu projeto arquitetônico, a cargo de George Wyman, foi inspirada nas concepções do uso do espaço em prédio futurístico da FC utópica de Edward Bellamy (o romance “Daqui a Cem Anos” comentado em 2.3). Embora visualmente seja datado como de linha eclética conjugando influência da Arquitetura Românica e Art Noveau. comumente usado como cenário de produções de Hollywood (destaque para os clássicos noir “DOA - Vivo ou Morto” (1950) de Rudolph Maté e “Pacto de Sangue“ (1944) de Billy Wilder). 55 No Romance de Philip K. Dick, o nome original do personagem é J.H.Isidore, e seu trabalho é de motorista de uma ambulância veterinária e auxiliar no tratamento clínico de animoids , a versão replicante e barata dos raríssimos animais de verdade, pois a maioria se encontra quase extinta. 56 Algo próximo, na vida real, dos sintomas da Lipodistrofia, doença que, entre outros sintomas, pode dar aparência envelhecida aos seus portadores, geralmente soropositivos em fase de tratamento. Disponível em: .

122 nhar a liquidez do mundo, sentindo-se estúpido por não ter o equipamento eletrônico da mais nova geração, ou sendo impedido eugenisticamente de migrar para mundos melhores. Simbioticamente refletindo o lado moribundo de sua metrópole, onde os que podem se esvaem para novas terras prometidas entre as estrelas do céu. Mas os que ficam, são obrigados a verem a cidade e a vida se arruinando em conluio. Onde suas publicidades dirigidas basicamente aos normais que restaram, lembram às pessoas como Sebastian e a si próprio, “de incontáveis maneiras, que ele, um especial, não era desejado” 57 pela sociedade de consumo.

Sebastian vive em uma região de prédios semi-abandonados que se misturam abruptamente com sub-centros inchados por uma população de migrantes, de vários países degradados sócio e ambientalmente, em busca das vagas deixadas pelos que esvaíram. Em seu microcosmos de autômatos, que parecem montados a partir de sucatas do consumismo biomecânico do século XXI, J.F. não se sente estranho. Não percebe que como tal encobre os limites fundamentais que a sociedade cria para a sua própria ordenação. Sua existência é um contra-senso a isso, motivo de mal estar aos normais. Vivendo na periferia do mundo que por sua vez já se torna periférico com o grande êxodo, Sebastian encarna as duas estratégias alternativas usadas pelo estado moderno para manter a ordem harmoniosa e racional que não admite estranhos: a estratégia antropofágica e a antropoêmica. Conceitos criados por Lévi-Strauss que Bauman toma emprestado ao analisar este processo.

Segundo este, na primeira tenta-se tornar o estranho semelhante, na tentativa de que ele mude e seja assimilado pelo sistema. Na segunda, o estranho é excluído socialmente, empurrado para fora da convivência com os demais.58 Sebastian exerce sua profissão, trabalhando de forma terceirizada para a indústria biotecnológi- ca, o que lhe permite estar no mercado de trabalho como produtor e consumidor. Cumpre o seu papel ao ter construído sua identidade sob a forma de realização individual por conta própria, uma das características do projeto de modernidade. Se parece assim tão antropofagizado , ao mesmo tempo em que é também vítima da antropoêmica, pois devido à sua doença, é barrado nos exames médicos para a emigração social, sendo impedido formalmente de acompanhar o grande fluxo do reinício coletivo social. Sebastian morre nas mãos do replicante Roy Batty mesmo

57 Dick, Philip K. Ocaçadordeandróides . Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 28. 58 Cf. BAUMAN, Zygmunt, 1998, op. cit., p. 30.

123 após ajudá-lo, pois mesmo sendo simpático à sua causa, era um ser humano, um dos culpados pela existência líquida dos replicantes.

No entanto, J. F. Sebastian é o retrato da solidão tanto quanto alguns retratos que o protagonista coleciona em seu apartamento, onde vive sozinho cercado de referências supostamente identitárias.59 Deckard, mesmo quando não está entretido na sua caça aos replicantes, apresenta um semblante carregado e muitas vezes parece distante, o que é realçado pela melancólica trilha sonora.60 Uma solidão que ultrapassa o reflexo das atitudes que toma em sua caça aos replicantes. E ganha ares de introspecção, assim como os demais personagens, principalmente humanos. Muitos parecem alheios e distantes ao que acontece ao redor, seja diante de situações banais ou um caso extremo de violência nas ruas. A apatia geral dos membros daquela sociedade futurística, que parece excluir apenas os replicantes, pode ser interpretada como uma espécie de resposta psicológica e também fisiológica do homem frente ao frenesi dos estímulos da cotidianidade metropolitana de uma sociedade industrializada. Neste ponto, o pensamento de Bauman parece encontrar respaldos no que Georg Simmel chama de atitude blasé, um comportamento necessário para a estabilidade psíquica do habitante dos grandes centros urbanos, a essência do mercado. Citando extensamente este último:

Não há talvez fenômeno psíquico que tenha sido tão incondicional- mente reservado à metrópole quanto à atitude blasé. A atitude blasé resulta em primeiro lugar dos estímulos contrastantes que, em rápidas mudanças e compressão concentrada, são impostos aos nervos. [...] Surge assim a incapacidade de reagir a novas sensações com a energia própria. [...] Essa fonte fisiológica de atitude blasé metropolitana é acrescida de outra fonte que flui da economia do dinheiro. A essência da atitude blasé consiste no embotamento do poder de descriminar. Isto não significa que os objetos não sejam percebidos, [...] mas antes que o significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas, são experimentados como

59 Mesmo sendo um apartamento situado no nonagésimo andar de uma torre futurista, na verdade é simulacro da casa Ennis-Brown, projeto de influência Maia do arquiteto modernista Frank Lloyd Wright, situada em Los Angeles. A opressiva decoração interior, que tinha a sutileza da bagunça vi- sual de um antiquário com a estética de uma instalação de arte conceitual, foi do desenhista de pro- dução Lawrence Paull com objetivo de realçar a solidão do protagonista. Segundo Sammon (1996, p.137), Paull projetou todos os cenários visando gerar emoção genuína, gastando 175 mil dólares (valores de 1981) para realçar tanto a sua solidão quanto o peso da função de se caçar replicantes. 60 A trilha original, a cargo do multiinstrumentista grego VangelisPapathanassiou, procura ambientar a trama, segundo o próprio, numa atmosfera de "nostalgia futurista" (Sammon, 1996, p. 273). De acordo com Sammon (1996, p. 273), a trilha é descrita como "uma vertiginosa e ousada mistura de romantismo, ruídos eletrônicos ameaçadores, blues de sarjeta, delicadas nuances celestiais em uma dolorosa melancolia" (tradução nossa).

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destituídos de substância. Elas aparecem à pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco; objeto algum merece preferência sobre outro. [...] Na medida em que o individuo submetido a esta forma de existência tem de chegar a termos com ela inteiramente por si mesmo, sua autopreservação em face da cidade grande exige dele um comportamento de natureza social não menos negativo. Essa atitude mental dos metropolitanos um para com o outro, podemos chamar, à partir de um ponto de vista formal, de reserva. (SIMMEL, 1973, p. 15-17).

A partir das informações sobre Deckard, disponibilizadas na narrativa em off da Versão de Cinema e em cenas rejeitadas no processo de simplificação do filme, sua visível frieza parecia se justificar pelo fim de seu casamento. Dizia ser chamado de sushi , o peixe frio da culinária japonesa, por sua ex-esposa. Numa cena excluída no processo de montagem, ao ver uma foto tirada com ela em uma ensolarada varanda, a locução de Deckard informava, ainda, que ela lhe abandonara partindo com outro buscando uma vida melhor nas colônias espaciais. No entanto aquela apatia que limitava a representação de Harrison Ford, foi considerada, aos especta- dores mais atentos, como a resposta de um indivíduo urbano diante dos estímulos contrastantes e multifacetados daquela polis do século XXI. A visível atitude blasé de Deckard, que comprometia até o seu discernimento, seria ratificada em outro mo- mento aparentemente simplório também excluído. Neste, somente após arrancar um pedaço do peixe que fazia parte do lanche do freguês de uma espelunca, se aperce- be que uma evidência colhida no esconderijo dos replicantes, era na verdade uma escama artificial. Pista importante em sua investigação. Indiferente aos estímulos externos, ignora por completo as reclamações por ter enfiado a mão em prato alheio.

Em seu distanciamento, Deckard também indica ser o reflexo do próprio processo de alienação do indivíduo em relação às mazelas de sua própria sociedade, um recurso psíquico de auto-preservação aliado a uma grande constatação de impotência como indivíduo. Segundo Mills: “na medida em que a superdesenvolvida megalópole e o superdesenvolvido automóvel são características intrínsecas da sociedade superdesenvolvida, as questões públicas da vida urbana não serão resolvidas pela engenhosidade pessoal e pela riqueza particular”.61

Em DADoES, Deckard e sua esposa são viciados no uso de equipamentos eletrônicos capazes de interferir na disposição física e psíquica para se enfrentar as

61 MILLS, C. Wright. Aimaginaçãosociológica . Rio de Janeiro: Zahar, 1965, p. 17.

125 agruras do cotidiano metropolitano. Uma espécie de versão magnificada e prática das teorias publicadas na literatura de auto-ajuda da atualidade. Máquinas capazes não somente de alterar artificialmente o estado psicológico ou a motivação para se levantar da cama e enfrentar a realidade (o penfield ), como também proporcionar epifanias em rede e a materialização física de ferimentos, martirização religiosa (caixa de empatia). Tecnologia que permite ser regulada inclusive para se maximizar sintomas depressivos como uma espécie de terapia, o que não impossibilita a prisão em um círculo vicioso passível de conseqüências fatais.

3.4 A metrópole líquido moderna

Para viver em paz com a sua religião, em DADoES, Deckard que é um ser humano de fato não considera os andróides como humanos, mesmo sendo fisiologi- camente igual a eles. Principalmente por não possuírem características empáticas, como os animais não gregários, segundo Philip K. Dick. No entanto, após a remoção de uma andróide que parecia apreciar uma mostra de Edvard Munch em um museu, questiona se possuem alma. Em sua mente, traça um paralelo entre a situação desesperadora dos andróides com a figura da tela “O Grito”, passando a se questio- nar sobre sua própria frieza e apatia para com o mundo. O que o leva a adquirir um souvenir do museu, talvez como escape daquele imbróglio ontológico e a aplicar em si mesmo o teste Voight-Kampff. Desconfiado sobre sua própria natureza, visto que os andróides, diferentemente de suas versões do cinema, são frios e insensíveis.

Os andróides no romance, enquanto no espaço, são consumidores dos sonhos humanos de outrora. Pois são viciados nas antigas pulps magazines de Ficção Científica que exaltavam as então futuras maravilhas da conquista espacial, que nunca se concretizaram da forma como descritas. Principalmente sob o prisma daqueles que ocupavam posição como a de servidão. A FC tinha função entorpe- cente, pois mergulhava-os em realidades artificiais causando dependência, tanto que era traficada clandestinamente da Terra para as exocolônias. Quando eles mesmo eram clandestinos na Terra, ansiavam por uma vida integrada à sociedade de seus criadores humanos. Reproduziam inclusive seus defeitos, o que por vezes não era difícil, uma vez que não possuíam a faculdade da empatia. Nesse sentido, o exemplo mais eloqüente talvez seja o menosprezo ao estranho, ao não inserido na sociedade

126 de consumo, como Sebastian. Desejam fazer parte diretamente da sociedade de consumidores que se formou no século XX, quando o consumismo substituiu o trabalho como papel-chave da sociedade dos produtores. Os andróides desejam abdicar de suas posições que parecem reconstituições dos produtores e soldados daquelas, hoje, obsoletas sociedades de produtores. Afinal, ao serem usados para a produção das condições materiais de vida dos humanos, sendo limitados geneticamente a não viverem para desenvolverem consciência crítica sobre suas próprias condições, não se diferenciam fundamentalmente das condições dos que mantinham, também com seus próprios corpos, as sociedades de produtores.

O corpo do potencial trabalhador ou soldado era o que mais contava; seu espírito , por outro lado, devia ser silenciado, e uma vez adorme- cido, logo “desativado”, podia ser posto de lado como algo sem com- seqüência [...]. A sociedade dos produtores e soldados se concentra- va na administração dos corpos a fim de tornar a maior parte de seus membros apta a morar e agir em seu pretenso habitat natural: o chão da fábrica e o campo de batalha. (BAUMAN, 2007b, p. 73).

Para deixarem de ser como escravos da modernidade, posição socioeconô- mica como se vêem e como são vistos mesmo sendo considerados objetos consumíveis, os andróides do filme, necessitam ainda transpor a barreira da morte, do tempo de vida útil em que lhes fora imposta, para que se potencializassem como humanos de fato. Pois sem prazo de vida e questionadores, talvez nada em suas essências os diferenciassem verdadeiramente dos seres humanos, como o robô bicentenário de Asimov. Na verdade, da forma como foram retratados no filme de Scott, eles chegam a ser mais humanos que os humanos, pois ao procurarem mais vida, traçam ações concretas que parecem lhes dar um sentido para a existência. O que evidentemente, o filme não demonstra ser um escopo para os representantes da espécie humana. Se com a primeira versão, uma luz no fim do túnel poderia existir com a emancipação existencial de Deckard, a partir da versão do Diretor, descobre- se que tal evolução ocorrera a um replicante. Isto é, a humanidade continua mergulhada obscuramente no vazio que a sociedade de consumo impõe, para que motocontinuum consiga se manter.

Cumprindo o dever de uma FC de qualidade, a forma em que a sociedade do mundo de BladeRunner é apresentada induz o espectador a se voltar criticamente à sua própria sociedade. O mundo social ao ser abordado pelo ângulo de uma

127 metrópole do futuro, não escondeu o presente metropolitano, muitas vezes marcado pelos problemas oriundos da industrialização, que obrigam os cidadãos a se inter- relacionarem através de novas formas de sociabilidade que não se atrelam mais a sistemas ortodoxos de classificação social. Cidadãos urbanóides que circulam por uma miríade de estímulos publicitários, refletindo-os em respostas fisiológicas, que tentam impor-lhes que não serão indivíduos se não seguirem estritamente as leis do consumismo. Assim, chega-se a uma das principais válvulas de escape para a frustração e a ansiedade de se viver em uma sociedade onde se faz presente o consumismo desenfreado e compulsivo, com ares de vício. Atitudes como trocar um aparelho eletrônico por um da mais nova geração, assim como o carro pelo modelo mais novo, passar a beber o mais novo sabor de refrigerante, como o que aparece nos telões da Los Angeles de 2019, freqüentar os lugares mais badalados usando a roupa da moda parece ser um sintoma que indica o medo de estar fora do compasso das persistentes alterações da contemporaneidade. Mas a insatisfação é constante, pois tudo é depreciado na velocidade dos anúncios das novas tecnologias, novas estéticas e novos modismos. A busca pela satisfação é sempre fadada ao fracasso, pois a cultura do consumo mantém a todos em um eterno jogo cuja regra é nunca se satisfazer com a realização dos desejos atendidos. Desejos, não necessidades verdadeiras, porque o consumo impõe o desejo de se ter desde sempre aquilo que nem sequer existia até aquele momento. Segundo Bauman:

Pode-se dizer que o “consumismo” é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, neutros quanto ao regime, transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade [representando] um papel importante nos processos de auto-identificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais. (BAUMAN, 2007b, p. 41).

Tudo inteligentemente entrelaçado de uma forma que a própria suposta necessidade de possuir algo não se esgote com tal posse. Ao contrário, renova-se imediatamente, pois é costumeira a sensação de que mesmo no ato da compra já exista algo mais condizente com o momento, do que aquele que está sendo adquirido. A renovação das ofertas, sob a desculpa de serem mais alinhadas com novas possibilidades advindas do desenvolvimento tecnológico, o que geralmente não se trata de uma inverdade, é uma grande causadora da insatisfação, pois numa sociedade líquido-moderna, a probabilidade de sentir sólido é bastante reduzida.

128

A pilha de expectativas malogradas tem um paralelo nas crescentes montanhas de ofertas descartadas das quais se esperava (pois prometiam) que satisfariam os desejos dos consumidores. [...] Para que as expectativas se mantenham vivas e novas esperanças preencham o vazio deixado por aquelas já desacreditadas e descartadas, o caminho da loja à lata de lixo deve ser curto, e a passagem rápida. (BAUMAN, 2007b, p. 108).

Para tentar se manter aparentemente sólido nesta sociedade, os indivíduos necessitam constantemente de aperfeiçoamentos técnicos, de upgrades mentais tanto quanto se fossem máquinas reprogramáveis. Como computadores que têm seus programas atualizados até que eles mesmos não sirvam mais e vão parar nos lixões eletrônicos. Os indivíduos líquido-modernos da sociedade de consumidores se diferenciam fundamental-mente daqueles das hoje obsoletas sociedades de produto- res. Principalmente por que estes eram preparados e disciplinados para a ação dentro de suas próprias sociedades, como produtores propriamente ditos, ou como soldados defensores daquele modelo. A insatisfação não era sentida, pois o que pre- ponderava era a adequação natural às normas sociais, obediências às regras e acei- tação da eterna rotina do trabalho pesado. Em teoria, na sociedade dos produtores não há uma ideologia propriamente dita para ser imposta, “mas posicionamentos intocáveis e dissolúveis que necessitam ser cumpridos, para que se consolide o sentimento social”. O consumismo em excesso e o investimento infinito em si mesmo para não se desemparelhar com as necessidades da sociedade de consumo são alguns destes posicionamentos. Os indivíduos necessitam arduamente, se quiserem permanecer no jogo social, de bons empregos para serem bons consumidores de mercadorias. Tornam-se simultaneamente produtores e promotores de um produto que é a sua própria capacidade produtiva. Precisam se vender como mercadorias para assim não ficarem de fora do processo de aquisição das mercadorias, tanto as necessárias para a manutenção da vida, quanto as desejáveis para se sentirem com vida. “Para tanto, fazem o máximo possível e usam os melhores recursos que têm à disposição para aumentar o valor de mercado dos produtos que estão vendendo, [...] elas mesmas”.62

Para este processo de comodificação de si mesmas, necessitam sempre de investir no corpo, alimentando as indústrias ligadas ao culto ao corpo, da estética corporal, das aparências e afins. Indústrias que lucram em cima do desejo de

62 BAUMAN, Zygmunt. Vidalíquida . Rio de Janeiro: Zahar, 2007b, p. 94.

129 indivíduos, que tais como os replicantes de Scott, têm medo do tempo, de serem atropelados por ele. De indivíduos que necessitam esconder para os demais que seu tempo de vida está naturalmente se esgotando, como se isso fosse um defeito de fabricação, ou uma limitação para as relações sociais. Buscam soluções para o desgaste orgânico tanto quanto um replicante busca estender o prazo de vida através da ciência de Tyrell. Nessa ótica, Sibilia crê que:

[...] a carne que conforma os nossos corpos vive sob a ameaça da condenação à “obsolescência”, e é acusada de “impura” por ser finita, perecível e demasiadamente orgânica. [...] É por causa disso que de- ve ser cuidadosamente submetida ao imperativo do upgrade cons- tante, da reciclagem e da atualização permanentes. (SIBILIA, 2005).

Para se manterem no jogo social, também carecem da aquisição constante de novas cognições que se faz necessária diante das opções cada vez mais especializadas do mercado. Opções, devido aos avanços proporcionados por uma ciência multifragmentada que não tem por hábito questionar todas as implicações das invenções que despejam na sociedade para serem avidamente consumidas. Através das mais variadas opções disponíveis, desde que sejam inoculadas em alta velocidade. Podem advir de cursos interativos on line ou em instituições que se especializam cada vez mais na aplicação do estritamente necessário, que por sua vez, em pouco tempo poderá ver seu conteúdo tecnicista ser considerado tão supérfluo, quanto se considerara o que foi preterido, como as Humanidades. Aprende-se a lidar, por exemplo, com um maquinário da cadeia de produção dos bens materiais, mas como estes estão sempre se superando, as capacidades rapidamente se convertem para incapacidades. Deve-se, então, voltar para a renovação ininterrupta do conhecimento técnico, pois podem garantir por algum tempo boas posições no ranking da empregabilidade e da inserção social. Face à freneticidade das transformações, o que emerge como regra é a incerteza generalizada. Caminhos até promissores em um dia podem se mostrar inválidos diante do noticiário matinal do dia seguinte. A auto-reciclagem, o reinício cíclico passa a ser a constância para quem não deseja ser atropelado pelo próprio tempo e ir parar na lata de lixo da modernidade. Sem tempo a perder. Pois a não permanência assombra os membros de uma sociedade assim como uma de suas maiores fobias. E para curá-las, assim como qualquer outro mal mental ou fisiológico que decorra disso, podem buscar psicoterapias que oferecem tratamento rápido. E

130 se nem para isso houver tempo, que se busque apoio na literatura de auto-ajuda indicada para aquela semana nas listas das mais vendidas.

A identidade pessoal se prende, dessa maneira, ao círculo vicioso e individual da construção e desconstrução criativa. Só se crê capaz de transformar a si mesmo. Cada um por si se flexibiliza no intuito de conseguir o melhor para se adaptar às transformações da sociedade, não necessariamente para mudá-la. “Os sólidos que se derreteram na fase líquida da modernidade são os elos que entrelaçavam os projetos individuais em projetos e ações coletivas”.63 Marx, em seus estudos relativos aos processos alienantes da dicotômica relação sujeito-objeto considerou os bens materiais de vida como fetiches, vistos que não pareciam relacionados diretamente com o trabalho humano nos processos que o produziram. Este mesmo fetichismo se atualiza para a dualidade consumidor-mercadoria, e o fetichismo passa a ser o da subjetividade de cada um, onde o sujeito-indivíduo perde sua soberania para o sujeito-consumidor. “As relações entre os sujeitos são fetichizadas, transfiguradas em relações entre mercadorias, e este processo atinge seu ápice quando a própria subjetividade vira mercadoria, ou quando a vida vira consumo”.64 O sujeito vivo para o sujeito apático, dócil e ansioso pelo que as vitrines possam oferecer a cada dia. Ambos os fetichismos são ilusórios, pois não eliminam a existência do fator humano, do que manufatura a mercadoria e do que é a mercadoria. Esta forma um tanto unilinear de se ver negativamente o sistema de produção capitalista basicamente sob a ótica de um consumismo selvagem, que parece apontar para uma distopia bladerunneana, onde a ciência desprovida de uma consciência ética proporcionará cada vez mais formas de alavancar a produção em cima do próprio consumo desta, é considerada por Zygmunt Bauman a principal característica de nossa modernidade, que não teria, assim, conseguido realizar os supostos sonhos geridos no Século das Luzes. O que Bauman já preferiu chamar de pós-modernidade como tantos outros pensadores contemporâneos, e que segundo ele “Anthony Giddens chama de ‘modernidade tardia’, Ulrich Beck de ‘modernidade reflexiva’, Geoges Balandier de ‘supermodernidade”,65 ou seja, o tempo em que se

63 VAZ, Paulo. O fim das grandes ilusões. JornaldoBrasilonline , 28 ago. 2001. 64 VELOSO, Letícia. Vida para consumo: resenha. Antropologia.com , 13 nov. 2008. 65 BAUMAN, Zygmunt. Omalestardapósmodernidade . Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 30.

131 vive agora no que se entende como “nossa parte do mundo,”66 é considerado agora como Modernidade Líquida. Uma denominação para uma sociedade em que, segundo Bauman, “as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente”.67 Líquido é um termo em que Bauman se apóia para englobar aspectos básicos da sociedade atual. No lugar da solidez e de uma suposta segurança existente na modernidade, onde as instituições se liquefazem forçando a busca da estabilidade pelo desejo de aquisição das efemeridades do consumismo. Ou seja, em vez da solidez e segurança, nos dias atuais o que se tem é uma constatação de que tudo que é sólido tem se desmanchado no ar, como já havia alertado Marx e Engels em 1848 ao convidarem os homens a refletirem sobre si mesmos em relação às suas condições de existência e relações recíprocas. Assim, conceituando-a precisamente na visão de Bauman, a conjuntura Líquido-Moderna da atual sociedade

[...] tem uma estrutura sistêmica remota, inalcançável e inquestio- nável, ao mesmo tempo em que o cenário do cotidiano – relações familiares e amorosas, emprego e cidade – é fluido e não-estrutura- do. Deste modo, experimentamos uma clivagem entre a ação huma- na transformadora e a ordem como um todo. O mais interessante é que este mundo evidentemente distópico, onde o futuro é catástrofe e incerteza que força mudanças individuais, onde a ordem é rígida, não é obra de uma tirania, mas “o artefato e o sentimento da liberdade dos agentes humanos”. (VAZ, 2001).

Em uma sociedade assim, a aquisição de novas habilidades para se manter em dia com as exigências do mercado de trabalho, a fim de se promover a biografia tecnicista e ultrapassável, acabam por fazer com que seus cidadãos não se sintam como mercadorias ou se comportem como tal. Produzindo “para si próprios as continuidades, a solidez e a estabilidade que a sociedade não mais consegue lhes oferecer”. 68 Seguindo a visão de Bauman, pode-se supor que o mais bem guardado segredo dos nossos tempos é clara-mente perceptível, como em um jogo de caça- palavras, se os indivíduos ficarem atentos aos letreiros de néons ou às palavras coloridas dos grandes telões publicitários das metrópoles, até mesmo nas da ficção.

66 Ibid. p. 30. 67 BAUMAN, 2007b, op. cit., p. 7. 68 Ibid.

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É nesta que se encontra mais perceptivelmente ainda, através das maravilhas tecnocientíficas do futuro, sua mais eloqüente representação: os replicantes.

A visão de Bauman usada para fundamentar este capítulo, assim como de autores que pontualmente o corroboram, reflete uma noção de modernidade que pressupõe a universalidade de seus argumentos, que se baseia em aspectos inquestionáveis da sociedade de consumidores que vem se formando há mais de século. Alguns dos quais visíveis em quaisquer metrópoles globais, como aqueles realçados neste texto em virtude de suas versões hipertrofiadas no futuro criado para a ambientação da trama de Blade Runner . No entanto, são aspectos que podem apontar para outras direções adjacentes, não necessariamente opostas. Outros pontos de vista sobre a modernidade também se alinham com a forma em que Blade Runner foi produzido e com a mensagem passada por seu argumento e iconografia, especialmente o pós-modernismo baudrillardiano ou sua negação em Harvey, como citado no primeiro capítulo. Mas será a visão de Edgar Morin sobre um aspecto implícito diante tudo que foi abordado até agora, que servirá de esteio para esta pesquisa no sentido de sugerir direções que venham a possibilitar o encontro de respostas para incongruências do mundo social. No caso, a necessidade de parâmetros éticos no desenvolvimento de aplicações científicas.

No capítulo que se segue, mais uma vez a Ficção Científica se mostrará válida sob esta ótica. Pela da abordagem da ciência através de uma das fontes de inspiração literária para a elaboração do corpo artificial. Conforme visto como andróide no romance “Sonham os andróides com ovelhas elétricas?” ou como replicante no filme “O Caçador de Andróides”.

CAPÍTULO IV A CIÊNCIA INCONSCIENTE

Blade Runner é uma obra cinematográfica, e como tal sintetiza em seu suporte diversas manifestações da arte e da cultura humana. O filme é simultanea- mente drama, aventura policial noire Ficção Científica. Pode ser entendido apenas como mais um enlatado para consumo rápido da produção em série hollywoodiana ou como dramatização filosófica da condição humana, como indutor de reflexões sobre o sentido da vida, do capital, da ciência com todas as suas inter- retroatividades. Esta pesquisa, através do que foi apresentado até aqui, pretende que tenha ficado evidente que o filme em questão pode ser encaixado nessa segunda categoria. Sendo um exemplar acima da média das produções de FC, justamente porque permite suscitar vários níveis de reflexões em conjunto com todo um arcabouço mito-filosófico que acompanha em paralelo o devir humano. Neste caso, BladeRunner é uma grande metáfora apoiada na intertextualidade inevitável para qualquer produção cultural. Os intertextos são altamente inerentes à produção cultural da sociedade dos consumidores. Sob a ótica de Lecercle, são:

Discursos nomeados, citados, remetidos a um autor no mesmo momento em que são deformados pela inserção em outro texto; discurso sem nome, sem autor, e que, por isso mesmo, se tornaram mais públicos, por terem passado para a língua sob forma de clichês, de metáforas mortas (que têm por longínqua origem uma teoria científica ou um sistema filosófico), expressões estereotipadas, alusões vagas. É sobre o intertexto que se constrói o texto: ele o remodela, o trabalha (no sentido de trabalhar o sonho), brinca com ele. (LECERCLE, 1991, p. 31).

De todos estes elementos, muitos até incoerentes, procuram-se tecer uma totalidade. Eventualmente pode ser necessário dissecá-los para se encontrar um propósito apontando em um determinado sentido. O processo de feitura de Blade Runner evidencia o espírito capitalista como elemento norteador. A vida do autor do romance que lhe originou demonstra uma inserção pessoal e doentia nos temas em que escreve, como se seu corpo e mente fossem eles mesmos uma obra de FC, o gênero que Blade Runner se insere com apologia, mesmo que às avessas, do pensamento utópico ao mostrar vida urbana em frangalhos.

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O processo de justaposição fantasia-vida real usado para tal, repertir-se-á neste último capítulo através das intertextualidades entre o filme, BladeRunner e o romance que o originou, “Sonham os Andróides com Ovelhas Elétricas?”, com sua linha arquetípica na Ficção Científica, robôs e simulacros humanos e o romance que a originou, “Frankenstein”, assim como o mito de criação que sustenta filosofica- mente a todos: Prometeu.

Nas intertextualidades, emergirá sempre o corpo humano como palco, principalmente pela forma em que retrata o replicante, isto é, através da metáfora homem-máquina, através do corpo castrado de sua liberdade produzido especificamente para o trabalho. Com a fisiologia e a psicologia de seus persona- gens se manifestando na representação de seus corpos, como fantasia teoricamente despretensiosa ou reprodução ipsislitteris da realidade. Desde que Méliès fez nascer em 1902 o cinema de FC com “Viagem à Lua”, sua adaptação exótica de Verne, este tem se prestado em determinados momentos da História a ser um dos principais carros-chefes desta intertextualidade. Seja como simples entretenimento passivo, ou participando ativamente na sociedade, promovendo reflexões sobre as utopias ou sobre a os limites da ciência.

E nesse debate ético emerge a questão do corpo. O corpo como campo para aplicação de um amplo espectro de possibilidades de uma tecnociência que, em nome da emancipação da humanidade rumo a melhores condições de vida para todos, pode proporcionar apenas lucros exorbitantes para poucos. E ainda sob o risco de trazer malefícios irreversíveis para a humanidade. Assim, o uso e abuso do corpo, como na reprodução assistida, como na clonagem, como na reconfiguração genética ou até como receptáculo de vida artificial produzida suscita a discussão sobre bioética e moral. A fim de fundamentar melhor esta abordagem, este capítulo se inicia com uma panorâmica histórica do corpo e da ciência, intercalada pelo suporte cultural que estrutura esta pesquisa, o cinema de Ficção Científica.

4.1 Corpo, cinema e ciência

O corpo do homem é o invólucro de sua individualidade. Internalizando ou externalizando sua própria identidade. Assim, sempre fez parte ativamente de suas

135 próprias representações. Seja através da reprodução exaustiva das mais diversas possibilidades entre o figurativo e o abstrato, ou em qualquer outra forma que a criação artística em geral possa permitir, direta ou indiretamente. A necessidade pragmática também busca no corpo o modelo para o desenvolvimento dos mais diversos maquinários, pois mesmo que estes não necessitassem diretamente de adaptações ergonômicas para a operação do homem, é para este a razão de existência. São esses maquinários que, ao longo do processo histórico de sua tecnologia como suporte para o desenvolvimento das sociedades, deram-lhe existência como formas de prolongamento dos limites de seu próprio corpo. A práxis do antropocentrismo, onde o homem é o centro-referência de tudo que existe e do que poderá vir a existir. Assim, o humanismo se fez sobre a visão do homem como ser racional com um corpo que lhe permite autonomia e auto-suficiência, sem que necessariamente haja direta intervenção divina. O corpo podia ser entendido como uma espécie de interface biológica de onde se pode compreender e interagir com as sociedades do mundo, influenciando e sendo influenciado por estas, retratando e sendo retratado. “O corpo existe em seu invólucro imediato como em suas referên- cias representativas: lógicas e ‘subjetivas’, também elas variáveis com a cultura dos grupos e os momentos do tempo”.1

O corpo pode ser um elemento que se devidamente compreendido, pode levar à consciência, ao invés de mera forma de materialização desta, seu invólucro fisiológico. Se foi fonte energética dos mecanismos desenvolvidos pelo homem antes do advento do uso da energia a vapor, que desencadearia o salto técnico da Revolução Industrial, hoje assume características de energia informacional ao interagir com a conversão digital dos processos produtivos. Este arcabouço de experiências pode apontar para os mais diversos caminhos que o avanço da biotecnologia pode proporcionar, incluindo novas formas de sua própria reprodução.

Se ainda está longe, técnica e eticamente, um possível futuro onde serão moldados simulacros corpóreos biológicos para nos substituir em atividades periculosas, como em Blade Runner , hoje já existem diversas formas de se aprimorar a energia potencial do corpo para o trabalho em prol do desenvolvimento da atual condição da modernidade. Neste sentido, sobressai o upgrade do corpo. As publicidades do cotidiano prometem fórmulas mais eficientes de expansão de

1 CORBIN, A. et. al. In: CORBIN, Alain et. al. HistóriadoCorpo . Petrópolis: Vozes, 2009, p.9, v.1.

136 processos mentais, para se manter no páreo da competitividade intelectual da sociedade líquida, como apregoa Bauman. E também as alterações por cirurgias plásticas impostas por uma filosofia da modernidade que há muito liquefaz os limites entre a reparação, o esteticismo e a empregabilidade. Afinal, ter um corpo belo, que pode ser moldado ao sabor dos produtos e procedimentos a ele destinados, sempre aprimorados pela indústria da beleza e saúde, muitas vezes se associa à abertura de novas oportunidades e sucesso social. Ao passo que o desleixe do corpo pode ser entendido como a falta de condições para o desempenho de funções do trabalho. Assim, o corpo que envolve a individualidade também é o centro dinâmico das transformações sociais, “receptáculo e ator face às normas prontamente enterradas, interiorizadas, privatizadas, como pôde mostrar Norbert Elias: lugar de um lento trabalho de repressão, isto é, de um distanciamento do pulsional e do espontâneo”.2 Segundo Foucault, “um corpo concebido como alvo do poder, objeto tão profunda- mente investido e modelado por ele que segrega uma visão do mundo e do social”. 3 O corpo sempre foi um campo de manifestação do poder instituído, e sua represen- tação, seja como cultura ou máquina, pode replicar esta visão.

Descartes descreveu o homem, na quinta parte do Discurso do Método, como uma máquina que pensa. O Homem-máquina tão autômato para Deus quanto o relógio, uma criação sua, é para ele. Deus construiu o homem e lhe pôs a funcionar através do comando da musculatura pelo cérebro – lugar onde uma glândula faria a ligação do espírito com a matéria. O corpo deve ser controlado tanto pela alma quanto por conjuntos de regulamentos sociais que lhe ajudam no funcionamento.

O corpo então é misto de pragmatismo e inteligibilidade, passível de controle e adestramento a fim de permitir o controle de suas operações. Algo que passa por uma gama de processos repressivos a fim de torná-los obedientes para a edificação de uma sociedade baseada nos princípios do conhecimento e racionalidade, principalmente após o Iluminismo.

Atualmente, a condição líquida atribuída à modernidade, principalmente sob a ótica de Bauman, oferece o que talvez possa parecer o oposto disso, com a indução de um senso comum de que o corpo, principalmente através da sua superexposição na mídia, tenha finalmente conseguido se libertar de sua condição de lócus de

2 Ibid, p. 11. 3 FOUCAULT, Michel apud CORBIN, 2009, op. cit., p. 12, v.1.

137 repressões culturais históricas. Mesmo encontrando respaldo em nações teocráticas da atualidade, o cerceamento moral e religioso de outros momentos históricos quase não se faz notar, face ao desequilíbrio a favor da liberdade em sua dicotomia com a coação. Na cartilha do consumo, a liberdade do corpo pode representar uma prisão aos ditames dos signos sociais de sucesso. Como a própria condição física do corpo está a todo o tempo se alterando, a representação deste nas mais diversas áreas da produção cultural humana, pode ser vista como indicativo das condições sociais.

E através de uma investigação nesta área, o ponto de vista da Ficção Científica pode auxiliar a entender este momento. Principalmente porque a questão da repressão sobre o corpo como parte do processo de adequação deste a uma condição de manutenção do poder, independente da forma econômica e política que se manifesta, é muitas vezes retratada pela Ficção com uma liberdade que lhe é própria. Afinal, muitos creditam a este gênero uma condição de fantasia desconectada do real. O controle sobre o corpo como personificação do controle social costuma passar despercebido quando se torna FC. Segundo Siqueira:

Os corpos dóceis, frutos da coação disciplinar, funcionariam como ponto de diferenciação entre o corpo do homem civilizado e o corpo do selvagem. Nos filmes de ficção científica, esse território de transição de um corpo “natural”, “descontrolado”, para um corpo “dominado”, “controlado” cientifica e tecnologicamente, fica implícito. (SIQUEIRA, 2008, P. 25).

Não deixa de ser notável que a Ficção Científica, mesmo antes de existir formalmente com tal denominação, já fazia parte de forma inata da propensão das lentes dos primeiros cinematógrafos de se registrar o corpo. O pioneiro Méliès, ao adaptar (bem) livremente, em 1902, dois romances de Jules Verne 4 que tratavam cientificamente – de acordo com as possibilidades técnicas da época – da primeira viagem tripulada à Lua, fez questão de antropomorfizar o satélite dando-lhe rosto e expressões caricatas. Além de inserir bailarinas em trajes sumários no contexto e bastante expressividade corporal através de pantomima.

4 “Da Terra à Lua” (1865) e sua continuação “Viagem ao Redor da Lua” (1870). Estes dois romances seqüenciais apresentam diversas similaridades com situações ocorridas na primeira viagem em que o homem efetivamente chegou à Lua, em 1969, tais como o número de tripulantes na cápsula espacial, local de lançamento, resgate no mar etc. Dessa forma, esse par contribuiu em muito para a característica de antecipação tecnológica da Ficção Científica, especialmente a segue a linha de Jules Verne.

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“A própria matéria do filme é o registro de uma construção espacial e de expressões corporais”,5 segundo Eric Rohmer. Uma frase que sintetiza a opção histórica do cinema, desde os pioneiros anos do século XIX, de focar o corpo humano, garantindo-lhe sempre um lugar de destaque. Seja na opção científica como nos primeiros registros quadro a quadro do movimento de atletas pelo fuzil fotográfico do fisiologista francês Étienne-Jules Marey, na opção documentarista da linha Lumière, ou naquela que virou o espetáculo de massa que já atravessou duas viradas de século. Ou ainda, a opção dramática-fantasiosa advinda das trucagens do cinema espetacular de Georges Méliès com um cinematógrafo primitivo. 6

O corpo sempre foi de certa forma motivo de espetáculo. Em muitas socieda- des em que sua execução era pública, multidões acorriam para presenciar mesmo que considerassem algo não muito ético. Da mesma forma, o horror e as monstruosi- dades do corpo mutilado ou deformado por anomalias genéticas, ou de cadáveres reais e bonecos em escala real reproduzindo dramaticamente crimes famosos, foi motivo de muito lucro para quem montava uma estrutura circense para exibi-los às famílias da BelleÉpoque francesa. Eram espetáculos que atraíam o grande público da mesma forma que o cinema passaria a fazer. Sua relação com o corpo se tornaria mais eloqüente quando as primeiras salas surgiram em lugares onde tradicional- mente artistas do corpo, como acrobatas e malabaristas, costumavam se apresentar vendendo-se em habilidades circenses. Evidentemente, o cinema deu certa continui- dade a isto, perpetuando em suas películas a efemeridade líquida destas apresenta- ções, das monstruosidades, das anomalias com as quais o progresso científico prometia acabar em nome de novos padrões éticos que seguramente desenvolver- se-iam com o subseqüente avanço social. E mesmo sem som e cor, ou talvez até por isso, o corpo vivo projetado nas salas escuras, especialmente de alguém já falecido, fazia com que o cinema ganhasse aura mística, unindo-se ao fantástico, tanto quanto as impressionantes sessões de espiritismo tão em voga naquela época.

O reflexo disso atravessou o Atlântico e chegou à nascente indústria norte- americana de manufatura de filmes, que em série começou a produzir os seus monstros, pinçados dos romances góticos europeus, como vampiros e criaturas grotescas concebidas através de uma magia e/ou ciência irresponsável. Assim, “um

5 BAECQUE, Antoine de. Telas, o corpo no cinema. In: CORBIN, Alain et. al. (org.). HistóriadoCorpo Petrópolis: Vozes, 2009, p. 481, v. 3. 6 Cf. SADOUL, George. Históriadocinemamundial. São Paulo: Martins, [ca. 1964], p.11-12, v.1.

139 dos grandes mitos corporais do cinema surge de maneira exemplar a partir de 1910: a primeira série de Frankensteins, lançada pela empresa cinematográfica de [Thomas] Edson, seguida por outras em 1915, e a seguir em 1920”. 7 O Frankenstein de Edson, escrito e dirigido por J. Searle Dawley, conseguiu unir ao mesmo tempo a repugnância escatológica às mais chamativas expressões corporais, que foi uma marca de muitas produções da época com temática fantasiosa. Na prática era um teatro filmado com recursos técnicos primitivos. Mostrava, em pouco mais de 12 minutos, a construção científica, mas com ares mágicos, de um humanóide artificial que, após ganhar vida, se voltava contra o seu criador, o Dr. Frankenstein. No filme, seu nascimento é visto como um esqueleto que vai se recobrindo de pedaços de carne à medida em que substâncias químicas misteriosas reagem efervecentemente dentro de um caldeirão. Algo ingênuo para os dias atuais, principalmente em decorrência dos efeitos da época que enfatizavam o grotesco corporal. Porém o resultado foi negativamente devastador, pois a imagem fílmica, mesmo muda e monocromática, teve o poder de superar os espetáculos freaks da época. Mesmo que um panfleto da companhia Edson Company alertasse que não haviam entrado na produção as passagens repulsivas do romance original de Mary Shelley, na qual se baseava (que será visto em 4.3). Segundo Cánepa, “causou furor entre os exibidores, que o consideraram excessivamente estranho e assustador para as audiências mais polidas”. 8 Seu caráter blasfemo fez com que fosse proibido de ser exibido em solo inglês. Suas cópias se perderam e apenas nos anos 1960 uma delas foi encontrada e parcialmente recuperada para uma exibição especial em 1997, bicentenário do nascimento de Shelley. Tal filme serviu como exemplo do caminho estético que o cinema não deveria tomar em relação ao corpo, pelo menos em seus primórdios.

Com o desenvolvimento da estética e da linguagem cinematográfica rumo aos padrões clássicos, as formas mais cruas e grotescas de caracterização do corpo sofreram alterações e restrições, especialmente a partir da mudança de pólo da produção norte-americana, que partiu da Costa Leste norte-americana para o Oeste. Los Angeles foi considerado o local propício, pois era um centro urbano com grande incidência solar, o que à época era indispensável, visto que ainda era quimicamente complexo registrar imagens com pouca luminosidade. Isto foi decisivo para a

7 BAECQUE, A.T. O corpo no cinema. In: CORBIN, 2009, op. cit. p. 485, v.3. 8 CÁNEPA, Laura. O filme da Edison Co. e releitura cinematográfica do Frankenstein, 2007, p. 219.

140 fundação dos grandes estúdios que formariam Hollywood. Naturalmente, o cinema enveredou sua vocação corporal pelos mais diversos caminhos. Ao sabor das bilheterias ou de sua própria evolução técnica, o cinema deslanchou representando o corpo de diversas formas. A relação com o burlesco seria sempre abandonada e retomada de acordo com a conjugação de momentos culturalmente menos repressivos com a viabilização econômica. Mas foi sem dúvida a forma de tratar o corpo glamourizando sua beleza que propiciou a formação do StarSystem, grande responsável pela fixação do cinema como importante indústria cultural do Século XX, que estaria muitas vezes à frente de modismos e mercantilismos da sociedade. Inserido tão intrinsecamente na formação da sociedade dos consumidores, o cinema não poderia deixar de retornar muitas vezes às suas temáticas, relendo-as e renovando-as. Criando assim fórmulas de sucesso já testadas com grande rentabilidade.

É o caso do Frankenstein que começou no cinema americano com a citada versão de Thomas Edson. Fundamentou-se em peças de teatro que recontavam o drama de horror baseado naquele romance gótico de Shelley, que mesmo escrito no início do século XIX, é muito popular até os dias de hoje. Tendo milhares de versões, seqüências e citações diretas e indiretas em quase todas as formas artísticas possíveis dentro da indústria cultural, especialmente a cinematográfica. 9 No imaginário popular, o que mais contribuiu para sua fundamentação, conceitual e iconográfica, foi a versão apresentada no filme norte-americano “Frankenstein” (1931) de James Whale, onde Boris Karloff interpretava a criatura impingida de vida, numa caracterização quase impossível de ser desassociada do cinema de horror e das implicações nefastas de se manipular indevidamente forças fora do alcance da compreensão dos homens. Levantando questões sobre se há possibilidade de progresso sem experimentos científicos que ultrapassem os limites da compreensão. Afinal a ciência avança com a compreensão do que antes não o era. Se não fosse assim, o homem nem ao menos poderia ter dominado o fogo, construído embarcações, desenvolvido calendários astronômicos e até mesmo criado o registro de imagens em movimento, que parte de um preceito já descrito desde o terceiro século antes de Cristo por Aristóteles, conhecido como persistência da imagem.

9 Entre 1826 e 1976, a revista francesa “ L’Avantscèneducinéma ” (ns. 160 e 161) listou 150 títulos (do diorama ao cinema) com relação direta ou indireta a Frankenstein. (Cf. NAZÁRIO, 1986, p.51).

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A ciência de hoje entende esse fenômeno por completo. A recepção dos fótons de uma imagem fixa por células especializadas na retina e sua permanência por algumas frações mínimas de tempo, através de reações químicas chamadas hoje de rube-goldberguianas, até que os fótons de uma nova imagem ligeiramente diferente repitam o processo e o cérebro humano as una, sugerindo uma ilusão de movimento. Mas este preceito científico fundamental que possibilitou a existência física do cinema foi durante muito tempo tão misterioso quanto as propriedades reanimadoras das efusões do caldeirão de Dawley ou dos eletrodos energizados de James Whale para animarem o corpo de Frankenstein. Mas esse mistério não foi impedimento para que o cinema servisse para aplicações práticas. Até porque o registro do movimento não implica em ir contra qualquer princípio ético nem romper grandes segredos da vida. Mas em comum, ciência e cinema exigem certo tipo de abstração para se estruturar um projeto. Uma abstração que, no caso do cinema é para se materializar as condições para a produção dos filmes. No caso da ciência, esta abstração se revela uma espécie de ponte entre duas instâncias. A da cognição da constituição de processos naturais. À medida que são desvendados, permitem o desenvolvimento de todo um aparato técnico que se sustenta a sociedade. A outra instância é, ou deveria ser, a das possíveis conseqüências disso, positivas, negativas ou intermediárias. Conseqüências tanto em nível do corpo individual quanto do social.

Enfocar as reações das pessoas diante as alterações no campo da ciência e tecnologia vem a ser talvez a principal verve da Ficção Científica. “A formação do par ciência e tecnologia é resultado de complexos processos históricos que confluíram para uma naturalização tão intensa sobre seu papel na vida social, cultural, política e econômica” 10 que hoje pode-se considerar que a sociedade está imersa em uma cultura tecnocientífica, que apresenta novidades diárias impensáveis para um cidadão desde tempos não tão remotos. Durante a maior parte de nossa história era comum que gerações se sucedessem sem que houvesse mudanças perceptíveis na sociedade, isto se acontecessem. Um prenúncio de mudanças teria forma nas proposições do monge alquimista inglês Roger Bacon que foi perseguido e preso pela Inquisição do século XIII. Bacon – além de preceder Da Vinci e Jules Verne ao ter “visões de como seria o mundo técnico no futuro, com barcos sem remadores,

10 RIBEIRO, G.L. Tecnologia versus tecnofobia, o mal-estar no século XXI. Humanidades , 1999, p. 76.

142 submarinos, ‘automóveis’, aviões e, como esteve preso, imaginou até ‘engenhocas’ para libertar as pessoas da prisão e até mesmo algemas mágicas” 11 – foi um protótipo do cientista moderno. Principalmente porque criticou “a submissão de seus contemporâneos aos ensinamentos de Aristóteles” – que ele anteriormente ajudara a disseminar – e propor o enriquecimento do racionalismo com o empirismo.

A observação e o empirismo só teriam verdadeiramente um grande impulso na grande efervescência cultural ocorrida com o Renascimento. Um movimento que surgiu em decorrência da apreciação de valores humanísticos, em momentos politi- camente independentes dentro da expansão das bases capitalistas. Este movimento, em seus elementos inter-retroativos com a economia, política e alargamento dos ho- rizontes geográficos – principalmente com as Grandes Navegações que mostraram que havia muito ainda para o homem saber da existência – favoreceu para que a ciência começasse a desvencilhar-se de seu lado marginal. Um lado que a fazia ser tão nebulosa quanto a magia ligada às antigas crendices e tradições da sobrenatura- lidade medieval. Se Leonardo Da Vinci, ao dissecar o corpo humano para cientifica- mente pintar melhor, precisava se ocultar do poder religioso, Michelangelo faria o mesmo poucos anos depois sob a total complacência clerical. Se libertando timida- mente de grilhões sacros, o mundo natural se transformou em um espaço livre para se seguir preceitos e proposições que outrora foram suprimidas como as de Bacon.

Desde então, a ciência começou a se aliar à técnica e ganhar grande status junto à sociedade a partir de movimentos importantes. Principalmente com a Refor- ma Protestante através do empenho de seus fomentadores em difundirem duas das mais importantes tecnologias desenvolvidas até então: a do papel e a da imprensa dos tipos móveis de Gutenberg – ambos de origem chinesa. O objetivo era algo que não interessava à Igreja Católica da época, popularizar a Bíblia. Mas posteriormente resultou em grande impulso à proliferação do conhecimento científico, pois permiti- ram a disseminação de publicações em uma escala impossível em relação ao méto- do tradicional dos copistas. Isto permitiu que a filosofia do Renascimento ultrapas- sasse os limites de domínio da Igreja e das universidades a ela condicionadas.

Isso foi decisivo para que a visão do mundo, baseada na observação racional dos fenômenos naturais, tivesse grande repercussão. Contribuindo assim para o

11 PRIMON, A. L.; JUNIOR, L. G. S.; ADAM S. M. História da ciência: da idade média à atualidade. Psicólogo informação. São Paulo, v. 4, n. 4, 21 mar. 2002.p. 42.

143 rompimento dos laços com o oculto e o abalo dos até então sólidos conceitos metafísicos que auxiliavam a manutenção do poder da Igreja e do Estado. Com a ciência estudando a natureza matematicamente, se baseando na dedução racional para encontrar suas verdades, como pregou Descartes sobre os ombros de Roger Bacon e, em paralelo, ao iluminista Francis Bacon, pode-se desacreditar o Geocentrismo (como já visto). Quando o mundo saiu do centro do universo, uma grande transformação mental aconteceu a favor de um novo centrismo: o homem, a criatura que por ser considerada imagem e semelhança de Deus, deveria estar espacialmente privilegiado, com todo o universo ao redor. Mesmo que a Igreja da Contra-Reforma, ainda comprometida com as seculares especulações aristotélicas, tentasse se opor dramaticamente às idéias dos, hoje, gigantes da História da Ciência como Copérnico, Kepler e especialmente Galileu.

Entretanto, com a revolução científica que tomou forma a partir do Renasci- mento, Deus não foi tirado de cena, porém o universo foi desencantado ao ponto de promover uma secularização que daria liberdade a Newton para apoiar-se sobre os ombros daqueles gigantes, afim de fundamentar a Física Clássica com seus estudos sobre a gravitação universal. Gravitação que por sua vez seria o trampolim teórico para que Einstein desenvolvesse os abrangentes conceitos espaços-temporais da Teoria da Relatividade, que reverteria todos os conceitos anteriores apenas para a escala local da mecânica clássica. Em paralelo, as ciências biológicas também passavam por grandes transformações paradigmáticas, principalmente ao jogar para a lata de lixo da ciência conceitos ligados ao criacionismo bíblico. As idéias evolucio- nistas de Lamarck – de que se poderiam herdar características adquiridas pelos antecedentes – não encontra apoio na ciência moderna, mas causaram um abalo sísmico intelectual que prenuncia o verdadeiro terremoto da Teoria da Evolução de Darwin. Que abriria as portas para a Genética, das ervilhas de Mendel à descoberta do DNA por Miescher, Kossel e Altmann 12 e de sua estrutura molecular por Crick e Watson. A mesma que hoje, ao ser seqüenciada em genes, permite que um com- putador programe formas de vidas que possam ser montadas em laboratórios, teori- camente para fins medicinais, teoricamente dentro dos limites éticos para com o cor- po, para com a vida (assunto a ser abordado em 4.4). Limites facilmente ultrapas- sáveis, cujos efeitos constituem a razão de ser da FC que estrutura esta pesquisa.

12 Cf. HISTÓRIA: descoberta do DNA. Biologiamolecular . 2004.

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A ciência se constrói sobre hipóteses, teorias e leis sob normas bem definidas. Mas isto não significa que a ciência venha necessariamente a se interessar eticamente com as aplicações decorrentes de suas descobertas. Os profissionais se abstêm disso, muitos sob alegação de que o fragmento de conhecimento em que estão inseridos os impedem de se horizontalizarem a outros demais fragmentos, particularmente se forem de outras esferas do saber. Presos nos recintos de suas pesquisas, muitas vezes são cegos até mesmo para evidências que seus experimentos podem apontam, se estas contradisserem teorias solidificadas. Apesar de que uma teoria nunca pode ter status de solidez, pois conforme Chalmers:

As teorias são interpretadas como conjecturas especulativas ou suposições criadas livremente pelo intelecto humano no sentido de superar problemas encontrados por teorias anteriores e dar uma explicação adequada do comportamento de alguns aspectos do mundo ou universo. [...] Embora nunca se possa dizer legitimamente de uma teoria que ela é verdadeira, pode-se confiantemente dizer que ela é a melhor disponível, que é melhor do que qualquer coisa que veio antes. (CHALMERS, 2010, p.63).

Inconscientemente ou não, o pesquisador pode negar certas evidências que vão contra as próprias hipóteses ou que possam abalar estruturas seculares. Algo como se Charles Darwin interpretasse a fauna das Ilhas Galápagos apenas como um exotismo do criacionismo bíblico e não como seleção natural. Esta forma de pensar em ciência é conhecida por falsificionismo. Ela ocorre quando se descarta a observação de uma fenomenologia que não se alinhe aos pressupostos de dada teoria. Caso seja aceita, implica na construção de todo um novo arcabouço teórico que sustente uma nova visão paradigmática. O ciclo continua até que em dado momento possa vir a ser quebrado outra vez diante de novas evidências. A percepção de conseqüências eticamente questionáveis em relação ao desenvolvimento científico, de certa forma, se alinha à tendência falsificionista durante a fase de observação e experimentação. Pois a não observância destes pode ser tão moralmente perniciosa para a sociedade quanto a não observância daquelas evidências que poderiam liquefazer estruturas. Moralmente, o falsificionismo não se difere da falta de ética na ciência.

Quebrando seus próprios paradigmas, como aludido por Kuhn, fazendo revoluções sobre si mesma e conseqüentemente na sociedade, a ciência se torna cada vez mais exponencial, com cada avanço científico proporcionando a

145 multiplicação de novos avanços. O progresso tecnológico teve uma aceleração drástica ao longo dos séculos de um jeito sem precedentes na história humana. Transformações sociais e econômicas advindas desse processo, como as proporcionadas pela Revolução Industrial, tornaram o tempo de vida de uma pessoa, já no século XIX, suficiente para presenciar grandes mudanças. Isto devido à aplicação de tecnologia baseada em conceitos científicos que provocaram a alteração profunda da vida humana, dentro de um mesmo período de vida. Por outro lado, a marcha da ética ao lado da ciência muitas vezes parece descompassada frente às necessidades impostas aos cientistas, a de desenvolverem produtos que gerem lucros em grande escala para as instituições transnacionais. Se a ciência, por um lado, tenta desenvolver a imortalidade do corpo através de técnicas que permitam a renovação celular constante ou a transferência digital da consciência, ambas ainda distantes, por outro, já consegue permitir que na atualidade desmantelem corpos com armamentos inteligentes. Principalmente em nações que de alguma forma representem ameaça a manutenção da circulação do capital que sustenta sociedade líquido-moderna.

Nesse sentido, é no uso do corpo pela ciência através do tratamento da Ficção Científica, cinema e literatura, é onde se permite encontrar pistas para entender este problema. Para isso, será abordado a gênese dos robôs, andróides e replicantes através do corpo outrora inerte da criatura de Frankenstein.

4.1.2 O arquétipo de Frankenstein

O cinema e a ciência, em vários momentos de suas trajetórias, assumiram o corpo como palco-laboratório para suas experimentações. A aura de mistério que envolvia tanto os circos de anomalias humanas, comuns no passado europeu, e sua versão macabra na ciência em pioneiros experimentos fisiológicos com a eletricidade (que serão abordados nesta seção) não se distancia fundamentalmente das propostas iniciais do cinema como narrativa de ficção. Se a sociedade passou a refletir sobre a ética nas condições de seus trabalhadores, também passou a especular sobre a criação artificial da vida – e a criação da vida artificial. E a Ficção Científica, a discutir as seqüelas dessa conjuntura.

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A ciência, mesmo com uma aura inexplicável até mesmo à grande parte daqueles que se dedicavam a ela, tinha uma condição não muito diferente do ocultismo. Para a grande maioria leiga, fundamentalmente eram iguais, pois a razão muitas vezes não era vista como um preceito imprescindível para se tentar desvendar fenômenos ligados à vida. E foi neste campo, e em sua contraparte inerente, o da morte, que o corpo se tornou o ponto de partida para as mais imaginativas especulações.

Muitos estudiosos passaram a fazer experiências envolvendo o corpo humano e a aplicação de recursos bioquímicos (e posteriormente elétricos) para fins medicinais, muitas vezes extrapolando para a compreensão da vida e da morte, ou até mesmo, tentando encontrar formas de manipulá-las. O campo da vida, peculiarmente a do corpo humano representava o ápice das ambições de muitos cientistas envolvidos na compreensão de fenômenos ligados primeiramente à bioquímica e mais tarde à eletricidade.

É quando se dá lugar às pioneiras experiências do alquimista Christianus Democritus, pseudônimo de Conrad Dippel, um médico e teólogo pietista da Alemanha em fins do século XVII e início do seguinte. Dippel também era conhecido como “Senhor de Frankenstein”, visto que morava em um burgo, em Bergstrasse, outrora comandado pela tradicional família Von Frankenstein. Sem comprovação histórica, a cultura popular atribui-lhe o uso de inusitadas substâncias para fins medicinais, como nitroglicerina e um elixir da longa vida. Pesquisas atuais indicam que se tratava na verdade de estimulante muscular sob a forma de óleo animal. Mas supostos experimentos em cadáveres exumados teria alimentado uma versão folclórica de que o Dippel tentava mesmo era ressuscitá-los. 13 14

Um cientista que obteve grande prestígio em pesquisas sobre a vida foi o anatomista italiano Luigi Galvani, que observou nos anos 1770 contrações muscula- res em uma rã morta no momento em que raios riscavam o céu. Fatos que o fizeram desenvolver hipóteses sobre a importância da corrente elétrica no funcionamento do

13 Não há comprovação histórica nestes atos, ainda mais que as histórias sobre Dippel são recheadas de anacronismos. Um exemplo é a versão de que Dippel teria explodido acidentalmente a torre do Castelo Frankenstein com nitroglicerina, o que lhe teria causado a expulsão do local por populares amedrontados. Mas como este explosivo só seria inventado pouco mais de um século após sua morte, tudo indica que a origem deste mito está na apropriação de argumentos comuns aos filmes de horror populares no intuito de se incrementar o turismo atual. 14 Cf. FLORESCU Radu, InSearchofFrankenstein... London: Robson Books, 1996, passim.

147 corpo a partir do êxito da reconstituição do fenômeno. Para tal usou pernas de rãs dissecadas em contato direto e indireto com máquinas eletrostáticas desenvolvidas por seu colega e conterrâneo Alessandro Volta. Galvani passou a teorizar que circulando pelo corpo existia uma espécie de fluido elétrico natural responsável pela vida. Volta lhe fazia oposição entendendo a eletricidade como um fenômeno não necessariamente dependente da essência da vida. Ele não acreditava no fluído elétrico do corpo, simplesmente acreditava em uma corrente elétrica que atravessava as células. Sua hipótese o levou a aperfeiçoar formas arcaicas de se armazenar eletricidade através da invenção da bateria voltaica em 1800, sem a presença de tecido orgânico. É desta que se originam as baterias modernas.

Já o médico e anatomista Giovanni Aldini, sobrinho de Galvani, pretendia aplicar o Galvanismo, como ficou conhecido as técnicas de Galvani, para o reaviva- mento de afogados e asfixiados através de excitação do suposto fluido elétrico nos pulmões. 15 Para seus estudos, Aldini precisou realizar experimentos em animais e cadáveres que o deixaram famoso,16 especialmente o de um homicida londrino em 1803. 17 Ao ser induzido por fortes correntes elétricas, o corpo recém executado des- te teve espasmos musculares tão violentos que até se cogitou a hipótese de enforcá- lo novamente. 18

A repercussão deste experimento teria sido de grande inspiração para o médico e químico escocês Andrew Ure, um cientista de renome, responsável por técnicas químicas e mecânicas que contribuiriam para o aumento da produção têxtil do Reino Unido no século XIX. Além de se destacar em Astronomia e Geologia, Ure se notabilizou por uma experiência realizada em 1818 com o cadáver de um outro assassino executado por enforcamento. Numa demonstração para um grupo restrito de cientistas em Glasgow, usou eletrodos altamente energizados no corpo do condenado, causando inflação pulmonar, contorções musculares abruptas que

15 Aldini, não era adepto de Volta, pois acreditava que realmente havia uma espécie de fluído elétrico nos corpos, como pregava Galvani. Mas usava as baterias de Volta para tentar melhorar a vida de doentes apopléxicos (vítimas de AVC). Algo em que eventualmente seria bem sucedido e que inspirou a medicina moderna a usar as polêmicas terapias por choque eletroconvulsivo no controle de surtos psicóticos e desfibriladores para reanimação de enfartados. Cf. SABBATINI, Renato M. E. A história da terapia por choque em psiquiatria. [1997]. 16 Cf. George Foster. Theexclassicwebsite . 17 Cf. George Foster, and thence to the reanimator. ExecutedToday. 2009. 18 Apesar de estranho, isso já havia sido cogitado 35 anos antes quando um assaltante fora reanima- do na Irlanda por seis horas após uma incisão cirúrgica experimental nos pulmões. Cf. KNAPP, Andrew; BALDWIN, William. The Newgate calendar. 1865, p. 318.

148 quase derrubam seus assistentes, além de terríveis expressões faciais como se o cadáver estivesse sentido realmente os choques. Isto conferia uma aura de circo de horrores às suas demonstrações, o que obrigavam algumas pessoas a se retirarem pálidas e apavoradas enquanto um espectador desmaiava. Tinha-se a nítida impressão de que à qualquer momento a vida poderia voltar a fluir naquele corpo. Mas hoje, a ciência explica que Andrew e Aldini fizeram do corpo morto uma espécie de marionete bizarra estimulando reflexos fisiológicos através da passagem da corrente elétrica. No entanto, muitos leigos e até mesmo pessoas esclarecidas que testemunharam suas demonstrações com aura de circo de horrores, ponde- raram basicamente sobre duas questões relacionadas à ética científica e social.

Uma questão é que seria possível para a ciência, em breve, desenvolver técnicas capazes de devolver a vida à um morto ou mesmo criá-la artificialmente. Outra ponderava sobre a possibilidade do homem ser uma espécie de máquina elé- trica, e que por isso não haveria nenhum problema fisiológico, e conseqüentemente ético, em interagi-lo continuamente com o maquinário produtivo da Revolução Indus- trial. Isso transfigurava o Galvanismo em uma espécie de exaltação “à revolução e ao sistema fabril, celebrando o advento da máquina e o fato de que o corpo humano, nessa nova cultura, seria só um autômato”. 19 O que se alinhava ao pensamento mecanicista cartesiano sobre o homem-máquina (conforme visto na seção anterior).

À mesma época em que as experiências galvanistas de Ure tomavam de assalto o imaginário popular, surge o romance gótico “Frankenstein ou o Prometeu Moderno” (1818) que usaria o Galvanismo como fonte de inspiração. Neste romance, “a distinção entre a magia natural e alquimia, de um lado, e filosofia natural e química, de outro, assim como entre religião e ciência, é esmaecida a todo instante” 20 Mesmo assim é considerado por especialistas o primeiro romance da moderna Ficção Científica 21 mesmo que estilisticamente use uma estrutura romanesca já utilizada desde o século XVII (narrativas dentro de outras narrativas e assim por diante), pois faz uma releitura pseudo-científica do mito de criação grego, Prometeu, em um contexto racional onde surge o corpo como progresso da ciência na luta contra a morte, a favor da permanência. “Este mito tem, de fato, duas vertentes: o Prometeu pyrophore dos gregos, o ladrão de fogo, o rebelde que Ésquilo

19 Cf. SEARCH the real Frankenstein. Decodingthepast . London: AETN International, 2006. 20 SUPPIA, Alfredo. A trajetória do Frankenstein cinematográfico (1910-1957). 2009, p. 205. 21 Cf. ASIMOV, Isaac. Nomundodaficçãocientífica , Rio de Janeiro: Francisco Alves,1984, p. 219.

149 apresenta, e o Prometeu plastificador dos latinos, que modela os homens em argila”. 22 Na fusão genésica, o corpo se mantém como o pivô da usurpação do segredo da vida e racionalidade do empíreo divino. O Prometeu mitológico é um titã que molda uma criatura do barro ancestral – ainda repleto de elementos fundamentais da criação – à imagem e semelhança deífica. Mas seu autômato é intelectualmente inerte até que lhe é inserido a centelha da vida racional, roubada diretamente do fogo etéreo dos deuses. O fogo, “fonte de vida, inteligência, vontade e querer” 23 permitiria que a humanidade pudesse forjar metais e assim erigir sua civilização, sem que isto fosse o propósito dos deuses. Por isso, o seu ato lhe causa a ira divina e conseqüentemente a punição de sofrer intemporalmente por isso – com o seu fígado sendo extraído e regenerado continuamente por abutres.

Para se alcançar o entendimento sobre a relação do “Prometeu Moderno” com a crítica social líquido moderna em BladeRunner , torna-se necessária uma análise do contexto deste romance oitocentista no arquétipo de Ficção Científica em que comumente é inserido.

Em 1816, a conjugação de dois raros fenômenos naturais causou o escureci- mento do céu e chuvas constantes, tais quais os dias da Los Angeles de Blade Runner , tão reais e trágicas que foram cruciais para a criação da atmosfera que inspirou o surgimento do romance. 24 Este começou a ser escrito naquele ano pela jovem inglesa (18 anos) Mary Goldwin. Como amante do escritor Percy Shelley, o acompanhava juntamente com o poeta Lord Byron e amigos em uma viagem de veraneio à Suíça, apesar do clima. Byron era um intelectual atualizado com os avanços da época, principalmente sobre a natureza do princípio vital e as possibilida- des factíveis ou não do Galvanismo. Impedido de passear por causa das chuvas, o grupo passava dias ouvindo as discussões filosóficas entre Byron e Percy, inclusive

22 LECERCLE, Jean-Jacques. Frankensteinmitoefilosofia . Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 15. 23 SPALDING, T. Orpheu. Dicionáriodamitologiagrecolatina . Belo Horizonte: Itatiaia, 1965, p. 218. 24 Um fenômeno foi a Mínima de Dalton, um período de baixa atividade magnética no Sol que reduziu suas áreas brilhantes deixando-o mais tênue e menos quente. O outro foi a explosão colossal, em 1815 do vulcão do Monte Tambora, na Indonésia, que lançou partículas na estratosfera que se uniram com as de dois outros vulcões filipinos de 1812 e 1814. Como resultado, bloqueio da então fraca luz solar que ocasionou diversas alterações climáticas, como neve no verão, chuvas torren- ciais constantes, inundações. As temperaturas baixas e chuva prolongada causaram quebras de safra na Grã-Bretanha. Foi o terceiro verão mais frio desde que os registros começaram em 1659. Países europeus como França, Suíça e Alemanha sofreram fome e colheitas ruins, o que causou migrações. Foram mais de 200 mil mortes só na Europa Ocidental. Se somados aos registros asiáticos, a tragédia ganha ares apocalípticos. Fonte: .

150 com referências a experimentos lendários atribuídos ao avô do autor da Teoria da Evolução. Erasmus Darwin era um inventor, “médico, poeta e filósofo racionalista, um dos representantes ingleses da filosofia das Luzes”,25 que teria conseguido dar vida a uma massa de doce deixada em uma proveta. Em uma noite de forte tempestade, Byron sugeriu ao grupo que cada um tentasse desenvolver algo literário sobre temas sinistros inspirado em romances góticos. Apenas Mary concretizaria efetivamente sua proposta, criando uma obra considerada à época como literatura Gótica, que até hoje é uma espécie de referência literária sobre o risco de uma criação do homem se voltar contra ele.

No enredo de “Frankenstein, ou o Prometeu Moderno”, o título criado por Shelley em alusão ao mito de Prometeu, o jovem aspirante a médico Victor Frankenstein (sobrenome que indica uma possível inspiração em Dippel) traumatiza- do com o afogamento de um irmão, resolve se embrenhar nos mistérios da vida e da morte tanto quanto Aldini fizera. Em fins do século XVIII torna-se um doutor tão virtuoso a ponto de conseguir construir secretamente partes anatômicas humanas de alguma forma não explicada, mas subentende-se que seja a partir da reciclagem de cadáveres. Assim, monta um ser humano de proporções incomuns (três metros de altura) e injeta-lhe a vida através de procedimentos que, de alguma forma, envolvem bioquímica e as célebres correntes galvânicas. Tal criatura, mais forte e sensível do que a maioria dos seres humanos aparece viva pela primeira vez ao criador em meio a um devaneio onírico, o que seria suficientemente forte para causar-lhe um arroubo de consciência quanto à hediondez e blasfêmia de seu ato. O cientista, em um processo de denegação freudiana, passa a ignorar seu longo trabalho e simplesmente abandona sua criatura sem nem ao menos batizá-la, como se pudesse livrar-se dela da mesma forma em que acorda de um pesadelo. Dr. Frankenstein então retorna ao seio do ambiente familiar disposto a se casar e a criar novas vidas através dos caminhos naturais. Abandonada e sem ao menos ter um nome,26 a criatura aprende a ler sozinha e se torna um autodidata filosoficamente proficiente. Mas não se adapta à vida social, visto que é hostilizado por ter uma aparência monstruosa. “Esse produto teratológico, aos poucos se vai despindo de toda a moral,

25 Ibid p. 53, grifos do autor. 26 Devido à popularidade das inúmeras adaptações do romance de Shelley, o sobrenome do persona- gem cientista que lhe empresta o título, passou a designar erroneamente a sua criação.

151 até personalizar a própria morte”.27 O que era de início uma criatura gentil e delicada, torna-se, devido à rejeição de todos, um homicida violento, que se volta mortalmente contra os familiares de seu criador, levando ao fim trágico de ambos nas inóspitas paisagens glaciais do Ártico.

A obra foi publicada em 1818 e a então Mary Shelley – pois se casara com Percy após o suicídio de sua esposa – entrou para a história da literatura de horror causando certa inquietação. Alguns historiadores o situam na linha da literatura contra-revolucionária inglesa, ao lado de “Reflexões sobre a Revolução Francesa” (1790) de Burke, pois esta retrata a revolução como uma monstruosidade sobrenatural que causa infortúnios a muitos, e a “história das infelicidades causadas à humanidade pelos vícios e loucuras dos homens”. 28

Mas a obra de Shelley ganhou a popularidade imediata porque, além de ser bem escrita, seus pressupostos científicos se mostravam exeqüíveis àquela época, pois ela fundamentara a construção de vida artificial a partir do que o zeitgeist científico da época aventava, e ainda aludindo às possíveis implicações sociais, especialmente as de cunho moral. Algo que faz seu romance hoje ser considerado da melhor estirpe da Ficção Científica.

Geralmente não existe um esforço deliberado no sentido de predizer o que irá na realidade acontecer, mas o autor de ficção científica é criatura do seu tempo e, ao imaginar alguma mudança na ciência ou na tecnologia, será bem provável baseá-la nas mudanças que perceba já existirem em embrião. (ASIMOV, 1984, p. 97).

Nesse sentido, Mary Shelley mostrou uma esperteza geralmente difícil na FC, que é não explicitar detalhes de uma tecnologia que não existe, ou que nunca venha a existir. “Quando o escritor ousa incrementar essa ilusão de realismo com conceitos científicos, às vezes sacralizados, ele corre o risco de ser desmoralizado por não ter sabido manipulá-los a contento”. 29 A autora apenas deixou pistas genéricas sobre o processo de construção da criatura. O que proporcionou aos inúmeros adaptadores de sua obra para o cinema muita liberdade para criar os métodos mais estapafúrdios. Porém quase sempre envolvendo a energia elétrica, que é apenas sugerida por Shelley. Na verdade, a parafernália elétrica da maioria dos filmes de Frankenstein se

27 OTERO, L. Godoy. Introduçãoaumahistóriadaficçãocientífica . São Paulo: Lua Nova, 1987, p.55. 28 LECERCLE, 1991, op. cit. 53-54. 29 TASSARA, Marcelo G. Ruínas do espírito ou arte consolidada. 2007, p 57.

152 aproxima mais da visualidade de uma usina de força moderna do que da descrição do laboratório no romance, que é mais aparentado com a versão de Dawley e de uma versão televisiva realizada 82 anos depois (“Frankenstein”, de David Wickes). Mas o cinema acerta quando insere suas bobinas energizadas em arquiteturas medievais, buscando na anacronia cenográfica um efeito dialético que BladeRunner transformou em estilo, criando um tempo mítico a partir da justaposição de temporalidades distintas.

“Frankenstein intriga porque ainda fazemos as mesmas perguntas sobre o que a ciência pode fazer ou não, o que queremos que ela faça, o que tememos que ela faça.” 30 A grande força da obra reside no fato de que a situação demonstrada através da alegoria de um corpo humano revivido, está naquilo que poderia ser chamado hoje de Complexo de Frankenstein. Originalmente, um termo usado por Isaac Asimov para se referir à forma como a alta tecnologia, representada geralmente por robôs, computadores e afins, costuma ser tratada na literatura de Ficção Científica: através de criaturas que se voltam contra seus criadores. Um tipo de tecnofobia que não corresponde necessariamente à aversão pura e simples ao uso da tecnologia, mas a uma preocupação que o uso errado ou extrapolado desta possa vir a causar alguma espécie de dano. A exemplo de quando o homem começa a se enveredar, geralmente usando recursos científicos, em algum grande segredo da existência, como a energia nuclear, a engenharia genética, a manipulação de partículas subatômicas e faz experimentos que são considerados uma imitação dos atos de Deus. O grande medo seria o de acontecer, justamente como na obra de Shelley, de que a criação surgida desses atos possa se voltar contra o próprio Criador. E nesse ponto, há um campo vastíssimo para a Ficção Científica engendrar situações dramáticas em busca de enredos emocionais, mas que de uma forma ou de outra, podem nos suscitar pensamentos sobre os perigos do por vir.

As grandes descobertas científicas do século XX e suas aplicações serviram de tema para milhares de obras de Ficção Científica, usando como mote principal a dramaticidade do castigo divino que se inflige sobre o ser humano quando este arrogantemente se passa por Deus. Uma das mais discutidas nos meios acadêmicos foi “Parque dos Dinossauros”, a bem sucedida adaptação de Steven Spielberg (1993) para o romance homônimo de Michael Crichton sobre as funestas

30 MORUS, Ivan Rhys in: SEARCH the real Frankenstein. Decodingthepast . 2006, op. cit.

153 conseqüências da clonagem de animais extintos através de DNA fóssil. Neste, dinossauros trazidos à vida por técnicas de manipulação genética são transformados em atrações de um milionário parque temático, mas escapam do controle e se voltam contra os homens, devorando-os. Apesar de parecer fantasia, o filme provocou muito debate acadêmico ao ponto de se deixar avizinhar no horizonte da Biologia Molecular a possibilidade real de se clonar espécies pré-históricas. Não para os longínquos sáurios extintos há 75 milhões de anos, mas mamíferos conservados no gelo siberiano há menos de dez mil anos, como os mamutes.

Tal como o romance original de Shelley, em BladeRunner não fica claro como as criaturas humanóides são construídas. Há pistas que indicam que neste último, são feitos de partes clonadas, advindas de empresas que exploram a farta mão de obra de origem oriental. Recorrendo para isso a profissionais terceirizados especialistas na manipulação genética para o desenvolvimento de determinados órgãos isoladamente. Cabendo à poderosa Tyrell Corporation a tarefa “frankens- teiniana” de montá-los e injetar-lhes vida e consciência, uma operação desenvolvida por seu presidente, Dr. Tyrell, o deus da Biomecânica, como é chamado por Roy. Algo ratificado ludicamente pelo cenário, pois vive supostamente como uma entidade divina. O homem que dá luz aos replicantes vive em meio à luz de imensos castiçais como os de templos religiosos e também sob a luz do Sol, que parece incidir somente no topo de sua pirâmide. Tyrell encarna o espírito e atitude do Dr. Frankenstein como uma espécie de Prometeu moderno em uma sociedade, tão absurdamente líquida, na qual o corpo humano já extrapolou as reconfigurações dos modismos e passou a ser a própria mercadoria de consumo rápido e descartável. Aos replicantes cabe o papel da criatura aparentemente despida de toda a moral, que personifica a morte, em seus caminhos pela busca da vida.

4.1.3 Vida, morte e modernidade líquida

Blade Runner e Frankenstein são exemplos de que o gênero Ficção Científi- ca, principalmente através da literatura e do cinema, pode ser entendido como um campo livre para inferir, no grande público, questionamentos éticos sobre o uso da ciência no intuito de vencer a morte do corpo por técnicas de reprodução e criação da vida. Filmes envolvendo clonagens e afins por diversas vezes apareceram nas

154 telas. O grande pioneiro, que tratou a clonagem de forma até didática, divulgando-a para o público leigo foi “Os Meninos do Brasil” (1978), de Franklin J. Schaffner. Neste já se aventava a clonagem de pessoas em série, através de uma tentativa no Paraguai, curiosamente o paraíso do atual comércio das marcas clonadas, do então desaparecido médico nazista Dr. Mengele, de produzir 94 crianças a partir do DNA de Hitler. Adaptações de romances de H.G.Wells como “A Fúria das Feras Atômicas” (1976 – inspirado em “O Alimento dos Deuses”) e as três versões de “A Ilha do Doutor Moreau” (1932, 1977 e 1996), com criaturas mutantes e deformidades do corpo devido à interferência culposa ou dolosa do homem fizeram certo sucesso em décadas distintas. Em “O 6 o Dia” (2000) de Roger Spottswood, o presidente de uma grande empresa de clonagem de animais de estimação tenta a imortalidade ao transferir digitalmente suas memórias para um clone de si mesmo. Em “A Ilha”, onde clones humanos isolados no que parecia ser uma heterotopia foulcautiana de ares totalitaristas, são na verdade bancos de órgãos para milionários desenganados pela medicina, que aguardavam transplante. Em suma, houve muita produção que abordava o tema da reprodução do homem por meios artificiais. Mas poucas abordaram ontologicamente este processo como o filme de Scott.

Numa perspectiva teológica, até mesmo biológica, a reprodução desprovida de sexo pode implicar em uma ameaça à paz da própria humanidade. Na tradição judaico-cristã, a culpa pela transgressão das leis do paraíso recai sobre o homem desde o seu nascimento, pois sua concepção reitera o pecado original. Dessa forma, tanto a existência da própria humanidade, quanto da produção de bens de subsistên- cia, implica em eternas lembranças do poder de Deus, e daqueles que supostamente O representam politicamente em nossas sociedades. Assim, não poderia existir algo mais transgressor do que a criação do homem – ou que a ele assemelhe – pelo próprio homem por meios artificiais – aliviando-o de sua culpa – a fim de executar o trabalho deste – livrando-lhe do castigo. Mas fatalmente um novo sentimento de culpa, por novamente burlar Deus, poderia suscitar o temor de novos castigos. Nesse contexto, o que faz Blade Runner se destacar sobre seus congêneres, já reluzia em seu próprio marketing ao tentar evitar seu fracasso: o dístico estampado na parte superior de seu cartaz, onde se lia “O homem criou o homem sua imagem e semelhança. Agora o problema é seu!”.31 Muito mais do que chamar a atenção das

31 Cf. Blade Runner XLG Image. IMPAwards. (Tradução dos exibidores no Brasil).

155 platéias bombardeadas pelas badaladas dicotomias entre o bem e o mal, herói(s) humano(s) e vilão(ões) inumano(s) das mais recentes produções de FC, a frase expunha a ligação direta com a cosmogonia da cultura ocidental. Ao fazer referência a uma das famosas passagens do Gênesis, fica claro que mais uma vez o tema daquela ficção remetia à justaposição do ser humano como ser divino.

Por conseguinte, o homem é tão imagem e semelhança de Deus que até con- segue imitá-Lo, mas não sem sofrer as conseqüências por desafiá-Lo. Se na aurora da cultura islâmica a simples reprodução figurativa de qualquer coisa seria conside- rada uma blasfêmia sujeita às ações coercitivas e punitivas – visto que apenas Alá poderia criar algo – tal atitude nos chama atenção, tal qual semelhante em diversas mitologias religiosas, parece apenas reciclar temores ancestrais. Tanto que a ousa- dia humana de dominar e manipular o fogo se perpetuou na punição a Prometeu. Analogamente o Adão bíblico, por ter se voltado contra o Criador descumprindo Suas leis, também foi punido. Com seu despejo do Éden e, ao contrário de Prometeu, com a mortalidade. Castigo que ficou de herança genésica e genética para toda a huma- nidade. Deuses vingativos e punitivos ou com demais características inerentemente humanas, indicam o quanto o processo antropomorfizador pode se estender a qualquer coisa.

O Dr. Victor Frankenstein perde sua vida por causa de sua criatura, numa espécie de versão pessimista do mito de Prometeu. Pessimista porque sua criação não traz os efeitos positivos para os homens como o manejo do fogo. No entanto, não é raro que chamas fora de controle se tornem um flagelo para a sociedade. A criatura monstruosa parecia desejar, a princípio, o usufruto da sociedade, como cidadã, não como flagelo, como um incêndio. Já os replicantes foram concebidos especificamente para apoiar a civilização humana, tal como o fogo. E da mesma forma, se descontrolados, tornam-se flagelo inflamavelmente tanto quanto a criatura sem nome de Frankenstein. Nesse sentido, ambos se aproximam mais do humano, principalmente do ponto de vista de Locke e Rousseau. Nascem como uma tabula rasa lockeana que, ao adquirirem o conhecimento de como são socialmente inseridos, vistos e tratados, se destituem de suas naturezas inatamente boas, como Rousseau considera os homens, e passam a ser a própria encarnação selvagem da violência contra seus criadores. Assim, tanto a criatura de Shelley quanto as criaturas de Scott podem ser consideradas mais uma das representações

156 teratológicas altamente sinistras da antropomorfização do objeto inanimado recorrentes em diversas culturas. Sendo morfologicamente criaturas andróides, isto é, com aparência, o processo antropomorfizador se torna ainda mais natural.

O que poderíamos considerar hoje, como uma espécie de antropomorfização do cinema, teria sua origem desde as primeiras narrativas permeadas por intervenções divinas. Segundo o filósofo pré-socrático Xenófanes, se os animais tivessem a capacidade de conceber deuses, fatalmente os fariam às suas respectivas imagens e semelhanças. O cinema, como parte da cultura humana, não poderia deixar de possuir tal característica, que se mostra mais perceptível através da Ficção Científica. Onde animais, extraterrestres, computadores, robôs e até fenômenos da natureza apresentam ações comportamentais que na verdade são projeções das humanas. Replicam-se dessa forma, as atitudes que se exibem desde as pinturas rupestres e que culminariam com o panteão de egos das divindades do panteão greco-romano. Se com o Cristianismo o deus único judeu se tornou homem como um dos vértices da trindade, mesmo que este tenha sido escalpelado de sua humanidade através dos concílios romanos deidificadores, uma ponte foi erguida para que a arte ocidental, cujas raízes emaranham-se no cristianismo medieval, seja pontuada aqui e ali com as antropomorfizações. Com o racionalismo presente advindo de século de revolução científica, deuses e mitos acabam por cair em desuso nas formas atuais de epopéia, onde a narrativa cinematográfica assume o principal lugar. E então, máquinas e realizações humanas passam a ser antropomorfizadas com tudo de bom e principalmente ruim que isto possa significar.

[...] e se tornam objetos da projeção dos vícios humanos; seu espelho e sua tela. E nunca como nesse caso revela-se de modo tão evidente a absoluta não-libertação que essa projeção produz; e que – ao contrário – continua a servir como tabu para a socialização mitológica da relação entre ciência e ideologia, técnica e fé. O antropomorfismo, em sua nova veste de “ficção científica”, envolve o esplendor da tecnologia e, ao mesmo tempo, essa última regride ao animismo mais datado. (CANEVACCI, 1984. p. 87).

Somando-se a isso os aspectos da estrutura que todo indivíduo desenvolve como forma vital de coexistir, que seriam os vários níveis de centrismos, onde o mundo lhe surge como feito para o indivíduo usufruir. Algo como o mundo natural na visão de Hobbes antes da concretização do contrato social. Os centrismos passam

157 do nível físico, onde as ações visam a auto-conservação, ao psíquico, que visa o destaque entre os demais e o instrumental, que desenvolve estratégias para a manutenção dos primeiros. O centrismo, portanto, “é a tendência biocultural que afirma o sujeito como único centro, que torna pessoas ‘outra’. Esse sujeito pode ser um indivíduo, um grupo, uma civilização, dando lugar respectivamente ao egocen- trismo, ao grupocentrismo, ao etnocentrismo”. 32

Um filme, justamente por ser produto da ação humana, nunca estará isento de antropomorfismos e de manifestações diversas de centrismos, especialmente o antropocentrismo, com criaturas humanizadas em situações que de uma forma ou de outra, fazem parte do universo humano. Como os softwares transformados em gente e circuitos em cidade em uma visão lúdica do ciberespaço mostrada em “Tron, uma Odisséia Eletrônica” (1982) de Steven Lisberger e sua seqüência “Tron, o Legado” (2010) de Joseph Kosinski.

São atributos humanos que apesar dos exemplos, não são restritos à Ficção Científica. Se generalizados, podem ser encontrados em quase qualquer objeto da cultura material humana ao longo do processo histórico, talvez por uma necessidade natural e social da espécie. Se uma ferramenta de pedra lascada foi moldada para se encaixar ao formato da primitiva mão humana, nossos deuses e mitos também foram criados no intuito de se adequarem às nossas necessidades cotidianas. O cinema e a literatura de FC não fogem à regra, porque justamente procuram, em boa parte de suas produções, servirem ao homem como entretenimento ou transmissão cultural. A FC tem como uma de suas principais características uma suposta capacidade de antecipar, através das projeções de desenvolvimento das tecnologias presentes, os possíveis caminhos que a sociedade poderá vir a tomar através da manipulação de invenções que teoricamente estariam para se tornar realidade no futuro. E como quase toda a narrativa se estrutura a partir de uma situação problemática a ser contornada, os autores deste gênero geralmente escolhem as alternativas mais lúgubres para obterem melhores recursos dramáticos. Por isso, segundo Siqueira, “pode-se dizer que a Ficção Científica é verossímil, não é verdadeira, tampouco falsa – mas aparenta ser verdade”.33 Mesmo que verse sobre criaturas biologicamente esdrúxulas de galáxias distantes, terão de uma forma ou de

32 CANEVACCI, Massimo. AntropologiadoCinema . São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 97. 33 SIQUEIRA, op. cit. p.17.

158 outra, sempre algum tipo de projeção centrista da nossa própria condição humana. Dessa forma, Blade Runner , tanto a obra como a mídia, encaixa-se duplamente como exemplo antropocêntrico.

Ainda mais se levar em conta que o nível de conhecimento científico atual nos dá o poder divino de destruição e criação. Pela primeira vez no longo devir humano, tem-se a possibilidade de se intervir severamente na biosfera deixando seqüelas duráveis e nesse processo, causar a extinção da espécie. Em uma forma diametral- mente oposta, através de técnicas avançadas de manipulação genética e sistemas de inteligência artificial que se avizinham no horizonte das possibilidades cibernéti- cas, estamos quase transpondo a fase da duplicação assistida da vida – as diversas modalidades de clonagem existentes atualmente – para a fase de criação da própria vida em laboratório. “No entanto, discussões em outras instâncias, entre ela a ética, questionam essa herança do pensamento humanista e forçam o repensar do papel do homem como membro de um meio que sofre influência e o influencia também”. 34

Nesse sentido, a própria conjectura da possibilidade da existência de replicantes poderia implicar em grandes contribuições no caminho de se justificar o próprio sentido da existência humana, ou mesmo fortalecer versões metafisicamente grandiosas que se elaboram para justificá-la. Representando o ápice da parceria das neurociências com a Bioengenharia, poderiam abrir perspectivas empíricas de se conceituar, ou mesmo questionar a existência dos estados interiores da consciência, como já aventado pela filosofia de Daniel Dennett.

Dennett afirma que o "teatro cartesiano", isto é, um local no cérebro onde se processaria a consciência, não existe, pois admitir isto seria concordar com uma noção de intencionalidade intrínseca. Nesta perspectiva, para ele a consciência não se dá em uma área especifica do cérebro, mas em uma seqüência de inputs e outputs que formam uma cadeia por onde a informação se move. (GONDIM, 2010; RODRIGUEZ, 2010).

Entretanto, os replicantes usam Descartes para se mostrarem distintos de máquinas de computação a J.F. Sebastian: “Não somos computadores, Sebastian. Somos (seres) físicos”, lhe diz Roy Batty em certa parte de Blade Runner , sendo completado por Pris, citando a assertiva cartesiana “Penso, Sebastian, logo existo.” Abre-se o debate se os andróides do filme são apenas replicantes de algumas pro-

34 Ibid, p. 19.

159 priedades da consciência humana como memória e inteligência , igual a qualquer computador, ou realmente conscientes, pois são capazes de expressar sentimentos, algo mais ligado à flexibilidade e plasticidade de comportamento possíveis ainda só em estruturas biológicas.35 A diferenciação clara do que representam pode ser im- prescindível para se entender a aceitação social da condição escravocrata que su- postamente vivem. Se não possuem uma consciência nos moldes orgânicos, são apenas entidades pluricelulares altamente especializadas e dotadas de inteligência artificial. Assim, não são escravos propriamente ditos, apenas máquinas pensantes cumprindo suas obrigações sem ferirem qualquer ética ou consciência moral humana.

Os replicantes, versões líquidas de Frankenstein no cinema dos anos 1980, especialmente através da figura de Batty, surgem como a representação do que Heidegger entedia como ser-para-o-futuro, um pessoa que vive um “estado conceitualmente voltado para o futuro”, 36 que é diferente de se viver simplesmente deixando o futuro chegar. Não tinham um passado, a não ser um simulacro deste emulado em fotografias que colecionavam. Com o presente representando a opressão sob a forma de trabalho forçado, e o fantasma do obsoletismo se avolumando em nome da liquidez consumista, a experiência do viver inevitavelmente recai sobre o porvir. A esperança de deixarem plenamente de viver com medo em um presente a ser construído, ou seja, em um futuro, se forma à medida que o limite mortal dos quatro anos se avizinha. Ao se libertarem das amarras da alienação imanente, emerge a conscientização de que representam um dos principais elos da cadeia de produção. Tal transcendência implica em atitudes no sentido de assumirem o controle da situação, de tentarem a revolução contra o sistema econômico que em nome do consumo, dilapida tranquilamente o fogo dos deuses dando vida ao maquinário fabril. Mas antes de tudo, teriam que encontrar formas de garantir que o futuro existisse. Para que não ficassem limitados aos quatro anos de vida útil. Como Thimoty Leary ressaltaria, pilotando suas vida através de atitudes contra o sistema, semanticamente uma atitude ciberpunk . Com mais vida, os replicantes talvez não se contentassem apenas em vivenciarem o outro lado do consumo. Talvez usassem seus corpos artificialmente saudáveis e seus intelectos superiores em longas e produtivas vidas voltadas a melhoria ética de uma sociedade

35 Cf. PARANHOS, Flávio. De homem e máquinas. Ciência&vidafilosofia . 2010, p. 30. 36 ROWLANDS, Mark. Scifi=scifilo:afilosofiaexplicadapelosfilmesdeficçãocientífica . 2005, p..

160 despudorada. Como se encarnassem a versão otimista do mito por trás de Frankenstein na visão de Percy Shelley (o marido de Mary), onde em seu “Prometeu Libertado” (1819) a revolta do herói tem sua razão na imposição de ordem ao caos, sendo este o estado atual das coisas. Mas à medida que suas ações no intuito de subtrair a morte do futuro acarretavam no oposto, a revolta violenta aparentemente destituída de razão contra seus criadores, se torna a única opção para se fazer presente. Os replicantes assim se tornam tão heideggerianos quanto a criatura inventada por Mary Shelley.

Dar vida a algo sem vida. Ter o poder sobre ela. Shelley escreveu seu romance sob as lembranças da morte de seu primeiro filho, que ocorrera ao seu seio um ano antes e que a fez sonhar certa vez que ele tinha voltado à vida.37 O Dr. Victor Frankenstein se dedicou a sua pesquisa devido a constatação de sua impotência frente à morte de seu irmão. Um dos fatores que levaram Ridley Scott a se interessar pelo projeto de Blade Runner , à época de sua contratação, foi a constatação dos grandes desafios que teria, o que o ajudaria a superar a perda recente de um irmão, depois de uma longa luta contra um câncer. Dessa forma, é admitido que muito da melancolia transmitida pela película teria sua origem no próprio estado de espírito do diretor, que tal como o Dr. Frankenstein, questionava a derrota da vida para a morte, mesmo depois de muita luta. 38 O romance de Shelley é a grande metáfora da cultura ocidental para o medo ancestral da morte e das tentativas de enganá-la. Mas diante sua inevitabilidade, pode ser visto também como a metáfora da frustração humana. A criatura gerada em laboratório pelo cientista descarrega nos seres humanos a sua frustração por ter uma vida com limitações. Não é amado nem compreendido. Tal como os replicantes de Scott, é mais imaginativa e emocional que seu criador, vive entre os ímpetos violentos e sob uma permanente fobia social. Medo dos outros porque é o estranho no caso da criatura de Frankenstein, medo por que são considerados escravos, medo da morte, no caso dos replicantes de Tyrell. Roy Batty, o último dos replicantes amotinados, confessa isto a Rick Deckard enquanto este, durante os poucos segundos em que ficou pendurado na beirada de um edifício, aprendia o que era viver com medo.

No entanto, ao final, Roy Batty, o mais mortal dos replicantes, com um prego

37 PIEDADE, Lúcio F.R. Seres da noite: o cinema e a gênese do Prometeu moderno. 2009, p. 228. 38 Cf. SAMMON, P.M. Futurenoir,themakingofBladeRunner . New York: Harper Prism,1996, p.48- 49.

161 traspassado na mão, é capaz não somente de “dar a vida” àquele que desejava removêlo , salvando-lhe quando este estava por perdê-la por conta própria, como também ter compaixão por toda a humanidade. Não podendo compartilhar com ela suas memórias entre naves sob ataque em Órion ou raios C brilhando perto do Portal Tannhäuser, que naquele momento foi comparada por ele às lágrimas que se perdiam na chuva. Aqueles derradeiros momentos lhes eram ímpares porque pareciam dizer que o verdadeiro sentido da vida era o próprio fato dela ser finita. Daí o seu valor, especialmente se for curta. Assim, qualquer vida teria o seu valor, inclusive o bladerunner que removeu seus companheiros. Ao compreender isso, ao salvá-lo e morrer em seguida, é como se metaforicamente tentasse absorver para seu corpo seminu todas as mazelas que a humanidade impõe a si mesma, em analogia implícita com os fundamentos cristãos. Retornando às narrativas místicas e religiosas, os replicantes tornam-se, muito mais do que criaturas revoltadas contra o seu criador. Tornam-se uma espécie de antropomorfização divina com a missão de tentar salvar a humanidade dela mesma.

As alusões bíblicas relativas à morte do replicante podem ser um reflexo, mesmo que inconsciente, da ambivalência da ciência. De um lado sua suposta missão redentora de salvação da humanidade. De outro, os seus perigos. Nesse sentido, Blade Runner passa a ser mais um alerta da ficção de Dick que os replicantes e frankensteins existem mesmo, de certa maneira, no mundo real. Porém mais sutis. E justamente por isso, mais perigosos. Aludindo-se a Nazário:

Todos os pesadelos da humanidade materializaram-se nesta segunda metade do século XX. Agora, cientistas organizados progra- mam o nascimento de bebês de proveta, banqueiros de esperma selecionam e armazenam em frigoríficos as futuras criaturas sociais; corações de plástico prolongam existências condenadas e, da fabricação de genes à hibernação dos quase-mortos, a cada dia crescem as possibilidades de que o homem se desumanize em seu próprio corpo. [...] Graças à psicologia industrial, à engenharia humana e às relações públicas, os cientistas contemporâneos podem disseminar pelo mundo frankensteins já integrados, liberados e desenvoltos, que se levantam da mesa operatória não mais para se revoltar contra um mundo mal feito e destruir seus falsos pais, mas para participar ativamente da realidade que evolui para a aniquilação total da vida. (NAZÁRIO, 1986, p. 54-55).

A manufatura do monstro de Frankenstein e a do filme BladeRunner podem ser formas encontradas na ficção e na vida real de superar o trauma da perda. Tanto

162 que a morte através da vida artificial é o grande ele que une as duas obras. Assim, replicantes não podem deixar de ser considerados como versões em série e aperfeiçoadas da criatura de Shelley, feitos sob medida para o encaixe no espírito capitalista da modernidade. A inexistência de uma ética na ficção afasta quaisquer questões filosóficas abordadas até aqui e os tornam apenas meras máquinas biológicas, independente se a ética científica do mundo real irá permitir algum dia que venham a existir.

Cabem aqui representações óbvias dos novos moldes corporais que se fazem necessários para o encaixe no projeto sócio-político, econômico e cultural que já abrange parte considerável do mundo globalizado. Neste projeto “convergem uma racionalidade econômica que desconhece qualquer alternativa possível, e uma racionalidade tecnocientífica que tende a converter tudo em informação, inclusive os seres humanos, a natureza e a vida”. 39 Tudo necessita ter sua versão digitalizada, quantificada, avaliada para cumprir seu papel como potencialidade nas condições da modernidade líquida. Nisso, até mesmo a definição tradicional de ser humano se torna obsoleta. Artificialmente, no sentido de não ser por causas naturais, mas sim capitalistas, surge o homem pós-orgânico. Uma denominação para a noção de corpo vinculada às manipulações da racionalidade científica (vinculada aos lucros da indústria biotecnológica) que apontam para uma transubstanciação em algo além do orgânico, mas também mecânico, eletrônico e até mesmo sintético. Não necessaria- mente um replicante, um clone, um robô ou qualquer outro simulacro humano da Ficção Científica, mas um ser que precisou evoluir para se adaptar a uma nova conjuntura global.

Assim, neste novo contexto, os tipos de corpos e subjetividades que serviam aos interesses do capitalismo industrial do século XIX e da primeira metade do século XX, por exemplo, hoje estariam se tornando “obsoletos” porque não são mais “úteis” aos interesses do capitalismo contemporâneo. Se aquele regime histórico demandava grandes contingentes de sujeitos “disciplinados”, corpos “dóceis e úteis”, especialmente treinados para saciar as engrenagens da sociedade industrial e subjetividades compatíveis com toda aquela maquinaria, a nova torção do capitalismo ancorado no consumo parece solicitar outras subjetividades e outros tipos de corpos: sujeitos ávidos, ansiosos, criativos, flexíveis. Entretanto, essas novas configurações corporais seriam igualmente “dóceis e úteis”, embora respondendo a outros interesses históricos. (SIBILIA, 2005).

39 SIBILIA, M. P. Obsolescência do humano serve à economia e à tecnociência. Comciência. 2005.

163

Os replicantes podem assim ser vistos como o homem pós-orgânico, parâmetros metafóricos para aqueles que continuamente precisarem ser lembrados de que precisam viver com medo. Medo da obsolescência física e intelectual no caso do seres humanos da sociedade líquido-moderna. Medo da obsolescência tecnológica no caso dos replicantes, visto que já são manufaturados preparados para serem ultrapassadas imediatamente por novos modelos Nexus . Como um eletrodoméstico da atualidade, a fábrica garante reposição por alguns pares de anos. No dias de hoje, a posse de um veículo, um sistema de som, um refrigerador com mais de quatro ou cinco anos, significa que o custo de manutenção, enquanto esta ainda for possível por causa da falta de peças de reposição, não é mais compensatória. Repor por um modelo mais novo é mais vantajoso. E o mercado extingue assim empregos indiretos ligados às oficinas, como técnicos, mecânicos e afins. O lixo, com equipamentos descartados, aumenta à medida que profissionais das oficinas desaparecem. Percebendo isso, devem lutar vigorosamente contra a obsolescência se não quiserem o mesmo destino em muito menos de simbólicos quatro anos. O tempo de vida útil dos replicantes pode ser entendido assim, como o símbolo de uma modernidade líquida, que faz com que seus membros nunca possam se solidificar em algo. Necessitam constantemente do aprimoramento de suas biografias para não serem removidos do sistema.

4.2 Necessidade de ética

O entendimento conceitual sobre o que é a natureza é mutável ao sabor dos ventos históricos. Na Antigüidade, sua sacralidade se manifestava em deuses e divindades que justificavam os seus fenômenos. Nas trevas medievais ainda era misteriosa, com seus enigmas e encantamentos, o que se alinhava com seu principal inquilino, o homem, pois este era tido como à imagem e semelhança divina. Mas com a Revolução Científica, esta percepção se reconfigurou, desencantando e mecanizando gradativamente o mundo natural para sintonizá-lo com as necessidades imperiosas da industrialização. Nisso, o grande divisor de águas aconteceu no século XIX, com a publicação da teoria científica de Darwin sobre a origem das espécies, atribuindo-lhe processos evolutivos que descartavam a intervenção direta de Deus.

164

Atualmente, outra reconfiguração histórica está em curso sob a pressão das exigências de adequar a natureza a uma infinidade de visões, da Física, da Mecânica Quântica e principalmente da Biologia Molecular e áreas afins. Rompida a barreira técnica da manipulação genética em níveis moleculares, a natureza se torna conversível para os dados digitais do mundo da informática, como quase tudo nesse momento tecnocientífico. Assim, de acordo com Sibilia:

Um dos grandes sonhos da nossa tecnociência é a promessa de que os “engenheiros da vida” possam efetuar ajustes nos códigos informáticos que animam os organismos vivos, assim como os programadores de computador editam software. Todas essas reconfigurações e redefinições da natureza, da vida e do homem têm profundas implicações em todos os âmbitos, e por isso é de extrema relevância que não permaneçam impensadas. (SIBILIA, 2005).

Um grande passo no caminho deste sonho foi dado em março de 2010, quando o Instituto J. Craig Venter realizou uma façanha inédita em seu laboratório: “a primeira célula autorreplicante do planeta a ter um computador como progenitor”, 40 segundo as próprias palavras do Dr. Craig Venter, diante do fruto de 15 anos de experimentos e 40 milhões de dólares de investimentos da SyntheticGenomics , uma empresa privada de sua propriedade em parceria com o Governo dos EUA. Na verdade, o que foi feito foi a montagem, a partir de informações digitais, de um genoma sintético artificial da linhagem inédita de uma bactéria. Ao ser inserido em outro tipo de bactéria jáviva , este genoma produziu uma colônia de bactérias que nunca existiram na realidade. Isto é, uma espécie de clonagem a partir de um genoma montado artificialmente, e não vida criada a partir do inanimado.

Na prática, este experimento que resultou no primeiro “microrganismo a viver completamente através de instruções genéticas artificiais” 41 visa o desenvolvimento de medicamentos biotecnológicos revolucionários. Um deles seria a criação de uma célula receptora universal que poderia multiplicar qualquer genoma que fosse fabricado, o que possibilitaria a criação de novas vacinas em tempo recorde. Mas com o marketing obtido de que a vida artificial havia sido criada – o que efetivamente

40 BIELLO, D.; HARMON, K. Ferramentas para a vida. ScientificAmerican Brasil , 2010, p. 12. 41 Ibid.

165 ainda não aconteceu 42 – Venter conseguiu dois feitos antagônicos. O mais óbvio foi ser comparado ao Dr. Frankenstein da ficção pela imprensa, por estar prepotente- mente mexendo com o segredo da vida supostamente sem medir as conseqüências. O outro foi se firmar como astro da ciência 43 e dos negócios, pois conseguiu angariar a partir de então 110 milhões de dólares em novos investimentos, tornando sua SyntheticGenomics uma das mais ricas do mundo neste novo campo chamado de Biologia Sintética. Uma espécie de Tyrell Corporation do mundo real com valor de mercado estimado em 500 milhões de dólares. Porém ao invés de replicantes, planeja “criar criaturas vivas – bactérias, algas ou mesmo plantas – projetando-as a partir do DNA para realizar determinadas tarefas industriais e substituir os combustíveis e as substâncias químicas atualmente produzidas a partir dos combustíveis fósseis”.44 Com o tempo, o objetivo é substituir toda a indústria petroquímica. Segundo o próprio Venter, "projetar e construir células sintéticas será a base de uma nova revolução industrial”. 45

Venter é um dos exemplos mais eloqüentes que alertas frankensteinianos da Ficção Científica devem ser levados em consideração. O que Venter fez, multiplicar uma vida alterada por computador, é basicamente a mesma técnica usada para trazer os dinossauros ao mundo na FC “Parque dos Dinossauros”. O debate sobre a possibilidade de se ressuscitar seres que a própria natureza delegou ao esquecimento não é algo intelectualmente distinto do objeto das atuais discussões éticas e políticas sobre os efeitos do cultivo de vegetais transgênicos no meio ambiente ou sua absorção no organismo humano. Ou sobre a doação compulsória de órgãos em caso de morte, dos limites jurídicos e religiosos para bancos de sêmen, da fertilização in vitro , da manipulação de embriões descartados para o estudo de aplicações clínicas das células-tronco.

Alguns momentos da história da manipulação celular conseguiram amplo

42 Concorrentes de Venter tentam algo mais próximo à vida artificial propriamente dita, como o físico Steen Tasmussen, de Los Alamos, EUA, que planeja construir uma proto-célula a partir dos elementos básicos de um plástico (através do PNA, molécula polimérica artificial que simula o DNA e RNA em pesquisas) que consiga se replicar, para executar trabalhos definidos em ambientes de condições extremas de temperatura, toxidade e radioatividade. Não seria considerada ainda vida artificial, mas algo bem próximo disto. 43 Nos anos 1990, Venter ficou famoso por ter desenvolvido um método mais rápido e menos dispendioso para decifrar o genoma humano, do que o usado por um consórcio internacional de cientistas há dez anos. Concluindo o trabalho antes, tentou cobrar pelos dados, o que foi conside- rado antiético. 44 POLLACK, Andrew. Venter faz da ciência um negócio milionário. 2010. Estadão.com.br . 2010. 45 Ibid.

166 debate popular por que se tornaram célebres. Um foi o nascimento, na Inglaterra, da menina Louise Brown, o primeiro bebê de proveta em 1978. Quando ela tinha 19 anos ocorreu o outro momento. O nascimento, na vizinha Escócia, da ovelha Dolly, o primeiro mamífero por clonagem de outro animal adulto, a partir de células não embrionárias. A viabilidade da união das duas técnicas logo suscitou no imaginário social a possibilidade real de que a replicação de um ser humano seria apenas uma questão de tempo. O que desencadeou um amplo debate na mídia, à época da divulgação do nascimento de Dolly (às vezes chamada de ovelha replicante numa alusão à Blade Runner ) sobre as conseqüências fisiológicas, morais, religiosas e jurídicas, da clonagem e procedimentos afins, como mostra Dias:

A ovelha replicante Dolly provocou uma febre legal nos parlamentos de todo o mundo, que preparam comissões e projetos de lei para evitar que sejam criadas réplicas de seres humanos. O presidente norte-americano, Bill Clinton, determinou que o Grupo de Aconselha- mento Nacional sobre Bioética elabore em 90 dias um relatório sobre clonagem (duplicação de um ser vivo), lei e ética. Para o ministro francês da Agricultura, Philippe Vasseur, a técnica escocesa pode possibilitar a criação de "monstros das fazendas", mesmo sob os ri- gores da legislação dos países europeus. O ministro alemão da Pes- quisa e Ciência, Jürgen Rüttgers, afirmou que deve ser proibida a clo- nagem do homem, "uma criação única que não pode ser manipu- lada". (DIAS, 1997).

Talvez nunca cheguemos a tanto, mas fatalmente a experiência de Venter deverá ser tentada em animais superiores, como ovelhas. E se não houver barreiras éticas, em seres humanos. Em alguma sociedade futura, essa variante de clonagem poderá vir a ser usada para consertar um suposto enfraquecimento da espécie humana pela sociedade democrática que teria permitido, através da cultura, libertar o ser humano da cruel imposição da seleção natural, ao permitir a integração e reprodução dos mais fracos, que jamais teriam chance em estado natural, território dos mais fortes. 46 Selecionando em laboratórios os genes dos mais fortes, para se reproduzirem em série, em detrimento dos genes dos mais fracos, seria a seleção artificial voltada para trazer de volta a seleção natural do homem que a cultura solapou. Uma nova sociedade de melhorados poderia ser criada. Um Homo ricus superior poderia até mesmo escravizar o Homosapiens inferior. 47

A problemática deste malicioso exercício de imaginação, inspirado em artigos

46 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Vida sintética e ética... ScientificamericanBrasil . 2010, p. 82. 47 Cf. DIEGUES, Carlos. Seleção artificial. RevistaPiauí. 2006.

167 de Fábio Ulhoa e Cacá Diegues na imprensa brasileira, é que a cada dia fica mais difícil de se identificar onde termina a realidade e onde começa de fato a Ficção Científica. 48 Os casos de Louise Brown e de Dolly, quando saíram da esfera da ficção e se tornaram realidade, auxiliaram na formação de uma ampla base epistemológica que forneceu diversificação de teorias e métodos. Contribuíram assim para a estabilização da Bioética, permitindo “que reflexões morais se dessem de modo equilibrado, evitando tanto abusos em nome da ciência como proibições descabidas.”49 Isso foi fundamental para o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida, que possibilitam hoje filhos a pais com problemas de fertilidade, e a clonagem na pecuária, que auxilia na produção de alimentos.

A Bioética pode ser entendida como “uma ética aplicada que visa ‘dar conta’ dos conflitos e controvérsias morais implicados pelas práticas no âmbito das Ciências da Vida e da Saúde do ponto de vista de algum sistema de valores”. 50 O termo surgiu em 1971 nos EUA, proposto pelo bioquímico Van Rensselaer Potter unindo os dois componentes que ele considerava os mais essenciais para fundamentar uma nova sabedoria que se fazia, segundo ele, desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos. 51 Em dias atuais o campo da Bioética se estende naturalmente nas pesquisas em animais e seres humanos, em problemas éticos de diversas categorias profissionais, em questões sanitárias e ambientais, em práticas hospitalares e assistenciais etc. Surge em conselhos nos diversos níveis governamentais, em comitês e já faz parte de alguns currículos escolares e universitários. 52 Mas é na visão de Kottow, que a Bioética parece uma espécie de apaziguação tecnofóbica, uma forma de se afastar qualquer tipo de Complexo de Frankenstein, pois considera que ela seja “o conjunto de conceitos, argumentos e normas que valorizam e justificam eticamente os atos humanos que podem ter efeitos irreversíveis sobre os fenômenos vitais”. 53 Em outras palavras, no final das contas a solidificação dos pressupostos bioéticos não conseguem

48 “Vida Sintética e Ética” do jurista Fábio Ulhoa é um artigo que suscita discussões jurídicas e éticas sobre possíveis processos de Eugenia que poderão ocorrer através do desenvolvimento, no futuro, de técnicas de vida sintética, como a de J. Craig Venter. Entretanto, não indicam qualquer tipo de preconceito ou discriminação por parte do autor. O artigo “Seleção Artificial“ do cineasta Cacá Diegues, tem o formato próximo a um conto de FC ao apresentar a linha do tempo da humanidade rumo a uma distopia antropofágica nos moldes do romance “A Máquina do Tempo”, de H.G. Wells. 49 GARRAFA, Volnei. A emergência da bioética. ScientificamericanBrasil , 2010, p. 30-31. 50 SCHRAMM, Fermin Roland; BRAZ, Marlene. Introduçãoàbioética . 2010. 51 Ibid. 52 Ibid. 53 KOTTOW, M. apud SCHRAMM, Fermin Roland; BRAZ, Marlene. Introdução à bioética. Bioética .

168 acompanhar a velocidade do avanço científico. Como se ela lutasse contra a obsolescência tanto quanto os cidadãos da sociedade líquido-moderna. Talvez ainda se corra riscos como os aventados por Ulhoa e Diegues, Dick e Scott.

Vive-se hoje em uma espécie de modernidade cujos media deixam entender que há uma crise de valores éticos de tamanha proporção que muitas vezes se torna difícil distinguir dicotomias antes óbvias, como certo e errado, moral e imoral etc. O que muitas vezes deixa o indivíduo sem fundamentação para suas decisões. Do ponto de vista macro-econômico, muitos valores sucumbem, mesmo atrelados à dignidade e o bem-estar dos indivíduos. A perda de referências sólidas pode ser entendida como mais uma face da modernidade líquida, segundo os preceitos de Bauman vistos no capítulo anterior.

A ética tem como objetivo consolidar valores que possam servir de orientação moral e coerente para as decisões e opções dos seres humanos em suas inter- relações sociais. Surge naturalmente nas mais diversas sociedades, inicialmente presa à costumes de ordem mítica e religiosa. Na Grécia Antiga, Sócrates encontrou argumentos para se basear na capacidade intelectual do livre exercício da razão e Aristóteles a sugestão de que a própria práxis forneça o apoio que a teoria não consiga sustentar. Assim, a complexidade das ações que envolvam decisões morais oscila nas possíveis graduações entre a razão teórica e a razão prática. É a diferença entre saber e sabedoria. No plano da decisão ética, objetividade e subjetividade deverão se complementar sempre. Se as instâncias forem tratadas separadamente, haveria uma generalidade etérea e formal longe das práticas humanas. “Os valores devem ser, ao mesmo tempo, dotados de um teor de universalidade que nos incline a adotá-los por sua própria força, e vividos na individualidade singular do sujeito que age”.54 Isto é uma questão que vai implicar na escolha, as vezes apenas dicotômica, ou às vezes diante de uma grande amplitude de possibilidades, do que fazer, de como proceder, se agir ou não, ou como agir. Adorno, assim como Horkheimer, considerava que a racionalidade humana, ao superar a tradição mitológica e favorecer o controle da natureza para a produção das condições materiais da vida, trouxe junto com os benefícios desta ação, a barbárie sob a forma da falta de dignidade na vida da maioria das pessoas. O desencantamento combateu o mito trazendo o esclarecimento, mas este toma ares

54 SILVA, Franklin Leopoldo. Ética e situações-limite. CULT , São Paulo: Bragantini, 2010, p. 48.

169 de mito quando assume prepotentemente um caráter de inquestionabilidade, justificando barbáries como genocídios étnicos, guerras pela paz e repressões políticas. 55 Na visão de Adorno, a doutrina da vida reta, que sempre fez parte da filosofia deveria nortear as formas da ciência em seu papel anti-obscurantista. No entanto, quando a filosofia virou método, tal doutrina se esvaiu de estudos mais intelectualizados e, quando não deixado totalmente de lado, ficou a mercê de sentenças arbitrárias. Em suas próprias palavras:

A melancólica ciência [...] desde tempos imemoriais, se considerou peculiar à filosofia, mas que a partir da transformação desta em método caiu no desrespeito intelectual, na arbitrariedade sentenciosa e, por fim, no esquecimento: a doutrina da vida recta. O que outrora para os filósofos se chamou vida converteu-se na esfera do privado e, em seguida, apenas do consumo, a qual, como apêndice do processo material da produção, se arrasta com este sem autonomia e sem substância própria. Quem quiser experimentar a verdade sobre a vida imediata deve indagar a sua forma alienada, os poderes objectivos que determinam, até ao mais recôndito, a existência individual. [...] A visão da vida transferiu-se para a ideologia que cria a ilusão de que já não há vida. (ADORNO, 2001, p. 7).

Isto é, não haveria valia em se refletir como se comportar eticamente quando não se tem o poder de decisão sobre algo. Quando se pensa sobre o que pode ser feito se não são deixadas opções para tal. A ação desvinculada do sujeito pode ser uma das características que mais cerceiam a ética na atual condição da modernidade. Assim, os problemas que necessitam de um aparo ético costumam se resolver totalmente distantes da grande maioria das pessoas, que geralmente ignoram até a sua existência. A omissão perante momentos eticamente perturbadores da história do capitalismo, como a escravidão dos negros ou o holocausto demonstram, não significa que a humanidade esteja condenada a perder o seu sujeito moral, que é a sua condição e capacidade de julgar que ações poderiam em tese tomar a partir de princípios éticos e morais. Até porque o crescente aumento das potencialidades técnicas da ciência pode implicar em conseqüências nefastas para todos, se não for supervisionado por instituições apoiadas em normas solidamente éticas. Em nenhum outro momento do devir necessitou-se de uma forma tão ampla de confronto das possibilidades abertas pela ciência com a ética, especialmente a Bioética. De alguma forma, a sociedade tende

55 Cf. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialéticadoesclarecimento . 1985, p. 19.

170 a deixar lacunas para que não se cumpram totalmente os temores de Adorno, na abstenção de si em relação às decisões e ações generalizadas. A suposta inelutabilidade para com as transformações advindas do conhecimento científico pode ser afastada ao ser usado, de maneira correta, o próprio conhecimento científico para tal. Não seria a ciência se voltando contra ela mesma, mas uma forma dela se permitir ser analisada como ciência. Simplificando, uma educação científica aberta e transdisciplinada com as humanidades poderia resgatar ao cidadão o sua posição de ter, ou pelo menos estimular, o controle ético e racional – isto é, sem arraigos de natureza teocrática – sobre o futuro social da humanidade.

4.3 Necessidade de conscientização

Algo que fica subentendido baseado na reflexão sobre diversas abordagens apresentadas até aqui sob a ótica da Ficção Científica, e especificamente pelo recorte em Blade Runner , é que os avanços do par ciência e tecnologia trazem retornos ambivalentes para a sociedade. A ciência começou a incutir transformações severas na sociedade desde que se tornou tecnociência, ao se associar à técnica a partir do impulso renascentista. A multidimensionalidade e complexidade científica tendem a dificultar a polarização de seus efeitos. Se por um lado traz incontestáveis benefícios, por outro apresenta efeitos colaterais altamente nocivos ao bem-estar da humanidade, inclusive com riscos reais de eliminação da própria.

Este aspecto paradoxal da modernidade tecnocientífica é um grande impasse e o homem necessita urgentemente começar a pensar em sérias propostas para sair dele, se quiser garantir um futuro diferente daqueles das distopias da FC. Quando Freud constatou que “o perigo mora ao lado do progresso”, 56 viu nisso um dos fatores para o mal-estar na sociedade. Algo que ele não acreditava que acontecesse longe da civilização, por considerar que “as sociedades primitivas são mais éticas que as civilizações modernas”.57 Daí muitas soluções advindas do conhecimento científico, da razão e do humanismo não terem obtido êxito para resolveram os problemas fundamentais da sociedade. Questiona-se assim a missão da ciência, se ela é para melhorar e salvar a humanidade ou o contrário, através de seus efeitos

56 FREUD, Sigmund apud RODRIGUES, Ana Paula Britto. Uma ciência com consciência. 2008. 57 Ibid.

171 colaterais. É perceptível que uma das possíveis soluções para tal aponta para uma conscientização ampla, transversal e generalizada, fundamentada na ética, sobre a ciência, a técnica em conjunto com ciências sociais. Para se chegar a isso, o pensamento do filósofo francês Edgar Morin, propõe caminhos que passam por um entendimento transdisciplinar e desfragmentado da ciência, para que esta possa ser considerada como algo que evidentemente ela é: complexa.

Nesta última seção, será exposta a visão de Morin que norteou toda esta pesquisa em relação à ética, a ausência ou a presença de consciência na ciência. Algo que costumeiramente é a espinha dorsal da produção da Ficção Científica, que está na essência do produto cinematográfico BladeRunner , seja ele um investimento comercial ou cinema com ares de arte. Uma consciência na ciência que se existe, é flexível o bastante para permitir que o capital a norteie em troca de lucros para os seus detentores. Lucros que geram lixo, dilapidação dos recursos naturais, impactos ambientais e outras mazelas que se voltam contra seus criadores, tal qual os andróides e frankensteins do cinema.

Morin considera como o lado negativo da ciência o enclausuramento do saber sob a forma de fragmentação, a começar pela separação entre as ciências naturais e as humanas. E nestas últimas, a trituração de seus conceitos, ao invés de uma aproximação entre eles. E ainda, o arquivamento dos conhecimentos em grandes bancos de dados ao passo que poderiam ser disponibilizados para pesquisa imediata, o que indica uma espécie de obscurantismo que remete, dentro das devidas proporções, às bibliotecas medievais só acessíveis ao clero. Tais acervos digitais típicos de uma tecnociência que informatiza tudo na natureza (conforme visto na seção anterior) encerram potencialidades científicas tanto benéficas quanto subjugadoras ou mesmos mortais. Arquivos que não estão no poder das mentes criativas que desenvolveram o que estão em seus dados, mas divididos em “migalhas no nível dos poderes econômicos e políticos. De certo modo, os cientistas produzem um poder sobre o qual não têm poder, mas que enfatiza instâncias já todo-poderosas, capazes de utilizar completamente as possibilidades de manipu- lação e de destruição provenientes do próprio desenvolvimento da ciência”.58

O cientista não é ignorante quanto a esta situação. Mesmo assim, ainda a visualiza fragmentadamente, pois carrega noções pré-concebidas de que a ciência

58 MORIN, Edgar. Ciênciacomconsciência . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 18.

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(boa, pura, nobre e desinteressada), a técnica (que Morin acha tão ambivalente quanto a linguagem de Esopo) e a política (que por ser naturalmente má perverte o uso da ciência) são entendidas como substancialmente isoladas. Isso impede a visualização de uma complexidade maior que envolve todo universo, pois vivemos em uma era que estes três conhecimentos são cada vez mais inter-relacionados quanto às suas causas e efeitos.

A experimentação e a observação na ciência já se constituem por si mesmas técnicas de manipulação que, por sua vez, faz a ciência gerar novos modelos de experimentações e observações. Este círculo, responsável pelo avanço científico, teve origem de forma marginal e periférica na sociedade. Mas com o advento do racionalismo do século XVII, a ciência começou uma migração para a esfera dos poderes econômicos e estatais, que hoje a subvencionam segundo seus interesses e finalidades, que podem não ser necessariamente os mesmos do indivíduo comum. Emerge nesse ponto a questão de se saber sobre quem se responsabiliza pelo manejo científico e suas possíveis conseqüências na sociedade, tanto as positivas quanto as negativas e intermediárias. Surge assim um questionamento sobre o fato de que a responsabilidade deve ficar sob a custódia do Estado e do poder econômico. Sem essa indagação, pode-se acrescentar a Morin, a exclusão do indivíduo comum do poder das decisões, implicaria na aceitação passiva de que as distopias da ficção já se tornaram, e nunca deixarão de ser, realidade. Na aceitação passiva da assertiva de Adorno quando este alude à confusão entre meios e fins do capitalismo:

Mas a relação entre a vida e a produção, que degrada efectivamente aquela a um fenômeno efêmero desta, é de todo absurda. Invertem- se entre si o meio e o fim. Ainda não se eliminou totalmente da vida a suspeita do inconseqüente quid pró quo. A essência reduzida e degradada luta tenazmente contra o seu encantamento de fachada. A alteração das próprias relações de produção depende em grande medida do que ocorre na "esfera do consumo", na simples forma reflexa da produção e na caricatura da verdadeira vida: na consciência e inconsciência dos indivíduos. (ADORNO, 2001, p. 7).

O sujeito, para libertar-se da redução e degradação citadas, deve ter a noção de que a responsabilidade é algo que liga à sua própria consciência. Mas a história da ciência desenvolveu metodologias onde o sujeito deve ser minimizado, afastado em prol da objetividade. Desta forma, a responsabilidade naturalmente não faz parte

173 da ciência, no sentido de não haver critérios específicos para ela. Criadores da ficção e do mundo real, como Frankenstein, Tyrell e Venter, poderiam em tese alegar isso para não serem cobrados por suas criaturas. Não existe uma SociologiadaCiência com o poder de regrar a própria ciência, pois a responsabilidade não estaria em sua alçada. É, pois, necessário que toda a ciência se interrogue sobre as suas estruturas ideológicas e o seu enraizamento sociocultural. Aqui, da- mo-nos conta de que nos falta uma ciência capital, a ciência das coi- sas do espírito ou noologia, capaz de conceber como e em que con- dições culturais as idéias se agrupam, se encadeiam, se ajustam u- mas às outras, constituem sistemas que se auto-regulam, se auto-de- fendem, se automultiplicam, se autoprogramam. Falta-nos uma socio- logia do conhecimento científico que seja não só poderosa mas tam- bém mais complexa que a ciência que examina. (MORIN, s.d., p. 21)

Morin, ao usar o termo scienzanova expõe a necessidade de ter uma ciência nova de sentido complexo. “O conceito de ciência que vivemos não é absoluto, nem eterno e, portanto, a noção de ciência deve evoluir” 59 comportando autoconheci- mento e autoconsciência. Necessita-se assim, para Morin, de perspectivas metacien- tíficas sobre a ciência, de perspectivas epistemológicas que desvendem postulados metafísicos e mitológicos nas atividades da ciência. Ou seja, a ausência de um sociologia específica para a ciência se faz sentir, pois mostrar a sociedade como um todo “as problemáticas éticas levantadas pelo desenvolvimento incontrolado da ciência”, 60 para se “interrogar a ciência na sua história, no seu desenvolvimento, no seu devir, sob todos os ângulos possíveis”. 61

Enquanto isso não acontece, não há formas institucionalmente estabelecidas que orientem ações para o certo ou para o errado, levando em conta, como já dito, que tais conceitos são difíceis sem um amparo ético. Como no caso dos transgêni- cos, se deve ser a favor (para auxiliar no combate à fome) ou contra (efeitos fisiológicos ainda não estudados e contaminação das espécies nativas na Natureza). Ou no caso dos simulacros humanos. Se estes devem ser construídos algum dia para o auxílio laborial ou ignorados pela possibilidade de virem a representar um uma ameaça contra seus criadores, como nos alerta a Ficção Científica. É o que se pode entender como a incerteza da responsabilidade, algo já apontado pela FC dos anos 1960, conforme Schoereder:

59 BRONOWK apud MORIN, 2010, op. cit., p. 130. 60 MORIN, 2010, op. cit., p. 130. 61 Ibid.

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O ponto de vista básico é que os progressos tecnológicos não poderão melhorar a vida no planeta, sendo no entanto impossível detê-los. O problema todo encontra-se no próprio ser humano e na forma como ele utiliza suas criações. Não chega a ser uma retomada do tema do cientista contra suas criações (e vice-versa) como costumava acontecer, uma vez que as invenções do futuro, os artefatos em si, não são bons ou maus. Robôs e andróides, ou outras máquinas, não se voltam contra seu criador tentando destruí-lo ou dominá-lo. Eles são simplesmente o que o homem fez com que fossem. (SCHOEREDER, 1986, p.37).

Esta a incerteza da responsabilidade demonstra claramente que a ciência já é difícil de ser explicada até mesmo por ela própria. É complexo explicar como o seu avanço universal não barra o aumento da ignorância e um visível retorno ao encanta- mento do mundo natural – muitas vezes com suspeitos e supostos avais científicos. Ou então explicar porque quase nunca as conseqüências do desenvolvimento científico são acompanhadas, de alguma forma, de efeitos negativos que se voltam contra os homens como os replicantes ensandecidos de BladeRunner . De um lado disponibiliza-se aos indivíduos, que possam pagar por isso, sedativos potentes, energia nuclear, fartura de gasolina e a produção globalizada dos bens materiais de vida. Do outro se tem como reflexos diretos (e indesejados) bebês deformados como os da Talidomida nos anos 1950, a contaminação radioativa da explosão de Cherno- byl em 1986, o vazamento de petróleo no Golfo do México em 2010 e as atuais mudanças climáticas por causa do aquecimento global. São exemplos próximos do lado reverso da moeda de uma ciência. O progresso, de uma forma ou de outra, parece estar sempre acompanhado por alguma forma de regresso. Isto pode ser um reflexo da falta de poder dos cientistas sobre os seus próprios avanços. Um fenômeno conhecido por Ecologia da Ação que implica, segundo Morin, “que toda a ação humana, a partir do momento em que é iniciada, escapa das mãos de seu iniciador e entra no jogo das interações múltiplas próprias da sociedade, que a desviam de seu objetivo e à vezes lhe dão um destino oposto ao que era visado”. 62 Um pensamento que remete às palavras de Bertrand Russel publicadas em 1924:

Eles imaginam que uma reforma inaugurada pelos homens da Ciên- cia seria administrada tal como os homens da Ciência desejariam. [...] Essas são, é claro, ilusões; uma reforma, uma vez atingida, é co- locada nas mãos do cidadão comum. (RUSSEL apud FABIANO, 2009, p. 18).

62 Ibid, p. 128.

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Pelo jeito, alguns elementos fundamentais envolvidos em projetos como o da criação da primeira bomba atômica não tiveram consciência disso. Ou porque não se formaram lendo FC (como visto em 2.1) ou porque denegaram freudianamente suas responsabilidades, assim como fez Victor Frankenstein em relação ao seu monstro.

Embora o conhecimento científico tente retirar de si mesmo a responsabilida- de ética, na práxis existe uma ética pessoal por parte do pesquisador, desde que este se considere um prestador de serviço para o bem-estar da humanidade. Segundo Morin, “é o imperativo: conhecer para conhecer, que deve triunfar, para o conhecimento, sobre todas as proibições, tabus, que o limitam”. 63 A dissecação do corpo humano por Da Vinci para estudos anatômicos e a descoberta das luas de Júpiter por Galileu que derrubaram os centrismos da Terra e do Sol são exemplos clássicos e históricos disso, que ao olhos de hoje são inequivocamente positivos. 64 Mas experimentos da Biologia Molecular que estão em andamento, como alguns da Synthetics Genomics citados na seção anterior, pedem um posicionamento que necessita de consenso ético e uma prudência teleológica que ainda não existe. Seria ilusória a sensação de que uma consciência política de base científica pudesse guiar as pesquisas sem engessá-las qualitativamente. Também é igualmente ilusão pensar que uma consciência moral faça os resultados das pesquisas seguirem os fins pretendidos, pois a “ecologia da ação mostra que nossas ações, uma vez encontradas no mundo social, são arrastadas num jogo de interações/retroações em que são desviadas de seu sentido, tomando por vezes sentido contrário”.65 Assim, para Morin, o cientista deve questionar o sistema onde se insere e criar um conhecimento cientifico sobre a própria ciência sobre pressupostos de ordem antropossocial e natural, reformando as estruturas do próprio pensamento, algo difícil a curto prazo. Enquanto isso, deve-se assumir valores diversos conscientemente que ao mesmo tempo levem a uma conduta ética na formação de conhecimento (pesquisas científicas) e outra cívica e humana.

63 Ibid, p. 121. 64 À época de Leonardo, a Igreja não via com bons olhos a profanação de cadáveres, mesmo para estudos, algo que ele ignorou quando foi possível. Galileu Galilei foi ainda mais além ao divulgar uma constatação lógica após observar, através de uma luneta aperfeiçoada pelo próprio, satélites naturais girando ao redor de um outro astro que não fossem a Terra e o Sol. O que incontesta- velmente fazia o Geocentrismo e o Heliocentrismo perderem o sentido. 65 Ibid.

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Morin considera definitivamente encerrada a época de não julgamento de valor, e conseqüentes restrições que a ciência marginal antiga tinha até ser libertada no século XVII. Diante de seu potencial ameaçador dos tempos atuais, Morin considera que atualmente:

estamos na época da bigscience , da tecnociência, que desenvolveu poderes titânicos. Todavia, é preciso notar que os cientistas perderam seus poderes que emanam dos laboratórios; esses poderes estão concentrados nas mãos dos dirigentes das empresas e das autoridades do Estado. Há uma interação inaudita entre a pesquisa e o poder. (MORIN, 2010, p. 127).

E esta interação a que se refere, muitas vezes não é percebida porque muitos cientistas são arraigados àquelas noções separadas quanto à ciência, à técnica e à política. Não vêem que muito do que produzem não só não consegue fazer a sociedade progredir, como fica armazenado em bancos de dados ao bel prazer das potências políticas e econômicas. Este desapossamento cognitivo é facilitado pela fragmentação dos estudos. Tanto que é comum não saber ao certo o que um colega esteja pesquisando, principalmente se for de outra área. Muitas vezes, dentro de uma mesma instituição de graduação, há docentes altamente especializados mas que desconhecem até mesmo as denominações das demais disciplinas dos cursos onde atuam, quanto mais para o que servem. Além disso a pesquisa já hiperespe- cializada caiu na tecnoburocracia das instituições a que estão confinadas. Algo que tem efeito tão criptográfico, que muitos nem sequer conseguem entender como funciona, e qual a finalidade geral dos sistemas em que estão inseridos.

Curiosamente, esta visão de Morin se aproxima da gênese de DADoES, no que se refere à (falta de) ética nazista. Pois a cortina tecnoburocrática é para muitos a explicação (talvez a única) para justificar o genocídio judaico, pois muitos carrascos alegaram, diante dos tribunais, que apenas cumpriam ordens ao executa- rem milhares de judeus nas câmaras de gás. Por supostamente não visualizarem o processo como um todo, não necessitavam fazer uso de ética pessoal pois não detinham, como abordou Adorno, o poder de decisão sobre a ação que lhes competia. O sujeito moral se redimia de qualquer responsabilidade. Podiam tranqüilamente representar seus papéis de andróides antiempáticos.

É uma justificativa que se esvai de qualquer conteúdo que possa vir a ter se confrontada ao juízo moriniano de que “também somos seres com convicção

177 metafísica ou religiosa e, então, podemos, nas nossas outras vidas, ter imperativos morais e é isso que nos impede de sermos doutores Mabuse ou Fantástico” 66 – os cientistas dos filmes de FC “ Metropolis ” e “Dr. Fantástico” (1964) de Stanley Kubrick). Morin faz suas as palavras de Husserl em relação ao objetivismo científico, quando diz que há um buraco quanto à sua própria consciência. Tal lacuna vem da divisão entre o lado subjetivo, ligado as humanidades, do lado objetivo humano, ligado à racionalidade técnica. Daí não ser incomum conflitos éticos antagônicos, visto que o homem já é por natureza um ser bioantropológico e biossociocultural de alta comple- xidade. No ponto que cientificamente se encontra, o homem e sua sociedade sofrem os efeitos por ainda não concluírem as reflexões sobre os limites da definição do que é ser humano e desde quando, se na concepção, quando zigoto ou quando embrião. Que pode ser simplesmente uma massa celular para uma pesquisa ou um ser jurídico em instâncias legais, visto que mesmo que não seja ainda um cidadão, ele o é potencialmente.

Analogamente com a FC, os replicantes são limitados a quatro anos de vida porque são potencialmente humanos, isto é, fora da alienação, aspiram por cidada- nia. Algo que esbarra na falsa moral da sociedade de BladeRunner . Evidentemente a falsa moral se distingue da verdadeira. A primeira se baseia, mesmo que oculta- mente, em conflitos de valores e transforma tudo do ponto de vista antagônico e maniqueísta da polarização em bem e mal. Como nos filmes em que o vilão é simplesmente mal e o herói é simplesmente bom. Um clichê que Fancher, Peoples e Scott evitaram na roteirização de Blade Runner (como visto no primeiro capítulo), principalmente por preservarem as ambigüidades comuns à obra de Philip K. Dick quando este socialmente critica a ciência. Principalmente ao apoiar sua narrativa sobre a figura de um anti-herói romanesco.

A falsa moral justifica massacres étnicos e afins. Isto é, quando há imperativos contraditórios, como o aborto (imperativos que se relacionam, no caso, ao direito da mulher, da sociedade e do embrião). Para Morin, a sociedade atravessa por momen- tos de conflitos imperativos, como o do conhecimento pelo conhecimento, da ciência versus o conhecimento para salvaguardar a humanidade e a dignidade do homem. Estes conflitos devem ser discutidos em comitês bioéticos, que não devem ter o peso de necessariamente criar soluções em repentes abruptos e irrefletidos. Mas pelo

66 Ibid, p. 129.

178 menos de congregar personalidades de áreas distintas, para que haja pluralidade de opiniões no debate de tais assuntos. Talvez nunca se chegue a uma ética fixa solidamente estável, pois sempre haverá problemas surgindo ou se reformulando na liquidez moderna. A ciência é séria e perigosa demais para ficar apenas nas mãos dos cientistas e daqueles que passam a deter o fruto de suas cognições. A ciência passa a ser um problema cívico, de todos os cidadãos. Ela deve ir de encontro a eles. E se não se vê soluções, pelo menos que se tente uma moral provisória. A ciência não pode, para Morin, continuar sendo entendida epistemologica- mente a partir de pontos específicos e fragmentados. Ela necessita ser alvo de sua própria metodologia empírica, para que ela própria se repense e se reconfigure, no intuito de que se guie por caminhos éticos e evite a materialização das distopias alertadas – não necessariamente antecipadas – pela FC, como em BladeRunner .

As ciências humanas não têm consciência dos caracteres físicos e biológicos dos fenômenos humanos. As ciências naturais não têm consciência da sua inscrição numa cultura, numa sociedade, numa história. As ciências não têm consciência do papel na sociedade. As ciências não têm consciência dos princípios ocultos que comandam as suas elucidações. As ciências não têm consciência de que lhes falta uma consciência. (MORIN, 2010, não paginado).

Morin insinua que não haverá uma mudança de direção, uma transformação se não houver uma reforma no pensamento. Uma revolução nas estruturas de se pensar a ciência. Assim como ela, o pensamento deve ser complexo também. Para isso, necessita-se de uma ciência com consciência. Sendo consciência não no sentido de impor julgamentos de valor, preso apenas à ética única do conhecimento - esta “visão científica clássica elimina a consciência, elimina o sujeito, elimina a liberdade em proveito de um determinismo”. 67 Mas consciência no sentido intelectual e auto-reflexivo, “de que múltiplos e prodigiosos poderes de manipulações e destruições, originários das tecnociências contemporâneas, levantam, apesar de tudo, para o cientista, o cidadão e a humanidade inteira a questão do controle ético e político da atividade científica”. 68 “Uma ciência empírica privada de reflexão e uma filosofia puramente especulativa são insuficientes, consciência sem ciência e ciência sem consciência

67 Ibid, p. 129. 68 Ibid, p. 10.

179 são radicalmente mutiladas e mutilantes...” 69 Uma ciência sem uma conduta apoiada na ética para guiá-la, fora do controle de seus criadores, arquivada pelos seus mantenedores para o uso do que for mais conveniente para inferir energia na sociedade dos consumidores sem a preocupação com conseqüências funestas sobre a sociedade não deve ser ignorada pela sociedade. Esta deve ficar atenta aos alertas que eventualmente surjam nos mais variados veículos e suportes. Blade Runner , em sua forma de abordar a ciência aplicada ao corpo, a inserção frankensteiniana de vida neste para mercantilistas, é apenas mais um bom exemplo de um desses suportes, no caso, a Ficção Científica. É seguindo este pensamento, que esta pesquisa aponta este filme como mais um proporcionador de reflexões sobre o mundo que cerca o indivíduo. Para que este reflita sobre o papel da ciência dentro de uma sociedade líquido-moderna.

69 Ibid.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O papel que a Ficção Científica exerce dentro da cultura humana, ultrapassa seguramente o conceito que muitos têm sobre ela, ao considerá-la um mero entretenimento escapista para as massas. Seu poder de penetração junto ao público, sob os mais diversos formatos, eventualmente levanta questionamentos sobre a própria sociedade que a produz, por mais que suas representações se ambientalizem nas mais exóticas espaço-temporalidades.

No entanto, sua produção faz parte de uma indústria multinacional de produção de bens culturais bastante próxima do cidadão comum, totalmente inserida no sistema de produção capitalista da sociedade de consumidores. É um negócio como muitos outros que, direta ou indiretamente, é fonte de renda para grande número de profissionais. De solitários escritores, roteiristas e desenhistas às grandes equipes técnicas que materializam as realidades fictícias para a indústria cinematográfica. De grandes executivos que quantificam seus investimentos aos ambulantes informais das grandes cidades com suas cópias piratas. O envolvimento de todo este contingente humano evidentemente se reflete em lançamentos em níveis qualitativos diversos, algo que é trivial à produção cultural. Assim, uma infinidade de obras que consegue chegar, quando muito, a um público reduzido, logo após cai no esquecimento geral, muitas vezes até de seus próprios produtores. Mas algumas poucas podem se converter em clássicos. É uma condição que ressalta sua ambivalência entre ser um produto meramente comercial e um produto cultural com amplas possibilidades de auxiliar, ou mesmo fomentar, transformações sociais.

Dessa forma, alguns romances e filmes parecem adquirir uma reputação de patrimônio cultural, tamanha sua capacidade de influenciar e fecundar o pensamento humano. BladeRunner faz parte deste seleto grupo, assim como parte considerável da produção em Ficção Científica. Os questionamentos que propicia sobre a ética humana inserida em uma versão inflada de modernidade líquida, podem parecer supérfluos para uns, mas para outros, um conveniente ponto de partida para se elocubrar sobre os rumos da sociedade. Assim, este filme é considerado um alerta sobre o que a escassez de consciência na ciência pode acarretar em efeitos contrários à própria sociedade. Uma versão high tech da história de Frankenstein, que por sua vez é uma versão gótica do mito de Prometeu.

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Uma das maiores contribuições dos mitos, especificamente os da Grécia Anti- ga, talvez esteja em suas próprias contradições. Pois foi em nome de visão mais ra- cional sobre a natureza que a filosofia nasceu, e a partir desta, a ciência. No entanto, não deixa de ser atraente o fato de que a humanidade até hoje os usa para o auxílio do entendimento do sentido de sua própria ciência. Como nas constantes referências a Prometeu em momentos em que a ciência parece ir contra a um tipo de fusão entre tradição e senso comum, de que há na natureza coisas que não pode-riam, ou pelo menos não deveriam, ser conhecidas e muito menos manipuladas pelo homem.

De fato, tornou-se um truísmo pensar na ameaça que certos produtos manufa- turados pelo homem possam se voltar contra ele. Armas dos primeiros caçadores, barragens dos primeiros agricultores, construções, transportes e demais inovações que pontuam o devir social foram exemplos reais deste temor. Mas quando as inova- ções de alguma forma parecem, devido a limitações epistemológicas próprias de determinadas épocas ou regiões, adentrar na esfera do sensível, do mundo das idéias ligadas ao divino, o medo avulta. Coisas que deveriam ficar fora do alcance da racionalidade científica, sob o manto sagrado do respeito, para muitos só deveriam ser do âmbito de campos mais teóricos, como o filosófico, o teológico ou o artístico – onde se inclui diversas manifestações da Ficção Científica.

Mas não é isto o que acontece. Os limites entre o avanço tecnocientífico e a nebulosa região da intocabilidade respeitosa avançam em ritmo de progressão geométrica fomentado pelos interesses do capital. O sociólogo português Hermínio Martins aponta que estamos trocando de mito, saltando da Mitologia Grega para a literatura de Goethe, ao deixar a entender que “o ambicioso Fausto estaria derrotan- do o castigado Prometeu”. 1 2 Para ele, “a tecnociência contemporânea vivencia um desbalançamento em seus fundamentos filosóficos, com os notáveis avanços da vertente fáustica em campos como as ciências da vida e a teleinformática”. 3

É precisamente no primeiro campo que BladeRunner consegue chamar tanta a atenção para a urgência de se debater sobre a necessidade de alterações na sociedade, no que tange à ética, quanto às perspectivas do desenvolvimento

1 SIBILIA, M. P. Obsolescência do humano serve à economia e à tecnociência. Comciência . 2005. 2 Fausto foi um médico e alquimista alemão do século XV, ou XVI, que teria tido sua paixão pela ciência revigorada após um pacto com um demônio. O escritor alemão Goethe foi um dos principais responsáveis pela perpetuação desta lenda através da literatura. 3 MARTINS apud SIBILIA, 2005 op. cit.

182 tecnocientífico, principalmente em relação às políticas mercantilistas do atual estágio do sistema de produção capitalista. No mínimo fortalecendo uma cultura crítica que discuta sobre as possibilidades de desvio de percursos sócio-ambientais que se descambem irreversivelmente para algo próximo da distopia que ele apresentou.

No atual estágio do processo de globalização da economia, a sociedade vive a líquido-modernidade aludida por Bauman, onde projetos de sustentabilidade se perdem face ao descompromisso de setores para com os efeitos da exploração inconseqüente dos recursos naturais. Algo notadamente perceptível na depredação ambiental e no desperdício sistemático de bens de consumo – algo inerente ao giro do capital da liquidez moderna. Se a sociedade de hoje deseja evitar que as indústrias de biotecnologia de amanhã se enriqueçam vendendo seres vivos artificiais, como em Blade Runner, o ideal seria que seus membros cuidassem melhor da natureza hoje. Se não se deseja que a busca de uma vida melhor só se viabilize em uma exocolonização, mesmo que ainda tecnicamente, deve se voltar para o planeta Terra, mas sem esquecer este alerta da ficção. Isto remete às palavras de Edgar de Assis Carvalho:

Considerações dessa natureza costumam ser ainda entendidas como ficções científicas e, por isso, rotuladas como acrimônicas e anódi- nas, constituindo-se em prefigurações e projeções de um futuro ingló- rio que ninguém, em sã consciência, deseja. (CARVALHO, 2000, p.30)

Mas para emergir deste torpor, deste modo de vida inconseqüentemente imediatista condizente com a metáfora da sociedade de caçadores conforme apon- tou Bauman, os indivíduos talvez necessitem que haja a implementação de um pa- drão moral também globalizado, que ultrapasse fronteiras e permita ações no sentido de se levar a sociedade como um todo, ao caminho oposto das distopias da FC. Em boa parte dos contos e romances de Isaac Asimov, há uma espécie de Governo Mundial benevolente, que cuida da sustentabilidade, e evita que a população da Terra cresça a números alarmantes. Já Arthur C. Clarke considera, através de suas obras, que isso só ocorra sob a intervenção se uma cultura mais evoluída intelectual e belicamente, ou seja, uma extraterrestre. E Philip K. Dick mostra que talvez não haja mais tempo para que nenhuma dessas improváveis fantasias se concretize antes que a humanidade naufrague.

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Até agora, a humanidade tem conseguido com que a autodestruição anunciada em muitos calendários da ficção seja sempre postergada. De fato, isto demonstra que no jogo das probabilidades, a humanidade tem tido sorte. Mas não se sabe por quanto tempo tal condição seja perpetuada em vista do que é aventado no horizonte da tecnociência. Por isso discute-se a necessidade de viabilizar políticas que minimalizem o distanciamento entre a ciência natural e a do homem, no sentido de que sejam vistas com uma unidade complexa, apesar de suas inerentes peculiaridades. E com isso, criar condições para a maximização de seus efeitos benéficos e, simultaneamente, a redução drástica dos riscos contra o homem. E isso jamais acontecerá sem que haja juízos de valor amparados por uma consciência moralmente ética. E para tal, a ciência unificada será de fundamental importância. Pois poderá fazer com que os seus propiciadores interajam os conhecimentos de modo que as aplicações de suas descobertas sejam as mais amplas e benéficas possíveis.

Embora hoje seja improvável, o ideal é que isso fosse uma regra global. Evidentemente isso não se prende a uma esfera de comando político como as que entopem à mídia sobre ameaças de intervenções (ou às vias de fato destas) das nações econômica e belicamente mais poderosas sobre teocracias atrasadas, mas detentoras de fontes de energia ou supostamente ameaçadoras da paz mundial com supostos armamentos nucleares de fundo de quintal. Tal processo pacificador pode- ria causar um efeito diametralmente oposto, acelerando o fim da humanidade com a deflagração de um conflito nuclear sem precedentes. O problema é que muitas opções de se instituir uma ética que atravesse as fronteiras das economias globais, não se distanciariam fundamentalmente de idéias como as de Santo Agostinho, em relação à manutenção da Roma cristã, ou de São Tomás de Aquino em relação à universalização monárquica da Igreja Medieval. 4 Afinal, não foi sem motivos que viraram santos católicos, mesmo com a queda de Roma e a instauração da Inquisição pela Cristandade.

Porém, a lição histórica pode servir para guiar novos caminhos rumo a uma ética planetária, contornando erros de outrora, como alega Carvalho:

4 Cf. FIORI, José Luis. A moral internacional e o poder. CULT , São Paulo: Bragantini, v. 13, n.145, p. 54-56, abr. 2010.

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O princípio responsabilidade abre a possibilidade de uma ética plane- tária fundada no religamento, na compreensão, na magnanimidade e na resistência. Mediante estas práticas, fundadas na inseparabilidade da cultura científica e da cultura das humanidades, coloca-se a possibilidade da restauração sustentável de Gaia, mesmo que cenários do futuro encontrem-se ainda atrelados ao desenvolvimento unidimensional da biotecnologia, da robótica e da neurotecnologia. (CARVALHO, 2000, p. 26).

É perceptível que qualquer caminho que se tome no sentido se criar uma ética global, siga direções semelhantes, que aproximam os dois principais referenciais teó- ricos deste trabalho, Zygmunt Bauman e Edgar Morin. Enquanto aquele não propõe soluções objetivas, Morin oferece, por sua vez, um norte para atitudes conscientes.

Bauman deposita muita fé em movimentos ambientalistas e afins que se articulam e crescem progressivamente pelo planeta. Mas não se sabe se terão efetivamente algum dia força política significativa capaz de mudanças, apesar de grandes projetos de sustentabilidade ganharem cada vez mais o apoio popular e empresarial. No entanto, dificilmente conseguirão alterar expressivamente o atual modelo de produção da sociedade de consumidores, que se apóia sobre o desperdício e a renovação. Para ele:

A civilização moderna não tem tempo nem vontade de refletir sobre a escuridão no fim do túnel. Ela está ocupada resolvendo sucessivos problemas, e principalmente os trazidos pela última ou penúltima tentativa de resolvê-los. (BAUMAN, 2005, apud PINHEIRO, 2006).

Bauman não se vê como um pessimista e muito menos um otimista. Pois para ele o otimista é aquele que considera a atual condição do mundo a melhor possível e o pessimista aquele que acha que o otimista pode ter razão. Em sua posição de indefinição, acredita que de alguma forma haja alternativas de se melhorar o mundo, embora pareça não saber exatamente como. Talvez o grande mérito de suas idéias seja algo essencialmente semelhante ao da Ficção Científica: não exatamente propor soluções, mas antecipar problemas.

Morin, por sua vez, completa seu colega ao propor um tipo de pensamento que fatalmente se incorporará em quaisquer tentativas de se chegar a uma conscientização em nível planetário, seja ela imposta legalmente por um improvável governo centralizado, como o da FC, ou em acordos internacionais legitimados pelos povos de suas respectivas nações. Seu pensamento aponta para a necessidade de

185 se desenvolver formas para se entender a fragmentação tanto das ciências da natureza quanto das humanas como tênues limites didáticos que visam facilitar ao estudo, e não engessá-lo. Isto é, tamanha a sua complexidade, a ciência deve ser trabalhada transdisciplinarmente, com os conhecimentos adquiridos longe do encarceramento dos detentores do poder político e econômico.

A complexidade não é bem uma novidade. Na verdade, o conhecimento tecnocientífico que alicerça a modernidade eventualmente necessita de entrosa- mento colateral entre afins. O que Morin propõe é que a interação ocorra em níveis mais genéricos e menos específicos, possibilitando que as ciências humanas e naturais possam desvendar conjuntamente a complexidade da natureza como um todo, mesmo que fragmentada no saber humano. A complexidade não deve ser entendida passivamente, sendo irrelevada em nome de divisões simplificadoras do conhecimento. A complexidade deve ser um escopo para onde as reconfigurações das formas de estudo e experimentações científicas devam apontar. Sua visualização não deve ser encarada como um desestímulo, ao contrário, como uma porta que se abre para melhores alternativas de aplicação dos recursos científicos, o que conseqüentemente propiciará melhores condições de vida para a sociedade.

O pensamento voltado para a complexidade não significa que se deva busca a completude do conhecimento. Weber já alertou que a ciência jamais alcançará a plenitude do conhecimento, pois o universo será sempre maior do que ela. O pensamento complexo deve, sim, tentar enxergar o mundo desembaraçadamente, evitando formas mutiladoras do conhecimento. Estas são propiciadoras do engano de que se possa encontrar a completude em fragmentos incompletos.

Se o indivíduo é ao mesmo tempo físico, biológico, social e psíquico, fica claro que a complexidade se manifesta na interação, na identidade e na distinção entre estes aspectos. É o contrário do que pode parecer quando se vê uma área do conhecimento científico especializada em cada um deles. Esta simplicidade é útil para a formação didática dos profissionais que se dedicam a elas, mas por outro lado, costumam eliminar a lateralidade dos olhares. Alguém pode ir ao cardiologista e se descobrir cardiacamente saudável e no entanto falecer pouco depois de uma doença pulmonar que passara despercebida por não ser especialidade daquele médico. Ou seja, o fenômeno da vida não é algo simples, ao contrário, faz parte de uma complexa rede de fenômenos físico-químicos inter-retroativos que são

186 impossíveis de serem entendidos isoladamente. Assim acontece com todas as vidas, com todos os fenômenos naturais da Terra e do universo. O homem só avança em seu aparato tecnológico, para a produção das condições materiais da vida, quando cruza o seu conhecimento universal. Se desejar melhorar as condições da vida social, precisará expandir muito mais este conhecimento, seccionando-o o mínimo necessário para fins didáticos. E depois, evitar o seu confinamento tornando-o de fácil acessibilidade, como por exemplo, disponibilizando-o na rede.

Evidentemente que tal atitude exigiria um mundo utopicamente perfeito que provavelmente nunca existirá. Diante disto, não se deve disponibilizar conhecimento que possa ser usado para o malefício de outrem. Se um laboratório desenvolveu técnicas de criar artificialmente um vírus mortal, tal informação não deveria ser acessível. Mas o que se questiona em quase todo este trabalho, é a ética, ou falta dela, ao se desenvolver tal criatura. Uma ciência com consciência, deve se voltar para a permanência humana no planeta, não o contrário, por melhor que se paguem aos seus pesquisadores.

Não se sabe se o caminho apontado por Morin terá mais chance de assumir uma missão salvadora da humanidade do que as propostas de Bauman. No entanto, parecem levar a um futuro onde a sociedade consiga viver com certa paz com as novas ordens de capitalismo, que quiçá venham a existir.

O filme BladeRunner é uma ficção que aborda uma complexidade de temas baumanianos e morinianos. E é a partir de seu argumento que dois casos científicos sugerem o quanto o entendimento da transdisciplinaridade e da complexidade do pensamento pode ser útil para a humanidade. Ambos voltados para o segredo da vida, sendo esta abordada sob diferentes conceitos.

O primeiro caso evidencia a transdisciplinaridade. Remete às pesquisas realizadas desde os anos 1980 em Los Alamos, EUA, que visam a criação de vida artificial. Os cientistas envolvidos nesta eram orientados pelos estudos do programador de computadores Christopher Langton sobre a teoria dos autômatos do matemático húngaro John Von Neumann. Assim como Langton, eles entendem a vida como “uma propriedade da organização da matéria, antes de ser uma

187 propriedade já organizada da matéria”. 5 A vida, nesse conceito, não precisa necessariamente do suporte bioquímico do corpo. Pode ser considerada como tal desde que consiga realizar fidedignamente processos e comportamentos peculiares à vida biológica. Isto é, para as finalidades dos estudos desenvolvidos no mesmo município onde se criou a primeira bomba atômica – Los Alamos – a vida faz literalmente parte da não-vida. Para eles, não há diferença substancial entre um vírus real e um de computador. Visam, assim, o desenvolvimento de programas que possibilitem a melhoria da computação gráfica, e que possam auto-replicar através de códigos “genéticos” digitais e evoluírem darwinianamente, algo que efetivamente conseguiram realizar no início dos anos 1990. Dessa forma possibilitaram suportes epistemológicos para o entendimento sobre a origem da vida biológica e para a criação de robôs com algum tipo de consciência. Algo no caminho de um replicante. O que chama atenção é que tais estudos só acontecem mediante o cruzamento das mais diversas áreas do conhecimento natural e humano, tais como a computação, a antropologia, biologia, genética, bioquímica, etologia, física etc. 6

O segundo tema constata que a prepotência humana em relação ao entendimento dos segredos da vida através do seqüenciamento do genoma humano foi uma falácia. Em 1999, um exercício de imaginação com ares de FC antecipava que em 2010, isto é, uma década após a finalização do mapeamento genômico, poder-se-iam encomendar remédios manipulados especialmente para a genética específica de um indivíduo. Entre outras maravilhas, terapias gênicas inviabilizariam o surgimento de doenças hereditárias anos antes delas se manifestarem. No entanto, o futuro chegou e a sociedade ainda se encontra distante desta utopia.

A grande decepção se deve à descoberta de que a organização dos genes humanos é de extrema complexidade. Descarta-se, assim, a antiga concepção de que cada um dos 25 mil genes do DNA seria responsável respectivamente para cada uma das milhares de características do corpo humano. Isto só é válido ainda para características muito simples, como a propensão para algumas doenças raras. Já o surgimento de doenças mais comuns como o câncer e o diabetes está submetido, em parte, a fatores ambientais em inter-retroatividades constantes com os genes. E estes, ainda se interagem entre si em recombinações sob influência das condições

5 LEVY, Steven. The riddle of artificial life. Popularscience , New York: v. 241 n.4, out. 1992, p. 100 (tradução nossa). 6 Cf. Ibid, p. 99.

188 do sistema imunológico e do gerenciamento de uma parte da molécula de DNA que ingenuamente a ciência chamava de lixo, por acreditar que não servia para nada. Não sabiam os cientistas que na verdade o que foi para a lata de lixo da ciência eram sua antigas visões simplistas da natureza.

Projetos de se criar um banco de dados particular do genoma humano para a formação de um catálogo de vendas, como o de Walter Gilbert (Prêmio Nobel da Química em 1980) e o de Craig Venter (o criador da bactéria artificial visto em 4.2) de se patentear os genes humanos perderam todo o sentido de repente. Assim como ganhou impulso a posição de Morin contra o arquivamento da informação científica.

De modo algum isso significa que a Engenharia Genética tenha fracassado. Mas hoje suas promessas estão humildemente postergadas para o futuro, tanto quanto os andróides, carros voadores, monotrilhos e cidades lunares dos futuros alternativos da FC. Para que as promessas genéticas se viabilizem, e os grandes investidores financeiros retornem – afinal a complexidade transformou seus 39,9 bilhões de dólares em uma grande bolha diante da falência de muitas empresas farmacêuticas que esperavam lucros estratosféricos na alvorada do terceiro milênio – a ciência está finalmente apostando no entendimento da complexidade da vida.

Hoje os dados do Projeto Genoma Humano não são mais vistos como o fim de um longo empreendimento, mas sim como o início de um outro muito maior e mais complexo, que foi batizado de Crowdsourcing. 7Ou seja, com o barateamento natural das técnicas de seqüenciamento genético, hoje já é possível ter como meta o estudo cruzado do genoma de 100 mil pessoas diferentes para que a analogia entre estes possa permitir compreensões mais amplas sobre a complexidade do funciona- mento dos genes como um todo. Os cientistas estão cientes de que este estudo só conseguirá certa plenitude através da divulgação de seus dados na internet para a colaboração de seus pares. Ou seja, não farão parte do neo-obscurantismo dos bancos de dados reservados. 8

Dessa forma, fica difícil de se fugir de uma visão antropomórfica e antropocên- trica da natureza. Pois parece que a própria tomou consciência dos riscos que corre e sorrateiramente empurra o homem ao entendimento de sua própria complexidade.

7 Busca de fontes na multidão (tradução nossa). 8 Cf. CINQUEPALMI, J. Vito. A genética fracassou? Superinteressante , São Paulo: v. 24, n.282, set. 2010, p. 61.

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Neste contexto, BladeRunner , como representante de um tipo de Ficção Científica consciente do que deva ser o papel na educação humana, pode, sim, contribuir para trazer à luz reflexões sobre a ética científica em uma sociedade líquido-moderna. Blade Runner pode, no mínimo, alertar pedagogicamente para o fato de que as opções sobre a aplicação das descobertas científicas devem fazer parte de um debate geral. E para tal, a população deve ser esclarecida de que as coisas não são tão simplistas como parecem às vezes. E deve-se começar isto na escola.

É preciso que ela [a Educação no século XXI] tenha a idéia da unidade da espécie humana, sem encobrir sua diversidade. Há uma unidade humana, que não é dada somente pelos traços biológicos do ser, assim como há a diversidade marcada por outros traços que não os psicológicos, culturais e sociais. Compreender o ser humano é entendê-lo dentro de sua unidade e de sua diversidade. É necessário conservar a unidade do múltiplo e a multiplicidade do único. A Educação, e esse é o desafio que se coloca para os professores do futuro, deve ilustrar o princípio de unidade e de diversidade em todos os seus domínios. (MORIN, 2000, apud VIANA, 2000).

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APÊNDICE A – Filmes estrangeiros citados e respectivos títulos originais

1492 - A Conquista do Paraíso ( 1492:ConquestofParadise ); 1984 ( NineteenEightyFour ); 2001 Uma Odisséia no Espaço ( 2001:ASpaceOdyssey ); 2035 – Cidade do Pesadelo ( NightmareCity2035 ); A Fúria das Feras Atômicas ( TheFoodoftheGods ); A Ilha ( TheIsland ); A Ilha do Doutor Moreau ( TheIslandofDr.Moreau ); A Lenda ( Legend ); A Nós a Liberdade ( Ànouslaliberté ); Akira ( Akira ); Alien – O Oitavo Passageiro ( Alien ); Alien 4 A Ressurreição ( Alien:Resurrection ); Alphaville ( Alphaville,uneétrangeaventuredeLemmyCaution ); Assassino Virtual ( Virtuosity ); Assassinos Cibernéticos ( Screamers ); Avatar ( Avatar ); Brazil - O Filme ( Brazil ); Caçador de Andróides ( BladeRunner ); Caçadores da Arca Perdida ( RaidersoftheLostArk ); Cargo ( Cargo ); Chuva Negra ( BlackRain ); Confissões de um Louco ( Confessionsd'unBarjo ); Contatos Imediatos do Terceiro Grau ( CloseEncountersoftheThirdKind ); Daqui a Cem Anos ( ThingstoCome ); Dias Perigosos (Dangerous Days); DOA -Vivo ou Morto ( DOA:DeadorAlive ); Dr. Fantástico ( Dr.Strangeloveor:HowILearnedtoStopWorryingandLovethe Bomb ); E.T. O Extraterrestre ( E.T.TheExtraterrestrial ); Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451); Filhos da Esperança ( ChildrenofMen );

209

Virgens de Fogo do Espaço Sideral (FireMaidensFromOuterSpace ); Frankenstein (Frankenstein); Fuga do Século XXIII ( Logan'sRun ); Gattaca - Experiência Genética (Gattaca); Geração Proteus ( DemonSeed ); Gladiador ( Gladiator ); Guerra dos Mundos ( WaroftheWorlds ); Guerra nas Estrelas ( StarWars:EpisodeIV–ANewHope ); Impostor ( Impostor ); Independence Day ( IndependenceDay ); Inteligência Artificial ( ArtificialIntelligence:AI ); Jesse James encontra a Filha de Frankenstein ( JesseJamesMeetsFrankenstein's Daughter ); Johnny Mneumonic (Johnny Mneumonic); Matrix(Matrix); Metropolis(Metropolis); MinorityReport , A Nova Lei ( MinorityReport ); No Mundo de 2020 ( SoylentGreen ); O 6 o Dia ( The6thDay ); O Dia em que a Terra Parou ( TheDaytheEarthStoodStill ); O Exterminador do Futuro ( TheTerminator ); O Homem Bicentenário ( BicentennialMan ); O Homem Duplo ( AScannerDarkly ); O Iluminado ( TheShinning ); O Império Contra-Ataca ( StarWars:EpisodeVTheEmpireStrikesBack ); O Incrível Homem que Encolheu ( TheIncredibleShrinkingMan); O Pagamento ( ); O Retorno de Jedi ( StarWars:EpisodeVIReturnoftheJedi ) O Segredo do Abismo ( TheAbyss ); O Vidente ( Next ); O Vingador do Futuro ( TotalRecall ); Os Meninos do Brasil ( TheBoysfromBrazil ); Os Substitutos ( Surrogates ); Pacto de Sangue ( DoubleIndemnity );

210

Papai Noel Conquista os Marcianos ( SantaClausConquerstheMartians ); Parque dos Dinossauros ( JurassicPark ); Renaissance(Renaissance); Robocop , o Policial do Futuro ( Robocop ); Rollerball , os Gladiadores do Futuro ( Rollerball ); Screamers – A Caçada ( Screamers:TheHunting ); Tempos Modernos ( ModernTimes ); Thelma & Louise (Thelma & Louise); THX-1138 (THX 1138); Tron, o Legado (TRON: Legacy ); Tron, uma Odisséia Eletrônica (TRON); V de Vingança ( VforVendetta ); Viagem Fantástica ( FantasticVoyage ).

211

APÊNDICE B – Livros estrangeiros citados e respectivos títulos originais

1984 (1984); A Cidade do Sol ( Lacittàdelsole ); A Cidade dos Mortos-Vivos ( CityoftheLivingDead ); A Cidade e as Estrelas ( TheCityandtheStars ); A Guerra dos Mundos ( WaroftheWorlds ); A Ilha do Doutor Moreau ( TheIslandofDr.Moreau ); A Máquina do Tempo ( TheTimeMachine ); A Nova Utopia ( DiaryofaPilgrimage(andsixessays) ) A República ( Πολιτεία ); Admirável Mundo Novo ( BraveNewWorld ); Blade Runner 2: A Fronteira do Humano ( BladeRunner2:EdgeofHuman ); Considerações Sobre o Governo da Polônia ( ConsidérationssurleGouvernementde Pologne ); Crepúsculo ( Twilight ); Daqui a Cem Anos - Revendo o Futuro ( LookingBackward ); Despossuídos: uma utopia ambígua ( TheDispossessed:AnAmbiguousUtopia ); Deus ex-machina ( Deusexmachina ); Eu Sou a Lenda ( IAmLegend ); Frankenstein ou o Prometeu Moderno ( FrankensteinortheModernPrometheus ); Neuromancer ( Neuromancer ); Nós ( MbI ); Nova Atlântida ( NewAtlantis ); O Alimento dos Deuses ( FoodoftheGods ); O Caçador de Andróides ( DoAndroidsDreamofElectricSheep? ); O Fim da Infância ( Childhood'sEnd ); O Homem Terminal ( TheTerminalMan ); O Longo Amanhã ( TheLongTomorrow ); Parque dos Dinossauros ( JurassicPark ); Pirata de Dados ( IslandsintheNet ); Quando o Adormecido Acorda ( WhentheSleeperWakes ); Recordações por Atacado ( WeCanRememberItforYouWholesale ); Reflexões sobre a Revolução Francesa ( ReflectionsontheRevolutioninFrance );

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Sobre a Pedra Branca ( SurlaPierreBlanche ); Ubik (Ubik); Um Cântico para Leibowitz ( ACanticleforLeibowitz ); Uma História de Tempos Futuros ( TheShapeofThingstoCome ); Uma Utopia Moderna ( AModernUtopia ); Utopia ( Utopia ); VALIS ( VALISVastActiveLivingIntelligenceSystem ).